ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE SADOMASOQUISMO
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Jorge Leite Jr.
ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE
SADOMASOQUISMO
Orientadora: Professora Doutora Eliane Robert Moraes
Departamento de Comunicação Jornalística - COMFIL
PUC - SP
2000
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Jorge Leite Jr.
ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE
SADOMASOQUISMO
Relatório final da bolsa de Iniciação Científica PIBIC - CNPQ do Projeto
“Repercussões de Sade” ; setembro de 1999 - agosto 2000
Orientação: Professora Doutora Eliane Robet Moraes
Departamento de Comunicação Jornalística
COMFIL - PUC - SP
2000
3
Muitas são as pessoas a quem eu devo agradecimentos: Armando Colognese
Jr.; Cleber Alessandro da Cruz; Haruo Okawara; Márcio Alves da Fonseca; Marisa
do Espírito Santo Borin; Ricardo Manuel da Silveira; Sílvia Jane Zveibil; Paloma de
Albuquerque - pela paciência e incentivo; meus pais, Jorge Leite e Elvira Guinato
Leite que sempre confiaram e apostaram em mim; minha orientadora Eliane Robert
Moraes, por esta chance e pela generosidade de sua parte; e a todos aqueles que
direta ou indiretamente me ajudaram na realização deste trabalho e aqui não estão
citados por descuido de minha parte: peço desculpas e obrigado.
Índice
4
I
Introdução ...................................................................................................................6
I * Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade ..............................................10
II * Leopold Von Sacher-Masoch .............................................................................26
III * Richard Von Krafft-Ebing ...................................................................................41
IV * Sigmund Freud ..................................................................................................61
V * A Cultura S&M ....................................................................................................81
II
VI * O Sadomasoquismo à Luz de Sade ................................................................100
VII * O Sadomasoquismo à Luz de Masoch ...........................................................114
VIII * O Sadomasoquismo à Luz de Krafft- Ebing ..................................................124
IX * O Sadomasoquismo à Luz de Freud ...............................................................138
Conclusão ..............................................................................................................155
Anexo I - Fontes das Ilustrações ............................................................................165
Bibliografia ..............................................................................................................169
5
“A amada, claro, há de sentir
dor quando você a golpear,
mas os gritos que à garganta lhe subirem,
se cada tipo você puder reconhecer,
vão dizer o quanto ela se encontra excitada”
Vatsyayana, Kama Sutra
INTRODUÇÃO
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“O escândalo do sado-masoquismo não é o sofrimento; é sua vinculação ao sexo” 1.
1 COSTA, Jurandir Freire, O Sujeito em Foucault: Estética da Existência ou Experimento Moral? in: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, Vol.7, Nº1-2, outubro de 1995, pág. 136
7
O sofrimento como um valor legítimo a ser almejado para si mesmo ou para o
outro não é algo novo em nossa cultura. Esteve presente no estoicismo dos gregos,
na penitência dos cristãos e nas atuais torturas políticas. A sociedade, que há
séculos atrás mortificava o corpo com jejuns, hoje o sacrifica com rigorosos regimes
alimentares - e se orgulha disto. A mesma medicina capaz de diagnosticar, curar e
salvar vidas frente a problemas antes inimagináveis, muitas vezes ainda se utiliza de
métodos altamente agressivos e invasivos não levando em conta o quão terrível e
traumático podem ser alguns tratamentos para os pacientes - como se não bastasse
o medo da própria doença2.
Entretanto, quando o sofrimento - visto em muitos casos como “virtude” ou
“mal necessário” - está ligado ao erotismo, a tendência é considerá-lo um
comportamento “doente” ou “criminoso”. Paralelamente, esta mesma sociedade
permite espaços cada vez maiores para determinado tipo de comportamento
chamado “sadomasoquismo”, que conquista posições e direitos através da cultura
de massas, seja via pornografia “pesada” ou simples propagandas comerciais3. O
“sadismo” e o “masoquismo”, erotizados ou não, estão na raiz de nossa formação
cultural e de nossa subjetividade.
Com este trabalho pretendo estudar a formação e as várias modificações de
sentido por qual passou, e ainda passa, o termo “sadomasoquismo”.
O primeiro capítulo é uma análise da vida e obra do Marquês de Sade.
Procuro quais os elementos descritos em seu texto que mais tarde vão dar a base
para nomear a “perversão sexual” chamada “sadismo”.
No segundo faço o mesmo tipo de análise, nos trabalhos de Leopold Von
Sacher-Masoch, mais especificamente em seu texto A Vênus das Peles, pois este
também servirá de inspiração para a nomeação do “masoquismo”.
O terceiro capítulo é dedicado ao estudo do livro Psychopathia Sexualis, do
psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing, detendo-me na análise das
“perversões” citadas acima.
2 Algumas vezes tem-se a impressão de que para se curar uma doença, é necessário ainda “assustá-la” visando sua “fuga”, utilizando para isso tubos, injeções, ambientes de uma brancura que ofusca o olhar, cheiros fortes, máquinas assustadoras e enfermeiros que cuidam dos pacientes com a delicadeza de mecânicos concertando um motor de automóvel. 3 Como a do cigarro Camel, que em um de seus anúncios, mostra o camelo símbolo da marca vestido com uma indumentária sadomasoquista, demonstrando um apelo a uma sexualidade “moderna”.
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Em seguida, vejo quais as mudanças conceituais que o sadismo e o
masoquismo sofreram em Freud, e tento contextualizá-las em sua obra.
Finalmente, no quinto capítulo, dou uma breve explanação sobre a atual
“cultura” S&M.
Em todos estes capítulos, procuram-se os paralelos entre a concepção
analisada no momento e aquela supostamente “original”, ou seja, pergunto-me se os
sádicos de Krafft-Ebing, Freud e da cultura S&M são os mesmos de Sade e de
Sacher-Masoch.
Nos capítulos seguintes, intitulados “O Sadomasoquismo à Luz de (...)”,
procuro um aprofundamento da questão do “par”, ou seja, como se dá a relação
dominador/ dominado nos textos dos autores trabalhados. Para isto, procurei me
fixar em apenas uma obra de cada autor. Assim, na análise de Sade o foco é o livro
“Justine – Os Sofrimentos da Virtude”. “A Vênus das Peles” e “Psychopathia
Sexualis” ainda são usados em Sacher-Masoch e Krafft-Ebing respectivamente.
Quanto à parte referente a Freud, concluí ser melhor não me fixar em um único
texto e sim utilizar-me de alguns específicos, como no capítulo IV, pois do contrário
perderia um dado fundamental para este estudo: a mudança ocorrida na maneira de
entender o “masoquismo” – e claro, o “sadismo” – para este autor.
Nesta segunda parte, a cultura S&M não é analisada por ser um universo de
pesquisa extremamente amplo e fundamentalmente visual e iconográfico, pois a
literatura sobre este tema, apesar de crescer constantemente, ainda é limitada e
difícil de adquirir. Da mesma maneira, a análise das fotos e imagens contidas neste
trabalho não foi feita por falta de tempo, preferindo o autor dar prioridade ao
aprofundamento das análises textuais4. Ainda assim, optei por manter as gravuras
no trabalho final (e até acrescentar mais algumas) dada a importância desta
linguagem tanto no campo do erotismo em geral, como no do sadomasoquismo em
particular.
Finalmente, na conclusão, relembro brevemente como foi o processo de
criação e transformação do termo “sadomasoquismo”, analisando a confusão
conceitual ligada a esta palavra.
9
4 Pretendo desenvolver este trabalho mais à frente, talvez em uma pesquisa específica sobre esta linguagem.
11
“... Uma vez recoberta a cova, glandes deverão ser semeadas por cima, de
forma que, com o tempo, a fossa volte a ser forrada pela mata como antes, e os
traços de meu túmulo desapareçam da superfície da terra; como me sinto lisonjeado
por minha memória se apagar do espírito dos homens!” 1. Este trecho de carta foi
escrito no sanatório de Charenton em 30 de janeiro de 1806, oito anos antes da
morte de seu autor. Após um século, as idéias contidas em sua obra serviram de
base para a classificação de uma das mais discutidas das “perversões sexuais”. A
palavra “sadismo” derivou deste homem.
Quase duzentos anos depois, contrariando seus desejos, o Marquês de Sade
não só é estudado e lido em quase todo o mundo como o termo que surgiu de seu
nome é usado cotidianamente. Menos conhecido como literatura e mais como
categoria psicológica, o criador da “Sociedade dos Amigos do Crime” tem um papel
fundador na consciência moderna.
Muito se fala de sua vida desregrada, repleta de orgias e crueldades, mas -
infelizmente para alguns - a maioria destas histórias não passa de folclore2. Sade
passou 27 de seus 74 anos de vida encarcerado. Foi dentro de prisões ou hospícios
que ele criou uma vasta obra, esta sim repleta de horrores, regada com muito, muito
sangue e esperma: “Sou libertino sim, confesso. Imaginei tudo o que se pode
conceber nesse gênero, mas certamente não fiz tudo o que concebi e seguramente
jamais o farei” 3.
Sade nasce em 1740 na França. De origem nobre, vive um dos períodos mais
conturbados da História - a Revolução Francesa. Com uma filosofia própria que
exalta o egoísmo, prega a destruição, sendo em seus escritos ora monarquista, ora
republicano4, o escritor do “Diálogo entre um Padre e um Moribundo” é uma voz
1 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, São Paulo, Círculo do Livro, pág. 355. 2 Não quero com isso dizer que o autor não era uma pessoa cruel. Ele realmente cometeu atos intencionais de violência, como a flagelação da mendiga Rose Keller, o que lhe valeu um processo judicial e deu início à fama de torturador e assassino. Pretendo apenas esclarecer que muito do que é dito sobre Sade são boatos que misturam a vida com a obra, e não fatos concretos. 3 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág.13. 4 Para ilustrar esta afirmação, cito estas duas passagens: “A lei só é feita para o povo (...) Em todo governo sábio, o essencial é que o povo não invada a autoridade dos grandes, pois ele jamais o faz sem que uma multidão de
12
destoante e insuportável para ambos os regimes: “A verdadeira política de um
Estado é, portanto, a de centuplicar todos os meios possíveis de corrupção” 5.
A família do autor, em crise financeira mas com um passado de prestígio,
resolve unir-se à uma outra, sem ancestrais nobres mas com dinheiro. Este acordo
de interesse de ambas as partes é materializado pelo casamento arranjado do
Marquês com a filha mais velha da família dos Montreuil.
Casando contra vontade, ele interessa-se pela irmã de sua mulher. Mais do
que isso, não quer manter-se preso a uma união puramente contratual, desejando
experimentar os prazeres ditos “libertinos”. Para isso, envolve-se com prostitutas e
passa a ter casos com mulheres da sociedade. Mas tudo poderia ter ocorrido sem
maiores repercussões, não fosse um detalhe: sua sogra.
Madame de Montreuil ou “a Presidenta”, como era conhecida, era uma
mulher autoritária, zelosa de sua condição social e fortuna, muito influente nos
círculos de poder. As pessoas a respeitavam temendo-a, e Sade cai em desgraça
com ela. Tentando manter a honra da família, evitando gastos com as loucuras do
Marquês e com vários processos contra ele - inclusive com a opinião pública lhe
sendo hostil - a Presidenta consegue fazer com que Sade seja detido.
No século XVIII, a tortura e os suplícios como punições legais e espetáculos
de coerção fazem parte do dia-a-dia de quase toda a Europa6. A nobreza francesa
está acostumada a praticar seus crimes na certeza de sua impunidade. A captura de
Sade torna-se símbolo de punição também para os poderosos, transformando-o em
bode expiatório.
desgraças perturbem o Estado e o gangrenem durante séculos. “ ( SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 192); e o panfleto: “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos” (SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, São Paulo, Círculo do Livro, pág.151) 5 SADE, D. A. F., A Gosadora de Nesle, Barcelona, Sociedade Hispano-Americana, Pág. 22 - Esta é uma coletânea de textos do Marquês que não dá informações sobre a edição ou a editora, além do que está transcrito acima. 6 A tortura era, desde a antiguidade, o modo por excelência do poder se exercer sobre o povo, que vai durar até o início do séc. XIX. Nesta prática, o poder manifestava-se preferencialmente sobre o corpo do indivíduo. A quantidade do sofrimento, do castigo era regulada por quem exercia a autoridade segundo sua vontade. “O suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder”. Este deveria ser público e não perder nunca o tom de espetáculo. O Marquês vai manter este elemento do evento único e grandioso, mas vai deslocá-lo para o campo do privado, onde deve ser um show reservado e particular, somente para um grupo seleto e restrito. Em Sade, o suplício migrou da praça pública ao boudoir. Para mais informações a respeito da tortura como instrumento de poder e seu declínio enquanto forma: FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1988. A citação é deste livro à pág. 47.
13
Desde 1763, data de sua primeira prisão, até o resto da vida, ele alternará
momentos de encarceramento com fugas e curtas libertações jurídicas. Quando,
com a Revolução Francesa, o poder da Presidenta é anulado e Sade não precisa
mais temê-la, agora é a República que já conhece suas obras e as lendas a seu
respeito, considerando mais seguro deixá-lo detido: “Não foi minha maneira de
pensar que me desgraçou, foi a dos outros”7.
Sade pode ser considerado o expoente máximo da filosofia libertina. Surgida
no século XVI, tendo como característica inicial a rebeldia contra a Igreja, na época
de nosso autor o libertinismo estava agora associado também à liberação dos
costumes e práticas sexuais, além ainda da contestação religiosa. Ele vai
intensificar estes fatores ao máximo e acrescentar uma nova característica,
fundamental em suas obras: a crueldade, o crime, o suplício, a tortura, a dor
relacionados ao erotismo, isto é, tudo aquilo que conhecemos hoje por “sadismo”.
Em seu sistema, a destruição não é apenas necessária mas desejada pela
própria natureza: “Minha filha, o movimento é a essência do mundo; no entanto, não
pode haver movimento sem destruição; logo a destruição é necessária às leis da
natureza. Quem mais destrói, ao impor maior movimento à matéria, è ao mesmo
tempo quem melhor as serve” 8; “Que esta verdade ponha à vontade os que dão
rédea solta às suas paixões e que eles se convençam de que a melhor maneira de
servir a natureza é multiplicar as suas perfídias” 9. Para ele, o ser humano tem a
mesma importância de um vegetal ou uma pedra, o egoísmo é o que de mais
natural e “puro” pode-se encontrar em cada homem. A razão deve afastar todos os
fantasmas, sejam eles do campo da religiosidade ou da sociabilidade, admitindo que
necessariamente estamos sozinhos no universo. Qualquer tentativa de integração
com o outro é falsa, inútil, anti-natural, e por isso os libertinos não acreditam na idéia
de amor. A única proximidade possível é a amizade, surgida da afinidade de caráter
entre os devassos. O ato de “gozar juntos” é desejado somente se o sexo é
praticado entre eles: “Ó meus amigos, descarreguemos juntos: é a única felicidade
7 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 345 8 Idem, Ibidem, Pág. 114 9 SADE, D. A. F., A Verdade, Lisboa, Antígona, 1989, pág. 25
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da vida!...” 10. Quando envolve uma vítima, torna-se impossível: primeiro porquê a
identidade e união pressupostas para o sucesso deste intento não existem.
Segundo: o verdadeiro deleite visa somente a si mesmo, qualquer tentativa de levar
o parceiro em conta é desgastante e desestimulante. Por último, o prazer deve ser
arrancado, conquistado à força, jamais cedido.
Para a natureza continuar sua existência, a aniquilação das formas é o meio
mais perfeito para isso. E neste processo, existe um prazer indescritível, só podendo
ser captado por quem se desvencilha de toda forma de civilidade e de ilusões
sobrenaturais: “- Ah! Que sublime horror! - exclama a condessa. - Como a natureza
é bela, mesmo nesta desordem!” 11.
Diferente da maioria dos maníacos e assassinos em série noticiados hoje em
dia - cujos ataques de fúria podem ser tão cruéis como os descritos nos livros do
Marquês, mas que normalmente são considerados “doentes” por uma série de
exames neuroquímicos e psicológicos - os libertinos têm na vontade o elemento
determinante de seus atos. Embora para eles exista uma força maior oriunda da
própria organização da máquina humana - nervos, fibras, sangue e os “espíritos
animais”, que os deixam mais sensíveis, e até mesmo determina o
comportamento12, eles são libertinos antes de tudo por escolha: “Sou imoral por
sistema e não por temperamento” 13.
10 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 119 11 SADE, D. A. F., Os Crimes do Amor, Porto Alegre, L&PM, 1991, pág. 98 12 Sade está sempre baseando-se nos avanços da medicina e filosofia do século XVIII. A primeira vê o corpo humano como uma máquina, tendo como causa da maioria dos distúrbios psíquicos as alterações das fibras e nervos que compõem os órgãos. Ninguém melhor que ele próprio para explicar sua fisiologia, escrita como nota para o texto de Justine: “É dos nervos que dependem a vida e toda a harmonia da máquina; daí os sentidos e as volúpias, os conhecimentos e as idéias. Numa palavra, são a sede de toda a organização, e lá também se encontra a da alma, isto é, esse princípio de vida que se extingue nos animais, crescendo e decrescendo com eles, e que, consequentemente, é todo material. Consideram-se nervos os tubos destinados a veicular os espíritos nos órgãos onde se distribuem, e a trazer de volta ao cérebro as impressões dos objetos exteriores sobre esses órgãos. Uma grande inflamação agita de modo extraordinário os espíritos animais que correm na cavidade destes nervos, determinando-os ao prazer, se essa excitação é produzida nas partes geradoras ou nas que se lhe avizinham, o que explica os prazeres recebidos por golpes, picadas, beliscões ou chicote. Da extrema influência da moral sobre o físico nasce assim o choque doloroso ou agradável dos espíritos animais em razão da sensação moral que se recebe, de onde se ressalta que, com princípios e filosofia, com o aniquilamento total dos preconceitos, pode-se incrivelmente estender, como já se disse, a esfera das sensações”. SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 112. A filosofia, por sua vez, discute a questão da “natureza humana”, o lugar do natural e do artificial nas relações de sociabilidade, e os possíveis conflitos destas com o corpo, sendo este um ponto fundamental nos
15
Os assassinos “reais” conhecidos por nós invocam com frequência uma força
incontrolável que supostamente os faz “surtar”, e dali em diante não tem mais poder
sobre seus atos e vontades. Nada mais “amador” diriam os grandes libertinos. A
verdadeira libertinagem está em nunca perder a consciência, mas educá-la para
melhor saborear os prazeres que um suplício pode proporcionar. Vejamos como
Sade nos apresenta Curval em “Os 120 dias de Sodoma”: “(...) com esse homem, as
paixões não tinham a menor influência nas doutrinas; firme em seus princípios, era
igualmente ateu, iconoclasta e criminoso depois de ter derramado seu esperma ou
antes, quando estava em fermento lúbrico, e é assim, precisamente, que deviam ser
todas as pessoas sensatas e equilibradas. O esperma não devia poder ditar ou
afetar nossos princípios; nossos princípios é que deviam regular nossa maneira de o
derramarmos. E quer se esteja de pau duro, ou não, nossa filosofia, agindo
independentemente das paixões, devia ser sempre a mesma” 14. Daí a “apatia” das
personagens de Sade.
Apatia: o distanciamento, a capacidade de manter-se frio e tranqüilo frente
aos piores terrores. Assim, os devassos podem então dar início à sessões de
torturas como se fossem monges em meditação: “E todos esses pretensos ultrajes
contra a natureza se passam numa ordem e numa tranqüilidades capazes de
alimentar as reflexões de um filósofo” 15. As paixões são devidamente educadas
para não interferirem, pois existe um prazer muito além delas, que deve ser
conhecido às custas dos corpos supliciados. A apatia em Sade, ao invés de
provocar um afastamento do corpo, dá ênfase na matéria: é o método ideal para
alcançar o verdadeiro prazer.
O autodomínio e a indiferença apáticas são aqui voltados para o sofrimento
do outro. Eles não permitem que as dores, gritos, convulsões e sangramentos
interfiram na busca do libertino: “(...) por Deus, posso ver o universo perecer sem um
suspiro ou uma contração” 16. A crueldade e as mortes não significam muito se
forem causadas por um momento de raiva ou de descontrole. Elas devem originar-
textos do Marquês, pregando a completa ruptura com as convenções sociais para o melhor desabrochar de nossa ferocidade e egoísmos “naturais”. 13 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 318 14 SADE, D. A. F., Os 120 dias de Sodoma, São Paulo, Aquarius, 1980. pág. 277 15 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 94 16 SADE, D. A. F., Os 120 dias de Sodoma, op. cit., pág. 164
16
se de uma reflexão, ter sempre por base uma filosofia, para que a moral dos fracos
e das vítimas não possa desvirtuar o carrasco do seu caminho, e principalmente
para, graças à educação libertina, desenvolver ao máximo a capacidade de sentir
prazer: “Nenhum dó, nenhuma compaixão: a humanidade é a morte do prazer” 17.
O discurso é a grande arma de Sade. Com ele instauram-se horrores,
ampliam-se prazeres, separam-se os verdadeiros adeptos do crime dos pequenos e
ordinários torturadores: “Distinguimos em geral duas espécies de crueldade: aquela
que nasce da estupidez, que, jamais pensada, jamais analisada, assimila o indivíduo
nascido desse modo ao animal feroz: este não dá nenhum prazer, porque aquele a
isso inclinado não é suscetível de nenhuma pesquisa; as brutalidades de um ser
desse tipo raramente são perigosas: é sempre fácil pôr-se ao abrigo delas; a outra
espécie de crueldade, fruto de extrema sensibilidade dos órgãos, só é conhecida por
seres extremamente delicados, e os excessos a que ela os leva não passam de
refinamento de sua delicadeza; é essa delicadeza, embotada com excessiva
presteza por causa de sua excessiva finura, que, para despertar, põe em ação todos
os recursos da crueldade” 18. As vítimas não discutem, não têm argumentos, são
passivas em relação ao mundo das idéias. Os devassos conversam entre si, pois
sabem que aqueles que serão sacrificados não conseguem entender a sua refinada
filosofia; se conseguissem, logo perceberiam como são tolos e passariam para o
lado dos torturadores. Mesmo quando os algozes falam às vítimas é sempre como
um monólogo, nunca um diálogo. Os atos do libertino são motivados por princípios,
muito mais que por impulsos.
A libertinagem é antes de tudo um estado de espírito. E para poder ser um
verdadeiro devasso, a pessoa deve passar por uma educação, um treinamento;
deve ter mestres, ser iniciada e captar as nuanças da violência com o espírito
criativo de um aprendiz: “Você sabe como respeito os gostos, as fantasias: por mais
barrocas que sejam são todas respeitáveis porque não somos seus donos, porque a
mais extravagante delas remonta sempre a um princípio de delicadeza” 19. O prazer
deve ter um valor em si, a agonia das vítimas não deve interferir nas lições. O
libertinismo é uma verdadeira Ars Erotica. Por isso abundam na obra de Sade as
17 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 281 18 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 96 19 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 259
17
sociedades e grupos com o fim exclusivo de causar a morte através da dor, para o
puro e simples deleite das sensibilidades desenvolvidas. O sofrimento deve ser
como uma cerimônia; a tortura e o sexo, uma aula exemplar20. O local dos suplícios
não pode ser às claras, mas privado, de difícil acesso, isolado, quase escondido21. A
destruição, o coito, o prazer que deles deriva são uma obra de arte e a libertinagem,
um estilo de vida.
Mas é também Scientia Sexualis. O prazer obtido vêm de um dilaceramento
minucioso, estudado em mínimos detalhes, com a razão gerenciando todo o
processo. Os martírios devem ser preparados, analisados como em um
laboratório22. A dor causada nos corpos deve ser medida, verificada e contabilizada
em um balanço quantitativo e qualitativo. O conhecimento deve ser testado e
demonstrado. O prazer não aparece apenas na sensibilidade desenvolvida, mas na
razão treinada. A filosofia libertina é o melhor exemplo de seu sucesso23: “Passei a
vida toda estudando a natureza, roubando seus segredos; e, com a imoralidade
alimentando-me os estudos, há vinte anos só consagro minhas descobertas à
infelicidade dos homens” 24.
Existe uma constante busca nas obras do Marquês, uma ânsia por um
conhecimento obtido somente através do suplício dos corpos, da dor dos corações e
da angústia das mentes. As personagens não procuram sensações comuns, mas
aquelas que só podem mostrar-se após todos os limites terem sido rompidos,
habitando um lugar claro e bem definido: o corpo. É pela dor do outro, vivenciada na
carne que se pode chegar ao prazer. Mas não é apenas a dor em si que é a fonte
de sabedoria e delícias. Todo o conhecimento, todo o prazer só pode ser alcançado
através da dor alheia, graças à um ato intencional do libertino. A dor deve ter o outro
como objeto, e a um adepto do crime como sujeito. De preferência no corpo, muito
mais do que na alma. Toda a abstração chamada espírito, consciência, alma, é
apenas um resíduo desta carne: “Meu amigo, a religião só impera no espírito dos
que nada podem explicar sem ela (...) E o que é a alma? Um espírito. O que é
20 Como exemplo claro de uma “aula” de libertinagem pode-se citar o livro “A Filosofia na Alcova”. 21 Os castelos em locais de difícil acesso, os calabouços e as salas secretas são constantes na obra de Sade. 22 Sobre a metáfora do laboratório: MORAES, Eliane Robert, A Felicidade Libertina: Sade, Rio de Janeiro, Imago, 1994; pág. 198, nota 51. 23 Sobre a Ars Erotica e a Scientia Sexualis, FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade - Vol. I A Vontade de Saber, Rio de Janeiro, Graal, 1988
18
espírito? Uma substância que não tem forma, cor, extensão ou parte (...) Eis as
soluções pueris que somos obrigados a conceber para explicar os problemas do
mundo físico e moral!” 25.
Mas o prazer não tem marcações precisas de início ou fim, e a cada
conquista, a cada membro mutilado, a cada nova tortura ele esconde-se mais à
frente. Claro que com os suplícios os devassos alcançam o prazer, mas nunca é
definitivo: “Açoite sua mãe, esfole suas irmãs! Não as poupe... e não tema
sobretudo ultrajar a natureza: é sempre além dos limites conhecidos que essa
sacana fixa o prazer” 26. Ele pode ser infinitamente maior e mais refinado, bastando
apenas para isso os crimes seguirem esta tendência. Por isso muitos personagens
desejariam destruir toda a natureza, todo o universo: “segundo me parece, a
impossibilidade de ultrajar a natureza é o maior suplício do homem” 27. Para além da
natureza e do universo encontra-se ainda um prazer, querendo ser experimentado
até onde for do alcance do libertino.
Este excesso vai ser frequente nas obras do Marquês: “O que seria da
volúpia sem o excesso?” 28. De ambos os lados ele vai marcar presença: seja com
os devassos, insaciáveis em seus crimes e desejos sexuais, ou ao lado das vítimas,
sempre passivas aos piores tormentos, mas com uma vitalidade corporal impossível:
apesar das torturas e dos suplícios mais ferozes, elas não morrem facilmente. Isso
só acontece quando o libertino o permite, após horas ou até dias de agonia e
sofrimentos atrozes: “Fazem uma pausa para ela recuperar suas fôrças, depois os
Senhores retomam o trabalho, mas desta vez, no momento em que os nervos são
puxados e ficam expostos, são raspados com o fio de uma navalha. Os amigos
completam essa operação e vão então para outro lugar; um buraco é feito em sua
garganta, a língua é empurrada para trás, para baixo, e passada pelo orifício, é um
efeito cômico, torram o seio que lhe resta, depois, pegando num escalpêlo, o Duque
enfia a mão em sua boceta e corta a parte que separa o ânus da vagina; põe o
escalpêlo de lado, introduz de novo sua mão e remexendo em suas entranhas força-
a a cagar pela boceta, outra brincadeira divertida; então, aproveitando a mesma
24 SADE, D. A. F. Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 335 25 Idem, Ibidem, pág. 287 26 Idem, Ibidem, pág. 182 27 Idem, Ibidem, pág. 286
19
entrada, chega e rasga-lhe o estômago. A seguir concentram-se em seu rosto:
cortam-lhe as orelhas, queimam a passagem nasal, cegam seus olhos com lacre
derretido, recortam-lhe o crânio, penduram-na pelos cabelos, amarram pesadas
pedras a seus pés, e deixam-na cair: a tampa do crânio continua balançando.
Respirava ainda quando caiu, e o Duque fodeu-a na boceta neste lastimável
estado” 29.
A sodomia é uma constante em Sade. Os carrascos a preferem e as vítimas a
abominam. Em sua época, este era considerado um crime do qual inclusive o autor
foi acusado e condenado. Aqui percebe-se como o edifício do sexo “natural” e
somente para fins de reprodução, culminando com a classificação e medicalização
dos perversos no século XIX, já estava com suas bases montadas no século
anterior.
Por ser um coito estéril para gerar descendência, trabalhar na localização
mais “impura” do corpo, contar com maldições bíblicas sobre si e representar uma
violência ultrajante para quem é sodomizado, este tipo de relação será a mais
idolatrada pelos libertinos: “Pois bem! Mas esse é o cu! A natureza, meu caro
cavaleiro, se prescutares com cuidado suas leis, jamais indicou outros altares a
nossa homenagem a não ser o buraco do traseiro; ela permite o resto, mas ordena
este” 30. Eles não só querem possuir desta forma como ser possuídos. Garantem
que este prazer para as mulheres é superior ao do coito vaginal, “É que, palavra,
não conheço nada tão fastidioso que a posse da cona, e quando, como vós
senhora, se gozou os prazeres do cu, não concebo como se possa voltar aos
outros” 31; no caso dos homens, faz deles os mais perfeitos seres de prazer, pois
podem sentir tanto as delícias de penetrarem como de serem penetrados. Este é um
dado importante: os senhores de Sade sentem prazer ao serem possuídos por trás,
enquanto seus escravos sentem dor. A violação anal é uma forma de domínio sobre
o corpo do outro, e a capacidade de sentir prazer, o que faz a distinção entre
libertinos e vítimas.
28 Idem, Ibidem, pág. 110 29 SADE, D. A. F., Os 120 dias de Sodoma, op. cit. pág. 363 30 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 108 31 Idem, Ibidem, pág. 108
20
O ânus é considerado o grande altar da natureza por seu formato mais
“circular”, mais anatomicamente apto a receber um pênis. É também por aí que
saem as fezes, fundamentais para as orgias e prazeres sadianos. Elas, por serem
consideradas algo execrável e impuro, estimulam as paixões, sendo alvo de uma
apreciação tanto filosófica quanto material: “Curval quis endireitar-se de nôvo,
precisava em absoluto de um pouco de merda, e Augustine disparou o mais perfeito
artefato que o poder humano possa criar” 32. Mede-se sua quantidade, espessura,
cor e aroma. As fezes são saboreadas em grandes banquetes que tanto mais
agradam aos libertinos quanto mais enjoam e desesperam suas vítimas. O prazer
de degustar os excrementos humanos é maior ao forçar as vítimas a ingeri-los.
A vagina, pelo contrário, é repugnante para a maioria das personagens de
Sade. Por representar o próprio princípio feminino, ela é alvo de ofensas e torturas.
A libertina Duclos comenta nos “120 Dias de Sodoma”: “(...) pois o camarada tinha o
mau gôsto de só querer ver a parte da frente” 33. O ânus, como elemento genital
comum a ambos os sexos é o que garante a satisfação no uso do corpo de uma
mulher.
Isso nos leva a um tema recorrente nas obra do Marquês: a androginia. Os
devassos procuram por uma sexualidade que está além das limitações biológicas
dos órgãos genitais, mas nunca além do corpo. Todo estímulo físico ou psíquico tem
sede na carne, não sendo passíveis de mudança: “Poderemos nos tornar outros
além do que somos?” 34. Podem no máximo ser educados. Para eles o prazer está
fora das questões de gênero, e o hetero ou homossexualismo só adquire
importância quando têm a intenção de chocar as vítimas.
Neste sentido os figurinos dessas personagens são ilustrativos. Homens
vestem-se de mulheres e vice-versa, pois isto adquire não só o caráter de
transgressão mas serve para transformar os corpos unissexuados em corpos
andróginos. Os senhores do castelo de Silling, em “Os 120 Dias de Sodoma”, várias
vezes recorrem ao transvestimento em suas orgias. O libertino quer muito mais do
que bissexualidade: ele quer ter os dois sexos em um só corpo.
32 SADE, D. A. F., Os 120 Dias de Sodoma, op. cit, pág. 229 33 Idem, Ibidem, pág. 254 34 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 297
21
Os figurinos lembram também um elemento fundamental em Sade: o teatro.
Apaixonado que era por esta arte, ele criou nas orgias e torturas um ambiente de
teatralização, no qual os “atores” realmente matam e morrem em cena. Toda uma
discussão entre a realidade / ficção, entre personagem / ator é desenvolvida
implicitamente na forma do espetáculo particular que são os suplícios sadianos, com
algozes e vítimas muitas vezes maquiados, fantasiados e atuando como diretores /
atores de seus crimes: “Êste quarto estava ocupado por um grande teatro, no qual
eram preparadas sete torturas diversas: quatro carnífices nus e bonitos como marte
deviam servir os suplícios, isto é: o fogo, a fustigação, a corda, a roda, o pau, a
decapitação, o esquartejamento” 35. A dor deve vir à tona de uma forma quase
ensaiada, mostrar-se através dos gritos e do sangue com todo o brilho e encanto de
uma apresentação teatral.
.
A mulher é a vítima preferencial de Sade, e mesmo entre libertinos esta
condição demonstra certa submissão ao princípio masculino, como neste trecho das
Instruções às mulheres admitidas na Sociedade dos Amigos do Crime: “Em qualquer
estado ou condição que tenha nascido esta que aqui vai assinar, sendo mulher, é a
partir desse momento criada unicamente para os prazeres do homem” 36. Mas não
imaginemos por isso ser o gênero feminino em si que é perseguido pelo Marquês. O
alvo dos crimes dos devassos é sempre a noção cultural de mulher. Todas as
atitudes consideradas femininas e assim valorizadas - como a meiguice, a graça, a
ternura, o recato, o romantismo e principalmente a maternidade - são destruídas
pela crueldade de pessoas de ambos os sexos. A mulher pode ser uma devassa,
mas para igualar-se aos libertinos deve antes de tudo, tomar uma atitude viril frente
ao crime, abominar o que lembre a meiga feminilidade, a doçura e a maternidade
cristãs. Todas estas características devem ser abolidas em troca da lassidão de
uma razão sempre pronta a criar novos tormentos e aumentar o número de mortes.
Todas as grávidas na obra do Marquês têm como destino, ou de seus bebês
(ou mesmo fetos), serem mortos por algozes ou por elas próprias. As grandes
senhoras do autor não geram vida, mas a morte. Novamente na admissão de
35 SADE, D. A. F., A Gosadora de Nesle, op. cit., pág. 71
22
Juliette à Sociedade: “Presidenta: Cometeu crimes? - Juliette: Diversos. -
Presidenta: Atentou contra a vida de seus semelhantes? - Juliette: Sim. (...)
Presidenta: Então você detesta a progenitura? - Juliette: Abomino-a. - Presidenta:
Se ficasse grávida, teria coragem de abortar? - Juliette: Seguramente” 37. Na galeria
dos grandes libertinos, figuram mulheres com uma vitalidade filosófica e sexual, e
uma ferocidade criminosa às vezes superior à dos homens, como Madame de Saint-
Ange ou a própria Juliette38.
Os libertinos de Sade necessitam de vítimas, não de cúmplices ou pessoas
que estejam ali por vontade própria. O prazer sadiano deve ser arrancado à custa
de lágrimas, gemidos, humilhações e muita dor. Ele só pode ser encontrado no
rompimento das carnes, na angústia dos espíritos, pois é na mais completa
destruição de qualquer forma de vida que os órgãos dos devassos são estimulados,
graças ao excesso de sons, imagens, odores, sensações e sabores abundantes nas
torturas e orgias. Qualquer relação de mútuo consentimento entre o algoz e sua
vítima não é típica de Sade, podendo existir unicamente da parte dos libertinos entre
si.
O prazer sadiano encontra seu centro no egoísmo. A idéia de doar-se aos
prazeres de outro implica um desprendimento, uma tentativa de comunhão
abominável aos olhos de um adepto do crime. É a aflição e a dor que excitam,
sendo encontrados em toda sua intensidade apenas em pessoas verdadeiramente
desesperadas com sua situação de vítima. As personagens do Marquês não se
contentam com falsos estímulos ou agonias artificiais.
Somente na camaradagem entre devassos aquele que sofre as torturas pode
sentir prazer, pois ele o faz em benefício próprio, visando o deleite apenas para si.
Via de regra, as personagens que sentem prazer ao lhe infligirem algum tipo de dor
são também os carrascos. Alguém que deseja ser flagelado só pode ser um
libertino, pois são os únicos a possuir a sensibilidade necessária para sentir na
própria carne as maiores crueldades e com elas atingir o orgasmo: “(...) só peço
uma graça a Eugênia, é que ela se compraza em que eu a açoite tão forte como
36 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 87 37 Idem, Ibidem, pág. 84/86 38 Madame de Saint-Ange é personagem do livro A Filosofia na Alcova, e Juliette do livro Histoire de Juliette.
23
desejo ser eu mesmo açoitado” 39; “Repito, senhora: nada como a dor para causar
um esporro” 40. Esta aptidão é única dos devassos, pois as vítimas não possuem a
“filosofia”, a educação e os refinamentos necessários para tanto.
Mesmo a capacidade de sentir prazer não sendo exclusiva dos libertinos41, às
vítimas cabe o dever de sentir dor. Elas estão ali para deleite dos devassos, são
objetos. Não têm vontades ou direitos, e como o prazer deve ser tomado à força, é
no exercício de subjugar e destruir o outro que o prazer se concretiza, como bem
explica Dolmancé, um dos maiores libertinos de Sade: “Queremos ser comovidos,
dizem eles, este é o objetivo de todo homem que se entrega à volúpia, e queremos
que isso aconteça pelos meios mais ativos. Partindo desse ponto não se trata de
saber se nossos procedimentos agradarão ou não ao objeto que nos serve, trata-se
apenas de abalar a massa de nossos nervos pelo choque mais violento possível;
ora, não há dúvida de que a dor, afetando mais vivamente que o prazer, os choques
causados sobre nós por essa sensação produzida sobre os outros serão
essencialmente de uma vibração mais vigorosa, repercutirão mais energicamente
em nós” 42.
Sade é pouco conhecido como texto. Sua obra é grande e seu tema
incômodo. Mas ao colocar a crueldade em foco e caminhar sobre o terreno
movediço da relação prazer-dor, ele deixou-nos mais perto de nós mesmos. Ao
trazer todos os horrores de um “sadismo” para o campo da consciência, iluminou o
que antes estava no lado do inconsciente, do desconhecido, do não assumido. A
consciência de nossos próprios desejos de destruição foi anunciada em grande
parte por ele. O que antes era obra exclusiva de demônios ou de homens anormais,
depois do Marquês tornou-se uma característica, em maior ou menor grau, comum a
todo ser humano. Como ele mesmo disse em carta de 1782: “... Se quer analisar as
leis da natureza, lembre-se de que seu coração, onde ela se grava, é ele próprio um
enigma cuja solução não pode dar!” 43.
39 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 129 40 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 151 41 Muitas vítimas são levadas ao orgasmo pelos libertinos, mas sempre contra a sua vontade, graças à habilidade do algoz em extrair prazer dos corpos. 42 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit. pág. 92 43 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit. Pág. 333
27
“Mas é preciso reconhecer, mesmo me contorcendo sob os golpes
cruéis da bela mulher, eu sentia um certo prazer” 1. Da vida e obra do autor
deste trecho, escrito em um tipo de autobiografia, sairá uma das mais belas e
instigantes visões do amor e sexo em nossa época. Sem ele, não haveria o
termo “masoquismo”.
Em 1836, nasce na Áustria Leopold Von Sacher-Masoch. Vive em uma
região fronteiriça de vários povos e culturas que vão influenciar sua obra:
eslavos, russos, alemães e judeus. O tempo histórico é cercado por conflitos
sociais, como a Revolução de 1948. Ele é um aristocrata, anticlerical, herdeiro
do iluminismo, preocupado com as questões sociais de seu tempo, amante das
artes e da noção de honra cavalheiresca: “Eu queria primeiro ser soldado,
depois ator e por fim professor” 2. Contrastando com essa formação intelectual,
respeita e admira a rudeza e o misticismo dos camponeses.
Sacher-Masoch é um escritor quase desconhecido, a não ser por um
livro: “A Vênus das Peles”. Criador de uma vasta obra - 120 títulos - em grande
parte voltada para contos folclóricos das regiões, povos e culturas que
conhecia bem, é normalmente considerado um artista de menor porte pela
crítica e poucos livros seus encontram-se disponíveis para o leitor comum.
Sua obra foi concebida como um grande ciclo chamado de “O Legado
de Caim”. Somos todos filhos deste, e o que ele nos deixou como herança foi:
o Amor, a Propriedade, a Guerra, o Estado, o Trabalho e a Morte. Cada um
destes temas deveria ser desenvolvido em um ciclo de novelas ou contos, mas
isso não aconteceu. A maior parte dos textos está ligada ao tema do amor e da
guerra entre os sexos, mostrando-os incompatíveis e estranhos um ao outro.
Como Sade, sua vida é rodeada de lendas e exageros3, embora Masoch
tenha realmente experimentado muitas aventuras sexuais que se refletem em
1 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), Rio de Janeiro, Rocco, 1992, pág. 306 2 Idem, Ibidem, pág. 106 3 Como por exemplo, o que Wanda dizia em sua autobiografia: no final da vida, Masoch transformou sua pacata casa em uma verdadeira Meca do masoquismo; ou a versão de que ele teria morrido louco internado em um hospício, encontrada em vários tratados psiquiátricos sobre perversões. Na verdade o dado sobre a loucura do escritor surgiu também do livro de Wanda, publicado apenas após a morte deste e de várias pessoas próximas. Ele morreu provavelmente de problemas cardíacos que o enfraqueceram, aos 59 anos de idade, ao lado da esposa, Hulda, em casa.
28
seus escritos, chegando inclusive a publicar um livro, “Coisas Vividas”, no qual
descreve esta influência sobre a obra. Como ele mesmo afirma em “As
Messalinas de Viena”: “Aliás, minha Vênus das Peles se baseia totalmente em
fatos, de tal modo que partindo de histórias reais, nasceu uma única história
poética - meu romance” 4.
Dos muitos amores que tem em vida, procura particularmente as
mulheres dominadoras, que se refletem diretamente nos textos. Mesmo nas
estórias regionais que escreve, este elemento é vital: a mulher forte, senhora
de si e de outros, controladora da vida de um homem e às vezes de toda uma
comunidade. Mas aquelas que seduzem Masoch são as aristocratas, cultas e
consideradas “liberadas” para os padrões da época: “Ela percebeu o efeito que
sua beleza produziu em mim. E sorriu feliz, triunfante, com uma inocente
malícia” 5.
Sacher-Masoch passa a trabalhar como professor universitário - tendo
se tornado doutor em filosofia com apenas 20 anos - editor e redator de
revistas de literatura. Em 1861, tem um caso com uma mulher casada que ele
chama “Aldona de K.” (na verdade uma nobre da alta sociedade de nome Anna
Von Kottowitz) que irá marcar sua vida. É um relacionamento tumultuado
repleto de traições, culminando com a separação em 1866: “Desde então não
tive mais confiança na fidelidade de uma mulher” 6.
Deste período, surgirá sua primeira obra literária que se tornou
conhecida: “Dom Juan de Kolomea”, onde o protagonista, por haver sido traído
pela amante e para que isso não mais lhe aconteça, passa a agir da mesma
forma com todas as mulheres que lhe cruzam o caminho.
Anos após a separação de Aldona, e depois de ter escrito o ciclo do
Amor, incluindo “A Vênus das Peles”, Masoch conhece Aurora Rümelin, figura
fundamental em sua biografia, que adota o nome de “Wanda”. Este também é
o nome da personagem principal da “Vênus”, causando confusões até hoje,
fazendo muitos acreditarem que a personagem foi inspirada nesta mulher,
quando o que houve foi o contrário. Casam-se em 1872.
4 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 189 5 Idem, Ibidem, pág. 159 6 Idem, Ibidem, pág. 179
29
A mulher real, com o intuito de seduzir o escritor, inspira-se em uma
personagem de ficção e tenta encarná-la o mais que pode. Entretanto, ela não
consegue sustentar seu papel por muito tempo, e no cotidiano da vida em
comum, Masoch percebeu que fora enganado.
Em 1906, Wanda / Aurora escreve um livro intitulado “Confissão de
Minha Vida”, no qual assume um papel de mulher ingênua nas mãos de um
pervertido sexual. Muitos biógrafos de Masoch apóiam-se neste livro como
fonte de interpretações e pesquisas. Para outros, Wanda é uma oportunista,
aproveitando-se o máximo que pôde de Masoch, sugando-o até onde foi
possível. Quando este ficou esgotado e não pôde dar-lhe mais nada - inclusive
dinheiro - ela resolve acatar o pedido de separação já proposto várias vezes
pelo marido. Ele viu com desgosto dois filhos morrerem e o casamento ruir em
um dos períodos mais difíceis que passou: “Estou cansado da vida” 7.
Cinco anos antes de sua morte, já com uma segunda esposa, Masoch
vê indignado, no auge da caça psiquiátrica aos “pervertidos”, o Dr. Krafft-Ebing
da universidade de Viena, nomear uma nova variante da algolagnia (o prazer
na dor física) com o termo “masoquismo”. Uma referência explícita e direta que
praticamente anulou a obra de Leopold Von Sacher-Masoch hoje em dia e o
transformou em sinônimo de patologia sexual. Apesar de ofendido, ele não
quis responder publicamente a esta questão, encarregando o tempo de dar a
última palavra.
Quando morreu, em 1895, o corpo foi cremado sem ofícios religiosos,
cumprindo uma vontade expressa por ele.
Bernard Michel, na biografia de Sacher-Masoch, critica a maneira como
a obra do escritor é comumente analisada: toma-se “A Vênus das Peles” como
um microcosmo e uma síntese de seus escritos tirando-se daí as mais
apressadas conclusões. O autor de 120 títulos como “Uma História Galiciana”,
“Noite de Luar” e “A Mãe de Deus” possui, segundo Michel, um universo
literário muito mais vasto que o contido na Vênus, não podendo ser avaliado
apenas por este livro. Mesmo assim, pode-se perceber alguns temas
recorrentes segundo os resumos contidos no trabalho deste biógrafo, cuja
7 Idem, Ibidem, pág. 341
30
essência corresponde a sua mais conhecida obra: o universo feminino, com
sua característica crueldade e mistério, e a difícil convivência entre o homem e
a mulher.
Para este trabalho, abordarei o “problema” identificado por Bernard
Michel e assumirei sua crítica. A análise da obra de Masoch que farei se
concentrará muito mais na “Vênus das Peles” por dois motivos: primeiro, a total
dificuldade em se conseguir obras deste autor, inclusive em outras línguas.
Segundo, por ser o trabalho mais conhecido é o exemplo mais bem acabado
da raiz da concepção do termo “masoquismo” e fonte de pesquisa desta
categoria psiquiátrica, elemento de principal interesse deste estudo.
Sacher-Masoch tem uma concepção de natureza extremamente ríspida,
implacável e fatalista. Provavelmente este modelo é influência da vida que ele
indiretamente conheceu quando criança: era um garoto de família aristocrática
mas com boas relações e fácil trânsito entre as pessoas do povo, vivendo em
uma região predominantemente rural da Europa, nos limites entre a
“civilização” e a natureza “selvagem”.
O clima, as chuvas, os animais são antes de tudo forças que merecem
respeito e devem ser temidas. Os rios enchem e transbordam, as plantações
podem não vingar e os lobos atacam viajantes solitários. Frente à tudo isso, o
homem é um ser solitário e frágil8.
A natureza é muito mais estática que dinâmica, e toda a movimentação
aparente não altera o imperioso silêncio das planícies e estepes. Ela é cruel e
impiedosa, mesmo com toda sua beleza: “A manhã é tempestuosa, o ar está
pesado e cheio de excitantes aromas” 9. A indiferente crueldade com que ela
trata os seres vivos é parte essencial desta beleza.
O autor chega a dizer que possui um parentesco espiritual com o filósofo
Schopenhauer e, assim como este, acredita que somos levados pela natureza
aos atos mais descabidos e insanos apenas para atender ao desejo de
continuidade desta: “Subitamente compreendi que somos apenas os loucos da
natureza. No momento do êxtase, o homem e a mulher parecem formar um
único ser, a natureza não pensa nem um pouco em nós! Ela não se preocupa
8 Este é também o tema romântico por excelência: a natureza e a finitude humana. 9 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, Rio de Janeiro, Taurus, 1983, pág. 165
31
nem um pouco com nossa felicidade; ela só pensa na conservação da
espécie”10. O amor e o desejo são artifícios criados para superar
momentaneamente o abismo entre os sexos.
Homem e mulher, macho e fêmea, vivem em universos distintos. Cada
um é estranho ao outro, e por mais tentativas que se façam de comunhão, o
máximo que se pode conseguir é uma proximidade, uma intimidade, nunca
união. Talvez um dia isto mude, mas na atual configuração de nossa
sociedade, a mulher “(...) tal como a natureza a criou e tal como ela atrai o
homem atualmente, é o seu inimigo e só pode ser para ele escravo ou tirano,
nunca companheira” 11.
O feminino é a figura chave de sua obra, em todas as nuanças, e
justamente no que tem de misterioso. O seu lado viril, cruel, caprichoso e
insondável para o homem é o que o atrai: “Sabe você, caro irmão, o que nos
leva a lutar na grande revolução? Não são os emissários, os comitês e as
associações secretas. Nossas mulheres!” 12. A alma da mulher é mais
importante que as formas de seu corpo, pouco descritas nos livros. Ela é um
mistério e compete ao homem desvendá-lo, sabendo que nunca o conseguirá.
A mulher é a própria encarnação da natureza. Sendo coerente e sincera
consigo mesma, só lhe resta libertar toda sua tirania e severidade. Ela é quem
dá a vida e sustento aos homens, e estes lhe são subordinados, querendo ou
não. O relacionamento entre os sexos é desigual e assimétrico, cabendo ao
homem ser um escravo - ou mais rara e excepcionalmente, o senhor: “Em
matéria de amor, nunca se está no mesmo nível” 13.
O princípio feminino é via de regra superior e a mulher plena exerce sua
dominação “natural” sem piedade, embora poucas consigam libertar-se do
ilusório poder masculino exercido através do patriarcalismo da sociedade,
assumindo com isso o lugar que lhes é de direito. Aquelas que fazem isto e
conquistam esta posição merecem ser adoradas.
A frieza é uma característica dessas mulheres. Elas são distantes,
enigmáticas. Como deusas, mantêm bem clara a separação com os “mortais”,
10 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 173 11 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 301 12 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 134 13 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 172
32
lembrando muitas vezes estátuas - lindas, distantes e frias: “Minha amada é de
pedra” 14.
O homem por sua vez é um ser débil, e mesmo com toda a coragem e
brutalidade que lhe são características, não pode medir forças com as
mulheres: “Os rapazes imberbes sempre são atraídos quase sem querer, como
por uma influência demoníaca, pelas mulheres superiores” 15.
Masoch trabalha bastante com o herói em seus contos: aquele que luta
até a morte para libertar seu povo ou salvar uma mulher amada, o líder moral e
espiritual de uma comunidade e os códigos de honra cavalheirescos são uma
constante nos textos de nosso autor16. Ainda assim, estas figuras normalmente
são alvo fácil de uma mulher gananciosa ou, como obedientes à uma força
superior, entregam-se a mulheres cruéis de livre vontade, pois sabem que na
batalha dos sexos eles estão já de antemão derrotados.
Para alcançar a plenitude masculina, também este deve reconhecer a
superioridade da fêmea na natureza e tomar para si a única atitude possível:
entregar-se de corpo e alma aos caprichos da mulher. Aqui nasce o
comportamento que vai caracterizar a personagem “Séverin” na Vênus e
muitas outras da obra de Masoch, que mais tarde será considerado o sintoma
exemplar de uma perversão sexual. A única forma de aproximação entre os
seres de sexo opostos é cada um aceitar a sua posição “natural”. Só assim, no
campo das intenções mais primitivas e cruas, o verdadeiro prazer pode se
manifestar: “O senhor chama crueldade - redargüiu com vivacidade a deusa do
amor - aquilo que consiste no elemento característico da sensualidade e do
amor puro, na verdadeira natureza da mulher: entregar-se em qualquer lugar
em que se ama e amar tudo o que se agrada” 17.
A mulher deve flagelar o homem na carne e no espírito, sendo a tortura
da alma o fundamental para a verdadeira cena de Masoch. O suplício apenas
físico não interessa sem a humilhação e o sofrimento moral. Na falta destes, a
dor perde o sentido e torna-se desagradável e desestimulante. O prazer
encontra-se em toda uma ambientação, em um clima que envolve a relação
14 Idem, Ibidem, pág. 160 15 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 113 16 Inclusive, na biografia de Bernard Michel, este diz que Masoch gostava de assinar como “Cavaleiro” de Sacher-Masoch. 17 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 149
33
dominador - dominado. O tormento do corpo é apenas o complemento desta
forma de relacionamento, não sendo o foco principal: “A senhora já sabe que
eu sou um supra-sensual, que em mim toda concepção procede, antes de mais
nada, da imaginação e que se alimenta de quimeras” 18.
Por isso os acessórios como o chicote, as roupas de peles, correntes e
outras peças são fundamentais. Elas ajudam a compor o ambiente e são as
marcas da diferenciação de poder. Estes objetos limitam, machucam, ofendem
a quem recai o seu uso e dão status, autoridade e elegância a quem deles se
utiliza: “Mulher! Deusa! Não tens coração, és incapaz de amar? (...) Não tens
piedade? - Não - responde orgulhosa e irônica - mas tenho o chicote” 19.
O figurino é da mais extrema importância. Sejam as peles que
transformam as mulheres em verdadeiros “gatos grandes”, “baterias elétricas”,
ou os uniformes militares, exemplos maiores da masculinidade vaidosa, em
Sacher-Masch o erotismo deve vir sempre vestido: “- É que hoje serás
seriamente chicoteado - Disse Wanda. / - Coloque então tua jaqueta de peles -
pedi” 20. A nudez deve ser insinuada, não exibida.
E unindo-se ao que acima foi citado, estão vários objetos que
intensificam o clima sensual e fazem a mediação do contato físico entre os
parceiros: o chicote, a coleira, os lenços. Elementos do corpo tais como mãos,
pés, pescoço, são ressaltados refletindo talvez a incapacidade das pessoas se
conhecerem de todo, permitindo quando muito o acesso à apenas uma parte
do outro: “Quando, enfim, com majestade, ela me estendeu a mão, coloquei
um joelho em terra e beijei-lhe o pé. Ela me compreendeu” 21. Mais tarde, tal
deleite por objetos ou partes isoladas do corpo será considerado uma patologia
sexual chamada de “fetichismo”.
Tanta subserviência com as mulheres pode levar a um possível
questionamento sobre a homossexualidade de Masoch. Na verdade, seja no
livro da “Vênus” ou em sua vida particular, existe a procura por um homem
também rude e dominador - o “Grego” - que ao lado da “senhora”, seria a fonte
18 Idem, Ibidem, pág. 191 19 Idem, Ibidem, pág. 269 20 Idem, Ibidem, pág. 294 21 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 159
34
do mais terrível tormento moral: a traição: “Haverá para o amante crueldade
maior do que a infidelidade da amada?” 22.
A causa do encanto do Grego era sua aparência andrógina, uma alma
femininamente masculina em um corpo de macho, e toda a possível dor que
uma traição por parte de Wanda com alguém tão cruel quanto ela poderia
causar. Séverin não procurava uma relação genital homossexual, mas sim a
humilhação de ver a pessoa amada entregar-se a outro sem pudores: “Nada é
mais sedutor para um homem que a imagem de uma linda déspota voluptuosa
e cruel que, sem razão de ser, troca descaradamente de favorito segundo seu
humor” 23.
Mas no livro, quando o desejo de Séverin se realiza e Wanda após
amarrá-lo permite que o Grego o chicoteie, o encanto se desfaz. Ele acaba
considerando-se realmente enganado por sua amada. Após este episódio os
dois separam-se e Séverin “cura-se”, tornando-se um dominador: “O
tratamento foi cruel e radical, mas o principal é que agora estou curado” 24.
É curioso que, ao alcançar o seu limite, a personagem desista daquela
forma de prazer e assuma uma postura moralista. Ele estava “doente”, mas
encontra a cura justamente ao tornar-se um tirano sobre as mulheres.
Um forte caráter místico também é encontrado em suas obras. Desde a
religiosidade e superstições do povo até o apelo quase religioso da figura
feminina, o sentimento do sobrenatural e desconhecido é patente.
Principalmente a mística em torno do feminino. Daí as deusas, as Vênus e
entidades malignas que, com seu mistério e encanto, seduzem o homem como
sereias, ou segundo Bernard Michel, como a terrível Letawiza dos contos
rutenos: “Essa mulher é um demônio” 25, ou “Sua beleza era a de um
vampiro”26.
A mulher no esplendor de crueldade e frieza perde a característica
cotidiana deixando transparecer algo maior que ela mesma. Mas este
sentimento não é o de uma religiosidade cristã, embora em alguns momentos
22 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 149 23 Idem, Ibidem, pág. 151 24 Idem, Ibidem, pág. 300 25 Idem, Ibidem, pág. 270 26 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 165
35
ela seja evocada: “É que meus sentidos se acalmavam, tranqüilizados pelo
sentimento religioso que me invadia. Eu tinha a impressão que extasiando-me
diante de todas aquelas perfeições, eu me extasiava diante de um templo.
Parecia-me que de seu corpo escapavam um clarão divino, um perfume
celestial, mais puro e mais santo do que o incenso” 27. Sacher-Masoch possui
um anticlericalismo radical e o que procura transmitir em seus escritos é mais a
atmosfera de uma celebração pagã. A intensidade do ambiente da cena é o
importante, não a fé.
Por isso os ritos também possuem um traço marcante. A forma teatral
que reveste toda a seção de tortura e sofrimento em Masoch, será carregada
do ambiente de mistério e completa submissão ao outro - incluindo aqui todos
os acessórios e “fetiches” já citados acima. O espetáculo vira uma cerimônia:
“Ela tira um pequeno punhal da sua bainha. Fico apavorado vendo o brilho da
lâmina; penso realmente que vai me matar. Mas ela ri e corta as cordas que
me atam” 28.
A flagelação recebida pelo escravo tem quase o mesmo tom de uma
penitência ou purificação. Ser subjugado por uma mulher poderosa e cruel é
um rito sagrado exigindo tudo que lhe é próprio: submissão, humildade,
seriedade, silêncio, resignação e entrega.
A espera é fundamental para os escravos de Masoch. Eles estão
eternamente na expectativa de cumprir uma ordem ou receber um castigo. O
tempo é suspenso e paralisado. O prazer não está em obedecer ou sofrer uma
agressão, mas na espera que antecede a estes fatos. A dor sentida torna-se
apenas consequência do prazer da espera. Mesmo durante os castigos
corporais, é a atenção da dominadora estendida ao escravo que lhe faz
aguentar a tortura: “mas o sofrimento me arrebatava porque provinha dela, da
adorada” 29. A dor é muito mais suportável do que prazerosa. Sem a
humilhação moral, somente com a flagelação física, a vítima não aguentaria e
“desistiria” de sua dominadora.
No momento em que o tempo não interfere mais, o escravo pode dar
asas à imaginação e saborear a delícia da entrega completa, pois todo seu ser
27 Idem, Ibidem, pág. 159 28 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 256 29 Idem, Ibidem, pág. 200
36
é obrigado a aguardar ansiosamente o chamado da senhora, devendo este ser
atendido imediatamente. Assim, como bem mostrou Gilles Deleuze30, a noção
de suspensão é tão importante que muitas vezes chega a ser literal, com o
escravo tendo seu corpo amarrado e levantado das mais diversas formas.
Mas a dominadora necessita ser educada e treinada para tal. Isso fica
claro em “A Vênus das Peles”, onde a mulher ideal, Wanda, não quer ser o
carrasco de Séverin: “(...) seu olhar adquiriu um ar sombrio, até selvagem, e
me desferiu uma chicotada. Quase instantaneamente passou o seu braço em
volta do meu pescoço com delicadeza e inclinou-se compassiva para mim. - Eu
te machuquei? - perguntou-me entre confusa e cheia de angústia” 31. É ele
quem a convence a aceitar este papel e a ensina como deve maltratá-lo.
A vítima deve adestrar o carrasco pois quem manda no jogo é ela, em
uma completa inversão de papéis. A senhora deve obedecer as ordens do
escravo. A crueldade tem que estar à serviço dos desejos da vítima: “Castiga-
me - repliquei -, castiga-me, sem piedade” 32; e a vontade última é a dela: “O
lado cômico de minha situação é que posso fugir e não quero” 33.
Neste sentido, os contratos de Sacher-Masoch são exemplares.
Literalmente obrigando por escrito a submissão do escravo à sua dominadora,
também é uma forma de prender a dominadora ao escravo: “- Tenho que
assinar algum contrato? - Ainda não; quero assentar essa tua cláusula e
acrescentar data e lugar” 34. A formalização e materialização do compromisso
entre os dois é um demonstrativo do esforço da pedagogia que a vítima se
utiliza, e dá a esta os meios para cobrar os resultados desejados.
O prazer é uma reivindicação do escravo, não importando muito se o
dominador também o sente ou não. Na verdade, no texto da Vênus, Wanda
sente-se um tanto constrangida pelos desejos de Séverin, e os aceita mais
como favor do que por prazer. Quando esta começa a tomar gosto pela coisa,
30 DELEUZE, Gilles, Sade / Masoch, Assírio & Alvim. Não há informação sobre a cidade ou o ano da edição. - O trabalho de Gilles Deleuze com o título original de “Apresentação de Sacher-Masoch” também está nesta mesma edição da Vênus que estou utilizando (na verdade, é mais fácil encontrar esta edição por este título). 31 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 199 32 Idem, Ibidem, pág. 199 33 Idem, Ibidem, pág. 219 34 Idem, Ibidem, pág. 212
37
é seu escravo que se assusta e quer parar o jogo: “De uma só vez o rosto de
Wanda se transforma; parece transfigurado pela cólera e me parece por um
instante horrível” 35.
A vítima necessita de um torturador que a princípio não gosta de sua
função: “Mas não me causa nenhum prazer...” 36 diz Wanda. Alguém que
realmente tenha prazer como algoz não é o parceiro ideal. Ele não pode mais
ser educado. Não é ele que as personagens de Masoch procuram.
A mulher é o objeto a ser adorado e obedecido, mas como, quando e
até onde vai esta adoração quem decide é o escravo. Enquanto Wanda cria
tormentos e faz Séverin passar vergonhas dentro do que ele esperava, tudo
corre bem. Mas quando ela toma gosto e começa a testar os limites deste,
colocando inclusive um outro homem na relação, as coisas mudam de figura e
Séverin já não tem mais certeza do prazer sentido. Chega até mesmo a, no
final da novela, transformar-se de dominado a dominador ou, de “bigorna”
passa a ser “martelo”, em um desfecho que ironiza e põe em cheque toda a
teoria da submissão exposta no texto: “Fui um burro e me tornei escravo de
uma mulher, compreendes? Donde a moral da história: quem se deixa
chicotear merece ser chicoteado...” 37.
Sacher-Masoch, assim como Sade, também transmutou a sexualidade
humana em ars erotica. Do corpo humano - especialmente o feminino - à
relação sexual em si, tudo deve ter um novo encanto e se expressar como uma
obra de arte. Nada vale se não estiver envolto em uma névoa de beleza e não
for refinado por uma apurada estética: “Uma mulher bonita é para mim uma
obra de arte, por exemplo, um quadro que não ousamos tocar, do qual nem
ousamos nos aproximar, se não quisermos ver o efeito mágico desaparecer”38.
As formas das mulheres raramente são citadas pelo autor. O corpo envolto em
peles e outros adereços para lhe dar um novo encanto são preferíveis ao nu
explícito.
O autor chega ao extremo de dispensar quase que completamente a
relação genital propriamente dita do ato sexual. Ela tem uma importância
35 Idem, Ibidem, pág. 295 36 Idem, Ibidem, pág. 199 37 Idem, Ibidem, pág. 301
38
secundária, pois o clima, a espera e os sofrimentos físicos e morais são a
maior fonte da excitação e do prazer. Masoch evoca o homem “supra-sensual”,
ou seja, aquele que desenvolveu uma nova sensibilidade orgânica e estética, e
transformou o simples impulso sexual no requintado “amor sensual”.
Masoch possui uma obra vasta, quase desconhecida e muito pouco
estudada. Mas graças a um livro somente, seu nome entrou para a história.
Mais como sintoma de um “desvio” mental do que como literatura, é claro,
embora o texto da “Vênus” seja elemento obrigatório em qualquer biblioteca
erótica que exija o mínimo de qualidade.
Após este autor, ficamos mais conscientes do estranho prazer que nos
leva a estarmos eternamente esperando: um messias, uma sociedade perfeita,
um amante ideal... justificando até os mais cruéis sofrimentos que passamos,
oferecendo um certo sentido, talvez mesmo, um certo “prazer” nesta dor. Afinal
como bem explicou Etienne de La Boétie mais de 300 anos antes, sempre
existe um prazeroso desejo de poder por trás de nossa “servidão voluntária”.
Masoch nos demonstrou o quão erótico este pode ser: “Sinceramente quero
ser teu escravo; (...) Que prazer quando souber que dependo de teu capricho,
de teu gesto, de teus gostos” 39.
E desde então, a pergunta que Sacher-Masoch fez em carta para uma
admiradora ressoa em nossas consciências, provavelmente muito mais
constantemente do que gostaríamos de assumir: “Será que não lhe
proporcionaria um prazer demoníaco ter um homem totalmente à sua
disposição e maltratá-lo? Será que não há em sua natureza algo como a
crueldade e o despotismo?” 40, e nisso encontrarmos a “maior felicidade em ser
apenas seu escravo” 41.
38 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 149 39 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 210 40 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 261
42
“Estas anomalias cerebrais se enquadram no domínio da psicopatologia.
Elas podem ocorrer em várias combinações, e tornarem-se a causa de crimes
sexuais, motivo pela qual demandam consideração1.
O estudo científico da psicopatologia da vida sexual necessariamente lida com
as misérias do homem e o lado escuro da sua existência, a sombra que
contorce a sublime imagem da divindade em horrendas caricaturas,
desencaminhando o esteticismo e a moralidade.
Este é o triste privilégio da medicina, em especial da psiquiatria, para sempre
testemunha da fraqueza da natureza humana e do lado oposto da vida” 2
Ao mesmo tempo em que Sacher-Masoch escrevia seus romances, um
psiquiatra austríaco de nome Richard Von Krafft-Ebing3, fazia alguns dos
maiores avanços do século passado em uma das áreas mais controvertidas do
comportamento humano, a tão perseguida sexualidade “anormal”. Ajudou a
consolidar assim um dos conceitos mais importantes da subjetividade ocidental
e a reforçar um padrão de comportamento que dura, em maior ou menor grau,
até hoje: a perversão sexual.
Se nos séculos XVII e XVIII, os físicos e os químicos encarnavam a
figura ideal do homem de conhecimento, no século XIX esta imagem vai estar
associada ao médico. A batalha pelo monopólio da verdade entre religião e
ciência foi ganha por esta última, e toda a carga de autoridade moral que os
1 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, Londres, Velvet Publications, 1997, pág. 22 - Todas as citações contidas neste capítulo são retiradas desta edição, com exceção das de nº (3) e (41) que são da edição discriminada abaixo. 2 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, Nova York, Arcade Publishing,1998, pág. XXII 3 Sempre ouvi dizer que Krafft-Ebing fora o criador do termo “sadomasoquismo”, e preparei este capítulo com a intenção de estudar esta concepção. Utilizei duas edições do livro “Psychopathia Sexualis”, uma “completa” com todos os casos e análises (Arcade Publishing), e outra apenas com os casos (Velvet Publications). Para minha surpresa, na edição completa o termo “sadomasoquismo” não aparece nenhuma vez, embora na outra ele apareça uma única, mas acredito que colocado pelos editores para organizar a ordem das histórias do livro. As informações disponíveis sobre Krafft-Ebing são poucas e incompletas, sendo muito difícil encontrar um material melhor para pesquisa. Um exemplo é a “Encyclopedia of Psychology” de H. J. Eysenck (editor), que informa sobre o aparecimento do termo “sadomasoquismo” em 1907, usado pela primeira vez por Krafft-Ebing, ou a enciclopédia multimídia Grolier – 1993, com a mesma informação. Mas como se ele morreu em 1902 ?
43
padres e religiosos possuíam migrou para a figura do doutor. A alma já não era
mais o foco principal e a importância da “cura” deslocou-se desta para o
corpo4.
Com isso, estes foram sendo detalhadamente medicalizados, e as
pessoas convencidas a contarem seus detalhes mais íntimos, coisas que
muitas vezes nem os confessores ou os próprios cônjuges sabiam. Fazendo
esta ponte entre a obscura intimidade da carne e o positivismo iluminado da
scientia sexualis, estava a figura que agora era “não um estranho, mas um
doutor” 5. Um passo fundamental para o surgimento de uma das sociedades
mais medicalizadas da História.
Com o fim dos hospitais gerais no século XVIII, a figura do “louco”
precisa encontrar o seu lugar na nova ordem burguesa. Unida a ordem jurídica,
como se deveria enquadrar estes “seres perigosos”? Um vasto campo ainda
pouco explorado para o exercício das classificações e rótulos que os futuros
psiquiatras tanto vão se deliciar. Os loucos deixam de ser “criminosos” para
serem “doentes”, sendo o importante que a loucura continue a permanecer
presa, agora em asilos. A bíblica relação entre crime e loucura ainda se
exercia.
O discurso sexual médico era extremamente moralista, rígido e sexista.
O homem são: “não precisa ser excitado, pois durante os jogos amorosos com
a mulher fica espontâneamente no estado apto para a cópula” 6, e “Deve-se
sempre duvidar quando uma mulher diz ter sido possuida contra sua vontade.
É praticamente impossível praticar as relações sexuais com uma mulher que a
elas procura furtar-se” 7.
O biologismo reinava sobre as interpretações e o sexo deveria ser
preferencialmente para reprodução: “Eis aí todo o segredo da perversão sexual
em geral, que implica realmente em uma deficiência orgânica; em todos os
casos em que a potência normal fica diminuída, produz-se uma reação da
4 Sobre a medicalização da sexualidade e a ascensão da imagem do médico no ocidente, ver FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I - A Vontade de Saber, op. cit., e FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1988 5 Referência ao texto de Angus McLaren, ““Não um Estranho, um Doutor”: Médicos e Questões Sexuais no Fim do Século XIX” in PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, São Paulo, Unesp, 1997 6 KAHN, Fritz, A Nossa Vida Sexual, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1940, pág. 60. Correção ortográfica minha. 7 Idem, Ibidem, pág. 62
44
natureza (...) A perversão não passa de um estratagema (...) cujo único fim é a
perpetuação da espécie” 8. Mas apesar deste determinismo natural, a
constante das perversões era o prazer e não a procriação9.
Os “atos abomináveis” estavam em toda a parte, e os pais precisavam
orientar as crianças para evitar “contactos com tarados” 10. Estes infelizes,
além de tudo ainda possuíam “fraqueza de caráter. Com um pouco de firmeza,
é fácil lutar contra a maioria das tendências anormais” 11. Os epiléticos eram
alguns dos perversos favoritos como nos mostra o próprio Krafft-Ebing: “O
indivíduo afetado de loucura moral apresenta diversas formas epiléticas” 12, e
mesmo os tuberculosos poderiam ter adquirido a sua doença graças aos
excessos sexuais cometidos13.
Nascido em 1840 em Manheim, Krafft-Ebing foi um dos mais ativos
psiquiatras14 de sua época. Em 1864, trabalhou no asilo de Illenau. Foi
professor das universidades de Estrarburgo, Graz e Viena (desde 1889). Em
Graz, chegou para lecionar na nova cadeira de psiquiatria e neurologia criada
um ano antes, ficando de 1873 a 1889. Entre 1877 e 1880, ele e o escritor
Sacher-Masoch estavam vivendo nesta mesma cidade, mas não chegaram a
se conhecer pessoalmente.
É dele o mais importante livro alemão de psiquiatria forense15 de sua
época, escrito em 1879: Manual de Psicopatologia Forense. Nele o autor
expõe as exigências básicas da ciência psiquiátrica: uma linguagem clara e
inteligível; evitar hipóteses e discussões sem a devida base factual para
comprová-las e o registro destes fatos, que devem ser coletados correta e
seguramente, classificando-os de forma sintética.
8 BOURDON, J. R., Perversões Sexuais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, pág. 9 9 Inclusive alguns médicos defendiam a teoria de que por choques mecânicos ou químicos, o óvulo feminino poderia desenvolver-se em um ser humano normal, sem a necessidade do esperma. É o que crê o Dr. Egas Moniz da Universidade de Coimbra, também inventor de uma das mais terríveis técnicas de modificação de comportamentos “indesejados”: a lobotomia. MONIZ, Egas, A Vida Sexual - Pathologia, Lisboa, Ferreira & Oliveira, 1906 10 SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, São Paulo, Edições e Publicações Brasil Editôra S. A., 1958, pág. 8 11 BOURDON, J. R., Perversões Sexuais, op. cit., pág. 50 12 KRAFFT-EBING, Richard Von, La Responsabilita Criminale e La Capacità Civile, Nápolis, Carlo La Cava Editore, 1886, pág. 30 13 SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit. , pág. 111 14 Ou alienista, como eram comumentes chamados na época. 15 Referente ao Fórum, ou seja, uma psiquiatria judicial.
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Seus interesses eram variados e abrangiam desde a fisiologia
(condições neurológicas e orgânicas) e a psicologia (como os pensamentos
obsessivos e a hipnose) até o direito e a criminalística, originando desta área
os estudos sobre sexualidade que o iriam tornar referência ainda hoje em dia.
Ele foi o primeiro psiquiatra a estudar a fundo as perturbações
relacionadas à vida sexual. No início, estes trabalhos eram mais voltados a
contribuição para uma separação jurídica entre o “degenerado hereditário”, ou
“idiota congênito” que ao ter cometido um crime, não poderia sofrer as mesmas
penas e reclusões do criminoso “consciente” de seus atos, pois o primeiro era
“doente” enquanto que o último não. O próprio doutor nos avisa desta sutil
diferença entre a “perversão” - que é uma doença - e a “perversidade” - um
vício. No caso 216 (assassinato por luxúria) incluído em seu livro, após o
acusado ter sido condenado a internação permanente em um asilo, Krafft-
Ebing elogiou: “Através do infatigável esforço do bravo advogado de defesa, a
corte foi salva de cometer um assassinato jurídico e a honra da sociedade foi
sustentada” 16.
Os “desviados” deveriam, assim, ser tratados pela nova ciência que se
delineava, a psiquiatria - apesar de que muitos dos especialistas desta área
considerarem que a degeneração causadora da perversão, hereditária ou
“adquirida”, só poderia ser curada em raríssimos casos. A questão está bem
posta em uma carta escrita por um dos pacientes (caso 58/ masoquismo), que
perguntava se: “sua anormalidade era curável, se ele era um indigno como um
homem de vícios ou um inválido merecedor de piedade” 17.
Krafft-Ebing publicou então, em 1886, a primeira classificação médica
dos distúrbios sexuais: “Psichopathia sexualis”, que fez tanto sucesso que
recebeu muitas reedições, revistas e ampliadas, com novas análises e termos
sendo acrescentados com o tempo. O livro foi traduzido em várias línguas
desde então, sendo usado por psiquiatras e juristas como referência
obrigatória no estudo das perversões ainda atualmente, apesar de muitos dos
conceitos nele contidos já estarem ultrapassados e não mais em vigência, seja
na área psiquiátrica ou psicanalítica, seja na médica ou biológica. Com este
livro surge pela primeira vez o termo “masoquismo”.
16 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 231
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Ao mesmo tempo em que pessoas eram chamadas de “monstros” e
classificadas como “hermafroditas psíquicos”, “onanistas patológicos”, ou
“dementes epiléticos”, o livro recebia adjetivos como “magnífico” 18 dentro dos
círculos psiquiátricos19. Mas nem toda a sociedade o aceitou tão
entusiasticamente. Graças a proposta do fim das perseguições criminais a
algumas das “aberrações” sexuais descritas no livro - tais como o
comportamento homossexual consentido -, em 1892 a federação central das
ligas alemãs de pureza moral atacou esta obra e ajudou a manchar a
reputação do psiquiatra, que já estava em descrédito em muitos meios
médicos pelos mesmos motivos20.
Esta campanha afetou sua carreira até o final, vindo ele a morrer de
problemas cardíacos em 1902, um ano após escrever sua última monografia:
“Psychosis Menstrualis”, que pedia penas diferentes para mulheres
menstruadas, pois elas não estavam de posse de suas faculdades mentais
durante este período, sofrendo de um tipo de loucura momentânea.
“Psychopathia Sexualis” consiste de uma classificação das patologias
neuro e psicológicas das funções sexuais com considerações sobre estas,
entrecortadas pela narração de 238 casos coletados pelo autor, abrangendo
coprofilia, lesbianismo, delírio erótico, necrofilia, bestialidade, entre outros
“desvios”. As histórias apresentadas normalmente recebem um diagnóstico,
um comentário ou uma observação ao final.
Em vários dos casos, também aparecem receitas que demonstram
claramente não apenas o desconhecimento e a falta de tato para com as
recém-nascidas perversões, mas a total ausência de uma percepção das
necessidades e aflições dos “desajustados”. Os métodos de “cura”, visando a
volta à “normalidade” e a reintegração na sociedade “civilizada” 21, oscilam
17 Idem, Ibidem, pág. 63 18 “Não estamos a citar mais casos, apesar de se encontrarem ás dezenas em livros da especialidade, desde Coffignon (La Corruption à Paris) até ao magnífico tratado de Krafft-Ebing sobre perversões sexuais” – MONIZ, Egas, A Vida Sexual - Pathologia, op. cit., pág. 79 19 Embora quando o livro foi lançado, o próprio círculo médico ficou apreensivo, declarando sempre que era apenas para ser lido por profissionais e que seria melhor se estivesse escrito todo em latim. 20 Somente em 1974 a Associação Psiquiátrica Americana considerou oficialmente o homossexualismo como não patológico. 21 Embora, segundo o autor, “anomalias das funções sexuais são encontradas em especial nas raças civilizadas”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 17
47
entre banhos frios com cânfora (para diminuir a excitabilidade sexual e os
impulsos onanísticos - caso 31/ sadismo), hipnose, abstinência sexual (para
diminuir o desejo perverso e prevenir contra a masturbação e suas
conseqüências malignas) até o esforço em manter relações sexuais “normais” -
inclusive com mulheres, para resolver o “problema” do homossexualismo22.
O livro mostra o quanto a psiquiatria tentava firmar sua ainda recente
base sobre um terreno desconhecido. As teorias de degenerescência
hereditária vindas de uma medicina racista e horrorizada ante os “excessos da
civilização”, servem como pano de fundo para esta obra, mas a importância
dos dados psicológicos dos casos narrados é clara e aumentava em cada nova
reedição. Em vários momentos do texto o doutor usou passagens em latim
para deixar de maneira menos explícita as “horríveis abominações” que ele
descrevia, e tentar evitar com isso chocar as almas mais sensíveis23.
A perversão poderia originar-se hereditariamente ou ser adquirida. Para
isto, bastava levar uma vida desregrada repleta de orgias, pensamentos
devassos, bebedeiras e/ ou entregar-se a terrível masturbação24. Por isso em
quase todos os casos existe o histórico-perverso do protagonista e sua família,
com uma descrição de seu corpo: “Mr. X., vinte e cinco anos, pai sifilítico,
22 A ciência de uma sociedade sempre reflete os valores desta, sofrendo as mesmas modificações de tempo e espaço a que ela está sujeita. Assim, por mais simplórios e não comprovados que fossem estes métodos para os dias de hoje, na época eram a ciência de ponta, e doutores como Krafft-Ebing prosseguiam seus trabalhos incentivados inclusive, por pessoas do povo que atestavam a veracidade das teorias e a capacidade de cura através das técnicas sugeridas. Um exemplo é o caso 72 (fetichismo - masoquismo), onde o homem citado diz que após ler “Psychopathia Sexualis”, encontrou o caminho certo para remediar seu defeito, tornando-se completamente curado - embora “de vez em quando fracas imagens masoquistas aparecem sem, entretanto, deixar nenhuma impressão em sua mente”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 74 Felizmente em alguns casos, o paciente encontrava um parceiro que ou aceitava ou compartilhava de suas taras, passando a ter assim uma vida mais “sadia” - ou cínica como queria o doutor - conforme vemos neste “final feliz” (caso 82 fetichismo/ masoquismo/ coprolagnia): “O fim desta cínica existência sexual foi um casamento - depois sua senhora abandonando-o - com uma mulher que possuía as mesmas inclinações perversas que ele. Eles tiveram filhos, mas a gratificação sexual só era encontrada no ato masoquista”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 82 23 Embora não tenha conseguido alcançar este “nobre” objetivo, e muito da vendagem do livro deveu-se justamente por ser ele a maior compilação já feita até então das mais criativas e bizarras histórias de sexo, fazendo mais sucesso que muitos livros ditos “pornográficos”. 24 A perseguição aos masturbadores que alcançou seu auge na virada do século passado para este, envolvendo educadores, religiosos e familiares sendo liderados pelos cientistas, é comparável à que existe hoje em dia com relação aos fumantes e aos “gordos”, envolvendo os mesmos agentes sociais. Ser obeso hoje é quase sinônimo de preguiçoso e doente - existindo inclusive a classificação médica de obesidade “mórbida”. Todos os terríveis perigos que antes advinham dos “excessos sexuais”, agora surgem dos “excessos alimentares”.
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morreu de demência advinda de parestesia25 ; mãe histérica e neurastênica.
Ele era um indivíduo fraco, de constituição neuropática, e apresentava vários
signos anatômicos de degeneração” (caso 25/ sadismo)26. De um indivíduo
assim, não se poderia esperar muita coisa a não ser problemas. Ele já nascera
“doente” e deveria ser encaminhado a um asilo. A vida destes “infelizes” era
um “fardo”.
Mesmo em uma tentativa “científica” de classificar prazeres subjetivos,
algumas vezes nosso autor não escapa do velho preconceito das aparências.
Ao descrever um árabe com suas tatuagens (caso 217/ assassinato por
luxúria), conclui que: “Sua aparência geral deu a impressão de um baixo grau
de inteligência” 27.
Apesar de Krafft-Ebing considerar a importância das causas sociais no
comportamento “desviante”, estas só influenciavam quando se tratava da
perversão adquirida. Classes sociais estigmatizadas pela burguesia não tinham
a menor chance de “salvação”. Como disse outro doutor, são pessoas “da mais
baixa categoria social, (...) mendigas, prostitutas réles, (...) indivíduos abjetos,
carregadores, marinheiros e vagabundos” 28. Mesmo assim, no “Manual de
Psicopatologia Forense”, nosso autor reconhece que o fracasso na vida social
era uma das causas das doenças mentais.
Os dados da vida psíquica ganharam grande atenção, tendo sido
reconhecidas as influências dos fatos vividos durante a infância nos futuros
comportamentos adultos e a capacidade de substituição de uma relação
sexual genital por outra atividade - que mantinha o mesma carga de deleite
sensual - como ser “cavalgado” por outra pessoa (caso 58/ masoquismo) ou o
25 “Parestesia: desordem na sensibilidade, caracterizada por sensações anormais e alucinações sensoriais” - MATA MACHADO FILHO, Aires da, Novíssimo Dicionário Ilustrado Urupês, São Paulo, Age, 1976. No texto original de Krafft-Ebing: “paretic dementia” KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 40 26 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 40 27 Idem, Ibidem, pág. 232 28 SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit., pág. 131. - Se para Sade as prostitutas eram de fundamental importância para o sustento dos gostos libertinos, e para Masoch elas não apresentam interesse, na ciência do século XIX, elas eram o exemplo mais bem terminado de degenerescência nata. Após expor que a prostituição é um fato “monstruoso, incomprehensível e degradante”, e afirmar “Ha prostitutas de raça e ha também prostitutas que encontram a sua origem nos vícios da sociedade. Mas não devemos ligar-nos apenas a esta última escola, como muitos desejam”, o Dr. Egas Moniz chega a seguinte conclusão: “As estatísticas e os fatos parecem demonstrar que ha prostitutas-natas, como ha criminosos-natos”. MONIZ, Egas, A Vida Sexual - Pathologia, op. cit., pág. 46 As prostitutas são talvez o bode expiatório predileto da sociedade burguesa.
49
assassinato e mutilação do cadáver - no breve caso de Jack, o Estripador (de
nº 17/ assassinato por luxúria).
Outra contribuição foi a ampliação do termo “fetichismo”. Antes dele,
esta expressão era usada para designar um tipo de adoração religiosa de
objetos sagrados. Esta concepção era carregada de uma crença na magia, e
claro, apesar da tentativa de ser um termo científico - vindo da antropologia -
normalmente era usado com um sentido pejorativo.
O criminalista Cesare Lombroso empregou o termo na introdução de
“Psychopathia Sexualis” na Itália em 1889. No mesmo ano sai a quarta edição
do livro, agora pela primeira vez com o termo “fetichismo”, afirmando Krafft-
Ebing que se baseou no texto de Lombroso para criar esta nova categoria.
Agora a expressão significava a adoração de caráter sexual para com
objetos ou partes do corpo da pessoa desejada - embora não tenha perdido o
sentido negativo do termo. A explicação dele para o fetichismo era a do desejo
sexual não realizado, normalmente durante a infância e transferido para um
objeto ou parte do corpo da pessoa desejada. Mais tarde, o fetiche vai dividir-
se em patológico e fisiológico, e este segundo ganhará o status de ser a base
da atração afetiva entre duas pessoas e o sustentáculo do casamento29.
Também o impressionaram o grau de sofrimento das pessoas que lhe
escreviam contando suas perversões, e o quanto elas estavam mais próximas
dos “normais” do que se supunha até então.
Graças a esta percepção mais aguçada da psicologia envolvida em seus
relatos, Krafft-Ebing propositalmente não usou o termo “algolagnia” que estava
em voga em sua época para a intrigante relação prazer/ dor que aparecia em
muitos dos casos.
Algolagnia: expressão usada por alguns psiquiatras da época que
significava o prazer focado na dor, especialmente a física. Alguns médicos a
separavam em algolagnia ativa (prazer em causar dor) e passiva (prazer em
sentir dor). Krafft-Ebing a recusou porquê percebeu que muitos dos casos que
envolviam esta questão não tinham na sensação corporal o ingrediente
fundamental, e sim na atitude psicológica, especialmente nos casos “passivos”.
29 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit., pág. 260
50
Em 1834, na oitava edição do “Dicionário Universal de Boiste”, surge
pela primeira vez na literatura o termo “sadismo”, indicando a origem - “De
Sade, nome próprio” - e significando “Aberração horrível do deboche; sistema
monstruoso e anti-social que revolta a natureza”. Supõe-se que o termo já era
usado pelo menos desde o início do século XIX, pois o dicionário ainda inclui a
observação “em uso”.
Talvez este termo desaparecesse se, na última década do século, o
doutor Lacassagne não o utilizasse em seus tratados de medicina legal. Krafft-
Ebing, aproveitando-se de uma expressão tão significativa para classificar atos
“abomináveis”, e já testada na linguagem médica por um colega da área, a
adotou e a empregou pela primeira vez em 1891 na sexta edição de
“Psychopathia Sexualis”.
Assim, este termo não era mais uma expressão “comum”, referente à
uma obra literária ou a um sistema filosófico já extinto. “Sadismo” passou a ser
uma patologia, e ganhou o status de ser a primeira das quatro categorias de
desvios do instinto sexual. Dentro dele, várias perversões poderiam ser
encaixadas, como o “assassinato por luxúria” ou a “violação de mulheres”.
O libertinismo decidido do Marquês transformou-se no sadismo doente
de Krafft-Ebing. A fama de Sade não havia sido até então abalada, e prova
disso é que Krafft-Ebing não reconheceu nele um escritor, apenas “um caso
clínico” 30.
Mas nosso doutor recebia informações de inúmeros casos de “anormais”
que sentiam imenso prazer em serem açoitados ou humilhados por alguém,
embora o elemento determinante do deleite não era a dor física, mas sim o
estado de espírito em que a pessoa se encontrava. Quando não havia toda
uma cena criada pela pessoa, o prazer não acontecia. Muitas vezes até, a
sensação erótica estava apenas na imaginação, sendo que quando o desejo
se concretizava, as únicas coisas sentidas eram uma dor desagradável,
30 No início de nosso século, quando se publica pela primeira vez “Os 120 dias de Sodoma”, que Sade julgava perdidos, é sob a justificativa de “importância científica... para médicos, juristas e antropólogos” notando-se “analogias espantosas” entre os casos clínicos de Krafft-Ebing e os “casos” contidos no livro. Entre 1931 e 1935, Maurice Heine publica o que se considera a edição original da obra e diz: “Trata-se de um documento singular, bem como do primeiro esforço (...) para classificar as anomalias sexuais”. SADE, D. A. F., Os 120 Dias de Sodoma, op. cit. pág. 11. Nossa scientia sexualis parece não conceber o que seja ars erotica.
51
vergonha e incômodo: “Ele logo reconheceu o fato de que o estímulo procedia
da idéia de estar em poder de uma mulher mais do que do ato de violência em
si” 31 (caso 60/ masoquismo).
Muitos psiquiatras aderiram ao termo “sadismo” como substituto para a
algolagnia ativa, mas não havia um termo que ocupasse o lugar da passiva.
Alguns médicos a chamavam de “erotomania”: “Os sadistas estão em um polo
justamente oposto ao dos erotomanos” 32.
Foi justamente a importância dada por Krafft-Ebing à subjetividade das
perversões, que o fez procurar um novo termo para este “estranho prazer”.
Segundo Renate Hauser33, foi um correspondente de Berlim, que lhe enviava
cartas contando seus desejos em ser dominado por uma mulher e sua
admiração pelos escritos de Sacher-Masoch, que sugeriu-lhe o termo
“masoquismo”.
Não é sabido se o doutor já havia tido contato com os livros de Masoch
antes deste período, e talvez ele tenha colhido algumas informações sobre o
autor de “Dom Juan de Kolomea” nos círculos sociais de Graz, mas o fato é
que em 189034 uma nova edição de “Psychopathia Sexualis” aparece com o
seguinte texto: “Essas perversões da vida sexual podem ser chamadas de
masoquismo, pois o famoso romancista Sacher-Masoch, em vários romances e
principalmente no seu célebre A Vênus das Peles, fez desse tipo especial de
perversão o tema predileto de seus escritos” 35. Desta forma, a base da
escolha do termo foi a influência psicológica, e não mais o comportamento
objetivo como até então.
O nome de Masoch foi marcado de tal modo que, com o crescente
número de médicos psiquiatras e a febre da caça impiedosa às perversões -
31 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 64 32 CASTRO, Viveiros de, Attentados ao Pudor, Rio de Janeiro, Domingos de Magalhães Editor, 1895, pág. 97. Correção ortográfica minha. O termo “erotomania” foi criado em 1848 por Sir Alexander Morrison para designar o delírio de insanidade amorosa, que diferencia-se da comum devoção à pessoa amada ou da “melancolia do amor”. GORDON, Richard, A Assustadora História do Sexo, Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, pág. 168 33 Em seu estudo “Compreensão Psicológica do Comportamento Sexual por Krafft-Ebing”, in Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. 34 Curiosamente, o termo “masoquismo” surge no livro Psycopathia Sexualis antes do termo “sadismo”, que só irá aparecer na edição de 1891. 35 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 7
52
contando com a ajuda do livro autobiográfico de Wanda - as lendas a respeito
da vida do escritor começaram a se reproduzir nos livros “científicos” 36.
Toda a sensibilidade e emotividades do Cavaleiro de Sacher-Masoch
não seriam mais que uma “aberração do instinto genésico”. Surgiu então mais
uma nova categoria de patologia sexual.
Apesar de Krafft-Ebing ter afirmado que ele era “um honorável escritor
lido em toda Europa“, o uso do nome de alguém, sem o consentimento deste37,
para designar não apenas uma doença, mas algo que oscilava entre a
patologia e o desregramento moral, transformaram a figura do autor da Vênus,
de um escritor honrado e aplaudido para nada mais que um “degenerado”.
A classificação contida no “Psychopathia Sexualis” é a seguinte:
As neuroses sexuais podem ser:
- periféricas: que dividem-se em sensórias, secretórias ou motoras;
- espinhais: afecções do centro eretor e afecções do centro ejaculatório;
- cerebrais: paradoxia (excitação sexual independente do processo fisiológico
dos órgãos de reprodução); anestesia (falta de instinto sexual); hiperestesia
(excesso de instinto sexual) e paraestesia (a perversão propriamente dita).
São as paraestesias que nos interessam. Krafft-Ebing as explica como:
“perversão do instinto sexual, isto é, excitabilidade das funções sexuais por
estímulos inadequados” 38. Elas subdividem-se em:
a - Sadismo
b - Masoquismo
c - Fetichismo
d - Antipatia Sexual
O fetichismo, apesar de estar classificado como um item separado, é
reconhecido pelo próprio doutor como parte integrante do masoquismo. A
antipatia sexual engloba o homossexualismo e todas as suas variantes e
36 Um exemplo é o livro “A Flagelação Sexual” do Dr. J. Schultze, que cita alguns dos “gostos depravados” do escritor. - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit. A estória de que Masoch morreu louco em um asilo devido aos excessos que cometera também é uma constante nestes livros. 37 Apesar de receber reclamações de alguns seguidores deste, e por isso ver-se obrigado a justificar a sua escolha no texto do Psychopathia, foi com orgulho que o doutor viu o termo disseminar-se rapidamente. Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. pág. 256. Seria este um caso perverso de “assassinato de honra por luxúria”, “violação de nome” ou simples “sadismo simbólico”? 38 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 20
53
derivadas, como o a androginia e o hermafroditismo. O sadismo e o
masoquismo serão mais detalhados a seguir.
- Sadismo: “Consiste na associação entre luxúria e crueldade, que é indicada
na consciência fisiológica, tornando-se fortemente marcada em uma base
psíquica degenerada, sendo esse impulso luxurioso acoplado ao aparecimento
de ataques de crueldade em níveis poderosos de afetação. Isto gera uma força
que procura materializar estas práticas fantasiosas, que quando completada
pela hiperestesia aparece como uma complicação, ou inibição moral
imediatamente apresentada perante alguém” 39.
O sádico pode ser psíquica ou espinhalmente:
Potente: nesses casos os impulsos são voltados diretamente para o coito,
unidos aos maus-tratos ou até o assassinato do parceiro. Quando isto ocorre,
é porquê o impulso sádico não foi satisfeito com a consumação do ato sexual.
Impotente: procura equivalentes para o coito, tais como estrangulamentos,
esfaqueamentos, flagelação ou situações maldosas e humilhantes para com
outras pessoas, especialmente subordinados como aprendizes ou recrutas,
configurando assim o sadismo simbólico.
43 casos são classificados como “sadismo”, incluindo os “simbólicos”,
“com objetos”, “com animais”, “idealizados”, “inconscientes”, “em mulheres” e
suas subdivisões: “assassinato por luxúria”, “mutilação de cadáveres”,
“ferimentos em mulheres” e “violação de mulheres”. Destes, 41 são
protagonizados por homens e apenas 2 por mulheres, sendo estes
considerados itens à parte.
“Sadismo” para Krafft-Ebing é quando a pessoa sente prazer sexual em
ferir alguém, seja através de cortes, beliscões, flagelação ou mordidas. Em
vários destes casos, a visão do sangue é fundamental, e a vítima é apenas
ferida, muitas vezes superficialmente. Em muitos deles, o objetivo não é tanto
a dor do outro, e sim apenas o sentir do sangue escorrendo.
Quando ocorre a morte intencional da vítima o doutor classifica o caso
como “assassinato por luxúria” - este seria um caso de sadismo levado aos
39 Idem, Ibidem, pág. 20
54
extremos. Nos casos em que o prazer está ligado aos excrementos ou a
destruição de roupas femininas, configura-se a “violação de mulheres”.
- Masoquismo: “É a contrapartida do sadismo na medida em que deriva do
prazer extremo dos atos de violência desgovernados nas mãos do consorte.
Ele origina-se do impulso de criar uma situação por meios de força física
externa, de acordo com o estágio de potência psíquica e espinhal do indivíduo,
como meios preparatórios e concomitantes para experimentar a voluptuosa
sensação do coito, para incrementá-lo ou fazê-lo de substituto da coabitação.
Na proporção direta com a intensidade do instinto perverso e o poder
remanescente dos motivos subsidiários da moral e da estética formando uma
série dos atos mais odiosos e monstruosos aos mais grotescos e absurdos” 40.
Encontram-se no livro 37 casos de masoquismo - incluindo o
“idealizado”, “simbólico”, sua relação com a flagelação passiva e as junções
com outras perversões como “masoquismo latente - fetichista” e “masoquismo
latente - coprolagnia” - sendo 33 “doentes” homens e 4 mulheres. Um derivado
desta perversão é a “escravidão sexual”, com apenas 2 casos: um masculino e
outro feminino.
“Masoquismo” para o doutor, são os casos em que a pessoa sente o
desejo de ser flagelada e/ ou humilhada, sendo que na quase totalidade dos
casos: “a flagelação era auxiliar, e a idéia de submissão aos desejos de uma
mulher era a coisa importante” 41. Inclusive, existem várias passagens em que,
quando o sonho de ser fustigado é posto em prática, todo o encanto é perdido,
e o prazer some imediatamente.
Ele ressalta também a influência do fetichismo dentro do masoquismo, e
como estas duas perversões influenciam-se, apesar dele as classificar como
distintas. A importância das mãos, pés, sandálias e chicotes - entre outras
coisas - para a cena masoquista, é mencionada várias vezes durante o texto
do Psycophathia.
A coprolagnia era considerada uma ramificação do masoquismo, e para
o doutor ela englobaria desde o sexo oral, até a ingestão de fezes e urina.
Interpretava-se o desejo por cunnilingus ou fellatio como ânsia por ser
40 Idem, Ibidem, pág. 21
55
humilhado, afinal, a pessoa estava com a boca nas partes mais “sujas” do
corpo.
A “escravidão sexual” era vista como o aumento exagerado do desejo
de posse e da resposta passiva do parceiro. Ela estaria mais no limite da
normalidade do que no campo da perversão. O próprio doutor diz que, na
escravidão sexual, o controle do impulso sexual pela vontade é uma questão
de grau, enquanto no masoquismo é de qualidade. Ela teria como origem o
amor associado a uma vontade fraca, e não seria uma perversão em si
mesma. Na escravidão sexual a tirania é o meio para um fim, enquanto no
masoquismo ela é um fim em si mesma.
Para Krafft-Ebing, o sadismo seria uma forma extrema - e patológica -
da tendência masculina à dominação e a agressividade, enquanto o
masoquismo seria o extremo da submissão feminina. Ou seja, não eram
doenças como as outras, e sim o desvio ao excesso de comportamentos
normais, socialmente aceitáveis e necessários ao bom desenvolvimento da
civilização.
Acreditavam assim, que os casos mais comuns de sadismo ocorriam em
homens (como demonstravam os casos colhidos), e o masoquismo era mais
facilmente encontrado em mulheres, sendo o oposto muito raro de acontecer.
Mas não era isso que mostravam os relatos. Quase a totalidade dos casos de
masoquismo era de figuras masculinas, levando Krafft-Ebing a concluir que
esta “anomalia” era uma forma rudimentar de “antipatia sexual”, e que os
homens afetados eram “parcialmente efeminados” 42. Isso fazia com que estes
casos tivessem uma importância clínica maior que o sadismo e criava um
problema: se a vítima era voluntária, não ofereciam muitas chances de
processos legais, e assim, de enquadrá-las judicialmente.
Claro, em uma sociedade acostumada desde seus primórdios ao
estupro, à brutalidade física e moral, onde a “lei do mais forte” já era
comprovada pela ciência, o comportamento sádico só poderia ser qualificado
de doença dentro do quadro de um esforço médico para “normalizar” atitudes,
41 Idem, Ibidem, pág. 53 42 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, Nova York, Arcade Publishing,1998, pág. 139
56
pensamentos e desejos43. Krafft-Ebing mesmo diz que a norma da civilização
seria a conquista da fêmea pelo macho, variando apenas as técnicas - do
porrete na cabeça ao galanteio44 - e a mulher seria feliz em sua condição
inferior, inclusive por uma necessidade fisiológica - a gravidez e sustento da
prole. Uma das poucas masoquistas citadas no livro (caso 84/ masoquismo),
ao falar de seu prazer em ser uma “escrava” de seu marido, completa: “mas
isto não é suficiente, afinal de contas toda mulher pode ser a escrava de seu
marido” 45.
Frente a esta verdade tão óbvia quanto universal e antiga, era
“indubitavelmente patológico o homem procurar seu prazer sexual maltratando
a mulher e deleitar-se na posição do conquistado, e não na do vitorioso” 46. O
que realmente intrigava era o fato de homens apresentarem comportamentos -
e traços psíquicos - extremados de mulheres. Isto era patológico, sem a menor
sombra de dúvida, e que para desgraça da civilização ocidental, estava cada
mais se expandindo, como diz um dos correspondentes: “de acordo com minha
experiência, o número de masoquistas, especialmente nas grandes cidades,
parece ser enorme” 47.
Uma tentativa de explicação para este fenômeno foi esboçada pelo
próprio Krafft-Ebing, afirmando que a partir da Idade Média, com o surgimento
do amor cortês, formou-se um “culto as mulheres” que perpetuou-se no tempo,
atingindo até os dias atuais, mas esta teoria logo foi abandonada.
A relação masoquismo/ homossexualismo também foi objeto de
discussões, pois o masoquista era um tipo de “afeminado”, e muitos
homossexuais apresentavam traços masoquistas, mas a questão continuou
sem “solução”.
No caso 67 (masoquismo idealizado), o paciente é classificado como
masoquista idealizador, com sadismo rudimentar. Os dois conceitos aparecem
pela primeira vez em um só homem, embora a porção sádica seja inferior a
outra.
43 Por isso os psiquiatras deleitam-se tento em classificar nos seus livros personagens históricas como Nero ou Gilles de Rays. Desta forma também, a scientia sexualis teve o prazer de classificar como masoquistas Santa Teresa D’Ávila e Rousseau. 44 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. pág. 250 45 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 82 46 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. pág. 250. 47 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 61
57
O termo “sado-masoquismo” só aparece uma vez, e apenas no livro da
editora Velvet, unido a fetichismo (caso 74). Ele exemplifica a história de um
homem que possui traços altamente fetichistas, que gosta de imaginar cenas
de morte e agonia, tortura animais e gosta de ser pisado por mulheres. O
sadismo e o masoquismo estão presentes, mas o estímulo por trás deles é
claro no texto: lindos sapatos femininos, que machucam com sua pisada tanto
a outros quanto a ele mesmo.
A palavra é escrita com hífen separando os dois conceitos, talvez
mostrando que, até então, sadismo e masoquismo eram práticas distintas.
Inclusive, o paciente do caso 57 (masoquismo idealizado), explica muito bem
as diferenças de sensibilidade do prazer para um sádico e um masoquista, na
mesma situação: “existem homens que chicoteiam-se a si mesmos
simplesmente para incrementar seu prazer sexual. Nota-se nisto, em contraste
com os verdadeiros masoquistas, que a flagelação é um meio para um fim” 48.
Possivelmente o conceito de algolagnia tenha influenciado na
concepção da união “sadismo-masoquismo”, por significar uma mesma
unidade que é dividida em ativa e passiva. Afinal, a idéia de comportamentos
opostos e complementares já direcionava o pensamento de Krafft-Ebing antes
mesmo da escolha de novos nomes para designá-los49.
Mas a complementaridade deles era apenas conceitual, pois eram
intrinsecamente diferentes, com o sadismo configurando-se como uma
patologia e o masoquismo outra, estando longe da concepção de uma
unidade. O “sado-masoquista” do caso 74 era apenas um coitado que teve a
infelicidade de ter as duas “doenças” ao mesmo tempo.
Os diagnósticos eram feitos tendo por base uma análise simplória dos
comportamentos, e a concepção formada era: alguém pratica atos cruéis sobre
outro alguém; um está na posição ativa; outro na passiva. Se o que bate sente
prazer nisso, é sádico. Inversamente, quando o outro sente prazer, é
masoquista. Qualquer interpretação mais psicológica, que levasse em conta a
subjetividade capacitadora deste prazer não ultrapassava este limite.
48 Idem, Ibidem, pág. 61 49 Ele não partira da obra de Sade ou de Masoch para criar seus termos, apenas uniu as concepções médicas que tinha ao nome dos escritores, por considerar talvez, que eles exemplificassem perfeitamente as atitudes estudadas. E estas concepções estavam em perfeita harmonia com a raiz dualista da cultura ocidental: bem/ mal; amor/ ódio; dia/ noite; corpo/ mente; homem/ mulher; sádico/ masoquista.
58
A comparação dos perversos de Krafft-Ebing com as personagens
literárias de Sade e Masoch, nos mostra que realmente, muito dos
masoquistas do doutor poderiam ter saído de um conto do autor da Vênus.
Mas os sádicos estão muito longe dos verdadeiros libertinos.
Por viverem no mesmo período histórico, com a burguesia já assentada
no poder e exercendo amplamente seu domínio no campo das idéias, Masoch
pode dialogar melhor com o projeto de “normalização” que estava em
andamento. Muitos perversos citam os livros deste e sonham com uma “mulher
como as heroínas dos romances de Sacher-Masoch” 50.
Mas Sade pertence a uma outra sensibilidade, a uma outra visão de
mundo. Se para este, a razão e a filosofia eram a garantia da vida plena e
liberta, no fim do século XIX, “a arte de viver é não só uma alegria como
também uma medicina” 51.
Os sádicos citados no livro não têm uma base filosófica que sustente os
crimes que cometem. Várias vezes eles afirmam que sentem prazer em tais
atos, mas não sabem porquê o praticam. São levados por impulsos “mórbidos”
e não vontades esclarecidas.
Muitos apenas idealizam as crueldades. Ora, Sade prezava a ação, e a
imaginação só tinha sentido para ele na medida em que servia para aumentar
a criatividade dos atos que deveriam ser realizados. Nos casos do doutor, o
ânus não é intencionalmente adorado e as mortes não ocorrem por diversão -
apesar do prazer. E ainda, alguns sentem culpa após satisfeita a luxúria. Sem
dúvida, não são os libertinos de Sade, nem “adeptos do crime”. Estes não
existem mais - nem em literatura. Que injustiça com o nome de Sade! Estão
em cena apenas os “doentes” burgueses.
Krafft-Ebing teve o privilégio de abrir o caminho para novas
interpretações das tão estudadas - ou desejadas - perversões sexuais,
lembrando que na relação médico-paciente, quem dá as cartas - e cria os
termos - é sempre o doutor, e que “os psiquiatras sempre provêm do bando
50 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 70 51 Como nos diz, nos anos quarenta do século XX esta frase de um médico. KAHN, Fritz, A Nossa Vida Sexual, op. cit. pág. 172
59
dos sãos, os doentes mentais nunca produzem o seu próprio psiquiatra ou,
pelo menos, a sociedade nunca lhes outorgou o título” 52.
52 Texto de Nicolás Caparrós in OBIOLS, Juan, Psiquiatria e Antipsiquiatria, Rio de Janeiro, Salvat, 1979, pág. 106
62
“O sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já
que o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às
características universais da vida sexual” 1
“A perversão não mais é um fato isolado na vida sexual da criança, mas
encontra o seu lugar entre os processos típicos, para não dizer normais, do
desenvolvimento que nos são familiares”2
I
Ainda no século XIX, quando a psiquiatria estava firmando suas bases,
surgiu de dentro desta própria ciência um dos mais originais e curiosos
pensadores de nossa cultura. O século vinte, gostando ou não, deverá muito
de sua história a este homem.
Sigmund Freud nasceu na Morávia em 1856, mudando-se para Viena
logo aos três anos de idade, onde passou quase toda a sua vida. Nesta
cidade, estudou medicina e aprofundou-se no campo da neuropatologia. Por
ter origem judaica, sofreu discriminações dentro do mundo científico e
acadêmico. Interessou-se pelos estudos de Jean Charcot que tratava de
histéricas utilizando-se da hipnose, indo estudar com este em Paris no ano de
1885.
A histeria caracterizava-se por ser uma doença com efeitos físicos
claros - como cegueira ou paralisia de determinados membros - mas sem
causas orgânicas detectáveis. Era considerada uma doença tipicamente
feminina, como diz a tradução de seu nome: “doença do útero”. Sendo uma
enfermidade de mulheres, não recebia muitas atenções e era vista por vários
médicos como casos patológicos de “manha”. Charcot através da hipnose
conseguia que suas doentes lembrassem de fatos traumáticos que não eram
recordados quando em vigília, e ao receberem ordens de sumirem os
1 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, Rio de Janeiro, Imago Editora 2 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
63
problemas histéricos, estes desapareciam quando a pessoa voltava do transe
hipnótico. Para este doutor, a histeria indicava uma divisão da mente.
Logo após seus estudos com Charcot, Freud conheceu Joseph Breuer,
outro médico que tratava de histéricas e havia desenvolvido uma nova técnica
de tratamento: a catarse. Breuer acreditava que a histeria era resultado de
afetos retidos na mente por causa de traumas emocionais sofridos pelas
pacientes. Através da hipnose, a pessoa revivia o momento terrível esquecido,
liberando na forma de uma “explosão” emocional3 a energia psíquica retesada,
levando isto ao término dos problemas físicos. Mas, com o tempo os sintomas
voltavam. A hipnose funcionava mais como paliativo do que cura.
Através de uma paciente que não queria ser hipnotizada - a célebre
Anna O. - Freud percebeu poder chegar às lembranças traumáticas
esquecidas apenas deixando as doentes falarem o que lhes vinha a cabeça,
situação na qual uma idéia puxava a outra até chegar ao centro nervoso da
tensão histérica. Ele chamou esta técnica de “associação livre”. Neste
momento surge segundo o próprio autor, a “psicanálise”, que compreende este
novo procedimento de investigação dos processos mentais junto ao conjunto
de saberes ligado a estas pesquisas, e o método de tratamento daí derivado4.
Ao continuar o tratamento com outras pacientes, Freud notou que a
grande maioria delas diziam ter sido seduzidas por seus pais quando crianças.
Nada mais justificável para a origem dos problemas histéricos5. Ao realizar
3 A própria função da catarse como teorizou Aristóteles em sua Arte Poética. O curioso é que a catarse para este era o objetivo da tragédia grega, e com o cada vez maior subjetivismo do homem ocidental e a interiorização da explicação dos fenômenos que regem nossas vidas, a própria concepção de tragédia foi anulada em seu cerne. O que antes era o caminho de um homem ao encontro inevitável com o seu destino imutável, com o advento das ciências da psique (psicologia, psiquiatria, psicanálise) torna-se uma escolha interior, muitas vezes inconsciente: “a psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu (das pessoas) destino é, na maior parte, arranjado por elas próprias e determinado por influências infantis primitivas”. A vida humana já não é mais trágica no sentido grego; no máximo, com muito esforço, é um drama mal-assumido e mal-interpretado. A citação é de “Além do Princípio de Prazer” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 4 Tudo isso poderia ser analisado à luz do pensamento de Foucault, que em seu livro “História da Sexualidade I - A Vontade de Saber”, interpreta o método psicanalítico como uma versão atualizada da confissão (ou a associação livre dita para um ouvinte “iniciado”) que vai purgar nossa alma (ou psique) de seus pecados (ou traumas). 5 Os americanos que o digam, com a sua indústria de processos milionários de filhos acusando os pais por abuso sexual na infância, sendo muitos destes “fatos” descobertos por “terapeutas” das mais duvidosas formações, parecendo inclusive nunca terem lido Freud, como bem discute Carl Sagan em SAGAN, Carl, O Mundo Assombrado Pelos Demônios, São Paulo, Companhia das Letras, 1996
64
uma conferência na Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena em 1896,
e afirmar que a origem das causas histéricas deveria ser procurada nos abusos
sexuais da infância, o presidente da mesa, Richard Von Krafft-Ebing comentou
um tanto quanto descrente e indignado ao fim da exposição: “Soa como um
conto de fadas científico”.
Mas algo parecia errado: é claro que casos como este existiam, e com
consequências gravíssimas, mas na quantidade em que apareciam, estava
havendo uma epidemia de pais tarados por suas crianças! Ou então, as
pacientes haviam desejado aquele fato quando pequenas. Freud descobriu
então uma estrutura comum a todos aqueles casos: uma fantasia incestuosa.
Ora, mas se era a criança que desejava a sedução, isto dava sinal de uma
sexualidade já existente.
Para a psiquiatria da época, a idade natural e “normal” do desabrochar
das intenções sexuais era a puberdade. Krafft-Ebing relata no Psycopathia
Sexualis vários casos de sexualidade infantil, mas eles sustentavam um dos
argumentos da degenerescência dos perversos: “Na idade de cinco anos ele
pediu à pequenas garotas que o despissem e o espancassem em suas
nádegas nuas”6 (caso 60/ masoquismo). Para o século XIX, somente um
“louco” poderia se interessar tão precocemente pelos prazeres do corpo.
Freud passou a acreditar em uma universalidade deste desejo infantil
incestuoso inovando a visão de homem ao propor uma sexualidade nas
crianças. Esta seria não genitalizada e voltada para si mesma, pois não havia
ainda um objeto externo de seu desejo. Toda a satisfação física da criança,
como o mamar, seria acompanhada de um prazer. Foi este prazer conseguido
por todo o corpo e ainda não focado nos órgãos genitais que Freud chamou
sexualidade infantil.
Causando verdadeiro horror para a época, a partir deste momento os
limites entre os “doentes sexuais” e os sãos tornaram-se apenas uma questão
de grau de manifestação e capacidade de repressão, pois “tampouco a
predisposição às perversões é uma particularidade rara, mas deve, antes, fazer
6 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psycopathia Sexualis, Londres, Velvet Publications, 1997, pág. 64
65
parte da constituição que passa por normal” 7. Assim pensadas, as “aberrações
sexuais” conhecidas e estudadas nos adultos eram nada mais que uma
sexualidade que não havia se desenvolvido ou que havia regredido novamente
ao período infantil.
Aqui começam os problemas que Freud enfrentará com o mundo
científico e acadêmico: um jovem, de Viena - lugar de festas, valsas, não de
“ciência” - propõe erotizar anjos ingênuos e puros - as crianças! Mesmo
considerando a sexualidade infantil como algo polimorfo e ainda não
genitalizado, o choque foi intenso. As teorias deste homem se iniciaram
desviando, “pervertendo” o próprio caminho da psiquiatria. Ele começou então
a mudar o foco dos estudos psiquiátricos sempre tão voltados para os
“perversos”, e passou a analisar também os “normais”.
Em 1896 morreu seu pai, e Freud percebeu que estava tendo muitos
sonhos significativos com o período pelo qual passava. Começou então a dar
mais atenção aos eventos da vida psíquica até então relegados ao campo da
superstição, iniciando um processo de auto-análise que vai se estender por
quase toda a vida. Disto surge, em 1900 a publicação de “A Interpretação dos
Sonhos”. A partir de então, todos os homens, sejam “doentes” ou não, tem
uma vida psíquica dividida em consciente e inconsciente.
Os sonhos seriam manifestações dos desejos empurrados para o
inconsciente – reprimidos - que ao ter a vigilância exercida sobre eles
afrouxada durante o sono, poderiam vir à mente disfarçados, e assim, ao
menos em parte, realizarem-se. Mas o que eram estes desejos tão perigosos -
pois deviam ser reprimidos - e ao mesmo tempo tão insistentes - encontrando
brechas de se manifestar seja na vida cotidiana8, seja durante o sono?
Novamente, a sexualidade incestuosa!
Um apelo sexual intenso passava a comandar o comportamento não só
de todos, mas seus reflexos estavam em tudo. Como estes desejos surgiam
logo aos primeiros contatos do recém-nascido com a mãe, e durante o
7 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 8 Como Freud demonstra em Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901-1904). FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, Rio de Janeiro, Imago Editora
66
desenvolvimento da criança deveriam ser bloqueados pela figura do pai - que
alimentava na criança uma forte vontade de destruí-lo, Freud chamou a este
processo de “complexo de Édipo”9. Em troca de poder ter uma mulher própria
no futuro, o garoto não seduz a mãe nem assassina o pai, reprimindo o melhor
possível estas intenções. A passagem não bem resolvida por este complexo
seria a fonte das futuras neuroses e perversões.
Durante toda sua vida, Freud tentou decifrar o funcionamento da psique
humana, e embasou as análises feitas sempre sobre a clínica e/ ou os
acontecimentos de seu tempo. Apesar da reação inicial agressiva, a
psicanálise foi sendo aceita nos meios médicos com uma velocidade cada vez
maior, e em 1908 realizou-se o I Congresso internacional de Psiquiatria, com
membros de seis países. Em seguida ele viu a primeira Guerra Mundial e
percebeu com receio o surgimento da segunda, sendo inclusive obrigado em
1938 a partir para Inglaterra fugindo dos nazistas, que já haviam anos antes
(1933) queimado suas obras.
O tema da agressividade humana é algo que vai inquietá-lo durante toda
vida, seja no campo individual e erótico da relação dos sádicos ou
masoquistas, seja no social, com as guerras. Em 1930 ele reflete: “Sei que no
sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do
instinto destrutivo (dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao
erotismo, mas não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado
a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em
conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida” 10.
A partir de 1923 a saúde de Freud vai tornando-se cada vez mais frágil
com o surgimento de um câncer na região da boca e mandíbula. Depois de
trinta e três operações frustradas para deter a dor e a doença que se expandia,
veio a falecer em setembro de 1939, na Inglaterra.
II
9 Novamente a tragédia grega. Mas, se Édipo tivesse “complexo de Édipo”, não haveria tragédia. 10 “O Mal-Estar na Civilização” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
67
Em 1905, surgem os “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”,11
onde Freud afasta-se das concepções mais biológicas de “instinto” passando a
analisar o homem como possuidor de “pulsões”. Sendo ambos geneticamente
determinados, a diferença básica seria que o instinto é um comportamento
visando um objeto, enquanto as pulsões são impulsos biológicos mas sem um
objeto já programado. Elas dividem-se neste momento em “Pulsão de
Autopreservação” e “Pulsão Libidinal”, sendo esta segunda a fonte da
sexualidade.
No primeiro dos Três Ensaios intitulado “As Aberrações Sexuais”, Freud
recusou a visão degenerativa e biológica procurando explicações mais
psicológicas dos comportamentos sexuais “aberrantes” - sem contudo deixar
de ser influenciado pela época a qual pertencia, pois dentro deste estudo são
analisados também o sexo oral, anal e outras “impropriedades” 12. Desta
forma, continuam em destaque os “anormais da vida sexual que, em todos os
outros pontos, correspondem à média” 13, levando sempre em conta as
“insinceridades convencionais”14 das mulheres. As perversões não têm mais
uma origem genética, embora não deixem nunca de serem “perigosas”.
Os desvios em relação ao alvo sexual poderiam ser: a) Transgressões
anatômicas - ou seja, o sexo com/ em outras partes do corpo que não os
genitais; b) Demoras nos momentos precedentes ao ato sexual propriamente
dito. Aqui se enquadram o sadismo e o masoquismo, como: “Fixações de alvos
sexuais provisórios - Surgimento de novas intenções” 15.
Parece que a tentativa burguesa desesperada de normalização humana
passou - e muitas vezes ainda passa - como um trator sobre todas as
sutilezas, peculiaridades e particularidades da vida sexual. Se o discurso
11 Esta cronologia dos estudos sobre sadismo e masoquismo de Freud terá como base o estudo de Armando Colognese Jr. em COLOGNESE Jr, Armando, O Conceito de Sadismo e Masoquismo na Obra de Freud in Boletim, Publicação do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Spientiae, Ano V, Vol. V, Nº 1, São Paulo, 1996 12 Como o item: “Substituição Imprópria do Objeto Sexual - Fetichismo” ou a “transgressão anatômica” que é o sexo anal ou oral; in “As Aberrações Sexuais”. FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 13 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 14 Idem, Ibidem 15 Idem, Ibidem
68
oriental sobre sexo foi essencialmente o de uma Ars Erotica16, na qual os
prazeres devem ser aprendidos e apreendidos pela sensibilidade, com ênfase
nas preliminares, máximo estímulo de sensações (perfumes, músicas, carícias,
sabores, vestimentas, adereços), e o prazer em si mesmo visto como uma arte,
no Ocidente tudo isso ficou sob suspeita. Sexo para nós é ciência, razão e
sobretudo algo muito, muito sério. Na cultura ocidental não se “brinca em
serviço” 17. Embora nesta época qualquer demora em ir logo ao ato genital
fosse vista com desconfiança, Freud vai justamente questionar esta fase de
importância “secundária”, pondo em evidência toda a precariedade da idéia de
“normalidade” do ato sexual.
Quanto ao sadismo e ao masoquismo, já de partida ele assumiu que: “A
inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida, que são
as mais frequentes e significativas de todas as perversões, foram denominadas
por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de “sadismo” e “masoquismo”
(passivo)” 18. Os nomes destas “perversões” e a concepção de opostos
complementares foi aceita sem maiores questionamentos. Como para o autor
de Psycopathia Sexualis, Freud também considerava o sadismo como um
aumento patológico da agressividade natural masculina, sendo somente o
prazer condicionado exclusivamente pela “sujeição e maus-tratos”19
caracterizado como perversão.
O masoquismo por sua vez, era o sadismo do sujeito lançado a si
mesmo como objeto. O retorno do desejo de humilhar e agredir sobre a própria
pessoa causava o comportamento masoquista. Freud duvidava se este desejo
de sofrer dores e ser humilhado seria primário ou uma derivação do sadismo,
embora conclua neste trabalho: “(...) o esclarecimento desta perversão de
modo algum tem sido satisfatório (...)” 20.
As definições encontradas neste texto são: “o sadismo corresponderia a
um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual,
16 FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I - A Vontade de Saber, Op. Cit. 17 Toda a briga da psicanálise em seu início foi para ser aceita como “ciência”, assim merecedora de respeito, por mais cômico que pareça a primeira vista um texto intitulado “Caráter e erotismo Anal”. 18 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 19 Idem, Ibidem 20 Idem, Ibidem
69
movido por deslocamento para o lugar preponderante”; e “(...) masoquismo
abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a
mais extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao
padecimento de dor física ou anímica advinda do objeto sexual ”21.
Aqui também existe a concepção de atividade relacionada ao masculino
- sadismo - e passividade relacionado com o feminino. Mesmo adotando a
concepção das pulsões ao invés de instintos, a influência das idéias de base
genética utilizadas pela psiquiatria - como as noções de “atividade” e
“passividade” relacionadas aos sexos - ainda eram frequentes em sua obra.
Como Freud acreditava que o ser humano era psiquicamente bissexual, logo
ele também o era psiquicamente “ativo” ou “passivo”.
Daí surgiu talvez a grande contribuição do fundador da psicanálise
quanto aos estudos da perversão predileta do universo das ciências da psique.
Pela primeira vez, o sadismo e o masoquismo foram transformados em uma
unidade dentro de uma mesma pessoa. Agora, estes sintomas não eram mais
exclusividade de “doentes” nem encontrados em apenas uma de suas
expressões (ativa ou passiva) em cada indivíduo. Dentro de cada um, estavam
as duas facetas de uma só perversão: “A particularidade mais notável desta
perversão reside, porém, em que suas formas ativa e passiva costumam
encontrar-se juntas numa mesma pessoa” 22.
Se para Krafft-Ebing, o sujeito estava enfermo de sadismo ou
masoquismo, sendo que em cada um dos casos haviam sentimentos, desejos
e sensações distintas surgidas de fontes opostas apesar de complementares,
agora estes mesmos sentimentos, desejos e sensações originam-se de uma
fonte única. Neste momento dos estudos de Freud, a origem era a pulsão
libidinal unida ao exagero da agressividade natural masculina. A existência de
mulheres sádicas era considerado um fenômeno tão raro que não valia a pena
nem ser discutido23.
21 Idem, Ibidem 22 Idem, Ibidem 23 Não vamos nunca nos esquecer: esta é uma sociedade patriarcal, com predominância da visão masculina sendo estes estudos feitos por um homem - as mulheres com orgasmo clitoridiano e não vaginal - o mais “maduro” - que o digam.
70
Assim sendo, estes “problemas sexuais” representavam duas
manifestações de uma só perversão. Desta forma, concluiu-se que “O sádico é
sempre e ao mesmo tempo um masoquista”24, sendo a manifestação de
sadismo ou masoquismo definida pelo aspecto ativo ou passivo predominante.
Quem sentia prazer em infligir dor no ato sexual, também era capaz de
regozijar-se com a dor sentida na própria pele (ou alma).
É também neste texto em que Freud propõe a sentença: “neurose é o
negativo da perversão”, pois enquanto o perverso tem os desejos sexuais -
ainda infantis - e anormalmente expressos, o neurótico os têm anormalmente
reprimidos, com ambos os casos gerando danos ao direcionamento “correto”
da vida psíquica e sexual.
No segundo dos Três Ensaios, “A Sexualidade Infantil”, Freud emprega
pela primeira vez25 a expressão “sadomasoquista” ao falar da relação prazer/
dor na infância: “Presumindo-se que também as sensações de dor intensa
provoquem o mesmo efeito erógeno, (...) estaria nessa vinculação uma das
principais raízes da pulsão sadomasoquista” 26. Aparece então um novo sujeito
perverso que tão assustadoramente vai povoar o imaginário - e as fichas
policiais e médicas - do mundo ocidental. Não mais o sádico apenas, ou
somente o masoquista, mas o “sadomasoquista”, com toda a carga de perigo
de seu lado “ativo” e toda a estranheza da “doença” do lado passivo. Este
termo voltará a aparecer em 1918 (1914) em “História de Uma Neurose
Infantil”, no caso do “homem dos lobos”.
A ainda tão assustadora masturbação era tema central, e Freud propõe
uma nova visão sobre o tema: nas crianças, ela seria “normal”, mas nos
adultos não seria digamos, “sadia”. Seus perigos ainda existiam, apesar de
atenuados por este médico. Eram agora o risco de uma fixação em objetivos
sexuais infantis - por isto estava ligada diretamente aos “perversos” - e ainda
os temíveis prejuízos orgânicos podendo “ocorrer, mediante algum mecanismo
24 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 25 Sempre tendo como base as Obras Completas em CD-Rom da Editora Imago 26 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
71
desconhecido” 27. Inclusive ele próprio afirma que, com base em sua
experiência clínica, a masturbação poderia causar perda da potência
masculina, mesmo que aparente, embora esta falta estivesse ligada
diretamente ao processo civilizatório, onde ela “facilita a prática (...) das
virtudes da moderação e confiança sexual” 28.
Em 1915, novos estudos são feitos sobre “as mais significativas de
todas as perversões” 29, no texto “O instinto e suas vicissitudes”. Por esta
época, a teoria das pulsões já havia sido modificada, sendo estas divididas em
“Pulsões do Ego” (ou “Pulsão Libidinal Egótica”) e “Pulsões Sexuais” (ou
“Pulsão Libidinal Objetal”). Nesta segunda visão, não existe conflito entre as
Pulsões do Ego e as Sexuais, pois ambas são forças libidinais, diferindo
apenas no objeto da atenção. Na pulsão Egótica, o prazer é voltado para o
próprio corpo sendo autopreservativo, enquanto na Objetal é voltado para um
corpo externo.
As vicissitudes (ou mudanças, ou destinos) a que uma pulsão30 está
sujeita são: reversão ao oposto; retorno em direção ao próprio indivíduo;
repressão e sublimação. É pela reversão e retorno que se pode explicar os
fenômenos do sadismo e masoquismo: na reversão de uma pulsão em seu
oposto, ocorre uma mudança da forma ativa para a passiva. Assim, é a
finalidade da pulsão que sofre reversão: o que antes era sadismo, vira
masoquismo. O mesmo dá-se com a escopofilia (olhar) e o exibicionismo (ser
olhado).
No retorno, reforça-se a primeira reflexão de Freud que o masoquismo é
um sadismo voltado ao próprio indivíduo: “Um masoquismo primário, não
27 “Contribuções Para um Debate Sobre a Masturbação” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. Segundo a “Nota do editor inglês” este texto foi fruto de debates ocorridos na Sociedade Psicanalítica de Viena ocupando “9 noites, de 22 de novembro de 1911 a 24 de abril de 1912”. Sem jamais perder a consciência da importância científica e social destas discussões, não posso deixar de lembrar aqui das reuniões da “Real Academia de Sacanagem” criada pelos humoristas da extinta revista “Casseta e Planeta”, que passavam as noites discutindo questões como “A mulher que só transa com travesti é lésbica?” ou “Um travesti operado arrependido, que reimplantou um pênis de plástico para enrabar uma mulher é lésbico?” in: Revista Casseta e Planeta Nº17 - setembro de 1994 28 “Contribuções Para um Debate Sobre a Masturbação” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 29 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
72
derivado do sadismo na forma que descrevi, não parece ser encontrado” 31. A
finalidade da pulsão permanece a mesma, mudando apenas o objeto. No “par
de opostos sadismo-masoquismo” 32 unem-se a reversão e o retorno: “Com o
retorno em direção ao eu, efetua-se também a mudança de uma finalidade
instintual ativa para uma passiva” 33. O masoquista é aquele que necessita de
uma outra pessoa para assumir o papel de “sujeito” sádico identificando-se
com este. O gozo sádico é conseguido através da identificação do sujeito com
o objeto da dor; o gozo masoquista vem através da pulsão sádica original. Nos
dois casos, não é a dor em si a causa do prazer, mas a excitação sexual a elas
unida. Mas a pulsão sádica originava-se de onde? Nosso doutor acreditava em
uma “pulsão de dominação”, que visava a princípio o controle sobre os outros
(e sobre si mesmo), e não a dor. Desta pulsão poderia surgir mais tarde o
sadismo.
Assustado com a quantidade de clientes com fantasias de crianças
apanhando, Freud publica um novo texto sobre as perversões em 1919: “Uma
Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais”34.
Aqui, ele afirma: “um sentimento de culpa é invariavelmente o fator que
converte o sadismo em masoquismo” 35, distinguindo os processos de
fantasias “perversas” dos meninos e das meninas, tendo sempre como base o
“complexo de Édipo”. A garota, pune seus desejos de ter relações sexuais com
o pai (repressão e culpa) e os substitui por outro tipo extremo de contato físico,
o espancamento, projetando-os em outra criança qualquer. Para o menino,
ocorre o mesmo processo, embora o desejo pelo garoto seja também pelo pai,
não pela mãe, o que é chamado “Édipo negativo”.
30 Estando consciente dos problemas de tradução da edição brasileira, utilizarei o conceito original de Freud de “pulsão” ao invés do traduzido “instinto”. Esta segunda palavra só aparecerá no sentido “pulsional”, nas citações. 31 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 32 Idem, Ibidem 33 Idem, Ibidem 34 Logo no começo, ele fala da influência que determinados livros podem ter tido nos jovens estimulando-lhes a imaginação, tais como “A Cabana do Pai Tomás”. Infelizmente, toda uma já tradicional literatura erótica não é aqui lembrada. 35 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
73
Quando o prazer proibido está na fase de identificação com a criança
que apanha, ele é do tipo masoquista; quando posteriormente ele passa a
apenas apreciar a situação a uma devida distância, volta a ser um deleite
sádico, como em sua origem. Vemos então que se a mulher neste caso é
considerada como possuidora de um desejo “ativo”, no homem retorna um
tanto quanto sutilmente a velha correlação: passividade = homossexualismo.
“Pode-se ter como certo que os instintos com propósito passivo existem,
particularmente entre as mulheres” 36. O masoquismo masculino é diferente do
feminino, e Freud já repara uma constante nas fantasias desta perversão no
homem: Quem aplica os castigos quase sempre é uma mulher37.
Na interpretação formulada por este doutor, o desejo inconsciente de
ser amado pelo pai, transforma-se no consciente de ser espancado pela mãe.
Mesmo nas “perversões”, o ideal é a figura masculina, o pai. O feminino só
aparece como substituto: “Em ambos os casos, a fantasia de espancamento
tem sua origem numa ligação incestuosa com o pai”38.
Talvez para a época, um verdadeiro “desvio sexual” fosse a completude
em si do elemento feminino, ou seja, a idéia de que a mulher seria um ser
“completo” com uma sexualidade própria, e não uma versão derivada do
homem. Mas não havia este perigo, a ciência deste período nem fantasiava
tamanho absurdo. Sete séculos depois de São Tomás de Aquino dizer que,
quando a natureza não tinha forças suficientes para produzir um homem,
formava uma mulher, a psicanálise viria atualizar este conceito transpassando-
o para o campo da psique. Os “machos falidos” - ou sejam, as mulheres - do
pensador cristão adquirem novo vigor nas “mulheres castradas” e com “inveja
do pênis” de Freud.
Em 1920, outra análise sobre sadismo e masoquismo é feita em “Além
do princípio de prazer”. Novamente, a origem do masoquismo é o sadismo,
mas pela primeira vez é admitida a possibilidade de que “pode haver um
36 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 37 Isto será melhor analisado no próximo capítulo. 38 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
74
masoquismo primário” 39. Aqui esta desconfiança tem origem na nova mudança
da teoria das pulsões: agora elas dividem-se em “Pulsão de Vida” e “Pulsão de
Morte”, que seriam antagônicas e estariam constantemente lutando pela
totalidade de nossas limitadas “energias pulsionais”, convivendo misturadas
sem o predomínio completo de alguma delas.
A pulsão de vida compreenderia as duas pulsões anteriores, pois ela
seria egótica e objetal, enquanto a de morte seria uma tendência à voltar a um
estado inanimado, a uma estabilidade “original”, manifestado em uma
compulsão à repetição - de atos, sentimentos, idéias, mesmo desagradáveis -
sem a participação da libido. O limite das duas pulsões é a morte: “o objetivo
de toda a vida é a morte” 40. Isto estaria bem exemplificado no ato sexual, que
sendo “o maior prazer por nós atingível” 41, viria associado “à extinção
momentânea altamente intensificada” 42. As duas pulsões visam o prazer, cada
uma a seu modo.
Então em 1924, aparece um trabalho exclusivo sobre o fenômeno do
masoquismo - e do sadismo: “O Problema econômico do masoquismo”. Neste
estudo Freud divide o masoquismo em três formas: erógeno; feminino e moral.
O masoquismo erógeno é a fonte dos outros dois, sendo o mais explícito
deles, manifestando-se como o prazer no sofrimento. Apesar de Freud
encontrar na raiz deste masoquismo causas biológicas e constitucionais que
ele mesmo não compreende, acredita que a teoria das pulsões pode lhe dar
uma base de estudo. A origem do masoquismo agora é diferente, seguindo a
última formulação da teoria das pulsões: A pulsão de morte, convive ao lado
daquela de vida dentro do indivíduo, sendo posta em grande parte para fora do
sujeito - e sobre um objeto externo. Quando ela está unida à pulsão libidinal,
tem-se o sadismo propriamente dito. Aquilo desta pulsão destrutiva não
externalizado, ao ligar-se à pulsão libidinal transforma-se no masoquismo
erógeno ou primário, pois como nosso doutor já havia afirmado anos antes:
“temos todos os motivos para acreditar que as sensações de dor, (...), beiram a
39 “Além do Princípio de Prazer” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 40 “Além do Princípio de Prazer” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 41 Idem, Ibidem 42 Idem, Ibidem
75
excitação sexual e produzem uma condição agradável” 43. Ainda assim, o
sadismo pode voltar-se novamente para a pessoa, unindo-se com o
masoquismo primário, formando o “secundário”.
O masoquismo feminino é como o próprio nome indica, uma
manifestação das características de passividade femininas, sendo o mais
simples dos três. Aqui são analisados os casos dos impotentes, lembrando
novamente Krafft-Ebing com a equação: passividade = feminilidade =
impotência = homossexualidade. Homens masoquistas em plena virilidade de
seu membro não são concebidos, assim como mulheres masoquitas, afinal
elas já o são social e “instintivamente”.
Masoquismo moral é uma forma vital da conduta do indivíduo. Aqui a
característica sexual está afrouxada, sendo o sentimento de culpa
fundamental, justificando uma constante “necessidade de punição”, que
manifesta-se não mais preferencialmente no campo da sexualidade, mas no da
vida social e relações pessoais. Não há mais o fator do parceiro sexual como
algo determinante, mas vale o sofrimento em si, altamente dessexualizado,
embora: “Seu perigo reside no fato de ele originar-se do instinto de morte e
corresponder à parte desse instinto que escapou de ser voltado para fora,
como instinto de destruição. No entanto, de vez que, por outro lado, ele tem a
significação de um componente erótico, a própria destruição de si mesmo pelo
indivíduo não pode se realizar sem uma satisfação libidinal”44.
Embora Freud aponte pela primeira vez uma separação entre um
masoquismo “erógeno” e um “moral”, percebe-se não existir uma diferenciação
clara entre um estupro e uma relação consentida com um “sádico”. A hipótese
de uma sexualidade “diferente” ou “alternativa” não foi cogitada desde o início
destes estudos. Nosso doutor percebe: “os pervertidos que conseguem obter
satisfação raramente têm ocasião de procurar analista” 45, mas acredita que,
43 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 44 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 45 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
76
quer sejam nocivos aos direitos individuais ou não, “pode haver fortes motivos
para induzi-los a ir a um analista” 46.
Em 1927/28 no texto “Dostoievski e o Parricídio”, Freud emprega
novamente o termo “sado-masoquista” agora com um hífen separando as duas
concepções dentro de uma mesma palavra47. Voltará a usá-la desta maneira
em 1939 com “Moisés e o Monoteísmo”. Talvez neste ponto de seus estudos,
quando o masoquismo não é mais considerado como derivado, o termo seja
escrito de forma modificada para realçar a idéia de que, apesar de terem a
origem em uma mesma fonte48, são manifestações distintas e “primárias”. Mas
Freud nomeia o sujeito da perversão: o sadomasoquista. O termo
“sadomasoquismo” - com hífen ou não - como perversão única de duas caras,
apesar de conceitualmente criado por ele, não existe em sua obra.
Enfim, os sádicos e masoquistas deste doutor são os libertinos de Sade
ou os supra-sensuais de Masoch? A resposta é clara: nem uns, nem outros.
Exatamente como já foi visto nos estudos de Krafft-Ebing, Freud apropriou-se
não apenas das definições e nomenclaturas, mas também dos sujeitos.
Novamente em cena estão os burgueses: perversos, sãos ou degenerados.
Não existe - nem existirá mais - lugar para as crueldades embasadas em uma
filosofia e treinadas por uma vontade, como por exemplo, era proposto por
Dolmancé49. Os aristocratas de ambos os autores estão fora de cena já há
tempos.
Em compensação, a famosa indagação feita pelo criador da psicanálise
- que quer a mulher? - parece retirada da obra de Masoch. As visões sobre
este ser - que desde a antiguidade assusta ao dizer: “Recebe agora os teus
filhos ó pai”50 enquanto “Joga aos pés de Jasão (pai) os cadáveres dos dois
filhos”51 - são diferentes. Em Freud, a mulher é um quase-homem castrado.
Para o escritor de “A Vênus das Peles”, ela é um ser completo e muitas vezes,
46 Idem, Ibidem 47 Claro que para “nomear” desta forma o escritor referido. 48 Por isso uma só palavra (sado-masoquismo”), composta de dois termos? 49 Personagem de “A Filosofia na Alcova” de Sade. 50 Sêneca, Medéia, São Paulo, Abril Cultural, pág. 257 51 Idem, Ibidem
77
superior ao homem. Mas frente a este enigma que as mulheres parecem
encarnar, ambos concordam com a impossibilidade masculina de compreender
o universo feminino.
Parece que a grande contribuição feita pelo autor de “O Futuro de Uma
Ilusão” ao estudo das atitudes sádicas e masoquistas é também a sua grande
“falha” do ponto de vista da origem literária e dos comportamentos. Ao unir as
duas “perversões” como constitutivas de um mesmo indivíduo, consolidou-se a
idéia de pares complementares de opostos. Talvez não o sejam. Desde
Deleuze52 sabe-se o quanto estes mundos “perversos” podem ser distintos. O
parceiro “passivo” de um sádico não é um masoquista, jamais. O sádico
“perigoso”, como preferencialmente estudado por Freud, que também não é o
de Sade, quer e precisa das vítimas. O “ativo” do masoquista é alguém
treinado, ensinado, educado, enfim, criado por este, não um real sádico como
o citado acima53.
No sadismo existe um masoquismo próprio e vice-versa, um não
comungando com seu “equivalente” no outro. Ao deparar-se com as obras
destes autores, considerando-as descritivas de sintomas próprios, vê-se
claramente as distâncias e o diálogo impossível de igualdade, de
uniformização, e de “opostos complementares” 54. A dupla “sadomasoquista”
freudiana não existe, quer idealmente, quer na prática sexual.
Sade e Masoch não são citados nenhuma vez por Freud55, embora o
nome das “principais perversões” tão dedicadamente estudadas por ele
derivem destes homens e principalmente da obra literária destes. É, pois,
curioso que quem tenha ganho um prêmio de literatura seja justamente o
psicanalista, não os escritores56.
Com a psicanálise não mais se discriminou entre “degenerados”,
“pervertidos” ou “normais” pois ela tornou a todos potencialmente perversos,
52 DELEUZE, Gilles, Sade/ Masoch, op. cit. 53 O único lugar onde estes dois podem conviver e unirem-se em suas práticas é na “cultura SM” que veremos mais adiante, mas aí já não é mais o campo dos “necessitados de ajuda” das ciências da psique. 54 Espero que estas diferenças tenham ficado minimamente esclarecidas nos capítulos anteriores. 55 Segundo a ferramenta “pesquisa” no Cd-Rom das obras completas deste autor. 56 O prêmio Goethe de literatura, em 1930.
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embora tenha continuado a insistir no caráter desviante de certos aspectos
sexuais - como o sadismo e o masoquismo - além da necessidade, se não de
cura, ao menos de tratamento57. Com isso, garantiu uma clientela que quase
um século depois continua lotando consultórios58 e mais, conseguiu quase um
monopólio do saber subjetivo em nosso século. Já não há mais verdade
científica sobre o “ser” humano que não leve em conta os ensinamentos e/ ou
adaptações da obra de Freud59.
Por isso encontram-se em jornais, programas de televisão e revistas
populares sempre uma sessão “pergunte ao analista” ou algo do tipo, nunca
sessões como “pergunte ao antropólogo” ao “religioso” ou ao “filósofo” sobre os
processos subjetivos humanos60. Ao fazer a ponte entre a psiquiatria e a
psicologia, pagando o preço pela decorrente popularização, as concepções
terapêuticas da psicanálise infiltraram-se em todas as camadas da sociedade
em troca de uma quase total diluição de seus conceitos mais elementares e
fundantes como a sexualidade infantil e as “perversões”. Fala-se em ego, id e
superego enquanto a masturbação nas crianças raramente é citada.
O que foi proposto por Freud como um modo de confrontação do
homem consigo mesmo, sem desculpas para elementos externos e “forças
superiores”, muitas vezes é usado e aceito como justificativa para a auto-
57 O “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV” Associação Psiquiátrica Americana ainda classifica o sadismo e o masoquismo como “transtornos sexuais”, embora como já foi dito anteriormente, o homossexualismo não o seja mais - em termos. O que dirá nossa ciência sobre estes temas daqui a um século? Talvez como no filme de Woody Allen “O Dorminhoco”, ela saiba a “verdade” de que bom para a saúde sejam as gorduras, o sal e o tabaco. Ou talvez, volte à tona o medo ainda existente sobre a masturbação. Então as revistas pornográficas masculinas virão com uma tarja alertando: “O ministério da Saúde adverte: a masturbação pode causar câncer de próstata, infertilidade e impotência”. Sobre o DSM-IV, falaremos mais à frente. 58 Desde aqueles que sofrem por profundos desajustes psíquicos, até aqueles a quem o problema mais grave já vivenciado é estourar o limite do cartão de crédito do parceiro (e que também merecem toda a atenção). Afinal, o tratamento é para todos. Mas a psicologia serve para ajudar a assumirmos uma postura “ativa” e mudarmos até o limite de nossas capacidades, ou é mais um modo de oficializar o conformismo? Ou nenhum dos dois? Infelizmente, muitos setores de Recursos Humanos das empresas parecem que já encontraram esta resposta, nos fazendo lembrar do que cantava Raul Seixas na música “Fim de Mês” de 1975: “Eu consultei e acreditei/ No velho papo do tal do psiquiatra que te ensina/ Como é que você vive alegremente, acomodado/ E conformado de pagar tudo calado/ Ser patrão ou empregado sem jamais se aborrecer/ Ele só quer, só pensa em adaptar/ Na profissão, seu dever é adaptar”. 59 Com exceção dos psiquiatras radicais e algumas linhas da biologia que reconhecem no psiquismo humano apenas movimentos químicos e elétricos. 60 Basta ver a voracidade com que a psiquiatria “interpreta” todas as outras ciências, as artes e culturas, como se estas não fossem capazes de conhecer a sua “verdade mais profunda” por si mesmas, e necessitassem sempre daquela para se “legitimarem” subjetivamente.
79
piedade. Com ele, ocorreu a coroação de um processo vindo desde o século
XVIII, colocando o sexo como o tema central da subjetividade no Ocidente.
Nunca uma outra sociedade pôde gerar um “Freud”, como em nenhuma outra
o tema da sexualidade foi tão central e determinante de todos os aspectos da
vida como na nossa: “A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a
atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação
econômica”61.
61 “O Mal-Estar na Civilização ” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
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“Eu não penso que este movimento [a chamada cultura sado-masoquista] de
práticas sexuais tenha nada a ver com a atualização ou a descoberta de
tendências sado-masoquistas profundamente enterradas em nosso
inconsciente. Penso que o s/m é muito mais do que isso. É a criação de novas
possibilidades do prazer que não tínhamos imaginado antes.”1
Desde as origens do Homem, a sexualidade “desviante” sempre
conviveu lado a lado com a “normal” 2. Como já foi visto no capítulo IV,
somente no século passado estas formas “alternativas” de vivenciar o prazer
sexual passaram a ser efetivamente pensadas como “doenças” (do corpo ou
da psique). Surgiu então o vasto e sempre mutável campo das “perversões”,
inaugurando-se assim a figura do “perverso”. Mas, a medicina e a psicologia,
ao assessorarem o campo jurídico na tentativa de separação entre “louco” e
“criminoso” 3 e delimitarem o “saudável” e o “perigoso” no campo dos prazeres,
colocaram juntos na mesma categoria o assassino real e o torturador
imaginário, “de brincadeira”. Ao estudar os casos e as causas de estupros,
violações, traumas e mortes relacionados ao sexo, patologizaram a ambos
igualando estes fenômenos com relacionamentos muitas vezes “violentos” mas
consentidos por ambas as partes.
Isto é fundamental: Krafft-Ebing, Freud e tantos outros não levaram
muitas vezes em conta a hipótese “consentimento”, especialmente nos casos
de “sadismo”, julgando-os a mesma coisa que um estupro. Mesmo o
“masoquismo”, apesar de implicar um consentimento implícito, não foi
entendido como um acordo para obtenção de prazer mútuo, e sim apenas
como um tipo de tendência suicida.
1 Citação de Michel Foucault em COSTA, Jurandir Freire, O Sujeito em Foucault: Estética da Existência ou Experimento Moral? in: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, Vol.7, Nº1-2, outubro de 1995, pág. 134 2 Nos estudos sobre erotismo e sexualidade dentro da arqueologia e da antropologia, podem ser encontrados vários exemplos. 3 Este é o momento em que “o crime se interioriza, perde seu sentido de absoluto, sua densidade real, para ocupar um lugar no ponto onde convergem público e privado, opinião e psicologia”. MORAES, Eliane Robert, Sade - A Felicidade Libertina, op. cit. pág. 128
83
A cultura S&M possui comportamentos, ritos, locais e códigos que
identificam os “adeptos” ao mesmo tempo em que delimitam seu “corpus”. Mas
mesmo entre os praticantes não há demarcações claras do que faz parte
exclusiva do sadomasoquismo ou não. Para ser mais claro: existem várias
“subdivisões” dentro deste conceito maior.
O próprio termo S&M ou SM é objeto de controvérsias, significando em
inglês4 tanto “Sadism” 5/ “Masoquism” como “Slave”/ “Master”. Muitas vezes,
ele vem unido à outro: BD, formando o BDSM, que pode significar “Bondage”/
“Discipline”, “Domination”/ “Submission” ou “Sadism”/ “Masoquism”, onde cada
termo designa um modo diferente de relacionamento, embora todos façam
parte de um mesmo universo. E para que este fique bem demarcado como um
todo em relação ao mundo “de fora”, as formas de sexo “convencionais” ou
“comuns” são chamadas de “baunilha”, enquanto as “alternativas” são “Kinky
sex” 6, ou seja, tortas, desviantes das “normais”.
Na relação dominador/ submisso, foca-se mais o lado psicológico no
jogo de poder de um parceiro sobre outro. A “bondage” é outra forma na qual
um parceiro “ativo” imobiliza e restringe os movimentos e reações do outro,
seja amarrando-o/ prendendo-o através de cordas ou algemas, ou através da
utilização de instrumentos médicos/ cirúrgicos exigindo bastante autocontrole
por parte de quem está sendo o agente “passivo” da situação, para não lhe
causar danos. Um exemplo disto é a inserção de sondas no canal da uretra, ou
de tubos nasogástricos (entram pelo nariz e vão até o estômago) ou tubos
orogástricos (entram pela boca). A “bondage” é considerada uma das formas
mais perigosas e artísticas do sadomasoquismo, pela habilidade e cuidado que
a pessoa deve ter para imobilizar a outra sem causar danos, além do caráter
estético que podem assumir os nós e amarras.
4 Uso os exemplos desta língua pois é nos EUA e na Inglaterra onde parecem haver os maiores movimentos destes grupos como “organizações políticas” em prol de seus direitos civis. 5 Muitos dos termos usados neste capítulo são gírias ou jargões usados no mundo S&M que não têm uma tradução exata para o português. Desta forma, quando estas palavras forem substantivos, não as traduzirei pois isto em muitos casos faz perder seu sentido original. 6 Este não é considerado um termo pejorativo. Ao contrário, é muitas vezes usado com orgulho.
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Sadismo e Masoquismo geralmente são usados para uma relação com
foco na dor física. A Disciplina pode pautar-se tanto por um caráter físico como
psíquico, incluindo elementos dos outros “jogos”. Nos últimos tempos, os
termos mais empregados neste meio tem sido “Top” e “Bottom”, para designar
respectivamente o agente e o paciente, pois seriam a princípio nomes
“neutros”, que não levariam nenhuma tendência dentro de si. Outros elementos
como a zoofilia, o “banho marrom” (fezes), a “chuva dourada” (urina) ou o
“banho romano” (vômito), podem estar inclusos em qualquer uma das
denominações acima.
Mesmo sabendo das limitações em que incorrerei, neste trabalho vou
utilizar as palavras “sadismo” e “masoquismo” por serem comumente
consideradas termos gerais para abranger todas estas manifestações e por
representarem mais diretamente nossa atenção central: a dor e o prazer7.
Não poderei fazer aqui um histórico da cultura S&M pois não realizei
pesquisa sistemática neste sentido8. Além disso, este universo não tem um
limite fixo de origem, muito menos possui um caráter que permita a formatação
de uma história linear. O que conhecemos hoje como S&M é muito mais a
somatória de grupos e principalmente de pessoas que se identificam pelas
preferências sexuais e atitudes perante o mundo. Mesmo assim, tentarei traçar
um breve esboço do período considerado como a passagem deste modo de
ser do “submundo” para a “cultura de massa”.
Paralelo ao processo de medicalização do desejo, existiu toda uma
parcela de pessoas que continuaram com suas práticas pouco ortodoxas na
busca da satisfação sensual, não se importando muito com concepções cada
vez mais criativas sobre as “aberrações sexuais”. Apenas guardaram sigilo
para não serem “tratadas” a força. Toda uma “cultura” foi sendo formada às
margens das interpretações oficiais: “Foi no início da Europa moderna que a
7 Por não ser o foco deste trabalho, não vou tratar aqui da polêmica relação sexo X amor. 8 O estudo para este capítulo baseou-se mais em alguns poucos livros em português sobre esta cultura, algumas revistas (em inglês), fitas de vídeo, minha memória e em vários sites na internet. Como não conheço as leis de direitos sobre textos veiculados no ciberespaço, fiquei impossibilitado de usar citações desta mídia. Outro fator foi a grande dificuldade de contatar e entrevistar “adeptos”. O “clube” de S&M
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pornografia pela primeira vez se tornou “um fim em si mesma” 9. Enquanto
Freud e seus discípulos discutiam a universalidade das pulsões sádicas e
masoquistas, homens e mulheres praticavam rituais de dor e prazer em plena
concordância entre si, não necessitando para isso de justificativas psicológicas
ou químicas (e nem sociais).
Nos anos 70 deste século, a cultura do sadomasoquismo vai começar a
sair indiretamente dos esconderijos através de um dos movimentos mais
radicais da contracultura: os punks. Surgidos na Inglaterra, estes jovens
anunciavam uma total falta de perspectivas para um mundo em constante
ameaça de uma catástrofe nuclear pregando a destruição dos valores vigentes,
através de uma atitude que fosse chocante e violenta. Toda agressividade
ignorada - e combatida - pelos anos hippies viera à tona com os punks. A
intenção era demonstrar uma força primal caótica que não podia - e não devia
- mais ser reprimida. A atitude era extremista: hábitos, idéias, corpos e roupas
foram alterados para causar má impressão e assustar. E muito do que foi
usado das roupas e ornamentos nestes corpos veio desta cultura subterrânea
conhecida como “S&M”.
Roupas de couro, peças de metal (como algemas, correntes), marcas e
perfurações na pele, tatuagens, foram fruto de todo um diálogo entre o
universo sadomasoquista, os punks e outros movimentos que questionavam a
sociedade e buscavam novas formas de “morrer em paz”10. Com a “indústria
cultural” já funcionando a toda, o idealismo rebelde previamente domesticado e
anestesiado, virou a “norma” da sociedade de consumo. A ordem é ser sempre
jovem, esperto e conformadamente inconformado, com todas estas posturas
podendo ser adquiridas em qualquer magazine ou supermercado, bastando
para isso apenas comprar os produtos desta identificação: “Até mesmo vitrines
de lojas de departamentos apresentavam manequins que estavam com os
olhos vendados, amarrados e que tinham recebido um tiro, e as revistas de
que eu conhecia fechou, e os praticantes que procurei, ou não queriam dar entrevista ou cobravam (R$ 200,00) por ela. 9 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, Rio de Janeiro, Rocco, 1997, pág. 29 10 Como os tatuadores, as “gangues” americanas de motoqueiros que também tinham nas roupas de couro uma de suas marcas, entre outras.
86
moda enfatizavam a perversidade e a decadência” 11. O que antes possuía
uma autêntica carga de contestação, agora estava ao alcance de qualquer um
que se dispusesse a pagar por isso.
O mundo S&M viu nisso uma maneira de se legitimar perante outros
grupos sociais e assim garantir direitos à suas formas de expressão como
qualquer cidadão “normal”. Se de um lado houve uma banalização com
consequente perda de sua essência, tornando-se desde referência para moda
de alta-costura12 até o signo sensual de uma sexualidade mais “crua”13, por
outro contribuiu para a aceitação desta mesma cultura na face visível da
sociedade14.
Apesar de não haverem regras e códigos universais, alguns elementos
são comuns e/ou facilmente identificáveis entre os adeptos, assim como
formas de conduta e uma certa ética são também exigidas. Existem os códigos
de roupas, nos quais os vários grupos se reconhecem, como o couro ou o
jeans. Nos bolsos, pode estar um lenço que de acordo com a sua cor
significará uma preferência. Por exemplo: negro= jogos com dor, flagelação;
vermelho= penetração com os punhos15. Isto é conhecido como o “hanky
code”, estando normalmente submetido a outro código, o da “esquerda e
direita”, ou seja, se estes lenços estiverem do lado esquerdo indicam uma
pessoa “sádica”; do lado direito, “masoquista”.
No campo da ética, uma das palavras de ordem é a paradoxal
convenção do “seguro, sadio e consensual”. Apesar de serem termos difíceis
de definir e passíveis de muitas interpretações pessoais, eles podem ser
entendidos como: seguro - os praticantes dizem não correr riscos sem as
11 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, op. cit. pág. 45 12 Muitas das criações de moda de Gianni Versace e Jean-Paul Gaultier entre outros são declaradamente inspiradas na estética S&M. 13 Como a personagem “Tiazinha”, encarnada pela modelo Suzane Alves, que apenas por usar uma máscara negra, e um chicote é considerada “sadomasoquista”, gerando acaloradas discussões sobre a influência de ideais “perversos” sobre as crianças. Ora, qualquer olhar com um mínimo de atenção percebe que a “Tiazinha” aparenta para aquelas mais como uma versão feminina do “zorro” em langeries do que uma adepta do S&M. 14 Claro que este processo ainda está em andamento, e sua aceitação se dá muito mais no nível ideológico. Para uma pessoa declarar ser “sadomasoquista” e ainda assim ser vista como uma igual por parentes, amigos, no trabalho, nas universidades e nos círculos sociais “normais” vai levar um bom tempo. 15 Conhecida como “fist fuck”.
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devidas precauções, inclusive com respeito a doenças (venéreas ou não);
sadio - os praticantes asseguram estar de posse de todas as suas faculdades
mentais e equilibrados intelectual e emocionalmente, justamente para não
serem confundidos com psicopatas ou maníacos sexuais; consensual - as
duas (ou mais) partes devem estar de acordo, não caracterizando-se nunca
uma “violação” do outro. Segundo preconiza esta ética, ninguém é obrigado a
fazer o que não quer.
Há também um outro “lema”: “machucar sem maldade (ou danos)”16.
Toda a agressividade física ou psíquica deve ocorrer dentro dos limites já
preestabelecidos pelos parceiros, visando sempre o prazer do outro. Para que
estas regras sejam mantidas é que muitos clubes de S&M não servem bebidas
alcoólicas nem permitem o uso de outras drogas. A maioria destas práticas já é
suficientemente perigosa, sendo necessário que os praticantes estejam
completamente conscientes para evitar possíveis problemas.
O momento da relação sadomasoquista em si é chamado de “cena”,
talvez para reforçar a idéia de que o acontecimento não é “real”, e sim um
“teatro”. Isto também é reforçado pelo termo “to play” para designar a
participação no ato, pois ele significa tanto jogar, quanto brincar ou interpretar.
Toda a nomenclatura é forjada para realçar as diferenças desta forma de sexo
com aquelas consideradas realmente perigosas como os crimes sexuais ou
torturas “verdadeiras”. Atores não são presos por assassinarem personagens
no palco.
As cenas devem sempre ser combinadas antes de postas em prática, ou
seja, os parceiros devem saber exatamente o que o outro quer e quais seus
limites. Esta é uma fase considerada fundamental: a chamada “negociação”, e
todo o bom (ou mau) andamento da cena será decidido aqui. Por isso este
período de conhecimento e reconhecimento deve ser o mais minucioso
possível, estendendo-se também para além do período da relação.
Neste momento também decide-se a “palavra de segurança”, um termo
que quando dito pelo masoquista (ou eventualmente pelo sádico) é sinal de
que algo está errado e a cena deve parar. Esta palavra pode ser usada tanto
16 No inglês: “hurt not harm”.
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por se alcançar um limite físico ou psíquico como por um acontecimento
inesperado indesejável. Nos casos em que a pessoa está impossibilitada de
falar (por exemplo: amordaçada), procuram ter sempre um meio disponível já
combinado de comunicar uma emergência, seja por movimentos do corpo, seja
por campainhas ou outros métodos.
Um dos elementos formadores desta cultura e que a ajuda a se
caracterizar enquanto tal é uma das consideradas perversões “de base” por
Krafft-Ebing: o fetichismo. É ele quem vai delimitar grupos e moldar
preferências. Objetos como chicotes, cordas, couro, são como que a “marca
registrada” do S&M. Sua influência estende-se a todas as práticas e o faz
confundir-se com a própria concepção deste universo. Para muitos, o
fetichismo é o sadomasoquismo, embora com ressalvas: enquanto a primeira
forma, em seu estado “puro” não requer uma inter-relação - pois trata-se
normalmente de um objeto - na segunda o relacionamento é fundamental e
indispensável.
Não existe a necessidade de relação genital, pois toda a cena é sexo,
todo o relacionamento é sexualizado ao máximo, e o uso (ou não) dos
aparelhos reprodutores também esta sujeito a uma prévia combinação17. A
carga de energia emocional é o que conta em primeiro lugar. Por isso, um
adepto diz: “Uma boa cena não termina com orgasmo - termina com catarse”18.
Objetos e partes do corpo são exaltados a ponto de tornarem-se
símbolos quase místicos de adoração. Em torno deles, formam-se grupos e
“ritos”. O S&M é também um ritual. Não no sentido religioso, mas como um
sentimento de entrega, com comportamentos padronizados e uma forte atitude
de “devoção” para com alguém ou algo. No livro “A História de O” estes
elementos ficam claros nas proibições da personagem principal em cruzar as
pernas (para simbolizarem a pessoa estar sempre disponível) e no beijo ao
chicote que a fustigou após as sessões de flagelação. O importante é o “clima”
e o estado emocional que ele proporciona, utilizando-se para isto de vários
17 Neste sentido pode parecer uma volta ao que Freud chamou de “sexualidade infantil”, ou seja, a sexualidade ainda não genitalizada. Mas existe uma grande diferença: a cultura S&M exercita não a regressão a um estado anterior, mas a uma “genitalização” de todo o corpo, ou seja, um estado posterior da sexualidade. 18 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência, Sexual, op. cit. pág. 73
89
aparatos visando aguçar e impressionar todos os sentidos físicos. Levando em
conta o caráter de moda e participando de uma “indústria” talvez para muitos o
S&M seja o que o Ocidente criou de mais próximo à uma Ars Erótica, como
desenvolvida nas culturas orientais.
Justamente este caráter “fetichista” do S&M vai moldar a sua “estética”
própria e um “modo de vida” característico. Toda uma inútil e infantil discussão
sobre a diferença entre “erótico” e “pornográfico” ficou desnorteada com o
surgimento de trabalhos nas mais variadas áreas artísticas - especialmente a
fotográfica - onde os produtos mais “estranhos” da imaginação erótica
ganharam um contorno artístico nunca antes imaginado. O antes “perigoso” e
“sombrio”, passou a ser considerado por um segmento da sociedade
contemporânea como belo e atraente, ainda que só para olhar. Os adeptos
vêem a sua prática como uma arte, e como tal acreditam que ela deva ser
apreciada, mesmo por aqueles que não participam deste mundo - os de
sexualidade “baunilha”. A dor no S&M seria além de prazerosa, “bela”.
Mas esta “arte” não é apenas algo a ser feito apenas dentro das
“masmorras” 19. Ela deve estar impregnada em todo o corpo e alma da pessoa,
ela deve ser um ”estilo de vida”. Claro que as práticas sadomasoquistas podem
ser feitas por qualquer um, independente de participar ou não da “comunidade
S&M”. São práticas universais, e após Freud, tornaram-se também “normais”
dependendo do grau com que são praticadas nos relacionamentos humanos.
Mas quero focar neste capítulo apenas aqueles a quem estes aspectos
adquirem uma tonalidade social mais forte, tornando-se uma “forma de ser e
de sociabilidade” da pessoa.
Assim, os corpos adquirem uma nova significação, sendo vividos não
apenas fonte de prazer mas - através de vários tratamentos erotizados (como a
tatuagem, as escarificações, os cortes de cabelo, espartilhos que “deformam” a
silhueta) - uma obra de arte20. A separação entre papéis “sádicos” e
“masoquistas” deve ser clara também no físico. Em alguns grupos somente os
primeiros podem possuir pêlos púbicos, enquanto os segundos devem ser
19 Gíria com que são chamados os locais de práticas S&M.
90
completamente depilados, para demonstrar sua vulnerabilidade. O que se
chama nestes meios de “Body Art” é justamente isto. Transformar o corpo
numa peça única, bela e sexual.
Mas torna-se necessário algo mais. É preciso “atitude”. O corpo deve
estar em harmonia e expressar as idéias e intenções da mente. Não basta
apenas ter um visual, é necessária uma postura S&M, que muitas vezes atua
no campo da política e dos direitos. O prazer deve ser respeitado e garantido
em suas inúmeras manifestações.
Os vários grupos existentes divergem entre si em muitos pontos
(existem as comunidades homossexuais, as heterossexuais, as “de couro” os
“adoradores de chicotes”, entre outras), mas todos lutam pelo direito de
exercer livremente sua sexualidade e formas de convivência sem serem
taxados de “doentes”, “loucos”, ou sofrerem processos e riscos de prisão.
Seriam o “body art” e a “atitude” formas de atualização radical da “estética da
existência” da qual Foucault já falava21?
A mulher tem um papel fundamental neste contexto. Excetuando talvez
os grupos de homossexuais masculinos, elas ocupam uma grande parte dos
papéis sádicos22. Conhecidas como “senhoras”, “rainhas” ou “dominatrix”,
colocam em cheque a visão clássica na qual o sadismo seria o exagero da
agressividade natural masculina. Aqui o predomínio do “macho” não faz
sentido. Embora afirme as diferenças entre o desejo masculino e o feminino, o
S&M não se interessa por questões de gênero, procurando até mais do que
bissexualidade. O alvo é a chamada “pansexualidade”, pois o sexo biológico
não é o importante, e sim a postura de acordo com os sentimentos e
tendências íntimas de cada um. O amor (e a sexualidade) não tem sexo. E
nem objeto fixo.
Os papéis de sádico ou masoquista seriam “descobertos” pela pessoa
de acordo com seus sentimentos, muito mais do que “escolhidos”. O indivíduo
se adapta ao papel, e não o contrário. É como a noção de introvertido ou
20 Além de transformar estas partes do corpo em novas “zonas erógenas”. 21 FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres, Rio de Janeiro, Graal, 1988 22 Na quase totalidade de propagandas de serviços S&M, a chamada é feita através da figura de uma sádica, pois normalmente visa atingir um público que aceita mais facilmente a “dominação” feminina do que o homossexualismo masculino.
91
extrovertido. Nós somos os dois, que vão se manifestar de acordo com a
situação, mas uma tendência será a dominante. No S&M é a mesma coisa: o
sadismo e masoquismo seriam possibilidades abertas a todos (graças à
Freud!) mas um destes aspectos é que vai dominar em cada pessoa, de
acordo com sua personalidade23. Por isso em alguns grupos de adeptos diz-se:
“ou se é um, ou outro”. Sadomasoquista seria apenas a relação, não a pessoa.
A descoberta dos papéis sexuais passa a ser também um processo de auto-
conhecimento.
Mas dentro de alguns grupos, existem aqueles que assumem ambos os
papéis, dependendo do tipo de cena ou do parceiro com quem estão jogando.
Além dos limites de gênero, os próprios papéis sexuais são uma questão de
relação e interatividade. Isto mostra o quanto o “outro” é importante. Muito das
cenas são feitas pensando nele, não em si mesmo.
E chegamos a um ponto central da cultura S&M: quem “comanda” toda
a cena é o masoquista. Ele é o foco central, pois seus limites serão os
norteadores de toda relação. O sádico na verdade é quem “serve” a ele, tendo
toda a liberdade de criar novas situações, mas sempre balizando-se pelos
desejos e sinais do que sofre. O sadomasoquismo é uma entrega de ambos.
Isto é fundamental para algumas das cenas mais arriscadas: os “jogos
com sangue”. Seja via perfuração, cortes ou chicotadas, o foco no suplício da
carne não é nunca levado aos limites “reais”. O sangue torna-se um elemento
de prazer graças à sua cor, consistência, volume, temperatura, brilho, e claro,
pelas sensações que as feridas causam na pele. Existem várias técnicas de
flagelação que são ensinadas em livros ou sites da internet, com indicações
das melhores posições para o açoite, dos lugares mais sensíveis, onde o
sangue brota mais fácil e abundantemente e dos tipos de chicotes necessários
para cada forma de dor específica24. A atitude de concentração na dor leva à
23 Poderíamos propor uma analogia ao processo de descoberta do “clown” nas artes cênicas. Clown (ou palhaço) não é exatamente um personagem, é mais uma versão “artística” de uma faceta - a ridícula - da própria pessoa, que só pode ser criada ao tomar conhecimento de suas tendências íntimas mais restritivas, e tensas (clown branco) ou mais subversivas, e relaxadas (clown augusto). Ex: O Gordo (branco) e o Magro (augusto). 24 Como o “Bull Whip” e o “Signal Whip” entre outros, sendo que cada um causa uma dor própria.
92
percepção de que ela não é única, mas várias, com diferenças entre si de grau
e qualidade25.
Mas estas “brincadeiras” devem estar sujeitas à cuidados, sendo um dos
mais comuns o uso de luvas de borracha esterilizadas, para inclusive manter
uma característica bastante encontrada nestes meios: o sexo sem “troca de
fluidos”. Após o final da cena ou mais especialmente, após o gozo,
normalmente os jogos de punição corporal devem cessar, pois tudo o que a
excitação crescente tem capacidade de anestesiar, depois deste momento
torna-se muito mais sensível e “frágil”, transformando a dor antes prazerosa
em algo desagradável. Há sádicos que estudam enfermagem ou adquirem
noções médicas apenas para um melhor aproveitamento destes jogos com um
risco menor de acidentes26.
Muitas pessoas ainda acreditam inocentemente, que o masoquista é
aquele capaz de sentir toda e qualquer dor como prazer. Ora como já disse
Jean Paulhan, desta forma “os homens teriam encontrado o que tão
assiduamente procuravam na medicina, na moral, nas filosofias e nas
religiões”27. O masoquista é aquele que, em determinada situação específica,
consegue erotizar a dor, fazendo-a perder muito de seu caráter assustador ao
mesmo tempo em que surge o prazer, e não alguém que tem um orgasmo indo
ao dentista fazer uma obturação sem anestesia28. A dor não é substituída pelo
prazer. Este segundo surge concomitante a ela, sendo a atuação da sensação
dolorosa fundamental, do contrário este tipo de relação perde o sentido.
Há uma visão de mundo sadomasoquista que procura cada vez mais a
legitimidade social, nem que para isso, seja obrigada a se “profissionalizar”.
Desta forma, voltamos ao campo da cultura de massas e dos direitos civis.
Com o surgimento nesta última metade de século de uma “indústria da
25 Da mesma forma que uma dor de cabeça não é igual a uma dor de cólica, embora ambas sejam genericamente consideradas como “dor”. 26 É curioso que com uma intimidade corporal e uma entrega tão grande entre os adeptos, em suas festas e reuniões o ato de tocar alguém sem o conhecer é considerado extremamente grosseiro e incômodo, tornando quem cometeu esta falta uma pessoa não grata no ambiente. 27 PAULHAN, Jean, A Felicidade na Escravidão in: RÉAGE, Pauline, A história de O, São Paulo, Círculo do Livro, 1992, pág.12
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pornografia”, o que antes era uma tolerância ao sexo, tornou-se um negócio
lucrativo29. De duas décadas para cá, o número de produtos e
estabelecimentos ligados à sexualidade cresceu enormemente.
Sex shops, terapias sexuais, fitas de vídeos “pornográficos”30, sensuais
apresentadoras de programas infantis, parecem agora apenas um elemento a
mais no cenário cotidiano. Mesmo a área da propaganda rendeu-se aos apelos
estéticos sadomasoquistas31. Neste contexto, a prostituição em muitos lugares
passa a ser discutida como uma opção de trabalho. Apesar de muitos grupos
S&M diferenciarem esta do sadomasoquismo comercializado, ele torna-se
mais um no leque do mercado sexual, garantindo-lhe uma influência maior na
sociedade através do fator já analisado acima e que muitas outras
comunidades não possuem: uma estética.
Claro que o S&M anunciado e divulgado nos meios de comunicação de
massa são sempre versões mais amenas dos estilos e práticas destes
grupos32. As propagandas focam muito mais o caráter de “dominação” e
“submissão” ao invés de uma possível relação envolvendo dor física e suplícios
da carne. A humilhação psicológica tem mais apelo “popular” do que a agonia
do corpo. Mesmo um rito de dor como é originalmente o “piercing”, ao virar
“moda” perde o caráter de tortura erótica, tornando-se apenas um elemento
estético33.
28 O masoquista continua sentindo normalmente a dor (física ou psíquica) como “dor” mesmo, igual a qualquer “baunilha”, a não ser quando está em uma cena. 29 Existe até um nome para a pessoa que trabalha neste mercado, muito usado nos EUA e pouco no Brasil: o “pornógrafo”. 30 Segundo Nuno César Abreu em seu livro “O Olhar Pornô”, foram as fitas pornográficas que ajudaram a solidificação das bases do até então flutuante mercado das videolocadoras. 31 Basta ver por exemplo uma propaganda do jeans “Fiorucci” a alguns anos atrás, onde a imagem que aparecia era uma garota de costas, nua, com as mãos presas por algemas forradas de pelica cor de rosa. Cômico é que o jeans, ou outro produto qualquer associado à esta marca nem aparece - ou é citado - na foto. 32 Por não ser uma comunidade “única” e “uniforme”, existem os vários graus de intensidade das práticas que dependem das inter-relações entre os adeptos, que vão desde versões mais “leves”, até atos criminosos que são declaradamente considerados por seus membros como contrários aos princípios do mundo S&M. 33 O atual estilo de usar piercing entre os jovens surge muito da mistura da estética S&M com a oriental, especialmente a indiana. Da Índia vem a inspiração dos “brincos” no nariz (primeiro movimento desta moda). Do S&M, os usados nos mamilos e outras partes “íntimas”. Mas o curioso é que a prática dos piercings definitivos veio do rito sadomasoquista de perfurar o corpo da pessoa - especialmente as zonas erógenas - com agulhas ou outros objetos pontiagudos como uma forma de causar prazer - e dor.
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Mas existe também o mercado de produtos eróticos voltado quase
exclusivamente para estes adeptos. Revistas e filmes especializados possuem
clientela garantida que incentiva a sua continuidade, mesmo sabendo que em
locadoras de vídeo “normais”, muitas destas fitas34 (ou fotos) seriam
consideradas “exagero”. Máquinas de “tortura”, chicotes, aparelhos para
suspensão dos corpos, roupas e peças de borracha, couro, veludo;
equipamentos para lavagens intestinais, tudo é facilmente encontrado em lojas
ou clubes próprios. O universo S&M com suas práticas e posturas está ao
alcance de qualquer um, tendo como único limite às camadas mais “centrais”
deste meio, a restrição econômica35.
Os “sádicos” ou “masoquistas” da cultura S&M não são os mesmos
estudados pela psicologia36. As diferenças são claras. Nunca se ouviu falar de
um estuprador que violente suas vítimas com base no “seguro, sadio e
consensual”. Embora muitos adeptos possuam realmente um passado com
abuso sexual na infância, e usem o S&M justamente para exorcizar estes
fantasmas37, integrantes do meio afirmam que estes casos representam
apenas uma parcela desta população, e vários nunca sofreram qualquer
problema deste tipo38. O que existe é a tentativa de criar uma “outra”
subjetividade, que não procura se legitimar - ou se justificar através das teoria
“oficiais” sobre a psicologia humana. Como diz um editor da revista Rubber
News, especializada em fetichismo de roupas e acessórios de borracha: “Não
importa o quanto possa ser verdadeiro... não interessa o quanto possa ser
importante na sua cabeça, NÓS NÃO VAMOS PUBLICAR qualquer carta que
rastreie o gosto pela borracha até o fazer xixi na cama da infância” 39.
34 Por falar em filmes, em muitos deles os atores masculinos, sejam sádicos ou masoquistas, aparecem com o membro ereto e o usam neste estado normalmente, contrariando muito algumas hipóteses psicológicas que alegam que os praticantes de sadomasoquismo são pessoas impotentes. 35 Uma das características desta cultura é que os acessórios vendidos são incrivelmente caros. Adereços de couro - ou imitações - sessões de sadomasoquismo e mesmo fitas de vídeo mais “pesadas” são compradas somente por pessoas de poder aquisitivo muito alto. O S&M ainda é para poucos - que podem pagar. 36 Ressaltando que a ciência, assim como a religião ou qualquer outra prática homogenizante, em matéria de sexo está sempre em descompasso e atrasada para com a vida cotidiana. 37 E com bons resultados segundo eles mesmos. 38 Não posso confirmar se isto é fato ou não. Encontrei este tipo de afirmação em vários sites na internet mas todas sem “provas” mais consistentes. 39 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, op. cit. pág. 158
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Os crimes sexuais diferenciam-se das práticas destes grupos pela
característica inscrita no próprio nome: são “crimes”, enquanto que no
sadomasoquismo o respeito ao outro é considerado a essência da relação.
Mesmo assim, o DSM - IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais da Associação Psiquiátrica Americana) ainda vigente, classifica o
“sadismo” e o “masoquismo” como “transtorno sexual”. Ele afirma que estas
“parafilias” devem o ser assim diagnosticadas quando os atos feitos sob estes
impulsos sejam “reais, não simulados”. Ora, partindo-se de uma noção onde as
cenas S&M são “simuladas”, a diferença já está clara - mesmo elas sendo
“reais” no sentido em que as torturas e as dores sentidas são “verdadeiras”.
Vê-se então que existe um sério problema quanto as terminologias
usadas. As palavras “sadismo” e “masoquismo” são criações da ciências
médicas e estas não abrem mão de seus inventos. Os adeptos as tomaram
para si, tanto por imposição exterior como por desafio e para assumir uma
diferença. E por estes termos remeterem diretamente à obras “libertinas e
libertárias” e não a trabalhos “normalizantes e punitivos”, são ainda mantidos
por esta cultura40, embora com um sentido muito mais restrito. O termo
“sadomasoquismo” foi assumido aqui em sua expressão mais plena, pois
sendo um jogo, este é realmente o caso onde um sádico necessita de um
masoquista e vice-versa.
Muitos doutores também afirmam serem estes comportamentos
patológicos somente quando são a fonte única e exclusiva de excitação e
desejo sexual do indivíduo. Ora, neste sentido seria possível então classificar
como “transtorno sexual” todos aqueles que não possuem nenhum “desvio”
erótico como fonte de excitação - se é que existem pessoas assim - tendo
como único e exclusivo estímulo para o ato, a reprodução da espécie e até a
negação do prazer41. Sugiro para esta nova perturbação sexual o nome
“baunilhismo”.
40 Que como foi afirmado acima, prefere usar estes termos para focalizar cenas que envolvem dor física, possuindo outras palavras para diferentes focos, ou mesmo para as posturas gerais, como é o caso de “Top” e “Bottom”. 41 Faz lembrar Shakespeare: “Se fosseis tratar a todos de acordo com seu merecimento, quem escaparia ao chicote?” - SHAKESPEARE, William, Hamlet, Príncipe da Dinamarca, São Paulo, Abril Cultural, 1978, pág. 248
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Mas estes adeptos são os mesmos libertinos de Sade ou os supra-
sensuais de Masoch? No primeiro caso, novamente a resposta é não,
essencialmente pelo mesmo motivo já exposto. Os devassos do Marquês
buscavam o perigoso, o prejudicial e o não-consensual. O prazer deveria ser
arrancado a lágrimas, agonia e desespero, tendo somente como limite a
imaginação do torturador. As intenções são completamente diferentes, e a
única justificativa em fazer o mal é o prazer causado pelo ato, e não uma
questão de sentimentos compartilhados ou surtos psicóticos. Apesar destes
atuais “sádicos” possuírem toda uma “filosofia” que os incentiva e distingue,
esta não é voltada para o egoísmo e a destruição do outro, ou seja, não é a
mesma pregada por personagens como “Juliette”. Os praticantes de S&M
querem o respeito a todos enquanto que os libertinos procuram o crime e o
assassinato, não procurando respeitar nada nem ninguém.
Já no caso de Sacher-Masoch poderíamos dizer que ele foi um
precursor - ou o “fundador” na literatura - da cultura S&M. Vários dos
elementos encontrados em sua obra como a importância do clima na cena, a
“educação” do sádico por parte do masoquista, o fetichismo, a suspensão
física ou subjetiva, o “sexo sem sexo”, tudo isso é essencial para o universo
sadomasoquista. Mas existe uma pequena diferença. Masoch via este erotismo
e sexualidade como um refinamento do ser, conseguido apenas depois de
ultrapassar os “pobres” limites da arte, filosofia e experiência física, sendo esta
última quase uma consequência das duas anteriores. No S&M, procura-se uma
nova via para se vivenciar tudo isto. Não é necessário o refinamento da nossa
cultura, pois busca-se uma outra cultura.
Sade e Masoch possuem universos próprios que como já foi visto, não
se misturam. No novo campo de atitudes e prazeres conhecido como
sadomasoquismo, este nome vem da união criada pela psicanálise, não das
obras destes autores. A idéia de pares opostos e complementares foi
assumida de prontidão, afinal nesta cultura, um depende do outro para o jogo
funcionar. Porquê neste caso, isto é antes de tudo um “jogo”. As idéias do
Marquês são completamente distintas, enquanto as do “Cavaleiro” são
bastante próximas. Tempos diferentes, sensibilidades e idéias diferentes.
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Neste escorregadio campo da violência unida ao sexo, sabe-se o quanto
ás vezes é tênue a separação entre o “consentido” e o “abusado”. Para
complicar ainda mais, ao entrar na indústria pornográfica, a demanda de
produtos está para servir a estes dois clientes, seja de forma legal ou não.
Assim, muitas vezes filmes de S&M “sadios, seguros e consentidos” podem ser
confundidos com os lendários “snuff movies”42, não tanto por
irresponsabilidade dos integrantes desta cultura, mas por uma falta de clareza
do que sejam exatamente esta proposta de valorização de uma sexualidade
diferente, baseada nos direitos civis, e o que sejam os crimes sexuais. Gostaria
apenas de ressaltar aqui, justamente esta tentativa da cultura S&M de por
meio da legalização e aceitação pública, tornar estes limites mais claros e
explícitos. Como disse Valerie Steele: “Muitas pessoas acreditam que a
pornografia induz à perversão e a violência sexual. Mas isso é como dizer que
música country causa adultério e alcoolismo”43.
A cultura sadomasoquista formou-se graça à resistência de indivíduos
que não quiseram ser patologizados - e muito menos criminalizados - forjando
assim um “estilo de ser” que se diferencia tanto daqueles de sexualidade
“normal”, quanto dos assassinos e doentes das ciências da psique. Ganhando
cada vez mais espaço na mídia e na cultura de massas, ela nos mostra ser
possível descobrir novas formas de prazer com o corpo, onde o processo de
erotização de nosso “lado escuro” e mesmo da morte podem ser formas até
mesmo de aumentar nosso tão tímido respeito ao outro. Com todos os riscos,
perigos e liberdades inerentes a estes processos. E sem jamais perder a
capacidade de amar. “O que farão comigo me é indiferente”, murmurou, “mas
diga-me se me ama ainda”44.
42 “Snuff movies” são supostos filmes em que as pessoas são realmente violentadas e mortas na frente das câmeras. Os boatos sobre eles surgiram à algumas décadas com o aparecimento de alguns filmes “underground” com imagens violentas que logo ficaram famosos por serem considerados “verdadeiros”. Eles rapidamente sumiram de circulação mas a “lenda” criada sobre eles manteve-se até hoje. Na verdade, ainda não se sabe se eles realmente existiram - ou existem - o que, convenhamos não é nada impossível. Existem bons filmes que tratam deste tema, como o espanhol “Morte ao Vivo” (Tesis, Espanha, 1996, dir. Alejandro Amenabar), ou o recente “8mm” (Eight Millimeter, EUA, 1999, dir. Joel Schumacher). 43 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, op. cit. pág. 195 44 RÉAGE, Pauline, A História de O, op. cit. pág. 142
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“Aqui encontrareis apenas egoísmo, crueldade, devassidão e a impiedade mais
arraigada”1
Muito se fala sobre a sexualidade desenfreada encontrada nos escritos
do Marquês. Orgias, ingestão de fezes, masturbação com os mais variados
objetos, zoofilia e tudo o mais o que a imaginação é capaz de conceber pode
ser encontrado nestes textos. Mas o que torna Sade tão ímpar não é este
enorme desfile de situações de gozo. Sua assinatura está mais ligada a
introdução da crueldade e do crime no terreno do prazer sexual.
Passados dois séculos desde seus primeiros escritos, muitas das
reivindicações de Sade quanto à liberdade sexual parecem hoje coisas óbvias -
pelo menos no mundo ocidental. As mulheres lutam pelo direito ao prazer; a
pornografia virou um negócio legal e extremamente lucrativo: em qualquer
banca de jornal ou videolocadora podem ser alugadas fitas com cenas que vão
desde tortura dos órgãos genitais à zoofilia ou sexo anal. Até as críticas à
religião soam atualmente quase como uma curiosidade histórica.
Mas mesmo com a relativa facilidade com que vemos hoje em dia
grupos organizados de “minorias” sexuais como gays e lésbicas, felizmente
não vemos passeatas de organizações como a “Sociedade dos Amigos do
Crime” em manifestações pelo direito ao assassinato. A ferocidade e a
desumanização encontradas nos livros do Marquês ainda hoje são elementos
que chocam e horrorizam, apesar de toda violência ao nosso redor.
Neste sentido seus escritos são únicos. A violência neles contida não é
banalizada - como a nossa cotidiana, considerada mais como uma
“conseqüência”, seja de um processo psíquico ou social maior que o indivíduo.
Para nós, os atos de fúria são tidos muitas vezes como fruto de algo
“incontrolável”. Mas para o criador de personagens como o “duque de
Blangis”2, a hostilidade é proposital; a dor e a morte são um espetáculo único
que merece toda a atenção para melhor ser “apreciado”. Os suplícios, apesar
1 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, São Paulo, Círculo do Livro, sem data, pág 106
102
de freqüentes, jamais se tornam algo “comum” no sentido de causarem apenas
uma fraca impressão sobre quem os assiste. Em Sade, a agressividade e a
destruição são intencionais, tendo como causa e finalidade apenas o prazer
egoísta. Diferente de assassinatos por bens ou torturas políticas, a morte e o
suplício podem ocorrer nestes escritos apenas por capricho.
Os libertinos têm como objetivo a realização do Mal por si mesmo, sem
a utilização deste para algum ganho que não seja o prazer de desgraçar uma
vida: “Quando se ama o crime pelo crime, não se precisa de veículo”3. A busca
por um delírio sempre mais intenso gera uma destruição cada vez maior, na
qual a quantidade de vítimas está em proporção direta com a qualidade do
gozo.
Isto leva a um dos elementos mais controvertidos em Sade: a repetição.
Duramente criticado por isto4, muitos não notam que este artifício é
fundamental para causar no leitor o mesmo “tédio” sentido pelos libertinos
frente às torturas mais incríveis. Como as personagens, somos levados muitas
vezes durante o texto a pensar: “um estupro de novo? Não tem nada
diferente?”, isso entre várias cenas de crueldade extremamente “criativas”,
demonstrando como mesmo atos terrivelmente bárbaros podem cair numa
“rotina”, tornando-nos também “apáticos”.
Nossa imaginação é chamada a todo o momento a participar da criação
de novas formas de crime, se quisermos nos manter ainda sensíveis a tais
ferocidades. Para os adeptos da devassidão, o objetivo é justamente calar esta
sensibilidade denunciadora de nossa “humanidade”: “Assim é a indiferença
fatal que caracteriza, mais do que qualquer outra coisa, a alma de um
verdadeiro libertino”5.
2 Personagem de “Os 120 Dias de Sodoma”. 3 SADE. D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit. Pág. 141. 4 Para exemplificar, cito Otto Maria Carpeaux em seu prefácio à “Justine ou Os Infortúnios da Virtude”: “Não é preciso ler todas as obras. O autor se repete muito. Sente tanto prazer na descrição minuciosa de cópulas normais e menos normais (...) que enfim, o leitor se cansa”. CARPEAUX, Otto Maria, Sade nosso contemporâneo, in SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, Rio de Janeiro, Saga,1968, pág. 9 5 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit, pág. 172
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Conforme já foi dito, a libertinagem é um estado de espírito. E quanto
“espírito” é necessário para alguém se tornar, por exemplo, uma Juliette! Sade
discute em seus escritos uma questão muito em voga no século XVIII: o quanto
de “natural” existe no homem social? A educação pode mudar a natureza
humana?
Quanto à primeira pergunta, os próprios devassos do Marquês são um
indício. Eles procuram encarnar aquilo que na concepção libertina, a natureza
possui de mais “puro”, ou seja, a destrutividade. Enquanto filósofos como
Diderot e Rousseau apostam em uma “bondade inata” manifesta tanto através
dos atos “criadores” do mundo natural como da moral humana, os adeptos do
crime abominam esta suposta “humanidade”, considerada por eles como algo
artificial. O homem socializado, limitado por regras e leis, crente em forças
sobrenaturais é um ser incompleto, frágil. Sua sensibilidade é anêmica, as
capacidades são restritas, a inteligência grosseira: “Os infelizes se consolam
vendo iguais por perto”6.
Quase no outro extremo, estão aqueles não iludidos por apelos
religiosos ou modos de vida covardes. Estes, para Sade, são os libertinos. A
pedagogia não pode mudar as pessoas, mas pode reforçar o que elas têm de
“natural”, valendo isto tanto para os admiradores do vício como os da virtude.
O que parece ser a princípio um ingênuo determinismo biológico, torna-se um
dos pontos mais cruciais da filosofia deste autor: “não sabes até onde nos
arrasta esta depravação, a embriaguez em que nos lança, a comoção violenta
que acontece no fluido elétrico com a irritação produzida pela dor sobre o
objeto que serve a nossas paixões; que excitação sentimos com as dores
dele!”7
Não basta apenas a inclinação para o Mal, é necessário um longo
treinamento nos caminhos do crime. Espírito e o corpo devem ser
incansavelmente educados e testados. Uma sensibilidade física desenvolvida
não é de grande valia se a mente ainda estiver presa às convenções sociais.
Da mesma forma, toda a filosofia só tem sentido se puder ser colocada em
prática na carne das vítimas. A inteligência deve estar a serviço do desejo e da
6 SADE. D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op.cit. pág. 257.
104
crueldade para estes serem melhor apreciados: “Em suma, um era brutal por
gosto, o outro por refinamento”8. O gozo e a destruição atuam na alma e no
corpo mutuamente.
Toda esta pedagogia não visa um distanciamento da condição natural,
mas um refinamento que permite o indivíduo voltar ao máximo a esta situação
onde o egoísmo e a crueldade predominam. Pois como diz Minski, o eremita
antropófago de Sade, “É necessário muita filosofia para me compreender”9.
O egoísmo caracteriza os devassos. Qualquer tentativa de interação
torna-se infrutífera, pois esta é uma ilusão criada pelas regras sociais. O outro
não passa de um instrumento para o prazer sadiano. Mesmo quando entre
camaradas de libertinagem, esta associação é passageira, podendo a qualquer
momento ser exterminada por um jorro inesperado de desejo.
Lembrando o “estado de natureza” hobbesiano10, é somente na
condição de completa ausência de vínculos que as personagens do Marquês
encontram-se de posse da mais completa sabedoria e prazeres libertinos.
Parentes, amigos ou autoridades nada representam além de vítimas em
potencial. Por isso, o incesto, a traição, e todas as formas de assassinato em
família (parricídio, matricídio, etc) podem e devem ser praticadas. Como
explica Noirceuil a Juliette, ao propor-lhe a morte da filha desta: “Será que você
é tão imbecil a ponto de ter sentimentos ou escrúpulos para com este nojento
produto dos testículos de seu abominável marido?”11.
Assim como cada indivíduo mostra-se único, estando física e
psiquicamente isolado das outras pessoas, os desejos e paixões também são
singulares, não podendo ser submetidos a limites externos. O coração de cada
7 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit, pág. 133 8 Idem, Ibidem, pág. 104 9 SADE, D. A. F., citado em MORAES, Eliane Robert, A Leitura na Alcova, in Revista da USP, nº 40, São Paulo, USP, Dez/ Jan/ Fev – 1998-99, pág. 119. 10 Mas que são substancialmente diferentes, pois para Hobbes, o “estado de natureza” é uma condição quase animal, sem vestígios de “cultura” no sentido de conhecimento e atitudes criadas e transmitidas em grupo, e para Sade, o “estado de natureza” a ser alcançado pelos adeptos do crime requer antes de tudo muita “cultura”, justamente para quebrar com todos os tabus, ilusões e preconceitos sociais. HOBBES, Thomas, Leviatã, Coleção “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1979. 11 SADE, D. A. F., Juliette, citado em SHATTUCK, Roger, Conhecimento Proibido, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pág. 269
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ser humano não pode ser atingido por outro; a única maneira de se viver com
dignidade surge então através da livre vasão de tudo aquilo considerado mais
impuro e, no entanto, mais “natural” em cada um de nós. “(...) apenas
sacrificando tudo à voluptuosidade é que o infeliz indivíduo conhecido como
homem, e lançado a contragosto neste triste universo, pode conseguir semear
algumas rosas nos espinhos da vida”12.
O egoísmo é antes de tudo a conseqüência lógica e extrema da tomada
de consciência de nossa condição solitária no mundo, sustentáculo essencial
para o surgimento da “apatia” sadiana: “não imagineis que assim a trato por
vingança, por desprezo, por nenhum sentimento de raiva; é só uma questão de
paixões”13. É este distanciamento para com tudo e todos que permite ao
devasso sentir uma maior intensidade em seu gozo: “é absolutamente inútil
que o gozo seja partilhado para ser intenso”14 .
Qualquer tentativa de comunhão com o parceiro é considerada uma
divisão e uma conseqüente diminuição de sua parte no deleite. Assim sendo,
como é possível a formação de um “par” nas obras de Sade?
Para exemplificar melhor como funciona esta relação, vamos analisar
algumas passagens de um dos mais conhecidos e importantes livros de Sade:
“Justine – Os Sofrimentos da Virtude”. Este texto foi reescrito três vezes, e a
cada versão novas situações eram acrescentadas, além de um maior
desenvolvimento das anteriores. Pela ordem de criação, são elas: “Les
Infortunes de la Vertu”; Jutine, ou les Malheurs de la Vertu” e “La Nouvelle
Justine, ou les Malheurs de la Vertu”15.
Conforme o autor, o primeiro texto foi “concluído ao cabo de quinze dias,
8 de julho de 1787”16 na Bastilha, mas foi a segunda versão que deu fama à
obra, sendo esta o primeiro livro de Sade editado em vida (1791). Neste
trabalho utilizo apenas as duas primeiras versões.
12 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit. pág. 6 13 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 163 14 Idem, Ibidem, pág .138 15 No Brasil traduzidos comumente como “Os Infortúnios da Virtude”; “Justine, os Sofrimentos da Virtude” e “A Nova Justine”. 16 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit., pág. 158
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O enredo de ambas narra a trajetória da jovem Justine que, ao ver-se
abandonada no mundo, tenta orientar sua conduta pela virtude e religião,
encontrando como pagamento apenas a desgraça e a dor, enquanto quem
segue pelo caminho do vício e do crime alcança todo tipo de prosperidade17.
Utilizando-se do velho argumento moral de que para se combater o Mal é
necessário antes conhecê-lo18, o Marquês defende suas concepções tendo
como base o ponto de vista da vítima. A infeliz Justine, por tentar manter-se
sempre delicada, justa e devota, vai sofrer os mais atrozes tormentos físicos e
morais vindo de pessoas para as quais o crime é não apenas um modo de
vida, mas uma opção ética: “nada melhor para atrair a felicidade do que
conceber um crime, e parece que só aos malfeitores é que o caminho da
ventura se abre facilmente”19
As desgraças desta jovem são exemplares para a discussão da
dinâmica torturador/ torturado, primeiro porque Justine é sempre uma vítima,
seja dos libertinos ou das circunstâncias da vida. Ela não possui controle
algum sobre as situações e qualquer ideal de liberdade não passa disso: uma
quimera, um sonho inalcançável.
Em segundo lugar, esta personagem é uma das poucas escravas
possuidora de voz e argumentos para discutir com seus algozes. “Entremos em
detalhes, concordo em fazer isso: a inteligência que reconheço em ti, Thérèse,
possibilita-te entende-los”20 diz Clément, monge beneditino que durante algum
tempo vai abusar terrivelmente de Justine. Um reconhecimento deste tipo
vindo da parte dos libertinos é quase um “elogio”; algo raro de encontrar nos
textos de Sade.
Aqui, o discurso da bondade é trucidado pelo do crime. O sustentáculo
do amor e da compaixão mostra-se tão inconsistente e frágil, quanto o da
destruição e violência aparece sólido e triunfante. Toda a argumentação de
17 Como por exemplo Juliette, irmã de Justine e uma das libertinas mais ferozes da obra do Marquês. 18 “O vós que derramastes lágrimas pelas desditas da Virtude; vos que lamentastes a desditosa Justine (...) Possais convencer-vos como ela de que a verdadeira felicidade só existe no seio da virtude” SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 259 19 SADE, D. A. F., Justine ou os Infortúnios da Virtude, op. cit., pág. 59 20 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 134. Justine é uma narração em primeira pessoa feita pela própria personagem que, para não ser reconhecida, esconde seu verdadeiro
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Justine é sistematicamente desmontada e anulada em favor de uma razão
egoísta e tirânica. Também os sentimentos religiosos são escurraçados
através do medo e da fúria de caprichos assassinos, devoradores tanto da
matéria sensível dos corpos como da esperança das mentes. As próprias
orações feitas por ela revelam-se apenas lamentos de desespero, sem a
menor eficácia, seja para alterar situações ou mesmo acalmar o espírito: “Oh
meu Deus! – gritei – mais uma vez quisestes que uma inocente fosse vítima do
culpado”21.
Justine tem, em sua história de vida, o maior exemplo a favor do vício e
do ateísmo. Mesmo a natureza parece confirmar que “as atribulações e as
dores devem ser o terrível apanágio da virtude”22, pois não apenas o destino
desta jovem é uma sucessão de desventuras como ao final da obra, quando
tudo parece resolvido e o caminho da felicidade começa a se esboçar, um raio
vindo de uma nuvem de tempestade atravessa seu corpo, fulminando-a. Para
Sade, nem o mundo natural perdoa a ilusão da bondade.
A natureza descrita pelo autor não é a da harmonia e cooperação23, mas
algo caótico povoado por animais selvagens furiosos e tormentas atmosféricas.
É este universo alheio às desditas humanas quem dá o exemplo de uma busca
constante pela destruição, onde o devasso é o único “homem natural”
verdadeiro: “- Mas o homem de quem falais é um monstro. – O homem de
quem falo é o homem da natureza”24. Neste ambiente hostil e perigoso, a
crença em quimeras filosóficas e atitudes de mansidão para com a vida
caracterizam somente as vítimas. Como bem observou Octavio Paz, o libertino
do Marquês “não é o bom selvagem, e sim uma fera pensante”25.
Outra marca desta infeliz heroína é ser a encarnação de todas as
virtudes sociais esperadas de uma mulher: ingenuidade, beleza, bondade,
bons modos, pudor, delicadeza, religiosidade, compaixão e pureza de corpo e
nome e usa um substituto. Na primeira versão ela utiliza o pseudônimo de “Sofia”, enquanto na segunda, “Thérèse”. 21 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 68 22 Idem, Ibidem, pág. 115 23 Como ainda parece ser a de muitas pessoas dos meios urbanos hoje em dia, que idealizam uma vida “natural”, onde animais selvagens estão em “harmonia” com os homens e as doenças (como malária ou febre amarela) não existem. 24 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit. pág. 142
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alma. Ou seja, tudo o que os adeptos do crime desejam de uma escrava pois,
quanto maior as violações nela infringidas, maior seu deleite: “São os
desregramentos delas que nos servem e que nos divertem; porém sua
castidade não poderia interessar-nos menos”26. Também o grande elemento
de valorização social da mulher, a maternidade, é considerado um crime e
punido violentamente pelos monges do Convento de Sainté-Marie-des-Bois.
A ruptura com o universo social proposta por Sade é tão grande que
mesmo os locais onde as vítimas vão passar a viver devem ser isolados. Seja
no interior de castelos, conventos, florestas ou calabouços, os infelizes
escravos afastam-se de qualquer contato com o mundo externo e sobrevivem
somente para servir aos senhores: “A partir deste instante, não sois portanto
mais deste mundo, já que podeis desaparecer dele pelo mais simples ato da
minha vontade”27
E isto indica algo fundamental na relação senhor/ escravo: o prazer do
libertino necessita de vítimas. Os quatro monges do convento apreciam tanto
causar dor física quanto recebê-la. Eles podem chicotear ou ser chicoteados
na busca do deleite: “Se o consultardes, confessará ser cruel? Nada fez que
ele próprio não suporte”28. Poderiam muito bem utilizar somente a si mesmos
em suas orgias, mas para estas serem completas, é imprescindível a presença
de escravos feridos e angustiados, pois os libertinos possuem um limite para a
capacidade de sentir dor, mas não para causá-la.
Os devassos ferem-se até quando as sensações provocadas geram-
lhes prazer, não mais que isso. Mas com as vítimas não existem limites,
podendo – e devendo maltratá-las ao extremo. Neste momento, é a dor do
escravo que vale o gozo. Da mesma maneira que o libertino banha-se em suor,
saliva e esperma, o corpo do supliciado desfaz-se em gritos, gemidos, lágrimas
e sangue. O organismo sensível dos sacrificados é a matéria-prima das orgias
sadianas, pois é nele que a fúria ilimitada se exercerá.
25 PAZ, Octavio, Um Mais Além Erótico: Sade, São Paulo, Mandarim, 1999, pág. 59 26 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit. pág. 20 27 Idem, Ibidem, pág. 164 28 Idem, Ibidem, pág. 112
109
Não é a sensação de dor que vai distinguir quem está de um lado ou de
outro da tortura, mas sim a capacidade de sentir prazer ou terror com isso. Os
libertinos somente alcançam o gozo quando as vítimas sentem não apenas a
agonia da laceração das carnes, mas o sofrimento do espírito, a miséria de
uma vida reduzida a objeto descartável. É o desespero do outro a causa do
prazer nos adeptos da devassidão: “Ninguém pode imaginar as angústias de
um desgraçado que espera o suplício a qualquer instante, de quem tiraram a
esperança e que não sabe se aquele momento em que respira será o último de
sua vida”29. “pois não é só a obrigação de satisfazer os desejos desenfreados
desses devassos que faz o suplício de nossa vida. É antes a perda de nossa
liberdade, - a maneira brutal como nos tratam nesta infame casa...”30
Só através da ferocidade e da destruição o deleite pode ser
conquistado. É este suplício do corpo e da alma que vai estimular os sentidos
dos carrascos levando-os ao clímax, pois afinal estes possuem o organismo e
a mente já educados para tal intento. Justine ilustra bem isto ao dizer: “quanto
mais vivas são minhas dores, mais intensos parecem ser os prazeres de meu
algoz”31. Uma vontade livre de crenças absurdas, preconceitos sociais e
ignorância filosófica parece ser algo que apenas os libertinos conquistaram.
Todas as outras pessoas são então, escravas.
A transgressão de mentes satisfeitas unicamente com a infelicidade de
outros, une-se às atrocidades físicas mais violentas e altamente sexualizadas,
criando um estado de “ferocidade racional” na qual qualquer traço de
humanidade parece não mais encontrar lugar. Citando Juliette: “O crime não é
temível quando se está fodendo”32. A lubricidade do corpo e da mente pode
destruir qualquer barreira psíquica ou física que impeça os devassos de
vivenciar prazeres criminosos.
Os libertinos são antes de tudo carrascos, e assim, necessitam de
vítimas: “a dor dispõe ao prazer”33; mas estas não devem em hipótese alguma
assumir uma postura ativa. Apesar de dependerem dos escravos, não existe o
29 Idem, Ibidem, pág. 180 30 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 90 31 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit. pág. 249 32 SADE, D. A. F., Juliette, citado em SHATTUCK, Roger, Conhecimento Proibido, op. cit., pág. 269
110
“jogo” entre algoz e supliciado no sentido de uma “troca”. Isto só é possível
para os devassos, pois entre eles e os “objetos de prazer” existe um abismo
sensorial, intelectual e claro, intencional.
Não podemos nos esquecer: os senhores falam apenas a “seus” pares,
ou seja, a todos aqueles que assumem a lubricidade como estilo de viver – e
de matar. Às vítimas não contam em momento algum, pois são instrumentos
descartáveis, não elementos individuais determinantes. É a esse seleto grupo
de adeptos do deboche que Sade dedica o livro “A Filosofia na Alcova”, sem
referir-se uma vez sequer aos sacrificados em nome dos prazeres cínicos:
“Voluptuosos de todas as idades e de todos os sexos, é a vós apenas que
ofereço esta obra (...) Mulheres lúbricas, que a voluptuosa Saint-Ange seja
vosso modelo (...) Donzelas cerceadas durante um tempo demasiado longo (...)
imitai a ardente Eugênia (...) E vós, amáveis debochados, vós que, desde a
juventude não tendes outros freios senão vossos desejos nem outras leis
senão vossos caprichos, que o cínico Dolmancé vos sirva de exemplo”34.
Se, por algum momento, o carrasco preocupar-se com a condição da
pessoa sacrificada, ele já não pode mais ser considerado um verdadeiro
libertino, pois está dando uma atenção indevida a quem, a princípio, não
merece nenhuma.
A concepção de uma “dupla” na qual um castiga e outro é castigado só
é possível pelo olhar normalizador e externo da modernidade, não pela visão
do libertino. Ao promover a unificação de gostos, corpos e comportamentos,
tendo um ideal de “igualdade” extrapolando o campo jurídico/ social e
penetrando no psíquico e biológico35, a cultura burguesa pôde criar uma
“verdade científica” a ser aceita, unida a um único modelo ideal de existência a
ser almejado. Logo a diferença entre estilos de vida e visões de mundo
existente entre um nobre cruel e um camponês violentado foi gradualmente
substituída pela noção de um perverso e uma vítima, ambos originados de uma
mesma matriz subjetiva.
33 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 88 34 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit. pág. 5 35 Igualdade claro, para os europeus brancos, do sexo masculino e adultos, ou seja, aqueles que criaram nossa noção de “ciência” como a conhecemos ainda hoje.
111
Para os devassos do Marquês, apesar de ser o elemento determinante
do prazer sadiano, a vítima é tratada apenas como um instrumento, algo como
um acessório para a masturbação; mas sem ele, o gozo não seria completo.
Suas orgias sangrentas estão muito mais para deleites individuais em que se
viola corporalmente o outro do que “relações” sexuais: “- Ó meu pai! esse lugar
é tão delicado, ides matar-me. – Pouco me importa, desde que eu me
satisfaça”36
Por isso outro elemento fundamental é o não consentimento por parte
dos supliciados. A dor destes aliada ao desespero, serve de base para o
regozijo das personagens do Sade: “teria duvidado do meu sucesso sem os
gemidos da vítima, mas meu triunfo está assegurado, pois cá está o sangue e
o choro”37. O que separa carrascos de vítimas não é a distinção entre quem
infringe a tortura e quem agoniza, pois já foi demonstrado como os libertinos
podem também gozar ao serem flagelados. A diferença está na permissão
intencional de ser torturado e com isto sentir prazer.
O limite entre estes dois universos é claro. Tão absurdo quanto um
devasso que se preocupa com as conseqüências dolorosas de seu crime
perdendo assim a capacidade de deliciar-se, somente uma vítima entregando-
se por iniciativa própria: “Eles querem estar certos de que os seus crimes
arrancam lágrimas, mandariam de volta uma moça que se entregasse a eles
voluntariamente”38.
Tal atitude de entrega voluntária, somente faria sentido se tivesse como
objetivo o alcance de algum prazer e, desta forma, a pessoa só poderia ser um
adepto do crime. Graças à educação e treinamento, distingue-se quem está de
qual lado: “mesmo uma mulher, numa escola semelhante, logo perdendo toda
a sua delicadeza e todo o recato de seu sexo, não poderia, segundo o exemplo
de seus tiranos, tornar-se senão obscena ou cruel”39. Às vítimas falta a
capacidade, a sensibilidade física e mental. Falta-lhes “espírito”. Como diz a
36 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 132 37 Idem, Ibidem, pág. 150 38 Idem, Ibidem, pág. 124 39 Idem, Ibidem, pág. 145
112
libertina Dubois ao tentar converter Justine ao vício: “tu amas mais do que eu
pensava a tua infelicidade”40.
Os senhores devem causar a maior dor possível: “nunca fustiguei
alguém que me proporcionasse tanto prazer"41; assim como os escravos
devem senti-la da maneira mais agonizante como testemunha Justine: “parecia
que me arrancavam os membros e que meu estômago, que estava sem apoio
e pendia pelo peso para o chão, iria abrir-se a qualquer momento; o suor
corria-me da fronte, eu existia apenas pela violência da dor“42, o que, por sua
vez excita ainda mais os devassos: “o sangue brota... Rodin fica extasiado;
deleita-se na contemplação dessas provas gritantes de sua ferocidade”43.
É difícil conseguir falar em uma “dupla” na dinâmica carrasco/ vítima
descrita pelos textos do Marquês, pois apesar da absoluta dependência dos
primeiros pelos segundos, todo o foco do prazer é centrado apenas nos
algozes. O “par” sadiano é, para o libertino, um só: ele mesmo.
40 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 140 41 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 131 42 Idem, Ibidem, pág. 54 43 Idem, Ibidem, pág. 80
115
“Em minha opinião, você é um grande corruptor de mulheres”1
Se o marquês de Sade interessa-se por vítimas, Sacher-Masoch deseja
escravos. Seu foco não está nos senhores, mas nos servos. No fundo, homem
e mulher procuram alguém para educar e depois, servir. A própria Wanda2
confirma isto: “Não um outro escravo, já estava farta do primeiro: um senhor. A
mulher precisa ter um senhor e adorá-lo”3. Para analisar o “par” dominador/
submisso no texto deste escritor austríaco, utilizarei exclusivamente o livro “A
Vênus das Peles” pelos mesmos motivos já expostos no capítulo II.
Os escravos necessitam de alguém sensível e inteligente, que não
apenas esteja livre de convenções sociais preconceituosas, mas seja capaz de
dedicar sua vida a um envolvimento sensual desconhecido e intenso. Assim
como consideram-se especiais, procuram por uma companhia que seja única:
“O senhor é, de fato, um homem fora do comum; seria preciso ir muito longe
para encontrar outro igual”4. O tirano é quem deve estar à altura do servo.
Nosso autor busca as mulheres refinadas, cultas, que sabem utilizar-se
de artifícios para realçar sua beleza natural: “Minha austeridade catoniana,
meu misoginismo, cediam lugar a um sentimento estético elevado a seu mais
alto grau (...) eu jurava que não iria prodigalizar minhas emoções com um ser
vulgar, mas sim reservá-las para uma mulher ideal, ou, talvez, para a própria
deusa do amor”5. O homem supra-sensual de Sacher-Masoch submete o
prazer à estética. Esta “supra-sensualidade” é também o resultado de uma
sensibilidade e um intelecto desenvolvidos. Como os corpos não devem ser
mostrados explicitamente, mas apenas insinuados, os adereços que os
acompanham merecem todo o destaque. Eles vão compor uma nova forma
ajudando a criar um “ambiente” propício.
Chicotes, peles, sapatos de salto ajudam a esconder a nudez e a revelar
a essência da mulher que os veste: “Ela mostra o pé sobre a bainha de cetim
1 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 189 2 Wanda personagem de “A Vênus das Peles”, não a esposa de Sacher-Masoch. 3 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 286 4 Idem, Ibidem, pág. 186 5 Idem, Ibidem, pág. 187
116
branco e eu, louco supra-sensual, neles coloco meus lábios”6. Igual a um
quadro raro, a imagem feminina deve transparecer uma beleza sobrenatural.
Não mais alguém simples em sua vida cotidiana, mas uma deusa, uma Vênus:
“Via na sensualidade algo sagrado (...) na mulher e sua beleza, algo divino”7.
Sem este encanto originado de um delicado sentimento estético, o prazer
torna-se grosseiro e apressado.
Mas toda esta beleza cria uma distância entre o admirador e a pessoa
adorada, tornando-a fria e impenetrável. O escravo está ali apenas para
testemunhar os encantos de sua senhora, mantendo-se no lugar inferior que
lhe é de direito. Na guerra dos sexos, a fêmea é o gênero vitorioso, pois só ela
mantém ainda a comunhão com a natureza: “o homem aceita sempre os
princípios, ao passo que a mulher segue sempre os seus impulsos”8. Ambas,
mulher e natureza, são extremamente cruéis. A relação dominador / submisso
em Sacher-Masoch expressa também uma “ordem natural”: “A natureza não
conhece a estabilidade nas relações entre homem e mulher”9.
O silêncio, a frieza e o distanciamento são a manifestação de algo
superior e imutável, encarnado na figura feminina: “E vi a mulher cruel como
sendo a natureza, que afasta de si aquilo que já teve serventia e de que já não
precisa; enquanto que para o homem são verdadeiras delícias os maus tratos,
a própria morte dada por uma mulher”10. Por esta proximidade com o lado mais
“selvagem” da vida, a mulher mostra-se o líder e algoz ideal. Para este autor,
justamente pelos sexos não estarem no mesmo nível, a relação mais legítima
entre eles é a de servidão.
Sendo o feminino o gênero mais espontâneo, também revela-se o sexo
mais “livre”, maleável, ou seja, mais apto a ser “educado” por um escravo. A
mulher que a princípio não deseja tornar-se uma tirana, é intensiva e
constantemente treinada para esta função até adquirir o gosto pela vilania:
“devo confessar-lhe algo. Você corrompe meu sonho; meu sangue ferve, e
começo a ter prazer nisso tudo”11. Mas o servo determina a quantidade e a
6 Idem, Ibidem, pág. 245 7 Idem, Ibidem, pág. 191 8 Idem, Ibidem, pág. 207 9 Idem, Ibidem, pág. 169 10 Idem, Ibidem, pág. 192 11 Idem, Ibidem, pág. 195
117
qualidade do sofrimento imposto. Não por dizeres explícitos, mas através do
conhecimento adquirido dos gostos e prazeres do subjugado.
O comando está nas mãos do escravo, pois o senhor deve orientar-se
pelos desejos e limites daquele: “mas tentarei isso por ti, Severino, pois te amo
como nunca amei ninguém”12. O carrasco na verdade é uma cria da vítima. Um
torturador real, tendo em vista antes o seu prazer do que o do escravo, não
apenas demonstra ser um perigo, mas uma decepção. Ele não pode ser
treinado e, já tendo gosto próprio, fracassa o projeto de educá-lo na mesma
sintonia do sacrificado.
Assim, para assegurar que o dominador corresponda aos anseios do
súdito, os contratos são imprescindíveis. Através deste pacto, muitas vezes
literal, o submisso garante a fidelidade do algoz, certificando ao mesmo tempo
a sua devoção a ser retribuída. A única maneira de este trato ser rompido
mostra-se justamente pela “desistência” do escravo. Quando o tirano
ultrapassa os limites impostos ou mostra-se incapaz de cumprir com as
“obrigações” cruéis, não há mais sentido na relação: “Enquanto era apenas
impiedosa e cruel pude ainda amá-la, mas está se tornando agora vulgar. Não
sou mais o escravo que se deixa pisotear e chicotear. A senhora mesmo
devolveu-me a liberdade e abandono esta mulher que só posso odiar e
desprezar”13. Nestes acordos, não é o dominador que compra ou conquista a
vida do sacrificado, mas este quem a oferece, como um presente após um
longo processo educacional.
“Tanto o seu corpo, sua alma me pertence também e, mesmo lhe
causando grande sofrimento, você deverá submeter à minha autoridade suas
sensações e sentimentos (...) Sua honra me pertence, assim como seu
sangue, seu espírito, sua força de trabalho. Eu sou sua soberana, senhora de
sua vida e de sua morte”14. Para assumir um tal compromisso, faz-se
necessária muita cumplicidade. Mesmo com trechos tão absolutos como estes
- atribuídos a um contrato de Leopold Von Sacher-Masoch com Wanda de
Dunaiew - parecendo impedir qualquer escape, é unicamente o consentimento
do cavaleiro que irá fazê-lo assinar tal papel.
12 Idem, Ibidem, pág. 196 13 Idem, Ibidem, pág. 283 14 Idem, Ibidem, pág. 310
118
Ainda que seja um servo de “corpo e alma”, existe uma opção íntima
que o faz aceitar tal sujeição, mesmo sob o jugo de um chicote que já não lhe
causa prazer: “Pensei por um instante em me vingar, matá-lo. Mas eu estava
preso àquele miserável contrato; nada podia fazer senão manter minha palavra
e trincar os dentes”15.
O contrato também garante a continuidade de um dos elementos
principais encontrados na relação entre as personagens Séverin e Wanda: o
clima, a atmosfera erótica. Para que esta possa ser criada, são necessárias as
roupas únicas, gestos próprios e até mesmo locais especiais: “De que me
adianta ter um escravo onde todo mundo o tem?”16 O ambiente deve ser
cuidadosamente preparado visando um aumento na intensidade da cena, mas
o foco gerador de tal tensão está na atitude da dominadora, que deve mostrar-
se autoritária correspondendo às expectativas: “Quanto mais me maltratas
como acabas de fazer, mais inflamas meu coração e embriaga meus
sentidos”17.
Na espera por este tipo de especial atenção, o escravo alimenta seu
prazer. Como em um rito, cada gesto é medido, podendo significar o chamado
para algum serviço ou mesmo um castigo: “Que encanto há nesta dúvida,
neste temor!”18 O clima de envolvimento entre tirano e servo não se restringe
apenas aos momentos de presença física, mas está presente também durante
a ausência dos corpos. Neste momento, o tempo “real” está suspenso,
passando a existir somente o prazeroso tempo subjetivo. O dominado sente-se
em um universo estático prolongando seu deleite, entregando-se a expectativa
de um chamado que pode vir a qualquer hora: “- Deves descer num instante
aos aposentos da senhora. – Pego minha touca, vou tropeçando pelos degraus
que me separam do primeiro andar e chego afinal felicíssimo diante da porta e
bato”19.
Masoch demonstra uma concepção de intimidade bastante comum à
aristocracia, embora estranha ao mundo burguês que se alastrava rapidamente
15 Idem, Ibidem, pág. 299 16 Idem, Ibidem, pág. 213 17 Idem, Ibidem, pág. 232 18 Idem, Ibidem, pág. 214 19 Idem, Ibidem, pág. 230
119
à sua volta. Como fica claro em “A Vênus das Peles”, é necessária muita
confiança e capacidade de entrega para o tipo de relacionamento proposto
neste livro. Mas esta “intimidade” não pressupõe uma abertura para um trânsito
fácil no mundo subjetivo nem na vida particular; concepções estas que
formarão um dos traços principais da “vida interior” moderna20: “Proíbo-lhe
qualquer familiaridade”21.
A verdadeira “natureza” da pessoa estava claramente à vista através
das roupas, posturas, maneiras de falar e agir. A “diferença” entre nobres e
plebeus, mostrava-se de maneira explícita e direta: a aparência era a
expressão da “essência”. São os burgueses que vão vestir roupas elegantes e
aprender gestos refinados para “parecerem” educados. Os nobres, dentro da
sensibilidade e da cultura européia dominante desta época, não precisavam
parecer, pois já “eram” educados22.
Como a “subjetividade” estava centrada na formalidade das relações
sociais e afetivas, em que estas apresentavam um caráter rígido em que
homens, mulheres, escravos e senhores conheciam bem seus deveres e
obrigações, qualquer tentativa de penetrar em uma “natureza interna” além da
já mostrada e demonstrada soava como uma violação, uma grosseria. Os
desejos e sonhos eram mais um segredo a ser mantido do que um mistério a
se desvendar23.
Assim chegamos a um ponto fundamental da relação dominador/
escravo: o limite. Da mesma forma que guerreiros mantêm uma distância
mínima para com seus pares ou inimigos, amantes devem igualmente
sustentar esta tensão geradora de mistério e angústia, mas também de desejo
e prazer: “Que delícia, se fores tão graciosa a ponto de permitir alguma vez ao
escravo beijar os lábios de que depende sua sentença de vida ou de morte!”24
20 Surgindo disto até algumas ciências que visarão a devassa do mundo bio-psíquico para melhor “curá-lo” - como a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise. Para nós modernos, não existe nenhuma “intimidade” tão sagrada que uma ciência qualquer não possa fazer um diagnóstico completo. Sobre este tema, ver GORDON, Richard, A Assustadora História da Medicina, Rio de Janeiro, Ediouro, 1995 e do mesmo autor, A Assustadora História do Sexo, Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, além de FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber, op. cit. 21 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 222 22 RIBEIRO, Renato Janine, A Etiqueta no Antigo Regime, São Paulo, Brasiliense, 1983 23 Para esta discussão, cito novamente FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber, op. cit. 24 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 210
120
A excitação parece ser a ponte imaginária que faz a ligação entre os seres
desiguais.
Este é mais um dos motivos porque o processo de educação do senhor
mostra-se tão importante. Sem este esforço pedagógico, o algoz poderia,
intencionalmente ou não, ultrapassar barreiras que anulariam o prazer do
escravo e transformariam o que deveria ser deleite em terror. O erotismo da
“Vênus das Peles” reside neste jogo com os limites. Os extremos devem ser
testados e trabalhados até onde seja possível expandi-los, alcançando desta
forma uma nova fronteira: “só que tenho a diabólica curiosidade de saber até
onde chega tua resistência”25.
Desta maneira, a participação deste outro na construção do prazer do
escravo torna-se patente: “Sinto, porém, a mágica armadilha que sua
extraordinária e verdadeira beleza estende para mim. Isto não é uma atração
do coração que nasce em mim; é uma sujeição física que se faz lentamente,
mas, pela mesma razão, completamente”26. O dominador deve atuar
constantemente de forma ativa nesta dinâmica, trabalhando sempre na
delicada e sutil região limite entre a humilhação prazerosa e a atitude ofensiva,
entre a dor que causa deleite e a agressão que fere a confiança.
Realmente pode-se falar de um “par” neste tipo de relação, embora o
controle final da situação esteja nas mãos de um só, o servo, pois é ele quem
determina os limites, permitindo-se receber as dores no corpo e na alma,
tirando ou conferindo poder ao senhor. Existe uma cumplicidade forjada às
custas de um processo pedagógico gerenciado pelo escravo: “Faça de mim o
que quiser, mas sem se afastar de mim”27. É o consentimento deste o qual
permite a formação de um jogo onde ele é a figura principal. Mas apenas
quando um elemento está inteiramente ligado ao outro este tipo de
relacionamento faz sentido. A própria Wanda pergunta: “- Quer ser meu
escravo?”28, deixando claro que, se a resposta fosse negativa, não haveria
sessões de flagelação nem servidão.
25 Idem, Ibidem, pág. 200 26 Idem, Ibidem, pág. 174 27 Idem, Ibidem, pág. 195 28 Idem, Ibidem, pág. 172
121
Graças a esta cumplicidade e a confiança depositada no déspota criado,
o escravo pode finalmente entregar-se ao deleite de ser castigado tanto na
carne como no espírito. Principalmente nesta segunda região, onde o sonho
mistura-se com a realidade e a imaginação torna-se capaz de transformar as
atrozes dores do corpo em sensações de gozo.
O suplício físico é apenas uma extensão da tortura moral, sendo esta o
desejo primeiro e fonte geradora de prazer: “Meu sonho tomou corpo”29. Com
isto o dominado garante ainda mais uma vez o controle sobre os atos e
intenções do tirano, pois para a flagelação do espírito, faz-se necessária uma
total atenção por parte do senhor sobre o escravo. A dor na carne só possui
sentido quando o “clima” está saturado de paixão, violência e um falso
desdém. Do contrário, pode tornar-se incômoda e perigosa.
Mas, uma pergunta fica no ar: se empregarmos o termo “dor” para
designar um estado físico ou psíquico desagradável e penoso, então seria esta
a palavra ideal para designarmos as sensações ocasionadas no tipo de relação
acima descrito?
Claro que a percepção física é real e intensa, podendo deixar em muitos
casos marcas e cicatrizes mais sérias e delicadas que as da mente, mas o
autor de “Dom Juan de Kolomea” nos ajuda a enxergar o quanto nossas
reações psíquicas e corporais sofrem influência da cultura a qual estamos
inseridos30.
O chamado “masoquismo”, justamente pela sensação dolorosa nele
envolvida, é, na concepção das personagens de Sacher-Masoch, fonte de
prazer; necessitando, não de um libertino “sádico”, mas de um escravo “supra-
sensual” unido a um compreensivo e bem treinado senhor.
29 Idem, Ibidem, pág. 201 30 O simples ato de depilar-se com cera quente, que tantas mulheres praticam tão despreocupadamente pode ser uma verdadeira tortura para muitos homens.
125
“A contraparte perfeita do masoquismo é o sadismo. Enquanto no primeiro
existe o desejo de sofrer e ser submetido à violência, no segundo o desejo é
de infringir dor usando da violência. O paralelo é perfeito. Todos os atos e
situações usados pelo sádico no papel ativo tornam-se o objeto de desejo do
masoquista no papel passivo”1
Ao deixarmos de lado “Justine” e “A Vênus das Peles” para nos
aprofundarmos na “Psychopathia Sexualis” de Krafft-Ebing, saímos também do
campo da literatura para o domínio da clínica; da arte para a ciência. Nosso
foco transfere-se do libertino ou do homem supra-sensual – antes de tudo,
personagens literárias – para o sádico e o masoquista, indivíduos exemplares
de categorias clínicas criadas pela psiquiatria.
O que até então se afigurava como pertencente ao universo da fantasia
desvairada, agora é estudado como realidade concreta do cotidiano burguês.
Nesta passagem ficam de lado as intenções, sensibilidades e filosofias
contidas nas obras de Sade e Sacher-Masoch, entrando em cena o positivismo
médico.
O novo discurso sobre as “aberrações” do comportamento sexual surge
predominantemente no último terço do século XIX, originado do saber jurídico.
A sexualidade “monstruosa” era pensada até então, apenas como um dos
possíveis sintomas da loucura2. Os avanços da medicina, principalmente na
área do funcionamento cerebral – e o embasamento fisiológico daí decorrente
das teorias dos instintos, proporcionaram a justificativa científica para os
receios morais em relação ao sexo perverso, ao mesmo tempo em que davam
a impressão de estar completamente distantes um do outro: “a ninfomania era
uma perversão, não porque chocasse a decência, mas porque correspondia à
prevalência do centro medular sacro, habitualmente subordinado aos centros
superiores. (...) Os perversos não o eram porque fizessem amor
diferentemente da média das pessoas, nem porque suas condutas não
1 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 140 2 Este tópico já foi desenvolvido no capítulo III.
126
levassem à fecundação, mas porque seus comportamentos correspondiam a
uma desestruturação da ordem do sistema nervoso central.”3.
Da mesma maneira, anula-se a legitimidade do prazer orgásmico,
principalmente o feminino. Se a finalidade da vida sexual visa a reprodução, e
no homem a ejaculação se encontra intimamente ligada ao orgasmo, acredita-
se que o prazer é fundamental e intrínseco à estrutura masculina - embora não
obrigatório. No caso da mulher, o importante é a capacidade de concepção, o
útero fértil. Desta forma, a frigidez revela-se como um claro indício de que o
prazer feminino não se faz necessário à propagação da espécie: é um
elemento estranho aos fundamentos da psique feminina, não sendo de “bom
tom” que jovens finas e educadas, treinadas nas mais delicadas condutas da
civilidade entreguem-se à “sujeira” ou aos “perigos subversivos” do gozo
carnal.
Segundo Georges Lanteri-Laura, os perversos são então divididos
silenciosamente em duas categorias: os “bons” e os “maus”4. No primeiro
grupo encaixam-se os indivíduos respeitados por seus bens, capacidades
intelectuais e um sobrenome socialmente importante. Estas pessoas são
objetos de compaixão, vistas como infelizes sobre os quais um destino trágico
se abateu. Para eles, são desenvolvidos todos os esforços médicos e jurídicos
visando curá-los ou livrá-los das prisões. Como declara Krafft-Ebing: “Sua
aparência era inegavelmente masculina, sua conduta decente e além de
críticas. Ele queixava-se de neurastenia cerebral (fraqueza de mente, de força
de vontade, ausência de disposição, irritabilidade, timidez, ansiedade mental,
pressão na cabeça, etc.). Genitais normais. Ereções somente pela manhã”5
(caso 61/ flagelação passiva e masoquismo); ou o exemplo do sargento
Bertrand (caso 23), que embora praticasse necrofilia e mutilação de cadáveres
para fins sexuais, por ser excelente soldado foi sentenciado - por uma corte
marcial - a apenas um ano de prisão.
Já os segundos, sem posses, com pouca inteligência - embora esta seja
considerada astuciosa - e o sobrenome é quase sinônimo de marginalidade,
são encarados com rigidez, receio e desdém. A psiquiatria considera-os
3 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, pág. 56 4 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. 5 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 104
127
estando mais próximos do vício que da doença, da perversidade que da
perversão, e as faltas por eles cometidas declaram de antemão a condição de
culpados. Os manicômios judiciários e a psiquiatria forense são desenvolvidos
tendo em foco esta segunda categoria, como mostra este exemplo do
“Psychopathia Sexualis”: “O paciente exteriormente – sua cabeça mal formada,
suas orelhas largas e proeminentes, a deficiente enervação do músculo facial
direito ao redor da boca, a expressão neuropática dos olhos – indicava um
degenerado, um indivíduo neuropático”6 (caso 67/ masoquismo idealizado).
Ainda para Lanteri-Laura, os “pervertidos” com suas atitudes extremas
são vistos pelos médicos ora como ridículos, ora como monstros. E os sádicos
e masoquistas encarnam perfeitamente esta visão pendular.
Outro dado importante a ressaltar: nesse momento, o discurso passou
das mãos dos protagonistas para a de seus comentadores. Os debochados do
Marquês não mais discorrem tratados filosóficos nem as personagens de
Sacher-Masoch imploram para serem maltratadas. Agora são os médicos que
tomam a palavra e falam pelos pacientes, desvendando assim a “ignominiosa
doença” oculta sob paixões tão “equivocadas”.
Dos quarenta e três casos de sadismo analisados por Krafft-Ebing,
apenas dois - casos 21 (assassinato por luxúria) e 23 (mutilação de cadáver) –
possuem algumas linhas contendo declarações dos próprios “sádicos”: “Eu
tenho um indizível deleite em estrangular mulheres, experimentando ereções
durante o ato e um prazer sexual real”7 (21); “Depois de ter me aproveitado do
corpo por aproximadamente quarenta e cinco minutos, eu o cortei, como
sempre, e arranquei fora as entranhas”8 (23).
Já os masoquistas, que despertam uma curiosidade clínica tão grande
quanto a “gravidade” de seu “problema”, possuem uma fala mais longa. Em
trinta e sete exemplos, sete dão espaço para as declarações dos
protagonistas9: “Estou com trinta e cinco anos idade, mental e fisicamente
6 Idem, Ibidem, pág. 108 7 Idem, Ibidem, pág. 65 8 Idem, Ibidem, pág. 68 9 Casos 51 (masoquismo idealizado); 57 (flagelação passiva e masoquismo); 70 (masoquismo latente/ fetichismo por pés e sapatos); 80 (masoquismo/ coprolagnia) e 84 (masoquismo em mulheres).
128
normal”10 (caso 57/ flagelação passiva e masoquismo); “Eu fantasio que bater
em mim por amor dá a ele o mais alto prazer”11 (caso 84/ masoquismo em
mulheres).
Em todos os outros, ouve-se apenas a voz de Krafft-Ebing servindo de
intérprete, juiz ou guia para os “doentes”: “Este ato imoral desenvolvido numa
fantasia luxuriosa em que ele mentirosamente acreditava estar amarrado entre
as coxas de uma mulher, forçado depois a dormir debaixo dela e a beber sua
urina”12 (caso 81/ masoquismo – coprolagnia).
“Desta forma, - observa o médico - masoquismo e sadismo representam
contrapartes perfeitas. Isto é tão harmonioso que indivíduos afetados com
estas perversões consideram a perversão oposta no outro sexo como o
ideal”13. A partir desta concepção, o autor de “Psychopathia Sexualis”
apresenta como exemplo o caso 57 (flagelação passiva e masoquismo) e as
“Confissões” de Rousseau: “Seria errôneo, entretanto, supor que Rousseau
estivesse meramente preocupado com flagelação. A flagelação só despertou
idéias de natureza masoquista. Finalmente nessas idéias repousa o núcleo
psicológico de seu interessante estudo do Self. O elemento essencial com
Rousseau era o sentimento de subjeção à mulher. Isto é claramente mostrado
nas “Confissões”, na qual ele enfatiza expressivamente que “Estar aos joelhos
de uma imperiosa senhora, obedecer suas ordens, ter que pedir seu perdão,
esse era para mim um prazer muito suave”. Essa passagem prova que a
consciência da subjeção e humilhação perante a mulher eram o elemento mais
importante”14
Ora, mas é o próprio protagonista do caso 57 que esclarece o tipo de
“sádica” a quem ele procura: “Tenho dúvidas se existem mulheres de
constituição sádica como as heroínas de Sacher-Masoch. Mas se existissem
tais mulheres, e eu tivesse a sorte (!) de encontrar uma, ainda assim, no
mundo da realidade, o intercurso com ela pareceria somente uma farsa para
mim”15.
10 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 95 11 Idem, Ibidem, pág. 132 12 Idem, Ibidem, pág. 126 13 Idem, Ibidem, pág. 141 14 Idem, Ibidem, pág. 111 15 Idem, Ibidem, pág. 96
129
Apesar da decepção com a “farsa” do relacionamento real, a mulher
sonhada deve satisfazer todos os gostos do escravo e ter como modelo de
comportamento a própria Wanda da “Vênus das Peles” - que não podemos
nos esquecer, pertence ao terreno da fantasia - e não Jack, o estripador (caso
17/ assassinato por luxúria), ou mesmo Madame de Saint-Ange, de Sade, pois
como vimos antes, ambos não correspondem como “parceiros” ao universo
erótico do “masoquismo”.
Assim, vejamos como estes “perversos” conseguem realizar as
“fantasias destrutivas” de que se alimentam, e principalmente, qual o tipo de
“parceiro” lhes permite pôr em prática seus desejos. Nos 43 casos de sadismo
contidos no “Psychopathia Sexualis”, as únicas formas encontradas pelos
protagonistas para a realização de seu intento são:
1- Devaneios solitários e masturbação. Não existe um parceiro real ou uma
relação concreta neste sentido: “Ele nunca se sentiu inclinado a pôr suas
idéias sádicas em prática pois tem aversão ao intercurso sexual não natural”16
(caso 38/ sadismo idealizado).
2- Pagando prostitutas para serem humilhadas, feridas ou elas mesmas
humilharem/ ferirem a outros - inclusive animais. É algo consentido e
artificialmente preparado, ocorrendo mais por “profissionalismo” do que por
intenção: “São frequentes os casos em que homens com inclinações perversas
induzem prostitutas, pagando-lhes altos preços, a permitir a si mesmas serem
chicoteadas e até feridas por eles”17 (caso 31/ ferimentos a mulheres); “Um
oficial de Viena me informou que homens, através de grandes somas de
dinheiro, induzem prostitutas a sofrer cusparadas e a defecarem e urinarem em
suas bocas”18 (caso 33/ violação de mulheres). Poucos casos destes são
citados diretamente no livro, como o de número 46, no qual um homem paga a
prostitutas para torturarem pequenos animais.
3- Cometendo os crimes mais hediondos e repulsivos, como o assassinato, o
estupro, ou a violação de cadáveres nos quais não existe o consentimento da
vítima. Nesses casos, o prazer se encontra no terreno do crime: “Vadiando
aproximadamente oito dias na mata, surpreendeu uma garota de vinte anos,
16 Idem, Ibidem, pág. 78 17 Idem, Ibidem pág. 74 18 Idem, Ibidem, pág. 75
130
violentou-a, mutilou seus genitais, arrancou fora seu coração, comeu-o, bebeu
o sangue e enterrou os restos. Preso, de início ele mentiu, mas finalmente
confessou seu crime com um cínico sangue-frio” 19 (caso 19/ assassinato por
luxúria).
Krafft-Ebing parece enxergar algo de ridículo nas duas primeiras
maneiras de obtenção de prazer. São encenações, jogos armados ou
comprados, truques para iludir desejos bobos. Adultos masturbadores
incapazes de se relacionar “normalmente” com uma mulher ou que gastam
fortunas nas “casas de ilusão”, merecendo toda a piedade dos sábios e
“superiores” doutores. Para a ciência psiquiátrica da época, histórias como
estas servem para ilustrar toda a precariedade da psique humana e o quão
estupidificada ela pode se tornar sob a maligna força dos impulsos sexuais
desgovernados.
Quanto à terceira maneira, esta pertence ao terreno da monstruosidade.
Aqui encontra-se Vacher, outro estripador, ilustrando todas as razões para a
importância dos estudos sobre as perversões sexuais que visam evitar a
proliferação destes comportamentos assassinos através da cura ou punição
dos culpados por essas abominações.
São esses criminosos, particularmente aqueles classificados em
“ferimentos em mulheres” que serão identificados por Krafft-Ebing com as
personagens do criador de Juliette. Embora com violência parecida, mas sem a
“filosofia lúbrica” para lhes sustentar o gozo do corpo e da alma, do nome do
Marquês derivou-se uma categoria clínica das mais importantes para os
estudos da psique humana no Ocidente.
Passemos agora aos masoquistas, investigando como conseguem
realizar sua paixão. Por ser comumente um relacionamento consentido,
algumas poucas vezes a dupla é bem-sucedida, conseguindo o “perverso”
encontrar quem o satisfaça, apesar da desaprovação da “ciência” - como o
homem do caso 81/ masoquismo - coprolagnia: “Quando uma mulher urinou
em sua boca, ele sentiu um enorme prazer. Teve então o coito com esta
mulher vil. (...) Esta disputa mental enervou o paciente e ele queixava-se de
19 Idem, Ibidem, pág. 62
131
debilidade da memória, falta de disposição, impotência mental e pressão
cerebral. Sua última esperança era que a ciência médica tivesse sucesso em
libertá-lo de sua monstruosa aflição e restabelecer seu centro moral”20.
Veremos que os “métodos” para a obtenção de um parceiro são quase
idênticos aos já classificados quanto aos sádicos:
1- Devaneios e masturbação: “ele continuou a masturbar-se assistido pelo
fetichismo de sapatos e fantasias masoquistas”21 (caso 72/ masoquismo
latente – fetichismo de pés e sapatos).
2- Pagando prostitutas para os humilharem e/ ou ferir: “Ocasionalmente
obtinha uma prostituta, despia-se completamente (enquanto que ela não tirava
a blusa), e ela andava sobre ele, o chicoteava e batia”22 (caso 55/ flagelação
passiva e masoquismo).
3- Encontrando um parceiro que aceite esta forma de interação sexual e
assuma o papel de “senhor(a)”: “Ela era brilhante, inteligente e de bom-gênio, e
sentia-se totalmente feliz em sua perversa e homossexual existência. Ela
fumava e bebia cerveja”23 (caso 87/ masoquismo – coprolagnia –
homossexualismo) ;ou “Ele, mais tarde, tornou-se conhecido de uma garota
com uma tendência masoquista similar, e o coito tornou-se possível para
ambos, mas sempre tendo como recurso alguma situação masoquista”24 (caso
82/ masoquismo – fetichismo – coprolagnia). Ora, existe um ponto muito
curioso nestes exemplos: no caso 87, Krafft-Ebing afirma que a mulher assume
tanto o papel passivo quanto ativo em sua vida sexual. Já a companheira
perfeita do caso 82 também é masoquista, não uma “sádica”, parecendo
reforçar a idéia de que cada “perverso” procura um parceiro dentro de seu
universo próprio, não do “oposto”.
Dos seis25 casos contidos no item acima, em apenas um o
relacionamento não deu muito certo: “Mais tarde, depois que procurou
conselhos com os amigos, ela induzia seu marido a realizar o coito, e tiveram
20 Idem, Ibidem, 127 21 Idem, Ibidem, pág. 117 22 Idem, Ibidem, pág. 94 23 Idem, Ibidem, pág. 140 24 Idem, Ibidem, pág. 128 25 Casos nº 60; 63; 65; 82 e 87; excluindo o nº 86, no qual a paciente de um hospital tentava seduzir os ginecologistas daquela instituição durante os exames íntimos, sem obter sucesso.
132
três filhos neste tempo”26 (caso 63/ flagelação passiva e masoquismo). Este
também é particularmente interessante pelo fato de Krafft-Ebing considerar a
esposa possuidora de “sadismo simbólico”, o que a teria ajudado, durante
muito tempo, a suportar as taras do marido, sendo outro exemplo psiquiátrico
da interação sadismo-masoquismo.
Nas análises do masoquismo contidas no “Psychopathia Sexualis”,
parecem não existir “monstros” no sentido de criminosos - como os sádicos.
Agora a monstruosidade está ligada aos prazeres orais, mais especificamente
a coprolagnia27 – ou seja, o sexo oral, ou desejo em lamber os pés do parceiro
e/ou ingerir seus excrementos28: “Apesar destas ridículas tiradas, ordenadas
por ele mesmo, Z. olhava-as como um meio de satisfazer sua sexualidade
perversa. Estas monstruosidades sexuais, que para ele eram somente uma
anomalia congenital, não as considerava contrárias às leis da natureza, apesar
de admitir que elas poderiam ser repugnantes ao homem constituído
normalmente”29 (caso 80/ masoquismo – coprolagnia).
Ainda assim, o sentido patético e infantil na vida deste “doentes”
continua sendo observado no texto de Krafft-Ebing: ”Visitou periodicamente
uma prostituta que tinha que efetuar, previamente ao coito, a seguinte
comédia”30 (caso 66/ masoquismo simbólico); ou “Ele ficou tão agradecido com
sua cura, que veio me agradecer pela valiosa ajuda que encontrou na leitura
de meu livro, o qual mostrou-lhe o caminho certo para remediar seu defeito”31
(caso 72/ masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos).
Percebe-se que, no livro do psiquiatra, apenas o elemento “ativo” da
primeira dinâmica (sádico) e o “passivo” da segunda (masoquista) são
analisados, não seus pares ou o próprio relacionamento típico de cada caso.
Os sujeitos que sofrem os maus-tratos destes sádicos são mudos e
irrelevantes, tanto quanto os dominadores das práticas masoquistas. Desta
26 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 105 27 Um detalhe curioso: ao analisar a coprolagnia, Krafft-Ebing diz: “Um médico brasileiro contou-me sobre vários casos que ele teve conhecimento de defecação de uma mulher na boca de um homem”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 129 28 Ou nas palavras do doutor: “O impulso para atos repugnantes”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 123 29 Idem, Ibidem, pág. 125 30 Idem, Ibidem, pág. 107
133
forma, elementos ímpares de equações diferentes são unidos em uma nova
combinação. De duas moedas e quatro faces, forma-se uma só e nova moeda,
de duas faces “opostas”.
Mas neste sentido, nem todas as subdivisões de uma perversão
encontram um reflexo correspondente na outra, apenas as categorias em
geral. Por exemplo, Krafft-Ebing não encontra uma contrapartida perfeita no
masoquismo para o “assassinato por luxúria”, deduzindo que o instinto de auto-
preservação é mais forte que o prazer da destruição de si mesmo, embora este
possa ser abalado, como nos casos 62 e 63 (flagelação passiva e
masoquismo), por pessoas com devaneios eróticos envolvendo punhais e
lâminas ou mesmo desejando ser “morto por mulheres com facas” 32 (62).
Mesmo dentro da coprolagnia – uma subdivisão do masoquismo - a analogia
com o sadismo se faz presente na forma de canibalismo e “vampirismo”.
Em determinado momento, um paciente chega inclusive a acreditar em
uma técnica de “cura” através do relacionamento sádico – masoquista, pois
estas duas “doenças”, ao se defrontarem, tenderiam a restabelecer o
“equilíbrio” perdido: “Ele agora confinou-se em suas fantasias masoquistas,
tendo esperança que algum dia encontraria a mulher ideal que por meio de
atos sádicos poderia conduzi-lo ao intercurso sexual normal” 33 (caso 69/
masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos).
Krafft-Ebing crê que o sadismo e o masoquismo são perversões
distintas e independentes, embora complementares. Mas esta
complementaridade não surge da dinâmica dos parceiros em cada uma destas
“perversões”, ou de uma eventual leitura interpretativa das obras de Sade e
Sacher-Masoch, e sim de associações já pré-estabelecidas e estudadas no
capítulo III, tais como feminino= passivo= masoquismo em oposição a
masculino= ativo= sadismo.
Ora, mesmo com toda a sutileza da interpretação dos fatores
psicológicos que o faz notar detalhes até então desapercebidos da psiquiatria -
tais como a importância da fantasia sobre a dor física para o masoquista e o
31 Idem, Ibidem, pág. 118 32 Idem, Ibidem, pág. 105 33 Idem, Ibidem, pág. 114
134
prazer em causar dor além do campo genital/ sexual34 - muito da concepção de
“oposição complementar” deve-se à análise destas associações já existentes,
analisadas agora em relação à dor. Em suma, se o comportamento é passivo,
tem-se o masoquismo; quando ativo, origina-se o sadismo.
Disso decorre a conclusão de que sendo o homem “naturalmente” ativo,
o sadismo seria apenas um exagero da agressividade estrutural masculina; no
caso da mulher, considerada “naturalmente” passiva, o masoquismo se
originaria de um excesso de submissão. Desta lógica dual, resultariam os
“opostos complementares”:
masculino/ feminino
ativo / passivo
sadismo/ masoquismo
Nem todos os casos, parece, se enquadrariam nesta lógica: mesmo
sendo poucos, existem os “doentes” possuidores de traços das duas
perversões, embora uma delas seja a “principal”: “Os casos na qual sadismo e
masoquismo ocorrem simultaneamente em um indivíduo são interessantes,
mas apresentam algumas dificuldades de explicação. (...) De qualquer forma,
uma das duas perversões é sempre marcadamente predominante”35. Eles
serão fundamentais para mais adiante, com Freud, surgir o conceito de
“sadomasoquismo”. Estes homens e mulheres que não sofrem apenas com
uma “degeneração”, mas com duas, serão os primeiros a serem chamados de
“sadomasoquistas”36.
No livro “Psychopathia Sexualis” encontram-se quatro casos em que o
sadismo e o masoquismo acham-se no mesmo paciente. São eles : (57/
flagelação passiva e masoquismo; 67/ masoquismo idealizado; 74/
masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos e 75/ masoquismo latente
– fetichismo por pés e sapatos). “Ele poderia ser classificado como um caso de
masoquismo idealizado, com sadismo rudimentar”37 (67); além de uma rápida
análise do poeta Baudelaire, também incluído neste grupo: “Havia também
34 “Ainda assim, isto não é sadismo, contanto que elementos sexuais não entrem na consciência; e contudo é possível que, na vida inconsciente, um tênue fio conecte tais manifestações com as profundezas ocultas do sadismo”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 85 35 Idem, Ibidem, pág. 142 36 Não por Krafft-Ebing, mas por Freud.
135
elementos de masoquismo (e sadismo) no escritor francês C. P. Baudelaire,
que morreu insano. Baudelaire veio de uma família insana e excêntrica. Desde
sua juventude ele era psiquicamente anormal. Sua vida sexual era
decididamente anormal. Ele teve casos de amor com mulheres feias e
repulsivas – negras, anãs, gigantes (...)”38.
Em todos eles existe a preponderância do masoquismo sobre o
sadismo. Não há nenhum caso em que o sádico possua elementos
masoquistas, somente o contrário. Entre todos os exemplos, apenas o caso 74
(masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos) é descrito como: “o
elemento masoquista tão bem quanto o sádico estão em evidência”39. Este é o
único exemplo na qual as duas perversões aparecem com peso igual40, apesar
de serem ainda elementos distintos.
Vemos desta forma que a concepção de “sadomasoquismo” já está
semeada em Krafft-Ebing, embora este não a desenvolva41. Nenhuma análise
é feita neste sentido, pois para a psiquiatria da época, sadismo e masoquismo
são coisas separadas – e complementares.
Os nomes do Marquês de Sade e do Cavaleiro de Sacher-Masoch42
serviram apenas para nomear atitudes e intenções “perversas”, a princípio
independentes entre si. Vejamos o que é dito sobre estes autores: “O notório
Marquês de Sade, depois de quem esta combinação de luxúria e crueldade foi
nomeada, era como um monstro. O coito só o excitava quando ele podia
perfurar o objeto de seu desejo até o sangue sair. Seu maior prazer estava em
ferir prostitutas nuas e então fazer curativos” 43; “Eu sinto justificado chamar
esta anomalia de “Masoquismo”, porque o autor Sacher-Masoch
freqüentemente faz desta perversão, a qual até agora era bastante
desconhecida como tal do mundo científico, o substrato de seus escritos. (...)
Durante os últimos anos, fatos têm sido adiantados provando que Sacher-
37 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 108 38 Idem, Ibidem, pág. 112 39 Idem, Ibidem, pág. 119 40 Surgindo talvez daí o termo “sado-masoquismo” encontrado no livro editado pela Velvet Publications e já comentado no capítulo III. 41 Nem o conceito, nem o termo. 42 Que no livro é chamado de “campeão literário do masoquismo”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 125
136
Masoch era não somente o poeta do Masoquismo, mas ele mesmo era afetado
por esta anomalia”44.
Parece existir conhecimento dessas obras por parte de Krafft-Ebing,
mas não é delas que a dinâmica sadismo – masoquismo irá tirar suas bases.
Os escritos destes autores são usados para nomear sujeitos, não relações.
Dentro da psiquiatria, as categorias conhecidas como “sadismo” e
“masoquismo” tornam-se dois pólos contrários de uma mesma energia sexual
desviante. Libertinos, supra-sensuais, assassinos cruéis enfurecidos ou
pacatos amantes “criativos” são então unidos e aprisionados em uma mesma
camisa de força: o conceito de “perversão”: “Com respeito à oportunidade para
a satisfação natural do instinto sexual, toda a expressão disso que não
corresponda ao propósito da natureza – propagação – deve ser considerada
perversa”45 (...) Desta forma, masoquismo e sadismo aparecem como as
formas fundamentais da perversão psico-sexual, podendo fazer suas aparições
em qualquer ponto no domínio da aberração sexual”46.
43 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 69 44 Idem, Ibidem, pág. 87. E o autor continua: “Refuto a acusação de que eu tenha unido o nome de um reverenciado autor a uma perversão do instinto sexual, a qual tem sido feita contra mim por alguns admiradores do autor e por alguns críticos de meu livro. Como homem Sacher-Masoch não pode perder nada da estima de seus cultos semelhantes simplesmente porque ele era afetado por uma anomalia dos sentidos sexuais” Idem, Ibidem, pág. 87 45 Idem, Ibidem, pág. 52 46 Idem, Ibidem, pág. 53
139
“Depois vêm os sádicos, essas pessoas enigmáticas, cujas tendências
carinhosas não têm outro fim senão o de causar sofrimento e tormento a seus
objetos, indo desde a humilhação até as lesões físicas graves; e, como que
para contrabalançá-los, seus equivalentes opostos, os masoquistas, cujo único
prazer consiste em sofrer toda espécie de tormentos e humilhações de seu
objeto amado, seja simbolicamente, seja na realidade”1
Com os estudos de Freud, uma nova mudança ocorre na maneira de
entender os perversos e, entre eles, os sádicos e masoquistas. Conforme foi
visto no capítulo IV, a perversão para ele é uma “falha” no desenvolvimento
psíquico sadio. Sendo a sexualidade infantil “naturalmente” perversa, ou seja,
não genitalizada e sem um objeto externo, o processo de amadurecimento
humano corre sempre o risco de estancar ou retroceder até a fase primeira.
Assim, os perversos não são mais doentes degenerados ou terríveis
promíscuos; são apenas “crianças”: “em suma, que a sexualidade pervertida
não é senão uma sexualidade infantil cindida em seus impulsos separados”2.
Ora, não podemos nos esquecer de que, apesar de Freud atentar para a
sexualidade num universo até então “puro”, o status infantil continua – como
até hoje – o mesmo: crianças são irresponsáveis, incapazes de pensar ou agir
por si próprias, necessitando sempre da gerência de um adulto sobre suas
vidas3.
Sendo “adultos em potencial”, o mundo infantil com toda a sensibilidade,
razão e fantasias próprias, é entendido como uma “fase” no caminho da tão
almejada maturidade. E o modelo base para atitudes, idéias, emoções ou
mesmo sonhos é o adulto4. A criança aparece como um homem ainda
incompleto, cheio de “falhas” graças a sua “imaturidade”. Ela é um “quase”
1 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 2 Idem, Ibidem. 3 Quantas pessoas não são ofendidas – ou se ofendem – pelos termos “imaturo” ou “infantil”, sendo estas palavras extremamente desabonadoras nos campos profissionais, afetivos e, claro, sexuais. 4 De preferência branco, forte, rico e culto. E homem.
140
adulto, assim como o perverso. Ser considerado “infantil” quando não
pejorativo, é no mínimo, minorativo5.
Mesmo a incapacidade das crianças em privilegiar a libido objetal (amor
ao outro) mais do que a libido narcísica (amor a si mesmo) vai caracterizar a
perversão adulta, como mostra Lanteri-Laura: “Embora ele nunca escreva que
o perverso é egoísta, Freud acaba, afinal, por excluir de antemão qualquer
autenticidade das paixões dos perversos: mesmo que a conotação moral tenha
pouca importância, persiste o fato de que os perversos são tidos por incapazes
de qualquer sentimento que não seja ilusório, sejam quais forem suas
aspirações. Seria difícil desprezá-los mais objetivamente”6
Crianças são como mulheres: iguais, mas inferiores aos homens. Da
mesma maneira que o prazer perverso infantil necessita transformar-se em
genital e heterossexual, privilegiando a interação pênis/ vagina - ou melhor,
pênis dentro da vagina - o orgasmo clitoridiano deve ceder lugar ao orgasmo
vaginal durante o amadurecimento feminino: “O processo pelo qual uma
menina se transforma em mulher depende muitíssimo da possibilidade de o
clitóris ceder sua sensibilidade ao orifício vaginal, na época oportuna e de
forma completa”7. Dessa forma, percebe-se a sutil diferença do gozo perverso:
por ser “infantil”, é inferior ao gozo “normal”.
É curioso notar como a mulher nesses estudos, manteve o caráter
“perigoso” que há séculos a acompanha na cultura Ocidental, oficializado
primeiro pela Igreja, depois pela psiquiatria. Sua intimidade com as perversões
exige do homem uma constante atenção para este não regressar aos tempos
da “barbárie” – ou do “infantilismo”: “Nesse aspecto, a criança não se comporta
de maneira diversa da mulher inculta média, em quem se conserva a mesma
disposição polimorfa (...) guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em
5 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 93 6 Idem, Ibidem, pág. 123 7 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. Freud ainda continua: “Nos casos conhecidos como de anestesia sexual das mulheres, o clitóris reteve obstinadamente sua sensibilidade”. “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. Ora, mas se a mulher está “anestesiada” sexualmente, como é que este “obstinado” clitóris continua sensível? É algo curioso, mas em alguns momentos Freud parece não ter muita familiaridade com este órgão feminino. No texto “A Sexualidade Infantil” ele afirma estar o clitóris relacionado à micção como a glande masculina: “(...) Nas crianças tanto de sexo masculino quanto feminino, está ligada à micção (glande, clitóris)” “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
141
todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual”8. A mulher, além de
um homem incompleto, é uma eterna criança. Portanto, a única maneira de
evitar que pacatas donas-de-casa revelem-se animais ferozes no cio é através
de muita “cultura” e claro, cuidado com os “hábeis sedutores”.
Embora as prostitutas apareçam também como pessoas com “aptidão”
para tal profissão graças à disposição polimorfa-infantil-perversa, é curioso
notar o fato de em toda obra freudiana existir apenas um caso de perversão
feminina9 - “A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher”
(1920)10. Se naquele momento, a mulher já possuía uma sexualidade – e bem
mais intensa que a masculina – por quê as perversões são estudadas – ou
encontradas – apenas nos homens? Talvez, pelo fato de a mulher ser
entendida aqui como um ser infantil e, dessa forma, “naturalmente” perverso.
Assim, na mulher a perversão não se caracteriza como tal exceto em casos
muito raros, da mesma maneira na qual a polimorfia da sexualidade infantil
ainda não é uma perversão real11.
Outra característica dessas pessoas “abomináveis” segundo Freud:
apesar de muitas possuírem um “elevado desenvolvimento intelectual e
ético”12, são vistas ainda como “vítimas apenas deste único desvio fatídico”13.
E, na qualidade de vítimas, perdem de vez a fala. Se em Krafft-Ebing ainda
havia alguns poucos discursos por parte dos perversos, não se encontra
nenhuma linha com a voz destas pessoas nos textos freudianos estudados
para este trabalho14. Como o doutor insiste em frisar, toda sua teoria é
formulada a partir da clínica, embora os pacientes falem exclusivamente “pela
8 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. O curioso deste exemplo é que a criança porta-se como mulher e não o contrário. 9 Segundo VALAS, Patrick, Freud e a Perversão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, pág. 113 10 “A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 11 Ou talvez porque o centro dos estudos é a figura masculina, não a mulher. 12 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 13 Idem, Ibidem. Grifo meu. 14 São eles: “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905); Caráter e Erotismo Anal (1908); Contribuições para um Debate sobre a Masturbação (1912); Prefácio a Sactologic Rites of All Nations, de Bourke (1913); O Instinto e suas Vicissitudes (1915); A Vida Sexual dos Seres Humanos (1916); As Transformações do Instinto Exemplificadas no Erotismo Anal (1917); História de uma Neurose Infantil – Recapitulação e Problemas (1918); Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais (1919); Além do Princípio de Prazer (1920); O Problema Econômico do Masoquismo (1924); Dostoievski e o Parricídio (1928); O Mal-Estar na Civilização (1929); Moisés e o Monoteísmo – A Analogia (1939)”.
142
boca de seus porta-vozes científicos”15. Novamente, as “crianças” necessitam
de um ”adulto” que fale por elas.
Continua também da mesma forma a diferença quase imperceptível
entre os “bons” e os “maus” perversos. Agora, os primeiros residem no terreno
das perversões mais “leves”, próximas dos “normais”, tais como os
homossexuais (ou “invertidos”): “um ”terceiro sexo” que tem o direito de se
situar em pé de igualdade com os outro dois”16. Já os prazeres que chocam e
assustam, tais como a necrofilia, o sadismo, o masoquismo ou mesmo o sexo
oral, são atitudes de “pessoas anormais cuja atividade sexual diverge cada vez
mais amplamente daquilo que parece desejável para uma pessoa racional17.
Na sua multiplicidade e estranheza, somente podem ser comparadas aos
monstros grotescos”18.
Saindo do campo do determinismo psiquiátrico, para o autor de “Cinco
Lições de Psicanálise”, a história individual é um fator de extrema importância,
podendo determinar em última análise o rumo de uma vida perversa ou
normal. Não mais a hereditariedade ou a vida desregrada serão a causa das
atividades sexuais “loucas, excêntricas e horríveis”19. A primeira foi descartada
logo em 1905 no texto “As Aberrações Sexuais” e a segunda representou uma
grande mudança nos estudos sobre os perversos: a vida sexual anormal não é
mais causa da perversão, mas sim uma conseqüência desta.
Mostra-se então improvável uma pessoa se tornar “pervertida” no
sentido psiquiátrico do termo – maligna, desregrada – após uma série de
orgias e atos de devassidão, pois “Se procede o fato de que um aumento de
dificuldade em obter satisfação sexual normal da vida real, ou a privação desta
satisfação, põe à mostra as inclinações pervertidas que, anteriormente, nada
disso tinham demonstrado, devemos supor que nessas pessoas havia algo que
já se encontrava a meio-caminho das perversões; ou, se preferirem, as
perversões devem ter estado presentes, nessas pessoas, em forma latente”20.
15 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 16 Idem, Ibidem. 17 Isto significa que os “perversos” são irracionais? Ou apenas que, para Freud, os prazeres sexuais devem estar sempre subordinados à racionalidade ocidental? Esta poderia ser uma nova definição para este “problema”: perversão é o sexo “não racional”. 18 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 19 Idem, Ibidem. 20 Idem, Ibidem
143
Esse ser fixou sua sexualidade em um período ainda não maduro do
desenvolvimento sexual normal, sendo então, um “doente”, não um
degenerado.
Todos estes atos “aberrantes” que antes eram a origem quase mítica e o
grande elemento gerador de perversos tornam-se então o efeito da sempre
perigosa perversão.
A generalização fisiológica da psiquiatria cede espaço à universalização
psíquica da psicanálise. Para esta, existe uma estrutura da psique comum a
todos os seres humanos – o complexo de Édipo – e a resolução satisfatória -
ou não - desta passagem obrigatória do processo de amadurecimento, vai ser
decidida pela história de cada um. Novamente, um dos masoquistas prediletos
da ciência servirá de exemplo: “Desde as Confissões de Jean-Jacques
Rousseau, a estimulação dolorosa da pele das nádegas tem sido reconhecida
por todos os educadores como uma das raízes erógenas da pulsão passiva de
crueldade (masoquismo). Disso eles concluíram com acerto que o castigo
corporal, que quase sempre incide nessa parte do corpo, deve ser evitado em
todas as crianças cuja libido, através das exigências posteriores da educação
cultural, possa ser forçada para vias colaterais “21.
Dessa maneira, a sexualidade “normal” torna-se um tanto quanto
precária, pois pode guardar inúmeros “desvios ocultos”. O “diploma de
normalidade” que todas as pessoas “sãs” e merecedoras de respeito fazem
questão de ostentar pode a qualquer momento ser questionado por desejos ou
intenções inconscientes, originados de eventos já há muito esquecidos. Entre
esses terríveis comportamentos indesejados, o sadismo e o masoquismo terão
lugar de destaque.
Mas como se relacionam estas pulsões destrutivas? Existe um “par”
sádico-masoquista em Freud? Ora, uma das grandes contribuições deste
pensador está justamente em que sadismo e masoquismo encontram-se
unidos, existindo potencialmente em todas as pessoas. Aqueles poucos casos
estudados por Krafft-Ebing de enfermos possuidores tanto de características
sádicas quanto masoquistas, tornaram-se a totalidade dos perversos
21 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
144
“sadomasoquistas”. O elemento em comum das teorias dos dois médicos é a
concepção de que embora os “doentes” sejam “vítimas” das duas perversões,
sempre uma delas será a predominante.
Da mesma forma, os conceitos de “atividade” e “passividade”
relacionados ao “masculino” e ao “feminino”, continuam. Graças a esta
concepção, unida a idéia de bissexualidade psíquica, as duas perversões
podem ser interiorizadas em uma só pessoa. Assim é aberto o caminho para o
conceito de “sadomasoquismo” como uma só pulsão de duas faces opostas:
“ficaríamos tentados a relacionar a presença simultânea desses opostos com a
oposição entre masculino e feminino que se combina na bissexualidade,
oposição que amiúde é substituída na psicanálise pelo contraste entre ativo e
passivo”22.
Apesar de, no princípio, estes dois pares de opostos não estarem
unidos, esta junção ocorre com o desenvolvimento psíquico: “A antítese ativo-
passivo funde-se depois com a antítese masculino-feminino, a qual, até que
isso tenha ocorrido, não possui qualquer significado psicológico”23. Esta união
vem de uma base biológica que, mesmo enfraquecendo a analogia feminino=
passivo= masoquismo= homossexualidade, por ser “natural” e orgânica, ainda
assim a mantém: “A junção da atividade com a masculinidade e da passividade
com a feminilidade nos defronta, na realidade, com um fato biológico, mas não
é de forma alguma tão invariavelmente completa e exclusiva como tendemos a
presumir”24.
Isto fica claro no texto ”Uma Criança é Espancada”, no qual, conforme já
foi visto, o deleite do garoto em se imaginar espancado por uma mulher é na
verdade um modo pelo qual “o menino burla seu homossexualismo”25, pois o
desejo real é o de apanhar do pai, afinal “a atitude masoquista coincide com
uma atitude feminina”26.
Assim, nestes estudos não interessa mais a pessoa e seus parceiros,
nem as formas de relacionamento entre eles. A interação entre elementos
sádicos e masoquistas é interna, pertence à subjetividade do indivíduo. A
22 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 23 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 24 Idem, Ibidem. 25 “Uma Criança é Espancada: Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
145
manifestação dessas características agressivas tem apenas um interesse
secundário, pois a dinâmica determinante pertence ao universo do
inconsciente pessoal.
Por isso, a maneira de realizar as paixões e um possível consentimento
por parte dos parceiros são elementos descartados. Também estão fora
discussões sobre encontros entre sádicos e masoquistas. “Sadomasoquistas”
são em primeiro lugar as pulsões dos indivíduos, não as “duplas” de perversos
ou suas relações. O “par” analisado na psicanálise é entre pulsões.
Não podemos nos esquecer: em relação a estas perversões “opostas”
existem dois momentos na obra de Freud. No primeiro, não aparece um
masoquismo primário, sendo este apenas uma derivação do sadismo.
Podemos situar os textos referentes ao período como tendo início em “Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905) indo até “Uma Criança é
espancada” (1919). No segundo momento, sadismo e masoquismo são
pulsões primárias e “distintas”. Essa concepção surge em “Além do Princípio
de Prazer” (1920) continuando até o fim de sua obra27. Vejamos novamente
este caminho trilhado:
Em “As Aberrações Sexuais” de 1905, o conceito básico criado por
Krafft-Ebing para sadismo foi mantido por Freud, conforme visto no capítulo IV;
sádico é aquele no qual ocorre um aumento patológico da agressividade
“natural” masculina que, por deslocamento, assume o lugar prioritário no prazer
sexual. Mas uma grande mudança em relação à psiquiatria vigente ocorre
quanto ao masoquismo: o prazer em sofrer dores ou humilhações no ato
sexual não existe enquanto elemento “primário”, ou seja, como pulsão original
e independente.
A perversão que provoca tantos escândalos na ordem social,
mostrando-se um dos mais difíceis enigmas da subjetividade humana, não
existe autenticamente. Ela é apenas o sadismo - este sim provado e aprovado
por séculos de civilização – voltado para si mesmo: “É freqüente poder-se
26 Idem, Ibidem. 27 Continuo me baseando no artigo de Armando Colgnese Jr, já citado no capítulo IV.
146
reconhecer que o masoquismo não é outra coisa senão uma continuação do
sadismo que se volta contra a própria pessoa”28.
Dessa forma Freud chega à conclusão de que “O sádico é sempre e ao
mesmo tempo um masoquista”29, pois tudo depende de uma mesma pulsão
apresentar-se de forma preponderantemente ativa (sadismo) ou passiva
(masoquismo): “Toda perversão “ativa”, portanto, é acompanhada por sua
contrapartida passiva (...) quem sofre as conseqüências das moções sádicas
recalcadas encontra outro reforço para seu sintoma nas fontes da tendência
masoquista”30.
Com a publicação de “A sexualidade Infantil” (1905), a origem do
sadismo é encontrada em uma “pulsão de dominação” que tem como objetivo
o controle sobre outros e sobre si mesmo. Esta aparece cedo na vida da
criança, podendo ser a fonte dos desejos agressivos: “podemos supor que o
impulso cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual numa
época em que os genitais ainda não assumiram seu papel posterior”31. Trata-
se de uma crueldade natural, pois a barreira para este impulso, a capacidade
de se compadecer com o sofrimento do outro, demora a se formar na psique
infantil. A pulsão sexual, unida a esses impulsos cruéis pode mais tarde
originar o prazer sádico.
Ao analisar a possibilidade de a dor intensa provocar excitação sexual,
especialmente se “abrandada ou mantida a distância”32, Freud vê nisto uma
das principais fontes da “pulsão sadomasoquista”33. Ora, é a primeira vez que
o termo é usado e, neste momento designa a “pulsão”, podendo ela tanto ser
“sádica” como ”masoquista” - apesar de deixar subentendido também um
sujeito “sadomasoquista”.
No texto “O Instinto e suas Vicissitudes” de 1915, o autor pretende
esclarecer como é o processo de transformação do sadismo em masoquismo.
A “algolagnia passiva” pode surgir por duas maneiras: a pulsão ativa (sádica)
original sofre uma reversão em sua finalidade e torna-se passiva; ou ocorre o
retorno do sadismo para o próprio sujeito, havendo então uma mudança no
28 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 29 Idem, Ibidem. 30 Idem, Ibidem. 31 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 32 Idem, Ibidem.
147
objeto34. Para Freud, o segredo da formação do “sadomasoquismo” estava não
apenas no retorno da pulsão, mas na união deste com a reversão: “o processo
pode ser representado da seguinte maneira: (A) O sadismo consiste no
exercício de violência ou poder sobre uma pessoa como objeto. (B) Esse
objeto é abandonado e substituído pelo eu do indivíduo. Com o retorno em
direção ao eu, efetua-se também a mudança de uma finalidade instintual ativa
para uma passiva. (C) Uma pessoa estranha é mais uma vez procurada como
objeto; essa pessoa, em conseqüência da alteração que ocorreu na finalidade
instintual, tem de assumir o papel do sujeito. O caso (C) é o que comumente se
denomina de masoquismo (...) Se existe, além disso, uma satisfação
masoquista mais direta, é muito duvidoso”35.
Na conferência “A Vida Sexual dos Seres Humanos” (1916), pouca coisa
é dita sobre sadismo e masoquismo, mas um elemento importante é lembrado:
os grupos de perversos dividem-se em dois: “aqueles que procuram sua
satisfação sexual na realidade”36 e “os que se contentam simplesmente com
imaginar essa satisfação”37. Ora, este dado vai ser fundamental para Freud.
Muitos dos sádicos e masoquistas de Krafft-Ebing sofriam de “sadismo/
masoquismo idealizado” justamente porque realizavam seus desejos apenas
no terreno onírico. Com a psicanálise, independente de concretizarem as
intenções perversas ou não, os sonhos e devaneios serão fundamentais para
análise da vida psíquica, seja ela “perversa” ou “normal”.
“História de Uma Neurose Infantil” (1918) trata da análise de um jovem
com fobia em relação a lobos. Não podemos nos esquecer que, como o título
indica, esse é o caso de um neurótico, pois como Freud já havia formulado em
1905, a “neurose é o negativo da perversão”, ou seja, os impulsos perversos
do garoto eram inconscientes e anormalmente reprimidos. Assim, apesar de
não ser sádico nem masoquista, ele sofria com essa pulsão: “O menino
persistia nas atividades sádicas, bem como nas masoquistas, mas reagia com
ansiedade a uma parte delas; provavelmente a conversão do sadismo em seu
33 Idem, Ibidem. 34 A mudança de conteúdo de uma pulsão só existe para Freud no caso de amor transformado em ódio e vice-versa. 35 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 36 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 37 Idem, Ibidem.
148
oposto fez mais progressos”38. Desta maneira, o termo “sadomasoquista”
aparece pela segunda vez em sua obra, nesse texto usado para designar a
“organização sexual” do garoto.
Com “Uma Criança é Espancada” de 1919, os estudos vão se focar
sobre a fantasia sádica e masoquista, com suas diferenças nos dois sexos39. É
ressaltada também a importância do sentimento de culpa na conversão do
sadismo em masoquismo. No desejo de ser espancado, que une a culpa ao
amor sexual pelo pai, Freud vê “a essência do masoquismo”40; embora, mais
adiante, ele diga: “A nossa exposição da fantasia de espancamento pouco
esclareceu a gênese do masoquismo”41, confirmando sua constante
preocupação com esta “perversão”.
Continuando, o autor de “A Interpretação dos Sonhos” afirma: “a
passividade contudo, não é a totalidade do masoquismo”42, pois o desprazer
também faz parte de sua constituição, atribuindo novamente ao sentimento de
culpa a causa dessa segunda característica.
A partir do texto “Além do Princípio de Prazer” de 1920, Freud já está
trabalhando com os conceitos de “Pulsão de Vida” e “Pulsão de Morte”. Dentro
dessa nova visão, tem início um segundo momento quanto à origem do
masoquismo. Apesar de ainda este ser considerado um desdobramento do
sadismo, o autor escreve pela primeira vez que talvez exista um masoquismo
primário. A origem de ambas as perversões continua a ser uma única pulsão –
Tanatos - mas o masoquismo voltou a possuir um status próprio.
Em 1924 surge ”O Problema Econômico do Masoquismo”, no qual a
perversão que antes era derivada, com esse estudo se divide em três tipos
relacionados mas distintos; são eles o masoquismo erógeno, feminino e moral.
O primeiro tipo é o já conhecido prazer na dor ou no sofrimento, sendo
este a fonte dos outros dois. Ele origina-se da pulsão de morte não dirigida a
um objeto exterior, permanecendo dentro do indivíduo; ao unir-se à libido,
surge o masoquismo primário. O sadismo é justamente esta pulsão destrutiva
unida à força libidinal e voltada a um objeto externo.
38 “História de Uma Neurose Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 39 Já visto no capítulo IV. 40 “Uma Criança é Espancada: Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 41 Idem, Ibidem,
149
Aqui, se reforçam as correlações masoquismo= impotência (“indivíduos
masoquistas – e, portanto, amiúde impotentes”43) e perversão= infantilidade (“o
masoquista deseja ser tratado como uma criança pequena e desamparada,
mas, particularmente, como uma criança travessa”44). Novamente, uma grande
importância é dada a imaginação sexual, pois “Os desempenhos da vida real
de masoquistas harmonizam-se completamente com essas fantasias, quer
sejam os desempenhos levados a cabo como um fim em si próprio, quer sirvam
para induzir potência e conduzir ao ato sexual”45. Dessa forma devemos
compreender que “ato sexual” é a penetração do pênis na vagina, sendo o
deleite masoquista, ou seja, o prazer sexual em si sem necessidade de um
”objetivo” genital, apenas um “desvio com respeito ao alvo sexual”46, como
exposto em 1905.
Sadismo/ masoquismo ainda são opostos complementares, pois
revelam-se como a face ativa ou passiva da Pulsão de Morte. Mas a partir
desse texto estas duas perversões podem se manifestar independentes: “o
instinto de morte operante no organismo –sadismo primário – é idêntico ao
masoquismo”47. Ainda assim, é possível ocorrer o retorno do sadismo,
formando o chamado “masoquismo secundário”.
É a fantasia masoquista quem vai dar a característica da segunda
ramificação dessa perversão. O masoquismo feminino caracteriza-se por suas
qualidades passivas (tais como a “essência” da mulher), pois esses devaneios
“colocam o indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas
significam, assim, ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz um bebê”48. Mais
uma vez subentende-se não apenas a “natureza” passiva da mulher, mas
também sua “atitude receptiva” frente ao mundo, afinal aqui ela não copula,
mas sim, é copulada.
Da mesma maneira, a correlação perversão= feminino= infantil está na
base desse segundo tipo de masoquista: “Por essa razão chamei essa forma
42 Idem, Ibidem. 43 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 44 Idem, Ibidem. 45 Idem, Ibidem. 46 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 47 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 48 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
150
de masoquismo (...) de forma feminina, embora tantas de suas características
apontem para a vida infantil”49.
Já a terceira forma de masoquismo surge através de um sentimento de
culpa: o indivíduo acredita merecer ser punido embora não saiba exatamente
qual foi seu crime. Esta é a forma mais dessexualizada e atua principalmente
no campo social da vida do “masoquista moral”. Ora, aqui encontra-se também
uma das maiores contribuições de Freud ao estudo das relações humanas. A
partir desse momento a psicanálise passa a dar mais atenção ao masoquismo
– e ao sadismo – nas formas de conduta não sexuais.
O masoquismo não é apenas uma fantasia sexual grotesca, mas pode
também aparecer como uma maneira de conduta na vida cotidiana. O
sofrimento imposto perde o vínculo com o objeto (a pessoa amada ou parceiro
sexual que proporciona as dores e humilhações) passando a ser um fim em si
mesmo. Essa maneira de viver é particularmente perigosa, pois quase sempre
mostra-se inconsciente, persistindo devido a um jogo subjetivo entre um
superego sádico e um ego masoquista: “A fim de provocar a punição deste
último representante dos pais (superego), o masoquista deve fazer o que é
desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas
que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência
real”50.
Em 1928, é justamente este masoquismo moral que vai tornar um
reconhecido escritor em um novo tipo de perverso no texto “Dostoievski e o
parricídio”: “Selecionamos, da complexa personalidade de Dostoievski, três
fatores (...) a extraordinária intensidade de sua vida emocional, sua disposição
instintual inata e pervertida, que inevitavelmente o marcava para ser um sado-
masoquista ou um criminoso, e seus dotes artísticos inanalisáveis”51.
Pela primeira vez, uma pessoa é assim “definida” – nos outros dois
casos onde este termo foi usado, “sadomasoquista” era a “pulsão” e a
“organização sexual”, apesar de também subentenderem um sujeito. Mas uma
mudança gráfica ocorreu52. Neste texto o termo é escrito com um hífen
49 Idem, Ibidem. 50 Idem, Ibidem. 51 “Dostoievski e o Parricídio” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 52 Sempre lembrando que não estou trabalhando com o texto na grafia original alemã. Utilizo aqui a tradução da Editora Imago em CD-Rom já citada e, portanto, talvez esta reflexão sobre a grafia do termo
151
separando as “polaridades” desta perversão. Isto talvez seja reflexo da
autonomia conquistada pelo masoquismo que, ao não ser mais uma
continuação do sadismo, provoca a perda de sentido da antiga forma
“sadomasoquista”.
Em “O Mal-Estar na Civilização” (1929), Freud faz uma análise dos
conflitos pulsionais humanos com a vida em sociedade, a chamada
“civilização”, que pede aos homens esforços cada vez maiores no sentido de
conter esses impulsos. Aqui também, sadismo e masoquismo (especialmente
o moral) são elementos de importância vital: “A questão fatídica para a espécie
humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento
cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo
instinto humano de agressão e autodestruição”53.
Mesmo nessa análise mais “sociológica”, estas categorias perversas não
se aplicam ao campo social, apenas ao individual. As guerras, a política, as
ideologias nunca são sádicas ou masoquistas em si mesmas, e sim apenas
como exteriorizações de forças psíquicas humanas unidas em grupo54. Talvez
para lembrar-nos que por mais sociais que esses fatos sejam, em última
análise sempre são decididos – e acatados – por indivíduos: “a inclinação para
agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-
subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à
civilização”55.
As ”mais significativas de todas as perversões” demonstram mais uma
vez porquê o são: representam não só um perigo real para o individuo, mas
para toda a “civilização”.
Finalmente, em “Moisés e o Monoteísmo” (1939), o termo “sado-
masoquista” aparece novamente, desta vez para esclarecer a fantasia de um
garoto citado no texto: “Sua atividade sexual permanecia limitada à
masturbação psíquica, acompanhada por fantasia sado-masoquista nas quais
“sadomasoquista” ou “sado-masoquista” não faça o menor sentido ou seja completamente equivocada quando analisada à luz da língua original. 53 “O Mal-Estar na Civilização” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 54 Embora exista neste texto um “superego social”: “O superego de uma época de civilização tem origem semelhante à do superego de um indivíduo”. “O Mal-Estar na Civilização” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 55 Idem, Ibidem.
152
não era difícil identificar ramificações de suas primitivas observações da
relação sexual entre os pais”56.
Percebemos dessa forma, como observou Lanteri-Laura, que os
“perversos” migram de uma proximidade com os “normais” em 1905 até um
novo distanciamento destes. Para Freud, justamente a objetivação das
tendências destrutivas dos primeiros que impede-os, entre outras coisas, de
amar a outros como estes são, e não como representantes dos pais do
sadomasoquista: “o adulto normal continua a ser um antigo perverso polimorfo,
mas, como chegou a uma prevalência da libido objetal, já não tem nada em
comum como os que, psicóticos ou perversos, continuam na libido narcísica.
Asilo ou presídio, mais do que liberdade, com ou sem divã”57.
Com o fundador da psicanálise, sádicos e masoquistas ganharam um
status até então nunca visto entre as perversões sexuais: de alguns indivíduos
doentes no século XIX, passaram à totalidade das pessoas no século XX, não
como sujeitos realizadores dessas tendências, mas como elementos pulsionais
constitutivos da psique. Da mesma forma, sadismo e masoquismo foram
unidos, nascendo um novo sujeito na história humana: o “sadomasoquista”. E
apesar de o termo “sadomasoquismo” não ser encontrado em sua obra, a
concepção de uma perversão única, que se manifesta de duas formas opostas
e complementares, surgiu e até hoje permanece graças aos estudos de Freud:
“O sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista, ainda que o aspecto
ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior
intensidade e represente sua atividade sexual predominante”58.
56 “Moisés e o Monoteísmo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 57 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. pág. 123 58 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.
156
“As culturas sobrevivem tanto à permissividade dos costumes quanto à
intransigência, acomodam-se igualmente com a tolerância e o rigor, tanto
podem perdurar favorecendo a necrofilia quanto reprovando a felação, mas
sabem que correm o risco de morrer se apercebem da impossibilidade de
fundamentar na natureza e na razão o corte entre os meios lícitos e os
métodos indevidos de chegar ao orgasmo”1.
I
Vimos como Sade e Sacher-Masoch descreveram universos eróticos
particulares e distintos. Literariamente, estes autores não comungam entre si,
e seus escritos não são “pares de opostos”, muito menos “complementares”.
Mas foram as obras escritas por eles que serviram de base para os primeiros
estudos sobre “sadismo” e ”masoquismo”, tornando-se paradigmas de
comportamentos clínicos. Antes dos fundadores da “sexologia” no século XIX,
os “exemplos patológicos” provinham quase exclusivamente do campo da
literatura, pois a pesquisa científica de tais atos até então não se fazia
“necessária”.
Apesar de Krafft-Ebing afirmar que não pretendia utilizar-se de Sacher-
Masoch como exemplo de “algolagnia passiva”, uma nova categoria de
“perversão sexual” surgiu inspirada no nome deste autor, não de personagens
por ele criados – a mesma coisa é válida para Sade. Através da psiquiatria,
foram assim nomeados os desejos e prazeres de ferir e ser ferido, humilhar e
ser humilhado - ambos entendidos como “opostos complementares”.
Desta forma, o livro “Psychopathia Sexualis” tornou-se a “bíblia” dos
exemplos de casos sobre perversos2 e “a súmula clínica de Krafft-Ebing (...)
constituiu para todo o mundo (...) o nível semiológico básico e o grau zero de
todas as interpretações”3. Logo, muito dos estudos clínicos foram
abandonados – pois já se encontravam “exaustivamente” realizados - em prol
da ênfase nos esforços teóricos. Com isso, a terminologia criada por este
1 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 141 2 Ainda hoje este livro é citado para exemplificar os mais variados tipos de “perversos”. 3 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 137
157
médico foi usada para análises cada vez mais abrangentes e, muitas vezes,
distanciada do sentido “original”: “As denominações (...) substituíam
adequadamente os objetos denominados (...) o discurso sobre o masoquismo
parecia remeter aos pacientes descritos por Krafft-Ebing (...) que efetivamente
pareciam autênticos perversos”4.
A nova visão sobre esses “perversos” “baseava-se na observação
fragmentada, mas também, algumas vezes, no tratamento psicanalítico de
neuróticos (...) Esses pacientes não tinham muita coisa em comum com as
descrições correspondentes à noção clínica de masoquismo, mas, apesar
disso, tornaram-se seus representantes, e foi a partir do estudo deles que se
propôs uma psicopatologia geral do masoquismo”5.
Não podemos nos esquecer que a origem dos termos “sadismo” e
“masoquismo” são os nomes de Sade e Masoch, em referência às obras
destes. Quando Freud uniu os dois conceitos6, a dupla trabalhada era entre
pulsões, não entre autores ou seus escritos, nem entre os pacientes do autor
de “Psychopathia Sexualis”.
Graças a esta mudança de foco, a psicanálise pôde avançar os estudos
além do campo dos cruéis estupradores ou soturnos auto-flageladores,
descobrindo traços e resquícios destas “perversões” – em especial o sadismo -
em pais amorosos, juízes íntegros, guardas valorosos, professores dedicados,
padres piedosos, militares honrados ou médicos generosos, em suma, em
todos aqueles que ocupam posições de destaque e poder. Da mesma maneira,
o masoquismo ultrapassou os limites sexuais configurando-se também como
uma perigosa maneira de viver – o “masoquismo moral”.
Mas, segundo Lanteri-Laura, apesar desta suposta “universalização” das
perversões, que a princípio sugere maior “tolerância” para com os perversos
“reais”, a teoria do desenvolvimento “normal” da sexualidade infantil de Freud
“entre os sucessores de seus sucessores (...) se tornou uma evolução normal,
desde o estádio oral até o genital, e é esse primado do genital que vem
garantir a base objetiva desse neo-moralismo sexual. O genital assim, define a
norma, ou seja, na prática, o bem (...) ele desempenha exatamente o mesmo
4 Idem, Ibidem, pág. 139 5 Idem, Ibidem, pág. 139 6 E forjou o termo “sadomasoquista”.
158
papel que tinha a possibilidade de procriação na cultura do século XIX: norma,
e norma tida como natural”7.
Esse furor por se estabelecer um comportamento “básico”, a partir do
qual, com algumas variações, é possível nomear as verdadeiras “perversões”,
também mostra-se como uma das características da psiquiatria – e da
psicologia. O ”Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais –
DSM-IV” da Associação Psiquiátrica Americana possui um capítulo sobre as
“Disfunções Sexuais”, onde figuram lado a lado sadismo, masoquismo,
pedofilia e voyeurismo, entre outros.
Claro que este manual não se baseia em conceitos como “complexo de
Édipo” ou “superego”8, nem utiliza termos como “perversão” ou “perversidade”.
Esses nomes foram mudados, com poucas alterações quanto ao conteúdo,
para “Parafilias” (as atuais “perversões sexuais”)9. É um estudo amplamente
apoiado em estatísticas, e desta forma “espera-se (...) quê as frequências mais
altas delimitem a sexualidade ortodoxa: embora se respeite a proibição de
ilustrar uma sexualidade normal, espera-se das percentagens que elas
esbocem sua imagem. (...) O positivismo não se conforma em não descobrir
uma norma natural nem nos animais, nem nos selvagens, nem nos números,
mesmo quando milita corajosamente contra as legislações repressoras”10.
O termo “sadomasoquismo” parece ser uma “gíria” originada dos jargões
das ciências da psique, conquistando um status “oficial” a ponto de ter sua
origem creditada aos “heróis fundadores” destas disciplinas. Isto parece ser
reforçado pelo dado de que em toda a bibliografia utilizada para este trabalho,
o termo aparece ora como “sadomasoquismo”, ora como “sado-masoquismo”.
Ou seja, parece não existir uma única grafia “correta” porque não se sabe qual
seria a forma “original”. Afinal, mesmo Freud usou dessas duas maneiras para
escrever a palavra “sadomasoquista”.
7 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 134 8 Estes termos nem aparecem no manual, apesar deste fazer, em poucos momentos, referências a teoria psicanalítica. 9 É curioso como, para evitar associações de julgamentos morais, a psiquiatria excluiu o termo “perversão” de seu vocabulário, enquanto que a psicanálise, talvez por se considerar isenta do risco de tais associações, manteve este termo. 10 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 120
159
“Sadismo”, “masoquismo” e “sadomasoquismo”, com seus respectivos
sujeitos são termos controversos. Literariamente, não fazem sentido, pois são
categorias clínicas, apesar do nome derivado de escritores. Dentro das
ciências da psique, são patologias caracterizadas por causar “sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional
ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo”11. No terreno de uma
cultura sexual própria, são expressões de práticas sexuais com violência
consentida e limites específicos para cada praticante. E no imaginário social
que perpassa todos esses campos, estas palavras significam uma mescla de
tudo isso.
É curioso como uma das características definidoras do “sádico” ou
“masoquista” na ciência é justamente a sua não opção por tais maneiras de
obter prazer, comumente valendo-se da não consensualidade do parceiro –
pelo menos nos casos de sadismo. Na verdade, a pessoa sente este tipo de
prazer muitas vezes contra a vontade. Ora, no caso da “cultura S&M”, o
praticante afirma estar ali por “escolha”12, diz respeitar os desejos e limites do
outro e, principalmente, não se apresenta com um “sofrimento clinicamente
significativo” ou “prejuízo no funcionamento social”13.
Assim sendo, estamos falando das mesmas pessoas nos dois casos?14
Para muitos cientistas, assim como médicos, não: como Freud já mostrou,
estas tendências são “naturais” sendo comuns a todos seres humanos, e
quando de comum acordo, dentro de limites, não representam doença ou
crime. Mas porque então essa distinção não é feita, seja nos trabalhos de
divulgação de massa (entrevistas, debates, palestras em revistas, programas
de TV, rádio), em romances eróticos ou mesmo nos tratados científicos e
acadêmicos, tanto da parte dos “médicos” quanto dos “praticantes”? Porque a
11 ASSOCIAÇÃO Psiquiátrica Americana, DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – CD-Rom, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995 12 Este tema da “escolha” é instigante: Quantos de nós - ou quem entre nós - escolhe conscientemente suas práticas sexuais, ou sua hetero ou homossexualidade como quem escolhe uma roupa para sair? Referente ao dado de uma pessoa só encontrar prazer com uma única prática, quantas pessoas possuem um vasto leque de prazeres, podendo adquirir novos, abandonar antigos ou simplesmente “escolher” qual deleite vai usufruir por dia? 13 Mais um exemplo da gritante distância que existe entre o universo das regras e normas – ciência, religião, legislações – e a vida cotidiana. 14 Novamente, cito Lanteri-Laura: “Uma outra escolha dos casos clínicos teria, sem dúvida, levado a um saber talvez diferente”. LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 137
160
confusão entre estes dois sujeitos parece ser sempre renovada a cada
discurso sobre os “perversos”?
Parte-se do pressuposto de que qualquer pessoa já tem esta distinção
na cabeça, sabendo perfeitamente de qual dos dois “sadomasoquistas” se fala
no momento? Ou será uma simples questão de “reserva de mercado” (na
dúvida em qual dos grupos a pessoa se encaixa, melhor ela escolher um
tratamento psíquico)? Ora, a identificação entre esses sujeitos é encontrada
nos próprios livros formadores de médicos e especialistas: “Sadomasoquismo
está refletido na pornografia (filmes, fotografias, acessórios e dispositivos
sadomasoquistas), e em certa medida na arte”15. Claro, muito da “pornografia”
e da “arte” tratam dos prazeres perigosos e criminosos, mas todo esse
“mercado sadomasoquista” não é justamente uma das características da
chamada “cultura S&M” conforme visto no capítulo V?
Existe também uma confusão quanto à questão dos parceiros. A
psicanálise afirma que os “opostos complementares” são as pulsões, não os
parceiros. Já na “cultura S&M” o parceiro de um “sádico” é um “masoquista”,
pois a necessidade do primeiro não é a de uma agressão “real”, e o desejo de
ser agredido do segundo leva sempre em conta a sua própria segurança. Mas,
novamente no terreno do imaginário social, a periculosidade dos
“sadomasoquistas” da psicanálise une-se à diversão da dupla “S&M”, tornando
os primeiros menos ameaçadores e mais simpáticos enquanto os segundos
mais grotescos e menos atraentes.
Ainda segundo Lanteri-Laura16, a gênese desta confusão pode ser
encontrada em Freud, pois, ao afastar-se gradativamente da clínica para a
teorização, ele também se distanciou dos “perversos”, tratando apenas de
“neuróticos” com “traços de perversão”. A partir desses estudos, ele teria
criado concepções generalistas: “agiu-se como se um saber extraído do estudo
de pacientes que só poderiam ser chamados de masoquistas latissimu sensu,
por catacrese, ou mesmo por abuso dos termos, se aplicasse, ainda assim, aos
que eram denominados de masoquistas desde Krafft-Ebing”17.
15 EYSENCK, H. J., ARNOLD, W., MEILI, R., Encyclopedia of Psychology, op.cit., pág. 953 16 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. 17 Idem, Ibidem, pág. 139
161
II
Quanto à origem do termo “sadomasoquismo”, não foi possível
encontrar o autor que o empregou pela primeira vez, nem mesmo quando isso
ocorreu.
Ao começar este trabalho, acreditava ter sido Krafft-Ebing em
Psychopathia Sexualis. Pelo menos é isso o que a “Encyclopedia of
Psychology” de Eysenck diz: “Sadomasoquismo. Termo usado em ciência
sexual, introduzido por von Krafft-Ebing em 1907”18, mas como já vimos, ele
morreu em 1902 - além desta palavra não se encontrar no livro referido.
Imaginei então ser Freud, pois segundo o “Dicionário de Psicanálise” de
Roudinesco e Plon: “Sadomasoquismo – Termo forjado por Sigmund Freud, a
partir de sadismo e masoquismo”19 mas nada achei20 em suas obras. Procurei
em vários dicionários psiquiátricos, psicológicos, psicanalíticos e linguísticos,
sem resultados21.
O livro mais antigo em que encontrei o termo “sadomasoquismo” foi na
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, sem data de publicação, mas
com uma dica: No volume VIII, aparece o texto: “A ortografia seguida neste
volume é aquela que, em virtude da convenção ortográfica luso-brasileira de
1945, foi tornada obrigatória em todas as publicações editadas em Portugal,
por força do decreto Nº 35228, de 8 de dezembro de 1945” 22. Quanto ao
verbete sobre o tema, lê-se apenas: “Sadomasoquismo, s. m. Sexol. Perversão
sexual em que se associam sadismo e masoquismo”23.
Mais próximo desta data, somente encontrei o Dicionário de Psicologia
de Henri Piéron, com a 1ª edição em 195124: “Sadomasoquismo – Associação
de sadismo e masoquismo”25. Infelizmente, em nenhum dos verbetes
estudados se diz quando e/ ou quem usou o termo pela primeira vez.
18 EYSENCK, H. J., ARNOLD, W., MEILI, R., Encyclopedia of Psychology, op.cit., pág. 953 19 ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel, Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, pág. 681 20 Sobre esta busca, explico mais detalhadamente nos referidos capítulos. 21 Citados na bibliografia. 22 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa - Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Limitada, sem data, Vol. VIII 23 Idem, Ibidem, Vol. VIII, pág. 586 24 PIÉRON, Henry, Dicionário de Psicologia, Porto Alegre, Editora Globo, 1967 25 Idem, Ibidem, pág. 384
162
Mas é possível analisar alguns detalhes curiosos quanto a este assunto
nos diferentes livros de referência estudados26. Por exemplo, é comum
encontrar que o termo “sadismo” foi criado por Krafft-Ebing: “Em 1886 Krafft-
Ebing se sirvió de su ilustre patronímico para forjar el término de sadismo”27.
Também é possível encontrar certos exageros sobre o Marquês de Sade e
seus livros: “escrebió novelas escandalosas basadas em hechos reales”28,
citando como exemplos “Justine”, “A Filosofia na Alcova”, “Juliette” e “Os
Crimes do Amor”.
A antiga concepção de “perversidade” também é encontrada na
definição de sadismo de Álvaro Cabral (1974): “Prática psicopatológica que
consiste em maltratar uma pessoa com requintes de perversidade”29. Ora, para
este autor então, esta “prática” é uma perversão ou uma perversidade? Ou
ambas?
Quanto à concepção de sadismo e masoquismo como “opostos
complementares”, esta é um consenso tanto na psicanálise, quanto na
psicologia e psiquiatria: “A correlação íntima dos dois termos do par é tal que
não poderiam ser estudados separadamente, nem na sua gênese nem eu
qualquer de suas manifestações”30; “a excitação erótica está vinculada à
inflição (sadismo) ou sofrimento (masoquismo) de dor, comumente considerado
perversão”31; “Estas duas perversões não podem absolutamente ser
separadas, já que elas constituem dois pólos complementares”32.
26 São eles: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (sem data); Manual de Psiquiatria (Henri Ey, 1960); Dicionário de Psicologia (Henry Piéron, 1969); Dicionário Técnico de Psicologia (Álvaro Cabral, 1974); Encyclopedia of Psychology (H. J. Eysenck, 1975); Dicionário dos Termos de Psicanálise de Freud (1978); Vocabulário da Psicanálise (Jean Laplanche, 1983); Dicionário do Inconsciente (Jacques Mousseau, 1984); Dicionário de Termos Psiquiátricos (Isaac Mielnik, 1987); Diccionário Taxonômico de Psiquiatria (Jean Garrabé, 1993); The New Grolier Multimedia Excyclopedia (1993); Diccionário Oxford de La Mente (Richard L. Gregory, 1995); Dicionário Enciclopédico de Psicanálise (Pierre Kaufmann, 1998) e Dicionário de Psicanálise (Elisabeth Roudinesco, 1998). 27 GARRABÉ, Jean, Diccionário Taxonômico de Psiquiatria, México, Fondo de Cultura Econômica, 1993, pág. 253 28 GREGORY, Richard L. (org.), Diccionário Oxford de La Mente, Madrid, Alianza Editorial, 1995, pág. 1015. Grifo meu. 29 CABRAL, Álvaro e NICK, Eva, Dicionário Técnico de Psicologia, São Paulo, Cultrix, 1974, pág. 352 30 LAPLANCHE, Jean e PONTALIS, Jean-Baptiste, Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 1983, pág. 607 31 CABRAL, Álvaro e NICK, Eva, Dicionário Técnico de Psicologia, op. cit., pág. 352 32 EY, Henri, Manual de Psiquiatria, São Paulo, Editora Masson do Brasil, 1960, pág. 390
163
Dentro do universo das ciências da psique, o termo “sadomasoquismo”,
por significar atualmente uma dinâmica de forças internas opostas,
complementares originadas de uma única fonte, é perfeitamente cabível e
inteligível. Afinal, estamos falando do par clínico de “opostos complementares”
conhecido como “sadismo e masoquismo”. Mas literariamente, conforme
afirmou Deleuze, “sadomasoquismo” “é um desses nomes mal fabricados,
monstro semiológico”33, pois originado dos nomes de autores que não admitem
uma complementaridade entre si, o novo termo fica sem sentido etimológico,
causando uma idéia equivocada quanto a dinâmica de suas referências
literárias – ou clínicas: “Isso equivale a dizer, finalmente, que a sexologia,
tomada na acepção de um saber sobre o comportamento sexual, continua a
ser uma disciplina desprovida de fundamento, e que só extrai seu sentido e
sua razão de ser de concordar em fornecer à cultura respostas pretensamente
científicas, que ela não dispões de nenhum meio científico de fornecer”34.
33 DELEUZE, Gilles, Apresentação de Sacher-Masoch, op. cit., pág. 142 34 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. pág. 143
164
“Qual o apaixonado que não ficaria aterrorizado se medisse
por um instante o alcance do juramento que fez, não
irresponsavelmente, de engajar-se por toda a vida?”
Jean Paulhan
165
ANEXO I - FONTES DAS ILUSTRAÇÕES
Capa
THORPE, David, Rude Food, Londres, Macmillan, 1984
1 - Revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes - EUA, Setembro de
1998, pág. 150
Introdução
2 - Betty Page - Queen of Pin-Up, Taschen, 1993, pág. 22
Capítulo I
3 - “Revolutionary Prints 1789-1792: La Fayette and Marie - Antoniette” in: Erotica
Universalis, Germany, Taschen, 1995
4 - “Portrait Imaginaire de D. A. F. de Sade” de Man Ray (1940) in: SADE, D. A. F., A
Verdade, Lisboa, Antígona, 1989
166
5 - Sade Ilustrado, Madri, Ediciones Hipérion, sem data
6 - Idem, Ibidem
Capítulo II
7 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, Rio de Janeiro, Rocco, 1997,
pág.152
8 - Idem, Ibidem, pág. 18
9 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, Taschen,1992, pág. 112
10 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, op. cit., pág. 6
11 - Idem, Ibidem, pág. 173
Capítulo III
12 - Capa do livro de KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis,
Londres, Velvet, 1997
13 - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, São Paulo, Edições e Publicações Brasil
Editôra S.A., 1958
14 - OBIOLS, Juan, Psiquiatria e Antipsiquiatria, Rio de Janeiro, Salvat, 1979, pág.
104
15 - Idem, Ibidem, pág, 105
16 - Idem, Ibidem, pág. 136
Capítulo IV
17 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 145
18 - Idem, Ibidem, pág. 139
19 - Idem, Ibidem, pág. 136
20 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, op. cit., pág. 87
Capítulo V
21 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 76
22 - Imagem retirada da propaganda da exposição “The Art Directors Club N.Y. in
Panamericana”, veiculada na revista Veja São Paulo de 4 de março de 1998
23 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Fevereiro de 1999, pág. 20
24 - Propaganda retirada da revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes -
EUA, dezembro de 1995, pág. 72
25 - Propaganda do jeans Fiorucci
26 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, março de 1999, pág. 21
167
27 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 33
28 - Capa da Revista CAPTURED - London Enterprises Limited - EUA, Vol. 3 Nº 12,
Agosto de 1993
29 - Propaganda retirada da revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, março de
1999, pág. 61
30 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 85
Capítulo VI
31 – Sade Ilustrado, op. cit.
32 – Idem, Ibidem.
33 – Idem, Ibidem.
34 – Idem, Ibidem.
35 – Idem, Ibidem.
Capítulo VII
36 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 85
37 – Idem, Ibidem, pág. 143
38 – Idem, Ibidem, pág. 74
39 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, op. cit., pág. 178
40 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 151
Capítulo VIII
41 - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit.
42 – Idem, Ibidem.
43 - OBIOLS, Juan, Psiquiatria e Antipsiquiatria, op. cit., pág. 24
44 - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit.
45 – Idem, Ibidem.
Capítulo IX
46 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 101
47 – Idem, Ibidem, pág. 37
48 – Idem, Ibidem, pág. 25
49 – Idem, Ibidem, pág. 144
50 - SEUFERT, Reinhard (editor), The Porno-Photografia, Los Angeles, Arygle
Books, 1968
168
Conclusão
51 - Betty Page - Queen of Pin-Up, op. cit., pág. 22
52 - Revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes - EUA, junho de 1996,
pág. 106
Fontes das Ilustrações
53 – Propaganda retirada da revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes -
EUA, janeiro de 1996, segunda capa
Bibliografia
54 – Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 52
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São Paulo, 13 de setembro de 1998
Dominações Sexuais, in: Caderno Mais! - Jornal Folha de São Paulo, 8 de
novembro de 1998
Filósofo da Dor, O, in: Caderno 2/ Cultura - Jornal O Estado de São Paulo, 16 de
maio de 1999
Sexo Dá o Que Pensar, in: Caderno Mais! - Jornal Folha de São Paulo, 9 de julho de
1995
Todas as Formas de Amor, in: Caderno Mais! - Jornal Folha de São Paulo, 26 de
fevereiro de 1995
CD_ROM
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de Transtornos Mentais, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995
CD-ROM FOLHA DE SÃO PAULO 1995, 1997, 1998 - Empresa Folha da Manhã
S/A, 1996
FREUD, Sigmund, Obras Completas em Cd-Rom, Rio de Janeiro, Imago
JACQUELINE, Mistress, Dungeon of Dominance, E.U.A., Full Motion Video e Sound,
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REVISTAS
CAPTURED - London Enterprises Limited - EUA
HUSTLER - editora StarVision - São Paulo - Brasil
LEG SHOW - Leg Glamour - Nova York - EUA
NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes - EUA
RUDOLF - Edições Ki-Bancas LTDA - São Paulo - Brasil
SPANKED - London Enterprises Limited - Van Nuys - EUA
TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA
JORNAIS
SEX - Christian Rocha Editores e Associados - São Paulo
SITES DA INTERNET
Existe uma infinidade de sites que tratam do tema, desde os que propõem uma
discussão séria até os que apenas dão acesso a fotografias e filmes através de
pagamento. Selecionarei apenas alguns que considero terem mais afinidade com o
espírito deste trabalho:
Grupo SoMos:
http://www.nossomos.com.br
Deviant’s Dictionary:
http://www.queernet.org/deviant/
BDSM - Um Estilo de Vida:
http://www.geocities.com/WestHollywood/Park/5890/smestilo.html