Museologia e Integração: reflexões sobre as condições de possibilidade na América Latina

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Transcript of Museologia e Integração: reflexões sobre as condições de possibilidade na América Latina

Revista VOX MUSEI arte e património

Volume 1, número 2, julho-dezembro

2013 — Tema Património, Educação e Museus

ISSN 2182-9489, e-ISSN 2182-0002

Revista Internacional — Comissão Científica

e Revisão por Pares (sistema double blind review)

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes

da Universidade de Lisboa, Portugal

Grupo de Pesquisa, CNPq — Memória, Ensino

e Património Cultural, Universidade Federal

do Piauí, Brasil

Revista VOX MUSEI: arte e património

Volume 1, Número 2, julho-dezembro

2013 — Tema: Património, Educação e Museus

ISSN 2182-9489, e-ISSN 2182-0002

Revista Internacional — Comissão Científica

e Revisão por Pares (sistema double blind review)

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes

da Universidade de Lisboa, Portugal

Grupo de Pesquisa, CNPq Memória, Ensino e Património

Cultural, Universidade Federal do Piauí, Brasil

Periodicidade: semestral

Revisão de submissões: arbitragem duplamente cega

pelo Conselho Editorial

Direção: Áurea da Paz Pinheiro

Projecto gráfico: Jorge dos Reis

Imagem da capa: Cássia Moura

Paginação: Inês Chambel

Relações públicas: Isabel Nunes

Logística: Lurdes Santos

Gestão financeira: Cristina Fernandes e Isabel Pereira

Propriedade e serviços administrativos

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa,

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, PT

Grupo de Pesquisa — CNPq Memória, Ensino

e Património Cultural, Universidade Federal do Piauí, BR

Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058

Lisboa, Portugal

T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689

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ISSN 2182-9489

e-ISSN 2182-0002

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CONSELhO EDITORIAL • PARES ACADéMICOS

NúMERO 2

PARES ACADéMICOS INTERNOS

Áurea da Paz Pinheiro, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Universidade de Lisboa

Alice Nogueira Alves, Portugal

Universidade de Lisboa

Edvania Assis, Brasil

Universidade Federal do Piauí

érica Rodrigues Fontes, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Fernando António Baptista Pereira, Portugal

Universidade de Lisboa

João Paulo Queiroz, Portugal

Universidade de Lisboa

Jorge dos Reis, Portugal

Universidade de Lisboa

Luís Jorge Gonçalves, Portugal

Universidade de Lisboa

Marta Rovai, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Roseli Farias Melo de Barros, Brasil

Universidade Federal do Piauí

PARES ACADéMICOS EXTERNOS

Ângela Âncora da Luz, Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Cristiane de Andrade Buco, Portugal

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Eloisa Capovila da Luz Ramos, Brasil

Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Enrique Caetano henriquez, Espanha

Universidade de Sevilha

José Antonio Aguiar, Espanha

Universidade de Sevilha

Manuel Calado, Portugal

Instituto Politécnico de Setúbal

Maria de Fátima Pereira Alves, Portugal

Universidade Aberta

Marta Rosa Borin, Brasil

Universidade Federal de Santa Maria

Mila Simões de Abreu, Portugal

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Miridan Bugyja Britto Falci, Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Nuno Sacramento, Reino Unido

Scottish Sculpture Workshop

Olga Duarte Piña, Espanha

Universidade de Sevilha

Editorial

Áurea da Paz Pinheiro

PÁG. 16-17

Artigos

CENTRO DE INTERPRETAçãO DO PAMPA:

a construção de um museu universitário-comunitário

PAMPAS UNDERSTANDING CENTER: the construction

of a community – college museum.

Alexandre dos Santos Villas Bôas

heloísa helena Fernandes Gonçalves da Costa

PÁG. 20-32

A CONSERVAçãO E RESTAURO

NA FACULDADE DE BELAS-ARTES

ThE CONSERVATION AND RESTORATION

AT ThE FACULTY OF FINE ARTS

Alice Nogueira Alves

Fernando António Baptista Pereira

Fernando Rosa Dias

PÁG. 33-42

MUSEOS DE LA MEMORIA Y EDUCACIóN

PARA LOS DEREChOS hUMANOS. Un estudio

de caso: MUME — Uruguay

MEMORY MUSEUMS AND EDUCATION ABOUT ThE

hUMAN RIGhTS. A case study: MUME — Uruguay

Ana María Sosa González

PÁG. 43-54

MUSEUS DO DISTRITO DE VISEU: a construção

de uma rede de proximidade territorial

MUSEUMS OF DISTRICT OF VISEU: framing

of a territorial proximity network.

Ana Rita Santos Almeida Martins Antunes

PÁG. 55-68

O MUSEU DE ARTE DO RIO — MAR:

quando “navegar é preciso”

RIO DE JANEIRO MUSEUM OF ART:

for when “you need to browse”

Ângela Âncora da Luz

PÁG. 69-77

UNIVERSIDADE, EDUCAçãO, MUSEUS

E AçãO PATRIMONIAL

UNIVERSITY, EDUCATION, MUSEUMS AND CREATING

PATRIMONIAL SITES.

Áurea da Paz Pinheiro

Eloisa Capovila da Luz Ramos

Marta Rosa Borin

PÁG. 78-91

UM MUSEU DE ARTE UNIVERSITÁRIO BRASILEIRO:

histórias de um projeto de arte em devir?

A BRAzILIAN UNIVERSITY ART MUSEUM: stories

of an art project in becoming?

Carolina Ruoso

PÁG. 92-103

O FOTOGRÁFICO COMO PATRIMóNIO IMATERIAL

PhOTOGRAPhY AS IMMATERIAL hERITAGE

Maria Cecília Silveira de Faria Gomes

PÁG. 104-112

PROJETO CULTURAL SARAU NOTURNO:

desenvolvendo a Educação Patrimonial

através da arte cemiterial

CULTURAL PROJECT SARAU NOTURNO: developing

the heritage Education through cemeterial art

Clarisse Ismério

PÁG. 113-127

íNdIcE

ARTE E COMUNIDADES: Um Arquivo Poético

sobre o Envelhecimento

COMMUNITY ART: A Poetic Archive on Aging

Constança Saraiva

PÁG. 128-138

MUSEOLOGIA E INTEGRAçãO: reflexões sobre

as condições de possibilidade na América Latina

MUSEOLOGY AND INTEGRATION: reflections about

the conditions of possibility in Latin America

Daniel Maurício Viana de Souza

PÁG. 139-147

O PATRIMôNIO CINEMATOGRÁFICO E O GOVERNO

DOS hOMENS: as políticas de subjetivação postas em

funcionamento nas relações interculturais

da contemporaneidade

ThE CINEMATIC hERITAGE AND ThE GOVERNMENT

OF MEN: the politics of subjectivization put into

operation in intercultural relations of contemporary

Fábio zanoni

PÁG. 148-167

NARRATIVAS MUSEAIS NA UNIVASF:

caminhos a/r/tográficos em construção

MUSEOLOGICAL NARRATIVES IN UNIVASF:

a/r/tographic ways under construction

Flávia Maria de Brito Pedrosa Vasconcelos

PÁG. 168-175

INTERAçõES DISCURSIVAS NO TRABALhO

DE MEDIAçãO EM ARTES VISUAIS

DISCURSIVE INTERACTIONS IN ThE PROCESS

OF MEDIATION IN VISUAL ARTS

Gabriela Bon

PÁG. 176-186

DESENVOLVIMENTO DO PúBLICO INTERNO.

Reflexões acerca da importância de se investir nos

funcionários de museus

DEVELOPMENT OF INTERNAL AUDIENCE. Reflections

about the importance of investing in museum employees

Gabriela Figurelli

PÁG. 187-199

MUSEUS E CRIATIVIDADE

MUSEUMS AND CREATIVITY

Inês Ferreira

PÁG. 200-214

A PAREDE DA RUA: modernidade do museu

ao contrário

ThE WALL STREET: modernity of the unlike museum

Isabel Nogueira

PÁG. 215-221

SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL

E APROPRIAçãO SOCIAL NO CONJUNTO

hISTóRICO PRAçA DA GRAçA

ENVIRONMENTAL SUSTAINABILITY AND SOCIAL

APPROPRIATION IN PRAçA DA GRAçA

hISTORICAL SET

Ísis Meireles Rodrigues

PÁG. 222-234

MUSEUS LOCAIS: conservação

e produção da memória coletiva

LOCAL MUSEUMS: preservation and production of

collective memory

Joana Ganilho Marques

PÁG. 235-246

EDUCAçãO PATRIMONIAL E PRODUçãO AUDIOVISUAL

hERITAGE EDUCATION AND AUDIOVISUAL PRODUCTION

João Paulo Rodrigues Pires

PÁG. 247-254

A MUSEOLOGIA BRASILEIRA: novo marco regulatório

BRAzILIAN MUSEOLOGY: a new regulatory mark

José Ricardo Oriá Fernandes

PÁG. 255-262

OS MUSEUS COMO ESPAçOS DE SOCIABILIDADE:

as experiências educativas do museu de mértola

MUSEUMS AS SPACES OF SOCIABILITY: the

educational experiences of mértola’s museum

Lígia Rafael

Maria de Fátima Palma

PÁG. 263-275

A EDUCAçãO DO RISCO:

uma proposta de inserção sócioeconómica

ThE RISK EDUCATION:

a proposal for socioeconomic inclusion

Luís Gustavo de Nascimento

PÁG. 276-281

VISANDO à INCLUSãO SOCIAL:

criações a partir do patrimônio

IN SEARCh OF SOCIAL INCLUSION:

creations from patrimony

Márcia Isabel Teixeira de Vargas

Marilda Mena Barreto Silva Saucedo

PÁG. 282-294

IGREJA DE NOSSA SENhORA DO MONTE:

história, identidade e preservação

ChURCh OF OUR LADY OF MOUNT:

history, identity and preservation

Maria da Graça Andrade Dias

PÁG. 295-308

UM PROJETO DE NOVAS TECNOLOGIAS APLICADO

NA CASA-MUSEU DR. ANASTÁCIO GONçALVES

NEW TEChNOLOGIES PROJECT APPLIED AT

CASA-MUSEU DR. ANASTÁCIO GONçALVES

Mariana Mendes de Mesquita

PÁG. 309-322

LA ENSEñANzA DEL PATRIMONIO EN LA

FORMACIóN INCIAL DEL PROFESORADO. Desde

una perspectiva histórico-artística a una didáctica

del patrimonio cultural integrado.

hERITAGE TEAChING IN TEAChER TRAINING.

From an art-historical perspective to a didactic

of cultural integrated heritage.

Olga Duarte Piña

PÁG. 323-335

A RECONSTRUçãO hISTóRICA DE OBJETOS

DE CIêNCIA E TECNOLOGIA

RECONSTRUCTION OF hISTORICAL OBJECTS

OF SCIENCE AND TEChNOLOGY

Paulo de Melo Noronha Filho

PÁG. 336-347

MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA

E LARGO DO DR. JOSé DE FIGUEIREDO:

linha que une — uma experiência de intervenção concreta

MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA AND LARGO

DO DR. JOSé DE FIGUEIREDO: Connecting line

— specific intervention experience

Pedro Soares Neves

PÁG. 348-357

A MUSEALIzAçãO DO PATRIMôNIO

CULTURAL DO BAR OCIDENTE

ThE MUSEALIzATION OF BAR OCIDENTE

CULTURAL hERITAGE

Priscila Chagas Oliveira

PÁG. 358-367

ARTE, ARQUEOLOGIA E MUSEUS.

Correspondências e Mediações Contemporâneas

ART, ARChAEOLOGY AND MUSEUMS. Contemporary

Correspondences and Mediations

Sara Navarro

PÁG. 368-375

O MATERIAL E O IMATERIAL NA COLEçãO

ETNOGRÁFICA DE COzINhA DO MUSEU

CARLOS MAChADO

ThE GENESIS OF ThE INDUSTRIAL AND

DECORATIVE ARTS MUSEUMS

Sofia Carolina Pacheco Botelho

PÁG. 376-388

A GéNESE DOS MUSEUS DE ARTES

INDUSTRIAIS E DECORATIVAS

ThE TANGIBLE AND ThE INTANGIBLE AT ThE

OF ThE CARLOS MAChADO MUSEUM

Sofia Leal Rodrigues

PÁG. 389-402

ISTO NãO é UM BANDEIRANTE! O trabalho de

mediação na exposição “imagens recriam a história”

ThIS IS NOT A “BANDEIRANTE”! The educational work in

the exhibition “images recreate the history”

Valéria Peixoto de Alencar

PÁG. 403-415

Resenha

TEMPO, MEMóRIA E PATRIMôNIO CULTURAL

Áurea da Paz Pinheiro

PÁG. 418-420

crítica de Arte e design

Senhores de seu ofício

Cássia Moura

PÁG. 422-425

Entrevista

A MUSEOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Fernando António Baptista Pereira

PÁG. 428-443

Notas de dissertações e Teses

MUSEUS DO DISTRITO DE VISEU: a construção

de uma rede de proximidade territorial

Museums of District of Viseu: framing of a territorial

proximity network.

Ana Rita Santos Almeida Martins Antunes

ARTE E COMUNIDADES, UM ARQUIVO POéTICO

SOBRE O ENVELhECIMENTO

Community Art, a Poetic Archive on Aging

Constança Saraiva

PÁG. 446-447

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EditorialÁurea da Paz Pinheiro

A Revista VOX MUSEI arte e património está vinculada ao Grupo de Pesquisa, CNPq, Universidade Federal do Piauí “Memória, Ensino e Património Cultural”, e ao CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

A seleção da temática justifica-se pela percepção de que, atualmente, se re-conhece o papel fundamental que os museus exercem como instrumentos de pesquisa, educação, salvaguarda e divulgação do património cultural e natural. Citem-se os desafios impostos aos Estados Membros da ONU às comunidades e às instituições governamentais e não-governamentais, as investigações, refle-xões e intervenções nos territórios; emblemáticos os inventários do patrimó-nio cultural imaterial, divulgação e estudos da diversidade de metodologias e propostas teóricas, suportes textuais, orais e audiovisuais como forma de apro-ximar e compreender as normas orientadoras propostas pela Convenção da Unesco de 2003.

Portanto, indiscutível as potencialidades dos patrimónios, dos museus, das artes, do turismo, dos saberes e fazeres presentes nos territórios e nas comunida-des para estudo, investigação, sensibilização e visibilidade da diversidade cultu-ral brasileira e portuguesa.

O ICOM ‐ International Council of Museums (l974) destaca que o museu deve construir formas diversas de relacionar-se com os públicos, com as pessoas nas comunidades; tendo em linha de conta que o museu “[…] é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimen-to, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe, para fins de estudos, educação e lazer, evidência material das pessoas e de seu meio ambientes”.

Neste número da Revista VOX MUSEI arte e património, os autores apontam vários caminhos de investigação, estudo e intervenção, com destaque para a fun-ção social dos museus, as ações educativas, a diversidade cultural, a participação comunitária, o acesso da sociedade às manifestações culturais e ao património material e imaterial.

Nos textos, destacam-se os serviços educativos dos museus. A ação educa-cional é compreendida como de fundamental importância para o desenvolvi-mento do processo museológico; os acervos são apontados como referências im-portantes para o desenvolvimento das ações educacionais nos museus, levando em consideração a missão das instituições e os anseios dos atores sociais com os quais os projetos dos museus estejam a desenvolverem-se. São recorrentes nos artigos as teorias educativas e as correntes pedagógicas que refletem sobre as ações dos museus, as concepções de Patrimónios, Museus e Museologia no con-texto de ações educacionais, os métodos e técnicas, levando em consideração as

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especificidades de cada museu e patrimónios, bem como o perfil e os anseios de seus usuários, públicos, comunidades.

Destaca-se também a importância da elaboração do Projeto Político-Peda-gógico para orientar o planejamento, a execução e a avaliação das ações educa-cionais oferecidas pelos museus e pela escola, ações relacionadas com as iden-tidades e memórias.

Nesse sentido, a Revista VOX MUSEI forja um espaço de debates e reflexões com investigadores iberoamericanos, desafiando-os a elaborarem análises sobre o papel do património, da educação e dos museus, nomeadamente neste século, marcado pela dinâmica informativa e comunicacional, pela diversidade de cul-turas, perspectivas e olhares sobre o mundo.

Reafirma-se que o periódico publica trabalhos inéditos que versem de forma transdisciplinar sobre arte, património e museus, estudos que valorizem a me-mória social, educação, identidades, organizações e refelxões sobre acervos, pa-trimónio, museus, públicos, sociedade, acessibilidade e sustentabilidade, além de outros objetos, temas, problemas e abordagens relacionados.

No que se refere à política padrão de seção de artigos, resenhas, crítica de arte e design, ensaios, entrevistas, relatórios e notas de dissertações e teses, a revista possibilita submissões abertas e avaliadas pelos pares.

Património, Educação e Museus tornaram-se sinônimos de marcadores iden-titários, memória social, cidadania, sustentabilidade. A articulação, contudo, não é propriamente nova; as interligações entre esses campos de saber-fazer estiveram a inspirar no passado e no presente significados culturais; rotineiramente incor-poraram objetos e lugares associados às memórias sociais e às narrativas; mesmo com a “globalização” e “mundialização”, as culturas continuam firmando-se em suas histórias, identidades e memórias. Arte, Património e Museus se articulam com memórias, culturas, identidades, sustentabilidade, a cada dia, entrelaçam-se os sentimentos de pertencimento cultural/social das pessoas; cada vez mais, a de-finição do que pode ser incorporado e excluído do património e da memória social integra as táticas políticas de cerceamento e afirmação de identidades culturais

Ao se disponibilizar também on line o conteúdo da revista pretende-se am-pliar uma rede de pesquisadores e público interessados nos debates que envol-vem as temáticas centrais do periódico.

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cENTRO dE INTERPRETAçãO dO PAMPA: a construção de um museu universitário-comunitárioPAMPAS UNdERSTANdINg cENTER: the construction of a community–college museum.

Alexandre dos Santos Villas BôasUniversidade Federal do Pampa, Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural

da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil

heloísa helena Fernandes Gonçalves da CostaUniversidade Federal da Bahia; colaboradora do Mestrado em Museologia

e Patrimônio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

e do Mestrado em Patrimônio Cultural da UFSM

Resumo: O presente artigo é o resultado de pesquisas para a dissertação de mestrado em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a qual tem como temática a implantação do projeto do Centro de Interpretação do Pampa (CIP), órgão complementar da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), na cidade de Jaguarão, estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

Palavras-chave: Patrimônio. Cultura. Educação.

Abstract: This paper is the result of the research for Masters Dissertation about Cul-tural Heritage of the Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), which has as a theme the implantation of the Pampas Understanding Center (CIP), complementary organ of the Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), in Jaguarão city, in Rio Grande do Sul State, Brasil.

Keywords: heritage. Culture. Education.

INTROdUçãO

Este artigo tem o objetivo de analisar a revitalização de um patrimônio históri-co tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN), trata-se das ruínas de uma antiga enfermaria militar do Exército Brasileiro, datada de 1883. Este prédio teve, ao longo de sua história, diversos usos, desde instalação de saúde, passando por escola, prisão política e finalmente ruínas, após um pe-ríodo de depredação.

Esta proposta de revitalização deveu-se à iniciativa da prefeitura municipal de Jaguarão em conjunto com o IPHAN, no sentido de implantar na região da campanha do estado do Rio Grande do Sul, um museu com a temática local, inicialmente voltada a personagens históricos da Revolução Farroupilha, tendo sido mudado seu foco para algo mais abrangente e característico, como o pampa gaúcho. Existindo na cidade um Campus universitário, com cursos de ciências humanas, como História, Letras, Pedagogia e Turismo, a prefeitura e o IPHAN

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delegaram a gestão da implantação do projeto e de seu posterior funcionamen-to, à Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), tomando o projeto, neste momento, a denominação de Centro de Interpretação do Pampa, um órgão com-plementar da universidade.

Para fazer a análise deste processo de implantação, utilizaremos uma abor-dagem interdisciplinar, principalmente com os conceitos teóricos adquiridos em nossa pesquisa para dissertação de Mestrado em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Devido à extensão da pesquisa, abordaremos uma versão sintetizada neste artigo, focalizando aspectos gerais, como o conhecimento histórico do patrimônio a ser revitalizado e o projeto ar-quitetônico, no que tange aos seus espaços principais e formas possíveis de inte-ração entre o novo local revitalizado com a comunidade.

Em um primeiro momento, utilizaremos a análise histórica para delinear os usos que teve o prédio da antiga enfermaria militar, procurando demonstrar sua ligação e importância para a cidade de Jaguarão, como local de memória dos diver-sos segmentos de pessoas que a utilizaram. Como haverá uma ruptura com o pro-cesso de revitalização do local, será importante evocar suas antigas funções, para que sejam preservadas como testemunho e ponto de inflexão do projeto do CIP.

Após isso, passaremos a apresentar o projeto arquitetônico, principalmente na área da expografia e na concepção da temática, que será o pampa gaúcho. Em uma visão geral, pretendemos analisar as intenções do arquiteto com esta obra de revitalização e sua pertinência nas teorias museológicas atuais, mas voltando nosso olhar para a realidade local e as práticas utilizadas pelos entes envolvi-dos na gestão de sua execução, realidade esta que tende a apresentar divergência com o projetado.

Finalmente, procuraremos levantar possíveis problemáticas envolvidas em um processo de revitalização de um patrimônio cultural, especialmente o diálogo exis-tente, ou não, com a comunidade envolvida e, em tese, detentora deste patrimônio. Também proporemos, através das ferramentas da educação patrimonial, possíveis soluções que visem minorar os impactos inevitáveis em um projeto desse porte, no-tadamente quando envolve a memória e a identidade de uma comunidade.

A metodologia utilizada será a revisão bibliográfica de autores das diversas áreas envolvidas, como a história, arquitetura e educação patrimonial, além de relatos orais, pesquisa em jornais e em arquivos que contenham fontes primá-rias, como projetos, plantas arquitetônicas e demais documentos. Também a pesquisa de campo, já que o projeto está em fase de execução, com visitas ao can-teiro de obras e visitas guiadas com a comunidade, verificando suas opiniões so-bre a transformação do local. Como historiador vinculado a UNIPAMPA, pode-mos ter uma visão privilegiada das transformações ocorridas, desde a concepção do projeto até a história do patrimônio cultural e sua relação com a comunidade, aplicando conjuntamente com a teoria da área do patrimônio uma possível abor-dagem que vise ao entendimento dos processos de patrimonialização, que vem sendo frequentemente utilizados no Brasil e cada vez com maior intensidade.

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Portanto, como conclusão do presente artigo, pretendemos que o leitor tenha uma visão geral do projeto de revitalização de um patrimônio cultural específico, com suas particularidades e impactos na comunidade local; que as particularidades possam servir de parâmetro para uma análise mais abrangente da política de preservação de patrimônio no Brasil, a qual se insere em questões mais universais de patrimônio mundial, reconhecendo que estas últimas tem cada vez mais um papel disseminador ao nível local. Ainda é nossa intenção de-monstrar que este processo, por suas características, é sui generis por envolver a implantação de um museu que teve sua origem na comunidade mas será admi-nistrado por uma universidade, envolvendo implicações que fogem ao escopo puramente técnico-teórico. Pretendemos ao término, que as nossas propostas sirvam para a construção de um modelo museal alicerçado na participação ativa da comunidade, democrático e de desenvolvimento humano através da cultura.

1. O cONTEXTO hISTóRIcO dA ENfERMARIA

MIlITAR E A cIdAdE dE JAgUARãO

A cidade de Jaguarão, localizada no extremo sul do Brasil, na fronteira com o Uru-guai, com cerca de 28.000 habitantes, fica distante de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, aproximadamente 380 km, tendo como divisa natural entre os dois países um rio, que tem a mesma denominação da referida cidade fronteiriça. A história desta cidade está interligada com as questões de fronteira entre os Impé-rios de Portugal e Espanha, no contexto maior de disputa pela região do rio da Prata, grande via de escoamento comercial das colônias espanholas e que Portugal queria ter uma participação no aproveitamento deste fluxo para suas colônias.

O longo processo de luta entre Espanha e Portugal pelo controle da bacia do Prata se deu

pelas vias diplomáticas e militar, intercalando a conquista e a reconquista do chamado

‘Continente de São Pedro’ ou o ‘Tape’. O Rio Grande do Sul só se tornou realidade sob

a permanente vígília das armas. A simples sucessão administrativa o comprova: basta

ver que todos os seus governantes, de 1737 a 1822, isto é, desde a fundação do primeiro

povoado português até a independência do país, foram militares (MARTINS, 2001:34).

O processo de ocupação do território de onde seria a cidade de Jaguarão ocor-reu através de uma expedição militar, no ano de 1802, com o intuito de instalar uma guarda de fronteira, denominada de Guarda do Cerrito, bem em frente ao rio, controlando por sua vez, as possíveis investidas espanholas. Este caráter militar de formação inicial do território irá ser uma característica marcante na formação do núcleo urbano, que inicialmente visava ao aprovisionamento dos militares, mas foi beneficiando-se da proximidade da fronteira para estabelecer fluxos comerciais, nem sempre pelas vias oficiais.

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Desde muito cedo, as comunidades dos dois lados da linha divisória tenderam a prática

de uma economia solidária e complementar, que as barreiras fiscais jamais conseguiram

disciplinar. O famigerado contrabando, hostilizado pelos governos (nem sempre com

muita sinceridade e coerência) e combatido pelas praças comerciais que ele prejudicava,

sobreviveu a todas as perseguições (FRANCO, 2001:18).

Este duplo caráter, militar e comercial, tornou a cidade de Jaguarão impor-tante local para a manutenção do território como também do escoamento co-mercial, o qual intensificou-se com o estabelecimento das charqueadas na cida-de Pelotas e algumas na própria cidade. Naquele momento a navegação fluvial era de extema importância para o Rio Grande do Sul, devido às dificuldades de acesso ao porto da cidade do Rio Grande, único porto marítimo do estado.

O século XIX foi o período de desenvolvimento da região, fundamentado na produção

do gado, no comércio (legal e ilegal), em atividades subsidiárias que surgiram na região,

como o cultivo trigo e o de uvas (efêmero). A produção de charque na região também

teve papel importante na economia local. Se em Jaguarão não se desenvolveu um número

grande desta indústria, seu gado abasteceu as charqueadas da região, principalmente dos

munícipios de Pelotas e Bagé. Este desenvolvimento ocorreu ao lado de crises constantes,

resultado das contradições entre os interesses da coroa portuguesa (depois Império do

Brasil), dos criadores e dos charqueadores, principalmente em função de preços, taxas e

impostos (MARTINS, 2001:55).

O fato é que, ao final do século XIX, a cidade de Jaguarão possuía um gran-de excedente de capital proveniente destas atividades, aliada a sua importância militar, com grande efetivo estacionado na fronteira, começou a demandar uma organização urbana mais complexa, com influência européia. Imponentes casa-rões foram construídos ao longo de largas avenidas ao estilo eclético, demons-trando a pujança econômica e também o poderio da classe dominante.

É fato que alguns latifundiários criadores de gado conseguiram privilégios bancados pelo

Estado através de influências políticas, porém o que se observou ao analisar o processo his-

tórico do Rio Grande do Sul, é que a região da fronteira sul, dependente fundamentalmen-

te da pecuária, não induziu a um crescimento que gerasse uma futura industrialização

nas suas cidades. Por sua vez, esta rede urbana pouco funcionou como apoio à produção

rural, caracterizando-se sim como centro de apoio político e social (MARTINS, 2001:275).

Neste contexto, é que ao final do século XIX, mais precisamente em 1881, ini-cia-se a construção de um hospital militar, mais tarde denominado de enferma-ria militar. Sua arquitetura de estilo neoclássico tinha proporções de um grande

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prédio, localizado no ponto num dos pontos mais altos da cidade e distante do centro urbano, denominado de Cerro da Pólvora. Esta denominação teria ori-gem em um forte que havia sido construído em suas proximidades, mas que na época de sua construção não existia mais, ou pela quantidade de explosivos utilizados para erguer suas fundações, por conta do terreno altamente rochoso.

Este prédio tinha em suas dependências, quartos de internação para solda-dos e oficiais, gabinete de atendimento médico, farmácia, enfermaria para pre-sos, cozinha e refeitório e sala onde ficava destacado um corpo de guarda. Sua inauguração se deu em 19 de janeiro de 1883, sendo construídos, como anexos, uma capela e um necrotério em 1915.

Foi uma das primeiras construções públicas da cidade e devido a sua localiza-ção e tamanho, tornou-se referência arquitetônica, além do interesse público, de atendimento aos doentes, em um período de epidemias e de poucos recursos mé-dicos. Embora sua destinação fosse a de atender aos militares do exército, eventu-almente seus profissionais atuavam na cidade, através de gabinetes médicos parti-culares, ou mesmo atendendo a comunidade em volta da enfermaria, como atesta um testemunho do senhor Elimar Brum, que foi enfermeiro naquela instituição.

Alguém que pedisse pra fazer, aqui debaixo, dentro da cidade, um senhor velho lá, e eu fiz

acho que duas ou três injeção nele. E os outros, os meus colegas quando tavam de serviço que

dava pra ele. Mas a morena essa foi só eu que fiz [...] (Instituto de Memória e Patrimônio, 2011).

O funcionamento como enfermaria militar foi contínuo até a década de ses-senta do século XX, quando paulatinamente foi sendo esvaziada de suas fun-ções. Uma possível justicativa talvez tenha sido a transferência da unidade mi-litar que ficava próxima, a qual se mudou para ficar em frente ao hospital da Santa Casa de Misericórdia, o que em tese, não justificaria um deslocamento de doentes até a enfermaria, quando haveria um hospital ao lado.

O fato foi que o exército optou por não mais utilizar aquele prédio como en-fermaria, embora fosse mantido em conservação pelos militares. Um grupo de religiosas da Igreja Católica conjuntamente com moças que estudavam na cida-de, resolveram realizar um trabalho de assistência sócio-educativa com os mora-dores do entorno da enfermaria, comunidade de parcos recursos econômicos e solicitaram autorização do exército para utilizar as dependências da enfermaria militar, já desativada, o que lhes foi concedido.

Conforme depoimento da senhora Eci Duarte, que participou do referido trabalho, o prédio da enfermaria militar adquiria um novo uso, agora educacio-nal, refletindo na memória daquelas pessoas atendidas, que puderam adentrar o prédio, antes exclusivamente militar.

Ai eu falei[..]. Eu dei aula lá na enfermaria. Sim.. era um pré-estágio que a gente fazia.

Nós éramos alunas do pré-estágio normal na época. E antes de começar[...] fazia[...] e como

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ficou[...] antes era uma enfermaria[...] ate sessenta, sessenta e poucos, sessenta foi o ano

que a gente veio pra Jaguarao[...] a minha irmã disse que em 62 ela foi visitar alguém lá

que era nosso amigo. Ele tava no quartel e que tava doente[...] então ainda era enfermaria.

Ai depois terminou[...] não sei se foi o quartel que se mudou[...] não sei o que aconteceu[...]

que acabou[...] que não tinha mais enfermaria lá[...] como ficou assim sem uso. Ai as irmãs

resolveram fazer uma escola, um anexo da escola normal[...] tinham uma diretora, uma

equipe (Instituto de Memória e Patrimônio, 2011).

O funcionamento desta escola foi breve, e o prédio da enfermaria militar fi-cou novamente sem uso, até o ano de 1964, quando estourou um golpe de estado militar-civil. Durante o período inicial do golpe houveram muitas prisões e a enfermaria militar foi utilizada como prisão temporária para averiguações de supostos subversivos ao novo regime ditatorial. Logo em seguida, o prédio foi novamente abandonado pelo exército, não tendo mais nenhuma função, além de depósito de materiais. No início da década de setenta, ocorreu a depredação do prédio da antiga enfermaria militar pela comunidade, que efetuou uma des-truição tamanha que reduziu a imponente construção de estilo neoclássico em ruínas, como se houvesse sido bombardeada.

Segundo testemunho do Sr. Cassiano Gomez dos Santos, que presenciou a de-predação e era ex-militar, tendo servido no exército na cidade de Jaguarão, a su-posta culpa do fato seria de um descuido administrativo do exército para com o prédio. Uma mulher pediu pro comandante, as telhas do isolamento, que tinha caído[...] não pode levar, ela tava tirando[...] ai passou alguém[...] não o comandan-te me deu mas vinham tal[...] parecia formiga[...] daí avisaram[...] tinha gente de caminhão pra levar as coisas[...] daí tiveram que botar as coisas ai pra dentro[...] daí começou a destruição[...] daí começou os maloqueiros[...] naquele tempo eram os maloqueiros que tomavam conta daqui[...] os drogados[...] agora disseram que tinha um xadrez aqui[...] xadrez eu nunca vi[...] foi xadrez na época da revolução que pegaram os comunistas tudo e trouxeram pra cá[...] (Instituto de Memória e Patrimônio, 2011). As ruínas da antiga enfermaria militar ficaram, a partir de então, como símbolo do que outrora havia existido, de forma melancólica. Sua história anterior ficou guardada na memória da comunidade, principalmente da-queles que frequentaram, ou tiveram contato com o prédio. No alto da cidade, per-manecia os vestígios materiais de uma instituição que prestou serviços relevantes a comunidade, mas agora utilizada como local visitação esporádico de turistas, intrigados com àquelas ruínas e de segmentos marginalizados da comunidade.

Na década de oitenta, um grupo de alunos do curso de arquitetura da Univer-sidade Federal de Pelotas, criaram um projeto denominado Jaguar, que tinha o objetivo de realizar um inventário arquitetônico da cidade, incluíndo a evoca-ção da história das ruínas da antiga enfermaria militar e a intenção de revitalizá--las, através de um projeto arquitetônico.

Iniciaram ações de educação patrimonial com a comunidade, procurando

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demonstrar a importância daquelas ruínas para a história da cidade e sua possí-vel utilização como espaço de atividades culturais. Em 1990, conseguiram que o Instituto do Patrimônico Histórico e Artístico Estadual (IPHAE), realizasse o tombamento das ruínas. Em conjunto com a prefeitura idealizaram a constru-ção de um parque e de uma arena de espetáculos, sendo somente feito o parque, de forma modesta, que rapidamente foi depredado, como mostra uma notícia exibida em um jornal local.

O imóvel a que se refere o artigo 1º desta Portaria destina-se a execução de projeto paisa-

gístico, compreendendo a recuperação do prédio da Antiga Enfermaria do 33º Batalhão

de Infantaria Motorizada, do Ministério do Exército, a construção de pequeno teatro de

verão; de pátio ou local de artesanato e exposição de objetos folclóricos; de centro de in-

formações turísticas; de áreas de estar, bem como o tratamento de áreas verdes, inclusive

com introdução de espécies ornamentais e nativas (A Folha, 1987:03).

No ano de 2009, a prefeitura municipal de Jaguarão, em com conjunto com o IPHAN, iniciou tratativas para a construção de um museu com a temática da fronteira. Como já havia o precedente do projeto Jaguar de revitalização das ru-ínas da enfermaria militar, resolveu-se utilizar aquele local como base para o futuro museu. Foi contratado o escritório Brasil Arquitetura para elaboração do projeto arquitetônico e museológico, tendo sido entregue em 2010, com a deno-minação de Centro de Interpretação do Pampa (CIP) o qual abordaremos, com mais detalhes abaixo e suas possíveis problemáticas de implantação.

2. O PROJETO dO cIP E SEU PROcESSO dE IMPlANTAçãO

A opção pela mudança de nome de Museu do Pampa, para Centro de Interpretação, deveu-se a ampliação da temática da expografia museológica, tendo o bioma pam-pa como objeto de fundo para dentro dela, inserir as diversas abordagens possíveis, desde a formação geológica até o histórico de ocupação humana, a flora e a fauna.

Uma das aplicações da museologia do território é o centro de interpretação. Nascido na

América do Norte, sobretudo nos parques naturais, esse método de valorização do patri-

mônio desenvolve-se por toda parte como meio de apresentação de um patrimônio de

proximidade: sítio natural, arqueológico, histórico, espaço característico de uma paisa-

gem, de um modo de vida, de uma aldeia ou bairro. Não repousa unicamente em coleções

ou mesmo em objetos tridimensionais, mas pode utilizar todos os meios modernos de

explicação, de ilustração e de demonstração (VARINE, 2012:188).

Esta mudança de orientação permitiu aos arquitetos ampliarem o escopo do projeto, prevendo utilizar as ruínas da antiga enfermaria militar como base

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para a exposição museográfica, restaurando suas partes que ainda permitiam este tipo de intervenção e acrescentando uma construção moderna, nas partes faltantes do prédio, delimitando bem o novo do antigo. Além da revitalização das ruínas, foi projetado um auditório subterrâneo escavado na pedra, um anfi-teatro localizado em uma antiga pedreira nas proximidades das ruínas e prédios para exposições temporárias e apoio técnico-administrativo.

Ciriane caracterizou de muito perceptiva a genealogia mista do museu como tipo na tra-

jetória do movimento moderno: Os museus, como as igrejas, criam uma expectativa no

público mais amplo. Espera-se que o projeto seja uma obra de arquitetura, e o arquiteto

tem permissão para expressar-se com mais liberdade (FRAMPTON, 2012:462).

A proposta, então, tomou uma amplitude que a prefeitura da cidade de Ja-guarão, com parcos recursos econômicos, não teria como financiar e gerir este projeto. Neste momento foi cedida a gestão do futuro CIP à Universidade Fede-ral do Pampa, a qual teria maiores condições técnicas e financeiras de dar conti-nuidade a implantação do projeto.

[...] Também num segundo momento, firmou-se o convênio entre a UNIPAMPA e a Prefei-

tura Municipal de Jaguarão, que tem por objetivo dar continuidade ao desenvolvimento

do projeto do Centro de Interpretação do Pampa, sendo que ambos se responsabilizaram

de cooperar para a implantação e a gestão desse importante espaço cultural que será er-

guido nas ruínas da Enfermaria Militar ( A FOLHA, 2010:8).

A UNIPAMPA é uma universidade criada dentro da política de expansão universi-tária, empreendida pelo Ministério da Educação, de deslocar para fora dos grandes cen-tros o ensino universitário. Foi implementada em 2006, tendo como abrangência dez cidades da região da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, cada uma sendo sede de um campus e Jaguarão, um destes campi. A implantação do CIP foi centrada na Reitoria, que tem sede na cidade de Bagé, cerca de 260 Km de Jaguarão. Por se tratar da revitaliza-ção de um patrimônio cultural de extrema importância para a memória e identidade da comunidade, seu processo de implantação requer alguns cuidados, sob pena de o novo uso do patrimônio não dialogar com a comunidade, a qual tem outra memória do local.

O patrimônio está ligado ao tempo por sua evolução e por seus ritmos. Ele tem um pas-

sado, um presente e um futuro. Se o desenvolvimento se efetua no presente, portanto a

partir de um patrimônio constatado a um dado momento, ele não pode ignorar suas ori-

gens ele não pode igualmente se limitar a consumi-lo sem nada criar de novo. Quanto aos

ritmos, ou ao menos aos ritmos endógenos, eles são produto e resultado do patrimônio.

Não se pode fazer nenhum desenvolvimento sem levar em conta os ritmos da vida local,

que fazem parte integrante da cultura viva da população. (VARINE, 2012:20).

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Portanto, a implantação deste museu universitário-comunitário é a melhor forma de definí-lo, no sentido de que não é algo pronto, acabado, mas sim um complexo cultural que leve em conta a dinâmica da sociedade local, para que a mesma utilize este espaço como promotor de desenvolvimento humano e de-mocratizador da cultura, em seu sentido mais amplo. Ou seja, a compreensão de que um espaço como este, deve ser construído e utilizado em parceria com a comunidade, a mesma apropriando-se dos conceitos através de uma educação patrimonial, que faça esta ponte entre o patrimônio e qualidade de vida.

Buscamos compreender, também, o conceito de cidade saudável, cuja característica é en-

fatizar a saúde de seus cidadãos dentro de uma ótica ampliada de qualidade de vida, e isso

implica incluir o direito a cultura, ao conhecimento e ao uso dos bens culturais de uma

comunidade. Na maioria dos casos, os gestores e os dirigentes municipais não sabem exa-

tamente o que fazer com o elemento “cultura” nos seus municípios, pensam que é algo su-

pérfluo e correm para atender a área da saúde e da educação, que estão dentro dos conceitos

tradicionais, sem promover um olhar holístico e transdisciplinar sobre eles (COSTA, 2010).

Ao final do ano de 2011, foram iniciadas as obras de implantação do CIP, sendo inicialmente contempladas as obras de estabilização das ruínas da antiga enfermaria militar, construção do auditório subterrâneo e prédios de apoio. A área do futuro complexo foi cercada e a comunidade começou a ver a paisagem, que por tantos anos perdurara, sendo transformada, causando um impacto na expectativa com o que estaria acontecendo dentro daquele cercamento.

A gestão das obras ficou ao encargo da UNIPAMPA, mais voltada aos aspectos burocráticos e técnicos de fiscalização e aplicação dos recursos públicos. Por ser uma isntituição recente, possui um corpo técnico reduzido e pouco experiente com obras de tamanho vulto que envolvem, além do aspecto arquitetônico, a questão de tratar-se de um prédio tombado pelo IPHAN e IPHAE. Estes órgãos, mais a prefeitura municipal, ficaram com um papel de consultoria e fiscaliza-ção, embora demandem à universidade outras questões políticas que envolvem o CIP, a exemplo de uma maior participação na sua concepção museográfica e de uso do complexo. A proposta do presente trabalho, em relação a essas questões, é de uma maior participação da comunidade e dos gestores dentro dos princípios da Educação Patrimonial, visando esclarecer a importância do patrimônio cul-tural que são as ruínas da enfermaria militar, bem como dialogar a respeito da concepção museológica, apresentando o projeto de forma didática e dialógica.

Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no

Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual

e coletivo. Isto significa tomar os objetos e expressões do Patrimônio Cultural como pon-

to de partida para a atividade pedagógica, observando-os, questionando-os e explorando

todos os seus aspectos, que podem ser traduzidos em conceitos e conhecimentos. Só após

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esta exploração direta dos fenômenos culturais, tomados como “pistas” ou “indícios”

para a investigação, se recorrerá então às chamadas “fontes secundárias”, isto é, os livros

e textos que poderão ampliar esse conhecimento e os dados observados e investigados di-

retamente. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações

da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da

Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conheci-

mento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um me-

lhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos,

num processo contínuo de criação cultural (HORTA, 1999).

Neste caso do projeto do CIP, esta Educação Patrimonial deve envolver tam-bém os gestores, os quais precisam estar conectados com as demandas da comu-nidade, principalmente nos usos que o patrimônio revitalizado terá, para evitar--se a elitização das funções do complexo cultural aos membros tradicionais que circulam entre a academia e a chamada “alta cultura”. A chave para o sucesso desta integração comunidade-academia-gestores locais se dará pela democrati-zação de informações sobro o projeto e principalmente o vislumbre, pela comu-nidade, de utilização deste espaço como algo importante para suas vidas.

Dessa forma, o delicado trabalho de tecer as relações entre os museus e a so-ciedade que os acolhe e nas quais eles estão inseridos, fazendo com que essas instituições tenham um papel preponderante de atores sociais, é na verdade, a elaboração de uma tessitura, que a semelhança da costura de uma colcha de retalhos, cada parte inserida na trama tem uma função que contribui para que outra função se complete. Isso significa que as coleções dos museus, ao serem compreendidas como objeto da vida cotidiana, mostram as faces e as almas dos seres humanos, seja as dos que construíram aqueles determinados objetos, seja as dos que deram usos diversos a eles, seja as dos pesquisadores que desvelam os mistérios e segredos de cada peça estudada (COSTA, 2011).

Algumas propostas concretas de Educação Patrimonial poderiam ser im-plementadas conjuntamente com o andamento da obra. Em primeiro lugar, a utilização de um sítio na rede mundial de dados, com informações do projeto, histórico e andamento das obras, disseminando nas redes sociais a instigação por maiores informações. Também visitas guiadas ao canteiro de obras, como forma de demonstrar como está ocorrendo a revitalização do patrimônio cultu-ral, realçando aspectos históricos e arquitetônicos. A organização de palestras e encontros para apresentação do projeto em locais públicos como Câmara de Vereadores, salões comunitários de associações de bairro.

Estas ações permitiriam obter um retorno do que a comunidade pensa a respei-to do projeto; ao mesmo tempo em que o conhecimento fosse democratizado, as adesões e apropriações pela comunidade do novo uso do patrimônio seriam faci-litadas. A Educação Patrimonial pode ser assim um instrumento de ‘alfabetização cultural’ que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levan-

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do-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao desenvolvimento da autoestima dos indivíduos e comunidades, e à valorização de sua cultura, como propõe Paulo Frei-re em sua idéia de ‘empowerment’, de reforço e capacitação para o exercício da au-toafirmação (HORTA, 1999). Como o local escolhido para a implantação do CIP, as ruínas da antiga enfermaria militar, já foi objeto de tentativas de revitalização em outro momento histórico, percebe-se que pode correr o risco de, no futuro quando em funcionamento, não obter relações saudáveis por não ter sido feito pela comu-nidade, pelo menos na forma inclusiva que vemos defendendo. Por esta comple-xa interação entre diversos atores no processo de formação do projeto e sua im-plantação, é que se configura como essencial este diálogo constante e qualificado.

O perigo é tornar o local voltado a um turismo meramente econômico, ou de pura fruição para alguns poucos. Este processo de enobrecimento de um patrimônio cultu-ral, neste caso se daria pelas escolhas dos gestores e falta de participação da comunidade.

A despeito dessas diferentes experiências e em meio à inacabada discussão acerca das

características e do próprio conceito de gentrification, há um aspecto que parece con-

sensual entre os estudiosos do assunto: espaços enobrecidos resultam quase sempre de

alterações substanciais de usos e usuários (seja mediante processos indutivos ou não),

e implicam invariavelmente demarcações socioespaciais excludentes (LEITE, 2007:371).

A inclusão no processo de implantação do projeto, a democratização de in-formações, através da participação conjunta da comunidade e gestores, será pri-mordial para o êxito do mesmo, no que tange a sua efetiva função de promoção do desenvolvimento humano através da cultura, da memória e da identidade.

Foi muito interessante constatar que muito mais do que entrar nos museus para apren-

der alguma coisa, as pessoas desejavam sentir nos museus alguma forma de vida; que

pode ser a vida delas mesmas, a partir de lembranças despertadas pelos objetos e textos

expostos e então estaremos diante do fenômeno da memória resgatada; ou reconhecer

nos museus outras formas de vidas já vividas, que parecidas ou não com as delas mesmas,

se relacionam umas com as outras pelo fato de que apresentam similitudes de seres hu-

manos no contexto diversificado das culturas, e nesse caso, o que se apresenta é a memó-

ria social, e portanto, coletiva (COSTA, 2010).

A nossa proposta baseia-se no estabelecimento de um diálogo, que permi-ta a construção de um museu universitário-comunitário, voltado à promoção e sustentabilidade do desenvolvimento humano através da Educação Patrimo-nial aliada a interdisciplinaridade de conhecimentos para a apropriação, pela comunidade, do espaço revitalizado.

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cONSIdERAçõES fINAIS

No presente artigo, pretendemos apresentar os resultados parciais obtidos atra-vés da pesquisa para a dissertação de Mestrado em Patrimônio Cultural da Uni-versidade Federal de Santa Maria (UFSM). A temática da dissertação trata sobre o processo de implantação do Centro de Interpretação do Pampa(CIP), um mu-seu que terá como gestor a Universidade Federal do Pampa(UNIPAMPA).

Este processo de implantação vem da iniciativa do poder público munici-pal em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), na intenção de revitalizar um patrimônio cultural que são as ruínas de uma antiga Enfermaria Militar, as quais são objeto de memória e identidade da cidade de Jaguarão, onde estão localizadas, na fronteira com o Uruguai.

Apresentamos um panorama histórico da cidade de Jaguarão, da formação de seu núcleo urbano e também do prédio da Enfermaria Militar do Exército Brasileiro, construída para servir ao atendimento dos militares da região. Tam-bém nos referimos aos diversos usos que teve o prédio até a sua fase de ruínas, e consequentes tentativas de revitalização, culminando no projeto do CIP.

Em nossa visão, através do estudo de autores voltados à área do patrimônio e da Educação Patrimonial, podemos chegar a algumas considerações em rela-ção ao processo de implantação do CIP, ora em curso. Em primeiro lugar, há necessidade de democratizar o acesso aos conceitos do projeto, seus objetivos e finalidade. Sem essa premissa básica, o processo poderá correr o risco de tornar--se desconectado com a realidade social da comunidade.

Para isto, propomos ações voltadas para a educação patrimonial, tanto de ges-tores como da comunidade, com um diálogo na forma de apresentação do pro-jeto de forma didática e de fácil compreensão e acesso a mais ampla camada da comunidade, preferencialmente em locais públicos, como Câmara de Vereadores e associações de bairro, além de visitas guiadas ao canteiro de obras, demonstran-do as diversas etapas de restauro de um prédio tombado, para que a comunidade vislumbre e se aproprie do futuro espaço. Finalmente, gostaríamos de dizer que a nossa pretensão é de lançar, com este estudo, as bases para uma visão mais partici-pativa no processo de implantação de museus com gestão estatal; que a partir des-te estudo de caso se solidifiquem cada vez mais, os preceitos de democratização da cultura, como elemento indissociável da qualidade de vida de uma comunidade.

Contactar os autores: [email protected] · [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· A FOLHA. Jaguarão, mar. 1987, pág. 03.

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A cONSERVAçãO E RESTAURO NA fAcUldAdE dE BElAS-ARTESThE cONSERVATION ANd RESTORATION AT ThE fAcUlTy Of fINE ARTS

Alice Nogueira Alves Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Fernando António Baptista Pereira Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Fernando Rosa Dias Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: A Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa tem vindo a imple-mentar uma formação na área da Conservação e Restauro que abrange os três ciclos de estudos do Ensino Superior. Neste texto são desenvolvidos os seus objectivos e conteúdos, dentro de uma base teórica comum.

Palavras-chave: Ensino. Licenciatura. Mestrado. Doutoramento. Conservação e Restauro.

Abstract: The Faculty of Fine Arts of the University of Lisbon is implementing a Con-servation and Restoration education that covers the three cycles of higher education studies. In this text the authors develop its objectives and contents, within a common theoretical base.

Keywords: Education. Degree. Master. PhD. Conservation and Restoration.

APRESENTAçãO E ANTEcEdENTES

A missão da Faculdade de Belas-Artes é a formação, a investigação e a disseminação do saber

nos domínios da arte, da cultura e da ciência que lhe são historicamente reconhecidos bem como

nos domínios emergentes da criação contemporânea. A Faculdade de Belas-Artes tem por objecti-

vo contribuir, para o desenvolvimento do conhecimento científico nas áreas que lhe são próprias,

para a qualificação dos recursos humanos necessários ao desenvolvimento e para o conhecimento

avançado num contexto global, preservando e enriquecendo o património artístico, cultural e cien-

tífico de Portugal.(Estatutos, 2009)

Indo ao encontro dos objectivos presentes nos seus Estatutos, a Faculdade de Belas-Artes tem vindo a implementar o regresso da Conservação e Restauro ao seu seio. Sublinhamos a palavra regresso, porque esta prática começou a desen-volver-se na Academia de Belas-Artes logo a partir de 1836.

Inicialmente sob a orientação dos professores de Pintura Histórica, como António Manuel da Fonseca, a responsabilidade em restaurar a vasta colecção de pintura que passou para a sua posse nesta altura, foi sendo atribuída a vá-rias pessoas. Entre as diversas personalidades, devemos destacar Luciano Freire,

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também professor nesta casa, considerado o grande precursor do Restauro com bases fundamentadas em critérios e princípios éticos das primeiras décadas do século XX (Alves, 2011). A partir do seu trabalho formou-se uma nova geração de técnicos que vieram a trabalhar para o Museu Nacional de Arte Antiga e, a partir de 1965, para o Instituto José de Figueiredo.

Desde então o próprio Restauro mudou. A História do século XX, rica em acontecimentos e grandes teóricos, encarregou-se de promover e desenvolver a reflexão de conceitos e princípios éticos, bem como a parceria entre a Ciência e a Arte. Vimos a ligação entre estas duas grandes áreas aprofundar-se com resul-tados importantes na intervenção sobre o nosso Património, passando esta a ser um acto conscientemente informado de todas as dimensões históricas, estéticas e materiais do objecto.

Actualmente, é consensual que as componentes artística e científica não podem ser dissociadas na formação dos novos Conservadores Restauradores, sendo este as-peto valorizado neste “regresso do Restauro a casa”. Esta colaboração interdiscipli-nar é obtida através do apoio de professores e instituições exteriores, entre as quais destacamos a Faculdade de Ciências e o Centro de Física Atómica da Universidade de Lisboa, com quem estabelecemos um intercâmbio de conhecimentos e experiên-cias muito enriquecedor para os nossos alunos e, também, para os professores.

Com o objectivo de facultar aos alunos uma abrangência de graus completa, a nossa oferta de formação inicia-se no 1.º ciclo com a Licenciatura em Ciências da Arte e do Património, com uma forte componente relacionada com a Conser-vação e Restauro, em funcionamento deste o ano lectivo de 2008/2009. Em 2012 entrou em funcionamento o Mestrado em Ciências da Conservação, Restauro e Pro-dução de Arte Contemporânea e a especialização no Doutoramento em Belas-Artes, de Museologia, Conservação e Restauro.

1. lIcENcIATURA EM cIêNcIAS dA ARTE E dO PATRIMóNIO

No ano lectivo de 2008/2009 abriu na Faculdade de Belas Artes a Licenciatura em Ciências da Arte e do Património, considerando que as áreas da Museologia e da Conservação do Património se encontram incluídas na designação do grande grupo das Ciências da Arte (Pereira, Dias, 2011: 215):

[…] a reflexão teórica e a prática dirigida à conservação e restauro da arte (e necessariamente da

própria arte contemporânea) faz confluir a consciência da materialidade da arte (fundamentada

a investigação físico-química dos próprios materiais), o vasto saber humanístico sobre ela acumu-

lado […] e as processualidades técnicas do fazer, conhecimento indispensável à intervenção sobre

qualquer tipo de obra. (Pereira, Dias, 2011: 220)

A licenciatura tem um enquadramento pós-Bolonha, sendo constituída por três anos, podendo os alunos no fim seguir o seu caminho por três vertentes específicas

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de formação: a Crítica de Arte, a Museologia e Curadoria de Exposições e a Con-servação e Restauro de Obras de Arte. Em seguida iremos ocupar-nos exclusiva-mente desta última área de formação.

A necessidade de se implementar um curso desta natureza na Universidade de Lisboa surgiu de uma análise profunda à oferta de formação existente no nos-so país, onde se verificou a ligação cada vez maior da Conservação e Restauro às Ciências exactas, começando a descurar-se a da componente artística e estéti-ca dos objectos. Esta componente artística, ligada ao processo de produção e ao modo como a obra foi sendo encarada pelas várias sociedades que usufruíram dela e da sua mensagem, são conhecimentos essenciais na formação do futuro Conservador Restaurador. A sensibilidade estética é assim educada, tornando--se um elemento essencial para a realização de uma intervenção fundamentada, não só nas características físicas e químicas do objecto, mas em todas as suas dimensões históricas, estéticas e culturais, valorizadas pelo próprio contexto da peça. Deste modo, considera-se este “«regresso» assente num novo diálogo entre as competências científicas, as competências humanísticas e as competências tecnológico-artísticas, que, a bem dizer, só pode ter lugar no espaço das Belas--Artes, com as Ciências da Arte.” (Pereira, Dias, 2011: 222). Este ‘saber-fazer’ faz parte da formação da nossa Faculdade, bem como todo o ensino da História da Arte, da Estética e da Teoria do Restauro essenciais para esse complemento.

Com este objectivo, o Plano de Estudos articula três áreas de capacitação ou aquisição de competências:

— Formação artística — com incidência no Desenho, na Cultura Visual, na Geometria, na Anatomia e nas Tecnologias Artísticas.

— Formação científico-técnica — com incidência na Física e Química dos Mate-riais, nas Técnicas Laboratoriais de Diagnóstico e na Teoria e Prática do Restauro.

— Formação Humanística — com incidência na História da Arte, na Estética e na Teoria da Arte, mas também nos domínios da Crítica de Arte e da Museologia.

O Plano de Estudos propõe também uma progressão e diversificação, ao lon-go dos três anos, em qualquer uma das três áreas, assim como uma acentuada interdependência entre elas, culminando na formação de profissionais habilita-dos a intervir em distintos mas complementares domínios das chamadas Ciên-cias da Arte e do Património.

Para garantir a qualidade de ensino nas três áreas, recorreu-se aos docentes do Grupo de Ciências da Arte, assim como de outros grupos disciplinares da Faculda-de de Belas-Artes, como o Desenho, a Arte Multimédia e o Design. Deve também ser salientada a colaboração de docentes dos Departamentos de Química e Física da Faculdade de Ciências e do Centro de Física Atómica, dando corpo à recomendada cooperação entre as diferentes unidades orgânicas da Universidade de Lisboa.

Trata-se de um curso profundamente inovador no Panorama Nacional e In-ternacional, pela original e equilibrada articulação e interdependência entre a

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formação artística, a científico-técnica e a humanística, insistindo-se nessa in-terdependência e complementaridade visando a formação de profissionais poli-valentes e altamente qualificados (Pereira, 2009).

2. MESTRAdO EM cIêNcIAS dA cONSERVAçãO, RESTAURO

E PROdUçãO dE ARTE cONTEMPORâNEA

Dando continuidade a um dos três ramos previstos na Licenciatura das Ciên-cias da Arte e do Património, o da Conservação e Restauro, paralelamente aos da Museologia e da Curadoria, com Mestrados já instituídos nesta Faculdade, foi apresentado um Mestrado em Ciências da Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporânea em 2011.

A opção por este aspecto tão específico prende-se com a própria natureza da Faculdade de Belas-Artes, bem como com as colecções albergadas nas suas insta-lações. De facto, nada mais natural do que aprofundar os conhecimentos na área da Arte Contemporânea, no local onde se formam os seus produtores. Por outro lado, consideramos ser obrigatório um direcionamento do curso exclusivamen-te virado para as problemáticas deste tipo de arte, por vezes muito distintas da arte antiga.

Assim se compreende também a dupla polaridade pretendida. Por um lado, a Conservação e Restauro, emergente nesta área, por outro, a produção da Arte Contemporânea, onde o objectivo é informar os nossos artistas da especificida-de de vários materiais, suas capacidades, processos de alteração, entre outros as-pectos, tornando a produção contemporânea um processo mais consciente (ou não) da própria materialidade do objecto artístico. Este propósito é alcançado através das parcerias realizadas com a Faculdade de Ciências e com o Centro de Física Atómica da Universidade de Lisboa, seguindo a prática já instituída na Licenciatura descrita anteriormente.

Num ambiente cultural onde o Conservador Restaurador deixa de ser só aquele que intervém numa peça, tentado suster o seu processo de degradação e assegurando a sua capacidade como portadora de uma mensagem, acessível a todos no presente e no futuro, passa agora também a ser o conselheiro, aquele a quem se pedem informações sobre materiais, as suas capacidades, característi-cas, bem como as reacções aos ambientes exteriores e aspectos relacionados com a Conservação Preventiva.

Como a materialidade dos materiais se compreende melhor no processo de produção, consideramos relevante abrir a possibilidade aos alunos de esco-lherem uma disciplina optativa prática por semestre, dentro de um conjunto definido previamente a partir dos planos curriculares de outros mestrados da Faculdade. Para além da especificidade oferecida no nosso plano curricular, este aspecto poderá ser atractivo para alunos provenientes de outras instituições.

Para a organização do programa deste mestrado foram seguidas as directivas dos documentos emanados pelas principais organizações relacionadas com a

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Conservação e Restauro e o seu ensino, com documentação nesta matéria, mais especificamente o ICOM — International Council of Museums, a ECCO — Eu-ropean Confederation of Conservator-Restorers’ Organisations e a ENCoRE — network organisation of higher educational institutions in the field of conser-vation — restoration, onde se determinam quais devem ser as bases de formação de um Conservador Restaurador, bem como o nível académico necessário para a sua autonomia técnica e profissional.

Na definição da profissão, presente no Código de ética do ICOM, aprovado em Copenhaga em 1984 (ICOM, 1984), encontramos especificadas no ponto 5.5. as seguintes áreas de formação teórica: História da Arte e da Civilização, Mé-todos de pesquisa e documentação, Conhecimento das tecnologias e materiais, Ética e teoria da Conservação, História e tecnologia da Conservação e Restauro e a Química, Biologia e Física dos processos de deterioração e dos métodos de Diagnóstico e Conservação.

Mais recentemente, a ECCO, nas suas linhas de orientação sobre os requi-sitos básicos para a formação do Conservador Restaurador, aprovadas em Bru-xelas em 2004 (ECCO, 2004), ampliou este conjunto de pontos para um leque mais abrangente, tendo em conta também a formação prática, adaptado às no-vas realidades do conhecimento humano: Princípios éticos da Conservação e Restauro, Ciências (Química, Física, Biologia, Mineralogia, teoria da cor, etc.), Humanidades (História, Paleografia, História da Arte, Arqueologia, Etnologia, Filosofia, etc.), História dos materiais e técnicas, processos tecnológicos e de manufactura, Identificação e estudo dos processos de deterioração, Disposição e transporte de bens culturais, Teoria, métodos e técnicas da Conservação, Con-servação Preventiva e Restauro, Processos de reprodução de objectos, Métodos de documentação, Métodos de pesquisa científica, História da Conservação e Restauro, Questões legais (estatutos profissionais, leis do património cultural, seguros, negócios, legislação tributária, etc.), Gestão (colecções, pessoal, recur-sos), Segurança e saúde (incluindo as questões ambientais) e Competências de comunicação (incluindo a Tecnologia da informação) (ECCO, 2004)

Sendo as responsabilidades do Conservador Restaurador baseadas no pla-neamento, na realização de exames de diagnóstico, na elaboração de planos de Conservação e propostas de tratamento, de planos de Conservação Preventiva, no desenvolvimento de tratamentos de Conservação e Restauro e na documen-tação de quaisquer observações e intervenções realizadas, poderá estabelecer-se um quadro geral de áreas a ser desenvolvidas a nível de um Mestrado, tendo em conta a prévia formação adquirida numa Licenciatura. Para alcançar este objec-tivo, seguimos as seguintes definições:

— Diagnostic examination consists of the identification, the determina-tion of the composition and the assessment of the condition of cultural heri-tage; the identification, nature and extent of alterations; the evaluation of the causes of deterioration and the determination of the type and extent of

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treatment needed. It includes the study of relevant existing information.— Preventive Conservation consists of indirect action to retard deterio-ration and prevent damage by creating conditions optimal for the pre-servation of cultural heritage as far as is compatible with its social use. Preventive conservation also encompasses correct handling, transport, use, storage and display. It may also involve issues of the production of facsimiles for the purpose of preserving the original.— Conservation consists mainly of direct action carried out on cultu-ral heritage with the aim of stabilising condition and retarding fur-ther deterioration. — Restoration consists of direct action carried out on damaged or de-teriorated cultural heritage with the aim of facilitating its perception, appreciation and understanding, while respecting as far as possible its aesthetic, historic and physical properties.— Documentation consists of the accurate pictorial and written record of all procedures carried out, and the rationale behind them. A copy of the report must be submitted to the owner or custodian of the cultural heritage and must remain accessible. Any further requirements for the storage, maintenance, display or access to the cultural property should be specified in this document. (ECCO, 2002)

Este Mestrado é composto por dois anos lectivos. No primeiro ano, de natu-reza mais teórica são desenvolvidas oito unidades curriculares

Os Temas de Arte Contemporânea I e II têm como objectivos o entendimento e problematização das afectações da arte contemporânea, desde as suas origens com as vanguardas históricas, na dimensão física, conceptual e aurática da obra de arte. Pretende-se também fornecer coordenadas históricas e conceituais dos paradigmas da história da arte moderna e contemporânea, cruzar entendimen-tos da história da arte com a teoria e a museologia e abordar questões temáticas e teóricas da arte contemporânea não-ocidental e das práticas expositivas que estimulam a produção artística e o diálogo intercultural.

Os objectivos das disciplinas de Conservação, Restauro e Produção de Arte Con-temporânea II e II, prendem-se com o conhecimento e compreensão das princi-pais problemáticas da Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporâ-nea, do ponto vista teórico e prático. Para alcançar este entendimento, torna-se necessário explorar as grandes diferenças entre a produção actual e a arte antiga, bem como a tradição desta questão ao longo dos séculos que apenas agora come-çou a ser equacionada de um modo mais científico, permitindo a compreensão das questões teóricas relacionadas com a questão. Os alunos deverão também receber as ferramentas necessárias para serem aptos a formular um plano de Conservação Preventiva adaptado à realidade dos diferentes materiais, realizar diagnósticos do estado de conservação e propostas de intervenção de objetos de

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diferentes naturezas e ser sensibilizados para a importância da escolha de mate-riais na permanência e conservação futura dos objetos produzidos atualmente.

Nas áreas das ciências naturais, existem duas disciplinas específicas. No La-boratório Avançado de Física para Conservação e Restauro são aprofundados os princípios de funcionamento, vantagens e limitações de vários métodos de exa-me e análise entre os quais se destacam os seguintes: radiografia, refletografia de IV, fotografia da fluorescência provocada pela luz UV, microscopia ótica a espectroscopia de fluorescência de raios –X e de Raman. No Laboratório Avança-do de Química para Conservação e Restauro, é realizada uma introdução aos méto-dos espectroquímicos de ultra violeta-visível e de infravermelho, à Ressonância Magnética Nuclear (RMN) e aos Métodos cromatográficos utilizados na análise de obras, como a cromatografia em camada fina, a cromatografia líquida de alta precisão (HPLC) e a cromatografia gasosa (GC).

As duas disciplinas restantes são opcionais, podendo o aluno escolher entra a oferta formativa dada nos Mestrados da Faculdade, permitindo assim um in-tercâmbio de saberes mais adaptado aos objectivos de cada um.

No segundo ano, deverá ser realizado um trabalho para a obtenção do grau de Mestre. Dada a abrangência do programa proposto, ficará ao critério de cada aluno escolher a área da Conservação e Restauro em Arte Contemporânea ou a da Produção de Arte Contemporânea.

No primeiro caso, seguindo ainda as directivas referidas anteriormente, o aluno terá de realizar um estágio profissional com a duração de um ano lectivo numa instituição reconhecida, no fim do qual apresentará um relatório desen-volvido que será equiparável à Tese de Mestrado.

3. dOUTORAMENTO EM BElAS-ARTES — ESPEcIAlIdAdE

MUSEOlOgIA, cONSERVAçãO E RESTAURO

Ao ingressarem no Curso de Doutoramento em Belas-Artes, os alunos podem escolher a especialidade que desejam seguinte numa vasta oferta de vinte e uma opções: Audiovisuais, Multimédia, Teoria da Imagem, Fotografia, Pintura, Escultura, Arte Pública, Instalação, Anatomia Artística, Geometria, Desenho, Design de Equipamento, Design de Comunicação, Ciências da Arte, Educação Artística, Cenografia, Cerâmica, Curadoria, Performance, Têxteis e moda e, por fim, a de Museologia, Conservação e Restauro.

A primeira fase deste percurso tem um carácter mais geral, sendo designada por Curso de Formação Avançada, onde os nossos alunos são convidados a traçar o seu per-curso individual através da selecção de unidades curriculares que abarcam as áreas científicas existentes na Faculdade de Belas-Artes: Pintura, Escultura, Design de Co-municação, Design de Equipamento, Arte Multimédia, Ciências da Arte e do Patri-mónio, e Desenho. Este tipo de procedimento permite a construção de um percurso individual e variado, através da conjugação da área específica de escolha de cada um, com a sua complementaridade com outros saberes e tipologias de pesquisa.

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Dentro destas unidades encontramos os Seminários de Belas Artes I e II e os Seminários de Especialidade I e II. No primeiro caso, os seus objectivos centram-se na apresentação de modelos, temas e linhas de investigação no ramo de Belas Artes ou, mais especificamente, numa das sete áreas científicas existentes na Fa-culdade. Esta variedade permite orientar o aluno para um determinado campo, onde consiga estabelecer uma ligação aos seus objectivos, fomentando também capacidades de abertura, análise, seleção, rigor metodológico e interpretação es-senciais para fundamentar as suas opções de pesquisa e o desenvolvimento da investigação e produção artística e teórica.

Os Seminários de Especialidades I e II têm como objectivo principal promover a apresentação fundamental e concreta da experiência em curso em cada uma delas, do seu potencial de investigação e dos seus objectivos particulares. Devem definir linhas de trabalho mais concretas em termos de aplicação prática, forne-cendo informações sobre os tipos de metodologias de pesquisa existente na área das Belas-Artes. Neste contexto podem ser convidados oradores especialistas em determinados campos do conhecimento relacionados com o tema.

Logo a partir do segundo semestre do primeiro ano, começam os Seminários de Investigação Orientada, onde os alunos são incentivados a começarem a tra-balhar nas suas teses, que se desenvolverão nos anos subsequentes. Pretende-se reforçar no doutorando as suas capacidades de organização, inovação e visão crí-tica, na delimitação da questão a tratar, estudos e pesquisas a desenvolver, e na metodologia a eleger segundo o modelo de dissertação mais adequado aos seus propósitos e capacidades. Devem ainda ser fomentados hábitos de apresentação, argumentação e debate de ideias.

No segundo ano, encontramos os Seminários de Orientação I e II, onde será desenvolvido o projecto da tese, num trabalho individual entre o orientador e, caso existam, os co-orientadores, e o doutorando. Os seus objectivos princi-pais são contribuir para uma monitorização faseada do desenvolvimento da investigação, tanto nas suas linhas estruturais como em aspectos particulares de natureza teórica, metodológica ou especificamente artística, bem como re-forçar capacidades de posicionamento crítico e adestramento de competências de argumentação.

Posteriormente deverá ser desenvolvida a Tese, adaptada ao plano de cada doutorando, tendo em conta os seus objectivos, experiência e metodologias propostas, com a finalidade de se apresentar um trabalho final, que reflicta um contributo para um determinado ramo do saber, dentro das opções referidas ini-cialmente, com posterior discussão pública e aprovação pelos membros de um júri especialmente constituído para o efeito.

A integração dos projectos de investigação em curso nos objectivos e inicia-tivas do nosso Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes — CIEBA, permite um desenvolvimento e divulgação destes trabalhos, com a possibilida-de de um apoio que se pode tornar muito proveitoso para o desenvolvimento de determinados projectos.

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Como aparece referido na informação disponível no site da Faculdade:

Com esta formação, deseja-se que os doutorandos fiquem aptos a desenvolver carreiras de inves-

tigação artística e científica autónomas, a integrar e coordenar equipas de trabalho em domínios

pluridisciplinares nas várias especialidades, bem como a responder eficazmente a projetos de ava-

liação ou consultoria nessas áreas (www.fba.ul.pt).

Como principais linhas de investigação são definidas as seguintes três:

I. A disponibilização de conteúdos teóricos por si lavrados que poderão servir de matéria-prima

conceptual e operativa ao exercício de reflexão numa investigação em arte e design e na conserva-

ção da arte e do património.

II. O empréstimo de metodologias já estabilizadas que, com devidos ajustamentos, poderão servir

de modo de execução ou ajudar no encontro com os modos operativos próprios a uma investigação

em arte (que é aquela que urge definir e estabilizar), assim como nos domínios da conservação da

arte e do património.

III. A redefinição de processos e práticas investigativas das Ciências da Arte por razões do seu

enquadramento num espaço de Belas Artes. (Pereira, Dias, 2011; 215-216)

A especialidade em Museologia, Conservação e Restauro, surge no segui-mento dos dois ciclos de formação referidos anteriormente, colocando-se na sua linha de orientação teórica.

cONclUSãO

Nos três ciclos apostamos numa formação diversificada, apoiada em várias disci-plinas complementares, onde a da produção artística tem um óbvio destaque por nos encontrarmos num dos seus principais centros de aprendizagem em Portugal.

Pretendemos também valorizar a relação entre esta formação e a área da Museolo-gia, como se evidencia na especialidade do 3.º ciclo. Esta ligação é também salientada em todas as etapas de formação, tendo em conta que uma das finalidades principais de uma intervenção de Conservação e Restauro é também a fruição do objecto pelo pú-blico receptor, o principal definidor do papel patrimonial e cultural do bem em causa.

A Faculdade de Belas-Artes defende o progresso e os desenvolvimentos cul-tural e científico a partir dos pilares definidores da sua memória como base de afirmação identitária.

NOTA fINAl

Os autores deste texto querem agradecer a todos aqueles que têm participado e contribuído para a organização e concretização destes três ciclos de estudos.

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Contactar os autores: [email protected] · [email protected] · [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· Alves, Alice Nogueira (2011), “As Práticas de Restauro nas Belas-Artes”, O Restauro regressa às Belas-Artes,

Retratos da Reserva de Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, CIEBA, Lisboa, pp. 36-42.

· E.C.C.O. Professional Guidelines I — The Profession (2002), Promoted by the European Confederation of

Conservator-Restorers’ Organisations and adopted by its General Assembly (Brussels 1 March 2002),

http://www.encore-edu.org.

· E.C.C.O. Professional Guidelines III- Basic Requirements for Education in Conservation-Restoration (2004), Pro-

moted by the European Confederation of Conservator-Restorers’ Organisations and adopted by its Gene-

ral Assembly, Brussels 2 April 2004, http://www.encore-edu.org.

· Estatutos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (publicados em 6 de Fevereiro de 2009 no

Diário da República, 2.ª série, N.º 26, pp. 5527-35, e rectificados a 25 de Fevereiro de 2009 na Declaração n.º

577/2009 do Diário da República, 2.ª série, N.º 39, pp. 7604-5). www.fba.ul.pt.

· ICOM- Code of Ethics Copenhagen 1984 (1984), “The Conservator-Restorer: a Definition of the Profession”,

http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/professions/Theconservator-restorer.pdf

· PEREIRA, Fernando António Baptista, DIAS, Fernando Paulo Rosa (2011), “Ciências da Arte e Criação

Artística: Solidariedades para uma Investigação em Arte”, in Investigação em Arte e Design, Faculdade de

Belas Artes da Universidade de Lisboa, Lisboa, pp. 214-228.

· PEREIRA, Fernando António Baptista (2009), Relatório para Obtenção da Nomeação Definitiva do Professor

Associado Fernando António Baptista Pereira, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

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MUSEOS dE lA MEMORIA y EdUcAcIóN PARA lOS dEREchOS hUMANOS. Un estudio de caso: MUME — UruguayMEMORy MUSEUMS ANd EdUcATION ABOUT ThE hUMAN RIghTS.

A case study: MUME — Uruguay

Ana María Sosa GonzálezUniversidad Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, Programa de Pós-Graduação em

Memória Social e Patrimônio Cultural, Programa Nacional de Pos-Doutorado Institucional,

PNPDI, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — CAPES.

Resumen: Los Museos de la Memoria se han constituido en instituciones promoto-ras de los Derechos Humanos acompañando el proceso de reconstrucción de la me-moria vinculada a las dictaduras recientes. Al ser museos que operan con memorias dolorosas que no toda la sociedad reconoce, son espacios de conflictos. El siguiente planteo propone que estos museos sean generadores de pensamiento crítico, propi-cien la reflexión y trabajo colectivo con la memoria a través de la efectiva participa-ción ciudadana.

Palabras clave: Museos. Memoria. Educación en derechos humanos.

Abstract: Memory Museums have turned into promoting institutions of human rights accompanying the process of reconstruction of memory linked to recent dicta-torships. Being museums working with painful memories that not every society rec-ognizes, they are places of conflict. The following approach proposes that these mu-seums promote critical thinking, encourage reflection and memory collective work through effective citizen participation.

Keywords: Museums. Memory. human rights education.

INTROdUccIóN

En los últimos años, se vienen generando un conjunto de acciones que reivindi-can el derecho a la memoria y la lucha por la verdad en los países latinoamerica-nos que se vieron afectados por la violación sistemática de los derechos huma-nos durante las dictaduras de las décadas de 1960, 1970 y 1980. Recientemente estos Estados, y entre ellos Uruguay, en respuesta a las diversas reivindicaciones de sectores políticos y de organizaciones de la sociedad civil plantean una serie de políticas públicas de memoria con la finalidad de dar a conocer los dolorosos episodios de las dictaduras y concientizar a la población sobre los mismos. Por medio de diferentes propuestas los Estados latinoamericanos buscan promover la reflexión pública sobre los procesos históricos vinculados a ese pasado dolo-roso y así poder establecer intercambios que fortalezcan la promoción de los derechos humanos y civiles. Con ello se institucionaliza y generan espacios que

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dan a conocer dicho pasado creando Museos de la Memoria e instalando Me-moriales, que recuerdan y materializan episodios claves de esos sucesos, contri-buyendo a la patrimonialización de esa memoria, en el marco de determinadas políticas públicas que se orientan hacia la defensa del “derecho de memoria”, de los derechos humanos y de la democracia.

La existencia de estos museos, memoriales, o centros de memoria, suponen una reformulación del concepto clásico de patrimonio, poniendo en acción un nuevo uso del concepto, en el que justamente una memoria en acción o memo-ria activa de las identidades políticas construyen y transforman constantemen-te los significados atribuidos históricamente, generando polémicas y visiones encontradas, siendo claro el conflicto existente a partir de evidencias y recuer-dos que no toda la sociedad está dispuesta o desea ver… En el presente artículo se busca reflexionar sobre los procesos de revisión que revisitan el pasado reciente en los países del Cono Sur americano, tomando como ejemplo el Museo de la Memoria — MUME — de Uruguay. A pesar de las singularidades de cada caso, es posible reconocer elementos comunes en estas experiencias (tanto la que se ha dado en Uruguay con el Centro Cultural Museo de la Memoria — MUME —, en Brasil con el Memorial da Resistência de São Paulo, en Argentina con el Instituto Espacio para la Memoria, Escuela de Mecánica de la Armada ESMA y en Chile con el Museo de la Memoria y los Derechos Humanos), en la que el objetivo central es no sólo la reivindicación memorial sino la dimensión peda-gógica implícita en este tipo de propuestas que quiere colocar la defensa de los Derechos Humanos en un lugar destacado valiéndose de la enseñanza que esas memorias traumáticas puede -y “debe”- dejar a las generaciones futuras. Esta cuestión obliga a preguntarnos ¿a qué patrimonio hacemos referencia cuando se trata de museos de la memoria? ¿Cómo funciona la conjunción patrimonio/

Fig. 0 - Exposiciones de Sala 1 “instalación de la dictadura”. Fotografía

de Ana María Sosa, visita del 2 de diciembre de 2012.

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derechos humanos en este caso? El texto se construye a partir de los aportes teó-ricos que se vienen realizando sobre la memoria desde las ciencias sociales, muy especialmente desde la Antropología y la Historia. Se trabaja metodológicamen-te con el análisis del discurso museístico del MUME y con observación de cam-po, que a lo largo del año 2011 y 2012 se realizó en más de veinte visitas al museo con observación participante, entrevistas a autoridades, trabajadores, usuarios y miembros de la sociedad civil que han impulsado el proyecto de conformación y mantenimiento del museo desde su inauguración hasta hoy.

En la investigación realizada se constata que este tipo de museos, de caracte-rísticas particulares, que opera con memorias dolorosas, introduce un paráme-tro ideológico en la propia definición de museo, de ser comprendida cabalmente esta especificidad, la institución sería la expresión de un espacio de conflictos, generadora de pensamiento crítico, en el que diversos grupos sociales tengan la posibilidad de ejercer su voz política, representándose a sí mismos a través de un trabajo colectivo con la memoria, siendo ésta la especificidad del marco de derecho que plantea el museo de la memoria como institución.

1. MEMORIA EN MUSEOS y MUSEOS dE lA MEMORIA

No es posible hablar de museos sin memoria, es la institución guardiana de ella, y como tal, toda selección, cualquiera fuere que realice en sus exposiciones, ope-ra siempre con los vestigios, rastros, fragmentos de una memoria que un grupo o comunidad desea colocar en el espacio museal. Por esta razón no es posible pensar en museos en el que no esté siempre implícita la memoria así como tam-poco es posible pensar en la Historia sin el componente memoria.

En un artículo sobre “el lugar mítico de la memoria” Cláudia C. do Rosario (2002: 3), exponía sobre la memoria según el mito griego y su relación con las musas, y, reflexionando sobre la comprensión contemporánea de la misma ex-plicaba que la memoria no está solo en el pasado que trae o evoca la recorda-ción, sino que está en nuestros cuerpos, idioma, en lo que valoramos, en lo que tenemos y en lo que esperamos. Así entonces, la memoria nos identifica como individuos y como colectividad.

Los museos entonces son también “lugares de memoria” (según el término acuñado por Pierre Nora en 1984), que refieren tanto a objetos como a espacios (sean estos naturales o artificiales), -al que podría agregarse la dimensión intan-gible (la testimonial)- que permiten la experiencia sensorial, la elaboración abs-tracta para comprender el pasado o por lo menos conocer parte de él. A su vez, la ecuación conservación-memoria-museo se ha vuelto tan importante que en las últimas décadas la tendencia a museificar el pasado ha sido tal que se multipli-có y amplió la noción de lo “museable”, al mismo tiempo que se incorporaron actores antes relegados (ZAPATTA, SIMONETTA y MANSILLA; 2011: 87). Ahora bien, qué memoria guardan los museos contemporáneos, qué memoria y cómo aparece narrada en la institución es algo que un profesional de esta área debe

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siempre tomar en cuenta. Será este aspecto que se intentará profundizar en el presente estudio de caso.

En el proceso de reconquista y reconstrucción de la memoria silenciada en épocas de la dictadura, que el Cono Sur americano viene operando, se genera una interesante oportunidad no solo para los investigadores de esta temática, sino especialmente para que los propios Estados y sus ciudadanos, comprendan y profundicen más aún sobre los complejos mecanismos de construcción de me-moria colectiva, así como también los de olvido colectivo, permitiéndose una instancia de cuestionamiento a un pasado en que la violación sistemática a los derechos humanos y el terrorismo de Estado es tomado como centro de la cues-tión, en medio de conflictos, disputas y “guerras de memoria”.

Con la asunción al poder en varios países de grupos opositores al régimen dictatorial de entonces se viene procesando una serie de quebrantamientos de aquellos “pactos de silencio”, lógicamente, obligando a hacer nuevos pactos, ya que en esta selección se están silenciando otras memorias; tal como ha sucedi-do a lo largo de la historia, se ponen acentos en unos aspectos dejando otros de lado, de acuerdo a demandas sociales, pugna de grupos, intereses políticos, etc. (SOSA, 2011: 341)

Se produce entonces, una nueva valoración y discusión del pasado asumien-do protagonismo otros actores político-sociales. Al mismo tiempo este proceso somete al investigador a una responsabilidad y acción que no debe ignorar. El hecho de estar trabajando con fuentes donde gran parte de ellas no habían podi-do ser explicitadas, y colocándolas en un lugar destacado fruto de un ambiente favorable y receptivo a los testimonios otrora ocultos, le da un poder de acción, que deberá manejar con un gran compromiso ético y académico ya que segura-mente suscitará efectos que no podrá detener, pero que sin embargo de alguna manera contribuyó a generar.

Los museos o centros de memoria del Cono Sur americano, y entre ellos, el Museo de la Memoria –MUME- en Uruguay, representan un ejemplo de las polí-ticas de memoria impulsadas desde el Estado, pero también desde las organiza-ciones sociales, quienes en este caso son las que verdaderamente trabajan para la exposición, puesta en evidencia, educación y comprensión de los hechos vincu-lados a la dictadura, así como la promoción de las investigaciones recientes. El Centro Cultural y Museo de la Memoria –MUME- fue inaugurado en 2007, ubi-cado en Montevideo, en un barrio bastante alejado de los circuitos habituales de circulación de la población residente y más aún de los turistas, transformó la ex Quinta del Dictador Santos (que gobernó en el Uruguay hacia fines el siglo XIX) en un espacio para reflexionar sobre la dictadura (1973 y 1985) y los derechos humanos, el cual depende directamente del Departamento de Cultura de la In-tendencia de Montevideo. Entre sus objetivos se expresa una clara intención de resignificar ese lugar a través de actividades que promuevan el sentido crítico y reflexivo sobre el período dictatorial pero al mismo tiempo pretende “crear un espacio para la promoción de los Derechos Humanos y Civiles, y la Memoria de

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la lucha por la Libertad, la Democracia y la Justicia Social, entendiéndolos como conceptos culturales, inacabados y en permanente construcción” (Página web del museo: http://museodelamemoria.org.uy/institucional.php?cod=14).

En un país como Uruguay, donde la dictadura y terrorismo de Estado ha te-nido repercusiones “traumáticas” en la sociedad (que aún hoy perduran), la pro-puesta museística apunta a una mirada reflexiva y testimonial del período, que se entiende podría ser explorada aún más profundidad y creatividad propician-do múltiples espacios de comprensión, cuestionamiento y reflexión o alcance de estas memorias sensibles.

La Dictadura Cívico Militar, que al formar parte de la historia del Uruguay también nos identifica trayendo al presente una memoria fuerte, espesa y con contenidos emocionales de un pasado que aún no ha sanado para todos, es toma-da en el guión museístico, como un proceso más amplio que el período 1973-1985, integrando el trayecto previo (la década de 1960 y los primeros años de los ’70), en que aún estando bajo un “Estado de Derecho” se iba hacia un autoritarismo cada vez más pronunciado, con sus respectivos abusos y violaciones a los derechos.

Pero, un museo de la memoria de un pasado reciente, doloroso y que aún genera enormes controversias, disputas y reivindicaciones, necesariamente de-berá promover ciertas acciones que permitan la visualización y circulación de la información sobre el período, lo que conviene sea explicitado como forma de contribuir a la democratización de la información que a través del repertorio de sus obras y guión museológico propone. Por ello la planificación institucional deberá ser eficaz y en consonancia con lo que se propone mostrar, para quienes y con qué propósitos. En las exposiciones del MUME no siempre se evidencian estas cuestiones. En la vastedad y diversidad de las manifestaciones humanas del período dictatorial que un museo de la memoria debe contemplar, resulta funda-mental romper con cualquier tipo de concepción rígida o acotada a actores locales

Figuras 1 y 2 - Exposición Sala 3, “las cárceles” y Sala 2, “la resistencia popular”.

Fotografía de Ana María Sosa, visita del 2 de diciembre de 2012.

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(nacionales). Se hace necesario integrar con más presencia los procesos de exilio de la década de 1970 generando espacios a la comunidad compatrio-ta residente en el exterior, así como todas las organizaciones nacionales e internacionales tan significativas por sus acciones durante aquel período y posterior.

El MUME cuenta con un acervo y colección de objetos muy diverso, una gama variada de expresiones artístico-culturales que no siempre es expuesta y “contada” de manera clara y didáctica, de manera tal que pueda ser de acceso a todo público, principalmente de aquellas generaciones jóvenes que desconocen lo sucedido. La visita con guía resulta ser muy explicativa y cubrir todas estas cuestiones (muchas veces brindando información valiosísima que debería estar expresada con mayor extensión en las explicaciones de las exposiciones perma-nentes sobre todo), pero es sabido que no todos los visitantes utilizan el servicio de guía. Se observa además, que hace falta integrar en su discurso museístico aspectos del edificio y espacio arquitectónico con el fin de establecer no solo una conexión con lo que fue originalmente el predio, sino poder conocer y comparar otros momentos de la historia de los gobiernos dictatoriales del Uruguay.

En la página web se expresa que se desarrollan actividades de investigación, artísticas, educativas y culturales, que promueven el sentido crítico y la reflexión, para lograr que la memoria sea un instrumento que permita el desarrollo de la conciencia crítica de la sociedad. Pero se aclara que el centro de las actividades gira en torno a la exposición permanente que abarca: la Instauración de la dictadura; la Resistencia Popular, Las Cárceles; El Exilio; Los Desaparecidos; La Recuperación Democrática y la Lucha por Verdad y Justicia, e incluso Historias Inconclusas y Nuevos Desafíos. Este guión museográfico fue elaborado tras las reflexiones y de-bates de distintas organizaciones sociales y de derechos humanos. (Página web del museo: http://museodelamemoria.org.uy/institucional.php?cod=14).

Además su acervo se formó fundamentalmente de donaciones de ex deteni-dos o de familiares de desaparecidos, aunque continúa recibiendo donaciones y préstamos de objetos significativos, cuenta con ocho colecciones y produce testimonios constantemente a través del programa Registro de Testimonios Orales. Cuenta también con una Biblioteca y una Mediateca abierta al público. El director del museo, Arq. Elbio Ferrario, que estuvo detenido durante toda la dictadura, en entrevista que le realizaran en 2008, sostenía que

los responsables del lugar están siempre abiertos a nuevos materiales que la población

o las oficinas del Estado vayan aportando. Incluso, Ferrario no pierde las esperanzas de

tener el aporte del otro lado de esta historia, los militares y policías. ‘Nosotros luchamos,

queremos que esté la memoria de los militares también y la memoria de los policías. Pen-

samos que la situación de dictadura afectó a todo el mundo. También los militares y los

policías fueron víctimas de la dictadura’, consideró (EL ESPECTADOR, 2008).

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Fig. 3 - Exposición Sala 2, “la resistencia popular”. Fotografía

de Ana María Sosa, visita del 2 de diciembre de 2012.

Fig. 4 - Exposición Permanente Sala 4. Fotografía

de Ana María Sosa, 2 de diciembre 2012.

Fig. 5 - Marcha del Silencio del 20 de mayo de 2011

(Fotografía de Ana María Sosa, 20 mayo de 2011).

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En dicha ocasión Ferrario expresaba que la finalidad del museo y su muestra -que no puede catalogarse de “permanente”- es que vaya cambiando a medida que se incorporen otros aportes. Hoy las muestras de las salas 1, 2, 3, 4 y 5 han permanecido con cierta estabilidad o permanencia, aunque se le han ido incor-porando nuevos objetos, testimonios y guiones.

Se observó también explicaciones demasiado extensas; a modo de ejemplo, la fo-tografía anterior muestra una máquina de escribir utilizada en la “clandestinidad”, junto a un extenso relato en la pared que refiere al terrorismo de Estado y la “socie-dad vigilada”, como característica de aquel momento; generalmente los usuarios no se detienen a leer, por lo que se entiende fundamental brindar esa información en otro tipo de soporte, en este caso auditivo, para facilitar la comprensión del gru-po de objetos expuesto en el caso de no hacer uso del servicio de guía del museo.

Por otro lado, resulta interesante prestar especial atención en los carteles con las imágenes de detenidos desaparecidos que se encuentran en la Sala 4. Los mis-mos cada año son retirados por sus familiares y amigos para recorrer las calles en la llamada “Marcha del Silencio” que se efectúa todos los 20 de mayo. Este hecho tan vivo como participativo de la memoria y del museo al brindar la posibilidad que esa parte de su acervo pueda trasladarse y transitar por las calles en una marcha reivindicativa de memoria, verdad y justicia, representa uno de los as-pectos más novedosos y destacados de las acciones que lleva adelante el Museo.

A su vez, esta marcha corresponde a una serie de medidas tomadas por el entonces Presidente de la República Dr. Tabaré Vázquez, en 2006, junto a la ins-titucionalización del día del “Nunca más” (que se conmemora los 19 de junio).

Por otra parte, el Museo propone variadas actividades culturales como el ciclo de Cine, de cuentos, talleres de integración social y expresión, de plástica, música, tea-tro y literatura para todo público, entre otras actividades culturales. Realiza además conferencias, mesas redondas, seminarios, encuentros regionales en coordinación con las investigaciones que viene llevando adelante la Universidad de la República.

Sintetizando los contenidos de la entrevistas realizadas a su director y equi-po de trabajo es posible afirmar que las experiencias testimoniales narradas, in-discutible patrimonio inmaterial, así como todo lo que constituye su acervo, el patrimonio material –mueble e inmueble- que refiere al período, forman parte de un pasado que se desea hacer conocer y difundir en sus más amplios niveles, a través de una concepción museística dinámica, que se construye en y con la co-munidad en la que está inserta, obedeciendo a sus propósitos de dar visibilidad e información de un período otrora silenciado. Si bien este discurso es comparti-do por autoridades y funcionarios (en este momento 25 personas entre el equipo permanente y el transitorio) se ha constatado que no siempre este propósito es alcanzado ya que existe aún una enorme cantidad de ciudadanos que desconoce el museo y entre ellos muchas generaciones jóvenes (escolares y liceales) que no han concurrido ya sea porque sus padres tampoco o porque en los centros de estudio los profesores no se han interesado en usufructuar el interesante trabajo didáctico pedagógico que el MUME propone para las escuelas y liceos.

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A su vez, el MUME enfrenta dos situaciones que dificultan su visitación, lo polémico de su contenido (en base a todo lo que fuera señalado antes) y su ubi-cación, alejada de los circuitos habituales de tránsito de las personas, lo que ha hecho que muchos uruguayos no lo visitaran aún. Las acciones para conseguir atraer un variado público parecen no ser suficientes, si bien hay un importante número de estudiantes de todos los niveles que acuden con sus profesores, una fracción numerosa de adultos de diversas edades y sectores sociales, aún hoy manifiestan que no han visitado el museo, por lo que el público que frecuenta y se nutre de sus propuestas es aún restringido.

Por otro lado, se observa que no se dialoga con otros ejemplos dictatoriales del país (o sea aquellos sucedidos en otros momentos de la historia uruguaya), y en pocas instancias se hace referencia a los contextos regionales en los que se dieron estos episodios, así como diferentes momentos –en el mundo- en que fueron ma-sivas las violaciones a los Derechos Humanos. Se entiende que el reforzar instan-cias de este tipo contribuirá al objetivo principal de generar conciencia, recordar y conocer para que no vuelva a suceder, y así sensibilizar y promover la defensa de los Derechos Humanos en todos los órdenes, impulsando con ello una acción educativa del museo más abarcante. Es por ello que en las colecciones expuestas, sean permanentes o transitorias- así como el guión museológico escogido, el gran desafío será incorporar nuevos contenidos, en toda su conflictividad y compleji-dad, con honestidad y sensibilidad, sirviendo de espejo y reflejo de una sociedad que tiene su trayectoria, se transforma y proyecta, lo cual no siempre consigue.

2. lOS MUSEOS dE lA MEMORIA cOMO INSTANcIA

dE EdUcAcIóN PARA lOS dEREchOS hUMANOS

Si se entiende la educación patrimonial y con ello, por extensión la educación museal como una instancia para “promover nuevos valores basados en una concepción totalmente transformada de la tradición y patrimonio, o sea, la rea-propiación de la ciudadanía” (TAMANINI; 1998, 179) veremos que estos museos resultan un arma muy poderosa para trabajar los procesos de conformación de la memoria colectiva, generar instancias de reflexión no solo de los derechos humanos sino de los mecanismos implicados en la consolidación de los mis-mos, siendo el derecho a la memoria uno de los aspectos más interesantes para trabajar en esta perspectiva de inclusión y reapropiación ciudadana.

Asimismo, siendo uno de los objetivos de la educación patrimonial el abor-daje inclusivo, el fomento de la auto-estima de las comunidades locales, para el estímulo, conocimiento y valoración de su patrimonio, memoria e identidades culturales, (CERQUEIRA, 2008: 13) este objetivo para los museos de la memoria queda un poco cuestionado, o por lo menos limitado en su posibilidad de ser una expresión museal que involucra al conjunto de esa comunidad. Pero, tratán-dose de una instancia para sensibilizar a la comunidad para la preservación de memorias sensibles y en este caso generar conocimiento de un período histórico

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reciente (con información vinculada a un pasado silenciado por el propio Esta-do), estos museos constituyen un soporte de memoria particular que no siem-pre refieren a la identidad cultural de la comunidad nacional en un sentido am-plio, sino a una acción del Estado en el marco de una serie de políticas públicas de memoria que viene impulsando pero que aún hoy dividen a la sociedad, por lo que no son representativos de una ciudadanía homogénea que se reconoce en y a través del mismo. Se trata de una instancia de valoración patrimonial que no es necesariamente compartida por el conjunto de la sociedad. Existe una pobla-ción directamente involucrada en los proyectos del MUME (así como se ha po-dido observar para otros museos o centros de memoria del cono sur) que ahora consigue tener un espacio de expresión de sus memorias y dar a conocer episo-dios traumáticos, que representan parte de su historia de grupo (como víctimas del terrorismo de Estado) pero también de una historia reciente que el conjunto de la sociedad merece y precisa conocer. En la opinión de Ramos (2011: 31) “los recuerdos se constituyen de tensiones sociales, en situaciones vinculadas a los conflictos de valores y perspectivas”. La labor de enseñanza de la historia (y esto integra la dimensión pedagógica de los museos de la memoria) no tiene que ver con una adhesión a una causa específica de las reivindicaciones mnemónicas, más precisamente porque su contribución estaría en la capacidad de proponer conocimiento sobre la sociedad, explicitando cuestiones y problemas que la so-ciedad (o en este caso una parte de ella) muchas veces no quiere mostrar o no desea saber. (RAMOS, 2011: 31).

Si la función fundamental del museo es ser generadores de conocimiento, la investigación de las colecciones (en este caso los nuevos hallazgos y participa-ción de la academia en las investigaciones sobre el período), realizada por el pro-pio personal del museo y por los investigadores externos, es la manera de avan-zar en el conocimiento (CARBONELL, 2005: 17), el MUME cumple esa misión.

Pero tendrá a su vez un desafío mayor: ¿cómo generar identificación con los sucesos que narra, con los relatos de víctimas, cuando muchas personas y so-bre todo las generaciones más jóvenes desconocen lo sucedido?, ¿cómo hacer de ellos parte de la historia del grupo que reivindica esa memoria y al mismo tiempo cómo promover una educación museal en la que los visitantes puedan reconocerse y se genere así una memoria compartida?, ¿es posible crear un sen-timiento de pertenencia o por lo menos de identificación con un pasado que sucedió a un número importante de personas de las cuales muchísimas aún hoy viven y padecen sus consecuencias…?

Esto implica trascender aspectos comunes ya consensuados que pueden ser válidos para otros museos, por ejemplo los muesos históricos nacionales, donde si bien no todos los ciudadanos se sienten representados en ese discurso preten-didamente nacional, la historia oficial y la educación formal han conseguido homogeneizar y trasmitir un relato único que a pesar de los sucesivos cuestiona-mientos sigue firme.Para poder cumplir con el propósito de ser un museo que des-pierte un sentido de pertenencia a una historia aún polémica y con ello sensibilice

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para que nunca más vuelva a ocurrir algo semejante, debe propiciarse también sentimientos de tolerancia y respeto por los derechos humanos, lo que no siem-pre es fácil cuando gran parte del discurso museológico se encuentra resaltando sistemáticas violaciones a esos derechos incluso por el propio Estado. El gran desafío es que ese pasado no se transforme en un discurso único que narre solo un lado o aspecto de los acontecimientos tal como ocurrió en el período que se critica: la dictadura. Si extendemos la posibilidad que la educación patrimonial –en este caso museal- puede generar en sus usuarios, yendo más allá de lo téc-nico, se pueden ver otras potencialidades: puede capacitar a la población para fiscalizar y cooperar con la conservación de una memoria polémica, dolorosa, de una historia traumática para muchos, en la medida que se difunda y trabaje con ella en esa clave de acción. Puede también capacitar a la comunidad en el proce-so de elección de bienes que se expondrán en el museo, incluso en su conserva-ción, y en su generación, ya que contribuirá a generar nuevos testimonios sobre el período, trascendiendo así esas memorias de dolor, comprendiendo que las mismas forman parte de la trayectoria histórica humana, con una comprensión más profunda de los conflictos y manipulaciones de la memoria en momentos que no ha estado a favor de “la verdad” y así construir sociedades más participa-tivas y defensoras de los derechos humanos.

Idealizando aún más podrá ser un instrumento para la construcción de la de-mocracia cultural y así en un futuro tener una sociedad más comprometida con la defensa de esos derechos y sobre todas las cosas en alerta para que no vuelva a permitir que suceda algo tan grave. Se trata entonces de una valorización de esa memoria más que por sus aspectos positivos, por la enseñanza futura que se espera pueda dejar firmemente plasmada.

cONclUSIONES

Los museos o centros de memoria referidos al pasado reciente del Cono Sur, pun-tualmente el Museo de la Memoria — MUME — del Uruguay, representan una interesante instancia de cuestionamiento y trabajo con memorias dolorosas que aún no están consensuadas ni aceptadas para el conjunto de la sociedad involucra-da. Representan también la posibilidad de generar una sensibilización sobre los acontecimientos narrados allí para hacer efectiva la preservación de esa memoria, la difusión y la concientización reforzando el propósito último: evitar que vuelva a ocurrir algo semejante. Pero este tipo de museos, brindan también una instancia propicia para reflexionar sobre los procesos de construcción social de la memoria. Si es operado desde un posicionamiento reflexivo y dinámico que permita el ver-dadero involucramiento de los diferentes sectores sociales, donde la intervención de los técnicos sea un aspecto más y no domine el discurso y propuestas museís-tias, podrá convertirse en un interesante ejemplo de participación ciudadana, una ‘verdadera’ práctica democrática, tal como lo expresa la propia misión del museo, aunque se considere que al presente aún no se ha alcanzado cabalmente.

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Se podrá trabajar aún más en participación con la comunidad ciudadana en lo que respecta a la construcción colectiva o compartida de la memoria y así comprender que la relación entre lo recordado y lo olvidado cambia con el tiempo, son estrategias políticas que establecen lo que es permitido o no en cada época, por lo que un ciudadano consciente de ello tendrá otras herramientas de acción y participación democrática, lo que le permitirá tener otro compromiso con los sucesos de la sociedad de la que forma parte.

Contactar o autor: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

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MUSEUS dO dISTRITO dE VISEU: a construção de uma rede de proximidade territorialMUSEUMS Of dISTRIcT Of VISEU: framing of a territorial proximity network.

Ana Rita Santos Almeida Martins AntunesFaculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: O vasto e diversificado património museológico do Distrito de Viseu, cons-truído numa expressão de “estruturas museu”, não credenciadas, conduziu a um le-vantamento exaustivo de todas as unidades museológicas dos 24 Concelhos. A inter-ligação de todas estas unidades numa possível “rede” de proximidade pautou uma investigação que originou uma proposta para uma Rede de proximidade territorial, com um design sustentável e a implementação de um plano de gestão integrada.

Palavras-chave: Distrito de Viseu (Portugal). Museu. Rede. Gestão. Comunidades.

Abstract: The large and diversified museum heritage of the District of Viseu, based on an expression of “museum structures”, not accredited, led to an exhausting identifica-tion of all museum units of the 24 municipalities. The interconnection of all these units in a potential “proximity network” guided the study which resulted a proposal of a “territorial proximity network”, with a sustainable design and the implementa-tion of an integrated management project.

Keywords: District of Viseu (Portugal). Museum. Network. Management. Communities.

INTROdUçãO

O presente artigo é o resultado de uma investigação de Mestrado em Museolo-gia e Museografia, desenvolvida na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, que visava essencialmente o estudo atualizado das unidades museológi-cas existentes num distrito do centro de Portugal.

A escolha do distrito de Viseu é justificada pelas suas características híbri-das e únicas, revelando-se um conjunto heterogéneo e estratificado da malha museológica nacional. Identificaram-se algumas incógnitas associadas à for-ma como a gestão se processava nas unidades museológicas do Distrito de Vi-seu, num interesse final de elaborar sugestões que justificassem assim o tema da dissertação. As diversas visitas efetuadas contribuíram de forma nuclear para a listagem e análise das interrogações colocadas e dos caminhos a seguir. A ideia final consistiu em direcionar a investigação, num contexto real de rede distrital / comunitária.

Uma rede de museus que conseguisse interligar instituições com diferentes níveis de particularidade. Espaços que precisam de ser questionados e de uma reflexão sobre o modo de transformação das fraquezas em pontos fortes e das

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ameaças em oportunidades, para otimização do que é verdadeiramente nosso, no fundo, para um resultado mais inteligente e promissor.

O texto está dividido em duas partes fundamentais: na primeira, descreve-se sumariamente a metodologia adotada para a investigação realizada no distrito de Viseu e os resultados obtidos através da interligação dos dados recolhidos em todas as unidades visitadas e estudadas; na segunda, apontam-se as principais diretrizes do projeto Rede Distrital de Museus e a importância da sua aplicação.

1. VISEU — UMA REgIãO E OS SEUS MUSEUS

1.1 METOdOlOgIA dA INVESTIgAçãO

A delimitação do objeto de estudo, o Distrito de Viseu, foi o primeiro passo para a estruturação da investigação. Perceber a realidade de uma zona do interior do país na tentativa de projeção de políticas ativas, em terras onde os contrastes são de larga escala. A escolha do objeto tornou-se óbvia, pois sendo Viseu, a minha cidade natal, queria ter um conhecimento mais aprofundado da realidade mu-seológica do distrito.

A recolha de informação, junto do Posto de Turismo de Viseu, foi fundamen-tal para registrar e sistematizar o maior número de contactos das unidades mu-seológicas existentes. Esta etapa suscitou questões no que respeitava às diferen-tes áreas regionais de turismo, que, por conseguinte, não permitia o registo de todos os concelhos do distrito. Desencadeou uma fase de contactos telefónicos com a autarquia de cada concelho e, quando necessário, com as respetivas Juntas de Freguesia. Foi elaborado um questionário padrão para o registo de dados res-peitantes à orgânica de funcionamento, recursos materiais e humanos e à gestão de cada unidade museológica. A visita às unidades em registo foi orientada por um cronograma, a fim de estruturar hipóteses mais rentáveis de deslocação, per-mitiu também efetuar um arquivo fotográfico dos espaços do museu. Os dados recolhidos deram origem a uma ficha técnica de cada uma das unidades, onde foram desenvolvidos aspetos respeitantes à história da coleção, às temáticas ex-postas e à gestão aplicada por cada unidade museológica. De uma forma mais aprofundada, a ficha explora ainda aspetos referentes ao plano museológico e museográfico (circuitos museográficos, organização expositiva, propostas de encenação, equipamentos e comunicação). Esta ficha permitiu criar uma base de dados, onde foi possível estabelecer comparações reais e criar estratégias de análise e argumentação ilustrativas de diversas realidades do interior.

1.2 OBJETO dE ESTUdO

O Distrito de Viseu localiza-se na Região Administrativa do Centro de Portugal Continental, a sul do Rio Douro entre os distritos da Guarda a oriente, o distrito de Aveiro a ocidente e o distrito de Coimbra a sul. Com 5.007 Km2 de superfície, abrange 24 concelhos1A localização geográfica dos concelhos é apresentada no

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Mapa 1: Disposição dos 24 concelhos pelo distrito. A faixa mais escura representa os concelhos que pertencem

à área regional de Turismo do Norte, os restantes à área regional de Turismo do Centro

Mapa 2: Localização dos museus do distrito. Três museus seda assinalados com circulo.

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mapa abaixo, de forma a tornar mais percetíveis possíveis fluxos das Unidades Museológicas. A faixa norte pertence à Área Regional de Turismo do Norte e o restante distrito à Área Regional de Turismo do Centro. Todo o distrito é repre-sentado por fortes assimetrias socioeconómicas e demograficamente, caracteri-za-se por uma população envelhecida.

1.3 ENqUAdRAMENTO MUSEOlógIcO

O trabalho de campo permitiu o registo de 44 Unidades Museológicas, das quais, apenas 34 foram visitadas, entre Novembro de 2010 a Maio de 2011. As 34 uni-dades, distribuídas de forma irregular pelo distrito, encontram-se em 21, dos 24 concelhos. (cf.: listagem abaixo. Os espaços sublinhados são as instituições, que, por problemas logísticos, não foi possível visitar e estudar.)

lISTAgEM dOS MUSEUS dO dISTRITO

· Carregal do Sal, Museu Municipal Manuel Soares de Albergaria. Núcleo Museológico — Lagar de Varas de Parada

· Castro Daire, Museu Municipal de Castro Daire. Museu Maria da Fontinha. Exposição Etnográfica do Mezio. Museu de Almofala. Museu Etnográfico do Rancho Folclórico “As Morenitas de Alva”

· Cinfães, Museu Serpa Pinto· Lamego, Museu de Lamego· Mangualde, Núcleo Museológico Felmica· Moimenta da Beira, Casa Museu Aquilino Ribeiro. Casa do Aldeão (Soutosa).

Casa Museu do Alvite. Museu Etnográfico de Arcozelos da Torre. Eco-museu de Segões

· Nelas, Núcleo Arqueológico de Canas de Senhorim. Casa de Santar. Paço dos Cunhas de Santar

· Oliveira de Frades, Museu Municipal de Oliveira de Frades· Penalva do Castelo, Casa da Ínsua· Penedono, Museu Municipal de Penedono· Resende, Museu Municipal de Resende· São João da Pesqueira, Museu Eduardo Tavares. Museu de Trevões· São Pedro do Sul, Núcleo Termal Balneário Rainha D. Amélia. Museu Rural

de Carvalhais· Sátão, Museu Municipal Camila Loureiro· Sernancelhe, Museu Paroquial Padre Cândido. Museu Monográfico do

Ex-Voto (Lapa)· Tabuaço, Museu do Imaginário Duriense· Tarouca, Museu do Espumante· Tondela, Museu Municipal Terras de Besteiros. Museu do Caramulo /

Fundação Abel de Lacerda

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· Vila Nova de Paiva, Museu Rural de Pendilhe· Viseu, Museu Grão Vasco. Museu Almeida Moreira. Tesouro da Misericórdia.

Tesouro da Sé. Seminário Maior. Museu Etnográfico de Silgueiros. Casa de Lavoura e Oficina do Linho — Museu Etnografico. Museu Etnográfico de Vila Chã de Sá. Eco-museu de Torredeita

· Vouzela, Museu Municipal de Vouzela

No que respeita às categorias, a malha museológica foi avaliada, tendo em conta os artigos 3º e 4º da Lei Quadro dos Museus Portugueses nº47/2004 de 19 de Agosto2, e a cada unidade foi atribuída uma Categoria Padrão. A Coleção Visi-tável (A) dividida em três grupos, coleção visitável, reserva visitável e núcleo; e a categoria Museu (B), dividida entre museus que não integram a RPM, 3e museus credenciados pela RPM.

Categoria Padrão Unidade Correspondente

A

Coleção Visitável Casa de Santar. Paço dos Cunhas de Santar. Casa da Ínsua.

Núcleo Museológico Felmica. Núcleo Termal do Balneário

Rainha D. Amélia. Museu do Espumante. Casa Aldeão.

Casa Museu do Alvite. Museu Etnográfico de Arcozelos da

Torre. Museu Rural de Carvalhais. Museu Rural de Pendilhe.

Museu Municipal de Castro Daire. Exposição Etnográfica do

Mezio. Museu Maria da Fontinha. Museu Camila Loureiro.

Casa Museu Aquilino Ribeiro. Núcleo Arqueológico de

Canas de Senhorim

Reserva Visitável Museu Etnográfico de Silgueiros. Museu Paroquial Padre

Cândido

Núcleo Núcleo Museológico Lagar de Varas de Parada

B

Museus out RPM Museu Serpa Pinto. Museu Municipal de Oliveira de Frades.

Museu Municipal de Penedono. Museu Municipal de

Resende. Museu Municipal Terras de Besteiros

Museu Municipal de Vouzela. Museu Municipal Manuel

Soares da Albergaria. Museu Eduardo Tavares. Tesouro da

Misericórdia. Casa de Lavoura e Oficina do Linho. Museu do

Imaginário Duriense

Museus in RPM Museu Caramulo/ Fundação Abel de Lacerda. Museu de

Lamego. Museu Grão Vasco

Tabela 1 — Categoria Padrão, Unidades Correspondentes

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De uma forma transversal esta categorização dos espaços define a conjuntu-ra dos museus do distrito e por arrastamento a realidade das Unidades afetas a zonas interiores. Ressalva-se que na maioria dos espaços que se auto designam como museus, integram uma logística municipal. A Câmara Municipal, consi-derada como uma infraestrutura com diferentes serviços, pode contribuir para preencher as necessidades básicas do museu. Nesta ótica, as unidades museo-lógicas vão tirar partido do edifício e serviços integrados nas autarquias de que dependem. Por consequência, muitas das Unidades não credenciadas pela RPM acabam por preencher serviços básicos, precisamente porque se encontram aco-pladas a uma unidade camarária.

1.4 ANálISE dOS dAdOS REcOlhIdOS

O quadro apesentado abaixo, representa as características avaliadas em cada uma das unidades museológicas visitadas, através das quais foi possível chegar a dados concretos sobre a realidade que o distrito apresenta e conseguir uma estratégia sustentável para a resolução dos problemas detetados.

Características Avaliadas

Estado do Edificado

Serviços Disponíveis

Número de Visitantes (respeitantes ao ano anterior da pesquisa)

Plano Científico

Abrangência Territorial

Caracterização do Campo Temático

Natureza Disciplinar

Dependência Administrativa

Estado das Coleções, Inventário, Modalidade Incorporação, Estado de Conservação,

Composição da Coleção, Conservação Preventiva.

Plano Museológico

Recursos Humanos

Circuitos Museológicos

Organização Expositiva

Tipologia do Discurso

Plano Museográfico

Suportes de Comunicação

Divulgação

Estruturas Utilizadas

Linha de Equipamento

Propostas de Encenação

Linguagem Museal

Iluminação

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PRINcIPAIS RESUlTAdOS dOS dAdOS TRATAdOS

· Elevados contrastes do tecido museológico; · Falha na qualidade das unidades visitadas; · Não cumprimento das funções museológicas; · Articulação de museus e coleções visitáveis;· Espaços com diferentes níveis de particularidade; · Configuração do distrito, propícia, um trabalho em parceria; · A maioria destes espaços apenas terá possibilidade de sobreviver,

no momento em que estabelecer parcerias e comunicar de forma mais ativa com entidades próximas.

2. PROPOSTA PARA UMA REdE

O plano de gestão integrada pode ser estruturado segundo paradigmas de redes que dependem de estruturas regionais/informais, o que o aproxima consideravel-mente do modelo adotado pela Rede de Museus do Algarve. O propósito de cria-ção da rede surge como infraestrutura de apoio que vai permitir uma interface sustentável entre museus, dignificar espaços, imagens e possibilitar interven-ções traçadas para um fim comum, a partilha de património, “a rede terá de ser descentralizada, transversal às diversas tipologias das coleções e profundamente arti-culada com as expetativas, dinamismos e necessidades da sua envolvência”4

A rede não pode ser entendida como uma forma de minimizar determinados espaços, mas sim interpretada como a hipótese de atingirem diferentes níveis de particularidade. Muitas destas unidades não reunem condições para vir a ser certificadas pela RPM, contudo, podem integrar uma rede comunitária e serem infraestruturas museológicas e paramuseológicas de um circuito estruturado com narrativas próprias e profícuas. A criação da rede não se pretende uma uni-formização, mas sim elos complementares de ligação e comunicação entre os museus, respeitando a individualidade de cada instituição. “É forçoso admitir que a partilha e cooperação entre as várias instituições de carácter museológico, a nível re-gional, se encontra, ainda, numa fase embrionária, designadamente no que concerne à articulação entre museus e a elaboração de projectos em comum.”5

À semelhança do preconizado a nível nacional, também o distrito de Viseu po-derá, dentro da Rede Distrital de Museus (RDM), constituir um sistema de media-ção entre as diferentes entidades museológicas, com objetivos de promoção da co-municação e entreajuda, com vista à qualificação do tecido museológico regional. Desta forma, caberá aos museus, enquanto promotores, o papel de dinamização de recursos humanos e técnicos de modo a poderem apoiar os seus pares, no cum-primento das funções museológicas, situação deficitária no conjunto investigado. As ideias acima expressas vão desencadear objetivos para uma rede, articulando as diversas valências museais e preenchendo questões, ainda embrionárias, do es-tudo das colecções, construção de discursos e parâmetros técnicos (inventário,

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plano preventivo de conservação e afins). A estrutura da rede vai ser elaborada de acordo com a definição de uma missão coletiva de cooperação e partilha, res-pondendo de um modo mais eficaz, às necessidades culturais e educacionais do distrito, apresentando as seguintes diretrizes:

a) Descentralizar a política cultural, reaproveitando os recursos de cada museu da RPM e prossegir à sua transformação em segmentos que representem o distrito

A carência de estruturas homogéneas a nível do distrito desencadeou uma seleção de três unidades capazes de serem os núcleos sede deste projeto em rede (ver mapa abaixo). O Museu de Lamego (Lamego), o Museu Grão Vasco (Viseu) e o Museu do Caramulo (Tondela), entidades da RPM, credenciadas e capazes de assumir a representatividade do distrito. Neste projeto, podem ainda ser designados como o espaço físico da RDM, onde assumem um contacto direto com diferentes parceiros, possíveis motores de desenvolvimento. Numa outra vertente, esses museus admitem uma localização geográfica específica na ma-lha distrital, estrategicamente definida a norte, ao centro e a sul, o que permite estabelecer um contacto mais direto com os demais museus. Estas três unida-des vão ser a gestão física da rede, cuja caracterização se vai delinear segundo os seguintes pressupostos:

· Elaboração de projetos com candidaturas a fundos, apoios de mecenas… · Programação das atividades anuais da RDM;· Realização de formações periódicas;· Estabelecimento de parcerias, com outras redes;· Gestão de equipamentos e recursos;· Aquisição de um veículo de transporte que possa garantir a deslocação de

peças, nas mais diversificadas situações evitando-se o recurso a outsourcing.

b) Criar uma rede de informação virtual a nível do distrito

O espaço online permitirá o cruzamento de dados para a gestão dos recur-sos de uma forma sustentável. Os sistemas virtuais são vistos, nos dias de hoje, como uma “rampa de lançamento” para a projecção dos museus, cada vez mais vão ser o acesso directo dos diferentes públicos aos espaços museológicos. Neste objectivo são estruturados os seguites pontos:

· Interface virtual, basilar para um mútuo conhecimento dos museus existentes no distrito e a possibilidade de resolução de problemas, assentes em estratégias a baixo custo;

· Inscrição individual e gratuita, de todas as unidades, independentemente do órgão que as tutela;

· Sítio online dividido em dois acessos distintos, os utilizadores internos,

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para as unidades museológicas inscritas na rede, e os utilizadores externos, relativos a qualquer visitante que pretenda conhecer os museus do distrito;

· Assinalar as unidades não inscritas na rede, como uma referência para as restantes e para o público em geral;

· Arquivo virtual de informação sobre cada uma das unidades (os dados apresentados nos capítulos anteriores, podem ser o arranque inicial para o repositório da RD);

· Preenchimento de um questionário de auto-diagnóstico, por parte de cada museu, para avaliação das limitações e potenciais existentes;

· Layout do espaço virtual, assegurado pelos membros da rede, com execução nos gabinetes de comunicação e marketing dos municípios que tutelam os museus.

As informações resultantes deste circuito em rede são recíprocas. Os museus têm um auto conhecimento mais profundo, face a si mesmos, porque se compa-ram directamente com os restantes. Numa óptica inversa, ao formularem críti-cas construtivas e activas para apoiarem outras unidades, actuam na definição de estratégias mais empreendedoras, nos seus núcleos de trabalho. Estas siner-gias de conhecimento mútuo, de dar e receber, são um trampolim, para uma gestão museológica de qualidade.

c) Desenvolver competências e a qualidade das instituiições

A aplicação deste objetivo é extensa e rege-se por diferentes patamares in-ternos das unidades museológicas (recursos humanos, orgânica espacial/ serviços museológicos, sistemas de comunicação e equipamentos), desenvolvidos de seguida, mediante parâmetros de ativação:

No que respeita aos recursos humanos, a investigação efetuada confirma a ní-tida falha, no número de colaboradores que compõem os quadros, das unidades museológicas visitadas. Registaram-se 10 técnicos1, com formação nas áreas de arqueologia, antropologia, museologia, história e atividades educativas. Num conjunto de 34 unidades visitadas é um valor bastante reduzido, face às neces-sidades dos espaços museológicos. O restante quadro de pessoal afeto às unida-des, não tem a formação exigida para as funções museológicas, o que não torna impeditivo de apoiarem na salvaguarda do património, com a devida formação antecipada.

No eixo da formação e como contributo para o desenvolvimento profissio-nal dos funcionários, sugere-se:

· Técnicos existentes como porta-voz de ações internas de formação;· Conceção de equipas de trabalho, ministradas por funcionários com

formação mais aprofundada nos sectores museológicos, como ponte de acesso para a qualificação dos restantes;

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· Realização de seminários museológicos, workshops e palestras, descentralizadas e periódicas, recorrendo a oradores convidados com formação técnica mais especializada;

· Parcerias com universidades, designadamente como impulso à investigação sobre o património e coleções que integram os acervos museológicos;

· Previsibilidade da necessidade de deslocação de técnicos externos, a locais que necessitem de apoio mais especializado (nomeadamente nos campos da conservação e restauro);

A orgânica espacial e os serviços museológicos disponibilizados pelas unidades admitem limitações, o que não permite, respostas objetivas, num extenso leque de parâmetros funcionais e técnicos. Nesta ótica vão ser delineados itens de me-lhoria, face às restrições do edifício/ serviços que poderiam vir a ser integrados pela rede:

· Utilização de outras unidades da RDM como estruturas de apoio;· Criação de uma estrutura física da RDM — edifício de apoio — partilhado

por todas as unidades, em questões de reserva, oficinas de conservação/ restauro/ museografia e depósito de estruturas derivadas de exposições temporárias/ itinerantes;

· Reconsiderar a criação de reservas visitáveis nos edifícios como respostas ao reduzido espaço expositivo;

· Numa perspetiva mais arrojada, ser assumido pela rede, um projeto de ampliação nos edifícios museológicos, para a melhoria da orgânica espacial das unidades;

· Reestruturar fichas de inventário e subsequente criação de sistema virtual do mesmo (mantendo a linguagem dos núcleos sede na adoção ao matriz net);

· Estruturação de planos de conservação preventiva, que respondam positivamente às necessidades detetadas.

Os sistemas de comunicação são escassos ou inexistentes, o que coloca deter-minados museus, praticamente isolados. A começar pela comunicação externa, onde as próprias autarquias, empresas ou associações que tutelam as unidades, se colocam, muitas vezes à margem do problema. Esta sinalização externa é um dos pontos fortes, para estes espaços serem visitados. Numa outra abordagem, também a imagem interna e externa do espaço museológico, nomeadamente a identidade corporativa associada, a identificação das coleções e a articulação do espaço, são questões consideradas deficitárias. A comunicação gera crescimento e desenvolvimento, e perante a realidade do tecido museológico, os itens repre-sentam frentes de ativação necessárias e vitais:

· Reforço da sinalização exterior, mediante acordos com as entidades responsáveis;· Desenvolvimento da imagem corporativa da RDM, passível de ser adotada

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por qualquer unidade membro, no sentido de lhe atribuir uma coerência conjunta (logótipo, comunicação — interna e externa, material impresso, etc);

· Criação de uma sinalética interna universal;· Delinear uma base estrutural para os sistemas de comunicação,

identificando formatos, materiais e layouts;· Criação gráfica, assegurada pelos membros da rede, com execução

nos gabinetes de comunicação e marketing dos municípios que tutelam os museus;

· Seleção de uma empresa outsourcing, que garanta o fabrico dos suportes gráficos, entrega, aplicação e manutenção.

· No sentido lato do termo, os equipamentos são definidos pelas estruturas que suportam as peças nas salas de exposição (permanente/ temporária) e a forma como a iluminação é apresentada. Estas estruturas são, por vezes, inexistentes, ou adaptadas a essa finalidade, sem terem sido necessariamente projetadas para o efeito. À margem desta questão, foram detetadas duas situações: a construção de equipamentos, sem existir a formação necessária para a sua conceção (casos em que foram construídos pela secção de carpintaria da autarquia), ou ainda, unidades que admitem equipamentos encomendados a uma empresa, que se limita a construir, e não a projetar uma estrutura funcional e adaptada às exigências das peças/ coleções. Os objetivos específicos apresentados vão referenciar possíveis estratégias de resolução, face aos problemas detetados:

· Projeção de uma linha de equipamentos permanentes, adaptados às realidades das coleções registadas;

· Projeção de uma linha modular, que possa ser montada e desmontada diversas vezes, no sentido de integrar situações de exposições temporárias e/ou itinerantes;

· Projeção de uma linha de equipamentos, estruturalmente desenhada para integrar reservas visitáveis;

· Elaboração de um plano de iluminação, estabelecido em paralelo com conservadores, que defina potências e tipo de lâmpadas utilizadas;

· Criação de um catálogo das diferentes linhas de equipamentos e sistemas de iluminação;

· Contratação de uma empresa outsourcing, que em parceria com técnicos de museografia e conservação, estruturem uma linha de equipamentos permanentes, adaptados às realidades das coleções registadas e/ou estabelecer protocolos com universidades técnicas (áreas de design, engenharias de materiais e similares…), para a execução dos projetos;

· Respeitante ao plano museográfico dos museus em geral e da amostra em particular, esta premissa de normalização e uniformização pode advir mais-valia, para todas a unidades que os adotarem. A cenografia pode ser reformulada, a aplicação pode especificar, cores, tipos de letra e dimensões, mas se existir uma base de trabalho para inserir

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essa informação e um material previamente pensado, que responda positivamente à sua função, existirá por certo, uma redução de custos. O mesmo se processa nos equipamentos, que muitas vezes não são estruturados de forma funcional para preencherem as necessidades das peças. Se a rede projetar uma linguagem de equipamentos, passível de ser integrada na maioria das unidades que delas necessitem, e que visualmente não interaja com a exposição, uma vez mais, será encarada como uma política de contenção de despesas.

d) Desenvolver uma colaboração mutua e recíproca para a transmissão do património distrital, numa extenção cultural e educativa

A partilha entre unidades ainda é abordada de forma superfícial, pois im-plica disponibilidade de interacção interna, projectada em factores externos, de visibilidade das unidades pelos diferentes públicos.“ Em nosso entender, a qualidade em museus é sobretudo, e acima de tudo, participação, estudo e inovação.”(VICTOR, 2010:2).Na aplicação do último objectivo, traçado para a RDM, vão ser abordadas especificidades necessárias, respeitantes à possivel in-teracção entre museus (no campo expositivo) e ao discurso estabelecido entre museus/ públicos e museus/ comunidades:

· Criação de um bilhete conjunto, que permita visitar diferentes unidades, com uma durabilidade periódica e como hipótese de financiamento;

· Implementação de circuitos/ roteiros entre museus, onde a interação entre as localidades se tornaria mais ativa e o intercâmbio de visitantes;

· Agrupar temáticas e promover a criação de exposições itinerantes;· Explorar coleções, ultrapassando barreiras tradicionais;· Incentivar dinâmicas comunitárias;· Estabelecer protocolos com comunidades escolares;· Programar atividades educativas;· Criação de parcerias com turismo da região e do país.

As comunidades são o principal factor de motivação de muitas das unidades que se desenvolveram no distrito. Instrução, integração social, incentivo para o contacto com a cultura, com as origens e, acima de tudo, o combate à desertifi-cação, são os principais motivos que levaram à criação dessas unidades museo-lógicas. A integração das pessoas é fundamental e a criação de infraestruturas de apoio é a resposta impulsionadora para esse fim.

Inevitávelmente, há que alargar horizontes pois, “(…) num mundo de mer-cado, num mundo capitalista podemos dizer que o património é um capital, um ca-pital do povo, um capital do território, um capital cultural (património é uma parte da cultura), um capital social porque pertence à comunidade, a toda a população, a todo o povo do território, e um capital económico, porque é importante para o turismo

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(…)”(VARINE, 2007:3).Fica em aberto o pensamento de que as comunidades e o público em geral se mantêm num casulo e que ainda permanece o mito do distanciamento criado entre unidades de cultura e públicos. Sem querer, o co-mum visitante continua a assumir que um museu, ou um local de promoção cultural, ainda não é o seu espaço, não se sentindo inteiramente à vontade para participar, usufruir e a partir dele construir novas perspectivas para as percep-ções conceptuais e plásticas da vida.

É vital desenvolver a interação do Museu com a comunidade circundante, para que, em prol da inserção social, atinja níveis de qualificação cultural, de valorização do património e de renovação de práticas sociais e culturais.

cONSIdERAçõES fINAIS

A informação recolhida permitiu avaliar potenciais e limitações dos museus dispersos pelo distrito. Indicadores de heterogeneidade museológica, contrastes de edifício, instabilidade dos discursos apresentados, formação técnica pouco especializada e uma consequente gestão deficitária a necessitar de rápida inter-venção. Numa outra vertente, o ímpeto de crescimento, desses “auto designa-dos” museus, surpreendeu, pois, assumem missões de combate à desertificação, preservação de memórias e de identidade, factores que remetem para a defini-ção de valores de cidadania e património. A necessidade de mudança pautou a criação de uma Rede de Museus Distrital, uma interface de disseminação de conhecimente tão real quanto necessário, em plena era das tecnologias da infor-mação e da comunicação. A estratégia de cooperação, trabalho de equipa entre museus, disponibilidade para melhorar a formação interna, promover parceiros junto de universidades e de organizações de cariz associativo, capazes de visio-nar estruturas museológicas ativas e participativas nas comunidades são pers-petivas promissoras e necessárias na institucionalização de uma qualidade dos tecidos museológicos dispersos pelo país. O conjunto de ideias apresentadas não é uma conclusão, mas um projecto à espera de ser testado e transformado, num contínuo processo de avaliação e melhoria. Conhecer mais aprofundadamente a envolvência museal que me rodeia todos os dias, permitiu-me enquanto ci-dadã e potencial agente cultural, criar uma maior consciencialização e alargar os horizontes, sobre, o que o conceito de património para a cidadania, implica. A investigação continua, e vejo como necessário e urgente, um levantamento referencial de todas as unidades museológicas do país, num esforço comum das realidades que partilham ideologias patrimoniais e educativas como motores vi-vos de uma sociedade onde “A mais importante actividade de uma rede é… tabalhar em rede… um processo e não um produto”. (SANI, 2010:9)

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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REfERêNcIAS

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guesa de Museus. Ministério da Cultura: IMC. ISSN 1647-8576, nº 37 (Outubro 2010), p. 9-10

NOTAS

• 1 SILVA, Raquel Henriques et al. Inquérito aos Museus em Portugal. Lisboa: IPM, 2000. 260 p. ISBN 972-

776-041-4.

• 2 Os 24 concelhos do distrito são Armamar, Carregal do Sal, Castro Daire, Cinfães, Lamego, Mangualde,

Moimenta da Beira, Mortágua, Nelas, Oliveira de Frades, Penalva do Castelo, Penedono, Resende, Sta.

Comba Dão, São João da Pesqueira, S. Pedro Sul, Sátão, Sernancelhe, Tabuaço, Tarouca, Tondela, Vila

Nova Paiva, Viseu e Vouzela.

• 3 LEI nº 47/2004. D.R. I Série A. 195 (2004-08-19) 5379-5394

• 4 A Rede Portuguesa de Museus é um sistema organizado de museus, baseado na adesão voluntária, con-

figurado de forma progressiva e que visa a descentralização, a mediação, a qualificação e a cooperação

entre museus. A Estrutura de Projeto Rede Portuguesa de Museus foi criada na dependência do Institu-

to Português de Museus pelo Despacho Conjunto n.º 616/2000, de 17 de Maio.

• 5 Ministério da Cultura e Instituto Português de Museus. Inquérito aos Museus Portugueses, p.15

• 6 Ministério da Cultura e Instituto Português de Museus. Inquérito aos Museus Portugueses, p.15

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O MUSEU dE ARTE dO RIO — MAR: quando “navegar é preciso”RIO dE JANEIRO MUSEUM Of ART: for when “you need to browse”

Ângela Âncora da LuzEscola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo: O Museu de Arte do Rio — MAR, inaugurado no dia 1º de março de 2013, foi criado dentro de uma perspectiva contemporânea, buscando ser um local não apenas para conservar e expor os testemunhos materiais do homem em sua passa-gem pelo planeta, mas, segundo seu curador Paulo Herkenhoff, “abrigar o imaginá-rio dos indivíduos.” Objetiva inscrever a arte no ensino público, por meio da Escola do Olhar. Em síntese, quer promover a integração entre arte e educação.

Palavras-chave: Museu.Olhar.Educação.

Abstract: The Rio de Janeiro Museum of Art, inaugurated on March 1st, 2013, was conceived within a modern perspective, seeking to be not just a place for preserv-ing and exhibiting the material accounts of man and his passage across the planet but also, in the words of its curator Paulo Herkenhoff, “to provide a sanctuary for the imaginary of the people” It aims to inscribe art in public education by way of the Escola do Olhar (literally the School of Seeing). In short, it proposes to foster the integration of art and education.

Keywords: Museum. Seeing. Education.

INTROdUçãO

Fernando Pessoa definiu o espírito da frase, “navegar é preciso”, priorizando a necessidade de criar sobre a de viver. Ele só pensava em tornar grande a sua vida, mesmo que para tal o seu corpo e a sua alma tivessem que ser a lenha desse fogo. É com a inspiração do poeta, que gostaria de abordar a experiência da cria-ção do MAR, o Museu de Arte do Rio, de acordo com o que se observa em Hans Belting e Arthur Danto, sobre o conceito ocidental de arte tradicional que veio a desaparecer após a II Guerra Mundial. A partir daí um novo posicionamento se fez imperioso para se pensar o lugar do museu no mundo contemporâneo e sua real vocação.

Criar, ainda, pensando no museu como o lugar de obras que possam teste-munhar uma idéia a favor da situação da arte, suscitando o desenvolvimento do olhar, entendendo o poder do presente, que anteriormente foi quebrado para privilegiar um espaço em que coexistiam coleções originais de peças de todos os tempos e lugares, e que hoje reverencia um banco de dados. O MAR delimita um novo horizonte que pode ser compreendido dentro da vontade de “engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade” (Cassal, 1997), como nos

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versos do poeta, que nos incita a navegar. Apresentaremos o Museu de Arte do Rio a partir de rápida abordagem sobre sua história, desde sua localização na zona portuária do Rio de Janeiro, como na ocupação dos prédios, na intervenção arquitetônica sofrida para adaptá-los ao novo programa e no projeto pedagógico desenvolvido de modo a conectar todas as suas pontas, conforme conceito de seu curador, Paulo Herkenhoff, suscitando a dúvida: “um museu com uma esco-la do lado ou uma escola com um museu do lado”, ainda segundo suas palavras.

A seguir discutiremos questões conceituais, pois não há espaço para a sim-ples apresentação de obras, coleções adquiridas ou em comodato, que não conse-guem mais satisfazer o desejo de um público que “quer ver no museu tudo o que os livros não explicam mais, a questão do conteúdo deixou há muito tempo de ser um assunto que interessa apenas aos especialistas.” (BELTING, 2006)

Com base no conceito desenvolvido para sua criação trataremos das cole-ções, do circuito a ser percorrido e, finalmente, da Escola do Olhar, complemen-to indissociável do MAR, que nos permite reafirmar seu horizonte e a certeza de que ‘navegar é preciso.’

1. O cOMPlEXO dO MAR

Inaugurado no dia 1º de março de 2013, quando a cidade do Rio de Janeiro com-pletou 448 anos, é o primeiro grande empreendimento a ser entregue e, sem dú-vida alguma, o principal dos que estão previstos na revitalização da zona portu-ária da Cidade. O Museu ocupa dois prédios. O primeiro deles, o Palacete D. João VI, de estilo eclético, construído em 1916 para abrigar a Inspetoria dos Portos e o modernista, construído na década de 1940 que já foi ocupado por uma Delega-cia de Polícia, Hospital da Polícia Civil e Terminal Rodoviário. Abandonado por quase vinte anos, enquanto a zona portuária do Rio ia sendo degradada, o Palace-te esperou pacientemente, garantido por seu tombamento em 2000, ressurgindo agora numa nova inserção cultural para a cidade.

Quando o projeto do Porto Maravilha se delineou, o governo do Estado do Rio de Janeiro cedeu o prédio modernista à Prefeitura da Cidade, permitindo que o MAR avançasse na zona portuária. Atrás dos dois edifícios, ainda teimava em se manter de pé a antiga marquise da primeira rodoviária do Rio de Janeiro, tam-bém tombada pelo Patrimônio Histórico. Este espaço complexo se imporia como desafio para os arquitetos Thiago Bernardes, Paulo Jacobsen e Bernardo Jacobsen, do escritório Bernardes & Jacobsen, a quem coube o desenvolvimento do projeto.

A proposta seria tornar os três programas existentes num só, absolutamen-te novo, que pudesse manifestar esteticamente uma unidade, respondendo ao desejo de identidade visual de um museu de arte. O desafio era grande, uma vez que os edifícios existentes eram totalmente díspares, tanto em seus programas originais, como em suas épocas e estéticas.

A intervenção arquitetônica necessária começou a ser pensada a partir da idéia do “mar”, que banha litorais diferentes na continuidade de uma força que

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vem do oceano para a terra e se espraia diante de nossos olhos. Era preciso unir, conectar todas as suas pontas, como bem afirmou Paulo Herkenhoff. Num terre-no com área total de 2.300 m2, temos hoje, como área construída, 11.240 m2 abri-gando o Museu de Arte do Rio, a Escola do Olhar, espaços para cultura e lazer, e a marquise da primeira rodoviária do Rio, adaptada à loja, presença garantida numa sociedade que deseja mais do que a visita, quer a lembrança e o documen-to de que realmente se fez presente.

2. O dESAfIO dA UNIdAdE

A proposta de “um museu com uma escola do lado ou uma escola com um museu do lado” já sinaliza a existência de dois programas em dois edifícios de épocas e estilos diferentes. O conceito do novo museu, entretanto, deveria ser integrador, razão pela qual a unidade teria que ser buscada, sem que se desca-racterizasse a estética de cada um deles, até porque o tombamento garantia a preservação. Ele deveria ser um só, mesmo que habitado em corpos diferentes. A solução veio, literalmente, do alto. Todos os acessos foram reunidos no edifí-cio modernista, na cobertura do prédio, formando uma praça suspensa, ponto inicial da visitação. Ela atua também como grande mirante, de onde é possível se descortinar uma vista impressionante do Porto do Rio de Janeiro e da Baía de Guanabara. A área da cobertura ainda será destinada a eventos culturais e lazer, estando dotada de um bar que permitirá um conforto maior ao visitante. Dentro do conceito de unidade, a circulação entre os prédios se deu pela cons-trução de uma passarela em leve declive, ligação que possibilitou ir de um para outro edifício de modo contínuo, criando um fluxo no percurso. Contudo, seria necessário aproximar visualmente os dois edifícios. A solução veio através da construção de uma laje, ondulante, como o movimento do mar que se avista e que se move, apesar de guardar a solidez possível para a cobertura e a fluidez necessária para o olhar. A iluminação propiciará os reflexos que criam a mobi-lidade e garantem a poesia. Desta forma, a cobertura se faz visível de todos os ângulos, como identidade do novo museu.

Chegar a este denominador comum implicou em outros desafios. Os dois edi-fícios tinham diferentes alturas. Era preciso que elas se aproximassem. Do pré-dio modernista foi suprimido o último andar, enquanto a fachada recebeu perfis de vidro translúcido, permitindo uma leveza maior e revelando o sistema estru-tural de colunas recuadas. É nele que está a Escola do Olhar, pois, ao Palacete D. João VI destinou-se o museu com suas coleções e mostras, uma vez que o pé di-reito e espaços livres do edifício permitiriam melhor adequação à sua finalidade.

A circulação do público passa obrigatoriamente pela Escola do Olhar. Os ele-vadores que nele se localizam conduzem o visitante ao topo do edifício de onde ele poderá acessar a passarela que interliga os dois edifícios indo, então, para o palacete que é na verdade o local das exposições. As mostras serão apreciadas sempre obedecendo ao circuito de cima para baixo.

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3. UM NOVO cONcEITO

Não é apenas o sentido inverso na circulação que se apresenta como nova pro-posta. O conceito que se quer para o MAR é o de que seja regido por ações edu-cativas, projetos integrados e multidisciplinares, um museu vivo em constante diálogo com a comunidade, com exposições inclusivas e que, ao mesmo tempo em que preserva a memória do Rio de Janeiro, se torne um espaço poroso, per-meável, que dialogue com seu entorno e que promova uma ação integradora a partir da rede pública de ensino fundamental.

Arthur Danto defende o museu contemporâneo como um instrumento so-cial legitimador da História da Arte. Na medida em que a arte mudou seu estatu-to, o museu teve que ser repensado. Ele questiona o fato da pintura não ser mais a forma privilegiada da expressão artística, e se ela perdeu esta condição, teria o museu perdido, também, sua condição de veículo da história da arte? “O final da arte significa algum tipo de degradação da pintura. E isso também significa a degradação do museu?” (DANTO, 2006)

O Museu é hoje um espaço de acolhimento, que nos desacomoda para nos fa-zer refletir, e para tal é preciso que o público sinta-se identificado com ele. Exis-tem memórias em cada visitante que são deflagradas a partir dos objetos que lá estão, memórias que dão significado à nossa existência.

Se os museus tradicionais tinham como princípio institucionalizar as refe-rências sócio-culturais, materializadas nos objetos que, por sua vez, evocavam os marcos de uma historicidade em que o passado glorioso se perpetuava no si-lêncio e na inércia das coleções, hoje, o museu deve ativar a sensibilidade estéti-ca do público, deve ser acessível a todas as idades, não podendo ser excludente, antes buscando incluir cada vez mais o visitante.

Quando os futuristas escreveram seu manifesto, anunciando que a Itália ha-via sido por muito tempo o “grande mercado das quinquilharias” (TELES, 1997) eles se voltaram contra os museus, pois viam nele o lugar onde pintores e escul-tores se matavam lado a lado a golpes de linhas e cores. Eles denunciavam os museus como espaços semelhantes a cemitérios, no idêntico acotovelamento de corpos que não se conheciam. Eles não viam com bons olhos a tutela destes templos, controlando o indivíduo da mesma forma que os pais faziam com os filhos ainda imaturos. Para eles, admirar passivamente os ‘tesouros’ que ali se guardavam era como jogar a sensibilidade humana numa urna funerária.

Com as devidas ressalvas, os futuristas já possuíam uma visão prenunciado-ra daquilo que hoje buscamos encontrar nos museus, um espaço de trocas, em permanente interação com o seu entorno, atuando no presente, mas antecipan-do o futuro. De Templo das Musas, silencioso guarda da memória do passado, ele se revela, hoje, o construtor das memórias presentes, das trocas vivificantes, do conhecimento accessível e, de acordo com Paulo Herkenhoff, deverá “abrigar o imaginário dos indivíduos”. Para alcançar seus objetivos foram traçadas diretri-zes que contemplam três programas: visitas educativas, formação de professores

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e vizinhos do MAR. As visitas educativas objetivam despertar o visitante inten-sificando as experiências sensíveis, a capacidade de reflexão sobre as obras, o despertamento da própria consciência do indivíduo de modo a apreender a obra como algo que se dá à sua imaginação, e não, apenas ao seu olhar. No ato de ver não há como separar o ‘olhado’ daquele que ‘olha’, conforme assegura Didi-Hu-bermann, porque “o que vemos só vale — só vive — em nossos olhos pelo que nos olha”. (DIDI-HUBERMANN, 1998) É preciso construir o olhar e as visitas educativas se propõem a isto. Os educadores não devem fornecer o texto corrido, mas ajudar a que cada visitante elabore o seu próprio texto, fazendo com que a obra se torne parte de sua consciência e, não apenas, do acervo do museu.

A construção deste olhar implica num envolvimento ativo daquele que vê. O escultor Roberto Moriconi, em seu manifesto intitulado “Olhar é uma opção de altíssimo risco” (LUZ, Angela, 2012) já nos avisava sobre este risco, pois, segun-do o artista, quando olhamos uma obra podemos ser ‘introjetados’ por ela e ele ainda acrescenta que ela é muito mais fiel do que nós, pois a obra que nos olha não nos abandona mais.

O Programa de Formação com Professores se desenvolve a partir do ofere-cimento de cursos de curta e média duração em que o professor pode trabalhar suas próprias áreas de interesse numa interface com as dos inscritos no curso, despertando potencialidades. Tais cursos estão ligados às exposições do MAR e devem ser inter-relacionados com o cotidiano escolar, promovendo uma ação contínua de conhecimento que se renove, impedindo o engessamento de con-ceitos e a visão monolítica do fruidor em relação à obra.

Estes cursos objetivam, ainda, promover atividades paralelas que possam acontecer em harmonia com as visitas educativas, antes, durante e, até, depois delas. O campo de conhecimento do professor deverá ser a fonte de alimentação dos processos de pensar, fazer e fruir a obra de arte, de modo a despertar o visi-tante educando-o. Este processo deverá suscitar a reflexão de cada um, numa experiência sensível particular sempre em desenvolvimento.

O “Programa Vizinhos do Mar” tem entre seus objetivos trazer o visitante do entorno, conferindo-lhe uma identidade a partir do MAR, levando-o a se envol-ver com a construção de um museu que possa somar culturalmente à Cidade do Rio de Janeiro, enquanto instaura uma nova convivência com o acervo que se renova e se constrói no próprio museu.

Na zona portuária, em que diferentes categorias apagadas constroem a tes-situra de uma sociedade quase invisível, o “Programa Vizinhos do Mar” convi-da a que seus moradores saiam em direção ao MAR, pois “navegar é preciso” e ajudem a construir um museu para a cidade, criando o hábito de freqüentar aquele espaço, pois as ações desenvolvidas pelos próprios vizinhos são fulcros conceituais sobre os quais são repensadas sistematicamente as diretrizes do pro-grama. Espera-se que os bairros portuários, Saúde, Gamboa e Santo Cristo sejam revitalizados a partir de ações como estas, alavancadas pelo museu e por uma nova atitude de seus vizinhos.

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4. O PAlAcETE d. JOãO VI E AS EXPOSIçõES INAUgURAIS

Construído em 1916 para ser a sede da Inspetoria dos Portos, Rios e Canais, o Pa-lacete D. João VI serviu a várias empresas, passou pelo abandono e saque, sendo quase destruído até que foi tombado em 2000 e, finalmente, restaurado e inte-grado ao complexo MAR e inaugurado em 1º de março de 2013.

O compromisso maior do MAR é fazer a parte educativa indissociável do projeto museológico, de tal forma que a educação assuma o papel de destaque nas diretrizes do novo museu. Outro ponto relevante é a identidade com a pró-pria cidade a partir da zona portuária do Rio de Janeiro. Com um circuito que se inicia pela entrada através do Prédio da Escola do Olhar, sobe-se até ao último andar chegando-se ao terraço de onde se pode deslumbrar um magnífico cená-rio. O Porto, a Baía de Guanabara, a Ponte Rio — Niterói, a construção do Museu do Amanhã, o recorte da Serra do Mar com suas rochas metamórficas em que se destaca o Pão de Açúcar como nascido no mar são destaques de uma paisagem inconfundível.

É com esta imagem cenográfica que se acessa o Museu, passando por uma passarela que liga os prédios. O declive que nos leva ao local da primeira grande mostra, no terceiro andar, fez-se necessário para equilibrar as diferentes alturas entre os dois edifícios. Ao fundo deste corredor acessamos o espaço da primeira mostra, “Rio de Imagens”, com 400 obras selecionadas pelos curadores Carlos Martins e Rafael Cardoso, que conta a história da cidade por meio delas. É in-teressante que, ainda retendo as imagens da vista que se acaba de contemplar, inicia-se o processo de ‘ver’ através das pinturas de artistas que, muito antes de nós também admiraram a cidade do Rio de Janeiro. As obras registram diferen-tes técnicas e suportes. São cartões postais, cartazes publicitários, desenhos e gravuras da cidade que atestam sua sedução sobre a sensibilidade de artistas como Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti até Marcos Chaves e Thiago Rocha Pitta, já com o olhar contemporâneo.

O andar abaixo, que se acessa na continuidade do circuito proposto, abriga a coleção Jean Boghici, cujas pinturas encontram-se suspensas por cabos, for-mando uma espiral pela qual o público pode circular, cenário criado por Daniela Thomas e Felipe Tassara. As obras ganham o espaço, flutuam sob iluminação perfeita que não permite sombras nem focos demasiados, de modo a levar o vi-sitante a querer continuar ali, numa convivência maior que a contemplação. No centro deste espaço, submissas ao seu próprio tectonismo, estão as esculturas e os objetos. De Debret a Morandi, a riqueza da coleção documenta a potencialida-de dos colecionadores do Rio de Janeiro sob a ousadia da curadoria assinada por Luciano Migliaccio e Leonel Kaz.

O primeiro andar abriga a mostra “Vontade Construtiva — Coleção Fadel”, com obras do concretismo e neoconcretismo, cujos nomes de Lygia Clark, Sergio Camargo, Hélio Oiticica, Sacilotto, Weissmann e Volpi, confirmam a significação da coleção e a sensibilidade dos curadores Paulo Herkenhoff e Roberto Conduru.

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Chega-se ao térreo para um último olhar, ou melhor, para uma tomada de posição, pois a mostra “O Abrigo e o Terreno”, nos confronta com a ‘Arte e So-ciedade no Brasil 1’, sub título que nos ajuda a pensar o direito à habitação, às políticas públicas e as transformações da sociedade com suas inter-relações cul-turais, conforme curadoria de Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz.

5. A EScOlA dO OlhAR

Quando entramos no MAR, não é por acaso que o fazemos pela Escola do Olhar, o prédio modernista dos anos quarenta. Nele sinaliza-se o desejo de formação de educadores para a rede pública de ensino. É por este ponto que deve ser iniciado o processo de criar uma nova mentalidade que possa “olhar” a obra e por ela ser “olhado”. Didi-Huberman nos apresentou o paradoxo do olhar, a construção desse ver e sua inelutável cisão, que faz abrir-se em nós o que vemos e o que nos olha, pois não é apenas o que nosso olho captura automaticamente enquanto nos movemos e vemos o entorno, mas o nosso próprio desejo de olhar e isto porque percebemos que o nosso alvo na realidade nos percebeu e nos devolveu alguma coisa.

A Escola do Olhar pretende ser um grande espaço de experiências com for-mação continuada em artes e cultura visual a começar pelos educadores. Enten-de que a mola propulsora de novas atitudes parte da postura do professor diante da obra. Para isto a Escola do Olhar realizará parcerias com as universidades, instituições museais, programas de educação que possam abrir os campos da pesquisa, oferecer seminários, workshops e cursos de modo a propiciar uma for-mação permanente, ativando a “cisão do olhar” de modo a tornar o fruidor um potencializador das imagens e não um mero contemplador.

A Escola do Olhar utiliza as exposições como fulcro de experiências, como alavanca para projetar a expansão do “olhar do professor”, a partir do qual po-derá desenvolver a expansão contínua dos olhares de estudantes que se benefi-ciarão com estas propostas. As oficinas criativas abrirão o espaço para que estas respostas possam ser encontradas na prática.

É desta forma que se pretende dar a oportunidade para o desenvolvimento de novos olhares, conseqüentemente, novas formas de ensinar e apreender e, ainda, novas atitudes diante da obra. A Escola do Olhar atesta que um museu deve ser uma instituição viva, criativa e formadora. Não se destina apenas ao co-lecionismo, mas a educar, criar, buscar a conexão destes campos, possibilitando, inclusive, a descoberta pessoal de cada fruidor no despertar de sua criatividade e desejo de dar forma, proclamando sua vocação artística, pois o MAR nasceu não apenas para ocupar um espaço, mas para se tornar referência na educação artística no Rio de Janeiro.

A expectativa de seu curador é a de que o museu possa receber 500 a 1000 pessoas por dia e que, anualmente, milhares de estudantes sejam envolvidos em projetos, criando oportunidades para que todas as crianças da rede pública do

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Rio possam visitar o museu no mínimo três vezes durante o ensino fundamen-tal e médio, o que será reforçado pelo vetor oposto, ou seja, o museu também pretende ir à escola.

De acordo com sua vocação de ser um museu sintonizado com a contempo-raneidade, ele vai procurar ativar a sensibilidade do público através de diversas ações experimentais de modo a propiciar a reinvenção da vida cotidiana do su-jeito por meio delas.

cONclUSãO

O Museu de Arte do Rio de Janeiro saiu do papel pela parceria estabelecida entre a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e a Fundação Roberto Marinho. Apesar de ter como proposta prioritária a apresentação das grandes coleções que se en-contram nas mãos de particulares, no Rio de Janeiro, e nesta visualidade desper-tar o conhecimento, a sensibilidade e promover a cultura, já na sua inauguração ele havia ultrapassado os seus próprios objetivos, confirmando a máxima de que havia se tornado grande a partir do Rio para ser “de toda a humanidade (...) en-grandecendo a pátria...” (CASSAL, 1997)

Ele já recebeu várias doações importantes, como obras de Louise Bourgeois, uma escultura e um desenho, que os herdeiros já passaram para o MAR. O arqui-teto espanhol Santiago Calatrava, autor do projeto do Museu do Amanhã, que está sendo edificado em área vizinha, doou 1200 aquarelas de sua autoria. Jones Bergamin, Cláudia Jaguaribe e Adriana Varejão são outros nomes que também doaram obras para o novo museu, pois, para a última, é bom saber que seus qua-dros estarão pertencendo a um museu que tem uma identidade com a cidade, instaurando um novo olhar e contribuindo para a construção da memória cul-tural de nosso tempo.

Paulo Herkenhoff, curador do MAR, continua à procura de peças que subli-nhem a identidade do Rio de Janeiro. Para isto ele navega na internet, buscando ‘bens simbólicos’ que possam conferir significado à imagem do próprio Rio, ra-zão que o faz ‘navegar’... São obras de grandes ou pequenos mestres, de renoma-dos artistas ou desconhecidos, o ponto chave é de trazerem o valor comum que se encerra na identidade da cidade, sua história, sua pulsação, de modo a que as pessoas cheguem buscando ‘ver’, trazendo o seu ‘olhar’, chegando como são para agregarem valor ao museu.

A certeza de que “a antiga presença das obras, com sua lei de duração é subs-tituída aqui pela presença de um observador que adentra a sala por um instante e depois só pode lembrar-se da sua própria impressão” (Belting, 2006), faz do visitante a grande peça do museu contemporâneo. Esta presença, que deverá repercutir nas oito salas de exibição que ocupam os quatro andares, é o objeto maior de interesse do curador Paulo Herkenhoff.

O MAR já conta, hoje, com três mil obras, mil livros de artistas, cinco mil livros de arte e história, além de documentos históricos, postais, cartazes, cinco

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mil itens de ‘memorabilia’, em que o ponto comum é sempre a iconografia do Rio. São números que se ampliam a cada dia, que fortalecem o valor do acervo e documentam a cidade.

Com suas salas de exposição, auditório, café e restaurante no terraço, o MAR é aberto ao encontro da cidade do Rio de Janeiro, buscando um novo horizonte a partir de seus visitantes, daqueles que poderão perceber os novos ventos, ver com seus próprios olhos e criar com sensibilidade o que se anuncia como o novo museu “com uma escola do lado” ou, ainda, conforme Paulo Herkenhoff, “uma escola com um museu do lado”.

Contactar a autora: agelaancoradaluz@gmailcom

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· BELTING, Hans — “O fim da História da Arte”. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

· CASSAL, Suely Barros (org.) — “Fernando Pessoa — poesias”. Porto Alegre: Coleção L&PM Pocket, 1997.

· DANTO, Arthur C. — “Após o fim da arte — a arte contemporânea e os limites da História”. São Paulo:

Odysseus Editora, 2006.

· DIDI-HUBERMANN, Georges — “ O que vemos, o que nos olha”. São Paulo: Editora 34, 1998.

· LUZ, Angela Ancora — “Roberto Moriconi — vida e obra” — Rio de Janeiro: Caligrama, 2012.

· TELES, Gilberto Mendonça — “Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora

Vozes, 1997.

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UNIVERSIdAdE, EdUcAçãO, MUSEUS E AçãO PATRIMONIAlUNIVERSITy, EdUcATION, MUSEUMS ANd cREATINg PATRIMONIAl SITES

Áurea da Paz PinheiroUniversidade Federal do Piauí,

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Eloisa Capovila da Luz RamosUniversidade do Vale do Rio dos Sinos

Marta Rosa Borin Universidade Federal de Santa Maria

Resumo: Neste artigo apresentamos algumas reflexões sobre a inserção da universi-dade em diálogos sobre Patrimônio, Museus, Comunidade e Educação; propomos o envolvimento de uma instituição secular na criação de espaços de discussão e forma-ção que contribuam para a “redescoberta” da singularidade de lugares, saberes, fazeres; do patrimônio edificado, natural e imaterial. Neste estudo, elegemos as Universidades Federal do Piauí, de Lisboa, de Santa Maria e do Vale do Rio dos Sinos. O território — a Ilha das Canárias, localizada na Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba, na região de fronteira Meio-Norte do Brasil, entre os Estados do Piauí e do Maranhão.

Palavras-chave: Universidade. Patrimônio. Educação. Museus. Comunidades.

Abstract: In this article we present some reflections on the inclusion of the university in dialogues about Heritage, Museums, Community and Education; we propose that the involvement of a secular institution can create spaces for discussion and training that contribute to the “rediscovery” of the uniqueness of places, knowledge, and ac-tions of both built heritage and natural heritage. In this study, we chose the Federal University of Piauí, Lisbon, Santa Maria and the Vale dos Sinos as the study sites. The territory included in this study is the Canary Island, located in the Marine Extractive Reserve of the Delta do Parnaíba, in the border region of Mid-North Brazil, between the states of Piauí and Maranhão.

Keywords: University. Ptrimony. Education. Museums. Communities.

1. INTROdUçãO

Ao considerarmos a universidade, uma instituição secular, vetor de projetos de integração com a sociedade, comunidades e territórios, a proposta que apre-sentamos para reflexão é sobre o papel social dessas instituições em relação aos equipamentos culturais, nomeadamente os Museus Comunitários e os Museus de Território. As instituições eleitas para esses primeiros diálogos e parcerias são: Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade de Lisboa (UL), Universidade

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do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O lugar eleito — as Comunidades localizadas na Ilha das Canárias, Re-serva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (RESEX), fronteira Meio-Norte do Brasil — abriga comunidades de pescadores com uma cultura ancestral — a pesca artesanal. Um dos conceitos essências no trabalho que realizamos com as comunidades é o de memória social, que se revela de múltiplas e diferentes for-mas, por meio de vários suportes e registros presentes em lugares como: a foto-grafia, os objetos de uso quotidiano, a literatura, a música, os saberes, os fazeres tradicionais, etc; podemos ainda acessar ao passado, presentificar acontecimen-tos ou fatos ausentes através do idioma, da oralidade, da memória olfativa ou auditiva, suportes e lugares capazes de ativar recordações, nos fazendo lembrar outros tempos, lugares e pessoas. A diversidade dos registros, dos testemunhos históricos é infinita, pois “[...] tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar-nos sobre ele” (BLOCH, Marc). Além do que podemos contar com o diálogo entre campos de conhecimentos os mais diversos para o registro e estudos patrimoniais ou de ação patrimonial.

Para Lilia K. Moritz Schwarcz,

[...] práticas de fronteira podem ser marcadas por ‘relações de boa vizinhança’, na feliz

expressão de Robert Darnton em O beijo de Lamourette (1990), mas também, e com fre-

quência, são palco de litígio. O espaço para a verificação de limites e para a demarcação

de parte a parte nem sempre é objeto de consenso. Na delimitação da divisão geográfica,

assim como na separação de disciplinas e de objetos, os critérios diferem, as justificativas

são sempre múltiplas, assim como é nesse local que se estabelece o jogo da alteridade.

Nos estudos que envolvem patrimônio é preciso considerar a voracidade e dinâmica do tempo, das transformações na contemporaneidade, tomarmos cons-ciência que nos últimos anos o conceito de patrimônio em sentido lato adquiriu um valor significativo, múltiplo, presente em paisagens culturais e naturais, ar-quiteturas, tradições, gastronomias, expressões de arte, festas, documentos, sítios arqueológicos, etc, que passaram a ser reconhecidos e valorizados pelas comuni-dades e organismos governamentais na esfera local, estadual, nacional ou interna-cional. Os bens materiais e imateriais, tangíveis e intangíveis, que compreendem o patrimônio cultural hoje são considerados como manifestações ou mesmo tes-temunhos da cultura humana, daí fundamentais para a formação da identidade cultural de um grupo. Levamos em conta que “[...] toda cultura requer uma ativi-dade, um modo de apropriação, uma adoção e uma transformação pessoais, um intercâmbio instaurado em um grupo social” (CERTEAU, 1995: 10).

Não basta agir, pensar e criar para produzir patrimônio é também necessário transmiti-

-lo. É sobretudo preciso que o herdeiro o aceite. Desde há alguns anos que subsiste a ideia

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de que a conservação constitui um passo da civilização, que, em resumo, a aceitação está

implícita. Como prova, os nossos grandes monumentos históricos são cuidados, estuda-

dos, visitados: tudo garante que a sua transmissão está assegurada. Sabe-se, no entanto,

que, a par destas obras importantes, muitas outras estão ameaçadas pelo tempo, a indife-

rença e a especulação, mas julga-me que graças à ação dos profissionais e de uma opinião

esclarecida, as mais interessantes de entre elas serão reconhecidas como tal e protegidas

por sua vez, como o foram sucessivamente os monumentos antigos, góticos, romanos e

industriais. Em resumo, imagina-se que a diligência de aceitação assenta na compreen-

são coletiva do caráter intrinsecamente patrimonial de uma obra. Como se esse caráter

intrinsecamente patrimonial precedesse a diligência coletiva. As relíquias que assegura-

vam a fé, os escritos que transmitiam o saber, as obras de arte e de arquitetura que obede-

ciam às leis da beleza foram os primeiros elementos do patrimônio [LENIAUD, 1998: 335].

Nos diálogos que iniciamos para o Projeto Arte, Patrimônio e Museus, destaca-mos responsabilidades sociais das universidades, instituições de arte, de patri-mônio e os museus, constituição de parcerias com instituições governamentais e não governamentais, associações, cooperativas de pescadores e artesãos, com o fito de contribuir para a constituição de responsabilidades solidárias. Como sabemos, as universidades são promotoras de projetos acadêmicos e, neste caso, destacamos o Projeto supra citado, por ser uma de suas prerrogativas a geração de emprego e renda para as populações locais da Ilha das Canárias; a promo-ção da economia solidária e sustentável; a criação de espaços, tanto de produção artesanal, quanto de formação educacional, cultural, de diálogos sobre estilos de vida saudáveis e, ainda, o planejamento e gestão da Ilha para promoção de uma cidadania plena. Consideramos que essas questões/desejos podem envol-ver relações de tensão entre os agentes sociais envolvidos. Para Bourdieu (2000), o campo cultural, como os demais campos sociais é um espaço de jogo onde as relações entre os atores se definem e redefinem de acordo com os interesses em jogo, sendo que podemos considerar o direito à memória uma dessas dimensões.

O Projeto, objeto dessas reflexões defende que o papel das universidades pode ser decisivo nas interlocuções entre as comunidades e as instituições pú-blicas e privadas na promoção social, política e cultural dos territórios. O objeti-vo principal de seus promotores é colaborar para a melhoria da realidade daque-las comunidades, compartilhar com as mesmas a visão de mundo da academia e aprender com os artífices da cultura local, dos territórios, modos de ser e estar no mundo, para que, juntos, possam promover a valorização do patrimônio local.

A proposta do Projeto é interdisciplinar, reconhece que somente com a con-tribuição do conhecimento de diversas áreas do saber — Arte, Arqueologia, Antropologia, História, Geografia, Museologia, Educação e Sociologia, entre outros, é possível conhecer e reconhecer o Outro, as comunidades da Ilha, as suas diferentes territorialidades e o seu meio físico, para interagir no sentido de propor alternativas de desenvolvimento local com gestão participativa dos

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criadores e detentores dos patrimônios locais, de modo a integrá-los ao cotidia-no da Ilha (VARINE, 2012:19); o que implica diagnosticar as potencialidades do território, bem como as necessidades prementes.

Entendemos o território como um conjunto de lugares onde se desenvolvem laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social. A terri-torialidade pode ser compreendida através das relações sociais e culturais que o grupo mantém com esta trama de lugares e itinerários que constitui o seu ter-ritório. Assim, cada recorte social ou de grupo que tiver uma identidade (uma história comum), representado por instituições (formais ou informais) e que possua espaços próprios de socialização, constitui um território (SILVA, 2000:9).

2. A IlhA dAS cANáRIAS: PONTO dA SITUAçãO

Como a historiografia específica sobre as comunidades do Delta do Parnaíba ainda é incipiente, nos valemos, num primeiro momento, do relatório do Pro-jeto sobre desenvolvimento sustentável com populações tradicionais, resultado da pesquisa de Saraiva (2009), para o PNUD, Brasil (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), na qual o consultor apresenta informações relevantes sobre as unidades da Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (RE-SEX), seguida da Dissertação de Flávia Ferreira Mattos (2006), na qual a autora analisa a situação da Ilha na contemporaneidade, a partir de exaustivo trabalho de campo.

Ao considerarmos que as primeiras incursões dos colonizadores portugueses na região do Delta do Parnaíba datam do final do século XVI e início de XVII, que chegaram à região atraídos pelas notícias da grandiosidade do Rio que cortava o território, ocupado por índios Tremembés, PORTO e LEAL (s/d), em Roteiro do Piauí, constataram que o povoamento do Norte do Piauí se realizou sob o influxo de correntes maranhenses e que o seu povoamento se operou do centro à periferia, ao contrário da história das penetrações litorâneas brasileiras. Eram poucos os que se aventuravam pelo Piauí, devido à incerteza demarcatória do Tratado de Torde-silhas, motivo de represálias dos nativos aos navegadores. Em 1530, o navegador Diogo Leite, separou-se da armada de Martins Afonso de Souza, comandando as caravelas “Rosa” e “Princesa”, para descobrir o rio Maranhão. Ele já havia estado no Brasil na expedição de Cristóvão Jacques. Outros navegadores aportaram na foz do rio Parnaíba por volta de 1571, resultado de alguns naufrágios.

A primeira vocação econômica do Delta do Parnaíba foi a criação de gado para fabricação e exportação da carne salgada, o que ditou a forma de ocupa-ção do território até a porção sul dos atuais estados do Ceará, Piauí e Maranhão (MMA, 2002 Apud SARAIVA), hoje esta região, acrescida do Estados de Tocan-tins e Bahia, é conhecida por MAPITOBA, onde predomina o cultivo da soja, rea-lizado predominantemente por migrantes do sul do Brasil (Figura 2).

Embora a pecuária no Nordeste tenha se desenvolvido como atividade com-plementar à monocultura canavieira, a região de Parnaíba detinha uma posição

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central na economia sertaneja, estruturada naquela época em torno das fazen-das de gado, suplantando todos os seus concorrentes, notadamente o Ceará, no domínio do mercado colonial de carne seca, em meados do século XVIII (MMA, 2002, Apud SARAIVA).

A expedição pioneira no sentido da colonização da região do Delta do Parnaíba provavelmente tenha ocorrido por volta de 1613. A expedição exploratória teria partido do porto de Camocim, no Estado do Ceará com 25 soldados e alguns índios Tupis e teria passado mais de um ano na região (SEBRAE, 2004 Apud SARAIVA).

Em relação à Ilha das Canárias, em 1806, o marinheiro e pescador cearense Francisco Bezerra teria aportado com três companheiros na Barra dos Mergulhões, antiga denominação de Canárias, devido a grande quantidade dessas aves que ali existiam. Chico Bezerra teria armado a sua barraca onde é hoje o porto de Caná-rias e com alguns companheiros teriam assentado dois grandes currais de pesca à beira do rio, lugar onde teria nascido a tradicional atividade de pesca das Caná-rias, que em tempos longínquos foi o maior centro de abastecimento da região.

Anos mais tarde, por volta de 1815, teria chegado à Ilha um seu conterrâneo, João Branco de Souza, que teria fixado residência próximo a Chico Bezerra e, posteriormente, teria se mudado para o outro lado da Ilha, fundando o povoa-do de Passarinho, onde instalou fazenda de gado e ovelha, além de se dedicar à lavoura de mandioca, milho e feijão (FEYDIT & COSTA, 2006 Apud SARAIVA, 2009). Em 1820, teria chegado à Ilha das Canárias Francisco Brandão e Miguel Andrade, que se instalaram às margens da lagoa da Caiçara, formando um novo povoado. Esses novos habitantes também constituíram fazendas de gado e de-senvolveram a pesca e a lavoura, determinando, assim, em grande parte, o arran-jo espacial atual da Ilha (FEYDIT & COSTA, 2006 Apud SARAIVA, 2009).

A mesma informação sobre o povoamento da Ilha das Canárias foi transmi-tida de geração em geração entre os moradores e pode ser encontrada nos depoi-mentos orais registrados na pesquisa de Mattos (2006), donde compreende-se porque as famílias são aparentadas e como se dividem territorialmente na Ilha.

Mattos (2006), ao fazer um estudo sobre os povoados da Ilha das Canárias, contribui com informações valiosas sobre o modo de vida local, permitindo que se reflita sobre a gestão de Unidades de Conservação dessa natureza. Segundo a autora, a Ilha das Canárias comporta em seu interior cinco comunidades: Caná-rias, maior delas, com mais de 1.200 habitantes; Passarinho, Caiçara, Morro do Meio e Torto, com uma estimativa populacional de aproximadamente 2.000 ha-bitantes. Está localizada à margem esquerda do rio Parnaíba, próxima à baía das Canárias, onde o rio Parnaíba desemboca no oceano Atlântico. A Ilha pertence ao Município de Araioses e é uma das maiores ilhas que compõem o conjunto de ilhas que formam o delta do Rio Parnaíba, com cerca de 13.000 hectares, per-dendo em extensão apenas para a Ilha Grande de Santa Isabel, no Piauí, e a Ilha do Caju, no Maranhão.

No relatório do projeto PNUD/Brasil/09/024, Desenvolvimento sustentável com populações tradicionais, Saraiva (2009), ao analisar as unidades da RESEX Marinha

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do Delta do Parnaíba, refere que a Ilha das Canárias apresenta a maior diversi-ficação de ambientes dentro dos limites da Unidade da RESEX, com uma área aproximada de 27.077 hectares entre os municípios de Ilha Grande, no Piauí, Araioses e Água Doce, no Maranhão.

A RESEX do delta é uma unidade de conservação que tem por objetivo garan-tir a permanência das populações extrativistas tradicionais, conciliando a ex-ploração autossustentável com a conservação dos recursos naturais renováveis, visando à melhoria das condições de vida dos moradores e trabalhadores da área e do meio ambiente. A sua criação tem por objetivo conciliar a conservação do ecossistema manguezal e deltaico com o extrativismo realizado pelas comuni-dades locais (IBAMA, 2006).

A criação das Reservas Extrativistas é motivada por demandas das comuni-dades tradicionais de seus territórios e o conhecimento das práticas locais é im-perativo para a sua conservação, bem como a participação da população local na sua gestão, desde o planejamento à implantação das políticas públicas atuantes, pois a elaboração dos Planos de Manejo requer o uso de metodologias que per-mitam gerar uma integração dos conhecimentos tradicionais com os técnico--científicos (SARAIVA, 2009).

Nesse sentido, o Projeto Arte, Patrimônio e Museus, através de ações universitá-rias, alia-se àquelas propostas, inventariando fazeres e saberes ancestrais, como a pesca artesanal, a construção de embarcações, etc. A Constituição brasileira regulamenta o direito à memória, a conservação e preservação dos patrimônios:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e ima-

terial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,

à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais

se incluem: I — as formas de expressão; II — os modos de criar, fazer e viver; III — as

criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV — as obras, objetos, documentos, edifica-

ções e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V — os conjuntos

urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,

ecológico e científico [BRASIL, 1988, p. s/p].

Das mais de 70 ilhas que formam o delta do Parnaíba, elegemos para este estudo a Ilha das Canárias, parte do complexo deltáico da foz do Rio Parnaíba, habitado por populações que preservam práticas adaptadas a esse ecossistema dinâmico, que abriga importantes comunidades vegetais e animais.

Os manguezais, cobertura vegetal predominante na região, é resultado de processos de acumulação flúvio-marinha, dominado por um clima quente e úmido; são protegidos por lei e se constituem de vegetação de preservação per-manente (APP — Área de Proteção Ambiental), conforme o Código Florestal Brasileiro. No delta, o manguezal ou mangal se destaca pela grande extensão e elevado porte de suas árvores, consideradas maiores que as de outras regiões do

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Brasil, chega atingir até 30 metros de altura (DEUS et al, 2003 Apud SARAIVA, 2009), um verdadeiro laboratório natural de pesquisas, educação ambiental, tu-rismo ecológico, de valor patrimonial.

O manguezal representa um valor emblemático para o homem e para a vida selvagem por sua produtividade (primária, secundária e madeireiro), pesca (desova, criação e habitat), habitat para animais selvagens, controle geomórfico (controle de erosão, proteção contra tempestades e potencial para formação de terras), detenção de águas (atenuantes de maremotos, ventos, ciclones e ondas de marés), contribuição bioquímica (ciclagem de nutrientes, retenção de maté-ria orgânica, retenção de metais pesados e tóxicos) e outros (SARAIVA, 2009).

As comunidades da Ilha das Canárias estão em áreas de dunas fixas ou res-tinga, que durante o período de inverno (período chuvoso) formam lagoas tem-porárias, muito utilizadas pela população para banhos, lavar roupas, recreação, pesca e plantio de arroz (Figura 4 e 5). Sobre este ambiente estão presentes ainda extensas áreas, nas quais predominam espécies vegetais de potencial econômi-co: carnaúba, cajueiros, guajiru, salsa da praia, jatobá, murici e murici pitanga, dentre outras. O uso atual da maioria dessas espécies é apenas para as neces-sidades locais, a maioria não apresenta valor comercial. Não há conhecimento sobre o potencial extrativista das espécies, assim como seus limitantes ecológi-cos, sobretudo, para a carnaúba, cuja extração das folhas e do óleo pode afetar a capacidade fotossintética e reprodutiva das plantas (SARAIVA, 2009).

A Ilha das Canárias é a segunda ilha mais povoada do delta (a primeira é a Ilha Grande de Santa Isabel), com 1.920 moradores, distribuídos em cinco povo-ados: Caiçara, 51 famílias, Torto, 64 famílias, Passarinho, 46 famílias e Canárias com 299 famílias e Morro do Meio, aproximadamente 30 famílias (FEYDIT & COSTA, 2006, Apud SARAIVA, 2009).

A configuração dos povoados da Ilha das Canárias surgiu a partir das necessi-dades de seus moradores, não existe identificação de ruas e residências, os prin-cipais pontos de referencia são igrejas, campos de futebol, comércios, escolas e cemitérios. O calçamento se encontra apenas na praça central, onde está a igreja matriz católica.

Segundo Mattos (2006), grande parte dos moradores da comunidade Passari-nho não têm instrução formal, o que evidencia o distanciamento do acesso aos serviços públicos e revela que a cultura é atravessada pela oralidade, forma de transmissão de expressões e costumes e tradições ancestrais. Existem escolas primárias sob a gestão da prefeitura de Araioses em quase todas as comunida-des, com exceção do Morro do Meio; a escola da comunidade Passarinho come-çou a funcionar em 2002. Existe um posto de saúde na Ilha das Canárias, mas ainda está presente a tradição de curar os males do corpo e da mente com rezas, benzimentos e plantas do lugar; o atendimento médico antes realizado na cida-de de Parnaíba pode ser realizado, agora, na própria Ilha.

As casas, na sua maioria não dispõem de sistema de encanamento, fossas sép-ticas, ou locais destinados à vazão de dejetos. A água para o consumo é retirada

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da cacimba ou do poço, a depender da aparência da água, mais limpa ou mais “suja”/barrenta. Essas condições, aliadas ao alto nível do lençol freático e ao li-vre trânsito de animais nas comunidades, contribuem para a contaminação da água consumida e para a difusão de doenças de pele, dentre outras. Os dejetos sólidos são jogados nos quintais, rios, enterrados, queimados ou reaproveitados (MATTOS, 2006).

De acordo com o relatório de Saraiva (2009), recentemente, as comunidades da Ilha das Canárias perceberam que a questão do lixo está a se tornar um pro-blema, de modo que foi solicitado apoio aos órgãos públicos competentes (Pre-feitura de Araioses, FUNASA e ICMBio) e a parceiros privados (Instituto Ilha do Caju e CIA, Comissão Ilha Ativa) para implantar um sistema de gestão de resídu-os sólidos, a princípio na comunidade de Canárias, [por ter um maior número de habitantes], mas com possibilidade de ampliação às outras comunidades.

As atividades econômicas principais da RESEX são, primeiramente, a cata do caranguejo-uçá, seguido da pesca e do cultivo do arroz. A participação desses três pilares econômicos não é semelhante entre os povoados. Os moradores da comunidade de Canárias, por exemplo, são conhecidos pela pesca e são poucos os que catam caranguejo-uçá. (SARAIVA, 2009).

Apesar do grande potencial turístico da região, a geração de renda dos po-voados não advém da atividade turística, a qual é desempenhada por empresas privadas da cidade de Parnaíba. Essa percepção é compartilhada pelo restante da população, que nas oficinas públicas revelam que os benefícios do turismo ain-da são nulos nas comunidades. Segundo Feydit & Costa (Apud SARAIVA, 2009), o extrativismo vegetal na Ilha (com exceção do mangue) é tão incipiente que não chega a ser citado como atividade econômica pelos moradores. O extrativis-mo vegetal se limita à carnaúba (para uso do tronco, palhas para cobertura de casas e ranchos e, excepcionalmente, coleta do pó para cera), murici e castanha de caju. Toda a produção pesqueira, extrativista e agrícola da Ilha das Canárias e de toda RESEX é comercializada in natura e escoada, principalmente, pelo porto dos Tatus, na Ilha Grande de Santa Isabel e, secundariamente, pelos portos de Araioses (Conceição), Carnaubeiras e Água Doce.

Mattos (2006) retrata ainda a cultura dos povoados da Ilha de Canárias, fo-cando-se especificamente nos festejos religiosos. Segundo a autora, as comuni-dades de Passarinho e Canárias festejam principalmente os santos católicos São Luiz Gonzaga, Santo Antônio, São Pedro e São João Batista. Em Passarinho, os festejos ficaram suspensos por cerca de 30 anos e retornaram recentemente (sem data certa) e em Canárias (povoado) é onde ocorrem os festejos maiores. A rea-lização desses festejos é marcada pela presença de padres católicos e costumam ocorrer em datas específicas do ano.

Segundo Saraiva (2009), diversas atividades econômicas e práticas quotidianas desenvolvidas na Unidade são reflexos diretos da cultura do povo local. O conhe-cimento tradicional sobre a pesca, a lavoura, a produção de fibras naturais e ou-tras se confundem com atividades econômicas e traços culturais, que deveriam

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ser incentivados e mantidos dentro e fora da RESEX. Destacam-se, dentre essas atividades, os artesanatos de palha em carnaúba e tucum; as rendas de bilro e bordados; tecelagem; cestaria; cerâmica; madeira, expressão rica e complexa da arte santeira e rural; redes de tucum; casas de farinha, etc. (PLANAP, 2006).

O Plano de Ação para o Desenvolvimento Integrado da Bacia do Parnaíba — PLANAP (MI, 2006) coloca como ações socioculturais prioritárias para a região da planície litorânea, onde se encontra o delta, o planejamento e gestão partici-pativa nas escolas da rede pública, o registro e incentivo às manifestações cultu-rais e a capacitação profissional e empresarial no campo do turismo. Dentre as instituições identificadas como próximas e, de alguma forma ligadas a Canárias, encontram-se o INCRA, Mestre Reis (locutor da rádio local), ICMBio, Associação de Moradores, Colônia de Pescadores (Z-712), Banco do Nordeste, FUNASA, esta última com projeto de saneamento básico nas cinco comunidades e Prefeitura Municipal de Parnaíba e Araioses.

Outras instituições foram identificadas também como próximas à comuni-dade, mas atualmente sem ligação sistemática, quais sejam: PETROBRAS, que patrocina os projetos na Ilha do Caju, como o Tartarugas do Delta, Peixe-boi, atra-vés do Programa Petrobras Ambiental; IBAMA e Capitania dos Portos. Segundo Feydit & Costa (2006), as comunidades estão se organizando em associações e conquistando melhorias.

De acordo com Saraiva (2009), além da organização comunitária pesa, em grande parte para as conquistas colocadas, as recentes políticas de assistência do governo federal, como os apoios a assentados em áreas de reservas, saneamento básico (implantado pela FUNASA e que busca atender 100% das casas); bolsas de auxilio financeiro, Programa Luz para Todos, Bolsa Escola, Bolsa Verde, dentre outros auxílios, que são amplamente distribuídos em toda a região.

O consultor do Projeto Caracterização da unidade e temas complementares Re-serva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba, PNUD/Brasil, considera que a Associação de Moradores da comunidade de Canárias é possivelmente a mais atuante, sendo a que mais se empenhou na busca de benefícios junto ao INCRA, bem como lutou para a implementação da energia elétrica.

A falta de uma maior articulação das associações se faz notar na incapacida-de de solucionar pequenos problemas locais quotidianos, como o cercamento dos quintais das casas e abertura de campos de futebol; há ainda a necessidade da presença do ICMBio para dirimir conflitos que poderiam ser solucionados sem a presença dessa Instituição federal, caso as associações estivessem fortalecidas. O ICMBio, colônia de pescadores (Z-7), associações de moradores e INCRA foram as únicas instituições consideradas efetivamente próximas das comunidades. Esta última em decorrência dos benefícios que as comunidades estão receben-do do programa que reconhece moradores de RESEX como beneficiários da re-forma agrária. Para os moradores de todos os povoados faz-se necessário buscar proximidade e parcerias para a realização de cursos, capacitações, etc., com o SEBRAE e a EMBRAPA.

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O lixo é ainda o grande vilão, tema na pauta do dia, objeto de discussão na Ilha das Canárias, sobretudo no povoado de Canárias. Algumas ações estão sen-do tomadas no sentido de buscar uma solução para o problema, que é grave, na Ilha das Canárias.

3. AçãO EdUcATIVA: cOMUNIdAdE, UNIVERSIdAdE E MUSEU

Os aspectos referenciados sobre as comunidades da Ilha das Canárias nos ser-vem de base para entendermos o que motivou um grupo de professores-pesqui-sadores, sob a coordenação da professora Drª. Áurea da Paz Pinheiro, da Univer-sidade Federal do Piauí/UFPI, a repensar o desenvolvimento e a sustentabilidade desse território, ao tomar como ponto de partida temáticas ligadas ao patrimô-nio em sentido lato, à paisagem cultural, ao modo de vida dos habitantes desse território. Vale ressaltar uma das funções das Instituições de Ensino Superior (IES) — a Universidade Federal do Piauí (UFPI) e suas parceiras, Universidade de Lisboa (UL); Universidade Estadual do Piauí (UESP), e para o futuro próximo, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) como mediadoras desse processo, na medida em que pas-sarem a atuar junto àquelas comunidades.

Uma das iniciativas da UFPI e da UL, ligadas neste momento diretamente ao Projeto em tela, foi a organização de um conjunto de atividades acadêmico-cien-tifico-culturais na UFPI, em Agosto de 2012, a exemplo da reunião do Grupo de Trabalho Brasil-Portugal: investigação e estudos interdisciplinares, realizada no auditório TROPEN, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPI). Na ocasião, os coordenadores, do lado brasileiro a professora Drª. Áurea da Paz Pinheiro/Coordenadora do Projeto/PNPD/CAPES/UFPI, e do lado português o professor Dr. Luís Jorge Rodrigues Gonçalves, Universidade de Lisboa/FBAUL/CIEBA, apresentaram os objetivos do Protocolo acadêmico--científico-cultural assinado entre as duas instituições, quais sejam: promover a cooperação internacional, desenvolver interesses comuns nos domínios do en-sino superior, da pesquisa e da extensão entre os países e instalação de parcerias dos dois lados do Atlântico para concretizar as atividades inclusas no Plano de Trabalho do Protocolo, que abrange o Projeto.

Outra atividade pertinente à preparação para a inserção dos pesquisadores na Ilha das Canárias foi o estudo da perspectiva de investigação no campo das metodologias participativas, focada na tradição do integracionismo simbólico, preocupado com os significados subjetivos e as atribuições individuais dos sen-tidos; a etnometodologia, interessada nas rotinas do quotidiano; que possibili-tou aos membros do grupo de pesquisa/investigação explorar processos incons-cientes, psicológicos, sociais, para além de si, refletir sobre o Outro.

Com o intuito de promover o encontro dos saberes dos mestres da cultura lo-cal e acadêmicos, a UFPI e a UL coordenaram o Congresso Internacional de História e Patrimônio Cultural (já em sua 3a edição) e o Seminário de Novas Inserções em Áreas

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Protegidas, que ocorreu nas dependências da antiga Associação Comercial de Par-naíba, Porto das Barcas, às margens do Rio Igaraçu, Centro Histórico de Parnaíba.

Além da apresentação de trabalhos, resultado de investigação acadêmico--científica, o evento contou também com a participação de representantes de Organizações Governamentais, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-tístico Nacional (IPHAN), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodi-versidade (ICMBio), quando foram discutidas políticas públicas e a importância da participação da comunidade nos projetos que foram implementados e sobre os que seriam prioritários para se desenvolver. Podemos citar como exemplo os Projetos Tartarugas do Delta, Comissão Ilha Ativa (CIA), que visam a conscienti-zação da preservação do patrimônio ambiental do Delta do Parnaíba através da participação efetiva dos pescadores, dos jovens e das crianças; os relatos de expe-riências de artífices da cultura, como mestres do saber/fazer das embarcações e representantes de Associações de Moradores e Pescadores da Pedra do Sal.

A coordenação do evento convidou para conhecer o Projeto outras IES, para juntos discutirem alternativas para alcançar o desenvolvimento sustentável na Ilha das Canárias, através do patrimônio; estiveram presentes a UNIRIO, a FURG, a UFRGS, a UFCE, UESPI, e Organizações como a Área de Proteção Am-biental (APA), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Comissão Ilha Ativa (CIA) e o Projeto Peixe-Boi Marinho, este exe-cutado pelo Centro Mamíferos Aquáticos/IBAMA em cogestão com a Fundação Mamíferos Aquáticos, com o patrocínio oficial da Petrobras, coordenado pela analista ambiental Patrícia Claro, da Base Avançada Multifuncional do Centro de Mamíferos Aquáticos, que conta com uma equipe de dez pessoas que atuam na defesa e preservação do peixe-boi no Piauí, juntamente com técnicos do ICM-Bio, funcionários da prefeitura de Cajueiro da Praia e estagiários.

Ressaltamos a importância do Projeto Peixe-Boi Marinho para a preservação ambiental e para a auto-estima da comunidade da região, bem como a legitimi-dade do Piauí em liderar a iniciativa de abrigar, em Cajueiro da Praia, um san-tuário ecológico que é mantido graças a uma parceria entre ambientalistas e a população, que busca fomentar o desenvolvimento sustentável do território.

Cajueiro da Praia foi o primeiro município brasileiro a receber o título de Patrimônio Natural do Peixe-Boi Marinho, em 2003, tornando a prefeitura local responsável pela proteção dos mamíferos aquáticos e seus habitat, o que inclui estuários, rios e mar.

A nova base do Peixe-Boi é mais um instrumento de monitoramento e pre-servação dessa espécie, um laboratório natural para subsidiar pesquisas e po-líticas de preservação da biodiversidade, fomentar o trabalho e campanhas de conscientização ambiental e formação da cidadania através de informações am-bientais nas escolas, universidades, população e turistas; um possível gerador de emprego e renda para a comunidade local, que está sendo capacitada para a recepção dos turistas e a promoção de eventos.

Nesse sentido, os membros do Projeto Arte, Patrimônio e Museus e do Projeto Mediação

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entre dois mundos, Museus Comunitários Brasil-Portugal somam-se a essas iniciati-vas propondo uma parceria para auxiliar em várias áreas, como a organização do Museu do Mar em Parnaíba e o Museu Casa Simplício Dias na mesma cidade.

Os jovens acadêmicos do Grupo de Pesquisa/CNPq/UFPI, Curso de Histó-ria, Arqueologia e Arquitetura, sob a coordenação da professora Áurea da Paz Pinheiro, integrados à missão científica da UFPI/UL, ao viajarem com o grupo de pesquisadores à Ilha das Canárias foram instigados a etnografar o percurso das visitas, experiência que reporta a metodologia de apontamentos dos antigos viajantes, pois a missão contou também com os registros do professor Dr. Jorge dos Reis, FBAUL, através de desenhos exploratórios para analisar o território, e registros da fotógrafa Cássia Moura. A experiência foi compartilhada ainda, com crianças da ilha, de 6 a 12 anos, integrantes das ações de Educação Ambiental do Projeto Tartarugas do Delta, orientadas pelo professor Paulo Campos,

O objetivo dos professores/pesquisadores, nesse primeiro contato, foi dar a conhecer as potencialidades ambientais e culturais da região, conhecer alguns dos artífices da cultura local, vivenciar os costumes da população e absorver a proposta do Projeto Arte, Patrimônio e Museus, a fim de colaborar para a viabili-dade dos objetivos propostos no mesmo.

Entende-se essa iniciativa como uma preocupação em cumprir com um dos objetivos da RESEX do delta, ou seja, garantir a permanência das populações extrativistas tradicionais conciliando a exploração autossustentável com a con-servação dos recursos naturais renováveis, visando à melhoria das condições de vida dos moradores e trabalhadores da área e do meio ambiente.

As observações e reflexões sobre e a partir da alteridade sociocultural, bem como sobre as tradições locais, foram sendo anotadas pelos professores/pesqui-sadores para posteriormente serem compartilhadas em reunião do Grupo de Pesquisa. Este exercício etnográfico também foi feito pelas crianças do Projeto Tartarugas do Delta que conduziu o grupo de professores/pesquisadores pela Tri-lha Ecológica da Ilha, uma forma de estimulá-las a valorizar as tradições locais e melhorar sua autoestima.

A experiência da missão científica às Canárias resultou em uma Agenda Pro-positiva do Grupo Trabalho Brasil-Portugal; foram estabelecidas metas e prazos deste fazer científico como a implementação do Projeto Mediação Entre Dois Mun-dos, Museus Comunitários Brasil-Portugal, coordenado pela professora Áurea da Paz Pinheiro (PNPD/CAPES/UFPI/FBAUL); a inserção da cidade de Parnaíba em Organizações Internacionais como a UNESCO, à Rede das MERCOCIUDADES, à União Europeia e, possivelmente, estabelecer parcerias com países da África, através de projetos que contemplem necessidades comuns, no caso das MERCO-CIUDADES, e que promovam a troca de experiências, no caso da União Euro-peia, por exemplo. Neste sentido, a professora Áurea da Paz Pinheiro propôs a organização do Mestrado Profissional com dupla-titulação em Artes, Patrimônio e Museologia inserido nas diretrizes do Protocolo Acadêmico-Científico-Cultural as-sinado, em 2011, entre a UFPI e a UL.

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Outra meta das IES é desenvolver pesquisas colaborativas, com a participa-ção da comunidade. Com essa metodologia também pretendemos contribuir para melhorar a autoestima e promover a autogestão das comunidades de Ca-nárias, estimulando e capacitando os moradores a se organizarem em Associa-ções de Pescadores e de Moradores, por exemplo, formarem Cooperativas, as quais, dentre a prestação de serviços, possam manter um sistema de controle de qualidade dos produtos produzidos na Ilha, oferecendo também oficinas, cujos facilitados sejam os mestres da cultura local; além de promover cursos de formação para os moradores da Ilha. Nesse sentido, a participação da equipe de professores/pesquisadores será de facilitadores, mediadores deste processo, ins-trumentos para a promoção de projetos e captação de recursos humanos para o benefício das comunidades da Ilha das Canárias.

cONclUSãO

Naquele primeiro encontro da equipe de professores/pesquisadores com a co-munidade da Ilha das Canárias, ficou evidente a necessidade de ser trabalhada com a população a educação patrimonial cultural e ambiental. A carência de recursos na comunidade requer que a equipe seja promotora ou mediadora de outros projetos ou subprojetos geradores de emprego e renda.

A falta de estrutura da Ilha soma-se à falta de serviços públicos, o que motiva a evasão de moradores e até mesmo de famílias inteiras, conforme indica Mattos (2006). Uma das tarefas das IES e demais instituições parceiras é subsidiar a gestão do patrimônio de modo a não separá-lo da vida de seus detentores, tendo em vista a complexidade e a importância dos manguezais do Brasil para o ecossistema, expres-sa no Documento do Projeto Conservação e Uso Sustentável Efetivos de Ecossistemas Man-guezais no Brasil (PIMS 3280), o qual visa buscar subsídios para adaptar e implemen-tar ferramentas para a gestão de áreas protegidas do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) às características específicas dos ecossistemas manguezais.

A missão científica, de professore/pesquisadores de IES do Brasil e de Por-tugal, quando se propõe a elencar ações socioambientais para a região com a participação da comunidade local, de representantes de Organizações governa-mentais e ONGs, está se comprometendo com uma das finalidades da Universi-dade, a produção do conhecimento como aporte ao desenvolvimento humano voltado à interação permanente com a sociedade em suas diferentes esferas, lo-cal, regional, nacional ou internacional. Neste sentido, as propostas deste Pro-jeto permitirão que as IES cumpram com a sua função social, política e cultu-ral, promovendo a integração entre Ensino, Pesquisa e Extensão nas diferentes áreas do conhecimento e entre instituições, neste caso, elencadas no Plano de Trabalho do Protocolo de Cooperação Brasil-Portugal, que tem como premissa o es-tabelecimento de intercâmbio no que se refere às metodologias e aos modos de fazer científicos da trajetória profissional de cada pesquisador/colaborador, bem como socializar uma tradição de Ensino, Pesquisa e Extensão das Instituições.

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Os professores/pesquisadores deste Projeto contribuirão não somente para a produção e renovação do conhecimento, mas também serão os mediadores ou promotores de uma rede de projetos de integração com a comunidade, por acre-ditarem na convivência extramuros, tanto através de atividades acadêmicas de Ensino e Pesquisa com as diferentes comunidades da região, como com outras comunidades universitárias do país e do exterior, uma vez que uma das funções das IES é potencializar a região capacitando recursos humanos para atuar no mercado de trabalho.

Contactar as autoras: [email protected] · [email protected] · [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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UM MUSEU dE ARTE UNIVERSITáRIO BRASIlEIRO: histórias de um projeto de arte em devir?A BRAzIlIAN UNIVERSITy ART MUSEUM: stories of an art project in becoming?

Carolina RuosoUniversidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, membro organizadora do Groupe de Travail

em histoire du Patrimoine et des Musées hiPaM, bolsista da CAPES.

Resumo: Este artigo apresenta a análise do processo de formação de duas coleções do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC): Chico da Silva e Xilo-gravura, ao interpretar as duas coleções buscamos problematizar o tema da constru-ção da alteridade, para compreender o que seria museu de si e museu do outro na perspectiva do MAUC. Procuraremos identificar os vestígios que apresentam ideias de projetos pensados para o museu na sua fase inaugural. Ao listarmos as exposições realizadas depois de 1964 realizadas no MAUC, queremos destacar as permanências, mudanças, semelhanças e diferenças com o projeto inicial do MAUC.

Palavras-chave: Museu universitário. Coleção de Arte.

Alteridade. história das Exposições.

Abstract: This article presents an analysis of the development of two collections of the Art Museum at the Ceará’s Federal University (MAUC): Chico da Silva and Woodcut. We interpret the two collections to investigate the theme of otherness, from the perspective of MAUC. We aim to identify the traces that have project ideas thought to the museum in its inaugural phase. We list the exhibitions after 1964, because we want to highlight the continuities, changes, similarities and dif-ferences with the initial mission of MAUC.

Keywords: University museum. Art Collection. Otherness. history of Exhibitions.

INTROdUçãO

O presente artigo pretende apresentar parte da pesquisa de doutorado que es-tamos desenvolvendo a respeito da história da formação do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), fundado em 1961. Nosso estudo teve como motivação inicial a investigação sobre os três primeiros anos de formação do museu: o que estamos nomeando de fase inaugural. Este primeiro momento de vida da instituição nos convida a pensar nas diferentes imaginações museais que foram mobilizadas e tornaram possível a formação de uma coleção pública de artes na cidade de Fortaleza. Trata-se de um museu universitário constituído com o objetivo de montar um acervo de artes, não tendo sido resultado de uma doação de um colecionador privado de arte e, nem originou-se de um projeto que pretendia tornar acessível uma coleção pública da universidade. Neste caso,

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podemos compreender que o MAUC é o resultado de uma coleção de ideias e de ações de um coletivo portador de sonhos museais e, que para tanto, decidiu o perfil da sua coleção por meio de planos de aquisição durante o processo mesmo de sua gestação.

Estes planos de aquisição foram possíveis por meio da participação de alguns artistas, entre eles: Antônio Bandeira, Heloysa Juaçaba, Sérvulo Esmeraldo, Flo-riano Teixeira e, alguns funcionários da Universidade Federal do Ceará como: Lívio Xavier Junior, Milton Dias e o próprio Reitor Antônio Martins Filho. Este acervo foi engendrado na experiência das viagens: idas as cidades do Nordeste, como na região do Cariri cearense para adquirir a coleção de xilogravura e arte popular. Viagem para a Europa para aprender museologia e critica de arte, di-vulgar a as gravuras populares brasileiras e adquirir obras de arte estrangeiras. Um museu tecido pelas linhas da circulação de saberes e patrimônios. Escolhe-mos apresentar neste artigo a formação de duas coleções: a coleção Chico da Sil-va e a coleção de xilogravuras.

Através da análise de uma documentação diversa: correspondências, relató-rios, fotografias, catálogos e notícias de jornais — procuramos descrever como aconteceram estas viagens realizadas dentro e fora de Fortaleza, quem eram os personagens envolvidos e buscamos explicar a maneira pela qual estas pessoas foram construindo as suas redes de relação sociais no mundo das artes2 e, como por meio delas foi possível criar o MAUC.

Nos interessa apresentar neste artigo algumas reflexões a respeito das pos-síveis contribuições do estudo sobre um museu de arte universitário, dito re-gional para a escrita da história dos museus. Como os atores envolvidos nos processos de criação de uma instituição cultural dialogavam com os chamados centros culturais? Entre olhar para fora e olhar para dentro qual seria a sua mis-são? Entre os museus de si e os museus do outro, que memórias das artes foram produzidas? Assim, ao analisarmos as exposições apresentadas na primeira fase do Mauc, estamos investigando qual é o lugar dos artistas — que fizeram parte de uma Escola Invisível de Artes3 — na produção participativa da guarda patri-monial das artes em Fortaleza?

No segundo momento do museu, houve uma estagnação das atividades, rela-cionado às politicas de cultura do período da ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1985. E em 1987 inicia-se a fase de retomada do museu, tendo o artista Descar-tes Gadelha ocupado a programação da instituição, evocando no museu sua crí-tica social. Ao investigar estes três momentos do MAUC, procuramos explicar os motivos que fizeram com que este espaço perdesse o entusiasmo dos três pri-meiros anos: seria um distanciamento dos artistas locais ou a política cultural de rejeição à arte contemporânea? Durante estes 50 anos que se passaram, desde a criação deste museu que foi a primeira instituição cultural dedicada as artes, criada em Fortaleza houveram muitas mudanças no contexto local: a criação da Secretaria da Cultura do Ceará, a Casa Raimundo Cela, o Salão de Abril da Prefeitura Municipal de Fortaleza, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e o

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Centro Urbano de Cultura e Arte. Teria sido o MAUC o precursor de um mundo institucionalizado das artes em Fortaleza?

dUAS cOlEçõES dO MAUc: TRAJETóRIAS dA fORMAçãO

dE UM AcERVO PúBlIcO dE ARTE EM fORTAlEzA

O ‘ATElIER’ chIcO dA SIlVA

Em 1959, Jean Pierre Chabloz solicitou ao Reitor Antônio Martins Filho uma sala da universidade que pudesse receber Chico da Silva. Neste momento a re-cém-criada Universidade Federal do Ceará, deu o primeiro passo para a criação do Museu de Arte da Universidade do Ceará. Chico da Silva morava na região no Pirambu e, estava pintando um muro na antiga Praia Formosa em Fortaleza quando foi avistado pelo artista suíço Jean Pierre Chabloz. Assim, o artista suiço identificou um potencial artista índio, eles se encontram outras vezes na casa de Chabloz que o estimulou a pintar em aquarela, para fazer nascer o artista primi-tivo. Chabloz maravilhou-se com o universo pictórico de Chico da Silva, o qua-lificou de reinvenção da pintura e decidiu promover o artista primitivo e naïve, índio urbano do Ceará e, ainda, o artista da praia4, passando a escrever textos críticos de arte e a organizar exposições no Brasil e na Suíça, principalmente na sua cidade, Lausanne. E, buscou construir o reconhecimento de Chico da Silva no mundo das artes.

Chico da Silva trabalhou nas dependências do MAUC durante três anos, de 1959 à 1961. Durante estes anos recebeu apoio material para a execução da sua pintura e todos os quadros produzidos neste contexto passaram a fazer parte da coleção Chico da Silva, do acervo do MAUC, ao todo 39 telas. Como as pinturas foram executadas nas dependências do futuro museu, estas peças mereceram o destaque da autenticidade, visto que o artista da praia compartilhou seus sa-beres com seus familiares e seus amigos, gerando uma produção mais coletiva, fato que gerou muitas polêmicas, devido as dificuldades relacionadas as normas do sistema de artes, que visam a autoria quando validada pela assinatura do artista. Quando o caboclo “meio-louco5” é reconhecido como artista, sua relação com a sua comunidade também mudou e, outras pessoas se engajaram na pro-dução das pinturas que eram posteriormente assinadas por Francisco da Silva. Ao se apropriar da experiencia artística mediada pelo museu, Chico da Silva fez a partir do seu referencial cultural um espaço compartilhado de pintura na sua casa, poderíamos ter nomeado de atelier?

Faz parte deste conjunto: fotografias que registraram a passagem do artista da praia pelo museu, das quais duas foram destacadas pela instituição6 no site inter-net, na primeira delas Antônio Martins Filho, observa Chico da Silva pintando uma tela sobre uma mesa, dentro de uma sala. Na segunda foto, Antônio Bandeira está em pé, ao lado de Chico da Silva que segura um quadro seu, no jardim da Uni-versidade. Um exemplo de como a universidade preocupou-se em preparar um arquivo fotográfico que registrasse diferentes momentos do museu que estava

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para ser criado. Desde o seu começo, a memória do Mauc foi sendo constituída. Consideramos que neste momento inicial junto com a coleção do Chico da Silva iniciou-se a formação de uma coleção fotográfica do MAUC.

Algumas reflexões sobre a presença desta coleção no museu: coleção produ-zida na e para a instituição museológica, poderíamos dizer que este museu foi gestado inicialmente como um espaço atelier7? Teria esta experiencia influen-ciado outros projetos? Seria um anúncio de uma necessidade por parte dos artis-tas de terem um espaço de produção e exposição, mas que fosse também acolhe-dor como, alguns anos mais tarde, tornou-se possível o projeto Casa Raimundo Cela, realizado pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará? Sobre o contexto de produção destas peças artísticas e as questões de alteridade, considerando, por exemplo, que a busca pela elaboração de adjetivos capazes de qualificar o outro devem ser consideradas do ponto de vista de uma história social da arte. Portanto, faz-se necessário buscar explicar como este tema do primitivismo na arte, foi construído e interpretado na cidade de Fortaleza. E, a partir desta com-preensão investigar como o Chico da Silva foi apresentado na narrativa muse-al. Afinal, em que medida podemos entender o papel de Jean Pierre Chabloz na transmissão desse saber que influenciou a abordagem do MAUC? Outro ponto importante a analisar é a permanência do pensamento de Chabloz no discur-so expográfico: quais são as mudanças entre a primeira exposição realizada em 1961, “Francisco Silva primitivismo” e a sala permanente do artista, projetada no inicio do século XXI?

EXPEdIçãO XIlOgRAVURA

No ano seguinte, era 1960, a Universidade do Ceará planejou algumas viagens especialmente organizadas para realizar a coleta de xilogravuras na região do Cariri, no sul do Estado do Ceará — Nordeste do Brasil — formado pelas cidades de Barbalha, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda, Por-teiras e Santana do Cariri. Foram convocados para assumir esta responsabilida-de o artista maranhense Floriano Teixeira e Lívio Xavier Junior, funcionário da UFC8. Além da região do Cariri no Ceará, o projeto abrangeu o Estado da Paraíba e o Estado do Pernambuco. O Reitor da UFC Martins Filho era nascido na re-gião do Cariri, registrado na cidade do Crato, cidade pela qual desenvolveu afei-ção, na infância morou nas cidades de Barbalha, Juazeiro e Iguatu (MARTINS FILHO, 1991: 14-15). Talvez possamos identificar nesta viagem um retorno ao Cariri, como parte da imaginação museal de Martins Filho.

Uma dessas viagens foi para comprar copias de xilogravuras para a exposi-ção do Museu de Arte de São Paulo MASP, nessa época foram compradas tam-bém peças de cerâmicas e escultura popular. No relatório desta viagem9 Lívio e Floriano, fazem referencia a um Museu de Arte Popular que também seria cria-do na UFC, em três anos o trabalho em torno da xilogravura realizado durante o processo de criação do MAUC, gerou mudanças de estatuto e a xilogravura deixou

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de ser vista apenas como folclore para ser reconhecida como obra de arte. Nesse pe-ríodo foi formado uma coleção não apenas de impressões mas também de matrizes. Depois da inauguração oficial de MAUC em junho de 1961, Lívio Xavier Junior via-jou para Madrid, com bolsa do Instituto Hispânico de Cultura10 para estudar museologia e critica de arte. Em Madrid não havia uma formação especifica em museologia ou critica de arte, mas Lívio assistiu aulas, na condição de ouvinte, nas disciplinas de mu-seologia e história da arte, do curso de formação técnica de arquivistas, bibliotecários e arqueólogos oferecido pela Biblioteca Nacional da Espanha. Ainda em Madrid, fez contatos com brasileiros que estavam recebendo a mesma bolsa de estudos, além da viagem possibilitar ao Lívio a formação de uma rede de contatos internacionais, por estar vivendo na Europa, estimulou o encontro com intelectuais brasileiros da mesma área de atuação, como F. Dos Santos Trigueiros e Mário Pedrosa.

Foi em Madrid, quando Lívio conversou com seus interlocutores do Institu-to Hispânico de Cultura sobre o trabalho que havia feito com Floriano Teixeira em missão de criação do museu, que surgiu a ideia de organizar uma exposição de xilogravura em Madrid e, demais cidades sede do Instituto. Naquele momen-to, Lívio ainda estava muito envolvido com as lembranças daquela experiencia e pôde descrever em detalhes o percurso da viagem ao Cariri, explicou como adquiriram as gravuras e as matrizes e, entusiasmado, referiu-se a exposição que aconteceu no MASP11. As correspondências entre Lívio e Martins Filho, são prin-cipalmente relatórios de viagem de Lívio Xavier Jr, nas cartas podemos perceber o empenho do relator em qualificar positivamente a sua estada no estrangeiro, assim ao lermos esta documentação12 precisamos estar atentos a maneira como Lívio construiu nas suas narrativas o valor da sua atuação, ao mesmo tempo em que registrou as negociações sobre exposições, compra de livros, reproduções e, também da sua ida à Paris. Considerando estas questões, avaliamos a importân-cia do entusiasmo, do engajamento e da disposição de Lívio Xavier Junior para criar as condições necessárias para que este projeto, inicialmente pensado para acontecer em Madrid, inicie-se em Paris, com a participação do Sérvulo Esmeral-do e o apoio financeiro e diplomático da Embaixada do Brasil na França13.

Para Everardo Ramos (2010) a Universidade do Ceará, iniciou logo após as viagens de aquisição deste acervo um importante trabalho de valorização da co-leção, no Brasil e no Exterior. E nos explica que a exposição Gravuras Populares do Nordeste (MASP, 1960) foi a primeira inteiramente dedicada ao tema, visto que as exposições de Maceió (1952) e Neuchâtel (1955) apresentavam outras catego-rias de obras. Para o autor as exposições organizadas14, nos anos de 1961 e 1962, na Europa e em Minneapolis, nos Estados Unidos, teriam sido a iniciativa mais importante do MAUC, o que associou o seu nome à promoção da gravura popu-lar. A Formação desta coleção acontece na medida em que os atores envolvidos na promoção da valorização da gravura operam por meio do discurso expositivo os passos da musealização da gravura como “obra de arte”. Um processo de patri-monialização que acontece no âmbito nacional e internacional, Ramos descreveu os gestos museais1 que geraram esta mudança de estatuto da gravura popular:

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Assim, em meados do século XX, a história da gravura popular toma um rumo comple-

tamente novo. Desde os anos 1900, esta gravura nunca tinha mudado de estatuto, desti-

nando-se exclusivamente a ilustrar impressos modestos e de grande circulação, como os

folhetos de cordel. Com a intervenção dos intelectuais, ao contrário, as mudanças se mul-

tiplicam. Primeiro, as obras são utilizadas em contextos completamente novos: impres-

sas em folhas independentes, para participarem de exposições, ou publicadas em albuns

ilustrados. Em seguida, as próprias matrizes gravadas são retiradas de seu meio de origem

— as gráficas populares — para enriquecer o acervo de museus. Existindo por ela mesma,

e não mais em função da ilustração dos folhetos de cordel, a gravura popular adquire,

portanto, o estatuto de “obra de arte” e, mais ainda, de arte celebrada a nível nacional

e internacional. Doravante, sua história não poderia mais ser a mesma. (RAMOS, 2010)

Sobre a coleção de xilogravura ressaltamos o investimento feito pela Uni-versidade do Ceará na valorização dos objetos coletados, entre a intimidade do Reitor da Universidade com a cultura material das feiras, da qual o livreto de cordel faz parte, sendo a xilogravura utilizada para ilustrá-los, não podemos dei-xar de considerar que a imaginação museal do Reitor talvez a sua busca indivi-dual de trazer ao presente, um objeto ligado às suas memórias de infância, tenha cumprido um importante papel na construção desta coleção. Um trabalho de memória, que insiste na possibilidade da perda de um saber fazer, mas que ao mesmo tempo, projeta o museu como um centro de referência e pesquisa sobre a xilogravura. Se a história da xilogravura não é mais a mesma após as ações do MAUC, quais diálogos esta coleção pode construir com a produção desta arte, nos séculos XX e XXI? Embora, no MAUC tenha uma oficina de xilogravura e, muitos artistas tenham passado neste laboratório, em que medida esta institui-ção realizou a missão de tornar-se um laboratório de pesquisa sobre xilogravura?

A cartografia traçada pelos caminhos desta exposição mostram atores inte-ressados na circulação das obras de artes, procuraram difundir esta coleção ao mesmo tempo em que anunciavam a criação de um Museu de Arte Universitá-rio no Ceará. Cariri, Pernambuco, Paraíba, São Paulo, Espanha, Portugal, Fran-ça, Suíça, Bélgica, Áustria e Estados Unidos, lugares e instituições que foram tocadas e sensibilizadas pelas ações de um museu que se inaugurava. A ideia de mostrar-se ao mundo, aos outros, era algo ligado somente ao momento de aber-tura do museu? De que maneira estes deslocamentos de objetos de arte, promo-vidos por instituições de envergadura regional, nos instigam a problematizar um caso especifico de pratrimonialização conectado a diferentes outros museus do mundo. Como escrever sobre a presença desta coleção nestas instituições, partindo do ponto da experiência do museu regional? Seria uma escrita dos mu-seus a contrapelo, da periferia ao centro cultural? A formação desta coleção de xilogravuras, também gerou influências na arte contemporânea, como pensar uma escrita da história da arte, partindo desta coleção? Escolhemos o exemplo destas duas coleções porque nos mostram duas situações para pensarmos o

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tema da alteridade na formação do acervo do Museu de Arte da Universidade Fe-deral do Ceará. No primeiro caso apresentado, temos dois personagens centrais na história, o nomeado Descobridor e o nomeado Índio: um Suíço vindo da Euro-pa, trabalhar no Brasil, na cidade de Fortaleza, como funcionário do SENTA15, na função de desenhista. O segundo, brasileiro, nascido no Acre, morando em For-taleza e trabalhando na prestação de pequenos serviços. Um europeu que des-cobre o índio brasileiro: o reinventor da pintura, nomeado primitivo. Chabloz teve dificuldades para qualificar Chico da Silva, seu traço e suas cores não cabem nas definições que haviam sido constituídas pela história da arte, era como se aquele índio urbano, tivesse passado por todas as escolas da vanguarda artística. Como defini-lo se ele não nunca havia estudado artes? Em seu texto para a revis-ta Cahier d’Art Chabloz descreve a produção de Chico da Silva:

A irregularidade da produção de Silva não o impedia, no entanto, de progredir a olhos

vistos. Mesmo permanecendo fiel ao seu universo interior e não alterando em nada sua

visão de poeta, Francisco progredia, de descoberta em descoberta, e conquistava galhar-

damente uma real maestria artística e técnica. Agradavelmente surpreso, experimentei a

sensação rara de assistir a uma verdadeira RE-INVENÇÃO DA PINTURA. E, coisa curiosa

e admirável, entre as vinte e quatro obras que eu atualmente tenho dele, pode-se distin-

guir claramente fases sucessivas, bem marcadas: partindo de um arcaísmo bem puro, o

pintor da praia tornou-se “clássico”, depois “barroco”, “impressionista” e, enfim, “moder-

no” e mesmo “ surrealista”, se tenho a ousadia de usar tal nomenclatura a respeito de

uma arte tão espontânea, que não deixou de permanecer — apesar de algumas oscilações,

essencialmente primitiva. (CHABLOZ, 1952)

Chabloz narra no artigo escrito para uma revista francesa como foi o seu en-contro com o índio brasileiro. Descreve os detalhes deste acontecimento e se apresenta como seu mediador no mundo das artes. Como descobridor, Chabloz produz uma transformação no modo de Chico da Silva realizar suas pinturas, do suporte mural nas ruas da praia às telas e ao museu, o MAUC participa desta mudança de estatuto, quando Chico da Silva passa a produzir uma ‘obra de arte’, mas uma arte com essência primitiva. A nomeação primitivismo é uma inven-ção da modernidade, durante o século XX os processos de produção de conheci-mento das áreas de história colonial, teoria antropológica e história da arte, mo-dificam os julgamentos com relação aos objetos e, ao elaborarem interpretações cada vez mais próximas de uma abordagem estética, possibilita que os artistas descubram estes objetos. O que antes era nomeado de “objetos de curiosidade” passa a ser revindicado como arte primitiva.16

No segundo caso, a xilogravura é retirada do seu lugar de origem, associado às capas de cordel, dentro de uma perspectiva do folclore, uma forma de inter-pretar os saberes e fazeres da cultura popular, como algo que não pudesse se mo-dificar com o tempo. Interpretado a partir de uma ideia de pureza cultural, onde

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a essência estaria marcada pela repetição do gesto cultural, sendo transmitida de geração para geração. O museu trabalhou pela conservação deste saber, que estaria supostamente em extinção — ao buscar justamente a característica mais próxima daquilo que era convencionado como sendo originalmente da cultura popular, visualmente identificado nos traços considerados mais rústicos. A mu-sealização da xilogravura transformou o seu contexto de produção, ao entrar no museu a xilogravura perdeu a sua função de uso, passando a ter valor estético cultural, gerando novas possibilidades para os artistas, ampliando para além da feira os espaços de atuação e exposição. Neste caso, é um museu brasileiro que elabora uma narrativa de si, se inscreve como produtor de uma obra de arte sin-gular e mostrar-se para o outro, no caso os Europeus.

dESdOBRAMENTOS OU dEScONTINUIdAdES?

AS EXPOSIçõES NA lINhA dO TEMPO dO MAUc

As duas coleções apresentam ações importantes da programação do museu, a ex-periência do museu como atelier de artista, quando o MAUC antes da sua criação recebe Chico da Silva e disponibiliza por três anos um espaço de trabalho, poderia ter sido tomado como uma das missões da instituição. O MAUC poderia ter sido concebido como um espaço experimental para os artistas da cidade e do estrangei-ro, de alguma maneira algo dessa experiência permaneceu. Houveram as oficinas de cerâmica, com a participação do artista Barrica. O espaço atelier de gravura, onde muitos artistas trabalharam. O projeto Bolsa-Arte, programa de formação em artes da Universidade Federal do Ceara, especialmente pensado para os estudan-tes universitários, no qual são realizados trabalhos de experimentação artística.

Nos anos de 1961, além de divulgar o museu com as exposições de xilogravu-ra na Europa, principalmente, também houve a preocupação de adquirir obras de arte estrangeiras, reproduções, livros e catálogos, outra responsabilidade do Lívio Xavier Junior, desta vez acompanhado do artista Sérvulo Esmeraldo que morava em Paris e frequentava as galerias de arte parisienses. Desse modo, o MAUC iniciou um trabalho de aquisição de arte contemporânea estrangeira, muito pautado pelas relações sociais do Sérvulo Esmeraldo. Em setembro de 1961 foi montada a exposição de Cartazes Europeus, em 3 de maio de 1962 a expo-sição Jovens Pintores e Gravadores da Escola de Paris e em 2011, no aniversario de 50 anos do MAUC, como parte das comemorações foi criada a sala Arte Estran-geira. Embora a missão do MAUC fosse realizar uma educação artística da po-pulação em Fortaleza, trazendo uma arte que antes estava inacessível, esta ação não foi vista positivamente por todos os artistas. Para alguns, faltava espaço no museu que valorizasse a produção local.

O Museu de Arte da Universidade do Ceará não foi criado para formar uma coleção da História da Arte do Ceará, o Mini-Museu Firmeza do casal Estrigas e Nice Firmeza passa a cumprir este papel de valorização da memória das artes cearenses, tornando-se um importante centro de documentação. Talvez por ser

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a primeira instituição dedicada à memória das artes em Fortaleza, o MAUC es-tivesse mais próximo de um lugar de experimentação das artes, de criação e de dialogo internacional, por este motivo Antônio Bandeira foi escolhido para a exposição oficial de inauguração. Antônio Bandeira representava o artista for-talezense reconhecido internacionalmente, as pinturas expostas na ocasião de inauguração foram adquiridas pela UFC e fazem parte da coleção Antônio Ban-deira no MAUC.

Durante os anos da ditadura militar as exposições que faziam parte da pro-gramação do MAUC diminuirão bastante, não foi possível manter uma conti-nuidade com o trabalho que vinha sendo realizado. Em 1964, por exemplo, hou-ve apenas uma exposição naquele ano sobre o acervo do MAUC. Em 1965, foi a inauguração da nova sede do MAUC, com a Mostra de Pintores Cearenses e de Arte Popular. Durante este mesmo ano aconteceram as exposições de Heliogra-vuras de Albrecht Dürer, de Rendas de Bilro e Cartazes Europeus. Em 1966, foram quatro exposições ao todo, uma de Reproduções de Vicent Van Gogh, o I Salão de Pintura Infantil, Gravuras Japonesas e Heliogravuras de Rembrandt. Os nomes de artistas estrangeiros citados nestas exposições mostra que os interesses não es-tavam apenas voltados para a arte contemporânea. Em 1967 foi a exposição de Gravuras de Sérvulo Esmeraldo. No ano de 1968, foi inaugurada a Sala de Antônio Bandeira. No ano seguinte em 1969 aconteceram quatro exposições: Pinturas de Floriano Teixeira, Evolução da Educação no Brasil, Zenon Barreto, 35 Anos de Arqui-tetura — Oscar Niemeyer e Fernando Coelho.

De 1970 a 1989 foram ao todo 38 exposições, apresentando artistas como: Carybé, Estrigas, Aldemir Martins, Helio Rola, Descartes Gadelha, Roberto Gal-vão, Josef Albers, Letícia Parente, Gravuras Populares Francesas de Epinal, Die-ter Jung, Pierre Chalita, Barrica. A partir de 199017 a 1999 o MAUC expôs: Rai-mundo Cela, José Tacisio, Descartes Gadelha, Eduardo Frota, Rubem Valentim com uma programação de 7 exposições. De 2000 a 2011 foram 75 exposições, apresentando exposições do circuito nacional como a apresentação do acervo da caixa, projetos locais de alcance nacional como o salão de abril e experiencias realizadas dentro do circuito universitário como os temas Mundos do Trabalho e Labirinto da Arte e da Vida. Há uma diversidade de artistas que participam da pro-gramação do MAUC neste período, destacaria a exposição elaborada como parte do projeto de doutorado do artista Hebert Rolim Otacilio de Azevedo, Hebert Rolim e convidados. Vale ressaltar que o diálogo do MAUC com a universidade, trazen-do um olhar para o acervo como fonte de pesquisa, possibilitou a realização do projeto Vida nova na Amazônia em comemoração ao centanário de nascimento de Jean-Pierre Chabloz, um trabalho denso de pesquisa a respeito da coleção Je-an-Pierre Chabloz. O artista mais presente nas exposições e que fez uma doação da coleção Cicatrizes Submersas, foi o Descartes Gadelha.

A diversidade e a quantidade de projetos apresentados pelo Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará aumenta significativamente no inicio do século XXI. Estes dados nos levam a considerar que houve uma ruptura no projeto de

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construção do MAUC durante os governos da ditadura civil-militar no Brasil. Poderíamos afirmar que o projeto inaugural do MAUC foi interrompido e alte-rado pelas intervenções da politica cultural do governo civil-militar no Brasil? As atividades programadas depois dos anos 2000, na gestão do professor Pedro Eymar18 não são necessariamente uma continuidade direta do projeto inaugu-ral, mas permanece a ideia de um lugar experimental das artes, contando com a presença da pesquisa artística e cientifica na produção das exposições.

Depois da criação do MAUC, muitas instituições foram criadas, entre elas po-demos destacar a Secretaria de Cultura de Fortaleza, a Galeria Antônio Bandeira da Prefeitura Municipal de Fortaleza, A Secretaria de Cultura de Fortaleza e o Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar, com o Museu de Arte Contemporânea. As mu-danças geradas com a criação de outros espaços museológicos também é um indica-dor da necessidade do MAUC repensar a sua missão em relação ao momento inau-gural, talvez considerando o novo contexto, a pergunta seria: qual é função de um museu universitário de arte? Quais indícios da trajetória dos primeiros 50 anos da instituição devem ser considerados na elaboração do plano museológico? De que maneira o MAUC poderia reconstruir as redes internacionais de dialogo? Participar de uma rede de museus universitários de arte pode ser uma possibilidade a ser con-siderada pela gestão do museu. Buscamos com esta pesquisa transformar os dados em ferramentas que possibilitem ao MAUC repensar e planejar o tempo presente.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

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lever, exhiber. La mise en musées.1999 p. 563-582. disponivel em: <http://www.persee.fr/web/revues/

home/prescript/article/cea_0008-0055_1999_num_39_155_1765>. Acesso em: 24 abr. 2013

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· CHAGAS, Mario. A imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e

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· LIMA, Roberto Galvão. A Escola Invisível: Artes Plásticas em Fortaleza 1928 — 1958. Quadricolor editora:

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NOTAS

· 1 De acordo com Mário Chagas (2009), a imaginação museal é a capacidade única e eficaz que uma pessoa

tem de articular no espaço uma narrativa poética das coisas, que começa com o estudo da “linguagem

das coisas”. E, a análise dessa imaginação é, também, uma forma de investigar sobre o domínio das po-

líticas museais. Tecnicamente, ele se refere a um conjunto de pensamentos e práticas de certos atores

que produziram a respeito dos museus e da museologia.

· 2 De acordo com BECKER (2010:58-63) o mundo das artes é composto por todos aqueles que estão

envolvidos na produção das obras, as quais são definidas, por estes atores, como obras de arte, ao incor-

porarem esquemas estabelecidos e agirem por meio de redes de cooperação, onde há partilha de conhe-

cimentos e convenções que possibilitam e facilitam a realização de atividades coletivas. Os artistas e os

trabalhadores de museus, por exemplo, fazem parte do mundo das artes.

· 3 A Escola Invisível é como LIMA (2008) nomeou as redes de aprendizados entre os artistas de Fortaleza

na primeira metade do século XX.

· 4 Segundo descrição de Jean Pierre Chabloz na revista L’Illustré, n° 36, ano XXXVII, Lausanne 5 de se-

tembro de 1967, Chico da Silva teria se apresentado como o artista da praia. Este mesmo texto teria sido

publicado anteriormente, em dezembro de 1952 na revista Cahiers d’Art.

· 5 Idem: Chabloz narrou que no dia em que avistou as pinturas nos muros da Praia Formosa, ao perguntar

quem era o autor dos desenhos, o responderam que se tratava de um caboclo “meio-louco”.

· 6 Estas fotografias foram publicadas no site do museu, na lista dos acervos, coleção Chico da Silva, pági-

na Francisco da Silva na UFC. Disponível em http://www.mauc.ufc.br/acervo/chicodasilva/ufc/index1.

htm acessado 22/04/2013.

· 7 LAURIER (2006) no seu artigo sobre atelier-museu, apresenta aspectos da história dos ateliês de artistas

e problematiza temáticas contemporâneas sobre a possibilidade de intervenção dos artistas no museu,

fazendo do museu seu espaço de criação.

· 8 Relatórios de viagem, arquivo administrativo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará.

· 9 Relatórios de viagem, arquivo administrativo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará.

· 10 CANES GARRIDO (2012) apresenta um histórico da criação do Instituto Hispânico de Cultura, expli-

cando a relação da politica cultural com a politica externa do Governo Espanhol à época. E, explica, por

exemplo, como o conjunto de ações organizadas no âmbito do Instituto, no caso especifico das bolsas

de estudo, foram responsáveis pela formação de uma elite intelectual nos países da América Latina,

entre eles o Brasil. E, é justamente neste grupo que podemos identificar o Lívio Xavier Junior.

· 11 Pasta Azul, correspondências entre Lívio Xavier Junior e Antônio Martins Filho, carta: Madrid, 25

de janeiro de 1961 por Lívio Xavier Junior. Arquivo administrativo do Museu de Arte da Universidade

Federal do Ceará.

· 12 A respeito do estudo das correspondências como fontes de pesquisa histórica confira GOMES (2004).

· 13 Pasta Azul, correspondências entre Lívio Xavier Junior e Antônio Martins Filho, carta: Paris, 4 de outubro de

1961 por Lívio Xavier Junior. Arquivo administrativo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará.

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· 14 Na Europa as exposições foram organizadas nos seguintes museus: Cabinet des Estampes (Bibliothè-

que Nationale de France), Kunstmusem (Museu de Belas Artes) Basileia Suíça, Museu de Arte Popular

de Viena na Austria, Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, Museo de Arte Contemporaneo de

Madrid e Palácio de la Virrena, Barcelona.

· 15 Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia.

· 16 Sobre a historicidade da noção de primitivismo na história da arte, para saber como a noção de arte

primitiva passa a ser nomeada de arte primeira cf. AKA-EVY (1999)

· 17 Entre 1993 e 1999 o MAUC fechou para reforma.

· 18 O Professor Pedro Eymar é diretor do MAUC desde o ano de 1987, logo no inicio do processo de rede-

mocratização do Brasil.

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O fOTOgRáfIcO cOMO PATRIMóNIO IMATERIAl PhOTOgRAPhy AS IMMATERIAl hERITAgE

Maria Cecília Silveira de Faria GomesUniversidade de Coimbra, Portugal

Resumo: Esta reflexão pretende indicar o fotográfico como património cultural pela apropriação social de objetos informativos e comunicacionais, que exigem um mí-nimo investimento material para sua efetivação num contexto de partilha digital. Ao considerar o saber vernacular como substância principal do atual capitalismo, procura verificar como a lógica pós-fotográfica no digital pode produzir valor quali-tativo através da proliferação de sentidos que ativa.

Palavras-chave: Património cultural. Valor imaterial. Fotográfico.

Abstract: This reflection intends to indicate the photography as cultural heritage by social appropriation of information and communication targets, which re-quires a minimum of tangible investment for its effectiveness in a digital sharing era. When considering the vernacular knowledge as the main substance of cur-rent capitalism, seeks to ascertain how the post-photographic logic in the digital can produce qualitative value through the proliferation of the activated meanings.

Keywords: Cultural heritage. Immaterial value. Photographic.

INTROdUçãO

A primeira parte da presente reflexão volta-se para as imagens técnicas produzi-das pela lei do mínimo esforço (carregar num botão da máquina, decidir um en-quadramento, deslocar um ponto de vista) chamadas de fotografia, que possuem a característica de não ilustração do Ideal de realismo fotográfico. As questões expostas a seguir têm como ferramenta teórica o que foi chamado ‘fotográfico.’ O termo faz referência a ação do dispositivo imagético em sua condição paradoxal (e transversal) entre técnica e poética, aqui firmemente associada aos estudos de Philippe Dubois (1994).

Pretendo antes atingir “a fotografia” no sentido de um dispositivo teórico, o fotográfico,

se quisermos, mas numa apreensão mais ampla do que quando se fala do “poético” com

relação à poesia. Aqui vai se tratar de conceber esse “fotográfico” como uma categoria

que não é tanto estética, semiótica ou histórica quanto de imediato e fundamentalmente

epistémica, uma verdadeira categoria de pensamento, absolutamente singular e que in-

troduz a uma relação específica com os signos, o tempo, o espaço, o sujeito, o ser e o fazer.

(DUBOIS, 1993: 59-60)

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A segunda parte pontua alguns discursos que dialogam criticamente com a teoria do valor no capitalismo tardio através de Fredric Jameson (1996) e André Gorz (2005). Ocupa-se de hipóteses sobre o património imaterial cultural, a cria-ção coletiva e compartilhamento de conhecimento na era do acesso, como pro-põe Jeremy Rifkin (2001). Articula uma ideia de património coletivo, pelo viés da partilha de saber quotidiano e valorização da experiência vivida através de alguns traços da teoria de ‘cultura mundial’ de Lévi-Strauss (1976), da ‘partilha do sensí-vel’ de Jacques Rancière (2009) e de ‘inteligência coletiva’ de Pierre Lévy (1997).

Esta investigação não está voltada para a criação de um juízo sobre a foto-grafia como atividade produtora de valor económico ou estético, mas de como a lógica fotográfica pode produzir valor social através da proliferação de saber e significação que ativa. Ao ter em conta que a substância do atual capitalismo é o saber humano vernacular, pretende indicar como o fotográfico pode ser pensado como património imaterial coletivo por sua apropriação social num contexto de partilha digital.

1. fOTOgRáfIcO

É síncrono ao esgotamento estético dos meios artísticos tradicionais que desen-cadeia a crise da representação, o desenvolvimento tecnológico e económico que as relações no pós-modernismo efetivam. No texto “A escultura no campo am-pliado”, Rosalind Krauss (1978) procurou cancelar a inseparabilidade do suporte técnico com ‘lógicas internas’ e funções de cada linguagem artística. Assim, a ca-pacidade de articulação/ transposição do limite estético do medium e a sincronia social/tecnológica atualizar-se-iam à margem de qualquer linguagem.

Isto porque no pós-modernismo, a praxis não é definida em relação a um determinado meio de ex-

pressão — escultura — mas sim em relação a operações lógicas dentro de um conjunto de termos

culturais para o qual vários meios — fotografia, livros, linhas em paredes, espelhos ou escultura

propriamente dita — possam ser usados. (KRAUSS,1998:87-93)

O fazer artístico assente na produção da imagem técnica passou pela redefi-nição de lógica, a aproximação da arte com o tecnológico reivindicava a perda das características morfológicas dos objetos e os signos claros da habilidade do artista. O fotográfico que floresceu na viragem dos anos 1960/1970 persevera em tal terreno teórico pelos 1980/1990 — o que se pode dizer ser ‘arte-fotografia’ segundo André Rouillé (2009) —, e finalmente engendra um movimento de se-cularização que efetivará um novo paradigma para a arte contemporânea e a imagem técnica em geral.

Os diferentes realismos e, igualmente, o impressionismo estão ligados a projetos de deslocamento

das fronteiras entre o mundo e a arte. Mas em sua versão atual, que movimenta vários setores

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da arte ocidental há um quarto de século, a secularização se distingue pelo lugar aí ocupado pelo

material-fotografia; pelas orientações específicas — dos grandes aos pequenos relatos, da profun-

didade à superfície, do visível ao inapresentável, da alta à baixa cultura, dos corpos aos fluxos cor-

porais –, sustentadas, retomadas e amplificadas pela fotografia; e por, indissociavelmente, uma

série de problemáticas: políticas, recuos, transversalidades. (ROUILLÉ, 2009: 390)

Esta secularização que arruína a grande narrativa imagética da Modernidade não nega o mimetismo fotográfico, apenas focaliza os pequenos relatos; prefere o local ao global e o ordinário ao extraordinário. O fotográfico dessacraliza de to-das as formas possíveis o objeto artístico em prol da poetização do banal: trata as aparências de maneira banal e neutra, sem critério de qualidade, sem referên-cias, ou estereótipos visuais, de forma totalmente impessoal, nada particular ou arty. Este mesmo paradigma provoca uma crescente inserção da cultura quoti-diana na prática de arte erudita, o que fomenta a institucionalização do trivial e a abertura para valorização (não mercantil) das experiências imateriais.

1.1 IMATERIAl

Tal como os empreendimentos do conhecimento científico e da economia ca-pitalista estão imbuídos da regra de que não há realidade que não firmada num acordo. Assim também, diferentemente de representar o estado das coisas sob a forma de uma aparente fidelidade descritiva, o realismo no fotográfico procura empreender uma legibilidade alternativa para as realidades. Não procura cor-poralizar experiências imateriais, procura alegar a existência pela sugestão de algo que podemos conceber e que não é possível mostrar. A inversão da lógica mimética permite substituir aparências pela sugestão de aspetos invisíveis (efe-tivamente existentes), ou não presentificáveis (sublime) das coisas.

As ficções latentes nas imagens fotográficas, as teorias de espectros, os rou-bos de almas, a quimera realista, o próprio mito da representação, os ensaios científicos do século XIX e aparições no santo sudário, foram de encontro ao que se pode chamar de ‘estética do desaparecimento.’ (DUBOIS, 1994)

Tudo o que acabamos de “ver” do campo ‘fotográfico’ depende mais de saberes como a teologia,

as ciências positivistas, a medicina legal, ou a criminologia, bem mais do que a fotografia pro-

priamente dita; tudo isso acaba, todavia, por apresentar uma imagem da fotografia que procede

de uma espécie de estética do desaparecimento e do apagamento, que vai com força contra essa

concepção difundida demais segundo a qual a fotografia seria um ápice do real, um excesso de

singularidade existencial, uma pura manifestação do visível imediato, em suma, dependeria de

uma estética da presença irresistível do real e da inscrição do referente. (DUBOIS, 1994: 247)

As estratégias do desaparecimento no fotográfico evocam algo pelo efeito de vazio, pelo fantasmagórico e/ou ficcional contra o realismo das propriedades analógicas do aparelho. O fotográfico imaterial dedica-se portanto a “representar

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ordinariamente o ordinário;” alude às escrituras neutras e discretas, lugares--comuns, gestos mínimos, objetos familiares e coisas banais. (ROUILLÉ, 2009: 358) Propõe que uma imagem não depende da transformação da matéria, nem do autor, nem da ferramenta, nem do realismo da fotografia, pois as idiossincra-sias fotográficas seriam capazes de sugerir outras dimensões de um conceito e ensaiar alguma legibilidade para o que é invisível de tanto ser visto.

Estas ilusões de transparência, onde ficção e factualidade encontram-se para desvendar pequenas verdades de ocasião através de estratégias simples e frágeis objetos, geram um paradoxo. Tanto quanto a tecnologia alarga o limite do visí-vel e se projeta mais longe, à superposição sofisticada dos meios tecnológicos, os artistas tramam estratégias para abordar “o próximo, o imediato, o aqui, o banal, o ordinário, o simples.” (ROUILLÉ, 2009: 358)

1.1.1 REAfIRMAçãO dA AUSêNcIA

O sublime — que fora a Natureza para as sociedades pré-capitalistas — hoje já é outra coisa que não a tecnologia por si só. Fredric Jameson (1996) declara que em um tempo mais recente de desenvolvimento tecnológico, as máquinas de (re)produção impõem à capacidade de representação exigências muito distintas da idolatria mimética.

Mas há algo mais que tende a surgir nos textos pós-modernos mais enérgicos, é a sensação de

que para além de toda temática ou conteúdo a obra parece tirar proveito das redes do processo

de reprodução, permitindo-nos espreitar um sublime tecnológico cujo poder de autenticidade

se manifesta na evocação empreendida por estas obras de um novo espaço que surge ao redor.

(JAMESON, 1996: 56)

A imagem digital instaura um tipo de registo que se distancia da fotografia, e que se aproxima da produção de informação visual. “O que permanece é justa-mente o desejo e a fé que o indivíduo tem na imagem e o conceito de que essa é “fotográfica” por natureza, o que não é; ela é ‘fotográfica’ por afinidade.” (REN-NÓ, 2012: 21) Pode-se dizer que a relação de afinidade que o dispositivo ‘fotográfi-co’ mantém com a fotografia tem como base a tentativa teórica e técnica (meios e efeitos de representação) de conciliar os ‘princípios metafísicos’: ‘ver, pensar e acreditar.’ (DUBOIS, 1994: 223) Não se trata de acreditar no que é visto, mas ao contrário, vê-se aquilo que acredita estar vendo. Esta ‘reafirmação da ausência’ no pós-fotográfico organiza a experiência humana não pela restituição da me-mória, mas pela constituição de outras relações simbólicas. (RENNÓ, 2012: 21)

Charles Baudelaire (1821-1867) em sua célebre crítica ao Salão de 1859 ques-tionou a capacidade do público que se acostumasse a aceitar o realismo foto-gráfico como Arte, em perceber e avaliar os caracteres etéreos (imateriais) das imagens. (TRACHTENBERG, 1980) Entretanto, o objeto cuja aparição dá-se pelo

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desejo de indicar aspetos não materiais da experiência é efetivo na medida em que oferece visibilidades ao impresentificável. Ou seja, ampliam o olhar ao sin-cronizar “nossa visão com as experiências tópicas em outras dimensões”. (KA-CRAUER, 1980) Afinal, o realismo do procedimento fotográfico está na capaci-dade de alcançar a proposta de realidade oferecida, ao alegar a existência pela sugestão e pelo desaparecimento, a imagem fotográfica alcança algo “mais real do que nas próprias coisas e fatos.” (ROUILLÉ, 2009: 303)

2. PATRIMóNIO cUlTURAl

O património cultural tem a sua origem na perceção partilhada do que é a me-mória coletiva por um processo de negociação, entre as memórias de um grupo e as memórias oficiais; na necessidade de conservar testemunhos passados de uma cultura em constante desaparecimento e ressurgimento, diante da passa-gem do tempo e da ultrapassagem da experiência dos indivíduos e gerações. (CABRAL, 2011)

Assim, apesar de uma polissemia de sentidos e intenções, admite-se que o património cultural tem

na sua origem a perceção do tempo que inexoravelmente passa e ultrapassa indivíduos e gerações,

contrapondo-se à angústia decorrente da inevitabilidade do perecimento individual a esperança

de permanência e transmissão intergeracional que o património sugere. (CABRAL, 2011: 30)

No século XVIII as obras de arte tomam o lugar das relíquias do antigo regi-me nos museus, a distinção consciente entre o que deve ou não ser preservado desloca os objetos (apartados da sua funcionalidade original) para um campo de produção de significado. Por volta de 1903 o termo património é substituído pelo termo monumento, que objetivava sugerir que os objetos eram distinguidos pela memória (coletiva) e afirmação de identidade que convocassem. Nos anos 1950 a mudança no paradigma patrimonial incorpora os conjuntos envolven-tes às formas e objetos. “A visão elitista e oficial do património expande-se para incluir os objetos quotidianos, as construções vernaculares e testemunhos mais recentes da atividade humana.” (CABRAL, 2011: 28) Somente no final do século XX a elasticidade da noção de património; a transformação da relação temporal e territorial (global); a emergência de uma lógica de gestão em detrimento da ló-gica de conservação, fazem emergir a noção de património que inclui bens cuja essência é intangível: as práticas, as expressões, as representações e o saber-fa-zer. A Convenção para Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, Decreto n.º 28/2008 de 26 de março de 2008 da UNESCO (http://www.unesco.pt/cgi-bin/cultura/docs/cul_doc.php?idd=16) integra ao património cultural imaterial as re-presentações, expressões, conhecimentos, aptidões, instrumentos, objetos, artefactos, espaços culturais, comunidades e grupos de acordo com a ideia de valorização das prá-ticas e experiências. A gestão do património cultural imaterial legitima portanto

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a revisão constante das bases de valorização dos elementos vivos da cultura, ou seja, sua função social com relação à transformação temporal.

2.1 PATRIMóNIO cOlETIVO

Entende-se que a bagagem cultural corresponda às atividades provenientes de um saber vernacular, ou seja, da capacidade de captação e de relacionar modelos de vivência em cooperação com outras áreas. A subjetivação da cultura comum e os usos que o individuo faz constituem o alicerce do saber-vivo, que por sua vez “não produz nada materialmente palpável.” (GORZ, 2005: 20)

Faz parte do património coletivo o que refere-se ao cultivo de hábitos, costumes, feitios e qualidades

humanas que podem ser apreendidos na vida prática (saber-vivo), no trânsito diário da cultura

comum; que é composto de conhecimento e informações não submetidas a um comando superior, a

leis de objetividade e formalidade; que tem sua riqueza centrada na construção de relações comu-

nicativas. Portanto, baseia-se na transformação de conhecimentos novos em saberes quotidianos e

não na estagnação em conhecimentos aplicados. (GORZ, 2005: 32)

O saber não pode ser medido de forma objetiva e, além do mais, não se sabe precisar no contexto social onde tem início e onde termina a sua produção. A acumulação de conhecimento numa cultura dá-se pela herança de gerações e pela incorporação de elementos de outras culturas. Quanto mais diversificada for a combinação e incorporação dos elementos das outras culturas pelos meios mais variados, mais conhecimento é gerado.

O conceito de ‘história cumulativa’ como foi definido por Lévi-Strauss (1976), diz respeito à probabilidade de determinados conhecimentos acumu-lados implementarem-se de maneira coerente numa mesma direção para pro-duzirem uma combinação favorável à dinâmica de progresso numa sociedade. (HERSCOVICI, 2006) Aliado a este, o conceito de ‘civilização mundial’ (LÉVI--STRAUSS, 1976) tem que a contribuição das diversas culturas humanas na ge-ração de significação e conhecimento indetermina a autoria ou o mérito de tal cultura para a geração de conhecimento.

Quando falamos de civilização mundial, não designamos uma época ou um grupo de homens: temos,

pelo contrário, procurado mostrar que a verdadeira contribuição das culturas não consiste na lista das

suas invenções particulares, mas no desvio diferencial que oferecem entre si. (LÉVI-STRAUSS, 1976: 21)

Ainda sobre o conceito de ‘civilização mundial’ é válido mencionar seu valor não absoluto.

Porque, se a nossa demonstração é válida, não existe nem pode existir uma civilização mundial no

sentido absoluto que damos a este termo, uma vez que a civilização implica a coexistência de cultu-

ras que oferecem entre si a máxima diversidade e consiste mesmo nessa coexistência. A civilização

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mundial só poderia ser coligação, à escala mundial, de culturas que preservassem cada uma a sua

originalidade. (LÉVI-STRAUSS, 1976: 21)

O conhecimento como produto das interações e do ‘comércio universal,’ não se dedica à troca comercial nem pode ser reduzido a uma equivalência. (GORZ, 2005: 32) Já os saberes são adquiridos através de ‘competências’ comuns do quo-tidiano: sua competência é adquirida socialmente e é fruto da prática e das rela-ções interpessoais, do intelecto e cultura geral coletiva. Ambos de certa forma integram aquilo que se chama ‘património cultural.’ (GORZ, 2005: 32) Este bem resultante da atividade inteligente coletiva (do saber-vivo), à partida seria de do-mínio comum e geral: produz riqueza mesmo que não origine algo a ser vendi-do, que não acumule ou detenha propriedade e prioridade.

3. PARTIlhA dO SENSíVEl

Segundo Jacques Rancière (2009) o conceito de ‘partilha do sensível’ não faz men-ção à comunhão de um universo sensível comum, está ligado à noção de um convívio possível; de ocupações e maneiras de ser diversas no espaço social. À divisão entre dominar e ser dominado nas relações impostas pelo capitalismo, subsiste a ideia da invisibilidade social: o trabalhador estaria encarcerado no es-paço/tempo da sua ocupação, já aquele que tem tempo disponível (não trabalho) está apto a partilhar o comum e ser visível num espaço público. Estas relações entre a excecionalidade da atividade Arte e o trabalho ordinário são evocadas no terceiro livro da República de Platão, a respeito do fazedor de mimeses. (RAN-CIÈRE, 2009: 64) Além de ter sido condenado pela falsidade e caráter pernicioso das imagens que propõe, o fazedor de mimeses é também culpado pela duplici-dade da sua atividade. Ao fazer duas coisas ao mesmo tempo (cultura/trabalho) infringe a regra da divisão social do trabalho em que cada qual tem a função “à qual sua natureza o destina,” o artista reparte o sensível “confere ao princípio “privado” do trabalho uma cena pública.” (RANCIÈRE, 2009: 64)

A ‘partilha do sensível’ tem a ver menos com o trabalho concreto na cons-trução social e mais com a possibilidade de relacionar prática e visibilidade no espaço social. O trabalho de produzir a si mesmo pela obtenção, renovação e sincronia de competências e saberes com a atualidade, põe em marcha o proces-so em que as realizações pessoais excedem as individuais. O desenvolvimento das capacidades individuais em prol da coletividade e do reconhecimento da importância que cada ser humano tem para a produção de conhecimento e de bem-estar comum (não material) estaria diretamente relacionado ao conceito de riqueza. (GORZ, 2005)

Ora esta mudança constante das capacidades cognitivas e sociais pressupõe necessariamente

uma forte implicação subjetiva. Não basta que cada um se identifique passivamente com uma ca-

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tegoria, com uma profissão, com um grupo de trabalho, é também necessário que cada um envolva

a sua singularidade, sua identidade pessoal na vida profissional. (LÉVY, 1997: 25)

A duplicidade da mobilização individual e da ética cooperativa são também para Pierre Lévy (1997) o que possibilitaria esfumar a fronteira entre vida pesso-al e desenvolvimento profissional. Os artistas, profissionais ‘qualificados,’ libe-rais e investidores já indiciam este tipo de postura onde a interpenetração entre lazer/cultura/ trabalho geram uma relação de compromisso subjetivo e social global. (LÉVY, 1997: 26) Um ‘espaço do saber’ onde a ‘inteligência coletiva’ e os instrumentos de comunicação unissem forças para construção de intelectos e imaginários coletivos mais do que para gerenciar grandes quantidades de infor-mação, criaria a possibilidade pela difusão, flexibilidade e vitalidade das redes de produção de troca de saberes. Onde “[…] cada um possa referenciar-se a si próprio e reconhecer os outros em função dos interesses, das competências, dos projetos, dos meios, das identidades mútuas no novo espaço.” (LÉVY, 19997: 32)

A terminologia ‘allgemeine’ adotada por Karl Marx (1818-1883) já denomi-nava as potencialidades do género humano de forma geral, no que diz respeito a convocar o talento e o virtuosismo de cada um. (Gorz, 2005: 16) Portanto, ao embutir de saber-cultural comum, de informação e/ou de tecnologia uma com-ponente material pela mobilização das atividades livres (que sejam ou não do campo do trabalho), o consumo passa a centrar-se não no objeto, mas no prota-gonismo humano ou naquilo que depende da herança cultural implícita.

cONclUSãO

Sabe-se que a imagem técnica subverteu os princípios de conceito, produção e economia da imagem. Hoje entretanto (e além disso), todos produzem e parti-lham imagens de suas experiências em relação simultânea com a própria rea-lidade. Assim, a transformação do objeto banal em objeto expositivo redefine constantemente (e temporariamente) a noção de necessidade e valor. Insistir no argumento de que uma obra original tem menos valia do que a apropriação so-cial da sua imagem cabe a estas colocações, com base na ideia de que o valor da imagem não poderia ser medido com base no seu grau de escassez, mas no seu grau de disseminação (valor de exposição).

As criações estéticas, cognitivas, ideias, não são nunca realmente “trocadas”, nem vendidas, pois

aquele que (as) transmite não as perde, não se empobrece em socializa-las; sua “troca” beneficia

todas as partes em questão: elas se enriquecem com suas dádivas. (GORZ, 2005: 54)

A instauração da qualidade reflexiva e do valor patrimonial das pós-fotogra-fias digitais são possíveis por tempo de difusão, reprodução e circulação dentro

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do mercado simbólico, pois que o fotográfico independe do investimento mate-rial e do realismo para a estabelecimento de relação simbólica com a realidade. (ROUILLÉ, 2009) O património imaterial fotográfico fundamentar-se-ia portan-to no princípio de organização da experiência subjetiva para negociação de con-ceitos intersubjetivos e geração de esquemas alternativos e modelos críticos nas construções de relações sociais por meio da partilha digital.

Por um lado temos que o imaterial fotográfico pelo princípio de ‘negociação em transparência’ permite a intuição do artifício fazer-se percetível no próprio meca-nismo de produção. (BOURRIAUD, 2008: 15) Já a lógica imaterial tecnológica do ca-pitalismo recente tem que a acumulação de riqueza e natureza do valor gradativa-mente apoiam-se na proliferação de saber e significação. A instância tautológica fo-tográfica somada à partilha e larga exposição por vias virtuais produz valor cultural imaterial, “na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreen-de, atualiza o reproduzido em cada uma das suas situações.” (BENJAMIN, 2012: 66)

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· BENJAMIN, Walter (2012) Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria Luz

· MOITA, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa, Relógio D’Água Editores.

· BOURRIAUD, Nicolas (2008) Estética Relacional. Buenos Aires, Adriana Hidalgo Editora.

· CABRAL, Clara Bertrand (2011) Património Cultural Imaterial: convenção da UNESCO e seus contextos. Lisboa, Edições 70.

· COTTON, Chalotte (2004) The Photograph as Contemporary Art. London, Thames and Hudson.

· DUBOIS, Philippe (1994) O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas, Papirus.

· GORZ, André (2005) O Imaterial: conhecimento, valor e capital. Tradução de Celso Azzan Júnior. São Paulo, Annablume.

· HERSCOVICI, Alain. (2006) “Conhecimento, capitalismo imaterial e trabalho: alguns elementos de análi-

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· JAMESON, Fredric (1996) Teoria de la postmodernidad. Tradução de Célio Montolío Nicholson y Ramón de

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· LÉVI-STRAUSS, Claude (1976) Raça e História. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

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PROJETO cUlTURAl SARAU NOTURNO: desenvolvendo a Educação Patrimonial através da arte cemiterialcUlTURAl PROJEcT SARAU NOTURNO: developing the

heritage Education through cemeterial art

Clarisse IsmérioUniversidade da Região da Campanha, URCAMP-Bagé

Resumo: O Projeto Sarau Noturno nasceu de uma pesquisa dos túmulos, jazigos e mausoléus no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS. Trata-se de um pro-jeto que aplica e amplia a metodologia da Educação Patrimonial, pois sensibiliza e convida a população a valorizar o patrimônio cultural e perceber que o cemitério é um museu a céu aberto. A cada apresentação o Sarau Noturno destaca a importância histórica e artística do local.

Palavras-chave: Educação Patrimonial. Arte Cemiterial. Patrimônio histórico.

Abstract: This reflection intends to indicate the photography as cultural heritage by social appropriation of information and communication targets, which re-quires a minimum of tangible investment for its effectiveness in a digital sharing era. When considering the vernacular knowledge as the main substance of cur-rent capitalism, seeks to ascertain how the post-photographic logic in the digital can produce qualitative value through the proliferation of the activated meanings.

Keywords: heritage Education. Cemeterial Art. historical heritage.

INTROdUçãO

A preservação da cultura de uma cidade, bem como todo o seu patrimônio, deve ser uma meta de toda comunidade, mas para isso ocorrer é necessário que haja uma conscientização dos grupos sociais para que vejam sua história como seu bem mais precioso.

Para Chartier, o patrimônio pode ser visto como “uma representação social, re-lação estabelecida entre o objeto material ou imaterial presente e algo ausente” (CHAR-TIER, 1991:184). Portanto, o Patrimônio Cultural (material e imaterial) é cons-truído por monumentos, prédios, conjuntos arquitetônicos, obras artísticas e, também, por manifestações e símbolos populares que formam, ao longo do tempo, a identidade do país ou da região, que são especificamente as festas, tra-dições, lendas urbanas, danças e comidas típicas. É uma herança que permanece refletida concretamente ou lembrada no imaginário popular sendo transmitida por gerações.

Preservar a cultura, bem como todo o seu patrimônio é uma meta de to-dos, mas para que isso ocorra, é necessário que haja uma conscientização. A

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conscientização da sociedade é feita por intermédio da educação, ou ainda da educação patrimonial, que segundo Horta:

Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no

Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual

e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações

da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da

Educação patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conheci-

mento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando para melhor usu-

fruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num

processo contínuo de criação cultural (HORTA, 1999:6).

A autora se refere à Educação Patrimonial como um instrumento de alfa-betização cultural, pois possibilita o verdadeiro conhecimento e a apropriação dos valores e significados. Só preservamos aquilo que conhecemos, portanto, é necessário resgatar o patrimônio, educar a sociedade para que esta possa pre-servar e valorizar sua história, pois quem preserva sua história não perde sua identidade. As fontes históricas e todas as riquezas que uma cidade possui deve-rão ser reconhecidas pela sua população, porque são estas pessoas que poderão preservá-las. Mas, só o farão se tiverem noção da importância e reconhecerem do seu patrimônio.

Para isto, torna-se extremamente necessário um trabalho de Educação Pa-trimonial que deverá ser permanente, contínuo e atingir a toda a população em todas as idades, proporcionando um acompanhamento dos órgãos públicos e particulares que estiverem envolvidos com cultura, turismo e educação.

Os projetos de Educação Patrimonial devem ser realizados pelas escolas ou por instituições que desenvolvam atividades culturais, proporcionando às pessoas o contato direto com o patrimônio, para que tenham a oportunidade de observar, de registrar, explorar e, por fim, apropriar-se das informações (HORTA et al,1999).

Cada cidade possui sua riqueza patrimonial, tais como prédios, casas, praças e monumentos, que mesmo fazendo parte do cotidiano de cada morador, são deixados ao acaso. Esse quadro deve ser mudado com a produção de projetos educativos que visem o conhecimento, a valorização e preservação do patrimô-nio. E que permitam que toda a sociedade tenha a oportunidade de se alfabetizar culturalmente. O trabalho pedagógico desenvolvido através da Educação Patri-monial busca reordenar os fragmentos de memória do passado, reconstruindo as identidades e a cultura local contribuindo para o incremento da cidadania. Para Horta este é um:

Trabalho de ativação da memória social, recuperando conexões e tramas perdidas [...] pro-

movendo a apropriação pelas comunidades de sua herança cultural, resgatando ou refor-

çando a auto-estima e a capacidade de identificação dos valores culturais (HORTA, 2000:35).

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A Educação Patrimonial configura-se como um importante instrumento para a formação de cidadãos conscientes e participativos. Possibilita a construção de um novo capital social e de uma mudança significativa na mentalidade regional, pois reordena os fragmentos de memória do passado, reconstruindo as identida-des e a cultura local e, por fim, contribuindo para o exercício da cidadania.

Em 2008, no município de Bagé (Rio Grande do Sul/Brasil), foi desenvolvido o projeto cultura denominado Sarau Noturno, que nasceu do Projeto História por meio da Arte Cemiterial, desenvolvido na Universidade da Região da Campanha (URCAMP), no qual se realizou uma pesquisa sistemática nos túmulos, jazigos e mausoléus no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, fundado em 1958. Por entender que este cemitério caracteriza-se como uma “instituição cultural”, buscou-se desenvolver neste espaço um evento cultural para contar um pouco da história de Bagé e de seu imaginário simbólico, mesclando com passagens e perso-nagens da literatura romântica. Trata-se de um projeto que amplia a metodologia da Educação Patrimonial, pois sensibiliza e convida a população a ver o acervo es-cultórico com “outros olhos” e perceber que o cemitério é um museu a céu aberto. Durante os anos de atuação, de 2008 a 2012, o Sarau Noturno brindou o público com apresentações que destacavam a importância histórica e artística do local.

O presente artigo foi dividido em três partes: primeiramente foi contextuali-zado o cemitério como sendo um espaço cultural; na segunda parte foram apre-sentados os dados referentes ao Cemitério da Santa Casa de Bagé/RS e algumas características de seu acervo escultórico; e, por último, foi proposto o projeto Sarau Noturno atuação e repercussão.

1. A IMPORTâNcIA dOS cEMITéRIOS cOMO ESPAçOS cUlTURAIS

Os cemitérios caracterizam-se por serem o local da última morada dos mortos. Mas hoje são muito mais que isto, pois são provas concretas da opulência econômica e política das cidades. A partir do século XVIII cresceu a preocupação com a estética dos túmulos, jazigos e mausoléus, fruto do gosto peculiar da burguesia ascendente.

A efervescência narcisista, típica da burguesia, levou a nova classe a querer registrar suas

particularidades nos cemitérios, que se tornaram o local propício para: eternizar o indi-

vidualismo do homem, recém valorizado após a morte; romper o anonimato das pessoas

que passam a promover-se, distinguir-se dos demais, adquirir propriedades perpétuas, ca-

bendo aos homens poderosos o melhor quinhão da vida eterna. Esses cemitérios atestam

ainda hoje o alto padrão social das famílias burguesas que se aglomeraram nesse habitat

póstumo (BORGES, 2002:130-131).

Uma característica que se acentua no século XIX, na medida em que os cemi-térios tornam-se locais de perpetuação da imagem das famílias abastadas, como destaca Sousa: “E levanta-se bem alto a honra dos Mortos; ergue-se, assim, a

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pujança dos vivo” (SOUSA, 1995:175-176). Os cemitérios tornaram-se, a partir do século XIX, “uma instituição cultural [...] um sentido de continuidade histórica e raízes sociais” (FRENCH apud ARIÈS, 1982:570 e 579). Muito mais que o último lugar de descanso, passa a ser um museu a céu aberto, repleto de significados e representações que nutrem a imaginação daqueles que o visitam.

Os cemitérios novos tinham-se tornado locais de visita, onde parentes e amigos gostavam

de se recolher junto ao túmulo dos seus mortos. Foi, portanto, preciso adaptá-los a essa fun-

ção e, em conse quência, planejá-los. Criaram-se então dois modelos, bem próximos um do

outro no espírito dos promotores, porém suas diferenças de viam aumentar em seguida, a

ponto de caracterizarem duas grandes áreas culturais. O primeiro, bem conhecido, é o Père-

-Lachaise; o terreno de Mont-Louis tinha sido adquirido em 1803, para substituir o cemité-

rio de Santa Margarida. Naturalmente, ele era então situado fora de Paris, e foi concebido se-

gundo o modelo dos Campos Elíseos, como um jardim inglês ondulado e coberto de bosque,

onde os belos mo numentos estavam envoltos em verdura. Para ali transportaram-se alguns

despojos ilustres, como os que presumivelmente pertenciam a Abelardo e Heloísa; desde o

início, o Père-Lachaise, com os outros cemitérios novos de Montmartre e de Montparnasse,

figurou nos guias de Paris, entre as curiosidades da capital. [...] O segundo modelo é america-

no e posterior, sendo de 1831. Trata-se do Mount Auburn, em Massachusetts. Sua história

era me nos conhecida do que a do Père-Lachaise.[...] Desde os primeiros decénios do século

XIX, os americanos da Nova Inglaterra, tal como os franceses do século XVIII, preocupa-

ram-se com a situação de seus cemitérios, com a indecência das se pulturas e os perigos para

a higiene pública. Particulares reuniram-se para criar cemitérios privados, que escapariam

ao mesmo tempo aos inconvenientes do enterro na propriedade e aos do enterro no cemi-

tério público, um e outro expostos a violações. O cemitério não era, como na França, um

monopólio municipal. Puderam, portanto, cons tituir sociedades civis para criar e gerir o

cemitério como uma non profit institution, garantidas a ordem e a perenidade. Em pouco

tempo, as primeiras reações de decência e de higiene cederam lugar a um grande projeto, o

de transformar a morada dos mortos numa “instituição cultural” para os vivos, que gostas-

sem de visitá-la e ali meditar. (ARIÉS, 1982: 578-579).

Tanto na Europa como nos EUA, os cemitérios perdem gradativamente o seu aspecto mórbido e desolador para tornarem-se um local de convivência e socia-bilidade. Por guardarem os restos mortais de figuras ilustres tornam-se guardi-ões da cultura e da memória de seu povo. Um fator que auxiliou esta visão foi a difusão das ideias positivistas, pois Comte por meio da máxima “os vivos são sempre e cada vez mais governado pelos mortos”, justificava que a memória e os feitos dos heróis e homens notáveis do passado deveria servir de exemplo e inspiração para as futuras gerações.

O mesmo processo ocorreu nos cemitérios brasileiros que formaram, ao longo do tempo, um acervo de grande valor artístico e histórico, sendo estes analisados através das pesquisas de Maria Elizia Borges e Harry Bellomo. Maria Elizia Borges

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(2002) trabalha a arte funerária com a produção dos artistas marmoristas e ateliês de Ribeirão Preto, efetivando a ostentação da sociedade local e as for-mas simbólicas de representação da morte. Já Bellomo (2000), trabalha com as múltiplas tipologias cristãs da arte funerária nos cemitérios do Rio Grande do Sul, destacando que estes se caracterizam como importantes fontes histó-ricas, pois colaboram para a preservação da memória familiar e coletiva; per-mitem o estudo das manifestações e crenças religiosas, das ideias e posturas políticas; mostram os gostos artísticos da sociedade; permitem o conhecimen-to da formação étnica do município e da expectativa de vida da população; além de propiciar o desenvolvimento de estudos genealógicos. Especificamen-te sobre o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé existe a pesquisa de Eliane Bastianello (2010) que estudou os simbolismos, as edificações e orna-mentos funerários deste espaço de memória. O trabalho também destaca a importância do escultor-marmorista José Martinez Lopes na produção local.

Diante da importância e das possibilidades deste tipo, foi iniciado em 2007 o projeto História através da Arte Cemiterial, uma pesquisa cujo objetivo foi refletir a história do município de Bagé por intermédio das representações simbólicas expressas no cemitério local. Caracterizou-se também como uma pesquisa documental, estruturada em fontes primárias bibliográficas, mate-riais e orais. As informações serão levantadas com coletas de dados e sistemati-zadas em três etapas: identificação dos túmulos e mausoléus; registro fotográ-fico e levantamento de informações nos jornais locais.

2. REflETINdO A hISTóRIA dE BAgé ATRAVéS dA ARTE cEMITERIAl

A história da cidade de Bagé inicia com a colonização do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XVII, desde este período em diante foi marcada por tempos de luta e paz. Seu passado que se perpetua nos prédios públicos, nos do-cumentos antigos nos contos e representações do imaginário popular, forman-do ao longo do tempo à autoimagem local (social, política, econômico e cultu-ral) que a difere das demais cidades do Rio Grande do Sul.

A autoimagem da cidade passa a ser estabelecida pelo “imaginário como um siste-ma de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si” (PESAVENTO, 2004:43) dando sentido e identidade à comunidade.

A identidade histórica foi construída por meio das representações e ações do passado, arquétipos e símbolos herdados que estão presentes no cotidiano atual e são reinterpretados pelo imaginário popular, com o objetivo de dar sentido às suas relações e à sua vida, variando conforme o grupo social e ao momento histórico. Assim, tanto a identidade, com o imaginário, são caracterizados como fenômenos coletivos, sociais e históricos. Sobre esta perspectiva Ortiz afirma:

[...] toda identidade é uma construção simbólica (a meu ver necessária), o que elimina

as dúvidas sobre a veracidade do que é produzido. Dito de outra forma não existe uma

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identidade autêntica, mas uma pluralidade de identidades, construídas por diferentes

grupos sociais em diferentes momentos históricos (ORTIZ, 1994:8).

O apogeu econômico de Bagé ocorreu na segunda metade do século XIX, sen-do estimulado pelo ramal ferroviário que ligava Bagé ao porto de Rio Grande, dinamizando o escoamento da produção. O crescimento da economia local foi tanto que, segundo Boucinhas (1993), entre os anos de 1891 a 1940 existiam cin-co charqueadas de grande porte. As charqueadas deste período diferenciavam-se das demais de base escravista por possuírem mão de obra assalariada, utilização de maquinário, condições sanitárias e aprimoramento técnico (SOARES, 2006).

Em 1897, foi fundada por Antônio Nunes de Ribeiro Magalhães a Charquea-da de Santa Thereza, considerada um símbolo da modernização para o período. A modernização impulsionada pelo desenvolvimento das charqueadas propor-cionou melhorias no município, tais como o telefone, cinema, automóvel e fei-ras de exposição (LIEMESZEKI, 1997). Além da construção de prédios públicos e particulares com estilo neoclássico e de suntuosos mausoléus de Mármore de Carrara, produzidos por marmorarias de Montevidéu, Gênova e Porto Alegre.

O município de Bagé construiu seu “projeto civilizador” alicerçado no de-senvolvimento da indústria charqueadora, que proporcionou um crescimento urbano registrado através dos prédios públicos, nas suntuosas casas particulares e na arte cemiterial.

O Cemitério da Santa Casa de Bagé, de 1858, possui um conjunto de túmulos de invejável valor histórico. Em seu acervo estão figuras notórias da sociedade, envolvendo mausoléus de famílias tradicionais e de heróis da Revolução Farrou-pilha e da Guerra do Paraguai (Figura 1)

Fig. 1 - Cemitério público da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS (Bastianello, 2010:47).

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Este cemitério guarda uma parte da história da “rainha da fronteira” que pode ser contada por intermédio de seus vultos históricos, das representações simbólicas e pela releitura promovida pelo imaginário social.

A arte cemiterial revela forte influência do culto ao herói, uma vez que de se-pultura e reverencia a memória de vultos de destaque no mundo político, social e cultural. O culto ao herói era amplamente difundido pela influência positivista, como destaca Silva:

[...] a doutrina positivista exerceu grande influência no culto os heróis, o que justifica o

período do surto da arte cemiterial, como este momento em que os cemitérios passam a

ser os melhores locais de homenagens aos homens que se destacaram na política, cultura

e dentro de suas próprias famílias. O positivismo no Rio Grande do Sul, ao utilizar a arte

funerária como veículo de perpetuação de sua ideologia, teve como objetivo principal

consolidar seus atos para as futuras gerações (SILVA, 2001:14).

Um exemplo no qual se pode observar essa característica é no mausoléu de Antônio de Souza Netto (Figura 2). Segundo Bonés, Netto mandou construir seu mausoléu na Itália, todo em mármore de Carrara, sendo transportado em blocos para Bagé (Bonés,1995:XVIII). Souza Netto participou da Revolução Farroupilha e da Guerra do Paraguai, mas apesar de seu perfil militar é representado icono-graficamente como um herói ilustrado em um brasão em alto relevo no centro do mausoléu. Essa leitura pode ser visualizada através das representações femi-ninas que o acompanham, as alegorias do heroísmo e do saber.

A alegoria destacada a esquerda pode ser interpretada como a musa Clio, que apresenta dois livros fechados, um representado a história da Revolução Far-roupilha e outro a Guerra do Paraguai. A figura feminina ocupa o seu lugar de

Fig. 2 - Mausoléu do General Sousa Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé (Foto de Diones Alves, 2007).

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guardiã da história e da tradição. Ao analisar as representações femininas por meio da arte no Rio Grande do Sul, observa-se que essas contribuíram para a di-vulgação dos preceitos e da moral positivista, cujo objetivo era consolidar junto ao imaginário popular o símbolo de perfeição feminina, inspirada em Clotilde de Vaux, representação da Religião da Humanidade. A mentalidade conservado-ra propiciou a reconstrução de uma simbologia impregnada de valores moralis-tas sobre como deve ria ser a conduta feminina. Existem representações de figu-ras femininas que acompanhavam os grandes vultos políticos ou muitas vezes a sós em estátuas e monumentos, em formas alegóricas, que evidenciavam o dever da mulher de guardiã da moral. Na estatuária, foram ressaltadas somente as virtudes femininas, pois a arte deveria representar uma imagem ideal a ser seguida, cultivando com isso o aperfeiçoamento humano. A utilização da figura feminina como símbolo político era uma herança da Revolução Francesa, que elegeu Mariane o signo máximo da nova ordem. Tornavam públicos símbolos e signos da vida privada, ou seja, da mãe que passa a ser representada pela alegoria da República. (HUNT, 1992)

A representação da figura feminina nos emblemas políticos ressalta o seu papel de guardiã da nova ordem, detentora de uma moral elevada e de atributos que a dignificavam. Era um modelo exemplar da grande mãe-guardiã que deve-ria ser imitado. Outra figura de destaque é o anjo guardião que se encontra em cima do mausoléu do General Netto. Os anjos eram figuras comuns nas sepul-turas de crianças, simbolizando que estes eram “anjos no céu”. No século XIX, passou a ter duas representações sucessivamente, inicialmente como um jovem que representa o anjo da morte e, logo após a forma mais frequente, tornou-se uma figura feminina de formas opulentas (VOVELLE, 1997: 330-331).

Observa-se que no decorrer do tempo os anjos sofreram alterações em sua imagem e atributos, sendo que tais elementos acrescidos são fruto do imaginário

Figura 3: Jazigo de Francisco Ilarregui, Cemitério da Santa Casa de Bagé (Foto de Diones Alves, 2007).

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do popular de cada período. Com o passar do tempo e devido a influência positi-vista foi construído o modelo de anjo feminino, por ser a mulher a consoladora, orientadora e guardiã da sua família. Outro jazigo de destaque é o de Francisco Ilarregui (Figura 3), um imigrante espanhol que prosperou através de atividades ligadas ao comércio. O mausoléu é todo em mármore, representando um templo grego, que ao centro tem o busto de Ilarregui sobre um caixão. Mostra a opulência de um homem que na morte quer ser representado como um herói letrado entre as colunas de sua acrópole particular.

O detalhe central do jazigo reflete sobre o tempo que se esvai, representado pela ampulheta alada, e a certeza da morte, destacada pelas tochas que se apagam. Pode--se observar que o jazigo, simbolicamente, foi feito para preservar e edificar a memó-ria do morto além de propor a ponderar sobre a morte e efemeridade da vida.

Nos cemitérios de todo o mundo é comum encontrar figuras femininas que são representadas como símbolos ou ações humanas. Uma vez que a mulher era consoladora, orientadora e guardiã da sua família. Tais figuras também estão presentes no Cemitério da Santa Casa de Bagé.

Primeiramente, destacam-se as carpideiras que representam o dor e a perda (Fi-gura 4). Eram mulheres pagas para chorar nos velórios e enterros, que com o choro comoviam todos. Essa foi uma das mais antigas profissões femininas, pois foram encontradas referências nas pinturas egípcias (presentes nos hipogeus, túmulos escavados nas encostas de montanhas) e em relatos bíblicos. Atualmente, devido à crise econômica mundial, esta atividade feminina foi retomada na Espanha. A ale-goria da saudade é uma mulher triste que segura uma coroa de flores, pode estar sentada ou debruçada sob o túmulo. Quando aparece abraçada a cruz agregam, tam-bém, a ideia da fé (Figura 5). Pode ainda representar a saudade e a esperança, quando se apresenta com uma estrela na testa (esperança) e olhando para o céu (Figura 6).

Figs. 4, 5 e 6 - (4) Jazigo da Família Riet (Foto de Douglas Lemos de Quadros, 2008); (5) Alegoria da Saudade

(Foto de Douglas Lemos de Quadros); (6) Saudade e esperança (Foto de Diones Alves).

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Fig. 7 - Apresentações do Sarau Noturno (Fotos: Tony Martins e Leko Machado)

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Existem ainda as imagens da Virgem Maria que, segundo o catolicismo, era o grande modelo a ser seguido pelas mulheres de boa índole, pois representa a submissão, pureza e resignação. A imagem em destaque foi inspirada na Pietá de Michelangelo, simbolismo da mãe chorosa que lamenta a perda de um filho que-rido. Apesar das características próprias todas as figuras femininas resumem-se na representação da “viúva eterna” e da “guardiã da moral”, consagradas pelo positivismo. Por meio da arte cemiterial a imagens femininas transformam-se em viúvas eternas que zelam pela memória das famílias ilustres.

Pode-se constatar que o cemitério da Santa casa de Bagé é um museu a céu aberto que guarda a memória de suas famílias e a identidade local. Durante a pesquisa foi constatado que uma grande parte da sociedade bajeense não conhe-cia a história e os significados expressos nos túmulos e mausoléus.

Diante desta constatação foi proposto a organização de um evento cultural que se aproxima da população local, da sua história e da arte cemiterial.

3. PROJETO cUlTURAl SARAU NOTURNO

Após o desenvolvimento das pesquisas voltadas a interpretar a arte cemiterial e a conhecer a historia dos vultos e das famílias locais, foi criado do Projeto Cultu-ral Sarau Noturno, em 2008, para aproximar a população da riqueza presente no Cemitério a Santa Casa de Bagé.

Foi construído um roteiro que inicia no portão central e se desenvolve pelos principais túmulos e mausoléus. As histórias locais são contadas por poetas ro-mânticos e personagens shakespearianos (Figura 7). Tal proposta visa salientar

Fig. 8 - Matéria de capa da Revista Aplauso (Fotos de Leko Machado)

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Fig. 9 - Sarau Noturno Teen (Foto de Tony Martins).

Fig. 10 - Sarau Noturno durante IV Festival Internacional de Cinema na Fronteira.

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a grandeza dos fatos locais. Para tanto, foi necessário um conhecimento prévio na área da literatura universal, uma vez que foi preciso selecionar trechos que pudessem se ajustar ao contexto bajeense.

A proposta de integrar textos da literatura universal com a história local está dentro da perspectiva do pós-modernismo, que busca no passado elementos que ajudem a compor a obra contemporânea. A partir da concepção do ‘ir e vir’, dos símbolos e representações, cria-se uma reconfiguração de atributos e estilos, indo do clássico ao moderno, através da sobreposição de valores culturais reor-denados (LYOTARD,1993). Trata-se de um projeto que desenvolve a metodolo-gia da Educação Patrimonial, em que sensibiliza e convida a população a ver o acervo escultórico do cemitério com “outros olhos”, para entender que os túmu-los e mausoléus são vestígios do passado que registraram a história da cidade.

O trabalho pedagógico desenvolvido através da Educação Patrimonial bus-cou reordenar os fragmentos de memória do passado, reconstruindo as identida-des e a cultura local contribuindo para o incremento da cidadania.

Estão envolvidos com o projeto jovens e adolescentes, dividindo as ativida-des de músicos, atores e pesquisadores totalizando o número de 20 integrantes.

Durante suas apresentações o Sarau Noturno brindou a população de Bagé com música, poesia e história. Foi criada a modalidade de palco, para levar o cemitério a outros públicos, que realizou apresentações no Festival de Teatro de D. Pedrito, no Teatro de Santa Thereza e no Atelier coletivo.

Marcou o cenário da cultura estadual e nacional quando foi matéria de capa da Revista Aplauso (Figura 8), da RBS e do Programa Mais Você (Globo). Além de representar Bagé no site Educa Rede, do MEC.

A proposta do evento está sendo atingida, uma vez que as famílias tradicio-nais da cidade tem apoiado o sarau e estão contribuindo para o desenvolvimen-to da pesquisa. A cada apresentação o Sarau Noturno cresce o número de pesso-as que assistem, tendo uma variação de 60 a 100 pessoas.

Mas o fato que realmente marcou o crescimento do Sarau Noturno foi a par-ceria feita em 2011 com ao projeto Educação e Cidadania, do PROCIBA (Projeto Cidadão Bajeense). Em agosto do mesmo ano, foram desenvolvidas oficinas de Arte na Escola Frei Plácido. Tais oficinas possibilitaram a organização de um novo grupo formado pelos alunos da escola, da faixa etária de 12 a 14 anos (Figu-ra 9). Desta forma houve a possibilidade de montar uma versão mais jovem do evento denominado Sarau Noturno Teen.

Em 2012, ocorreu uma apresentação especial do Sarau Noturno durante IV Festival Internacional de Cinema na Fronteira (Figura 10). Estiveram presentes na apresentação, além do público fiel, cineastas do Brasil, América Latina e Eu-ropa. Acredita-se que projetos como este contribuem para o desenvolvimento da cidade, pois ao promover a alfabetização cultural através do Sarau Noturno, co-labora-se para o processo de formação e o crescimento da autoestima dos alunos. Da mesma forma que, a promoção de tais elementos, são extremamente signifi-cativos para que ocorram mais participação social, equidade e sustentabilidade.

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cONclUSãO

O Sarau Noturno foi fruto de uma pesquisa sistemática desenvolvida nos túmu-los, jazigos e mausoléus do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. A fun-dação do cemitério data de 1858 e com o passar dos anos cresceu e formou um acervo escultórico de grande riqueza e simbolismo, tanto por seu valor artístico como por traduzir a mentalidade e história de uma época na qual a cidade era chamada de “rainha da fronteira”.

Constitui-se, portanto, como um grande “museu a céu aberto” e, com o seu acervo, podemos resgatar a história das famílias tradicionais, a mobilidade so-cial e sua mentalidade, fruto da opulência econômica do município.

Com o entendimento de que este cemitério caracteriza-se como uma “ins-tituição cultural”, buscou-se desenvolver neste espaço um evento cultural, o “Sarau Noturno”, para contar um pouco da história de Bagé e de seu imaginá-rio simbólico mesclando com passagens e personagens da literatura romântica. Trata-se de um projeto que desenvolve a metodologia da Educação Patrimonial, pois sensibiliza e convida a população a ver o acervo escultórico do cemitério com “outros olhos”.

Durante os anos de atuação, de 2008 a 2012, o Sarau Noturno brindou o pú-blico com apresentações que destacavam a importância histórica e artística do local. O resultado da proposta criada em Bagé foi tão positiva que influenciou a criação do Sarau Arte Cemiterial, da cidade de Jahú, São Paulo.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

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ARTE E cOMUNIdAdES: Um Arquivo Poético sobre o EnvelhecimentocOMMUNITy ART: A Poetic Archive on Aging

Constança SaraivaFaculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: As práticas artísticas com comunidades ou Arte e Comunidades, tem pre-cedentes desde que a arte se distanciou dos seus espaços institucionais e do próprio objeto artístico; a partir de novos contextos artísticos, sociais e económicos é possí-vel compreender a sua dupla função artística e social. O projeto Casa/Arquivo, resul-tado de uma residência artística sobre a velhice, é utilizado como caso de estudo e a sua metodologia é relacionada com o conceito de Arquivo Poético.

Palavras-chave: Arte. Comunidades. Arquivo. Património Oral.

Abstract: Art practices with communities or Community Art has precedents since art created a distance from its institutional spaces and from the art object itself; considering the new artistic, social and economic contexts it is possible to under-stand its both artistic and social function. Project House/Archive, the result of an artistic residency about aging, is used as a case study and its methodology is related with the concept of Poetic Archive.

Keywords: Art. Communities. Archive. Oral heritage.

INTROdUçãO

Neste artigo, apresenta-se um percurso da história da arte com comunidades, o contexto artístico, social e económico que lhe deu origem e o seu duplo interesse artístico e social; através deste enquadramento teórico é possível compreender as suas tendências na arte contemporânea. Questiona-se e investiga-se a arte como mediadora numa comunidade, e como os valores gerados em projetos ar-tísticos podem contribuir para a construção da sua identidade e a comunicação da mesma com o mundo exterior.

Discorre-se sobre um estudo de caso — o projeto Casa/Arquivo, resultado de uma residência artística no Centro Social da Sé, um centro de dia para idosos na freguesia da Sé em Alfama, Lisboa, Portugal. O processo de investigação sobre essa comunidade revela-se essencial para alcançar um nível de intimidade com o contexto social, histórico e humano do Centro Social da Sé, o que possibilitou criar uma sensibilidade particular às suas idiossincrasias e comprovarem-se a importância e consequências deste método no processo artístico daqueles que trabalham com comunidades.

A necessidade de documentação neste projeto, levou à construção de um

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arquivo formado pelo conjunto dos vestígios e documentos do processo artís-tico. O material reunido durante um projeto artístico com uma comunidade — memórias, imagens, histórias, sons, filmes, textos, etc., é considerado um ar-quivo experimental de memórias colectivas de uma comunidade em particular. Esta diferente forma de arquivar e de constituir um arquivo, dão origem ao con-ceito de Arquivo Poético. Finalmente, são investigadas as experiências no proje-to Casa/Arquivo em que o seu Arquivo Poético é exposto — a intervenção artís-tica. As fases de experiência, produção e de reação são descritas, e é investigada a capacidade de a arte de comunicar com os participantes e visitantes do projeto de uma forma ininteligível e poética — com um forte impacto emocional.

1. O qUE é ARTE E cOMUNIdAdES?

As práticas artísticas com comunidades, designadas também como Arte e Co-munidades, têm-se multiplicado a partir dos anos noventa do século XX. Têm a influência da arte dos anos sessenta do mesmo século, nomeadamente do Mi-nimalismo e arte Site-specific, movimentos que procuraram o abandono da ga-leria de arte e se distanciaram do objecto artístico; nos anos noventa, dos novos conceitos de arte pública e da consciência do que é um Lugar, em que o artista tem o papel de reaproximar uma comunidade do mesmo, e propõe uma prática artística inclusiva; assim como da Estética Relacional de Nicolas Bourriaud, que defende práticas artísticas cujo objectivo é a esfera das relações inter-humanas, através de projetos que envolvem métodos de trocas sociais, interatividade com o público e processos de comunicação como instrumentos que servem a ligação entre indivíduos e grupos numa experiencia estética.

Os projetos artísticos com comunidades, nascem também na economia capi-talista da atualidade — o aparecimento das novas tecnologias das últimas déca-das, desde a televisão à internet em casa criaram um individualismo crescente e generalizado no mundo ocidental, nas últimas décadas, foram sendo elimina-dos os processos e acontecimentos de cariz comunitário e público nos lugares, os seres humanos têm vindo a ser desencorajados do sentido de comunidade e de participar em atividades da esfera social levando a uma necessidade de re-tornar ao sentido de comunidade que dá espaço a associações que podem soar ingénuas, mas em última instância, são revolucionárias. A ideia ou o sentido de comunidades defende um estilo de vida alternativo ao que se vive atualmente, o filósofo americano Richard Sennet, citado por Gielen (2011, 32), acredita que o sentido de comunidade é a maior oposição à agressiva economia atual, Gielen afirma ainda que a comunidade aponta para a direção da solidariedade entre ge-rações, dentro e fora de bairros ou regiões do mundo, para uma forma de amor para além dos muros da vida privada familiar e Gerard Delanty (2003) conclui que a comunidade está relacionada com o sentimento de pertença.

As práticas artísticas com comunidades podem ser inseridas no que se tem designado como arte pública, no sentido em que lidam com o espaço público

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— um espaço partilhado por todos, ou com questões públicas — partilhadas por todos. Esta partilha relaciona-se, também, com o sentido de comunidade, pelo facto de estas práticas trabalharem sempre sobre algo comum a um grupo de pessoas, seja ele um espaço, uma memória, uma cultura, etc.

Os artistas que trabalham no espaço público e com pessoas que não são o público usual das galerias e dos museus têm um desafio alargado nos seus pro-jetos, o público não é especializado e não está informado sobre o que vai ver ou acontecer, o artista sai de uma zona de conforto para um lugar de risco. O espaço público ou sua comunidade são contextos não controláveis, tornando a prática artística num desfio constante, a comunidade tem as suas próprias idiossincra-sias, histórias, memórias e vontades e processo artístico do artista passa por um constante diálogo com a comunidade no sentido do entendimento e da nego-ciação. A personalidade e problemáticas pessoais do artista são secundarizadas e são trabalhadas as questões, problemáticas e singularidades de cada comuni-dade. Estes artistas, não apresentam imagens ou objetos, mas encontros e ações que os promovem, criando novos tecidos relacionais nas comunidades com que trabalharam. Através dos projetos artísticos com comunidades, procura-se criar, reafirmar ou tornar consciente a identidade do contexto em que se trabalha tornando possível o autoconhecimento e património da comunidade. O artis-ta, através das suas dinâmicas, funciona como um catalisador para a realização das diversas possibilidades de aproximação numa comunidade e para a criação de novas perspectivas sobre a mesma, deste modo alteram os significados dos lugares para aqueles que o usam. Como afirmam Paul De Bruyne e Pascal Gielen (2011, 4), práticas como Arte e Comunidades, são um antídoto para a tendên-cia geral de individualização, e, de um modo geral, desenvolvem-se na criação de afectos alimentando o sentido de comunidade entre apoio, artista, trabalho artístico e público. Qualquer projeto de Arte e Comunidades desenvolve-se de uma forma complexa entre os antípodas das esferas do individual e do Comum. O facto de os objectivos das práticas artística com comunidades serem sociais e eticamente puros, e por estes não serem artísticos por natureza, torna estes pro-jetos extremamente difíceis de qualificar e alvo de críticas por parte do mundo da arte. É necessário ter em conta que as práticas artísticas com comunidades, assim como todas aquelas que acontecem fora dos espaços institucionais da arte, estão vulneráveis a outros tipos de críticas, comentários e reações, a sua multiplicidade requer que estas sejam qualificadas e criticadas tendo em conta uma série de factores aliados às mesmas. De Bruyne, afirma que os conceitos de comunidade e arte só podem ser entendidos no contexto de projetos específicos.

Apesar de várias divergências e discussões sobre a diversidade existente den-tro das práticas artísticas com comunidades, dos cruzamentos destas práticas com disciplinas como a sociologia, antropologia ou a política, é possível verifi-car que todos os artistas que trabalham com comunidades têm uma preocupa-ção em comum: o resgate da relação entre seres humanos, que todos concordam ser essencial na era económica e social em que vivemos atualmente.

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2. PROJETO cASA/ARqUIVO

Casa/Arquivo é o resultado de uma residência artística, entre Outubro e Dezem-bro de 2011, no Centro Social da Sé: um centro de dia para idosos na freguesia da Sé, em Alfama, Lisboa, Portugal. Esta residência artística fez parte de um gru-po de sete diferentes residências artísticas denominado EVA (Exclusão de Valor Acrescentado) inseridas em sete territórios considerados como lugares de ex-clusão social. O projeto EVA foi comissionado pelo Clube Português de Artes e Ideias, associação cultural, pelo programa Escolhas, um programa nacional que visa promover a inclusão social de crianças e jovens, e a residência artística no Centro Social da Sé contou ainda com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, instituição de ação social na qual o centro de dia se insere. O centro de dia da Sé está alojado no Palácio Monte Real em Alfama, os cerca de cem utentes do centro de dia encontram-se no antigo palácio de segunda a sexta-feira, entre as 9h00 e as 18h00, são pessoas das diferentes freguesias vizinhas: Castelo, Santo Estêvão, São Miguel, Sé e Santiago, na sua maioria grandes idosos (idosos com mais de 75 anos) e no centro de dia conversam, jogam dominó, almoçam, lan-cham e participam nas atividades que o centro oferece diariamente.

“Viver um intenso período de investigação” num projeto artístico com co-munidades é um dos conselhos dados pelo cenógrafo Baart Van Nuffelen (2011, 100). O conhecimento profundo da comunidade, e de tudo o que lhe diz respeito, é essencial para que a intervenção artística seja adequada à própria comunidade. Assim, nos primeiros dois meses da residência artística no Centro de Dia da Sé o objectivo foi a conquista da intimidade com os utentes e funcionários do cen-tro de dia. O conhecimento da comunidade foi feito através da participação em várias atividades do Centro como: os almoços e lanches, aulas de ginástica ou dança, as diferentes rotinas dos utentes, os jogos de dominó, o tricô, as entradas e saídas do Centro, o transporte, etc. Também foram estabelecidos contactos com a equipa de funcionários do centro (psicóloga, os funcionários e seu coordena-dor, direção, funcionárias do apoio ao domicilio, etc.) no sentido de conhecer as suas funções e perspectivas do centro e dos idosos.

Verificou-se que alguns dos idosos frequentam o centro de dia de um modo mais silencioso ou passivo, que apesar de não se mostrarem muito sociáveis, sentem-se acompanhados. Nas conversas mantidas com os idosos, foi possível verificar que muitos se sentiam deprimidos antes de frequentarem o centro, a solidão e o isolamento são sentidos por muitos destes idosos que vivem em casas antigas, muitas das quais em situações deploráveis.

Os artistas que trabalham com comunidades têm que gerir e absorver dife-rentes camadas no processo de trabalho: a perspectiva individual sobre a comu-nidade, a perspectiva da comunidade sobre ela própria, a relação criada entre o artista e a comunidade, e as várias camadas de conhecimento inerentes à comu-nidade, como a sua história, memória e relações com o que é externo a ela. A en-fâse destas práticas cuja está no processo, que é exatamente o estágio do projeto

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Fig. 1 - Uma das histórias dos idosos transcrita, Constança Saraiva, 2012

Fig. 2 - As fotografias pessoais partilhadas. Nesta imagem a dona M. mostra

dois retratos: o seu e do seu falecido marido, Constança Saraiva, 2012.

Fig. 3 - Sessão de jogos entre as crianças e os idosos. Constança Saraiva, 2012.

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de conhecimento e diálogo que deve posteriormente determinar a intervenção artística a ser feita a ser feita.

A participação e observação das atividades dos idosos permitiu momentos que permitiram entrar na esfera mais íntima e menos superficial do Centro de Dia. Foi possível descobrir uma camada emocional inerente ao Lugar — o enve-lhecimento e a morte. Foi feita uma investigação sobre a velhice e com o período passado no centro de dia, foi possível concluir que a sociedade olha para a ter-ceira idade como uma espécie de segredo vergonhoso, que não deve ser mencio-nado. A velhice é uma verdade incontornável pela qual todos os seres humanos terão que passar, e que, talvez por ser tão assustadora, seja evitada; todos vamos envelhecer, e contudo, pouco refletimos sobre este fato. Desde o início da huma-nidade que as comunidades olham para os idosos de formas muito diversas: des-de pessoas respeitadas pela sua experiência, ignoradas ou mal tratados pela sua aparente inutilidade; atualmente, apesar de existirem já muitos projetos sociais, como é o caso deste centro de dia, em que as condições físicas e emocionais dos idosos são uma preocupação, existem ainda milhares de idosos em Portugal, em situação de infelicidade e desamparo extremo. A situação dos idosos em Portu-gal é preocupante sobretudo se considerarmos que a população portuguesa está a envelhecer, se as previsões se concretizarem, dentro de cinquenta anos, cerca de um terço da população portuguesa terá mais de sessenta e cinco anos. Neste momento, existem em Portugal, cerca de 1,5 milhões de idosos sendo que apro-ximadamente quatrocentos mil destes vivem completamente sozinhos. Muitos dos idosos em situação de isolamento, são ignorados ou abandonados pela sua própria família.

2.1. AS MEMóRIAS cONTAdAS

Perante a multiplicidade de informação deste contexto, teórica, prática e emo-cional foi alcançado um nível de confiança e de amizade com os idosos, o que permitiu conversas com os idosos direcionadas para temas mais pessoais como: a infância, o amor e a solidão. Durante estas conversas com os idosos e alguns dos funcionários do centro, foi feita a recolha de imagens, histórias, memórias, preocupações, comentários, e foi possível entender que o centro de dia da Sé é um Lugar com histórias incalculáveis, algumas delas reais, outras imaginadas ou confusas, histórias de amor e de desamor, de infâncias longínquas, engra-çadas e comoventes, mas também histórias muito recentes de novas paixões e amizades, juntas, estas histórias formam um arquivo de histórias de pessoas que estão no estágio final das suas vidas. Para além do enorme valor emocional e humano que estas histórias contêm, através destas histórias é também possível percorrer a história de Alfama, da cidade de Lisboa e de Portugal — a educação, valores sociais e familiares de uma geração.

A recolha das histórias foi planeada de forma a ser escrita pelos próprios idosos, a sua caligrafia seria um elemento visual e emocional importante nas

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histórias, no entanto, a maioria dos idosos não sabiam escrever, pertenceram a uma geração que trabalhou na agricultura desde cedo, impossibilitando-os de frequentar a escola; posteriormente, muitos destes idosos fizeram parte do êxo-do rural e foram para Lisboa à procura de emprego nas indústrias. As histórias foram gravadas ao longo de largas horas de conversas e posteriormente transcri-tas (Figura 1). Como Van Nuffelen (2011, 102) afirma, nas práticas artísticas com comunidades é necessário adaptar constantemente os planos às circunstâncias. O progresso e processo do projeto não depende apenas do artista, os participan-tes e comunidade do projeto são factores determinantes e variáveis. Alida Neslo (2011, 113) afirma ainda que “é uma questão de tomar ações sem imaginar dema-siado qual será o resultado final.”

2.2 hISTóRIAS REAIS E fIcTícIAS

Diante do valor e conteúdo surpreendente das histórias partilhadas pelos idosos e por alguns funcionários do centro de dia, foi dado o passo seguinte: a investiga-ção da imaginação dos idosos, partindo do princípio que o desenho, assim como a escrita, era um meio de expressão impossível de utilizar, foi feita outra tentati-va — a criação de histórias fictícias. As histórias ficcionadas, apesar de imagina-das, existiriam sempre dentro do universo imaginário dos idosos, foram solici-tadas na expectativa da revelação de outras realidades e camadas da imaginação e da memória dos participantes. Nos primeiros pedidos efectuados a solicitação foi de imediato derrubada, para os idosos não fazia sentido contar histórias que não as deles, as reais. Para explorar a dualidade realidade/ficção nas histórias foi feito, então, um segundo exercício: através de fotografias anónimas, adquiridas em segunda mão, foi solicitado aos idosos que as relacionassem com as suas his-tórias pessoais. As reações às imagens foram de curiosidade, interesse e empatia. É relevante explicar que foram selecionadas fotografias com as quais os idosos se pudessem identificar: imagens a preto e branco, com paisagens e indivíduos portugueses, que correspondiam a décadas vividas pela geração dos idosos parti-cipantes. A escolha das fotografias revelou-se para alguns idosos divertida e para outros, mais uma vez, obsoleta. Alguns dos idosos preferiram partilhar as suas fotografias pessoais (Figura 2).

Ao considerar a futura apresentação ou exposição destas histórias, surgiu a questão da invasão da privacidade dos idosos. O objectivo não foi expor a pri-vacidade dos idosos nem criar uma exposição documental sobre os mesmos, a intenção foi comunicar o valor emocional e humano dos próprios. Deste modo, as histórias foram, posteriormente apresentadas, de uma forma anónima, e as imagens que as ilustravam eram uma mistura de fotografias pessoais e ficcio-nadas. O conjunto destas histórias seria o inicio da construção de um arquivo poético, um arquivo que comunicasse o valor único destes idosos.

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2.3 A VElhIcE E A INfâNcIA

Ao longo do período da residência artística, a investigação teórica e o processo artístico no centro de dia da Sé levaram a uma reflexão intensa sobre a velhice. Como complemento a esta investigação foi considerado relevante inquirir o que um grupo etário bem distante dos outros pensava em relação à velhice — as crianças. Através da Junta de Freguesia da Sé foi possível localizar uma escola primária na freguesia do centro de dia, na verdade, a escola encontrava-se ape-nas a quatrocentos metros do centro, passados poucos dias, na sala de aula do primeiro ano da Escola da Sé, foi feita uma introdução ao projeto que estava a de-correr no centro de dia da Sé e foi-lhes pedido que desenhassem idosos (o termo utilizado foi velhinhos) e foi-lhes colocada a seguinte pergunta: O que é que queres ser quando fores velhinho? Os desenhos e a pergunta, foram feitos na expectativa de obrigar as crianças a refletir que um dia iriam também atingir a velhice e assim obter a sua perspectiva sobre o tema. Os resultados foram curiosos, diver-tidos e comoventes. As respostas à questão, e descrições de cada criança sobre os respectivos desenhos, foram gravadas e posteriormente transcritas. As res-postas espontâneas e ingénuas das crianças demonstraram um universo onde os idosos têm caras sorridentes com rugas e bengalas, na sua maioria, os idosos representados estão a fazer algum tipo de atividade ou inseridos numa narrativa imaginada pelas crianças, apenas numa pequena minoria dos desenhos é pos-sível observar a expressão de sentimentos como a solidão ou de incapacidades físicas. As perspectivas das crianças foram uma importante contribuição para toda a reflexão sobre a velhice e foram posteriormente apresentadas aos idosos participantes e aos visitantes numa apresentação e exposição.

3. O ARqUIVO POéTIcO

No projeto Casa/Arquivo, o conjunto dos documentos e diversos registos do processo artístico constituem, também, um arquivo, embora estes sejam docu-mentos intencionais, que revelam uma perspectiva do artista e que são criados desde o inicio com a consciência de que serão testemunhos do próprio projeto. É necessário clarificar que, aqui, a perspectiva do artista não é uma perspectiva individual e solitária, mas que a sensibilidade do artista se mistura com as sensi-bilidades, questões e idiossincrasias do Lugar e comunidade com quem o artista trabalha. Deste modo, o arquivo construído ao longo do processo artístico é tam-bém um arquivo da própria comunidade. Por ser um arquivo que tem origem num processo artístico e numa multiplicidade de sensibilidades que pertencem a um lugar ou a uma comunidade é denominado de arquivo poético. Como a de-finição do adjetivo poético indica, é um arquivo que inspira, na sua presença, o espectador ou participante é levado a ter novos pensamentos e emoções rela-cionados com o próprio assunto do arquivo. O arquivo poético distingue-se do conceito de arquivo normal no seu processo de construção e no seu conteúdo, é

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catalisador de novas perspectivas sobre a realidade, e deste modo, o arquivo po-ético aproxima-se da própria definição das práticas artísticas com comunidades; está em permanente construção, não é constituído apenas pelos documentos originais do processo artístico, mas também pela documentação das interven-ções realizadas com os próprios documentos originais, a multiplicação de docu-mentos e ações enriquece o arquivo poético, o que faz com que o arquivo poético seja também a própria prática artística.

A construção de arquivos poéticos tem origem na intenção e capacidade de comunicação inerentes a um artista, o seu objectivo principal é, mais do que a sua conservação, a sua exposição ou apresentação.

4. ENcONTRO dE MEMóRIAS

Através dos desenhos e respostas das crianças da Escola da Sé foi questionado se a situação degradante em que muitos idosos vivem atualmente poderia ser transformada pela educação, não apenas de adultos, como acontecera numa vi-sita guiada ao Centro Social da Sé e numa exposição do arquivo poético numa sala utilizada pela comunidade da freguesia da Sé, mas sobretudo nas gerações mais novas. Se for possível sensibilizar crianças sobre a questão do envelheci-mento, quando estas se tornarem adultos, terão um diferente comportamento em relação aos idosos do seu tempo, foi assim averiguado que resultado teria um encontro entre os idosos e as crianças.

A escola primária e o centro de dia da Sé localizam-se apenas a quatrocentos metros um do outro e até à altura não existia contacto nenhum entre as duas instituições, assim, com o apoio da Junta de Freguesia da Sé, que se mostrou uma parceira essencial durante todo o projeto, da Escola da Sé e do Centro de Dia, foi agendado um encontro entre as crianças da escola que já tinham partici-pado no projeto e alguns dos idosos do centro de dia.

O primeiro passo para uma prática artística com comunidades, é, como afir-mam Lennert e Mannen, (2011, 79) reunir pessoas que se conhecem, ou que têm que lidar com os mesmos assuntos: comunidades, o segundo, é fazer com que as pessoas façam algo juntas. Deste modo, em fevereiro de 2012, foi realizado um encontro no Espaço 22, local da exposição, com os alguns dos idosos do centro de dia e com as crianças da Escola da Sé. O encontro começou com uma curta in-trodução ao projeto, projeção dos vídeos sobre o projeto e uma curta explicação sobre o que se podia ver na exposição, tanto as crianças como os idosos mostra-ram-se orgulhosos ao ver os seus desenhos, fotografias e histórias expostos.

Segundo Simone de Beauvoir (1996), está provado que ao envelhecer, o ser humano recupera memórias da sua infância muito facilmente e que é um pra-zer enorme para um idoso contar repetidamente estas histórias de grande valor emocional. Deste modo, foram selecionadas histórias dos idosos que retratavam a sua infância e foi pedido a algumas das crianças que as lessem em voz alta e as contassem ao público constituído pelos seus colegas e idosos. Este momento

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revelou-se bastante divertido devido ao cariz cómico de algumas das histórias, e também comovente, ao refletir o valor emocional que estava a ter para os idosos, sobretudo para os autores das histórias que ouviram a sua história de infância lida por uma criança.Depois das histórias contadas foi proposta uma sessão de jogos, tinha sido pedido aos idosos para trazerem consigo os jogos de dominó, o jogo mais popular no centro de dia da Sé, e às crianças, um jogo do galo feito por cada um na escola, numa aula de expressão plástica, atividade feita propositada-mente para o encontro. Propôs-se que se misturassem pelas mesas do Espaço 22 para começarem a jogar, durante a sessão de jogos, verificou-se o orgulho sentido pelas crianças ao ensinar o jogo do galo aos idosos, assim como o orgulho e ale-gria sentidos pelos idosos ao ensinar o jogo do dominó às crianças da Escola da Sé.

A pesquisa teórica realizada, fundamenta a existência de uma ligação entre a infância e a velhice, mas não era possível prever a forma como os dois grupos etários iriam reagir um ao outro. Inesperadamente para todas as partes, a tarde passada no Espaço 22 foi muito divertida, comovente e de partilha, verificou--se uma alegria e empatia muito natural entre idosos e crianças, uma ligação única e muito humana entre estes dois grupos etários que têm cerca de sete décadas de distância mas que estão muito próximos um do outro (Figura 3). No encontro foram também apresentadas a diretora do centro de dia da Sé — a Dra. Helena Estrela à diretora da escola da Sé — a professora Sónia Mascarenhas e foi conduzida uma conversa sobre, perante o sucesso do encontro, a possibili-dade de se organizarem mais encontros entre os grupos. Passado mais de um ano sobre este encontro, a Escola da Sé e o Centro Social da Sé já realizaram, de forma independente, isto é, sem o impulso de um artista, mais encontros entre as crianças e idosos.

cONclUSãO

A dupla identidade que as práticas artísticas com comunidades têm entre o mundo da arte e o mundo político e do social levantam questões em relação à efetividade em ambos universos, e por tocarem diferentes contextos para além do artístico, estes projetos geram uma discussão muito relevante. Como Gielen afirma, é questionável a envolvência de assuntos sérios como a exclusão social através destas práticas artísticas que são geralmente projetos temporários, que consequentemente implicam responsabilidades temporárias. Estas práticas artísticas têm o potencial de alterar, não apenas perspectivas sobre a nossa re-alidade, mas também a própria realidade, estas práticas, pouco a pouco, vão al-terando pessoas, as suas perspectivas, realidades, sentido de comunidade e de preocupação com o outro.

Como O’Doherty (1999) afirma, o público da atualidade é ainda, um público que carrega, ainda, o legado da história de arte até ao modernismo e que tem ainda uma ideia muito tradicional do que é arte, é necessário aproximar estes públicos da arte e das novas formas de práticas artísticas.

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Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· VAN DEN HOOGEN, Quirijn Lennert, and Hans van Maanen. “Through Zina’s Eyes.” In: Community Art,

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MUSEOlOgIA E INTEgRAçãO: reflexões sobre as condições de possibilidade na América latinaMuseology and Integration: reflections about the

conditions of possibility in latin America

Daniel Maurício Viana de SouzaUniversidade Federal de Pelotas, UFPel

Resumo: Neste artigo, refletimos sobre as possibilidade de implantação, na Amé-rica Latina, de uma Museologia pautada no paradigma de integração. Parte de uma discussão acerca da questão ambiental hoje, debatendo a relação homem-cultura--natureza, tendo em conta a questão da diversidade cultural. Descrevemos algumas experiências concretas e apontamos para algumas premissas do pensamento de Paulo Freire e García Canclini, apropriadas a essa proposta.

Palavras-chave: Museologia. Integração. América Latina.

Paulo Freire. Néstor García Canclini.

Abstract: In this paper, we reflect about the possibility of deployment in Latin America, a Museology guided in the integration paradigm. Starts of a discussion about the environmental issue today, discussing the relationship between man, na-ture and culture, considering the issue of cultural diversity. We describe some con-crete experiences and highlight some of the assumptions thought of Paulo Freire and García Canclini, appropriate to this proposal.

Keywords: Museology. Integration. Latin America. Paulo Freire. Néstor García Canclini.

INTROdUçãO

A Museologia associada à questão do meio ambiente deve estar comprometida não só com a conservação dos bens naturais/culturais, mas, também, com a prá-tica da difusão da informação, produzida com base em todo o rol de concepções teóricas que subsidiam as ações do dia-a-dia dos museus. Os meios de se traba-lhar essa informação devem respeitar as diferenças apresentadas por cada país, região, ou grupos sociais mais restritos.

São muitos os exemplos de esforços internacionais que tentam trabalhar a consciência mundial quanto aos riscos que ameaçam a preservação do meio ambiente, e, consequentemente, a nossa própria sobrevivência. Os museus, por sua natureza abrangente, devem direcionar-se aos problemas essenciais da hu-manidade, podendo abarcar o amplo espectro de significações da própria rela-ção homem-cultura-natureza, em suas produções no espaço/tempo. O museu, neste sentido, encerra o potencial de representar o homem e todas as suas coisas, implicando na compreensão de que, deve representar também, o próprio meio

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ambiente como locus da realização de tais relações. Em vista desta realidade, há de se destacar a importância de experiências museológicas que trabalham não somente um ou outro aspecto desta relação, mas que se encarreguem de considerar o meio ambiente, os indivíduos, seu território, e demais elementos envolvidos, como agentes que se influenciam mutuamente e interagem na con-formação da própria rede de associações, a partir da, e na qual estão atuando. Em localidades periféricas, especificamente, como é o exemplo da América Latina, torna-se de grande pertinência que os museus assumam definitivamente seu potencial conscientizador, adotando práticas que contemplem os princípios da pluralidade cultural, da liberdade da construção no processo educacional, e da integração homem-meio ambiente (cultura-natureza).

Os museus, independente de sua tipologia temática, podem contribuir so-bremaneira para o desenvolvimento social, na condição de espaços de produção de conhecimento, ao se comprometerem com uma divulgação da informação que considera a realidade em sua inerente complexidade, quebrando com a perspectiva típica da modernidade ocidental, na qual a encaramos a partir de grandes divisões, artificiais, em última instância. Para tanto, a Museologia deve dispor de um repertório teórico-conceitual que possibilite a adoção de práticas até mesmo pedagógicas, no sentido de levar consciência crítica às pessoas, des-pertando-as para problemas que são de responsabilidade de todos.

Tais questões serão tratadas aqui neste trabalho, refletindo sobre a viabili-dade de experiências museológicas que integrem, efetivamente, homem e meio ambiente. Neste sentido, serão expostos alguns exemplos que se desenvolveram em países centrais, porém tendo em vista o objetivo de, a partir da reflexão sobre suas práticas, questionar sobre a possibilidade real de se aplicar tais processos em regiões marginais, como a América Latina, por exemplo. Alguns aspectos fundamentais dentro desta concepção serão aqui observados, tais como, a capa-cidade de posicionamento crítico e o respeito às diferenças. Essas questões são colocadas muito bem por Paulo Freire e Néstor García Canclini, de maneira que, suas perspectivas serão aqui privilegiadas, com intuito de explicitar como po-dem ser mais proveitosamente apropriadas neste “projeto” de Museologia para a América Latina.

1. A qUESTãO dO MEIO AMBIENTE: RElAçõES cOMPlEXAS

Nos dias de hoje, a questão ambiental ocupa espaço privilegiado nos mais diver-sos fóruns e organismos de discussão. Trata-se de uma problemática de contornos, sobretudo políticos, nos quais estão envolvidos grandes interesses de diversas or-dens, não deixando de destacar os de caráter econômico-financeiro. Seria correto afirmar ainda, que em uma escala global, presenciamos desde as últimas décadas do século passado esforços organizados voltados à conscientização das pessoas quanto aos temas relativos, em última instância, à própria qualidade de vida da população (não só humana) do planeta. As conferências sobre meio ambiente

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realizadas pelas Nações Unidas em Estocolmo (1972), Rio de Janeiro (1992) e Kyo-to (1997) são alguns dos exemplos mais representativos deste contexto de clamor internacional à participação sociopolítica das populações, no sentido de que se tomem atitudes que efetivamente possam minimizar o impacto e os danos am-bientais consequentes da nossa própria forma de vida em civilização.

Tal quadro adquiri abrangência sobremaneira amplifica no âmbito das so-ciedades capitalistas avançadas, nas quais as implicações danosas do alto grau de industrialização podem ser identificadas com a busca voraz do lucro decor-rente da exploração inadvertida dos recursos naturais — que há muito já vem dando sinais de escassez e esgotamento. De acordo com Giddens (1991: 99; 112), o advento da modernidade introduziu um novo ‘perfil de risco,’ relativo às ame-aças ecológicas, que por sua vez, são resultado direto do “conhecimento social-mente organizado.” Dessa maneira, o mesmo autor chama a atenção para o fato de que esses riscos ambientais são, assim, institucionalizados, e o mais impor-tante, devem ser entendidos como efeito de um processo complexo e interativo de criação do meio ambiente ou socialização da natureza.

Encontramo-nos, portanto, diante de uma realidade na qual se enfrenta uma verdadeira crise da civilização moderna que exigiria mudanças radicais. Estudio-sos como Löwy (1999: 5) — pegando o exemplo de uma perspectiva de inclinação mais radical — sustentam que é urgente a superação desta lógica de produção e consumo ostensivos, que levam ao desperdício dos recursos naturais e, conse-quentemente, a um vetor acelerado de destruição completa do meio ambiente. Entretanto, acreditamos que um questionamento deve ser feito, para que não caia-mos no terreno ardiloso da tomada superficial de determinadas ideias-chave, que em última instância, permeiam e delineiam a própria forma como nos relaciona-mos socialmente com o mundo; a saber: o que é meio ambiente? Do que, afinal, este conceito trata e a partir de que enquadramento teórico poderíamos sustentar a compreensão das implicações práticas que envolvem sua apropriação?

Longe de pretender oferecer uma única e verdadeira resposta à questão posta neste momento, buscaremos propor uma via possível de compreensão acerca da ideia controversa e paradoxal de meio ambiente — sobretudo quando tomada na forma de um substantivo singular. Por tornarem mais plausíveis as propos-tas de um diálogo múltiplo e plural entre as várias instâncias que compõem o universo diverso das práticas culturais, acreditamos serem mais frutíferas as abordagens que podem ser enquadradas nas propostas de border-crossing, que em última análise, procuram questionar as grandes divisões artificialmente cons-truídas, que são típicas da modernidade ocidental.

De acordo com este prisma, é equivocado pensar a possibilidade de uma natu-reza, e portanto, um meio ambiente, alheio e independente da própria vontade a ação humana e social. Latour, Schwartz e Charvoln (1998: 95; 99; 101; 106), procu-ram demonstrar a provisoriedade da concepção de natureza como figura exterior ao ambiente humano, sem influência alguma da sociedade, de maneira que, “o meio ambiente é um evento histórico recente, que nós construímos,” resultado de

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uma ordenação classificatória passível de ser traduzida em termos de associações de interesses sociais. Devemos adotar como pressuposto, destarte, que ao se falar em perspectivas de integração entre Museologia e questões ambientais, está se considerando todo um rol de problemas sociais essenciais que se desenrolam no interior da própria relação homem-cultura-natureza. Apresentaremos, a seguir, algumas reflexões que acreditamos necessárias para avançar nesta direção.

2. A MUSEOlOgIA E A AMéRIcA lATINA: O cONTEXTO PARA A INTEgRAçãO

Sabemos que o museu constitui um espaço privilegiado de produção de conhe-cimento e difusão de informação. Ao considerarmos essas características, a prá-tica museológica devidamente comprometida com as questões sociais, políticas, ambientais e culturais, possui um papel fundamental no que tange à conscienti-zação da sociedade para questões vitais da vida do ser humano enquanto ser so-cial inserido no contexto global. Para cumprir este papel, no entanto, é impres-cindível que as experiências museológicas estejam atentas e compassadas com as especificidades locais, respeitando, ao mesmo tempo, a diversidade cultural e as diferenças contextuais.

A Museologia, como área de conhecimento pluridisciplinar, procura dar conta atualmente, de análises conjunturais que intentam integralizar a reação homem-cultura-natureza. Contudo, não é mais admissível que sejam tomados, mais do que como parâmetros, às vezes mesmo como única possibilidade, mo-delos e formatos de ação museológica, instituídos segundo a lógica hegemôni-ca das sociedades europeias. De acordo com a argumentação desenvolvida por Scheiner (1998: 2), se os museus não conseguem ter o alcance social desejado para este fim início de milênio, sobretudo em cantões periféricos do planeta, é porque permanecem identificados com a figura do ‘ser privilegiado’ que fala sobre um ‘outro’ a partir de seus próprios valores e concepções morais. Em ou-tras palavras, o ‘museu europeu’ não é o ‘museu africano,’ ou o ‘museu oriental,’ nem tampouco, o ‘museu latino-americano,’ de maneira que, não pode represen-tar as realidades específicas e complexas do mundo não europeu. Atuando sob tais perspectivas, esses museus operam recortes distorcidos destas realidades contra-hegemônicas, impossibilitando que se reconheçam e se sintam represen-tadas nestes discursos museológicos.

Em especial nos museus da América Latina, de fato ainda há um grande défi-cit quanto a efetividade de uma representação autônoma da complexa realidade da região, dificultando sobremaneira, a concretização de uma perspectiva mu-seológica integral. Acreditamos que, de maneira geral, os modelos importados de museu que se observam ainda predominantes nos países latino-americanos, são reflexos de uma forma de pensar e agir mais abrangente e estrutural, que se orienta pelo que Alves Filho (2004: 1) chama de ‘variáveis exógenas,’ ou seja, a dependência do pensamento e da produção de conhecimento a referenciais teóricos e ideológicos importados — sobretudo da Europa. Identificada com a

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história colonial, a dependência cultural a determinantes exógenas traz como principal consequência, segundo o autor, a busca por “ideais abstratos, em detri-mento do voltar-se para o exame dos problemas ‘reais’, endógenos, engendrados no concreto e no vivo das redes de relações sociais locais” (id.).

Ao termos em vista a situação acima esquadrinhada, podemos afirmar que os museus na América Latina têm sido fortemente influenciados por modelos de dependência, tornando-os cada vez mais distantes de grande parcela da po-pulação e das demandas identitária e culturais da região. Cabe-nos questionar, desse modo, quais alternativas são viáveis para a superação deste cenário. O que pode parecer paradoxal é que as possíveis respostas advêm de concepções mu-seológicas experenciadas em países centrais, contudo, nos interessa aqui refletir sobre o potencial encerrado nestas propostas — que serão adiante citadas aqui como exemplo, não cabendo assim, uma análise mais profunda sobre cada uma delas — fundamentalmente, quanto à possibilidade de implementação de uma perspectiva autônoma de uma Museologia de integração latino-americana.

Em diversas partes do globo podemos observar experiências museológicas sustentadas sobre a consciência quanto à importância da inter-relação integral homem-meio ambiente. São exemplos que trabalham a relação natureza-cultu-ra, levando em conta suas consequências na trajetória do homem e no desen-volvimento da vida no planeta. São provas de que o museu trabalhando nessa perspectiva de integração ecológica pode representar as características culturais de contextos diversos, que são fruto das relações de agentes humanos em intera-ção com o meio que os cerca.

Experiência em países como Suécia, França, Holanda, Canadá, Estados Uni-dos, Rússia, dentre outros, são alguns exemplos de como pode se aplicar a ideia de Museologia e integração. Na prática é possível listarmos os exemplos dos ‘museus exploratórios’, sustentados na premissa da educação inclusiva; os ‘ecomuseus’ e ‘museus de comunidade’, que primam pela valorização de identidades de grupos sociais tradicionalmente alijados, levando em conta a patrimonialização de um território; ‘os parques naturais musealizados’, que de certa forma, amplia, ao mesmo tempo em que, dá contornos mais claros a própria ideia de comunidade.

Entretanto, cabe mais uma vez a ressalva, os exemplos aqui referidos são de países economicamente privilegiados. A questão, portanto, é: será possível em-preender essa perspectiva em países periféricos, ou seja, existe possibilidade real de se aplicar tais processos em regiões como a América Latina, por exemplo? A resposta é sem dúvida que sim. Todavia, na tentativa de obter experiências ver-dadeiramente integradoras, devem-se considerar as condições da localidade, isto é, suas peculiaridades, suas tradições, suas potencialidades e limitações. Para tanto, questões fundamentais como a importância da capacidade de se posicio-nar de maneira crítica, respeitando as diferenças e não impondo verdades par-ticulares, não podem ser esquecidas, e mais, devem ser profundamente valori-zadas. Neste sentido, Paulo Freire e Néstor García Canclini são dois autores que têm muito a contribuir com a discussão teórica e a possibilidade de efetivação

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prática deste ‘projeto de Museologia’ para a América Latina. Serão analisados a seguir, alguns aspectos de suas obras, destacando os pontos de convergência com a nossa proposta.

3. PARTIcUlARIdAdES, cRíTIcA E hIBRIdISMO: fREIRE E cANclINI

Apesar de não ser uma obra em que o enfoque seja estritamente relacionado a museus e Museologia, a gama de assuntos trabalhados em “Pedagogia da Es-perança. Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido,” de Paulo Freire, é de suma importância no que tange às possibilidades de concretização de perspec-tivas museológicas integralizadoras. O trabalho educativo pautado no respeito ao educando e suas particularidades — dentre outras propostas — são questões sobre as quais a Museologia deveria se debruçar profundamente, considerando sua potencial contribuição para a prática museológica integral.

Em suas primeiras palavras na referida obra, Paulo Freire destaca a impor-tância da esperança e do sonho na luta do ser humano para fazer do mundo um lugar melhor. Com vista à fundação de um espírito crítico e reflexivo, a esperan-ça opera o papel de uma “necessidade ontológica” (1997: 5), condição prévia para o embate. A esperança, como um atributo abstrato, porém, não deve ser encara-da tão somente como única condição para transformação da realidade, mas sim, ela “necessita da prática para se tornar concretude histórica” (id.).

O ‘educador progressista’ deve assumir o compromisso de desvelar a vital importância da esperança no processo pedagógico, de maneira que ela seja um instrumento para se vencer o que Freire (ibid: 24) chama de ‘situações limites,’ isto é, intempéries que são verdadeiras barreiras encontradas no decorrer de nossa vida pessoal e social. A esperança faz-se necessária para que possamos as-sumir uma condição crítica que nos possibilite fazer uma leitura de mundo con-siderando as razões históricas, sociais e econômicas que explicam tais situações, e que desvelando tais processos, possibilite condições para se encarar a luta pela construção de uma realidade menos desumana.

Freire ao repensar o caminho da concepção daquilo que ele chama de “pedago-gia do oprimido,” nos oferece uma chave para adentrar de forma compreensiva/transformadora, a partir de um saber crítico, nas redes concretas e simbólicas que dão sentido à realidade do momento. O que nos parece muito importante nesta aproximação entre as propostas contidas em Pedagogia da Esperança e a Museolo-gia, é oportunidade de nós sermos chamados à atenção sobre o fundamental papel da crítica na consciência humana. Fundamentalmente, segundo Freire, em ne-nhuma ação humana estamos livres de atitudes imbuídas de carga política, e seria ingênuo pensar que pudéssemos ser de total imparcialidade em nossas decisões e atos. Esse é um aspecto que na Museologia é bastante visível. Qualquer que seja a atividade, documentação, pesquisa, e implementação de exposições, atividades de preservação e conservação, ações educativas, dentre as demais, é sempre reflexo de uma posição que representa determinado interesse ou realidade objetiva.

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É fundamental, dessa maneira, que reconheçamos essa condição do ser hu-mano, para que ao implementar qualquer atividade museológica, educacional ou outra qualquer, saibamos trabalhar de forma a respeitar aqueles aos quais es-tejamos querendo alcançar. Paulo Freire é bastante enfático no que diz respeito a isso, procurando sempre colocar a importância de um trabalho dialético pleno que retire dos ombros do educador o peso da sabedoria suprema, trazendo para a prática pedagógica a perspectiva do educando como ser que também possuí um conhecimento de sua realidade e que o deve trazer para a construção de uma leitura de mundo que não seja unilateral, e dessa forma, repressora. Nesta pers-pectiva, se deve contemplar a contribuição do educando, retirando dele o papel de simples receptor de informações, transformando-o em agente participante de uma lógica dialética, democrática e inclusiva de construção do conhecimento.

Traçando um paralelo entre o pensamento freireano com os discursos do mu-seu contemporâneo, podemos perceber um nítido compasso ideológico, onde a valorização daquele que se busca alcançar como público, ou como personagem da sua representação e de todas as suas coisas, se apresenta como o caminho para a prática de um Museologia integradora. A questão da integração entre homem e seu meio, se torna aqui, em compasso com a perspectiva colocada por Paulo Freire, a expressão plena da tão destacada visão integral dos museus. Ao des-construir a ideia tácita da Modernidade ocidental que considera o sujeito como um ser que vive e atua em compartimentos estanques, abre-se a possibilidade para a implantação de ações museológicas que agreguem conhecimentos diver-sos, baseados no respeito à diversidade e que atentem às necessidades específicas de um dado contexto. Néstor García Canclini em sua obra “Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade,” nos traz uma rica reflexão acerca dos temas referentes ao eixo Tradição/Modernidade/Pós-Modernidade no con-texto da América Latina, que sem dúvida, nos remete à questão fundamental desse trabalho que é pensar as condições de possibilidade de uma Museologia latino-americana integradora. Ao entender por Modernidade toda uma etapa de desenvolvimento que apesar de histórica ainda permanece em curso, Canclini (1998: 10), constata que na realidade falta na América Latina políticas culturais que estejam realmente compassadas com esse discurso.

Essa obra de Canclini é um importante instrumento de reflexão acerca de questões culturais do continente latino-americano, pois trata a própria noção de Modernidade como algo que “nunca chega por completo,” tendo em vista que, as tradições, os costumes primeiros, as raízes dos povos nativos, são muito fortes e representam grande parte dos hábitos das populações desse continente. Essa realidade acaba por configurar um quadro de possibilidades culturais múltiplas e complexas, que leva o autor questionar sobre a forma dúbia em que se apresen-ta, por vezes como uma realidade de total fragmentação entre essas culturas, e ora manifestando um certo caráter de similaridade entre elas.

As perspectivas freireanas, citadas aqui anteriormente, trazem elemen-tos fecundos para se tratar este tipo de realidade, na qual está envolvida a

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problemática acerca de como lhe dar com a diversidade. Neste universo múl-tiplo é fundamental atentar e valorizar a particularidade, para que, a partir de uma posição crítico-reflexiva, tenhamos a capacidade de maximizar as riquezas culturais oferecidas por tamanha diversidade.

Ao longo de seu texto Canclini discorre sobre esse múltiplo universo cul-tural, suas infindáveis relações, discutidas à luz de diversas ciências como a sociologia, comunicação, história da arte, antropologia, dentre outras. Destaca--se, assim, a rede de possibilidades produzidas pelas ‘culturas híbridas,’ que vão permear as diversas atividades humanas e que se configuram na problemática da Modernidade aplicada ao contexto da América Latina, vale ressaltar: cultura erudita X cultura popular de massa; modernismo sem modernização; família-es-cola-educação; processos simbólicos de bens artísticos, etc. Importante destacar que, dentre esta gama de questões contempladas por Canclini, se insere também o papel dos museus e suas coleções. Discute-se o valor simbólico-representacio-nal dos objetos musealizados presentes nas coleções, que devem ou deveriam expressar a realidade híbrida das sociedades latino-americanas, e não somente se prestarem a função cerimonial de celebração do patrimônio.

cONclUSãO

Faz algum tempo, desde as primeiras reuniões internacionais, que discutiram o papel do museu e sua capacidade de ação no contexto que se insere. Considera--se, desde então, o museu atrelado ao conceito da integralidade, quando sua prá-tica está dirigida ao homem como indivíduo e como ser social. Em localidades desfavorecidas economicamente, como é o exemplo da América Latina, torna-se de grande pertinência que tais instituições assumam definitivamente seu po-tencial de integração, adotando práticas que contemplem os princípios da plu-ralidade cultural, da liberdade no processo de construção de conhecimento, e da integração homem-meio ambiente.

Na América Latina, diversos são os exemplos de que é possível implemen-tar uma Museologia pautada no paradigma integral. O Museu Comunitário em Santa Lucía, na Venezuela; a experiência da Vila São Domingo Soriano, no Uruguai; o Ecomuseu de Santa Cruz, no Brasil, são alguns exemplos latino-ame-ricanos de um trabalho museológico permeado pela questão da integração. Há ainda no Brasil e também no México, duas das experiências museológicas mais bem acabadas e exitosas, no sentido de tradução da conscientização e reflexão de comunidades específicas quanto às suas realidades sociais, além de esforço inte-gralizante entre meio ambiente, patrimônio cultural e educação comunitária. Referimo-nos respectivamente aqui ao Ecomuseu de Maranguape e ao Museu local de Pénjamo. Através dessa integração foi possível conscientizar as socieda-des locais quanto aos seus próprios problemas enquanto grupo social, além ain-da de criar um senso organizacional que viabiliza trabalhar na solução para esses problemas, sejam eles econômicos, sociais, educacionais, físicos e ambientais.

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Fica clara aqui a importância do museu como agente de representação dos aspectos referentes ao homem e seu meio, a partir de um prisma de integração. E fica clara, também, a possibilidade de se aplicar tal projeto em regiões perifé-ricas, contudo, desde que se considere suas peculiaridades enquanto realidades em particular. É preciso primar, ainda, pela importância da capacidade de se po-sicionar de maneira crítica, respeitando as diferenças e não impondo verdades particulares — questões que como vimos anteriormente, são colocadas muito bem por Paulo Freire e García Canclini.

Os museus devem procurar integrar em seus discursos e práticas a plurali-dade das ‘culturas híbridas,’ segundo uma postura de construção participativa e dialética, e procurar, dessa forma, vencer o desafio de implementar em regiões desfavorecidas economicamente políticas de incentivo a atividade cultural. O que é perfeitamente viável, também conforme já vimos aqui através de alguns exemplos de experiências concretas. Após toda discussão acerca do papel do mu-seu no mundo contemporâneo, os novos paradigmas da atividade museológica, a complexidade das relações entre os diversos campos do conhecimento, e a prá-tica propriamente dita do discurso teórico, podemos propor como reflexão final (porém não definitiva), a importância do respeito às peculiaridades dos povos, à diversidade cultural, às marcas tradicionais de cada civilização, na construção de um mundo que não reprima a essência criativa e a capacidade de produção de conhecimento do ser humano. É importante que, no atual mundo globalizado, uma Museologia que se pretende integralizadora valorize a particularidade em comunhão com o universal.

Contactar o autor: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· ALVES FILHO, Aluizio, Acerca do modo de produção das ideias na América Latina. www.achegas.com —

Revista de Ciência Política, n. 19, Set./Out, 2004.

· CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. Tradução

Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2a ed. SP: EDUSP, 1998.

· FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 4a ed. SP: Paz e

Terra, 1997.

· GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

· LATOUR, B.; SCHWARTZ, C.; CHARVOLIN, F. Crises dos meios ambientes: desafios às ciências humanas. In:

ARAÚJO, H.R. Tecnociência e cultura: ensaio sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

· LÖWY, MICHAEL. De Marx ao Ecossocialismo In: SADER & GENTILI (orgs.). Pós-Neoliberalismo II — que

Estado para que democracia? Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

· SCHEINER, Tereza. Museologia, Globalismo e diversidade cultural. In: Museologia e Diversidade Cultural

na América Latina e no Caribe. ICOFOM LAM, Cidade do México, México, Subcomitê Regional para a Amé-

rica Latina e Caribe/ICOFOM LAM, p. 143-174, Jun. 1998.

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O PATRIMôNIO cINEMATOgRáfIcO E O gOVERNO dOS hOMENS: as políticas de subjetivação postas em funcionamento nas relações interculturais da contemporaneidadeThE cINEMATIc hERITAgE ANd ThE gOVERNMENT Of MEN: the politics of

subjectivization put into operation in intercultural relations of contemporary

Fábio zanoniInstituto de Educação da Universidade de Lisboa

Resumo: O objetivo geral do presente artigo consiste em problematizar alguns efei-tos da contemporaneidade na fabricação das subjetividades, por meio da análise de narrativas cinematográficas, tomadas como lócus de diferentes políticas de subjeti-vação postas em funcionamento na construção de nossa maneira de nos relacionar conosco e com os outros. Mais especificamente, interessa-nos dimensionar os modos pelos quais nossas narrativas são instrumentos discursivos ligados a fins eminente-mente políticos.

Palavras-chave: Cinema. Foucault. Políticas de Subjetivação.

Abstract: The overall goal of this article is to discuss some effects of contempora-neity in the manufacture of subjectivities through the analysis of film narratives, taken as a locus of different political of subjectivation put into operation in the con-struction of our way of relating to ourselves and others. More specifically, we are interested in scaling the ways in which our narratives are discursive instruments linked to eminently political purposes.

Keywords: Cinema. Foucault. Political of subjectivation.

A guerra começou no mundo pela defesa própria (Giambatista Vico)

Vamos salvar o povo grego dos seus salvadores (Alain Badiou)

O que os últimos acontecimentos políticos na Grécia teriam em comum com fil-mes como Outubro, Os intocáveis e Falcão Negro em Perigo? E, de modo geral, o que o cinema teria a ver com a política atual? Da perspectiva em que nos situamos, não há um real silencioso à espera da tradução dos discursos, mas vocabulários e formulações socialmente espraiados que, uma vez inventados, circulados e legitimados por um conjunto de autoridades, impõem-se como verdadeiros. A verdade que nos importa não é mais aquela pré-existente à revelia dos homens. Entendemos que nosso papel, em meio à voragem da linguagem, aqui, não con-siste em desvelar o ser escondido sob a aparência. O discurso não é, para nós, instrumento de revelação, mas instrumento político de condução dos homens.

O que está em jogo é, justamente, a recusa à lógica de pensamento anco-rada em duas esferas supostamente distintas — a linguagem e o ser — para

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identificá-las completamente. Isso nos obriga a inverter a perspectiva que toma a essência das coisas como fiadora do sentido das palavras e das imagens. Não há algo como um objeto pré-existente que se expressaria por meio das palavras e das imagens; são elas que produzem os objetos, que inventam o ser. Ou, dito de outro modo, os discursos fabricam os objetos supostamente descritos (FOU-CAULT, 2008).

Pensamos e agimos a partir de narrativas. São elas que cultivam um tecido social predisposto a um determinado tipo de intervenção. Nunca são, portanto, supervenientes aos modos de relacionarmo-nos conosco e com os outros. Por isso, se quisermos digladiar contra determinados acontecimentos políticos da contemporaneidade, cumpre voltarmo-nos para as modalidades de enunciação que os tornam fabuláveis e para os tipos de conduta que tais dizeres incitam.

As mais variadas autoridades se arrogam, hoje, o direito de legislar sobre o futuro grego são o exemplo mais bem acabado de uma modalidade de interven-ção só possível a partir de certo diagnóstico. Um tipo de diagnóstico e uma mo-dalidade de intervenção que não se limitam à crise grega, mas que podem ser, sempre, reabilitados, quando se faz necessário gerir, administrar e neutralizar situações de conflito social. O cinema, muito antes da emergência da instabilida-de política que, hoje, vigora na União Europeia, pensou intensamente a respeito do terceiro salvador, a figura que, sem dúvida, vem ditando os caminhos para o pensamento e para a ação da população grega.

Nos idos de 1927, o cinema já tinha inventado a figura do terceiro salvador. Àquela altura, porém, ele ainda não tinha nem o mesmo valor, nem as mesmas funções que desempenha hoje. Quando de seu aparecimento cinematográfico, seu papel já era de gestor. Mas, ele ainda estava longe de gerir agonias econômi-cas e sociais; administrava revoluções. Passemos então ao filme:

Dedicamos este filme ao proletariado de Petersburgo, pai da revolução de Outubro. Por incumbência da comissão do Jubileu da Revolução de Outubro. Junto da Presidente do Comitê Central Executivo da URSS.

O filme Outubro (1927), de Serguei Eisenstein, começa não só com uma de-dicatória, mas também com o nome do mandatário da feitura do filme. Mas há mais: antes de a trama ter início, surge um segundo comunicado: só a Férrea di-reção do Partido Comunista garantirá a vitória das massas populares. De largada, já nos é fornecida duas informações interessantes: primeiro, o tema do filme, a revolução; segundo, o fato de tratar-se de uma revolução já consolidada.

A primeira componente sublinhada parece importante, sobretudo porque é, a partir do tema do conflito social e suas variantes (a guerra, por exemplo), que o problema da montagem do discurso do terceiro salvador ganhará espes-sura dramática. Todos os filmes utilizados na confecção do presente itinerário investigativo põem o conflito social no centro das próprias narrativas. Outubro não é diferente. O filme tem início com a queda da estátua do czar. Mas não pára por aí: assistimos a uma sucessão de brigas e disputas em torno da posse do go-verno formal da União Soviética. Vitória que não se determinará pelo simples

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enfrentamento entre duas forças. Não é a lógica binária que predomina no fil-me, mas a ternária. Nessas sucessivas quedas de braço, não há apenas a mão do proletariado e a do czar, nem apenas a do proletariado e a do governo provisório capitalista, há a intervenção de um terceiro que se apresenta como o único capaz de pôr termo à batalha: o partido bolchevique. Longe das neutralidades e impar-cialidade à que aspiram os juízes, o terceiro está, aqui, abertamente comprome-tido com e engajado em um dos lados em litígio. Não é na figura do juiz que o terceiro se reconhece, mas na figura do salvador.

O segundo ponto sublinhado diz respeito ao fato de nós sabermos: a despeito dos inúmeros conflitos a que iremos assistir, há um vencedor anunciado. Isso significa que não teremos, diante de nós, o relato ordinário da vitimização. Não se tratará de expor as submissões sempre renovadas a que o proletariado se vê submetido, tratar-se-á de descrever a linha ascendente de um triunfo necessário e indelével. Aqui, o dominado é também o dominador atual, é aquele que recons-titui o percurso e as peripécias rumo à acrópole.

No filme de Eisenstein, o tratamento conferido aos antigos dominadores bifurca-se: a via da subtração radical ou a via da desqualificação ética. No primeiro caso, as diferentes figuras dos dominadores sequer ganham as luzes da ribalta. Mesmo em situações de enfrentamento direto, como quando o povo russo é con-frontado com rajadas de metralhadora, o rosto do inimigo não entra em cena; vemos apenas sua metralhadora. Paralelamente a essa operação metonímica, o filme, por vezes, opta pela desqualificação ética, que, aqui, é sinônimo de riso. Em situações de dor ou de desespero, o sorriso de quem presencia ou participa de tal situação, sem padecer dos mesmos infortúnios, serve como o indicador mais evidente da vilania dos dominantes.

Ao sorriso sádico e caricato dos dominadores, seria preciso acrescentar seu isolamento. A caricatura dos dominantes vem sempre arregimentada por uma cláusula de solidão necessária. Eles estão sempre sozinhos ou em pequenos gru-pos: são sempre monádicos ou grupúsculos. Uma das personagens, vilã, respon-sável por cortar a ligação entre o centro e a periferia da cidade (subindo a ponte), está sozinha ao dar o telefonema fatídico. Assinando seus decretos ou vagando pelo enorme palácio abandonado, à moda do que sucederá com a personagem principal do filme Cidadão Kane, o chefe do governo provisório também é enfo-cado em total solidão.

Claro está, o inverso é igualmente verdadeiro. O pólo positivo do filme deve ser sempre quantitativamente expressivo. Os dominados (nesse caso, os futuros dominadores) dançam em grupo, organizam passeatas, invadem juntos ao palá-cio do antigo czar, lideres da oposição revolucionária, mesmo em seus gabine-tes, cercam-se de outras personagens, sem mencionar o fato de que as mulheres recebem um destaque considerável no interior do exército. Numa narrativa em que a vilania é definida pelos seus processos de exclusão, a multidão, ao menos nos primórdios do cinema, não poderia ser senão um signo positivo, já que as-sociado à integração de todos. Não é à toa que, em russo, Bolchevique signifique

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majoritário: que haja muitos lutando contra poucos, ainda que se trate de uma minoria onipotente (onipotência evidenciada pelo castelo do czar), não é ainda, como será um dia, sinal de covardia, mas garantia de união.

Recuássemos até 1916, averiguaríamos de que modo o número nem sempre foi um fator necessariamente positivo. Em Intolerância, de D.W.Griffith, a so-lidão tem posição ambígua. De um lado, como no filme de Eisenstein, a soli-dão é o brasão dos dominadores. Os trabalhadores, ao lado de fora da fábrica, vociferam contra um punhado de guardas contratados pela companhia, que barram a entrada da multidão enfurecida. Desesperado, um dos guardas aban-dona o posto, ligando para o dono da companhia, que atende ao telefone senta-do sozinho numa sala enorme e vazia. Por outro lado, a solidão é apresentada como a condição indispensável para a criação de novos modos de socialização. Afinal, zombado e rejeitado pelos homens, é assim que Jesus Cristo é literalmente descrito. O mesmo Jesus é também ladeado aos pecadores, promotores de festas e orgias. Mas, estar ali, entre os seus futuros devotos, não significa que estes e aquele sejam iguais. Jesus recusa a bebida que lhe é oferecida. Ele, o embaixador de Deus, está, ao mesmo tempo, dentro e fora do grupo. É, pois, permitido que Jesus apareça acompanhado por outras personagens, contanto que não partici-pe das práticas sociais nas quais elas estão envolvidas. Se a solidão é signo de concentração de riqueza, já que apenas a abundância pode dispensar o recurso ao outro, ela é também prova de superioridade ética ante os modelos de sociali-zação vigentes. Os que hoje se encontram sozinhos serão os formadores do con-senso de amanhã. A solidão atual da personagem só é suportada se compensada pelo consenso prometido para uma nova manhã de festa. De todo modo, vemos como a solidão não é ainda sinônimo de impotência, muito menos de vitimiza-ção. O ostracismo social pode ser, igualmente, o resultado de uma decisão ética e política, uma maneira de posicionar-se contra os modos de vida dominantes.

Daí que, no filme de Eisenstein, a solidão não seja vista com favoráveis olhos, já que ela emprenha, em si, a possibilidade de um novo estado de coisas, o que precisamente se quer evitar no filme soviético. Basta lembrarmos de que o final do filme coincide com o final da revolução. Não há depois da revolução. A repo-sição da vilania passada funciona como instrumento de manutenção do consen-so em torno dos benefícios presentes.

Daí também que a citação de outra realidade que não a coletiva não pode-ria ter lugar na ode de Eisenstein. No filme encomendado pelo partido socia-lista, nenhuma personagem ganha contornos individuais, nada sabemos a res-peito da vida privada, familiar ou afetiva dos soldados que pelejam em nome da construção de um mundo melhor, ao passo que o filme americano explora largamente o recurso a individualização, buscando capturar nossa empatia por intermédio da exposição da trajetória individual das personagens que sofrem os efeitos da intolerância, como se nossa identificação com um dos pólos da quere-la aumentasse à medida que expandisse nosso saber a respeito das injustiças que marcamos passos da nossa mãezinha, para usar as palavras do narrador.

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O possessivo e o diminutivo indicam proximidade entre o narrador e a per-sonagem marginalizada. Se não há, no filme americano, nenhum tipo de expli-citação direta dos comandos dos partidos políticos americanos, o diminutivo e o possessivo fazem às vezes do partidão, eliminando, da narrativa, qualquer som-bra de neutralidade ou imparcialidade. Ao depois, o cinema irá esmerar-se em produzir narrativas supostamente apartidárias e apolíticas, mas seguirá criando mecanismos de sedução cada vez mais sofisticados e refinados, para a captura da empatia do espectador, mesmo que de maneira não tematizada. Por isso, o recuo histórico é imprescindível para compreendermos a racionalidade, agora si-lenciosa, que continua a funcionar não apenas nos filmes da contemporanei-dade, mas num conjunto de narrativas que nada tem a ver com o campo da arte, mas que se valem dos mesmos dispositivos na inteligibilização de suas respectivas práticas.

É notório que a dicotomia estanque entre o bem e mal permite, entre muitos efeitos, que a reposição dos mesmos meios antes postos sob o signo do nega-tivo (matar e torturar, por exemplo), sofram uma transformação tal que o que antes despontava como o mal, por excelência, seja reinterpretado à luz de uma metanarrativa colorida de adjetivos positivos. É o que de fato acontece no filme russo. Em diversas cenas, as personagens reproduzem o mesmo comportamento ao qual antes se viam submetidas, com a única diferença de que elas estão auto-rizadas por metanarrativas nobres. As metralhadoras que indicavam a presença dos soldados capitalistas intervêm, em seguida, como solução balsâmica adota-da pelos revolucionários na resolução do conflito social.

E o mais importante: isso se faz de maneira visível. O que devemos pensar sobre o contra-ataque do proletariado aparece escrito em letras maiúsculas. Por via de um duplo canal de enunciação, que intercala o que é visto com a inter-pretação escrita do que vemos, o filme direciona a leitura unívoca da imagem. À medida que assistimos às armas sendo carregadas e preparadas pelo exército Bolchevique, assistimos também ao informe que se segue a cada disparo. Os três tiros são acompanhados por estas três expressões: pela paz, pelo pão, pela terra.

É também o que acontece no filme americano. Pelo menos em parte. No fil-me de Griffith, explicita-se o recurso à metanarrativa. Contudo, ele não é mais utilizado na captura e na manutenção da empatia do espectador. É denunciado como um dos artifícios da intolerância, empregados pelos dominadores. As so-cialites de bom coração, como o próprio narrador as denomina, são recriminadas por separarem o bebê da própria mãe, a protagonista pobre, a despeito das jus-tificativas moralizantes que acompanham os projetos de reforma deste grupo de ricaças. Do mesmo modo, após a condenação do marido da nossa mãezinha, surge o letreiro e nos dá o seu veredicto sobre o sentido da imagem que o filme acabou de nos mostrar: o veredicto — culpado. Justiça universal, olho-por-olho, dente--por-dente, assassinato-por-asassinato.

Portanto, em ambos casos, a metanarrativa é visível. No entanto, elas dife-rem no que diz respeito ao seu sentido e ao seu valor. No primeiro caso, quando

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os ex-dominados, já vitoriosos, contam retrospectivamente os sucessivos passos que os levaram a vitória, o expediente metanarrativo deve ser validado, visto que é a diferença entre as finalidades que sustenta a distinção entre dois mo-delos de sociedades rivais, mesmo diante da identidade patente entre os meios empregados por uma e por outra. Ao contrário, quando o foco da trama con-centra-se nos sucessivos processos de submissão aos quais os dominados estão continuamente expostos, o recurso à metanarrativa assumirá feições negativas, sendo lido como o instrumento de dominação característico dos discursos e das práticas dos dominantes.

Da década de 1930, iremos analisar dois filmes do diretor americano John Ford. O primeiro deles, A Patrulha perdida (1934), tem início com um pequeno informe. Estamos em 1917, na Mesopotâmia. Em plena Grande Guerra, um gru-po de soldados britânicos luta no deserto contra o invisível inimigo árabe, que sem-pre atacava nas sombras, como um fantasma implacável. Logo de início, vemos um soldado britânico a cavalo andando sozinho. Escutamos um tiro. O soldado in-glês cai morto na areia do deserto. As imagens reproduzem o que o informe havia descrito ainda há pouco: os informes já não remetem a uma realidade exterior ao filme, nem visam manifestar uma proximidade entre o narrador e as perso-nagens. Eles veem reforçar o estatuto de realidade a que os filmes agora aspiram.

Exceto por uma única cena ao final do filme, na qual o rosto do inimigo apa-rece coberto por um pano (signo amiúde associado à vergonha, diga-se de passa-gem), os árabes comportam-se como verdadeiros fantasmas. Não vemos sequer a arma deles, como acontecia no filme russo. Ora, como a elipse comanda o modo de ser do inimigo, o filme deixa de poder contar com a desqualificação direta e caricatural na composição do rosto dos vilões. O que cria para si um problema: como arquitetar a oposição entre os dois lados que se enfrentam nas areias do deserto sem o sorriso sádico dos burgueses de Eisenstein?

Inserindo o lado mais forte (o exército inglês) numa situação de vulnera-bilidade e fragilidade extrema, o diretor americano faz com que os projetos de dominação e submissão sejam entendidos e justificados em nome da autodefesa. As grandes violências nos filmes que selecionamos se farão sempre em nome da defesa, nunca em nome do ataque ou da vingança. Em Outubro, a partir de um projeto de tomada de poder, os revolucionários partiam para a briga, invadindo o suntuoso castelo do czar. No filme de Ford, em razão da legítima defesa, o exér-cito inglês apenas reage aos ataques árabes. Enfim, trata-se de subtrair os signos que, eventualmente, revelassem ao espectador a superioridade bélica do exérci-to inglês. Por isso, o castelo é substituído pelo forte abandonado; por isso, não há qualquer citação de realidades espaciais ou temporais outras senão aquelas nas quais a desintegração do exército inglês está em causa: que haja muitos lutando contra poucos, já que, agora, se trata de uma minoria alegadamente impoten-te (impotência expressa pelo forte abandonado e pela inferioridade numérica), tornou-se, diferente do que foi um dia, sinal de covardia. Está criada a oposição entre falsos dominantes e falsos dominados.

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Dizemos covardia porque, afinal de contas, tais fantasmas desalmados estão matando ingleses a troco de nada. O soldado inglês da primeira cena estava a vagar despretensiosamente pelo deserto da Mesopotâmia, como se fosse um tu-rista vestido de farda, quando, subitamente, foi alvejado por forças invisíveis. Em nenhum momento do filme, os soldados ingleses apresentam uma postura ofensiva; em nenhum momento, são os primeiros a atirar. O forte não foi cons-truído por eles. É apenas o refúgio que encontraram para se protegerem dos ataques inimigos. Um forte abandonado, uma diligência (uma espécie de casa móvel), um prédio em ruínas (Falcão Negro em Perigo), a posse de um território funcionará como uma espécie de embaixada provisória para que desapareça, do quadro mental dos espectadores, a ideia de invasão. Se, em A patrulha perdida, ainda não há o discurso da salvação, isso não implica que o diretor americano subscreva a idéia de invasão. Tudo se faz em nome da legítima defesa.

Na ausência do sadismo risonho burguês, além do dispositivo de fragilização de si, recorrer-se-á a uma série de outros recursos a substituírem a vilanização direta do inimigo. O filme de Ford encafifará nas relações entre os membros que compõe a patrulha. Assim, sabemos que, do alto de seus dezenove anos, o solda-do Pearson é um filho querido, um leitor apaixonado de Kipling, alguém que en-trou no exército por mérito próprio. Na cena subsequente, quando o jovem sol-dado for abatido, não lamentaremos tão-somente a morte de um soldado qual-quer, mas a morte de um filho querido, culto e eticamente exemplar. Se a morte dos soldados, numa situação de guerra declarada, não é um problema ético, o mesmo não pode ser dito em relação à morte de um filho ou de um pai de família.

Essas informações acerca do jovem soldado nos são fornecidas numa conver-sa extremamente íntima e afetuosa entre o general e o soldado Pearson. Não so-mente as relações de si para consigo dos soldados ingleses merecem nossa admi-ração, o tipo de vínculo que preside as relações entre a figura de autoridade má-xima da patrulha e seus subordinados é também prova cabal da excelência das regras que estruturam o modo de vida inglês. Mais um motivo para lamentar-mos a morte serial que não perdoará nenhum dos soldados da patrulha perdida.

O mesmo vale para as relações horizontais que costuram a união da patru-lha. O laço entre os soldados não é fruto do dever, mas da amizade. Amizade tão intensa que supera o valor da vida individual. Em uma das muitas cenas de con-fronto entre os solados ingleses e os fantasmas árabes, um dos soldados ingleses, sem qualquer tipo de comando exterior, abandona o forte e, sob uma saraivada contínua de balas, arrisca a própria vida e salva seu companheiro de trincheira.

O afamado No tempo das diligências (1939) é um dos muitos filmes de John Ford, no qual o conflito entre os índios e os novos colonizadores é convidado à baila. A lógica de inversão das posições entre dominantes e dominados segue os protocolos de inteligibilização do filme precedente. Novamente, somos deixa-dos no escuro quando o assunto em questão são os índios e seus modos de rela-ção consigo e com os outros (verticais ou horizontais), ao passo que abundam in-formações sobre os tripulantes da diligência mais notória do cinema americano.

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Outra vez, o ataque aos índios não se faz em nome da expansão do território americano, mas em razão da defesa da diligência (que, por sua vez, é composta por personagens que estavam apenas de passagem, como se fossem turistas per-didos). De novo, inserindo o lado mais forte (os passageiros americanos) numa situação de vulnerabilidade e fragilidade extrema, os índios convertem-se nos dominadores impiedosos e covardes.

Apesar da continuidade entre um filme e outro, há uma inflexão absoluta-mente central na composição da cartilha de inteligibilização do terceiro salva-dor. Como dissemos acima, o ataque aos índios não se faz em nome do projeto de colonização das terras indígenas, mas em razão da defesa da diligência. O que significa que o exército americano não é diretamente dardejado pelos índios. É correto dizer que a intervenção da cavalaria americana se faz em nome da de-fesa, mas é importante notar como não se trata mais da defesa de si, e sim da proteção do outro oprimido. O Jesus, de Griffith, o partido representante do pro-letariado de Eisenstein e a patrulha perdida de Ford eram diretamente atacados. Nos três filmes, as personagens precisa ser atacado, para intervir: pode muito bem entrar no combate em nome da defesa de outrem.

Em 1948, com o filme de Ford, O céu mandou alguém, acompanhamos como a ausência do ataque direto ao terceiro salvador consolida-se. Após a morte da mãe, os três solteirões tornam-se responsáveis pela vida do recém-nascido, que acabaram de encontrar no deserto. Os três cuidam da criança, assumindo o pa-pel dos salvadores que se interpõem entre o bebê indefeso e a indiferença do mundo diante dos recém-chegados.

Em No tempo das diligências, a figura da mulher desamparada já estava presente. Após o anúncio sonoro do ataque indígena, era seu grito de dentro da diligência que autorizava, mesmo indiretamente, a intervenção da cavalaria americana. Mas, a figura do bebê é ainda mais propícia para as dinâmicas que fabricam personagens com pés de barro: é sua figura limite e ideal. Bem pode-ríamos imaginar uma distinta dama que aproveitasse o encontro com os índios sanguinários como ocasião para dar cabo da própria vida. Então, não haveria grito, e poderia inclusive haver — por que não? — uma recusa explícita de ser salva por quem quer que fosse. Ora, ao contrário desta nossa personagem suici-da, o bebê está numa posição de fragilidade sem alternativa. Não existem bebês suicidas. Não existem bebês que manifestem sua divergência em relação à inter-venção alheia. Por isso, o recém-nascido abre pasto verde para as dinâmicas de vitimização e o programa tutelar que as acompanham: a infantilização do outro será uma ferramenta constantemente reabilitada sempre que o gesto interven-tor tiver que ser naturalizado.

Do ponto de vista temático, o filme Rastros de ódio (1956), é apenas mais uma variante do tema predileto de Ford: o conflito entre americanos e índios. Mas, isso só é verdade em partes. O filme em questão introduz um complicador narra-tivo que nos interessa sublinhar. Ao tomar conhecimento que o rancho no qual vive foi alvo de ataques indígenas, o sobrinho adotado pela família americana

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sai em disparada em direção à casa da família, a despeito das advertências do tio experiente, interpretado por John Wayne. A ajuda chegará tarde demais. A famí-lia americana é assassinada. Porém, a sobrinha do cowboy é poupada da chacina e levada como prisioneira. Tem início o resgate. O tio experiente e o sobrinho adotado saem à cata da tribo sanguinária.

À primeira vista, não teríamos nada de novo sob o sol. Agora como antes, o ataque à tribo indígena é levado a cabo em nome da proteção de um terceiro oprimido, expediente inaugurado pelo No tempo das diligências. Contudo, o fil-me introduz um complicador na lógica binária entre dominados e dominantes. Depois de muitos anos de procura, o cowboy e o sobrinho adotado finalmente descobrem o paradeiro da sobrinha. Sobrinha que, pasmem, com o passar do tempo, efetivou-se membro da tribo inimiga.

No primeiro diálogo direto com sua irmã de criação, o sobrinho adotado tenta comunicar-se com ela. Ao menos a princípio, ela demonstra não dominar mais a língua americana. Duas ou três palavras trocadas com o irmão adotivo, e ei-la de volta às origens, em sua língua materna. Assim, as personagens que po-deriam e deveriam fazer parte do lado dominante nunca sofrem o peso da lógica militar. Docilidade e suavidade da lógica pastoral na neutralização deles. Este é o meu povo — diz ela ao irmão. É quando intervém o tio da sobrinha, apontando o revólver em direção à mesma personagem que motivou sua cavalgada transa-tlântica pelo deserto.

Não à toa o sobrinho é adotado, e ainda está aprendendo a ler em inglês. Mas, acima de tudo, não é à toa que ele seja o destinatário da herança do cowboy des-temido (isto é, o destinatário do futuro da nação). A mensagem está dada: o so-brinho adotado que se conduz de acordo com o modo de vida americano, ainda que não tenha sido gerado no seio da família, deve pertencer ao lado dominante. A sobrinha legítima, que passou a se conduzir de acordo com os modos de vida indígena, mesmo sendo americana de nascença, deve ser posta para fora do raio de proteção dos poderosos1. Tanto é assim que a sobrinha só poderá ser reescrita no circuito familiar após deixar de lado o seu modo de ser indígena: a racionali-dade política do terceiro salvador oscila sempre entre a lógica da guerra, para os politicamente indóceis, e o pastorado das consciências, para os possíveis aliados, ou seja, entre a eliminação e a neutralização da alteridade.

Por isso, mesmo que desquitássemos da ideia de que a dor e os infortúnios alheios são realmente a causa das intervenções do terceiro salvador, tal compai-xão não seria suficiente para explicar, a contento, o gesto interventivo; é preciso que o outro vitimizado já seja um duplo no qual os dominantes se reconheçam, ou que, no mínimo, seja um duplo potencial2, capaz de futuramente ser chama-do à norma vigente, caso contrário, a vítima converter-se-ia automaticamente em inimigo: a vitimização é, pois, condição necessária para o gesto de interven-ção, mas não é, por si, suficiente.

O derradeiro trabalho de John Ford aborda um grupo de missionárias ame-ricanas que se dedicam à catequização da população no norte da China. Em

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Rastros de Ódio, a lógica pastoral do terceiro salvador limitava-se ao desfecho da história. Com o filme As sete mulheres (1966), Ford intensifica o problema da direção das consciências. O enredo é todo embalado pela lógica pastoral e suas benesses incontestáveis.

Agora eu sei o que é o mal. Essa é a fala de uma das personagens prisioneiras. O país estrangeiro (o norte da China), o forte provisório no qual se abrigam as mulheres missionárias americanas, a fragilidade feminina, a caricatura do vi-lão (aqui, eles nem sequer falam, grunhem), todas as componentes dos filmes anteriores reaparecem na composição da lógica binária que separa os falsos do-minantes dos falsos dominados, com essa diferença, porém: o elogio à figura do terceiro salvador não se esgota tão-somente na evocação das virtudes da inter-venção do salvador por via da exposição do sofrimento de outrem. Isso está pre-sente. Mas, o fundamental está alhures. O terceiro salvador tem, ainda, o condão de cativar-nos pelo sacrifício de si. Os mocinhos e as mocinhas nunca morrem; sacrificam-se.

E não se trata do sacrifício de qualquer personagem. A personagem que se oferece em sacrifício é médica. Alguém da profissão liberal, fuma, bebe, sustenta opiniões políticas, discursa sobre suas relações sexuais pregressas, em suma, é a representante do processo de modernização em curso nos idos de 1960. Assim, não são as missionárias que dão a vida em nome da coletividade a qual perten-cem. Elas são salvas pelo pacto sacrificial engendrado pela médica. O terceiro salvador não é mais, necessariamente, o revolucionário ou o cowboy com sua lógica belicista. O terceiro salvador foi laicizado.

E não são apenas os estrangeiros que se veem submetidos a um processo de vilanização. A líder das missionárias é tão terrível, fria e impiedosa quanto os gigantes e brutais chineses, que não reconhecem os valores positivos da cate-quese, como os burgueses russos eram cínicos e sádicos, e não reconheciam os valores da revolução do proletariado no filme de Eisenstein.

Da década de 1980 e 1990, dois filmes serão integrados à série temporal que estamos a traçar. Os Intocáveis (1987) e Mississipi em Chamas (1988), dois filmes que conferem destaque à lógica do terceiro salvador. Uma cidade em Guerra. Al Capone controla o milionário mercado de bebidas ilegais e comanda a cida-de de Chicago com punhos de ferro. É quando o terceiro salvador levanta-se e, em nome da defesa dos cidadãos oprimidos, reage ao despotismo do poderoso chefão. Se nos detivermos nas figuras que assumem o papel de salvadoras, de-tectaremos que a posição delas assemelha-se à de Jesus, de Griffith. Elas estão, ao mesmo tempo, dentro e fora dos órgãos formais de poder. As quatro perso-nagens do filme têm relacionamento extremamente problemático com a insti-tuição policial. Eliot Ness não pertence exatamente ao corpo normal da polícia, é antes um agente do tesouro americano. O mesmo vale para Oscar Wallace, o contador que acaba sendo o elemento determinante na condenação de Al Capone, interpretado por Robert de Niro.

Jim Malone faz o papel do policial que, embora desiludido e em vias de se

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aposentar, nunca se dobrou aos ditames dos seus colegas corruptos. No primeiro encontro entre Malone e Eliot Ness, vemos aquele a vagar sozinho pelas ruas, à noite, longe do ninho de cobras que povoa a delegacia de polícia de Chicago. Após uma rápida conversa entre ambos, Eliot Ness é surpreendido pela habi-lidade daquele velho solitário sem nenhum destaque institucional, e decide convidá-lo a compor o grupo de policiais.

Algumas cenas a seguir, George Stone, o último membro dos intocáveis, é escolhido a dedo por Malone e escolhido pelos mesmos critérios, antes não ver-balizados, pelos quais ele mesmo fora eleito por Eliot Ness. Lembremos de uma fala sua que não poderia vir mais a propósito:

Malone: Agora, em quem pode confiar?Ness: Não posso confiar em ninguém.Malone: Essa é a triste verdade.Ness: Então, onde vamos achar ajuda?Malone: Se não quiser pegar uma maçã podre, não procure no cesto. Vá pegar na árvore.

A maçã do cesto representa o objeto que já sofreu a intervenção humana. Por isso, Stone despontará como o pretendente ideal. Por um lado, ele é um exímio atirador (o melhor da academia, diz-nos o filme), por outro, ainda não faz parte do corpo policial oficial. Ou seja, Stone possui as virtudes de um policial sem os vícios próprios daqueles entranhados no jogo institucional: em última instân-cia, trata-se da necessidade do salvador não pertencer à comunidade na qual se desenrola o conflito, que ele seja uma figura estrangeira em relação à população ameaçada (não custa lembrar, ambos, George Stone e Malone, são imigrantes).

Salvo a ida da mãe da menina morta à delegacia (exatamente a mesma cena que reaparecerá em Tropa de Elite, a última versão brasileira do terceiro salva-dor), não há mais qualquer iniciativa ou participação dos oprimidos. A mãe, li-teralmente, delega a missão de contra-ataque ao policial paladino. O desfecho da guerra é decidido entre opressores e salvadores. Em Outubro, os oprimidos, o proletariado, ainda que só pudessem vencer e manter a vitória sob a direção férrea do partido comunista, ainda eram protagonistas da história. No filme de Brian de Palma, eles, os oprimidos, quase não têm existência dramática, ou, quando muito, estão ali para reivindicarem a intervenção do terceiro salvador. Intervenção que se faz ainda mais premente, se nos recordarmos da ineficácia das instituições que supostamente deveriam intervir a favor dos oprimidos. A esmagadora maioria dos policiais de Chicago é ou corrupta ou omissa.

Como não poderia deixar de ser, Al Capone, a figura máxima de autoridade do lado vilanizado, comporta-se cruelmente não apenas com os seus adversá-rios, mas também para com quem compõem o grupo mafioso. A cena do bastão de beisebol é uma entre muitas em que Al Capone solta seus cachorros sobre seus subordinados. O vilão não é mais necessariamente solitário, mas temido

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por aqueles que o rodeiam. Do lado dos policiais paladinos não há qualquer tipo de maus-tratos entre si. Se a hierarquia extremamente rígida e inflexível entre os mafiosos é decidida na bala, os intocáveis estabelecem relações pautadas pela amizade, relações a tal ponto flexíveis, móveis e reversíveis que não sabermos delimitar com clareza qual é a autoridade verdadeira, se o velho lobo que, apesar da maior experiência sobre os trâmites do submundo, detém um baixo cargo na hierarquia institucional, ou, se o jovem idealista ocupa o ápice da pirâmide institucional, não obstante sua parca experiência.

Porém, a criação da aura que cerca os intocáveis não se limita à oposição aos mafiosos. Pense-se na esposa de Kevin Costner. Ela não participa da lógica si-métrica que costura a relação entre os intocáveis. No entanto, que o futuro da cidade esteja em jogo no momento em que ela está ocupada, com a escolha dos papéis de parede da cozinha, não é apresentado como signo de uma sociedade machista e excludente, mas como o eloquente testemunho das maravilhas do espaço privado a que ela está confinada. As opressões perpetradas pelos salvado-res sobre seus membros nunca são feitas com bastões e pancadas, elas são con-vertidas em demandas que devem ter origem no próprio querer da personagem submetida. Em nenhum momento do filme, Eliot Ness surge como autoridade externa que impõe sobre a esposa as fronteiras do círculo familiar; é a própria que assim o deseja (como era o soldado britânico que, sem nenhum comando exterior, lutava para salvar o amigo em perigo; bem como a índia americana do Filme Rastros de ódio não regressava à família pelo medo do revólver do tio, mas pelas palavras do irmão).

O filme Mississipi em Chamas leva a necessidade da presença do terceiro sal-vador ainda mais longe. Comprando policiais, juízes e outros agentes do Estado, Al Capone de fato influenciava indiretamente os rumos da cidade. Mas, havia ainda a separação entre mafiosos e Estado. Como o filme do diretor Alan Parker, essa linha divisória esvai-se. Os representantes do Estado não apenas servem às forças vilanizadas, eles são a origem do racismo que se abate sobre a população negra sulista subjugada. A vinda do salvador estrangeiro é agora ainda mais pre-mente (nenhum dos policiais salvadores vive na cidade).

A despeito da constante violência a qual é submetida, a população negra vive em estado de impotência generalizado. Há uma única cena em que assistimos a uma personagem negra reagir às ofensivas racistas. A bem dizer, duas. Dois fracassos. Em uma delas, um homem negro, de idade avançada, armado, corre para fora da sua casa em chamas. Sem dificuldade nenhuma, é rapidamente de-sarmado. A segunda cena não é nem mesmo um enfrentamento direto entre os negros e os brancos racistas. Trata-se do esforço de um pequeno menino negro para convencer seu colega negro a reconhecer os agressores brancos. Serão os próprios brancos sulistas os responsáveis pela condenação do assassinato dos três rapazes, dois judeus e um negro.

À primeira vista, poder-se-ia concluir que o desenlace favorável aos domi-nados foi o resultado da aliança entre o fortíssimo respaldo institucional do

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policial inexperiente e idealista, interpretado por William Defau, como a agres-sividade e a astúcia do policial experiente, interpretado por Gene Hackman. Nada disso. Um e outro teriam sido absolutamente ineficazes, não fosse a inter-venção da esposa branca de um dos policias sulistas envolvidos no assassinato. O que testemunha como, apesar das inúmeras cenas de violência, a vitória dos salvadores não é obtida pela lógica da espada, mas pela conversão do inimigo: os oprimidos só podem e devem intervir na trama, se sua intervenção coincidir com os objetivos do terceiro salvador (será essa a função simbólica do único ne-gro do exército americano no filme Falcão Negro em Perigo, ser o representante da possibilidade alegadamente universalista de integração).

O que não compromete a legitimidade dos interventores estrangeiros, nem torna o oprimido o protagonista da narrativa. Para que o pastorado possa dar frutos e o oprimido tenha alguma voz, é preciso o suporte beligerante do tercei-ro salvador. Após tomar consciência de que o racismo nada mais é do que uma produção cultural que se internaliza desde os primeiros momentos da infância, como ela nos diz, a mulher do policial racista conta ao policial experiente o local onde estão escondidos os corpos. Em seguida, é brutalmente espancada pelo ma-rido. Ou seja, ela é impotente para sustentar as consequências do seu ato de re-beldia. Em suma, o conflito social vai dos brancos modernos aos brancos atrasa-dos, os negros dominados acompanham tudo sem nunca tomar parte direta no conflito. Uma das últimas cenas do filme é, a esse respeito, lustral. Ao ser final-mente condenado por seus crimes, o chefe da Klu-klux-klan, que é também pro-prietário de uma empresa na qual trabalham homens negros, é levado pelos po-liciais brancos. Os trabalhadores negros, ainda que satisfeitos, apenas observam.

O último filme escolhido para fechar o nosso arco temporal, Falcão negro em perigo (2001), começa como começava Outubro. Com uma citação. Duas, na verdade. Em primeiro lugar, somos informados de que se trata de um filme ba-seado em fato real. A seguir, a citação de um filósofo: apenas os mortos verão o fim da guerra. O filme de Eisenstein era uma encomenda clara do partido, o filme de Ridley Scott é o reflexo da realidade. Aquele era uma imposição do regime em vigor, este é um ditame do real. Mas não é apenas o real que lhe serve de base. Há também o especialista.

Trata-se de uma afirmação antiga. Afirmação que não tem apenas uma for-ma axiomática, mas a de um prognóstico. E a velhice dos dizeres de Platão não está ali à toa. Vendo que a profecia platônica cumpriu-se até os dias de hoje (a guerra tem sido uma constante nas civilizações), ficamos ainda mais conven-cidos de que ela há de cumprir-se ad aeternum. Se, no momento em que Platão escrevia sobre o futuro do mundo era necessário um ato de crença para dar fé aos seus escritos, hoje, guerra após guerra, os efeitos presentes do passado servem automaticamente como profecias futuras. Por isso, a guerra a que iremos assistir só é em parte contextualizável e fruto das condições atuais. Em larga medida, ela é um evento necessário, inscrito na ordem das coisas desde um tempo imemo-rial, um acontecimento que, de tempos em tempos, é trazido novamente pelo

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vento e que não deveria fazer ninguém pedir explicações. Como o eterno (aqui representado pela guerra) detém a primazia na hierarquia dos seres, ele ocupará a esmagadora maioria do filme. Passados quarenta minutos de filme, quando o conflito direto tiver início, não haverá mais um único minuto sem o zunido dos tiros. No entanto, o filme opta por começar pela apresentação da realidade ple-beia e contingente que constitui o presente em que o conflito social está aciden-talmente inserido. De um lado, a apresentação a galope da realidade somaliana. De outro, o discurso desacelerado que orbita em torno do dia-a-dia dos soldados americanos na base militar.

Anos de guerras entre as clãs rivais causaram fome em proporções bíblicas. Trezen-tos mil civis morrem de inanição. Mohamed Farrah Aidid, o mais poderoso dos senhores da guerra, manda na capital Mogadishu. Ele assalta carregamentos de comida vindos de outros países nos Portos. Fome é a arma dele. O mundo Responde. Com a ajuda de vinte mil fuzileiros americanos, a comida é entregue e a ordem restaurada3. Os in-formes continuam. Entre um e outro, nós, os espectadores, víamos imagens da cidade arruinada, casas destruídas, muita poeira, pessoas doentes e tão magras que seus ossos saltavam à flor da pele. Fim dos informes. Passamos aos soldados americanos. Eles estão a sobrevoar o campo de distribuição de comida. Obser-vam a queda-de-braço desesperada entre os próprios somalianos por um saco de comida. É então que surge a autoridade somaliana e abre fogo contra a multidão indefesa. Indignado, um dos soldados americanos, do alto do helicóptero, pede para intervir, mas seu pedido é negado.

As condições de possibilidade para a emergência do terceiro salvador já nos foram dadas. Bem como o filme Mississipi em Chamas, a autoridade responsável pelo governo dos homens somalianos não é apenas ineficiente ou corrupta, é a fonte de todos os seus males. Novamente, os oprimidos são fragilizados e incapa-citados, vivendo numa situação de submissão absoluta. Mais uma vez, a luta se decidirá entre os brancos estrangeiros e os supostos negros dominantes.

A vida dos soldados no quartel general é de cordialidade sem par, muito, muito distante da agressividade reinante entre os clãs somalianos. Aqueles es-tão sempre rindo, lendo, jogando xadrez, tocando violão, desenhando livros para crianças. Pessoas comuns, como eu e você. Ali, a amizade é a única lei que os une. E não apenas os soldados entre si, mas também os soldados e seus comandantes. A uma determinada altura, um dos soldados é flagrado por seu superior imitan-do-o em tom de zombaria. Mas não há aqui qualquer represália, nem quando a autoridade sofre uma afronta direta. Aliás, toda a narrativa será atravessada pelo ideal de simetria entre todos os americanos que compõe o corpo do exército. O lema do exército, repetido ao longo do filme até a exaustão, será justamente o de que ninguém fica para trás4.

Tudo se passa como se não houvesse relações de hierarquia no exército, como se o engajamento nos combates fosse sempre o resultado de uma esco-lha pessoal. Um dos soldados do exército, após o primeiro round da batalha, decide não voltar à luta. O seu superior não o reprime, não o ameaça, exorta-o

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moralmente (o que você fizer agora fará a diferença) e pede-lhe para decidir por si. Já de saída, olhando pelo retrovisor com um olhar paternal, o superior vê, orgu-lhoso, o soldado entrando no carro blindado. Numa outra cena, são os soldados no helicóptero que, literalmente, imploram ao chefe do exército para poderem entrar na arena de guerra. O desejo do soldado americano é agora o motor das dinâmicas do exército, como o desejo da mulher de Eliot Ness em Os Intocáveis respondia pela ausência de participação feminina no espaço público.

Entramos então no calor da batalha. Tudo tem início com um acidente (é como se eles fossem turistas passeando pelos céus africanos, assim como os in-gleses trotavam pelas areias da Índia). Um soldado cai do helicóptero e seus com-panheiros de armas veem-se no dever de defendê-lo. Acontece que um soldado ferido puxa outro. Sem demora, outros soldados vão sendo atingidos. Sem de-mora, mais soldados americanos surgem para prestar socorro aos que acabaram de ser feridos e assim sucessivamente. O ciclo vicioso está instalado. De súbito, todo o contingente do exército disponível está em terras somalianas. O que co-meçou com a defesa do outro pode continuar eternamente por intermédio do ar-gumento da defesa de si (é sempre possível pôr em cena mais um soldado ameri-cano em perigo, o que significa mais dois ou três helicópteros americanos, mais trinta ou quarenta soldados em terra. Não sabemos se a guerra começou pela de-fesa própria, como sugere Giambatista Vico. Sabemos que a guerra pode não ter fim em nome da defesa própria). Repetidas vezes, antes de abrir fogo contra os africanos, os soldados literalmente verbalizam para si e para os colegas as regras de combate expressa pelo comandante geral: ninguém atira até atirarem primeiro (na única cena em que os civis são vítimas do enfrentamento entre os exércitos, os somalianos são os carrascos. É o soldado somaliano que dispara loucamente sobre a casa dos seus concidadãos).

Como a situação de fragilidade foi montada, peça por peça, os soldados, mes-mo cumprindo as regras à risca, poderão atirar à vontade. No lugar do informe explicativo que líamos no filme de Eisenstein a cada bala disparada pelo exército revolucionário, temos aqui um zunido de bala ininterrupto cuja finalidade con-siste em possibilitar que os ataques americanos sejam sempre feitos em nome da legitima defesa, mesmo na ausência explícita do inimigo. Essa lógica da auto-defesa atinge o cúmulo quando nos lembrarmos de que todos os esforços decla-rados do exército americano, uma vez iniciado o conflito direto, têm a ver com a retirada dos soldados americanos das terras somalianas. Eles querem sair a todo custo, são impedidos pelos africanos cujo cerco implacável os obrigam a reagir.

Em nome do fim da dominação, os proletários russos, na própria Rússia, lu-tavam contra uma minoria poderosa. Em Falcão negro em perigo, os dominantes assumem o papel dos oprimidos, já que eles não estão mais cercados pelas mu-ralhas do palácio real, símbolo manifesto do poder, mas acantonados nas ruas, vielas e prédios abandonados de uma cidade estrangeira. O palácio do Czar es-cancarava como, apesar da desvantagem numérica, alguns poucos detinham o poder de decisão sobre muitos. Passados setenta e quatro anos do lançamento de

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Outubro, os dominantes abandonaram os palácios. O que de maneira nenhuma lhes subtraiu o poder. Muito pelo contrário. Conquistaram ainda mais poder, camuflando-o numa fragilidade montada.

Justamente o que falta aos africanos. Sofisticação nos protocolos de legiti-mação da dominação que exercem. Os bárbaros africanos matam pelo gosto da guerra, é uma escolha existencial. É o que diz um dos soldados africanos ao soldado americano capturado (vocês todos terão vidas longas, chatas e desin-teressantes). Para piorar a situação, tais vampiros negros, em sua sede de san-gue, não matam apenas soldados, matam pais de família, filhos (antes do der-radeiro suspiro, todos os soldados disparam lembranças à mãe ou aos filhos.

Na hora da morte, por baixo da farda oficial, ficamos a conhecer a verdade interior, doméstica e pacífica dos soldados americanos. O único soldado/pai morto somaliano é morto pelo próprio filho). Às mortes relâmpagos dos africa-nos opõem-se a agonia e os longos estertores dos soldados americanos abatidos. Nunca acompanhamos o sofrimento dos vilões, ao passo que, por diversas vezes, o sofrimento dos soldados americanos é largamente explorado. Os helicópteros atingidos a sangrar fumaça ocupam muito mais tempo na narrativa que todos os africanos mortos juntos. O processo de captura de nossa identificação mostra--se, pois, a céu aberto.

De alto a baixo, o exército americano é composto por figuras exemplares. O exército é uma verdadeira floresta tropical de heróis. Dessa flora inesgotável, duas personagens ganham lugar ao sol. São personagens que não apenas devem ter uma conduta exemplar aos olhos dos espectadores, mas a quem os solda-dos pedem conselhos ou são aconselhados. Interpretado por Tom Sizemore, o soldado McKnight é o apanágio do destemor. Ao contrário dos outros soldados americanos, ele nunca se posiciona defensivamente, nunca recua, caminha em campo aberto de maneira ereta e tranquila, mesmo nos momentos em que a chuva de balas cobre totalmente o céu africano. Porém, ele tampouco avança vo-razmente sobre os inimigos. Ele nunca é sádico como os burgueses de Outubro. É apenas um profissional sério cumprindo o seu dever. Ora, a ausência do sorriso estampado no rosto do herói está aí para provar que não há nenhuma vontade de matar (a única vontade é a de defender os oprimidos e a si mesmo). Contudo, o tiro sai pela culatra, já que, a nossos olhos, a substituição da maldade risonha pela indiferença profissionalizada não pode ser entendida como o sinal da me-lhoria dos ideais reguladores ofertados para nós, hoje, na contemporaneidade, mas como o testemunho da banalização do mal e da despolitização dos conflitos sociais (ARENDT, 1999). Alguns anos após o filme Falcão Negro em Perigo, Eric Bana interpretará o herói dos heróis, o valente Heitor, em Troia (2004). Aqui, ele é ainda o soldado Hoot. Da mesma forma que seu companheiro de armas, inter-pretado por Tom Sizemore, o soldado Hoot também não tem fome de guerra, é calmo, comedido, um homem de poucas palavras, nunca o vemos embeiçado ao menor sinal de guerra, à moda dos africanos. Digo poucas palavras, porque, nas raras vezes em que fala, Hoot assume um tom professoral.

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Soldado Eversmann: Acha que a gente devia se meter?Soldado Hoot: Quer saber o que eu acho? Não me importa o que estou pensando agora. Assim que a primeira bala passar de raspão pela sua ca-beça, políticos e toda essa besteirada vão voar janela abaixo.

Hoot, o soldado que encarna os tiques do cowboy destemido e solitário, anuncia o que se irá passar em poucos minutos, bem como o comportamento que se espera do espectador. Quando o troca-troca de tiros começar, nada de po-lítica. O mesmo soldado Eversmann, algumas cenas anteriores, já tinha dado o pontapé inicial ao processo de despolitização da guerra.

Soldado Eversmann: Tem duas coisas que a gente pode fazer. A gente ajuda ou senta e assiste o país se destruindo pela televisão.

Já havíamos aprendido com o cowboy que a guerra e a política não se deve-riam misturar. Agora, com a fala do soldado galã interpretado por Josh Hartnett, aprendemos: a guerra sequer deveria ser discutida, senão pelos soldados america-nos, ou, o que dá no mesmo, nós, quem assistimos à guerra pela televisão, não te-mos o direito de tecer qualquer consideração sobre a validade da intervenção ame-ricana, já que, obrigatoriamente, somos os espectadores passivos denunciados pela boca do soldado (diga-se de passagem, considerado idealista por seus pares).

Para guilhotinar toda e qualquer discussão a respeito da validade da inter-venção do exército, o filme não se contenta nem com a citação afamada de Pla-tão, nem com esses dois diálogos, vai além, impondo o argumento da naturaliza-ção na boca do inimigo africano. Por incrível que pareça, os somalianos, mesmo sem universidades ou escolas, mesmo vivendo em ruínas, são imensamente mais afinados com a filosofia platônica do que os americanos. Daí porque o sol-dado africano pode dizer:

Soldado: Nós sabemos que sem vitoria não pode haver paz. Sempre have-rá matança, entende? É assim que são as coisas. No mundo todo.

Enquanto o soldado somaliano, mesmo indiretamente, eximia o terceiro

salvador da responsabilidade pela guerra, dois outros soldados, ainda que em silêncio, permaneciam ao seu lado. Os vilões à antiga apareciam quase sempre sozinhos e a multidão era o símbolo maior dos oprimidos. De agora em diante, a solidão não pertencerá mais nem aos oprimidos, nem aos opressores. A soli-dão é sempre um mal, mesmo para os vilões (o antigo marginalizado fundador de novas paisagens existências sumiu do mapa cinematográfico). Vide o gene-ral somaliano preso no início do filme pelas forças americanas. A solidão não é

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eletiva, não é sinônimo de poder, ele não está só num palácio ou num castelo, está na cadeia. A oposição não é mais entre a solidão dos dominantes versus a união dos dominados, mas entre multiplicidades coesas e grupos desorganiza-dos, entre o consenso e o caos5. Começamos com a narrativa de uma vitória e terminamos com a de uma derrota. O exército americano não toma a cidade. Em Outubro, o proletariado era o último a permanecer em pé no ringue das lu-tas sociais. Não se tratava ainda da lógica da vitimização. Lógica que comandou, mesmo silenciosamente, todo o filme americano Falcão Negro em Perigo. O que nos ensina duas coisas. Os poderes, quando imberbes, como era o caso do partido socialista, tendem a lançar mão de narrativas laudatórias a respeito de si. Já os poderes consolidados estão de tal modo seguros de si que podem inclusive decla-rar a própria derrota e, dessa feita, legitimar ainda mais sua expansão de poder pelo argumento constantemente reposto da defesa de si. Via de regra, quanto mais conservador e imperialista o objetivo político da narrativa, maior o lugar da vitimização dos dominantes. Em maior ou menor grau, todos os poderosos das narrativas analisadas possuem um viés derrotista claro.

Nos primeiros passos do cinema, o terceiro salvador não só intervinha a favor do oprimido, ele tinha em mãos o poder resolutivo do conflito. Sem ele, a luta seria vã. Mas, o oprimido estava lá, mesmo que sob sua direção. Virada a página do século XXI, a presença do terceiro salvador nos conflitos sociais manteve-se como dado necessário, só que o oprimido deixou de tomar parte nos acontecimentos nos quais se joga o seu destino. Antes, o partido tentava nos convencer de que nada poderia ser feito sem sua direção férrea. Agora, mesmo implicitamente, mesmo sem nenhum tipo de comando direto, os filmes tentam nos persuadir de que as intervenções não são mais diretivas e impositivas, já que elas se fazem em nosso nome e, por isso, sem necessidade de nossa participação. Quanto mais as personagens iam sendo apresentadas como livres (leia-se livre da direção dos órgãos formais de poder, à moda do partido socialista), mais elas iam sendo evacuadas das narrativas.

Certamente, não assistimos mais a informes de partidos políticos no início do filme nos dizendo como pensar e agir ou descrições que evidenciam a tomada de partido do narrador em favor de uma personagem. O tempo dos diminutivos e dos possessivos chegou ao fim. Isso não implica que as narrativas cinematográficas dei-xaram de ser políticas. Nossa aposta é que elas são hoje ainda mais importantes para o governo dos homens. Se antes éramos governados pelo medo da autoridade apre-sentada no prólogo da narrativa, agora nos tornamos cúmplices dos poderes que nos submetem. O auge do poder de uma narrativa acontece sempre quando ela se pre-tende baseada em fatos reais. Sobretudo se o tema é a guerra e suas atrocidades. Daí, então, é que nos sentimos ainda mais vilões ao fazermos do suposto real um discurso entre outros, uma realidade enunciativa que pode e deve ser submetido à auscultação de sua montagem e dos objetivos políticos que tal arquitetura de signos transporta no seu interior. O adjetivo real tem esse poder: fazer com que nos pareça eticamente desa-conselhável o questionamento de certas enunciações (FOUCAULT, 1996).

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Podemos afirmar ditirambicamente que, ao fim e ao cabo de nosso pequeno percurso investigativo, uma coisa é certa: mesmo os mais conservadores repre-sentantes do terceiro salvador deixaram de operar a partir da cartilha de inteligi-bilização empregada pela lógica da soberania (FOUCAULT, 1987). Hoje, mesmo o exército fala e intervém sobre a nossa conduta em nome da nossa liberdade e da nossa autonomia. Quiçá, a tarefa política mais urgente na contemporaneida-de seja mesmo a de salvar o mundo dos seus salvadores.

Contactar o autor: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

· BADIOU, Alain. Vamos salvar o povo grego dos seus salvadores. Revista Alètheia, 2012.

· DE PALMA, Brian. Os Intocáveis, 1987.

· EISENSTEIN, Sergei. Outubro, 1927.

· FORD, John. 1934. A Patrulha perdida, 1934.

______. No tempo das diligências, 1939.

______. O céu mandou alguém, 1948.

______. Rastros de ódio, 1956.

______. As sete mulheres, 1966.

· FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1987.

· FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, São Paulo, Editora Loyola, 1996.

· FOUCAULT, Michel, 2008, A arqueologia do saber. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2008.

· GRIFFITH, David Llewelyn Wark. Intolerância, 1916.

· PARKER, Alan. Mississipi em Chamas, 1988.

· SCOTT, Ridley. Falcão Negro em Perigo, 2001.

· VICO, Giambatista. Ciência Nova. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

NOTAS

· 1 O mesmo esquema narrativo será retomado pelo filho pródigo do western americano. No filme Gran

Torino, Clint Eastwood não é mais o cowboy destemido do filme de Ford, mas o ex-soldado rabugento

para quem a família é mais estranha dos que os jovens vizinhos coreanos.

· 2 Não é sem propósito que o outro vilanizado é situado numa insignificante tribozinha no oeste que

ainda se pauta por relações de sangue (como depois será situado num clã minúsculo no norte da China

e num grupo de africanos tresloucados que controla o maciço da cidade): os discursos do poder ganham

tanto mais terreno quanto mais se dirigem à futuros aliados. Todos são bem-vindos, desde que...

· 3 Esse enunciado é a cópia exata das metanarrativas de Eisenstein. A única diferença é que o tipo de

montagem proposta pelo criador de Outubro deixou de ser utilizada com tanta freqüência. A expressão

pela paz, pelo pão, pela terra surgia logo a seguir à imagem, não no inicio do filme.

· 4 Foucault talvez não tenha podido descrever tão bem o funcionamento da biopolítica e seus parado-

xos como o filme Falcão Negro em Perigo. Talvez não tenha podido mostrar com tanta clareza como a

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valorização e a produção de um modo de vida específico são inseparáveis da exclusão e da eliminação

das vidas que não se submetem aos protocolos de governo dominantes. Nossas liberdades não são ne-

cessariamente falsas ou ilusórias, mas exigem um preço altíssimo que poucas vezes é tematizado.

· 5 Daí nossa desconfiança em relação ao tema, hoje em voga, da invisibilidade dos dominados. Na larga

maioria dos filmes analisados, a presença do oprimido não é eliminada. Os oprimidos tendem a ser dra-

matizados como os que demandam a intervenção do terceiro salvador ou em grupos desorganizados

que não merecem tal intervenção redentora, mas apenas a eliminação.

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NARRATIVAS MUSEAIS NA UNIVASf: caminhos a/r/tográficos em construção MUSEOlOgIcAl NARRATIVES IN UNIVASf: a/r/tographic ways under construction

Flávia Maria de Brito Pedrosa VasconcelosUniversidade do Porto, Portugal, Colegiado de Artes Visuais

Universidade Federal do Vale do São Francisco, Brasil

Resumo: Este artigo pretende demonstrar e analisar visualidades que indicam mo-dos de uso do espaço expositivo no Bloco de Laboratórios do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do Vale do São Francisco — UNIVASF, tendo como foco as obras expostas no período de janeiro a março de 2013. Indago e estabeleço paralelos sobre que usos estão tendo esses espaços pelos estudantes do curso e de que maneira pode estar acontecendo a relação das obras com o público.

Palavras-chave: Narrativas museais, Estética do cotidiano, Educação artística.

Abstract: This article intends to demonstrate and analyze visualities that indicate use modes of the exhibition space in Laboratories Block of Visual Arts Teacher Graduation at the Federal University of San Francisco Valley — UNIVASF, focus-ing on the works exhibited from January to March in 2013. I inquire and establish parallels about what uses are having these spaces by students of the graduation and how might be happening the works relationship with the public.

Keywords: Museological narratives. Aesthetics of everyday life. Arts Education.

1. INTROdUçãO: cAMINhOS EXPOSITIVOS

EM PROcESSOS ARTíSTIcO/EdUcATIVOS

No Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do Vale do São Francisco — UNIVASF, os processos criativos são pensados desde seu Proje-to Pedagógico — PPC (UNIVASF, 2012) em disciplinas que articulam métodos, técnicas e poéticas de criação.

Atuo como docente responsável por disciplinas que tratam de fundamentos, narrativas históricas e concepções metodológicas no ensino de Artes Visuais, procurando articular processos artístico/educativos no desenvolvimento de um entendimento significativo e crítico-reflexivo dos discentes sobre a educação em Artes Visuais.

Pela experiência como professora, artista e pesquisadora da área de ensino de Artes Visuais, compreendo o espaço expositivo na perspectiva de ambientes de diálogos e registros (AGAMBEN, 2007) visuais e físicos da obra, constituídos a partir dos processos de produção e que tem influência desde o meio ambiente, na produção de significados simbólicos pelo público.

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No que tange a aspectos museológicos, interpreto, por meio da minha for-mação profissional e de experiências em escolas e na universidade, característi-cas das obras e suas relações com os espaços, assim como possibilidades do tra-balho com mediação cultural, em que obras e público são ponto de partida para ações didáticas problematizadoras, aproximando-se de uma arte/educação críti-ca e reflexiva (BARBOSA, 2009) em uma narrativa contextualizada e da visão da formação do professor/artista/pesquisador (Irwin, 2008) em busca de práticas artístico/educativas significativas.

2. VISUAlIdAdES E ESPAçOS EXPOSITIVOS: cORPOS EM TRâNSITO

Sendo assim, nos meses de janeiro a março de 2013, comecei a observar com atenção os trabalhos de discentes do curso nos espaços do campus da UNIVASF em Juazeiro-BA, espalhados em diversos locais, tais como cacimbas, escadas, lu-gares inusitados, os quais produziam certa inquietação a quem passava.

Senti a necessidade de fotografar as obras e os espaços que ocupavam, no intuito de refletir posteriormente sobre que relações elas poderiam estar tendo com os estudantes, professores e funcionários.

Com isso, tirei uma série de fotos de objetos escultóricos, em formatos bi-dimensional e tridimensional, que foram introduzidas por discentes de Artes Visuais e ocupando, de início aleatoriamente, os espaços em redor do Bloco de Laboratórios de Artes Visuais (Fig. 1), para logo após entrarem e intervirem na galeria do referido bloco.

As obras eram realizadas por discentes do Curso e nem sempre a relação des-ses trabalhos com o público é de diálogo crítico e reflexivo, tendo sido, por vezes, conflituosa, seja por muitas obras aparecerem quebradas, após poucos dias de expostas em um local específico do campus Juazeiro/BA, seja pelas polêmicas que causaram e repercutiram. Vale lembrar o caso da obra “A Ceia”, de 2011,

Fig. 1 - Bloco de Laboratórios de Artes Visuais

– visão externa. UNIVASF Campus Juazeiro/BA.

Acervo Particular. 2013.

Fig. 2 - “A Ceia”, de Antônio Gregório. Acervo

Particular. 2011.

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do discente de Artes Visuais, Antônio Gregório (VASCONCELOS, 2011b). Nesse caso em particular, a obra estava exposta no hall do Bloco de aulas nas quais comumente frequentavam, pela tarde, os discentes de vários cursos da área de Engenharias e à noite, os discentes de Artes Visuais e de Ciências Sociais.

“A Ceia” se configurou em uma instalação com uma pintura e 12 falos, re-lendo-se a obra de Leonardo da Vinci sobre a Santa Ceia, na qual 11 falos eram brancos e um negro, este último representando Jesus Cristo (fig. 2).

O impacto da obra “A Ceia” no espaço foi imediato, pode-se citar que: cartas foram anexadas à obra, o falo negro teve um preservativo inserido, um dos falos brancos foi quebrado, tendo que ser refeito pelo estudante. Houve protestos dos estudantes de engenharia e de pais que circulavam o local, alegando que esta-riam “horrorizados” com a obra, que lhes ofendiam.

Nos confrontamentos, um cartaz foi afixado, dizia: “Pirocas são polêmicas”. Esse fato gerou uma série de protestos de estudantes e professores, entre as salas de aula, o que gerou a necessidade de um amplo debate a respeito da relação entre obras de Arte, espaços expositivos e universidade.

Por essas relações conflituosas, o Colegiado de Artes Visuais em parceria com o Colegiado de Ciências Sociais realizou uma mesa redonda com professores dos dois colegiados, artistas da região e com o estudante, autor da referida obra. Na mesa, os diálogos demonstraram visões desde a defesa teológica, dogmática e católica do uso das imagens e de sua simbologia, à questão sobre a massificação, na História oficial da Arte, das obras de Arte como de origem essencialmente masculina, europeia e branca e a necessidade de crítica da História da Arte.

Ficou evidente a necessidade de disponibilização contínua na universidade de amplos debates com os estudantes e comunidade em geral sobre a relação da obra de Arte com o público, tratando-se desde o processo criativo à apropriação

Fig. 3 - Sem Título. Boneco escultórico recostado, no pátio de estacionamento, UNIVASF,

Campus Juazeiro/BA. Foto: Flávia Pedrosa Vasconcelos. Janeiro de 2013.

Fig. 4 - Sem Título. Boneco escultórico deitado sem cabeça, na galeria do Bloco de Laboratórios

de Artes Visuais, UNIVASF, campus Juazeiro/BA. Foto: Flávia Pedrosa Vasconcelos. Março de 2013.

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do espaço num olhar sobre teorias, ensino e contexto expositivo e seus prová-veis impactos. Aquele momento de discussão nos trouxe a inquietação por in-vestigar sobre como os estudantes do Curso de Artes Visuais se apropriam dos espaços do campus de Juazeiro/BA, deslocando trabalhos e processos de consti-tuição de diálogos com o público, interferindo no meio ambiente e nas obras, que permaneciam em constante reconstrução e releitura.

Na Fig. 3, visualiza-se um primeiro boneco escultórico, cuja autoria não con-segui obter, pensando que talvez esta também seja uma das questões ou inten-ções do/a autor/a. O/a discente produziu este trabalho durante as aulas de Tridi-mensional, ministradas pelo professor Matheus Stein Carrier.

Destaco que o encontro com a obra (Fig.3) foi casual, era noite e havia acaba-do de lecionar no bloco de laboratórios, vi de vislumbre, enquanto olhava para o estacionamento, quando vi um pequeno homem sorridente, recostado a uma antiga cacimba, trajado com roupas típicas do São João nordestino. De longe, pensei que fosse realmente uma pessoa, quando me aproximei do trabalho e vi o que era. Na sua disposição, estudantes, professores e funcionários veriam com facilidade, tendo em vista o local de passagem ser rota para entrada em outros blocos de aulas e estar num espaço ao lado do estacionamento (vide Fig. 1).

Permaneci alguns dias observando a obra (Fig. 3) com o objetivo de perceber a reação das pessoas que passavam pelo lugar, em horários distintos, de tarde e noite. Alguns estudantes de engenharia apontavam o dedo e soltavam risos. Grande parte deles não passava mais do que dois minutos defronte o trabalho e não havia nenhuma discussão sobre a obra no espaço.

Quanto aos estudantes de Artes Visuais e Ciências Sociais que consegui cons-tatar nas minhas observações, percebi que eles olhavam a obra, discutiam, porém muitos nem paravam para visualizar que relações possíveis obra e espaço exposi-tivo estariam apresentando. O mesmo trabalho (Fig.3) foi reconfigurado semanas depois, no mês de março, também sem autoria definida, encontrei o boneco deita-do (Fig. 4), sem a cabeça, com uma fita isolante e o desenho típico de cena criminal, só que ao invés de retratar o corpo tal como ele estava deitado, o desenho retrata-va um ser que características de felino, com tamanho bem maior que o boneco.

Que questões estariam sendo abordadas naquele trabalho? Como o animal e o homem desconectado de sua cabeça-mente poderiam ser lidos? Essas e outras indagações passaram à minha mente no momento que me deparei com a obra. Instigou-me o fato do/a autor/a ter adentrado o espaço expositivo da galeria do Bloco de Laboratórios de Artes Visuais, visivelmente querendo destacar o diálo-go com os colegas de curso sobre o trabalho em mudança constante.

Observando por duas semanas com atenção o público e a relação que era de-senvolvida com a obra (Fig.4), vi que os neste espaço expositivo, frequentado diariamente e predominantemente por estudantes de Artes Visuais, teve menor repercussão que os outros (Fig. 2 e 3) e que os estudantes, de certa forma, igno-ravam o trabalho. Apesar do estado da arte do trabalho, percebi que o/a autor/a buscava transpor significados bem mais amplos do que no local antigo e senti

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muitíssimo não ter havido discussão ampla como a que houve com o trabalho “A Ceia”, trazendo outras questões e olhares. No final do mês, o boneco desapa-receu completamente do espaço.

Nas aulas da disciplina Metodologias do Ensino de Artes Visuais discuti com os estudantes sobre as possibilidades de leitura e releitura das obras, e sobre os métodos utilizados por quem as fez. Percebi com eles que poderiam ter sido duas pessoas diferentes, tendo uma se apropriado da obra (Fig. 3), fazendo uma relei-tura (Fig. 4) ou, uma pessoa que realizou uma obra figurativa e depois fez uma releitura conceitual do estado do corpo.

Curiosamente, os dois trabalhos foram suscitados na discussão com os estu-dantes de Metodologias como material didático para mediações culturais, a fim de questionar a relação do corpo nos espaços expositivos da universidade, corpo revisitado, destruído, obra transposta da vida à morte.

Intrigou-me mais ainda ter visto, em início de abril, outro trabalho escultó-rico (Fig. 5), de um boneco já maior, utilizando o chapéu e ocupando o último espaço do boneco anterior, na galeria de Artes Visuais, entre uma exposição de desenhos e obras cerâmicas, dispostos irregularmente e montada pelos estudan-tes destas duas expressões artísticas.

Por que este boneco estaria no mesmo local? E que referência ele teria com o anterior? Seria o outro, “mais velho”? E por que ele estaria sem cabeça e de pé? Estas e outras perguntas invadiram minha mente, passando por uma reper-cussão também nas aulas de Metodologias, na qual constatei que era necessário tornar as minhas indagações uma pesquisa sobre o uso dos espaços expositivos na universidade, sistematizando assim uma ordem de ações a fim de cumprir este intento:

· Organizar as fotografias das obras em arquivo e enviar as narrati-vas museais iniciais em um congresso, no intuito de dialogar com outros pesquisadores e ver possibilidades do trabalho na univer-sidade com as visualidades das obras;

· Disponibilizar material da pesquisa e dos diálogos no congresso aos estudantes, por meio do blog www.flapedrosa.blogspot.com;

· Desenvolver uma investigação com os bolsistas que oriento, Ana Emídia de Sousa Rocha (Programa Institucional de Bolsas de Ex-tensão — PIBEX) e Paulo Vinícius Pereira de Almeida (Programa de Iniciação Científica — PIBIC), que pudesse, ao longo do tempo e com demais professores interessados, realizar um diagnóstico qualitativo, analisando, por meio de entrevistas semi-estrutura-das a estudantes, funcionários e professores, como são percebidas as relações entre as obras e os espaços expositivos na universidade.

No que tange aos diálogos das obras que mencionei acima, os funcioná-

rios da universidade, principalmente, os que trabalhavam com a limpeza dos

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espaços, eram os que mais passavam tempo observando-as. No final de abril de 2013, resolvi ver o local onde um dos funcionários da manutenção da universi-dade havia me informado ter um boneco disposto (Fig. 6). De longe, vi dois fun-cionários realizando a reestruturação do piso estrutural no limite da UNIVASF com a mata ciliar próxima ao rio São Francisco, numa conversa alegre.

Aproximei-me dos dois e escutei, antes que me avistassem: “esses boneco aí jogado nem pode tirar do lugar”, “por quê?”, “por que são Arte ué e Arte não se meche!”. Eles se calaram tão logo fui vista, questionei aos mesmos se fazia tem-po que o boneco ali estava, um deles mencionou que só alguns dias e que não sabiam o que fazer, pois foram informados que não podiam danificar as obras de Arte dos estudantes. O pequeno diálogo que tive com eles, fez com que a ideia de realizar uma entrevista em uma investigação com maior estruturação e proprie-dade científica fosse identificada como necessária no contexto das narrativas museais nos espaços expositivos do campus Juazeiro/BA da UNIVASF, buscan-do análise de visões de estudantes, funcionários e professores.

No todo deste relato em busca de narrativas museais que iniciam caminhos investigativos, de janeiro a abril de 2013, visualizei momentos interessantes, principalmente, nos diálogos entre os funcionários e as obras, os quais faziam perguntas e observavam aspectos das formas e cores, da disposição, intrigados.

Quanto aos docentes e a relação entre as obras, durante os momentos que ob-servei, não vi sequer um deles parando e percebendo os trabalhos dispostos, fato esse que me fez questionar sobre os motivos da aparente indiferença às relações entre as obras e os espaços expositivos aqui suscitados. Creio que com a investi-gação mais detalhada, terei um aporte consistente para contribuir nesta reflexão.

Dos momentos observados, dentre as obras dispostas, espaços expositivos e

Fig. 5 - Sem Título. Boneco escultórico em pé sem cabeça, na Galeria do Bloco de Artes, UNIVASF, campus Juazeiro/BA.

Fig. 6 - Sem Título. Boneco escultórico em pé sem cabeça, no limite entre UNIVASF, mata ciliar e rio São Francisco.

UNIVASF, campus Juazeiro/BA. Foto: Flávia Pedrosa Vasconcelos. Final de Abril de 2013

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meio ambiente, causou-me um interesse maior a perspectiva dos funcionários, pensando-se que a universidade é um universo e que, muitas vezes, os professo-res esquecem que além dos estudantes e comunidade, temos funcionários que ocupam os mesmo espaços e tem muito a contribuir com suas visões de mundo. Por isso, eles também serão convidados a fazer parte das intervenções e ações sistematizadas anteriormente em uma investigação em narrativas museais no campus Juazeiro/BA da UNIVASF.

Assim, os corpos das obras demonstradas (Figs. 3, 4, 5 e 6) estão em trânsito nos espaços expositivos, de suas formas em mutação, do físico ao conceito, no espaço e no meio, suas poéticas colaboram para um olhar sobre como os traba-lhos dos estudantes de Artes Visuais são vistos dentro do ambiente da própria universidade e que posturas professores, estudantes e funcionários assumem no contato com os trabalhos.

3. IMBRIcAMENTOS MUSEAIS EM ARTES VISUAIS: dAS OBRAS AO PúBlIcO

Interpreto que o diálogo entre as obras e o espaço expositivo pode promover no público indagações sobre aspectos híbridos desde a criação, à linguagem visu-al, ao contexto obra-espaço, construindo e ressignificando, na relação dialética obra-espectador nem sempre dialética, nem sempre polêmica (PEIXOTO, 2003).

Considero o trabalho artístico no espaço da universidade como estimulan-te de um encontro diversificado e, por que não, dialogicizante do museológico como territórios estéticos nos quais obras artísticas podem estar expostas, em am-bientes externos ou internos dos blocos de aula, em interferências, instalações, entre outras, que tragam uma multiplicidade e interculturalidade de olhares.

Destarte, o espaço expositivo é uma rede de contextos culturais em que o professor pode instigar ações (ALMEIDA, 2010) artístico/educativas que estimu-lem a expressividade, a inventividade na análise teórica e prática das obras em territórios distintos de percepção, mas que por questões diferenciadas podem estar dialogando com o público.

Assim, enuncio, a partir de pesquisa já realizada (Vasconcelos, 2011a), no in-tuito de disponibilizar, possíveis roteiros de leitura e análise estética das obras expostas neste texto, um rascunho inicial de roteiro, o qual será demonstrado aos entrevistados na investigação em narrativas museais:

· Elementos visuais (cores, formas, materiais, etc.) que a obra utiliza;· Como a obra está disposta;· Como o espaço/meio ambiente dialoga com a obra;· Leitura e análise na tradução da obra pelo público;· Comparação de análises e dos contextos interculturais do público;· Narrativas que a obra constrói no espaço expositivo;· Releituras visuais das obras em práticas artísticas bidimensionais

e tridimensionais;

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· Produção de material didático para o trabalho do professor na educação formal e não-formal.

Por fim, penso que este roteiro e as outras possibilidades que a investigação disponibilizará, deva ir além de territórios construídos em Artes Visuais e seu ensino, deva percorrer outros olhares sobre obras e espaços expositivos, contri-buindo para a constituição de pesquisas na área de mediação cultural crítico--reflexiva no Vale do São Francisco e no desenvolvimento de práticas artístico/educativas significativas.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· AGAMBEN, G. O autor como gesto. In: Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 55-63, 2007.

· ALMEIDA, C. M. de C. Ser Artista, ser professor: razões e paixões do ofício. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

· BARBOSA, A. M. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos.7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

· PEIXOTO, M. I. H (2003). Arte e grande público: a distância a ser extinta. Campinas, São Paulo, SP: Autores

Associados, 2003.

· IRWIN, R. A/r/tografia: uma mestiçagem metonímica In: BARBOSA, Ana Mae; AMARAL, Lilian. (Org.). In-

terterritorialidade: mídias, contexto e educação. São Paulo: Editora Senac São Paulo; Edições SESC SP, 2008.

· UNIVASF. Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do

Vale do São Francisco, 2012

· VASCONCELOS, F. M. B. P (2011a). Narrativas no ensino de Artes Visuais em Juazeiro/BA e Petrolina/PE.

2011. 151f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) — Programa de Pós-graduação em Artes Visuais,

Universidade Federal da Paraíba e Universidade Federal de Pernambuco, João Pessoa, PB, 2011a.

· ______. (2011b). Arte e sexualidade: por que a polêmica? Disponível em: <http://ensinandoartesvisuais.blo-

gspot.com.br/2011/05/mais-polemicas-em-ahttpwwwbloggercomimg.html>. Acesso em 14 abr. de 2013.

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INTERAçõES dIScURSIVAS NO TRABAlhO dE MEdIAçãO EM ARTES VISUAISdIScURSIVE INTERAcTIONS IN ThE PROcESS Of MEdIATION IN VISUAl ARTS

Gabriela BonUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: Este artigo apresenta alguns resultados da pesquisa intitulada “mediação profissional em instituições museais de Porto Alegre: interações discursivas”. A pes-quisa visou compreender o papel do mediador e sua inserção no sistema discursivo de uma exposição de arte da cidade de porto alegre (Rio Grande do Sul, Brasil), apre-sentando uma reflexão pontual acerca dos regimes de interação e sentido presentes em seu próprio discurso.

Palavras-chave: Arte-educação. Mediação. Regimes de interação e sentido.

Abstract: This article presents some results of master’s research “Professional me-diation in museum institutions of Porto Alegre: discursive interactions”. The re-search aimed to understand about the role of the mediators and their integration into discursive system of an art exhibition in the city of Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brazil), presenting a reflection about regimes of interaction and meaning which are present in their own speech.

Keywords: Arts education. Mediation. Regimes of interaction and meaning.

INTROdUçãO

Este artigo pretende apresentar alguns dos resultados da dissertação de mestrado intitulada “Mediação profissional em instituições museais de Porto Alegre: in-terações discursivas”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação da Profa. Dra. Analice Dutra Pillar, em fevereiro de 2012. A dissertação trata do discurso de me-diadores profissionais acerca de seu papel em instituições museais e sua atuação nas exposições de Arte na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

O principal problema de pesquisa foi o que os discursos dos mediadores di-zem sobre o seu papel em situações de mediação. E, além desta questão, verifi-cou-se de que modo estes discursos mostram a mediação, como os mediadores concebem a interação com o público e com as demais instâncias do espaço expo-sitivo e como se dá seu fazer interativo.

A pesquisa se justificou pela crescente importância atribuída à mediação em instituições museais no estado do Rio Grande do Sul e no Brasil. Além dis-so, percebeu-se a necessidade de estudos reflexivos sobre os modos de mediar em instituições museais dedicadas às Artes Visuais, bem como a necessidade de

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conhecimento das concepções dos mediadores sobre seu papel ao interagir com o público. Diante disso, a investigação teve como objetivo principal compreender como os mediadores percebem sua inserção nos múltiplos discursos de uma ex-posição de Arte. Como objetivo secundário, buscou-se entender a maneira como os mediadores interagem com o público e com as demais instâncias da instituição.

cAMINhOS dA PESqUISA

A metodologia de trabalho iniciou-se com um levantamento das instituições museais dedicadas às Artes Visuais na cidade de Porto Alegre, as quais possuem mediadores considerados profissionais. Com este intuito, foram analisadas com relação ao trabalho de mediação o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, a Funda-ção Bienal de Artes Visuais do Mercosul, o Museu Iberê Camargo e o Santander Cultural. A partir desta verificação preliminar, constatou-se que, atualmente, em nossa cidade apenas o Santander Cultural (http://www.santandercultural.com.br/institucional) e o Museu Iberê Camargo (http://www.iberecamargo.org.br/site/a-fundacao) possuem mediação como uma atividade permanente, com caráter profissional, remunerada e com recursos humanos fixos.

Vale destacar que o Museu Iberê Camargo fica distante do centro da cidade (figura 1), na Avenida Padre Cacique. Não há outras instituições culturais pró-ximas e o Museu fica em uma avenida bastante movimentada, um importante corredor que liga o centro da cidade à região sul. Sua fachada é voltada para o lago Guaíba, considerado uma importante referência para a identidade dos por-to-alegrenses.

Já o Santander Cultural está localizado no centro histórico de Porto Alegre (figura 2) e fica próximo a diversas outras instituições culturais importantes para a cidade. Sua entrada de visitantes é pela Praça da Alfândega, onde também se situam o Memorial do Rio Grande do Sul e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, os quais são considerados espaços culturais importantes em nosso contexto.

Após o levantamento inicial com as quatro instituições citadas, fez-se novo contato com estas duas últimas instituições, com as coordenadoras e com os mediadores das mesmas, seguido da realização de entrevistas baseadas na meto-dologia do grupo focal, que busca, através da interação entre seus participantes, debater um tema proposto pelo coordenador da investigação. Essa metodologia pode ser entendida como um conjunto de sessões de discussão em grupo sobre um tema-chave, orientadas por um moderador, o qual possui a função de fazer com que as sessões convirjam para o tema central proposto. Nesse sentido, foi elaborado um roteiro inicial de perguntas comuns para os grupos entrevistados.

Para compor o corpus da dissertação, as entrevistas nas duas instituições foram gravadas em vídeo, totalizando quatro sessões no Santander Cultural e cinco no Museu Iberê Camargo, de cerca de 40 minutos cada, mais uma hora de gravação com as coordenadoras. As sessões tiveram um roteiro pré-estabelecido, composto de seis perguntas norteadoras, e ocorreram entre os meses de maio

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a outubro de 2011, de acordo com as disponibilidades dos participantes, tota-lizando 8 horas e 40 minutos de gravações. A seguir, foi feita a transcrição das entrevistas com os sujeitos da pesquisa com cuidados para ocultação das iden-tidades dos participantes e uma a análise preliminar destas falas, enfocando as possibilidades reflexivas oferecidas pelos discursos.

A seguir, buscou-se destacar nas falas transcritas os modos de interação des-critos pelos mediadores nas entrevistas, baseando-se nos regimes de interação e sentido propostos por Landowski (2004, 2009), quais sejam: (a) programação, e este regime estaria ligado aos comportamentos regulares dos atores envolvidos; (b) acidente, e este estaria ligado às questões de imprevisibilidade e aleatorieda-de; (c) manipulação, e este poderia ser resumido como a maneira pela qual um sujeito influenciaria o outro através de um sistema de trocas de valores entre ambos; e (d) ajustamento, que seria a influência recíproca de um com o outro e não mais de um sobre o outro. Considerando estes quatro regimes, as falas fo-ram novamente analisadas e agrupadas, respeitando a forma como os temas dis-cutidos se inseriram em determinado regime de interação nas duas instituições.

Embora na dissertação tenham sido analisadas as falas das coordenadoras e dos mediadores das duas instituições anteriormente referidas, este texto limita--se a mostrar alguns dos resultados obtidos nas entrevistas feitas no Santander Cultural. As entrevistas em sua totalidade podem ser lidas nos apêndices da dis-sertação, disponível no repositório digital da Universidade Federal do Rio Gran-de o Sul, no endereço http://hdl.handle.net/10183/49357.

AlgUNS REgIMES INTERAçãO NO SANTANdER cUlTURAl

Na entrevista com a coordenadora do Santander Cultural buscou-se tratar ini-cialmente de algumas questões sobre as regularidades do trabalho neste espaço. Sobre as questões de profissionalização, contratação, remuneração e tempo de permanência na instituição, elas foram colocadas da seguinte forma:

— Eu acho que este trabalho, por enquanto, ainda é um trabalho de passagem. Espero que

aos poucos ele vá se tornando uma profissão. Embora eles tenham carteira assinada, o que

é uma vantagem sobre outras instituições, mas eu acho que ainda é pouco. Eles têm que

ganhar mais, têm que ter um bom plano de saúde, têm que ter uma outra qualidade de

vida para poderem se dar à vida.

Os mediadores, por sua vez, também se manifestaram com relação às mes-mas questões conforme se observa nos seguintes extratos:

— É uma função nova que foi criada. Mas eu acho que em Porto Alegre isto é acentuado

porque a gente tem poucos [trabalhos de formação de mediadores], fora a Bienal. No Mar-

gs, por exemplo, são voluntários que têm uma outra relação com este trabalho. A gente

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é muito sozinho. Tem pouca gente que tem estudo, que entende como profissão e não

como atividade temporária. E às vezes isso é meio contraditório, ontem mesmo eu estava

pensando sobre isso. Esta contradição acontece em vários momentos. Às vezes a gente

está numa mediação e a gente tem muita autonomia para trabalhar, mas falta esse respal-

do que te permite dizer que somos autores daquilo. Ainda tem muito isso de que isso é um

estágio, mas acho que também é nosso papel mudar um pouco isso.

— É, isso tudo são coisas muito do nosso dia a dia. As pessoas nos abordam e perguntam:

‘vocês são voluntários? Vocês são estudantes?’ Não, a gente tem uma formação, a gente

trabalha aqui. ‘Ah, achei que vocês eram voluntários.’ Há uma desvalorização assim. (...) E

também tem a questão do Margs ter o pessoal voluntário, isso confunde também.

— (...) que é o ponto do salário. Na medida em que nós, quem trabalha com a mediação

nos centros culturais, é meio aquele negócio assim, de pagar o mínimo possível por aque-

le trabalho. É isso que eu sinto.

— E tem esta questão, da gente trabalhar fim de semana, trabalhar feriado. E a gente tem

uma pauta meio incômoda que é o fato de não ter férias. Tem um recesso de Natal e Ano

Novo, quando tudo fecha e a gente faz um descanso.

— A gente é associado a um sindicato que a gente não sabe nem... Tiveram que encaixar

em algum sindicato porque é obrigado, né.

— Outra coisa que eu acho é que acabava tendo pouca distinção entre a gente e os ou-

tros agentes culturais. Por exemplo, o pessoal que atende na portaria que não tem uma

formação específica, que troca o tempo todo, que não tem uma trajetória aqui, embora

sejam todos muito qualificados. Mas a gente que tem uma responsabilidade maior acaba

ficando no mesmo patamar.

— É de atrapalhar... é só esta visão terceirizada que nos coloca sempre nivelados por baixo.

Além do assunto acerca da profissionalização, contração ou remuneração, também foram apontadas pelos mediadores questões sobre as funções, denomi-nações e atribuições dos profissionais de mediação, como se vê a seguir:

— (...) a gente começou a pensar como uma ação educativa, enquanto equipe educativa,

no sentido de ir atrás de seminários, de se colocar também no ‘Diálogos’, de pensar qual

era essa missão, qual era o nosso espaço aqui dentro e começar a protestar por isso, de con-

seguir estes espaços, estas salas. A gente era muito nômade. A gente tinha que recolher os

nossos saquinhos e sair.

— É preciso ter um reconhecimento de quem é este profissional e dar nomes aos bois:

quem é o mediador, quem é o educador quem é o guia... e isto é péssimo.

— (...) essa mudança para educador faz com que a gente seja classificada como um pro-

fissional que precisa de especialização. Mediador geralmente não, porque é um estágio.

— Se tem essa liberdade embora não se tenha a situação ideal.

— O que eu menos gosto é isso do que somos. Essa coisa de nos regulamentarmos. Ou

seja, que profissional somos nós? Quais são as atribuições da nossa profissão exatamente?

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Como se dá isso legalmente? Tipo, se somos arte-educadores? É isso que somos? Desde

qual que é a melhor palavra para definir esta profissão até o que é exatamente a ação

educativa dentro de um espaço educativo. Onde pretendemos chegar? A que nos leva

exatamente tudo isso? E, também, que nós precisamos de um respaldo maior. De uma

regulamentação, mesmo. E o que a gente mais gosta mesmo é este contato com o público,

com as escolas, com todas as possibilidades de atividade. E às vezes essa possibilidade fica

limitada em função desta sensação de indefinição desse profissional.

— Tu vês que a gente vai viajar para a Europa e o assunto é justamente esse: mediação cul-

tural. É essa mescla, a gente precisa tentar se localizar dentro disso. [A proposta do semi-

nário] É tudo aquilo que a gente tem falado até agora e isso é uma discussão internacional.

— É disto que eu falo, de autonomia e de autoria. Se tu és um educador e diz que isso é

preciso, tu vais lá e tem condições. Mas um mediador?

Diante de todos estes depoimentos, é possível perceber que, neste contexto, instaura-se o regime da programação, na medida em que os funcionários se enqua-dram dentro de uma categoria funcional da instituição e seguem aquilo que lhes é solicitado. Desse modo, os mediadores executam seu trabalho dentro do progra-ma geral da instituição e do projeto educativo atendendo às expectativas e normas estabelecidas pela instituição.

Cabe destacar, no entanto, que este regime é quebrado, quando sua regulari-dade é interrompida pela crescente discussão sobre enquadramento funcional, relações sindicais, função da mediação, salário, autonomia e autoria.

Através da fala da coordenadora, percebe-se que são mencionadas diferenças entre esta e as demais instituições, obtendo-se, assim, uma programação própria, mas com noção de que esta regularidade pode ser alterada e quebrada, na medida em que ainda não se atingiu uma situação de trabalho considerada ideal pela equi-pe. Na fala dos mediadores, também foram destacadas as diferenças entre os siste-mas de contratação de um profissional de estágio e de voluntariado, bem como a confusão que estes dois últimos sistemas de contratação podem gerar no campo profissional, ainda em formação. Observa-se, entretanto, que toda esta situação de constante discussão interna sobre as condições de trabalho pode ser igual-mente enquadrada no regime do ajustamento, uma vez que alguns dos anseios dos mediadores são acolhidos pela instituição, a qual cede parcialmente, dando--lhes, atualmente, uma remuneração distinta. Eles, por sua vez, se adaptam às condições da instituição, mesmo que ainda existam outros anseios ainda não sa-tisfeitos como a criação de um plano de carreira ou formação continuada regular.

No que tange ao tempo de existência, de mais de dez anos deste Centro Cultu-ral, pode-se dizer que este aspecto auxilia na produção de um regime de progra-mação e a consequente inserção da instituição na agenda cultural da cidade. Além disso, ao longo desse período, parece já haver uma apropriação dos professores e do público em geral deste espaço. A coordenadora ressalta que:

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— O Santander Cultural tem dez anos e eu posso dizer que há dez anos eu estou traba-

lhando neste espaço.

— O Santander ganhou volume de ação educativa ao longo de dez anos e isso só nos agrega.

Outro aspecto importante a ser destacado nos depoimentos é a posição re-levante que o projeto educativo ocupa dentro do programa geral de funciona-mento da instituição. Diferentemente de outros espaços, a equipe educativa do Santander Cultural tem a possibilidade de interferir na escolha das mostras, conforme os depoimentos a seguir:

(...) a ação educativa, ela tem uma importância muito grande dentro do grupo Santander.

A ação educativa é a mola mestra dos nossos centros culturais. Se não houver uma ação

educativa eficiente, o Santander Cultural não existe. A cada mostra, nós somos consul-

tados como educadores se esta exposição vai valer a pena o Santander abrigar. E o baca-

na que eu acho é que nunca deu errado. Nós podemos vetar um exposição. E já vetamos

exposições. Quando a exposição não tem nada a ver, a gente não fica com ela. E se nós

não formos trabalhar nela, a exposição não acontece. Então assim, quando existe alguma

proposta que a gente pode amadurecer junto com o curador, daí qualquer proposta é pro-

posta. Porque ele cede um pouco do lado dele, a gente cede, a gente faz proposições juntos.

— É interessante porque quando uma proposta [de exposição] é feita para o Santander,

ela só é aceita se ela tem algum viés educativo, se a coordenação do educativo acredita

que pode ter alguma coisa ali que pode ser trabalhada, se não ela é descartada. Mas no

momento em que é aceita, entra a curadoria e a gente faz a nossa parte.

— Mas este respeito tem a ver com cobrança, várias coisas é a ação educativa que leva, que

toma a iniciativa. Vamos ver como está o nosso público e a aí a Maria Helena vai e bomba

alguma ideia nova. Aí eles já perguntam o que vocês vão fazer com cada evento, sabe? (...)

O que é bom porque a instituição confia no trabalho da gente. (...) É bem trabalhar junto:

o banco e o cultural.

— Temos reuniões conjuntas desde a gestão, quando se pensa, se recebe a proposta. Tá, o

que é que vai rolar? Quando se começa a gerir isso. Isso tudo ainda vai tomar corpo e vai

acontecer daqui há alguns meses. A gente começa a ser convidado para isso. Desde um

pouco da museografia já é mostrado, então a gente consegue também se preparar para

isso. A gente tem mais tempo e começa a se sintonizar com o momento. Quando eu entrei

aqui era assim: a exposição vai abrir tal dia, tal hora e a gente não tinha condições.

— Até porque a gente sente que a casa toda é preparada para isso. A gente tem o apoio téc-

nico, o apoio de segurança, o apoio de portaria. A casa pensa nisso como algo importante,

então o espaço é preparado sempre. E a gente sente este apoio para que isto aconteça, para

que este pequeno espetáculo aconteça.

— O que eu acho legal é assim, justamente de poder participar da concepção da exposi-

ção, conhecer o projeto educativo.

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Todo este respaldo institucional e participação na escolha e planejamento das exposições mostram um trabalho conjunto entre várias instâncias da institui-ção, gerando atividades interativas, nas quais os vários setores cooperam, desde as fases iniciais de projeção até a concretização da exposição. Aqui, vemos a ins-tauração de um regime de ajustamento mútuo, em que o projeto educativo não precisa se adequar unilateralmente às exposições. Desta forma, o projeto educa-tivo pode propor atividades e ações dentro de suas próprias pretensões enquan-to equipe e considerando seu público visado, em conjunto com a equipe curato-rial, não havendo supremacia de decisões de um departamento sobre o outro.

Este ajustamento também pode ser visto tanto por parte da equipe com a ins-tituição, quanto internamente, entre os próprios membros da equipe, conforme os depoimentos a seguir:

— Somos uma equipe extremamente pequena, mas extremamente coesa. E eu acredito

que mais que uma equipe, já é uma família Crescemos juntos, trabalhamos juntos, dis-

cutimos juntos. Todos têm voz aqui no Santander. (...) É um trabalho muito harmônico.

— A gente tem essa preocupação de ser visto por uma escola e dizerem que isto foi feito

pela equipe do Santander.

— Aqui tem esse movimento, a gente coopera, essa coisa de família, assim. A gente traba-

lha junto, faz brincadeiras. (...).

— Tem essa coisa de abraçar mesmo.

— E a gente sempre conversa desde antes de isto ter acontecido no espaço. E isso acontece neste

espaço desde a sua concepção, que existiria uma ação educativa, que faria este tipo de serviço.

A cooperação entre os membros da equipe fica evidente inclusive em relação à visão do público sobre o trabalho do grupo. Pode-se perceber, assim, que o tamanho reduzido e o vínculo permanente da equipe com a instituição auxiliam para o de-senvolvimento deste sentimento colaborativo e autoral do trabalho de mediação.

Por outro lado, podemos verificar que há estratégias de manipulação, através da sedução, visando obter-se da cooperação das instâncias diretivas da institui-ção junto ao projeto educativo, como podemos verificar nos seguintes extratos:

— Tendo apoio total da superintendência, eu tenho o apoio de São Paulo e, tendo apoio de

São Paulo, eu posso pagar. Então assim, a gente procura sempre fazer alguma coisa ligada

ao banco não me desvinculando de quem me patrocina.

— A cada exposição, a gente convida os gerente de Porto Alegre e Grande Porto Alegre,

almoça-se e conversa-se sobre a exposição, ou se traz alguém para além da exposição. (...)

A gente faz um almoço também para o pessoal do banco. (...) Eles passam o dia inteiro

aqui trabalhando e no fim de semana eles querem descanso. Mas eu acho que as coisas

estão mudando. Pelo menos nós somos reconhecidos como o educativo do Santander

Cultural. Eu acho que isso é fundamental. Todo mundo sabe quem eu sou, quem a Mégui

é, quem a Kalú é, quem o Pagé é e quem é Enzo é. Por isso, nós todos fazemos questão de

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estarmos presentes em todas as situações, seja numa mediação de duas horas ou numa

conversa de dez minutos.

— Isto foi uma coisa que mudou para melhor com a gestão nova. Até porque uma das

ideias sempre foi aproximar as pessoas, para que todos fossem valorizados, inclusive a

ficha técnica mudou. (...) existe uma política de valorizar todos os trabalhos, todas as equi-

pes, não existe um menor do que o outro, todos são importantes.(...).

— Mas é bacana, esta história desse contato com as outras áreas que aí o pessoal está

vindo na folga visitar a exposição. Já encontrei várias vezes as gurias da portaria trazendo

filho, trazendo marido e tal. Antes a gente só entregava o folder, agora a gente elabora em

poucas palavras para que todos saibam o que é a exposição, o que está acontecendo. Desde

a moça da portaria até o segurança, eles precisam saber o que está acontecendo. Porque

vai chegar alguém e vai perguntar e eles têm que estar cientes disso.

— Nem sempre as chefias liberam, a chefia da segurança raramente libera, são os bom-

beiros. Eles até estavam reclamando porque agora está acontecendo isso. Hoje às quatro e

meia a gente fez uma mediação para as equipes aí o pessoal da portaria veio participar, a

administração, as chefias e todos, aí os seguranças estavam reclamando que eles queriam

participar também. E isso é importante. Até porque se a pessoa está se sentindo partici-

pando disso tudo ela vai ter um outro olhar. E os seguranças daqui eles tem um ‘feeling’

diferente já. (...) E eu sinto que eles têm vontade de saber. Como eles são perguntados toda

hora pelo público, eles não querem parecer ignorantes.

— (...) E ao mesmo tempo tá sempre lado a lado com aquilo que o banco propõe, porque

também tem que ser, senão...

— Ela [a coordenadora] tem diplomacia. Ela sabe articular para ser.

Nesses extratos, podemos ver a articulação dos vários setores da instituição para a obtenção dos recursos necessários ao desenvolvimento das estratégias educativas através da sedução dos funcionários de todos os níveis. Esta sedução parte da coordenadora do projeto educativo, que desenvolve um trabalho há dez anos, mas se estende também aos mediadores, que reconhecem nela a figura de uma profissional articulada e sedutora.

É interessante observar que os mediadores do Santander Cultural não mani-festaram uma preocupação acentuada com a formação de público, embora esta seja uma ideia que perpasse vários extratos de seus discursos. Considerando que esta instituição já está totalmente consolidada agenda cultural da cidade, o foco parece estar em uma ampliação de público através da manipulação dos professo-res, os quais são seduzidos a desenvolver com a equipe de mediação um trabalho continuado. Além disso, os espaços de visibilidade para o professor asseguram a ideia de parceria e cooperativismo, conforme vemos nos extratos seguintes:

— A gente não tá vendendo nada para eles. Não é uma loja onde a gente precisa convencer

que tudo é super legal, é muito mais reflexão conjunta do que qualquer coisa.

— Eu acho que, para mim, quando a pessoa volta aqui sem a escola, isso, para mim, é um

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dos pontos a nosso favor. É porque ele teve uma ponte para chegar até aqui. É difícil quem

visita uma exposição, é muito pouca gente que visita espontaneamente. Geralmente são

os que já vieram através das escolas.

— Outra coisa que eu acho importante é dar voz ao professor. A partir de uma visita,

aqui, o professor pode apresentar. Tipo, se eles desenvolveram um projeto na escola após

a visitação eles podem nos apresentar isso. Aí a gente faz um encontro para os professores

poderem apresentar o que fizeram a partir da mostra.

— São geralmente os professores que realmente estão interessados porque participaram

da formação, que vieram na mostra, que desenvolveram algo relacionado ao que está sen-

do exibido. (...) Geralmente são as escolas que já são parceiras, que vêm sempre, para eles é

uma grande oportunidade e então eles sempre agendam. E eu acho que isso vai entrando

no cotidiano das aulas de artes daquelas escolas. Faz parte visitar o Santander Cultural. É

uma oportunidade de sair da escola. Até porque eu também agendo para os meus alunos,

mesmo sem o transporte gratuito porque é uma escola particular. É uma oportunidade

de sair da escola e ir para outro lugar. Este deslocamento, não só com a ideia do sair, do

passeio, mas este deslocamento de ir para outro ambiente aonde tu vais te deparar com

coisas que tu não estás habituado no teu dia a dia. A experiência é importante, ela areja

principalmente. Porque fica muito subjetivo tu ficares dentro de uma sala de aula só fa-

lando de arte todos os dias. É preciso sair, respirar outros ares, ver arte.

— Geralmente as melhores mediações são justamente quando tem esta parceria. O profes-

sor não chega assim a ponto de deixar tudo por conta da mediação porque eu não sei nada

da exposição. O professor já está envolvido e ele já traz os alunos com outro interesse.

— É, isso é uma coisa que está acontecendo bastante, uns 80%.

— A mediação é só dos momentos, é só uma estratégia do professor. Se isto não acontecer,

a coisa toda não acontece plenamente. Se o professor não fez nada na escola não dá para

esperar que o mediador faça tudo em uma hora. Aí até vai ser alguma coisa, mas vai ser

muito pouco. (...) Então cada vez mais a gente tem que intensificar isso, buscar estas par-

cerias. Tentar fazer um trabalho mais amplo para atingir o nosso objetivo.

— Ao mesmo tempo educar também o professor neste sentido. Que a mediação é uma

parceria na verdade.

— Na verdade isso é uma coisa que a escola inteira tem que comprar.

A partir do exposto, percebe-se que os regimes que mais aparece nesta institui-ção são o da programação, o da manipulação e o do ajustamento. Além disso, é pos-sível dizer que no Santander Cultural o regime da manipulação, através de estra-tégias de sedução, parece ser o centro das estratégias de interação entre as equipes, gerando um regime de ajustamento entre diversas instâncias do Centro Cultural.

AlgUNS RESUlTAdOS

O Santander Cultural, por sua extensividade de atuação, parece utilizar esta continuidade temporal para criar e gerenciar estratégias de interação que se

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modificaram ao longo de seus 10 anos de atuação em nossa cidade. A utilização do regime da manipulação através da sedução, evidenciado em diversas situa-ções por todos os membros da equipe educativa, parece auxiliar na criação de relações de ajustamento tanto com o banco, o qual mantém financeira e insti-tucionalmente o Centro Cultural, como com um público assíduo. A forma mais estável de contratação como funcionários permanentes e a inexistência de um prazo determinado para o desligamento dos mediadores parece favorecer a pos-sibilidade de discussão sobre o próprio fazer dos mediadores neste espaço, como também é constantemente seguida da utilização de relações de ajustamento en-tre os sujeitos em co-presença interativa.

Nesse sentido, ao partilharem face a face os mesmos ideais e o mesmo con-texto de tempo e espaço, os sujeitos percebem, reagem uns as outros de forma recíproca e atuam de forma harmônica dentro da instituição. Assim, estas dis-cussões, seguidas de reordenamentos e de constantes composições de ideias, to-madas de novas posições e desconstrução de valores, ajustam-se às demandas das produções contemporâneas que põem em xeque o sujeito, seus valores e até mesmo suas condições de atuar sobre o mundo.

cONSIdERAçõES fINAIS

A equipe educativa do Santander Cultural é formada por 4 mediadores fixos, con-tratados com carteira assinada por tempo não determinado e uma coordenadora. Es-tes mediadores possuem formação concluída na área de Artes e possuem experiên-cia na formação de mediadores para exposições temporárias na própria instituição, bem como em mostras de grande porte como a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Além destes, eventualmente, há contratação de outros mediadores temporários de acordo com o volume de público das mostras, os quais são instrumentados pela equipe fixa. Com relação à coordenação da equipe, a coordenadora desta instituição atua há cerca de dez anos, ou seja, desde a inauguração do Centro Cultural, possui formação na área de Artes e de Educação, bem como na formação de mediadores.

Considerando que um dos objetivos do trabalho de mediação em uma expo-sição Arte é instaurar a reflexão acerca dos valores dos próprios objetos culturais envolvidos no evento como um todo, pode-se concluir que o Santander Cultural possui uma equipe bastante preparada, questionadora e atuante no desempe-nho de sua profissão. Também se constatou que a instituição possibilita a mani-pulação dos instrumentos econômicos em favor dos interesses educativos sendo que este último está sempre em primeiro lugar. Diante disso, muitas vezes per-cebemos nos depoimentos que o setor financeiro se ajusta às demandas educa-tivas, quando, em muitas instituições isto ocorre apenas de forma inversa. Cabe destacar que esta situação é uma conquista de muitos anos da equipe através de estratégias de manipulação por sedução das instâncias diretivas da instituição. Nesse sentido, podemos compreender a excepcionalidade desta circunstância através de palavras de Ana Mae:

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[...] o objetivo de um educativo de museu é levar o público a desenvolver a capacidade de atribuir

sentido a Arte ou a Cultura Material, embora o sentido ou a significação a que chegarem possa

negar o Museu, a Arte que ele apresenta, a cultura material que ele cultua. Na minha opinião

o regime de ajustamento se submete ao regime de manipulação no Brasil quando se trata de

educação em instituições culturais hegemônicas com algumas exceções (BARBOSA, 2012, p.3).

Apesar do trabalho de mediação ser considerado prioritário pela instituição, uma vez que é executado com grande seriedade e de forma ininterrupta, ao lon-go de todo o ano, alguns problemas foram apontados pela equipe do Santander Cultural. A equipe destacou principalmente a instabilidade e indefinição pro-fissional, a terceirização, o voluntariado e a falta tanto de um plano de carreira quanto de uma formação continuada consistente.

Cabe destacar que as características apresentadas, bem como os regimes de inte-ração destacados, não visam formar um juízo de valor sobre o trabalho desenvolvido nesta instituição uma vez que ela possui um trabalho educativo sólido e bastante re-conhecido no cenário local e nacional. O objetivo foi perceber as peculiaridades do tra-balho de mediação e tentar compreender como se dão as relações de interação destes profissionais que estão em constante interlocução com várias instâncias discursivas.

A partir disso, a pesquisa buscou atuar como uma lente de aumento sobre os temas cotidianos da instituição, bem como realçar os regimes de interação que mais se destacaram no momento das entrevistas. Ademais, estas relações estão em constante sobreposição e alteração, pois se tratam de relações entre se-res humanos e podem ser alternadas ou totalmente modificadas de acordo com as mais diversas demandas, sejam elas de arranjo social, financeira, educativa, cultural, institucional ou de qualquer outra ordem.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. Parecer sobre a dissertação de mestrado ‘Mediação Profissional em Insti-

tuições Museais de Porto Alegre: atravessamentos discursivos’. Porto Alegre: PPGEdu/UFRGS, 2012.

· BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos (Org.)Inquietações e mudanças no ensino da arte. 5 ed. S.P.: Cortez, 2009.

· DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha? São Paulo: Ed. 34, 1998.

· FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO. São Paulo: Banco Safra, 2009.

· HUERTA, Ricard. Maestros y Museos: educar desde la invisibilidad. Valencia: PUV, 2010.

· LANDOWSKI, Eric. Interacciones arriesgadas. Lima: Universidad de Lima, 2009.

· LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.

· O’DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

· PILLAR, Analice Dutra. A educação do olhar no ensino das artes. 5.ed. Porto Alegre: Mediação, 2009.

· SANTANDER CULTURAL: um espaço sem fronteiras. Porto Alegre: Banco Santander, [200-?].

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dESENVOlVIMENTO dO PúBlIcO INTERNO. Reflexões acerca da importância de se investir nos funcionários de museusdEVElOPMENT Of INTERNAl AUdIENcE. Reflections about the importance

of investing in museum employees

Gabriela FigurelliUniversidade Lusófona de humanidades e Tecnologias, Lisboa.

Resumo: A partir do entendimento sobre Educação Não-Formal, Educação de Adul-tos e Educação associada à Museologia, o artigo propõe uma discussão a qual evi-dencia a relevância de se refletir sobre um público especifico dos museus, os seus funcionários. Chamado público interno dos museus, este grupo que compõe parte da equipe de front office, ocupa uma posição estratégica no que toca a manutenção da imagem da instituição e a satisfação da experiência museal dos visitantes.

Palavras-chave: Museologia e Educação. Educação Não-Formal. Público Interno.

Abstract: From an understanding of Non-Formal Education, Adult Education and Education related to Museology, the article proposes a discussion that highlights the importance of reflecting on one specific public museum audience: its employ-ees. Called the museum’s internal audience, this group includes the front office team and occupies a strategic position in relation to maintaining the image of the institution and visitor satisfaction with the museum experience.

Keywords: Museology and Education. Non-Formal Education. Internal Audience.

INTROdUçãO

É amplo o entendimento de que os museus se assumem enquanto espaços des-tinados à Educação Não-Formal que, teoricamente, privilegia a aprendizagem para todas as idades e ao longo da vida. Contudo, esta afirmação contém em suas entrelinhas possibilidades de questionamentos que comumente passam desapercebidos: Até que ponto, profissionais e públicos percebem o museu como espaço de aprendizagem para todas as idades? Na prática, como os mu-seus expandem sua ação educativa para além do público escolar? Que tipo(s) de aprendizagem(ns) os museus estimulam nos adultos? Qual o vínculo existente entre um trabalhador de museu e o patrimônio institucionalizado pela insti-tuição museológica em que ele atua? Estes questionamentos apontam para um grupo que, freqüentemente, fica à margem da atenção dispensada pelos setores educativos dos museus. Um grupo formado pelos trabalhadores que atuam nas ins-tituições museológicas mas não possuem formação na área da Museologia. Profis-sionais que fazem os serviços de apoio, como a segurança, a limpeza, a manutenção

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e a recepção. Pessoas que convivem diariamente com bens culturais e não per-cebem efetivamente sua relevância, que trabalham num ambiente educativo e não extraem proveito deste espaço, neste sentido. Este grupo que participa da rotina das instituições museológicas, a que pode-se chamar de público interno dos museus e que geralmente é esquecido pelo setor educativo.

Por entender que a Museologia precisa considerar o interior do museu como espaço de ação, e seu público interno como público em potencial, o presente estudo propõe que a equipe de trabalhadores do museu seja o público-alvo desta investigação. De tal modo, são abordados temas que justificam esta escolha e re-forçam o entendimento de que o caráter educativo do museu precisa ser pratica-do nas diferentes esferas da instituição, envolvendo o maior número de pessoas, dos mais diferentes grupos. Para tanto, o estudo adota como objetivos: refletir sobre a prática da Educação Não-Formal em museus direcionada aos adultos e especificamente ao grupo de trabalhadores de museus; trazer para o foco de dis-cussão este grupo e evidenciar a necessidade de se atentar para o público interno dos museus; despertar o interesse dos profissionais de museus e estimular uma ação no sentido de privilegiar o desenvolvimento deste público, tanto a nível profissional como pessoal. O estudo utiliza-se de pesquisa bibliográfica para re-fletir sobre Educação Não-Formal, Educação de Adultos, Educação no âmbito da Museologia, o público interno dos museus e ações educativas direcionadas aos trabalhadores de museus. As reflexões baseiam-se, sobretudo, nas idéias de Pau-lo Freire (1988) que entende a Educação como um meio para o indivíduo cons-truir uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço, que estimula a análise, a reflexão, o diálogo, o debate, a ação; da museóloga brasileira Waldisa Rússio Camargo Guarnieri (1984), que entende cultura como expressão humana que envolve idéias, valores e sentimentos, e que evidencia sua impor-tância para a compreensão do ser humano e o desenvolvimento da sociedade; e também nas idéias da museóloga e educadora brasileira Maria Célia Teixeira Moura Santos (2008) que defende a educação como peça fundamental do proces-so museológico, que tem no patrimônio cultural um referencial para o exercício da cidadania e para o desenvolvimento social por meio do processo educativo.

1. EdUcAçãO

Diante dos múltiplos desafios do presente e do futuro, a Educação coloca-se como uma questão indispensável à humanidade na sua construção dos ideais de respeito, igualdade, justiça social e progresso. O presente estudo acredita no papel essencial da Educação para o desenvolvimento contínuo, tanto das pes-soas como da sociedade. Não como uma ‘solução milagrosa’ mas como uma via que conduza a um desenvolvimento humano mais harmonioso, mais autêntico, mais igualitário, de modo a ajudar no processo de recuo da exclusão social, das incompreensões, das opressões, das desigualdades, da intolerância, da alienação (DELORS, 1998).

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O estudo baseia-se também na premissa de que o conceito de Educação, o qual engloba processos de ensino e aprendizagem, tem estendido-se tanto vertical — por entender que os seres humanos educam-se ao longo de toda a sua biografia — como horizontalmente — por compreender que não se educa somente na escola e na família, mas por meio de uma multiplicidade de circunstâncias — o que de-monstra que a Educação no século XX reformulou-se enquanto atividade social, ampliando o seu alcance e envolvendo um número cada vez maior de pessoas e situações, dando origem a uma prática educativa socialmente mais consciente.

Sob esta perspectiva, entende-se que a prática educativa deve sustentar-se na idéia de que Educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados (FREIRE, 1988), que partilham e criam conheci-mentos e saberes, tendo em consideração seus percursos de vida. A Educação percebida como um processo do ser humano, que através da diversidade das suas experiências aprende a exprimir-se, a comunicar-se, a interrogar o mundo (SILVESTRE, 2003), e interagir com o seu meio de uma forma mais consciente e engajada.

E são justamente estas concepções de Educação, ligadas as idéias sociocons-trutivistas de mediação das relações dos indivíduos com o meio, que se fazem presente na Museologia. Entendimentos que tornam-se essenciais para o desen-volvimento de um trabalho patrimonial engajado com o social, comprometido com a qualidade de vida das pessoas, que pretende-se inserido no cotidiano dos indivíduos e que se torna viável quando existe a compreensão do alcance abran-gente da Educação, a qual expande-se por diversos espaços e tempos da vida.

2. EdUcAçãO NãO-fORMAl

Ao reconhecer que as situações e os lugares de aprendizagem são múltiplos e diversos, ampliam-se as oportunidades de partilhas e construções, expande-se consideravelmente o espaço de atuação da Educação e suas contribuições para a vida das pessoas. Nesta linha, o museu disponibiliza-se como um destes espaços possíveis para a prática educativa, e caracteriza-se como um lugar propício, so-bretudo, para a Educação Não-Formal.

Ainda que as instituições museológicas e o patrimônio possibilitem o de-senvolvimento de ações nas três esferas da Educação — formal, não-formal e informal — é a Educação Não-Formal o alvo da atenção deste estudo por ser per-cebida como toda a atividade educativa, organizada e sistemática, realizada fora do marco do sistema oficial, criada para facilitar a aprendizagem a determina-dos grupos da população [tanto adultos como crianças] e que abrange iniciati-vas voltadas para questões relacionadas ao cotidiano dos indivíduos (COOMBS; AHMED, 1974). A Educação Não-Formal proporciona espaços de aprendizagem de saberes para a vida em coletividade, envolvendo tanto a aprendizagem de or-dem subjetiva — relativa ao plano emocional e cognitivo das pessoas –, como a

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aprendizagem de habilidades corporais, técnicas, manuais etc., que capacitam os participantes para o desenvolvimento de uma atividade de criação. Portanto, é mais difusa, mais flexível, menos hierárquica e menos burocrática se compa-rada com a Educação Formal; enquanto é mais intencionada, estruturada, plani-ficada e metódica se comparada com a Educação Informal.

De acordo com von Simson (2007), o principal objetivo dessa corrente edu-cativa é a formação de cidadãos aptos a solucionar problemas do cotidiano, de-senvolver habilidades, capacitar-se para o trabalho, organizar-se coletivamente, apurar a compreensão do mundo à sua volta e ler criticamente a informação que recebem. Isso é feito pela valorização de elementos culturais já existentes na co-munidade, e às vezes mesclados com novos elementos introduzidos pelos educa-dores. A Educação Não-Formal possui flexibilidade seja na adaptação dos conteú-dos de aprendizagem para cada grupo, nas metodologias de trabalho e estratégias utilizadas, ou ainda na não-fixação de tempos e espaços para o desenvolvimento das ações educativas. Caracteriza-se também por abordar simultaneamente di-versas áreas do conhecimento; por privilegiar a aprendizagem baseada em aspec-tos do conhecimento prévio, da experiência de vida, do cotidiano dos envolvidos; por trabalhar com a diversidade — etária, étnica, de gênero, econômica, de classe social — além de possibilitar a participação e o diálogo, entre outras característi-cas (Chiovatto, 2010). No entanto, suas atividades obedecem a intencionalidades e objetivos, contam com planejamento e são organizadas conscientemente.

E são justamente estas características que aproximam a Educação Não-For-mal da Museologia comprometida com a sociedade, fazendo com que a Educa-ção Não-Formal seja a estratégia favorável para viabilizar mudanças desejadas no âmbito patrimonial. Ainda que o museu possa ser ambiente para todo tipo de ação educativa, tanto formal como informal, é a Educação Não-Formal aquela que mais espaço ocupa nas instituições museológicas. Isto porque as ações edu-cativas organizadas pelos museus têm um caráter não cumulativo, são pontuais, não apresentam conteúdos organizados numa seqüência formal mas possuem intencionalidades, contemplam a aprendizagem baseada em aspectos do conhe-cimento prévio dos envolvidos, além de oferecem flexibilidade de tempo e espaço.

Todos os âmbitos da Educação são igualmente importantes à Educação inte-gral que se pretende para os indivíduos, onde as ações podem ser utilizadas de forma complementar e colaborativa (SILVESTRE, 2003); onde as três esferas da Educação formam uma rede de aprendizagem que torna o aprendizado possível para todos os membros da sociedade, da infância à velhice, de acordo com suas necessidades e interesses. E é justamente a idéia de uma Educação ao longo de toda a vida que deve prevalecer na sociedade, em que as pessoas assumam uma postura de aprendiz perante as oportunidades e desafios da vida. E ao prevale-cer esta idéia, amplia-se o alcance da Educação enquanto processo vantajoso ao desenvolvimento do ser humano, que se faz forte aliada no amadurecimento do indivíduo ao potencializar sua forma de ser e estar no mundo e, conseqüente-mente, de extrair ensinamentos das mais diversas vivências.

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3. EdUcAçãO dE AdUlTOS

Em sociedades baseadas no conhecimento, a Educação de Adulto tem se tornado essencial tanto nas comunidades como nos locais de trabalho. As novas deman-das da sociedade e as expectativas de crescimento profissional requerem, duran-te toda a vida do indivíduo, uma constante atualização de seus conhecimentos e de suas habilidades (UNESCO, 1999). Para Delors (1998) a evolução rápida do mundo exige uma atualização contínua dos saberes, o que significa dizer que a bagagem de conhecimentos adquiridas na juventude não será suficiente para o indivíduo se manter ativo e competitivo no mercado. Logo, pensar Educação de Adultos é pensar no constante estímulo ao indivíduo, no seu desenvolvimento gradativo e no investimento e retorno para a sociedade, pois como afirma a De-claração de Hamburgo (UNESCO, 1999) acredita-se que a educação de jovens e adultos é um dos principais meios para se aumentar significativamente a criati-vidade e a produtividade, transformando-as numa condição indispensável para se enfrentar os problemas de um mundo caracterizado por rápidas transforma-ções e crescente complexidade e riscos (UNESCO, 1999).

Ao entender que a Educação de Adultos

[...] engloba todo o processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas conside-

radas ‘adultas’ pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conheci-

mento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcionando-as para a

satisfação de suas necessidades e as de sua sociedade. (UNESCO, 1999, p.19),

Entende-se também que a Educação de Adultos é um processo de comunica-

ção, que vai mais além do que as aulas, do que o saber acadêmico, do que o saber técnico, que deve projetar-se mais além do mundo ‘objetivo’, para se integrar com o mundo ‘social’ e ‘subjetivo’ (REQUEJO OSÓRIO, 2005). Que privilegie os interesses dos adultos envolvidos no processo, que os estimule de acordo com o contexto em que estão inseridos, de forma a criar sinergias pessoais e comu-nitárias com vista a um desenvolvimento integrado e sustentado (SILVESTRE, 2003). Um processo que alargue as competências e as responsabilidades dos envolvidos, nas mais diversas dimensões da vida, proporcionando o desen-volvimento e o amadurecimento. E que estas abordagens estejam baseadas no patrimônio cultural comum, nos valores e nas experiências anteriores de cada comunidade, e que estimulem o engajamento ativo e as expressões dos cidadãos nas sociedades em que vivem (UNESCO, 1999).

Para Silvestre (2003) o objetivo da Educação de Adultos passa por estimular o desenvolvimento de cidadãos responsáveis e com capacidade de participação, com vista a satisfazer todas as dimensões da vida, perseguindo os objetivos de uma sociedade plena e harmoniosa, justa, solidária, tolerante e pacífica. O que leva a compreender que o intuito não está centrado exclusivamente na instrução, mas

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também no desenvolvimento que cria uma atmosfera de curiosidade intelectu-al, de liberdade social e de tolerância, que estimula em cada pessoa a necessidade de ser parte ativa no desenvolvimento da vida cultural do seu tempo. Os objeti-vos da Educação de Adultos, vistos como um processo de longo prazo, desenvol-vem a autonomia e o senso de responsabilidade das pessoas e das comunidades, fortalecendo a capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na eco-nomia, na cultura e na sociedade como um todo; promovem a coexistência, a tolerância e a participação criativa e crítica dos cidadãos em suas comunidades, permitindo assim que as pessoas controlem seus destinos e encarem os desafios que se encontram à frente (UNESCO, 1999).

Contudo, não basta que o Estado, a Sociedade Civil e o Sistema Educativo percebam oportunidades de aprendizagem no cotidiano das pessoas. É neces-sário que o indivíduo reconheça os acontecimentos em sua vida como oportu-nidades para a aprendizagem e extraia proveito para seu próprio crescimento e desenvolvimento. Há que se estimular uma postura de aprendiz perante a vida, potencializar o olhar dos envolvidos e revelar os ganhos que se obtém através do processo de aprendizagem, por que a oportunidade para a aprendizagem se transforma, efetivamente, em elemento para a aprendizagem através da ação (atitude) do educando, e não somente pela ação do educador.

4. A EdUcAçãO NA MUSEOlOgIA

Estimular uma postura de aprendiz perante a vida, potencializar o olhar e qua-lificar a relação que o indivíduo estabelece com o patrimônio são algumas das ações que a Museologia aliada à Educação e comprometida com o social pode desenvolver. Porém, esta colocação só faz sentido para os museus que assumem o alargamento da noção de Educação no âmbito da Museologia como um reflexo da ampliação do foco de interesse das discussões na área, o qual expandiu-se das coleções ao fator humano nas instituições museológicas. Acredita-se que o cres-cimento no interesse pelo potencial educativo está atrelado a afirmação de rela-ções mais amplas com os públicos as quais demandam uma maior qualificação do contato com o espaço e o acervo, e tem originado não só projetos e ações educa-tivas, como a organização de linhas de reflexão e atuação, baseadas em estudos e pesquisas que aproximam Educação e Museologia e agregam criticidade à prática.

Isso explica a posição que a Educação vem assumindo no contexto museoló-gico, associada não apenas ao ‘descrever ou afirmar’ mas ao ‘desconstruir e res-significar’. Cresce entre as instituições museológicas o posicionamento contrário às maneiras tradicionais de conhecer e apresentar objetos e que pretende levar em conta que os museus também são espaços dialógicos (PUIG, 2009:54), abertos à reflexão, ao debate, à construção, e que assumem o comprometimento com o ser humano e a sociedade da qual fazem parte. Um posicionamento que se espera seja, cada vez mais, assumido e refletido nas ações de instituições que não sejam sacralizadoras de valores herdados sobretudo do passado, mas sim de museus que

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sejam fóruns, espaços de encontros e debates, espaços em que as coisas se produ-zem e não apenas o já produzido é comunicado (SANTOS, 1997:24). Um posicio-namento que faça dos museus, lugares em contínua construção e que se supõe estejam abertos à contribuição do público para fazer desta construção uma ação coletiva, marcada por diversas vozes.

Se no princípio via-se apenas o setor educativo como espaço destinado às ações educativas, hoje, cresce o entendimento de que os princípios educacionais podem (e precisam) permear as diferentes funções museológicas fazendo-se presente seja na preservação, na documentação, na pesquisa, na exposição, na comunicação, na interpretação, e em todos os espaços de atuação de um museu, estimulando assim a coesão entre as diferentes atividades museológicas (SANTOS, 2008).

Este alcance está diretamente relacionado ao conceito de Educação que os profissionais adotam, além da percepção e da apropriação que fazem do seu vasto potencial. Considerar a Educação um suporte para a estruturação e o de-senvolvimento das instituições museológicas, fornecendo subsídios cognitivos para o museólogo criar e renovar processos, serviços e produtos, possibilita que a Educação agregue qualidade à instituição e sobretudo às relações humanas. Estender as atuações da Educação para os outros setores além do educativo, sus-citando questionamentos, debates, reflexões, criações e mudanças entre os cola-boradores, é perceber o museu como um espaço — genuinamente — educativo, um espaço das pessoas e para as pessoas.

É certo que esta percepção não é unanimidade entre os profissionais que atu-am em museus. Muitos ainda concebem a Educação, somente, como a respon-sabilidade de um setor compacto, como uma justificativa institucional e social. Porém, a Educação precisa ser percebida como um entendimento que influencia o modo de pensar e atuar dos profissionais dos museus e assim se fazer presente nas diferentes atividades desenvolvidas por uma instituição museológica. É des-ta forma que o impacto do patrimônio cultural na vida das pessoas será alarga-do, ao auxiliar o indivíduo na reflexão do sentido da vida, ao instrumentalizá-lo para qualificar a relação que estabelece com a sua própria realidade e também ao contribuir para o seu processo de reconhecimento e afirmação, ligado aos con-ceitos de cultura, identidade, memória, pertencimento, entre outros conceitos pertinentes ao processo de autoconhecimento do indivíduo.

A partir de diferentes justificativas, a função educativa vem sendo utilizada ao lon-go dos anos para validar a utilidade social das instituições museológicas. Entretanto, a forma de entendê-la e aplicá-la varia bastante, sendo reflexo do posicionamento polí-tico e ideológico dos profissionais que atuam em museus e também dos conceitos que adotam e transparecem nas ações. Limitado à teoria, centrado na prática, restrito ao setor educativo, articulado aos diversos setores, direcionado ao público escolar, esten-dido aos múltiplos públicos... são diferentes as maneiras de interpretar e implementar o potencial educativo presente nos museus. Na maioria das vezes, a implementação do seu potencial educativo está em sintonia com os interesses e as diretrizes assumi-dos pela instituição, transparecendo a identidade e os valores da organização.

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Nesse âmbito, acredita-se e defende-se, que a função educativa das institui-ções museológicas passe pela criação de oportunidades de aprendizagem que utilizem o patrimônio como recurso para o questionamento, para a revisão de conceitos e opiniões, para a construção de conhecimentos, para o estímulo aos diferentes sentidos, para o desenvolvimento de habilidades, propiciando outras maneiras de desvendar e compreender o mundo. Função educativa que se tra-duza em ações baseadas em metodologias próprias que permitam a formação de um sujeito histórico-social que analisa criticamente, que recria e constrói a partir de um referencial que se situa nos bens (materiais e imateriais), entendi-dos como patrimônio cultural, nas suas mais diferentes características. Ativi-dades que considerem o museu como espaço propício de articulação do afetivo, do emotivo, do sensorial e do cognitivo, do abstrato e da construção do conhe-cimento (SANTOS, 1997:25), que percebe o humano como o foco de atenção do trabalho museológico.

5. PúBlIcO INTERNO dE MUSEUS

O conceito de público de museus foi bastante alargado no decorrer dos tempos. Se antes considerava-se como o principal público dos museus, majoritariamen-te, os grupos escolares, visitantes locais e turistas, atualmente esta noção é mui-to mais abrangente e diversificada. Governo, sociedade civil, patrocinadores, grupos locais, colaboradores, e mais recentemente, a própria equipe do museu, são considerados públicos das instituições museológicas, mesmo que ainda não sejam usualmente o principal alvo da atenção dos profissionais dos museus. Isto demonstra a existência de diferentes tipos de relações entre o público e a insti-tuição, podendo um indivíduo assumir o papel de visitante, utilizador, benefici-ário, colaborador, em diferentes momentos.

Soma-se a esta ampliação da noção de público, o fato da própria palavra pas-sar a ser empregada no plural. Ao invés de discutir-se sobre ‘o público do mu-seu’, hoje debate-se sobre ‘os públicos do museu’, por entender que são diversos os grupos que freqüentam os museus com perfis, necessidades e expectativas diferentes, e que portanto merecem ser foco de atenção, análise e estudo especí-fico. Ainda que os diferentes perfis de público de museu sejam merecedores de investigação, um perfil especificamente configura-se no foco de atenção deste estudo, justamente por não ser alvo freqüente de pesquisas e também por ser coerente com a proposta da Museologia que se assume social e que vê todo indi-víduo da sociedade como público potencial do museu. É o que se convencionou chamar de público interno, formado pela equipe de funcionários do museu.

Entendimento difundido pela área da gestão, da prestação de serviços e do marketing, público interno é a denominação dada ao conjunto de indivíduos que têm vínculo institucional com uma organização, de maneira remunerada e que submetem-se a orientações diretivas e gerenciais. São as pessoas que estão dentro de uma instituição, ligadas a sua estrutura organizacional e que formam

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o seu quadro de funcionários, nos mais diversos níveis hierárquicos. No âmbito dos museus, público interno engloba os profissionais que possuem diferentes vínculos com a instituição como empregados ou prestadores de serviço.

O presente estudo adota um recorte para sua pesquisa e reconhece como pú-blico interno de museus, os profissionais que atuam diariamente no interior dos museus, seja nos espaços expositivos, na recepção, ou nos bastidores da institui-ção. Trabalhadores que têm como responsabilidade zelar pelo patrimônio pre-servado, tanto a coleção como o prédio do museu, auxiliar na infra-estrutura da organização, além recepcionar os visitantes e fornecer informações relacionadas ao funcionamento do museu. Ainda que não possuam formação acadêmica na área da Museologia, visto que não desempenham funções técnicas no campo da Museologia, mas sim funções que dão suporte ao funcionamento do museu, são estes os trabalhadores que atuam próximo ao público do museu, estabelecendo contato com as pessoas através dos serviços ao visitante e portanto representam a instituição, aos olhos do visitante, sendo a imagem do museu para o público visitante, em um primeiro momento.

No entanto, freqüentemente, estes trabalhadores não possuem (ou seria, não recebem?) o preparo necessário para recepcionar o público visitante, faltando--lhes informações básicas, postura acolhedora, entendimento sobre o ambiente que lhe envolve, interesse pela coleção. A grande maioria depara-se diariamente com estes bens culturais e não compreende sua relevância, trabalha num am-biente educativo e não extrai proveito deste espaço. Afinal, existe alguma rela-ção entre um trabalhador de museu e o patrimônio institucionalizado pelo mu-seu em que ele atua? Soma-se a este despreparo, ao baixo (ou nulo) investimen-to na formação do trabalhador, uma baixa auto-estima deste sujeito enquanto funcionário de um museu, que não percebe a relevância do seu trabalho para o funcionamento da instituição.

Entendendo que parte deste grupo de funcionários é considerado o front office da instituição, faz-se necessário que esta equipe compreenda a importância da sua atuação, o impacto da sua conduta na imagem do museu. Os trabalhadores que lidam diretamente com o público têm uma grande responsabilidade pois eles representam a personificação da instituição e são responsáveis pela ima-gem da mesma junto ao público-cliente. Logo, é estratégico valorizar estes fun-cionários à altura da responsabilidade que têm em mãos e contribuir para elevar o seu grau de satisfação com o trabalho que realizam.

Além disso, a postura deste grupo de funcionários contribui para a experiência museal do visitante, uma vez que sua atitude pode minimizar os obstáculos ini-ciais, através da indicação de informações relacionadas a oferta de serviços e pro-gramação, orientações e direcionamentos de espaços, entre outros dados relacio-nados ao funcionamento da instituição. Estas experiências de orientação podem ter um impacto significativo não apenas sobre as ações iniciais das pessoas, mas também sobre a sua satisfação (FALK; DIERKING, 1992:58). Pérez (2000) também acredita que a atenção pessoal é um ingrediente básico valorizado pelos visitantes

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em um museu, e que a experiência da visita depende muito da percepção que o público tem do tratamento, dos cuidados e dos serviços recebidos, o que reforça a importância de se estar atento ao público, de se investir no acolhimento dos visitantes e contribuir para que sua experiência museal seja significativamente positiva e proveitosa.

Contudo, estimular a mudança de comportamentos, o desenvolvimento de habilidades e a reflexão sobre conceitos e entendimentos é tarefa bastante complexa, que de forma alguma pode ser impositiva. Precisa ser um convite em forma de ação educativa, apresentado à equipe do museu a partir das vantagens que pode lhe trazer, tanto no contexto profissional como pessoal.

6. AçõES EdUcATIVAS dIREcIONAdAS AOS fUNcIONáRIOS dE MUSEUS

Entendendo a Museologia como um campo do conhecimento que se adequa à sociedade e atua à serviço dos indivíduos; assumindo o compromisso do muse-ólogo de democratizar o acesso aos conhecimentos disponibilizando o acesso à todos, para que estes possam construir novos conhecimentos baseados na plu-ralidade que compõe a cultura humana; nada mais coerente do que estender a ação educativa para um público cada vez mais amplo.

Deste modo, é pertinente que o museu, enquanto espaço cultural, arraigado de informações, conhecimentos e saberes, que existe a serviço da comunidade, também seja utilizado como instrumento de desenvolvimento para seu públi-co interno, os seus funcionários (Silva, 2010), direcionando o foco de atenção e atuação para o interior da instituição, quando na grande maioria das vezes ele está direcionado, unicamente, para o exterior da instituição. E desta forma, ao privilegiar o público interno e sua qualificação — pessoal e profissional — pos-sa colaborar para que as possibilidades de uso educativo e social do patrimônio cultural comecem a suscitar mudanças já no interior do museu, junto à equipe de trabalhadores, também cidadãos da sociedade.

Envolver a equipe de funcionários do museu nas ações educativas, além de ser uma atitude coerente com a Museologia que se denomina social, é cooperar para o desenvolvimento pessoal do funcionário, através do estímulo à curio-sidade, ao olhar crítico, à multiplicidade de interpretações, à criação de novos significados e à relação mais consciente com o patrimônio, a memória, a identi-dade, a cultura e tudo mais que nos caracteriza e representa enquanto indivíduo e também grupo social.

É importante ter consciência de que ao privilegiar o desenvolvimento do grupo de funcionários que atua juntamente ao público, contribui-se para me-lhorar a experiência do visitante no museu. Isto porque, ao trabalhar próximo do público, este grupo de funcionários tem oportunidades mais freqüentes de interagir com os visitantes da instituição e assim implementar os conceitos de acolhida e receptividade que colaboram na qualificação da visita ao museu. Seja na recepção à entrada, na resposta à informação solicitada, na indicação de um

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espaço ou direção, no atendimento à necessidade manifestada, o funcionário colabora para que o visitante sinta-se confortável no ambiente e assim usufrua mais e melhor da experiência museal.

Considerando ainda que o funcionário é um agente de comunicação do mu-seu, sendo o elo de ligação entre a instituição e o público, acredita-se que a rela-ção entre funcionários e visitantes torna-se estratégica para a manutenção da imagem do museu. Devido ao freqüente contato estabelecido, crê-se que estes funcionários são, num primeiro momento, a imagem da instituição uma vez que o seu desempenho representa o museu aos olhos do visitante e desta for-ma contribui para a elaboração da imagem que este constrói acerca do museu que visita. Por conseguinte, a postura do funcionário influencia na imagem que o público estabelece sobre a instituição, e por este motivo torna-se estratégico pensar neste grupo de funcionários, uma vez que a imagem organizacional é importante para a credibilidade da instituição e também favorável à conquista de novos públicos e à fidelização dos já existentes.

Acredita-se que a qualidade de uma visita passa pela acolhida, pela aborda-gem inicial, pela interação com os funcionários e inclusive pela imagem que o visitante faz da equipe do museu. Logo, a imagem da instituição está relacionada ao atendimento prestado por seus funcionários e no como suas atitudes podem contribuir para a imagem que o visitante constrói do museu. Portanto, sendo o público a razão da existência de um museu, nada mais lógico que pensar no bem-estar do visitante e investir no processo de acolhida no museu, começando pela valorização e pelo desenvolvimento da equipe do front office.

Pensando numa forma de viabilizar as questões aqui apresentadas sugere-se a criação de ações educativas que abordem as temáticas propostas e colaborem para o desenvolvimento pessoal e profissional deste grupo de funcionários do museu. Por entender que estas ações devem estar relacionadas, cadenciadas e fundamentadas teoricamente, propõe-se a criação de um programa educativo em que as atividades sejam pensadas em conjunto, a partir de um diagnóstico, obje-tivos comuns e práticas avaliativas que contemplem todas as etapas. Por compre-ender a importância de se pensar atividades que estejam de acordo com o perfil da instituição e dos funcionários, que atendam as demandas de cada situação e que comportem flexibilidade e autonomia, propõe-se a criação de uma metodolo-gia para um programa educativo que sirva como um roteiro experimentado que busque facilitar a ação, minimizar os erros, auxiliar a comunicação e a compre-ensão sobre as ações. Que seja composta por referências, procedimentos e etapas que viabilizem seu planejamento, desenvolvimento e sua avaliação.

Uma metodologia que privilegie atividades que abordem o conceito de atendimento, receptividade, qualidade em prestação de serviços, imagem da instituição entre outros temas. Que estimule os funcionários a adotarem uma postura de acolhimento para com o público que visita o museu, que instiguem os funcionários a serem corteses, interessados, disponíveis, pacienciosos com o visitante, evidenciando que a sua atitude colabora para a construção de uma

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imagem positiva sobre o museu, podendo esta imagem acarretar visibilidade e atrair, conseqüentemente, recursos e investimentos para a instituição.

Uma metodologia que aborde e discuta os conceitos de cultura, patrimônio, memória, identidade e criticidade, refletindo sobre a relação destes conceitos com o museu, o patrimônio e as pessoas, ampliando o entendimento que este grupo tem sobre o seu local de trabalho e evidenciando de que maneiras estas concepções podem colaborar para o seu processo de autoconhecimento e desen-volvimento, tanto pessoal como profissional.

A proposta de uma metodologia para um programa educativo direcionado aos trabalhadores de museus configura-se no produto principal da tese de dou-toramento em Museologia que está sendo desenvolvida pela autora. A intenção é criar uma metodologia que será aplicada em um museu, como forma de ex-perimento. Uma metodologia que, baseada em fundamentos teóricos e proce-dimentos, contenha flexibilidade para adaptar-se a realidade de cada museu e grupo de funcionários e assim possa responder as demandas manifestadas em cada situação. Os resultados poderão ser conhecidos em breve, tão logo a pesqui-sa seja concluída.

cONclUSãO

Partindo dos questionamentos que levam à refletir sobre a relação que os fun-cionários dos museus estabelecem com o patrimônio institucionalizado, o pre-sente estudo discorre sobre os conceitos de Educação Não-Formal, Educação de Adultos e Educação atrelada à Museologia para aprofundar as reflexões sobre a temática e reforçar o entendimento de que a Educação existe para contribuir com a qualidade de vida das pessoas.

Ao defender a importância de se investir tanto a nível pessoal como profissio-nal no grupo de funcionários — aqui chamados de público interno dos museus — que trabalha próximo aos visitantes, o estudo enfatiza que a postura destes trabalhadores influencia diretamente na imagem que os visitantes criam sobre o museu já que, usualmente, o visitante estabelece contato com a equipe do front office do museu e não com a diretoria ou a equipe de conservação, por exemplo. Logo, é natural que este grupo de funcionários personifique a instituição aos olhos do visitante, configurando-se na imagem do museu em um primeiro mo-mento, revelando o impacto da sua conduta para a instituição. Além disso, o estu-do mostra que investir nos funcionários do museu é estratégico para a instituição já que ao estabelecer contato com os visitantes através do trabalho de acolhida, estes trabalhadores além de apresentar a instituição, também colaboram para mi-nimizar obstáculos que possam comprometer a experiência museal do visitante.

Portanto, estimular uma postura de receptividade dos funcionários do front office, é uma maneira de incentivar a aproximação com o público e promover um ambiente convidativo à uma experiência museal (positivamente) mais significa-tiva para o visitante. Proposta esta que se encontra em sintonia com a tendência

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em crescimento dos ambientes organizacionais que consideram, cada vez mais, seu público interno como um público estratégico para atingir os objetivos orga-nizacionais, neste caso a satisfação do público visitante que freqüenta o museu.

Por acreditar no papel essencial da Educação para o desenvolvimento con-tínuo das pessoas e da sociedade, no potencial do patrimônio e do museu como contributos para o processo de aprimoramento do pensamento crítico dos indi-víduos (Rússio, 1984), o estudo chama atenção para este público, geralmente es-quecido pelos museus, propõe uma reflexão sobre o tema e convida para a ação direcionada a este grupo, através da proposta de uma metodologia que privilegie o seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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MUSEUS E cRIATIVIdAdEMUSEUMS ANd cREATIVITy

Inês FerreiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Resumo: No século XXI, a criatividade tornou-se uma ferramenta fundamental para a adaptação à mudança. Muitos sistemas adotaram estratégias e métodos para se tor-narem criativos e também os museus o começam a fazer. Este artigo sistematiza a visão do museu enquanto sistema criativo, forjando o contexto para se estudar estra-tégias e métodos criativos aplicáveis ao contexto expositivo.

Palavras-chave: Museus. Criatividade. Expografia.

Abstract: In the twenty-first century creativity has become an essential tool for adapting to change. Many systems have adopted methods and strategies to become more creative and also museums have become to adopt such tools. This article ex-plores the vision of the museum as a creative system, forging the context for study-ing strategies and creative methods applicable to the exhibition context.

Keywords: Museums. Creativity. Expography.

INTROdUçãO

Em uma época em que a criatividade se torna uma ferramenta importante para a adaptação à mudança, pretende-se analisar o conceito da criatividade no con-texto dos museus. No item 1 faz-se uma abordagem geral da criatividade nos museus, baseada numa pesquisa bibliográfica aprofundada. Com base nessa análise, propõe-se, no item 2, um modelo do museu enquanto sistema criativo, integrando quatro áreas interrelacionadas: Gestão e Liderança; Comunicação; Programação; Contexto Expositivo. Apresentam-se exemplos de como o museu pode ser criativo e promover a criatividade em cada área e defende-se, no item 3, a importância da criatividade para os museus no século XXI, para enfrenta-rem os grandes desafios com que se deparam. Neste texto cria-se o contexto para que, de modo mais focado, se possa desenvolver investigação sobre estratégias e métodos de promoção da criatividade em cada uma das áreas do museu enquan-to sistema criativo. No seguimento deste trabalho pretende-se desenvolver um estudo sobre ferramentas para promover a criatividade no contexto expositivo.

A cRIATIVIdAdE NO cONTEXTO dOS MUSEUS

Nos anos 70 do século XX, a criatividade, como campo de investigação, ultrapas-sou as fronteiras da psicologia e ciências da educação e passou a ser considerada

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em empresas e instituições, em áreas como a liderança, a produção de ideias ou o marketing e comunicação (AMABILE, 1998, CULPEPPER, 2010). As transfor-mações na sociedade ocorridas nas últimas décadas exigem capacidades de pen-samento crítico e criativo para adaptação à mudança (FALK, [et al.], 2011, RO-BINSON, 2011) pelo que, a nível pessoal, institucional e empresarial, se acredita hoje que a criatividade é fundamental para lidar com os desafios do presente (LAU, 2011). Neste contexto, também nos museus a criatividade passou a ser valorizada. Antes já era considerada, essencialmente a dois níveis. Por um lado, porque as coleções dos museus — em especial as de arte e ciência — são reflexo do espírito criativo do homem ao longo dos tempos (KOTLER, 2003). Por outro lado, porque os serviços educativos dos museus sempre procuraram desenvol-ver as capacidades criativas, nomeadamente das crianças, através de oficinas (HOOPER-GREENHILL, 1994, MOFFAT; WOOLARD, 1999).

As mudanças profundas dos museus nas últimas décadas, com os visitan-tes a tornarem-se participantes, criou o contexto para que a criatividade ganhe importância. Os visitantes tornaram-se “intérpretes e performers de práticas de construção de significados” (HOOPER-GREENHILL, 2011, p. 362) e os museus passaram a considerar as necessidades e interesses únicos dos indivíduos (FALK, [et al.], 2011). Por outro lado, o conceito de ‘pós-museu’ (HOOPER-GREENHILL, 2007, p. 81-82) pressupõe a existência de “muitas vozes e muitas perspetivas,” envolvendo as comunidades no debate e partilha de perspetivas e na tomada de decisões — comunidades interpretativas. Os conceitos de museu participa-tivo (SIMON, 2010) e criatividade colaborativa (BRUMMETT, 2012) implicam que o visitante possa integrar práticas participativas. A construção e negocia-ção de significados pelas comunidades, assim como a criatividade colaborativa, exigem que o museu potencie as capacidades de pensamento crítico e criativo dos visitantes/participantes. No contexto atual dos museus a criatividade tem ganho uma importância grande, acompanhada por uma diversificação das ma-nifestações da criatividade dentro do museu, de que se procurará dar exemplo.

MUSEU, UM SISTEMA cRIATIVO

FLEMING (2007) defende que a criatividade é fundamental para que um mu-seu atinja de modo efetivo os fins a que se propõe, considerando que um museu pode ser criativo a diferentes níveis: na gestão das coleções, no contexto em que se move — local, regional, nacional, internacional — nas relações com políticos, parceiros, patrocinadores e amigos; na visão que assume, que deve ser ‘poderosa, apaixonada e criativa’; finalmente, na relação com os públicos. De acordo com Fleming, um museu que encara as coleções, o contexto em que se insere e a vi-são com criatividade, naturalmente cria uma relação criativa com os públicos, através das exposições, programas e parcerias. Fleming considera assim que a criatividade aplicada aos museus conduz a uma liderança marcada por carac-terísticas como a coragem, determinação, visão, ambição, consciência política

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e mediática, sugerindo que o maior obstáculo à liderança criativa nos museus é a atitude tradicional e conservadora ainda forte. KOTLER (2003), por sua vez, considera que a relação do museu com a criatividade se faz por duas vias. Por um lado, o museu celebra a criatividade de artistas, cientistas, historiadores, por outro lado, o museu ajuda a expressar a própria criatividade dos visitantes, os seus impulsos criativos, envolvendo-os em projetos participativos e colaborati-vos. Também a American Association of Museums (AAM, 2012) defende que a criatividade é a chave para o futuro dos museus e considera que estes são lugares onde a criatividade é celebrada, preservada e também gerada, apontando as duas linhas fundamentais referidas por Kotler — criatividade pela via da apreciação e criatividade pela via da criação.

A criatividade pode, efetivamente, ser analisada de múltiplos pontos de vis-ta num museu. Com base num levantamento bibliográfico de abordagens da criatividade nos museus, construiu-se um modelo sistémico que integra quatro níveis — gestão e liderança criativa; programação criativa; contexto expositivo e estratégias interpretativas criativas; comunicação criativa (ver Figura 1). A abordagem sistémica da criatividade no museu sugere que as partes se interre-lacionam. É verdade que um museu tradicional pode em determinado período salientar-se por oferecer programas bastante criativos, fruto por exemplo, de uma coordenação do serviço educativo criativa, e que esse ‘foco de criativida-de’ pode não conseguir expandir-se a todo o museu, mesmo que o influencie. Quando esse foco criativo parte da gestão e liderança, a capacidade de expansão por todo o sistema é mais forte. Outras perspetivas poderiam ser apontadas, mas considerou-se esta abrangente e adequada a um posterior estudo das ferramen-tas de promoção da criatividade em cada área do sistema criativo.

Fig. 1 - O Museu Criativo - Modelo Sistémico da Criatividade

no Museu proposto e defendido pela autora

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cRIATIVIdAdE NA gESTãO E lIdERANçA

FLEMING (2007) considera que uma liderança criativa pode transformar os museus e MIRARA (2007) sugere que uma liderança criativa é a chave para a sustentabilidade dos museus e o desenvolvimento de públicos, as grandes pre-ocupações no século XXI. Uma liderança com imaginação é fundamental para responder ao clima de mudança no financiamento público e encontrar novas formas de financiamento (NMDC, 2004) e de gerar impactos económicos e so-ciais (TRAVELS, 2006). RENTSCHLER (2001) considera que a criatividade na liderança de um museu de arte está a deixar de se focar unicamente na criati-vidade dos objetos colecionados e expostos, para se focar numa gestão criativa. O autor distingue o modelo de liderança tradicional, centrado no objeto, de um modelo que equilibra a criatividade artística e a gestão criativa, sugerindo que o diretor de um museu de arte deve ser julgado pelas estratégias criativas que implementa para diversificar a programação e financiar o museu e não simples-mente pelos objetos que expõe. SIMON (2010) vai mais longe no conceito de criatividade aplicada à liderança dos museus, propondo uma liderança partilha-da onde o visitante assume um papel criador, como curador, por exemplo. STA-PLETON (2007) defende um modelo de liderança baseado na energia e criativi-dade da comunidade, lembrando o modo como os museus de Sidney mudaram de programas focados nas coleções para programas orientados pelos interesses e criatividade da comunidade. Segundo Stapleton, os museus deixaram de su-portar sozinhos a chave da criatividade, para passarem a facilitar a expressão da criatividade da comunidade e partilhar com ela o processo criativo, através de uma liderança que promove as vozes e questões das comunidades.

Nos últimos anos o sistema Minerva de suporte à criatividade nos museus abriu um novo campo de experimentação (AMIGONI; SCHIAFFONATI, 2003). Este sistema apoia a criação de exposições, oferecendo a oportunidade de combi-nar diferentes critérios para criar exposições baseadas não só na cronologia, mas na história ou mensagem que se quer contar, nas emoções e sensações que se quer transmitir ou na escolha de envolvimentos imaginários que se quer criar. Partin-do do conceito de que uma exposição é uma forma de criatividade, este sistema abre caminho a futuras práticas colaborativas e novos caminhos de investigação.

cRIATIVIdAdE NA cOMUNIcAçãO dOS MUSEUS

A criatividade na comunicação está diretamente relacionada com a criativida-de na liderança do museu. Normalmente uma liderança criativa conduz a uma comunicação criativa, e uma liderança tradicional conduz a uma comunicação tradicional. Os museus sentem atualmente a competição do mercado de oferta recreativa e educacional, de grupos como a Warner e a Disney e de atividades de lazer promovidas por um sem número de entidades. KOTLER (2003) consi-dera que os museus conseguirão manter-se firmes no mercado se conseguirem

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providenciar valor único, ir ao encontro das necessidades dos visitantes e tor-narem-se acessíveis para o público. A comunicação no museu passa assim por perceber quais as necessidades dos diferentes públicos e como comunicar de forma percetível o seu valor único. Kotler refere que hoje, quando as pessoas vão a um museu, querem expressar os seus impulsos criativos, dar uma opi-nião, participar, expressar-se. Há vários modos de o fazer, segundo Kotler, por exemplo, através de programas participativos, ateliers artísticos, workshops de ciência, participação em investigações arqueológicas, exposição de objetos dos visitantes, participação em debates ou visitas, partilhando perspetivas. Ou seja, a comunicação do museu deve ter em conta que, na sociedade atual, os públicos estão habituados e querem participar, expressar-se, revelar os seus ‘likes.’ É para estes novos públicos que o museu, hoje, tem de comunicar. A cultura contem-porânea caracteriza-se por um crescer de atividades participativas e de criação colaborativa nos diferentes media, que evoluem rapidamente. É uma cultura onde as práticas colaborativas, a atitude ‘do it yourself’ e o desenvolvimento e partilha de conteúdos entraram no quotidiano das pessoas (BRUMMETT, 2012). Brummett considera que o museu, para comunicar na cultura contemporânea, deve potenciar a criatividade colaborativa, incorporando experiências e práti-cas colaborativas e participativas nas exposições e programas. As experiências no Denver Art Museum para comunicar de forma criativa e aliciante para um público jovem é um bom exemplo. O museu assumiu-se, durante um período experimental de três anos, como incubadora onde se introduziram e avaliaram experiências que depois se lançaram para arenas mais alargadas (DAM, 2012).

A Criatividade na Comunicação dos Museus entende-se, também, numa vi-são mais vasta. É a própria comunidade museológica que procura comunicar--se como comunidade criativa, mostrando o museu enquanto espaço criativo. A Criação do Center for the Future of Museums (AAM, 2012) é sinal de como os mu-seus, enquanto comunidade, estão preocupados em comunicar-se como espa-ços criativos, preparados para enfrentar o futuro e os desafios que ele trará, com a arma mais necessária à adaptação à mudança — a criatividade. Que práticas emergentes ajudam a desenvolver e sustentar as comunidades criativas? Como antecipar as necessidades que o futuro vai trazer? Estas são algumas questões que o Centro para o Futuro dos Museus trás para a discussão. Este Centro tem sido importante para os museus transcenderem as fronteiras tradicionais e po-sicionarem-se como uma massa crítica na sociedade (TORTORA, 2012). O centro lançou em janeiro de 2012 o programa Innovation Lab Grant que encoraja a criati-vidade. A maioria das candidaturas situa-se na área da educação e poucas na área da curadoria, sugerindo uma tendência para menor abertura à mudança e mais apego a um modelo tradicional de liderança por parte dos curadores (ibidem).

No Encontro anual 2012 da American Association of Museums, sob o tema “Co-munidade Criativa”, defendeu-se que a chave para o sucesso do futuro dos mu-seus passa pela constituição de uma comunidade museológica que pense cria-tivamente e descubra soluções criativas para os problemas dos museus a nível

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pessoal, local, nacional e global. Também na Europa a criatividade tem sido encarada como arma para adaptação à mudança. A declaração de 2009 como Ano Europeu da Criatividade e da Inovação teve como objetivo “sensibilizar os cidadãos para a importância da criatividade e da inovação enquanto competên-cias chave do desenvolvimento pessoal, social e económico.”(EC, 2009) Nesse mesmo ano e contexto, NEGRI (2009) publicou uma reflexão sobre os 30 anos do Prémio do Melhor Museu Europeu, considerando que a realidade dos museus da Europa é dinâmica e este prémio tem comunicado os museus como catalisado-res da criatividade e inovação.

A comunidade museológica procura comunicar-se como comunidade cria-tiva. Prova disso foi o facto de várias associações e redes de museus reagirem de imediato à proposta da comissão europeia para uma Europa Criativa, ao verifi-car que os museus não eram explicitamente considerados nesta proposta (MA, 2012, NEMO, 2012, WEIDE, 2011). Tanto a NEMO — Network of European Museum Organizations — como a MA — Museum Association — se manifes-taram, encorajando a Comissão Europeia a envolver os museus no desenho de novos programas, pois eles são centrais para a política cultural futura da união europeia, com um papel catalisador na regeneração urbana, no desenvolvimen-to económico e na escolha da europa como destino turístico. Embora se viva a Idade da criatividade — cidades/economia/nova classe criativa — na verdade, conforme refere, MURRAY (2009) os museus e o património, tão importantes na economia criativa e na atratividade das cidades, raramente são mencionados nos documentos de política económica criativa.

PROgRAMAS qUE POTENcIAM O PENSAMENTO cRíTIcO E cRIATIVO

A tradição de programas vocacionados para desenvolver a criatividade a partir das coleções, nomeadamente em museus de arte, é longa. A atividade pioneira de Victor D’Amico no MOMA de Nova York, desde 1937, ano em que inaugurou o projeto piloto educacional deste museu, é disso exemplo; os escritos teóricos sobre educação pela arte de Viktor Lowenfeld, em meados do século XX, foram também muito influentes no contexto educativo dos museus, nomeadamente nos Estados Unidos. Também em Portugal, já nos anos 50, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, foi feito um trabalho pioneiro a nível de educação e desenvolvimento da criatividade. Sob a direção de João Couto foi criado o Cen-tro de Investigação Artística e Museológica (COSTA, 1996), a partir do qual se desenvolveu o papel educacional do museu, dando origem à criação do Serviço Infantil, em 1953, sob a responsabilidade de Madalena Cabral, que viria a de-senvolver um trabalho percursor na educação artística e criativa com crianças (BARROS, 2008:22-25). A programação educativa em museus, orientada para o desenvolvimento criativo na infância, tem uma história de várias décadas em todo o mundo, acompanhando as teorias de aprendizagem e da criatividade. Nas duas últimas décadas, porém, a criatividade ultrapassou a fronteira dos museus

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de arte e do público infantil e passou a ser encarada de forma alargada, envolven-do outros públicos, considerando a criação de quem cria mas também de quem vê e aprecia. O treino de um olhar crítico e criativo passou a ser considerado numa grande diversidade de museus. Nos últimos anos têm surgido, nomea-damente nos Estados Unidos, muitos programas em museus especificamente orientados para desenvolver as capacidades de pensamento crítico e criativo. HERZ (2007) considera que se assiste a uma mudança nos serviços educativos dos museus, que deixam de estar focados nos conteúdos históricos para se foca-rem no ensinar a olhar e pensar.

Herz (ibidem) considera que a construção de significados a partir de obras de arte desenvolve capacidades de pensamento crítico e apresenta três projetos em museus, nos EUA que o atestam. Apesar de muitos programas nos museus surgirem com o objetivo de desenvolver o pensamento crítico, é difícil, porém, segundo Herz, avaliar se este é, efetivamente, ensinado. Outros autores (BUR-CHENAL; GROHE, 2007) sugerem que as capacidades envolvidas no “aprender a olhar” — observação, inferência, especulação — são capacidades de pensamen-to crítico essenciais ao sucesso em todas as matérias dos curricula. RITCHHART (2007) aponta outro projeto — ‘Zero’ desenvolvido pela Universidade de Har-vard, que procura perceber como é que o “saber pensar” pode ser alimentado em escolas, museus e empresas. Este projeto recorre às VTS — Visual Thinking Strategies -para reforçar a importância do olhar de perto, perguntar e questio-nar, do fazer interpretações, para desenvolver uma “cultura de pensar nos mu-seus”. A avaliação do projeto reforça a ideia de que pensar requer tempo. JONES (2002) sugere que os museus de história natural podem aprender com os de arte, apostando na literacia visual, ajudando os visitantes a olhar para, pensar sobre, inspirando novas interpretações em museus de história natural.

O Gughenheim Museum de Nova York (DOWNEY, [et al.], 2007) desenvol-veu, também um programa de residência artística denominado LTA — Lear-ning Through Art — que identificou seis capacidades do pensamento crítico — descrição, foco prolongado, hipóteses, raciocínio comprovativo, construção de esquemas, interpretação múltipla. A avaliação procurou medir se este pro-grama contribuía para aumentar essas capacidades nos estudantes. O resulta-do demonstrou que os alunos que participaram no projeto articulavam melhor os pensamentos, expressavam-se melhor, demonstravam mais capacidades de aplicar os conceitos apreendidos a outros contextos. Os autores sublinham a im-portância de visitas múltiplas, longas, a necessidade de continuidade, de tempo e de prática.

Outro projeto trianual desenvolvido na Flórida — Artful Citizenship — re-força a importância de continuidade e tempo nos projetos destinados a treinar capacidades de pensamento no museu (RAWLINSON, [et al.], 2007). Este projeto desenvolveu estratégias de questionar o entendimento crítico dos objetos, não pelo valor estético ou histórico, mas como agentes de mudança social. Foram usadas VTS e a avaliação demonstrou haver uma correlação entre a literacia

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visual e o pensamento crítico. Outros autores (LUKE, [et al.], 2007) apresentam um projeto desenvolvido pelo Isabella Stewart Gardner Museum com o Institute for Learning Innovation entre 2003 e 2006, que partiu da ideia de que o pensa-mento crítico potencia uma vida de valor e permite ser-se reflexivo e criativo e os programas dos museus de arte facilitam o desenvolvimento do pensamento criativo. O projeto foi implementado com o objetivo de desenvolver medidas para avaliar o pensamento crítico e verificar se visitas múltiplas aumentam o pensamento crítico. A avaliação comprovou que os alunos que participaram nos programas são mais capazes de usar o pensamento crítico.

O Centro para a Criatividade do Columbus Museum of Art (TORTORA, 2012) oferece programas para executivos, estudantes de medicina, educadores, crian-ças e indivíduos, que ensinam a aplicar o pensamento crítico em muitas situa-ções, a sentir-se confortável com a ambiguidade e desenvolver novos hábitos. Com recurso a técnicas que propõem um olhar mais profundo, atento e crítico sobre as obras de arte, incentivam as pessoas a sair da zona de conforto, pensar de modos diferentes e trabalhar em conjunto para resolver problemas. Partem da convicção de que observar uma obra e analisá-la em detalhe, sob diversos pontos de vista, imaginando possibilidades, é um processo parecido com a aná-lise de um problema do dia-a-dia para chegar a um diagnóstico.

Vários países têm apostado também nas parcerias para potenciar o desenvol-vimento da criatividade. É disso exemplo o projeto Creative Partnership, finan-ciado pelo governo inglês, desenvolvido em zonas carenciadas, com museus, es-colas, galerias, arquitetos, artistas, companhias de teatro e dança, monumentos (MA, 2003), criando oportunidades para as crianças desenvolverem a criativi-dade em atividades culturais. O modo de trabalhar é novo e inovador, flexível e adaptável às necessidades, criando relações continuadas e sustentáveis.

Outros estudos sugerem que parcerias imaginativas entre museus e a indús-trias, empresas, instituições educativas, culturais, comunitárias da zona em que se situam é relevante para captar audiências, financiamento e contribuir para o debate transformando os museus em espaços de encontro e formação de opinião (NMDC, 2004).

Dos exemplos indicados transparece a ideia de que os projetos que procuram desenvolver capacidades de pensar crítica e criativamente nos museus exigem continuidade, reforçando a ideia de que treinar a criatividade requer tempo e trabalho continuado.

cRIATIVIdAdE NO cONTEXTO EXPOSITIVO

A expografia, ou ‘contexto expositivo’ do museu inclui os objetos e peças expos-tas, os dispositivos expositivos, objetos mediadores, estratégias interpretativas, ou seja, tudo o que pode influenciar a relação do visitante com a exposição, que seja exterior a ele próprio. A experiência da visita resultará do cruzamento do con-texto expositivo com o contexto pessoal e social do visitante (FALK; DIERKING,

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1992). O contexto expositivo e estratégias interpretativas são as componentes da visita a uma exposição que interagem com todos os visitantes, participem ou não em atividades específicas.

Os espaços de aprendizagem informal — de que são exemplo os espaços ex-positivos dos museus — são importantes, segundo BARTELS, [et al.] (2010) para, numa época crítica, levantar questões críticas. BEDFORD (2004) reforça que uma exposição é sempre uma experiência de construção de sentidos e signifi-cados, pelo que a imaginação e o pensamento criativo e crítico são importantes nessa experiência. Outros autores lembram que a aprendizagem no museu é criativa (CABAN, [et al.] (2000) e o contexto da exposição pode facilitar o desen-volvimento da criatividade. GARTENHAUS (1997: 44-45) considera que os ob-jetos expostos nos museus são uma excelente provocação à criatividade e pen-samento crítico porque têm significado e permitem aproximações por meios mentais e físicos variados. O autor refere que os museus podem pôr as “mentes em movimento sem um destino pré-determinado” e dar ferramentas para que a experiência seja criativa, incentivando a focar os objetos que captam a atenção e intrigam, a não se ver tudo o que está exposto e demorar onde se considerar que vale mais a pena. Sugere ainda que não se leiam as tabelas antes de focar os objetos e os explorar pessoalmente. Explorar plenamente um objeto leva a criatividade e perceção ao limite. Usando palavras de Georgia O’Keffe, “ver leva tempo, tal como ter um amigo leva tempo.”(O’Keffe apud GARTENHAUS, 1997: 49) Na perspetiva de potenciar um contexto expositivo criativo, que incentive o desenvolvimento da criatividade do visitante, vários museus têm desenvolvido experiências diversas, algumas das quais se apontam aqui.

Uma experiência muito referenciada na literatura é o dispositivo ‘Explore a Painting in Depth’, inaugurado na Galeria de Arte de Ontário, Canadá, em 1993 (CLARKSON; WORTS, 2005). Este dispositivo consistia num espaço em frente a um quadro, no qual as pessoas se sentavam e, com auscultadores e um touchpad, podiam selecionar entre três propostas interpretativas. A primeira, uma intro-dução ‘curatorial’ de 3 minutos, a segunda, um ‘retrato do artista’, também de três minutos, pelas palavras dos seus amigos e parentes, a terceira, uma propos-ta para facilitar o envolvimento criativo com a obra, de 12 minutos. Esta última proposta começava com um convite a relaxar, ‘entrar’ na pintura, identificar cores e formas. No fim o visitante era convidado a descrever a experiência em palavras ou imagens num cartão — ‘Share your reaction card’. Esta experiência abriu portas a diferentes modos de explorar uma obra e potenciou o encontro pessoal e reflexivo do visitante com a obra, alertando a comunidade museoló-gica para a necessidade dos museus terem um papel mais proactivo na educa-ção da imaginação dos públicos (ibidem). O estudo das neurociências nas duas últimas décadas (DAMÁSIO, 2003, DAMÁSIO, 1999) trouxe evidências de que o pensamento é um fluxo de imagens que envolve todo o organismo — corpo, mente e espírito — o que reforça este papel que os dispositivos expositivos po-dem ter, incentivando um olhar crítico e imaginativo, inteiro, com corpo, mente

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e espírito. Clarkson e Worts referem que esta aproximação à interpretação “com corpo, mente e espírito” implica algumas necessidades a vários níveis: investi-gação; programas que treinem os colaboradores dos museus para facilitarem os processos criativos nos espaços expositivos, mudança da perspetiva, de um mu-seu conservador e ‘dador’ do saber, para um museu potenciador da criatividade.

Outra experiência referenciada na literatura é a de artistas-curadores e, mui-to especificamente, as inúmeras intervenções realizadas, neste âmbito, pelo ar-tista Fred Wilson (BEDFORD, 2004). Wilson construiu uma carreira baseada no questionar do significado sociológico dos objetos de coleções, realizando inter-venções provocatórias nas próprias exposições, que questionam e convidam a olhar de modos diferentes. Ao fazer os visitantes pensar sobre o significado dos objetos expostos e descobrir, por detrás do seu valor estético ou histórico, o seu significado social, Wilson leva os visitantes a imaginar, o que segundo GREENE (1998:45) consiste em “ver por detrás das coisas, como elas são, antecipar o que pode ser visto por uma nova perspetiva ou pelo olho do outro.” A imaginação está, segundo BEDFORD (2004), no coração da aprendizagem, e permite a uma pessoa ver e pensar de novos modos, aprender como aprender, e mudar, o que é o objetivo profundo da educação. Green reforça que a imaginação não é só a capacidade de formar imagens mentais, apesar de também o ser, mas o poder de moldar experiências em algo novo, criar situações fictícias e pôr-se a si pró-prio no lugar do outro, permitindo olhar por detrás das coisas que existem e perceber novas possibilidades e extensões da consciência. O museu tem, assim, um rico potencial ao incentivar o visitante a olhar por detrás das coisas, usar o pensamento criativo para ‘ver’ com o corpo, mente e espírito. O recurso a artis-tas curadores é um modo possível de o propiciar. Outra maneira de potenciar o pensamento crítico e criativo é recorrendo a estratégias de interpretação do tex-to que potenciem essas capacidades. SERRELL (1996) refere que as tabelas numa exposição devem tornar a experiência da visita mais profunda e estimulante, envolvendo todos os sentidos. A autora considera que as tabelas interpretativas devem contar histórias, narrar e não listar factos, servindo para explicar, orien-tar, questionar, informar, provocar, convidar à participação. As tabelas devem relacionar-se com a experiência pessoal de cada um — o que é isto para mim? Como é que o saber isto contribui para a minha vida? — contrastando pontos de vista, apresentando desafios, levando a uma mudança de atitude. O Denver Art Museum desenvolveu um projeto interpretativo de criação de tabelas experi-mentais, com interpretação de fim aberto. Estas tabelas apresentam significados múltiplos, opiniões, encorajam a olhar e comparar. Este projeto interpretativo baseou-se no trabalho de Mihaly Csikszentmihaly (CSILKSZENTMIHALYI; HERMANSON, 1995, FISCHER; LEVINSON, 2010), autor da noção de fluidez (flow, no original) em criatividade. Csikszentmihaly lista quatro dimensões das experiências estéticas: a primeira, sensorial, relacionada com ouvir, mover e ver. A segunda, emocional, relacionada com encontros que produzem sentimentos de espanto, admiração, prazer, medo ou alívio. A terceira, cognitiva, envolvendo

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pensar e entender. A quarta, transcendente, abarcando o sentimento que se tem perante o encontro estético. Com base nas quatro dimensões das experiências estéticas de Csikszentmihaly, Bedford propõe que se experimente trabalhar no modo subjuntivo, no domínio do ‘o que… se…?’ (BEDFORD, 2004) A prática do Museu de Denver com estratégias criativas de interpretação é rica. Servir o visi-tante com escolhas tornou-se o seu objetivo primário, considerando que mais escolhas leva a participação mais ativa (FISCHER; LEVINSON, 2010). Durante anos este museu ofereceu experiências de escrita criativa ao longo do museu, ex-traindo respostas pessoais dos seus dispositivos interpretativos — diários, ativi-dades de poesia, áreas de posting, entre outros. Não se tratava de um diálogo, mas de participação, pois o visitante falava e o museu não respondia. Atualmente, nas exposições temporárias, este museu utiliza o facebook e twitter como espaço de jornal online, com provocações na forma de status, updates, comments, twe-ets, e os visitantes respondem no mural ou twitter. Trata-se de experiências de interpretação colaborativa, comunicação bidirecional, servindo o visitante com escolhas. Uma outra experiência inovadora do Museu de Denver foi a criação de um cubo com experiências múltiplas (FISCHER; LEVINSON, 2010), que ajuda os visitantes a ver literal e figurativamente os diferentes lados de uma questão. A forma de cubo propícia que só se visualize um dos lados de cada vez, o que aju-da a que a quantidade de escrita não intimide. O formato ajuda a desestruturar uma ideia complexa em partes. O visitante pode passar muito ou pouco tempo com cada parte, ou seja, pode interpretar ao seu ritmo e modo próprio. A ideia de perspetivas múltiplas do cubo faz com que o visitante possa até nem ler mas saia do museu com a ideia de múltiplas perspetivas dos objetos. Concluindo, o recurso a dispositivos e estratégias interpretativas, nomeadamente de texto, que provoquem o visitante, questionem sobre os objetos, convidem a ver por detrás dos mesmos, por diferentes perspetivas, é poderoso para incentivar o visitante a usar o pensamento crítico e criativo nos museus. Embora este recurso seja pode-roso, muitos museus continuam a criar dispositivos interpretativos, nomeada-mente de texto, focados na disponibilização de informação histórica e estética, dando uma única perspetiva sobre os objetos, sem preocupações de questionar os visitantes. Considera-se que há necessidade, a este nível, de estudar sistemati-camente as ferramentas e instrumentos para potenciar o olhar crítico e criativo no contexto expositivo.

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MUSEU CRIATIVO

Gestão e Liderança Comunicação Programação Contexto Expositivo

Gestão criativa coleções Rec. Humanos/ reservas/

Relações criativas locais /nacionais/internacionais

Parcerias criativas/pares/ amigos /patrocinadores

Visão Criativa

Estratégia criativa de Financiamento

Liderança partilhada

Comunicar valor único de forma criativa

Resposta criativa às necessidades

Criatividade colaborativa

Comunicação criativa da comunidade dos Museus

Novos modos de participar

Criatividade na criação

Criatividade no olhar e pensar

Programas para ensinar a olhar crítica e criativamente

Programas para promover a expressão criativa

Literacia visual

Dispositivos interativos

Objetos mediadores

Artistas curadores

Tabelas interpretativas

Tabelas de fim aberto

Diários

Ferramentas e métodos para promover criatividade

Quadro 1 — Museu Criativo - diversidade de modos de promover a criatividade num museu, perspetiva da autora

cONTEXTO NOS MUSEUS NO SEcUlO XXI

No século XXI o Museu precisa de encontrar formas criativas de ser relevante e relacionar-se com as pessoas, financiar-se e ser sustentável. A criatividade pode ser aplicada a múltiplas áreas de atuação dos museus (ver Quadro 1). Um mu-seu, enquanto sistema, pode ter focos criativos e ser criativo na sua complexida-de de relações e funções. Em qualquer sistema, existem forças que, aplicadas em determinada área do sistema, se podem propagar a outras áreas. Por vezes é uma liderança criativa que impulsiona a que uma equipa seja criativa, que por sua vez pode impulsionar a criação de programas criativos. Outras vezes pode ser uma programação criativa que comunica uma imagem do museu enquanto espaço criativo, o que provoca depois a liderança para a mudança de estilo. A liderança é a área do sistema que se considera mais poderosa para difundir a criatividade no sistema, porque está em contacto com todas as áreas. A criatividade é o motor para o museu repensar a sua relação com a sociedade e o indivíduo no século XXI.

cONclUSãO

Este artigo abordou o modo como a criatividade pode ser pensada no contexto de um museu, propondo um modelo sistémico de museu criativo. Apresentaram-se diversos exemplos de como é que a criatividade pode ser desenvolvida em cada área desse sistema criativo. O modelo proposto cria o contexto para propostas de investigação futuras que queiram pensar ferramentas e métodos específicos para

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desenvolver e potenciar a criatividade em cada uma das áreas do Museu Criativo. No âmbito desta investigação em curso irão estudar-se as ferramentas e métodos específicos para potenciar a criatividade no contexto expositivo.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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A PAREdE dA RUA: modernidade do museu ao contrárioThE WAll STREET: modernity of the unlike museum

Isabel NogueiraCentro de Estudos Interdisciplinares do Século XX-CEIS20/Universidade de Coimbra,

Instituto Superior de Educação e Ciências, Lisboa

Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes-CIEBA/Universidade de Lisboa.

Resumo: A Europa está em crise. Viveremos o esgotamento dos auspiciosos ideais iluministas, baseados nos conceitos de liberdade, progresso e superação? Por outras palavras, um esgotamento da própria modernidade? Um fim para o qual, nomeada-mente, Jean-François Lyotard advertiu, em La condition postmoderne: rapport sur le savoir (1979). Jürgen Habermas responderia no ano seguinte ao texto de Lyotard, considerando que a modernidade seria um projecto não esgotado mas inacabado, tornando-se importante aprender com os erros e encontrar saídas, nomeadamente, nos tipos de recepção da arte. E é nesta questão que entroncamos a questão artística, que particularmente nos importa, na sua ligação com o contexto político e social.

Palavras-chave: Modernidade. Arte. Revolução.

Abstract: Europe is in crisis. We will live the exhaustion of auspicious Enlighten-ment ideals, based on the concepts of freedom, progress and overcome? In other words, an exhaustion of the modernity? A purpose for which, in particular, Jean-François Lyotard warned in La condition postmoderne: rapport sur le savoir (1979). Jürgen Habermas would reply in the following year Lyotard’s text, considering that modernity would be an unfinished project, but not exhausted, making it important to learn from mistakes and find solutions in particular the types of reception of art. It is this question that we turn on the artistic, particularly in that matter, in its con-nection with the social and political context.

Keywords: Modernity. Art. Revolution.

A Europa vive uma profunda crise, colocando-se em causa o programa da mo-dernidade e o seu projecto de realização da universalidade, final para o qual Jean-François Lyotard chamou a atenção em La condition postmoderne: rapport sur le savoir (1979), assim como para o final das metanarrativas1. A eficácia históri-ca dos pressupostos da Revolução Francesa (1879), instituída como revolução burguesa e liberal, é questionada. Anthony Giddens responde à questão “o que é a modernidade?”, justamente como os modos de organização social que emer-giram na Europa, cerca do século XVII, e que adquiriram uma influência mais ou menos universal2.

Numa perspectiva oposta à de Jean-François Lyotard, situa-se a de Jürgen Habermas — considerado um continuador da Escola de Frankfurt –, que no ano

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seguinte (1980) daria resposta às inquietações do filósofo francês, com o ensaio proferido oralmente e publicado em 1981 na revista New German Critique, com o título Modernity versus postmodernity. A modernidade seria um projecto não esgotado mas inacabado. O autor coloca a pergunta: «(...) devemos tentar man-ter as intenções do Iluminismo, eventualmente falíveis, ou devemos declarar a totalidade do projecto da modernidade uma causa perdida?» 3. Habermas enten-de que é possível um conhecimento universal e necessário aplicado à vida em sociedade e às formas de desenvolvimento4.

A solução passará por acreditar nas pequenas narrativas, na fragmentação temporal como critério para a compreensão da contemporaneidade Jürgen Ha-bermas considera que determinadas situações proeminentes nas sociedades contemporâneas, tais como o terrorismo, as políticas estéticas, as doutrinas e os dogmas, as instituições altamente hierarquizadas, o militarismo, são resul-tantes do uso dos meios de coacção da burocracia moderna. E conclui: «Penso que em vez de desistir da modernidade e do seu projecto como causa perdida, devemos aprender com os erros daqueles programas extravagantes que tenta-ram negar a modernidade. Talvez os tipos de recepção da arte possam oferecer um exemplo que, pelo menos, indica a direcção de uma saída»5. E é neste ponto que entroncamos a questão artística, que particularmente nos importa, na sua ligação com o contexto político e social.

E, neste sentido, pensemos a arte no seu contexto de recepção, mas igualmen-te de produção. E situemo-nos ainda mais especificamente na produção artística dos períodos politicamente agitados, revolucionários, se preferirmos. A questão europeia coloca-se de forma imperiosa, o seu eventual sucesso ou fracasso. E no caso de países como Portugal, vivem-se tempos especialmente difíceis. A crise económica, financeira, social e política sente-se claramente, estando na origem de mobilizações e de manifestações que recordam os tempos revolucionários do pós-25 de Abril de 1974.

Em 1974 acontecia o golpe militar que punha cobro a quarenta e oito anos de ditadura e, consequentemente, à Constituição de 1933. Derrubava-se o regime antidemocrático, colonialista, isolado e autoritário. Para este derrube terão con-tribuído as acções dos militares, especialmente aguçadas pela agonizante guerra colonial, assim como a ação histórica, mais ou menos clandestina, do movimen-to antifascista. Porém, as fundamentais mudanças políticas e sociais operadas num país fechado, conservador e pleno de urgências levaram tempo. E algumas nunca terão conhecido efectiva concretização. Como escrevera Manuel Antu-nes (1974): «De um dia para o outro tudo pareceu novo. Era o fim das palavras longamente proibidas (…) A revolução foi a festa. Festa dos cravos de Maio, da confraternização do Povo e das Forças Armadas, do entusiasmo colectivo (…) re-encontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo, para criar algo de novo. (…) A hora lírica está a passar. Começou a suceder-lhe a hora da ação»6.

A revolução acarretava uma dimensão altamente participada, de festa, dos cidadãos, bem como da aliança “Povo/MFA” O “Plano Revolucionário” estava

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em curso. O período que mediou o 1.º de Maio de 1974 e a tomada de posse do I Governo Constitucional, a 23 de julho de 1976, foi particularmente agitado. Eram as consequências de uma democracia muito jovem, instável e reivindica-tiva7, legitimada por um aglomerado de forças ligadas a diversas posições polí-ticas e sociais, nomeadamente, à forte movimentação sindical e às comissões de trabalhadores. À democratização seguiu-se a estabilização na democracia parla-mentar8, por entre uma sociedade fervilhante9 e um sistema económico frágil.

Na opinião de José Gil (2004): «O 25 de Abril abriu um processo complexo de luta intensa contra a não-inscrição, pelo menos num plano restrito, com os governos provisórios a tomarem medidas ”definitivas”, a criarem “factos (leis, instituições) irreversíveis” antes de caírem»10. Mas uma outra perspectiva pode pensar o 25 de Abril justamente como a possibilidade de uma inscrição, pelo menos e seguramente, no período revolucionário. A quente, é certo, mas inscri-ta, vivida, orgânica. Compreensivelmente fugaz neste contexto e que, portanto, não constituirá sustentáculo vinculativo. Mas uma inscrição verdadeira.

Retomando o domínio artístico, com a revolução de Abril apenas terão re-gressado efectivamente a Portugal os artistas que emigraram por motivos es-pecificamente políticos e não os que o tinham feito — a esmagadora maioria — principalmente por motivos artísticos, intelectuais, vivenciais, ou didáticos, evidenciando os problemas continuados da vida cultural e artística portuguesa. E esta emigração operou-se sobretudo rumo a Paris.

Com efeito, e salvo algumas exceções, os periódicos portugueses não con-feriam uma atenção profunda às questões da cultura e da arte, precisamente numa altura de liberdade de expressão. A política dominava a ordem do dia, mas seria importante falar dos objetos e dos artistas, assim como dos museus, do ensino artístico e da historiografia, que o país não dispunha de modo adequado. Nesta senda, a revista Colóquio/Artes (1971-1996), editada pela Fundação Calous-te Gulbenkian, assumiu um caráter único, apesar da existência de mais algumas publicações de mérito.

Nos anos imediatos ao 25 de Abril ter-se-á verificado a incapacidade de o Es-tado elaborar uma política cultural estruturante e coerente, continuando a cum-prir-se uma falta de articulação entre os diferentes intervenientes. Apostava-se, contudo, nas campanhas de dinamização cultural, capazes de envolver o Estado, o Movimento das Forças Armadas, a Junta de Salvação Nacional, a população e os artistas. Uma destas iniciativas foi a pintura do Painel do 10 de Junho (1974), em homenagem à revolução de Abril, realizada pelo Movimento Democrático de Artistas Plásticos, constituído no seio da Sociedade Nacional de Belas-Artes e que, apesar de efémero, desenvolveu algumas ações relevantes ao nível da in-tervenção pública. Para a execução do grande painel (4,5m x 24m) reuniram-se quarenta e oito participantes11 na Galeria Nacional de Arte Moderna — pavilhão à beira Tejo, em Belém, construído para albergar a Exposição do Mundo Português (1940), onde se realizava o Mercado do Povo, posteriormente usado como espa-ço de exposições, dirigido pela Direcção-Geral da Acção Cultural/Secretaria de

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Estado da Cultura –, pintando publicamente um painel, dividido em quarenta e oito quadrados, distribuídos por três andares, evocativos dos quarenta e oito anos do regime ditatorial.

Apesar de ter ficado bastante sectorizado, segundo Rui Mário Gonçalves (1988), no conjunto permitira ver a linguagem da arte moderna, entre o abstrac-cionismo e o neofigurativismo12, ou, na opinião de José-Augusto França (2000), uma junção de abstracto, conceptual e neo-realista13. Na perspectiva de Eurico Gonçalves (1992), o painel não terá sido inferior ao realizado em Cuba e divulga-do internacionalmente14. Segundo Ernesto de Sousa (1975), apesar da qualidade limitada do trabalho, os “bonecos para o Povo” foram vencidos pela “festa do Povo”15, ou, na óptica do pintor e crítico Rocha de Sousa, em 1975, o maior sig-nificado do mural seria a efectiva união dos operadores16. Em 1979, em jeito de balanço, Manuel Rosa escreveria que a pintura mural no pós-25 de Abril, como portadora de mensagem política para as massas, fora legitimamente figurati-va17. Do trabalho em questão, o mais importante a reter será o contexto revolu-cionário e de esperança que esteve na base da sua realização, mais relevante do que as considerações estéticas que se possam a respeito dele produzir.

A peça foi oferecida ao Movimento das Forças Armadas e esteve para ser en-viada à Bienal de Veneza, assim como ao Salon de la Jeune Peinture (Paris) mas, alegadamente por descuido das entidades competentes, não seria remetida, acabando por ser destruída pelo incêndio que consumiu a Galeria Nacional de Arte Moderna em Agosto de 1981. Como escrevera Manuel Augusto Araújo na Seara Nova (1976): «Nada ainda se sabia sobre a representação portuguesa na Bienal. (…) Passados dois anos e várias peripécias, nada se sabe. Às propostas de-mocráticas do Comité Organizador da Bienal de Veneza, o silêncio com que de-corre a escolha da nossa representação é inquietante, o que somado com outros critérios recuperados do passado mais próximo e alienante das artes plásticas

Painel do 10 de Junho (pormenor), Lisboa, 1974.

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portuguesas — para que se não estabeleçam as habituais esgrimas confucionis-tas diremos, sem deixar de ser um período alienante também, foi um período que viu produzir-se muita obra de arte válida — o que se torna ainda mais in-quietante»18. Certamente. O evento ficou registado também pela transmissão te-levisiva, em directo, interrompida no momento em que a companhia “A Comu-na” aparentemente satirizava a Igreja. Na sequência deste episódio, Júlio Pomar deixaria escrito no seu quadrado “A censura existe”.

Ter-se-á vivido, no período imediatamente após o 25 de Abril, um empenha-mento militante intenso por parte dos artistas, numa vivência da cultura “ao serviço do Povo”19. Foi a época dos slogans e contra-slogans: “A arte fascista faz mal à vista” (Marcelino Vespeira) — expressão proclamada no evento realiza-do pelo Movimento Democrático de Artistas Plásticos a 28 de Maio de 1974, no Palácio Foz, antiga sede da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, no qual os artistas ocultaram com um pano preto e uma faixa verde e vermelha a escultura de Francisco Franco que retratava Salazar20 –, “Contra a agressividade, criatividade” ou “A qualidade estética é progressista; a mediocridade é reacioná-ria” (Salette Tavares).

Foi um período de sonho e de desejo de futuro, no qual a arte veio para a rua. E esta transformou-se num museu ao contrário, com toda a iconografia da revo-lução na parede da rua. E que posteriormente saiu da rua para o museu, como arquivo histórico e artístico. Aliás, a modernidade estética nasce fora do quadro. Nasce na rua, na vivência cosmopolita, mais ou menos politizada. ́uma moderni-dade que, de certo modo, se aproxima da modernidade proposta por Baudelaire. Posteriormente é que transita para o domínio artístico. E juntamos duas moder-nidades: a europeia, instituída com o Iluminismo e com a Revolução Francesa, e a portuguesa, declarada com a instauração do regime democrático, em 1974. E é neste fogo cruzado que se vive. Será que a modernidade consegue sobreviver? Esperamos que sim. Uma coisa é certa. A parede da rua é sempre moderna.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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NOTAS

· 1 LYOTARD, Jean-François — A condição pós-moderna. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 1989.

· 2 Cf. GIDDENS, Anthony — As consequências da modernidade. 4.ª ed. Oeiras: Celta Editora, 2002, p. 1.

· 3 HABERMAS, Jürgen — Modernity — an incomplete project. In FOSTER, Hal (ed.) — The anti-aesthetic:

essays on postmodern culture. New York: The New Press, 2002, p. 9.

· 4 Ver MERQUIOR, José Guilherme — Jürgen Habermas e o Santo Graal do diálogo. Risco. Lisboa. N.º 6

(verão 1987), p. 5-19.

· 5 HABERMAS, Jürgen — Modernity — an incomplete project. Op. cit., p. 11-12.

· 6 ANTUNES, Manuel — Repensar Portugal. Brotéria: Cultura e Informação. Lisboa. Vol. 98, n.º 5/6 (maio/

jun. 1974), p. 459-461.

· 7 Ver MOREIRA, Vital — A edificação do novo sistema constitucional democrático. In REIS, António

(dir.) — Portugal contemporâneo. Lisboa: Publicações Alfa, 1992. Vol. 6, p. 81-116.

· 8 Ver CRUZ, Manuel Braga da — A evolução da democracia portuguesa. In PINTO, António Costa (co-

ord.) — Portugal contemporâneo. Madrid: Ediciones Sequitur, 2000, p. 122.

· 9 A proliferação de jornais foi, à época, assinalável, destacando-se, por exemplo, A Luta, O Dia, Jornal

Novo, O País, O Diabo, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Avante!, Poder Popular, Tempo, Revolução, Ex-

presso, Bandeira Vermelha, Primeiro de Janeiro, Voz do Povo, A Capital, Combate Socialista, Povo Livre, Diário

de Lisboa, etc. Muitas destas publicações desapareceram entretanto; outras desapareceram na altura,

por terem sido consideradas antirrevolucionárias, como os jornais A Época e Novidades.

· 10 GIL, José — Portugal, hoje: o medo de existir. 11.ª ed. Lisboa: Relógio D’Água, 2007, p. 17.

· 11 Alice Jorge, Ana Vieira, Ângelo de Sousa, António Charrua, António Domingues, António Mendes,

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António Palolo, António Sena, Artur Rosa, Calos Calvet, Costa Pinheiro, David Evans, Eduardo Nery,

Emília Nadal, Eurico Gonçalves, Fátima Vaz, Fernando de Azevedo, Guilherme Parente, Helena Al-

meida, Henrique Manuel, João Abel Manta, João Vieira, Joaquim Lima Carvalho, Jorge Martins, Jorge

Pinheiro, Jorge Vieira, José Escada, Júlio Pereira, Júlio Pomar, Justino Alves, Manuel Baptista, Manuel

Pires, Marcelino Vespeira, Maria Velez, Menez, Moniz Pereira, Nikias Skapinakis, Nuno San-Payo,

Querubim Lapa, René Bertholo, Rogério Ribeiro, Rolando Sá Nogueira, Sérgio Pombo, Teresa Dias Coe-

lho, Teresa Guimarães, Tomás Mateus, Vítor Fortes e Victor Palla.

· 12 Cf. GONÇALVES, Rui Mário — História da arte em Portugal: de 1945 à actualidade. Lisboa: Publicações

Alfa, 1988. Vol. 13, p. 134.

· 13 Cf. FRANÇA, José-Augusto — A arte e a sociedade portuguesa no século XX: 1910-2000. 4.ª ed. Lisboa:

Livros Horizonte, 2000, p. 63.

· 14 Cf. GONÇALVES, Eurico — O 25 de Abril e as artes plásticas. Diário de Notícias/Caderno 2. Lisboa.

N.º 44 959 (26 abr. 1992), p. 10; idem — Movimento Democrático de Artistas Plásticos: a intervenção

necessária. Flama. Lisboa. N.º 1378 (1974), p. 38-42.

· 15 Cf. SOUSA, Ernesto de — O mural do 10 de Junho ou a passagem ao acto. Colóquio/Artes. Lisboa: Fun-

dação Calouste Gulbenkian. N.º 19 (out. 1974), p. 45.

· 16 Cf. SOUSA, Rocha de — Painel dos artistas democratas/Galeria de Arte Moderna de Belém. Revista de

Artes Plásticas. Porto. N.º 6 (jan. 1975), p. 34.

· 17 Cf. ROSA, Manuel — O mural como elemento valorizador da paisagem urbana. Arte/Opinião. Lisboa:

Associação de Estudantes de Artes Plásticas e Design da ESBAL. N.º 5 (abr. 1979), p. 2-4.

· 18 ARAÚJO, Manuel Augusto — A Bienal de Veneza. Seara Nova. Lisboa. N.º 1570 (ago. 1976), p. 47.

· 19 Ver CHICÓ, Sílvia — As artes depois de Abril. JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa. N.º 94 (abr.

1984), p. 20-21.

· 20 Cf. MOVIMENTO Democrático de Artistas Plásticos: a arte fascista faz mal à vista. Flama. Lisboa. N.º

1370 (1974), p. 40-41.

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SUSTENTABIlIdAdE AMBIENTAl E APROPRIAçãO SOcIAl NO cONJUNTO hISTóRIcO PRAçA dA gRAçAEnvironmental Sustainability and Social Appropriation in Praça da graça historical Set

Ísis Meireles RodriguesUniversidade Federal do Piauí

Resumo: O presente artigo tem como tema o estudo sócio cultural e arquitetônico das transformações ocorridas na Praça da Graça, localizada no estado do Piauí, centro histórico do município de Parnaíba/Piauí/Brasil, e seu entorno imediato. Tem como objetivo compreender as intervenções ocorridas nessa Praça e sua relevância social, traçando um paralelo com a realidade em que se a mesma encontra na contempora-neidade e as atuais tendências de sustentabilidade.

Palavras-chave: Praça da Graça. Sustentabilidade. Patrimônio histórico e cultural. Piauí. Brasil

Abstract: This article focuses on the study of socio-cultural and architectural trans-formations in Praça da Graça, located in the state of Piauí, the historic center of the city of Parnaíba / Piauí / Brazil, and its immediate surroundings. Aims to un-derstand the interventions occurred in this square and its social relevance, tracing a parallel with the reality that if it finds in contemporary and current trends of sustainability.

Keywords: Praça da Graça. Sustainability. historical and cultural heritage. Piauí. Brazil.

1. INTROdUçãO

O presente artigo enquadra-se na temática Patrimônio, sustentabilidade social e ambiental, discute-se o urbanismo e a sustentabilidade na preservação do pa-trimônio. O recorte cronológico do objeto de estudo abrange os anos de 1970 a 1980, quando ocorreram significativas mudanças urbanas na Praça. O recorte espacial de estudo compreende o sítio da referida Praça, acrescido dos perfis das ruas que a ladeiam, aqui entendidos como o conjunto de fachadas face ao local, que compõem a paisagem urbana do conjunto.

A relevância da pesquisa se dá tanto no âmbito histórico como no patrimo-nial. O objeto integra a Paisagem Urbana Histórica de uma cidade de potencial turístico e econômico para o Piauí e vizinhança. A Praça de Nossa Senhora das Graças, ou Praça da Graça como é popularmente conhecida, deu início à forma-ção da vida urbana em Parnaíba. Nesse local ocorreram múltiplas sociabilidades que construíram a memória coletiva de uma sociedade.

O objeto pode ser compreendido como espaço de confluência, de caráter simbólico e de ordenamento urbano do município. É considerada lugar de me-mória, segundo Pierre Nora (1993) por possuir as três dimensões que definem

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esses espaços: simbólica, funcional e material. Constitui-se, portanto, de um logradouro onde se refletiam os hábitos e costumes vivenciados pela população parnaibana.

No período estudado houve múltiplas e significativas transformações no primitivo largo da matriz até a contemporaneidade, destacando-se a alteração ocorrida no final da década de 1970 ao início dos anos 80 que modificou sua con-figuração espacial completamente.

A pesquisa foi baseada em fontes primárias e secundárias. Ao redor do objeto de estudo existem exemplares de vários períodos históricos onde é possível cla-ramente referenciar seu desenvolvimento por meio da análise dos edifícios que se encontram em seu entorno (Monteiro, 2008: 148). Para tanto, foi trabalhada a metodologia apresentada por Serra, em seu livro intitulado “Pesquisa em Arquite-tura e urbanismo / Guia prático para o trabalho de pesquisadores em pós-graduação” (2006: 20) que afirma que “o método implica, antes de tudo, em atividades ordenadas, tarefas colocadas seqüencialmente e a partir de um plano de ação racional.”

A análise dos mapas antigos e da cartografia atual possibilitou identificar as intervenções: e inseri-las no contexto citadino. Assim, podem-se compreender tais alterações que transformaram um local de memória significativo para ge-rações de parnaibanos. Entendeu-se, também, que as fontes visuais na pesquisa histórica possuem um papel bastante relevante na documentação urbana. Mon-teiro (2008: 148) define a fotografia como “uma imagem ambígua e polissêmica, que é passível de múltiplas problematizações e interpretações.” Consultou-se o acer-vo iconográfico do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, IHGGP, buscando, nesses registros, elementos do conteúdo, itens que se encon-tram presentes apenas no que foi registrado e não existe em nenhum outro tipo de documentação.(LIMA; CARVALHO, 2009) Assim, as fotografias de diferentes sociabilidades na Praça da Graça foram inseridas no trabalho não com o intuito ilustrativo, mas com o desejo de apreender fragmentos de uma realidade de múl-tiplos sujeitos, objetos e espaços urbanos dotados de significação social (MON-TEIRO, 2008) e, a partir da análise de seus signos, entender melhor o cenário ur-bano e as diferentes apropriações do espaço praticado (CERTEAU, 1994) praça.

Quanto às fontes secundárias, trabalharam-se autores que discorreram sobre temáticas relacionadas com o objeto de estudo a fim de constituir um embasa-mento teórico sobre o assunto abordado. Recorreu-se às edições do Almanaque de Parnaíba fonte hemerográfica, registro completo dos hábitos, acontecimen-tos e história da sociedade parnaibana. Utilizaram-se também os dossiês de tom-bamento sobre o Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba, realizados pela 19º SR PI (2008), seção regional do IPHAN no Piauí.

O aporte teórico utilizado na revisão da literatura e construção do trabalho ba-seou-se em autores que trabalham com o tema de cidade e espaços públicos como Michael Certeau (1998), Jaques Le Goff (1990), François Choay (2001) e Aldo Rossi (1998). As referências empregadas para construção do sentido de memória foram Maurice Hawbhachs (1990) e Pierre Nora (1993).

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O conceito de moderno e a ‘consciência de modernidade’ para Le Goff (1990) ini-ciam-se a partir da descontinuidade ou ruptura com as práticas passadas. Havia a necessidade de diferir do passado e ingressar no “progresso” aqui considerado o desenvolvimento. Por ‘novo’ compreendia-se uma ausência de passado como se pode observar nessa narrativa de antigo/moderno:

O estudo do par antigo/moderno passa pela análise de um momento histórico que se-

grega a idéia de ‘modernidade’ e, ao mesmo tempo, a cria para denegrir ou exaltar — ou

simplesmente, para distinguir e afastar — uma ‘antiguidade’, pois que tanto se destaca

uma modernidade para promovê-la como para vilipendiá-la.(LE GOFF, 1990: 171)

Essa impossibilidade do moderno em conviver com o passado implicava em drásticas transformações urbanas, pois “era preciso se desvincular completamente do passado para poder inaugurar o futuro.” (SANTOS; G.DEL RIO, 2010: 1) Com isso, as cidades deveriam ter seus traços tradicionais expurgados em prol do pro-gresso. Essa metodologia moderna pode ser observada no objeto de estudo. Nos países emergentes do séc. XX, como o Brasil, o modernismo acontece mais como uma ideologia, ou seja, modernidade, com seu caráter onírico e expressão do de-sejo de desenvolvimento do que de fato como realidade social (Marshall, 1986). Rossi (1998) afirma existir uma relação entre memória coletiva e cidade, onde os lugares e a paisagem urbana são sede da memória coletiva. A arquitetura e a paisagem também integram a memória por sediarem os acontecimentos e as-sim essa memória coletiva se espelha na transformação do espaço realizado pela coletividade. “A cidade é por si mesma depositária de história” (ROSSI, 1998: 193).

O meio urbano relaciona-se intimamente com a população na medida em que é vivenciado, modificado e readaptado, acompanhando sempre as transfor-mações das mentalidades e costumes do local inserido (CHOAY, 2001). A me-mória dos habitantes encontra-se fortemente registrada em sua configuração urbana, pois uma sociedade só se desenvolve em um enquadramento espacial (HALBWACHS, 1990).

Essa construção de memória coletiva é bastante presente em espaços públi-cos de convivência, como as praças. Além de permitirem a diversificação de usos, sua finalidade primordial é o convívio de seus habitantes por meio do contato visual e interpessoal (Sennett,1998). Como referências nacionais utilizaram-se as pesquisas de autores como Reis Filho (1978) para compreensão da formação das cidades brasileiras e Caldeira (2007) que trabalha as praças no Brasil.

A praça brasileira sempre foi cenário dos principais acontecimentos urba-nos. Nelas realizavam-se eventos recreativos, de cunho religioso e solenidades cívicas. Desde seus primórdios a comunidade reunia-se nesses espaços para as procissões e para apreciação de discursos políticos (REIS FILHO, 1978). Sua função é definida pela apropriação do espaço pela sociedade que expressa sua vida coletiva e está sujeita a mudanças sociais e históricas no decorrer do tempo

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(Leitão, 2002). Assim, espaços públicos são ricos em valores simbólicos e regis-tram fatos urbanos que constituem a cidade como um todo. A concepção urbana herdada de Portugal coloca a praça como centro simbólico, funcional e formal da cidade, trazendo para junto de si os edifícios institucionais e compondo um espaço voltado para a reunião popular (REIS FILHO, 1978).

Para a construção do contexto histórico piauiense parnaibano nas décadas de 1970 e 1980 recorreu-se aos trabalhos de autores como Nascimento (2002) e Albuquerque; Negreiros (2010) e às dissertações do Programa de Pós Graduação em História do Brasil — PPHGB — UFPI. O Estilo Moderno foi adotado como arquitetura símbolo das instituições estatais por todo o Estado ao final da dé-cada de 60 — 70. As novas construções isentas de ornamentos, com dimensões monumentais, que utilizavam materiais típicos da produção em massa como o ferro e o vidro varreram antigas edificações ornamentadas de estilo eclético ou colonial, ‘modernizando’ as cidades e livrando-as em parte do que era considerado antiquado. O Piauí sofria os reflexos das grandes cidades brasileiras e no caso da capital, Teresina, os governantes já observavam a inadequação dos traçados coloniais para a vida moderna (ALBUQUERQUE; NEGREIROS, 2010). Isso se refletiu no comportamento das cidades de médio e pequeno porte por todo o estado, como Parnaíba.

A metodologia utilizada abordou duas metodologias: a pesquisa histórica e a pesquisa arquitetônica e urbanística. A pesquisa histórica, concordando com o pensamento de Benévolo (1984) possui natureza funcional sendo essencial para o entendimento de um objeto analisado: “O esclarecimento do processo que levou à situação atual constitui na verdade uma premissa indispensável para abordar essa situação de maneira realista” (Benévolo, 1998: 198). A pesquisa arquitetônica e urbanística considera que as edificações se constituem como fonte de memória de uma época e sociedade. (ROSSI, 1998: 198) afirma que “o caráter de nações, civilizações, e épocas inteiras fala através do conjunto de arquiteturas que elas possuem” O método utilizado foi apresentado por Serra (2006) em seu livro Pes-quisa em Arquitetura e urbanismo / Guia prático para o trabalho de pesquisadores em pós-graduação e fundamenta a análise de componentes arquitetônicos e urbanos em sistemas e processos.

A dissolução do patrimônio urbano impacta diretamente nos valores comuns de uma sociedade. O presente trabalho visa contribuir para a história urbana esti-mulando novas pesquisas no âmbito da paisagem urbana histórica, de conjuntos históricos piauienses, através do estudo das transformações arquitetônicas ocor-ridas no logradouro da Praça da Graça, em Parnaíba, e de seu entorno, da analise das mesmas e do contexto em que ocorreram, construindo uma narrativa histo-riográfica acerca do objeto de estudo no recorte temporal proposto.

Ao se analisar a modernidade em Parnaíba: 1970-1980 procurou-se inserir o município em um contexto histórico, econômico e social mais amplo que pos-sibilitasse a compreensão das transformações ocorridas na temporalidade anali-sada. Buscou apreender as distintas e mais significativas alterações espaciais que

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tornaram a Praça relevante local de sociabilidade e lazer para a população, cons-truindo uma memória coletiva até a atualidade, relacionada de forma relevante com a apropriação social da população para a conservação do patrimônio. A ges-tão sustentável deve ser promovida utilizando-se desse sentimento identitário da população com o local, sobretudo no estímulo da utilização espacial pela popu-lação residente no entorno, em detrimento do turismo exploratório e segregador.

EVOlUçãO hISTóRIcA URBANA dA PRAçA E SEU ENTORNO:

A gêNESE dO PATRIMôNIO cUlTURAl PARNAíBANO

Sobre a gênese parnaíbana, Araújo afirma que a Praça da Graça “Nascia nos idos de 1761” (ARAUJO, 2002: 103) a partir de um cruzeiro primitivo locado inicial-mente “no espaço coberto de mato”

A planta de 1798 (figura 01) já possuía as quadras retangulares distribu-ídas em torno do largo quadrangular que posteriormente tornou-se a praça. Na figura 02 é possível identificar o logradouro da praça, a igreja e a distribuição ordenada das quadras que compunham o núcleo que originou o município.

No caso de Parnaíba, a Igreja foi o agente modelador mais atuante já que o Bispado era responsável pela escolha da localização da igreja matriz que origina-ria os locais de sociabilidade da região (VASCONCELOS, 2006) O estado também cumpriu papel relevante, pois implantava seus edifícios ao redor das praças colo-niais. Outro agente presente na formação desse núcleo urbano foram os comer-ciantes uma vez que a cidade era importante entreposto comercial de exportação.

Encontrava-se quase sempre o grupo Igreja e Praça Central ou Largo da Ma-triz, com as construções mais relevantes implantadas ao seu redor ao se analisar o traçado primitivo e a forma como se encontravam ordenadas as edificações nas primeiras vilas coloniais brasileiras. Possuíam implantação e alinhamento das es-truturas arquitetônicas e urbanísticas bem definidas,que se explica pela existên-cia de padrões ordenadores vinculados à tradição portuguesa (CALDEIRA, 2007).

Fig. 1 - Vila de São João da Parnaíba.

Fonte: 19a SR/IPhAN — PI

Fig. 2 - Vila de São João da Parnaíba

Fonte: Goulart, 2002

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Essa implantação formava superfícies edificadas contínuas, que, por se si-tuarem ao redor da praça, eram dotadas de maior visibilidade e para tanto, re-cebiam maior apuro formal e estético em sua arquitetura. As quadras, retangu-lares, possuíam frentes estreitas que se contrapunham à extensão do fundo tor-nando o interior das mesmas constantemente vazias devido aos quintais (REIS FILHO, 1978)Candeira (2007) considera, a partir da analise do mapa da figura 02, o logradouro estudado como uma praça formal, criada a partir de um traçado quadriculado e racional, onde é possível perceber praças de usos diferenciados e específicos à exemplo da colocação do pelourinho num quadrante após o largo da matriz.

No início a Praça era a Lagoa da Onça dos tempos de feitoria do porto das barcas. Depois, Largo da matriz nos anos 20, largo municipal nos anos 30, já foi Praça Municipal e por fim, Praça da Graça, em homenagem a padroeira da cidade (SILVA, 1987). É atribuída a Nestor Gomes Veras a criação da Praça em análise, durante seu governo como Intendente Municipal nos anos de 1917 a 1920. Uma década após o governo de Nestor Veras, Ademar Gonçalves Neves era nomeado Prefeito Municipal da cidade, no ano de 1931. Foi o responsável pelo ajardinamento das praças, calçamentos e limpeza pública (FREITAS, 1984).

Em sua gestão, construiu o ‘jardim Municipal’ (Almanaque da Parnaíba, 1932) ou ‘Jardim do Rosário’ (SILVA, 1987), atual Praça da Graça.

Para Possamai (2007) A fotografia e divulgação das obras realizadas nas cida-des possuíam interesses na noticiação e conseqüente visualização da dita ‘mo-dernidade’ urbana.

As obras, dessa forma, deixam o âmbito material assumindo uma dimensão visual ao se-

rem veiculadas em cartões postais ou álbuns fotográficos, contribuindo na propagação de

um imaginário do moderno ligado às alterações do espaço urbano (POSSAMAI, 2007: 177)

Fig. 3 - Embelezamento urbano. Fonte: Almanaque da Parnaíba, 1933: 121

Fig. 4 - Jardim Landri Sales em 1937. Fonte: Almanaque da Parnaíba, 1937:.65

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Pode-se perceber essa intenção ao se analisar as imagens das obras ‘remodela-doras’ realizadas por Ademar Neves e publicadas em edições do Almanaque da Parnaíba. O Almanaque da Parnaíba do ano de 1933 possui um encarte de seis pá-ginas de fotografias de obras do Prefeito Ademar Neves. A figura 03 apresenta a página inicial da série que introduz as imagens de ‘aformoseamento’ de Parnaíba.

O jardim Landri Sales (Almanaque da Parnaíba, 1937) foi construído logo em seguida, na primeira gestão de Mirócles Veras (1934 — 1935) e, com a criação dos cargos de Prefeitos a partir do decreto nº 1.104 em 1930 e realização da primeira eleição municipal, governou novamente no ano de 1936. Na segunda gestão de 1936, retirou da praça os monumentos da coluna da independência, o obelisco e realizou modificações de traçado, calçamento e urbanização. (SANTANA, 1982).

Posteriormente, as mesmas intenções descritas por Possamai (2007) se fa-zem presentes na figura 04, com a publicação de fotografias da praça já pronta, sempre acompanhadas de legendas que enalteciam o referido logradouro, em edições da fonte hemerográfica utilizada.

No panorama obtido através da figura 05 visualiza-se um momento do Jar-dim Landri Sales após essas intervenções, já com o paisagismo observado na implantação ornamental de palmeiras e canteiros, compondo um espaço am-plamente utilizado pela população. Na década de 30 a Planta arquitetônica com o desenho do traçado e sua construção ficaram a cargo do engenheiro João Ara-gão (SILVA,1987) e também se inserem no cenário da figura 05. Tratava-se de formas geométricas de percurso que se entrecruzavam e favoreciam a criação de áreas recobertas de grama com a disposição ordenada de árvores de médio porte e palmeiras.

Na composição da figura 06 observa-se uma das sociabilidades praticadas na praça, como o encontro de estudantes. Pode-se ver no cenário a pérgula de ferro, de origem inglesa, trazida à cidade pronta para a montagem sob a base circular de cantaria com colunatas de sustentação (SILVA, 1987).

As décadas de 1940 e 1950 são constantemente relembradas com saudosismo por diversos escritores que entre outros elogios afirmam que:

O jardim de Landri Sales e o Rosário, cujas flores multicores, com odores inebriantes

espargindo-se no ar, alegravam a vida dos transeuntes. Dado a sua beleza juvenil foi

considerada uma das mais belas praças do nordeste e sala de visitas de nossa Parnaíba.

Alguém deve lembrar a viçosa e bela mangueira da praça. Confidente de tantas juras de

amor, feitas a sua sombra nas tardes claras e ventiladas do verão, perpetuando sonhos.

(ARAÚJO, 2002:67)

São desse período as lembranças das retretas com a banda municipal, nove-nários da padroeira, corso carnavalesco, concentrações cívicas, comícios políti-cos, desfiles de estudantes, passeatas. No início da década de 60 a praça passou por mais uma reforma, promovida pela prefeitura em parceria com a Associação

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Fig. 5 - Jardim Landri Sales em 1938. Fonte: Almanaque da Parnaíba, 1938: 245.

Fig. 6 - Estudantes na praça. Fonte: Clube da Fotografia, 2010.

Fig. 7 - Praça da Graça e seu relógio. Fonte: Neto, 2009: 04.

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Comercial de Parnaíba. O traçado passou por novas reestruturações e um relógio no alto de uma coluna formada pela base, comando central e locais luminosos para propaganda de cerca de15 metros de altura foi implantado e pode ser observado na figura 07, juntamente com os edifícios modernos e art deco que substituíram exem-plares ecléticos ao fundo. As rupturas mais intensas na paisagem urbana estudada ocorreriam a partir do governo de João Batista Ferreira da Silva. Eleito prefeito em 15 de novembro de 1976, governando até 1982. Recebeu a cidade com os logradou-ros públicos bastante deteriorados. A Praça que anteriormente já havia sido uma das mais belas encontrava-se em situação precária de uso ou de proporcionar lazer à população. Era iminente e necessária uma grande reforma (SANTANA, 1982). Partindo dessa necessidade e sem recursos para ser executada pela administração municipal, o prefeito firmou um convênio no valor de seis milhões de cruzeiros em 1979 destinados à reconstrução da praça com o Governo do Estado (SANTANA, 1982). Essa reforma constitui-se em um dos principais acontecimentos municipais no período e será analisada mais profundamente no item a seguir.

A MOdERNIdAdE EM PARNAíBA: OS ANOS dE 1970-1980

E AS cONSEqUêNcIAS dA AlTERAçãO dA PAISAgEM

No recorte temporal em estudo, o Brasil encontrava-se egresso no que chama-vam de ‘milagre econômico’. Isso promoveu e financiou a característica desenvol-vimentista evidente no período e de maneira mais enfática na gestão de Alberto Tavares Silva, governador do Piauí nos anos de 1971-1975 (NASCIMENTO; OLI-VEIRA; DIAS, 2005). O Piauí seguia o modelo de progresso praticado no restan-te do país. O governo instalado a partir do golpe militar em 1964 “outorgava-se o direito de, em nome do progresso, promover quaisquer meios para atingi-lo” (NAS-CIMENTO; OLIVEIRA; DIAS, 2005). Eram as ‘estratégias’ (CERTEAU, 1994) da ditadura para cercear quaisquer táticas de contestação.

Em Parnaíba, essa ‘modernização autoritária’ (Nascimento; Oliveira; Dias, 2005: 6) também se fez presente refletindo as ações praticadas em todo o Estado. A exemplo disso, na capital Teresina, inferiu-se intervenções remodeladoras em praças bastante populares e sem qualquer participação ou consentimento dos usuários na decisão tal qual a polêmica transformação do largo Praça da Graça em Parnaíba. Porém, para melhor compreensão do contexto estudado é preciso retroceder um pouco. Após um intenso período de desenvolvimento econômico e sócio cultural iniciado no fim do século XIX a ‘Belle Époque’ parnaibana chega-va ao fim (SILVA, 2012). O município atravessava na segunda metade do século XX um declínio econômico devido à baixa do ciclo extrativista e da ampliação da malha rodoviária que deixou o transporte fluvial em desuso (NASCIMEN-TO; OLIVEIRA; DIAS, 2005). Em contrapartida, a capital empreendia grandio-sas obras de infra-estrutura que veiculavam no imaginário popular a onírica modernidade. Isso porque Nos países emergentes do séc. XX, como o Brasil, o modernismo acontece mais como uma ideologia, ou seja, modernidade, com

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seu caráter onírico e expressão do desejo de desenvolvimento do que de fato como realidade social (MARSHALL, 1986). Parnaíba não acompanhava nesse momento, em termos financeiros, o progresso e as transformações da capital. Com a retração da economia instalou-se a marginalização, o abandono e a degradação urbana e ar-quitetônica Na tentativa de alcançar o progresso vislumbrado na capital e em ou-tras cidades do estado e da nação é que as forças dominantes no período em questão propuseram e realizaram uma serie de transformações modernizadoras na cidade, fugindo do aparente atraso e estagnação. (MENDES, 2012).

No período estudado, muitas edificações que compunham o entorno imediato da Praça da Graça foram derrubadas para dar espaço às novas construções modernas, a exemplo da tipologia institucional adotada, de características pré estabelecidas e materiais mais avançados. Assim, se concretizaram por toda cidade alterações de traçado urbano e expurgo de mobiliário e construção civil que remetesse ao passa-do, renovando sua paisagem urbana e deixando marcas em sua sociedade. Baseada nas concepções modernas de desvinculação com o passado para realização do novo projetou-se uma praça completamente distinta da anterior, palco das memórias co-letivas por sediar importantes acontecimentos históricos. Isso alterou significativa-mente a relação de identidade dos usuários com o local. O projeto aprovado pela Se-cretaria de Obras foi encomendado junto ao tradicional escritório Borsoi, em Recife, reconhecido nacionalmente por seus trabalhos. Com as obras já iniciadas pela cons-trutora Engene, notou-se que a nova praça não atendia as exigências em contrato, mas, segundo Silva (1978) o real motivo para a total demolição foi a leitura errônea do projeto recebido do escritório contratado pelos assessores do prefeito, que não possuíam conhecimento técnico para tal, transformando a referida praça em local de estacionamento.Uma vez descoberto o erro, se fez necessário o desmanche do ser-viço acarretando a destruição. Esse fato ocasionou a total demolição do logradouro que pode ser visto na figura 08, onde se identifica apenas a vegetação existente e os passeios encontram-se em forma de grandes buracos e movimentações de terra que impossibilitavam a utilização do espaço para passagem e lazer. Em seguida a esse fato deu-se a paralisação das obras por falta de recursos (SANTANA, 1982).

A praça original divida em duas partes e que possuía enorme apego sentimental pela população daria lugar a um projeto do Design Gerson Castelo Branco, comple-tamente distinto inserido no contexto de modernização. A nova proposta urbana priorizou a concepção moderna de praça como espaço livre, de circulação e área ver-de (CALDEIRA, 2007). Os dois jardins deram lugar a um lago artificial iluminado com duas plantações de pau Brasil. Após essa transformação, a praça permaneceu inalterada até o ano de seu tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN no ano de 2008.

cONclUSãO

Confirmando o que Le Goff (1990: 198) diz, “O moderno tende, acima de tudo, a se negar e destruir.” A febre modernista se fez presente na área analisada especialmente

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através das substituições arquitetônicas presentes no entorno, que proporciona-ram às fachadas estudadas o advento da ‘modernidade’. As diversas modificações urbanas e arquitetônicas ocorridas nas décadas de 70 e 80 faziam parte do pen-samento moderno de desvinculação com o passado para realização do “novo.” Essas alterações foram realizadas com a intenção de demonstrar a prosperidade econômica local recuperada após uma intensa crise financeira, decorrente do declínio do comércio devido ao desuso do transporte naval.

Observou-se durante a pesquisa a relevância do entorno e do logradouro Pra-ça da Graça para a cidade e seus habitantes ao se constituir em local de memória, símbolo de identificação de uma sociedade e sede de acontecimentos que refle-tiam e representavam as transformações políticas e sociais vivenciadas pela po-pulação na época em estudo e em anos anteriores. Confirmando o pensamento de Peixoto (2003: 217) que diz que “qualquer consciência patrimonial se manifesta a partir de um traumatismo de ruptura. Ela é uma reação contra o risco de desapa-recimento, mas que arrasta consigo objetivo de promover a regeneração”, a partir da destruição da ‘antiga’ Praça, o sentimento identitário da população com o local tornou-se mais evidente e relevante. A região analisada passou por inúmeras in-tervenções que levaram às descaracterizações e retiradas de itens de valor senti-mental e histórico, devendo ter sua história preservada. A memória de um local repleto de fatos históricos é vital para a compreensão da transformação social. Para Peixoto (2003: 217) a ‘simultaneidade de diversidades’ existente na praça pode assegurar a sustentabilidade cultural por permitir a afirmação do “novo” a partir da confrontação com o ‘antigo’ “como numa estetização que radica num confronto de temporalidade e de estilos arquitetônicos.”

A eficácia da patrimonialização e revitalização está relacionada com a pre-servação e salvaguarda da história e identidade de uma região. Revitalizar áreas de valor histórico significa também adotar estratégias que aumentem a durabi-lidade de ambientes já construídos. Isso desponta como meio de atenuar impac-tos no meio ambiente e na urbe, minimizando problemas recorrentes como a marginalização, fruto da formação de guetos de homogeneidade exclusivos em áreas desvalorizadas econômica e socialmente. Instaurar uma cultura urbana participativa em ambientes densos pode estimular uma a cidadania e riqueza social. Incentivar o respeito às construções históricas dentro do contexto di-nâmico de evolução das cidades contemporâneas fortifica o relacionamento do indivíduo com o local, dotando o último de valor simbólico e remetendo as sen-sações de pertença e de comunidade. O uso socialmente diversificado promove comunidades mais inclusivas e evita a criação de espaços e formas excludentes social, econômica, cultural e física, fundamentais para o exercício de sustentabi-lidade e qualidade de vida na cidade. (ROGERS, 1997)

Estratégias sustentáveis são aquelas que se posicionam com um olhar ur-bano mais abrangente e utilizam as características históricas comuns a essas regiões revertendo-as em bens voltados para toda a cidade. As soluções mais sustentáveis advêm do real conhecimento histórico econômico e social do lo-

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cal em uma escala apropriada de intervenção. Desenvolver ações adequadas nas edificações existentes de maneira a qualificá-las ao uso de novas finalidades, mitigar impactos sociais e econômicos e aperfeiçoar a eficiência desses espaços preexistentes também contribui para atingir as metas de sustentabilidade e de valorização imobiliária. A apropriação social é essencial para a gestão susten-tável de um patrimônio cultural. A cidade deve pertencer aos seus usuários e, segundo o arquiteto Richard Rogers (1997), a cultura urbana participativa que ocorre em ambientes densos pode estimular uma cultura que gera cidadania e riqueza social. O potencial turístico inato a centros históricos deve ser desen-volvido de maneira sustentável incorporando a população local e, a partir do estudo do passado, se obtêm subsídios para intervenções eficazes, sustentáveis e historicamente fundamentadas. É necessário atenção ainda, para que o turismo não promova a segregação das classes, sendo necessária uma gestão integrada e participativa. O tombamento do patrimônio histórico deve ser visto como uma possibilidade de reincorporarão positiva à economia vigente, de maneira produ-tiva e rentável.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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MUSEUS lOcAIS: conservação e produção da memória coletivalOcAl MUSEUMS: preservation and production of collective memory

Joana Ganilho MarquesFaculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Este artigo parte de uma abordagem geral aos temas da identidade e da memória articulando-os com a realidade de dois museus. Pretende-se abordar ques-tões-chave como o papel destas instituições na manutenção e produção da memória coletiva, o impacto do património na construção da identidade ou a importância do poder local e sociedade civil na preservação das memórias locais.

Palavras-chave: Museus. Identidade. Memória. Comunidade. Património.

Abstract: This article is an overview to the topics of identity and memory, connect-ing it to two case-studies of two museums. We’ll discuss subjects such as the role these institutions play upon preservation and production of collective memory, the impact of heritage in the building up of identity and the weight of local and civil society in preserving local memories.

Keywords: Museums. Identity. Memory. Community. heritage.

INTROdUçãO

Este artigo apresenta uma parte da investigação realizada no âmbito da disser-tação de mestrado intitulada “Discursos dos Museus: uma perspetiva transdis-ciplinar”, apresentada em 2012 na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. A metodologia adotada será o estudo de caso, apresentando duas insti-tuições: o Museu do Trabalho Michel Giacometti (MTMG), em Setúbal; e o Mu-seu Marítimo de Ílhavo (MMI), no concelho de Aveiro. A escolha destes dois museus deve-se ao facto de serem ambos museus locais, de tutela municipal, e por apresentarem uma relação com as memórias das comunidades nas quais estão inseridos, (re)criando ou (re)encenando laços identitários.

Num mundo globalizado, onde as identidades não-territoriais ganham cada vez mais força, dissociando a natureza identitária das localidades e dos quadros tradicionais de nação e etnia ou classe e parentesco, há uma ameaça real aos conceitos nacionais e locais de identidade; os museus desempenham um papel cultural essencial para a manutenção de memórias e identidades.

A natureza do património é atualmente social e identitária, destinada a ligar o individuo à comunidade através de traços culturais que reconheça e é, por isso, utilizada para reforçar laços locais: a busca identitária e memorial é uma das atividades fundamentais das sociedades contemporâneas. A memória transfor-mou-se num dos objetos da sociedade de consumo mais vendáveis, potenciada

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também pelo medo generalizado da amnésia coletiva. Assim, criou-se uma re-tórica do património que se apresenta como um avatar do paternalismo estatal e que assegura o monopólio da memória, reduzindo-a a uma memória inscrita, conservada, autorizada.

Mas como se fixa a identidade numa comunidade? Qual o papel dos museus para este efeito? Como interagem hoje museus e comunidades? Qual o papel dos museus locais relativamente às memórias locais? Quais são os mecanismos através dos quais os museus ressignificam essas memórias? Será o museu um novo produtor de identidades?

Este artigo parte de uma abordagem geral aos temas da identidade, memória e património articulando-os com questões-chave, como o papel que os objetos de-sempenham na produção e manutenção da memória coletiva, a importância do poder local nas memórias locais e a relação entre história-memória e património.

Recorrendo ao estudo dos dois museus já referidos, o MMI e o MTMG, pro-curamos evidenciar a forma como são tratadas e trabalhadas as heranças coleti-vas, assim como as práticas e tradições já extintas, no sentido de serem transfor-madas em memórias coletivas e em símbolos identitários locais. Pretendemos ainda extrair e apresentar conclusões sobre a importância deste discurso nos museus que se assumem como guardiões de identidades e memórias locais e do papel dos mesmos face à comunidade onde estão inseridos.

1. IdENTIdAdE, MEMóRIA E PATRIMóNIO

Identidade e Memória são temáticas frequentemente associadas ao museu. Es-tes conceitos, assim como o de património subjacente ao museu, apresentam-se como sistemas de representação e significação coletivamente construídos, par-tilhados e reproduzidos — são, segundo Geertz (1973), constructos sociais. Os museus são, por sua vez, instituições sociais complexas que ocupam um lugar fundamental no circuito cultural e na mediação entre cultura e sociedade. Estes espaços culturais criam novos sentidos e (re)definem a realidade, pelo que são considerados práticas de significação. E é nessa condição que se revelam institui-ções essenciais na conservação e produção de identidades e memórias coletivas.

A identidade é um processo de identificações historicamente apropriadas que conferem sentido a um grupo (Cruz, 1993). Este dá-se dentro do processo de sociabilização, ou seja, na interação quotidiana e nas trocas reais e simbólicas entre indivíduos, de onde emergem sentidos de pertença a partir da perceção da diferença e da semelhança entre o ‘nós’ e o ‘outro’ (RODRIGUES, 2012).

A sociedade, enquanto grupo, constrói e reproduz a sua identificação através da relação que estabelece com o seu passado (histórico, religioso, mitológico), vinculada pelos objetos que o representam. Estes objetos são simbolicamente apropriados pela sua capacidade de (re)memorar acontecimentos e convocar o passado, razão pela qual são conservados e protegidos de forma a perpetuar a sua existência no tempo. A estes objetos damos o nome de património. É a partir do

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património, mas também dos costumes e tradições, que formamos uma identi-dade cultural.

Para as nações, a cultura é o seu meio de expressão: é um sinal distintivo das suas particularidades. Os museus, devido à sua natureza simbólica e também à natureza dos seus conteúdos, foram apropriados como expressões nacionais ou locais de identidade, e da ideia de ter uma História própria — o equivalente à memória pessoal mas na forma coletiva. O património contido nos museus foi durante muito tempo entendido como estritamente factual e desempenhou desde sempre papéis específicos na produção da identidade nacional; podemos dividi-lo em:

— Artefactos nacionais, ligados à reconstrução da história nacional; — Objetos provenientes de outras culturas (sobretudo de colónias)

ligados à transmissão de um poder conferido pela expansão: a co-locação do país numa escala global;

— Os revivalismos, que remetiam simultaneamente para a antigui-dade e para a continuidade através do tempo:

— Objetos rurais ou regionais ligados à memória local, à origem e à conservação. das tradições.

Na nossa sociedade, dinâmica e em constante mudança, ao invés de repre-sentar “a” identidade, os museus tendem a refletir sobre a sociedade a partir da comunidade onde se inserem, a partir das suas especificidades, assumindo-se não só enquanto discursos da e para a maioria, mas trazendo a si vozes minori-tárias e por vezes marginalizadas mas que aproximam o museus dessa mesma comunidade. Mas como é que se fixa essa identidade numa comunidade? Pela inscrição de objetos e ideias na memória coletiva. É através da memória coletiva que a identidade e as instituições que a veiculam se poderão formar e agir.

A memória, além da sua função individualizada, tem também uma função social. Jan Assman (1988:126) define memória cultural — ou seja, a parte cul-tural da memória coletiva, por oposição à parte biológica da mesma — como “a collective concept for all knowledge that directs behavior and experience in the interactive framework of a society”. É, como nos diz Halbwachs (1992), em sociedade que as pessoas adquirem, reconhecem e localizam as suas memórias. No entanto, esta função social da memória só poderá existir a partir de liturgias próprias e o seu conteúdo é indissociável dos seus campos de:

— Objetivação, em que constam linguagens e imagens, textos, arte-factos culturais, monumentos, lugares, ritos — aquilo que Ass-man (1988) denomina por ‘cultural formation’;

— Transmissão, ou seja, das instituições que os comunicam e que Ramos (2003) denomina por ‘instituições da memória’.

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É no primeiro campo que uma experiência coletiva cristalizada, cujo signifi-cado seja redescoberto, pode ficar de novo culturalmente acessível por centenas de anos — é esse o poder da objetivação cultural na estabilização e na própria estrutura da memória cultural (Assman). No entanto, não há memória coletiva sem suportes de memória ritualisticamente compartilhada, pelo que as ‘insti-tuições da memória’ são essenciais para a construção de sentimentos de perten-ça. A memória coletiva está na base da construção da identidade uma vez que essa identidade reflete o investimento que um grupo ou comunidade faz na me-mória coletiva (HALBWACHS, 1992). A memória reforça sentidos de pertença identitária, auxiliando na coesão do grupo ou comunidade, contribuindo para a sua continuidade no tempo.

Ora os museus contêm em si ambos os campos de objetivação e transmissão que mencionamos anteriormente, dado que veiculam questões patrimoniais e são em si mesmos ‘instituições da memória’. Assim, estas instituições desempe-nham um papel crucial no processo social de recordar.

Halbwachs defende que o património é frequentemente usado como forma da memória coletiva (ASSMAN, 1988). Os seus conteúdos, interpretação e repre-sentação são selecionados de acordo com e respondem às exigências do presente (ASHWORTH; GRAHAM; TUNBRIDGE, 2007); por isso, estão sempre abertos a constantes revisões e alterações, sendo simultaneamente origem e resultado do conflito social. O próprio passado é infinitamente reconstruido no e pelo presente: “All representations of the past involve remaking in and through the present”, (TOTA, 2003, 1, cit. Urry).

O património fala menos sobre artefactos ou outras formas intangíveis de passado do que sobre os significados que lhes foram atribuídos e das represen-tações criadas a partir deles. Assim, a validade do património é sempre determi-nada pelo contexto e as suas interpretações podem variar no tempo e no espaço. Mais do que os aspetos financeiros ou culturais, é o significado que atribui va-lor ao património e explica porque é que determinados artefactos, tradições ou memórias foram selecionados de entre uma infinidade de situações que repre-sentam o passado. Estes significados regulam e organizam a nossa conduta e as nossas práticas reforçando determinadas regras, normas e convenções. Assim, memória e poder estão ligados a partir do que se recorda e do que se esquece. No museu, que é uma das instituições que vincula esta seleção, “conservar é uma função do esquecimento” (CARNEIRO, 2004, apud Déotte).

Os museus através dos seus mecanismos próprios pensam, elaboram e in-fluenciam largamente as construções de representações sociais. Quando aplica-das à memória, estas instituições tornam-se máquinas capazes não apenas de selecionar e produzir informação, mas de criar visões do mundo. Os museus são assim instituições da memória, mas inserem-se simultaneamente no domínio das práticas de significação.

Todas as culturas têm os seus documentos que ancoram e afirmam a sua memória e se erguem como indicadores identitários. No entanto, a visão do

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património de uma determinada sociedade reflete inevitavelmente a visão polí-tica, social, religiosa e étnica dos grupos dominantes — ou seja, nas palavras de Smith (2006) o discurso patrimonial autorizado. A relação entre património e me-mória é essencialmente simbólica: é um meio para prolongar a existência social.

Numa sociedade constantemente modificada pelos fluxos migratórios resul-tantes da globalização e pelas novas tecnologias criadoras de identidades não territoriais, as identidades centradas, singulares, estão a ser substituídas por identidades baseadas na mistura cultural e nas trocas interculturais (GIDDENS, 2002). Dado que o próprio processo identitário parece estar a mudar, tornando--se mais imediato e, como tal, mais volátil, assistimos consequentemente a um crescente desenraizamento da sociedade. Os indivíduos estão privados das suas raízes, cada vez mais descontextualizados e “(…) é difícil não relacionar esta descontextualização existencial dos cidadãos modernos com a sua paixão pelo reenraizamento num passado que lhe pertence, quer dizer, patrimonial” (Car-neiro, 2004, 66). O interesse emergente pelo passado surge da necessidade de reconstruir a História que é hoje fragmentada. No entanto, segundo Guillaume (CARNEIRO, 2004), não é a valorização do passado que produz a conservação mas antes a conservação que resignifica o passado e lhe atribui um novo valor de operador social.

O processo de produzir significados culturais é o mesmo através do qual um objeto externo (um museu, um monumento, um memorial) pode interferir e intervir na reconstrução do passado (TOTA, 2003). É esta a razão pela qual as políticas patrimoniais têm tanta influência no sentido de pertença das comuni-dades onde são implementadas. O património fala do Homem e da sua história, ajuda a construir memórias, a reforçar uma inscrição num tempo longo e a esta-belecer elos identitários, revelando simultaneamente a própria alteridade que o tempo produz; por outro lado, a sua relação com a sua temporalidade remete-o para uma relação de pertença, com raízes no território, e para a construção de um discurso identitário. Assim, a política do património é eficaz e mobiliza gru-pos sociais cada vez mais ameaçados pela perda de memória e identidade.

A retórica do património apresenta-se como um avatar — muito mais subtil — do pa-

ternalismo estatal, ajudando a definir o ideal e a ideologia do Estado moderno: assegurar

o monopólio de memória e reduzir a memória de tudo à memória inscrita, conservada,

autorizada. A produção do passado tornou-se uma atividade essencial dos Estados moder-

nos: não há nenhuma nação que não tenha os seus monumentos-emblema prolongando

o simbolismo de bandeiras, hinos, festas populares. (CARNEIRO, 2004, 73).

Esses ‘monumentos-emblema’ possuem dois tipos de valor: a) comemorati-vo, ligado ao passado e que intervém na memória coletiva — estamos no domí-nio do significado; b) de antiguidade, representando as marcas e valor de outro tempo na contemporaneidade, pertencendo, por isso, ao presente — estamos no

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domínio da História. É no primeiro tipo de valor que a ordem política procurou uma legitimidade nova ou suplementar; a folclorização e a patrimonialização das culturas populares surgiram neste contexto com o objetivo de criar identifi-cação entre o Estado e a nação.

Apesar do entusiasmo em torno do património, resultante da procura desen-freada de elos identitários e da transformação da memória no bem de consumo de maior sucesso na nossa sociedade, as políticas culturais no geral têm vindo a perder as suas formas comunitárias. Tem-se vindo, igualmente, a perder a parce-ria com a sociedade civil e tanto património como museus têm sido integrados em projetos globais de desenvolvimento local, onde a cultura local é tida como um recurso na sua implementação, a favor da projeção do local numa ideia ima-ginada de nação. O museu ou o monumento são assim, como o hospital ou a universidade, um símbolo de modernização no sistema de competitividade in-tra e inter regional.

Como reação a estas políticas, surgem comunidades civis independentes que assumem o papel de plataforma para a construção e transmissão de memórias coletivas. São as chamadas communities of memory (CARNEIRO, 2004 cit Vera Zol-berg) que asseguram a perpetuação na memória coletiva de acontecimentos rela-tivamente recentes (acontecimentos locais ou globais específicos) ou assumem a missão de não deixar esquecer memórias outrora mantidas por instituições atra-vés atividades culturais, celebrações ou constituição de associações que envol-vam a comunidade. Quanto mais ativas e mais numerosas são estas comunidades, mais inscritos na memória da comunidade ficam os eventos que representam.

Há até, por vezes, uma sobreposição destas comunidades com o poder local, desempenhando assim as juntas de freguesia ou câmaras municipais este papel na medida em que a sua ação pretende mais do que apenas conservar e divulgar um acontecimento ou património: pretende precisamente assegurar a preserva-ção da sua memória na comunidade. Este caso acontece especialmente quando os acontecimentos ou patrimónios têm relevância histórico-social ao nível local, podendo ser considerados como (auto)representativos da própria comunidade.

1. ESTUdO dE cASO

O MMI é um museu municipal, fundado em 1937 pelo e para o povo de Ílha-vo. Os seus principais objetivos são a preservação e testemunho da ligação dos ílhavos ao mar e à ria de Aveiro, assim como a preservação da memória ligada à pesca do bacalhau. O Museu funciona desde 2001 num edifício da autoria dos ar-quitetos Nuno e José Mateus. O seu vasto acervo é fundamentalmente oriundo de doações e está organizado em três coleções que constituem as três exposições permanentes do museu, abarcando temporalmente o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A coleção da pesca do bacalhau é composta vá-rias embarcações (entre as quais um bacalhoeiro cortado a meia água, dóris e ba-leeiras), instrumentos de navegação, ferramentas e moldes de construção naval

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e outros objetos documentais referentes a esta atividade. A coleção de etnografia da Ria de Aveiro apresenta várias embarcações típicas em tamanho real (moli-ceiro, mercantel, várias bateiras, uma embarcação de recreio — o Vouga), assim como vários objetos relativos às atividades da Ria. A coleção de Arte é constituí-da por pintura e desenho referente à temática da Ria de Aveiro e das suas fainas agromarítimas; algumas peças de escultura; uma secção de cerâmica composta por exemplares de porcelana da fábrica Vista Alegre; alguma azulejaria e faiança local na secção de artes decorativas; e ainda a maior coleção de malacologia do país. O museu tem ainda dois polos: o Navio-museu de Santo André, um antigo barco de pesca de bacalhau que foi transformado em bem cultural e é agora vi-sitável num dos braços da Ria e Aveiro; e o recém-inaugurado Aquário dos Ba-calhaus, instalado num edifício comunicante com o edifício principal do MMI.

O Museu do Trabalho Michel Giacometti é um museu municipal, inaugura-do em 1995 e situado em Setúbal. O seu nome é uma homenagem ao homem que compôs a coleção que hoje integra o espólio do sector primário do museu. Os ob-jetivos deste museu são o estudo, preservação e divulgação de técnicas e conhe-cimentos relacionados com o mundo do trabalho na história humana, nomea-damente com os ofícios tradicionais do mundo rural, marítimo, piscatório e da indústria conserveira. Simultaneamente, no Centro de Documentação, o museu recolhe, inventaria, conserva e divulga o património local material e imaterial relativo a estas atividades. O MTMG funciona no antigo edifício da fábrica de Conservas Alimentícias de M. Perienes Ldª, adquirido pela Câmara Municipal de Setúbal em 1991. O edifício conserva a sua estrutura intacta, estando as expo-sições e serviços instalados nas diferentes zonas da própria fábrica. O seu acer-vo é composto por três núcleos, que representam diferentes sectores do mundo do trabalho: coleção Michel Giacometti, que está presente no museu através da exposição permanente “Ao Encontro do Povo” e é composta por objetos re-lativos às atividades agrícolas, piscatória e ofícios vários, assim como recolha documental de literatura e saberes populares; património relativo à indústria conserveira, dividido entre património móvel (objetos presentes na recriação da cadeia operatória) e património imóvel (edifício do museu) que compõem a exposição permanente “Da Lota à Lata”; e a Mercearia Liberdade, composta pelo recheio da mercearia com o mesmo nome que funcionava na Avenida da Liber-dade e foi doada ao museu. O Museu do Trabalho dispõe de dois outros polos: o Polo da Belavista, onde se encontra a Reserva Técnica; e o Polo Oficina CAO1/APPACDM, uma parceria com a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Ci-dadão com Deficiência Mental, onde se encontra a exposição permanente “Nós Trabalhamos com as Máquinas” que reconstitui a cadeia de fabrico de pequenos acessórios metálicos.

As duas comunidades onde estão integrados o MMI e o MTMG, Ílhavo (Avei-ro) e Setúbal, sendo geograficamente distantes e tendo, hoje em dia, ativida-des muito distintas, assim como diferentes densidades populacionais, têm em comum vários aspetos da sua História. Ambas foram, em tempos, localidades

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piscatórias; ambas produziam sal; ambas mantinham com o mar uma relação de proximidade e dependiam deste para o seu sustento; ambas mantinham contactos internacionais no desenvolvimento das suas principais atividades (Aveiro com a Gronelândia, onde se desenvolvia a pesca do bacalhau, e Setúbal sobretudo com França, para onde exportava essencialmente conservas); e ambas tiveram um grande desenvolvimento durante a primeira metade do século XX.

Apesar da diferença de tempo de existência do MMI e do MTMG, e da dis-persão temporal das atividades representadas no museu, estes têm em comum um fator temporal: ambos remetem para memórias de práticas já em desuso, quando não extintas, cuja cessação aconteceu por volta da mesma altura. A sua história partilha o mesmo tempo de auge e declínio das principais atividades das suas comunidades.

Cada museu imortalizou as actividades, hoje tradicionalizadas, que mais im-pacto tiveram no desenvolvimento das suas comunidades: a pesca do bacalhau em Ílhavo e a indústria conserveira em Setúbal, apesar da presença minoritária de outras atividades, relacionando-a com as memórias da sua prática local. Cele-brando memórias locais, ambos os museus se relacionam com outras memórias que transcendem hoje o espaço da sua comunidade, integrando-as num concei-to mais alargado de identidade: a pesca do bacalhau, considerada um marco na-cional sobretudo a partir do Estado Novo; e a relação entre indústria conserveira e “trabalho”, um conceito e prática global, estabelecido sobretudo através da co-leção que herdou e a partir da qual foi possível construir o museu.

A criação destas duas instituições das memórias locais resultou de situações muito distintas: o MMI surgiu da vontade comum de vários cidadãos construí-rem um monumento à sua terra; o MTMG foi criado pela Câmara Municipal de Setúbal, que no desenvolvimento da sua política cultural deu importância a esta herança. De um lado temos uma força civil que se mobiliza para salvaguardar uma história, uma herança e as práticas da sua comunidade; do outro temos um poder local que, no exercício das suas funções culturais e, despoletado pela exis-tência de uma grande coleção com a necessidade de ser exposta, decide criar um monumento de cariz identitário e memorial. Hoje, apesar de ambos os museus serem municipais, a sua gestão, dinamização e a sua razão de existir tornam-se es-sencialmente distintas pelo papel que cada um desempenha na sua comunidade.

O MMI é hoje um museu muito visitado, sobretudo pelas escolas dos con-celhos adjacentes a Ílhavo e pelos muitos emigrantes que visitam a sua terra natal; a arquitetura do museu é, também por sua vez, uma fonte de públicos transversais. É um museu que mantém relações com várias comunidades, mas sobretudo comunidades exteriores à sua. Excetuando o público escolar, que acaba por ser a grande aposta do museu, não há interação com a comunidade local, com as pessoas que preservam ainda nas suas memórias a vida que per-tence agora ao tempo dos museus. Este é um museu virado sobretudo para fora, que se mantém como “casa de lembranças” ou monumento comemorativo de uma História que é apresentada mas não vivenciada, mas que estabelece ainda

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o lugar das coisas neste antigo mundo já extinto. Quem mantém o museu não é a comunidade, ainda que se orgulhe do museu que construiu em tempos e que perdura, mas sim o poder local que espera criar, a partir destas afinidades, al-guma coesão social a partir de um passado comum. O museu é, neste contexto, um sinal de desenvolvimento regional e urbano e de modernidade reconhecido sobretudo por comunidades exteriores, mais do que um verdadeiro serviço do qual a comunidade local usufrui.

Por outro lado, o MTMG está inserido numa das regiões mais desfavorecidas do país, onde os graus de escolaridade e literacia são inferiores, dificultando o trabalho com alguns públicos. A acrescentar a estes fatores há uma percenta-gem elevada de imigrantes, sobretudo de baixa condição social, o que contribui para a fragmentação social; este é também um público culturalmente mais di-fícil de atingir. O volume de visitantes é baixo, no entanto, e contrariamente ao MMI, é um museu que trabalha com a comunidade, por exemplo, a partir das “Tardes Interculturais”, programa onde o museu procura estabelecer novas relações com novas identidades, procurando incluir esse novo e difícil público no museu. O seu público-alvo, além do público escolar que é transversal a todos os museus, é também a terceira idade, precisamente aquela que mais e melhor pode contribuir para dinamização e valorização do museu pela experiência di-reta e real que manteve com as temáticas que este evoca e celebra. Além disso, a parceria com a APPACDM desenvolvida no polo da Oficina CAO/APPACDM é provavelmente a maior prova de serviço útil à comunidade através da valoriza-ção que se faz do património local, mas sobretudo da luta contra a discrimina-ção e do esforço real para a inclusão social. Este trabalho está, socialmente, no centro do museu e esta comunidade funciona no seu seio de forma análoga às comunidades da memória: trata-se de uma comunidade civil verdadeiramente empenhada não só em manter a tradição e a memória vivas, como especialmen-te o próprio museu pela ação e impacto que tem nesta comunidade local.

O MMI e o MTMG são duas instituições semelhantes que produzem visões do mundo totalmente diferentes; integram também papéis diferentes nos seios das suas comunidades. O discurso dispositivo, a acrescentar aos outros argumentos já expostos, é também um sinal disso. No MMI a enfâse é dada sobretudo à His-tória e à reconstrução dos seus factos — a abordagem é focada na funcionalidade e na contextualização; trata-se de mostrar a reconstrução de uma época naquilo que ela teve de melhor. Contrariamente, no MTMG todo o discurso expositivo é formado a partir dos conceitos de diferença e democracia: são abordados temas como a pobreza, a ausência de condições laborais ou a discriminação de género. Este é um discurso essencialmente social, em contraste com o discurso essen-cialmente histórico do MMI.

No entanto, estes museus apresentam semelhanças discursivas: produ-zem uma ideia idealizada e homogeneizada de povo, de acordo com as visões que criaram do mundo; criam e exploram narrativas da e para a memória coletiva; encenam o seu espólio para produzirem essas narrativas e essa ação tem impacto

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real na construção da identidade cultural da localidade e da sua população. Ambos os museus trabalham a partir da conservação e produção de memó-

ria coletiva assente nas tradições locais e nos documentos da comunidade. No entanto, a forma como articulam essa memória com a identidade é distinta: o MMI parte da história, construindo-se como um memorial a um tempo passa-do, uma casa de lembranças; por sua vez o discurso do MTMG é fundamental-mente social — social no discurso do passado e social na relação que estabelece com a sua comunidade através dos serviços que lhe presta. A manutenção das memórias, tal como a produção de identidade dentro do museu, é atualmente associada a diferentes tipos de poder: no MMI temos um poder político local (a câmara municipal), enquanto no MTMG o poder assume uma forma social (as comunidades de memória). Isto revela na verdade uma inversão relativamente à altura da fundação destas instituições, uma vez que o MMI foi criado pelo povo (uma força social) e o MTMG pelo poder local (câmara municipal). As diferenças entre estes museus residem sobretudo na forma como reproduzem o passado e na relação que assumem com a sua comunidade.

As retóricas patrimoniais de ambos os museus são comemorativas: as cele-brações e os rituais estão constantemente presentes na coleção e na programa-ção, produzindo assim narrativas da memória que são ficcionadas no espaço do museu. Por outro lado estes museus têm em comum o tipo de memória idealiza-da que produzem sobre o “povo”, assente mais em estereótipos do que num re-tracto fiel da sua comunidade. E este é um sinal do papel essencial que o museu desempenha nas suas comunidades: independentemente das formas que o mu-seu assume e na relação que mantém com a sua comunidade, ambos procuram uma autorrepresentação de si, da sua história, da sua existência, ainda que uns o produzam para dentro da sua comunidade e outros façam esse exercício de reinvenção para o exterior.

cONclUSõES

Este estudo permitiu contextualizar conceptualmente memória, identidade e património, e localizar a sua presença nalguns dos seus discursos presentes nos dois museus apresentados. Procurámos compreender a produção desses discur-sos nestas instituições e aferir o seu contributo para a relação museu-comunidade.

O Homem teve sempre necessidade de colecionar objetos; já no paleolítico os homens primitivos reuniam artefactos. Se apenas produzíssemos objetos para a nossa sobrevivência não criaríamos mundo, na medida em que nada nos sucederia: não inseriríamos marcas no mundo, não criaríamos estabilidade, per-manência, identidade. É através da nossa necessidade de deixar marcas, de criar uma memória que nos ultrapasse enquanto indivíduos, que atribuímos aos ob-jetos valores para além do seu valor utilitário.

“Artefacts survive in ways unintended by makers and owners to become evi-dence on which other interpretations of the past can be reconstructed” (TOTA,

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2003, 3, cit Radley). A história dos nossos artefactos e dos sentidos que lhe atri-buímos é a forma através da qual construímos a nossa História enquanto Huma-nidade mas também a nossa identidade. Desde o instinto mais básico de reunir objetos utilitários à constituição de templos (com os seus artefactos religiosos), do colecionismo aos gabinetes de curiosidades, até finalmente às academias e aos museus, essa importância do objeto enquanto testemunho do Homem (e do mundo) está presente.

Enquanto descendente desse hábito secular de colecionar, o museu é o guar-dião de objetos, com a sua realidade material, espacial e logística, mas também do que de atemporal está subjacente na formulação que conduziu à sua recolha, armazenamento, salvaguarda, exibição: “um passado que se guarda para mos-trar em todos os futuros que são também presentes” (BRITO, 2006, 151). Estes bens testemunham um tempo já passado: o museu é um reservatório do próprio tempo que tende a deslizar para fora do tempo pela excessiva valoração do tem-po que guarda.

A visão do património, na qualidade de evocação e recriação do passado, está em constante mudança: o seu discurso é político, temporalmente e espa-cialmente localizado e depende das exigências da sociedade que o produz. No entanto houve um movimento ao longo dos séculos no sentido de mover o pa-trimónio da esfera privada para o espaço público. Este movimento esteve ligado à necessidade de produzir ou reforçar conceitos comuns como o de nação: foi assim que nasceram os museus nacionais. Mas atualmente na nossa sociedade a identidade deixou de ser produzida pelo Estado ou por uma força ideológica transversalmente reconhecida (como a religião), sendo antes (re)produzida de forma fragmentada e mais particular por várias entidades, algumas das quais culturais, apoiada sobretudo numa memória que se deseja comum, que é cul-tivada e produzida. Os discursos nacionalistas estão a ser complementados ou mesmo substituídos por discursos locais, étnicos ou outros não-territoriais, con-tribuindo para a diversificação das instituições que os veiculam.

Por sua vez, a crescente globalização atravessa todos os organismos e insti-tuições sociais, alterando estruturas, acelerando processos, criando um impac-to particular ao nível cultural uma vez que tende a dissolver as suas fronteiras; neste sentido o património torna-se plural, mas tornam-se também plurais as suas apropriações. Os museus e a cultura em geral deixam de ser um espaço ex-clusivo de comunicação unilateral para passarem a ser povoados diálogos mul-ticulturais e por micronarrativas de poder que encerram em si um potencial de resistência contra um discurso hegemónico. No lugar da identidade unificada surgem múltiplas identidades por múltiplas serem as memórias coletivas que habitam as nossas comunidades. E numa sociedade cada vez mais desenraizada o papel destas instituições torna-se essencial para a conservação da memória co-letiva, do sentido de ‘comum’ e, em última análise, da coesão social.

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Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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EdUcAçãO PATRIMONIAl E PROdUçãO AUdIOVISUAlhERITAgE EdUcATION ANd AUdIOVISUAl PROdUcTION

João Paulo Rodrigues Pires Instituto Politécnico de Setúbal

Resumo: Neste artigo apresentamos um projeto de intervenção em Educação Pa-trimonial, implementado no decurso da investigação de doutoramento em Belas Artes — Educação Artística na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Optou-se nesta investigação por um estudo de caso múltiplo, com a implementação de uma estratégia de ensino aprendizagem assente em educação patrimonial com recurso a produção audiovisual.

Palavras-chave: Educação Patrimonial. Audiovisual. Educação Artística.

Abstract: In this paper we present an intervention project in Heritage Education, implemented during the PhD research of Fine Arts — Art Education in the Faculty of Fine Arts, University of Lisbon. We have decided to use a multiple case study in this investigation, with the implementation of a teaching and learning strategy based on heritage education using audiovisual production.

Keywords: heritage Education. Audiovisual. Art Education.

INTROdUçãO

O cerne desta investigação consistiu na abordagem da educação patrimonial recorrendo a uma estratégia de produção audiovisual, que por sua vez, poderá também permitir a aquisição e desenvolvimento de uma literacia audiovisual.

Tendo em conta as características da investigação, optou-se pelo estudo de caso múltiplo enquanto método que permite focar a investigação numa situa-ção particular, baseada na compreensão, através de descrições e análises dessa situação. Realizamos uma contextualização e definição de Educação Patrimo-nial, bem como a descrição da estratégia de ensino-aprendizagem aplicada no contexto do Ensino Superior Politécnico. Consideramos que a definição de Edu-cação Patrimonial necessita, fundamentalmente, de uma abordagem sobre o património e a sua aplicação em contexto educativo formal. Apresentaremos uma definição de educação patrimonial abrangente segundo diversos autores, tais como Jorge Henrique Pais da Silva (s.d.), Ana Duarte (1993) e Isabel Cottine-li Telmo (1991), na perspetiva que a Educação Patrimonial não deve centrar-se apenas na vertente de fruição/contemplação, mas também promover o ato de criação/produção cultural e artística.

Por último, será apresentada a estratégia de ensino-aprendizagem desenvol-vida no decurso da investigação, assente em quatro fases principais, delineadas

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com o propósito de existir uma aprendizagem significativa com base em experi-mentação prática, de acordo com as estratégias propostas por Joan Ferres (1996).

1. EdUcAçãO PATRIMONIAl: qUE PATRIMóNIO?

Consideramos que a definição de educação patrimonial necessita, em primeira instância, de uma definição sobre o património. Podemos considerar, tal como Jorge Pais da Silva e Margarida Calado (2005:280), o património como um “con-junto de bens culturais que devem ser preservados sendo protegidos por legisla-ção específica.”. A primeira referência à proteção do património português data de 1721, de acordo com Margarida Calado (1985:1), no reinado de D. João V e sus-citado pela fundação da Academia Real de História Portuguesa. É assim definido em alvará com data de 30 de Agosto de 1721, o seguinte património:

a) um património concreto a preservar: edifícios, estátuas, mármores e cipos com figuras

esculpidas, ou com inscrições lâminas ou chapas de metal igualmente com inscrições ou

caracteres; e medalhas e moedas;

b) o âmbito cronológico dos achados abrangidos — dos Fenicios ao reinado de D. Sebastião;

c) o papel que cabia às autarquias locais — Câmaras das cidades e vilas — na protecção

activa desse património;

d) o organismo centralizador dessa conservação·- a Academia de História;

e) a responsabilidade financeira da Academia na conservação dos monumentos e na aqui-

sição das peças;

f) as penas em que incorriam os que, de algum modo destruíssem ou ocultassem as peças

referidas. (CALADO, 1985 p. 2)

A revolução de 25 de Abril de 1974 impulsionou em Portugal, diversas alte-rações culturais. O surgimento de associações de defesa do património cultural e o desencarceramento do conceito tradicional de património originou repercus-sões, como salienta Paulo Ramos (1993:61). O conceito de monumento, ligado ao património, alterou-se e adequou-se a novos entendimentos. Neste sentido, consideramos que Henrique Pais da Silva caracteriza da forma mais adequada o conceito de monumento, não atribuindo à materialidade ou às dimensões fí-sicas do artefacto o papel preponderante, pois “…não se trata de uma noção de escala métrica, mas de um conceito de escala cultural.” (s.d.:25).

Do ponto de vista legislativo, de acordo com o disposto em Diário da Repú-blica — I Série — Número 153, de 6 de Julho de 1985 e remetendo à lei nº 13/85, património é:

o património cultural [português] é constituído por todos os bens materiais e imateriais

[que, pelo seu reconhecido valor próprio, devam ser considerados como de interesse rele-

vante para a permanência e identidade da cultura portuguesa através do tempo].

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Já anteriormente a Unesco tinha definido o património natural e patrimó-nio cultural, na Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Na-tural, realizada em 1972 e posteriormente, em 2003, surge uma definição com-plementar as já instituídas nos países subscritores deste tratado, relativamente ao património cultural imaterial, definido na Convenção para a salvaguarda do Património Cultural Imaterial.

Consideramos que apesar de positivas na sua generalidade, as classificações realizadas pela Unesco, criaram diversos constrangimentos ao património. To-memos como exemplo a crítica de Françoise Choay à “comercialização patri-monial”, ato originário de uma certificação da memória coletiva de um povo, que leva os visitantes a observar a sua própria memória (o objeto, o museu, a edificação) em circunstâncias desadequadas plenas de “…amontoamento e ruído totalmente impróprias a qualquer deleite intelectual ou estético (2011:48)”.

A certificação da memória induz então a definições mais estreitas de patri-mónio, como a de Fernando Magalhães, que o define como “… todo o objecto ou coleção de objectos inseridos em museus e cujo valor simbólico ultrapassou o funcional…”(2005:21), da qual discordamos. Museificar o património incorre em consequências nefastas para o futuro, considerando que as gerações vindouras irão observar-nos pelos testemunhos que deixamos. Incorremos no risco de con-siderar património apenas e tão só o objeto que não é contemporâneo, mesmo que em detrimento da sua qualidade. Para este fator alertou-nos Jorge Pais da Silva, quando refere que “o critério de preservação há-de ser sempre o da qualidade da peça. Nem tudo o que é antigo no domínio do património histórico-artístico me-rece ser conservado…cumpre salvaguardar o que é contemporâneo, desde que em contrapartida seja dotado daquela qualidade que exigimos no antigo…”(s.d.:24).

2. EdUcAçãO PATRIMONIAl: qUE dEfINIçãO?

Ana Duarte (1993) refere sobre a educação patrimonial que tratar esta é abordar a educação artística, numa dialética que pretende desenvolver atitudes, conheci-mentos e motivar os estudantes. No entanto, esta não deve ser puramente medi-ática, mas sim assente em trabalho no terreno e discussão científica sobre o que se observa. Duarte identifica sobretudo que educação patrimonial é “aprender a saber ver” (1993:67), ou seja, saber escolher e descodificar, interpretar, o que se quer ver. Os modelos estereotipados presentes nos mass media que, como indica Isabel Cottinelli Telmo (1991:5), não são representativos de nenhuma cultura mas facilmente assimiláveis visualmente, devem ser identificados e reconheci-dos como tal. Este é um olhar construído, deliberado, educado por forma tam-bém a contrariar o narcisismo que Françoise Choay refere, pois “…o património histórico parece hoje em dia representar o papel de um vasto espelho no qual nós, os membros das sociedades humanas dos finais do século XX, contemplarí-amos a nossa própria imagem.”(2010:253).

Outros motivos sustentam a necessidade da existência de uma educação

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patrimonial, relacionados diretamente com a presença da instituição museu na sua vertente educativa. Se para o investigador é claro que a educação patrimo-nial não se deve confinar ao interior do museu, pela sua importância na forma-ção geral e específica de qualquer cidadão, também é claro que os museus reali-zaram no decurso dos últimos anos um esforço ao prepararem os seus espólios, adequando-os ao público geral e à comunidade educativa do meio onde estão inseridos. Ana Duarte (1993:11) identifica como objetivos da educação patrimo-nial, os seguintes:

Desenvolver atitudes de preservação e animação do Património.Conhecer o património da zona em que a escola está inserida.Incentivar o gosto pela descoberta.Compreender a História Nacional a partir da História Local.

A educação, enquanto conceito sinónimo ou incentivador de salvaguarda e defesa do património, é defendido por diversos autores. Podemos afirmar inclu-sive que esta é a característica mais abordada e defendida no que refere à educa-ção patrimonial. Isabel Cottinelli Telmo identifica, nesse sentido, a capacidade de adaptação de estratégias de educação patrimonial enquanto fomentadoras da salvaguarda do património, em diversos escalões etários, de forma interessante e apelativa (1991:5). Neste sentido, a educação patrimonial está intimamente ligada ao paradigma da Educação, enquanto “aprendizagem permanente…pela defesa e salvaguarda de um Património comum, da humanidade, dos povos e das pessoas…”, como refere Guilherme d’Oliveira Martins (2009:17), um ato de ‘…despertar consciências…’(p. 63), finalidade principal do ato de educar. Em consequência da ligação entre educação e património, considera-se que deverá ser realizado no contexto formal escolar a salvaguarda dos valores culturais, pois “a primeira linha de defesa activa do património histórico-artístico situa--se nos bancos das escolas de todos os níveis, do escalão pré-primário até ao superior”(SILVA, s.d.:38). A salvaguarda do património referida pelos autores ci-tados anteriormente encontra-se assim bastante alicerçada numa componente de investigação e inventariação do património regional e nacional. O conheci-mento sobre os valores culturais permitirá ao público mais jovem a sua defesa e conservação. Existe assim, no ato da salvaguardada, duas perspetivas.

A primeira, não pela sua importância mas apenas para efeitos de referência, assume-se como um ato de salvaguarda do património edificado, que frequente-mente é alvo de abandono, degradação e vandalismo. Já em 1984 Margarida Ca-lado alertava para a degradação e demolição de importantes obras arquitetóni-cas na cidade de Lisboa, com a pressão dos grupos económicos imobiliários que levaram em muitas situações à destruição de edifícios com valor patrimonial histórico, para a construção de imóveis completamente desajustados da traça da cidade. Em contraponto, Calado refere o exemplo do edifício “Hotel Vitória”, de Cassiano Branco, situado na Avenida da Liberdade e recuperado pelo Partido

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Comunista Português. Desta forma entendemos a salvaguarda do património no ato da preservação, restauro e conservação. A segunda perspetiva relaciona--se com a salvaguarda do património cultural imaterial, que pelas suas carac-terísticas próprias apenas pode sobreviver por atos, em primeira instância, de documentação, registo e identificação. No quadro seguinte podemos observar as diversas ações passíveis de salvaguardar o património imaterial, defendidas por Clara Cabral. Dessa forma, verificamos que a salvaguarda do património pode ser realizada por atividades simples, passíveis de serem realizadas no con-texto educacional formal, tais como o registo fotográfico, audiovisual e docu-mental. Cabral assume inclusive que o próprio património material poderá ser salvaguardado através destas medidas, dado que “…a maioria das manifestações imateriais se desenrola em determinados locais, apoiando-se em objetos físi-cos”(2011:126), tais como instrumentos musicais que suportam determinada música tradicional, trajes específicos de determinado ritual ou mesmo instru-mentos de atividades artesanais.

A educação patrimonial não pode ser dissociada de outras áreas específicas do saber, pois as competências necessárias ao desenvolvimento das atividades de promoção e preservação do património são, por inerência, específicas. Neste sentido, consideraremos as competências específicas em dois campos de forma-ção, no âmbito dos jovens estudantes e na formação dos próprios educadores.

No caso dos estudantes, que mediante atividades e estratégias de investiga-ção e documentação, realizam a preservação do património, serão necessárias competências no âmbito da pesquisa, seleção de informação, recolha de da-dos, bem como formação nas áreas do visual e audiovisual. Mas a preservação também pode ser realizada através da revitalização do património cultural, to-mando como exemplo o desaparecimento dos cantares de trabalho, Janeiras ou outras formas populares de canto, que como refere Jorge de Alarcão (1987:66) podem ser dinamizadas na educação musical infantil.

Esta abordagem parece-nos mais completa, pela sua vertente mais abrangente,

Quadro 1 - Componentes da salvaguarda do património cultural imaterial (CABRAL, 2011:112)

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enquanto estratégia. No fundo, a educação patrimonial não deve centrar-se ape-nas na vertente de fruição/contemplação, como também promover o ato de cria-ção/produção cultural e artística. Considerando o exposto na figura 1, compre-endemos a educação patrimonial como a relação entre três eixos fundamentais, a investigação, a fruição e a criação. Ao investigar, o estudante conhecerá o patri-mónio abordado, permitindo também criar uma relação de fruição com o objeto investigado. Esta dialética pode reverter num ato de preservação do património, pelo conhecimento adquirido, a sua valorização, identificação e conservação.

A criação de um produto seja de caráter artístico, comunicativo, ou outros, originado pela relação com o ato de investigação, permitirá a promoção do pa-trimónio investigado, perante o próprio estudante ou perante a comunidade envolvente. Simultaneamente, a criação oriunda do ato de fruição permitirá ao estudante desenvolver uma literacia específica, relacionada com a área de cria-ção definida, seja esta artística (eg. Literacia audiovisual no caso de produção audiovisual) ou comunicacional (eg. Literacia da língua materna, na produção de textos/cartazes).

3. PROdUçãO AUdIOVISUAl: VídEO PROcESSO

A estratégia de ensino aprendizagem delineada para implementação no pro-cesso de investigação assentava em que o estudante desenvolvesse um traba-lho progressivo no currículo da unidade, delineado por estratégias construídas tendo como referência o papel motivador do vídeo-processo indicado por Joan Ferrés, numa metodologia de ensino-aprendizagem ativa, construtivista e de ex-periência prática, pois “…no uso didáctico do vídeo o mais importante deve ser o processo em si.” (1996:40). As estratégias englobaram desta forma produções audiovisuais individuais e inseridas em projetos globais de turma, sobre a temá-tica do património, referentes ao contexto social, cultural e geográfico da escola de ensino superior (Setúbal), de acordo também com a formação inicial onde

Fig, 1 - Educação Patrimonial

a unidade pertence. Os conteúdos abordados reportaram-se à esfera dos audio-visuais especificamente e num espectro mais amplo ao património, de acordo com o plano curricular da turma, visto que o património e a educação patrimo-nial são abordados especificamente noutras unidades curriculares.

As atividades curriculares decorreram em quatro fases principais, deline-adas com o propósito de existir uma aprendizagem significativa com base em experimentação prática. Assim, na primeira fase englobou-se a contextualiza-ção teórica dos conteúdos abordados, envolvendo a literacia visual, a linguagem audiovisual e o património natural, cultural e imaterial. Durante esta fase, os estudantes iniciaram a investigação sobre o património existente na área geo-gráfica definida. Durante a segunda fase desenrolou-se a exemplificação e ex-perimentação prática, abordando simultaneamente os conteúdos de linguagem audiovisual, literacia visual e técnicas e tecnologia audiovisual. Durante esta fase, os estudantes/grupo de estudo realizaram os seus próprios produtos de apoio (vídeos pedagógicos) dos conteúdos tratados na unidade curricular. Desta forma, com o apoio do docente, experimentaram as técnicas e tecnologias trata-das, realizando vídeos exemplificativos das questões tratadas em aula, permitin-do o desenvolvimento de competências, praticando o desenvolvimento de um projeto de produção audiovisual. Ao longo de todo este processo esteve sempre presente a literacia visual, seja nas preocupações com a forma/imagem (compo-sição, enquadramento, peso visual, cor, etc) como com o conteúdo/mensagem do produto, que os estudantes deveriam saber codificar e descodificar.

A terceira fase, de caráter mais autónoma, permitiu desenvolverem o proces-so de produção audiovisual individual de cada estudante (vídeo-produção), rea-lizando o seu documentário sobre um elemento de património da região de Se-túbal, escolhido por si. A investigação e a fruição do património definido permi-tiram a criação de um produto com preocupações artísticas e comunicacionais.

Na quarta fase teve lugar a divulgação dos documentários realizados e a sua análise e evolução por parte do grupo de estudo. O produto audiovisual produzido como objetivo final da unidade curricular deveria revelar as preocupações artísti-cas, estéticas e visuais discutidas ao longo do processo de ensino-aprendizagem.

Dos 35 elementos do grupo de estudo, verificou-se a escolha para objeto da sua criação final exemplos de várias vertentes de património, desde o patrimó-nio natural (eg. Serra da Arrábida), o património cultural material e imaterial (eg. Convento da Arrábida ou a Tradição de pão por Deus) até à diversidade cultu-ral (eg. Grafittis em Setúbal).

No decurso do processo e resultante das entrevistas finais realizadas, verifi-ca-se a concordância na maioria do grupo do processo prático como elemento facilitador da aprendizagem. De acordo com os estudantes, a relação entre a prá-tica experimental das técnicas e processos abordados e o desenvolvimento do projeto sobre o património, facilitou não só a aprendizagem da literacia audio-visual abordada como do património, nas suas várias vertentes.

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Contactar o autor: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

• ALARCÃO, Jorge de. 1987. Introdução ao estudo da história e do património locais. Coimbra : Instituto de

Arqueologia — Faculdade de Letras de Coimbra.

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em “El Pais”. Jornal do Património. Dezembro de 1984, Vol. 0, pp. 1-3.

• ______. 1985. Portugal detentor da segunda mais antiga legislação da Europa sobre Património. Jornal do

Património. Janeiro a Março de 1985, Vol. 1, pp. 1-3.

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DUARTE, Ana. 1993. Educação Patrimonial: guia para professores, educadores e monitores de museus e tempos

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A MUSEOlOgIA BRASIlEIRA: novo marco regulatórioBRAzIlIAN MUSEOlOgy: a new regulatory mark

José Ricardo Oriá FernandesMuseu Câmara dos Deputados (Brasília-DF)

Resumo: Nas últimas décadas, houve um crescimento considerável do setor museoló-gico brasileiro, resultado, em grande parte, da adoção de uma política pública de esta-do, a partir de 2003 e que se consolidou na criação de um novo marco regulatório para o segmento museal, representado pelo “Estatuto dos Museus” e pela criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em 2009, novo órgão do Ministério da Cultura (MinC).

Palavras-chave: Museologia brasileira. Estatuto dos Museus.

Diversidade Cultural. Direito à Memória.

Abstract: In the last decades, there was a considerable raise in the Brazilian museo-logical sector, mainly because of the adoption of a new public state policy, since 2003, and it was consolidated in the creation of a new regulatory mark for the mu-seum field, represented by Statute of Museums and by the creation of Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), in 2009, a new public organization of Ministério da Cultura (MinC).

Keywords: Brazilian Museology. Statute of Museums.

Cultural Diversity. Right to Memory.

É inquestionável o fato de que, no Brasil, houve um aperfeiçoamento do setor museológico nos últimos anos, que se traduziu em três grandes conquistas: au-mento do número de museus, crescimento da oferta de cursos de museologia, em nível superior e criação de um novo marco regulatório para o setor, consubs-tanciado na Lei nº 11.904, de 2009, mais conhecido como “Estatuto dos Museus”. A ele, seguiu-se, com a sanção da Lei nº 11.906, de 2009, à criação da uma nova autarquia federal, vinculada ao Ministério da Cultura (MInC), o Instituto Brasi-leiro de Museus (Ibram), órgão gestor da política museológica nacional. Acres-cente-se o fato de que houve um aumento significativo do número de cursos de museologia em todo o país, resultado da expansão do ensino superior durante o governo do presidente Lula. Este texto pretende analisar as principais conquis-tas do setor museológico brasileiro, ressaltando, sobretudo, as inovações trazi-das pelo Estatuto dos Museus.

1. A REAlIdAdE MUSEAl BRASIlEIRA

Levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) mostra que em todo o país o número de instituições museológicas chega a 3.025 (IBRAM, 2011:

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27). Essas instituições possuem um acervo com mais de 70 milhões de itens e geram mais de 22 mil empregos diretos (IBRAM, 2010: 36).

Apesar do crescimento do número de museus nos últimos anos, os dados ainda apontam para a seguinte realidade cultural: do total de 5.564 municípios existentes no Brasil, apenas 1.174 (21,7%) possuem museus, o que revela o bai-xo índice desse equipamento cultural no país e sua concentração nos grandes centros urbanos das regiões mais desenvolvidas do Brasil. Segundo dados do Cadastro Nacional de Museus do próprio Ibram, a região Sudeste do país, por exemplo, concentra cerca de 34% das instituições museológicas, seguida da re-gião Sul (28%), Nordeste (24%), Centro-Oeste (11%) e Norte, com apenas 3%.

Acrescente-se a isso o fato de que 77,7% dos museus brasileiros não possuem orçamento próprio, o que, muitas vezes, inviabiliza a sustentabilidade financei-ra dessas instituições culturais, comprometendo a prestação da qualidade de seus serviços à população.

No Brasil, a relação museu-habitante é de um museu para cada 115 mil pessoas, enquanto na Argentina a relação é de 62 mil habitantes por museu e a Finlândia possui um museu para cada 5 mil habitantes. Além disso, o hábito de visitar museus não é ainda algo incorporado ao conjunto da população bra-sileira. É inadmissível que, em pleno século XXI, quando os museus em todo o mundo passam a exercer importante papel na revitalização dos grandes centros urbanos, pouco mais de 5% dos brasileiros já tenham visitado alguma exposição numa instituição museológica.

Outra pesquisa realizada em 2011 pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ) aponta para uma participação ainda menor de brasileiros em atividades culturais. No universo de mil pessoas em 70 cidades do país, apenas 45% dos entrevistados estiveram envolvidos com alguma ação cultural, sendo que desse percentual apenas 16% indicaram priorizar a visitação de exposições em museus e centros culturais (MENDES, 2012: 18).

O próprio Ministério da Cultura (2009) informa, ainda, que mais de 90% dos Municípios brasileiros não possuem salas de cinema, teatro, museus ou espa-ços culturais multiuso. Neste sentido, podemos afirmar, citando as palavras do economista Márcio Pochmann, que a exclusão social como marca de nossa de-sigualdade é também de natureza cultural: “a sociedade brasileira convive com diferentes formas de exclusão social, inclusive a cultural, que carrega em seu conteúdo a inacessibilidade à produção de determinados bens culturais como uma de suas características principais” (POCHMANN, 2005: 87).

Em que pese à importância dessas instituições culturais, a realidade social bra-sileira nos mostra que muito ainda precisa ser feito para que os museus possam cumprir o papel estabelecido pelo Conselho Internacional de Museus (Icom) que é o de serem “instituições permanentes, sem fins lucrativos, ao serviço da socieda-de e do seu desenvolvimento, abertas ao público, que adquirem, preservam, comu-nicam e expõem, para fins de estudo, educação e lazer, os testemunhos materiais e imateriais dos povos e seus ambientes” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2012: 148)

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Com efeito, apesar dos esforços do governo federal em desenvolver uma política nacional de museus, no contexto da política cultural implementada pelo Ministério da Cultura (MinC) desde o início do governo Lula — política cujo coroamento se deu com a criação do Instituto Brasileiro de Museus (Lei nº 11.906/2009) –, muito ainda precisa ser feito para o desenvolvimento do segmen-to museológico em nosso país.

Como dissemos anteriormente, houve crescimento da oferta de cursos de mu-seologia, em nível superior. Hoje, existem no país cerca de catorze cursos de gra-duação em museologia, sendo treze oferecidos por universidades públicas, cres-cimento esse evidenciado nos últimos anos com a expansão da rede pública de ensino superior, através do Programa de Reestruturação e Expansão das Universi-dades Federais (Reuni). Temos dois programas de pós-graduação no País, a saber: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, com programas de mestrado e doutorado) e a Universidade de São Paulo (USP, apenas com mestrado).

No entanto uma das maiores conquistas do setor museológico no país foi a instituição de um marco regulatório, até então inexistente, representado pela criação de uma autarquia federal responsável pelo setor — o Ibram — e, mais ainda, pelo Estatuto dos Museus (Lei nº 11.904/2009) e por outras normas corre-latas, que dão configuração ao Sistema Brasileiro de Museus.

Entre os principais pontos inovadores trazidos pelo Estatuto dos Museus, podemos destacar:

Definição mais ampla de museu: museus são instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer natureza cultural, aberto ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (art. 1º). A Lei nº 11.906, de 2009, que criou o Ibram, traz outra definição de museu, mas que não contradiz a definição anteriormente mencionada:

as instituições museológicas são os centros culturais e de práticas sociais, colocadas a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, que possuem acer-vos e exposições abertas ao público, com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da reali-dade cultural brasileira, o estímulo à produção do conhecimento e à produção de novas oportunidades de lazer,... (art. 2º, caput)

Princípios fundamentais: Existência de princípios fundamentais que devem pautar o trabalho dos museus: promoção da cidadania, cumprimento da função social, preservação do patrimônio cultural, acesso e inclusão social, respeito e valorização da diversidade cultural (art. 2º).

As funções básicas do museu: Preservação do patrimônio cultural musea-lizado (ações de identificação, conservação, restauração e segurança do acervo),

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Pesquisa como suporte para todas as áreas do museu e Comunicação como ta-refa de difusão cultural (exposições, publicações, seminários e fóruns).

O Museu e sua função educativa: Destaque para a função educativa, bem como a necessidade de acessibilidade física e de conteúdo às pessoas com de-ficiência (arts. 29 e 35). Registre-se que a dimensão educativa dos museus foi, desde sempre, uma preocupação da museologia brasileira e de intelectuais liga-dos à área. Prova disso foi a realização do Seminário Regional da UNESCO sobre a função educativa dos museus, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1958, que produziu importante documento- a “Declaração do Rio de Janeiro”

O Sistema Brasileiro de Museus: anteriormente instituído pelo Decreto nº 5.264, de 2004, o Sistema é incorporado ao Estatuto dos Museus e tem como uma de suas funções básicas a promoção da interação entre os museus, instituições afins e profissionais ligados ao setor, bem como a gestão integrada e o desenvol-vimento das instituições, acervos e processos museológicos (arts. 55 a 61).

O Plano Museológico, considerada ferramenta básica do planejamento es-tratégico (arts. 45 a 47), devendo definir sua missão básica e função específica contemplando os seguintes itens: o diagnóstico participativo da instituição; a identificação dos espaços e do patrimônio sob a guarda do museu; a identifica-ção dos públicos; o detalhamento dos programas desenvolvidos (institucional, gestão de pessoas, acervos, exposições, educativo, pesquisa, arquitetônico-ur-banístico, segurança, financiamento e fomento e comunicação). É obrigatória a elaboração e implementação do Plano Museológico, no prazo de cinco anos, contados a partir da publicação do Estatuto dos Museus (arts. 44 e 67). Para o museólogo Cícero Antônio de Almeida, o plano museológico, estabelecido pelo Estatuto dos Museus, tem por princípios dez pontos basilares:

1 Possibilitar o equilíbrio e a estabilidade na gestão do museu, independente de sua dire-

ção e de seu corpo de trabalhadores; 2) Implantar uma estrutura básica de funcionamento

dentro da qual podem ser tomadas decisões estratégicas; 3) Assegurar a salvaguarda do

acervo; 4) Tornar clara a missão e a as ações do museu tanto para funcionários quanto

para o público; 5) Definir com clareza as ações coletivas e individuais no interior do mu-

seu, estabelecendo as responsabilidades de cada área de trabalho; 6) Propiciar o uso mais

eficaz dos recursos; 7) Pensar o museu como um conjunto complexo e interdependente,

a partir dos princípios estabelecidos no Estatuto dos Museus e demais documentos nor-

mativos, e na importância de estabelecer um equilíbrio entre as suas partes; 8) Identifi-

car situações emergenciais ou risco iminente; 9) Levar em consideração a capacidade de

solução dos problemas, através de recursos de pessoal e orçamentários disponíveis e 10)

Preparar o museu para novas realidades (ALMEIDA, 2013: 27).

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A Gestão participativa do museu: participação da sociedade civil na gestão do museu, através da possibilidade de criação de “Associação de Amigos do Mu-seu” (arts. 48 a 54), bem como da instalação de espaços para essas associações ou de voluntariado, que tenham por objetivo contribuir para o desempenho das funções e finalidades do museu (art. 9º).

O Combate ao tráfico ilícito de bens musealizados: o governo brasileiro, atra-vés de seus museus, passa a exercer um papel importante no combate ao tráfico ilícito bens culturais, bem como deve estabelecer a necessária cooperação inter-nacional entre os países (art. 68).

É preciso destacar que o Estatuto dos Museus precisa ser devidamente re-gulamentado em decreto pelo Poder Executivo, para que, de fato, ele possa ser totalmente implementado no contexto da atual política museológica.

Ainda no âmbito do Poder Legislativo, tramitam no Congresso Nacional duas matérias de interesse do setor museológico. Tratam-se das seguintes propo-sições legislativas, a saber: Proposta de Emenda Constitucional nº 575, de 2006, de autoria do Deputado Paulo Delgado e outros, que “Altera os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, estabelecendo condições para preservação do Patrimônio Mu-seológico Brasileiro” e o Projeto de Lei nº 3.845, de 2008, do Senado Federal, que “Autoriza o Poder Executivo a criar o Fundo Nacional de Desenvolvimento dos Museus (FNDM)”.

2. MUSEUS BRASIlEIROS: dA IdENTIdAdE NAcIONAl à dIVERSIdAdE cUlTURAl

Originários das práticas colecionistas e dos gabinetes de curiosidades, os mu-seus foram vistos, durante muito tempo, como depósitos de coisas velhas e relí-quias de um passado remoto. No senso comum, consagrou-se a máxima de que “quem gosta de passado é museu!”

A partir do século XIX, os museus passaram a se constituir em importantes elementos de afirmação da identidade nacional. No contexto do ideário civili-zatório oitocentista, não havia país que não tivesse seu museu histórico, que “contasse a história da nação”, numa perspectiva de educação cívica para a po-pulação. No Brasil, exemplo paradigmático deste modelo foi o Museu Históri-co Nacional, criado em 1922, no contexto das comemorações do Centenário da Independência do Brasil e que pretendia, segundo seu Diretor Gustavo Barroso, estabelecer a genealogia da nação.

Com os aportes teóricos da Nova Museologia, passou-se da concepção de mu-seu como elemento de constituição da identidade nacional, que se pretendia úni-ca, homogênea e unívoca, para o museu como espaço de afirmação de outros seg-mentos sociais. Hoje, com a Nova Museologia e o avanço epistemológico das ci-ências sociais, os museus passam a ser considerados importantes suportes da me-mória e elementos de afirmação da identidade cultural de uma dada coletividade.

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Assim, os museus, sobretudo os de natureza histórica, buscam, através de suas exposições, não mais a afirmação de uma dada identidade nacional, mas sim o reconhecimento, a promoção e a valorização da diversidade cultural.

Não há quem possa negar que, no mundo contemporâneo, os museus são instituições culturais relevantes, instrumentos de preservação do patrimônio histórico, indutores do desenvolvimento do turismo e ícones para a revitaliza-ção de áreas urbanas anteriormente degradadas. Vejamos o exemplo da recente inauguração do Museu de Arte do Rio (MAR), no contexto do processo de revita-lização da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro.

Segundo o antropólogo alemão Andreas Huyssen, assistimos hoje a um pro-cesso de musealização da sociedade. Para ele, estamos todos “seduzidos pela me-mória”, na medida em que “um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreenden-tes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas das sociedades ocidentais. (...) a memória se tornou uma obsessão cultural de proporções monumentais em todos os pontos do planeta.” (HUYSSEN, 2000:9-16).

No Brasil, desde o final do século passado, presenciamos a crescente reivindi-cação da constituição de museus próprios por parte de diferentes grupos étnicos e movimentos sociais. Eles veem a criação de instituições museológicas como um direito à memória, que possibilita a afirmação de sua identidade, o “resgate” de sua autoestima e o fortalecimento da ideia de pertencimento a uma determi-nada coletividade.

Assiste-se, assim, a um crescimento dos museus comunitários, museus po-pulares, museus étnicos, eco museus e museus temáticos em detrimento de mu-seus nacionais em várias partes do mundo. No Brasil, exemplo mais contunden-te desse novo processo museológico se deu com a criação do Museu da Favela, na favela da Maré, cidade do Rio de Janeiro, fruto da reivindicação dos próprios moradores locais.

Outro exemplo digno de registro, que revela a importância da necessidade de preservar nossa diversidade étnica e cultural no contexto de uma política mu-seológica, é a criação de diversos museus em comunidades indígenas. Por inter-médio desses “novos museus”, desmistifica-se a ideia de que, em algumas partes do território nacional, não existem mais índios, e revela-se um novo Brasil até então escondido. É o museu, com uma nova prática de memória cidadã, dan-do visibilidade a grupos étnicos e comunidades tradicionais (GOMES&VIEIRA NETO, 2009).

Como historiador de formação acadêmica e na experiência de curadoria em um museu público, gostaria de reafirmar minha crença na importância da fun-ção social que os museus exercem no mundo globalizado em que vivemos. Re-montando às origens gregas da palavra museu, penso essa instituição cultural como uma grande Ágora, ou seja, um espaço múltiplo que propicia o encontro das diversidades.

Afinal de contas, pouco importa se o museu seja um local onde se guardam coisas velhas ou novas. O importante é que ele seja um espaço que dialogue com

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a vida cotidiana das pessoas, estimule a reflexão crítica e proponha ações que as ajudem a construir seus próprios sonhos.

Por fim, consideramos que uma política cultural consentânea com o princí-pio da cidadania — o direito de todos aos bens e valores de nossa rica diversi-dade cultural — deve incorporar a necessidade de se criarem novas instituições museológicas nos municípios brasileiros e de dotar as já existentes de condições factíveis de funcionamento, de forma a promover o acesso da população a esses equipamentos culturais, para que se garanta efetivamente a todos os brasileiros o direito à memória em toda a sua plenitude.

Contactar o autor: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

• ALMEIDA, Cícero A. F. de. Plano Museológico: marco de regulação da gestão museal no Brasil In: BRAJA,

Wagner (org.). Gestão Museológica: questões teóricas e práticas. Brasília: Edições Câmara, 2013, p. 27 (no prelo).

• BRASIL. Ministério da Cultura. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais. Brasília: MinC, 2009.

• CÂMARA DOS DEPUTADOS. Legislação Sobre Museus. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012.

· GOMES, Alexandre Oliveira e VIEIRA NETO, João Paulo. Museus e memória indígena no Ceará: uma propos-

ta em construção. Fortaleza: Secult, 2009.

• HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

• INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS (Ibram). Museus em números. Brasília: Ibram, 2011. vol. 1, p. 27.

• ______. Política Nacional de Museus: relatório de gestão 2003-2010. Brasília-DF: MinC/Ibram, 2010.

• MENDES, Luis Marcelo. De Ilhas e Plataformas In: MENDES, Luis Marcelo (org.). Reprograme: comunica-

ção, branding e cultura numa nova era de museus. Rio de Janeiro: Imã Editorial, 2012.

• POCHMANN, Marcio et al (orgs.). Atlas da exclusão social, volume 5: agenda não liberal da inclusão social

no Brasil. São Paulo: Cortez, 2005.

ANEXO, cRONOlOgIA dOS MUSEUS BRASIlEIROS

E dA POlíTIcA MUSEOlógIcA

•1818: Criação do Museu Real por D. João VI (hoje Museu Nacional, perten-cente à Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ).

•1866: Surgem os primeiros Museus de História Natural, de caráter enciclopé-dico: Museu Paraense Emilio Goeldi (1866) e Museu Paulista (1894).

•1922: Criação do Museu Histórico Nacional (Gustavo Barroso), no contexto das comemorações do Centenário da Independência do Brasil. O papel pio-neiro do Museu Histórico Nacional na criação do primeiro órgão de preserva-ção do patrimônio histórico- Inspetoria dos Monumentos Nacionais.

•1932: Criação do primeiro Curso de Museologia (hoje, Escola de Museologia- UNIRIO).

•1937: Implantação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que passa a desenvolver uma política museológica, com a criação

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de museus monográficos que consagram o barroco ícone da identidade nacio-nal (MG: Museu da Inconfidência — 1938; Museu do Ouro -1946; Museu do Diamante — 1954, Museu Regional São João Del Rei — 1958; RS: Museu das Missões- 1938 e RJ: Museu Imperial de Petrópolis- 1943)

•Década de 1950: 1º Congresso Nacional de Museus (Ouro Preto-MG, 1956) e Seminário Regional da UNESCO (MAM-RJ, 1958) sobre a função educativa dos museus.

•1963: Criação da Associação Brasileira de Museologia (ABM) e a luta pela re-gulamentação da profissão de museólogo.

•1983: Programa Nacional de Museus, ligado à Fundação Nacional Pró-Memó-ria para a revitalização dos museus brasileiros.

•1984: Regulamentação da profissão de Museólogo (Lei nº 7.287/1984).•Décadas 1980-1990: ampliação do conceito de Patrimônio Cultural, incluin-

do os bens de natureza imaterial. Apropriação dos movimentos sociais pelo direito à memória e à identidade.

•2003: Política Nacional de Museus (gestão do Ministro Gilberto Gil) e criação do Departamento de Museus e Centros Culturais (DEMU-IPHAN).

•2004: Implantação do Sistema Brasileiro de Museus (Decreto nº 5.264/2004).•2009: Criação do Estatuto dos Museus (Lei nº 11.904/2009)•2009: Criação do Instituto Brasileiro de Museus — IBRAM, como autarquia

federal do Ministério da Cultura — MinC, responsável pela política museo-lógica (Lei nº 11.906, de 2009).

•2010: Implantação do Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010) e elabo-ração do Plano Setorial de Museus.

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OS MUSEUS cOMO ESPAçOS dE SOcIABIlIdAdE: as experiências educativas do museu de mértolaMUSEUMS AS SPAcES Of SOcIABIlITy:

the educational experiences of mértola’s museum

Lígia RafaelTécnica Superior da Câmara Municipal de Mértola

Maria de Fátima PalmaBolseira da Fundação da Ciência e Tecnologia no Campo Arqueológico de Mértola

Resumo: Os museus são espaços de sociabilidade que potenciam a troca de ideias e promovem a aprendizagem social e cultural. Este é o entendimento do Museu de Mértola que, através da sua missão de preservação e valorização patrimonial tem vindo, nos últimos anos, a desenvolver esforços no sentido de aproximar a comuni-dade do Museu, incutindo-lhes um sentimento de pertença e apropriação do patri-mónio que é seu.

Palavras-chave: Património. Educação. Sensibilização.

Abstract: Museums are social spaces that enhance the exchange of ideas and pro-mote the social and cultural situations. This is the understanding of Mértola’s Mu-seum that, through its mission of preservation and asset appreciation has, in recent years, made efforts to bring the community to the museum, instilling in them a sense of belonging and ownership of the their heritage.

Keywords: heritage. Education. Awareness.

INTROdUçãO

Os museus são locais que potenciam a troca de ideias e promovem a aprendiza-gem social e cultural pelo que, o contato entre os indivíduos e os objetos ou os espaços é um processo privilegiado de troca e desenvolvimento de experiências enriquecedoras e transformadoras. A missão do Museu de Mértola está direta-mente relacionada com a preservação e valorização patrimonial, sempre aliada ao território e às suas gentes pelo que, nos últimos anos, a equipa do Museu e do Campo Arqueológico de Mértola teem vindo a desenvolver esforços no sentido de aproximar as pessoas dos núcleos museológicos e de lhes incutir um senti-mento de pertença e apropriação do seu património.

Temos vindo a verificar que a comunidade local não conhece e não se identi-fica com o importante trabalho de investigação e musealização que se tem vindo a desenvolver em Mértola ao longo dos anos. Entendendo que os museus não são espaços fechados, destinados somente a guardar memórias, pelo contrário, são locais onde se promove a vivência e a partilha, a equipa do Museu tem vindo

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a refletir sobre o assunto e tem desenvolvido ações que visam promover a apro-ximação e o contato com a população local.

Apesar do Museu não dispor de um serviço educativo devidamente estru-turado e dotado de recursos suficientes, ao longo dos últimos anos tem vindo a desenvolver atividades que visam dotar principalmente as camadas mais jovens de uma sensibilidade e interesse pelo património que é seu, de forma a serem es-tes os principais elos de ligação intergeracional. O trabalho desenvolvido passa pela realização de visitas orientadas e adaptadas às especificidades e interesses dos intervenientes, atividades relacionadas com as atividades do museu como a arqueologia, a conservação e restauro, o desenho ou a história local e ações de formação direcionadas para funcionários e colaboradores, de forma a dotá-los de competências e aptidões que permitam a sua especialização e o aumento da qua-lidade do serviço prestado, ao mesmo tempo que permite também um aumento da autoestima, da motivação e do empenho em termos pessoais e profissionais.

Esta comunicação pretende apresentar algumas das ações desenvolvidas, explicitando as temáticas abordadas e as metodologias utilizadas, sempre com o objetivo de sensibilizar para as questões patrimoniais numa perspetiva de in-teração com o meio e com os indivíduos. Pretende também demonstrar como com pouco se faz muito e que as dificuldades se podem transformar em opor-tunidades.

1. O MUSEU dE MéRTOlA: MISSãO E OBJETIVOS

O acervo do Museu de Mértola é constituído, na sua maioria por materiais ar-queológicos recolhidos de intervenções realizadas no concelho, especialmente na Vila de Mértola e a sua principal vocação é estudar, documentar, conservar e divulgar as coleções que detém, bem como apoiar e colaborar na salvaguar-da, estudo e divulgação do património cultural do concelho de Mértola. Os seus objetivos vão de encontro ao cumprimento das funções específicas de uma uni-dade museológica consciente da sua importância para o território envolvente e sua comunidade.

O Museu integra atualmente doze núcleos museológicos disseminados pelo Centro Histórico da Vila (Figura 1), arrabalde e Mina de S. Domingos, que al-bergam coleções temáticas e, sempre que possível, instaladas em locais onde se mantém os testemunhos arqueológicos, ou em edifícios emblemáticos do casco antigo recuperados para exibir coleções museológicas. No acervo, para além dos materiais arqueológicos, estão também integrados objetos recolhidos em todo o concelho através de levantamento patrimonial exaustivo e recolha de objetos em avançado estado de degradação e em perigo de perda e, coleções adquiridas pela Autarquia. Em termos cronológicos o acervo abarca vários períodos da his-tória que vão desde o século I até ao século XX d.C. e é composto por materiais diversos em termos dos seus constituintes, da técnica e da tipologia funcional, aliados a importantes conjuntos de estruturas imóveis conservadas in situ.

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O primeiro núcleo — a Casa Romana — foi inaugurado em 1988 e situa-se na cave do edifício dos Paços do Concelho, onde se exibem as estruturas de uma antiga casa e uma coleção de materiais arquitetónicos, epigrafia funerária, cerâ-mica e metais, datados entre os séculos I e IV d.C.. Em 1990 foi aberto ao público o núcleo museológico da Torre de Menagem do Castelo com o objetivo de pre-servar e valorizar uma coleção de material arquitetónico datada entre os séculos VI e X d.C., que se encontra atualmente em obras de requalificação e remodela-ção museográfica.

Em 1993 inaugurou-se a Basílica Paleocristã, um projeto museológico que contemplou um edifício construído de raiz e que mantém in situ estruturas de uma basílica utilizada como espaço funerário entre os séculos V e VIII d. C. Ain-da na década de 90, devido a obras de ampliação Escola EB 2,3 ES de Mértola, foi criado o núcleo museológico da Ermida e Necrópole de S. Sebastião que nasceu da necessidade de preservar e valorizar as ruínas de uma antiga ermida do século XVI votada a S. Sebastião e de parte da área de uma necrópole romana (séculos I/VIII d.C.), integradas no recinto do estabelecimento escolar.

A Oficina de Tecelagem, cooperativa em laboração desde 1986, que viu o seu núcleo museológico formalmente inaugurado em 2000, constitui uma das mais importantes seções deste circuito não só pela coleção de artefactos relacionados com esta atividade artesanal mas também porque alberga a Cooperativa de Te-celagem onde duas tecedeiras mantêm viva esta atividade milenar (Figura 2).

O inicio do segundo milénio constituiu um importante momento do museu devido não só à inauguração de 3 núcleos museológicos mas também porque se iniciou um processo de reestruturação do Museu que permitiu, desde aí, a abertura ao público em regime de permanência. O núcleo de Arte Sacra, inaugu-rado em abril de 2001, encontra-se instalado na antiga Igreja da Misericórdia e exibe uma importante coleção de imaginária e um conjunto de alfaias litúrgicas procedente das Igrejas do Concelho de Mértola, com peças datadas entre os sé-culos XV e XVIII. Também em 2001 foi aberta ao público a Forja do Ferreiro, que corresponde à musealização de uma antiga forja, onde é possível observar uma pequena parte do espólio representante desta atividade mas também perceber a importância deste ofício e deste artesão no contexto social de finais do século XIX-1ª metade do século XX.

No final de 2001, abriu ao público o núcleo de Arte Islâmica que se localiza num edifício do século XVIII remodelado para o efeito (Figura 3). Este núcleo corresponde ao culminar do trabalho realizado durante anos não só ao nível das intervenções arqueológicas como também de tratamento e estudo dos materiais do período islâmico, sendo a coleção representativa dos séculos IX a XIII d.C. e composta por elementos arquitetónicos, epigrafia funerária, cerâmi-ca, metais, osso trabalhado e vidro, de diversas tipologias formais e funcionais.

Em Março de 2009, foi inaugurado o Circuito de Visitas da Alcáçova, que corresponde ao culminar de 30 anos de intervenções arqueológicas e de inves-tigação. A Alcáçova situa-se numa plataforma artificial levantada a partir do

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criptopórtico sobre o qual assentam vários restos de edifícios públicos romanos integrantes do antigo forum, uma basílica paleocristã com batistério e um pór-tico com pavimento de mosaico com motivos orientalizantes (Figura 4). Sobre este nível foi parcialmente escavado um bairro islâmico (séculos XII/1ª metade do XIII) que, após a Reconquista, é abandonado e transformado em cemitério cristão. Atualmente, neste local, sobre um passadiço metálico acoplado à mura-lha, o visitante pode circular por cima de todas as tipologias de estruturas sem interferir com a sua preservação ou segurança e desfrutar de um cenário de ex-traordinária riqueza histórico/arqueológica.

Ainda em 2009, foi integrado no Museu de Mértola, o núcleo museológico Casa do Mineiro, tutelado pela Fundação Serrão Martins, localizado na Mina de S. Domingos, localidade situada a 17 km de Mértola, que corresponde à musea-lização de uma antiga habitação de um mineiro e da sua família onde se encon-tram expostos objetos do quotidiano e onde se conserva também um centro de documentação com um importante fundo de documentos relacionados com a atividade mineira desta localidade.

Em setembro de 2011 foi inaugurado o núcleo museológico do Mosteiro, um antigo edifício de culto cristão que se manteve com utilização até ao século XVI d.C.. Situa-se numa pequena localidade com o nome de Mosteiro, a cerca de 20 km de Mértola, e a sua musealização insere-se na estratégia do Museu de con-tribuir para a preservação e valorização do património do concelho de Mértola, alargando a sua ação a locais afastados da sede. Por fim, em junho de 2012, se-guindo a mesma linha de divulgação patrimonial à escala do concelho, foi aber-to ao público o núcleo museológico de Alcaria dos Javazes, localizado na povo-ação com o mesmo nome, que nasceu de um protocolo celebrado entre a Autar-quia e um privado, proprietário da coleção de materiais etnográficos expostos.

O Museu é tutelado pela Câmara Municipal sendo a sua gestão efetuada atra-vés de protocolo celebrado entre a Autarquia e o Campo Arqueológico de Mérto-la. A complexidade da gestão de doze núcleos museológicos aliada à necessidade

Fig. 1 - Vista geral do centro histórico de Mértola (fotografia de Lígia Rafael, 2007).

Fig. 2 - Padrão das mantas de lã da Oficina de Tecelagem de Mértola (fotografia de Jorge Branco, 2011).

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de cumprimento de todas as funções museológicas confere a esta unidade mu-seológica caraterísticas muito específicas que podem ser encaradas como uma maisvalia mas que podem também ser um entrave ao desenvolvimento das suas funções. Apesar dos esforços das duas instituições existem ainda áreas em que o Museu apresenta graves lacunas, como sejam, a conservação e a reserva, as exposições temporárias e os serviços educativos.

Estes últimos serão alvo de apresentação nesta comunicação, sendo para isso necessário especificar que o Museu de Mértola não dispõe de um serviço educa-tivo estruturado, nem tem afetos a esta área recursos humanos, financeiros ou instalações adequadas. No entanto, e utilizando os meios técnicos e humanos das duas instituições, o Museu tem vindo, nos últimos anos, a desenvolver uma série de ações e atividades destinadas à comunidade com o objetivo de a aproxi-mar do Museu e do seu património. Esta unidade museológica, pelas suas cara-terísticas de museu polinucleado, com um acervo abrangente tanto em termos cronológicos como históricos, técnicos e artísticos, representa um importante campo experimental que abre caminhos em diversas áreas e que podem ser ex-plorados com diversos tipos de públicos.

Fig. 3 - Exterior do núcleo museológico de Arte islâmica (fotografia de Susana Gómez, 2007).

Fig. 4 - Mosaico dos leões (século VI) situado na Alcáçova de Mértola (fotografia de Lígia Rafael, 2009).

Fig. 5 - Ação de formação com Dr.ª Ana Duarte no núcleo museológico de Arte Sacra (fotografia de Lígia Rafael, 2008).

Fig. 6 - Atelier “Vamos Escavar” (fotografia de Maria de Fátima Palma, 2011).

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2. A RElAçãO MUSEU/cOMUNIdAdE/TERRITóRIO

A estratégia de trabalho do Museu de Mértola não foi claramente definida desde o momento da sua constituição, nasceu da necessidade e da vontade de promo-ver o património local e de apresentar os novos achados arqueológicos da mes-ma forma que se trabalhava a reconstrução e valorização de edifícios antigos. Deste conceito emergiu o enquadramento “Vila Museu” e a criação de núcleos temáticos disseminados, primeiro pelo centro histórico de Mértola e, posterior-mente, por localidades do concelho, criando uma dinâmica e polos estruturan-tes e agregadores que servissem de motores do desenvolvimento local.

As bases do projeto Mértola Vila Museu centraram-se sempre numa ideia de desenvolvimento sendo este entendido como um processo de melhoria das con-dições de vida da comunidade em termos sociais, económicos e culturais, privi-legiando um modelo sustentado na preservação, dinamização e valorização dos recursos locais sempre em concordância com a comunidade.

Ao longo de todo o processo evolutivo percebeu-se que uma forma impor-tante de comunicação e divulgação de resultados passaria pela criação de núcle-os museológicos onde os objetos e as estruturas recuperadas deveriam dialogar com o público e dar a conhecer aos mertolenses e àqueles que visitam Mértola uma realidade distante mas, ao mesmo tempo, próxima e que ainda hoje tem semelhanças em formas, atividades, tradições e costumes. Foi ponto assente que não se pretendia o clássico museu que encerra num só edifício uma diversidade de objetos que em nada se relacionam com a sua envolvente. Era essencial que em Mértola a abordagem fosse diferente.

Falar do Projeto Mértola Vila Museu é falar de arqueologia, de história, de patri-mónio, de museus mas, acima de tudo, é falar de pessoas, já que estas se adaptam e transformam um território sendo, por isso, impossível falar da investigação histó-rico-arqueológica em Mértola sem a relacionar com o seu meio envolvente e com a sua comunidade. Na realidade, na última década temos verificado uma atitude diferente por parte da população. Ao contrário da euforia dos primeiros anos, exis-te uma atitude de revolta, desagrado e reprovação por tudo o que se relaciona com o património, os museus e a arqueologia. Esta mudança de atitude pode estar, de alguma forma, relacionada com alterações a nível político e também com alguma desmotivação e descrédito relativamente a grandes expetativas de desenvolvimen-to que, na realidade, não corresponderam ao que a população esperava. De facto, é visível o aumento do número de visitantes desde o início do projeto até à atualidade, e é também inquestionável a criação de novas infraestruturas e estruturas de apoio ao turismo mas, para a população comum, o retorno de todo este investimento não foi totalmente de encontro aos seus anseios. Através das ações educativas realizadas nos últimos anos, principalmente direcionadas para a população escolar, o Museu tem como principal objetivo reativar a ligação com as pessoas para que estas sintam a ligação à sua herança e às suas raízes, possibilitando o entendimento do patrimó-nio como forte marca identitária e como principal elo de ligação com o território.

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3. AS ATIVIdAdES EdUcATIVAS dO MUSEU dE MéRTOlA — BREVE APRESENTAçãO

Entendendo o Museu como espaço privilegiado de diálogo entre as pessoas e de criação de laços identitários e de pertença a um território, as ações educativas do Museu de Mértola teem concentrado esforços na relação com a comunidade local, privilegiando a população escolar como principal veículo de ligação a to-das as faixas etárias e níveis sociais, inteletuais e culturais (DUARTE, 2007: 79).

O museu é o instrumento ideal para a educação patrimonial, é possível de-finir três objetivos: o de dar a conhecer o património à população em geral; o de consciencializar a população para contribuir para a preservação e para a sua transmissão às gerações futuras; e o de proporcionar a fruição pela população para que esta perceba o seu valor e significado de forma a contribuir para o seu enriquecimento pessoal e coletivo (ZUBIAR CARREÑO, 2004: 279). Como já foi referido anteriormente, o Museu de Mértola não dispõe de serviços educativos estruturados nem tem qualquer tipo de recursos afetos a esta área. De qualquer forma, e recorrendo a todos os técnicos do Museu e do Campo Arqueológico, teem sido desenvolvidas diversas ações educativas que tiveram, numa primei-ra fase a grande preocupação de ministrar alguma formação aos intervenientes neste processo e, numa segunda, a de definição e desenvolvimento de atividades relacionadas com as temáticas do museu e direcionadas ao público escolar. O grande objetivo é consciencializar e sensibilizar para a importância da preserva-ção do património e consciencializar para a necessidade que existe em conhecer o que nos rodeia e de que forma se pode usufruir de forma lúdica e pedagógica desses espaços.

3.1 A fORMAçãO

A partir de 2008 contámos com a preciosa colaboração da Dr.ª Ana Duarte (Fi-gura 5) que, de uma forma desinteressada, motivada e motivadora, ministrou

Fig. 7 - Atelier “Vamos conhecer os ossos humanos” (fotografia de Lígia Rafael, 2012).

Fig. 8 - Atelier “Vamos ao Laboratório de Conservação” (fotografia de Lígia Rafael, 2012).

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formação em áreas relacionadas com as atividades educativas nomeadamente na definição de percursos temáticos, na adaptação de linguagens a diversos tipos de públicos, no contato com grupos específicos e na definição de ações temáticas relacionadas com o acervo do Museu. Estas ações foram também complemen-tadas com a realização de sessões com investigadores do Campo Arqueológico, especialistas na mais diversas áreas, que abordaram os diversos períodos histó-ricos de Mértola, explicitaram questões relacionadas com as funções museológi-cas e com a abordagem que deve ser feita aos diversos tipos de públicos.

3.2 AS AçõES dE SENSIBIlIzAçãO PARA PROfESSORES E AlUNOS

Após a formação interna aos funcionários e colaboradores passou-se para a abor-dagem à comunidade através de sessões de informação acerca das potencialida-des do Museu de Mértola enquanto laboratório de experiência que permite con-solidar matérias e aprofundar conhecimentos em diversas áreas do programa curricular dos alunos nos mais diversos níveis de ensino. Deste contacto com a comunidade escolar resultou um plano de atividades anual, adequado aos diver-sos ciclos, que serve de complemento e que pode também resultar de contactos específicos para aprofundamento de matérias.

Relativamente à deslocação do Museu à escola, as apresentações são estru-turadas com o objetivo de transmitir conceitos, de suscitar interesses e motiva-ções e de abrir horizontes para atividades mais específicas. De salientar algumas sessões noturnas no Museu, direcionadas a adultos que frequentam o ensino recorrente, que se revestiram de grande interesse já que se tratam de indivíduos adultos que nunca visitaram os locais de interesse patrimonial nem sabem onde se situam, ou seja, vivem completamente alheados do que os rodeia. As ações de sensibilização são geralmente realizadas com recursos a apresentações em sala de aula mas também recorrendo a visitas guiadas com horários adaptados às dis-ponibilidade dos seus intervenientes evitando assim a desculpa dos horários de trabalho serem coincidentes com o horários dos locais de interesse.

3.3 A cOlABORAçãO cOM OUTRAS INSTITUIçõES

Quando se trata de unidades museológicas instaladas em pequenas localidades como Mértola, com recursos limitados, é imprescindível o trabalho de equipa, a colaboração e as parcerias com outras instituições. Neste âmbito, em Mérto-la e associados a este projeto temos desde logo a parceria entre a Autarquia e o Campo Arqueológico de Mértola na gestão do Museu e no desenvolvimento de projetos conjuntos, a Associação de Defesa de Património de Mértola, a Escola profissional ALSUD, o Agrupamento de Escolas de Mértola, entre outras, que incluem o desenvolvimento de projetos e ações relacionadas com a valorização patrimonial, a história local, ações destinadas a públicos com necessidades es-peciais, o apoio no desenvolvimento de trabalhos académicos e na realização de

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aulas práticas, entre outros. Também a nível interno é essencial a colaboração entre os funcionários das mais diversas áreas desde a investigação, a gestão, o planeamento, a conservação e a divulgação.

De ressalvar a parceria com o Campo Arqueológico, instituição parceira em todo o processo de constituição dos núcleos museológicos do Museu de Mértola e na gestão desta unidade museológica, com a qual se desenvolvem projetos e ações em todas as áreas de ação do Museu: investigação, conservação, inventá-rio, divulgação, serviços educativos, entre outros.

3.4 A dEfINIçãO dE PERcURSOS TEMáTIcOS

Desde 2010 que se iniciou a reformulação das visitas guiadas ao Museu de Mér-tola com o objetivo de contribuir para uma melhor divulgação do seu acervo através da transmissão de informação de uma forma mais eficaz e direcionada a diferentes tipos de público. A criação de diferentes percursos de visita permite adaptar melhor os conteúdos aos grupos específicos, tanto em termos de faixas etárias como de diferentes níveis académicos e culturais, possibilitando uma melhor rentabilização de recursos. A divulgação destes percursos foi efetuada através da edição de um folheto específico sobre os percursos e de uma brochu-ra sobre os núcleos museológicos do Museu de Mértola, traduzida em inglês e castelhano, onde se encontram definidos seis percursos, estruturados cronologi-camente, pelas caraterísticas específicas dos núcleos museológicos e da própria Vila de Mértola e do complexo mineiro da Mina de S. Domingos:

Centro Histórico de Mértola, destinado a maiores de 12 anos, em que se pretende dar a conhecer a Vila de Mértola evidenciando as suas especificidades relacionadas com o património histórico/arqueoló-gico, a arquitetura, a organização espacial e a envolvente natural;

Museu de Mértola, destinado a todas as faixas etárias, em que o principal objetivo é dar a conhecer os núcleos museológicos do Museu que se encontram instalados na Vila: Oficina de Tecela-gem, Alcáçova, Castelo, Forja do Ferreiro, Arte Sacra, Arte Islâmi-ca, Casa Romana e Basílica Paleocristã e ainda, Torre do Rio e a Igreja Matriz;

Período Romano e Antiguidade Tardia, destinado a todas as faixas etárias, em que se aborda este período através da visita a vestígios importantes do século I ao século VIII d.C., como a Alcáçova, o Castelo, a Torre do Rio, a Casa Romana e a Basílica Paleocristã;

Período Islâmico, destinado a alunos do 1º e 2º ciclo com idades compreendidas entre os 6 e os 12 anos, em que se mostram aos alu-nos a evidências da ocupação islâmica em Mértola e que incluem a visita à Igreja Matriz (antiga mesquita), Alcáçova e ao núcleo museológico de Arte islâmica onde se desenvolvem atividades

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com a maleta pedagógica “O Baú de Aladino” que, através de mate-riais lúdico-pedagógicos, explora a ocupação islâmica desta Vila e da Península Ibérica;

Período Islâmico II, destinado a todas as faixas etárias, que preten-de aprofundar os conhecimentos relativamente à influência islâ-mica e que inclui a visita à Oficina de Tecelagem, Igreja Matriz, Alcáçova, Castelo e núcleo museológico de Arte Islâmica;

Complexo Mineiro da Mina de S. Domingos, localidade impor-tante da extração mineira do século XIX, 1ª metade do século XX onde, apesar da desolação da paisagem, é ainda possível perceber a organização urbana, a localização dos equipamentos ligados à mina e os importantes vestígios da extração mineira. Este percur-so inclui também a visita ao núcleo museológico Casa do Minei-ro, que também integra o Museu de Mértola.

3.5 OS ATElIERS TEMáTIcOS

Desde 2010 que o Museu de Mértola tem vindo a realizar vários atelieres temá-ticos, destinados a alunos do pré-escolar e 1º ciclo do Agrupamento de Escolas de Mértola. As abordagens tentam ser diversificadas e alternadas para que as crianças possam ter, durante o seu percurso escolar, a perceção do património existente, bem como conhecer o processo que os materiais arqueológicos so-frem desde a sua descoberta até serem expostos no Museu. Com estas atividades pretendemos criar raízes identitárias com o vasto e diversificado património existente no nosso concelho. Entre os ateliers realizados destacamos:

Atelier Vamos escavar — Numa caixa arqueológica (terrário), exem-plificativa de uma escavação arqueológica, com estratigrafia e artefactos arqueológicos de diversas épocas, as crianças trans-formam-se em pequenos arqueólogos, utilizando as ferramentas e técnicas da profissão. A atividade completa-se com as fases de registo arqueológico (caderno de campo, desenho e fotografia). Os alunos terão ainda oportunidade de contatar com diferentes prá-ticas do trabalho arqueológico e sentir o prazer da descoberta ine-rente a esta profissão. Através deste atelier (Figura 6), os alunos têm a oportunidade de conhecer o trabalho dos arqueólogos e téc-nicos, descobrindo os primeiros passos que se realizam quando se encontra um achado arqueológico. Esta foi uma atividade ino-vadora para os alunos, transformando-se num dia em que todos foram arqueólogos, deixando em muitos o gosto pela descoberta e pela arqueologia que se desenvolve em Mértola.

Atelier Vamos conhecer os ossos humanos — Neste atelier (Figura 7) pretende-se a identificação dos ossos do corpo humano através do

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recurso a esqueletos encontrados nas Necrópoles da antiguidade Tardia de Mértola, bem como aprofundar os conhecimentos de di-versas formas de enterramentos consoante os períodos históricos. Pretende-se também um reconhecimento e distinção do trabalho do Antropólogo e do Arqueólogo, com o objetivo de proporcionar às crianças, às escolas, e às instituições com responsabilidade ao nível do património, uma oportunidade de desenvolverem for-mas de dinamização e conhecimento do corpo humano, do dis-tinto trabalho do antropólogo e arqueólogo e de certa forma ame-nizar o contacto com a morte.

Atelier Vamos ao laboratório de conservação — Depois de terem pas-sado pelo atelier de escavação, torna-se fundamental a passagem pelos laboratórios de conservação e restauro do Campo Arqueoló-gico e do Museu. Na visita ao Laboratório de Conservação de Me-tais Arqueológicos (figura 8), os alunos observam e identificam os objetos encontrados através da lupa binocular, com o objetivo de reconhecer o trabalho do conservador restaurador através da utilização de materiais pedagógicos — jogos, puzzles, limpeza de materiais e fichas de identificação.

Conservação e restauro de cerâmica arqueológica — Sendo os fragmentos de cerâmica os mais abundantes numa escavação, e tendo os alunos passado pelo Atelier de Escavação, é importan-te que reconheçam as formas de as restaurar e conservar. Neste atelier dá-se a conhecer, aplicando na prática, as técnicas de con-servação e restauro de cerâmica em que os alunos através de frag-mentos, realizam o “puzzle” e efetuam as respetivas colagens, per-cebendo se a peça possui todos os fragmentos e que processo se poderia realizar a seguir. Desta forma, conseguem entender todo o processo pelo qual um objeto passa, desde a sua descoberta até ao restauro e à possibilidade de integração no museu. Para apro-fundar os conhecimentos adquiridos as crianças dispõem de uma ficha de trabalho com o objetivo de consolidar conceitos.

Semana do Património — Esta atividade decorre nas diversas esco-las do concelho de Mértola, levando até às crianças a importân-cia do património local, através de ações dinâmicas, recorrendo sobretudo a imagens. Pretendemos dar a conhecer os distintos meios de divulgação do património, enunciar e distinguir as di-ferentes definições e tipos e como podemos preservar e reconhe-cer o património local. Como resultado do que foi apreendido, as crianças elaboram textos e desenhos sobre os temas abordados, que são depois expostos.

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cONSIdERAçõES fINAIS

Ao analisar este percurso de 30 anos de trabalho podemos facilmente concluir que o Museu de Mértola “nasceu ao contrário”, ou seja, não teve um percurso evolutivo fruto de um programa museológico estruturado que cumpre com to-das as fases de projeto, desenvolvimento e apresentação ao público. Este Museu nasceu de uma consciente necessidade de preservar, valorizar e divulgar resulta-dos de uma investigação fortemente centrada na arqueologia e na história local, em que os núcleos museológicos foram sendo criados como resultado de uma necessidade premente de preservar estruturas, de consolidar posições, de vali-dar investigação e de dialogar com a comunidade local.

Seguindo esta filosofia, não se estruturou um grande museu mas sim peque-nos núcleos, instalados no local onde foram escavadas estruturas ou em edifí-cios emblemáticos que era imprescindível recuperar. Os núcleos museológicos, disseminados pelos centro histórico de Mértola e, posteriormente, pelo conce-lho, funcionam como elementos estruturantes e agregadores de um circuito que faz desta Vila um museu. Não é possível entender esta distribuição espacial se não a relacionarmos com a sua envolvente e com o diálogo que tenta estabelecer com a comunidade, que deve entender estes pequenos núcleos como uma forma de revitalização, de dinamização territorial e de desenvolvimento local.

De facto, as ideias são claras, as intenções claramente percetíveis e as solu-ções adequadas. No entanto, a sociedade em constante mutação conduz também a mudanças de atitude, comportamentos e mentalidades. Sabemos que se trata de transformações lentas mas, à medida que se avança no tempo, estas come-çam a transparecer e a implicar novas respostas e novos desafios. Atualmente o Museu de Mértola encontra-se numa fase decisiva em que só uma análise fria e imparcial sobre as decisões do passado pode delinear um caminho futuro de adaptação a novas exigências. Num concelho despovoado que vive o drama do envelhecimento da população e da saída para o exterior de toda uma geração de jovens, é necessário definir estratégias que contrariem esta tendência e que se estendam a todos os setores da sociedade e onde o Museu pode também servir de polo agregador e de elo de ligação.

Neste sentido, o património pode claramente servir de elo de ligação ao terri-tório e de elemento estruturante de uma estratégia de desenvolvimento local que alia preservação, divulgação e turismo. As ações educativas definidas e executa-das pelo Museu e pelo Campo Arqueológico inserem-se nesta estratégia e têm como objetivo cativar o público escolar, infantil e juvenil, para estas temáticas, passando os alunos a funcionar como principais veículos de consciencialização e sensibilização das suas famílias e, consequentemente, do meio onde se inserem.

Este processo de desenvolvimento de atividades educativas iniciou com a formação interna com o objetivo de dotar os funcionários e colaboradores de competências nas mais diversas áreas. Passou depois para o exterior, princi-palmente para comunidade escolar, com algumas atividades de sensibilização

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destinadas a alunos e professores que levaram o Museu às escolas e tentaram estabelecer o primeiro contato. Numa fase posterior, foram desenvolvidas visi-tas guiadas e ações específicas destinadas a grupos estudantis de diversas faixas etárias onde se abordaram diversas temáticas como a arqueologia, a história lo-cal, a conservação e a divulgação.

Estas iniciativas tiveram bom acolhimento por parte da comunidade edu-cativa o que levou a equipa do Museu e do Campo Arqueológico a apresentar anualmente um plano de atividades e a responder a pedidos específicos relacio-nados com os conteúdos programáticos, principalmente do pré-escolar e dos 1º e 2º ciclo. Por outro lado, tendo sempre em conta a disponibilidade de recursos humanos, temos desenvolvido também outras ações destinadas ao público esco-lar externo ao concelho de Mértola que passam por visitas guiadas direcionadas aos interesses de cada grupo e ações educativas principalmente relacionadas com as influências islâmicas.

Atuamos dentro das nossas limitações mas sempre com o objetivo definido de transmitir uma mensagem e de criar laços identitários com o património e com o meio envolvente. Fazemo-lo de forma simples e dentro das nossas capaci-dades mas com a convicção de que somos mais um “dente” numa engrenagem e que damos o nosso melhor para fazer a diferença.

Contactar as autoras: [email protected][email protected] / [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

• DUARTE, Ana. “Museus e comunidade” In: BARRIGA, Susana e SILVA, Susana Gomes da (coords.). Servi-

ços educativos na cultura, Porto, Setepés, 2007, p. 79-97.

• RAFAEL, Lígia. Os trinta anos do Projecto Mértola Vila Museu. Balanço e Perspectivas, Tese de Mestrado em

Museologia apresentada à Universidade de Évora (policopiado), 2010.

• TORRES, Cláudio. “Mértola Vila Museu. Um projecto cultural de desenvolvimento integrado” in, Museo-

logia.pt, Lisboa, Instituto dos Museus e da Conservação, p. 2-11, 2007.

• ZUBIAR CARREÑO, Francisco Javier (2004), Curso de Museologia, Gijón, Ediciones TREA, S. L, 2004.

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A EdUcAçãO dO RIScO: uma proposta de inserção sócioecónomicaThE RISk EdUcATION: a proposal for socioeconomic inclusion

Luís Gustavo do NascimentoFaculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Apresenta-se neste artigo o Projeto Educação do Risco, que objetiva sensibilizar as comunidades existentes no entorno do Parque da Pré-história, lo-calizado na Serra da Arrábida, para o valor do seu Património, estimulando-os a tornarem-se sujeitos ativos na sua protecção, preservação e gestão.

Palavras-chave: Educação Patrimonial. Sustentabilidade. Turismo.

Abstract: In this article, we present the Risk Education Project, which aims to sensitize the communities in the vicinity of the Park of Prehistory, located in the Arrábida Mountain, for the value of their heritage, encouraging them to be-come active citizens in their protection, preservation and management.

Keywords: heritage Education. Sustainability. Tourism.

INTROdUçãO

Percebe-se que nos últimos anos o turismo identifica-se como possibilidades de de-senvolvimento sustentável em comunidades de diversos países; a atividade turística vale-se do património local como atrativo e contribui para a divulgação do patrimó-nio local. No limiar do século XXI, o desenvolvimento não está resumido ao aspeto econômico, mas às melhorias da qualidade de vida, educação, saúde e emprego.Há relações complexas entre cultura e economia, algumas vezes marcadas por so-breposições. O turismo pode fomentar o discurso do significado social do patrimó-nio cultural, o sentimento de pertencimento, de continuidade histórica; pode assu-mir ainda a função de atrativo turístico, vez que o património está inserido em uma dinâmica, que potencializa atividades com fins económicos, embora não possamos rotular, pois simplista, o turismo como puramente económico.

Este artigo pretende estabelecer uma relação entre o discurso fundador do património e aquele que o ‘vende’ como atrativo turístico. Os discursos do patri-mónio, do turismo e do património buscam minimizar os antagonismos imer-sos em contextos sócio-históricos.

Adota-se, assim, a postura de que o turismo, ao participar da dinâmica das ci-dades, acentua os intercâmbios culturais, insere-se na dinâmica como elemento económico, que não nega os valores culturais, mas os revela, na medida em que explicita a relação entre cultura e necessidades humanas.

A participação da comunidade no planeamento das atividades turísticas pode evitar distorções, na medida em que as pessoas devem ser corresponsáveis

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pelas consequências podem advir do turismo. Em relação ao património, essa participação pode garantir que os elementos representativos da cultura e iden-tidade dos grupos sejam compreendidos no contexo da dinâmica da indústria cultural, de forma que não se privilege apenas o lucro, mas, também, se valorize as peculiaridades locais.

EdUcAçãO dO RIScO

O projeto Educação do Risco tem por objetivo sensibilizar as comunidades exis-tentes no entorno do Parque da Pré-história, que estará localizado na Serra da Arrábida, para o valor do Património, estimulando-as a se tornarem ativas na proteção, preservação, salvaguarda e gestão.

Em uma primeira fase, se buscará investigar a vida socioeconómica dos alu-nos do 10º ao 12º ano de estudos. O que se almeja é levantar dados, construir um diagnóstico da realidade e visão de futuro dos alunos em relação ao Património.

Nesse contexto, a educação patrimonial pode ser instrumento pedagógico nas aulas temáticas, elemento de experimentação de conceitos de “património/patrimónios”, bem como de trabalho de campo.

A noção sustentabilidade será apresentada, discutiremos a importância da conservação, preservação e salvaguarda do património; se esclarecerá que é pos-siível a geração de renda por meio do património, que deve ser considerado em seu valor cultural e natural.

O conjunto de atividades a serem realizadas ao longo do projeto Educação do Risco visa, sobretudo, sensibilizar jovens estudantes para o valor do Património.

Parte-se do pressuposto que é preciso ouvir as comunidades, realizar pesqui-sa prévia, envolver os alunos nesse processo, permitir a interação dos educandos em ações educativas voltadas para o Património.

Nas ações educativas buscar-se-á a informação, conhecimentos sobre as diversas formas e manifestações do património, a formação, reflexão conceitual sobre o sig-nificado do património para a identidade cultural, memória social, cidadania.

É preciso ter em conta que se estará a trabalhar com comunidades, portanto, necessário deslocar-se do lugar de técnico e acadêmico, para aproximar-se das comunidades, permitir que identifiquem e definam o património; fique claro que não abdicaremos de nossa posição professoral, para transmitir conceitos e dados sobre as várias formas e manifestações do património, mas se buscará uma relação dialógica, de aproximanção e experimentação.

Um dos eixos que sustentam esta proposta de trabalho é o envolvimento das co-munidades, a produção de conhecimentos ligados à cultura de cada localidade. Por-tanto, a melhor maneira de avaliar este projeto será a resposta das pessoas às diferentes atividades nos locais de realização dos trabalhos de registros, por exemplo, que conta-rá com a participação de alunos e professores, o que inclui metodologias de registro, que possibilite à equipa fazer uma leitura crítica dos dados recolhidos, e, sempre que necessário, o projeto pode sofrer alterações em suas ações, atividades.

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Um projeto desta natureza deve considerar os aspetos sócio-histórico e cul-tural, estar em constante avaliação, pois, na Educação, os resultados não são ob-tidos a curto prazo, o que torna obrigatório aos envolvidos no projeto encontrar alternativas de avaliação ao longo do trabalho.

Essas reflexões de caráter teórico-metodológico nos permitem reafirmar a importância da preparação da equipa de pesquisa, que deve estar atenta ao lon-go da realização de todas as etapas do projeto, a qualquer indicio que o convívio com os informantes nos possa fornecer, e que, a princípio, possam parecer ir-relevantes, mas que, muitas vezes, podem ser fundamentais para a análise do desenvolvimento dos trabalhos, assim como para ensejar a perceção das com-preensões de património existentes nas comunidades.

O projeto buscará estabelecer uma relação entre o discurso que funda o patri-mónio com o advento do turismo cultural. Para isso, através de uma abordagem teórica, demonstrará como a formação para o património está relacionada aos in-teresses políticos e ideológicos, sendo o turismo, um elemento que influencia essa dinâmica. Assim, acredita-se que o património, enquanto valor para a atividade turística, abre a possibilidade, tanto para a manutenção de modelos de desenvol-vimento, onde poucos ganham, como para a implementação de modelos susten-táveis, onde a população participa e tem sua cultura valorizada. Sendo a partici-pação das comunidades no planeamento turístico um aspeto fundamental para que o turismo cultural se torne uma estratégia de desenvolvimento sustentável.

Durante a fase de estudos junto aos alunos das escolas, espera-se que haja uma seleção natural, de forma que os alunos que chegarem até o final do proces-so sejam integrados no futuro Parque da Pré-história, fazendo, assim, uma cons-trução visível de sustentabilidade, transformando os alunos em profissionais do Parque da Pré-história. Espera-se que passem a entender o mundo de maneira informada, com uma visão de sustentabilidade que rompa as barreiras da dis-cussão dos lucros ou de interesses individuais, que se estende até os domínios da cidadania. A comunidade residente no entorno do Parque também será estu-dada como complemento da análise junto aos destinatários. Acredita-se que a comunidade é funtamental no projeto.

A pesquisa sobre o Património sustenta-se na interpretação de fontes diver-sas, de natureza escrita, oral, visual e material, incluindo documentos oficiais e jornais locais, técnica da História oral, levantamento de fotos antigas, património arquitetónico, identificação de objetos arqueológicos ou museológicos, além de registros do Património intangível. Haverá uma abordagem qualitativa em ques-tionários fechados, por meio dos quais, procurar-se-á detetar e mensurar o que as comunidades percebem como Património.

A busca da visão endógena do Património respeita à fundamentação epistemológica de nossa ação educativa, segundo Freire (apud ZAN, 2003:13), “a investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar.”

A aplicação do projeto no âmbito escolar será atravessado por; o público alvo dos primeiros encontros será formado por professores, por funcionários e

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pessoal envolvido na administração escolar. O intuito será fornecer elementos para transformar esses atores da vida escolar em multiplicadores da educação patrimonial. Nos dois encontros iniciais serão trabalhados os conceitos gerais sobre Memória Social e Património, considerando inclusive seus aspetos nor-mativos e legais, fornecendo informações aprofundadas sobre o Património arqueológico. No segundo encontro, serão realizadas atividades, sob forma de seminário, em que os professores são estimulados a pensar formas de inserção didática do Património no cotidiano escolar, na sala de aula e fora dela. No ter-ceiro e quarto encontros, que serão realizados com os alunos e educadores das escolas, desenvolver-se-á as atividades, que valorizem as categorias conceituais Património, Memória e Cultura material; realizaremos atividades lúdicas no processo de construção de conhecimento, estarão presentes o Teatro de Fanto-ches, a Dinâmica do Objeto, o Desenho do Património e a Caixa Sítio (experiên-cia de arqueologia simulada).

As metodologias empregadas nesses encontros constituirão o núcleo didá-tico-pedagócico do projeto, o aluno é um investigador do Património, um sujei-to ativo na construção do conhecimento, em pleno exercício de sua cidadania, além de facilitar a perceção e a compreensão dos fatos e fenômenos culturais presentes em seu cotidiano.

O aspeto Lúdico cumpre o papel de fazer a conexão aluno-objeto; dessa for-ma, o estudante interage com o conhecimento de uma forma prazerosa.

O processo que antecede o terceiro encontro iniciar-se-á ao final do segundo encontro, quando solicitaremos aos professores que avisem os alunos que, na próxima visita da equipa, se realizará uma dinâmica, na qual os alunos parti-ciparão trazendo de casa objetos que os façam lembrar de acontecimentos do passado, ou mesmo que tenham significado em suas vidas.

O terceiro encontro inicia com a apresentação do Teatro de Fantoche, que terá como tema central a importância do objeto como suporte da memória. Sua história estará estritamente relacionada à dinâmica do objeto, a ser realizada posteriormente. Os alunos serão motivados a falar sobre os objetos que trouxe-ram, e, assim como no teatro, os objetos acabam suscitando lembranças; nesse caso, porém, os alunos é que são os protagonistas da história.

A interação dos jovens investigadores (alunos do 10º ao 12º) com a sua cultura material será através da investigação, analisar-se-ão aspetos relacio-nados à história do objeto, bem como suas características e funcionalidade, transformando a sala de aula em um pequeno museu, formado pelos obje-tos e memórias dos educandos, assim como de seus familiares e professores. Nesse sentido, o objeto, portanto, falará sempre de um lugar, seja ele qual for, porque está ligado à experiência dos sujeitos com e no mundo, posto que representa uma porção significativa da paisagem vivida.” (SILVEIRA E FILHO, 2004: 40).

Essa experiência do aluno com e no mundo é materializada no objeto, ou seja, não importa se o objeto pertence ou não ao aluno, o facto é que faz parte do

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seu convívio social. Para Maurice Halbwachs (1990), a memória aparentemente mais particular remete para um grupo, assim a memória individual existe sem-pre a partir de uma memória coletiva, já que todas as lembranças são constitu-ídas no interior de um grupo. A memória coletiva tem, assim, uma importante função: contribuir para o sentimento de pertença a um grupo de passado co-mum, que compartilha memórias, o que confere sentidos de identidade.

Optamos, neste projeto, pelo conceito de identidades enquanto “constru-ções sociais formuladas a partir de diferenças reais ou inventadas que operam como sinais diacríticos, isto é, sinais que conferem uma marca de distinção.” (OLIVEN, 2006:34).

É imprescindível, porém, tomar-se em consideração que o processo de cons-tituição de identidade se processa, de forma multifacetada, no espetro do plura-lismo e da diversidade cultural, sem a existência de uma perspetiva essencialista de identidade (HALL, 1997).

Com base nos relatos feitos pelos estudantes e professores que participarão das dinâmicas, observaremos o sentido que o objeto antigo cumpre em espaços de socialização, como a casa, por exemplo. Na maioria das vezes, após perder a funcionalidade inicial, o objeto recebe um valor sentimental e simbólico, agregado, e passa a ser, então, um objeto decorativo, que pode ou não gerar lem-branças. Sobre a reutilização de artefactos, no âmbito da arqueologia, Radley (1992:68) afirma que este “es el sino de algunos artefactos que pertenecen a cada época: sobrevivir a los peligros hasta llegar un período en el que su desplaza-miento se percibe como significativo, y al ser entonces deliberadamente aparra-dos convertirse en indicios del pasado, en objetos para decorar.”

Após o encerramento da Dinâmica do Objeto, ocorrerá uma palestra com re-curso multimédia, elaborada a partir de registos fotográficos realizados na etapa prévia de pesquisa, elencando testemunhos da diversidade do Património local. Na metodologia da Educação do Risco, essas imagens apresentadas serão usadas na recriação do Património, através do Desenho do Património, em que os alu-nos expressarão a sua identificação com determinadas expressões.

O projeto Educação do Risco tem como pressuposto, foco central o patrimó-nio arqueológico, uma vez reconhecido o seu potencial para se pensar o legado material do conjunto da sociedade.

No quarto encontro realizar-se-á Escavação Simulada, na qual, mais uma vez, o aluno será o investigador, podendo conhecer algumas metodologias utili-zadas na arqueologia, através da prática da escavação.

Ao térmno de todas as fazes do projeto e com base nas avaliações que serão realizadas ao longo e ao final de cada etapa teremos condições de finalizar esse processo com uma seleção dos alunos participantes, de forma que, ap chegarem ao final do processo, sejam integrados no futuro Parque da Pré-história, fazendo, assim, uma construção visível de sustentabilidade, transformando os alunos em possíveis profissionais do Parque da Pré-história, para que sejam utilizados den-tro da estrutura e necessidade do Parque, sempre levando em consideração as

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aptidões e conhecimentos adquiridos ao longo do projeto. Aos alunos não sele-cionados, como aos moradores da comunidade local, serão apresentadas possibi-lidades de empreendedorismo e serviços, que terão a função de suporte logístico na estrutura externa do Parque da Pré-História.

cONSIdERAçõES fINAIS

O turismo cultural como estratégia de desenvolvimento social abre possibilida-des tanto para a manutenção de modelos e desenvolvimento educacional, como para a implementação de modelos sustentáveis onde a população participa e tem sua cultura valorizada. Os discursos elaborados sobre o património cultural das localidades podem revelar como essa atividade se desenvolve; desde o que se elege como património cultural - que deve ser preservado, restaurado, difundido - até as representações que se elaboram sobre esses elementos, analisados criti-camente. Análise que passa pelo questionamento da representatividade desses elementos, que recebem investimentos públicos e privados, frente à coletivida-de em questão. Nesse sentido, pensar o turismo cultural como uma estratégia de desenvolvimento sustentável passa necessariamente pela participação da popu-lação no planeamento do turismo, pelas questões da educação patrimonial e va-lorização, o que pode prevenir distorções nas representações elaboradas sobre estes elementos e garantir que os benefícios provenientes da atividade sejam experimen-tados por um maior número de pessoas e não fique restrito a um pequeno grupo.

A participação da comunidade no planeamento da atividade turística pode evitar distorções na medida em que se torna co-responsável pelas consequên-cias que o turismo traz para ela. Com relação ao património, tal participação pode garantir que os elementos que são representativos para os grupos, e por isso mesmo constitutivos da identidade, inseridos na dinâmica da indústria cul-tural não só privilegiando o lucro mas também a valorização das peculiaridades do local.

REfERêNcIAS

· CANCLINI, Nestor García. O Porvir do Passado. In: Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e Sair da Modernidade.

3 ed. São Paulo: EDUSP, 2000. p 159-204.

· FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1987.

· GONÇALVES, José Reinaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do património cultural no Brasil.

Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996.

· HALBWACHS, M. 1990. A memória coletiva. São Paulo: Vértice.

· HALL, Stuart. 1997. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira

Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP e A Ed.

· OLIVEN, Ruben George. 2006. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil – nação. 2. Ed. Ver. e ampl. – Petrópolis, RJ: Vozes.

· ZAN, Dirce Djanira Pacheco. Currículo por projetos. Avanços e posibilidades. In.: PARK, Margareth

Brandini (org.). Formação de educadores: memória, patrimônio e meio-ambiente, 2003.

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VISANdO à INclUSãO SOcIAl: criações a partir do patrimônio IN SEARch Of SOcIAl INclUSION: creations from patrimony

Márcia Isabel Teixeira de VargasRede de Educadores em Museus do Rio Grande do Sul, Brasil

Museologia da UFRGS/FABICO

Conselho do Ponto de Memória Lomba do Pinheiro.

Marilda Mena Barreto Silva SaucedoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.

Resumo: No presente artigo apresentamos algumas atividades e seus significa-dos ao trabalharmos junto com educandos em escolas do estado do Rio Grande do Sul – Brasil, na disciplina de Artes Visuais. Na experiência, trabalhamos as relações do patrimônio local, memória social e identidade, como fonte para a sustentabilidade local e inclusão sociocultural.

Palavras-chave: Patrimônio. Educação em Artes. Inclusão sociocultural.

Abstract: This article presents some activities and their meanings when we work together with students at Rio Grande do Sul State schools (Brazil), in the discipline of Visual Arts. During this experience, we work the relationship between local patrimony, social memory and identity, as local sustainability source and sociocultural inclusion.

Keywords: Patrimony. Arts education. sociocultural inclusion

INTROdUçãO

Pretendemos neste artigo apresentar algumas atividades e seus significados em relação ao patrimônio, à memória, à identidade, que desenvolvidas em nossas práticas educativas, a partir de projetos que tratam do desenvolvimento local, das abordagens do patrimônio junto aos educandos em escolas do estado do Rio Grande do Sul – Brasil, na disciplina de Artes Visuais.

Iniciamos com a própria experiência em sala de aula no decorrer do desen-volvimento do Programa, especificando os projetos e trajetórias, visando com-partilhar as questões sobre inclusão social tratadas no ambiente escolar. Faz-se relevante esclarecer o uso do conceito desta temática, ou seja, da exclusão social, que encontra aporte teórico na Coordenadora do programa de Inclusão Socio-cultural da Pinacoteca de São Paulo, Gabriela Aidar,

Em nossa prática, ao utilizarmos o conceito de exclusão social, nos referimos aos processos pelos quais um indivíduo ou grupo tem acesso limitado às ações, sistemas e instituições tidas como referenciais e consideradas padrão da vida social, e por isso encontram-se privados da possibilidade de uma participação

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plena na sociedade em que vivem. (AIDAR, 2010) Como atividade inicial deste processo, buscamos realizar o levantamento e mapeamento de espaços, as insti-tuições e os serviços à disposição da comunidade escolar que são reconhecidos pela mesma. O trabalho deve ser realizado de forma coletiva, analisando-se e refletindo-se suas possibilidades de uso.

Na prática são feitos o registro escrito, fotografias, pesquisa teórica na do-cumentação disponibilizada em arquivos públicos, bibliotecas e museus da cidade, realizando a tarefa relativa ao Patrimônio Inventariado. São elaboradas Fichas Práticas, seguindo os passos sugeridos por Hugues de Varine (2012), da mesma forma sobre o reconhecimento, a tomada de consciência, a respeito da gestão e do desenvolvimento local em que os atores compartilham do patrimô-nio local e responsabilizam-se pelo mesmo, senão vejamos o que nos diz o autor sobre a herança e administração daquilo que se é herdado: “É preciso fazê-lo viver, produzir, transformar-se, para permanecer útil. Isto significa uma profunda tomada de consciência, de geração em geração, não apenas no conteúdo do patrimônio, mas tam-bém nas exigências de sua gestão.” Paulo Freire (2007), igualmente fala do ‘sujeito que toma a consciência como condição básica da ação cultural. ’ Abordamos sobre as questões relativas à memória social em seu conceito e tratamento, enquanto se está lidando com o patrimônio. Sobretudo pelo caráter Interdisciplinar e trans-disciplinar, (GONDAR, 2005), ‘na sua concepção e nos diferentes modos de abordá-la’, das quais estão envolvidas a teoria e compreensão, neste particular buscamos es-clarecimentos em Le Goff (2003), muito importante em todas as etapas e tratado especificamente na temática de um dos projetos do programa.

Na metodologia aplicada partimos de estudos, pesquisas e práticas no bairro Lomba do Pinheiro em Porto Alegre/RS, dos quais entendemos que a aplicação dos projetos, em suas ações é desenvolvida de forma didática e pedagógica res-peitando-se o ritmo de cada um dos envolvidos em relação ao grupo, dentro das perspectivas da ação educativa e cultural, no sentido da participação que se dá pelo envolvimento, análise dos dados coletados, do registro de forma a compre-ender a realidade vivida e contextualizada e das novas possibilidades, em mo-mentos de criação e formas de exposição dos resultados, (VARGAS; SILVA 2010).

As questões históricas vinculadas à arte estão em E. H. Gombrich (1994) e em pesquisas virtuais. Embora se tenha um trabalho dinâmico que se encontra em constante transformação e que está suscetível a mudanças de percurso depen-dendo da problematização dada pelo grupo.

Dispomos de uma parte específica sobre a ausência da educação para o pa-trimônio no currículo escolar e da importância em dialogar a respeito desta problemática nos grupos de professores e redes sociais que tratam da educação em artes e da mesma forma entre os professores das várias áreas do conheci-mento, refletindo-se com base nas propostas dos autores Fayga Ostrower (1987) e Fernando Hernández (2007). Diante das problematizações propostas e dos caminhos que percorremos constatamos que as pesquisas se ampliam e que as mesmas não são excludentes. Novas temáticas surgiram em torno das dúvidas

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e da necessidade de novos aportes teóricos: Como aprender a pensar, diante da realidade vivida? Como alfabetizar de modo que nos projetos de pesquisa se con-templem novos modelos e configurações em sala de aula? O uso das Instituições Culturais como ferramentas na educação. Explorar e relacionar, por meio de narrativas da cultura visual, a compreensão de mundo com os seus contextos, utilizando-se da ação educativa no desenvolvimento presente e para o futuro. Onde estão às dificuldades de aceitação e relacionamentos, num mesmo territó-rio, nas diferenças culturais existentes? Esclarecemos que nossas considerações não são finais, visto que estamos em pleno desenvolvimento de ações e práticas constantemente renovadas e ressignificadas. No entanto, seguimos insistindo, em novas e diferentes abordagens inserindo-se nestas os diálogos contemplan-do, sobretudo o patrimônio e a memória no currículo em artes visuais, por en-tendermos que a prática do ensino e aprendizagem parte dos princípios que seus meios se convergem em reconhecer que o patrimônio é parte integrante da vida cotidiana, contextualizada a cada teoria abordada em sala de aula na busca do crescimento e no desenvolvimento da comunidade e de seus sujeitos, dos quais nos incluímos.

É preciso saber começar, e o começo só pode ser desviante e marginal. [...] E a reforma também começará de maneira periférica e marginal. Como sempre, a iniciativa só pode partir de uma minoria, a princípio incompreendida, às vezes perseguida. Depois, a idéia é disseminada e, quando se difunde, torna-se uma força atuante. (MORIN, 2003)

1.1 PRáTIcAS dOcENTES E OS PROJETOS qUE TRATAM

dO dESENVOlVIMENTO lOcAl, A PARTIR dO PATRIMôNIO.

As ações, até o presente momento, foram desenvolvidas em escolas públicas per-tencentes aos municípios de Taquara e de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul – Brasil. O período compreende os anos de 2007 até 2013. Espaço temporal entre a análise, a reflexão, a escrita, o desenvolvimento e a prática em sala de aula do Programa intitulado: Patrimônio compartilhado e a Inclusão Social a partir das Artes, considerando os aspectos econômicos, políticos, geográficos e históricos, dos territórios onde foram desenvolvidas as atividades.

Neste sentido, trabalhamos as relações do patrimônio, da memória social e da identidade, como fonte para a sustentabilidade local e inclusão sociocultu-ral. Aos profissionais da educação em artes, que analisarem este artigo, propo-mos a reflexão sobre a relevância das temáticas e objetivos elencados, uma vez que entendemos que ao professor caberá estar problematizando e questionan-do constantemente, junto aos seus alunos sobre a atitude cidadã e o posicio-namento consciente enquanto atores e participantes da construção histórica e no desenvolvimento local. Em detrimento da prática docente voltada aos aspectos de pertencimento em ambientes dos quais se estimula o pensar, criar e desenvolver-se a partir dos saberes e fazeres cotidianos, onde a vida é o fator

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gerador do fortalecimento das ideais, tais quais afirmadas por Hugues de Varine, Estamos falando aqui de uma aplicação especial do conceito de “subsidiarie-

dade”: a gestão do patrimônio deve ser feita o mais próximo possível dos criadores e dos detentores desse patrimônio, de modo a não separá-lo da vida. O papel das instituições especializadas é sensibilizar, facilitar, educar, por em contato, media-tizar, gerir pela margem em função do interesse geral. (VARINE, 2012:19)

Na perspectiva de construção e reconstrução, num processo cíclico em que as possibilidades de ensino e aprendizado se ampliam diante das experiências que se utilizam em relação à identidade, a memória social, ao patrimônio indi-vidual e coletivo, material e imaterial e dos processos culturais que fazem parte da vida, propomos o reconhecimento, a análise, a reflexão e o registro, mediados pelo professor em relação aos alunos. A escolha do tema central faz parte da pro-blematização sobre a ausência do estudo do patrimônio e, portanto da relevân-cia de incluir-se a educação para o patrimônio no currículo de artes visuais, de forma transversal ampliando a sua análise e sua aplicação, visando à autoesti-ma, a valorização do indivíduo no meio em que está inserido e o patrimônio a serviço do desenvolvimento local onde foram aplicados, os referenciais teóricos abordados por VARINE (2012).

Como proposta prática os professores de Taquara, realizaram vários momen-tos de discussões entorno do currículo escolar do qual resultaram na inserção e na obrigatoriedade da abordagem em sala de aula, para todas as séries, dos conte-údos voltados à identidade, a memória, o patrimônio e as instituições culturais. Os projetos até o momento desenvolvidos estão intitulados como: A Memória e os Suportes de registro da informação; O Autorretrato e o Indivíduo; O Patrimô-nio Individual e o Patrimônio Coletivo, Material e Imaterial; A História Oral, a História Escrita, os Saberes e os Fazeres da comunidade; Indígenas e Quilombo-las; Processos de colonização, a história, as formações e transformações sociais e geográficas dos territórios estudados; Patrimônio Inventariado e Patrimônio Compartilhado; e Cuidar e Preservar. Todos adaptados aos seus locais de apli-cação e desenvolvimento, além de muitas vezes fazer parte de algum Fórum ou Seminário estabelecido pelas Secretarias de Educação, ou em datas comemorati-vas de referência histórica. No caso da aplicação na escola de Porto Alegre, resta--nos o acompanhamento de professores orientadores do Projeto Trajetórias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.

Buscamos efetivar o trabalho de forma interdisciplinar em todos os momen-tos, o que atualmente acontece junto aos professores das áreas de geografia, his-tória, ciências, artes e educação física, dentro das disponibilidades de cada um, e que se complementam em leituras e releituras da teoria, confrontadas com a realidade em suas várias abordagens do saber. As pesquisas que sustentaram os estudos e a prática no desenvolvimento dos projetos que compõem o referido programa, voltaram-se às instituições culturais, políticas e sociais em ambas as cidades, além das que estão lotadas em cidades vizinhas, como São Leopoldo, Monte-negro e Viamão, em razão de estarem ligadas por fatos, que foram contemporâneos

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historicamente na formação, ou na emancipação e no desenvolvimento das ci-dades acima citadas e que fazem parte do Estado sede. Iniciamos com encontros que possam despertar a reflexão dos educandos e na formação de um espaço em que o diálogo e a reflexão conduzam a participação, o respeito mútuo das ideias e que as mesmas sirvam para criarmos os meios de comunicar os resultados ob-tidos em cada etapa estudada. Procuramos conhecer os espaços de referência identitária e de convivência dos jovens, seus valores, gostos, gestos e percepções. Cada momento dos encontros é registrado em painéis e exposto nos espaços de maior visibilidade dos envolvidos, para que estes exercitem a reflexão e criem novas ações a partir da última praticada. Realizamos a pesquisa documental dos aspectos relativos ao patrimônio nas mais diversas condicionais em âmbito na-tural, ambiental, cultural, político e socioeconômico.

Como referencial metodológico acredita-se que o desenvolvimento do refe-rido programa deveria partir do entendimento de que a ação educativa estimula a comunidade escolar a pensar e reconhecer o patrimônio como fonte de susten-tabilidade. Sobretudo, por que cada atividade organizada visa o envolvimento, a participação, a análise, a coleta de dados, o registro, a criação e exposição dos resultados. (VARGAS; SILVA 2010). Inicialmente conduzimos os estudos discor-rendo sobre as experiências de vida, das lembranças, das ideias e informações que servem de inspiração nas criações que são expressas e representadas nas lin-guagens artísticas, das quais nos servem para comunicarmos algo significativo que desejamos partilhar. Neste sentido levamos ao conhecimento dos partici-pantes da existência de um leque de possibilidades tais como o teatro, a dança, o videoarte, a pintura, a escultura, a música e outras tantas formas de expres-sões artísticas. Paulo Freire (2007), nos desperta neste sentido em que Somente homens e mulheres, como seres “abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora. Outra atividade aplicada a todos os grupos é o pic-nic dos sentidos, em que nos utilizamos de diferentes alimentos, cheiros, sons e texturas objetivando ativar o uso dos sentidos do pala-dar, do olfato, da audição e do tato, em detrimento do uso da visão, pois durante este exercício os ali presente devem estar com os olhos vendados. Realizamos leitura de imagens em vários períodos da história da arte, trabalhando os artis-tas que utilizaram, ou utilizam como temática os temas que são o fio condutor de cada projeto. Ilustramos os fazeres na arte com as obras e as temáticas dos artistas Alberto da Veiga Guignard, Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Antonio Berni, Hélio Oiticica, Vik Muniz, Jorge Macchi, Leda Catunda, Arthur Bispo do Rosário, Élida Tessler, Marlom de Azambuja, Oswaldo Maciá, Paulo Vivacqua, Pedro Palhares, Santiago Serra, Tatzu Nishi, Vitor Cezar, Nick Rands e Yanagi Yukinori. Seguimos buscando conhecer e reconhecer, em grupo, os lugares de memória estabelecidos coletivamente e da interação destes com o patrimônio cul-tural na comunidade. Acreditamos que é no contexto escolar, que as informações são socializadas, trabalhadas e transformadas em conhecimento (res)significando-as. As

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impressões elaboradas neste espaço ampliam-se em possibilidades onde os sabe-res e fazeres são interpretados, contextualizados e os educandos se reconheçam como multiplicadores no meio onde estão inseridos. Foi a partir da observação das potencialidades dos processos ora descritos que construímos o conjunto de projetos, formatados neste programa com temas transversais e de forma inter-disciplinar, através da ação educativa e cultural, respeitando a faixa etária e as elaborações perceptivo-cognitivas dos envolvidos.

Assim, propusemos um programa com projetos que se enquadram as espe-cificidades das mais diferentes realidades das comunidades escolares onde fo-rem aplicados. Para aprofundarmos a reflexão, estimulamos a análise através de diálogos, em relação às questões teórico-conceituais referentes aos discursos históricos presentes nas políticas de ensino e aprendizado, confrontando-as com os contextos vividos no dia-a-dia dos atores envolvidos, dos que constro-em a história cotidiana, aqueles que movimentam as cidades e que sustentam toda a máquina pública a disposição da comunidade local e que deveria estar à disposição de forma igualitária objetivando o bem viver de todos os cidadãos. Sobretudo, dos recursos que possibilitam a existência e a disponibilidade para o desenvolvimento pleno dos que ali vivem, estabelecem suas famílias, constro-em suas moradas e de forma ativa relacionam e identificam-se culturalmente entre seus pares, formando grupos organizados visando não só a ordem local, mas a saúde e a segurança dos mesmos. Trabalhamos sobre o objeto, a docu-mentação e o monumento entre os meios que nos servem como testemunho do que queremos guardar, do que procuramos compreender, daquilo que pretende-mos ensinar e que nos serve como prova histórica, como nos esclarece Jacques Le Goff (2003), em que O termo latino documentum, derivado de docere, “ensinar”, evoluiu para o significado de “prova” e é amplamente usado no vocabulário legislativo. Os testemunhos são vividos nos momentos que são rituais de passagens como as datas comemorativas, dos acontecimentos importantes para nós, por guar-dar valores e por representar as virtudes de um povo, ou para venerar alguém. Trabalhamos a preservação do patrimônio daquilo que adquire relevância em nossas vidas e das relações afetivas construídas.

Este exercício remete-nos aos suportes de registro da memória e da informa-ção contidas em certidões de nascimento e álbuns de fotos, nos monumentos, nos prédios históricos, praças e nos objetos salvaguardados em museus. Assim, estendemos a esferas do poder simbólico das relações com Hino, o Brasão, a Ban-deira, assim como a própria linguagem, representativas da unidade de uma nação. Em respeito ao Patrimônio Material e Imaterial são contempladas as verificações através da história escrita e da história oral, em entrevistas e rodas de memória, junto à comunidade escolar, assim como os dirigentes públicos e daqueles que passaram por diferentes momentos na formação e transformações das estrutu-ras locais. No tratamento a partir do patrimônio Individual e Coletivo, consi-deramos que o patrimônio faz parte da dinâmica diária, é concreto, real, e não está dissociado da vida, como exemplifica Hugues de Varine, (2012), ao citar o

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exemplo do programa Opahs (operações programadas de melhoria do habitat), prática francesa, em âmbito público, que destina um auxílio financeiramente aos proprietários privados na melhoria de seus bens imóveis.

Trazemos as discussões às formações étnicas da colonização europeia, iden-tificadas, assim como os fundamentos indígenas e afrodescendentes estabeleci-dos e formadores socialmente no Estado do Rio Grande do Sul através dos regis-tros históricos e das comunidades existentes e estruturadas no território como as indígenas e os quilombolas, considerando-se os aspectos de inclusão desde o espaço escolar, pois nas escolas de aplicação do programa estão matriculados alunos pertencentes a estas comunidades. Buscamos mapear a estrutura patri-monial considerando-se neste sentido a estrutura pública e que estão a serviço da comunidade, despertada a partir do olhar dos alunos e que dizem respeito à segurança, ao saneamento básico, ao comércio local, ao sistema de comunica-ção, ao transporte e que deveriam acompanhar o desenvolvimento da comuni-dade em seu aspecto qualitativo e quantitativo.

Fundamentamos a etapa do projeto Patrimônio Inventariado e Patrimônio Compartilhado no ambiente escolar, considerando-se novamente o que escreve Varine (2012: 52), senão vejamos O trabalho no seio das escolas, nas estruturas de animação sociocultural, nas associações, nos meios locais de comunicação, rádio, im-prensa escrita, serve muito bem para isso e provoca consequências, recaídas, às vezes imprevistas. Nas páginas do livro, As Raízes do Futuro, este propõe os métodos de conhecer o patrimônio inclusive sugere os itens que são fundamentais e es-clarecedores durante a prática do inventário e dos itens constantes e relevantes a serem observados neste trabalho. De posse das informações coletadas e a cada etapa desenvolvida procuramos estimular que os alunos utilizem-se das técni-cas das artes e representem por meio das linguagens artísticas as suas descober-tas, assegurando-lhes espaços, momentos de exposição e compartilhamento dos trabalhos desenvolvidos.

No período de onze a quinze de abril, no corrente ano, aconteceram vários momentos dos quais nos apropriamos para pensar a Cidade Taquara, pela passa-gem dos seus cento e vinte e sete anos de emancipação. A cada dia dentro deste período realizamos várias atividades tais como: o teatro do Hino representado, o estudo do Brasão e da Bandeira através do desenho, construção de painéis em colagens, desenho e pintura dos aspectos urbanos e rurais, dança gaúcha que é tradicional em muitos grupos em nosso Estado, através da coleta de dados e entrevistas foi realizado dois vídeos e um painel, com informações dos alunos trabalhadores das pedreiras locais, da formação geográfica e geológica do solo da região sul do país e sobre a importância do serviço público da diretora e da vice-diretora da escola Emílio Leichtveis do Distrito de Fazenda Fialho. Com as turmas do sexto ano e do oitavo ano visitamos o patrimônio histórico da cidade, auxiliados por um guia turístico e historiadores dos locais visitados, este traba-lho resultou na confecção de um painel fotográfico com o mapeamento desses espaços. Como parte fundamental da ação educativa, realizamos a avaliação que

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acompanha cada etapa, e por meio de exposições, saraus, seminários e fóruns, verificando a compreensão dos conceitos, sobre as práticas utilizadas, dos mo-mentos de criação, além dos valores afetivos despertados em cada um dos atores envolvidos e das próximas ações a serem realizadas. Estes conceitos abordados e inseridos na metodologia proposta percorrem um caminho que vai do indivi-dual ao coletivo, diálogos entre a identidade, a memória, o patrimônio material e imaterial, os museus, além de outras instituições culturais e a cultural local.

A AUSêNcIA dA EdUcAçãO PARA O PATRIMôNIO NO cURRícUlO EScOlAR

Durante o curso de graduação em Artes Visuais: Licenciatura, na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, ao realizarmos nossos estágios curricu-lares por volta dos anos de 2006 e 2007 percebemos que muitos professores não preparavam os seus alunos para realizarem visitas pedagógicas nas instituições culturais, quando oportunizado pelas secretarias de educação, tanto nos espaços da cidade, quanto em outros territórios. Estas saídas não despertavam o interes-se dos professores, demonstrados por não buscarem informações sobre os temas geradores em relação à visitação, ou quando constatávamos que os esclareci-mentos eram previstos, faltava-lhes um projeto que viabilizasse a compreensão dos educandos. Neste sentido propomos a reflexão, junto aos nossos orientado-res e aos colegas de curso, sobre as relações comportamentais em sala de aula não somente no que diz respeito às práticas em artes visuais e a experimentação de materiais, mas como os professores abordavam a arte e como articulavam os referenciais teóricos, históricos e artísticos, problematizando os conteúdos de maneira a confrontá-los constantemente com a arte contemporânea, contem-plando neste sentido com a realidade vivida pelos alunos. Estimulando os alu-nos na produção e no desenvolvimento do pensar a arte de forma a expressar suas dúvidas, anseios e modos de vida, suas aspirações, comunicando-os através das linguagens artísticas. Despertar a comunidade escolar para a inclusão social e os fatores da exclusão sociocultural. Caso esta postura, quando não exercida possa cair em ‘efeitos negativos do falso ensinar’ (FREIRE, 1997).

Acreditamos que este deveria ser o sentido e o percurso comum do ensino e aprendizado que está comprometido com a formação do individuo em sua to-talidade, para qualquer área do saber, mas que naquele momento voltávamos nossos diálogos em torno das artes visuais. Nesse percurso de nossas reflexões e discussões, criamos um grupo de mediadores para trabalhar a educação na Galeria de Arte Loíde Schwambach, o que se concretizou na pesquisa de exten-são acadêmica. Nas intervenções educativas e no trabalho efetivo da equipe de extensão constatamos que não havia correspondência e interesse, por parte da grande maioria dos profissionais das escolas da cidade, tanto na formação con-tinuada, quanto em desenvolver estudos em conjunto, dos quais propomos trabalhar em sala de aula estendendo-os ao conjunto dos espaços dos quais a galeria e a própria universidade dispunha. A problemática fez-se presente de

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forma muito semelhante ao realizarmos o trabalho voluntário junto ao edu-cativo no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli – MARGS e nos trabalhos em educação e pesquisas de perfil de público, constituídas durante o trabalho efetivo de contratação no Centro Cultural Santander e por ocasião da 6ª Bienal do MERCOSUL. Ao ingressar no curso de Graduação em Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em 2009 e participar da pesquisa por extensão universitária, como bolsista através do Programa Museu Comunitário Lomba do Pinheiro “Memória, Informação e Cidadania”, em relação ao projeto “Museu de Rua”, (VARGAS, 2010), esta lacuna ficou mais evidente.

Verificamos durante nossas provocações junto aos moradores do Bairro Lomba do Pinheiro, que havia a necessidade do estudo e preparação não só dos alunos e dos professores, mas da comunidade como um todo em relação à edu-cação para o patrimônio. Foi nesse momento que iniciamos nosso trabalho, sob orientação de Cláudia Feijó da Silva, historiadora e coordenadora do Ponto de memória e Museu Lomba do Pinheiro. De forma concreta sentimos esta realida-de ao assumirmos o papel de professoras, lotadas no município de Taquara/RS e Porto Alegre/RS, e ao trabalhar na Rede de Educadores em Museus – REMRS, desde 2010.

Durante nossas reflexões buscamos compreender a falta de amparo dos pro-fissionais que não se utilizam das instituições culturais como ferramentas para a educação, e quando o fazem incorrem em erros deixando a desejar em esclare-cer consubstancialmente sobre as suas reais necessidades junto às equipes edu-cativas que estão à disposição nestas instituições. Nos momentos em que estive-mos em estágio curricular, que se somam as pesquisas por ocasião de extensão acadêmica, pelo voluntário exercido em museus, pinacotecas, na REMRS ou até mesmo durante pesquisas relativas aos exercícios para conclusão de especiali-zação e pós-graduação, todos estes voltados à educação, urge o nosso desempe-nho enquanto educadores de propor a inclusão da educação para o patrimônio no currículo escolar em artes visuais, assim como, a utilização das instituições culturais como ferramenta educacional, ou na formação continuada junto aos profissionais da área, ou como fonte de ensino e aprendizado.

3.1 cONTEXTUAlIzANdO OS ASPEcTOS dOS ESPAçOS E TERRITóRIOS TRABAlhAdOS

No ano de 2010, trabalhando com a comunidade do bairro Lomba do Pinheiro em Porto Alegre. Território constituído de uma parcela do município de Porto Alegre, que se destaca pela presença de vasta área verde. Um bairro de periferia, que é densamente povoado por mais de 120.000 habitantes, (conforme censo IBGE de 2003= 67.000 habitantes). Organizado em mais de 30 vilas, com mui-tos assentamentos irregulares e saneamento básico precário e com significativa vulnerabilidade social. Neste particular, ressaltamos que o espaço de trabalho disponível foi o Museu Comunitário Lomba do Pinheiro. Desenvolvíamos nossas atividades junto ao setor educativo do museu, com estudantes das escolas públicas,

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com os professores na educação continuada e com pessoas da comunidade. Foi neste território que iniciamos a construção efetiva do programa, com o projeto Museu de Rua, que em 2010, data de sua inauguração, em que Hugues de Varine, manifestou-nos a satisfação e respeito no trabalho construído com os morado-res locais. Na ocasião fez com refletíssemos sobre a importância da educação para o patrimônio, uma vez que o patrimônio deve ser o ponto chave, a ideia central para o trabalho comunitário e o desenvolvimento local, para o arque-ólogo e historiador o patrimônio (...) é antes de tudo de natureza comunitária, isto é, emana de um grupo humano diverso e complexo, vivendo em um território e com-partilhando uma história, um presente, um futuro, modos de vida, crises e esperanças. (VARINE, 2012: 44).

Dando sequência na formatação do nosso trabalho com propostas de aplica-ção surgiu a oportunidade do projeto piloto em se tratando do espaço escolar, por ocasião do IV Fórum Estudantil, em agosto de 2011, cuja temática estabele-cida pela Secretaria da Educação foi: A busca da Identidade em meio aos avan-ços tecnológicos. Na ocasião desenvolvemos um trabalho interdisciplinar, com temas transversais, a partir do Projeto: Adolescência, Identidade e História: inclusão social por meio da história oral, escrita e a natureza da qual fazemos parte. Os profes-sores envolvidos foram das áreas de Artes, Ciências, História e Língua Portugue-sa, pertencentes ao quadro de profissionais da Escola de Ensino Fundamental Calisto Eolálio Letti, sito a Rua Carolina Brodbeck, 1440 - Bairro Fogão Gaúcho, em Taquara/RS. As atividades envolveram as práticas de pesquisa, por temáticas curriculares separadas conforme as séries finais do ensino fundamental de 5ª a 8ª, com o estudo sistemático curricular para cada área, e de aportes histórico, teórico e prático interrelacionando as disciplinas envolvidas.

A cidade de Taquara é um município da região metropolitana de Porto Ale-gre, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil. É um município de colonização pre-dominantemente alemã. O município de Taquara está localizado na Encosta Inferior da Serra e dista 72 quilômetros de Porto Alegre, capital do estado do RS. Até a chegada dos primeiros europeus à região, no século XVI, era habitada pelos índios carijós e Kaingang. Sua economia envolve os segmentos do setor de produção de calçados, produtos plásticos e laticínios. A produção agrícola que alavancava a economia na época da colonização, ainda ostenta um razoável de-senvolvimento, com destaque para a produção leiteira, a piscicultura e a criação de gado de corte.

O bairro Fogão Gaúcho do qual pertence à escola é composto de loteamentos imobiliários, de classe média. Tem em seu perímetro urbano, que fica próximo a sede da prefeitura da cidade, a Faculdades Integradas de Taquara. Próximo à es-cola existe o morro da cruz, local onde residem os alunos da escola Calisto, como é conhecida na cidade. Como aspecto socioeconômico das famílias que com-põem a comunidade escolar, temos que pertencem a classe social de baixa renda e índices consideráveis de vulnerabilidade social, sendo a ocupação recorrente e renda obtida através do recolhimento de resíduos recicláveis. Os problemas

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de exclusão social são significativos, uma vez que ao chegar à escola e assumir a tarefa de trabalhar com o conhecimento, fomos informados que em particular esta instituição abrigava os alunos que resolvem seus conflitos com certo grau de violência e por este motivo eram transferidos para esta escola. Sofrem de ex-ploração sexual, além de caracterizarem-se por possuírem limitações mentais e cognitivas e que existia um número considerável de alunos não aceitos nas de-mais escolas da rede pública municipal, em razão de não estarem enquadrados nos níveis aceitáveis de comportamento disciplinar.

Em 2012, também na cidade de Taquara/RS acima identificada, iniciamos com o Projeto: Memória e Cidadania e atualmente desenvolvemos com a comu-nidade escolar o Projeto O patrimônio compartilhado e a inclusão social a partir das artes, da geografia e da história local. O contexto social tem a mesma con-juntura de organização pública, porém trata-se de uma área rural. A escola em questão é a E.M.E.F. Emilio Leichtveis, do Distrito de Fazenda Fialho, área rural que fica cerca de 60 km da cidade de Porto Alegre/RS. Nesta escola a atuação do Conselho tutelar da região é de fundamental importância, visto que muitos adolescentes, matriculados na escola e com menos de 15 (quinze) anos de ida-de, trabalham nas pedreiras da região. Lembramos que a exploração laboral de crianças com menos de dezesseis anos é considerado transgredir a Constituição Federal do País.

Outro agravante é que os alunos trabalham em horários inversos ao das aulas e ou seguem para a escola sem fazer suas refeições corretamente e sem higiene pessoal. Adormecem sentindo-se cansados durante a aula, o que constatasse no considerável decréscimo do rendimento escolar desses alunos. As famílias além de beneficiarem-se com o rendimento extra dos salários destes alunos recebem a ajuda do programa Bolsa Família do governo federal. Na sua maioria são adoles-centes que respeitam as regras escolares e os limites estabelecidos pelo grupo de professores. Alguns cumprem tarefas caseiras, inclusive na manutenção de cria-ções pecuárias e hortas para a subsistência familiar. Temos alunos que residem em quilombo que está próximo a escola. Estes com forma e situações cotidianas bem singulares, a começar pela educação através da oralidade, e o trabalho em prol do grupo, onde as famílias são numerosas e todos trabalham em conjunto ou para o grupo familiar, contando-se o que extrapola a configuração de pais e irmãos, estendendo-se aos primos, tios, avós e todos os parentes consanguíneos a responsabilidade da sobrevivência de todos. Ainda no ano de 2013, e seguindo nosso caminho de aplicação dos projetos em torno do patrimônio, estamos dialo-gando com o projeto O patrimônio, a memória social e a identidade a serviço do desenvolvimento local, com a comunidade da escola E.E.E.F. Júlio Brunelli, vincu-lada a 1ª CRE-SEC, do Estado do RS, na cidade de Porto Alegre, no bairro Rubem Berta-COHAB. Faz parte de um dos Territórios de Paz da cidade de Porto Alegre, o que significa e caracteriza o bairro como um dos mais violentos e onde mais ocor-rem homicídios dentro da grande Porto alegre. Portanto, se analisarmos o lugar vamos perceber que existem diversidades desde étnicas, de gênero, econômicas

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entre outras de ordem sociocultural. Um dos indicadores onde se pode notar a diversidade são as rodas de jovens “negros” nas esquinas que por horas permane-cem neste espaço, e não se misturam com os “branquinhos” do bairro vizinho, forma como os jovens negros se referem aos demais grupos, por exemplo, e que são vistos e fazem parte de outro bairro mais organizado e melhor estruturado.

O bairro Rubem Berta, onde se localiza a EEEF Júlio Brunelli, teve sua origem no início do séc. XX, que até então, era uma região agropastoril com sua econo-mia baseada na venda de leite. O desenvolvimento e a densidade habitacional da região tiveram início nos anos 60. Nos anos 80 a COHAB Rubem Berta era um amontoado de esqueletos de prédios que tinham sido abandonados pela cons-trutora que declarou falência sem terminar a obra. Eram 3712 apartamentos dos quais alguns proprietários já tinham até sido sorteados. Organizaram invasões de seus próprios apartamentos, junto com eles, pessoas que não tinham onde morar, também compartilharam desta prática. A partir daí, criaram a AMORB, Associação Comunitária dos Moradores do Rubem Berta. Essa associação se deu pela necessidade de organizar a comunidade e conscientizá-la de seus direitos e deveres perante o poder público. Os alunos são os moradores deste complexo urbano acima descrito.

cONSIdERAçõES fINAIS

Para concluirmos dispomos de considerações que não são finais como mencio-nado na introdução, que se renovam e destacam as singularidades do conjunto em cada espaço e cada contexto onde se estabelece o programa, pois para nós é importante o envolvimento dos agentes que despertam para o fortalecimento da comunidade quando se trabalha em grupo, em detrimento da participação individual, que só encontra potencial quando compartilhada. Ao despertar para os resultados positivos e para as dinâmicas da ação educativa e cultural a co-munidade escolar se fortalece, busca renovar-se continuamente e percebe suas particularidades e seus modos de articulação.

Para compreensão do que foi escrito até aqui, faz-se necessário esclarecer que exis-te uma lacuna, um espaço que carece de atenção sobre a abordagem em sala de aula sobre o reconhecimento da educação para o patrimônio, no currículo escolar e que essa ausência fora percebida e avaliada em diferentes momentos das nossas práticas profissionais. Percebemos que existe um número considerável de professores que não percebem a riqueza da educação para o patrimônio e que não fazem uso dos educati-vos em museus, guardadas as suas tipologias e ao interesse do ensino curricular, a par-tir do currículo de artes para tanto, das ferramentas disponíveis fora da sala de aula.

Abordamos da mesma forma, sobre cada atividade desenvolvida na aplicação dos projetos, com a intenção de compartilhar e propor a reflexão sobre as práticas e os processos de criação em artes visuais na contemporaneidade, a fim de proble-matizar sobre as necessidades sociais que podem ser expressas e representadas nas diferentes linguagens artísticas. Reconhecer a educação para o patrimônio

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vem favorecer a compreensão na formação cidadã, de forma significativa e aden-sa os propósitos em nossas abordagens pedagógicas enriquecendo, animando e estimulando os alunos em suas compreensões. Percebe-se a adesão de muitos professores solicitando informações e inserindo suas proposições e trabalhando junto nos projetos ou solicitando o trabalho educativo com seus alunos nos mu-seus e outras instituições culturais.

Ao reconhecerem-se como atores nas etapas do programa, os alunos passam a valorizar-se, a utilizarem-se das nomenclaturas e conceitos em suas produções textuais e a buscar o diálogo na resolução de conflitos, sem cair na atitude da desconstrução e depredação do patrimônio. Nos processos de pesquisa, de análi-se, de reflexão, dos momentos de criação e exposição dos trabalhos, muitos ques-tionamentos foram formulados pelos educandos, em relação aos ensinamentos e na história que herdamos e daquilo que estamos construindo efetivamente, estes foram estimulados a compartilhar na comunidade escolar e com diálo-go sobre as possíveis respostas das problemáticas levantadas. Como forma de conscientizar e reivindicar a postura de cidadão, daquele que está cônscio de seu papel social e de assumir-se enquanto multiplicador e responsável pelos ques-tionamentos geradores dos resultados obtidos a cada etapa aplicada e que con-tribui para o desenvolvimento local.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

______. Ação Cultural para a Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

· GONDAR, Jô. Quatro Proposições sobre Memória Social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera. O que é memória

social. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2005

· HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: transformando fragmentos em nova narrativa edu-

cacional. Porto Alegre: Mediação, 2007.

· LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

· MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina.

8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

· SILVA, Cláudia Feijó da. VARGAS, Márcia I. T. de. Refletindo sobre o Desenvolvimento Psicossocial In-

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· VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.Porto Alegre: Medianiz, 2012.

· http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/

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IgREJA dE NOSSA SENhORA dO MONTE: história, identidade e preservaçãochURch Of OUR lAdy Of MOUNT: history, identity and preservation

Maria da Graça Andrade Dias Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, Brasil

Resumo: Apresenta-se, neste artigo, o estudo sobre a Igreja de Nossa Senhora do Monte - BA. Através de pesquisa de campo, buscou-se investigar como ocorrem os processos de identidade e memória da comunidade em relação ao patrimônio, na perspectiva de preservá-lo, atendendo a essas expectativas. Conclui-se ser a igreja uma referência identitária para a população, descartando a possibilidade de reabilitação.

Palavras-chave: Patrimônio. Identidade e memória. Representações sociais. Preservação.

Abstract: We present a study of the Church of Our Lady of Mounth - BA. Through field research, we sought to investigate how processes take place identity and community memory in relation to equity, in view of preserving it, meeting those expectations. It is concluded that the church identity to a refer-ence population, ruling out the possibility of rehabilitation.

Keywords: heritage. Identity and memory. Social representations. Preservation.

INTROdUçãO

A Igreja de Nossa Senhora do Monte (Figura 1) está localizada no Recôncavo da Bahia, no distrito de Monte Recôncavo da cidade de São Francisco do Conde, em área elevada e de singular delimitação espacial. Esse monumento constitui-se num importante legado histórico e cultural dessa região, sendo efetivamente, referencial do patrimônio brasileiro, dado que a preocupação religiosa e os respectivos estabe-lecimentos se encontram presentes desde as nossas origens, sempre associados a pe-ríodos fundamentais da história política, cultural ou artística do país.

Toda a região do Recôncavo da Bahia é conhecida, desde o século XVI, como a faixa de terra formada por mangues, baixios e tabuleiros que contornam a Baía de Todos os Santos.

Sendo o Recôncavo formado por 35 municípios, totalizando uma área de 10.400 km2 de superfície. Sua colonização é resultante da expansão da lavoura de cana-de-açúcar pelos portugueses. O desenvolvimento da economia deu-se a partir do século XVIII até o início do XIX, período áureo, e nas cidades com ati-vidade portuária houve um maior desenvolvimento urbano (AZEVEDO, 1982).

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Fig. 1- Igreja de Nossa Senhora do Monte Dias, 2012.

A sucessão de construções, povoamentos, engenhos e capelas, ao longo dos primeiros séculos de colonização, acompanhava o curso dos rios. O Recôncavo da Bahia, conforme Santos (1960), formou a primeira rede urbana da colônia portuguesa nas Américas com os núcleos de povoamento integrados por for-mações urbanas. Uma igreja ou uma capela constituía o ponto em torno e em função do qual se formavam pequenos aglomerados humanos, sendo assim es-tabelecidos muitos desses núcleos no período colonial. Para estas capelas serem sacralizadas, deveriam atender às condições impostas pela legislação canônica, principalmente, serem edificadas em locais geograficamente destacados e com área livre em seu entorno para o adro e o passo das procissões. A Igreja contro-lava e determinava o início da malha urbana da futura vila ou cidade, até o mo-mento da criação do município, esse processo de expansão era norteado pela igreja. A formação de várias cidades do Recôncavo deu-se a partir do estabeleci-mento da igreja católica (ANDRADE, 2010).

Com o fim do ciclo açucareiro e a inclusão do sudeste do Brasil no processo de desconcentração industrial, a região passou por transformações socioeconômicas e territoriais que lhe conferiram novas dinâmicas estruturais. Atualmente, ainda percebe-se na região tanto a relevância da territorialidade da cana-de-açúcar (do-minante no período colonial), quanto as suas repercussões e transformações nos períodos que sucederam o apogeu, possibilitando uma análise do espaço geográfi-co e sua dinâmica. A temporalidade é visível quando se destacam as modificações sociais e econômicas ocorridas do apogeu até a decadência ao longo do tempo.

Grande parte do patrimônio histórico de várias cidades do Recôncavo da Bahia, representado, principalmente, por igrejas seculares, encontra-se em esta-do de arruinamento. Refletir sobre a preservação desses patrimônios históricos significa debruçar-se sobre a lógica subjacente aos conceitos e valores conferidos a esses espaços ao longo do tempo, considerando-os como lugares de memória. Esse sistema valorativo é coletivamente construído, como as relações com os

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lugares, as estruturas identitárias e a memória, tudo isso articulado no imagi-nário irá fundamentar a elaboração, reprodução e expressão das representações das comunidades acerca do patrimônio.

Vislumbrando a divulgação, o reconhecimento e a possibilidade de preser-vação deste monumento, atualmente em estado de degradação, desenvolveu-se o presente estudo, onde foram analisados os aspectos arquitetônicos e inves-tigados os aspectos simbólicos e do imaginário a ele relacionados. Entende-se que a atribuição de valores ao patrimônio cultural através das práticas sociais ultrapassa a esfera objetiva, englobando os símbolos, as relações afetivas com o espaço, a identidade e a memória. Aliam-se a tais fundamentos os passos me-todológicos sugeridos pela teoria das representações sociais e para o levanta-mento das informações obtidas através de pesquisa de campo foram adotadas as abordagens qualitativa e quantitativa. Pretende-se com a análise da dimensão subjetiva desse patrimônio contribuir para o planejamento e implantação de políticas para sua preservação, pois entende-se que estas não podem ser imple-mentadas sem a compreensão da perspectiva das comunidades que moram no seu entorno.

1. dAdOS hISTóRIcOS

A Igreja de Nossa Senhora do Monte, construção do séc. XVIII,. objeto do estudo realizado, destaca-se num lugar mais alto da região, a 180 m acima do nível do mar “edifício de grandes dimensões e de relevante interesse arquitetônico, onde do seu adro se descortina a mais ampla e bela paisagem da baía com suas ilhas e Recôncavo” (AZEVEDO, 1982). Possivelmente, esta é a segunda igreja, pois, se-gundo Pedro Tomaz Pedreira (1976) já existia uma capela neste local em 1600 e a freguesia do Monte foi criada nos últimos anos deste século. A matriz não possui arquivo e o próprio edifício, com suas características arquitetônicas, suas divisões internas e os motivos decorativos integrados ao monumento serviram para identificação do período construtivo.

As vilas da região do Recôncavo se estabeleceram a partir de aldeias jesuíti-cas, de engenhos de açúcar, pousos e feiras de gado. Essas vilas formavam redes urbanas especializadas – açucareira, fumageira e de subsistência – respectiva-mente nos vales dos rios Subaé, Paraguaçu e Jaguaripe, tendo como ligação com Salvador seus portos e a Baía de Todos os Santos. Essas microrredes se manti-veram até o início do século XX, quando os portos tradicionais passaram a ser menos utilizados em função do surgimento de novos meios de transporte, o que gerou novas centralidades e relações urbanas. Embora atendendo a requisitos de suas funções – porto, entreposto, centro de produção e comercialização de produtos agropecuários – essas vilas têm em comum formas geradas por fluxos, como a navegação, a circulação de pessoas e animais (ANDRADE, 2010).

O processo de formação de uma vila, segundo Marx (1989) em geral, começa-va a partir de uma capela, cuja construção dependia da doação de terras, feita

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por um rico proprietário rural ou por vários vizinhos. A localização da capela condicionava o parcelamento do solo inicial, onde a Igreja controlava e deter-minava o início da malha urbana da futura vila ou cidade. Até o momento da criação do município, esse processo de expansão era norteado pela igreja.

Com o crescimento da população, uma capela passava para outro patamar e era transformada em paróquia ou freguesia. Como sede paroquial, a antiga capela se transformava em igreja matriz, e, dessa forma, ia ampliando tanto a sua edifi-cação quanto a população à sua volta. Posteriormente, era elevada à categoria de vila, com a instituição de uma câmara e determinação de um solo público. A par-tir daí, a constituição do espaço físico das formações urbanas coloniais ficava de-terminada, onde a igreja matriz se destacava, no centro, e tudo irradiava a partir dela, tanto o desenvolvimento da vida quanto da paisagem desses núcleos (COSTA, 2007).

A formação de várias cidades do Recôncavo da Bahia deu-se, também, a partir do estabelecimento da igreja católica. Alguns autores como (FRIDMAN, 1992; SILVA, 2000; COSTA, 2007), destacaram esta ação no ato colonizador e, especialmente, como ela se antecipava à Coroa. A definição dos espaços nos ter-ritórios foi regulamentada através da criação de freguesias e o agrupamento de fiéis junto a povoações ou engenhos com capelas e, de forma mais intensa junto à matriz, onde era produzida uma “malha reticular hierárquica que tomava o espaço de ocupação e uso antes mesmo do estabelecimento do recorte político administrativo feito pela Coroa” (ANDRADE, 2009) quando esta, aliando-se com o poder eclesiástico, dava origem a novas vilas e estabelecia termos. Segundo Paulo Azevedo:

A arquitetura dessas vilas tem seu ponto mais alto nas construções religiosas. Não menos

importante é a invenção das matrizes e igrejas de irmandade assobradadas organizadas

como um teatro de ópera resultante da ação das comunidades locais reunidas em ordens

terceiras ou irmandades. Em muitos casos, as arcadas laterais eram apenas uma solução

estrutural para a sustentação da galeria de tribunas, quanto a Igreja de Nossa Senhora do

Monte vemos um caso diverso, ali, a arcaria lateral servia como portal da igreja, aberto

para a praça da vila; sua fachada principal está na borda de um espigão que despenca

abruptamente sobre a baía dificultando sua interlocução com a vila (2011: 234).

A Igreja de Nossa Senhora do Monte, no melhor estilo tradicional, preserva nave e capela-mor, flanqueadas por corredores laterais, e sacristias superpostas por tri-bunas, características do séc. XVII; resguarda verdadeiras preciosidades em seu in-terior, como o lavabo de mármore e pia batismal em pedra lioz. A igreja demonstra, aparentemente, não ter sido concluída, pois lhe faltam as torres e grande parte da modenatura da fachada, mas sugere ter tido um traço de concepção apurada pela qualidade dos detalhes na portada e em cercaduras de cantaria no interior do edi-fício. Atualmente a Igreja encontra-se bastante degradada, em péssimo estado de conservação, fechada durante alguns anos por estar em perigo de desabamento.

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Grande parte do patrimônio histórico de várias cidades do Recôncavo da Bahia, representado, principalmente, por igrejas seculares, encontra-se em esta-do de arruinamento, tendo como uma das causas principais as transformações socioeconômicas. Atualmente, existe uma nova reconfiguração espacial nesta região onde as atividades econômicas se reestruturaram possibilitando o aten-dimento das demandas contemporâneas da população de vários municípios, em especial, naqueles em que há produção de petróleo.

2. IdENTIdAdE E MEMóRIA

O patrimônio histórico em estado de degradação transforma-se em espaço ritua-lístico que suporta a modificação da identidade dos sujeitos por meio de proces-sos sociais. A perda da aura, ainda que possa contribuir para a destituição desses bens, segundo Fortuna (1994), isto só acontecerá parcialmente, pois eventual-mente até reforçará, a sua capacidade de funcionar como instrumento a serviço de estratégicas simbólicas de autopromoção e de integração social.

Assim, alguns fragmentos que nos são revelados na interação com os monu-mentos e as comunidades, possibilitam a compreensão das relações entre o passa-do e o presente. Quando esses patrimônios se mostram depredados e abandonados assinalam não apenas uma cidade destruída, mas a cultura arruinada. Quando o passado é um destroço, o presente fica hipotecado e, ainda seguindo o pensamen-to de Simmel (2005), pode-se dizer que, para salvar o passado e respeitar o presen-te, será preciso uma política capaz de manter e preservar o nosso patrimônio.

A historiadora Françoise Choay, em sua obra A alegoria do patrimônio, explica a noção do termo monumento, de demasiada importância para a compreensão do conceito de patrimônio e da prática de conservação que lhe é associada. Segundo a autora, a concepção do termo monumento relaciona-o, sobretudo, ao afetivo:

Em primeiro lugar, o que se deve entender por monumento? O sentido original do termo

é o do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (‘advertir’, ‘lembrar’), aqui-

lo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito é essencial: não

se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma

memória viva. [...] A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo

de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da

afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas

esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer:

ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta,

contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa,

nacional, tribal ou familiar (CHOAY, 1992: 31).

E, logo adiante, a autora completa: “O monumento assegura, acalma, tranquiliza, conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação

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gerada pela incerteza dos começos” (CHOAY, 1992:32). Nesse sentido, o monumen-to se apresenta como uma interseção entre a memória individual e a memória coletiva. No texto Mémoire, temps, histoire (1996), Etienne Akamatsu observa que a função da memória individual é nos restituir o passado, pôr à disposição lem-branças que vivemos, e produzir sensações extraordinárias, como a Madeleine de Proust. No entanto, ele ressalta que a memória coloca também uma ambiguida-de, pois vive entre dois polos: a vontade e a recusa, a verdade e a ilusão, na me-dida em que a subjetividade impera no que se refere à distância entre o real e a impressão do real. Já a memória coletiva possui uma vocação social, política ou mesmo religiosa, que se destina a estabelecer uma relação entre a comunidade e o tempo, construindo um vínculo do homem, como indivíduo, com um passa-do imemorial e comum a todos, onde a essência do monumento é estabelecida através de sua função antropológica, ou seja, a relação do tempo vivido e com sua memória. (AKAMATSU, 1996: 8). Dessa forma, os monumentos e, de forma mais ampla, o que se compreende como patrimônio cultural são elementos de mediação entre o homem, a memória individual e a memória coletiva.

O monumento constitui-se tanto como objeto quanto como sujeito do ima-ginário, isto é, ao mesmo tempo em que o imaginário elabora imagens e símbo-los sobre ele, os seus atributos físicos tornam-se elementos para a constituição do imaginário. Esses símbolos funcionam como códigos que permitem a identifica-ção do grupo. O imaginário estrutura-se a partir das instituições sociais, da reli-gião, da organização econômica, da estrutura jurídica do poder político e também do espaço físico, que adquire significação por meio das práticas sociais. Nesse pro-cesso, quando o espaço é representado no imaginário, a ele são atribuídos valores, assim a percepção de parte da história da cidade em que se localiza o monumento de importância histórico-arquitetônica, ultrapassa a dimensão física.

O espaço adquire significado por meio da experiência, onde há interação en-tre o indivíduo e o ambiente, permeado pelas relações sociais que possibilitam a estruturação de uma rede de significados e sentidos culturais (CARLOS, 1996). Passa a ser, então, um lugar com forte carga subjetiva, ligado mais às experiências, ao aspecto afetivo, à necessidade de raízes do que ao sentido geográfico do termo.

A apropriação envolve significados, crenças, concepções, sentimentos, atitu-des, opiniões, imagens e senso comum, relativos ao patrimônio, revelados nas prá-ticas sociais eventuais ou cotidianas. Freire (1997: 57) considera que a apropriação acontece quando “os objetos são incorporados ao repertório visual de seus habitantes, ligando-se às suas experiências afetivas, momentos significativos de sua vida.” Sendo assim, o patrimônio construído é uma porção do espaço que, quando experiencia-do e apropriado, pode se tornar lugar. Com a apropriação, o individuo ou grupo social tanto assume determinado lugar como propriedade sua, quanto também entende que a ele pertence. Esse sentimento de pertença não se relaciona apenas à dimensão espacial: pertencer ao lugar significa também pertencer ao grupo. Como coloca Halbwachs (1990: 69), “há em cada época uma estreita relação entre os hábitos, o espírito de um grupo e os aspectos dos lugares onde ele vive.” Assim, a

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apropriação e a sensação de pertencimento estão intimamente relacionadas à formação da identidade, seja individual ou coletiva. Por basearem-se em valores que são construídos social e historicamente, o processo de apropriação e, por-tanto, da estruturação de identidade, são dinâmicos.

A declaração identitária não existe a priori, é sempre múltipla e inacabada, algo que busca se estruturar. Ela é construída em um processo que leva em conta as questões existentes no contexto social. A identidade de um grupo, em dado momento, pode mais tarde ser esquecida, pois outro contexto e outras relações estão em jogo. A identidade se estrutura a partir de elementos que se interrelac-ionam, como os valores culturais vigentes no grupo social e as relações com os lugares e a memória.

A memória é um dos elementos ligados à experiência que contribui para o processo de apropriação, pois permite a compreensão de como ocorreu a vi-vência naquele lugar. Não existe memória sem imaginário e não há imaginário sem memória dos indivíduos. Com relação à identidade, a memória é um fator fundamental para sua constituição, em função do sentimento de continuida-de e de pertencimento que confere ao individuo ou ao grupo. A memória cria identidade para o grupo, com o que é comum a ele. Um dos pontos que permite a identificação do sujeito com o grupo é um passado de acontecimentos e expe-riências em comum, que possa funcionar como elo, que fomente o sentimento de pertença. Essa memória coletiva tem um caráter dinâmico: quando o grupo muda ao longo do tempo, as lembranças também se transformam. Ela só sub-siste enquanto o grupo social existe; quando seus integrantes morrem, tem fim também a memória coletiva. As lembranças particulares só subsistem quando têm o respaldo das coletivas (POLLAK, 1992; HALBWACHS, 1990).

Assim como a identidade, a memória é uma construção social, é um traba-lho de organização que articula a lembrança e o esquecimento, sofrendo trans-formações constantes. A memória é seletiva, depende dos valores do indivíduo, do momento histórico e dos interesses do grupo social, que sempre remetem aos conflitos de definição das identidades (POLLAK, 1989). A memória coletiva é formada para dar sentido e estabelecer a maneira do individuo se relacionar com o mundo.

Em relação ao espaço, a memória é coletiva, pois a percepção do espaço resul-ta do que o olhar apreende, que é trabalhado no imaginário a partir de valores e conceitos estabelecidos pelo grupo. O lugar funciona como suporte da memória coletiva e da identidade social. Assim, quando os lugares são transformados ou destruídos, há o sentimento de estranheza e perda das referências identitárias.

O patrimônio cultural desempenha um papel fundamental na procura ou criação das novas estruturas identitárias. Ele ultrapassa o conceito de lugar, espaço físico que é apropriado por meio da experiência, para ser um “lugar de memória,” que apresenta dimensão material e funcional, mas principalmente simbólica (NORA, 1993). Esses lugares contêm elementos necessários ao sen-timento de continuidade dos indivíduos e grupos sociais e contribuem para a

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manutenção dos valores identitários. Sendo assim, ao mesmo tempo em que fornece suporte ao pertencimento, memória e identidades dos sujeitos e grupos, o lugar “também é fragmento, resto, ilusão cambaleante em um tempo de brevidades, responsável por unir passado e presente” (BRANDIM, 2005: 240).

3. REPRESENTAçõES SOcIAIS

Que valores as representações sociais atribuem ao seu patrimônio em estado de degradação? Como acorrem os processos de memória e identidade? Pode a recu-peração do patrimônio resgatar os fatos urbanos e reconstruir a memória da co-munidade? Com o propósito de investigar a dimensão subjetiva do patrimônio cultural, compreendida como uma construção social decorrente da atribuição de valores de grupos sociais e estando relacionada aos processos de apropriação, identidade e memória, considerou-se que a teoria das representações sociais for-necia o aporte conceitual mais adequado.

A percepção do mundo pelo indivíduo é feita embasando-se de um lado, pela estrutura social referente aos agentes sociais e às instituições; e, do outro, pela estrutura dos sistemas simbólicos existentes, resultantes de disputas anteriores (BOURDIEU, 2004). Assim, ao mesmo tempo em que a apreensão da realidade contribui para a produção simbólica do mundo, ela é influenciada pelo sistema preexistente. São as representações elaboradas continuamente pelos sujeitos sociais, que mediam esse processo de percepção da realidade. Aqui, entram em jogo os interesses daqueles que procuram impor sua visão de mundo. A realida-de, por ser percebida, é então representada de diversas maneiras, pois os objetos, entre eles, os espaços físicos, sempre contêm uma face passível de ser represen-tada e que, segundo (BOURDIEU, 2004: 140):

[...] enquanto objectos históricos estão sujeitos a variação no tempo, estando a sua signifi-

cação, na medida em que se acha ligada ao porvir, em suspenso ela própria, em termo de

dilação, expectante e, desse modo, relativamente indeterminada.

Nos recônditos da memória residem aspectos que a população de uma dada localidade reconhece como elementos próprios da sua história, da tipologia do espaço onde vive, das paisagens naturais ou construídas. A memória, do ponto de vista de Jaques Le Goff (1997: 138) estabelece um ‘vínculo’ entre as gerações humanas e o ‘tempo histórico que as acompanha.’ Tal vínculo, além de consti-tuir um ‘elo afetivo’ que possibilita aos cidadãos perceberem-se como ‘sujeitos da história,’ plenos de direitos e deveres, os torna cônscios dos embates sociais que envolvem a própria paisagem, os lugares onde vivem, os espaços de produ-ção e cultura. Sob essa ótica, Le Goff destaca que a “identidade cultural de um país, estado, cidade ou comunidade se faz com a memória individual e coletiva;” a partir do momento em que a sociedade se dispõe a preservar e divulgar os seus

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bens culturais dá-se início ao processo denominado pelo autor como a “construção do ethos cultural e de sua cidadania.” Sem dúvida, a cultura apreendida como for-mas de organização simbólica do gênero humano remete a um conjunto de valores, formações ideológicas e sistemas de significação que norteiam os estilos de vida das populações humanas no processo de assimilação e transformação da natureza.

São as representações sociais que expressam as diversas visões de mundo dos indivíduos, elas apresentam um caráter construtivo, criativo e autônomo, pois possibilitam a interpretação da realidade, estando intimamente ligadas às formas de expressão e produção do espaço pelo sujeito (BARBOSA, 2000). A re-presentação social do patrimônio irá traduzir-se através das percepções diferen-ciadas, resultantes das experiências das pessoas.

A teoria das representações sociais, ligada à área da Psicologia Social, foi desenvolvida inicialmente por Moscovici em sua obra “Representação social da psicanálise,” em 1961. Entende-se representação social como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2002: 32). São conhecimentos práticos que possibilitam a compreen-são do mundo e sua comunicação dentro do grupo social.

As representações, ao mesmo tempo em que são particulares a cada indiví-duo, estão diluídas na sociedade, na mídia, na literatura, na arte e nas diversas formas de expressão. Elas encontram-se, portanto, relacionadas com o espaço público, onde são fomentadas, desenvolvem-se e são expressas. Por meio delas, os atores sociais dão sentido ao mundo, o resssignificam, criam símbolos e esta-belecem sua identidade (JOVCHELOVITCH, 2003). A ligação entre representa-ções sociais e o imaginário é bastante forte, uma vez que são construídas a partir de memórias, fantasias e percepções individuais e do grupo. Nesse processo, o individuo reelabora o mundo em que vive, articulando sua percepção da realida-de, o que, por sua vez, balizará suas condutas (MOSCOVICI, 2005).

Enquanto permitem ao ser humano associar novos objetos ao sistema cultu-ral existente, as representações funcionam como forma de atribuição de valores e de interpretação da realidade. São, portanto, uma das fontes de informação que o sujeito social utiliza para determinar suas ações, seja de apropriação ou de distanciamento. O contexto em que são fomentadas e expressas as represen-tações sociais pode ser compreendido a partir de uma perspectiva temporal: há o tempo mais curto, da interação, e que são expressas as representações sociais; o tempo médio, em que ocorre o processo de socialização, com a inserção do sujeito no grupo; e o tempo mais longo em que é construída a memória social (SPINK, 2003). As representações, compreendidas como produtos sociais, são re-metidas às condições que as fomentaram, pois, o estudo da atribuição, ou não, dos valores patrimoniais a determinado espaço leva em conta, não só, os valores do tempo atual, como os sentidos dados ao lugar no passado.

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4. ASPEcTOS METOdOlógIcOS

A utilização da teoria das representações sociais (JODELET, 2002), implicou na adoção de procedimentos de pesquisa que privilegiaram a fala, o que foi obtido através da realização de entrevistas. Por meio delas, buscou-se detectar não ape-nas o conteúdo manifesto, mas também as oscilações, as hesitações e o contexto, que ajudaram a revelar o imaginário do indivíduo. A fim de capturar a fala dos atores sociais, foi procedida a pesquisa de campo, buscando adquirir informa-ções sobre o problema, retirando dados da realidade social onde o fenômeno in-vestigado ocorria. Selecionou-se a entrevista semiestrutrada como instrumen-to de pesquisa de campo, por possibilitar o resgate de informações produtivas. Nesse modelo, as perguntas são lançadas de forma direcionada, permitindo ao entrevistado flexibilidade para discorrer mais longamente sobre os pontos que julgar relevantes, enunciando seu modo de pensar ou de agir, seus sentimentos, crenças e valores.

Considerou-se que, sendo a pesquisa centrada na fala dos indivíduos, expres-sivas de sentidos, foi mais adequado utilizar a análise de conteúdo, por permitir a identificação de um padrão através da abordagem quantitativa e do tratamento qualitativo dos dados, o que possibilitou revelar a diversidade da comunidade.

A análise de conteúdo segundo Bardin (2004: 37), caracteriza-se como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos siste-máticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores quantitativos ou não.” Com o emprego desta técnica buscar-se-á estabelecer parâmetros mais objetivos, dado o caráter subjetivo do assunto, ressaltando temas mais recorren-tes, facilitando sua compreensão e adotando uma técnica mais rigorosa para que, frente à heterogeneidade do objeto, não se perca a finalidade da pesquisa.

4.1 PESqUISA dE cAMPO

Partindo-se de leituras referentes aos princípios teóricos, bem como de estudos empíricos que tratam da investigação das representações sociais, percebeu-se não existir um método próprio dessa teoria. Segundo Spink (2004) apesar da diversidade de procedimentos na pesquisa relativa às representações sociais, de-vem ser levados em conta: o fato do conhecimento ser um produto social, assim, seu estudo deve necessariamente remeter às condições sociais que o originaram e a questão de que as representações sociais são elaboradas na interação entre os indivíduos, fazendo com que esse diálogo deva ser investigado das diversas maneiras possíveis: por meio de questões direcionadas, de entrevistas abertas ou já materializadas em produções como livros, documentos, memórias, material iconográfico ou matérias de jornais e revistas.

Algumas diretrizes foram consideradas para definir a quantidade de indiví-duos a serem entrevistados. De acordo com o IBGE, aproximadamente 1% da população de um bairro pode ser considerada uma quantidade representativa, a

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variabilidade desse percentual poderá ser ampliada ou reduzida em decorrência da taxa de ocupação da área pesquisada. No caso em questão, como a população do distrito de Monte Recôncavo corresponde a aproximadamente 3.000 habitan-tes em 2012, foram entrevistadas 30 pessoas.

O grupo pesquisado obedeceu aos objetivos do estudo, de forma diversifica-da e exemplar da população em estudo, de modo a fornecer as informações ne-cessárias para a análise do fenômeno. As entrevistas, em forma de questionário foram realizadas com representantes de diversos segmentos da sociedade: mora-dores de residências próximas ao monumento; comerciantes locais; usuários do comércio e dos serviços locais; sujeitos sociais em posições chaves da sociedade (jornalistas, historiadores, professores, técnicos da prefeitura, representantes sociais e de comunidades religiosas; órgãos da esfera cultural).

4.2 RESUlTAdO E dIScUSSãO

Para a análise dos dados da pesquisa, utilizou-se o método de análise de conteú-do, buscando compreender a fala dos entrevistados que contemplasse os conte-údos manifesto e latente, presentes nos depoimentos.

Ao estabelecer as relações da proposição de Bardin (2004), inspirado em Mi-nayo (1999), para análise dos dados seguiu-se os seguintes passos: ordenação, classificação e análise final dos dados. Apesar da trajetória se apresentar de for-ma sequencial, aconteceu de maneira intercomplementar e dinâmica. Na aná-lise final do conteúdo do material coletado procurou-se desvendar o conteúdo latente, na perspectiva de compreender o objeto de estudo, sistematizando os seus aspectos.

O distrito de Monte Recôncavo conta com uma população distribuída ao longo do referido monte, tendo ao topo a sua igreja dominante. Trata-se de uma localidade de poucos recursos financeiros, onde a maioria vive com recursos de programas sociais do município de São Francisco do Conde; do trabalho na refi-naria Landulfo Alves, na Prefeitura ou de pequenos empregos.

A partir da análise e consolidação dos relatos colhidos dos integrantes da Co-munidade, seja por meio das entrevistas ou informalmente durante visitas da pes-quisadora, foi possível resgatar a sua trajetória histórica. Procurou-se seguir uma linha do tempo, comparando-se os relatos, tomando como guia os pontos de co-nhecimento geral e complementado com fatos específicos, de conhecimento ape-nas dos mais idosos. Alguns ainda relatam o trabalho nos engenhos por familia-res mais antigos, da escravidão; da vida naquele período; da devoção que têm por Nossa Senhora do Monte e a identidade que estabelecem com a igreja. Entende-se que as relações sociais estabelecidas pelos sujeitos que compõem uma comunida-de fundamentam-se nas manifestações, nos valores e símbolos de uma cultura, o acontecer dessas relações desenvolve-se no território da sede dessa comunidade.

A entrevista foi realizada com os sujeitos sociais da comunidade, em forma de questionário, onde responderam sobre o que entendiam sobre patrimônio, o

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envolvimento com o bem, a compreensão da necessidade de preservação e qual a destinação mais apropriada para o mesmo. No tratamento dos dados, foi obser-vado o interesse que estas pessoas tinham em mostrar a sua relação de identida-de com o monumento, relatando aspectos vivenciados por eles e por familiares durante muitos anos, nas festas paroquiais, nos casamentos, batizados e demais festividades que foram realizadas na igreja.

Constatou-se que a população continua com sentimento religioso profundo e que estabelece uma grande relação de comprometimento com o bem, apesar do aparecimento de outras religiões na cidade, isto não interferiu de forma im-portante no resultado obtido. Sendo questionados sobre uma nova reutilização do monumento, isto foi inaceitável pela maioria. A população guarda em outro espaço as imagens dos santos, onde são, também, realizadas as atividades da igreja e espera ansiosa que os órgãos competentes restaurem o seu patrimônio antes que se transforme em ruína, como um grande número de monumentos do Recôncavo da Bahia. cONSIdERAçõES fINAIS

A noção de patrimônio cultural encontra-se diretamente relacionada à memó-ria e ao sentido de identidade, conforme menciona a Constituição Brasileira de 1988, em seu Art. 216“[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos forma-dores da sociedade brasileira.” O reconhecimento do valor dos bens de caráter ma-terial é obtido por meio do Decreto de Tombamento.

O patrimônio cultural está vinculado, portanto, à lembrança e à memória — numa categoria basal na esfera das ações patrimonialistas, uma vez que os bens culturais são preservados em função dos sentidos que despertam e dos vínculos que mantêm com as identidades culturais. Coaduna-se com essas reflexões Men-donça (2004: 32), quando ressalta que “estas memórias nos fazem indivíduos e co-munidade, que resgatam uma parcela da nossa cidadania, que nos permitem aspirar a categoria de povo civilizado e que nos fazem refletir na nossa caminhada para o futuro.” O patrimônio se configura e se engendra mediante suas relações com a cultura e o meio. Sem dúvida, hoje se reconhece que a cultura é construída historicamen-te, de forma dinâmica e ininterrupta, alterando-se e ampliando seu cabedal de geração em geração, a partir do contato com saberes ou grupos distintos.

Desde a década de 70 a preservação de monumentos históricos passa a as-sociar-se ao conceito de reabilitação (mudança de função inicial), reutilização (atribuição de novos usos a espaços que tivessem perdido a função inicial) e re-vitalização (animação dos espaços transformados). Neste aspecto, pretendeu-se abordar nas pesquisas a recuperação desse patrimonio do Recôncavo da Bahia, Igreja de Nossa Senhora do Monte, levando em conta o passado histórico, a iden-tidade e a memória das comunidades com esse bem, visando uma perspectiva de

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intervenção no futuro, transformadora ou não, com relação às suas funcionali-dades originais, de acordo com os interesses dos seus atores sociais.

O monumento histórico apresenta grande complexidade para a elaboração de um projeto de intervenção, pois à conservação física aliam-se uma série de fatores que nela interferem e que determinam as suas diretrizes, principalmente por sua condição de patrimônio cultural, dotado de significados e representações.

A Igreja, embora em processo de arruinamento, sobrevive nas memórias e significações da comunidade que vive no seu entorno, sua história é a história de Monte Recôncavo e vice-versa, daí a identificação da população com a mesma e o interesse de todos pela sua preservação.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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UM PROJETO dE NOVAS TEcNOlOgIAS APlIcAdO NA cASA-MUSEU dR. ANASTácIO gONçAlVESNEW TEchNOlOgIES PROJEcT APPlIEd AT cASA-MUSEU

dR. ANASTácIO gONçAlVES

Mariana Mendes de MesquitaFaculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: O objetivo deste artigo é o de apresentar soluções que, de alguma for-ma, constituam um passo para a abertura de novos caminhos no domínio da aplicação de tecnologia inovadora aos Museus, nomeadamente através de apli-cações informáticas. Assim, foi efectuada uma aplicação web-based, dedicada à interpretação e ao estabelecimento de relações dinâmicas dentro da coleção de pintura portuguesa de uma instituição tomada como objeto de estudo, a Casa--Museu Dr. Anastácio Gonçalves.

Palavras-chave: Museu. Novas tecnologias. Divulgação Científica. Pintura. App.

Abstract: The purpose of this article is to present new solutions that in some way provide new paths for the techonology applied at the museum, mainly through mobile apps. Thus, was made a web-based app dedicated to the interpretation and to dynamic relations within the colection of portuguese painting of an institui-tion taken as an object of study, the Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves.

Keywords: Museum. New techonologies. Cientific dissemination. App.

INTROdUçãO

Num mundo contemporâneo, onde as tecnologias inovadoras se impõem, não apenas pela oferta de alternativas eficazes, mas também pela criação de novas necessidades, estimulando a apetência por produtos que conferem ao utiliza-dor conhecimento acrescido, percebemos que o recurso a tecnologias adequadas será um meio, ou o meio, onde o museu deverá intervir.

Cada vez mais, a sociedade em que estamos inseridos é determinada pela procura da rapidez que o mundo digital oferece. Esta transformação, que pare-ce irreversível, não pode deixar indiferentes todos aqueles que consideram as instituições museológicas essenciais à preservação da herança cultural, mas reconhecem que é necessário acompanhar a evolução tecnológica, de modo a que o público não desista de frequentar as instituições culturais que os mu-seus constituem. É indispensável proporcionar visitas atualizadas, agradá-veis, apelativas e inspiradoras e que, simultaneamente, se constituam como desafios interativos. Trata-se, afinal, de criar um novo elo entre o público e os museus, acreditando-se que a evolução tecnológica ditará também o destino

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destas instituições. Trata-se, ainda, de captar potenciais públicos, com priori-dades ordenadas para caminhos diferentes, públicos seduzidos pelo avanço da tecnologia digital.

O tema desenvolvido consiste na integração de tecnologia numa instituição cultural específica (Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves); o objeto de estudo consistiu, portanto, na inserção da mais actual tecnologia no domínio cultural, concebendo uma aplicação informática que permite complementar a visita a uma instituição museológica, e captar novos públicos. Trata-se de criar um di-álogo entre a obra e o visitante, o material e o virtual, através de uma aplicação web-based, dedicada à interpretação e ao estabelecimento de relações dinâmicas dentro da coleção da Casa-Museu.

Os objetivos deste estudo e do teste de aplicação foram uma tentativa de aproximar o museu do púbico, através do recurso a novas tecnologias, propor-cionando-lhe informações complementares sobre as peças que observa, através dos seus próprios dispositivos móveis, como é o caso dos smartphones, tablets, ipod touch, cujo uso se encontra em expansão.

Com o trabalho desenvolvido, pretende-se ainda compreender em que medi-da este modelo participativo pode ser um complemento da visita museal, bem como, se a sua integração num museu pode atrair um novo tipo de público, mais jovem ou ligado às novas tecnologias e, também, qual a sua relação com os pú-blicos que normalmente já frequentam a instituição.

1. MUSEUS E NOVAS TEcNOlOgIAS, UMA PERSPETIVA ATUAl

The museum is the sum not of the objects it contains but rather of the experiences it trig-gers. (apud SAMIS, 2008:3)

Começando com esta premissa, podemos completá-la dizendo que o museu deve agir como espaço de reflexão; deve ser um espaço que acolhe e protege as suas coleções e, a partir delas, controi um percurso museológico potenciador de experiências inovadoras.

Partindo da observação das transformações operadas nas sociedades con-temporâneas, propõe-se o entendimento do museu como um local onde o visi-tante se sinta motivado a entrar. Um local em que seja imediato o sentimento de pertença, um espaço que também possa fazer parte da rotina diária. Para atin-gir esse objetivo, será necessário destruir as barreiras pré-estabelecidas que os não-visitantes formaram da instituição museológica, tendo em atenção que os públicos atuais exigem abordagens singulares. (KELLY, 2001; PROCTOR, 2011)

Nesta linha, o museu precisa de quebrar as barreiras físicas, tem de agir como co-municador, expandir-se, não estar somente confinado ao seu espaço físico específico.

Pressupõe-se então que a viragem será realizada no sentido de os museus cada vez mais se apropriarem do espaço virtual, sabendo que cada vez mais hoje se anseia por experiências e informações em tempo real, a qualquer momento e em qualquer sítio.

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No entanto, a ligação do museu ao mundo digital não pode desprezar o seu espaço físico e institucional. Essa ligação torna-se numa extensão do que o museu oferece, no domínio material, para o domínio virtual e, assim, permite também que seja possível alcançar públicos que, de outra maneira, não teriam acesso às coleções e à informação que o museu deseja transmitir.

2. MUSEU cOMO ESPAçO dE APRENdIzAgEM

Fazendo um parêntese, para melhor se compreender a forma ideal para a criação de novas tecnologias aplicadas ao museu, tomamos o exemplo do processo de aprendizagem, que se considera essencial no tipo de experiências que o museu pode proporcionar.

Presume-se que a aprendizagem dentro do museu tenha que ver não apenas com o conteúdo disponibilizado mas, especialmente, com a interação possível entre a obra e o visitante. Sendo esta interação subjetiva, diferentes tipos de visi-tantes requerem diferentes tipos de estratégias de promoção de aprendizagem, sendo que esta é sempre um processo gradual e de relações com experiências anteriores. Devemos perceber aquilo que o visitante procura, e apresentar-lhe uma oferta variada, com diferentes graus de informação, que lhe proporcionem experiências de aprendizagem significativas.

Podemos ainda considerar que o modelo de aprendizagem poderá ser enten-dido nos seus diferentes contextos, o contexto pessoal, o sociocultural e o físico.

No contexto pessoal: considerando as motivações e expectativas dos visitantes, os seus conhecimentos e experiências anteriores, os seus interesses e as suas escolhas.

No contexto sociocultural: considerando a bagagem cultural, a mediação pelo seu grupo social e, por outros, fora do grupo.

No contexto físico: considerando a organização, a orientação no espaço, a ar-quitetura e factores envolventes, o design de exposições, programa e tecnologia, bem como o reforço da experiência museal além museu. (DIERKIN, 2008)

Tendo em conta estes aspectos, e retomando o que se referiu, relativamente ao facto de diferentes tipos de visitantes requererem diferentes tipos de estraté-gias de promoção da aprendizagem, podemos também considerar que a comu-nicação é uma das chaves da aprendizagem.

Neste sentido, podemos considerar três formas de comunicar: o simples envio de uma mensagem; o envio de uma mensagem, com recebimento de retorno; o estabe-lecimento de um diálogo. A forma mais compensadora é aquela em que se estabelece um diálogo entre quem envia a mensagem e quem a recebe e, assim, o transmissor e receptor vão invertendo os papéis, ao longo do seu discurso. É este último modelo que devemos aplicar para a comunicação entre museu e visitante, entendida a instituição como transmissora de conteúdo, a exposição como meio e, o visitante, como receptor e descodificador do conteúdo da mensagem, apropriando-se dela.

Por fim, compreender e interiorizar conteúdos é uma experiência muito mais demorada do que o tempo restrito da experiência proporcionada. Assim

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a experiência museal, para ser sigificativa, deverá perdurar para além do mo-mento em que decorreu, e constituir um conjunto total de emoções, sensações e vivências, aprendizagens experimentadas como resultado da interação com os objetos, discursos e espaços museológicos.

3. TEcNOlOgIA AdAPTAdA AO MUSEU

O constante lançamento de novos dispositivos tecnológicos, através dos quais podemos estar virtualmente em todo o lado, e a tentativa de algumas operadoras de distribuição de internet sem fios, pelo espaço público, e de fácil acesso, por dispositivos móveis, torna-nos evidente que o salto se irá fazer nesse sentido, de uma globalização de espaço imaterial, que nos irá unir numa mesma rede inter-pessoal. Desta forma, é esperado que as instituições culturais se preparem para este mesmo salto, e participem desta nova realidade virtual.

Museums are no longer a hands off experience. They are becoming more interactive with an audience that wants a physical experience that combines, artifacts, information and history. (BLACK, 2011)

O visitante quer ver-se envolvido na exposição e ser participante ativo, quer poder ter opinião, ter o poder de tomar decisões, tal como o faz fora do museu. Os novos média são uma ponte para essa situação, de participante ativo, dentro da visi-ta. Colocam a obra numa dimensão de integração no espaço e no tempo. Tornam a informação personalizada e acrescentam campos de pesquisa inerentes às próprias obras. Redirecionam o olhar do visitante, e fazem uma correlação entre o conteúdo disponibilizado e a obra selecionada, o espaço físico e o espaço tecnológico.

Devemos ter também em conta que quando se pensa em integrar os novos média numa experiência de visita museológica, deve pensar-se no que isso pro-voca no visitante; se a tecnologia não absorve totalmente a sua atenção, mas o move a ter uma experiência envolvente com o próprio espaço e, até, com os ou-tros visitantes. (THOMAS; MINTZ, 1998)

A tecnologia tem de ser adaptada aos diferentes espaços onde é inserida ou disponibilizada. Não deve impedir a envolvência do sujeito com o espaço, nem a sua envolvência com as obras, não se tornando nunca no foco principal; deve estar visível quando precisamos dela e, invisível, quando não precisamos.

3.1 APlIcAçõES MOBIlE

Desde o ano de 2008, tem havido um boom nas aplicações sobre museus e para museus, desenvolvidas para smartphones. E estas aplicações tornam o museu “cool and modern”, fornecem informações aos visitantes, sem se tornarem intrusivas para com o espaço expositivo; são também uma boa ferramenta de marketing. (FORBES, 2011:18)

Verifica-se que as aplicações para smartphone têm sido a última tendência na in-tegração de tecnologia no museu, analisando-se, seguidamente, as suas variantes.

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Aplicações device-native – são programadas consoante o seu Sistema Opera-tivo. Muitas destas aplicações são pagas, ocupam “espaço” no dispositivo, são grandes consumidores de bateria, precisam de uma monitorização por parte do utilizador (atualizações). Podem incluir animações, áudio e vídeo, texto e ima-gem, podem ou não necessitar de ligação wi-fi para o seu funcionamento.

Aplicações web-based – permitem ser acedidas por vários dispositivos, atra-vés dos seus browsers, operam de forma semelhante a um website comum. Não ocupam espaço no dispositivo, são gratuitas, não se perde tempo em atualiza-ções, como no caso das device-native, pois o processo é automático, necessitam sempre de conexão com a rede wireless, podem incluir animações áudio e vídeo, bem como texto e imagem, mas a sua fluidez dependerá da sua conexão.

A programação de uma aplicação mobile deve decorrer de um trabalho de equipa entre o curador, o designer e o programador. Deve consultar-se o que já existe, como funciona, qual a facilidade de acesso e compreensão da sua utili-zação. Deve ainda perceber-se rapidamente aquilo de que a instituição necessi-ta, como quer desenhar, o que quer incluir e desenvolver. A preocupação com pormenores só deve surgir depois de lançada a aplicação, porque em qualquer momento se podem fazer atualizações. Do it now. Do what you can. Do it better tomorrow. (apud. RODLEY, 2011)

4. ESTUdO dE cASO: cASA-MUSEU dR. ANASTácIO gONçAlVES

A Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves (CMAG) situa-se na zona do Saldanha, em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro nº. 6-8. Foi mandada construir pelo pintor naturalista José Malhoa, para habitação e local de trabalho. Ganhou o prémio Valmor em 1905, um ano depois de ter sido edificada. (FALCÃO, 2002:17) Em 1932 foi adquirida pelo médico-colecionador Dr. Anastácio Gonçalves. Anastá-cio Gonçalves legou, em testamento, ao Estado Português, o edifício e todo o seu recheio, indicando expressamente que era sua intenção manter um museu que constituísse um pólo de instrução cultural para o público português.

A Casa-Museu abriu ao público, pela primeira vez, em 1980. E, depois de in-tervenções, em 1996, reabriu, apresentando a coleção que podemos hoje visitar, sendo sua missão, preservar e divulgar as coleções que nos foram deixadas pelo Dr. Anastácio Gonçalves, função com que, simultaneamente, também homena-geia o colecionador.

4.1 TIPOlOgIA

A coleção Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves integra um vasto acervo de cer-ca de 2000 peças. Os núcleos centrais da sua coleção são a porcelana, o mobiliá-rio e a pintura portuguesa.

A coleção de pintura portuguesa abrange essencialmente obras que vão des-de o Romantismo até ao Naturalismo, de meados do séc XIX até inícios do séc.

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XX, refletindo os interesses do colecionador. Teve preferência por artistas do Grupo do Leão e, de um modo geral, pelos naturalistas portugueses, sendo estes os representados em maior número. Os temas mais frequentes nesta coleção são a pintura de paisagem, a pintura de costumes e, ainda, o retrato.

4.2 áREA dE INTERVENçãO

Neste projeto, a área escolhida foi a pintura portuguesa. O propósito inicial foi o de proporcionar ao visitante a escolha de informação acrescida sobre a coleção da instituição; o local de experimentação foi a CMAG.

Durante a investigação tornou-se claro que alguns autores não poderiam deixar de ser integrados, como foi o caso de Malhoa, nomeadamente pela sua ligação à história do espaço onde a coleção se encontra, e por ter retratado Anas-tácio Gonçalves, ou de Silva Porto, o pintor representado na coleção por maior número de obras, uma delas, tesouro nacional.

Estudadas as obras de pintura da Casa-Museu e todo o seu espaço museográ-fico, compreendi que também se tornava interessante disponibilizar o acesso aos estudos de algumas das obras selecionadas, embora não se encontrassem expos-tas. Integrou-se assim, no aplicativo informático, uma seleção de obras dos pin-tores: Tomás da Anunciação, Silva Porto, Marques de Oliveira, Alfredo Keil, José Malhoa, Columbano Bordalo Pinheiro, António Ramalho, João Vaz e Carlos Reis.

Fig. 1 - Logótipo

5. ESTUdO dE cASO: PROJETO dE NOVAS TEcNOlOgIAS

A criação de um novo aplicativo que satisfaça quer as necessidades da instituição, quer as dos utilizadores, deve ter em conta a forma como são utilizados, no quotidiano, os smartphones. A construção de qualquer aplicativo terá de processar-se tendo em conta a permanente interação design-conteúdo.

A opção por uma aplicação web-based teve em conta aspetos já anteriormen-te referidos, e que respeitam à circunstância de ser mais simples a sua adaptação a dispositivos móveis, visto que se encontra numa plataforma web, e também ao

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facto de aquela opção não implicar os recursos financeiros que seriam necessá-rios para concretizar uma aplicação de download.

5.1 NOME E lOgóTIPO

O nome escolhido para a aplicação resulta da ligação entre as palavras “informação” e “museu”, “informação no museu”, conjugação que resulta também na língua in-glesa – “information” , “museum” , “information at the museum”. A decomposição do nome informus – “infor” e “mus” – remete assim para a conjugação de dois vocá-bulos que evidenciam a finalidade deste projeto, o de fornecer ao visitante, em visita ao museu, informação acrescida, quer sobre as peças expostas quer sobre outras, do acervo e que, de algum modo, se relacionem com as primeiras.

A opção pela letra caligráfica surgiu como uma forma de quebrar a rigidez de um logótipo (Figura 1) criado com ferramentas informáticas, sugerindo o logótipo desenhado à mão, de forma livre e sem esforço, evocando também a usabilidade da aplicação. O envolvimento num quadrado aberto significa ainda a liberdade para sair de um espaço confinado, quase que numa analogia com a amplitude da informação assim conseguida, quebrando as barreiras físicas, am-pliando o museu, e permitindo a entrada noutra dimensão.

5.2 cARAcTERIzAçãO dA APlIcAçãO

É uma aplicação web-based, necessitando por isso de ligação à internet para ser acedida. Como a aplicação está disposta na internet, é necessário sabermos o nome da sua página, de forma a podermos aceder. Optou-se então pela encrip-tação do link dessas páginas web, em forma de código (Figura 2), que permite o acesso entre o meio físico e o meio virtual.

Fig. 2 - Qr-code.

Na página inicial da aplicação (igual para todas as obras) podemos distin-guir vários elementos que a caracterizam. Uma barra superior e uma barra inferior, com as mesmas dimensões. A barra superior tem inscritos o símbo-lo da Casa-Museu (borboleta), do lado esquerdo, e o nome completo, justifi-cado à direita.

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Toma-se como exemplo, nesta apresentação, a obra de José Malhoa – Retrato do Dr. Anastácio Gonçalves.

Na página ilustrada na Figura 3 distingue-se, entre as duas barras, uma ima-gem seccionada, representativa da obra, e um menu principal, constituído por oito botões. Os quatro primeiros, por ordem de relação direta com a obra, permi-tem aceder à sua legenda, à descrição, à localização no museu e a publicações à venda que complementem a visita. Os outros quatro botões remetem para outras relações, como a biografia do autor, obras sugeridas, museus que tenham, no seu acervo, obras do mesmo artista, e um espaço para serem efetuados comentários.

A imagem pode ser ampliada, através do botão exemplificado, que permite abrir a imagem na sua totalidade e, ainda, aumentá-la posteriormente, de modo a poderem observar-se alguns pormenores. O botão possibilita tanto o aumento da imagem como, quando aberta, o regresso ao tamanho seccionado, apresenta-do inicialmente.

Fig. 3 - Menu Inicial e ampliação de imagem.

O botão “Legenda” direciona-nos para uma página onde nos é indicado o nome do artista, com data de nascimento e morte, título da obra e respetiva data, suporte, dimensões e número de inventário. Tal como podemos ver na Figura 4, o texto é envolvido numa caixa, de forma a concentrar o olhar do utilizador. Também pode-mos observar uma alteração na barra superior: do lado direito, a cinza, identifica-se o símbolo da página selecionada; do lado esquerdo, apresentam-se dois botões: “vol-tar”, que permite regressar à página anterior, e “T+”, que permite aumentar a fonte do texto, para utilizadores com dificuldade em ler o tamanho considerado usual numa app. Estes comandos tiveram em consideração o posicionamento habitual (à esquerda), de forma a não criar confusões para o utilizador.

O botão “Descrição” conduz-nos para uma página que contém uma descri-ção essencialmente plástica da obra, adaptada do Catálogo de Pintura Portuguesa da Casa-Museu Anastácio Gonçalves, com a respetiva referência bibliográfica no final da página (Figura 5).

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Fig. 4 - Legenda

Fig. 5 - Descrição

O botão “Localização” direciona-nos para uma página que nos indica onde está situada a obra, no percurso expositivo da Casa-Museu. São apresentadas duas plantas, referentes aos pisos 1 e 0, legendadas por identificação das diferen-tes salas de exposição, e ainda outras informações pertinentes. As cores adotadas foram mediadas pelas cores apresentadas maioritariamente nos dois espaços, correspondendo a cor azul ao espaço da exposição temporária e, a cor carmim, ao espaço da exposição permanente (Figura 6).

O botão “Publicações” dirige-nos para uma página que nos apresenta biblio-grafia para venda na loja da Casa-Museu, relevante para complementar a visita museal. A bibliografia está agrupada em: informação referente à Casa-Museu, como o roteiro, por exemplo; catálogos da exposição permanente, de pintura portuguesa, de porcelana e de mobiliário; catálogo da exposição temporária; in-fantil; e, ainda, outras publicações relacionadas com a temática naturalista. No caso das obras de Columbano, é também destacada uma publicação referente ao catálogo de uma exposição retrospetiva (Figura 7).

Fig. 6 - Localização

Fig. 7 - Descrição

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O botão “Biografia” direciona-nos para uma página com dados organizados cronologicamente, referentes ao percurso artístico de cada pintor. São destacados no texto, a azul, os anos em que as obras analisadas na aplicação foram pintadas, de forma a compreender-se em que fase do percurso artístico do autor foram efe-tuadas. É ainda apresentada uma imagem da sua assinatura e, em alguns casos, é proporcionado o acesso a informação bibliográfica, sobre esses mesmos artistas, que pode ser consultada na biblioteca da Casa-Museu (Figura 8).

Fig. 8 - Biografia

O botão “Sugestões” direciona-nos para uma página onde se conduz o olhar do visitante para outras obras, relacionadas com aquela que selecionou. Essa re-lação decorre da autoria, da temática, da plasticidade, ou ainda de associações por complementaridade ou por contraste. Em algumas situações, a obra sugeri-da pode não constar da coleção permanente, como é o caso dos estudos. As suges-tões são dispostas na página, através de uma secção da obra sugerida, com a res-petiva legenda sumária, sendo possível premir a imagem correspondente a cada sugestão, e ser direcionado para a página web da obra selecionada, permitindo-se assim a realização de uma visita continuada, através destas relações (Figura 9).

Fig. 9 - Sugestões

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O botão “Museus” direciona-nos para uma página que nos indica quais os museus em Portugal que têm, no seu acervo, obras dos mesmos autores. As referências a museus estão organizadas pelas grandes cidades, Lisboa e Por-to, mas também são referidas outras localidades. Desta forma, pretende-se que a visita seja continuada para além da Casa-Museu, divulgando as outras insti-tuições, despertando o interesse para uma possível visita. Nesta página é ainda possível saber a localização do museu, através do Google Maps e, ainda, poder navegar para os seus websites, páginas facebook e blogs.

Como se vê na Figura 10, estas informações estão dispostas através de bo-tões que se assemelham aos botões do menu inicial, diferindo nos seus símbo-los, tomando como opção a escolha dos símbolos próprios de cada plataforma, e adotando as suas cores, de forma a que o utilizador identifique rapidamente quais as opções disponíveis. É ainda possível aceder ao contacto do museu, o que se verifica premindo o seu número de telefone, que estabelece a ligação com o museu selecionado.

Por fim, o botão “Comentar” conduz-nos para uma página que oferece ao vi-sitante a possibilidade de comentar livremente a obra, e também poder ver os comentários feitos por outros utilizadores. Os comentários são anónimos, pre-tendendo-se, com essa opção, simplificar a forma como o utilizador se expressa. Os comentários são enviados não só para a página de comentários, como para o e-mail da aplicação, sendo assim possível seguir estes comentários e saber a reação dos utilizadores (Figura 11).

Fig. 10 - Museus

Fig.11- Comentar

Para quem quiser saber mais informações, pode ainda fazê-lo através do bo-

tão na barra inferior “Casa-Museu”, que a partir de um submenu (Figura 12) nos apresenta a possibilidade de obter mais informações sobre o edifício, sobre a co-leção, sobre o colecionador, e ainda outras informações respectivas à localização e horários. Pode ainda recorrer à “Ajuda” (Figura 13) que explica todas as poten-cialidades da aplicação e ainda permite enviar mensagens para o e-mail informus, caso se necessite.

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Fig 12 - Menu Casa-Museu e página Coleção

Fig. 13 - Ajuda

Para melhor avaliar as potencialidades da app informus, e no sentido de re-forçar a interação com os visitantes, foi elaborado um questionário, inserido na própria aplicação, e destinado a ser preenchido de forma anónima. A aplicação possibilita também ao utilizador o envio imediato das respostas, após a sua con-clusão, por e-mail. A avaliação das potencialidades do aplicativo, torna relevan-te, para além do teste de funcionamento, o conhecimento do grau de satisfação do público, abrindo caminhos para futuras intervenções.

Estas funcionalidades foram pensadas no sentido de oferecerem ao visitan-te percursos de enriquecimento cultural que constituíssem, simultaneamente, experiências de interação gratificantes, semelhantes às práticas de comunicação inovadoras, próprias do mundo contemporâneo.

cONSIdERAçõES fINAIS

A investigação inicialmente realizada constituiu fundamento para a prossecu-ção do objetivo de criação de um aplicativo tecnológico inovador, para aplicação em museu, projeto que me propus desenvolver, não apenas no plano da conce-ção, mas também no plano da execução material. Esta intenção conduziu à pro-cura de uma instituição museológica para o desenvolvimento e experimentação do aplicativo, o que veio a concretizar-se com a disponibilidade da Casa-Museu

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Dr. Anastácio Gonçalves para acolher o projeto. Tendo concebido o aplicativo, o seu design, e selecionado os conteúdos a introduzir, foi efectuada uma pareceria para a programação informática.

Após a experimentação, considera-se ainda possível, a ampliação das funcio-nalidades do aplicativo, a nível da programação informática, do design funcio-nal e no domínio dos conteúdos. A este propósito, seriam opções possíveis, as que se indicam.

· Simplificar o acesso entre páginas.· Sintetizar algumas informações, reduzindo a dimensão dos textos.· Completar, através da apresentação de versões noutras línguas.· fetuar alterações cromáticas, de forma a poder diferenciar diferentes institui-

ções, enquanto se navega nas páginas.· Articular com diversos museus portugueses, construindo percursos expositi-

vos entre museus (ou ainda museus estrangeiros).· Partilhar conteúdos da aplicação nas redes sociais. · Criar uma loja online, onde seja possível comprar as publicações sugeridas

ou outros objetos/lembranças relacionadas com as temáticas em análise. · Referenciar localizações (do visitante e das obras) em planta tridimensional,

pela integração de GPS. · Criar um website próprio de gestão dos vários museus e acervos disponíveis

para consulta.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· BLACK, Graham. The Engaging Museum. London & New Yourk: Routledge, 2005

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lA ENSEñANzA dEl PATRIMONIO EN lA fORMAcIóN INcIAl dEl PROfESORAdO. desde una perspectiva histórico-artística a una didáctica del patrimonio cultural integrado.hERITAgE TEAchINg IN TEAchER TRAININg

from an art-historical perspective to a didactic of cultural integrated heritage.

Olga Duarte PiñaFacultad de Ciencias de la Educación, Universidad de Sevilla.

Resumen: La investigación sobre la enseñanza del patrimonio histórico-artísti-co permite definir el conocimiento profesional sobre el patrimonio, el modelo didáctico que desarrollan los docentes y el conocimiento escolar que aprenden los alumnos. A partir de estas tres dimensiones de análisis e intervención, en la Facultad de Ciencias de la Educación de la Universidad de Sevilla, se ha defini-do una propuesta de formación inicial para maestros de educación Primaria y profesores de enseñanza Secundaria que persigue un modelo de enseñanza del patrimonio cultural y amplía en el alumnado sus capacidades como ciudadano.

Palabras chave: Formación inicial del profesorado. Conocimiento profesional deseable.

Conocimiento del patrimonio cultural. Modelo didáctico de investigación en la escuela.

Educación ciudadana.

Abstract: Research about the teaching of historical and artistic heritage makes possible to define professional knowledge on heritage, the didactic model devel-oped by teachers and school knowledge students learn. From these three dimen-sions of analysis and intervention in the Faculty of Education at University of Se-ville, has been defined a proposed for initial training of primary school teachers and secondary school teachers This proposal aims to achieve a particular teaching model of cultural heritage and improve the competence of students as citizens.

Key words: Teacher training. Professional knowledge desirable. Knowledge of cultural he-

ritage. Didactic model “research in school”. Citizenship education.

cONSIdERAcIONES PREVIAS

La formación sobre el patrimonio en la enseñanza no universitaria española se ha venido realizando a través de la asignatura de Historia del Arte1 estructurada en torno al estudio de las obras catalogadas como artísticas en función de su his-toricidad. En esta formulación de la asignatura no ha tenido cabida el concepto de patrimonio vinculado a la identidad subjetiva y colectiva, ni el concepto de ciudadanía, como socialización de los individuos, para asumir y preservar el pa-trimonio que caracteriza a una comunidad o una cultura. Así, la Historia del Arte se desarrolla en dos niveles: el descriptivo o el interpretativo de la obra de arte,

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y no aborda un nivel procesual donde estarían la perspectiva crítica del conoci-miento y la función socializadora2 del aprendizaje patrimonial. La asignatura se programa con carácter universal, es decir, recorre las principales creaciones ar-tísticas de las civilizaciones y no atiende a la historia artística particular ni a las problemáticas patrimoniales en los entornos inmediatos del alumnado. En este sentido, aunque su estudio genere una cierta pasión por conocer el arte, el resul-tado del aprendizaje es contemplativo o admirativo y puede definirse circuns-cribiéndolo a dos posibles acepciones del término pasión: «4. Estado pasivo del sujeto, (…) 6. Inclinación o preferencia muy vivas de alguien a otra persona [artis-ta].» (Diccionario de la Real Academia de la Lengua, Vigésima Segunda edición)

En el currículo actual, la Historia del Arte aparece en el bachillerato (16-18 años) de Humanidades y Ciencias Sociales como asignatura optativa y también es opcional en la modalidad de Artes, según prescribe la normativa —Orden de 5 de agosto de 2008 por la que se desarrolla el currículo correspondiente al Bachillerato en Andalucía—, aunque en la práctica tiene un carácter de asigna-tura obligatoria. Al carácter optativo de la asignatura se une el formato dado en las pruebas de acceso a la universidad (PAU), que han de superar los alumnos cuando terminan el bachillerato y quieren hacer estudios superiores, éste ha ido relegando la importancia de la Historia del Arte al dejar de ser una asig-natura de obligada evaluación en tales pruebas. En consecuencia, se ha visto perjudicado su estatus y consideración entre profesores y alumnos.

En la enseñanza Primaria (6-12 años) y Secundaria Obligatorias (12-16 años) sólo en las áreas de Conocimiento del Medio Natural, Social y Cultural o en la de Ciencias Sociales, Geografía e Historia, respectivamente, aparecen frag-mentos de la Historia del Arte a modo de ilustraciones en los libros de texto —aunque dependiendo de la editorial sea tratado como un tema específico al final de la edición y diferenciado según el patrimonio histórico-artístico de la comunidad autónoma para la que se edite el manual, incluso complementado con el patrimonio natural—. En ocasiones, es objeto de visitas extraescolares aunque la preparación de la salida del aula, la mayoría de las veces, no se hace coincidir con los contenidos de la programación de aula. «Salidas fuera del aula que no tienen nada que ver con lo expuesto en clase pero que atraen a profeso-res y alumnos que con un aire festivo y de ocio visitan ciudades, monumentos, museos, exposiciones, etc.» (Ávila, 2003: 36). En el ámbito de la educación for-mal, es el libro de texto el principal recurso educativo de los docentes y esta guía, elaborada a partir de los contenidos recogidos en los Decretos de enseñan-za, elude cualquier interpelación, interpretación y valoración del patrimonio. Finalmente, habría que decir que, en los programas de Educación Primaria y Secundaria, no se encuentran referencias explícitas al patrimonio en aquellas asignaturas susceptibles de tratarlo, a saber: Lengua y Literatura, Educación Artística, Música, Biología y Geología, Tecnología, Artes Plásticas o Educa-ción para la Ciudadanía. En contraposición, han tomado ventaja los ámbitos de la educación no formal, catalizadores de la conservación y caracterización

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patrimonial según su tipología natural, histórico- artística, documental, etno-lógica o tecnológica. La difusión del patrimonio que realizan y con la que los ciudadanos pueden tener más conexión o cercanía a través de museos, fundacio-nes, centros de interpretación o asociaciones, facilita el conocimiento del mismo pero no desde una perspectiva sistémica sino constreñida al objeto preciso que se muestra. En este ámbito, la intención no es formativa sino informativa, las con-ceptualizaciones no trascienden como forma de conocimiento ni tienen tanta pre-sencia como en la educación formal y, aunque se consigue una cierta empatía del visitante, éste no suscita una actitud crítica. Por esta vía, el patrimonio ha llegado a convertirse en un objeto de consumo en momentos de ocio, según modas y efecto publicitario.

Tomando la discusión de los resultados en el estudio de Estepa, Ávila, Fer-

nández (2007: 82), la diferencia entre los gestores del patrimonio y los profeso-res que lo enseñan estriba en que entre el profesorado «no sólo se habla de un legado del pasado sino también del presente y, asimismo, de su utilidad para comprender tanto éste como aquél de lo que inferimos una preocupación edu-cativa y práctica que no observamos en reciprocidad entre los gestores.»

Antes de exponer los modelos didácticos de referencia para la enseñanza del patrimonio histórico-artístico, hemos realizado una aproximación a las primeras fases de la formación en patrimonio que se adquieren, en las etapas Primaria y Secundaria de la instrucción o en el ámbito no formal porque, a par-tir de este aprendizaje y percepciones, el alumnado, que luego será formado como maestro o profesor en la Facultad de Ciencias de la Educación, configura su conocimiento escolar, define el modelo de profesor y decide los contenidos de la enseñanza patrimonial, concepciones originarias que aparecen en la pri-mera fase de construcción de una didáctica del patrimonio cultural, tal como se trabaja en la formación inicial del docente en la Facultad de Ciencias de la Educación de la Universidad de Sevilla.

1. ENSEñANzA dEl PATRIMONIO EN El áMBITO dE lA fORMAcIóN

INIcIAl dE lOS dOcENTES

1.1. lOS MOdElOS dIdácTIcOS dE REfERENcIA

Siguiendo el análisis de García Pérez (2000)3 se pueden categorizar tres modelos didácticos en el sistema escolar en España. Estos son el modelo tradicional, el tecnológico y el espontaneísta o activista; modelos que no surgen de manera simultánea sino que, en cierta medida, se suceden y llegan a coexistir, inclu-so constituir formas didácticas a modo de transiciones o reformulaciones de los tres referentes arquetípicos. No obstante, es el modelo tradicional el que ha perdurado, a pesar de los intentos por superarlo, quedando como referente válido y, supuestamente, fiable del sostenimiento de un proceso de enseñanza y aprendizaje convencional. Es de interés caracterizar los tres modelos4 para

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deducir, en el siguiente apartado, los que se han venido aplicando en la ense-ñanza del patrimonio histórico-artístico.

El modelo didáctico tradicional contribuye a la formación del alumnado me-diante la trasmisión de los contenidos considerados representativos de la cultu-ra vigente y la esencia de la instrucción entendida como acto de conocimiento y desarrollo intelectual del individuo. Estos contenidos escolares resultan de una traslación sintetizada de las disciplinas generadas en el ámbito universitario, y reorganizadas con un formato exclusivo para el ámbito escolar. El docente sólo tiene como obligación dominar los contenidos de las disciplinas en las que ha sido formado, para poder adaptarlos a la estructura de las asignaturas mediante una exposición magistral que sigue una lógica académica, lineal y única. A los alumnos que atienden a las explicaciones del profesor se les exige escuchar, tomar apuntes o dictado y realizar las actividades de comprensión y definición de los conceptos. El libro de texto se convierte en un recurso didáctico bási-co y viene a ilustrar los conocimientos trasmitidos o a ampliarlos. El sistema de evaluación pretende medir el aprendizaje de los contenidos que el docente ha expuesto en las sesiones de clase y el aprobado depende de la capacidad del alumno de reproducirlos en el examen; se exige un ejercicio memoria y, rara vez, de análisis o interpretación. Este modelo no tiene como finalidad educati-va la trascendencia social de los aprendizajes ni el desarrollo de las capacidades cívicas de los individuos, sólo atiende al conjunto de los conocimientos disci-plinares trasmitidos en su nivel descriptivo, sin interrelaciones ni gradaciones.

El modelo didáctico tecnológico —aunque nunca llegó a consolidarse en España— se introduce como intento de racionalizar el modelo anterior, de pro-gramar el aprendizaje y cuantificarlo. Ahora el periodo de escolarización del individuo es considerado como un periodo de adquisición de cultura, en el sen-tido de conocimiento para el entendimiento, también se incorporan determi-nadas corrientes científico-sociales (la psicología, la pedagogía o la sociología) en el diseño de las asignaturas escolares: «contenidos preparados por expertos para ser utilizados por los profesores» (García Pérez, 2000); además, en el diseño de las asignaturas se incluyen adaptaciones escolares de los métodos de inves-tigación científica para que el alumnado los ponga en práctica. El aprendizaje combina las explicaciones teóricas con los ejercicios prácticos, confiando que estos ejercicios de simulación científica conlleven aproximaciones a los méto-dos de las disciplinas. Esto último pretende la motivación de los alumnos, en tanto se ejercitan en la práctica y conocen determinados entornos científicos y sociales y, en cierta medida, consigue establecer contactos puntuales con la rea-lidad aunque sin salir de la escuela. El alumnado puede tener una percepción de la ciudadanía, a través del acercamiento a los quehaceres de los científicos, pero no hay planteamientos específicos que favorezcan la traslación a su coti-dianeidad o al ejercicio personal de la misma. En definitiva, y a diferencia del modelo tradicional, el aprendizaje responde a la consecución de una serie de objetivos, marcados previamente, que orientan las actividades programadas y

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un sistema de evaluación, con el que se intenta medir el nivel alcanzado por los alumnos desde una perspectiva cuantitativa.

El modelo espontaneísta deriva de una crítica ideológica al aprendizaje tradi-cional convirtiendo al alumnado en protagonista del aprendizaje. Se le impele a descubrir por sí mismo la realidad y a potenciar sus capacidades mientras apren-de y, que esas capacidades ejercitadas, le ayuden luego a desenvolverse en la socie-dad en la que vive. En este sentido se enseña a saber hacer y a participar pero no se fomenta, en el alumnado, un pensamiento reflexivo. Los contenidos son tomados del entorno que rodea al alumnado porque en ahí se alojan, supuestamente, sus intereses y motivaciones. Para el aprendizaje, el profesor predispone a los alum-nos hacia el descubrimiento espontáneo de los contenidos que éste selecciona y que conforman las temáticas, descubrimiento que no suele producirse si se trata de contenidos muy específicos o complejos porque la capacidad del alumnado, si no está guiado por el profesor, no alcanza a desvelarlos, aunque sí descubran aquellos contenidos presentados en situaciones concretas y sencillas. Para el pro-fesor tiene más importancia el proceder del alumnado para descubrir que el des-cubrimiento mismo. Por ello, se programa una gran cantidad de actividades, más las que puedan ir surgiendo en la propia dinámica de aprendizaje, que es muy abierta. Se le da preeminencia a la acción del alumno, a la observación, la manipu-lación, la recogida de datos, la cooperación, la creatividad y todas aquellas habili-dades y aptitudes que incentiven su aprendizaje. Lo que se evalúa es el desarrollo y adquisición de habilidades y actitudes quedando los conceptos en un segundo plano de la formación. El alumnado aprende que forma parte de una sociedad, de la que su profesor extrae elementos que le seducen y motivan. Sin embargo, no se secuencian las actividades ni aparece explicitada una conexión entre los descubri-mientos y la formación del alumno como ciudadano, por lo que para éste no llega a ser evidente la significación que puede tener su participación en la sociedad.

Explicados los tres modelos didácticos de referencia, en la educación no universitaria española, pasamos a describir cómo estos modelos se desarrollan en la enseñanza del patrimonio histórico-artístico.

1.2 lOS MOdElOS dIdácTIcOS EN lA ENSEñANzA

dEl PATRIMONIO hISTóRIcO-ARTíSTIcO

Siguiendo el estudio de la profesora Ávila Ruiz (2001: 20), «el conocimiento didáctico y curricular general de los profesores de Historia del Arte se adscri-be a dos modelos didácticos: un modelo predominante de tipo tradicional-tec-nológico y un modelo minoritario de carácter más innovador, proyectados en las dos dimensiones curriculares que caracterizan este conocimiento, el qué y el cómo enseñar.» En el modelo tradicional-tecnológico el profesor organiza la trasmisión de los conocimientos dividiéndolos según las épocas, estilos y autores, a través de una secuencia cronológica, artística y biográfica sin inte-rrelaciones o recurrencias, salvo entre lo coetáneo; se sigue el planteamiento

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curricular prescrito, que es conceptual, y «no reconocen el carácter sistémico de la realidad histórico-artística» (Ávila Ruiz, 2001: 19). Por tanto, predomina una visión descriptiva, de análisis formal de la obra de arte; lineal, con escasa o ninguna acción paralela o secundaria, y sin interpretación del contexto his-tórico. La compresión de los conceptos no requiere procedimientos especiales, son principalmente proyecciones de imágenes y de manera extraordinaria se realizan visitas a museos o yacimientos arqueológicos. Los valores y actitudes no quedan explicitados por el profesor y es el alumno quien debe inferirlos. Así, la participación de éste se reduce a escuchar las explicaciones y observar las obras de arte, seleccionadas por el profesor (arquitectura, pintura y escultura), o los espacios visitados. La evaluación pasa por la medición de los aprendizajes a través de ejercicios de memorización y asociación, eludiéndose la expresión de ideas, que pudiera concebir el alumnado, con el estudio del patrimonio.

Este primer nivel de compresión de la historia del Arte hemos de situarlo en el nivel I de la hipótesis de progresión del desarrollo profesional respecto a la enseñanza del patrimonio que formula Cuenca (2003). El patrimonio histórico-artístico se selecciona por el profesor en función de los criterios de excepcio-nalidad, grandiosidad y prestigio; empero «no se muestra interés didáctico del patrimonio» y salvo en la asignatura de Historia del Arte en bachillerato, en las etapas Primaria y Secundaria, su incorporación en el currículo es poco sig-nificativa, llegando a los libros de textos como ilustraciones o ejemplos. En los contenidos predomina la información de tipo conceptual pretendiéndose que el alumno genere hacia el patrimonio histórico-artístico actitudes de respeto y valoración pero no de concienciación o identificación. En el proceso de ense-ñanza y aprendizaje tiene más relevancia formativa la identificación con los artistas, los estilos del arte y los territorios donde se ubican, con una intención culturalista pero no socializadora.

La profesora Ávila Ruiz (2001: 19) caracteriza un segundo modelo, «inte-grado de forma minoritaria por aquellos profesores más comprometidos con los cambios sociales». En este tratamiento del patrimonio histórico-artístico se exponen los elementos relacionados con su contexto histórico-sociológico. La finalidad que promueve esta manera de enseñar es combinar la instrucción con su vertiente social a fin de que el alumnado entienda el objeto de arte como transformador de la realidad. El modelo se sitúa en el nivel II de la hipótesis general de desarrollo profesional elaborada por Cuenca (2003), y esto significa que la concepción del patrimonio comprende los criterios estéticos e históri-cos, incluyendo las aportaciones de disciplinas afines que son añadidas y no integradas. A través de la metodología se activa la participación del alumnado en tanto que se contemplan los contenidos procedimentales cuya incorpora-ción dinamiza el aprendizaje y promueve un acercamiento a la realidad. El es-tudio del patrimonio a partir de este modelo tiene como finalidad la adquisi-ción de cultura y promover el compromiso del alumno hacia su conservación. Como no se le ofrece la posibilidad de expresar sus ideas y opiniones ni antes ni

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después de los aprendizajes, simplemente que comprenda todo lo trasmitido, el aprendizaje no desarrolla actitudes críticas y cívicas.

El modelo espontaneísta puede asimilarse a las metodologías aplicadas en el ámbito no formal de difusión del patrimonio. El visitante o turista se convierte en el protagonista del fenómeno patrimonial, que es presentado de manera cercana y tangible, articulándose toda una serie de actividades que descubra por propio im-pulso aquello que se le ofrece. Para conocer tiene que hacer y estar dispuesto, de ahí la importancia otorgada a los procedimientos y actitudes: leer, seguir un recorrido, realizar las actividades programadas y, en definitiva, participar. El guía se convier-te en coordinador y líder y el visitante en espectador y actor pero concluida la visita cultural no se produce transformación del sujeto, que regresa a su destino habien-do tenido una buena experiencia en un lugar al que probablemente no volverá.

Con este apartado hemos pretendido fundamentar la proposición de que los modelos didácticos son una herramienta para el análisis y la intervención en la realidad educativa (García Pérez, 2000). Por ello, acabamos de describir y analizar los modelos didácticos en la enseñanza del patrimonio histórico-artís-tico para justificar el modelo didáctico alternativo, que se expone a continua-ción como intento de mejora, en la formación de los maestros y profesores y en el conocimiento escolar sobre el patrimonio. 2. hAcIA UN MOdElO dE fORMAcIóN dOcENTE dESEABlE:

lA dIdácTIcA dEl PATRIMONIO cUlTURAl

La búsqueda de un modelo didáctico alternativo en la enseñanza del patrimo-nio histórico-artístico se ha desarrollado, sobre todo, en el seno de las didácticas específicas para la formación inicial de maestros y profesores. En la Universidad de Sevilla y en el departamento de Didáctica de las Ciencias Experimentales y Sociales, el Proyecto Curricular IRES (Investigación y Renovación Escolar)5 ha concebido, formulado y está aplicando un modelo de formación docente desea-ble con un programa que pone énfasis en el análisis, la reflexión y la crítica a la cultura escolar tradicional dominante, con la intención de mejorar el conoci-miento profesional y escolar, y que «se orienta desde el principio de investigación, como eje estructurador de toda actividad formativa» (ÁVILA RUIZ, 2003: 94).

Este modelo didáctico de referencia es el modelo de investigación en la escuela (Grupo de Investigación en la Escuela, 1991) que define el aprendizaje como un proceso de «enriquecimiento de las ideas de los alumnos» (García Pérez, 2000) cuya finalidad principal es que el alumno vaya construyendo un siste-ma de ideas comprensivo y complejo de la realidad que le rodea; este sistema de ideas ha de constituirse en soporte y filtro para la comprensión de la socie-dad y para su formación crítica como ciudadano. En el desarrollo del proceso de formación docente es sustancial trabajar el paradigma del conocimiento escolar que se propone para el alumnado. Queda apartada la forma tradicional de enten-derlo como una suma de los contenidos académicos, expresada en los modelos

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didácticos comentados, y se concibe a partir de la integración de cuatro fuentes o referentes: los contenidos científicos relevantes, que son los núcleos del apren-dizaje; las ideas que tienen los alumnos sobre las temáticas que se van a enseñar, ideas que progresan en su interacción con los nuevos contenidos propuestos; los problemas sociales y ambientales, que dan cuerpo de conocimiento a la realidad cotidiana del alumnado y han de relacionarse con los contenidos científicos y los prescritos en la normativa educativa; y los denominados conocimientos me-tadisciplinares, que otorgan una visión de conjunto, de enlace con otras fuentes de conocimiento disciplinar, y orientan la expresión del pensamiento del pro-fesorado y del alumnado, su cosmovisión o manera de interpretar el mundo. La construcción del conocimiento escolar, considerando estas fuentes, implica «ir adoptando significados cada vez más complejos, desde los que estarían más próximos a los sistemas de ideas de los alumnos hasta los que se consideran como meta deseable para ser alcanzada mediante los procesos de enseñanza» (García Pérez, 2000). Este recorrido del aprendizaje puede ser interpretado —y, por tanto, programado— tomando como referencia una hipótesis general de progresión en la construcción del conocimiento (Grupo Investigación en la Escue-la, 1991), de forma que, al enseñar, podemos ir proponiendo, para ser aprendi-das, formulaciones del conocimiento cada vez más complejas, que tenderían a aproximarse al conocimiento que es considerado deseable para la educación del alumnado. Esta concepción del conocimiento y de su proceso de construc-ción en contextos de formación, desde la perspectiva del IRES, resulta válida para aplicarla tanto al conocimiento escolar, en los contextos escolares, como al conocimiento profesional de los docentes, en los contextos de formación inicial y de formación permanente.

El alumnado que llega a la Facultad de Ciencias de la Educación para for-marse en la didáctica del patrimonio cultural trae un bagaje de conocimiento escolar en patrimonio histórico-artístico que ha recibido en etapas de forma-ción anteriores —descritas más arriba—, a partir del cual se podría inferir el modelo de enseñanza seguido por sus profesores. Ello se constata en sus con-cepciones iniciales sobre la enseñanza del patrimonio en las que predomina un concepto del patrimonio monumentalista y estético vinculado a una tipología patrimonial histórico-artística que no ha sido integrada en el currículo escolar desde una perspectiva holística sino más bien como ilustraciones de los apren-dizaje de la Historia, la Literatura o la Música y, en el caso de la asignatura de Historia del Arte, como conjunto de conocimientos especializados en torno a la obra de Arte, los artistas y su contexto histórico. En ninguno de estos aprendi-zajes se tiene en cuenta la formación para la preservación del patrimonio, sino que se mantiene una finalidad cultural o culturalista. No obstante, hemos de hacer una excepción con los alumnos que ya han realizado estudios universita-rios en disciplinas afines al patrimonio (Arquitectura, Turismo o Restauración) y que, cursando el Máster de Formación de Profesorado de Secundaria, aportan una perspectiva práctica del patrimonio centrada en el conocimiento de las

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técnicas necesarias para la difusión y conservación, lo que, en todo caso, resul-ta insuficiente para la construcción de una didáctica patrimonial integrada y una didáctica patrimonial socializadora. En coherencia con esta situación de partida, consideramos que la formación inicial de los docentes hay que desarro-llarla siguiendo la hipótesis general de progresión en la construcción del cono-cimiento profesional y patrimonial no sólo para el cambio de modelo didáctico sino, también, para contribuir a la función socializadora del patrimonio que implique a los futuros maestros y profesores con la perspectiva simbólica e identitaria del patrimonio. En este sentido, la didáctica del patrimonio cultural «puede ayudar a crear conciencia histórica en los jóvenes [en los futuros do-centes] ya que su aprendizaje les permitirá comprender mejor el pasado que los rodea, valorar la historicidad del presente y participar conscientemente en la construcción de su futuro personal y social» (ÁVILA Y MATTOZZI, 2009: 336).

Aquellos alumnos que eligen como optativa las asignaturas «Didáctica del Arte y la Cultura Andaluza» y «Didáctica del Patrimonio Cultural Andaluza»� en su formación para maestro de enseñanza Primaria o profesor de Secunda-ria y Bachillerato van a impartir en el futuro como docentes una diversidad de asignaturas y es de interés que aprendan a saber ver y entender el patrimonio en la imperante fragmentación de las materias escolares. En las asignaturas mencionadas, el programa de trabajo se desarrolla en torno a seis problemá-ticas que orientan la construcción del conocimiento profesional y la asunción del modelo didáctico de investigación en la escuela. Estas problemáticas son:

· ¿Qué función ha tenido y debería tener el Patrimonio Andaluz en la Educación?· ¿Cómo conocer y valorar el Patrimonio Cultural de Andalucía?· ¿Cómo se desarrolla el Patrimonio Cultural Andaluz en la normativa educativa? · ¿Cómo se difunde y se enseña el Patrimonio Cultural Andaluz en la educación formal

y no formal?· ¿Qué criterios utilizar para el diseño y elaboración de materiales curriculares en la

enseñanza del Patrimonio Cultural Andaluz para la Educación?· ¿Cómo se podría plantear un proyecto didáctico de trabajo de Patrimonio Cultural?

La pauta metodológica que sigue el alumnado procura dar respuesta a los interrogantes que constituyen las problemáticas de trabajo y se orienta desde el principio de investigación, en torno al cual se va construyendo el conocimiento profesional y patrimonial deseable. La secuencia didáctica va desde el recono-cimiento de las ideas iniciales, las concepciones sobre el patrimonio y su didác-tica, a la elaboración de una propuesta de conocimiento escolar patrimonial, relacionada con la etapa educativa y la asignatura que le correspondería al futu-ro maestro o profesor, vinculada a una perspectiva integrada y crítica del cono-cimiento. En una primera fase, a través de un cuestionario individual, se ponen en común las ideas respecto a qué tipo de patrimonio enseñar, por qué y cómo enseñarlo. Esta actividad pretende que el alumnado explicite sus concepciones,

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producto de experiencias anteriores, reflexione sobre el conocimiento disci-plinar que posee, exprese cómo enseñaría el patrimonio y aborde las dificul-tades metodológicas que implicaría la enseñanza del patrimonio cultural.

El programa de las asignaturas responde a dos niveles en relación con el patri-monio cultural, uno de amplitud del campo conceptual y otro de profundidad7; de amplitud en el sentido de conocer los distintos tipos de patrimonio (natural, histórico, artístico, etnológico y tecnológico), y de profundidad conceptual que supone definirlo como patrimonio cultural, es decir, «consideración global y uni-ficada de todas las manifestaciones anteriores.» (Cuenca, 2003:40). La amplitud y profundidad del campo conceptual también atienden al nivel de descripción del patrimonio desde una conceptualización simple, definido por sus cualidades ex-cepcionales, monumentales y estéticas, a una conceptualización compleja como elemento que simboliza, caracteriza, identifica y genera identidad en una sociedad. Siendo ésta una primera fase de la hipótesis de construcción del conocimiento pa-trimonial deseable, el alumnado va avanzando en las siguientes sesiones de clase.

Definido el patrimonio cultural desde la perspectiva simbólico-identitaria que caracteriza a una sociedad (Cuenca, 2003: 40), ahora se compara este nivel de formulación con el que presenta el patrimonio en la normativa educativa vi-gente. Se analiza su presencia en el currículo (si la hubiera, si es anecdótica, espe-cífica o relevante) y, también, en las distintas asignaturas de referencia para los futuros maestros y profesores; se examina el grado de integración de los conteni-dos propiamente patrimoniales, su organización y la conexión con asignaturas afines al tratamiento del patrimonio. Este trabajo obliga al alumnado a contras-tar sus ideas iniciales sobre el conocimiento escolar en torno al patrimonio histó-rico-artístico con las propuestas que ofrecen los materiales curriculares oficiales y a definir un modelo de conocimiento patrimonial deseable, reformulando sus concepciones originarias y concluyendo que el patrimonio debe aparecer sustan-tiva y significativamente en el currículo educativo como ámbito de estudio en la etapas Primaria, Secundaria Obligatoria y Bachillerato, y organizado de manera integrada en conceptos, procedimientos, valores y actitudes.

En la siguiente fase, dedicada a la metodología de enseñanza, el nivel de re-flexión se establece sobre los recursos y estrategias que se emplean en los dos ámbitos abordados, la educación formal y no formal. Estos recursos van desde la clase denominada magistral que representa el modelo tradicional, al diseño de secuencia significativa de actividades cuya finalidad educativa es una ense-ñanza del patrimonio cultural desde una perspectiva sistémica y de formación ciudadana. El trabajo de amplitud del campo conceptual abarca la educación no formal a través del análisis de los museos virtuales y mediante salidas fuera del aula para conocer los planteamientos de entidades dedicadas a la difusión del patrimonio que usan recursos innovadores y que pueden servir de ejemplo y propuesta de mejora para el ámbito formal.

En la dinámica de trabajo, en la que el alumno incorpora nuevas infor-maciones a través de la lectura de artículos de investigación en patrimonio

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cultural, el análisis de la legislación educativa, el estudio de las metodologías de enseñanza del patrimonio en sus distintas expresiones, se integran dos ac-tividades: «Salvemos el patrimonio, patrimonio en peligro» y «Diseño de una unidad didáctica». Sendas actividades pretenden generar en el alumnado, por un lado, una disposición hacia la interpretación del patrimonio como elemen-to dinámico de una sociedad y vivificador de ésta, y un sentido de responsabili-dad cívica de salvaguarda; por otro lado, aprenden a tratar didácticamente, en la propuesta de enseñanza del patrimonio, estos dos valores que se han destacado.

Concluyendo este apartado, expresamos que la didáctica del patrimo-nio cultural, en la formación de maestros y profesores, conceptualiza el cono-cimiento profesional desde una perspectiva holística, incorporando la investi-gación como principio orientador, un principio de investigación que involucra a partes iguales al profesor-formador y al alumno en formación, en una cons-tante conexión y reflexión entre la teoría y la práctica. Este enfoque complejo, que interrelaciona los contenidos entendidos en sus dimensiones conceptual, procedimental y actitudinal, sostiene como finalidad educativa última la capa-citación del alumno en formación para maestro y profesor como agente socia-lizador del patrimonio con el que se relaciona no sólo como docente sino, tam-bién, como ciudadano. Además, contribuye a que se comprendan los contextos y entornos patrimoniales al combinarse estrategias de enseñanza-aprendizaje paradigmáticas (estudio del patrimonio cultural) y sintagmáticas (análisis de ejemplos y propuestas de actuación).

cONSIdERAcIONES fINAlES

La formación inicial de maestros y profesores en la didáctica del patrimonio cultural que se desarrolla por el departamento de Didáctica de las Ciencias Experimentales y Sociales de la Universidad de Sevilla, pretende hacer de los futuros docentes profesionales reflexivos, investigadores y críticos, con aptitu-des para reconceptualizar la realidad patrimonial dada y poder transformarla (Porlán, García, Martín, 1992).

La hipótesis general de progresión en la construcción del conocimiento pa-trimonial deseable, en la que se han formado, va a convertirse en la pauta me-todológica para enseñar en las escuelas el patrimonio como ámbito de conoci-miento cultural y ciudadano. El modelo didáctico de investigación debe llevarlos a formular un problema patrimonial que sea de interés o motive a sus futuros alumnos, a partir del cual éstos puedan expresar sus concepciones iniciales sobre el patrimonio; luego, habría de guiarlos en la investigación para la búsqueda de nuevas informaciones en torno al problema planteado, procurando que los esco-lares den posibles respuestas a través sus valoraciones, es decir, generen nuevas ideas que sean el resultado del enriquecimiento de las iniciales y, finalmente, que sepan abordar el patrimonio como manifestación de una cultura y una ciudada-nía, ejemplos del pasado, referentes del presente y compromiso de preservación

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para el futuro. Si quieren que sus alumnos alcancen un conocimiento patrimo-nial deseable, ellos como docentes son una referencia fundamental. Han de in-vestigar, planificar, desarrollar y valorar los resultados de su propio trabajo en el aula: «los profesores se desarrollan profesionalmente como consecuencia de procesos reflexivos, experimentales y de investigación» (PORLÁN, 1987).

A modo de síntesis, en la formación inicial de los maestros y profesores, la di-dáctica del patrimonio cultural persigue, como finalidad última, la socialización patrimonial del futuro docente y que éste incorpore, en su conocimiento pro-fesional, el patrimonio como realidad viva y vivificadora de la sociedad y sepa desenvolver, en el conocimiento escolar que construya, el patrimonio cultural vinculado a la educación ciudadana patrimonial. Frente a esto se encuentra una importante masa de maestros y profesores que se dejan llevar por las planificacio-nes de editoriales de libros de texto donde el patrimonio es una ilustración y no una expresión cívica de la identidad de las civilizaciones y los pueblos.

REfERêNcIAS

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· CUENCA LÓPEZ, J.Mª (2003): «Análisis de concepciones sobre la enseñanza del patrimonio en la educa-

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2000). En http://www.ub.es/geocrit/b3w-207.htm, consultada 10 de mayo de 2013, 2000.

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en Andalucía. En http://www.juntadeandalucia.es/boja/2007/171/d1.pdf, consultado el 25 de mayo de 2013.

· ORDEN de 10 de agosto de 2007 por la que se desarrolla el currículo correspondiente a la Educación

Secundaria Obligatoria en Andalucía. En http://www.juntadeandalucia.es/boja/2007/171/d2.pdf, consul-

tado el 25 de mayo de 2013.

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digital 33 años contigo. Barcelona: Wolters Kluwer.

· PORLÁN, R. (1987): «El maestro como investigador en el aula. Investigar para conocer, conocer para

enseñar». Investigación en la Escuela, nº 1. Sevilla: Díada editora; págs. 63-69.

NOTAS

• 1 La asignatura de Historia del Arte aparece en la enseñanza media española en 1868 aunque es la Insti-

tución Libre de Enseñanza, creada en 1876, la que potencia estos estudios. Como asignatura apenas ha

variado en su formulación en el currículo oficial aunque, en la actualidad, ha perdido relevancia en el

bagaje formativo del alumnado.

• 2 J. Mª Cuenca habla de la función socializadora del patrimonio que supera a la intención preservadora

del mismo. En este sentido, tiene una cualidad formativa mayor en tanto que favorece el desarrollo

integral del ciudadano.

• 3 «El concepto de “modelo didáctico” puede ser (…) una potente herramienta intelectual para abordar

los problemas educativos, ayudándonos a establecer el necesario vínculo entre el análisis teórico y la

intervención práctica; conexión que tantas veces se echa de menos en la tradición educativa, en la que,

habitualmente, encontramos “separadas”, por una parte, las producciones teóricas de carácter pedagó-

gico, psicológico, sociológico, curricular... y, por otra, los materiales didácticos, las experiencias prácti-

cas de grupos innovadores, las actuaciones concretas de profesores en sus aulas...» (García Pérez, 2000).

• 4 La caracterización de los tres modelos didácticos se ha realizado a partir del artículo de García Pérez

(2000). Confróntese en su caso y, si es de interés, ampliar el análisis.

• 5 El Proyecto Curricular IRES (Investigación y Renovación Escolar) consta de cuatro volúmenes: I. El mo-

delo didáctico de investigación en la escuela; II. El marco curricular; III. El currículo para la formación

permanente del profesorado y IV. Investigando nuestro mundo.

• 6 Entiéndase el adjetivo andaluz del patrimonio, en los títulos de las dos asignaturas, por la correspon-

dencia que se establece con la normativa andaluza vigente —Orden de 10 de agosto de 2007 por la que se

desarrolla el currículo correspondiente a la Educación Primaria en Andalucía y Orden de 10 de agosto de

2007 por la que se desarrolla el currículo correspondiente a la Educación Secundaria Obligatoria— que

contempla en las enseñanzas propias de la comunidad autónoma, para el área de Conocimiento del Me-

dio Natural, Social y Cultural, el núcleo temático «El Patrimonio en Andalucía» y, en el área de Ciencias

Sociales, «El patrimonio cultural andaluz». Con estas dos disposiciones reglamentarias van a trabajar los

alumnos en formación para maestro de Educación Primaria y profesor de Enseñanza Secundaria.

• 7 «Sería una organización en espiral, con una dimensión horizontal referida a la amplitud del campo

conceptual (número de conceptos interconectados en cada trama y en cada proceso investigativo) y

una dimensión vertical referida a la profundización creciente en cada concepto (diferentes grados de

formulación)» (García Díaz y García Pérez, 1989).

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A REcONSTRUçãO hISTóRIcA dE OBJETOS dE cIêNcIA E TEcNOlOgIAREcONSTRUcTION Of hISTORIcAl OBJEcTS

Of ScIENcE ANd TEchNOlOgy

Paulo de Melo Noronha FilhoMuseu Dinâmico de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Juiz de Fora - Minas

Gerais - Brasil

Resumo: Procuramos apresentar novas concepções e possibilidades de monta-gem de uma exposição a partir da utilização do conceito de cultura material tendo como referência um conjunto de objetos de ensino, de ciência e tecnolo-gia produzidos na Fábrica de Aparelhos e finalmente no Parque Tecnológico da Escola de Engenharia de Juiz de Fora.

Palavras-chave: Museu. Tecnologia. Exposição

Abstract: We present new concepts and possibilities of setting up an exhibi-tion from the use of the concept of material culture with reference to a set of ob-jects of education, science and technology produced by Appliance Factory, and finally in the Technological Park of the School of Engineering of Juiz de Fora.

Keywords: Museum. Technology. Exhibition

INTROdUçãO

O Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Juiz de Fora traz como perspectiva atuar como espaços de fronteira, ponte entre cultu-ras, como espelho multifacetado da experiência e da capacidade de criação hu-mana, onde todos possam reconhecer-se, compreender-se e aprender a respeitar o diferente, através de si mesmos, percebendo a história não como retorno, mas como fluxo, onde cada indivíduo, sociedade, instituição tem seu significado e seu lugar. Tendo por foco estudos referentes à cultura material dos acervos tridi-mensionais e textuais sob guarda do MDCT, destacam-se os objetos produzidos pelas Oficinas da Escola de Engenharia de Juiz de Fora, organizadas no início da década de 30 do século XX, as quais apresentavam um projeto pedagógico e ino-vador direcionado à produção de seus próprios “aparelhos” científicos e didáti-cos visando à modernização de seus laboratórios e gabinetes de ensino os quais constituirá em um dos eixos temáticos da exposição do MDCT. A importância das oficinas está ligada ao seu pioneirismo por se constituir na primeira fabrica de instrumentos da América Latina destinada à produção e comercialização de equipamentos didático-científicos. É justamente a partir dessa perspectiva que se insere a necessidade da montagem de uma exposição de objetos de ciência e

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tecnologia na qual se retrate parte significativa da história da ciência e da técni-ca no Brasil.

1. A EScOlA dE ENgENhARIA dE JUIz dE fORA: NOVAS fONTES PARA PESqUISA

dA hISTóRIA dAS cIêNcIAS.

O Ensino de engenharia em Juiz de Fora se inicia em 1909 com a implantação pela Sociedade Preparatória de Ciências e Artes de um curso Politécnico, anexo a Academia de Comércio que funcionou até 1917, formando um total 25 enge-nheiros eletricista e de obras públicas. Devido à precariedade das instalações para o ensino e principalmente pela inexistência de uma proposta didática só-lida um grupo de professores e alunos desliga-se da Academia de Comércio e criam em 17 de agosto de 1914 a Escola de Engenharia de Juiz de Fora. 1

Durante os primeiros anos da Escola de Engenharia, o curso tinha a dura-ção de três anos sendo organizado em duas partes; um curso anexo preparatório com duração de um ano, e um curso técnico com duração de dois anos. Foi a partir de 1918 por exigência do governo federal que o curso passa a ter a duração de quatro anos2. O reconhecimento institucional da Escola ocorre através da aprovação da Lei Estadual nº 696, de 31 de agosto de 1917. A sua oficialização como “Associação Civil” por parte do governo federal só viria a ocorrer por uma emenda aprovada no Congresso Federal através da Lei nº. 3454, de 6 de janeiro de 1918.

Para adequar seus gabinetes e laboratórios de ensino, foram incorporados gradativamente ao patrimônio da Escola desde 1914 e com maior ênfase a partir de 1921 uma série de instrumentos científicos e didáticos de alta qualidade os quais mais tarde deram origem ao acervo do Museu Dinâmico de Ciência e Tec-nologia. Desde conjunto de instrumentos adquiridos de fabricantes ingleses e alemães, destacam-se os objetos adquiridos pela Oficina francesa Le Fils d’ Emile Deyrolle. 3

Nos estatutos de 1924 é definida uma nova estrutura administrativa e didá-tica para a Escola de Engenharia. O diploma conferido é de “Engenheiro Civil e Electrotechinico”. Além dos laboratórios, biblioteca, gabinetes de estradas, pontes, física e eletricidade criam-se os campos externos para instrução prática especialmente na área de topografia e contratam-se funcionários especializados em marcenaria, mecânica além de preparadores e auxiliares para se responsabi-lizarem pela conservação e manutenção do material científico.

2. REVOlUçãO E INOVAçãO: As Oficinas da Escola de Engenharia

Para se adequar às necessidades de expansão e modernização física e pedagógica da Escola, são reorganizadas, no início da década de 30 do século XX, os novos laboratórios de ensino e as oficinas de trabalho. 4 Por solicitação do Diretor da Escola Professor José da Rocha Lagoa ao Prefeito de Juiz de Fora , é obtido por

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empréstimo, de um prédio que após sua reforma seria destinado às novas insta-lações da Escola de Engenharia para aulas teóricas e práticas (Fig. 1). Como con-tra partida ao empréstimo deste imóvel, a Prefeitura Municipal cria pelo Decre-to n. 45 de 17 de novembro de 1931 o Instituto Municipal Prático de Mecânica e Eletricidade, anexo à Escola de Engenharia e destinado exclusivamente para os filhos de operários da prefeitura.

Fig. 1 - Gabinetes, oficinas e laboratórios da Escola de Engenharia de 1932

Em 1931 com a indicação do Professor Josué Laje para secretário e posteriormen-te como Diretor Técnico e responsável pela Fabrica de Aparelhos da Escola de Enge-nharia em 1944, percebe-se não só a mudança de nomenclatura de Oficina para Fá-brica, nas a introdução de uma política institucional com o objetivo em transformar em curto prazo a Escola em um centro de excelência e inovação no Brasil no que se refere à produção de equipamentos didáticos e científicos para ensino, pesquisa e in-dústria. O empenho do Professor Josué Lage assim como do Professor Cristiano De-gwert na consolidação deste projeto pioneiro, é uma rara percepção da importância social, econômica e ideológica da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento da sociedade. A política de modernização da instituição permite um salto de qualidade no que se refere tanto na formação dos alunos quanto na produção, aperfeiçoamen-to e criação de objetos didáticos e de ensino de ciências.

Com a modernização e expansão da fabrica de aparelhos a Escola de Enge-nharia torna-se a primeira instituição do gênero do Brasil e provavelmente das Américas a apresentar entre suas atribuições a fabricação de instrumentos de científicos produzidos não somente para uso interno em seus laboratórios, mas principalmente voltado para sua comercialização. Esta proposta destaca-se sig-nificativamente quando verificamos que entre as décadas de 30 até o final da década de 60 que o volume de recursos aportados na Escola em decorrência das vendas efetuadas como demonstram as notas fiscais de vendas, livro de regis-tro dos movimentos das oficinas, livros de registro de vendas de equipamentos

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e por balancetes administrativos que em determinados momentos os recursos financeiros destinados pelas oficinas à Escola eram em grande parte superior as receitas obtidas de outras fontes, como por exemplo, as mensalidades pagas pelos alunos.5

A importância adquirida com as oficinas e posteriormente pela fabrica de aparelhos destaca-se pela qualidade na formação de mão de obra, e pelo expres-sivo número de alunos formados pela Escola, mas também pelo alto nível dos instrumentos de ensino que produzia. Em seu catálogo de 1937 é apresentada cerca 320 equipamentos. Em 1949 (Fig. 2 e 3) são disponibilizados para a venda um total de 534 instrumentos científicos produzidos nas mais diferentes áreas do conhecimento como acústica, eletricidade, eletromagnetismo, desenho, me-cânica e até mesmo um conjunto com 46 itens na área de aerodinâmica.

Fig. 2 - Aparelho Universal de Mecânica

Fig. 3 - Balança para experiência aerodinâmica, criada nas Oficinas da Escola de Engenharia

A implantação do novo regimento da Escola de 1951 promove transforma-ções significativas no que se refere à expansão do ensino superior de qualida-de. Em relação à criação do Parque Tecnológico que viria substituir a Fabrica de Aparelhos da Escola de Engenharia destaca-se o artigo 178 n. III: “realizar em seus laboratórios pesquisas e estudos de caráter experimental, tecnológico e científico que possam interessar aos serviços públicos a indústria e as instituições científicas”6. Apesar do Partec funcionar desde a implantação do novo regimento é somente em 20 de dezembro 1956 que encontramos o seu registro como pessoa jurídica.

3. A fABRIcA dE APARElhOS E O PARqUE TEcNOlógIcO dA EScOlA dE ENgE-

NhARIA NO cONTEXTO dA MOdERNIdAdE

Apesar dos objetos estarem inseridos em um circuito econômico e, portan-do, dentro de um determinado modo de produção, aqui eles não são despersona-lizados e reduzidos apenas à categoria de mercadoria, existe várias histórias in-trínsecas aos objetos que lhes conferem um novo significado. Nesse sentido, os

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instrumentos produzidos pelas Oficinas da Escola de Engenharia integram além do circuito econômico, o social e o ideológico. Estes objetos enquanto mercado-ria não apresenta uma natureza absoluta, mas possui uma qualificação dinâmi-ca que marca uma das fases da sua trajetória social.

A construção de uma biografia da cultura material que abranja os instru-mentos de ciência e tecnologia produzidos pelas Oficinas da Escola de Engenha-ria é essencial para compreendermos que as constantes ressignificações com todas as implicações das alterações dos atributos devem ser consideradas como uma análise da trajetória cultural dos Objetos. Estudos de cultura material nos remetem necessariamente, ao estudo de um fenômeno social, e as Oficinas da Escola de Engenharia foi por excelência um fenômeno social. O que devemos ter em perspectiva não é apenas considerar os objetos de ciência e tecnologia como documentos, mas como transformar estes objetos em documentos.

Refletir sobre a história das Oficinas da Escola de Engenharia de Juiz de Fora e suas sucessivas transformações, somos direcionados a fazermos um novo percurso através de um novo olhar dentro de um novo contexto sobre os docu-mentos e instrumentos de ciência e tecnologia, o que nos leva a entender que os diferentes suportes documentais carregam inúmeros valores e significações imputadas através de um processo social de construção histórica, e, portanto da redefinição da memória. Neste sentido, a análise documental são os principais suportes de informação e transformação e é a pesquisa, a comunicação e a sua divulgação que possibilitam darmos novos significados aos documentos através de variados suportes, como uma exposição de objetos de ciência e tecnologia.

A trajetória da Escola de Engenharia é um processo complexo, especialmen-te quando direcionamos nossas pesquisas para as suas oficinas a partir de uma análise histórica que leve em consideração o contexto socioeconômico na pro-dução de seus equipamentos didáticos e científicos e que viabiliza a apresenta-ção de algumas análises e variantes metodológicas que a nosso ver ultrapassa apenas a uma descrição cronológica dos acontecimentos e fatos. Por outro lado, a utilização destes novos enfoques os quais considere que a história das oficinas também pode ser investigada pelo seu modo de produção abre novos horizontes na investigação sobre a cultura material de objetos de ciência e tecnologia e con-sequentemente permite apresentarmos uma exposição de ciência e tecnologia a partir de uma nova perspectiva.

É precisamente a relação inseparável entre a história dos objetos e dos do-cumentos relacionados à Escola e as suas oficinas que emerge como fator de-terminante o conhecimento da sua pratica produtiva. Neste contexto, os quais define toda nossa estrutura narrativa é que termos a possibilidade em associar um vasto e único conjunto de instrumentos produzidos pelas oficinas com a sua documentação arquivística. Assim, ao identificarmos, analisarmos e divulga-los através de uma exposição um conjunto de objetos tendo como suporte e fonte de informação a sua documentação original bem como o contexto social e científi-co em que foram produzidos estes objetos torna-se possível apresentarmos uma

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série de desdobramentos os quais nos permitem traçarmos e olharmos com maior precisão as varias histórias que acompanharam estes instrumentos e quem os produ-ziu e os fizeram circular, As figuras (4 e 5) representa de forma precisa este processo.

Fig. 4 - Ficha de fabricação de instrumentos

Fig. 5 - Ficha de execução de serviços

A pesquisa que estamos desenvolvendo no Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia para a montagem de uma nova exposição não se constitui em uma tarefa fácil, requer persistência e continuidade, pois, temos a rara oportuni-dade em contextualizar estes objetos e as inúmeras relações e processos que os envolvem no exato momento em que foram produzidos. Assim, é possível analisar as formas como foram utilizados um conjunto de tubos sonoros atra-vés de uma aula prática ou teórica de acústica, pois uma caderneta de aula da década de 40 nos fornece estas informações; quais foram os funcionários que trabalharam na produção de algum equipamento como, por exemplo, uma balança tríplice escala ou uma máquina a vapor em corte; qual foi o tempo parcial e total dispensado em cada fase dos processos de produção dos instru-mentos como, por exemplo, de um pantógrafo; qual foi o custo de mão de obra e do maquinário referente à produção de 12 areômetros manuais; qual era a carga tributária recolhida pela Escola sobre a venda de 7 conjuntos aerodinâ-micos completos ou qual era o lucro obtido pela Escola com a venda de 100 balanças tríplice escala; quanto era o salário mensal de um funcionário encar-regado de cada etapa do processo de produção referente à serralheria, niquela-gem ou marcenaria; o que nos diz a ficha funcional destes funcionários e seus respectivos históricos; podemos ainda verificar qual era o custo final de cada instrumento ou conjunto de instrumentos produzidos através da relação en-tre o preço final de um equipamento em comparação ao valor comercializado pela Escola de Engenharia e assim verificar o seu lucro da instituição.

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Como podemos perceber são inúmeras as articulações possíveis a respei-to da pesquisa dos objetos de ciência e tecnologia. Estas são apenas algumas questões que podem nos fornecer uma visão mais realista sobre o processo de produção organizado pelas relações de trabalho presentes na fabricação de objetos de tecnológicos e científicos. Através de um minucioso levantamento do acervo arquivístico e de objetos de ciência e tecnologia do MDCT é possível ainda como forma de ilustração fazer uma comparação do nosso levantamento museológico com os inventários dos instrumentos existentes nos gabinetes e oficinas da EE correspondente à década de 20, 30, 40, e 50 e com os seus respecti-vos valores. Podemos ainda, sabermos quais os instrumentos que compunham os laboratórios de astronomia e geodésica, hidráulica, maquinas, ou construção civil na década desde a década de 20 e para que e de que forma foram utilizados.

4 REdEScOBRINdO UMA EXPOSIçãO dE cIêNcIA

E TEcNOlOgIA: a emoção de sentir

O Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia foi criado na Faculdade de Engenharia em 1999, sendo o primeiro Museu da Universidade Federal de Juiz de Fora a ser ins-titucionalizado pelo Conselho Universitário como Órgão Complementar, por meio da Resolução nº 14/2001. Inicialmente o museu ocupou um galpão na Faculdade de Engenharia que mesmo sem condições físicas adequadas, precariedade de supor-te técnico, associado a pouca valorização de suas ações, apresentando naquele mo-mento uma museografia inadequada conseguiu satisfatoriamente dentro das possi-bilidades disponíveis iniciar um amplo atendimento aos alunos das escolas de Juiz de Fora e implantar um projeto de levantamento do acervo arquivístico e de objetos de ciência e tecnologia existente na Faculdade de Engenharia, os quais vieram a se constituir no acervo do MDCT. (fig. 6 e 7). Em agosto de 2007 o museu é transferido para sua nova sede, a qual teve que ser mais uma vez adaptada para receber de forma mais organizada a exposição de longa duração que já vinha sendo planejada.

Fig. 6 e 7 - Montagem a primeira exposição do museu em 2000

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A exposição denominada “Instrumentos Científicos – Instrumentos do Conheci-mento” apresenta uma metodologia bem estruturada, possui uma museógrafa esteti-camente agradável, encontra-se organizada por grandes áreas temáticas sendo de fácil compreensão e assimilação para o publico. Por outro lado, mesmo com estas conside-rações ainda não contempla de forma satisfatória no que se refere à apresentação de uma das principais coleções sob a guarda do museu que trata da história dos objetos de ciência e tecnologia produzidos pela fabrica de aparelhos da Escola de Engenharia.

Entendemos, para que uma exposição de objetos de ciência e tecnologia pos-sa estabelecer um novo dialogo com o público torna-se fundamental a apresen-tação de um novo conceito de exposição que privilegie o processo de produção, consumo e circulação de objetos e documentos. Para a concretização desta nova proposta tornou-se imprescindível implantar um projeto de pesquisa direcio-nado ao processamento técnico do acervo documental e de objetos de ciência e tecnologia do Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia com ênfase aos ins-trumentos desenvolvidos pela Escola de Engenharia, mas tendo por referência estes objetos os quais possam abranger o acervo de uma forma geral.

A partir deste enfoque utiliza-se como referencial uma abordagem histórica que nos permitem demonstrar a trajetória de um conjunto de objetos relacionados ao ensino, a indústria a ciência e tecnologia tendo como fio condutor estudos relacio-nados à cultura material, área do conhecimento significativa para ser utilizada à luz da práxis histórica. Através deste percurso é possível demonstrar que os documentos e os instrumentos de ciência e tecnologia carregam inúmeros e diferentes valores imputados através de um processo social de construção histórica, portanto os docu-mentos são os principais suportes de informação, e é a pesquisa e a comunicação que dá significado ao documento. Podemos, assim, associar os instrumentos produzidos pelas Oficinas da Escola com a sua documentação arquivistica, apresentando o seu uso, quem os produziu, o tempo dispensado em cada fase dos processos de produção, o custo de mão de obra, impostos recolhidos, os salários recebidos pelos funcionários, e finalmente o valor comercializado dos de 553 objetos relacionados às mais diferentes áreas. Imergir neste novo universo museográfico é acompanhar a trajetória de vida de um instrumento, é fazer antes de tudo uma biografia onde temos o início, o meio e principalmente os diferentes caminhos que cada objeto percorreu.

Fig. 8 e 9 - Vista lateral e frontal da atual da exposição: Instrumentos Científicos – Instrumentos do conhecimento

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4.1.1 AS RESSIgNIfIcAçõES dO OBJETO NA EXPOSIçãO

Uma das principais características nas análises sobre cultura material é o con-ceito de interdisciplinaridade, a qual se constitui em um dos imperativos mais importantes das novas condições da produção do conhecimento científico, po-dendo ser exemplificado pelas emergentes áreas do conhecimento. A ciência e tecnologia são igualmente, interdisciplinares, uma vez que fazem parte de um modelo social que lhe confere suporte e legitimidade representando um novo campo de produção de discursos os quais interagem com os diversos campos sociais, em especial com a economia, educação, antropologia, engenharia, socio-logia, artes e história das ciências.

Entender o museu e a sua nova exposição a partir dos objetos produzidos pela oficina e pela fabrica de aparelhos da Escola de Engenharia como espaço relacional significa, antes de tudo, buscar percebê-los como instancia de impreg-nação dos sentidos. Significa buscar entender, em profundidade, as infinitas trocas simbólicas possibilitadas pela imersão do visitante no espaço expositivo. Esta imersão será tão mais intensa e efetiva quanto mais abertas forem os modos de controle das articulações entre espaço, tempo, objeto e conteúdos. Isto signi-fica que Através da construção estética da exposição associado ao controle das técnicas museográficas empregadas estes objetos e documentos de ciência e tec-nologia podem ajudar a criar magníficos espetáculos educacionais e científicos, que mobilizem os sentidos do visitante no plano cognitivo ou motor, podendo gerar instancias de verdadeira mobilização afetiva. E é no plano afetivo que se elabora a comunicação: é no afeto que a mente e o corpo se mobilizam em con-junto, abrindo os espaços do mental para novos saberes, novas visões de mundo, novas experiências, novas possibilidades de percepção.

É a presença deste conjunto de objeto é que define todos os encaminhamen-tos; esta não é uma limitação, mas a grande prerrogativa dos museus e da expo-sição. Se o objeto “funcionar apenas como pretexto; ilustração, reforço”, não há razão para se utilizar a exposição museológica. A exposição precisa dominar a linguagem dos objetos e o seu processo histórico. O objeto museológico destaca-do da exposição não tem elementos para desenvolver uma narrativa porque ele simboliza, representa, porém não dá continuidade a nenhum tipo de ação. São necessários alguns recursos para que esta narrativa aconteça diferente de um texto onde se pode com clareza, desenvolver o processo.

As exposições caracterizam-se como a mais importante e principal instância de mediação dos museus com o público, sendo possível perceber como através dela é elaborada uma narrativa cultural, educacional, histórica e científica. Tec-nicamente é uma composição estética cujos elementos encontram-se organiza-dos em espaços didaticamente dispostos para permitir que seja lida uma deter-minada mensagem. É através da análise da cultura material que o objeto de C&T associado as suas inúmeras significações se constituem como o principal agente de informação e construtor de significado no espaço museológico. As exposições

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devem fornecer ao mesmo tempo, leituras de certos acontecimentos e propostas didático-científicas para que os visitantes possam avaliar criticamente as infor-mações apresentadas. Neste sentido, destacam-se as inúmeras possibilidades de associarmos um determinado instrumento com a prática deste instrumento como são apresentados. (Fig. 12 – 13).

Fig. 10 e 11 - Cadernetas de aula prática utilizando-se uma balança tríplice

escalam produzidas pela Escola de Engenharia

As exposições passam a ter maior representatividade somente quando apresentarem objetos circunscritos em sua própria significação histórica e do-cumental. Os objetos devem ser compreendidos como suporte de informação. As exposições são espaços de intermediação entre os objetos e o público tendo como cenário o Museu. Portanto, o ato de expor se constitui em uma série de ações sobre o objeto. É o objeto integrado a um museu que possui propriedade enquanto documento, é na exposição que se potencializa a relação entre o públi-co e o objeto e, portanto, a relação entre o público e o documento.

cONclUSãO

A articulação da história da ciência com os museus de ciência e tecnologia para a difusão da cultura científica contribui para um melhor conhecimento da estrutura da ciência e de seu lugar no marco intelectual das relações. Tendo em vista que a his-toricidade é característica relevante para se pensar cientificamente, o MDCT busca a associação dos fenômenos científicos, sociais e culturais com a história. Por meio dela é permitido o entendimento do processo dos eventos. A exploração de temas científicos por meio da apresentação do processo histórico, ligado com os aspectos culturais e sociais, ajuda a ver a ciência como uma construção humana coletiva.

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As novas concepções de museus de ciências têm por objetivo dar acesso a todos, convidando o público leigo a participar, experimentar e explorar. Os no-vos atores sociais são mobilizados por outras exigências; o que se quer hoje do indivíduo é uma maior capacidade de operar em diferentes áreas e facilidade de adaptação. O que temos proposto é programar ações institucionais que possam contribuir para a formação de cidadãos críticos, capazes de apreciar a ciência como parte da cultura, de procurar permanentemente o próprio enriquecimen-to cultural científico, de questionar o conhecimento difundido pela mídia e de interagir de forma consciente com o mundo ao seu redor.

Contactar o autor: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· Ata de criação da Escola de Engenharia de Juiz de Fora, pag.2, 1914.

· Regimento Interno da Escola de Engenharia de Juiz de Fora, pág., 16, 1918.

· O arquivo de história da ciência do Museu Dinâmico de Ciência e tecnologia possui um expressivo nú-

mero de as notas fiscais de compras de equipamentos desde 1914. Deste conjunto destacam-se as notas

fiscais de importação de dos anos de 1921 a 1923dos objetos adquiridos pela Escola junto a Oficina Emile

Deyrolle de um total de aproximadamente 120 instrumentos, os quais muitos destes objetos tornaram-se

modelos para a sua produção pelas Oficinas da Escola de Engenharia.

· Livro Caixa de prestação de contas à Congregação da Escola relatando de forma minuciosa a situação

financeira bem como os recursos necessários para adequar e modernizar os

· Livro Caixa de prestação de Contas, 1931 a 1946.

· Regimento da Escola de Engenharia de Juiz de Fora. Pag.34, 1951

· Na introdução destes catálogos encontram-se uma série de justificativas extremamente importantes

apresentando as qualidades dos produtos comercializados pela Escola. No corpo dos catálogos os quais

eram subdivididos em áreas e apresentavam uma descrição dos equipamentos e seus correspondentes

valores para a venda.

· GILBERT, John. Learning in museums: objects, models and text. Journal of Education in Museums, n.

16, 1995.

· GOUVÊA, G., VALENTE, M. E., CAZELLI, S. e MARANDINO, M. Redes cotidianas de conhecimento e os

museus de ciência. Parcerias Estratégicas, n.11, Junho, 169-174.

· HOOPER-GREENHILL, Eilean. Los Museos y sus visitantes. Espanha: Ediciones Trea, 1998.

Inventário da Coleção de Instrumentos Científicos do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Rio de

Janeiro: MDCT, 2004.

· LOUREIRO, José Mauro Matheus. Museu de Ciência, divulgação científica e hegemonia. Revista Ciência

da Informação, v.22, p.1, n.67, p.21-30, 1991,

· LOURENÇO, M. Museus de Ciência e Técnica: que objectos? Dissertação em Museologia e Patrimônio.

(Mestrado) – Departamento de Antropologia. Faculdade de Ciências Sociais e Hu

· BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo, Companhia das

Letras, 1996.

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MUSEU NAcIONAl dE ARTE ANTIgA E lARgO dO dR. JOSé dE fIgUEIREdO: linha que une - uma experiência de intervenção concretaMUSEU NAcIONAl dE ARTE ANTIgA ANd lARgO dO dR. JOSé dE fIgUEIREdO:

connecting line – specific intervention experience

Pedro Soares Neves

Resumo: Apresenta-se um testemunho prévio de actividade exploratória da re-lação do Museu Nacional de Arte Antiga com o uso “criativo e contemporâneo” de edifício próximo. Exercício revelador de Projecto de Tese em curso sobre graffiti, cartazes, instalações imprevistas várias, do qual emergem os factos que determinam as principais características da intervenção em causa.

Palavras-chave: Graffiti. Arte Pública. Design Urbano.

Keywods: Graffiti. Public art. Urban design. Participation

INTROdUçãO

A intervenção projectada provém da oportunidade gerada pelo novo uso do edi-fício da Rua das Janelas Verdes nº108, ex-escola primária que actualmente aco-lhe “criativos” de várias origens disciplinares. A proximidade desta dinâmica de contornos contemporâneos com o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e com o Largo do Dr. José de Figueiredo, o qual delimita praticamente um dos seus quatro lados, são os principais “ingredientes” do projecto em causa.

A actividade “Linha que une” baseia-se na noção alargada de DESENHO, como INSTALAÇÃO-ARTÍSTICA nas três dimensões, intervir efectivamente no Património urbano valorizando-o.

Através de linhas de lã (material não danificador), pretende-se dar outros sentidos, outras possibilidades de leitura ou de experiência estética ao Largo Dr. José de Figueiredo.

Esta actividade procurará articular-se com a participação (possível) da co-munidade local, apelando ao sentido de pertença e do cuidar do espaço público. Pretende assumir-se como a actividade preliminar que despertará para a relação do MNAA com o novo uso do edifício da Rua das Janelas Verdes nº108, tendo o espaço público como canal.

A linha que sai do contentor que guarda a tinta da caneta, não é assim tão diferente da

linha que sai de um novelo: em ‘intencionalidade’ a linha é exactamente a mesma; em

vontade do corpo e em uso, a linha da caneta e a linha do novelo, são a mesma. O desenho

não se confina ao plano. […]

A necessidade de expressão desde sempre convocou um ecrã|suporte para a sua exe-

quibilidade: desde as paredes de grutas (como em Lascaux) até aos graffitis em todas as

paredes ou muros de qualquer lugar na contemporaneidade. Além do suporte, o gesto

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é fundamental, e um instrumento riscador também. Há pois um elemento essencial

– que é de carácter volitivo – e a expressão, ou é volitiva, ou não é expressão. Inquiri-

remos as relações possíveis de estabelecer entre a volição, o olhar e a representação do

entorno: talvez a raiz mais antiga no sentido antropológico para o conceito de paisagem.

1. PROJEcTO dE TESE

Este exercício encontra-se integrado no desenvolvimento de projecto de tese de doutoramento em Arquitectura no Instituto Superior Técnico de Lisboa.

Por esse facto, logo, para além das considerações especificas que decorrem do respectivo exercício, é importante conduzir o leitor pelos principais pontos do Projecto de Tese, pois é através da sua estrutura que emergem os factos que determinam as principais características da intervenção em causa.

1.1 OBJEcTIVO PRINcIPAl

O objectivo principal da tese é o do melhor entendimento sobre como abordar o graffiti, cartazes, instalações imprevistas várias, em suma, os signos visuais co-municados informalmente no espaço público pelos seus utilizadores.

Essas acções originam conflitos com planos de “correcção” onerosa para o erário público, encargos que muitas vezes se tornam sorvedouros infindáveis de recursos. Pretende-se analisar de que forma esses encargos se relacionam com a ausência de oportunidades para a participação na produção do espaço. (LEFEBVRE, 1986)

No presente artigo apresentamos a natureza de uma investigação, na qual abordamos a relação da adaptabilidade dos espaços públicos e a sua durabilida-de. De que forma as iniciativas dos utilizadores se relacionam com os recursos necessários para a manutenção dos espaços?

No centro do objecto da tese está a prática do desenho urbano e a atenção que esta deverá (ou não) atribuir à intervenção material directa, informal e expontâ-nea, voluntária ou involuntária dos utilizadores.

1.2 OBJEcTIVOS SEcUNdáRIOS (ESPEcífIcOS)

1.2.1 ATRAVéS dA ANálISE dOS cONcEITOS INVOcAdOS NA fRASE “SIgNOS VISUAIS cOMUNIcAdOS IN-

fORMAlMENTE NO ESPAçO PúBlIcO PElOS SEUS UTIlIzAdORES”, dElIMITAR O âMBITO dO qUE SE POdE-

Rá cONSIdERAR UMA áREA dE ESTUdO PRóPRIA cOM INflUêNcIAS dE VáRIAS “áREAS dO SABER”.

“Signos visuais” como uma coisa que é usada, referida ou tomada no lugar de ou-tra coisa (aliquid pro aliquo), com a abrangência de “signos substitutivos”, ícones ou símbolos a “signos naturais”, índices, sintomas ou indícios. Nesse âmbito, é importante clarificar até que ponto fenómenos de origem “involuntária” (ex: ca-minho de pé posto) são próximos de fenómenos “voluntários” com sintomas ou indícios semelhantes (ex: autocolantes, tags).

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“Comunicação informal” envolve os factores da comunicação (emissor, con-texto, canal, mensagem, código, receptor) com a dualidade formal / informal, conceito enraizado na definição de “economia informal” suas relações de pro-dução (de espaço no caso da tese) quer seja na ausência de uma lógica de merca-do, ou, ainda, a ausência de legalidade, encarada não como um estado fixo mas como um processo, no qual se põem à prova e se vão redefinindo as fronteiras das instituições (económicas) “formais” (CASTELLS E PORTES 1989).

Já “no espaço público pelos seus utilizadores” assinala a necessidade de ana-lise das relações espaço público - esfera pública, assim como as várias dimensões possíveis de participação seja pelo simples uso ou presença no espaço ou através de projectos participativos.

1.2.2 NO cONTEXTO dUAl: cONflITO/ cONSENSO - IdENTIfIcAR AS OPORTUNIdAdES dE

dISSENSO ENTRE OS fENóMENOS EM cAUSA E A PROdUçãO dE ESPAçO PúBlIcO.

Dissenso não se refere somente ao conflito despoletado entre grupos que têm in-teresses opostos, mas também ao conflito originado pela própria noção do que é um “interesse”, ou seja, a luta entre aqueles que se definem como sendo capazes de gerir interesses sociais e aqueles que supostamente serão capazes de apenas reproduzir a sua vida (RANCIÈRE, 2011).

1.2.3 cIVISMO / “gESTãO” / PlANEAMENTO

Análise contextual do que se entende por “civismo”, relacionando-o com um processo de Identificação e analise de práticas de gestão e planeamento próxi-mas do universo da produção informal de espaço público.

2 PRINcIPAl TóPIcO dEMARcANdO O SEU âMBITO E PROBlEMA PRINcIPAl

2.1 PERgUNTA dA INVESTIgAçãO

Que relações se estabelecem entre a produção informal de signos visuais por parte dos utilizadores e o projecto de reabilitação urbana / regeneração urbana, na ópti-ca do melhor uso de recursos necessários para a manutenção dos espaços?

2.2 PRINcIPAl TóPIcO

Pouco se sabe sobre as consequências da produção informal de signos visuais por parte dos utilizadores na durabilidade dos espaços.

Como já referido, no objectivo principal, esse tipo de produção de signos ori-gina conflitos com planos de “correcção” onerosa para o erário público, planos habitualmente formalizados em contratos de “limpeza e manutenção”. Estes pla-nos denotam uma abordagem genérica, baseiam-se no objectivo de restituir de-terminada aparência “formalmente” pré definida, ignorando ou negligenciando

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os motivos que originaram a “limpeza”. Os contractos são encargos que muitas vezes se tornam sorvedouros infindáveis de recursos. A manutenção da aparên-cia “formalmente” pré definida em certos locais poderá na realidade ser uma impossibilidade a médio, longo e, por vezes até, curto prazo.

As qualidades da abordagem (genérica ou não) tornam-se essenciais para atingir os objectivos de manutenção da aparência “formalmente” pré definida. Dentro da qualificação da abordagem caberá certamente a própria pré-definição “formal” da aparência, a qual poderá ter que ser alvo de reconsideração.

Julgamos que em prol da qualificação destas abordagens terá que ser reconsidera-do o papel da produção informal de signos por parte dos utilizadores na produção de espaço público. O requisito da informalidade (que supõe um menor grau de constran-gimento da acção) e espontaneidade são conceitos que caracterizam o tópico relativa-mente à qualificação do tipo de produção que se procura analisar.

2.3 âMBITOS

2.3.1 âMBITO ESPAcIAl dE IMPAcTO

Aqui é importante situar esta proposta de tese perante algumas relações espaço público - esfera pública. A definição adoptada de espaço público é a de Jordi Bor-ja, que nos lembra que “o espaço público é um conceito próprio do urbanismo que às vezes se confunde (erradamente) com espaços verdes, equipamentos ou sistema viário, mas que também é utilizado na filosofia política como lugar de representação e de expressão colectiva da sociedade”1.

O âmbito espacial de impacto é vasto, e apesar de proeminentemente se con-centrar em zonas urbanas, não se circunscreve exclusivamente a estas. Pelos escassos meios (ex: técnicos) ao alcance dos utilizadores o âmbito da sua acção reflecte-se sobretudo na dimensão de proximidade do espaço público que é al-cançável fisicamente pelo utilizador na sua vivência quotidiana.

Estes dados empíricos apontam para impactos ao nível do detalhe (micro) no espaço público que ganham expressão pela quantidade de ocorrências e sua dispersão. Estes pressupostos colocam-nos a uma escala disciplinar entre o ur-banismo e a arquitectura e suas relações.

2.3.2 cASO dE ESTUdO lARgO dO dR. JOSé dE fIgUEIREdO

Através de observações empíricas chega-se rapidamente à conclusão que existe uma necessidade de apelar à participação dos residentes e moradores na apro-priação do Largo Dr. José de Figueiredo, outrora local de função nobre ligada à distribuição da essencial água, actualmente “imóvel de interesse público”2.

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2.3.3 âMBITO dIScIPlINAR

A complexidade das funções que o espaços públicos abrigam obriga à permeabi-lidade disciplinar das fronteiras do âmbito da investigação, gerando assim uma estrutura multidisciplinar de apoio ás diversas etapas da investigação.

O desenho urbano, os espaços exteriores, públicos e ou colectivos são na rea-lidade os âmbitos específicos que se pretendem analisar. Esta análise não poderá ser feita, sem descurar a sua indissociável ligação com o âmbito disciplinar mais genérico da arquitectura e urbanismo, porem é na especificidade da prática do “desenho urbano” que melhor caracteriza o âmbito disciplinar desta investigação.

O desenho urbano é influenciado necessariamente por um conjunto de disci-plinas do âmbito das ciências sociais, nomeadamente a sociologia a antropologia, etnologia e a geografia humana. Em cada uma destas disciplinas existem aspectos de maior e menor relevância para o propósito da investigação, aspectos esses que serão ajustados à medida que a investigação será desenvolvida. Pela especificidade do objectivo da investigação a comunicação visual apresenta-se como um dos fac-tores de maior relevância. O design de comunicação e em particular a semiótica torna-se assim um campo a incorporar no âmbito disciplinar desta investigação.

Por fim, mas não menos importante, é essencial ter presente a relação que se es-tabelece entre o espaço público e o campo disciplinar das Artes plásticas em gran-de medida reflectido na produção (teórico-prática) de Arte pública, em particular na aceitação da Arte pública em coincidência com o conceito de Design Urbano3.

2.3.4 âMBITO METOdOlógIcO

– A. Justificações e objectivos (circunscrição do objecto de estudo, características, bibliografia) – B. Programa operacional (levantamentos, entrevistas, organização e sistematização de dados) C. Análise (diagnósticos, discussão de dados, confronto com bibliografia, conclusões)

Sobre esta organização desenvolve-se o método cientifico usual em ciências sociais e estudos socio-económicos, adaptando-se à flexibilidade necessária da organização de trabalhos, a qual deriva da constante determinação do objecto de estudo face a ciclos operacionais e de análise tornando a organização de tra-balhos não linear.

2.3.5 âMBITO gENéRIcO (dEfINIçãO dE cONcEITOS)

Tanto o conceito de durabilidade (precedido da adaptabilidade, muta-bilidade) como o conceito de participação (e suas variações) conformam em grande medida o âmbito genérico da investigação.

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Será importante frisar que relativamente ao conceito de participação será abordado especificamente nas suas modalidades informais e espontâneas, as-sim como o debruçar sobre as involuntárias, voluntárias, efémeras e mais per-manentes. Já quanto ao conceito de durabilidade será sempre abordado na sua perspectiva mais abrangente de combinação de factores materiais e economis-tas mas também sociais e ambientais.

O âmbito histórico/ físico/ social, Português, será igualmente tido em con-sideração. Por um lado é indissociável do caso de estudo e por outro contem ca-racterísticas muito particulares de relacionamento com o tema da participação informal e espontânea.

Genericamente o espaço público urbano permite ao cidadão uma interacção de uso (fortemente) regulada, em grande medida por razões de segurança (ro-doviária e do peão). Grande maioria das ocasiões permite-se o uso funcional do espaço através dos vários níveis de mobilidade, por vezes incorporando sistemas de interacção presencial, como botões (em algumas passadeiras) ou sensores (de controlo de velocidade ou activação através da presença).

O espaço público urbano é um espaço de interacção por excelência. Os cida-dãos (não como utentes, mas como produtores), uma vez “empossados” cada um na sua profissão, tornam-se potenciais agentes de modificação e reconfiguração do espaço público, directamente como calceteiros ou jardineiros mas também na dimensão social e organizacional do tecido económico da cidade.

À margem das colaborações “profissionais” e das possibilidades de inte-racção presencial, surgem no espaço público marcas, adaptações, construções decorrentes do uso, da espontaneidade, da informalidade, da necessidade não “comissariada”, não prevista, por vezes ilegal, por vezes simplesmente sem en-quadramento legal.

Para lá da avaliação da necessidade da participação dos utilizadores na con-cepção e gestão dos espaços públicos a sua ocorrência informal e espontânea é um facto, existe. Por vezes esta participação é plasmada de forma quase imperceptível, outras vezes impõe-se gerando conflitos de caracter funcional e conceptual.

Se no caso de conflitos decorrentes do uso (funcional) as tensões que são origi-nadas vão gerando as suas próprias soluções e ou equilíbrios (ref Asher), fazendo do espaço público o espaço de mediação por excelência, no caso dos conflitos concep-tuais, normalmente associados a ideais externos ao local, a resposta tende a ser ins-titucional e de correcção do que então poderá ser interpretado de “incompetência”.

Assim, o que se poderá considerar o problema da investigação, a falta de rela-ção entre os projectos de espaço público e a participação dos seus utilizadores na sua concepção e gestão, reflecte a deficiência de informações que fundamentem decisões técnicas sobre a matéria.

Face à incontornável existência do fenómeno “participação informal e es-pontânea”?? no espaço público será um problema que os projectos de espaço público o negligenciem, gerando uma ausência de dialogo com a origem dos conflitos que esses mesmos projectos se propõem resolver.

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O problema da investigação gera a oportunidade para re-centrar e re-avaliar a importância da participação informal e espontânea, do envolvimento dos utiliza-dores na (re)configuração nos projectos de espaço público e nos espaços públicos existentes. A emergência de modelos de espaço público que incluem processos participativos relaciona-se directamente com a escassês de recursos que inviabi-lizam as abordagens “top-down” convencionais. Assim, este problema cria opor-tunidades para reformulação procedimental da prática do desenho urbano. Estes momentos podem ser decisivos para a adopção de modelos mais duráveis, optimi-zados pelo dialogo entre técnicos e utentes, entre a concepção do “software” e os utilizadores (ref prosumer). Trata-se assim de uma oportunidade para analisar a implicação do utilizador na concepção e gestão dos espaços públicos.

A especialização do espaço público, consequência da profissionalização , é uma das faces visíveis do problema. A especialização profissional leva ao iso-lamento e à aleanação com a realidade, situação particularmente grave quan-do o resultado da profissão é o desenho de espaços públicos. Ao aprofundar o entendimento da relação entre os projectos de espaço público e a participação dos seus utilizadores na sua concepção e gestão, surgem também oportunidades para identificar quais os caminhos que definem essa relação.

Se grande parte da distância entre técnicos e utilizadores pode ser reduzida atra-vés da correcta comunicação e elucidação dos cidadãos por parte dos técnicos (prá-tica mais comum) considera-se que esta transmissão de conhecimentos é unilateral logo como processo participativo é incompleta. Como é evidente a comunicação deverá visar o esclarecimento e capacitarão dos utilizadores para uma contribuição efectiva no desenvolvimento dos projectos, a qual (supostamente) deverá ser devi-damente analisada e incorporada em nova ronda de comunicações e acções.

Esta formula de processo de participação (eg orçamento participativo) exige acima de tudo disponibilidade opinativa e de argumentação por parte dos utili-zadores, idealmente contribuindo com o que estes melhor sabem, as qualidades e defeitos directamente associados às suas práticas como utilizadores. Porem muitas vezes estas considerações são distorcidas por ponderações que almejam um caracter mais profissionalizante, até por vezes de forma descabida concor-rencial com os técnicos responsáveis pelo projecto em discussão.

Relativamente a outras formas de participação menos formais e mais espon-tâneas, eventualmente de caracter mais prático e menos teorizante, a relação en-tre técnico e utilizador ganha outros contornos, nomeadamente no que toca ao problema da profissonalização. Nestas formas de participação “mais práticas”, de reflexos imediatos e claros na fisicalidade do espaço público, o utilizador interage directamente com o projecto, invertendo de certa forma a origem do “dialogo”. Assim apesar da profissão do utilizador este deixa marcas do seu uso, comunica ou constrói propostas que serão alvo de interpretação, interacção e ou orientação por parte dos técnicos “especialistas” no desenho do espaço público.

Aqui é importante mencionar o problema associado à definição de partici-pação. Existem muitas formas, muitos tipos de participação, aliás a origem

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etimológica da palavra, “receber algo de outrem”, clarifica a dispersão do que ser poderá designar desta forma. Já na perspectiva de delimitação prévia, e como anteriormente referido neste documento, o foco desta investigação centra-se na participação informal e espontânea. Porem é de salientar que a abordagem desta investigação em torno do conceito participação não se limita ao foco, nomea-damente ao referir “processo participativo” estou a estabelecer relações com al-gum tipo de estrutura “procedimental” o que nem sempre é compaginável com as pulsões mais informais e espontâneas.

Se por um lado o foco se situa na participação “não regulada”, por outro lado é importante entender a sua relação com a participação “regulada”. Qual a ori-gem do processo, a necessidade de participação ou a participação como instiga-dora de comportamentos que até então seriam residuais. Tendo em conta que o foco e âmbito da participação já foram supracitados, para finalizar no âmbito deste problema clarifico a intenção de avaliar a incidência da participação sobre-tudo nos aspectos que resultaram (e resultem) em alterações do espaço público e seus elementos desenhados. Ficando assim ausentes desta avaliação a inter-pretação da participação como presença física do nosso corpo em determinado espaço, participação como interacção “passiva”, sem alterações conscientes ou inconscientes, com elementos desenhados do espaço público.

A definição dos limites do que se considera espaço público, desenvolve ou-tro dos problemas decorrente desta dialética entre técnicos especializados e “co-mum” utilizador. A partilha do conceito espaço público é flutuante, a expres-são não significa o mesmo para todos, independentemente do facto de serem utilizadores ou técnicos. Estas nuances de interpretação podem ter origem em inúmeras fontes, nomeadamente ao nível da interpretação dos limites do que é público ou privado fundadas em dados normativos ou de índole politico-social.

A própria definição do que é público torna-se um problema associado a esta proble-mática, remetendo claramente para concepções de organização colectiva, que, como sabemos, podem ser sobejamente distintas. A outra face da mesma moeda encontra-se a noção de privado, de posse, individual ou de determinada colectividade isolada da comu-nidade genérica que somos como sociedade. À semelhança da noção de espaço público a definição de conceito de propriedade privada assume-se como um problema decorrente da relação entre técnico e utente. Apesar da matéria de trabalho ser de facto o espaço público, ele é conformado pelo espaço privado e por vezes indefinido em relação a este.

Como é evidente não cabe a esta investigação aprofundar totalmente temas decorrentes do problema principal, porem, é de extrema importância determi-nar a profundidade com que estes irão influenciar o seu desenvolvimento. Na definição destes limites procurarei ir ao encontro das tendências mais represen-tativas, principalmente aquelas que mais influenciem o problema principal. Nomeadamente no âmbito dos territórios do caso de estudo, nas suas relações internas de propriedade entre utentes do mesmo grupo, assim como com as re-lações com grupos externos, moldando assim desde logo vários entendimentos e camadas desta dualidade público privado.

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O problema principal é uma oportunidade para clarificar (tanto quanto pos-sível) a relação entre a participação e a durabilidade, mutabilidade, adaptabi-lidade no contexto da concepção e gestão dos espaços públicos. Se existe esta relação será necessário clarificar os conceitos de participação, como já abordado, mas também os conceitos de durabilidade.

cONclUSãO

As “Transformações informais e espontâneas desenvolvidas no espaço público pelos seus utilizadores”, está longe de ser um tema facilmente delimitado.

É importante a título de conclusão fazer a referência a uma exposição com o titúlo “Actions: What You Can Do With the City” apresentada no Canadian Cen-tre for Architecture, em Montréal, onde esteve patente de Novembro a Abril de 2009. Esta exposição pretendeu reunir (como o titulo indica) um conjunto de ferramentas para produzir acções na cidade. Especificamente, no sub-titulo da exposição refere-se: 99 acções que estimulam mudanças positivas nas cidades contemporâneas de todo o mundo (tradução directa). Esta exposição foi acompan-hada pelo lançamento de um livro com o mesmo nome (catálogo) assim como por um website onde se permite ao internauta que adicione sugestões de acções.

A exposição era constituída essencialmente por 99 fotografias/ desenhos, de projectos de acções como andar, brincar, reciclar, jardinagem, etc. Apesar de o enfoque não ser a “informalidade e espotâneadade”, o tipo de acções resultante destes 99 projectos aproxima-se bastante das tipologias que indicam fortes graus de envolvimento na adaptação dos espaços públicos.

Esta aproximação deve-se aos factores “curatoriais” e organizativos da própria exposição, nomeadamente o baixo custo das intervenções, a reutiliza-ção de elementos existentes na rua, a autonomia construtiva, entre outros el-ementos igualmente relacionados com aspectos de adaptabilidade e iniciativa por parte dos utlizadores dos espaços públicos, em tudo semelhantes aos com-ponentes principais da hipotese que pretendo investigar com a “Linha que une”.

REfERêNcIAS

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NOTAS

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• 2 Classificado pelo IPPAR, como Imóvel de Interesse Público em 10 de Agosto de 1998 pela portaria n.º

512/98 do Diário da República (I Série-B), n.º 183.

• 2 BRANDÃO, P., REMESAR, A. (2003), Design de espaço público, deslocação e proximidade, Lisboa: CPD, p36

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A MUSEAlIzAçãO dO PATRIMôNIO cUlTURAl dO BAR OcIdENTEThE MUSEAlIzATION Of BAR OcIdENTE cUlTURAl hERITAgE

Priscila Chagas Oliveira Ana Carolina Gelmini de Faria Jeniffer Alves Cuty Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Resumo: Este artigo apresenta a metodologia aplicada para a construção do Pro-jeto de Pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso em Museologia da autora. Buscou compreender o processo de musealização dos testemunhos do Bar Oci-dente (Porto Alegre/RS/Brasil), que culminou na criação do Acervo Digital Bar Ocidente. Os resultados preliminares identificam a gestão de acervo empregada, assim como a importância da integração e socialização dos grupos com e através do acervo digital.

Palavras-chave: Musealização. Patrimônio Cultural. Patrimônio Digital. Acervo Digital.

Abstract: This paper presents an applied methodology of the final paper project in Museum Studies undergraduate degree from the present author. The main objective was to understand the process of musealization of the testimonies col-lected at Bar Ocidente (Porto Alegre/RS/ Brazil), which culminated in the crea-tion of the Digital Archive Bar Ocidente. Preliminary results identify the man-agement employed on the archive, as well as the importance of integration and socialization of groups with and through the digital collection.

Keywords: Musealization. Cultural heritage. Digital heritage. Digital Archive

INTROdUçãO

Este trabalho é um recorte do Projeto para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Museologia, pela Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FABICO/UFRGS) da autora, sob orientação das professoras Ana Carolina Gelmini de Faria e Jeniffer Cuty. É im-portante destacar que esse projeto buscou entender como se deu o processo de musealização para a constituição do acervo digital de imagens do Bar Ocidente, levando em consideração a identidade cultural dos grupos urbanos frequenta-dores do bar. Também é relevante salientar que esse trabalho dá enfoque à me-todologia aplicada na busca por aproximar áreas de conhecimento diferentes, mas que se complementam no processo de análise da construção desse acervo.

O tema para a pesquisa surgiu da iniciativa de um Projeto intitulado “Oci-dente: Memória Cultural de Porto Alegre” iniciado em 2011, pela “Alecrim

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Produções Culturais e Cinematográficas,” de dar acesso aos testemunhos ma-teriais do bar, enquanto patrimônio cultural, a serem disponibilizados online no recém criado “Acervo Digital Bar Ocidente”. Porém, cabe observar que foi através do Projeto de Extensão intitulado “Acessibilidade, Direitos Culturais e Preservação do Acervo do Bar Ocidente,” coordenado pela Profa. Jeniffer Cuty, (FABICO/UFRGS), que a autora foi convidada a trabalhar na construção desse espaço e iniciou sua pesquisa.

Além da relevância como um novo espaço de socialização de um acervo cultural e de um patrimônio digital, este trabalho se justifica pelo fato do Bar Ocidente ter sido identificado como um Patrimônio Cultural da cidade de Por-to Alegre1, que representa, através de seus frequentadores, diversos momentos de mudança sociocultural da cidade reunindo a música, o teatro, o cinema e as artes em seu espaço.

Para a escolha das referências do Projeto de Pesquisa, pensou-se na represen-tação de uma identidade cultural (GUARNIERI, 2011) e de uma memória coleti-va (HALBWACHS, 2006) através da materialidade que fez (e faz parte) da traje-tória do Bar Ocidente, que nesse trabalho é interpretada enquanto testemunhos do próprio Bar, seu patrimônio cultural. A este processo, na perspectiva mu-seológica, denominamos de musealização, ação que intencionaliza um objeto em documento, representante de um grupo, a partir das práticas de selecionar, colecionar, tratar, organizar e disseminar (OTLET2 apud SMIT, 2008) as referên-cias culturais em um espaço institucionalizado. A forma de comunicação desse acervo, fruto da cibercultura (LEMOS, 2007), também foi uma referência chave nesse projeto, por tratar-se de uma potencialidade comunicacional que ganha destaque nas discussões atuais sobre a manutenção e preservação dos patrimô-nios digitais existentes (UNESCO, 2003).

No entanto, esse artigo procurará apresentar apenas o caminho metodológi-co utilizado para a construção desse projeto de pesquisa, dando ênfase ao refe-rencial metodológico e à exposição dos resultados preliminares, visto a referida pesquisa ainda estar em fase inicial.

1. O BAR OcIdENTE

Antes de iniciarmos a discussão proposta para esse artigo, cabe situarmos (no tempo e no espaço) o próprio Bar Ocidente, o qual o acervo se propõe a represen-tar. Com essa pequena introdução de contextualização, será possível entender melhor o tema pano de fundo do processo de musealização do Acervo Digital Bar Ocidente.

O Bar Ocidente (Figura 1) é um bar que está localizado na Rua João Telles, esqui-na com a Avenida Oswaldo Aranha, no centro do Bairro Bom Fim em Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil). Foi Inaugurado em 3 de dezembro de 1980, cinco anos antes do fim da ditadura militar no Brasil (1964-1985). O Bairro Bom Fim, conforme Pedroso (2009) trata-se de um bairro associado à boemia porto-alegrense, que teve

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nos anos de 1970 e 1980 o seu auge. Lá, em função da proximidade com o campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (onde todos os cursos se encontravam), com diversos bares, cinemas, auditórios, espaços culturais, o Bar Ocidente foi criado como um dos palcos dessa efervescência.

O ‘Ocidente’ também marca a nova ‘Esquina Maldita,’ elegido dessa forma pelos órfãos, estudantes e festeiros da primeira ‘Esquina Maldita’:

[ . . . ] situada na Avenida Oswaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite, já era Maldita em

função do comportamento dos frequentadores – em sua maioria estudantes - dos bares

Alasca, Marius, Estudantil e Copa 70, que devido à proximidade com a Universidade Fede-

ral do Rio Grande do Sul, construíram um comportamento, um espaço de ação, um ethos,

em uma sociedade sufocada, que não apresentava saídas. (OLIVEIRA, 2012: 7).

Criado por amigos, esses mesmos estudantes, ligado às artes, o Bar quis ser o espaço que os mesmos precisavam, e que ao mesmo tempo pudesse marcar a vida de seus frequentadores através do teatro, da música e da liberdade.

Sua permanência deve-se a sua capacidade de mutação: indo da rebeldia e contestação dos anos de 1980, às interdições e ao pouco movimento dos anos de 1990 e à reviravolta dos anos 2000, caracterizado pela pluralidade de projetos, com destaque ao Sarau Elétrico, iniciado em 1999 e ao Ocidente Acústico ini-ciado em 1998. Nesse sentido Simmel nos fala desse fator de manutenção dos grupos: “A saúde do corpo social só se dá pelas mudanças de conduta, de deslocamento de interesses, de contínuas variações nas formas” (WAIZBORT, 2000: 54).

Assim, desde a sua criação, vem se constituindo em lugar de encontro, debate e diversão de

sujeitos que, em diversos momentos, foram fundamentais nos movimentos de mudança de

pensamento e abertura cultural da cidade e do estado. Por sua vida, o bar perdurou, ecoando

sua história, sendo considerado Patrimônio Cultural da cidade de Porto Alegre e justificada-

mente, razão para a criação do Acervo Digital Bar Ocidente, tema desse trabalho.

Fig. 1 - Esquina onde se encontra o Bar Ocidente. Vista da Av. Osvaldo Aranha. Foto da década de 80.

Fonte: Acervo Digital Bar Ocidente, 2013

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1. METOdOlOgIA

O projeto de pesquisa se propôs a buscar uma metodologia a analisar o processo mu-seológico em que os testemunho materiais do Bar Ocidente estiveram submetidos no ano de 2011 e 2012.

Com uma equipe interdisciplinar (1 Produtor Cultural, 1 Bibliotecário, 1 Arquiteta, 2 estudantes de Biblioteconomia, 3 estudantes de Museologia, 1 Pro-gramador e 1 equipe de Web Design), pôde-se tratar o acervo físico existente3, salvaguardando-o a fim de digitalizá-lo. Essa primeira etapa levou a uma reflexão sobre a representatividade desse acervo para os frequentadores do Bar Ocidente, que constituem grupos urbanos. Portanto, a metodologia escolhida para o Proje-to foi de cunho qualitativo, com referências em pesquisas etnográficas, que são aplicadas em estudos realizados, sobretudo, no campo da Antropologia (ROCHA; ECKERT, 2008); (THIOLLENT, 1982); (SPRADLEY, 1979).

Assim, em um primeiro momento optou-se pela identificação dos sujeitos que tiveram papel essencial na construção desse acervo e, a partir das temáticas e dos personagens que o acervo ‘falava,’ buscou-se localizar informantes que poderiam (re) construir no âmbito da pesquisa, a identidade cultural dos grupos frequenta-dores do Bar Ocidente. Por fim, identificaram-se três tipos de sujeitos essenciais na criação e manutenção do Acervo Digital Bar Ocidente:

· Sujeitos 1 - Idealizadores do Bar Ocidente e do Acervo (tanto físico e quanto digital);· Sujeitos 2 - Frequentadores do Bar Ocidente (os chamados habitués);· Sujeitos 3 - Equipe Técnica interdisciplinar do Projeto (profissionais envolvi-

dos na criação e comunicação do acervo);

Como técnica de coleta de dados, foram escolhidas as seguintes: dois tipos de entrevistas, as semiestruturadas e as não diretivas e análise documental de todo material gerado e/ou consultado no projeto (inventário do acervo; manu-al de preenchimento de inventário e referências teóricas sobre documentação museológica consultada previamente pela equipe executora). Para a construção do referencial teórico, que daria suporte a análise dos dados, procurou-se apro-ximar as áreas da Comunicação, da Antropologia, da Sociologia, da Museologia, da Conservação, da Biblioteconomia e da Documentação.

Na aplicação das técnicas, para equipe técnica do projeto foi utilizado como instrumento de coleta, o roteiro de entrevista semiestruturada por indicação da orientadora, pois essa técnica combina a flexibilidade do discurso do entre-vistado com a direcionalidade da estruturação desse instrumento de pesquisa (SPRADLEY, 1979). Essa técnica de entrevista veio a calhar devido a esse grupo de sujeitos terem executado uma atividade essencialmente prática, mesmo que embasados em uma teoria. Já para os idealizadores e habitués, o roteiro foi o de entrevistas não diretivas que busca o discurso livre do entrevistado (THIOL-LENT, 1982) e se justifica por serem os sujeitos responsáveis pela (re) afirmação

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de uma identidade cultural em função das suas vivências, práticas sociais e seus estilos de vida.

Os entrevistados foram escolhidos na observação dos personagens que estive-ram envolvidos na reunião desses testemunhos e no ato de disponibilizá-los onli-ne. Os demais surgiram dentro do próprio acervo trabalhado, seja nas imagens ou nas reportagens de jornal e revistas encontradas, configurando-se no processo de identificação dos sujeitos sociais relevantes à pesquisa. Nas falas de um ou outro (idealizadores e integrantes do Projeto “Ocidente: Memória Cultural de Porto Ale-gre”) também surgiram sinais dos personagens que poderiam representar a totali-dade dos grupos sociais pertencentes ao bar.

Assim, essa metodologia procurou formar uma rede de sociabilidade que pu-desse dar conta de todas as instancias e dinâmicas que fizeram parte da construção do Acervo Digital Bar Ocidente.

1. RESUlTAdOS PRElIMINARES

A pesquisa que está em fase inicial, objetivou a realização de um levantamento sobre o contexto de construção das equipes, do projeto, da teoria e do acervo, sempre destacan-do o caráter interdisciplinar empregado na análise do tema inicial de pesquisa. No que tange a recolha de dados, buscou-se a identificação dos procedimentos (já realizados pelo Projeto “Acessibilidade, Direitos Culturais e Preservação do Acervo do Bar Oci-dente”) que envolvem a gestão do acervo, que nessa pesquisa é pensada como os “vá-rios métodos legais, éticos, técnicos e práticos pelos quais as colecções do museu são formadas, organizadas, recolhidas, interpretadas e preservadas.”. (LADKIN, 2004: 17).

Dentre os procedimentos de gestão de acervo podemos citar: a Aquisição e Incorporação do Acervo (inventário, numeração e identificação já realizados no acervo), a Conservação Preventiva do acervo físico (procedimentos de higieni-zação, pequenos reparos e acondicionamento já realizados no acervo), a Docu-mentação (classificação, catalogação e pesquisa em andamento), a Digitalização e Comunicação (a partir da criação do Acervo Digital Bar Ocidente) e a criação do Manual de Preenchimento do Inventário (processo em permanente atualização).

A análise dessa primeira etapa foi realizada entendendo-se que o processo de musealização é a própria preservação relizada na prática das instituições e que encontra-se inserida nos métodos da gestão de acervo. Nesse esquema abaixo (Fi-gura 2) é possível entender a Musealização tida como resultado de ações especi-ficas sobre o acervo: documentar, conservar e comunicar. O destaque é dado aos procedimentos que foram realizados no acervo.

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Fig. 2 - Esquema do Proceso de Musealização, com destaque para os procedimentos

ridentificados no Acervo Digital Bar Ocidente.

Quanto ao Acervo Digital Bar Ocidente (Figura 3), objeto dessa pesquisa, verificou-se que o espaço virtual já tem seu endereço (http://acervodigitalbaro-cidente.com.br), e passou por uma fase de arrecadação de mais testemunhos, em forma de doação, por parte dos seus frequentadores.

Fig. 3 - Página Inicial do Acervo Digital Bar Ocidente

Fonte: Acervo Digital Bar Ocidente

Nesta etapa, a pesquisa verificou que a campanha, criada e divulgada por di-versos meios de comunicação (Figura 4), visa socializar o espaço virtual também como forma de interação e identificação dos grupos sociais com seu patrimonio cultural. Outros espaços como o Facebook, por exemplo, foram utilizados como ferramenta de divulgação e de socialização, por onde os frequentadores ou ape-nas outros interessados, podem conhecer o Projeto, o Acervo e ainda reconhece-rem-se nas fotografias e nas histórias que ali são compartilhadas.

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Fig. 4 - Campanha de Doações de Acervos

Fonte: Edição Digital do Jornal Correio do Povo de 16 setembro de 2012.

Essa interação é o fator essencial para a manutenção permanente desse acer-vo, que ocorre quando da apropriação dos grupos com os testemunhos que os representam. E nesse sentido, também para a preservação do patrimônio digital construído, o qual é inerente a grande preocupação da sociedade contempora-nea com o seu desaparecimento, seja por desuso ou falta de manutenção ou ob-solescência dos equipamentos, que poderá constituir um empobrescimento do patrimônio cultural de toda as naçôes. (UNESCO, 2003)

cONclUSãO

A comunicação aqui apresentada se propôs a demonstrar um recorte do Projeto de Pesquisa para o Trabalho de Conclusão de Curso em Museologia em que a au-tora está a trabalhar desde o ano de 2011. Projeto esse que se destaca em função de sua problemática ter surgido de uma atividade prática de extensão universi-tária que posteriormente foi pensada em função de sua teoria. A participação da autora na totalidade do projeto a fez questionar, em forma de pesquisa, suas próprias ações, no âmbito da musealização, obrigando-a a se colocar de fora de um processo, desnaturalizando suas próprias práticas.

A metodologia aqui exposta procurou trabalhar com a interdisciplinaridade in-trínseca ao projeto inicial de criação do Acervo Digital Bar Ocidente: “Ocidente: Me-mória Cultural de Porto Alegre,” que logo percebeu a necessidade de parceria com a Museologia e através da Profa Jeniffer Cuty, construiu o Projeto de Extensão intitu-lado “Acessibilidade, Direitos Culturais e Preservação do Acervo do Bar Ocidente.”. Em ambos os projetos, a Comunicação, a Antropologia, a Sociologia, a Museologia, a Documentação e outros campos dos saberes se complementavam para que o acervo proposto fosse construído com teoria e práticas concisas. E foi por esse caminho que a metodologia seguiu, utilizando diversas teorias e técnicas de pesquisa dessas áreas, optando assim, pelas entrevistas diretivas e semiestruturadas e análise documental como técnicas propriamente ditas do projeto de pesquisa da autora.

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Para essa comunicação, o caminho metodológico escolhido foi revisto e aqui exposto de maneira a poder auxiliar futuras pesquisas que venham a trabalhar com diferentes áreas do saber que se interpenetram, como é o caso do estudo com acervos, museus, centros culturais e sua relação com os objetos que salva-guardam, formação dos grupos.

Mesmo em fase inicial, a pesquisa provoca uma significativa reflexão me-todológica, na qual percebe-se que o processo de musealização empregado fun-damentou-se na aquisição e incorporação do acervo através do inventário e da documentação realizada e a partir daí, as demais ações foram sendo realizadas e implementadas. A preocupação com a documentação, a conservação e a comu-nicação do patrimônio digital criado permeou as ações dos sujeitos envolvidos nos projetos já citados e figura a preservação em si, através das práticas de gestão de acervos.

A última etapa da musealização, a promoção do acervo em meio virtual, está em pleno funcionamento, optanto mais pela interação e cooperação entre os sujeitos representados pelo acervo do que pela comunicão museológica tradi-cional. Com a criação de perfis nas redes sociais (Facebook, Twitter), essa nova forma de comunicação museológica, tem tornado acessível um acervo que antes era somente disponível ao proprietário do bar e pessoas próximas, o que facilita-rá a re-afirmação da identidade cultural desse grupo, a socialização e a valoriza-ção de seu patrimônio cultural.

Cabe para finalizarmos nossas considerações, atentarmos para a preocupa-ção quanto a manutenção desse espaço e para a preservação do património di-gital que já está disponível na web. Grandes são as discussões atuais sobre as po-líticas de gestão do patrimônio cultural que contemporaneamente estão sendo lançados no ciberespaço, com a conceituação de patrimônio digital. No âmbito do Brasil e do mundo, as discussões são apresentadas em diferentes fóruns, semi-nários, encontros, conferências. Trago apenas dois exemplos: “Seminário Inter-nacional sobre Sistemas de Informação e Acervos Digitais de Cultura”, realizado no início do corrente ano em São Paulo, Brasil e organizado pelo Ministério da Cultura do Brasil e a conferência internacional intitulada “Memória do Mundo na Era Digital: Digitalização e Preservação”, ocorrida no final do ano de 2012 e organizada pela Unesco em Vancouver, Canadá. Espaços que são colocadas pro-blemáticas, discutidas as soluções ou desafios de todos os profissionais envolvi-dos nessas questões. Desafios que são maiores à área da Museologia, merecendo aprofundamentos teóricos no que tange ao processo de musealização e gestão do acervo desses novos patrimônios digitais.

Enfim, quanto a criação do Acervo Digital Bar Ocidente, é possível afirmar que é somente com essa integração entre comunidade e o produto da musea-lização, que nesse caso, o espaço virtual proporciona, é que a musealização se legitima e se mostra parte integrante da identidade cultural de grupos sociais para os quais o Bar Ocidente é lugar, o ponto de encontro.

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Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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NOTAS

• 1 Conforme notificação do Diário Oficial de Porto Alegre, de 07/05/2012: “O Secretário Municipal da

Cultura, dando atendimento aos artigos 7º da Lei Complementar 601 de 23 de outubro de 2008, NOTI-

FICA os proprietários e possuidores do imóvel à Avenida Osvaldo Aranha número 960/966 esquina Rua

General João Telles - “Bar Ocidente” - sobre a INCLUSÃO NO INVENTÁRIO DO PATRIMÔNIO CULTU-

RAL DE BENS IMÓVEIS, conforme parecer do COMPAHC nº 02/12 de 16/01/2012 e homologação do

Senhor Prefeito de 18/01/2012.” PORTO ALEGRE. Notificação do Diário Oficial de Porto Alegre, 7 mai.

de 2012. ANO XVII, Edição 4254, p. 14.

• 2 OTLET, Paul. Traité de documentation: Le livre sur Le livre. Bruxelas: Editiones Mundaneum, 1934.

• 3 O acervo físico pertence a Fiapo Barth, proprietário do Bar Ocidente, que tem guardado, junto a secretá-

ria do Bar, Cikuta Castanheiros, diversos objetos e documentos sobre a trajetória do bar.

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ARTE, ARqUEOlOgIA E MUSEUS. correspondências e Mediações contemporâneasART, ARchAEOlOgy ANd MUSEUMS. contemporary correspondences and Mediations

Sara NavarroCIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes. Secção de Investigação e de

Estudos em Ciências da Arte e do Património - Francisco de holanda

Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: A partir da constatação de que artistas e arqueólogos prestam, atual-mente, cada vez mais atenção ao respectivo trabalho de uns e de outros, propo-nho explorar a forma como a arte contemporânea – em particular a escultura – se pode encaixar no projeto arqueológico de estudo, compreensão e comunica-ção do passado humano.

Palavras-chave: Arte, Arqueologia e Transdisciplinaridade

Abstract: Stemming from the observation that artists and archaeologists are, these days, paying more attention to each other’s work, I propose to explore the way in which contemporary art – sculpture in particular – can fit in the archaeological project of study, comprehension and communication of the hu-man past.

Keywords: Art, Archaeology and Transdisciplinarity

INTROdUçãO

O diálogo, histórico e permanente, entre arte e arqueologia e a, cada vez mais comum, colaboração de artistas nos projetos de investigação arqueológica leva--me, como ponto de partida para a presente comunicação, a questionar a nature-za desta relação, o status do artista para a arqueologia e o interesse dos arqueólo-gos na prática artística.

Centrada no caráter reflexivo e subjetivo da cultura material, proponho o desenvolvimento de novos métodos, menos científicos e mais estéticos, em que o olhar dos artistas pode ser integrado na metodologia arqueológica, com vista a desenvolver novos modos de ver e registar, de pensar e representar, de comu-nicar e expor.

Tal como acontece com a prática artística contemporânea, a meu ver, é cru-cial que o trabalho da arqueologia não se limite à análise hermética do passa-do, mas se envolva também na pluralidade e multivocalidade do pensamento contemporâneo. Ainda que ciente das diferenças entre as disciplinas, acredito

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que as propostas culturais da arte contemporânea podem ser um instrumento valioso para a análise arqueológica.

A interdisciplinaridade leva, geralmente, à criação de pensamento original. Rumo a um novo território intelectual, a prática interdisciplinar implica assu-mir riscos, criar rupturas, dar saltos, abdicar, quebrar convenções, renunciar à facilidade de continuar dentro do que é expectado e, claro, do que é aceite.

Há muito que os artistas compreenderam que a transgressão das fronteiras disciplinares e a resistência a categorizações leva a um desenvolvimento disci-plinar, visando o crescimento e possibilitando uma ontologia transversal.

Penso que, tal como a arte, a arqueologia e os estudos patrimoniais podem beneficiar ao localizar-se num campo expandido, num contexto mais alargado, que é simultaneamente arqueológico, histórico e artístico.

POTES E TRANSfIgURAçõES: A ARqUEOlOgIA cOMO PRETEXTO

PARA A EScUlTURA

Após a minha licenciatura em Escultura, o trabalho que desenvolvi, entre 2006 e 2008 no Museu de Portimão, colocou-me em grande proximidade com o traba-lho de uma equipa de arqueologia. Esta colaboração fez emergir questões rela-cionadas com a relevância do cruzamento entre o mundo da arte e o mundo da arqueologia, na formação, visão e concepção da cultura contemporânea.

Com esta experiência, fui-me apercebendo de todo um campo de investigação em que poderia dar um contributo inovador às perspectivas que se foram cons-truindo no âmbito do diálogo entre arte e arqueologia, associando-lhes um traba-lho de produção artística. Foi assim que, em 2008, iniciei a investigação de dou-toramento em Escultura, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, sob o título Potes e Transfigurações: a arqueologia como pretexto para a escultura.

De carácter teórico-prático, o meu trabalho procura, através de uma ligação entre a investigação arqueológica e a produção artística, a criação de objetos es-cultóricos que se aproximem das formas de cerâmica pré-histórica, distinguin-do-se destas pela alteração da escala, por uma manipulação original dos esque-mas decorativos e pela ruptura com a funcionalidade. Com este trabalho, espero não só contribuir para uma visão alargada sobre a cerâmica pré-histórica, como também encontrar o seu espaço na teoria da arte e mostrar a relevância do seu estudo para a criação artística contemporânea.

O estudo da cerâmica arqueológica interessa-me na medida em que, a partir dela, é possível recolher um conjunto de aspectos tecnológicos, morfológicos, decorativos e simbólicos que podem, a meu ver, ser aplicados, com interesse, ao campo da escultura contemporânea.

A minha curiosidade pela tecnologia de fabrico de cerâmica pré-histórica levou-me, em 2007, ainda antes de iniciar a investigação de doutoramento, a participar na II Oficina de Cerâmica Etnográfica, organizada pelas Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo. Nesta oficina, pude observar o ‘saber-fazer’ de

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oleiras da ilha de Santiago (Cabo Verde) e tentei estabelecer, pela primeira vez, pontes entre a criação artística, as técnicas ancestrais de produção de cerâmica e a morfologia das cerâmicas pré-históricas.

Considero importantes os paralelos etnográficos e os estudos etnoarqueoló-gicos, pois podem contribuir para uma melhor compreensão dos processos de fa-brico da cerâmica pré-histórica, assim como das representações simbólico-rituais envolvidas tanto na tecnologia de produção como na utilização das cerâmicas.

O contacto com a olaria tradicional cabo-verdiana teve não só influência em toda a minha criação artística subsequente, como também na componente pe-dagógica da minha investigação de doutoramento.

Neste âmbito pedagógico, saliento a residência artística no Museu de Porti-mão, onde, desde 2011, desenvolvo trabalho prático na área da criação artística e onde organizei, em 2012, a Oficina de Cerâmica Pré-histórica, que teve lugar no Centro de Interpretação de Alcalar e na qual participaram, além do público ge-ral, artistas plásticos e arqueólogos.

Saliento, ainda, uma anterior oficina, intitulada O Sentido dos Potes nas Ori-gens: Hoje, que coordenei, em 2010, no Telheiro da Encosta do Castelo de Mon-temor-o-Novo e que contou com a participação dos alunos do Laboratório de Cerâmica da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

Nestas oficinas, procuro – não só a partir da minha experimentação e do contacto com as matérias primas, mas também a partir da observação da expe-riência dos outros participantes – compreender as escolhas dos indivíduos ao desenvolver, replicar e adotar uma determinada tecnologia.

Com um potencial simbólico reconhecido, a cerâmica é tida como símbolo so-cial de expressão cultural, revestindo-se, tanto a sua produção como a sua utiliza-ção, de significados simbólicos e rituais. A arqueologia tem vindo a reconhecer o seu valor enquanto fonte de informação, como veículo de mensagens e como um poderoso meio metafórico através do qual as pessoas se exprimiam e refletiam o seu mundo. A forma como os humanos usaram os artefactos para definir, estrutu-rar e alterar as relações sociais é um tópico de interesse para a minha investigação. Neste sentido, os artefactos não são, a meu ver, produtos neutros, meramente uti-litários, mas produtos ideológicos resultantes de produções conscientes, codifica-doras e transmissoras de significados sociais específicos. Ao procurar entender a relação entre pessoas e artefactos – cultura, ambiente e mente – reflito sobre o fazer, o usar, o reutilizar e o depositar dos artefactos cerâmicos.

Relacionada com estruturas sociais e ideológicas, a cerâmica arqueológica é um produto histórico que corporiza as ideias, valores e condições sociais do tempo dos seus produtores (SHANKS; TILLEY, 1992:137). As formas cerâmicas representam as escolhas culturais de um contexto histórico-social específico e a sua decoração responde a regras ou normas culturais que determinam a loca-lização, orientação e combinação dos elementos em configurações que devem constituir um estilo ou design apropriado (SINOPOLI, 1991:9).

Noutra perspectiva, também me interessa o pensamento mítico sobre a

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significação associada à produção e à utilização de objetos cerâmicos. As fon-tes da antropologia relativas ao fabrico de cerâmica manual indicam que esta arte, menos simples do que possa parecer, é uma prática rodeada de costumes e tabus. A argila associa-se a representações mágicas e religiosas e existe toda uma ‘filosofia’ primitiva que subjaz à sua confecção, ela é objecto de numerosas práticas rituais, precauções e cuidados (LÉVI-STRAUSS, 1985:25). As oleiras – que usam o poder do fogo para impor uma determinada forma a uma matéria amorfa, transformando-a, disciplinando-a – são frequentemente vistas como figuras associadas a poderes rituais, a saberes ‘especiais’, secretos ou mágicos (LÉVI-STRAUSS,1985:27). E, no mesmo sentido, também as formas cerâmicas, em especial os potes, são profundamente infundidos de significados mágico--sociais. Associados a antigas práticas religiosas, os potes – formas habitadas por espíritos – movimentam-se entre o mundo doméstico e o mundo ritual (BAR-LEY, 1994:92).

Penso que esta conexão entre arte, arqueologia, antropologia e etnografia pode ser um campo muito fértil para a criação de escultura contemporânea. A partir da investigação sobre os possíveis pensamentos, decisões, motivações e ideias existentes por trás de cada objecto e da reprodução dos respectivos proces-sos tecnológicos, poderá a arte contemporânea (re)encontrar novas linguagens plásticas, algumas das quais há muito perdidas. Desta forma, o trabalho artísti-co pode suscitar novas abordagens no domínio da arte contemporânea e novos olhares e perspectivas relativamente aos objetos cerâmicos estudados, permi-tindo que se abram caminhos inovadores de reinterpretação e valorização do património arqueológico e dos saberes etnográficos.

Sabendo eu que a arte é indissociável da sequência de objetos históricos que lhe servem de enquadramento, o conceito de herança e continuidade no domí-nio da arte é central para o trabalho que realizo. Penso que cada obra humana se coloca, de forma mais ou menos consciente, no interior de uma cadeia de obras similares, ou de ‘sequências formais’, que atravessam os milénios. Neste sentido, uma sequência formal, ainda que esteja inativa durante milénios, pode sempre ser reativada pelo estímulo de novas técnicas ou de novos acontecimentos. Inde-pendentemente dos ciclos históricos, podemos verificar a ocorrência de sequên-cias formais, numa história aberta onde não existe nada que não possa voltar a ser atual (KUBLER, 1962).

As coisas possuem uma ‘idade sistémica’ que pouca relação tem com a idade cronológica:

as obras humanas são como as estrelas cuja luz partiu em direção ao observador muito

antes de lhe aparecer. (PERNIOLA, 2003)

No meu trabalho exploro a relação entre a mão e a matéria no sentido do saber--fazer artesanal, anunciando um possível retorno da escultura a uma produção ancestral. Invoco as práticas primitivas da produção de objetos utilitários e co-

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noto a prática da escultura com um valor arcaico, quase arquetípico. Concentro--me na forma como o corpo age sobre a argila, massa em movimento, que vai ganhando forma ao receber a orgânica pressão das mãos. Caracterizadas pela morfologia, simbologia e pelo processo de produção, as peças podem ser enten-didas como testemunhos de uma origem, de um espaço-tempo ancestral, para o qual parecem querer transportar o observador que com elas se relaciona.

Na exposição Formas de Terra e Fogo (Museu de Portimão, 2012), as peças, que exprimem claramente a sua própria massa inerente às propriedades físicas do material cerâmico, aparentam, pela técnica de instalação, estar em suspen-são, livres do próprio peso. Esta extrema leveza aparente, ou visual, permite que as esculturas saiam da condição de objecto, ultrapassem a sua materialidade e ganhem novos significados simbólicos. Suspensas no espaço da exposição, as peças, dotadas de um investimento de energia que as impele contra a gravidade, vencem a resistência do seu próprio peso e pairam como corpos animados ou planetas num espaço cósmico.

Figs. 1 e 2 - Exposição Formas de Terra e Fogo, escultura de Sara Navarro,

Museu de Portimão. Fotografia R. Soares

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É no museu, ou no espaço da exposição, que, através da emoção estética, o observador pode metamorfosear as peças em ideia. As peças aproximam-se de uma ‘corporização abstracta’, isto é, se por um lado assumem a forma enquan-to tal, por outro, a maneira como são colocadas no espaço expositivo contribui para uma superação da sua ‘objetualidade’ formal. As peças colocam o observa-dor num domínio da escultura que pressupõe uma envolvência conceptual, sem a qual as peças não se distinguiriam de objetos vulgares, utilitários.

Configurando uma ontologia anímica, em diferentes tempos e diferentes cul-turas, determinados objetos tornam-se animados e passam a ser entendidos como corpos vivos. Lembrando os ídolos das antigas civilizações, podemos entrever nas peças, através da transfiguração e do movimento de ascensão, um sentido xamâni-co da arte, no qual estas, enquanto instrumentos de poder, se veem carregadas de significados simbólico-rituais que ultrapassam a sua materialidade.

Interessa-me a carga cultural das matérias e dos objetos. A morfologia circu-lar dos potes pré-históricos, a sua forma e o seu vazio, assim como as suas fun-ções ligadas ao transporte, armazenamento, processamento e consumo de bens alimentares, a par dos seus valores simbólicos associados ao início da agricultu-ra/sedentarização, ao lar, aos rituais da comensalidade, ao corpo e ao papel fe-minino, têm sido aspectos fundamentais no âmbito da minha prática artística.

Fig. 3 - Poster da exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro.

wRuínas romanas de Milreu (Faro). Design T. Coelho e Fotografia R. Soares, 2012.

De forma diferente, mas com o mesmo sentido, as mesmas peças, na expo-sição Do Magma às Estrelas (ruínas romanas de Milreu - Faro, 2012), utilizam o carácter arqueológico do espaço expositivo para se relacionarem ou dialogarem com o observador. Mais uma vez, a suspensão de algumas das peças, no espa-ço das ruínas, imprime às esculturas um carácter transcendental, cósmico ou cosmológico, neste caso, também, acentuado pelo próprio título da exposição.

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Colocadas de forma mais ou menos dissimulada nos estratos arqueológicos das ruínas, a sua exposição pressupõe o transporte ou a deslocação do observador entre diferentes tempos, espaços ou mundos.

Fig. 4 - Exposição Do Magma às Estrelas, escultura de Sara Navarro.

Ruínas romanas de Milreu (Faro). Fotografia R. Soares, 2012.

Articulando um inovador diálogo entre arte e arqueologia, esta exposição propiciou uma nova experiência visual em que se sublinham as semelhanças tácteis e cromáticas entre a terracota das peças e a estratigrafia do sítio. Com uma poderosa significância de interpretação do passado no contemporâneo, a ligação entre arte e arqueologia permite ao observador comprometer-se mais ativamente com o passado. Aqui, a exposição surge como um ‘laboratório ex-perimental’ onde, numa escavação imaginária, o observador é levado a usar a imaginação visual para dar vida ao passado que ecoa nas peças.

Se, por um lado, a partir da exposição podemos questionar a forma como a cultura material permanece, ao longo do tempo, como herança patrimonial, por outro, podemos, numa equação oposta, pensar sobre a natureza do impacto do sítio arqueológico sobre as peças. A exposição de obras de arte contemporânea em sítios arqueológicos pode ser, para além de boa-de-olhar, boa-para-pensar, na medida em que transforma o lugar e desafia o observador, redirecionando-o para uma inovadora posição de compromisso entre o contemporâneo e a envolvên-cia arqueológica do espaço. A exposição configura uma passagem do mundo da matéria, do mundo da terra, para o universo das ideias, dos significados simbó-licos da memória. Mais do que um objeto estático, encerrado nas sua limitações

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materiais e conotações utilitárias, as peças representam um caminho, um desti-no, um movimento entre a matéria e a memória que as habita.

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Em síntese, propus-me criar peças que evocam a arte e a cultura de outros luga-res e de outros tempos. Peças que, pela morfologia e técnica de produção, nos transportam a uma época em que a cerâmica era uma tecnologia de ponta, uma conquista tecnológica. Num salto entre milénios, que parte de uma atração pelas origens, pela arte antes da arte, pelo que foi parcialmente apagado pelo tempo, as peças agora criadas fazem uma conexão entre os processos criativos dos objetos mais arcaicos ou remotos e a criação contemporânea. Partindo de fragmentos de uma realidade perdida, as formas que agora surgem, por mãos contemporâneas, estabelecem a comunicação entre presente e passado. Pela transfiguração, repenso e reinvento, num novo quadro, as velhas novidades ne-olíticas. Surgem objetos arquetípicos, reconhecíveis mas depurados das antigas funcionalidades e com novas simbologias. Artefactos com significados sempre múltiplos, com sentidos construídos e reconstruídos…

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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O MATERIAl E O IMATERIAl NA cOlEçãO ETNOgRáfIcA dE cOzINhA dO MUSEU cARlOS MAchAdO ThE TANgIBlE ANd ThE INTANgIBlE AT ThE

Of ThE cARlOS MAchAdO MUSEUM

Sofia Carolina Pacheco Botelho

Resumo: Entendendo o património cultural imaterial como parte indissociá-vel do património material, este estudo pretende precisamente complementar o discurso/informação relativamente à coleção de Etnografia Regional do Museu Carlos Machado, através de recolhas vídeo e áudio de saberes associados à secção de Cozinha desta coleção, analisando de que formas estas recolhas poderão ser apresentadas e exploradas em contexto museal, de forma a enriquecê-lo.

Palavras-chave: Património Imaterial. Cozinha. S. Miguel. Recolha de PCI. Convenção da

UNESCO

Abstract: Considering the intagible heritage as an inseparable part of the tan-gible heritage, this study views to complement the information regarding the collection of Regional Ethnography at the Carlos Machado Museum, by collect-ing, through video and audio recordings, the practices associated to the Kitchen Section of the collection, analysing in which ways these videos can be presented and explored in the context of the museum as a way to enrich it.

Keywords: Intangible heritage; Kitchen; São Miguel; Colecting intangible cultural heritage;

UNESCO Convention

INTROdUçãO

A noção de “Património Cultural” tem vindo a alterar-se nas últimas décadas, alar-gando este conceito para além do património móvel e imóvel - sobre o qual a UNES-CO tem desenvolvido medidas para a sua salvaguarda - incorporando agora o con-ceito de Imaterialidade que, segundo a própria UNESCO “includes oral traditions, performing arts, social practices, rituals, festive events, knowledge and practices concerning the universe or the knowledge and skills to produce tradicional crafts”.

Estes elementos, pela fragilidade inerente à sua natureza, exigem especial atenção por parte dos vários Estados-Parte da UNESCO, esperando-se deles que tomem medidas que visem a sua salvaguarda, de modo a garantir a sua transmis-são a gerações futuras.

A presença do Património Cultural Imaterial nos Museus - em particular naque-les com colecções de Etnografia e Etnologia - faz sentido, por ser parte integrante da história dos objetos e sem ela, a análise aos mesmos ficaria incompleta.

Embora se registem dissonâncias a nível de opinião sobre os Museus serem

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ou não as instituições ideais para promoverem condições para a salvaguarda de Património Imaterial, a realidade é que esta se justifica.

O presente estudo surge na sequência do trabalho de pesquisa realizado no âmbito da recolha de Património Imaterial associado à colecção de Etnografia Regional do Museu Carlos Machado, onde foi realizado um estágio curricular no âmbito do Mestrado em Museologia e Museografia

Este trabalho divide-se em três pontos, sendo que no primeiro é feita a con-textualização do panorama onde se desenvolveu esta recolha de expressões. Apresentando uma breve história do Museu Carlos Machado até hoje. No mes-mo capítulo, é ainda feita uma breve análise da legislação que tem vindo a ser publicada no sentido de salvaguarda do Património Cultural Imaterial num panorama internacional, nacional e regional, bem como medidas tomadas no sentido de reinterpretar o Património Imaterial nacional, de modo a garantir a sua difusão e posterior salvaguarda.

Num segundo ponto, é analisada de que forma hábitos e costumes associa-dos à prática gastronómica e hábitos alimentares, podem constituir Patrimó-nio Imaterial reconhecido pela UNESCO, aprofundando de seguida, a temática sobre hábitos na alimentação açoriana, tendo por base bibliográfica relatos de viajantes de passagem pelos Açores, bem como de açorianos que realizam uma análise aos modos de vida naquelas ilhas. Neste ponto, e ainda sob o foco da alimentação açoriana, em particular da micaelense, é relatado todo o processo realizado no âmbito da investigação para este trabalho, onde foram realizadas várias recolhas áudio e video, precedidas pela realização de guiões para as entre-vistas, ao tratamento das imagens posterior às mesmas.

No terceiro e último ponto deste trabalho, são analisadas de que forma pode-rá o Museu colocar em prática as medidas propostas pela Convenção para a Sal-vaguarda do Património Cultural Imaterial de 2003 (doravante designada por Convenção de 2003) apresentando uma proposta de inventariação das recolhas realizadas. Outra proposta parte da noção que, havendo a consciencialização de que a inventariação do Património Imaterial não constitui, por si só, garantia de salvaguarda do mesmo, são apresentadas sugestões no que toca à apresentação do património recolhido em espaço expositivo e fora deste - no caso da sua divul-gação através da web, por exemplo.

Tendo em conta a missão e objectivos declarados pelo Museu Carlos Macha-do e as recomendações da Convenção de 2003 no que toca à inclusão da Comu-nidade no processo de sinalização, recolha e mesmo inventariação do seu Patri-mónio Cultural Imaterial, analisa-se de que forma podem ser tomadas medidas para que tal se torne realidade neste Museu em particular, não apenas mas tam-bém através do Serviço Educativo já que este é, por excelência, a ponte de ligação directa entre o Museu e o Público.

Por último, e tendo em conta o contexto académico em que se desenvolve este Mestrado - na Faculdade de Belas-Artes -, aborda-se a ligação que a criação artística poderá ter com as coleções do Museu, não propriamente associadas à

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Arte, mas a outras coleções, como é o caso das de Etnografia, mais em particular com o Património Cultural Imaterial existente no espólio do Museu. Neste sen-tido, é feita uma breve análise de instalações artísticas que pretendem suscitar questões, através da reinterpretação das coleções dos museus, oferecendo um novo olhar sobre as mesmas; esta análise culmina com uma proposta de instala-ção artística que tem como base as recolhas realizadas no âmbito deste trabalho.

O presente estudo visa assim entender que desafios surgem ao Museu, ao de-cidir incorporar o Património Cultural Imaterial como parte integrante e indis-sociável das suas colecções, nomeadamente de Etnografia, e como estes desafios constituem um desenvolvimento positivo na relação do mesmo com a comuni-dade onde se insere.

ENqUAdRAMENTO

BREVES APONTAMENTOS dA hISTóRIA dO MUSEU

cARlOS MAchAdO E dAS SUAS cOlEçõES

O Museu Açoriano, nome com o qual foi fundado por Carlos Machado, nasce em 1876 como um Museu de História Natural que reflectia a mentalidade científi-ca do século XIX. O Museu era composto por três secções: Zoologia, Botânica e Geologia-Mineralogia.

Criado com o propósito didáctico de educar os alunos do Liceu de Ponta Del-gada, onde se situava, acabou por abrir as suas portas - em 1880 - ao público em geral e a investigadores que passavam pelos Açores.

Em 1890, a Câmara Municipal de Ponta Delgada tomou posse do Museu Aço-riano, passando assim de liceal a Museu Municipal de Ponta Delgada.

Com a aquisição de peças de arte, arte sacra e de etnografia africana, bem como o crescimento da coleção de História Natural, surge a necessidade de transferir as instalações do Museu para outro local, e assim, a 1928 e graças a uma proposta de Bernardo de Leite d’Athaíde, o Museu é transferido em 1943 para o antigo convento de Santo André, edifício do século XVIII em Ponta Delgada, onde até hoje se mantém.

A cOlEçãO dE ETNOgRAfIA REgIONAl

Com o crescimento do Museu, surge a vontade, por parte do então diretor da Secção de Et-nografia Regional, Luís Athaíde, de preservar determinadas tradições açorianas, receando que as “relações sempre mais estreitas com os Estados Unidos da América do Norte” (Atha-íde,1944:27) pudessem fazer com que estas se perdessem ou caíssem no esquecimento.

Mas foi apenas em 1940, pela mão de Alfredo Bensaúde, então diretor desta mesma secção, que a Secção de Etnografia do Museu foi inaugurada, apresentan-do objetos agrícolas, objectos de uso doméstico, jogos - como piões ou o jogo do bilro - objectos de pesca, objectos religiosos e objectos históricos, provenientes das ilhas de São Miguel e Santa Maria.

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Esta preocupação de preservar “promover e divulgar a cultura açoriana”, perma-nece até hoje, incorporando a missão deste Museu a homenagem ao povo açoriano.

PANORAMA dO PATRIMóNIO cUlTURAl IMATERIAl

A NíVEl INTERNAcIONAl, NAcIONAl E REgIONAl

Desde 1972 que a UNESCO mostra a consciencialização da importância da pre-servação de património “não material”, com a adopção da Convenção para a Sal-vaguarda Mundial, Cultural e Natural e até ao presente, tem sido percorrido um longo caminho no sentido da preservação das tradições, memórias, expressões... elementos imateriais que constituem uma parte significativa da cultura de um povo, mas que pela sua natureza tão frágil merecem especial atenção para que não desapareçam.

Em Portugal, a legislação relativamente à preservação do património imate-rial surge em 1985, com a lei 13/1985, que considera que o património cultural do país “é constituído por por todos os bens materiais e imateriais”, e em 2008 é adoptada a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada previamente em Paris, em 2003.

Para além da Candidatura do Fado a Lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade reconhecido pela UNESCO e aprovação da mesma, a Cultura portuguesa tem vindo a demonstrar considerar importante a preservação do seu património imaterial, seja através de projetos que visam recolher várias expres-sões e saberes que tendem a desaparecer (como o projeto A Musica portuguesa a gostar dela própria, na área musical, ou o projeto MEXETRADA, que visa a apren-dizagem de técnicas artesanais de fabricação de objetos para implementá-la na criação de objetos de design contemporâneo.)

Num panorama açoriano, a legislação sobre este assunto surge em 2011 (de-creto legislativo regional nº21/2011) e no final de 2012 é criado o website PCI--Açores, que segue as mesmas directrizes do website Matriz PCI manifesta a von-tade, por parte dos orgãos governativos, de se preservar o património cultural imaterial açoriano e as candidaturas a este título pela UNESCO na região (das Festas do Divino Espírito Santo e das Cavalhadas de S. Pedro) mostram a vontade da comunidade do mesmo.

ElEMENTOS PARA UMA MEMóRIA dA gASTRONOMIA dA IlhA dE SãO MIgUEl

ElEMENTOS TEóRIcOS lIgAdOS à cOMIdA — A AlIMENTAçãO cOMO PATRIMóNIO

cUlTURAl IMATERIAl

Segundo a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial adoptada em Paris, a 17 de Outubro de 2003, entendemos por Património Cultu-ral Imaterial, “ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões - bem como os instrumentos que lhes estão associados - que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do

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seu património cultural.” Sendo a alimentação o reflexo de saberes, tradições, mesmo a nível de produção de bens de consumo gastronómico de um determinado local, esta também será considerada, por vezes, património. Tendo, inclusivamente, a UNESCO classificado, até ao momento, como Património Imaterial da Humanidade quatro tra-dições gastronómicas, até à data, quatro tradições gastronómicas.

háBITOS, USOS, cOSTUMES NA AlIMENTAçãO NOS AçORES

A alimentação nos Açores, encontra-se directamente ligada aos hábitos de trabalho, bem como da própria agricultura que aqui se produz (COSTA,1970:135)Embora ainda seja pouco estudada a questão da alimentação neste arquipélago, exis-tem registos de vários estrangeiros, de passagem pelos Açores, que fazem referência a este assunto (BULLAR,1841) ou mesmo de habitantes locais (FRUTUOSO,1591) (FURTADO,1884) que ajuda a entender alguns hábitos que até hoje permanecem.

Embora muitas destas práticas de conservação de alimentos, bem como al-gumas receitas se justificassem no passado por uma questão de necessidade ou, no caso das receitas - a sopa de netos, muito pesada, ao meio dia - fizesse sentido como fonte de energia no dia-a-dia de um camponês de outrora e não se ade-quasse às necessidades dietéticas do quotidiano dos nossos dias, a verdade é que muitos açorianos, nomeadamente de gerações mais antigas, mantêm vivas tais tradições gastronómicas, não por uma questão de necessidade, mas, muitas ve-zes, por um saudosismo do passado.

Durante o estágio realizado no Museu Carlos Machado, entre Outubro de 2011 e Março de 2012, foi realizada uma pesquisa no sentido de identificar pes-soas que ainda realizassem algumas destas receitas e métodos de conservação, procedendo-se à recolha de testemunhos e imagens, com o objectivo de, preser-var certas tradições que têm vindo a desaparecer.

O PROcESSO dE REcOlhA

A Convenção de 2003, aponta os Museus como principais responsáveis pela sal-vaguarda do Património Cultural Imaterial. Embora haja alguma divergência de opiniões sobre se estas instituições poderão ser ou não as mais indicadas para assumir esta responsabilidade, esta medida poderá, e deverá ser, encarada como um novo desafio que os museus do século XIX têm diante si.

O Património Imaterial Cultural complementa a informação apresentada pelos objetos, em espaço museal (ALIVIZATOU, 2006), pelo que faz sentindo - em particular nas coleções de etnografia - que o material e imaterial estejam juntas como parte integrante de uma memória a preservar.

Visando complementar a coleção de Etnografia com testemunhos de Pa-trimónio Imaterial, no objeto do presente estudo, neste Museu, foi dado o enfoque na recolha de expressões associadas a algumas das peças da colecção de Etnografia Regional, ligadas aos costumes na cozinha. Desde a conservação de

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enchidos em banha, em bilhas de barro, à realização de sopas de neto em panelas de ferro. Embora hoje em dia não seja usual a realização destas práticas com os mesmos utensílios de outrora, foi com estes que aprenderam a fazer, como se pode constatar na recolha efectuada pela referência dos entrevistados, num tes-temunho de passagem de tradições intergeracional. Sabemos que, na recolha de Património Cultural Imaterial, o objetivo principal é compreender como é que se realizam tais práticas hoje em dia, tentando compreender como eram feitas inicialmente, mas sem recorrer à teatralização.

Assim, este estudo consistiu, numa primeira fase, na localização, contacto e entrevista de pessoas que ainda utilizassem métodos de conservação de alimen-tos ou confecção com fortes raízes ancestrais.

Foi ainda realizada uma pesquisa junto de diversas entidades, e mesmo de pessoas a título individual, no sentido de seleccionar indivíduos que se dispuses-sem a colaborar neste estudo com os seus testemunhos. A escolha de expressões a recolher, baseou-se no interesse que as mesmas poderiam apresentar, tendo por referência a colecção do Museu, considerando se, de alguma forma esta recolha viesse a revelar interesse relativamente às peças da colecção de etnografia. Foi ainda considerado o enfoque naquelas expressões que possam estar em risco de desaparecer por que já não serem práticas comuns nos dias de hoje.

AS REcOlhAS dE PATRIMóNIO cUlTURAl IMATERIAl REAlIzAdAS

O TRABAlhO PRé E PóS REcOlhAS

A nível das filmagens, foram tidas várias considerações, nomeadamente quanto ao que recolher e como. Tomou-se como referência os vídeos das manifestações reconhecidas como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNES-CO. Para além destes, foram considerados os filmes da série Povo que Canta, de Michel Giacometti, bem como os filmes etnográficos produzidos por Catarina Alves Costa e Catarina Mourão e a forma de apresentação destes últimos (COS-TA, 2008), nomeadamente as “imagens em movimento”, considerando serem “uma ferramenta incontornável da museologia contemporânea (...) que não se preocupa apenas com a preservação da cultura material mas que privilegia as suas relações com o real, provocando espanto e interrogações, renovando me-mórias, convidando à reflexão.” (COSTA, 2008)

Nas filmagens que integram o presente estudo, certas decisões foram tomadas previamente, designadamente o facto de na versão final do filme não constar a voz de quem estava a filmar. Para tal, antes de cada filmagem, era transmitido ao en-trevistado quais as intenções daquela filmagem e o que se pretendia recolher, no-meadamente à cerca de como e com quem aprendeu a técnica, todo o processo, etc. Assim, era solicitado ao entrevistado que no seu discurso respondesse a estas ques-tões como que se de um monólogo se tratasse. A nível da fotografia, houve particu-lar atenção às mãos, ao movimento das mesmas durante o processo que executava, bem como ao espaço onde se desenrolava a acção. No decorrer do presente estudo,

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ficou claro a necessidade de que se crie uma entre o entrevistador e o entrevis-tado. Por outro lado, há que haver igualmente um certo distanciamento entre estes dois elementos para que o investigador possa e consiga, efectivamente, ter um olhar crítico sobre a recolha que realiza. É na procura deste equilíbrio que se pretendemos configurar a recolha dos testemunhos.

Posteriormente, todas as filmagens recolhidas foram editadas de modo a criar pequenos filmes que registassem todo o processo, para além da transcrição das entrevistas e ligação dos mesmos com os objetos do acervo do Museu.

REcOlhAS

cONSERVAçãO dE ENchIdOS EM BANhA

Ainda hoje em dia uma ínfima parte da população possui animais e ainda os mata em casa - constituindo a matança do porco um motivo de festa com rituais próprios (ATHAÍDE, 1974:297). Embora com o recurso a electrodomésticos seja possível a conservação destes alimentos, há ainda quem recorra a práticas anti-gas para o fazer, como é o caso da conservação em banha que consiste na coloca-ção dos enchidos já fumados em balsas de barro (hoje, utilizados recipientes de plástico) (Figura 3), sobre os quais é colocada a banha derretida que, arrefecida, conserva os alimentos pelo período de pelo menos um ano. Quando questio-nada sobre o porquê de recorrer a esta prática para a conservação de alimentos (pouco usual e algo trabalhosa), Paula Moniz - a entrevistada para esta recolha, na freguesia da Salga, no concelho de Nordeste - disse dessa forma ‘saber me-lhor’. Na entrevista referiu ter aprendido a técnica com a mãe e avó e partilhou memórias relativas à sua infância e à festa associada e este género de prática - a matança do porco.

Fig. 1 - colocação dos enchidos no recipiente, submersos em banha derretida

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SOPA dE NETOS

Na pesquisa realizada sobre os hábitos de alimentação do povo micaelense - a partir de relatos desde o século XVI - pôde apreender-se que, no que toca à re-feição mais “completa” do dia, esta baseava-se essencialmente em caldos, ou açordas, no qual a couve, banha e pimenta da terra eram ingredientes sempre presentes. Depois surgiram variações, e entre elas, esta sopa de netos, que consiste essencialmente num caldo com legumes e carnes que, ao estarem praticamente cozidos, são adicionados pequenos bolos feitos com farinha de milho e o caldo da sopa - os netos - que cozem nos últimos minutos de cozedura, com os restantes alimentos, por cima dos mesmos (Figura 4). É uma sopa muito rica, que alimen-tava os agricultores antes de um dia de trabalho árduo e que Laudalina Botelho - a entrevistada nesta recolha -, como outros, ainda faz, por uma questão de sau-dosismo pelo passado.

Fig. 2 - sopa de netos

SOPA dE NETOS, chOURIçOS, SAlMOURA, BOlAchAS dE AMONíAcO

Esta última entrevista, foi realizada a quatro pessoas em simultâneo, na Ribeira Chã, Conceição Toré, Leonor Silva, Maria Viveiros e Goreti Pacheco. As quatro intervi-nham, por vezes quase em simultâneo, na realização dos cinco processos filmados.

A recolha sobre esta sopa de netos veio a confirmar as diferenças existentes na mesma receita, de localidade para localidade, sendo que esta receita contém menos ingredientes do que a mesma na recolha anterior, realizada na Fajã de Baixo. Ainda nesta entrevista, ficou registado o modo de confeção de chouriços

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(tempero, processo de enchimento e fumagem); o processo de conservação de peixe através da salga (salmoura); e uma receita de bolachas de amoníaco, confe-cionadas, normalmente, pelo Natal.

Durante toda a filmagem, as entrevistadas foram enriquecendo a recolha partilhando memórias, resultando com que todo o conteúdo da recolha - vídeo - constitua um registo não só do processo que se pretendia filmar, mas invaria-velmente de todo um número de expressões orais e testemunhos que, por si só, fazem parte de uma memória colectiva, que poderá, e deverá, ser conservada.

Constatou-se que, como qualquer tradição, estas que foram recolhidas, alte-ram-se, evoluem. Seja por uma questões de gosto pessoal, seja por acompanha-mento das necessidades do quotidiano e das ferramentas de que se dispõe hoje e não antigamente. A prevalência destas práticas justifica-se com um gosto pe-las mesmas, um “fazer como antigamente” que remete para tempos de que, por uma razão ou outra, se tem saudade e que através destas práticas mantém vivos tais momentos e, talvez, pessoas. Ficou claro haver, por parte dos entrevistados, uma vontade de partilhar saberes antigos e um saudosismo de outros tempos.

A teoria de que deverá ser a comunidade a definir que património deverá ser conservado, por lhes dizer algo, encontra aqui a razão para se conservar estas recolhas com o património do Museu.

PROPOSTAS

Posteriormente às recolhas e tratamento das mesmas (vídeo e áudio) surgiu a questão: como incorporá-las no Museu? Afinal, não deveremos “congelar” estas expressões no tempo. Como poderemos conservar, apresentar, explorar, e dar continuidade a esta investigação de modo a efectuar novas recolhas? Neste sentido, apresentam-se quatro propostas que poderão ser desenvolvidas pelo Museu em questão, onde ficarão salvaguardadas as recolhas efectuadas.

O INVENTáRIO

A primeira proposta no âmbito deste estudo, surge da consciencialização da im-portância do processo de inventariação como forma de salvaguarda, bem como de divulgação do património cultural recolhido já que incorpora em si toda a in-formação relativa aquela manifestação, não esquecendo que pela natureza mu-tável do património imaterial, o inventário sobre as recolhas realizadas deverá ser constantemente revisto.

Foi tido em consideração o facto de a Convenção de 2003 incentivar a criação de in-ventários nacionais por cada Estado Parte, apresentando uma proposta de uma ficha (BOTELHO, 2012), baseada em documentos nacionais e regionais que, tendo como ob-jetivo a organização interna da documentação existente relativa a cada recolha feita, não deixa de ser coerente com a legislação em vigor, de modo a facilitar o processo de inscrição da expressão no inventário regional, caso seja a vontade do Museu no futuro.

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O PATRIMóNIO IMATERIAl REcOlhIdO EM cONTEXTO MUSEAl

As recolhas de Património Imaterial consistem em vídeos, fotografias, que cap-tam o saber fazer, memórias, tradições... Pela sua imaterialidade, é inevitável apresentá-las num espaço museal sem recorrer a meios audiovisuais, pelo que neste ponto analisou-se não só a importância da incorporação no espaço expo-sitivo, bem como de que forma tal poderia ser realizado, tendo em conta não só a sua relação com as peças (BOTELHO, 2012:59) como a forma de apresentação dos vídeos realizados (como vídeo completo ou como “imagem em movimen-to”, isto é, uma edição de poucos segundos em loop) com recurso a frases citações da entrevista em espaços-chave da exposição, para “ilustrar” a acção.

O PATRIMóNIO IMATERIAl PARA AléM dO ESPAçO fíSIcO dO MUSEU

Alguns museus demonstram a consciencialização da importância da presença da comunicação entre comunidade e museu, nomeadamente instituições onde o património imaterial apresenta uma forte presença. Quando se fala de patri-mónio imaterial, fala-se, automaticamente, de memória, de história oral, já que é através dela que esta tipologia de Património sobrevive.

Certas instituições permitem uma ligação e partilha de memórias muito di-reta entre o público e o museu, como o Musée de la Mémoire Vivante no Qué-bec, por exemplo, que convida qualquer pessoa que visite o museu a gravar as suas memórias, colocando-as à disposição de qualquer outra pessoa que visite o museu e as deseje escutar. A recolha de memórias (ou “histórias de vida”) as-sociadas a objetos, poderão constituir uma mais valia, pois embora nem todas possam ser consideradas património, fazem parte: “of a much more complex construct related to the collective memory of a particular community or human group and are part of their identity mechanism”. (SOLANILLA, 2008)

O Serviço Educativo serve como “elo de ligação entre os objetos expostos e o público visitante” (DUARTE, 1994), se para além dos objetos, o Museu conside-rar em si a existência de memórias, tradições, costumes e saberes na existência do museu, património imaterial que vive através das pessoas, então esta liga-ção será muitíssimo enriquecedora no sentido de que o museu tanto dá como recebe, criando-se aqui uma união do Museu com a Comunidade, como parte integrante e activa desta. Desta ligação poderia nascer não só uma forma de si-nalizar novas recolhas mas incorporar o Serviço Educativo nas suas actividades, as próprias recolhas junto da comunidade.

ARTE cONTEMPORâNEA E PATRIMóNIO IMATERIAl

O Museu, sendo um espaço de partilha de informação, conhecimento e de des-coberta, sendo um local onde se fomenta e incentiva a actividade intelectual, faz sentido que nele surjam outras formas de olhar o mundo, através das exposições

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que apresenta. O presente ponto neste trabalho sugere um olhar do património imaterial através de intervenções de artistas plásticos.

A interpretação de espaços museológicos por artistas contemporâneos, é inevitável, no sentido de que estas instituições e as suas colecções permitem uma exploração da valorização dada pelo Homem às suas memórias - já que são destas que são compostas as colecções museológicas - e sobre a forma como são conservadas. Exemplo disto, são as instalações de Mark Dion que assentam no conceito de reinterpretação do método expositivo utilizado nos Gabinetes de Curiosidades , questionando a evolução das estratégias museográficas actuais.

Seguindo a mesma linha de Mark Dion, Pedro Portugal apresentou no Mu-seu de História Natural em Lisboa, a exposição Gabinete da Politécnica - O Impor-tantário Estetoscópico, onde levanta questões sobre a (falta de) interacção entre a Ciência e a Arte e de que modos ambas desejam “possuir a natureza de formas opostas” (JÜRGENS, 2011). Outros artistas ainda, através de intervenções artís-ticas, interagem com o património material e imaterial de uma comunidade, revitalizando-o e garantindo desta forma a sua salvaguarda, sendo exemplo dis-to o trabalho desenvolvido por vários artistas no Centro de Arte Contemporânea Le Consortium, em Dijon. (KIM, 2004)

As abordagens dos artistas plásticos mencionados anteriormente, sobre as co-lecções dos museus, levam-nos ao ponto seguinte deste trabalho: uma proposta de instalação artística tendo como ponto de partida o lado imaterial das coleções de etnografia deste Museu e para que noções esta tipologia de património remete.

Para o entendimento do objectivo desta proposta, sugere-se o conceito de “Arte Pública” - no qual este projecto se insere - de Lucy Lippard, que define este género como “accessible work of any kind that cares about, challenges, invol-ves, and consults the audience for or with whom it is made, respecting commu-nity and environment.” (SACRAMENTO, 2010)

Sugere-se aqui uma abordagem menos convencional à forma de apresenta-ção do Património Imaterial, remetendo sempre para o conceito de preservação da memória e memória colectiva tendo como base as recolhas realizadas no âm-bito deste trabalho.

A noção de “Património Imaterial” transmite uma certa ideia de sentimen-talismo associado à memória. O querer guardar-se, preservar-se algo que não se vê, mas que se pode experienciar através de outros sentidos, sugere o estímulo destes mesmos sentidos para esta proposta.

Quando se fala em memórias, raramente são mencionadas e relembradas como se de um filme se tratasse, em que toda a acção é descrita diante dos nossos olhos. Lembramo-nos de detalhes, de pequenos gestos, cheiros, cores, elementos.

Durante o processo de investigação para esta tese, em particular no momen-to das entrevistas, deu-se, como já se referiu, uma partilha de ideias por parte dos entrevistados. Regista-se em algumas das entrevistas, referência a memó-rias de infância, por exemplo, da festa que se desenrolava em torno do processo da matança do porco. Assim, no âmbito das recolhas realizadas, seleccionou-se a

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recolha referente à elaboração dos chouriços e da conservação dos mesmos em banha, partindo-se destes dois momentos para a ilustração dos mesmos em con-texto expositivo. Não da ilustração direta dos momentos propriamente ditos, mas das memórias que estes momentos evocam.

A proposta aqui apresentada não constitui todo o corpo de uma eventual instalação, mas de vários momentos, compostos por desenhos de autor, peças do museu e elementos naturais associados à prática a qual se tomou como ponto de partida para a realização deste projecto.

Partindo de três momentos distintos do ritual - pós - matança de que se pos-suem registos filmados (a conservação de enchidos e a produção de chouriços) e das memórias das entrevistadas a eles adjacentes, apresentam-se três propostas de três detalhes (ou memórias) associadas a estes processos.

As três propostas apresentadas neste trabalho (BOTELHO, 2012) apresentam um primeiro esboço da intenção a tomar neste projeto.

Este conjunto de propostas, objetiva a homenagem ao passado e aos que dele fazem parte, revitalizada por todos aqueles que partilham as suas memó-rias, como forma de as salvaguardar, oferecendo em contexto museal uma nova abordagem ao olhar a tradição.

cONSIdERAçõES fINAIS

Considerando a globalização, não como um efeito negativo na perda de expres-sões, tradições inerentes a uma determinada cultura, mas como um elemento proporcionador de intercâmbio de culturas, que leva ao enriquecimento e de-senvolvimento de cada uma, há, no entanto, que salvaguardar estas tradições, saberes e práticas, que representam o património cultural de uma comunida-de. Não salvaguardar no sentido de “congelar”, como indica a própria UNESCO (UNESCO, 2012), mas sim mantê-las vivas de modo a transmiti-las às gerações futuras. É igualmente importante situar as recolhas efectuadas no tempo no qual as mesmas foram realizadas, encarando alterações em relação às mesmas expressões em tempos remotos, como parte inerente ao processo evolutivo de uma cultura.

O principal objectivo deste trabalho foi a recolha de Património Cultural Imaterial, de modo a enriquecer o discurso da coleção de Etnografia Regional do Museu Carlos Machado. As recolhas realizadas, demonstraram a vontade da comunidade em partilhar as suas memórias com o museu, sendo este, o envol-vimento da comunidade com o Museu, essencial para a salvaguarda do Patri-mónio Cultural Imaterial de uma Comunidade, segundo a Convenção de 2003.

Nenhuma recolha está completa sem o seu tratamento à posteriori, no sen-tido de garantir a sua salvaguarda, razão pela qual houve a preocupação em apresentarem-se sugestões para que o Museu possa desenvolver práticas neste sentido. Estas passam, primeiramente, por uma mudança de atitudes perante a comunidade, alterando a visão por vezes existente, do Museu como local elitista

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e fechado sobre si mesmo, como já foi referido neste trabalho, e adoptar uma política de inclusão e diálogo entre a instituição e o Público.

O objecto deste estudo, pela dimensão do espólio de Etnografia Regional do Museu Carlos Machado, obrigou a uma seleção dentro deste, que permitisse focalizar a investigação a realizar. Há no entanto a noção de que ainda há um longo caminho a percorrer no âmbito da salvaguarda de Património Imaterial associado a esta coleção.

A partir da rede de contactos que se foi estabelecendo ao longo deste traba-lho, esta constitui um ponto de partida para o estabelecimento de novos contac-tos com outros indivíduos, detentores de saberes, e possíveis futuros entrevista-dos, dando continuidade ao trabalho aqui iniciado.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

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A géNESE dOS MUSEUS dE ARTES INdUSTRIAIS E dEcORATIVASThE gENESIS Of ThE INdUSTRIAl ANd dEcORATIVE ARTS MUSEUMS

Sofia Leal RodriguesFaculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa

Resumo: Derrotada na Exposição Universal de 1851, a Inglaterra decide rees-truturar os seus planos de ensino com o intuito de elevar o aspecto qualitati-vo da sua produção industrial. O resultado seria a criação do South-Kensington Museum, uma instituição multifacetada, cerne de uma estrutura pedagógica ba-seada no ensino do desenho que colheria entusiastas e seguidores um pouco por toda a Europa. Portugal não será excepção ao tentar aplicar em terreno pátrio uma réplica desse modelo.

Palavras-chave: Desenho. Artes Industriais e Decorativas. Museus. Design.

Abstract: Defeated at the 1851 Universal Exhibition, Great Britain decides to restructure her educational plans with the goal to raise the qualitative side of her industrial production. The result was the establishment of the South Kens-ington Museum, a multifaceted institution that became the core of a pedagogi-cal structure based on the teaching of drawing that would gather enthusiasts and followers all over Europe. Portugal would not be an exception and tried to reproduce this model.

Keywords: Drawing. Industrial and Decorative Arts. Museums. Design

INTROdUçãO

O presente artigo demonstra como a problemática do ensino do desenho indus-trial esteve na origem da criação dos primeiros museus de artes industriais e decorativas. Num primeiro momento aborda-se a génese do ensino do desenho industrial em Portugal; numa segunda etapa, explica-se a origem de um espírito de salvaguarda e reabilitação da produção nacional; por fim, expõe-se a estrutu-ra das duas instituições modelares que estiveram na base da criação dos Museus Industriais e Comerciais de Lisboa e Porto.

Para a construção do artigo privilegiaram-se as fontes.

1. dESENhO AcAdéMIcO VERSUS dESENhO INdUSTRIAl

A problemática do desenho aplicado à indústria, embora não seja uma temática original, assume no decurso do século XIX, uma preponderância marcante. O mote desta tendência é lançado em princípios do oitocentos por autores como Joaquim Machado de Castro (1731-1822) e Vieira Portuense (1765-1805), que

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anteviam no estudo do desenho a apuração do bom gosto e a perfeição das fábri-cas e manufacturas (PORTUENSE, 1953: 97), com consequências decisivas para o Commercio, e para o Estado todo (CASTRO, 1818: 205).,

Após a criação das Academias de Belas-Artes em 25 de Outubro de 1836, o de-bate em torno das utilidades do desenho no campo industrial, agudiza-se. Aliás, o decreto fundador da Academia lisboeta, promulgado por Passos Manuel, reve-lava desde logo o intento de unir em um só corpo de Escóla todas as Bellas Artes, com o fim de facilitar os seus progressos, de vulgarizar a sua pratica, e de a applicar ás Artes Fabriz (Estatutos, 1843: 6). A desejada aproximação da arte à indústria fazia-se através da abertura de algumas aulas nocturnas de desenho (Desenho de ornato, de arquitectura e de princípios de figura e do antigo) a operários e artífices: uma medida assaz salutar, mas ainda assim, visivelmente incipiente.

Desprovidas de uma estrutura organizada, o leque de aulas disponíveis, pouco ou nada oferecia que satisfizesse as necessidades específicas das referi-das classes, fosse como fosse, a inclusão de uma via industrial numa instituição vocacionada essencialmente para o ensino das designadas artes eruditas, vinha justificar uma pretensa aura de multidisciplinaridade, cujos efeitos práticos fi-cavam, é certo, por apurar.

De qualquer forma, a ligação entre a arte e a indústria continuaria a ser uma das preocupações assumidas da Academia. Francisco de Assis Rodrigues (1801-1877) reiterava-o enquanto director. Para o escultor, a extensão do estudo do de-senho às artes mecânicas e fabris, encetava um vasto horizonte de possibilidades até então inexploradas. O domínio do desenho convertia-se num poderoso cata-lizador do processo criativo, ao permitir repensar a forma e a aparência estética do produto, sempre em benefício da sua função. Só assim se poderia modificar a feição dos mais diversos espécimes de primeira e reconhecida utilidade, para com elles se satisfazerem as mais indispensaveis precisões e commodidades da vida social e civil (RODRIGUES, 1852: 9).

O autor, avançava ainda com um pensamento comum às especulações teóri-cas futuras, em torno da cultura material: os objectos mais apelativos e funcio-nais revelavam um poder competitivo superior, face às novidades importadas do estrangeiro. Pelo menos, essa fora a política concorrencial – baseada numa inteligente aplicação do ensino do desenho – adoptada na maioria dos países da Europa. Portugal devia seguir-lhes o exemplo; Assis Rodrigues só não referia como. Esperava-se do desenho um papel transformador; mas que tipo de dese-nho seria esse e que orientações assumiria? Certo é que o director da Academia mantinha uma postura absolutamente clássica no que diz respeito ao desenho, um género artístico que apesar de reivindicar a precedência sobre os differentes ramos da arte (RODRIGUES, 1875: 138), tinha na figura humana [O estudo mais digno do homem é o proprio homem (RODRIGUES, 1856: 7)] o grande referente da representação. Assim, para o autor da Memoria D’Esculptura, a aprendizagem do desenho devia iniciar-se sem surpresa pela cópia de estampas, seguida do usual estudo dos gessos, um processo que culminaria preferencialmente no estudo da

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Natureza, ou seja, do modelo vivo. Mas seria esse desenho o mais adequado para um marceneiro, um serralheiro, um canteiro ou um tipógrafo? A questão ficava, por enquanto, sem resposta.

Porém, o desenho estava condenado a permanecer no centro das atenções. A oposição ao ensino do desenho segundo o sistema clássico, bem como a inci-piente tentativa de implementar a sua aplicação à indústria, alimentariam polé-micas várias. Quando em 1875, o governo de Rodrigues Sampaio indigita a for-mação de uma ampla comissão para propor a reforma do ensino artistico e a orga-nização do serviço dos museus, munumentos historicos e arqueologia (Relatorio, 1876: capa), o historiador Joaquim de Vasconcelos (1849-1936) será um dos seus mais acérrimos críticos. Na verdade, o Relatório produzido pela dita comissão, don-de se destacam nomes como Assis Rodrigues, Filipe Simões, Tomás da Fonseca, Almeida Furtado, Victor Bastos ou José Maria Nepomuceno, mostrava-se extre-mamente lacónico quanto à disposição e materialização dos seus vagos intentos reformistas. O texto iniciava-se em tom de salvaguarda do património, até então entregue à incúria e a demolições condenáveis, uma realidade que urgia comba-ter, mais que não fosse, através da legítima referência a Alexandre Herculano e ao seu construtivo exemplo.

No que diz respeito ao desenho, poucas novidades se anunciavam. O Relatório defendia, logo no introito, assinado pelo presidente da comissão, o Marquês de Sousa Holstein (1838-1878), a divisão do ensino deste género artístico em três graus específicos. O primeiro, destinado a garantir a aprendizagem de noções elementares de desenho, leccionava-se nas escolas primárias e nos liceus e, aí se mantinha. O segundo, constituido por um curso geral e especial de desenho, assumia--se como um estádio preparatório para os estudos superiores de artes (aos quais cabia por fim o terceiro e último grau), embora pudesse representar por si só um curso completo para certas profissões (Relatorio, 1876: VI-VII).

Apesar da aparente abertura à temática do ensino da arte aplicada à indústria – principio hoje corrente, acceito e cumprido em toda a parte, e tão necessario entre nós –, a comissão lamentava: magôa dizer o que ha (Idem. XXVII). Para colmatar esta fal-ta, à qual se acrescia a evidente insuficiência das aulas nocturnas ministradas na Academia, o Relatório limitava-se a sugerir a creação de escolas de desenho applicado e de desenho elementar n’aquellas localidades onde mais se accentuem certas industrias carecidas das luzes d’este ensino (Idem: XXXIV). Quanto à questão dos museus enun-ciada no título do Relatório, a conclusão não era de todo mais edificante:

Nada ha que melhor possa justificar a continuidade que poderia parecer impertinente, da

feição dolorida do nosso relatar, do que exactamente a situação em que nos achâmos rela-

tivamente a museus, por isso que ella se patenteia e impõe mais distinctamente a todos.

Não é necessário ter uma vez passado a fronteira e encontrado em cidades, a todos os

respeitos muito inferiores a Lisboa, notaveis galerias de arte e de archeologia, abertas ao

estudo, ao estimulo e á admiração de naturaes e estrangeiros, para sentir o vexame que

n’este particular assoberba o bom nome do nosso paiz, o movimento das artes e das

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industrias entre nós, até o nosso decoro e dignidade de nação que se preza de não ter de-

samparado o banquete do progresso ou desertado da historia dos povos cultos. (…)

Porque a verdade, ex.mo sr., é que o não temos; é que não temos museus, é que n’este ponto

estamos hoje em situação inferior a muitas das mais somenos povoações estrangeiras, a

muitas nascidas hontem, a muitas que não têem como nós a sustentar uma historia lon-

ga e opulenta, uma tradição universal, um nome que fez o assombro dos tempos. (Idem:

XXXIV-XXXV)

No opúsculo Observações Sobre o Actual Estado do Ensino das Artes em Portugal, publicado como complemento da dita reforma, o Marquês de Sousa Holstein tentava minorar a superficialidade das medidas propostas, com uma visão mais pragmática sobre a matéria. Se no caso de Assis Rodrigues, o entusiasmo em tor-no do objecto industrial redundava já em fim de vida numa conclusão imprevi-sível: taes (…) officios ou misteres, não carecem de tanto genio, e de tantos conhecimentos subsidiarios das sciencias, indispensaveis para se produzirem as obras primorosas das bellas artes, como a pintura, a esculptura, a architectura, etc. (RODRIGUES, 1875: 60), no pensamento do Marquês operava-se uma mudança de paradigma, digna de nota:

Houve tempo, e não vae longe esta epocha, em que se dava o nome de arte tão sómente

ás tres mais elevadas manifestações da arte: a architectura, a esculptura e a pintura. Hoje

porém não é assim. Percebe-se pelo raciocinio o que os antigos e os italianos do renasci-

mento haviam sentido por instincto. O dominio da arte é com effeito muito mais vasto;

abrange tudo quanto nos cerca, todos os objectos de uso quotidiano, os moveis das nossas

casas, os fatos que nos vestem, as louças, as pratas, tudo em uma palavra quanto serve

para a vida. Em tudo póde e deve haver bello, não só no sentido limitado da ornamentação

e decoração, não só no sentido menos restricto da harmonia e proporção, mas sobre tudo

no sentido mais lato da perfeita correspondencia entre a fórma do objecto e o seu uso.

(HOLSTEIN, 1875: 12)

Ora, para apurar essa premissa fundamental do actual design – a relação for-ma-função –, o domínio do desenho revelava-se um imperativo incontornável. Para o autor, a devida contaminação entre a arte e a indústria fazia-se através do consensual desenho de ornato, acrescido do de figura (tão tipicamente acadé-mico) e da modelação. Mais do que permear a cópia, o desenho bem orientado maturava o gosto e estimulava a invenção, uma filosofia há muito aproveitada em países como a Inglaterra, onde a criação do South Kensington Museum viera re-volucionar as políticas de ensino e a produção industrial. Pena que em Portugal a perpétua apatia face ao exemplo estrangeiro representasse mais uma forma de adiar o tão ambicionado desenvolvimento nacional. A propósito, e em jeito de conselho, Holstein parafraseava outra referência incontornável: Nasce por anno

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em cada nação, diz J. Ruskin, uma certa quantidade de talento artistico, o qual se for aproveitado produzirá um dia o seu quinhão de trabalho na obra da civilização (Idem: 14). Assim, a conclusão não se fazia esperar: A escola é o crysol em que se depura e afina aquelle oiro nativo, que se chama vocação artistica, a qual, á similhança da pepita do precioso metal, póde jazer ignorada e desprezada, enquanto mão cuidadosa não vier manifestar ao mundo o seu brilho e o seu valor (Idem: 15). No intuito do Marquês, o ensino do desenho aplicado à indústria dependia ainda de outro elemento es-sencial: a fundação de um museu de artes industriais, cujo espólio (organizado em secção de cerâmica, tecidos, móveis, rendas, etc.), pudesse constituir uma base modelar para o incremento qualitativo da produção nacional.

2. A PROcURA dE UM ESTIlO ORIgINAl PORTUgUêS

Em 1895, Manuel de Macedo (1839-1915) lamentava:

Resignemo-nos. É mal sem remedio! O seculo XIX está condemnado a abrir um parenthe-

se na historia. Vae acabar sem ter fundado um estylo. (PIN-SEL, 1895: 17)

A necessidade de encontrar uma unidade linguística que expressasse com clareza o carácter genuíno da alma portuguesa, levara, alguns anos antes, Joaquim de Vasconcelos a debruçar-se sobre uma questão de teor semelhante. O historiador que sempre detectara na arte erudita portuguesa um espírito de mimese de reportórios estrangeiros, voltava a sua atenção para formas de ex-pressão mais espontâneas – como o sistema decorativo românico –, onde fosse possível encontrar uma hipotética contaminação entre a arte popular e a erudi-ta. Gottfried Semper (1803-1879) dá-lhe o mote. O autor do Der Stil in den technis-chen und tektonischen künsten, não só levara a cabo um estudo congénere, como em 1851, a propósito da Exposição Universal de Londres, concluiria: arquitecture everywhere borrowed its types from prearchitectural conditions of human settlement (SEMPER, 2004: 15). Joaquim de Vasconcelos acabaria por elaborar uma tese idêntica, quando demonstra que os motivos ancestrais de carácter popular, fo-ram progressivamente incorporados na decoração dos nossos grandes monumentos historicos, apesar e ás vezes contra a intenção do architecto, supplantado pelo mestre d’obras e seus alveneis (VASCONCELOS, 1908: 5). Era esta forma de criação genu-ína, alheia à imitação de modelos importados que o levava a exaltar o trabalho de um artífice maior: o povo. Mas para o historiador, a salvaguarda da produção popular não representava uma mera nostalgia do passado, nem tão pouco um simples interesse de cariz etnográfico. Vasconcelos acreditava que a originalida-de da arte portuguesa dependia da transformação das indústrias caseiras numa verdadeira indústria, capaz de dinamizar a economia da nação.

O problema da descoberta e fixação das especificidades portuguesas que dessem suporte a uma ideia de nacionalidade, é um processo iniciado pelos românticos e

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reavivado no período pós Ultimatum. Para a ideologia finissecular, as particulari-dades regionais e folclóricas da terra portuguesa sacralizam-se e dão lugar a uma obsessão pelo estudo, valorização e salvaguarda da riqueza artística da nação. Os saberes e técnicas ancestrais banidos pela industrialização são reavivados e mitificados como símbolos de um tempo perdido, onde a tradição, associada a um conceito idealizado da pátria, vigora. Assiste-se igualmente a uma dicotomia jacintiana entre a cidade e o campo. Garrett e as Viagens na Minha Terra (recorde--se o percurso dos neogarretistas), operam essa cisão. O campo surge como um refúgio estável contra o desenraizamento e os excessos da civilização.

Ora, o mais interessante no pensamento de Manuel de Macedo e de Joaquim de Vasconcelos é a presença equilibrada de um apreço pela tradição que não subverte um verdadeiro e genuíno intento de modernidade. A diferença entre ambos reside na forma, na solução que cada um apresenta para preservar esse binómio, em prol da tão desejada originalidade nacional. Enquanto o historia-dor portuense acredita no desenvolvimento de uma linha pedagógica assente no desenho, Macedo filia-se antes na exemplaridade de figuras como William Morris, cujo espírito criativo devia ser mimetizado. De qualquer forma, o que redunda das suas especulações teóricas, é uma profunda vontade de valorizar a arte e a indústria, num todo único, maior do que as partes.

3. O SOUTh kENSINgTON MUSEUM E O REAl-IMPERIAl

MUSEU AUSTRíAcO dE ARTE E INdúSTRIA

Em Portugal, a primeira notícia sobre os ecos do South Kensinton Museum é dada em 1873 por José Silvestre Ribeiro. Dois anos depois, o Marquês de Sousa Holstein elogiava os feitos da instituição inglesa, embora pouco adiantasse so-bre o seu funcionamento, uma tarefa levada a cabo por Joaquim de Vasconcelos que em 1879 lhe dedicava parte da sua derradeira Reforma do Ensino de Bellas-Artes. Na sua obra nada é deixado ao acaso: abundam as fontes, a bibliografia, as provas, os factos e as explicações que suportam os seus argumentos. Inscrito num espírito de renovação pedagógica multidisciplinar que o autor apelida de National Art-movement, o museu de South Kensington fora a solução encontrada pela Inglaterra para fazer frente aos resultados desoladores obtidos pelos seus produtos industriais, na Great Exhibition of the Industry of All Nations, em 1851. Semper é um dos primeiros a testemunhar essa inferioridade:

If single incidents carried the force of conviction, then the recognized triumphs at the

Exhibition of the half-barbaric nations, especially the Indians with their magnificent in-

dustries of art, would be sufficient to show us that we with our science have until now

accomplished very little in these areas. The same, shameful truth confronts us when we

compare our products with those of our ancestors. Notwithstanding our many technical

advances, we remain far behind them in formal beauty, and even in a feeling for the suit-

able and the appropriate. Our best things are more or less faithful reminiscences. Others

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show a praiseworthy effort to borrow forms directly from nature, yet how seldom we

have been successful in this! Most of our attempts are a confused muddle of forms or

childish triflings. (SEMPER [1852], 1989: 134-135)

Nascido sob a orientação de Henry Cole (1808-1882), então director do Department of Science and Art, o museu, futuro Victoria & Albert Museum, abri-ria portas em 1857. Na sua base estava um pequeno núcleo de objectos de artes industriais (o Museum of Manufactures) de proveniência diversa (alguns sabia-mente adquiridos na própria exposição de 1851), destinado a servir de modelo para o ensino do desenho. Localizado no tradicional bairro londrino, este espaço museológico reunia exemplares das artes decorativas presentes e passadas, orga-nizadas numa mostra eclética, destinada a sensibilizar o gosto popular para as potencialidades da produção industrial. O museu que contava com uma exposi-ção nocturna aberta durante seis horas por semana, promovia as suas colecções pelo país, através de um museu itinerante. Ao museu anexava-se igualmente uma escola de desenho, munida de uma vasta colecção de gravuras, desenhos e fotografias, indispensáveis à orientação dos discípulos na aprendizagem deste género artístico. A escola de South Kensington – a National Art Training School – funcionava como uma instituição centralizadora, responsável pela irradiação dos modelos e programas de ensino a serem aplicados nas numerosas escolas de desenho e arte aplicada espalhadas pelo país.

A estrutura do museu londrino, não se esgotava assim nas suas únicas e ex-clusivas finalidades. Associado à sua existência estava um conjunto de escolas elementares de desenho, as designadas Art Classes, onde se iniciava a prática deste género artístico desde o mais elementar, pelo desenho de ornato, até ao dese-nho da figura (cabeça e outras partes do corpo humano) (VASCONCELOS, 1879a: 118), de modo a preparar os alunos (que assim desejassem) para a admissão às escolas de arte aplicada, as Schools of Art. Nesta categoria, na qual se incluía a escola anexa ao museu de South Kensington, privilegiava-se o ensino do elemen-to decorativo em detrimento do figurativo, uma circunstância que colhe justi-ficação na preponderante influência da obra de Owen Jones – The Grammar of Ornament –, adoptada na maioria das escolas de arte do país. Ora, para autores como Joaquim de Vasconcelos, a mais valia do sistema inglês resumia-se a um ponto essencial: a implementação do desenho elementar, a base de qualquer ensino artístico, devidamente acompanhada da criação de museus de arte apli-cada, destinados a educar o gosto do público. Em última análise, mais do que reformar Academias, faltava a Portugal aderir a um plano reformista com ob-jectivos semelhantes e, esse fora talvez um dos maiores pecados da comissão de 75: esquecer o essencial.

Os progressos alcançados pela Inglaterra logo na exposição de 1862, leva-ram à adesão do seu modelo de ensino um pouco por toda a Europa. A Áustria será um dos primeiros países a seguir-lhe o exemplo. Assim, em Maio de 1864

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inaugurava-se em Viena o Museu Austríaco de Arte e Indústria, cujas colecções eram compostas maioritariamente por um vasto leque de reproduções, de ob-jectos das indústrias de arte. O Museu tentava estabelecer quanto possível, um inventario completo dos thesouros artisticos da nação (Idem: 97), disponibilizados frequentemente a outras instituições museológicas europeias, através da venda de reproduções em gesso, fotografias e galvanoplastias, realizadas nos próprios ateliers do edifício. O espólio de espécimes das indústrias de arte, organizado em núcleos temáticos (Indústria têxtil, Trabalhos em verniz, Esmaltes, Mosaicos, Pintura em vidro, Pintura, Letra, impressão e artes gráficas, O livro; ornamen-tação exterior, Objectos de couro, Vidro, Cerâmica, Trabalhos em madeira, Utensílios em osso e metal, Trabalhos em ferro, Signos e relógios, Trabalhos em bronze, Ourivesaria, Bijuteria, Gravuras e cunhos, Desenhos ornamentais, Vasos, utensílios e esculturas em mármore e Escultura em ponto grande), cons-tituía uma mostra abrangente de largo espectro educativo, destinada a enfatizar a riqueza cultural e formal da produção industrial, oriunda das mais diversas na-ções. O museu dispunha ainda de uma ampla biblioteca, coordenada especialmen-te para o estudo do artista industrial (Idem: 101), dotada de um importante arquivo de gravuras ornamentais e motivos decorativos (Ornamentstichsammlung) que serviam de modelo à produção de novos objectos de arte industrial.

Anexa ao museu austríaco, encontrava-se a Escola de arte aplicada à indús-tria, cuja inovadora estrutura curricular parecia reunir o consenso crítico de Joaquim de Vasconcelos. Os seus estatutos demonstravam a necessidade de do-tar o artífice de noções de pintura, escultura e arquitectura, pois a arte industrial não é mais do que a essencia d’estas tres artes aplicada ás exigencias da vida hodierna. O contacto com as chamadas artes eruditas, através do estudo do antigo e do mo-delo vivo, revelava-se essencial para elevar o trabalho oficinal, afastando-o da prá-tica mecanicista e aproximando-o da vereda que conduz à grande arte (Idem: 110).

No entanto, tal como António Arroio (1856-1934) defenderia num futu-ro próximo, era necessário especializar os saberes inerentes a cada profissão (ARROIO, 1911: 314). No modelo austríaco (apesar das devidas contaminações), a cisão natural entre a arte e a arte industrial dava lugar à separação da escola de arte aplicada da Academia, uma ideia pela qual Joaquim de Vasconcelos há muito se batia. Porém, como o próprio reconhecia, a Escola de arte aplicada com a sua secção de arquitectura, pintura e escultura, apresentava uma orgânica mais próxima de uma Academia de Belas Artes do que a sua congénere inglesa.

À semelhança do exemplo inglês, na Áustria, o desenho revela-se um ele-mento transversal, comum a toda a sorte de ensino artístico e técnico-artístico, desde o grau elementar. No entanto, enquanto em Inglaterra o South kensing-ton Museum, assegurava a organização e o funcionamento de duas espécies de institutos diferentes, o sistema austríaco estendia esse número a três: as Escolas de ofícios (Gewerbeschulen), as Escolas especiais de arte aplicada (Kunstgewerbliche Fachschulen) e as Escolas superiores e gerais de arte aplicada à industria (Kunstgewerbeschulen). A primeira categoria, incluía um pequeno número de

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escolas apoiadas pelo Estado, criadas em grandes pólos industriais, com o fim de leccionar conhecimentos rudimentares gerais e técnicos para a prossecução de um determinado ofício. Na segunda categoria inscrevem-se várias Escolas es-peciais espalhadas por todo o país, destinadas a garantir a educação do operario na propria localidade onde floresce a industria a que elle se dedica (VASCONCELOS, 1879a: 70).

A missão destas instituições é tanto estética como técnica; a par do ensino do desenho a olho, de ornato e de figura, leccionava-se a modelação, indispensá-vel a todas as indústrias cujos produtos não se confinam à superfície plana. Por último a terceira categoria abrange a única Escola superior e geral de arte aplicada à industria anexa ao Museu austríaco, responsável pela gestão do ensino do dese-nho e pela formação de quadros docentes, aptos a leccionar nas diversas Escolas especiais do país. A implementação do designado ensino normal para a educação dos mestres de desenho era uma medida comum às escolas de ambos os países.

As diferenças entre os dois sistemas estendiam-se ainda aos métodos utiliza-dos para o ensino do desenho. Enquanto em Inglaterra se estimulava o desenho tanto de objectos como de estampas em três modos distintos – memória, inven-ção e tempo fixo –, na Áustria optava-se pela aplicação do método estigmográfico. Baseado num caderno composto por diferentes reticulas de complexidade diver-sa, utilizadas como estruturas referenciais do acto de desenhar, o referido método suscitava polémica; para alguns autores, como Joaquim de Vasconcelos, a trama permitia uma transição progressiva entre o desenho apoiado e o livre; no intuito de outros, como António Arroio, induzia o aluno a copiar, não a desenhar.

Fosse como fosse, a opção de Joaquim de Vasconcelos estava tomada. Perante a hipótese de adaptar qualquer um dos dois sistemas à realidade portuguesa, Vasconcelos não hesita e escolhe o austríaco, mais orientado para a reabilitação das indústrias caseiras provinciais e do trabalho vernacular do povo.

4. OS MUSEUS INdUSTRIAIS E cOMERcIAIS

A visível insuficiência das aulas nocturnas da Academia e a profunda campanha de Joaquim de Vasconcelos a favor da estruturação de uma via de ensino técnico, acabariam finalmente por dar alguns frutos. A 24 de Dezembro de 1883, um de-creto assinado por António Augusto de Aguiar (1838-1887), criava os primeiros museus industriais e comerciais de Lisboa e do Porto. O museu da capital fixar--se-ia no edifício da Real Casa Pia de Lisboa e o do Porto, em qualquer edificio do estado, que, para este fim, possa ser aproveitado (Diário nº. 297, 1883). Quanto aos seus objectivos, ficavam assim delineados:

Os museus terão por fim principal adquirir e expor ao publico collecções de produtos e

materias primas, acompanhadas de esclarecimentos sufficientes por onde se conheça a

sua origem, nome do fabricante ou commerciante, preço no local da producção, despezas

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de transporte, mercados de consumo, e todas as mais informações que possam dar uma

idéa pratica sufficientemente nitida do seu valor e da sua aplicação. (Idem)

A tentativa de estabelecer museus industriais, associados a uma colecção artística ou isolados num espaço independente, era um projecto há muito am-bicionado. Em 1852, quando inaugura no Porto o Museu Allen, adquirido pelo município à família do conhecido coleccionador de arte inglês, os seus estatutos revelavam os seguintes intentos:

O novo Museu Portuense, propriedade exclusiva do municipio, é destinado não só a ser-

vir de recreio aos habitantes do Porto, mas a promover o mais possivel em todo o paiz,

por meio das diversas colecções que encerra ou deve vir a encerrar, a cultura e o desenvol-

vimento das bellas-artes, sciencias naturaes, e mesmo das artes industriaes –, que mais

directamente concorrem para o augmento da riqueza nacional. (VASCONCELOS, 1889: 8)

Para Joaquim de Vasconcelos que historia a sua génese, ahi temos, em germen, a proposta para um South-Kensignton Museum portuense, um anno depois da fundação do grande estabelecimento de Londres (Idem). Porém, grande parte das motivações iniciais do Museu nunca chegariam a concretizar-se, nomeadamente no que diz respeito ao tão ambicionado núcleo de arte industrial (VASCONCELOS, 1879b). Ainda assim, projectos não faltariam com repercussões práticas mais palpáveis e um fim igualmente funesto. O Museu do Conselho Geral das Alfândegas, inau-gurado em 1873 com um espólio reunido por Fradesso da Silveira e extinto em 1877 na sequência da sua morte, era um dos exemplos.

Em 1884, depois de promover a criação de um conjunto de escolas indus-triais e de desenho industrial, António Augusto Aguiar desenhava o novo Regulamento dos museus, num documento com objectivos ambiciosos:

As escolas instituidas pelo decreto de 3 de Janeiro de 1884, combinadamente com os mu-

seus industriaes e commerciaes, creados pelo decreto de 24 de dezembro de 1883, têem por

fim lançar os primeiros lineamentos de uma instituição análoga ao real-imperial museu

austríaco de Arte e Indústria, em Vienna, e ao museu inglês de South Kensington, promo-

vendo a restauração do ensino industrial e tomando como ponto de partida para esse fim a

difusão do ensino racional do desenho elementar e do desenho industrial. (Idem)

O ministro que alguns anos antes visitara o museu de Londres (LISBOA, 2007: 382), decidia agora transpor para a realidade nacional, os métodos de ensino aí observados. Divididos em duas secções – nacional e estrangeira –, os museus adoptavam o carácter de exposições permanentes, constituídas por amostras de espécimes industriais e comerciais, fornecidas (sempre que possível) pelos

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próprios fabricantes ou negociantes. O espaço dedicado aos produtos nacionais subdividia-se ainda numa secção especial regional (com uma mostra provinda dos distritos da circunscrição a que o museu pertence) e outra colonial.

A produção industrializada, devia ser complementada com uma série de pro-tótipos elucidativos do seu processo de fabrico que revelassem o objecto em pro-gressivas fazes de materialização. Aos directores e conservadores cabia a tarefa de organizar colecções, dotadas do mais completo manancial de matérias pri-mas e produtos industriais, sem descurar o importante espólio regional provin-do das diversas indústrias caseiras. Para o fim de coligir exemplares da pequena indústria, o governo ordenará ás auctoridades da sua dependencia, que attendam aos pedidos e instrucções das direcções dos museus, sendo esse serviço considerado como offi-cial (Regulamento dos museus, 1884: Art. 12.º). As direcções dos museus ficavam igualmente incumbidas de reunir, através de originais ou de reproduções, os tes-temunhos da evolução histórica de ferramentas, utensílios ou de outros objec-tos de referência das indústrias artísticas. Os acervos acolhiam ainda quaesquer objectos aproveitaveis, (restos de antigas collecções, duplicados do museu colonial, etc.), incluindo as copias de todos os projectos e memorias descriptivas dos apparelhos a que já tenham sido ou forem concedidas patentes de invenção (Idem: Art. 15.º).

As escolas de desenho industrial criadas junto dos museus, estavam desti-nadas a permanecer dentro dos seus recintos e subordinadas às suas respectivas direcções. De acordo com o espírito finissecular, os cursos de desenho aí minis-trados, deviam apresentar tanto quanto possivel, um caracter util e nacionalista, ins-pirando-se nos modelos e fórmas artisticas dos objectos da industria tradicional popular (Idem: Art. 18.º). À semelhança de Londres e Viena, os museus complementa-vam a sua tarefa pedagógica com a presença de bibliotecas dotadas essencial-mente de obras de carácter técnico, colecções de modelos e desenhos.

Segundo o novo projecto reformista, a aprendizagem do desenho dividir-se--ia em dois graus distintos: elementar ou geral e industrial ou especial. O primei-ro destinava-se essencialmente a crianças com menos de doze anos, enquanto o segundo fora pensado sobretudo para adultos, aprendizes ou mestres de várias indústrias e ofícios (Regulamento geral, 188: Art. 4.º). O ensino elementar com-preendia duas classes: preparatória e complementar. A classe preparatória leva-rá os alumnos até ao ponto de desenharem francamente á vista os contornos dos objectos (desenho linear á vista) com uma observação exacta e rapida (Idem: Art 6.º). A classe complementar, levantava dificuldades acrescidas, exploradas com auxílio do controverso papel stymographico.

Por sua vez, o ensino industrial ou especial do desenho, dividia-se em três cursos bienais – ornamental, architectural e mechanico –, todos de carácter essen-cialmente prático e tanto quanto possivel experimental. Desenhar constituía uma actividade dominante nas estruturas curriculares então projectadas, embora não fosse ainda possível constatar, a devida separação entre um ensino mais li-vre e artístico (moldado pelo modelo das Belas-Artes) e outro de cariz essencial-mente industrial (ARROIO, 1911: 14).

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A mimese dos exemplos internacionais fazia-se estruturando o ensino em níveis distintos, professado do mais elementar ao especial, nas instituições habi-tuais: escolas de desenho, escolas de desenho industrial (incluindo as anexas aos museus) e institutos comerciais e industriais. No entanto, como opinava António Arroio, continuava a verificar-se em Portugal uma completa desorienta-ção na comprehensão do desenho e do que no estrangeiro se avançara nesta especiali-dade (Idem: 15).

Com Emídio Navarro (1844-1905), a proposta avançada por Aguiar de trans-formar as escolas anexas aos museus em escolas normais de desenho e artes in-dustriais, destinadas a formar pessoal docente habilitado no ensino de aplicação, bania-se. Navarro propunha antes a (polémica) contratação em larga escala de professores estrangeiros. No entanto, o fito pedagógico das instituições museoló-gicas era apurado e simultaneamente exacerbado. Assim, cada museu ficava in-cumbido de proporcionar instrucção pratica pela exposição permanente de bons padrões e modelos das artes industriaes de todos os paizes e de todos os estylos, educando o gosto do productor e do consumidor, e fazendo apreciar o que ha de valioso, de original e de caracte-ristico nas tradicções artisticas da industria nacional (Regulamento dos Museus, 1889: Art. 1.º d). O tom do restante articulado estava marcado. Aos museus cabia a tarefa de historiar (através de colecções retrospectivas) os produtos mais singulares das artes industriais, sobretudo em terreno pátrio. A sua orgânica dividia-se agora em três secções: industrial, comercial e de arte industrial, todas vocacionadas para a exposição de produtos nacionais e estrangeiros, sujeitos às rigorosas regras de apresentação e catalogação, herdadas da legislação anterior.

O espírito nacionalista da época, reforçava antigos imperativos: coleccionar os designados typos nacionais, presentes nos produtos de inúmeras indústrias caseiras. Viajar pelo país em busca da criação popular, revelava-se um procedi-mento necessário e de veras útil, não só à salvaguarda dum património inesti-mável, mas à avaliação de eventuais benefícios do ensino do desenho industrial e da modelação (Idem: 17), nos centros onde fora estabelecido. Das excursões pela província, nem sempre fáceis e por vezes ingratas, resultava uma espécie de car-tografia da produção nacional: uma rede de objectos que se desejava, perfeita-mente documentada.

Munidos de oficinas de reprodução gráfica e em gesso, os museus encontra-vam-se aptos a (re)produzir, toda a sorte de modelos para o ensino do desenho, sem descurar a ampliação do seu próprio acervo. Integrando uma via de progres-so, passavam também a dispor de colecções itinerantes, em prol da democratiza-ção dos espécimes industriais.

No entanto, apesar dos positivos intentos, o insucesso da nossa industriali-zação era uma realidade incontornável. Em 1898, Elvino José de Sousa e Brito (1851-1902) chegava a uma conclusão muito pouco edificante: a euforia legisla-tiva das últimas duas décadas, redundara numa sucessão de medidas pedagógi-cas de cariz inexpressivo. Apesar da constante evocação dos modelos estrangei-ros – onde o problema do ensino technico havia sido resolvido satisfactoriamente –, o

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nosso movimento reformista conseguiu adulterar a orientação seguida nesses países, desviando-se em sentidos diversos e chegando a resultados quasi nullos e, por vezes, negativos (Diário, 1898). Aliás, tudo se resumia no seguinte desabafo: não nacionalisámos a instrucção industrial, nem as industrias d’arte. A fundação dos mu-seus industriais e comerciais ficara também muito aquém das expectativas. Na verdade, o único sinal positivo da sua existência, esgotava-se na exposição anual de trabalhos das escolas industriais, uma medida imposta em 1888 por Emídio Navarro (Regulamento das Escolas, 1888: Art. 28.º). Tudo o mais revelava uma confrangedora inépcia; logo, a conclusão não se fazia esperar:

Os museus industriaes e commerciaes de Lisboa e Porto, creados por decreto de 24 de

dezembro de 1883, estão longe de satisfazer os intuitos a que visavam, quer como expo-

sições permanentes de artigos industriaes e correspondentes matérias primas, quer como

subsidio prestado ao ensino das escolas industriaes. (DIÁRIO, 1898)

Concretizava-se um desfecho inadiável: os museus extinguiam-se sob com-promisso de serem substituídos por outra instituição, cujo caracter melhor se adapte ao modo de sentir nacional, e revele ao paiz, com a maior evidencia e vigor, a importan-cia do nosso fomento, em todas as categorias do trabalho (Idem). Da sua acção fica-vam um conjunto de catálogos dispersos, com amplas listagens, mais ou menos abstractas, de um momento expositivo que findou.

cONclUSãO

O amplo debate em torno da inexistência de uma via de ensino apropriada para as classes industriais, levaria um conjunto de autores, como Joaquim de Vasconcelos, a analisar os exemplos estrangeiros e a divulgá-los à escala nacio-nal. O South Kensington Museum e o Real-Imperial Museu Austríaco de Arte e Indústria, são disso exemplo. Em Portugal, os resultados obtidos por estas insti-tuições são tidos como referenciais para a aproximação da arte à indústria, logo os Museus Industriais e Comerciais de Lisboa e do Porto constituem uma ten-tativa de inscrever no contexto nacional, um modelo pedagógico que tem por base o ensino do desenho. Apesar de na teoria existir uma clara correspondência entre as medidas postas em prática no estrangeiro e no nosso país, os resulta-dos obtidos em ambas as realidades não podiam ser mais opostos. Enquanto na Áustria e na Inglaterra, o sistema de ensino radicado na existência de museus deu lugar a um desejado implemento industrial, em Portugal os efeitos desse en-sino são inexpressivos. Verifica-se igualmente um desfasamento entre a teoria e a prática, que redunda numa pálida aplicação dos intentos firmados em decreto.

No entanto, a ideologia deste sistema de ensino estrangeiro, revela-se extre-mamente salutar pela potencialidade dada ao Museu como estrutura modelar do gosto, quer do fruidor, quer do aluno.

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Contactar a [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

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ISTO NãO é UM BANdEIRANTE! O trabalho de mediação na exposição “imagens recriam a história”1

ThIS IS NOT A “BANdEIRANTE”! The educational work in the exhibition “

images recreate the history”

Valéria Peixoto de Alencar Instituto de Artes, UNESP, São Paulo

Resumo: Este artigo pretende discutir o uso de imagens em exposições históricas a partir da análise da construção de um discurso expositivo que propõe refletir so-bre a figura do bandeirante no Museu Paulista da USP, a criação do mito e alguns desdobramentos. Também, refletir sobre as possibilidades de leituras das imagens contidas na dita exposição e propostas pela ação educativa da instituição. Palavras-chave: Pintura histórica. Educação em Museu. Cultura Visual. Bandeirante

Abstract: This article wishes to discuss the use of images in historical exhibi-tions from the analysis of the construction of the exhibition discourse that in-tend think about the picture of the bandeirante at the Museu Paulista of the USP, the creation of the myth and some developments. Also, this article is re-flecting about of images reading possibilities in the exhibition cited and propos-als by educational action of the institution.

Keywords: history painting. Museum Education. Visual Culture. Bandeirante.

INTROdUçãO

Basta que uma figura se pareça com uma coisa (ou com qualquer outra figura), para que se

insira no jogo da pintura um enunciado evidente, banal, mil vezes repetido e entretanto

quase sempre silencioso. (FOUCAULT, 2008)

Este artigo apresenta algumas reflexões surgidas durante pesquisa junto ao Ser-viço de Atividades Educativas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (SAE/MP/USP), no tocante a uma de suas exposições: “Imagens recriam a Histó-ria”, e o trabalho de mediação cultural realizado com o roteiro “Um olhar sobre a pintura histórica” elaborado pelo SAE para esta exposição.

A pesquisa é parte do projeto de Doutorado que vem sendo realizado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/UNESP), sob a orientação da profes-sora Dra. Rejane Galvão Coutinho. O MP/USP é o estudo de caso desta pesquisa por ser um dos primeiros museus históricos brasileiros e um dos mais visitados também.

Para tanto, este artigo possui três momentos: inicialmente, apresentarei bre-vemente o Museu Paulista, enfocando seus anos iniciais e sua caracterização

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como museu Histórico, para tanto, utilizarei como principal referência a histo-riadora Ana Cláudia Brefe (2005).

Em seguida, procurarei tecer reflexões sobre o uso pedagógico das Imagens no Museu Histórico e para esta discussão conto com os seguintes autores: Pe-ter Burke, e Ulpiano Bezerra de Meneses que abordam a utilização de imagens como fontes históricas; também, Paulo Garcez Marins, que idealizou o projeto curatorial da exposição “Imagens recriam a história”, e discute em um de seus artigos como uma convenção pictórica foi utilizada para representar o bandei-rante paulista em pinturas e esculturas do acervo do MP.

Por fim, apresentarei a proposta de mediação do SAE/MP para a exposição “Imagens recriam a História”, a partir de apontamentos realizados como obser-vadora participante durante o processo do estudo de caso.

1. O MUSEU PAUlISTA

Fig. 1 - Museu Paulista. Guilherme Gaensly. c.1902. Fotografia.

O Museu Paulista (MP) foi inaugurado em 1895. Também conhecido como Museu do Ipiranga, nome do bairro onde se situa e onde foi proclamada a Independência do Brasil em 1822, foi projetado pelo arquiteto Tommaso Gaudenzio Bezzi, para configurar como um monumento ao evento que é considerado o nascimento da nação brasileira (BREFE, 2005).

A fotografia de Gaensly (Figura 1) apresenta a edificação, ainda sem o jardim que posteriormente será construído ao redor. Vale ressaltar que a cidade de São Paulo à época da construção do museu era pouco povoada e o bairro do Ipiranga era afastado do núcleo urbano central. A região fazia parte do caminho de quem subia a Serra do Mar, vindo do litoral para o centro da cidade. O acontecimento da Independência se deu numa dessas viagens, daí a importância local e a preocupação em perpetuar sua história.

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Com características de memorial, sua construção foi iniciada em 1885, “sen-do considerado terminado em 1890, apesar de inacabado por falta de recursos” (BREFE, 2005: 20), permaneceu desocupado até 1894, quando passou por lei a ser a nova sede do Museu do Estado, que foi batizado de Museu Paulista.

Seu primeiro diretor, Hermann Von Ihering era zoólogo e, seguindo a li-nha dos dois outros grandes museus brasileiros do século XIX, o Museu Na-cional no Rio de Janeiro e o Museu Paraense Emílio Goeldi, também privile-giou a História Natural em sua expografia. Ainda, segundo Fábio Rodrigues de Moraes (2008), Ihering nunca se esqueceu do simbolismo do local, do que ele representava para a história brasileira e de que no regulamento da instituição havia um artigo dedicado à seção histórica.

Contudo, foi a partir de 1917, com a direção de Affonso Taunay, um His-toriador, que o Museu Paulista “começou a delinear claramente o perfil de um museu histórico” (BREFE, 2005:53). Taunay inaugurou a Secção Histó-rica do MP em 1922, por ocasião das comemorações do centenário da Inde-pendência e, durante todo o período de sua gestão, até 1945, mobilizou seus esforços para contar a sua versão da História nacional pelo olhar paulista (BREFE, 2005)

Cabe ressaltar que “a iconografia é um dos elementos centrais da deco-ração histórica do Museu Paulista prevista por Taunay” (BREFE, 2005:83), de modo que ele realizou diversas encomendas a artistas renomados como Benedito Calixto, Oscar Pereira da Silva, Rodolfo Bernadelli, entre outros, de pinturas e esculturas baseadas em desenhos, gravuras e fotografias que pas-saram a compor o acervo do museu. Tais encomendas eram supervisionadas pelo próprio Taunay e

faz crer que ele estava absolutamente consciente do poder evocativo das imagens na

formação do quadro histórico que pretendia delinear e instaurar. Diretamente imbri-

cada nessa preocupação em compor a história paulista e nacional de maneira lógica,

abrangente e explicativa, está a sua intenção pedagógica em relação ao museu (BREFE,

2005:109-110).

Contar a História Nacional no período que compreende a chegada dos por-tugueses até 1822, a partir do ponto vista paulista, significou, dentre outras escolhas, valorizar a figura do chamado bandeirante paulista, objeto de estudo de Taunay.

E, é a partir de obras encomendadas no início do século XX que represen-tam o contato entre portugueses e índios e o bandeirante paulista nos séculos XVI e XVII que se delineou o tema da exposição “Imagens recriam a história”, que será comentada no item 3.

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Fig. 2 - Museu Paulista. Autor e data desconhecidos.

Disponível em http://www.sp-turismo.com/sao-paulo/museu-paulista.htm

Atualmente, o Museu Paulista continua sendo um dos museus mais visita-dos do país, agora, engolido pela cidade (Figura 2), suas exposições e seu acervo continuam provocando diversas leituras e reflexões, como apresentarei a seguir.

2. IMAgENS E hISTóRIA

Muitas vezes, ao preparar aulas ou palestras sobre Metodologia do ensino de História ou História da Arte, recorri a sites de busca na internet atrás de ima-gens para apresentar aos estudantes. Muito fácil encontrá-las, difícil encontrar informações mínimas sobre elas, tais como ano de produção e autor, sem men-cionar que os títulos nem sempre estavam corretos. E, posso garantir que, como professora cuidadosa que sou, os sites pesquisados eram destinados a pesquisa escolar ou acadêmica.

Livros didáticos de História mais antigos geralmente, também, não se preo-cupavam em apresentar as imagens com as referências corretas, utilizando tais imagens como ilustração pura e simplesmente. Nos últimos anos observei que os autores de livros didáticos têm tomado um certo cuidado, ao menos no que se refere às legendas que acompanham as imagens utilizadas, com títulos (cor-retos), autores e datas das reproduções de pinturas, esculturas, fotografias e ima-gens de outra natureza que venham a utilizar, afinal, como diz Peter Burke em seu livro Testemunha ocular: história e imagem (2004), no qual ele apresenta uma análise dos usos das imagens na historiografia, “qualquer imagem pode servir

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como evidência história” (p. 20-21), mas o que o autor sempre defende é a crítica às fontes, sempre se perguntando: “evidência de que?”.

É sobre o uso pedagógico das imagens que pretendo discutir agora, a partir do estudo de caso que realizei no Museu Paulista/USP. Tomando como exemplo a imagem do bandeirante, presente nas pinturas e esculturas encomendadas por Ihering e, principalmente por Taunay, é possível perceber o impacto dessas ima-gens no processo de formação de um imaginário sobre a memória nacional, que perdura até os dias de hoje; ora valorizando as imagens como representantes da verdade, ora, desvalorizando-as como sendo uma farsa, como, por exemplo, o de-senho criado (Figura 3) para a matéria de Ana Rita Martins, veiculada na revista Nova Escola, em outubro de 2008:

Fig. 3 - s/título. éber Evangelista, 2008.

Disponível em: < http://revistaescola.>abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/mudou-imagem-422991.shtml

Figura 4 – Benedito Calixto. Retrato de Domingos Jorge Velho. 1903. óleo sobre tela. 140 x 100 cm.

Acervo Museu Paulista. Reprodução Fotográfica José Rosael. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexte

A imagem não tem um título, sua legenda apresenta a seguinte informação: “NOSSA RECRIAÇÃO. A ilustração retrata os sertanistas segundo a descrição de documentos históricos. Ilustração Éber Evangelista”. A “recriação” seria da tela que representa Domingos Jorge Velho e o loco-tenente Antonio Fernandes de Abreu, que Benedito Calixto pintou em 1903 sob encomenda para o Museu Paulista (Figura 4).

O texto de Ana Rita Martins (2008), que na internet aparece como sugestão de plano de aula para professores de História, procura discutir as diferentes vi-sões acerca da figura do bandeirante paulista, ou como dito na legenda “serta-nistas”, como sua imagem foi construída, literalmente, pois fala das imagens criadas no início do século XX para fortificar o mito, e que o professor deve rela-tivizar e “questionar essa interpretação cristalizada no senso comum”, também

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que é preciso entender as visões que se construiu ao longo do tempo, ter um olhar crítico para a História.

Contudo, a desconstrução, ou melhor, a construção de outra imagem descri-ta como verdadeira, nada mais é do que acreditar na objetividade da fonte, sem criticá-la, sem levar em conta a subjetividade do artista que produziu a imagem em 2008, numa tentativa de repórter ou retratista policial, como assinala Burke “seria imprudente atribuir a esses artistas repórteres um ‘olhar inocente’ no sen-tido de um olhar totalmente objetivo, livre de expectativas ou preconceitos de qualquer tipo” (2004:24). Peter Burke estava se referindo aos pintores, desenhis-tas e fotógrafos “testemunhas oculares” de um fato, mas certamente suas pala-vras cabem aqui, pois na construção do texto de Ana Rita Martins, quando se compara as imagens, o subtítulo é: “Aqui, o bandeirante ideal. Ali, o real”, sendo o “ideal” o de Calixto e o “real” o de Evangelista.

Ora, por que real? Porque baseado em documentos históricos? Segundo Paulo Garcez Marins (2007), a tela de Calixto (Figura 4) também o foi, além disso, “ao que se sabe, não restou nenhuma representação visual de sertanistas paulistas realizada no período colonial” (MARINS, 2007: 92) e, ainda que tivesse restado al-guma iconografia, esta também deveria ser vista de forma crítica, como defende Meneses e Burke.

Não se trata aqui de discutir qual imagem é mais confiável, se é que isto seria possível, e sim que, “a História continua a privilegiar ainda hoje, a despeito da ocorrência de casos em contrário, a função da imagem com a qual ela penetrou suas fronteiras no final do século atrasado. É o uso como ilustração” (MENESES, 2003: 20-21), assim, podemos dizer que ambas são idealizações, ou melhor, pro-duções encomendadas segundo certas diretrizes e escolhas estéticas de épocas diferentes e direcionadas a públicos diversos.

Do mesmo modo foi, por exemplo, o discurso expográfico idealizado por Affonso Taunay para o Museu Paulista. E, quando pensamos no material dedi-cado ao professor (MARTINS, 2008) que apresenta uma imagem como “real”, o que se pode depreender disso é que, tal como os historiadores da escola positi-vista, da qual Taunay fazia parte, as imagens ainda são pensadas como possíveis fontes carregadas de verdade.

Como diz Burke “imagens nos permitem ‘imaginar’ o passado de forma mais vívida” (2004: 17), contudo, ao analisar diferentes tipos de imagens e como elas algumas vezes foram utilizadas como fonte, o autor sempre adverte que não existe neutralidade na produção delas, jamais.

No caso desta pesquisa, cabe ressaltar o uso ideológico das imagens e a força de sua propagação pelas exposições e, o Museu Paulista que, como outros mu-seus históricos, tem sua origem ligada à construção de uma memória nacional e “o imaginário social é constituído e se expressa por ideologias e utopias, sem dúvida, mas também [...] por símbolos, alegorias, rituais, mitos” (CARVALHO, 1990: 10). A construção da imagem do bandeirante paulista, exemplo tomado aqui para discutir Imagem e História, e, por consequência, do imaginário em

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torno deste mito, muito se deve a pesquisa que Affonso Taunay realizou no iní-cio do século XX:

As telas produzidas para as exposições, referentes à história da nação mas principalmente

à de São Paulo, irão formar um novo universo de referências visuais, largamente difun-

didas pelos livros didáticos, imprensa, e outros meios de comunicação, ajudando a cons-

truir um imaginário centrado na história paulista. (BOGUS, 2002: 60).

Ainda que a pintura de Calixto (Figura 4) tenha sido encomendada na da administração que antecedeu a de Taunay, ela está associada com a construção do mito do bandeirante, como explana Paulo Garcez Marins em seu artigo Nas matas com pose de reis (2007), no qual discute a adoção de uma convenção pictó-rica em pinturas e esculturas do MP que representam bandeirantes. Ele afirma que aquisição da tela de Calixto

viabilizada por verba estadual, foi simultânea à emergência de uma interpretação históri-

ca que apontava o fenômeno do sertanismo paulista com o elo decisivo entre a trajetória

territorial do Brasil e de São Paulo, concepção esta que se consolidaria entre os historia-

dores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo ao longo das três primeiras

décadas do século XX (p. 79).

Taunay, que era ligado ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), produziu um discurso visual no MP que narrava a trajetória do ban-deirante paulista, apoiado em documentos que ele considerava carregados de verdade histórica, como era o pensamento do IHGSP (BREFE, 2005).

O Museu Paulista deu materialidade, por intermédio de imagens profundamente evocati-

vas, a essa história-memória construída na obra escrita de Taunay. Esse museu histórico,

com ares de memorial da Independência recriado pelo ‘historiador das bandeiras’, institui-

-se como um lugar de memória nacional, onde as bandeiras e o bandeirante foram evocados

como os maiores símbolos nacionais. A história do Brasil passou, portanto, a ser lida de um

novo ponto de vista, em que São Paulo estava à frente do contexto nacional, porque, de fato,

sempre esteve; a tradição forjada vinha, assim, confirmá-lo. (BREFE, 2005: 214).

A autora segue discutindo sobre o papel de Taunay e do MP, e das imagens e símbolos criados na construção dessa memória nacional. Voltando à questão do “ideal” e do “real”, ao ler os relatórios referentes à administração de Taunay no MP e também segundo Brefe (2005), Taunay como Historiador valorizava o uso de documentos, ele procurava inclusive, expor fontes escritas e materiais próximas as pinturas que encomendou numa tentativa de provar a veracidade

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das imagens. Portanto, não é a questão de ser ou não baseado em documentos históricos, como foi a imagem de Evangelista (Figura 3), e sim a subjetividade presente em quem olha para tais fontes e como as interpreta.

Nesse sentido, as imagens produzidas para essa memória bandeirante no MP podem e devem ser vistas como fontes, mas não do período que retratam, e sim do período em que foram produzidas, elas trazem “informações importantes para re-construir e entender o imaginário de sua época” (MENESES, 1992: 24).

Mas, “pode o sentido de imagens ser traduzido em palavras?” pergunta-se Burke (2004: 43) ao discutir sobre Iconografia e Iconologia, apresentando a Escola de War-burg, da qual pertencia Erwin Panofsky, e o método iconográfico de leitura de ima-gens: “Panofsky insistia na ideia de que imagens são parte de toda uma cultura e não podem ser compreendidas sem um conhecimento daquela cultura” o que faz com que “da mesma forma, sem um conhecimento razoável da cultura clássica nós não conseguimos ler um grande número de pinturas ocidentais...” (BURKE, 2004: 46).

Dada a importância ao contexto de produção, vale ressaltar que a tela de Calixto (Figura 4) além de estar ligada ao início de um movimento que irá glorificar os ban-deirantes paulistas (MARINS, 2007) como já foi dito, ainda possui duas característi-cas sobre seu contexto de produção que merecem ser destacados.

A primeira, no que diz respeito à preocupação com a imagem fiel. Como dito an-teriormente, não havia como o pintor recorrer a fontes iconográficas na época sobre Domingos Jorge Velho, de modo que Calixto consultou fontes textuais e orais para compor o retrato, além de pintor ele também era historiador e, durante o processo de criação da tela, recorreu ainda a dois outros historiadores, Teodoro Sampaio e Washington Luís (MARINS, 2007).

Entre os debates que se seguiram sobre a composição da tela entre Teodoro Sam-paio, idealista, e Washington Luís, realista – as cartas trocadas entre Calixto e seus interlocutores eram publicadas no jornal Correio Paulistano – o pintor acabou por concordar mais com as considerações de Washington Luís que “evidenciavam a importância que a experiência bandeirante teria para o círculo de historiadores do IHGSP nas décadas seguintes” (MARINS, 2007: 96).

Contudo, as sugestões de Teodoro Sampaio não foram ignoradas, especialmente no que diz respeito ao estilo do retrato, e isso é o segundo aspecto a se destacar. Além de pensarmos no contexto de produção, o de recepção é lembrado como importante, pois a tela iria para um Museu, um dos mais importantes do país e Teodoro Sampaio, numa carta em reposta a um esboço da tela de Calixto diz:

Num quadro histórico, porém, não há só a considerar a verdade ou realidade do facto: há

também a parte propriamente artística ou de efeito estético, há a lição de cousas. Carac-

terizando o vulto de Domingos Jorge como trajava qualquer sertanejo mais abastado ou

à bandeirante, não se conseguirá do quadro a demonstração ou a ideia que se tem em vista

alcançar (TEODORO SAMPAIO apud MARINS, 2007, p. 93).

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Assim, segundo Paulo Garcez Marins, Calixto utilizou o padrão de Hyacinthe Rigaud, pintor da tradição retratística do segundo regime na França, cujo padrão de representação régia tornou-se uma convenção, Calixto reelaborou o padrão de Rigaud “para adaptá-lo ao seu tempo e ás demandas simbólicas dos encomendan-tes” (MARINS, 2007: 99). Por fim,

a solução compositiva de Calixto acabaria por tornar-se, ela própria, uma convenção para

a pintura e escultura históricas dos bandeirantes. Seu sucesso, que certamente deriva

do fato de ter sido adquirida pelo Museu Paulista, confirmar-se-ia nas décadas seguintes

quando Taunay, o terceiro diretor da instituição, encomendou uma grande quantidade

de obras de arte para criar um cenário, um ‘teatro da memória’ para as comemorações do

centenário da Independência e do que considerava ser a decisiva atuação dos paulistas na

formação do Brasil. (MARINS, 2007: 100).

De modo que temos três elementos importantes para contextualizar a obra de Calixto e a expografia idealizada por Taunay: a criação do mito do bandeirante, o positivismo do IHGSP e uma convenção pictórica, já suficiente para o método ico-nográfico de Warburg e Panofsky. Porém, venho aqui ressaltar as críticas que tal método tem sofrido, a partir das considerações de Peter Burke.

Primeiramente, critica-se o método iconográfico “por ser intuitivo em demasia, muito especulativo para que possamos nele confiar” (BURKE, 2004: 50), posso inclu-sive questionar aqui a construção da figura 3, o quanto não há de intuição e especu-lação na proposta apresentada por Martins e Evangelista? Teriam eles se utilizado do método iconográfico para interpretar a tela de Calixto? O objetivo de Panofsky “era descobrir ‘o’ significado da imagem, sem levantar a questão: significado para quem?” (BURKE, 2004: 51). O que nos leva a uma segunda crítica exposta por Peter Burke, não é possível presumir que o contexto de recepção, mesmo numa mesma época, seja homogêneo, isto é, será que todos que passaram a apreciar as construções do mito do bandeirante do MP tinham todo o conhecimento deste contexto, ainda que contemporâneos a produção das imagens? Não posso acreditar.

Da mesma forma que hoje nos deparamos com um contexto historiográfico crítico à ação dos bandeirantes e, como questiona o título do artigo de Martins “bandeirantes: heróis ou vilões?”, a análise da expografia e o trabalho educativo devem ir além desta dicotomia, se nos deslocarmos do personalismo e refletir-mos sobre os sujeitos leitores da obra de arte, pois, se levarmos a ferro e a fogo o método iconográfico, por exemplo, não poderíamos esperar que crianças até uma certa idade lessem determinadas imagens.

debemos enfatizar que no existe una simple o correcta respuesta a preguntas como ‘¿qué

quiere decir esta imagen?’, ya que los significados cambian en el tiempo y no hay leyes

que garanticen el ‘significado verdadero’ de las cosas; por ello, no se debería establecer

un debate entre quien tiene razón y quien está equivocado, sino entre significados e

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interpretaciones igualmente plausibles, aunque en ocasiones compitan y se contesten.

(HALL apud LOPEZ, KIVATINETZ, 2003: 42)

É pensando em significados e interpretações que apresentarei a seguir a pro-posta de mediação com parte das imagens de bandeirantes que compõem a ex-posição “Imagens recriam a história”.

3. A PROPOSTA dE MEdIAçãO

A pesquisa de Doutorado que está em processo tem com estudo de caso o Ser-viço de Atividades Educativas do Museu Paulista. Para tanto, a partir de uma abordagem qualitativa, elaborei um plano de investigação em que pude, princi-palmente com o método de observação participante, tecer considerações sobre parte do trabalho de mediação no MP, além da consulta de fontes escritas pro-duzidas pelo serviço educativo do Museu e por Affonso Taunay, que auxiliaram nas reflexões acerca da relação expografia/mediação.

Para este artigo, apresento um momento da pesquisa de campo, as refle-xões surgidas a partir da observação das visitas à exposição “Imagens recriam a história”.

3.2 A EXPOSIçãO “IMAgENS REcRIAM A hISTóRIA”

Situa-se na ala do MP denominada “História do imaginário” e, segundo as informações que constam no site da instituição, a exposição “Imagens recriam a história: arte e história no Museu Paulista” é constituída de pinturas históricas confeccionadas nos séculos XIX e XX “que fazem parte do imaginário nacional. São explorados o processo de criação dessas pinturas, sua integração ao Museu e sua difusão em livros didáticos e objetos de uso cotidiano”.

A exposição foi construída em dois espaços, “Imaginar o início” que conta com telas de Oscar Pereira da Silva, Benedito Calixto entre outras, propõe ao visitante que perceba o processo de elaboração de pinturas históricas, explorando a partir de propostas de leituras, também com equipamentos multimídia, uma leitura for-mal destas obras, numa tentativa de que se entenda o seu contexto de produção.

Num segundo momento, a sala “Criando heróis paulistas” apresenta as recons-truções e a reprodução da imagem do bandeirante ao longo do século XX, como, por exemplo, em desenhos, livros didáticos, embalagens de doce, fantasias etc.

A proposta é que o visitante analise as pinturas históricas como produtos da cultura visual, seus contextos de produção, como obras de arte e representações de determinadas épocas em torno do mito do bandeirante.

3.3 dE dOMINgO NO PARqUE A PEdRO AMéRIcO

O Serviço de Atividades Educativas do MP (SAE/MP), supervisionada por Denise Peixoto Catunda Marques, elaborou um roteiro de visitação para essa exposição intitulado: Um olhar sobre a pintura histórica, para alunos do Ensino Médio, e ex-plora os espaços expositivos: “Imaginar o Início”, “Criando os Heróis Paulistas” e “Salão Nobre”, este último, não faz parte da exposição, mas foi incluído no ro-teiro, especialmente para a realização da leitura da tela Independência ou Morte!, de Pedro Américo. Na atividade, como é descrito no material enviado aos professores que agendam a visita, é “abordado o gênero ‘pintura histórica’, bastante praticado por artistas brasileiros nos séculos 19 e 20. Para isso, exercícios de leitura de imagens serão realizados a partir de algumas das obras expostas no Museu”.

Para o início da visita, o “acolhimento”, momento no qual os estudantes são recebidos para uma conversa inicial contextualizando o MP e a exposição a ser visitada. Especificamente para este roteiro, foi elabora uma atividade para ser realizada no acolhimento com o objetivo de refletir sobre ideia de imagem como representação da História.

A atividade consiste em escutar a música Domingo do parque, de Gilberto Gil e em seguida os estudantes, divididos em grupo de cerca de quatro pessoas, devem realizar um desenho que “ilustre” ou “represente” a história contada na música.

A partir da análise destes desenhos inicia-se a conversa sobre representação, imagens e história, como assinalou Denise Peixoto em entrevista concedida a mim por ocasião do estudo de caso,

O que é o desenho em relação à música? Qual desenho é a música? Pra chegar à conclu-

são de que nenhum desenho é a música, nem a própria música é o fato, se é que tivesse

existido essa coisa da morte, mas em todos os desenhos aparecem os mesmos elementos,

e alguns não aparecem, parte da escolha do grupo. E a gente trabalha também pensando

nisso, que o artista faz escolhas pautadas em certos referenciais...

A atividade serve como um ponto de partida para as leituras das imagens presentes na exposição, ou seja, há que se pensar no contexto de produção das imagens e que não há imagens certas ou erradas, são sempre representações.

No processo de observação de visitas, verifiquei que, frequentemente, se lan-ça um olhar de dúvida sobre a imagem do bandeirante como herói, olhar esse que, numa breve especulação do ensino de História atualmente, se relaciona à revisão da historiografia sobre o bandeirante, e também com materiais para pro-fessores, como a matéria da revista Nova Escola citada anteriormente, na qual existe uma desconstrução da figura do herói para se construir outra.

Não cabe aqui discutir o ensino de História, mas vale destacar a leitura de alguns estudantes que percebi contaminada pela ideia do bandeirante vilão, ao

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invés do herói, e a tentativa do trabalho de mediação em superar o maniqueísmo do bom versus mau, verdade versus mentira, como na leitura da tela “Combate de botocudos em Mogi das Cruzes” (Figura 5):

Fig. 5 - Oscar Pereira da Silva. Combate de botocudos em Mogi das Cruzes. s.d. óleo sobre tela. 100x150 cm.

Acervo Museu Paulista. Reprodução Fotográfica autoria desconhecida. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/

aplicexternas/enciclopedia_ic>

Percebi, muitas vezes, quando o educador questionava: quem está vencendo? Quem parece mais corajoso? Os estudantes tendiam a valorizar os índios: “lutar contra arma de fogo”, “não se render...” Ao que o educador sugere: “a interpretação de quem encomendou e fez o quadro é diferente da nossa”, para então, discutir com os alunos os elementos formais da pintura, numa tentativa de que, a partir do con-texto de produção, se perceba a subjetividade do artista, da mesma forma como aconteceu na dinâmica realizada por eles no acolhimento.

Outras imagens da exposição também são contextualizadas, entendidas como representação de um fato ou personagem, e que estas representações con-tam mais sobre a época em que foram produzidas do que sobre o fato ou perso-nagem retratados. Acredito que o fato de terem executado a atividade proposta no acolhimento e discutido suas produções, auxilie no desenrolar das discussões durante a visita.

cONclUSãO

Retomando as palavras de Foucault que abriram esse artigo, a imagem do bandei-rante paulista é esta figura que se parece com uma coisa e com outras figuras, e também todas construções, representações que reforçam ou desconstroem o mito.

Acreditando que não há uma interpretação única para as imagens, a pesquisa

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da qual se extraiu essa discussão, ainda pretende futuramente trazer maiores re-flexões que compreendam a partir dos Estudos da Cultura Visual, possibilidades de interpretação que evidenciem mais o sujeito leitor de imagens, os contextos de recepção da visualidade. Daí, percebo tanto a exposição citada como a imagem de Evangelista (Figura 3), cada uma como um exercício de interpretação, dentre tantos outros possíveis da figura do bandeirante paulista.

Contactar a autora: [email protected]

Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

REfERêNcIAS

· BREFE, Ana Cláudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional, 1917-1945. São

Paulo: Editora UNESP: Museu Paulista, 2005.

· BOGUS, Ricardo Nogueira. Exposições num Museu de História. In: Imagem e produção de conhecimen-

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· BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução de Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru,

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· MARTINS, Ana Rita. Bandeirantes: heróis ou vilões? Revista Nova Escola, São Paulo, n. 217, out. 2008.

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· MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Como explorar um museu histórico. São Paulo: Museu Paulista/USP, 1992.

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NOTAS

• 1 O termo bandeirante se refere aos sujeitos da História do Brasil que atuaram no período colonial como

exploradores do território, escravizando índios, buscado ouro e metais preciosos.

Resenha

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PINhEIRO, áurea da Paz; PElEgRINI, Sandra, c. A. (orgs.). Tempo, Memória e Patrimônio

cultural. Teresina: EdUfPI, 2010, 392 p.

Por Áurea da Paz Pinheiro

Esta obra integra as atividades do grupo de pesquisa Memória, Ensino e Patrimô-nio Cultural, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisas do Conselho Nacio-nal de Pesquisa CNPq/Brasil. Foi produzida via edital Capes, Brasil, e faz parte das atividades do Projeto “Memória, Cultura, Identidade e Patrimônio Cultural”.

De natureza coletiva, editada pela Universidade Federal do Piauí, reflete o esforço para construção de redes de sociabilidades, fruto de diálogos entre pes-quisadores e instituições dos mais diversos recantos do Brasil e exterior; fruto de discussões iniciadas ainda em 2007, quando foi constituído o grupo de pesquisa, que ao longo desses anos tem realizado encontros e publicações no campo do Ensino, Cultura, Memória, História e Patrimônio Cultural.

Os autores dos textos nos permitem refletir sobre sensibilidades e condições de existir em uma sociedade dinâmica e fluida, marcada por diálogos entre cul-turas; nos informam sobre a complexidade das relações sociais, dos bens cultu-rais, apropriação, circulação e salvaguarda do patrimônio cultural. São historia-dores, antropólogos, arqueólogos, arquitetos, juristas, que, nesta obra, trazem discussões temáticas: Ensino de História, Políticas Preservacionistas, Memórias e Sociabilidades.

Diverso em temas e abordagens, o livro nos permite compreender o papel que o tempo, a memória e o patrimônio cultural assumem na contemporaneida-de; como o ensino de História pode ser um instrumento valioso na promoção de ações educativas, que envolvem a rede escolar e as organizações locais, famílias, empresas, autoridades responsáveis; ações que podem minimizar a massifica-ção e a homogeinação de comunidades marcadas pela invasão midiática.

Os autores falam sobre o papel da escola e do educador, de políticas culturais, do direito de agentes e sujeitos históricos, sobre uma sociedade de classes que exclui parte de seus cidadãos do direito à criação e à fruição das obras de arte. Os diálogos estão centrados em um tempo em que há necessidade premente das socidades humanas preservarem, salvaguardarem uma variedade de culturas materializadas e (re) signifi-cadas cotidianamente em tradições que suscitam o interesse de cientístas sociais, au-toridades políticas, organismos internacionais e entidades não-governamentais.

Os autores acreditam que o valor do patrimônio não está impresso em si, mas nas relações estabelecidas em um tempo e espaço dados. Consideram os indivíduos que ocupavam o solo, as formas de utilização dos recursos naturais; as formas de produção elaboradas ao longo do tempo por culturas ancestrais, as relações com o patrimônio cultural, com a paisagem cultural.

A portaria no 127, de 30 de Abril de 2009/Iphan, Instituto do Patrimônio Históri-co e Artístico Nacional, estabeleceu a chancela da Paisagem Cultural Brasilira, “apli-cável a porções do território nacional. Título I Disposições Gerais I — Da Definição.

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Art. 1o. Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território nacio-nal, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimem”1.

A Constituição Brasileira de 19882, artigo 216, estabelece uma definição, ca-racterização e rol de referências culturais brasileiras.

Este livro parte de muitas das ideias de Hartog3, que elabora reflexões inte-ressantes sobre o tempo e o patrimônio cultural. O pensador toma como referên-cia o contexto político da queda do Muro de Berlim (formalmente celebrada em 1990). Naquele momento, a cidade de Berlin estava em reconstrução, era outra cidade, com edifícios metralhados, arruinados. Os edifícios da Berlim do Leste sinalizavam para outro tempo, talvez o tempo renegado, reprimido, esquecido pelo mundo; o tempo passado lentamente, mas aberto finalmente com a queda do muro. A configuração de mundo permite que se indague o que se deviam preservar, conservar e ou mesmo reconstruir? Vivia-se entre o muro e a marreta, entre o esquecimento e a memória.

O tempo era um problema; tempo denso, visível, marcado por sofrimentos e desilusões, que podiam ser vistos através dos restos, dos cacos, dos fragmentos e das marcas de diferentes tempos que pairavam sobre Berlim. Hartog4 relaciona patrimônio, tempo e memória, entende o patrimônio como um indício do tem-po, uma das diversas formas de sua tradução. Hartog5 considera que patrimônio e tempo são testemunhas das durações que atravessam a história.

Quando falamos da universalização do patrimônio, das várias políticas de usos do patrimônio ou da longa lista de sítios patrimoniais, a que tempo no refe-rimos? Qual o regime de historicidade da patrimonialização? A patrimonializa-ção é apenas um gosto pela nostalgia? Vivemos o tempo do dever da memória? É possível preservar o patrimônio contra o desgaste do tempo?

Hartog6 apresenta exemplo das políticas patrimoniais do Japão, que trata seu patrimônio como tesouro e retira dele o seu caráter divino. O dilema Ocidental de conservar ou destruir não existe no Japão; os japoneses não se esforçam para conservar os objetos contra o desgaste do tempo, pois o patrimônio se preser-va na sua atualização cotidiana, através do saber-fazer de um artista ou artesão, considerado tesouro nacional, o homem-memória7, que transmite o ofício e mo-dos de fazer, o objeto a ser conservado conta pouco; diferente do que acontece no Ocidente, que tem outra perspectiva de preservação patrimonial; os japoneses não pretendem oferecer, nem manter visibilidade a um dado bem. Diferente do ocidente, o Japão tem outra perspectiva de tempo, que se revela como perma-nência não-linear, mantém outra relação com os vestígios do passado, com os bens patrimoniais.

Como o templo de madeira, a arte tradicional existe na medida em que ela está no ou dentro do presente. Decorre daí que essas noções, tão centrais na constituição do patrimônio do ocidente, de ‘original’, de ‘cópia’, de ‘autenticidade’, não existem ou não são, em todo caso, portadoras dos mesmos valores no Japão. Seguramente, o passado contava, mas a ordem do tempo operava de outra forma que na Europa8.

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Assim, nesta obra, elaboram-se perspectivas amplas de patrimônio cultural9, o que inclui o direito à memória de diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, dentre eles os das culturas indígenas e afro-brasileiras. A Sociedade e o Estado são os agentes de formulação, gerenciamento e promoção de políti-cas culturais. Ao considerarmos a Constituição Federal Brasileira10 e para uma caracterização mais geral, podemos afirmar que o patrimônio cultural são os núcleos urbanos, sítios arqueológicos, paisagísticos e bens individuais; são os acervos museológicos, documentais, arquivísticos, cinematográficos, bibliográ-ficos, fotográficos, videográficos; bens de natureza histórica, arqueológica, pai-sagística, etnográfica, paleontológica e artística; as artes, as pinturas, os ofícios, as celebrações, etc.

NOTAS

• 1 Disponível em http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1236. Acesso em 9 jun. 2013.

• 2 BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de

1988. Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/busca?q=DO+ARTIGO+216+da+Constit

ui%C3%A7%C3%A3o+Federal&s=legislacao> Acesso em 20 dez. 2012.

• 3 HARTOG, François. Tempo e patrimônio. Varia História. Minas Gerais, v. 22. N. 36, p. 261-273, jul./dez., 2006.

• 4 Ibidemhttp://www.jusbrasil.com.br/legislacao/busca?q=DO+ARTIGO+216+da+Constitui%C3%A7%C

3%A3o+Federal&s=legislacao

• 5 Ibidem

• 6 HARTOG, François. Op., Cit., 267, 2006.

• 7 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.

• 8 Ibidem.

• 9 BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de

1988. Disponível em <> Acesso em 20 dez. 2012.

• 10 Ibidem

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EXPOSIçãO

SENhORES dE SEU OfícIO

Ficha TécnicaFotografias Cássia Moura

Curadoria: Áurea da Paz Pinheiro e Ana Rita Antunes

Pesquisa histórico-etnográfica Áurea Pinheiro e Cássia Moura

Produção: VOX MUSEI arte e patrimônio

Apoio: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Agradecimentos: Aos Artesãos Santeiros do Piauí, Brasil

[...] comecei fazendo também ex-votos. [...]. A pessoa faz uma promessa pra São Francisco,

como tem em São Gonçalo, no Ceará, tem Santa Cruz dos Milagres, São Francisco de Ca-

nindé, tudo isso eu fiz muitas peças pra aquelas pessoas pagarem a promessa. Fiz cabeças,

braços, pernas [...] o corpo da pessoa todinho, e fui continuando. Eu nunca abandonei [...]

hoje, eu venho trabalhando na arte santeira, tenho uns trabalhos que como você sabe,

tem um valor mais alto [...] Muitas vezes, se a pessoa não puder [pagar pelo ex-voto], eu

dou e assim eu venho continuando porque foi assim que eu comecei e continuo [...]

Sou feliz da vida com ela [arte santeira], é tanto que o pessoal me chama de artesão, alguns

me chamam de escultor, é difícil, mas eu gosto que me chamem mesmo de Santeiro. [...].

[Mestre Expedito, Entrevista concedida à Áurea da Paz Pinheiro, 2007].

Ao longo de dois anos, entre 2007 a 2009, em um trabalho de natureza histó-rico-etnográfica, Cássia Moura percorreu o Piauí e capturou com sua câmera, com olhar atento e sensível, o cotidiano do ofício e modos de fazer de artesãos santeiros. Em 2010, em exposição individual, apresentou o seu trabalho na Universidade Federal do Piauí e, agora, em junho de 2013, expõe na galeria da Faculdade de Belas--Artes da Universidade de Lisboa.

A fotógrafa registrou uma arte secular que emerge em diferentes pontos do meio rural e urbano do Brasil e do Piauí em particular. O seu olhar nos informa sobre o oficio de artesãos, a confecção de ex-votos, o aprimoramento de técnicas, o manejo das ferramentas e a sensibilidade com a madeira.

Cássia Moura acompanhou o aprendizado da arte, que ocorre de forma espon-tânea ou incentivada; o ensino nas oficinas, que se define como prática privilegia-da de transmissão e manutenção do ofício e modos de fazer, não tanto por preser-var suas formas incólumes e cristalizadas, mas por confrontar esses saberes com o tempo, ressaltando a pertinência da continuidade da arte santeira como referên-cia cultural para os artesãos que dela sobrevivem e para aqueles que consomem os artefatos produzidos e partilham ou recriam seus significados.

A origem da arte santeira do Piauí está ligada à arte popular de talhar, escul-pir anjos, santos e confeccionar ex-votos [“milagres”], fabricados sob encomenda

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dos fiéis e utilizados com fins religiosos. Vestígios de artistas populares ligados a arte santeira remontam aos tempos de ocupação do território piauiense, quando os jesuítas iniciaram o processo de catequese das populações que habitavam a região, momento em que os rituais tradicionais católicos se hibridizaram à de-voção popular de culto às imagens, novenas, procissões e pagamento de promes-sas com a produção de ex-votos, capelas e altares privados.

A contribuição cultural de escravos e índios está impressa na construção e decoração de templos; na talha de retábulos e na confecção das peças do culto co-letivo, que alimentaram, até o advento dos moldes para gesso, à infinidade de ora-tórios domésticos de que viveu a fé de uma colônia obcecada pela idéia de pecado.

Notáveis foram, desde o início da colonização portuguesa no Brasil e no Piauí, em particular, as reinterpretações artísticas de concepções europeias, por mestres nativos, como notáveis mestres artistas do povo que, no interior mais distante, criaram as imagens de que o culto não prescindia e a pobreza material das comunidades não permitia importar.

A fotógrafa busca narrar histórias imersas no contexto do ofício e modos de fazer da arte santeira do Piauí; histórias presentes nos bairros de pequenas cidades, histórias de artesãos, escultores, entalhadores, santeiros. Homens que vivem do artesanato e têm um modo singular de produzir arte.

No Piauí, desde o século XVIII, há formas de convívio, sociabilidades e vi-vências que revelavam a existência de práticas religiosas de cultos domésticos, uso de altares particulares produzidos em madeira; equipamentos da moradia colonial, móveis e apetrechos domésticos informam da existência de artífices, da produção de oratórios, etc.

O caráter religioso e devocional foi plantado pelos primeiros missionários jesuítas, que trouxeram a arte erudita e a apresentaram aos nativos, que usando a inventividade cabocla se apropriaram de seu conteúdo para criar manifesta-ções artísticas presentes nos retábulos das igrejas do Piauí, como é o caso dos templos católicos de Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora do Rosário na cidade de Oeiras.

A devoção popular, manifestada e ritualizada no culto a imagens de anjos e santos, procissões e promessas foi e ainda é elemento marcante da religiosida-de e espiritualidade da sociedade piauiense desde a colonização. Procissões ao Santuário de Santa Cruz dos Milagres - PI e Oeiras - PI [Procissão de Bom Jesus do Passos]1, às cidades de Canindé e Juazeiro, no Ceará, têm feito parte do ca-lendário litúrgico, devocional e turístico de grande contingente da população piauiense, sobretudo do meio rural, deixando marcas profundas nas práticas religiosas e nos ambientes urbanos.

A origem da arte santeira do Piauí está ligada à arte popular de talhar, es-culpir anjos, santos e confeccionar ex-votos, igualmente conhecidos e chama-dos “milagres”, fabricados sob encomenda dos fiéis e utilizados com fins reli-giosos. A pesquisa constatou que foram vários os artesãos, com destaque para aqueles da primeira e segunda geração de santeiros, que começaram produzindo

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cabeças, pés, mãos e demais “pedaços” do corpo humano para o pagamento de promessas em templos e santuários católicos. Essa prática, inclusive, era uma espécie de oferta religiosa não apenas para o fiel, que encomendava o ex-voto e o depositava na igreja, santuário ou sala de milagres, forma de gratidão por um pedido atendido, mas para aquele que fabricava a peça e não cobrava o pagamen-to. Hoje, muitos artesãos se dedicam à prática de confecção de ex-votos, devido à procura de fiéis católicos que freqüentam igrejas e lugares de peregrinação, e depositam o objeto-símbolo da promessa.

Como uma rede ou uma constelação de muitas direções, o que hoje chama-mos de arte santeira emergiu em diferentes pontos do meio rural e urbano do Piauí, permitindo aos artesãos conhecerem, através da confecção do ex-voto, um prévio aprimoramento de técnicas, o manejo das ferramentas e a necessária sen-sibilidade com a madeira.

Nos anos 1970, a arte santeira do Piauí ganhou extraordinário destaque e re-percussão. No contraditório período em que a intervenção urbana modernizava Teresina, capital do Estado, e desestabilizava as relações sertanejas tradicionais pela migração e comércio, e quando se intensificaram as práticas no sentido da criação de uma cultura midiatizada, conectada aos padrões de consumo interna-cionais e permeada pelos sons e imagens trazidas pelas telecomunicações – como a televisão e a ampliação espacial das linhas telefônicas em todo o Brasil –, as ma-nifestações culturais de origem popular e de caráter rústico ganhavam destaque.

Mestre Dezinho, dentre outros artesãos, passou a produzir efetivamente es-culturas de “corpo inteiro”, apesar de ainda produzirem ex-votos. As peças escul-pidas e entalhadas invadiram lugares públicos, prédios, igrejas, além das casas de particulares, que encomendavam esculturas e se tornavam colecionadores. O acervo da Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, em Teresina, é definitivamente montado, ao longo dessa década, com as esculturas de Mestre Dezinho – a ima-gem de Nossa Senhora de Lourdes, de Santa Bernadete, do Cristo Crucificado, o altar, os anjos e arcanjos; a porta e um mural entalhado, de Mestre Expedito.

Aprendizado de forma espontânea, outras vezes incentivada, fez com que surgisse, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, uma segunda e, poste-riormente, uma terceira geração de artesãos. Vizinhos, familiares dos santeiros mais velhos, filhos e sobrinhos, ou mesmo pessoas sem qualquer relação direta com os pioneiros começam a aprender o ofício e modos de fazer da arte. Como os pioneiros, muitos membros da segunda geração vieram do interior com as famílias, necessitando de estabilidade financeiramente nas cidades, sobretudo em Teresina. Sem condições de estudar ou acessar níveis maiores de instrução, muitos indivíduos se tornaram artesãos, incorporando a arte santeira em seu co-tidiano, adotando o artesanato como fonte de renda, meio de vida e inserindo-se no mercado; isso sem contar os aspectos lúdicos, artísticos e por vezes religiosos que caracterizam a atividade dos santeiros.

O ensino nas oficinas se definia, então – e tem se definido até hoje – como prática privilegiada de transmissão e manutenção do ofício e modos de fazer,

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não tanto por preservar suas formas incólumes e cristalizadas, mas por confron-tar esses modos de fazer com o tempo, ressaltando a pertinência da continuida-de da arte santeira como referência cultural seja para os artesãos, que dela sobre-vivem, seja para o Piauí, pela projeção que a exportação e a exposição das peças conferem ao Estado, seja, particularmente, para todos aqueles que consomem os artefatos produzidos e partilham ou recriam seus significados, utilizando como ex-votos, imagens sacras ou objeto de coleção.

Situemos, então, aquilo que constitui e caracteriza esses indivíduos, que os define social, cultural e tecnicamente como artesãos, que os coloca neste emara-nhado formado por eles próprios, pelos compradores, intermediários, fiéis devo-tos, colecionadores, que unificam seu depoimento e recebem matizes na fala e no trabalho de cada um – os modos de fazer da arte santeira do Piauí.

NOTAS

· 1 PINHEIRO, Áurea da Paz. Passos de Oeiras. Documentário Etnográfico. Rio de Janeiro: Museu do Folclore

do Rio de Janeiro/Petrobras, 2007-2008.

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CONVIDAMOS PARA A SEçãO ENTREVISTAS DO PERIóDICO VOX MUSEI O PROF. DR. FERNANDO ANTóNIO

BAPTISTA PEREIRA, hISTORIADOR DA ARTE E MUSEóLOGO, PRESIDENTE DO CONSELhO CIENTÍFICO E

DIRECTOR DO CENTRO DE INVESTIGAçãO E ESTUDOS EM BELAS-ARTES (CIEBA), DA FACULDADE DE BELAS-

-ARTES DA UNIVERSIDADE DE LISBOA (FBAUL). A ENTREVISTA FOI REALIzADA EM MAIO DE 2013, NA FBAUL,

LOCALIzADA NO ANTIGO CONVENTO DE SãO FRANCISCO, CENTRO DA CIDADE, NO CORAçãO DO ChIADO

ENTREVISTA E NOTAS: áUREA dA PAz PINhEIRO

TRANScRIçãO E fOTOgRAfIAS: cáSSIA MOURA

APP — Prof. fernando António, conte-nos de seu encontro com a história da Arte?fABP — O meu encontro com a História da Arte ocorreu durante a Licenciatu-ra em História, que finalizei em 1976, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Passados três anos, eu já estava a ensinar naquela Faculdade. Fiz o Curso em cinco anos, entre 1971 a 1979, e, de seguida a formação habitual dos professores, que tinham que realizar um estágio pedagógico, a que se chamava profissionalização. Realizei a profissionalização no ensino secundário e em 1979 já estava contratado como professor efetivo do ensino secundário.

Concorri a uma vaga de professor assistente, naquela altura, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Uma das cadeiras que lecionei foi Histó-ria Cultural das Mentalidades. Nos meus dois últimos anos de Licenciatura, tive a oportunidade de ser acompanhado por um grande historiador portu-guês que viveu nos anos sessenta no Brasil — Joaquim Barradas de Carvalho, historiador das mentalidades, discípulo de Lucien Febvre e de Fernand Brau-del. A tese de doutoramento desse professor, defendida na Sorbonne, teve no júri Fernand Braudel e Pierre Chanu, figuras importantes da História Nova, remanescente do movimento de renovação historiográfica protagonizada pe-los Annales. Ele defendeu uma tese, depois publicada pela Fundação Calous-te Gulbenkian de Paris, sobre as mentalidades na época dos descobrimentos portugueses; trata-se de uma obra sobre a transformação das atitudes mentais, relativamente ao ato de descobrir, ligado a uma série de outras atitudes, que tinham sido modificadas ou que permaneciam no tempo europeu dos desco-brimentos portugueses. Foi uma tese realmente notável, um estudo exaustivo sobre o léxico e as atitudes mentais reveladas nos textos dos séculos XV e XVI; obra que se tornou clássica. Infelizmente, esse professor e investigador faleceu em 1980, momento em que eu assumia uma caderia na Faculdade de Letras,

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fiquei sem mentor intelectual Havia ainda o professor de História da Arte da Faculdade, Jorge Henrique Pais da Silva, que tinha tido grande ligação com o arquiteto Silva Teles, no Brasil. Pais da Silva morrera em 1978, portanto, no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, morreram os meus dois principais mentores, os professores de História da Arte, Jorge Henrique Paz da Silva e de História das Mentalidades Joaquim Barradas de Carvalho. Este só após o 25 de abril de 1974 regressara à Faculdade de Letras, foi como disse meu professor nos dois últimos anos da Licenciatura, orientava-me nesse campo de estudos; o que eu tentava fazer era o encontro entre a História da Arte e a História das Menta-lidades, aliás, a História da Arte é essencial para entendermos as mentalidades. Fiquei órfão!

Entre 1981 e 1982 foi aberto um Curso de Conservador de Museus pelo en-tão Instituto Português do Património Cultural. Decidi, ainda como professor assistente, concorrer a uma vaga, passei no concurso e realizei essa formação pós-graduada entre 1981 a 1984. Aquele Curso era quase um Mestrado, exceto não ser ministrado em uma universidade, mas no Instituto Português do Patri-mônio Cultural; foram dois anos letivos, houve tempo para elaborarmos tese, defesa pública, como em um Mestrado na atualidade, só não havia a certificação, porque não era institucionalizado em uma universidade; como sabem, os títulos de Mestre e Doutor só podem ser atribuídos por uma Instituição de Ensino Supe-rior e Universitário. Era um Curso de Pós-graduação e fora reconhecido como tal.

Naquele momento, entrei em cena no mundo museológico. A formação em História da Arte e em História das Mentalidades permitiu-me criar interfaces entre História da Arte, História das Mentalidades e Museologia. Tive a sorte de vivenciar, no início da década de oitenta do século XX, a afirmação da Nova Museologia; aquele Curso que realizei terminou com uma viagem de estudo em 1984, absolutamente fascinante, à Espanha e à França, sobretudo à França, onde conhecemos as experiências da Nova Museologia, que estava na altura precisa-mente a despontar nesse país. Portanto, a minha geração, que tem agora à volta dos sessenta anos, uns mais velhos, outros mais novos, foi a geração que intro-duziu a Nova Museologia em Portugal. Quando realizei o Curso de Museologia morava na margem Sul do Tejo, a minha mãe tinha a sua origem em Setúbal, portanto, a minha família do lado de minha mãe era toda setubalense. Desco-bri, então, que o Museu de Setúbal não tinha diretor há cinco anos, porque o primeiro diretor e seu fundador tinha morrido em 1977. Estávamos em 1982, não havia diretor; pedi para fazer o estágio do Curso de Conservador de Museus naquela instituição, a direção do Curso considerou que era extremamente im-portante eu ir para Setúbal, pela vacância do cargo de diretor em um Museu dos mais importantes da província, era uma oportunidade singular. Fiz igualmente estágio no Museu da Cidade de Lisboa, fui aluno de uma grande Museóloga por-tuguesa, Dra Irisalva Moita, mulher que criou o Museu de História da Cidade de Lisboa que hoje podemos visitar, uma figura de grande importância. Segui para Setúbal, com orientação à distância, porque não havia no Museu de Setubal

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nem diretor, nem conservador. Quando finalizei o estágio, a Câmara Municipal convidou-me para ficar no Museu. Fez-se um contrato que me permitia, além de ser professor da Universidade de Lisboa, na Faculdade de Letras, ocupar o cargo de conservador do Museu. Houve um momento, em 1986 e 1987, em que fui so-mente conservador do Museu: pedi a transferência de quadro, quebrei meu vín-culo com a Faculdade de Letras e trabalhei apenas como conservador do Museu. Em outubro de cada ano iniciam-se as aulas e nesse ano de 1986 senti uma enor-me nostalgia porque não iria começar as aulas. Eu nunca tinha deixado de estar numa escola. Na idade tenra de dois anos e três meses, a minha mãe já havia me deixado no colégio, onde a experiência deve ter sido tão boa que eu nunca mais deixei a escola. Associara até então Museus e Faculdade durante cerca de 7 anos. Aconteceu então que, pouco tempo depois desse mês de outubro, foi aberto um concurso para professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Concorri e estou como professor até hoje; mas mantive a ligação com Setúbal, só que, agora, a atividade principal é na Faculdade de Belas-Artes, apenas cola-boro como investigador com o Museu em Setúbal. Sou professor de carreira, fiz doutoramento e concurso para professor associado, farei a agregação muito em breve e, portanto, a minha relação com Setúbal é, neste momento, de consulto-ria técnica, não exerço qualquer função de gestão. Não é preciso, porque criei uma equipe fantástica naquela instituição, que gere o Museu. Faço consultoria de programação museológica, sou o autor do programa museológico daquele Museu, estou ligado a Setúbal há mais de 30 anos, tenho feito imensas exposi-ções de natureza histórica, de arte contemporânea, de arte antiga e de história local e regional.

O meu (re)encontro com a História da Arte foi singular: no momento em que iniciei as minhas atividades docentes na FBAUL, assumi por inteiro o meu per-fil de Historiador da Arte, o que realmente me apraz, enriquecido pela anterior experiência da História das Mentalidades. Todo esse itinerário me enriqueceu e me aproximou mais ainda da Museologia: a FBAUL, que naquela altura ainda se chamava Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, tinha sido a primeira escola superior a criar uma cadeira de Museologia, que existe deste 1976. Fui associado à sua lecionação logo a partir de 1987. Assim que finalizei o meu doutoramento, em 2002, criámos um mestrado em Museologia e Museografia. A cadeira de Mu-seologia e o Mestrado foram dirigidos inicialmente pelo professor Carlos Ama-do, que tinha o Curso de Conservador de Museus. Após a sua aposentadoria, fiquei com responsabilidade integral da cadeira da Licenciatura e com a de dois Seminários no Mestrado, cuja direção foi assumida pela a Profa. Luísa Arruda.

Considero importante um Curso de Mestrado em Museologia e Museografia na FBAUL (é o único em Portugal com esta designação), o que permite interfaces entre as ciências da arte, design, desenho e outras disciplinas artísticas. Criámos entretanto um outro, de Ciências da Conservação e Restauro e de Produção de Arte Contemporânea. Temos professores de várias disciplinas, a Museologia tem componentes transversais, teóricas e práticas. Algumas atividades de ensino

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e investigação podem ser ministradas em outras unidades da Universidade de Lisboa, como a Faculdade de Ciências ou o Centro de Física Atómica. Há desa-fios, necessidades de resolução de problemas, diálogos com outros profissionais, que nos permitem avançar e construirmos um Programa de Pós-Graduação em sintonia com as demandas da Museologia contemporânea.

O meu encontro com a Museologia e a Museografia foi, como disse atrás, marcado pela transversalidade, com destaque para a História da Arte, a História das Mentalidades, a Nova Museologia e a Museologia Comunitária. Desempe-nhei durante alguns anos o cargo de Secretario Geral do MINOM, International Movement for a New Museology, ocasião em que conheci os colegas do México ligados à Nova Museologia Mexicana, que convidaram-me a colaborar nos Cur-sos de Formação de Facilitadores dos Museus Comunitários, mediadores junto às comunidades. Realizei conferências ao longo de 3 anos, vivi experiências ex-traordinárias no México, participei de diálogos com o movimento dos museus comunitários. Antes, já havia estabelecido contato com o Brasil, é importante destacar que a minha experiência no Brasil foi muito frutuosa. Logo em 1986 e 1987, estive na 1a Trienal de Museus no Rio de Janeiro, o Museu de Setúbal foi premiado na categoria preservação para a educação, portanto, um prêmio pelos serviços educativos. Posteriormente, em Santa Cruz, nos arredores do Rio de Ja-neiro, no Brasil, fui eleito para o secretariado geral do MINOM. Aí conheci a mu-seóloga Odalice Priosti, que tem animado o Museu Comunitário de Santa Cruz, portanto, a experiência brasileira foi muito importante para a minha formação.

Em Setúbal, o trabalho foi árduo, com Ana Duarte, minha mulher, defronta-mo-nos com o problema dos orçamentos para os museus. A Câmara Municipal não tinha muitos recursos, mas conseguimos convencer a autarquia a autorizar a criação de um setor de serviços educativos no Museu. Realizámos um trabalho importante, fomos às escolas daquele município para motivar os educadores e educandos a visitarem o Museu, sensibilizá-los a usar o espaço museal como re-curso didático, educativo. O trabalho no Museu suscitou outras experiências e iniciativas, cuja marca é a relação museu, escola e comunidade. Portanto, este triângulo foi estabelecido em Setúbal e as experiências do lugar influenciaram outras instituições em Portugal.

Com Ana Duarte, realizei a formação de monitores dos serviços educativos, um pouco por todo o pais, envolvendo organizações governamentais e não-go-vernamentais, a exemplo, o Centro Nacional de Cultura, as Regiões Autónomas dos Açores e Madeira. Fomos convidados pelas respetivas autoridades a realizar ações de formação de agentes dos serviços educativos. Destaco, ainda, a minha experiência na Faculdade de Belas-Artes na formação de jovens museólogos, já orientei muitas teses de Mestrado nesta área e uma de Doutoramento, o que sig-nifica que, neste momento, há mais de trinta mestres formados em Museologia com a minha contribuição e de meus colegas do mesmo Mestrado. Somam qua-se cinquenta teses, constituindo um ponto de partida importante para a consci-ência de trabalho museológico, que tem uma marca relevante nas Belas-Artes.

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A Museologia, na FBAUL, faz parte das Ciências da Arte, que tem igualmente a especialidade em Conservação e Restauro. A Licenciatura em Ciências da Arte e do Patrimônio abrange um leque variado de disciplinas de História da Arte, Desenho, Estética, Tecnologias Artísticas, Física e Química, Teoria e História da Crítica de Arte, Museologia e contempla também precisamente as áreas da Conservação e Restauro. Portanto, a nossa ideia é formação na Licenciatura, a nível de mestrado, duas hipóteses, Museologia e Museografia e Ciências da Con-servação e Restauro, e ao nível de doutoramento a especialidade de Museolo-gia, Conservação e Restauro. Os alunos que entram na FBAUL podem sair daqui doutores ao seguirem todo o ciclo de formação nas Ciências da Arte e do Patri-mônio. A Museologia atravessa todos os ciclos acadêmicos, da licenciatura ao doutoramento. Não há uma Licenciatura em Museologia, porque acredito que a formação em Museologia deve ser a nível de mestrado e doutoramento e não ao nível de Licenciatura, porque a Museologia deve ser uma especialização, um ramo que se desenvolve pós Licenciatura, e depois ao nível de doutoramento.

APP — qual seria a marca da pós-graduação nessas áreas na fBAUl?fABP — Consideramos que havia um problema na formação em Conservação e Restauro em Portugal, que teria que regressar às Belas-Artes. A nossa antecesso-ra, a Academia de Belas-Artes, criada no século XIX, já havia iniciado a formação em restauro. Depois dos anos 1930, essa formação tinha saído daqui, instalando--se no Instituto José de Figueiredo, que funciona anexo no Museu Nacional de Arte Antiga. A partir dos anos 1980, foi, sobretudo, absorvida pelas Faculdades de Ciências e Tecnologia, como um ramo da Química e, assim, acontece na Facul-dade de Ciências e Tecnologia na Caparica ou no Instituto Politécnico de Tomar, que são os grandes centros de formação nesse domínio. Sentimos que a forma-ção de conservadores e restauradores de obras de arte deve permitir a formação equilibrada em artes e nas tecnologias artísticas, uma formação humanística e uma sólida formação científica, porque se a formação científica permite o estu-do técnico e material das obras de arte, a humanística possibilita compreender o seu contexto e as tecnologias artísticas são o resultado de longos anos de rea-lização pictórica ou escultórica cujo domínio é indispensável em quem preten-de intervir em obras de arte. Todos esses conhecimentos permitem a formação de um conservador-restaurador completo. Pensámos, então, em trazer de volta essa formação às Belas-Artes, lugar de formação artística, humanista e científica; importa destacar que os diálogos e ações pedagógicas e de pesquisa envolvem a Faculdade de Ciências: os nossos alunos têm, consoante os anos, 1 ou 2 dias por semana naquela Faculdade, nos laboratórios. A formação começa naquela Faculdade e completa-se na FBAUL, aliás isto já aconteceu, só para se ter uma ideia, quando havia o Curso de Arquitetura na FBAUL, os alunos tinham a parte toda de Física e Química na Faculdade de Ciências, portanto essa colaboração já existia no passado, depois, com a separação da Arquitetura, deixou de existir.

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No entanto, o design, também contempla a Física e a Química dos materiais, os alunos do design e das Ciências da Arte e do Património também precisam de ad-quirir essas competências. No futuro próximo, com mais espaço físico, a nossa ideia é instalar um laboratório mínimo, e, quando digo um laboratório mínimo é realizar alguns dos exames na FBAUL, não ter que deslocar obras para a Facul-dade de Ciências. O que faremos é potencializar recursos, almejamos trazer de volta o restauro às Belas-Artes, sem prejuízo da sua continuação nas Faculdades de Ciências e Tecnologias. Acredito que o lugar ideal de formação em conserva-ção e restauro acabará por ser na FBAUL, que tem potencial para fornecer essa tripla formação. Os futuros profissionais precisam saber desenhar, conhecer as tecnologias artísticas, saber fazer os diagnósticos, identificar as patologias que a obra está a sofrer e tratá-las, revertê-las, e finalmente intervir na obra de arte para que recupere a sua imagem original ou uma parte da imagem original; para fazer uma intervenção de restauro propriamente dita é preciso ter conhecimen-tos de natureza artística. Aliás, para se falar de arte de qualquer tempo histórico será necessário saber como se faz ou fazia arte… Isto interessa também aos histo-riadores de arte e aos museólogos.

Todavia, a museologia não lida apenas com a obra de arte, mas também com objetos de etnografia ou arqueologia, entre muitos outros. Nestes casos, os co-nhecimentos artísticos podem não ser tão importantes, mas se estamos a falar de quadros, esculturas, de talha dourada, azulejos, mobiliário ou têxteis é funda-mental conhecer as tecnologias artísticas e, por isso, achamos que a conservação e o restauro têm que regressar às Belas-Artes. O tempo tem demonstrado, não apenas em Portugal mas também no estrangeiro, que não é satisfatório que a conservação e restauro estejam apenas nas mãos dos químicos, feita apenas por eles. Sabemos que os físicos e os químicos são muito importantes, mas a com-ponente artística tem que existir nessas especialidades e esses nossos colegas devem compreender esta nossa preocupação.

APP — fernando António, em sua trajetória profissional você transita entre três mun-dos: museologia anterior aos anos setenta, museologia que emerge como uma «nova museologia» nos anos oitenta, e, no contexto atual, em que a museologia tradicional e contemporânea dialogam. Não é possível falar de uma nova museologia sem re-correr a museologia de outros tempos, no sentido que uma não se sobrepõe a outra, mas se complementam. qual o seu ponto de vista, relativamente a esta questão?fABP — Hoje não há praticamente uma nova museologia como surgiu nos anos 1980, porque, em grande medida, o programa ideológico ou teórico da nova mu-seologia terminou por ser absorvido por organizações como o ICOM. Não só o MINOM é hoje uma organização filiada do ICOM como, se consultamos os do-cumentos do ICOM, as ideias do MINOM já lá estão, foram absorvidas. Mas os verdadeiros herdeiros da nova museologia são, na minha opinião, os adeptos da museologia comunitária. A principal ideia da nova museologia era: o museu

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deve ser feito pela comunidade, com a participação das pessoas, um museu que não é feito para a comunidade mas com a comunidade. As pessoas da comuni-dade devem obrigatoriamente que ter um papel decisivo na concepção, organi-zação e construção do museu e, em seguida, na sua gestão. Temos encontrado muitos museus feitos em vários pontos da Europa e até no Brasil que são mu-seus feitos para a comunidade, ou seja, há uma empresa contratada, tipo «chave na mão» e faz para a comunidade um museu. Isso não é um museu comunitário, é um museu feito na comunidade ou para a comunidade, mas não é feito com a comunidade, mesmo que se tenham interrogado pessoas isoladas na comuni-dade. Há exemplos clássicos dessas empresas de museologia, que são notáveis e fizeram museus muitíssimos interessantes e bonitos, mas não foram trabalhos comunitários. O facto de já ser entregue a uma empresa não é uma situação com-paginável com o funcionamento de um museu comunitário, porque a ideia de museu comunitário é que os facilitadores estejam a viver na própria comunida-de, tenham contato direto com os órgãos da própria comunidade, com as suas entidades representativas e as assembleias comunitárias. Tudo depende de pais para pais, do modo como as comunidades se auto-organizam, mas um museu da própria comunidade tem de partir da sua própria iniciativa, do auto reconheci-mento dos seus valores patrimoniais e do desejo de os preservar através de uma entidade museológica.

Muitos dos museus que partem dessas empresas são normalmente ofertas de natureza social que têm de ser feitas, porque são empresas que têm interesses econômicos na zona e portanto uma parte de seus rendimentos, dos seus recur-sos, têm que ser aplicados em projetos de desenvolvimento cultural, e, assim, normalmente fazem um museu para comunidade e não com a comunidade.

Hoje em dia, temos uma museologia verdadeiramente comunitária, herdei-ra da nova museologia, e temos uma resposta por parte da museologia tradicio-nal, a museologia espetáculo. O que é a museologia espetáculo? O Louvre, a fazer um novo polo ou um novo Louvre em Dubai; o Hermitage a fazer pólos em vá-rias partes do mundo; as grandes exposições internacionais ou as feiras de arte que arrastam multidões.

Depois, temos, ainda, outra categoria, que chamaria de práticas colaborati-vas no campo da arte contemporânea, que encontram e dialogam com as comu-nidades, procuram envolver as pessoas em práticas de natureza colaborativa, não têm uma incidência diretamente museológica, mas apenas expositiva. São obras que se fazem no espaço público ou projetos que envolvem ruas, praças, sempre com a participação da comunidade em eventos que têm certa durabili-dade efémera.

A museologia contemporânea traduz-se, assim, em vivências e experiências diversas. Temos também de pensar na necessidade imperiosa de reformar os museus que existem para se transformarem em recursos das comunidades. Em alguns casos já temos um museu instalado, em uma cidade, vila ou aldeia cujo programa envelheceu; temos assim que pensar ou (re)pensar essa instituição,

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porque não podemos deixar que seja apenas um repositório, um túmulo de ob-jetos, um túmulo de testemunhos. Temos a obrigação, e isso é um princípio da nova museologia, de apresentar esses testemunhos através de narrativas exal-tantes, torná-los vivos e ao serviço das comunidades. Como fazer? Não podemos, em certos casos, fazer um museu com a comunidade, porque ele já está feito, mas tentar animá-lo com a participação das pessoas que vivem no território, fazer com que a comunidade utilize o museu como recurso educativo, patrimo-nial, como emblema daquela vila ou aldeia, passando a ser a imagem da aldeia, a sua marca identitária.

Esta realidade plural se impõe aos jovens que estudam Museologia, que procu-ram de alguma maneira os museus das pequenas vilas e cidades para melhorá-los, intervir para os tornarem recursos vivos, de comunicação eficaz, que representem as temáticas dos lugares, que mantenham diálogos com as pessoas e instituições, por meio dos serviços educativos, que promovam encontros com as escolas, que se tornem efetivamente recursos educativos. Há muito trabalho a fazer.

Sou contrário às atitudes de «fuga para a frente», que já presenciei em Lis-boa: uma autarquia gasta três milhões de euros para fazer o Lisbon Story Center e há museus da sua rede municipal completamente carentes de tudo, sem re-cursos para levar a cabo uma ação educativa, uma ação cultural, que lhes com-pete também fazer. Em vez disso, gasta três milhões de euros em mecanismos multimédia e de reconstituição, num conjunto de intervenções de natureza interativa, que, a meu ver só teria sentido se fosse colocado dentro do próprio Museu da Cidade, uma vez que aquela instituição é a que recolhe e representa o melhor da História da urbe. Por que não combinar as reconstituições e os me-canismos multimédia com o próprio museu da cidade, integrando alguns da-queles elementos e tornando-o muito mais atrativo e interessante. Esse tipo de intervenção não permite dinamizar políticas de desenvolvimento cultural. Para mim, as políticas de desenvolvimento cultural dignas desse nome não deixam para trás um museu velho, antigo, mas procuram reanimá-lo, revitalizá-lo, não o deixa morrer. A nossa obrigação é legar ao futuro o que recebemos do passado da melhor maneira possível. Seria como se, em Parnaíba, no lugar de fazermos o museu da Casa Simplício Dias, fizéssemos um museu multimedia fantástico e não fossemos capazes de resolver o problema daquela Casa Museu, que ainda não está resolvido e que tem que ser resolvido. Antes de passarmos para outro sonho, temos que resolver o anterior, comprou-se a Casa, mas não se pôs lá o museu. Que museu é que temos que criar? Nunca tentar ir para as soluções que implicam gastar imenso dinheiro, que poderia ser fundamental para ser apli-cado em melhorias, remodelações, rentabilizações do que existe efetivamente. Infelizmente é a tentação fácil dos políticos, fazerem coisas novas para as elei-ções, naturalmente, e esquecerem aquilo que efetivamente é necessário fazer para tornar as instituições que herdaram mais eficazes para responderem às ne-cessidades dos públicos atuais.

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APP — fernando António, você tem para os próximos anos o desafio de colaborar na constituição de três museus na Região Meio Norte do Brasil, museus de nature-za, de vocação diferentes, mas com um aspecto em comum — servirem à comuni-dade. como fazer?fABP — Na Casa Simplício Dias poderíamos ter uma opção, há um espólio para ser abrigado naquela Casa, é um espólio artístico, e não havendo nada do gênero na cidade de Parnaíba, penso que seria interessante que esse espólio artístico ficasse alojado ali, porque a Casa Simplício Dias é uma casa nobre, foi recupera-da e tem uma galeria no R/C. Poderíamos ter uma área de exposição de artistas piauienses na parte de cima e cá em baixo uma galeria aberta a novos valores, novos artistas, dando lugar à expressão do movimento da arte comtemporânea. Essa pode ser uma solução, mas não podemos deixar de ter, mesmo que de forma pequena, uma sala de memória daquela Casa, que foi marcante no contexto da cidade. Temos que pensar que um dia podemos vir a ter um museu da História de Parnaíba ou das cidades criadas pelo Marquês de Pombal na Carta de 1761, que originou cidades planeadas como se fossem pequeninas Lisboa, transpor-tadas para o Brasil, imagens que têm correspondência em Portugal, como por exemplo a Vila Real de Santo Antonio. O Marquês percebeu que o Brasil era o futuro e mandou seus grandes homens, cujos filhos fizeram a Independência do Brasil, o que não deixa de ser curioso. Eu já várias vezes disse que o Brasil tem que levantar uma estátua ao Marques de Pombal, porque o Brasil deve muito ao Marques, que foi uma figura central para pensar o que une o Brasil a Portugal. Lembro-me, quando estive em Parnaíba, de um edifício que me impressionou imenso, trata-se da sede do Instituto Histórico e Geográfico. Adorei visitar o Ins-tituto, o edifício é uma espécie de relíquia da construção pombalina no Brasil, deveria ser como as casas da baixa em Lisboa. A construção é típica do modelo pombalino, o espólio também é extremamente interessante, penso que tínha-mos que refletir sobre a constituição, também, de um museu naquele edifício, onde há imensas peças patrimoniais que precisam de um tratamento museográ-fico e de conservação.

No caso da Ilha das Canárias, há de ser um museu comunitário, um museu muito mais informal, algo que tenha necessariamente que ter uma relação com o património material, mas, sobretudo, como a Áurea e a Cássia muitas vezes disseram, com o património imaterial. Portanto, há de se valorizar o saber fazer, as tradições, a medicina popular, a forma como as pessoas se apropriam daquele território e o utilizam em seu benefício, portanto, como se vive. Estamos a assis-tir naquele lugar aos efeitos do desenvolvimento, com a chegada da eletricidade, da televisão. As pessoas vivem naquelas casas tradicionais com ecrãs gigantes-cos lá dentro e em breve tudo vai mudar: as mentalidades, a maneira de encarar a vida, o desejo de sair da Ilha para uma vida que se julga ser melhor. Teremos de fazer um trabalho junto às novas gerações no sentido de fazer ressaltar o amor por aquele lugar, de não ter vergonha daquele lugar e portanto assumir os va-lores daquele território, tornando o lugar sustentável. É preciso considerar o

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exemplo da senhora Lina, que nos acolheu naquela magnifica pousada (a Casa de Caboclo), que consegue valorizar uma série de produtos piauienses, caracte-rísticos daquela área, rica e complexa em património, como a captura artesanal de mariscos, as rendas de bilros fantásticas, etc., é preciso tirar partido desses valores patrimoniais para os emblematizar e a toda a região. Acredito que o pas-so já iniciado de criação do Mestrado Profissional na região do Delta do Parna-íba foi fundamental, uma pós-graduação com dupla titulação, que combinará experiências de dois países, Brasil e Portugal, de entre outras ações que estão em andamento para favorecer aquele território. Ações e projetos que permiti-rão desenvolver a área da criatividade artística, da consciência ambiental e da recuperação patrimonial, da afirmação identitária, do registro e salvaguarda do património imaterial. Nos diálogos que realizamos no Brasil, aquando da 3ª edi-ção do Congresso Internacional de História e Património Cultural, que ocorreu em 2012, no Porto das Barcas em Parnaíba, compreendi que há uma dimensão arqueológica naquele território. É importante desenvolver missões de estudos a esse nível, pesquisas arqueológicas, porque poderá haver materiais que podem informar acerca de uma memória ancestral. Enquanto em que na memória atual temos o património imaterial e os utensílios da vida cotidiana, relativamente à memória histórica poderíamos vir a recolher de todo aquele espólio arqueoló-gico informações preciosas acerca dos modos de vida e se calhar perceber uma ocupação multissecular no Delta do Parnaíba.

Evidentemente, não podemos esquecer o projeto Peixe Boi, para entendemos a paisagem cultural, as relações intrínsecas homem-meio-território, em um país de dimensões continentais como o Brasil, que possui uma natureza onipresente. Estamos rodeados de natureza, marcas de culturas ancestrais, que se (re)signi-ficam cotidianamente. O ser humano vale-se da natureza, mas, igualmente, há outra dimensão, a de toda a envolvente, e, portanto, uma história natural e eco-lógica também está presente em nossas preocupações.

A sustentabilidade é fator decisivo para o desenvolvimento da região: caso não tenhamos em linha de conta o desenvolvimento, de nada valerá o nosso tra-balho. Considero que a consciência ambiental deve acompanhar a consciência patrimonial, e, se calhar, temos muito a aprender. Fiquei muito impressiona-do com as teses elaboradas pelos pós-graduandos do mestrado e doutorado em desenvolvimento e meio ambiente da Universidade Federal do Piauí. A Profa. Roseli, vossa colega da universidade, mostrou-me a sabedoria secular ligada às curas, remanescentes de comunidades indígenas, uma série de propriedades e de princípios ativos das plantas que podem ser aproveitados pela medicina con-temporânea. Há possibilidades de interfaces entre a investigação científica de mais alto nível com as preocupações arqueológicas e museológicas, o que impli-ca que as nossas equipes sejam multidisciplinares.

Há ainda um património arquitetônico rico em Parnaíba. Quando entrei na catedral da cidade, vi uma igreja pombalina da baixa de Lisboa, com azulejos do sé-culo XVIII, com cantarias que foram daqui, não tenho qualquer dúvida. É, de fato,

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um tesouro quase desconhecido em Portugal. O que conhecemos do património cultural, natural do meio norte do Brasil? O Piauí de que em Portugal ninguém ouviu falar? No Estado há cidades que o Marquês de Pombal mandou construir, urbes no Piauí com um rico e complexo património urbano e arquitectónico, que ninguém ou quase ninguém conhece, nem as pessoas que estudam o Mar-quês de Pombal e sua atividade de reconstrução da cidade de Lisboa. Portanto, essas questões necessitam de estar no centro de nossas preocupações, é preciso valorizar e preservar o património, sensibilizar os próprios piauienses para se aperceberem da riqueza de sua cultura, de que muitos ainda não se deram conta. Em Piracuruca, encontrei outra igreja portuguesa, muito bonita, a cidade é toda planificada, portanto, há que se valorizar o meio norte do Brasil. O IPHAN e ou-tras instituições de museus, de património e de artes estão colonizadas pelo Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, etc., é preciso olhar para outras regiões do Brasil, onde esta ação urbanizadora teve lugar e, hoje, como realidade, se calhar não se encontra em outros sítios que se insiste em estudar.

APP — Professor, nos aproximamos do final dessa conversa, gostaria que abordas-se os aspetos fundamentais de um programa museológico, que será objeto de sua conferência no VOX MUSEI congresso Internacional Arte, Património e Museus, que decorrerá nesta fBAUl entre os dias 20 a 22 de junho, fruto de diálogos entre a fBAUl e a Universidade federal do Piauí, por meio do grupo de Pesquisa/cNPq Memória, Ensino e Património cultural. fABP — Quando nos referimos à programação museológica, temos de visualizar o museu e as suas coleções, assim como a relação da instituição com a comu-nidade. Precisamos de saber qual a vocação do museu: o campo temático, uni-disciplinar ou pluridisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar, perceber a abrangência territorial. As coleções relacionam-se com a vida da localidade, da região ou da nação? Há coleções internacionais? O museu pode ser universal, como o museu do homem em Paris, que não diz respeito ao homem europeu mas à humanidade plural? O Museu do Louvre é um museu não só da história francesa, mas de uma história que começa no Egito e na Mesopotâmia e se es-tende até 1830, portanto, há uma relação com toda a civilização ocidental. Deve--se considerar ainda o campo temático, a abrangência territorial, a tutela. É um museu ligado à Câmara Municipal? É Federal? É da comunidade, feito para e com a pequena comunidade aldeã ou é um museu que representa um país todo, uma nação? Finalmente, quais os museus com que partilha o território em que se implanta, como se relaciona ou se relacionará o museu com outros museus que estão na vizinhança, ou com os quais terá de estabelecer relações. Após es-tas considerações, deve se buscar responder: para que serve ou servirá o museu? Qual sua missão e proposta educacional? Em qual edifício será instalado? Quais os seus conteúdos científicos? Quais são as mensagens que queremos transmi-tir? Haverá colóquios, conferências, cursos livres, publicações, etc.? Depois de

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definidos esses aspetos é possível passar a uma programação, a uma escala de cinco anos, para estabelecer objetivos e metas, serão as metas de 5 a 10 anos e objetivos pensados ano a ano. A programação tem que ser feita a nível de todas as funções museológicas, recolha, investigação, exposição, divulgação, serviço educativo, etc.

Finalmente, haverá que programar o discurso museológico, o que se vai apresentar a partir das coleções que se tem. Temos de considerar o espaço: há edifício pré-existente e é preciso adaptá-lo em função das necessidades ou é uma construção de raiz? Haverá que definir as áreas expositivas, as áreas técnicas e as reservas. E como será o acolhimento e onde estarão alojados os diferentes servi-ços? Haverá uma biblioteca ou um centro de documentação, um auditório, uma sala de exposição temporária? Quanto à definição e ocupação das áreas exposi-tivas será preciso optar por fazer exposições permanentes, sempre que possível com rotação de objetos. Ou fazer exposições temporárias de longa duração, com os objetos do museu; ou, então, exposições temporárias com outras peças que virão de outras coleções?

Em relação às possíveis opções que temos de fazer quando programamos qual-quer tipo de exposição, gostaria de colocar as duas perguntas que se impõem à nossa consideração: a primeira, em face dos objetos que se tem dentro do museu, que história é possível contar ou que histórias? Por vezes não é só uma são várias histórias, em face do que se tem, das coleções em presença. Mas se optarmos por fazer exposições temporárias, pergunta-se: para contar estas histórias, de que obje-tos vou precisar? Alguns já existem no museu, outros pertencem à coleção de ou-tro museu, tenho que ir buscá-los em outras instituições ou mesmo a particulares.

Portanto, essas duas perguntas são centrais, é preciso ter em linha de conta que as coleções devem permitir-nos tecer uma narrativa, contar um conjunto de histórias. Há que ter a capacidade de descortinar essas histórias. No outro caso, damos prioridade à história ou às histórias que queremos contar: parte dos ob-jetos estão no museu, outra parte se buscará fora do museu para contar essas histórias. Há que ter em conta que a segunda opção é a mais cara, porque trazer peças que estão fora do museu implica custos com transportes, seguros, deslo-cações, etc. Portanto, depende do modelo de gestão que se adota, se vamos ter a dominância da primeira ou da segunda pergunta ou um equilíbrio saudável e criativo entre as duas. Caso predominem as coleções do próprio museu, teremos histórias que se podem contar com os objetos, poderemos dar importância às histórias que se podem contar com a colaboração da comunidade onde o museu está inserido.

Quando temos finalmente o museu, como se manterá a instituição com uma presença viva na comunidade? Como será feito o trabalho de divulgação e de educação museal na comunidade? É preciso valer-se dos serviços oficiais de edu-cação das escolas na comunidade, é necessário dizer à comunidade que o museu está a sua disposição e que é preciso aproveitá-lo. Estabelecer formas de vivên-cias e utilização do museu como recurso educativo, lugar de encontro.

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Ana Duarte criou no Museu do Trabalho em Setúbal um conjunto de ativida-des que permitem ao museu ser um lugar de encontro, de sociabilidade. Hoje, todas as sociedades são multiculturais, existem diferentes camadas culturais, diferentes etnias, grupos sociais. Ora, o museu pode ser um espaço onde esses grupos sociais, etnias, diferentes culturas se encontram e dialogam. E, por isso, passam a ser mais tolerantes umas para outras, passam a compreender-se me-lhor e eventualmente até evitar situações que presenciamos todos os dias na te-levisão: morte, atitudes de discriminação contra ciganos, negros, homossexuais, etc. No Museu do Trabalho de Setúbal, conseguimos por a comunidade cigana em diálogo com a comunidade negra, com a comunidade de pescadores locais. Enfim, os vários grupos sociais em presença, que se apresentam no museu, transformam-no no palco das suas atividades culturais recreativas. Esses são os melhores serviços que um museu pode prestar a uma comunidade, ser um es-paço de diálogo entre os vários grupos culturais em presença. Nesse espaço de diálogo, o museu não deve temer abrir-se às várias discussões, por vezes difíceis. Foram realizadas as tardes multiculturais, que ocorriam todos os sábados, era um espaço de diálogo e convivência indispensável. A verdadeira missão que os museus hoje em dia têm é serem espaços de diálogo entre as várias culturas, pois como disse as sociedades são multiculturais. Estamos na presença de gente com religiões diferentes, com visões da cultura diferentes, com visões da arte diferen-tes, e o que é fundamental é que essas pessoas se encontrem no espaço no museu e aprendam a dialogar.

APP — fernando António, qual a mensagem para aquelas pessoas que desejam aventurar-se no campo da museologia, das artes e do património?fABP — O que posso dizer é que há campo para todos, para aqueles que querem es-tudar as coleções dos museus, as coleções de pintura, de desenho, de mobiliário, de ourivesaria, de paramentos, de escultura, etc. Há espaço para pessoas que desejam estudar os museus como rede de gestão de recursos materiais e humanos, pensar os museus a escala macro, dentro de uma perspectiva regional, na qual todos pos-sam partilhar infra-estruturas, informações, atividades, ações, etc. Há espaço para pessoas que pensam em desenhar exposições, os jovens designers interessados em equipamentos expositivos, vitrines, painéis para tornar as exposições visual-mente mais agradáveis. Ao mesmo tempo, aqueles que desejam estudar equipa-mentos de segurança para os museus e outros problemas de segurança e acessibi-lidade. Há espaço para aqueles que queiram trabalhar com a comunicação, novas tecnologias, há imensas possibilidades de estudo e de intervenção.

Na FBAUL, há várias teses já defendidas ou em andamento: uma delas diz respeito a aplicações de códigos QR nos museus, que favorecem a informação associada ao objeto, pode-se descarregar em smartphones, verificar cuidadosa-mente e com calma em casa, rever, há ainda inquéritos para que as pessoas ava-liem as iformações e as aplicações disponibilizadas pelas instituições. Há casos

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em que se estuda a tecnologia dos touch screens, inserida no campo da muse-ologia interativa, que abrem possibilidades de acesso à informação, o público diante da obra de arte ou de um objeto pode visualizar pormenores ou obter novas informações sobre o estudo material ou contextual dos objectos, etc. Um aluno nosso estuda um grande vidro com touchscreen para colocar em frente aos famosos Painéis de São Vicente: poder-se-á chamar uma fotografia macro de um fragmento da imagem, ver o desenho que esteve por baixo da imagem atu-al, uma radiografia que revela o repinte que foi feito. Enfim, toda a informação pode estar à mão, para ser manipulada para deleite e estudo.

Outra aluna estuda a publicidade televisiva de uma das maiores agências de publicidade que existiram em Portugal, na qual Ana Duarte também cola-borou, a Lintas; descobriu todo o seu arquivo de spots publicitários de filmes, que anunciavam margarina, óleo, shampoo, sabonete, etc. Então, esse arquivo existia intacto, a empresa nunca havia tratado o material; a aluna vai construir um museu virtual desse arquivo, que será tratado, digitalizado e disponibilizado para ser consultado on line. Esse tipo de arquivo não precisa de espaço físico, a não ser para se guardarem as películas originais, para acondicionar o acervo de maneira mais criteriosa. A sua utilização poderá ser feita on line. Haverá, ainda, a possibilidade de se associarem as revistas, os jornais e os suportes publicitários televisivos, etc.

Uma outra aluna estudou um grande personagem da resistência portuguesa ao nazismo e, sobretudo, a perseguição aos judeus, trata-se do cônsul de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, considerado um herói pelos judeus de todo o mundo, porque, contra a vontade de Salazar e de seu governo, concedeu imensos passaportes portugueses a judeus que fugiam e conseguiram chegar aos Estados Unidos da América. A aluna propõe uma discussão muito interes-sante acerca de como é que se pode fazer um museu sem grandes objetos, mas que seja um museu que dê conta de tudo aquilo que foi a vida daquele homem, por um lado, e depois os seus enormes sofrimentos, porque, assim que regres-sou a Portugal, foi destituído de suas honras e todos os seus poderes e, portanto, acabou por viver na miséria, no espaço de uma casa e quinta. Propõe-se uma espécie de museu da expiação do que terá sido exatamente esta existência, em uma narrativa dramática.

A Ana Duarte e eu tivemos oportunidade de ver um dos museus que mais nos impressionaram — o museu de Anne Frank em Amsterdão. Um espaço es-vaziado, hoje em dia não está mais assim, mas na altura em que visitamos era um espaço completamente vazio em que só havia pequeninos écrans, onde se davam os testemunhos de pessoas que viram a menina nos últimos dias, ou que relatavam a descoberta de seu diário por parte da secretaria do pai. Coisas muito simples mas absolutamente eficazes, e que, em conjunto com os espaços vazios e com a maqueta de como era o esconderijo da família, eram suficientes para nos evocar o que tinham sido aqueles horrorosos anos e meses de sofrimento. Chorei em vários momentos do percurso.

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Reparem, a museologia pode apresentar-se em uma infinidade de soluções, desde as mais tradicionais e necessárias, porque o património existe e precisa de ser tratado, estudado e cuidado, às experiências mais pioneiras e vanguardistas, de ruptura, tanto estéticas como sociais. Eu próprio fiz, ao lado de projetos ino-vadores, inúmeras exposições completamente tradicionais, que também têm o seu lugar. Portanto, advogo que tudo pode ser feito desde que seja fundamen-tado, desde que seja refletido e desde que resulte de facto em uma realização de qualidade, porque acima de tudo temos que preservar os testemunhos e a qua-lidade humana dos resultados. Eu não estou a defender aqui que só o museu feito com grandes riquezas e grandes recursos tem que ganhar prémios e ser fes-tejado, porque isso é o que é fácil de fazer. Quando não temos muitos recursos materiais conseguimos, com imaginação e criatividade, suprir as dificuldades que a ausência dos recursos materiais nos causa.

Considero que há um vasto campo de trabalho para todos. Um pós-douto-rando, sob minha supervisão, está a estudar a coleção do museu do Oriente, so-bretudo, a coleção etnográfica e antropológica. Outro dia lançou uma ideia, que achei muito interessante, porque que não fazemos uma exposição sobre a China de trazer para casa, que está aqui, das lojas de chineses, não a da China histórica, mas a que está à mão de semear. É um projeto de extremo interesse, que nos faz pensar: qual o objetivo da museologia, para que serve a museologia, por que ela é importante na realidade?

Continuo entusiasmado, como no princípio da minha carreira, já lá vão mais de trinta anos. Realizei diversas atividades, experiências e vivências diferentes. Destaco uma exposição do museu Hermitage em Lisboa, a tal da museologia es-petáculo. Concebi exposições pensadas essencialmente à volta de grandes pro-blemas da História da Arte, como o da relação entre escrita e imagem: foi uma das mais belas exposições que eu fiz, em Évora, chamada Do Mundo Antigo aos Novos Mundos, e, na mesma cidade, fiz uma exposição sobre um pintor flamen-go do século XVI que estudei particularmente, Francisco Henriques.

Ao longo da minha carreira tive a sorte de fazer grandes exposições e de cola-borar na construção de museus, em Macau, em Lisboa ou em Setúbal, em Espa-nha ou no Brasil. Neste pais realizei a exposição Em torno da Carta de Pero Vaz de Caminha para a mostra dos 500 anos do descobrimento, em São Paulo. Tenho ainda um projeto que acalento muito e não sei se algum dia poderei realizar — transformar o Terreiro do Paço em Lisboa em grande espaço museológico, onde estejam presentes as grandes coleções nacionais sobre a história, a arqueologia e a arte. Portugal, como sabemos, vive momentos muito difíceis, recursos não abundam. Não há muitos recursos para a cultura e para o património, há re-cursos para outras coisas, como pagar as dívidas dos bancos, dos especuladores. Infelizmente não há dinheiro para fazer projetos como esse.

Caso fossemos capazes de utilizar grandes recursos da arte e da museologia para criar públicos para a cultura e que depois também se interessassem por outras dimensões da cultura, não haveria contradição entre o Património e a

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Criação Contemporânea, mas complementaridade. As ações que tenho feito ao longo da minha carreira são complementares, não poderia escolher umas em detrimento de outras. O meu desejo é sempre que funcionem em conjunto. Quando fiz a exposição do Hermitage, dizia que o que é importante é começar a criar uma dinâmica de públicos para a cultura, que gostam de ver as exposições e são depois ganhos para fazer as outras atividades. As grandes exposições in-ternacionais são realizações lucrativas, porque animam o comércio, animam o turismo. As vezes, os turistas compram as passagens de avião, a estadia no hotel e o bilhete da exposição. Há um número significativo de pessoas a ganharem com isso, ou seja, os operadores turísticos, restaurantes, hotéis, etc. Lisboa não está no mapa das grandes realizações. Foi isso que pensei quando fiz a exposi-ção do Hermitage, porque achava que Lisboa podia figurar entre os países que recebem grandes exposições, mas infelizmente a mesquinhez dos governantes e de muitos dos nossos colegas, fez-se a primeira e não se fez mais nenhuma. As desculpas foram muitas: porque o importante era fazer exposições da arte por-tuguesa e não era da arte russa, depois fizeram exposição da arte portuguesa e o público não acorreu lá no mesmo volume que foi ver a exposição da arte russa.

Podíamos continuar a fazer outras exposições com as peças do Hermitage, que estava disponível, com as quais iríamos consolidar os públicos e criar-lhes hábitos culturais. O fundamental é termos a capacidade de criar públicos para a cultura e é isso que infelizmente não temos. Temos sempre o mesmo público, que já está ganho, como aquele publico que frequenta a Gulbenkian, que vai às exposições. Não é para esses que devemos trabalhar, mas para os que ainda não foram a esses lugares. Para que os que se acham excluídos deles, como um dia me disse a museóloga brasileira do museu do primeiro império, que fez uma expo-sição sobre a mangueira e as senhoras ali do bairro chegaram a porta e pergunta-ram — podemos entrar? Ou seja elas achavam que aquele edifico, aquele museu não era para elas, era para outra pessoas e não para elas, mas arriscaram e como havia uma exposição sobre a mangueira elas perguntaram se podiam entrar.

De facto temos que ganhar estes públicos. Quando fiz a exposição do Hermi-tage, várias vezes percorri as salas silenciosamente e via pessoas que eu nunca tinha visto em museus, pessoas que nunca tinham estado em museus, mas por causa do nome do Hermitage, de São Petersburgo, e porque a exposição era so-bre os czares, foram ver. Caso houvesse continuidade, as pessoas continuariam a frequentar os museus e exposições e ganhariam novos hábitos culturais. Fez--se uma vez e não mais, Aliás, o problema de Portugal é a descontinuidade das iniciativas e até das instituições culturais. Quando conseguirmos fazer ganhar esses hábitos culturais, poderemos fazer como Paris, Londres, Berlim ou Madrid — à partida garantem um enorme público quando organizam os seus eventos e as suas atividades. Na minha carreira profissional continuarei a transmitir aos meus alunos estes princípios. È preciso continuar a lutar para que o pais seja menos elitista e mais democrático, porque a democracia cultural é, de fato, a mais difícil de implementar.

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NOTAS dE dISSERTAçõES E TESES

dISSERTAçãO

MUSEUS dO dISTRITO dE VISEU: a construção de uma rede de proximidade territorialMUSEUMS Of dISTRIcT Of VISEU: framing of a territorial proximitynetwork.

Autora: Ana Rita Santos Almeida Martins Antunes

Orientador: Luís Jorge R. Gonçalves

Mestrado em Museologia e Museografia

Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: O Distrito de Viseu possui um vasto e diversificado património museoló-gico, construído numa expressão de “estruturas museu”, não credenciadas. O desco-nhecimento da existência de muitas delas conduziu a concretização deste trabalho. Foi feito um levantamento exaustivo dos museus, núcleos e unidades museológi-cas dos 24 Concelhos do Distrito e efectuou-se um registo integral da cada unidade procedendo-se à análise museológica e museográfica. A interligação de todas estas unidades numa possível “rede” de proximidade, onde a partilha de objectivos, servi-ços, recursos e saberes fosse um desejo comum, pautou a restante investigação e deu esteio ao desenrolamento do trabalho. A proposta para uma Rede de proximidade Territorial (Distrital), com um design sustentável e a implementação de um plano de gestão integrada, onde a preservação do património, valorização e divulgação en-grandecesse as comunidades e proporcionasse a criação de mentalidades mais estru-turadas e cidadãos culturalmente mais envolvidos, ultimou a investigação.

Palavras-chave: Distrito de Viseu. Museu. Rede. Gestão. Design. Comunidades.

Abstract: The District of Viseu has a rich and diverse heritage museum, built in an expres-sion of “structures museum,” not accredited. Lack of knowledge about many of them, led the implementation of this work. An exhaustive survey of the 24 units of the District and a full record of each unit was made, proceeding to the analysis museum. The interconnec-tion of all these units in a proximity “network” where the sharing of objectives, services, resources and knowledge, became a common desire, guided the research The proposal for a Territorial Network (District), with a design of proximity and the implementation of an integrated management plan, where heritage preservation, enhancement and dissemina-tion enlarge the community and provide the creation of minds more structured and more culturally involved citizens, completed the investigation.

Keywords: Viseu (District). Museum. Network. Management. Design. Communities.

Contactar a autora: [email protected]

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dISSERTAçãO

ARTE E cOMUNIdAdES, UM ARqUIVO POéTIcO SOBRE O EVElhEcIMENTOcOMMUNITy ART, A POETIc ARchIVE ON AgINg

Autora: Constança Saraiva

Orientador: Luis Jorge R. Gonçalves

Mestrado em Museologia e Museografia

Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Nesta dissertação trata-se das práticas artísticas com comunidades e do es-tudo de caso projeto Casa/Arquivo. No primeiro capítulo apresenta-se uma revisão de literatura do tema — os contextos artístico, social e económico, que dão origem às prá-ticas artísticas com comunidades, define-se o conceito de arte e comunidades e anali-sa-se a discussão teórica de vários autores em relação a este tipo de prática artística, no que respeita à sua função na arte e modos de a qualificar; no segundo, apresenta-se um estudo de caso — o projeto Casa/Arquivo, resultado de uma residência artística num centro de dia para idosos, o percurso do projeto é analisado, teorizado e a sua metodo-logia processual é relacionada com o conceito experimental de Arquivo Poético; no terceiro, trata-se das três intervenções artísticas do projeto Casa/Arquivo, da importân-cia da poética e do impacto emocional nas práticas artísticas com comunidades como catalisadoras de uma mudança de perspectivas sobre a realidade.

Palavras-chave: Arte. Comunidades. Arquivo. Envelhecimento

Abstract: In the present dissertation community art is addressed and the project House/Archive is investigated as a study-case. In the first chapter, the history and literature re-vision about the subject — the artistic, social and economic contexts that give origin to community art, defines the concept of community art and analyzes the theoretical discussion between several authors on this type of art practice, on its function, sense in the art sphere and ways to qualify it. In the second chapter it is presented the study case — project House/Archive — result of an artistic residency at a day care center for elderly people. The process of the project is analyzed and theorized. Its method is related to the experimental concept of Poetic Archive. Finally, the third chapter addresses the three art interventions of project House/Archive and the importance of poetics and the emotional impact in community art as a catalyst to a change of perspectives.

Keywords: Art. Community. Archive. Aging.

Contactar a autora: [email protected]