ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE SADOMASOQUISMO

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0 Jorge Leite Jr. ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE SADOMASOQUISMO Orientadora: Professora Doutora Eliane Robert Moraes Departamento de Comunicação Jornalística - COMFIL PUC - SP 2000

Transcript of ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE SADOMASOQUISMO

0

Jorge Leite Jr.

ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE

SADOMASOQUISMO

Orientadora: Professora Doutora Eliane Robert Moraes

Departamento de Comunicação Jornalística - COMFIL

PUC - SP

2000

1

Jorge Leite Jr.

ELEMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DO CONCEITO DE

SADOMASOQUISMO

Relatório final da bolsa de Iniciação Científica PIBIC - CNPQ do Projeto

“Repercussões de Sade” ; setembro de 1999 - agosto 2000

Orientação: Professora Doutora Eliane Robet Moraes

Departamento de Comunicação Jornalística

COMFIL - PUC - SP

2000

2

Dedico este trabalho a Paloma de Albuquerque,

com amor, dor e prazer. Te Amo.

3

Muitas são as pessoas a quem eu devo agradecimentos: Armando Colognese

Jr.; Cleber Alessandro da Cruz; Haruo Okawara; Márcio Alves da Fonseca; Marisa

do Espírito Santo Borin; Ricardo Manuel da Silveira; Sílvia Jane Zveibil; Paloma de

Albuquerque - pela paciência e incentivo; meus pais, Jorge Leite e Elvira Guinato

Leite que sempre confiaram e apostaram em mim; minha orientadora Eliane Robert

Moraes, por esta chance e pela generosidade de sua parte; e a todos aqueles que

direta ou indiretamente me ajudaram na realização deste trabalho e aqui não estão

citados por descuido de minha parte: peço desculpas e obrigado.

Índice

4

I

Introdução ...................................................................................................................6

I * Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade ..............................................10

II * Leopold Von Sacher-Masoch .............................................................................26

III * Richard Von Krafft-Ebing ...................................................................................41

IV * Sigmund Freud ..................................................................................................61

V * A Cultura S&M ....................................................................................................81

II

VI * O Sadomasoquismo à Luz de Sade ................................................................100

VII * O Sadomasoquismo à Luz de Masoch ...........................................................114

VIII * O Sadomasoquismo à Luz de Krafft- Ebing ..................................................124

IX * O Sadomasoquismo à Luz de Freud ...............................................................138

Conclusão ..............................................................................................................155

Anexo I - Fontes das Ilustrações ............................................................................165

Bibliografia ..............................................................................................................169

5

“A amada, claro, há de sentir

dor quando você a golpear,

mas os gritos que à garganta lhe subirem,

se cada tipo você puder reconhecer,

vão dizer o quanto ela se encontra excitada”

Vatsyayana, Kama Sutra

INTRODUÇÃO

6

“O escândalo do sado-masoquismo não é o sofrimento; é sua vinculação ao sexo” 1.

1 COSTA, Jurandir Freire, O Sujeito em Foucault: Estética da Existência ou Experimento Moral? in: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, Vol.7, Nº1-2, outubro de 1995, pág. 136

7

O sofrimento como um valor legítimo a ser almejado para si mesmo ou para o

outro não é algo novo em nossa cultura. Esteve presente no estoicismo dos gregos,

na penitência dos cristãos e nas atuais torturas políticas. A sociedade, que há

séculos atrás mortificava o corpo com jejuns, hoje o sacrifica com rigorosos regimes

alimentares - e se orgulha disto. A mesma medicina capaz de diagnosticar, curar e

salvar vidas frente a problemas antes inimagináveis, muitas vezes ainda se utiliza de

métodos altamente agressivos e invasivos não levando em conta o quão terrível e

traumático podem ser alguns tratamentos para os pacientes - como se não bastasse

o medo da própria doença2.

Entretanto, quando o sofrimento - visto em muitos casos como “virtude” ou

“mal necessário” - está ligado ao erotismo, a tendência é considerá-lo um

comportamento “doente” ou “criminoso”. Paralelamente, esta mesma sociedade

permite espaços cada vez maiores para determinado tipo de comportamento

chamado “sadomasoquismo”, que conquista posições e direitos através da cultura

de massas, seja via pornografia “pesada” ou simples propagandas comerciais3. O

“sadismo” e o “masoquismo”, erotizados ou não, estão na raiz de nossa formação

cultural e de nossa subjetividade.

Com este trabalho pretendo estudar a formação e as várias modificações de

sentido por qual passou, e ainda passa, o termo “sadomasoquismo”.

O primeiro capítulo é uma análise da vida e obra do Marquês de Sade.

Procuro quais os elementos descritos em seu texto que mais tarde vão dar a base

para nomear a “perversão sexual” chamada “sadismo”.

No segundo faço o mesmo tipo de análise, nos trabalhos de Leopold Von

Sacher-Masoch, mais especificamente em seu texto A Vênus das Peles, pois este

também servirá de inspiração para a nomeação do “masoquismo”.

O terceiro capítulo é dedicado ao estudo do livro Psychopathia Sexualis, do

psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing, detendo-me na análise das

“perversões” citadas acima.

2 Algumas vezes tem-se a impressão de que para se curar uma doença, é necessário ainda “assustá-la” visando sua “fuga”, utilizando para isso tubos, injeções, ambientes de uma brancura que ofusca o olhar, cheiros fortes, máquinas assustadoras e enfermeiros que cuidam dos pacientes com a delicadeza de mecânicos concertando um motor de automóvel. 3 Como a do cigarro Camel, que em um de seus anúncios, mostra o camelo símbolo da marca vestido com uma indumentária sadomasoquista, demonstrando um apelo a uma sexualidade “moderna”.

8

Em seguida, vejo quais as mudanças conceituais que o sadismo e o

masoquismo sofreram em Freud, e tento contextualizá-las em sua obra.

Finalmente, no quinto capítulo, dou uma breve explanação sobre a atual

“cultura” S&M.

Em todos estes capítulos, procuram-se os paralelos entre a concepção

analisada no momento e aquela supostamente “original”, ou seja, pergunto-me se os

sádicos de Krafft-Ebing, Freud e da cultura S&M são os mesmos de Sade e de

Sacher-Masoch.

Nos capítulos seguintes, intitulados “O Sadomasoquismo à Luz de (...)”,

procuro um aprofundamento da questão do “par”, ou seja, como se dá a relação

dominador/ dominado nos textos dos autores trabalhados. Para isto, procurei me

fixar em apenas uma obra de cada autor. Assim, na análise de Sade o foco é o livro

“Justine – Os Sofrimentos da Virtude”. “A Vênus das Peles” e “Psychopathia

Sexualis” ainda são usados em Sacher-Masoch e Krafft-Ebing respectivamente.

Quanto à parte referente a Freud, concluí ser melhor não me fixar em um único

texto e sim utilizar-me de alguns específicos, como no capítulo IV, pois do contrário

perderia um dado fundamental para este estudo: a mudança ocorrida na maneira de

entender o “masoquismo” – e claro, o “sadismo” – para este autor.

Nesta segunda parte, a cultura S&M não é analisada por ser um universo de

pesquisa extremamente amplo e fundamentalmente visual e iconográfico, pois a

literatura sobre este tema, apesar de crescer constantemente, ainda é limitada e

difícil de adquirir. Da mesma maneira, a análise das fotos e imagens contidas neste

trabalho não foi feita por falta de tempo, preferindo o autor dar prioridade ao

aprofundamento das análises textuais4. Ainda assim, optei por manter as gravuras

no trabalho final (e até acrescentar mais algumas) dada a importância desta

linguagem tanto no campo do erotismo em geral, como no do sadomasoquismo em

particular.

Finalmente, na conclusão, relembro brevemente como foi o processo de

criação e transformação do termo “sadomasoquismo”, analisando a confusão

conceitual ligada a esta palavra.

9

4 Pretendo desenvolver este trabalho mais à frente, talvez em uma pesquisa específica sobre esta linguagem.

10

Capítulo I

DONATIEN-ALPHONSE-FRANÇOIS, O MARQUÊS DE SADE

11

“... Uma vez recoberta a cova, glandes deverão ser semeadas por cima, de

forma que, com o tempo, a fossa volte a ser forrada pela mata como antes, e os

traços de meu túmulo desapareçam da superfície da terra; como me sinto lisonjeado

por minha memória se apagar do espírito dos homens!” 1. Este trecho de carta foi

escrito no sanatório de Charenton em 30 de janeiro de 1806, oito anos antes da

morte de seu autor. Após um século, as idéias contidas em sua obra serviram de

base para a classificação de uma das mais discutidas das “perversões sexuais”. A

palavra “sadismo” derivou deste homem.

Quase duzentos anos depois, contrariando seus desejos, o Marquês de Sade

não só é estudado e lido em quase todo o mundo como o termo que surgiu de seu

nome é usado cotidianamente. Menos conhecido como literatura e mais como

categoria psicológica, o criador da “Sociedade dos Amigos do Crime” tem um papel

fundador na consciência moderna.

Muito se fala de sua vida desregrada, repleta de orgias e crueldades, mas -

infelizmente para alguns - a maioria destas histórias não passa de folclore2. Sade

passou 27 de seus 74 anos de vida encarcerado. Foi dentro de prisões ou hospícios

que ele criou uma vasta obra, esta sim repleta de horrores, regada com muito, muito

sangue e esperma: “Sou libertino sim, confesso. Imaginei tudo o que se pode

conceber nesse gênero, mas certamente não fiz tudo o que concebi e seguramente

jamais o farei” 3.

Sade nasce em 1740 na França. De origem nobre, vive um dos períodos mais

conturbados da História - a Revolução Francesa. Com uma filosofia própria que

exalta o egoísmo, prega a destruição, sendo em seus escritos ora monarquista, ora

republicano4, o escritor do “Diálogo entre um Padre e um Moribundo” é uma voz

1 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, São Paulo, Círculo do Livro, pág. 355. 2 Não quero com isso dizer que o autor não era uma pessoa cruel. Ele realmente cometeu atos intencionais de violência, como a flagelação da mendiga Rose Keller, o que lhe valeu um processo judicial e deu início à fama de torturador e assassino. Pretendo apenas esclarecer que muito do que é dito sobre Sade são boatos que misturam a vida com a obra, e não fatos concretos. 3 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág.13. 4 Para ilustrar esta afirmação, cito estas duas passagens: “A lei só é feita para o povo (...) Em todo governo sábio, o essencial é que o povo não invada a autoridade dos grandes, pois ele jamais o faz sem que uma multidão de

12

destoante e insuportável para ambos os regimes: “A verdadeira política de um

Estado é, portanto, a de centuplicar todos os meios possíveis de corrupção” 5.

A família do autor, em crise financeira mas com um passado de prestígio,

resolve unir-se à uma outra, sem ancestrais nobres mas com dinheiro. Este acordo

de interesse de ambas as partes é materializado pelo casamento arranjado do

Marquês com a filha mais velha da família dos Montreuil.

Casando contra vontade, ele interessa-se pela irmã de sua mulher. Mais do

que isso, não quer manter-se preso a uma união puramente contratual, desejando

experimentar os prazeres ditos “libertinos”. Para isso, envolve-se com prostitutas e

passa a ter casos com mulheres da sociedade. Mas tudo poderia ter ocorrido sem

maiores repercussões, não fosse um detalhe: sua sogra.

Madame de Montreuil ou “a Presidenta”, como era conhecida, era uma

mulher autoritária, zelosa de sua condição social e fortuna, muito influente nos

círculos de poder. As pessoas a respeitavam temendo-a, e Sade cai em desgraça

com ela. Tentando manter a honra da família, evitando gastos com as loucuras do

Marquês e com vários processos contra ele - inclusive com a opinião pública lhe

sendo hostil - a Presidenta consegue fazer com que Sade seja detido.

No século XVIII, a tortura e os suplícios como punições legais e espetáculos

de coerção fazem parte do dia-a-dia de quase toda a Europa6. A nobreza francesa

está acostumada a praticar seus crimes na certeza de sua impunidade. A captura de

Sade torna-se símbolo de punição também para os poderosos, transformando-o em

bode expiatório.

desgraças perturbem o Estado e o gangrenem durante séculos. “ ( SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 192); e o panfleto: “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos” (SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, São Paulo, Círculo do Livro, pág.151) 5 SADE, D. A. F., A Gosadora de Nesle, Barcelona, Sociedade Hispano-Americana, Pág. 22 - Esta é uma coletânea de textos do Marquês que não dá informações sobre a edição ou a editora, além do que está transcrito acima. 6 A tortura era, desde a antiguidade, o modo por excelência do poder se exercer sobre o povo, que vai durar até o início do séc. XIX. Nesta prática, o poder manifestava-se preferencialmente sobre o corpo do indivíduo. A quantidade do sofrimento, do castigo era regulada por quem exercia a autoridade segundo sua vontade. “O suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder”. Este deveria ser público e não perder nunca o tom de espetáculo. O Marquês vai manter este elemento do evento único e grandioso, mas vai deslocá-lo para o campo do privado, onde deve ser um show reservado e particular, somente para um grupo seleto e restrito. Em Sade, o suplício migrou da praça pública ao boudoir. Para mais informações a respeito da tortura como instrumento de poder e seu declínio enquanto forma: FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 1988. A citação é deste livro à pág. 47.

13

Desde 1763, data de sua primeira prisão, até o resto da vida, ele alternará

momentos de encarceramento com fugas e curtas libertações jurídicas. Quando,

com a Revolução Francesa, o poder da Presidenta é anulado e Sade não precisa

mais temê-la, agora é a República que já conhece suas obras e as lendas a seu

respeito, considerando mais seguro deixá-lo detido: “Não foi minha maneira de

pensar que me desgraçou, foi a dos outros”7.

Sade pode ser considerado o expoente máximo da filosofia libertina. Surgida

no século XVI, tendo como característica inicial a rebeldia contra a Igreja, na época

de nosso autor o libertinismo estava agora associado também à liberação dos

costumes e práticas sexuais, além ainda da contestação religiosa. Ele vai

intensificar estes fatores ao máximo e acrescentar uma nova característica,

fundamental em suas obras: a crueldade, o crime, o suplício, a tortura, a dor

relacionados ao erotismo, isto é, tudo aquilo que conhecemos hoje por “sadismo”.

Em seu sistema, a destruição não é apenas necessária mas desejada pela

própria natureza: “Minha filha, o movimento é a essência do mundo; no entanto, não

pode haver movimento sem destruição; logo a destruição é necessária às leis da

natureza. Quem mais destrói, ao impor maior movimento à matéria, è ao mesmo

tempo quem melhor as serve” 8; “Que esta verdade ponha à vontade os que dão

rédea solta às suas paixões e que eles se convençam de que a melhor maneira de

servir a natureza é multiplicar as suas perfídias” 9. Para ele, o ser humano tem a

mesma importância de um vegetal ou uma pedra, o egoísmo é o que de mais

natural e “puro” pode-se encontrar em cada homem. A razão deve afastar todos os

fantasmas, sejam eles do campo da religiosidade ou da sociabilidade, admitindo que

necessariamente estamos sozinhos no universo. Qualquer tentativa de integração

com o outro é falsa, inútil, anti-natural, e por isso os libertinos não acreditam na idéia

de amor. A única proximidade possível é a amizade, surgida da afinidade de caráter

entre os devassos. O ato de “gozar juntos” é desejado somente se o sexo é

praticado entre eles: “Ó meus amigos, descarreguemos juntos: é a única felicidade

7 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 345 8 Idem, Ibidem, Pág. 114 9 SADE, D. A. F., A Verdade, Lisboa, Antígona, 1989, pág. 25

14

da vida!...” 10. Quando envolve uma vítima, torna-se impossível: primeiro porquê a

identidade e união pressupostas para o sucesso deste intento não existem.

Segundo: o verdadeiro deleite visa somente a si mesmo, qualquer tentativa de levar

o parceiro em conta é desgastante e desestimulante. Por último, o prazer deve ser

arrancado, conquistado à força, jamais cedido.

Para a natureza continuar sua existência, a aniquilação das formas é o meio

mais perfeito para isso. E neste processo, existe um prazer indescritível, só podendo

ser captado por quem se desvencilha de toda forma de civilidade e de ilusões

sobrenaturais: “- Ah! Que sublime horror! - exclama a condessa. - Como a natureza

é bela, mesmo nesta desordem!” 11.

Diferente da maioria dos maníacos e assassinos em série noticiados hoje em

dia - cujos ataques de fúria podem ser tão cruéis como os descritos nos livros do

Marquês, mas que normalmente são considerados “doentes” por uma série de

exames neuroquímicos e psicológicos - os libertinos têm na vontade o elemento

determinante de seus atos. Embora para eles exista uma força maior oriunda da

própria organização da máquina humana - nervos, fibras, sangue e os “espíritos

animais”, que os deixam mais sensíveis, e até mesmo determina o

comportamento12, eles são libertinos antes de tudo por escolha: “Sou imoral por

sistema e não por temperamento” 13.

10 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 119 11 SADE, D. A. F., Os Crimes do Amor, Porto Alegre, L&PM, 1991, pág. 98 12 Sade está sempre baseando-se nos avanços da medicina e filosofia do século XVIII. A primeira vê o corpo humano como uma máquina, tendo como causa da maioria dos distúrbios psíquicos as alterações das fibras e nervos que compõem os órgãos. Ninguém melhor que ele próprio para explicar sua fisiologia, escrita como nota para o texto de Justine: “É dos nervos que dependem a vida e toda a harmonia da máquina; daí os sentidos e as volúpias, os conhecimentos e as idéias. Numa palavra, são a sede de toda a organização, e lá também se encontra a da alma, isto é, esse princípio de vida que se extingue nos animais, crescendo e decrescendo com eles, e que, consequentemente, é todo material. Consideram-se nervos os tubos destinados a veicular os espíritos nos órgãos onde se distribuem, e a trazer de volta ao cérebro as impressões dos objetos exteriores sobre esses órgãos. Uma grande inflamação agita de modo extraordinário os espíritos animais que correm na cavidade destes nervos, determinando-os ao prazer, se essa excitação é produzida nas partes geradoras ou nas que se lhe avizinham, o que explica os prazeres recebidos por golpes, picadas, beliscões ou chicote. Da extrema influência da moral sobre o físico nasce assim o choque doloroso ou agradável dos espíritos animais em razão da sensação moral que se recebe, de onde se ressalta que, com princípios e filosofia, com o aniquilamento total dos preconceitos, pode-se incrivelmente estender, como já se disse, a esfera das sensações”. SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 112. A filosofia, por sua vez, discute a questão da “natureza humana”, o lugar do natural e do artificial nas relações de sociabilidade, e os possíveis conflitos destas com o corpo, sendo este um ponto fundamental nos

15

Os assassinos “reais” conhecidos por nós invocam com frequência uma força

incontrolável que supostamente os faz “surtar”, e dali em diante não tem mais poder

sobre seus atos e vontades. Nada mais “amador” diriam os grandes libertinos. A

verdadeira libertinagem está em nunca perder a consciência, mas educá-la para

melhor saborear os prazeres que um suplício pode proporcionar. Vejamos como

Sade nos apresenta Curval em “Os 120 dias de Sodoma”: “(...) com esse homem, as

paixões não tinham a menor influência nas doutrinas; firme em seus princípios, era

igualmente ateu, iconoclasta e criminoso depois de ter derramado seu esperma ou

antes, quando estava em fermento lúbrico, e é assim, precisamente, que deviam ser

todas as pessoas sensatas e equilibradas. O esperma não devia poder ditar ou

afetar nossos princípios; nossos princípios é que deviam regular nossa maneira de o

derramarmos. E quer se esteja de pau duro, ou não, nossa filosofia, agindo

independentemente das paixões, devia ser sempre a mesma” 14. Daí a “apatia” das

personagens de Sade.

Apatia: o distanciamento, a capacidade de manter-se frio e tranqüilo frente

aos piores terrores. Assim, os devassos podem então dar início à sessões de

torturas como se fossem monges em meditação: “E todos esses pretensos ultrajes

contra a natureza se passam numa ordem e numa tranqüilidades capazes de

alimentar as reflexões de um filósofo” 15. As paixões são devidamente educadas

para não interferirem, pois existe um prazer muito além delas, que deve ser

conhecido às custas dos corpos supliciados. A apatia em Sade, ao invés de

provocar um afastamento do corpo, dá ênfase na matéria: é o método ideal para

alcançar o verdadeiro prazer.

O autodomínio e a indiferença apáticas são aqui voltados para o sofrimento

do outro. Eles não permitem que as dores, gritos, convulsões e sangramentos

interfiram na busca do libertino: “(...) por Deus, posso ver o universo perecer sem um

suspiro ou uma contração” 16. A crueldade e as mortes não significam muito se

forem causadas por um momento de raiva ou de descontrole. Elas devem originar-

textos do Marquês, pregando a completa ruptura com as convenções sociais para o melhor desabrochar de nossa ferocidade e egoísmos “naturais”. 13 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 318 14 SADE, D. A. F., Os 120 dias de Sodoma, São Paulo, Aquarius, 1980. pág. 277 15 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 94 16 SADE, D. A. F., Os 120 dias de Sodoma, op. cit., pág. 164

16

se de uma reflexão, ter sempre por base uma filosofia, para que a moral dos fracos

e das vítimas não possa desvirtuar o carrasco do seu caminho, e principalmente

para, graças à educação libertina, desenvolver ao máximo a capacidade de sentir

prazer: “Nenhum dó, nenhuma compaixão: a humanidade é a morte do prazer” 17.

O discurso é a grande arma de Sade. Com ele instauram-se horrores,

ampliam-se prazeres, separam-se os verdadeiros adeptos do crime dos pequenos e

ordinários torturadores: “Distinguimos em geral duas espécies de crueldade: aquela

que nasce da estupidez, que, jamais pensada, jamais analisada, assimila o indivíduo

nascido desse modo ao animal feroz: este não dá nenhum prazer, porque aquele a

isso inclinado não é suscetível de nenhuma pesquisa; as brutalidades de um ser

desse tipo raramente são perigosas: é sempre fácil pôr-se ao abrigo delas; a outra

espécie de crueldade, fruto de extrema sensibilidade dos órgãos, só é conhecida por

seres extremamente delicados, e os excessos a que ela os leva não passam de

refinamento de sua delicadeza; é essa delicadeza, embotada com excessiva

presteza por causa de sua excessiva finura, que, para despertar, põe em ação todos

os recursos da crueldade” 18. As vítimas não discutem, não têm argumentos, são

passivas em relação ao mundo das idéias. Os devassos conversam entre si, pois

sabem que aqueles que serão sacrificados não conseguem entender a sua refinada

filosofia; se conseguissem, logo perceberiam como são tolos e passariam para o

lado dos torturadores. Mesmo quando os algozes falam às vítimas é sempre como

um monólogo, nunca um diálogo. Os atos do libertino são motivados por princípios,

muito mais que por impulsos.

A libertinagem é antes de tudo um estado de espírito. E para poder ser um

verdadeiro devasso, a pessoa deve passar por uma educação, um treinamento;

deve ter mestres, ser iniciada e captar as nuanças da violência com o espírito

criativo de um aprendiz: “Você sabe como respeito os gostos, as fantasias: por mais

barrocas que sejam são todas respeitáveis porque não somos seus donos, porque a

mais extravagante delas remonta sempre a um princípio de delicadeza” 19. O prazer

deve ter um valor em si, a agonia das vítimas não deve interferir nas lições. O

libertinismo é uma verdadeira Ars Erotica. Por isso abundam na obra de Sade as

17 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 281 18 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 96 19 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 259

17

sociedades e grupos com o fim exclusivo de causar a morte através da dor, para o

puro e simples deleite das sensibilidades desenvolvidas. O sofrimento deve ser

como uma cerimônia; a tortura e o sexo, uma aula exemplar20. O local dos suplícios

não pode ser às claras, mas privado, de difícil acesso, isolado, quase escondido21. A

destruição, o coito, o prazer que deles deriva são uma obra de arte e a libertinagem,

um estilo de vida.

Mas é também Scientia Sexualis. O prazer obtido vêm de um dilaceramento

minucioso, estudado em mínimos detalhes, com a razão gerenciando todo o

processo. Os martírios devem ser preparados, analisados como em um

laboratório22. A dor causada nos corpos deve ser medida, verificada e contabilizada

em um balanço quantitativo e qualitativo. O conhecimento deve ser testado e

demonstrado. O prazer não aparece apenas na sensibilidade desenvolvida, mas na

razão treinada. A filosofia libertina é o melhor exemplo de seu sucesso23: “Passei a

vida toda estudando a natureza, roubando seus segredos; e, com a imoralidade

alimentando-me os estudos, há vinte anos só consagro minhas descobertas à

infelicidade dos homens” 24.

Existe uma constante busca nas obras do Marquês, uma ânsia por um

conhecimento obtido somente através do suplício dos corpos, da dor dos corações e

da angústia das mentes. As personagens não procuram sensações comuns, mas

aquelas que só podem mostrar-se após todos os limites terem sido rompidos,

habitando um lugar claro e bem definido: o corpo. É pela dor do outro, vivenciada na

carne que se pode chegar ao prazer. Mas não é apenas a dor em si que é a fonte

de sabedoria e delícias. Todo o conhecimento, todo o prazer só pode ser alcançado

através da dor alheia, graças à um ato intencional do libertino. A dor deve ter o outro

como objeto, e a um adepto do crime como sujeito. De preferência no corpo, muito

mais do que na alma. Toda a abstração chamada espírito, consciência, alma, é

apenas um resíduo desta carne: “Meu amigo, a religião só impera no espírito dos

que nada podem explicar sem ela (...) E o que é a alma? Um espírito. O que é

20 Como exemplo claro de uma “aula” de libertinagem pode-se citar o livro “A Filosofia na Alcova”. 21 Os castelos em locais de difícil acesso, os calabouços e as salas secretas são constantes na obra de Sade. 22 Sobre a metáfora do laboratório: MORAES, Eliane Robert, A Felicidade Libertina: Sade, Rio de Janeiro, Imago, 1994; pág. 198, nota 51. 23 Sobre a Ars Erotica e a Scientia Sexualis, FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade - Vol. I A Vontade de Saber, Rio de Janeiro, Graal, 1988

18

espírito? Uma substância que não tem forma, cor, extensão ou parte (...) Eis as

soluções pueris que somos obrigados a conceber para explicar os problemas do

mundo físico e moral!” 25.

Mas o prazer não tem marcações precisas de início ou fim, e a cada

conquista, a cada membro mutilado, a cada nova tortura ele esconde-se mais à

frente. Claro que com os suplícios os devassos alcançam o prazer, mas nunca é

definitivo: “Açoite sua mãe, esfole suas irmãs! Não as poupe... e não tema

sobretudo ultrajar a natureza: é sempre além dos limites conhecidos que essa

sacana fixa o prazer” 26. Ele pode ser infinitamente maior e mais refinado, bastando

apenas para isso os crimes seguirem esta tendência. Por isso muitos personagens

desejariam destruir toda a natureza, todo o universo: “segundo me parece, a

impossibilidade de ultrajar a natureza é o maior suplício do homem” 27. Para além da

natureza e do universo encontra-se ainda um prazer, querendo ser experimentado

até onde for do alcance do libertino.

Este excesso vai ser frequente nas obras do Marquês: “O que seria da

volúpia sem o excesso?” 28. De ambos os lados ele vai marcar presença: seja com

os devassos, insaciáveis em seus crimes e desejos sexuais, ou ao lado das vítimas,

sempre passivas aos piores tormentos, mas com uma vitalidade corporal impossível:

apesar das torturas e dos suplícios mais ferozes, elas não morrem facilmente. Isso

só acontece quando o libertino o permite, após horas ou até dias de agonia e

sofrimentos atrozes: “Fazem uma pausa para ela recuperar suas fôrças, depois os

Senhores retomam o trabalho, mas desta vez, no momento em que os nervos são

puxados e ficam expostos, são raspados com o fio de uma navalha. Os amigos

completam essa operação e vão então para outro lugar; um buraco é feito em sua

garganta, a língua é empurrada para trás, para baixo, e passada pelo orifício, é um

efeito cômico, torram o seio que lhe resta, depois, pegando num escalpêlo, o Duque

enfia a mão em sua boceta e corta a parte que separa o ânus da vagina; põe o

escalpêlo de lado, introduz de novo sua mão e remexendo em suas entranhas força-

a a cagar pela boceta, outra brincadeira divertida; então, aproveitando a mesma

24 SADE, D. A. F. Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 335 25 Idem, Ibidem, pág. 287 26 Idem, Ibidem, pág. 182 27 Idem, Ibidem, pág. 286

19

entrada, chega e rasga-lhe o estômago. A seguir concentram-se em seu rosto:

cortam-lhe as orelhas, queimam a passagem nasal, cegam seus olhos com lacre

derretido, recortam-lhe o crânio, penduram-na pelos cabelos, amarram pesadas

pedras a seus pés, e deixam-na cair: a tampa do crânio continua balançando.

Respirava ainda quando caiu, e o Duque fodeu-a na boceta neste lastimável

estado” 29.

A sodomia é uma constante em Sade. Os carrascos a preferem e as vítimas a

abominam. Em sua época, este era considerado um crime do qual inclusive o autor

foi acusado e condenado. Aqui percebe-se como o edifício do sexo “natural” e

somente para fins de reprodução, culminando com a classificação e medicalização

dos perversos no século XIX, já estava com suas bases montadas no século

anterior.

Por ser um coito estéril para gerar descendência, trabalhar na localização

mais “impura” do corpo, contar com maldições bíblicas sobre si e representar uma

violência ultrajante para quem é sodomizado, este tipo de relação será a mais

idolatrada pelos libertinos: “Pois bem! Mas esse é o cu! A natureza, meu caro

cavaleiro, se prescutares com cuidado suas leis, jamais indicou outros altares a

nossa homenagem a não ser o buraco do traseiro; ela permite o resto, mas ordena

este” 30. Eles não só querem possuir desta forma como ser possuídos. Garantem

que este prazer para as mulheres é superior ao do coito vaginal, “É que, palavra,

não conheço nada tão fastidioso que a posse da cona, e quando, como vós

senhora, se gozou os prazeres do cu, não concebo como se possa voltar aos

outros” 31; no caso dos homens, faz deles os mais perfeitos seres de prazer, pois

podem sentir tanto as delícias de penetrarem como de serem penetrados. Este é um

dado importante: os senhores de Sade sentem prazer ao serem possuídos por trás,

enquanto seus escravos sentem dor. A violação anal é uma forma de domínio sobre

o corpo do outro, e a capacidade de sentir prazer, o que faz a distinção entre

libertinos e vítimas.

28 Idem, Ibidem, pág. 110 29 SADE, D. A. F., Os 120 dias de Sodoma, op. cit. pág. 363 30 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 108 31 Idem, Ibidem, pág. 108

20

O ânus é considerado o grande altar da natureza por seu formato mais

“circular”, mais anatomicamente apto a receber um pênis. É também por aí que

saem as fezes, fundamentais para as orgias e prazeres sadianos. Elas, por serem

consideradas algo execrável e impuro, estimulam as paixões, sendo alvo de uma

apreciação tanto filosófica quanto material: “Curval quis endireitar-se de nôvo,

precisava em absoluto de um pouco de merda, e Augustine disparou o mais perfeito

artefato que o poder humano possa criar” 32. Mede-se sua quantidade, espessura,

cor e aroma. As fezes são saboreadas em grandes banquetes que tanto mais

agradam aos libertinos quanto mais enjoam e desesperam suas vítimas. O prazer

de degustar os excrementos humanos é maior ao forçar as vítimas a ingeri-los.

A vagina, pelo contrário, é repugnante para a maioria das personagens de

Sade. Por representar o próprio princípio feminino, ela é alvo de ofensas e torturas.

A libertina Duclos comenta nos “120 Dias de Sodoma”: “(...) pois o camarada tinha o

mau gôsto de só querer ver a parte da frente” 33. O ânus, como elemento genital

comum a ambos os sexos é o que garante a satisfação no uso do corpo de uma

mulher.

Isso nos leva a um tema recorrente nas obra do Marquês: a androginia. Os

devassos procuram por uma sexualidade que está além das limitações biológicas

dos órgãos genitais, mas nunca além do corpo. Todo estímulo físico ou psíquico tem

sede na carne, não sendo passíveis de mudança: “Poderemos nos tornar outros

além do que somos?” 34. Podem no máximo ser educados. Para eles o prazer está

fora das questões de gênero, e o hetero ou homossexualismo só adquire

importância quando têm a intenção de chocar as vítimas.

Neste sentido os figurinos dessas personagens são ilustrativos. Homens

vestem-se de mulheres e vice-versa, pois isto adquire não só o caráter de

transgressão mas serve para transformar os corpos unissexuados em corpos

andróginos. Os senhores do castelo de Silling, em “Os 120 Dias de Sodoma”, várias

vezes recorrem ao transvestimento em suas orgias. O libertino quer muito mais do

que bissexualidade: ele quer ter os dois sexos em um só corpo.

32 SADE, D. A. F., Os 120 Dias de Sodoma, op. cit, pág. 229 33 Idem, Ibidem, pág. 254 34 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 297

21

Os figurinos lembram também um elemento fundamental em Sade: o teatro.

Apaixonado que era por esta arte, ele criou nas orgias e torturas um ambiente de

teatralização, no qual os “atores” realmente matam e morrem em cena. Toda uma

discussão entre a realidade / ficção, entre personagem / ator é desenvolvida

implicitamente na forma do espetáculo particular que são os suplícios sadianos, com

algozes e vítimas muitas vezes maquiados, fantasiados e atuando como diretores /

atores de seus crimes: “Êste quarto estava ocupado por um grande teatro, no qual

eram preparadas sete torturas diversas: quatro carnífices nus e bonitos como marte

deviam servir os suplícios, isto é: o fogo, a fustigação, a corda, a roda, o pau, a

decapitação, o esquartejamento” 35. A dor deve vir à tona de uma forma quase

ensaiada, mostrar-se através dos gritos e do sangue com todo o brilho e encanto de

uma apresentação teatral.

.

A mulher é a vítima preferencial de Sade, e mesmo entre libertinos esta

condição demonstra certa submissão ao princípio masculino, como neste trecho das

Instruções às mulheres admitidas na Sociedade dos Amigos do Crime: “Em qualquer

estado ou condição que tenha nascido esta que aqui vai assinar, sendo mulher, é a

partir desse momento criada unicamente para os prazeres do homem” 36. Mas não

imaginemos por isso ser o gênero feminino em si que é perseguido pelo Marquês. O

alvo dos crimes dos devassos é sempre a noção cultural de mulher. Todas as

atitudes consideradas femininas e assim valorizadas - como a meiguice, a graça, a

ternura, o recato, o romantismo e principalmente a maternidade - são destruídas

pela crueldade de pessoas de ambos os sexos. A mulher pode ser uma devassa,

mas para igualar-se aos libertinos deve antes de tudo, tomar uma atitude viril frente

ao crime, abominar o que lembre a meiga feminilidade, a doçura e a maternidade

cristãs. Todas estas características devem ser abolidas em troca da lassidão de

uma razão sempre pronta a criar novos tormentos e aumentar o número de mortes.

Todas as grávidas na obra do Marquês têm como destino, ou de seus bebês

(ou mesmo fetos), serem mortos por algozes ou por elas próprias. As grandes

senhoras do autor não geram vida, mas a morte. Novamente na admissão de

35 SADE, D. A. F., A Gosadora de Nesle, op. cit., pág. 71

22

Juliette à Sociedade: “Presidenta: Cometeu crimes? - Juliette: Diversos. -

Presidenta: Atentou contra a vida de seus semelhantes? - Juliette: Sim. (...)

Presidenta: Então você detesta a progenitura? - Juliette: Abomino-a. - Presidenta:

Se ficasse grávida, teria coragem de abortar? - Juliette: Seguramente” 37. Na galeria

dos grandes libertinos, figuram mulheres com uma vitalidade filosófica e sexual, e

uma ferocidade criminosa às vezes superior à dos homens, como Madame de Saint-

Ange ou a própria Juliette38.

Os libertinos de Sade necessitam de vítimas, não de cúmplices ou pessoas

que estejam ali por vontade própria. O prazer sadiano deve ser arrancado à custa

de lágrimas, gemidos, humilhações e muita dor. Ele só pode ser encontrado no

rompimento das carnes, na angústia dos espíritos, pois é na mais completa

destruição de qualquer forma de vida que os órgãos dos devassos são estimulados,

graças ao excesso de sons, imagens, odores, sensações e sabores abundantes nas

torturas e orgias. Qualquer relação de mútuo consentimento entre o algoz e sua

vítima não é típica de Sade, podendo existir unicamente da parte dos libertinos entre

si.

O prazer sadiano encontra seu centro no egoísmo. A idéia de doar-se aos

prazeres de outro implica um desprendimento, uma tentativa de comunhão

abominável aos olhos de um adepto do crime. É a aflição e a dor que excitam,

sendo encontrados em toda sua intensidade apenas em pessoas verdadeiramente

desesperadas com sua situação de vítima. As personagens do Marquês não se

contentam com falsos estímulos ou agonias artificiais.

Somente na camaradagem entre devassos aquele que sofre as torturas pode

sentir prazer, pois ele o faz em benefício próprio, visando o deleite apenas para si.

Via de regra, as personagens que sentem prazer ao lhe infligirem algum tipo de dor

são também os carrascos. Alguém que deseja ser flagelado só pode ser um

libertino, pois são os únicos a possuir a sensibilidade necessária para sentir na

própria carne as maiores crueldades e com elas atingir o orgasmo: “(...) só peço

uma graça a Eugênia, é que ela se compraza em que eu a açoite tão forte como

36 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 87 37 Idem, Ibidem, pág. 84/86 38 Madame de Saint-Ange é personagem do livro A Filosofia na Alcova, e Juliette do livro Histoire de Juliette.

23

desejo ser eu mesmo açoitado” 39; “Repito, senhora: nada como a dor para causar

um esporro” 40. Esta aptidão é única dos devassos, pois as vítimas não possuem a

“filosofia”, a educação e os refinamentos necessários para tanto.

Mesmo a capacidade de sentir prazer não sendo exclusiva dos libertinos41, às

vítimas cabe o dever de sentir dor. Elas estão ali para deleite dos devassos, são

objetos. Não têm vontades ou direitos, e como o prazer deve ser tomado à força, é

no exercício de subjugar e destruir o outro que o prazer se concretiza, como bem

explica Dolmancé, um dos maiores libertinos de Sade: “Queremos ser comovidos,

dizem eles, este é o objetivo de todo homem que se entrega à volúpia, e queremos

que isso aconteça pelos meios mais ativos. Partindo desse ponto não se trata de

saber se nossos procedimentos agradarão ou não ao objeto que nos serve, trata-se

apenas de abalar a massa de nossos nervos pelo choque mais violento possível;

ora, não há dúvida de que a dor, afetando mais vivamente que o prazer, os choques

causados sobre nós por essa sensação produzida sobre os outros serão

essencialmente de uma vibração mais vigorosa, repercutirão mais energicamente

em nós” 42.

Sade é pouco conhecido como texto. Sua obra é grande e seu tema

incômodo. Mas ao colocar a crueldade em foco e caminhar sobre o terreno

movediço da relação prazer-dor, ele deixou-nos mais perto de nós mesmos. Ao

trazer todos os horrores de um “sadismo” para o campo da consciência, iluminou o

que antes estava no lado do inconsciente, do desconhecido, do não assumido. A

consciência de nossos próprios desejos de destruição foi anunciada em grande

parte por ele. O que antes era obra exclusiva de demônios ou de homens anormais,

depois do Marquês tornou-se uma característica, em maior ou menor grau, comum a

todo ser humano. Como ele mesmo disse em carta de 1782: “... Se quer analisar as

leis da natureza, lembre-se de que seu coração, onde ela se grava, é ele próprio um

enigma cuja solução não pode dar!” 43.

39 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit., pág. 129 40 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit., pág. 151 41 Muitas vítimas são levadas ao orgasmo pelos libertinos, mas sempre contra a sua vontade, graças à habilidade do algoz em extrair prazer dos corpos. 42 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit. pág. 92 43 SADE, D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit. Pág. 333

24

25

26

Capítulo II

LEOPOLD VON SACHER-MASOCH

27

“Mas é preciso reconhecer, mesmo me contorcendo sob os golpes

cruéis da bela mulher, eu sentia um certo prazer” 1. Da vida e obra do autor

deste trecho, escrito em um tipo de autobiografia, sairá uma das mais belas e

instigantes visões do amor e sexo em nossa época. Sem ele, não haveria o

termo “masoquismo”.

Em 1836, nasce na Áustria Leopold Von Sacher-Masoch. Vive em uma

região fronteiriça de vários povos e culturas que vão influenciar sua obra:

eslavos, russos, alemães e judeus. O tempo histórico é cercado por conflitos

sociais, como a Revolução de 1948. Ele é um aristocrata, anticlerical, herdeiro

do iluminismo, preocupado com as questões sociais de seu tempo, amante das

artes e da noção de honra cavalheiresca: “Eu queria primeiro ser soldado,

depois ator e por fim professor” 2. Contrastando com essa formação intelectual,

respeita e admira a rudeza e o misticismo dos camponeses.

Sacher-Masoch é um escritor quase desconhecido, a não ser por um

livro: “A Vênus das Peles”. Criador de uma vasta obra - 120 títulos - em grande

parte voltada para contos folclóricos das regiões, povos e culturas que

conhecia bem, é normalmente considerado um artista de menor porte pela

crítica e poucos livros seus encontram-se disponíveis para o leitor comum.

Sua obra foi concebida como um grande ciclo chamado de “O Legado

de Caim”. Somos todos filhos deste, e o que ele nos deixou como herança foi:

o Amor, a Propriedade, a Guerra, o Estado, o Trabalho e a Morte. Cada um

destes temas deveria ser desenvolvido em um ciclo de novelas ou contos, mas

isso não aconteceu. A maior parte dos textos está ligada ao tema do amor e da

guerra entre os sexos, mostrando-os incompatíveis e estranhos um ao outro.

Como Sade, sua vida é rodeada de lendas e exageros3, embora Masoch

tenha realmente experimentado muitas aventuras sexuais que se refletem em

1 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), Rio de Janeiro, Rocco, 1992, pág. 306 2 Idem, Ibidem, pág. 106 3 Como por exemplo, o que Wanda dizia em sua autobiografia: no final da vida, Masoch transformou sua pacata casa em uma verdadeira Meca do masoquismo; ou a versão de que ele teria morrido louco internado em um hospício, encontrada em vários tratados psiquiátricos sobre perversões. Na verdade o dado sobre a loucura do escritor surgiu também do livro de Wanda, publicado apenas após a morte deste e de várias pessoas próximas. Ele morreu provavelmente de problemas cardíacos que o enfraqueceram, aos 59 anos de idade, ao lado da esposa, Hulda, em casa.

28

seus escritos, chegando inclusive a publicar um livro, “Coisas Vividas”, no qual

descreve esta influência sobre a obra. Como ele mesmo afirma em “As

Messalinas de Viena”: “Aliás, minha Vênus das Peles se baseia totalmente em

fatos, de tal modo que partindo de histórias reais, nasceu uma única história

poética - meu romance” 4.

Dos muitos amores que tem em vida, procura particularmente as

mulheres dominadoras, que se refletem diretamente nos textos. Mesmo nas

estórias regionais que escreve, este elemento é vital: a mulher forte, senhora

de si e de outros, controladora da vida de um homem e às vezes de toda uma

comunidade. Mas aquelas que seduzem Masoch são as aristocratas, cultas e

consideradas “liberadas” para os padrões da época: “Ela percebeu o efeito que

sua beleza produziu em mim. E sorriu feliz, triunfante, com uma inocente

malícia” 5.

Sacher-Masoch passa a trabalhar como professor universitário - tendo

se tornado doutor em filosofia com apenas 20 anos - editor e redator de

revistas de literatura. Em 1861, tem um caso com uma mulher casada que ele

chama “Aldona de K.” (na verdade uma nobre da alta sociedade de nome Anna

Von Kottowitz) que irá marcar sua vida. É um relacionamento tumultuado

repleto de traições, culminando com a separação em 1866: “Desde então não

tive mais confiança na fidelidade de uma mulher” 6.

Deste período, surgirá sua primeira obra literária que se tornou

conhecida: “Dom Juan de Kolomea”, onde o protagonista, por haver sido traído

pela amante e para que isso não mais lhe aconteça, passa a agir da mesma

forma com todas as mulheres que lhe cruzam o caminho.

Anos após a separação de Aldona, e depois de ter escrito o ciclo do

Amor, incluindo “A Vênus das Peles”, Masoch conhece Aurora Rümelin, figura

fundamental em sua biografia, que adota o nome de “Wanda”. Este também é

o nome da personagem principal da “Vênus”, causando confusões até hoje,

fazendo muitos acreditarem que a personagem foi inspirada nesta mulher,

quando o que houve foi o contrário. Casam-se em 1872.

4 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 189 5 Idem, Ibidem, pág. 159 6 Idem, Ibidem, pág. 179

29

A mulher real, com o intuito de seduzir o escritor, inspira-se em uma

personagem de ficção e tenta encarná-la o mais que pode. Entretanto, ela não

consegue sustentar seu papel por muito tempo, e no cotidiano da vida em

comum, Masoch percebeu que fora enganado.

Em 1906, Wanda / Aurora escreve um livro intitulado “Confissão de

Minha Vida”, no qual assume um papel de mulher ingênua nas mãos de um

pervertido sexual. Muitos biógrafos de Masoch apóiam-se neste livro como

fonte de interpretações e pesquisas. Para outros, Wanda é uma oportunista,

aproveitando-se o máximo que pôde de Masoch, sugando-o até onde foi

possível. Quando este ficou esgotado e não pôde dar-lhe mais nada - inclusive

dinheiro - ela resolve acatar o pedido de separação já proposto várias vezes

pelo marido. Ele viu com desgosto dois filhos morrerem e o casamento ruir em

um dos períodos mais difíceis que passou: “Estou cansado da vida” 7.

Cinco anos antes de sua morte, já com uma segunda esposa, Masoch

vê indignado, no auge da caça psiquiátrica aos “pervertidos”, o Dr. Krafft-Ebing

da universidade de Viena, nomear uma nova variante da algolagnia (o prazer

na dor física) com o termo “masoquismo”. Uma referência explícita e direta que

praticamente anulou a obra de Leopold Von Sacher-Masoch hoje em dia e o

transformou em sinônimo de patologia sexual. Apesar de ofendido, ele não

quis responder publicamente a esta questão, encarregando o tempo de dar a

última palavra.

Quando morreu, em 1895, o corpo foi cremado sem ofícios religiosos,

cumprindo uma vontade expressa por ele.

Bernard Michel, na biografia de Sacher-Masoch, critica a maneira como

a obra do escritor é comumente analisada: toma-se “A Vênus das Peles” como

um microcosmo e uma síntese de seus escritos tirando-se daí as mais

apressadas conclusões. O autor de 120 títulos como “Uma História Galiciana”,

“Noite de Luar” e “A Mãe de Deus” possui, segundo Michel, um universo

literário muito mais vasto que o contido na Vênus, não podendo ser avaliado

apenas por este livro. Mesmo assim, pode-se perceber alguns temas

recorrentes segundo os resumos contidos no trabalho deste biógrafo, cuja

7 Idem, Ibidem, pág. 341

30

essência corresponde a sua mais conhecida obra: o universo feminino, com

sua característica crueldade e mistério, e a difícil convivência entre o homem e

a mulher.

Para este trabalho, abordarei o “problema” identificado por Bernard

Michel e assumirei sua crítica. A análise da obra de Masoch que farei se

concentrará muito mais na “Vênus das Peles” por dois motivos: primeiro, a total

dificuldade em se conseguir obras deste autor, inclusive em outras línguas.

Segundo, por ser o trabalho mais conhecido é o exemplo mais bem acabado

da raiz da concepção do termo “masoquismo” e fonte de pesquisa desta

categoria psiquiátrica, elemento de principal interesse deste estudo.

Sacher-Masoch tem uma concepção de natureza extremamente ríspida,

implacável e fatalista. Provavelmente este modelo é influência da vida que ele

indiretamente conheceu quando criança: era um garoto de família aristocrática

mas com boas relações e fácil trânsito entre as pessoas do povo, vivendo em

uma região predominantemente rural da Europa, nos limites entre a

“civilização” e a natureza “selvagem”.

O clima, as chuvas, os animais são antes de tudo forças que merecem

respeito e devem ser temidas. Os rios enchem e transbordam, as plantações

podem não vingar e os lobos atacam viajantes solitários. Frente à tudo isso, o

homem é um ser solitário e frágil8.

A natureza é muito mais estática que dinâmica, e toda a movimentação

aparente não altera o imperioso silêncio das planícies e estepes. Ela é cruel e

impiedosa, mesmo com toda sua beleza: “A manhã é tempestuosa, o ar está

pesado e cheio de excitantes aromas” 9. A indiferente crueldade com que ela

trata os seres vivos é parte essencial desta beleza.

O autor chega a dizer que possui um parentesco espiritual com o filósofo

Schopenhauer e, assim como este, acredita que somos levados pela natureza

aos atos mais descabidos e insanos apenas para atender ao desejo de

continuidade desta: “Subitamente compreendi que somos apenas os loucos da

natureza. No momento do êxtase, o homem e a mulher parecem formar um

único ser, a natureza não pensa nem um pouco em nós! Ela não se preocupa

8 Este é também o tema romântico por excelência: a natureza e a finitude humana. 9 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, Rio de Janeiro, Taurus, 1983, pág. 165

31

nem um pouco com nossa felicidade; ela só pensa na conservação da

espécie”10. O amor e o desejo são artifícios criados para superar

momentaneamente o abismo entre os sexos.

Homem e mulher, macho e fêmea, vivem em universos distintos. Cada

um é estranho ao outro, e por mais tentativas que se façam de comunhão, o

máximo que se pode conseguir é uma proximidade, uma intimidade, nunca

união. Talvez um dia isto mude, mas na atual configuração de nossa

sociedade, a mulher “(...) tal como a natureza a criou e tal como ela atrai o

homem atualmente, é o seu inimigo e só pode ser para ele escravo ou tirano,

nunca companheira” 11.

O feminino é a figura chave de sua obra, em todas as nuanças, e

justamente no que tem de misterioso. O seu lado viril, cruel, caprichoso e

insondável para o homem é o que o atrai: “Sabe você, caro irmão, o que nos

leva a lutar na grande revolução? Não são os emissários, os comitês e as

associações secretas. Nossas mulheres!” 12. A alma da mulher é mais

importante que as formas de seu corpo, pouco descritas nos livros. Ela é um

mistério e compete ao homem desvendá-lo, sabendo que nunca o conseguirá.

A mulher é a própria encarnação da natureza. Sendo coerente e sincera

consigo mesma, só lhe resta libertar toda sua tirania e severidade. Ela é quem

dá a vida e sustento aos homens, e estes lhe são subordinados, querendo ou

não. O relacionamento entre os sexos é desigual e assimétrico, cabendo ao

homem ser um escravo - ou mais rara e excepcionalmente, o senhor: “Em

matéria de amor, nunca se está no mesmo nível” 13.

O princípio feminino é via de regra superior e a mulher plena exerce sua

dominação “natural” sem piedade, embora poucas consigam libertar-se do

ilusório poder masculino exercido através do patriarcalismo da sociedade,

assumindo com isso o lugar que lhes é de direito. Aquelas que fazem isto e

conquistam esta posição merecem ser adoradas.

A frieza é uma característica dessas mulheres. Elas são distantes,

enigmáticas. Como deusas, mantêm bem clara a separação com os “mortais”,

10 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 173 11 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 301 12 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 134 13 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 172

32

lembrando muitas vezes estátuas - lindas, distantes e frias: “Minha amada é de

pedra” 14.

O homem por sua vez é um ser débil, e mesmo com toda a coragem e

brutalidade que lhe são características, não pode medir forças com as

mulheres: “Os rapazes imberbes sempre são atraídos quase sem querer, como

por uma influência demoníaca, pelas mulheres superiores” 15.

Masoch trabalha bastante com o herói em seus contos: aquele que luta

até a morte para libertar seu povo ou salvar uma mulher amada, o líder moral e

espiritual de uma comunidade e os códigos de honra cavalheirescos são uma

constante nos textos de nosso autor16. Ainda assim, estas figuras normalmente

são alvo fácil de uma mulher gananciosa ou, como obedientes à uma força

superior, entregam-se a mulheres cruéis de livre vontade, pois sabem que na

batalha dos sexos eles estão já de antemão derrotados.

Para alcançar a plenitude masculina, também este deve reconhecer a

superioridade da fêmea na natureza e tomar para si a única atitude possível:

entregar-se de corpo e alma aos caprichos da mulher. Aqui nasce o

comportamento que vai caracterizar a personagem “Séverin” na Vênus e

muitas outras da obra de Masoch, que mais tarde será considerado o sintoma

exemplar de uma perversão sexual. A única forma de aproximação entre os

seres de sexo opostos é cada um aceitar a sua posição “natural”. Só assim, no

campo das intenções mais primitivas e cruas, o verdadeiro prazer pode se

manifestar: “O senhor chama crueldade - redargüiu com vivacidade a deusa do

amor - aquilo que consiste no elemento característico da sensualidade e do

amor puro, na verdadeira natureza da mulher: entregar-se em qualquer lugar

em que se ama e amar tudo o que se agrada” 17.

A mulher deve flagelar o homem na carne e no espírito, sendo a tortura

da alma o fundamental para a verdadeira cena de Masoch. O suplício apenas

físico não interessa sem a humilhação e o sofrimento moral. Na falta destes, a

dor perde o sentido e torna-se desagradável e desestimulante. O prazer

encontra-se em toda uma ambientação, em um clima que envolve a relação

14 Idem, Ibidem, pág. 160 15 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 113 16 Inclusive, na biografia de Bernard Michel, este diz que Masoch gostava de assinar como “Cavaleiro” de Sacher-Masoch. 17 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 149

33

dominador - dominado. O tormento do corpo é apenas o complemento desta

forma de relacionamento, não sendo o foco principal: “A senhora já sabe que

eu sou um supra-sensual, que em mim toda concepção procede, antes de mais

nada, da imaginação e que se alimenta de quimeras” 18.

Por isso os acessórios como o chicote, as roupas de peles, correntes e

outras peças são fundamentais. Elas ajudam a compor o ambiente e são as

marcas da diferenciação de poder. Estes objetos limitam, machucam, ofendem

a quem recai o seu uso e dão status, autoridade e elegância a quem deles se

utiliza: “Mulher! Deusa! Não tens coração, és incapaz de amar? (...) Não tens

piedade? - Não - responde orgulhosa e irônica - mas tenho o chicote” 19.

O figurino é da mais extrema importância. Sejam as peles que

transformam as mulheres em verdadeiros “gatos grandes”, “baterias elétricas”,

ou os uniformes militares, exemplos maiores da masculinidade vaidosa, em

Sacher-Masch o erotismo deve vir sempre vestido: “- É que hoje serás

seriamente chicoteado - Disse Wanda. / - Coloque então tua jaqueta de peles -

pedi” 20. A nudez deve ser insinuada, não exibida.

E unindo-se ao que acima foi citado, estão vários objetos que

intensificam o clima sensual e fazem a mediação do contato físico entre os

parceiros: o chicote, a coleira, os lenços. Elementos do corpo tais como mãos,

pés, pescoço, são ressaltados refletindo talvez a incapacidade das pessoas se

conhecerem de todo, permitindo quando muito o acesso à apenas uma parte

do outro: “Quando, enfim, com majestade, ela me estendeu a mão, coloquei

um joelho em terra e beijei-lhe o pé. Ela me compreendeu” 21. Mais tarde, tal

deleite por objetos ou partes isoladas do corpo será considerado uma patologia

sexual chamada de “fetichismo”.

Tanta subserviência com as mulheres pode levar a um possível

questionamento sobre a homossexualidade de Masoch. Na verdade, seja no

livro da “Vênus” ou em sua vida particular, existe a procura por um homem

também rude e dominador - o “Grego” - que ao lado da “senhora”, seria a fonte

18 Idem, Ibidem, pág. 191 19 Idem, Ibidem, pág. 269 20 Idem, Ibidem, pág. 294 21 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 159

34

do mais terrível tormento moral: a traição: “Haverá para o amante crueldade

maior do que a infidelidade da amada?” 22.

A causa do encanto do Grego era sua aparência andrógina, uma alma

femininamente masculina em um corpo de macho, e toda a possível dor que

uma traição por parte de Wanda com alguém tão cruel quanto ela poderia

causar. Séverin não procurava uma relação genital homossexual, mas sim a

humilhação de ver a pessoa amada entregar-se a outro sem pudores: “Nada é

mais sedutor para um homem que a imagem de uma linda déspota voluptuosa

e cruel que, sem razão de ser, troca descaradamente de favorito segundo seu

humor” 23.

Mas no livro, quando o desejo de Séverin se realiza e Wanda após

amarrá-lo permite que o Grego o chicoteie, o encanto se desfaz. Ele acaba

considerando-se realmente enganado por sua amada. Após este episódio os

dois separam-se e Séverin “cura-se”, tornando-se um dominador: “O

tratamento foi cruel e radical, mas o principal é que agora estou curado” 24.

É curioso que, ao alcançar o seu limite, a personagem desista daquela

forma de prazer e assuma uma postura moralista. Ele estava “doente”, mas

encontra a cura justamente ao tornar-se um tirano sobre as mulheres.

Um forte caráter místico também é encontrado em suas obras. Desde a

religiosidade e superstições do povo até o apelo quase religioso da figura

feminina, o sentimento do sobrenatural e desconhecido é patente.

Principalmente a mística em torno do feminino. Daí as deusas, as Vênus e

entidades malignas que, com seu mistério e encanto, seduzem o homem como

sereias, ou segundo Bernard Michel, como a terrível Letawiza dos contos

rutenos: “Essa mulher é um demônio” 25, ou “Sua beleza era a de um

vampiro”26.

A mulher no esplendor de crueldade e frieza perde a característica

cotidiana deixando transparecer algo maior que ela mesma. Mas este

sentimento não é o de uma religiosidade cristã, embora em alguns momentos

22 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 149 23 Idem, Ibidem, pág. 151 24 Idem, Ibidem, pág. 300 25 Idem, Ibidem, pág. 270 26 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 165

35

ela seja evocada: “É que meus sentidos se acalmavam, tranqüilizados pelo

sentimento religioso que me invadia. Eu tinha a impressão que extasiando-me

diante de todas aquelas perfeições, eu me extasiava diante de um templo.

Parecia-me que de seu corpo escapavam um clarão divino, um perfume

celestial, mais puro e mais santo do que o incenso” 27. Sacher-Masoch possui

um anticlericalismo radical e o que procura transmitir em seus escritos é mais a

atmosfera de uma celebração pagã. A intensidade do ambiente da cena é o

importante, não a fé.

Por isso os ritos também possuem um traço marcante. A forma teatral

que reveste toda a seção de tortura e sofrimento em Masoch, será carregada

do ambiente de mistério e completa submissão ao outro - incluindo aqui todos

os acessórios e “fetiches” já citados acima. O espetáculo vira uma cerimônia:

“Ela tira um pequeno punhal da sua bainha. Fico apavorado vendo o brilho da

lâmina; penso realmente que vai me matar. Mas ela ri e corta as cordas que

me atam” 28.

A flagelação recebida pelo escravo tem quase o mesmo tom de uma

penitência ou purificação. Ser subjugado por uma mulher poderosa e cruel é

um rito sagrado exigindo tudo que lhe é próprio: submissão, humildade,

seriedade, silêncio, resignação e entrega.

A espera é fundamental para os escravos de Masoch. Eles estão

eternamente na expectativa de cumprir uma ordem ou receber um castigo. O

tempo é suspenso e paralisado. O prazer não está em obedecer ou sofrer uma

agressão, mas na espera que antecede a estes fatos. A dor sentida torna-se

apenas consequência do prazer da espera. Mesmo durante os castigos

corporais, é a atenção da dominadora estendida ao escravo que lhe faz

aguentar a tortura: “mas o sofrimento me arrebatava porque provinha dela, da

adorada” 29. A dor é muito mais suportável do que prazerosa. Sem a

humilhação moral, somente com a flagelação física, a vítima não aguentaria e

“desistiria” de sua dominadora.

No momento em que o tempo não interfere mais, o escravo pode dar

asas à imaginação e saborear a delícia da entrega completa, pois todo seu ser

27 Idem, Ibidem, pág. 159 28 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 256 29 Idem, Ibidem, pág. 200

36

é obrigado a aguardar ansiosamente o chamado da senhora, devendo este ser

atendido imediatamente. Assim, como bem mostrou Gilles Deleuze30, a noção

de suspensão é tão importante que muitas vezes chega a ser literal, com o

escravo tendo seu corpo amarrado e levantado das mais diversas formas.

Mas a dominadora necessita ser educada e treinada para tal. Isso fica

claro em “A Vênus das Peles”, onde a mulher ideal, Wanda, não quer ser o

carrasco de Séverin: “(...) seu olhar adquiriu um ar sombrio, até selvagem, e

me desferiu uma chicotada. Quase instantaneamente passou o seu braço em

volta do meu pescoço com delicadeza e inclinou-se compassiva para mim. - Eu

te machuquei? - perguntou-me entre confusa e cheia de angústia” 31. É ele

quem a convence a aceitar este papel e a ensina como deve maltratá-lo.

A vítima deve adestrar o carrasco pois quem manda no jogo é ela, em

uma completa inversão de papéis. A senhora deve obedecer as ordens do

escravo. A crueldade tem que estar à serviço dos desejos da vítima: “Castiga-

me - repliquei -, castiga-me, sem piedade” 32; e a vontade última é a dela: “O

lado cômico de minha situação é que posso fugir e não quero” 33.

Neste sentido, os contratos de Sacher-Masoch são exemplares.

Literalmente obrigando por escrito a submissão do escravo à sua dominadora,

também é uma forma de prender a dominadora ao escravo: “- Tenho que

assinar algum contrato? - Ainda não; quero assentar essa tua cláusula e

acrescentar data e lugar” 34. A formalização e materialização do compromisso

entre os dois é um demonstrativo do esforço da pedagogia que a vítima se

utiliza, e dá a esta os meios para cobrar os resultados desejados.

O prazer é uma reivindicação do escravo, não importando muito se o

dominador também o sente ou não. Na verdade, no texto da Vênus, Wanda

sente-se um tanto constrangida pelos desejos de Séverin, e os aceita mais

como favor do que por prazer. Quando esta começa a tomar gosto pela coisa,

30 DELEUZE, Gilles, Sade / Masoch, Assírio & Alvim. Não há informação sobre a cidade ou o ano da edição. - O trabalho de Gilles Deleuze com o título original de “Apresentação de Sacher-Masoch” também está nesta mesma edição da Vênus que estou utilizando (na verdade, é mais fácil encontrar esta edição por este título). 31 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 199 32 Idem, Ibidem, pág. 199 33 Idem, Ibidem, pág. 219 34 Idem, Ibidem, pág. 212

37

é seu escravo que se assusta e quer parar o jogo: “De uma só vez o rosto de

Wanda se transforma; parece transfigurado pela cólera e me parece por um

instante horrível” 35.

A vítima necessita de um torturador que a princípio não gosta de sua

função: “Mas não me causa nenhum prazer...” 36 diz Wanda. Alguém que

realmente tenha prazer como algoz não é o parceiro ideal. Ele não pode mais

ser educado. Não é ele que as personagens de Masoch procuram.

A mulher é o objeto a ser adorado e obedecido, mas como, quando e

até onde vai esta adoração quem decide é o escravo. Enquanto Wanda cria

tormentos e faz Séverin passar vergonhas dentro do que ele esperava, tudo

corre bem. Mas quando ela toma gosto e começa a testar os limites deste,

colocando inclusive um outro homem na relação, as coisas mudam de figura e

Séverin já não tem mais certeza do prazer sentido. Chega até mesmo a, no

final da novela, transformar-se de dominado a dominador ou, de “bigorna”

passa a ser “martelo”, em um desfecho que ironiza e põe em cheque toda a

teoria da submissão exposta no texto: “Fui um burro e me tornei escravo de

uma mulher, compreendes? Donde a moral da história: quem se deixa

chicotear merece ser chicoteado...” 37.

Sacher-Masoch, assim como Sade, também transmutou a sexualidade

humana em ars erotica. Do corpo humano - especialmente o feminino - à

relação sexual em si, tudo deve ter um novo encanto e se expressar como uma

obra de arte. Nada vale se não estiver envolto em uma névoa de beleza e não

for refinado por uma apurada estética: “Uma mulher bonita é para mim uma

obra de arte, por exemplo, um quadro que não ousamos tocar, do qual nem

ousamos nos aproximar, se não quisermos ver o efeito mágico desaparecer”38.

As formas das mulheres raramente são citadas pelo autor. O corpo envolto em

peles e outros adereços para lhe dar um novo encanto são preferíveis ao nu

explícito.

O autor chega ao extremo de dispensar quase que completamente a

relação genital propriamente dita do ato sexual. Ela tem uma importância

35 Idem, Ibidem, pág. 295 36 Idem, Ibidem, pág. 199 37 Idem, Ibidem, pág. 301

38

secundária, pois o clima, a espera e os sofrimentos físicos e morais são a

maior fonte da excitação e do prazer. Masoch evoca o homem “supra-sensual”,

ou seja, aquele que desenvolveu uma nova sensibilidade orgânica e estética, e

transformou o simples impulso sexual no requintado “amor sensual”.

Masoch possui uma obra vasta, quase desconhecida e muito pouco

estudada. Mas graças a um livro somente, seu nome entrou para a história.

Mais como sintoma de um “desvio” mental do que como literatura, é claro,

embora o texto da “Vênus” seja elemento obrigatório em qualquer biblioteca

erótica que exija o mínimo de qualidade.

Após este autor, ficamos mais conscientes do estranho prazer que nos

leva a estarmos eternamente esperando: um messias, uma sociedade perfeita,

um amante ideal... justificando até os mais cruéis sofrimentos que passamos,

oferecendo um certo sentido, talvez mesmo, um certo “prazer” nesta dor. Afinal

como bem explicou Etienne de La Boétie mais de 300 anos antes, sempre

existe um prazeroso desejo de poder por trás de nossa “servidão voluntária”.

Masoch nos demonstrou o quão erótico este pode ser: “Sinceramente quero

ser teu escravo; (...) Que prazer quando souber que dependo de teu capricho,

de teu gesto, de teus gostos” 39.

E desde então, a pergunta que Sacher-Masoch fez em carta para uma

admiradora ressoa em nossas consciências, provavelmente muito mais

constantemente do que gostaríamos de assumir: “Será que não lhe

proporcionaria um prazer demoníaco ter um homem totalmente à sua

disposição e maltratá-lo? Será que não há em sua natureza algo como a

crueldade e o despotismo?” 40, e nisso encontrarmos a “maior felicidade em ser

apenas seu escravo” 41.

38 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 149 39 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 210 40 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 261

39

41 Idem, Ibidem, pág. 192

40

41

Capítulo III

RICHARD VON KRAFFT- EBING

42

“Estas anomalias cerebrais se enquadram no domínio da psicopatologia.

Elas podem ocorrer em várias combinações, e tornarem-se a causa de crimes

sexuais, motivo pela qual demandam consideração1.

O estudo científico da psicopatologia da vida sexual necessariamente lida com

as misérias do homem e o lado escuro da sua existência, a sombra que

contorce a sublime imagem da divindade em horrendas caricaturas,

desencaminhando o esteticismo e a moralidade.

Este é o triste privilégio da medicina, em especial da psiquiatria, para sempre

testemunha da fraqueza da natureza humana e do lado oposto da vida” 2

Ao mesmo tempo em que Sacher-Masoch escrevia seus romances, um

psiquiatra austríaco de nome Richard Von Krafft-Ebing3, fazia alguns dos

maiores avanços do século passado em uma das áreas mais controvertidas do

comportamento humano, a tão perseguida sexualidade “anormal”. Ajudou a

consolidar assim um dos conceitos mais importantes da subjetividade ocidental

e a reforçar um padrão de comportamento que dura, em maior ou menor grau,

até hoje: a perversão sexual.

Se nos séculos XVII e XVIII, os físicos e os químicos encarnavam a

figura ideal do homem de conhecimento, no século XIX esta imagem vai estar

associada ao médico. A batalha pelo monopólio da verdade entre religião e

ciência foi ganha por esta última, e toda a carga de autoridade moral que os

1 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, Londres, Velvet Publications, 1997, pág. 22 - Todas as citações contidas neste capítulo são retiradas desta edição, com exceção das de nº (3) e (41) que são da edição discriminada abaixo. 2 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, Nova York, Arcade Publishing,1998, pág. XXII 3 Sempre ouvi dizer que Krafft-Ebing fora o criador do termo “sadomasoquismo”, e preparei este capítulo com a intenção de estudar esta concepção. Utilizei duas edições do livro “Psychopathia Sexualis”, uma “completa” com todos os casos e análises (Arcade Publishing), e outra apenas com os casos (Velvet Publications). Para minha surpresa, na edição completa o termo “sadomasoquismo” não aparece nenhuma vez, embora na outra ele apareça uma única, mas acredito que colocado pelos editores para organizar a ordem das histórias do livro. As informações disponíveis sobre Krafft-Ebing são poucas e incompletas, sendo muito difícil encontrar um material melhor para pesquisa. Um exemplo é a “Encyclopedia of Psychology” de H. J. Eysenck (editor), que informa sobre o aparecimento do termo “sadomasoquismo” em 1907, usado pela primeira vez por Krafft-Ebing, ou a enciclopédia multimídia Grolier – 1993, com a mesma informação. Mas como se ele morreu em 1902 ?

43

padres e religiosos possuíam migrou para a figura do doutor. A alma já não era

mais o foco principal e a importância da “cura” deslocou-se desta para o

corpo4.

Com isso, estes foram sendo detalhadamente medicalizados, e as

pessoas convencidas a contarem seus detalhes mais íntimos, coisas que

muitas vezes nem os confessores ou os próprios cônjuges sabiam. Fazendo

esta ponte entre a obscura intimidade da carne e o positivismo iluminado da

scientia sexualis, estava a figura que agora era “não um estranho, mas um

doutor” 5. Um passo fundamental para o surgimento de uma das sociedades

mais medicalizadas da História.

Com o fim dos hospitais gerais no século XVIII, a figura do “louco”

precisa encontrar o seu lugar na nova ordem burguesa. Unida a ordem jurídica,

como se deveria enquadrar estes “seres perigosos”? Um vasto campo ainda

pouco explorado para o exercício das classificações e rótulos que os futuros

psiquiatras tanto vão se deliciar. Os loucos deixam de ser “criminosos” para

serem “doentes”, sendo o importante que a loucura continue a permanecer

presa, agora em asilos. A bíblica relação entre crime e loucura ainda se

exercia.

O discurso sexual médico era extremamente moralista, rígido e sexista.

O homem são: “não precisa ser excitado, pois durante os jogos amorosos com

a mulher fica espontâneamente no estado apto para a cópula” 6, e “Deve-se

sempre duvidar quando uma mulher diz ter sido possuida contra sua vontade.

É praticamente impossível praticar as relações sexuais com uma mulher que a

elas procura furtar-se” 7.

O biologismo reinava sobre as interpretações e o sexo deveria ser

preferencialmente para reprodução: “Eis aí todo o segredo da perversão sexual

em geral, que implica realmente em uma deficiência orgânica; em todos os

casos em que a potência normal fica diminuída, produz-se uma reação da

4 Sobre a medicalização da sexualidade e a ascensão da imagem do médico no ocidente, ver FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I - A Vontade de Saber, op. cit., e FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1988 5 Referência ao texto de Angus McLaren, ““Não um Estranho, um Doutor”: Médicos e Questões Sexuais no Fim do Século XIX” in PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, São Paulo, Unesp, 1997 6 KAHN, Fritz, A Nossa Vida Sexual, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1940, pág. 60. Correção ortográfica minha. 7 Idem, Ibidem, pág. 62

44

natureza (...) A perversão não passa de um estratagema (...) cujo único fim é a

perpetuação da espécie” 8. Mas apesar deste determinismo natural, a

constante das perversões era o prazer e não a procriação9.

Os “atos abomináveis” estavam em toda a parte, e os pais precisavam

orientar as crianças para evitar “contactos com tarados” 10. Estes infelizes,

além de tudo ainda possuíam “fraqueza de caráter. Com um pouco de firmeza,

é fácil lutar contra a maioria das tendências anormais” 11. Os epiléticos eram

alguns dos perversos favoritos como nos mostra o próprio Krafft-Ebing: “O

indivíduo afetado de loucura moral apresenta diversas formas epiléticas” 12, e

mesmo os tuberculosos poderiam ter adquirido a sua doença graças aos

excessos sexuais cometidos13.

Nascido em 1840 em Manheim, Krafft-Ebing foi um dos mais ativos

psiquiatras14 de sua época. Em 1864, trabalhou no asilo de Illenau. Foi

professor das universidades de Estrarburgo, Graz e Viena (desde 1889). Em

Graz, chegou para lecionar na nova cadeira de psiquiatria e neurologia criada

um ano antes, ficando de 1873 a 1889. Entre 1877 e 1880, ele e o escritor

Sacher-Masoch estavam vivendo nesta mesma cidade, mas não chegaram a

se conhecer pessoalmente.

É dele o mais importante livro alemão de psiquiatria forense15 de sua

época, escrito em 1879: Manual de Psicopatologia Forense. Nele o autor

expõe as exigências básicas da ciência psiquiátrica: uma linguagem clara e

inteligível; evitar hipóteses e discussões sem a devida base factual para

comprová-las e o registro destes fatos, que devem ser coletados correta e

seguramente, classificando-os de forma sintética.

8 BOURDON, J. R., Perversões Sexuais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, pág. 9 9 Inclusive alguns médicos defendiam a teoria de que por choques mecânicos ou químicos, o óvulo feminino poderia desenvolver-se em um ser humano normal, sem a necessidade do esperma. É o que crê o Dr. Egas Moniz da Universidade de Coimbra, também inventor de uma das mais terríveis técnicas de modificação de comportamentos “indesejados”: a lobotomia. MONIZ, Egas, A Vida Sexual - Pathologia, Lisboa, Ferreira & Oliveira, 1906 10 SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, São Paulo, Edições e Publicações Brasil Editôra S. A., 1958, pág. 8 11 BOURDON, J. R., Perversões Sexuais, op. cit., pág. 50 12 KRAFFT-EBING, Richard Von, La Responsabilita Criminale e La Capacità Civile, Nápolis, Carlo La Cava Editore, 1886, pág. 30 13 SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit. , pág. 111 14 Ou alienista, como eram comumentes chamados na época. 15 Referente ao Fórum, ou seja, uma psiquiatria judicial.

45

Seus interesses eram variados e abrangiam desde a fisiologia

(condições neurológicas e orgânicas) e a psicologia (como os pensamentos

obsessivos e a hipnose) até o direito e a criminalística, originando desta área

os estudos sobre sexualidade que o iriam tornar referência ainda hoje em dia.

Ele foi o primeiro psiquiatra a estudar a fundo as perturbações

relacionadas à vida sexual. No início, estes trabalhos eram mais voltados a

contribuição para uma separação jurídica entre o “degenerado hereditário”, ou

“idiota congênito” que ao ter cometido um crime, não poderia sofrer as mesmas

penas e reclusões do criminoso “consciente” de seus atos, pois o primeiro era

“doente” enquanto que o último não. O próprio doutor nos avisa desta sutil

diferença entre a “perversão” - que é uma doença - e a “perversidade” - um

vício. No caso 216 (assassinato por luxúria) incluído em seu livro, após o

acusado ter sido condenado a internação permanente em um asilo, Krafft-

Ebing elogiou: “Através do infatigável esforço do bravo advogado de defesa, a

corte foi salva de cometer um assassinato jurídico e a honra da sociedade foi

sustentada” 16.

Os “desviados” deveriam, assim, ser tratados pela nova ciência que se

delineava, a psiquiatria - apesar de que muitos dos especialistas desta área

considerarem que a degeneração causadora da perversão, hereditária ou

“adquirida”, só poderia ser curada em raríssimos casos. A questão está bem

posta em uma carta escrita por um dos pacientes (caso 58/ masoquismo), que

perguntava se: “sua anormalidade era curável, se ele era um indigno como um

homem de vícios ou um inválido merecedor de piedade” 17.

Krafft-Ebing publicou então, em 1886, a primeira classificação médica

dos distúrbios sexuais: “Psichopathia sexualis”, que fez tanto sucesso que

recebeu muitas reedições, revistas e ampliadas, com novas análises e termos

sendo acrescentados com o tempo. O livro foi traduzido em várias línguas

desde então, sendo usado por psiquiatras e juristas como referência

obrigatória no estudo das perversões ainda atualmente, apesar de muitos dos

conceitos nele contidos já estarem ultrapassados e não mais em vigência, seja

na área psiquiátrica ou psicanalítica, seja na médica ou biológica. Com este

livro surge pela primeira vez o termo “masoquismo”.

16 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 231

46

Ao mesmo tempo em que pessoas eram chamadas de “monstros” e

classificadas como “hermafroditas psíquicos”, “onanistas patológicos”, ou

“dementes epiléticos”, o livro recebia adjetivos como “magnífico” 18 dentro dos

círculos psiquiátricos19. Mas nem toda a sociedade o aceitou tão

entusiasticamente. Graças a proposta do fim das perseguições criminais a

algumas das “aberrações” sexuais descritas no livro - tais como o

comportamento homossexual consentido -, em 1892 a federação central das

ligas alemãs de pureza moral atacou esta obra e ajudou a manchar a

reputação do psiquiatra, que já estava em descrédito em muitos meios

médicos pelos mesmos motivos20.

Esta campanha afetou sua carreira até o final, vindo ele a morrer de

problemas cardíacos em 1902, um ano após escrever sua última monografia:

“Psychosis Menstrualis”, que pedia penas diferentes para mulheres

menstruadas, pois elas não estavam de posse de suas faculdades mentais

durante este período, sofrendo de um tipo de loucura momentânea.

“Psychopathia Sexualis” consiste de uma classificação das patologias

neuro e psicológicas das funções sexuais com considerações sobre estas,

entrecortadas pela narração de 238 casos coletados pelo autor, abrangendo

coprofilia, lesbianismo, delírio erótico, necrofilia, bestialidade, entre outros

“desvios”. As histórias apresentadas normalmente recebem um diagnóstico,

um comentário ou uma observação ao final.

Em vários dos casos, também aparecem receitas que demonstram

claramente não apenas o desconhecimento e a falta de tato para com as

recém-nascidas perversões, mas a total ausência de uma percepção das

necessidades e aflições dos “desajustados”. Os métodos de “cura”, visando a

volta à “normalidade” e a reintegração na sociedade “civilizada” 21, oscilam

17 Idem, Ibidem, pág. 63 18 “Não estamos a citar mais casos, apesar de se encontrarem ás dezenas em livros da especialidade, desde Coffignon (La Corruption à Paris) até ao magnífico tratado de Krafft-Ebing sobre perversões sexuais” – MONIZ, Egas, A Vida Sexual - Pathologia, op. cit., pág. 79 19 Embora quando o livro foi lançado, o próprio círculo médico ficou apreensivo, declarando sempre que era apenas para ser lido por profissionais e que seria melhor se estivesse escrito todo em latim. 20 Somente em 1974 a Associação Psiquiátrica Americana considerou oficialmente o homossexualismo como não patológico. 21 Embora, segundo o autor, “anomalias das funções sexuais são encontradas em especial nas raças civilizadas”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 17

47

entre banhos frios com cânfora (para diminuir a excitabilidade sexual e os

impulsos onanísticos - caso 31/ sadismo), hipnose, abstinência sexual (para

diminuir o desejo perverso e prevenir contra a masturbação e suas

conseqüências malignas) até o esforço em manter relações sexuais “normais” -

inclusive com mulheres, para resolver o “problema” do homossexualismo22.

O livro mostra o quanto a psiquiatria tentava firmar sua ainda recente

base sobre um terreno desconhecido. As teorias de degenerescência

hereditária vindas de uma medicina racista e horrorizada ante os “excessos da

civilização”, servem como pano de fundo para esta obra, mas a importância

dos dados psicológicos dos casos narrados é clara e aumentava em cada nova

reedição. Em vários momentos do texto o doutor usou passagens em latim

para deixar de maneira menos explícita as “horríveis abominações” que ele

descrevia, e tentar evitar com isso chocar as almas mais sensíveis23.

A perversão poderia originar-se hereditariamente ou ser adquirida. Para

isto, bastava levar uma vida desregrada repleta de orgias, pensamentos

devassos, bebedeiras e/ ou entregar-se a terrível masturbação24. Por isso em

quase todos os casos existe o histórico-perverso do protagonista e sua família,

com uma descrição de seu corpo: “Mr. X., vinte e cinco anos, pai sifilítico,

22 A ciência de uma sociedade sempre reflete os valores desta, sofrendo as mesmas modificações de tempo e espaço a que ela está sujeita. Assim, por mais simplórios e não comprovados que fossem estes métodos para os dias de hoje, na época eram a ciência de ponta, e doutores como Krafft-Ebing prosseguiam seus trabalhos incentivados inclusive, por pessoas do povo que atestavam a veracidade das teorias e a capacidade de cura através das técnicas sugeridas. Um exemplo é o caso 72 (fetichismo - masoquismo), onde o homem citado diz que após ler “Psychopathia Sexualis”, encontrou o caminho certo para remediar seu defeito, tornando-se completamente curado - embora “de vez em quando fracas imagens masoquistas aparecem sem, entretanto, deixar nenhuma impressão em sua mente”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 74 Felizmente em alguns casos, o paciente encontrava um parceiro que ou aceitava ou compartilhava de suas taras, passando a ter assim uma vida mais “sadia” - ou cínica como queria o doutor - conforme vemos neste “final feliz” (caso 82 fetichismo/ masoquismo/ coprolagnia): “O fim desta cínica existência sexual foi um casamento - depois sua senhora abandonando-o - com uma mulher que possuía as mesmas inclinações perversas que ele. Eles tiveram filhos, mas a gratificação sexual só era encontrada no ato masoquista”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 82 23 Embora não tenha conseguido alcançar este “nobre” objetivo, e muito da vendagem do livro deveu-se justamente por ser ele a maior compilação já feita até então das mais criativas e bizarras histórias de sexo, fazendo mais sucesso que muitos livros ditos “pornográficos”. 24 A perseguição aos masturbadores que alcançou seu auge na virada do século passado para este, envolvendo educadores, religiosos e familiares sendo liderados pelos cientistas, é comparável à que existe hoje em dia com relação aos fumantes e aos “gordos”, envolvendo os mesmos agentes sociais. Ser obeso hoje é quase sinônimo de preguiçoso e doente - existindo inclusive a classificação médica de obesidade “mórbida”. Todos os terríveis perigos que antes advinham dos “excessos sexuais”, agora surgem dos “excessos alimentares”.

48

morreu de demência advinda de parestesia25 ; mãe histérica e neurastênica.

Ele era um indivíduo fraco, de constituição neuropática, e apresentava vários

signos anatômicos de degeneração” (caso 25/ sadismo)26. De um indivíduo

assim, não se poderia esperar muita coisa a não ser problemas. Ele já nascera

“doente” e deveria ser encaminhado a um asilo. A vida destes “infelizes” era

um “fardo”.

Mesmo em uma tentativa “científica” de classificar prazeres subjetivos,

algumas vezes nosso autor não escapa do velho preconceito das aparências.

Ao descrever um árabe com suas tatuagens (caso 217/ assassinato por

luxúria), conclui que: “Sua aparência geral deu a impressão de um baixo grau

de inteligência” 27.

Apesar de Krafft-Ebing considerar a importância das causas sociais no

comportamento “desviante”, estas só influenciavam quando se tratava da

perversão adquirida. Classes sociais estigmatizadas pela burguesia não tinham

a menor chance de “salvação”. Como disse outro doutor, são pessoas “da mais

baixa categoria social, (...) mendigas, prostitutas réles, (...) indivíduos abjetos,

carregadores, marinheiros e vagabundos” 28. Mesmo assim, no “Manual de

Psicopatologia Forense”, nosso autor reconhece que o fracasso na vida social

era uma das causas das doenças mentais.

Os dados da vida psíquica ganharam grande atenção, tendo sido

reconhecidas as influências dos fatos vividos durante a infância nos futuros

comportamentos adultos e a capacidade de substituição de uma relação

sexual genital por outra atividade - que mantinha o mesma carga de deleite

sensual - como ser “cavalgado” por outra pessoa (caso 58/ masoquismo) ou o

25 “Parestesia: desordem na sensibilidade, caracterizada por sensações anormais e alucinações sensoriais” - MATA MACHADO FILHO, Aires da, Novíssimo Dicionário Ilustrado Urupês, São Paulo, Age, 1976. No texto original de Krafft-Ebing: “paretic dementia” KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 40 26 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 40 27 Idem, Ibidem, pág. 232 28 SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit., pág. 131. - Se para Sade as prostitutas eram de fundamental importância para o sustento dos gostos libertinos, e para Masoch elas não apresentam interesse, na ciência do século XIX, elas eram o exemplo mais bem terminado de degenerescência nata. Após expor que a prostituição é um fato “monstruoso, incomprehensível e degradante”, e afirmar “Ha prostitutas de raça e ha também prostitutas que encontram a sua origem nos vícios da sociedade. Mas não devemos ligar-nos apenas a esta última escola, como muitos desejam”, o Dr. Egas Moniz chega a seguinte conclusão: “As estatísticas e os fatos parecem demonstrar que ha prostitutas-natas, como ha criminosos-natos”. MONIZ, Egas, A Vida Sexual - Pathologia, op. cit., pág. 46 As prostitutas são talvez o bode expiatório predileto da sociedade burguesa.

49

assassinato e mutilação do cadáver - no breve caso de Jack, o Estripador (de

nº 17/ assassinato por luxúria).

Outra contribuição foi a ampliação do termo “fetichismo”. Antes dele,

esta expressão era usada para designar um tipo de adoração religiosa de

objetos sagrados. Esta concepção era carregada de uma crença na magia, e

claro, apesar da tentativa de ser um termo científico - vindo da antropologia -

normalmente era usado com um sentido pejorativo.

O criminalista Cesare Lombroso empregou o termo na introdução de

“Psychopathia Sexualis” na Itália em 1889. No mesmo ano sai a quarta edição

do livro, agora pela primeira vez com o termo “fetichismo”, afirmando Krafft-

Ebing que se baseou no texto de Lombroso para criar esta nova categoria.

Agora a expressão significava a adoração de caráter sexual para com

objetos ou partes do corpo da pessoa desejada - embora não tenha perdido o

sentido negativo do termo. A explicação dele para o fetichismo era a do desejo

sexual não realizado, normalmente durante a infância e transferido para um

objeto ou parte do corpo da pessoa desejada. Mais tarde, o fetiche vai dividir-

se em patológico e fisiológico, e este segundo ganhará o status de ser a base

da atração afetiva entre duas pessoas e o sustentáculo do casamento29.

Também o impressionaram o grau de sofrimento das pessoas que lhe

escreviam contando suas perversões, e o quanto elas estavam mais próximas

dos “normais” do que se supunha até então.

Graças a esta percepção mais aguçada da psicologia envolvida em seus

relatos, Krafft-Ebing propositalmente não usou o termo “algolagnia” que estava

em voga em sua época para a intrigante relação prazer/ dor que aparecia em

muitos dos casos.

Algolagnia: expressão usada por alguns psiquiatras da época que

significava o prazer focado na dor, especialmente a física. Alguns médicos a

separavam em algolagnia ativa (prazer em causar dor) e passiva (prazer em

sentir dor). Krafft-Ebing a recusou porquê percebeu que muitos dos casos que

envolviam esta questão não tinham na sensação corporal o ingrediente

fundamental, e sim na atitude psicológica, especialmente nos casos “passivos”.

29 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit., pág. 260

50

Em 1834, na oitava edição do “Dicionário Universal de Boiste”, surge

pela primeira vez na literatura o termo “sadismo”, indicando a origem - “De

Sade, nome próprio” - e significando “Aberração horrível do deboche; sistema

monstruoso e anti-social que revolta a natureza”. Supõe-se que o termo já era

usado pelo menos desde o início do século XIX, pois o dicionário ainda inclui a

observação “em uso”.

Talvez este termo desaparecesse se, na última década do século, o

doutor Lacassagne não o utilizasse em seus tratados de medicina legal. Krafft-

Ebing, aproveitando-se de uma expressão tão significativa para classificar atos

“abomináveis”, e já testada na linguagem médica por um colega da área, a

adotou e a empregou pela primeira vez em 1891 na sexta edição de

“Psychopathia Sexualis”.

Assim, este termo não era mais uma expressão “comum”, referente à

uma obra literária ou a um sistema filosófico já extinto. “Sadismo” passou a ser

uma patologia, e ganhou o status de ser a primeira das quatro categorias de

desvios do instinto sexual. Dentro dele, várias perversões poderiam ser

encaixadas, como o “assassinato por luxúria” ou a “violação de mulheres”.

O libertinismo decidido do Marquês transformou-se no sadismo doente

de Krafft-Ebing. A fama de Sade não havia sido até então abalada, e prova

disso é que Krafft-Ebing não reconheceu nele um escritor, apenas “um caso

clínico” 30.

Mas nosso doutor recebia informações de inúmeros casos de “anormais”

que sentiam imenso prazer em serem açoitados ou humilhados por alguém,

embora o elemento determinante do deleite não era a dor física, mas sim o

estado de espírito em que a pessoa se encontrava. Quando não havia toda

uma cena criada pela pessoa, o prazer não acontecia. Muitas vezes até, a

sensação erótica estava apenas na imaginação, sendo que quando o desejo

se concretizava, as únicas coisas sentidas eram uma dor desagradável,

30 No início de nosso século, quando se publica pela primeira vez “Os 120 dias de Sodoma”, que Sade julgava perdidos, é sob a justificativa de “importância científica... para médicos, juristas e antropólogos” notando-se “analogias espantosas” entre os casos clínicos de Krafft-Ebing e os “casos” contidos no livro. Entre 1931 e 1935, Maurice Heine publica o que se considera a edição original da obra e diz: “Trata-se de um documento singular, bem como do primeiro esforço (...) para classificar as anomalias sexuais”. SADE, D. A. F., Os 120 Dias de Sodoma, op. cit. pág. 11. Nossa scientia sexualis parece não conceber o que seja ars erotica.

51

vergonha e incômodo: “Ele logo reconheceu o fato de que o estímulo procedia

da idéia de estar em poder de uma mulher mais do que do ato de violência em

si” 31 (caso 60/ masoquismo).

Muitos psiquiatras aderiram ao termo “sadismo” como substituto para a

algolagnia ativa, mas não havia um termo que ocupasse o lugar da passiva.

Alguns médicos a chamavam de “erotomania”: “Os sadistas estão em um polo

justamente oposto ao dos erotomanos” 32.

Foi justamente a importância dada por Krafft-Ebing à subjetividade das

perversões, que o fez procurar um novo termo para este “estranho prazer”.

Segundo Renate Hauser33, foi um correspondente de Berlim, que lhe enviava

cartas contando seus desejos em ser dominado por uma mulher e sua

admiração pelos escritos de Sacher-Masoch, que sugeriu-lhe o termo

“masoquismo”.

Não é sabido se o doutor já havia tido contato com os livros de Masoch

antes deste período, e talvez ele tenha colhido algumas informações sobre o

autor de “Dom Juan de Kolomea” nos círculos sociais de Graz, mas o fato é

que em 189034 uma nova edição de “Psychopathia Sexualis” aparece com o

seguinte texto: “Essas perversões da vida sexual podem ser chamadas de

masoquismo, pois o famoso romancista Sacher-Masoch, em vários romances e

principalmente no seu célebre A Vênus das Peles, fez desse tipo especial de

perversão o tema predileto de seus escritos” 35. Desta forma, a base da

escolha do termo foi a influência psicológica, e não mais o comportamento

objetivo como até então.

O nome de Masoch foi marcado de tal modo que, com o crescente

número de médicos psiquiatras e a febre da caça impiedosa às perversões -

31 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 64 32 CASTRO, Viveiros de, Attentados ao Pudor, Rio de Janeiro, Domingos de Magalhães Editor, 1895, pág. 97. Correção ortográfica minha. O termo “erotomania” foi criado em 1848 por Sir Alexander Morrison para designar o delírio de insanidade amorosa, que diferencia-se da comum devoção à pessoa amada ou da “melancolia do amor”. GORDON, Richard, A Assustadora História do Sexo, Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, pág. 168 33 Em seu estudo “Compreensão Psicológica do Comportamento Sexual por Krafft-Ebing”, in Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. 34 Curiosamente, o termo “masoquismo” surge no livro Psycopathia Sexualis antes do termo “sadismo”, que só irá aparecer na edição de 1891. 35 MICHEL, Bernard, Sacher-Masoch (1836-1895), op. cit., pág. 7

52

contando com a ajuda do livro autobiográfico de Wanda - as lendas a respeito

da vida do escritor começaram a se reproduzir nos livros “científicos” 36.

Toda a sensibilidade e emotividades do Cavaleiro de Sacher-Masoch

não seriam mais que uma “aberração do instinto genésico”. Surgiu então mais

uma nova categoria de patologia sexual.

Apesar de Krafft-Ebing ter afirmado que ele era “um honorável escritor

lido em toda Europa“, o uso do nome de alguém, sem o consentimento deste37,

para designar não apenas uma doença, mas algo que oscilava entre a

patologia e o desregramento moral, transformaram a figura do autor da Vênus,

de um escritor honrado e aplaudido para nada mais que um “degenerado”.

A classificação contida no “Psychopathia Sexualis” é a seguinte:

As neuroses sexuais podem ser:

- periféricas: que dividem-se em sensórias, secretórias ou motoras;

- espinhais: afecções do centro eretor e afecções do centro ejaculatório;

- cerebrais: paradoxia (excitação sexual independente do processo fisiológico

dos órgãos de reprodução); anestesia (falta de instinto sexual); hiperestesia

(excesso de instinto sexual) e paraestesia (a perversão propriamente dita).

São as paraestesias que nos interessam. Krafft-Ebing as explica como:

“perversão do instinto sexual, isto é, excitabilidade das funções sexuais por

estímulos inadequados” 38. Elas subdividem-se em:

a - Sadismo

b - Masoquismo

c - Fetichismo

d - Antipatia Sexual

O fetichismo, apesar de estar classificado como um item separado, é

reconhecido pelo próprio doutor como parte integrante do masoquismo. A

antipatia sexual engloba o homossexualismo e todas as suas variantes e

36 Um exemplo é o livro “A Flagelação Sexual” do Dr. J. Schultze, que cita alguns dos “gostos depravados” do escritor. - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit. A estória de que Masoch morreu louco em um asilo devido aos excessos que cometera também é uma constante nestes livros. 37 Apesar de receber reclamações de alguns seguidores deste, e por isso ver-se obrigado a justificar a sua escolha no texto do Psychopathia, foi com orgulho que o doutor viu o termo disseminar-se rapidamente. Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. pág. 256. Seria este um caso perverso de “assassinato de honra por luxúria”, “violação de nome” ou simples “sadismo simbólico”? 38 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 20

53

derivadas, como o a androginia e o hermafroditismo. O sadismo e o

masoquismo serão mais detalhados a seguir.

- Sadismo: “Consiste na associação entre luxúria e crueldade, que é indicada

na consciência fisiológica, tornando-se fortemente marcada em uma base

psíquica degenerada, sendo esse impulso luxurioso acoplado ao aparecimento

de ataques de crueldade em níveis poderosos de afetação. Isto gera uma força

que procura materializar estas práticas fantasiosas, que quando completada

pela hiperestesia aparece como uma complicação, ou inibição moral

imediatamente apresentada perante alguém” 39.

O sádico pode ser psíquica ou espinhalmente:

Potente: nesses casos os impulsos são voltados diretamente para o coito,

unidos aos maus-tratos ou até o assassinato do parceiro. Quando isto ocorre,

é porquê o impulso sádico não foi satisfeito com a consumação do ato sexual.

Impotente: procura equivalentes para o coito, tais como estrangulamentos,

esfaqueamentos, flagelação ou situações maldosas e humilhantes para com

outras pessoas, especialmente subordinados como aprendizes ou recrutas,

configurando assim o sadismo simbólico.

43 casos são classificados como “sadismo”, incluindo os “simbólicos”,

“com objetos”, “com animais”, “idealizados”, “inconscientes”, “em mulheres” e

suas subdivisões: “assassinato por luxúria”, “mutilação de cadáveres”,

“ferimentos em mulheres” e “violação de mulheres”. Destes, 41 são

protagonizados por homens e apenas 2 por mulheres, sendo estes

considerados itens à parte.

“Sadismo” para Krafft-Ebing é quando a pessoa sente prazer sexual em

ferir alguém, seja através de cortes, beliscões, flagelação ou mordidas. Em

vários destes casos, a visão do sangue é fundamental, e a vítima é apenas

ferida, muitas vezes superficialmente. Em muitos deles, o objetivo não é tanto

a dor do outro, e sim apenas o sentir do sangue escorrendo.

Quando ocorre a morte intencional da vítima o doutor classifica o caso

como “assassinato por luxúria” - este seria um caso de sadismo levado aos

39 Idem, Ibidem, pág. 20

54

extremos. Nos casos em que o prazer está ligado aos excrementos ou a

destruição de roupas femininas, configura-se a “violação de mulheres”.

- Masoquismo: “É a contrapartida do sadismo na medida em que deriva do

prazer extremo dos atos de violência desgovernados nas mãos do consorte.

Ele origina-se do impulso de criar uma situação por meios de força física

externa, de acordo com o estágio de potência psíquica e espinhal do indivíduo,

como meios preparatórios e concomitantes para experimentar a voluptuosa

sensação do coito, para incrementá-lo ou fazê-lo de substituto da coabitação.

Na proporção direta com a intensidade do instinto perverso e o poder

remanescente dos motivos subsidiários da moral e da estética formando uma

série dos atos mais odiosos e monstruosos aos mais grotescos e absurdos” 40.

Encontram-se no livro 37 casos de masoquismo - incluindo o

“idealizado”, “simbólico”, sua relação com a flagelação passiva e as junções

com outras perversões como “masoquismo latente - fetichista” e “masoquismo

latente - coprolagnia” - sendo 33 “doentes” homens e 4 mulheres. Um derivado

desta perversão é a “escravidão sexual”, com apenas 2 casos: um masculino e

outro feminino.

“Masoquismo” para o doutor, são os casos em que a pessoa sente o

desejo de ser flagelada e/ ou humilhada, sendo que na quase totalidade dos

casos: “a flagelação era auxiliar, e a idéia de submissão aos desejos de uma

mulher era a coisa importante” 41. Inclusive, existem várias passagens em que,

quando o sonho de ser fustigado é posto em prática, todo o encanto é perdido,

e o prazer some imediatamente.

Ele ressalta também a influência do fetichismo dentro do masoquismo, e

como estas duas perversões influenciam-se, apesar dele as classificar como

distintas. A importância das mãos, pés, sandálias e chicotes - entre outras

coisas - para a cena masoquista, é mencionada várias vezes durante o texto

do Psycophathia.

A coprolagnia era considerada uma ramificação do masoquismo, e para

o doutor ela englobaria desde o sexo oral, até a ingestão de fezes e urina.

Interpretava-se o desejo por cunnilingus ou fellatio como ânsia por ser

40 Idem, Ibidem, pág. 21

55

humilhado, afinal, a pessoa estava com a boca nas partes mais “sujas” do

corpo.

A “escravidão sexual” era vista como o aumento exagerado do desejo

de posse e da resposta passiva do parceiro. Ela estaria mais no limite da

normalidade do que no campo da perversão. O próprio doutor diz que, na

escravidão sexual, o controle do impulso sexual pela vontade é uma questão

de grau, enquanto no masoquismo é de qualidade. Ela teria como origem o

amor associado a uma vontade fraca, e não seria uma perversão em si

mesma. Na escravidão sexual a tirania é o meio para um fim, enquanto no

masoquismo ela é um fim em si mesma.

Para Krafft-Ebing, o sadismo seria uma forma extrema - e patológica -

da tendência masculina à dominação e a agressividade, enquanto o

masoquismo seria o extremo da submissão feminina. Ou seja, não eram

doenças como as outras, e sim o desvio ao excesso de comportamentos

normais, socialmente aceitáveis e necessários ao bom desenvolvimento da

civilização.

Acreditavam assim, que os casos mais comuns de sadismo ocorriam em

homens (como demonstravam os casos colhidos), e o masoquismo era mais

facilmente encontrado em mulheres, sendo o oposto muito raro de acontecer.

Mas não era isso que mostravam os relatos. Quase a totalidade dos casos de

masoquismo era de figuras masculinas, levando Krafft-Ebing a concluir que

esta “anomalia” era uma forma rudimentar de “antipatia sexual”, e que os

homens afetados eram “parcialmente efeminados” 42. Isso fazia com que estes

casos tivessem uma importância clínica maior que o sadismo e criava um

problema: se a vítima era voluntária, não ofereciam muitas chances de

processos legais, e assim, de enquadrá-las judicialmente.

Claro, em uma sociedade acostumada desde seus primórdios ao

estupro, à brutalidade física e moral, onde a “lei do mais forte” já era

comprovada pela ciência, o comportamento sádico só poderia ser qualificado

de doença dentro do quadro de um esforço médico para “normalizar” atitudes,

41 Idem, Ibidem, pág. 53 42 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, Nova York, Arcade Publishing,1998, pág. 139

56

pensamentos e desejos43. Krafft-Ebing mesmo diz que a norma da civilização

seria a conquista da fêmea pelo macho, variando apenas as técnicas - do

porrete na cabeça ao galanteio44 - e a mulher seria feliz em sua condição

inferior, inclusive por uma necessidade fisiológica - a gravidez e sustento da

prole. Uma das poucas masoquistas citadas no livro (caso 84/ masoquismo),

ao falar de seu prazer em ser uma “escrava” de seu marido, completa: “mas

isto não é suficiente, afinal de contas toda mulher pode ser a escrava de seu

marido” 45.

Frente a esta verdade tão óbvia quanto universal e antiga, era

“indubitavelmente patológico o homem procurar seu prazer sexual maltratando

a mulher e deleitar-se na posição do conquistado, e não na do vitorioso” 46. O

que realmente intrigava era o fato de homens apresentarem comportamentos -

e traços psíquicos - extremados de mulheres. Isto era patológico, sem a menor

sombra de dúvida, e que para desgraça da civilização ocidental, estava cada

mais se expandindo, como diz um dos correspondentes: “de acordo com minha

experiência, o número de masoquistas, especialmente nas grandes cidades,

parece ser enorme” 47.

Uma tentativa de explicação para este fenômeno foi esboçada pelo

próprio Krafft-Ebing, afirmando que a partir da Idade Média, com o surgimento

do amor cortês, formou-se um “culto as mulheres” que perpetuou-se no tempo,

atingindo até os dias atuais, mas esta teoria logo foi abandonada.

A relação masoquismo/ homossexualismo também foi objeto de

discussões, pois o masoquista era um tipo de “afeminado”, e muitos

homossexuais apresentavam traços masoquistas, mas a questão continuou

sem “solução”.

No caso 67 (masoquismo idealizado), o paciente é classificado como

masoquista idealizador, com sadismo rudimentar. Os dois conceitos aparecem

pela primeira vez em um só homem, embora a porção sádica seja inferior a

outra.

43 Por isso os psiquiatras deleitam-se tento em classificar nos seus livros personagens históricas como Nero ou Gilles de Rays. Desta forma também, a scientia sexualis teve o prazer de classificar como masoquistas Santa Teresa D’Ávila e Rousseau. 44 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. pág. 250 45 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 82 46 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência Sexual, op. cit. pág. 250. 47 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 61

57

O termo “sado-masoquismo” só aparece uma vez, e apenas no livro da

editora Velvet, unido a fetichismo (caso 74). Ele exemplifica a história de um

homem que possui traços altamente fetichistas, que gosta de imaginar cenas

de morte e agonia, tortura animais e gosta de ser pisado por mulheres. O

sadismo e o masoquismo estão presentes, mas o estímulo por trás deles é

claro no texto: lindos sapatos femininos, que machucam com sua pisada tanto

a outros quanto a ele mesmo.

A palavra é escrita com hífen separando os dois conceitos, talvez

mostrando que, até então, sadismo e masoquismo eram práticas distintas.

Inclusive, o paciente do caso 57 (masoquismo idealizado), explica muito bem

as diferenças de sensibilidade do prazer para um sádico e um masoquista, na

mesma situação: “existem homens que chicoteiam-se a si mesmos

simplesmente para incrementar seu prazer sexual. Nota-se nisto, em contraste

com os verdadeiros masoquistas, que a flagelação é um meio para um fim” 48.

Possivelmente o conceito de algolagnia tenha influenciado na

concepção da união “sadismo-masoquismo”, por significar uma mesma

unidade que é dividida em ativa e passiva. Afinal, a idéia de comportamentos

opostos e complementares já direcionava o pensamento de Krafft-Ebing antes

mesmo da escolha de novos nomes para designá-los49.

Mas a complementaridade deles era apenas conceitual, pois eram

intrinsecamente diferentes, com o sadismo configurando-se como uma

patologia e o masoquismo outra, estando longe da concepção de uma

unidade. O “sado-masoquista” do caso 74 era apenas um coitado que teve a

infelicidade de ter as duas “doenças” ao mesmo tempo.

Os diagnósticos eram feitos tendo por base uma análise simplória dos

comportamentos, e a concepção formada era: alguém pratica atos cruéis sobre

outro alguém; um está na posição ativa; outro na passiva. Se o que bate sente

prazer nisso, é sádico. Inversamente, quando o outro sente prazer, é

masoquista. Qualquer interpretação mais psicológica, que levasse em conta a

subjetividade capacitadora deste prazer não ultrapassava este limite.

48 Idem, Ibidem, pág. 61 49 Ele não partira da obra de Sade ou de Masoch para criar seus termos, apenas uniu as concepções médicas que tinha ao nome dos escritores, por considerar talvez, que eles exemplificassem perfeitamente as atitudes estudadas. E estas concepções estavam em perfeita harmonia com a raiz dualista da cultura ocidental: bem/ mal; amor/ ódio; dia/ noite; corpo/ mente; homem/ mulher; sádico/ masoquista.

58

A comparação dos perversos de Krafft-Ebing com as personagens

literárias de Sade e Masoch, nos mostra que realmente, muito dos

masoquistas do doutor poderiam ter saído de um conto do autor da Vênus.

Mas os sádicos estão muito longe dos verdadeiros libertinos.

Por viverem no mesmo período histórico, com a burguesia já assentada

no poder e exercendo amplamente seu domínio no campo das idéias, Masoch

pode dialogar melhor com o projeto de “normalização” que estava em

andamento. Muitos perversos citam os livros deste e sonham com uma “mulher

como as heroínas dos romances de Sacher-Masoch” 50.

Mas Sade pertence a uma outra sensibilidade, a uma outra visão de

mundo. Se para este, a razão e a filosofia eram a garantia da vida plena e

liberta, no fim do século XIX, “a arte de viver é não só uma alegria como

também uma medicina” 51.

Os sádicos citados no livro não têm uma base filosófica que sustente os

crimes que cometem. Várias vezes eles afirmam que sentem prazer em tais

atos, mas não sabem porquê o praticam. São levados por impulsos “mórbidos”

e não vontades esclarecidas.

Muitos apenas idealizam as crueldades. Ora, Sade prezava a ação, e a

imaginação só tinha sentido para ele na medida em que servia para aumentar

a criatividade dos atos que deveriam ser realizados. Nos casos do doutor, o

ânus não é intencionalmente adorado e as mortes não ocorrem por diversão -

apesar do prazer. E ainda, alguns sentem culpa após satisfeita a luxúria. Sem

dúvida, não são os libertinos de Sade, nem “adeptos do crime”. Estes não

existem mais - nem em literatura. Que injustiça com o nome de Sade! Estão

em cena apenas os “doentes” burgueses.

Krafft-Ebing teve o privilégio de abrir o caminho para novas

interpretações das tão estudadas - ou desejadas - perversões sexuais,

lembrando que na relação médico-paciente, quem dá as cartas - e cria os

termos - é sempre o doutor, e que “os psiquiatras sempre provêm do bando

50 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 70 51 Como nos diz, nos anos quarenta do século XX esta frase de um médico. KAHN, Fritz, A Nossa Vida Sexual, op. cit. pág. 172

59

dos sãos, os doentes mentais nunca produzem o seu próprio psiquiatra ou,

pelo menos, a sociedade nunca lhes outorgou o título” 52.

52 Texto de Nicolás Caparrós in OBIOLS, Juan, Psiquiatria e Antipsiquiatria, Rio de Janeiro, Salvat, 1979, pág. 106

60

61

Capítulo IV

SIGMUND FREUD

62

“O sadismo e o masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já

que o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às

características universais da vida sexual” 1

“A perversão não mais é um fato isolado na vida sexual da criança, mas

encontra o seu lugar entre os processos típicos, para não dizer normais, do

desenvolvimento que nos são familiares”2

I

Ainda no século XIX, quando a psiquiatria estava firmando suas bases,

surgiu de dentro desta própria ciência um dos mais originais e curiosos

pensadores de nossa cultura. O século vinte, gostando ou não, deverá muito

de sua história a este homem.

Sigmund Freud nasceu na Morávia em 1856, mudando-se para Viena

logo aos três anos de idade, onde passou quase toda a sua vida. Nesta

cidade, estudou medicina e aprofundou-se no campo da neuropatologia. Por

ter origem judaica, sofreu discriminações dentro do mundo científico e

acadêmico. Interessou-se pelos estudos de Jean Charcot que tratava de

histéricas utilizando-se da hipnose, indo estudar com este em Paris no ano de

1885.

A histeria caracterizava-se por ser uma doença com efeitos físicos

claros - como cegueira ou paralisia de determinados membros - mas sem

causas orgânicas detectáveis. Era considerada uma doença tipicamente

feminina, como diz a tradução de seu nome: “doença do útero”. Sendo uma

enfermidade de mulheres, não recebia muitas atenções e era vista por vários

médicos como casos patológicos de “manha”. Charcot através da hipnose

conseguia que suas doentes lembrassem de fatos traumáticos que não eram

recordados quando em vigília, e ao receberem ordens de sumirem os

1 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, Rio de Janeiro, Imago Editora 2 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

63

problemas histéricos, estes desapareciam quando a pessoa voltava do transe

hipnótico. Para este doutor, a histeria indicava uma divisão da mente.

Logo após seus estudos com Charcot, Freud conheceu Joseph Breuer,

outro médico que tratava de histéricas e havia desenvolvido uma nova técnica

de tratamento: a catarse. Breuer acreditava que a histeria era resultado de

afetos retidos na mente por causa de traumas emocionais sofridos pelas

pacientes. Através da hipnose, a pessoa revivia o momento terrível esquecido,

liberando na forma de uma “explosão” emocional3 a energia psíquica retesada,

levando isto ao término dos problemas físicos. Mas, com o tempo os sintomas

voltavam. A hipnose funcionava mais como paliativo do que cura.

Através de uma paciente que não queria ser hipnotizada - a célebre

Anna O. - Freud percebeu poder chegar às lembranças traumáticas

esquecidas apenas deixando as doentes falarem o que lhes vinha a cabeça,

situação na qual uma idéia puxava a outra até chegar ao centro nervoso da

tensão histérica. Ele chamou esta técnica de “associação livre”. Neste

momento surge segundo o próprio autor, a “psicanálise”, que compreende este

novo procedimento de investigação dos processos mentais junto ao conjunto

de saberes ligado a estas pesquisas, e o método de tratamento daí derivado4.

Ao continuar o tratamento com outras pacientes, Freud notou que a

grande maioria delas diziam ter sido seduzidas por seus pais quando crianças.

Nada mais justificável para a origem dos problemas histéricos5. Ao realizar

3 A própria função da catarse como teorizou Aristóteles em sua Arte Poética. O curioso é que a catarse para este era o objetivo da tragédia grega, e com o cada vez maior subjetivismo do homem ocidental e a interiorização da explicação dos fenômenos que regem nossas vidas, a própria concepção de tragédia foi anulada em seu cerne. O que antes era o caminho de um homem ao encontro inevitável com o seu destino imutável, com o advento das ciências da psique (psicologia, psiquiatria, psicanálise) torna-se uma escolha interior, muitas vezes inconsciente: “a psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu (das pessoas) destino é, na maior parte, arranjado por elas próprias e determinado por influências infantis primitivas”. A vida humana já não é mais trágica no sentido grego; no máximo, com muito esforço, é um drama mal-assumido e mal-interpretado. A citação é de “Além do Princípio de Prazer” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 4 Tudo isso poderia ser analisado à luz do pensamento de Foucault, que em seu livro “História da Sexualidade I - A Vontade de Saber”, interpreta o método psicanalítico como uma versão atualizada da confissão (ou a associação livre dita para um ouvinte “iniciado”) que vai purgar nossa alma (ou psique) de seus pecados (ou traumas). 5 Os americanos que o digam, com a sua indústria de processos milionários de filhos acusando os pais por abuso sexual na infância, sendo muitos destes “fatos” descobertos por “terapeutas” das mais duvidosas formações, parecendo inclusive nunca terem lido Freud, como bem discute Carl Sagan em SAGAN, Carl, O Mundo Assombrado Pelos Demônios, São Paulo, Companhia das Letras, 1996

64

uma conferência na Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena em 1896,

e afirmar que a origem das causas histéricas deveria ser procurada nos abusos

sexuais da infância, o presidente da mesa, Richard Von Krafft-Ebing comentou

um tanto quanto descrente e indignado ao fim da exposição: “Soa como um

conto de fadas científico”.

Mas algo parecia errado: é claro que casos como este existiam, e com

consequências gravíssimas, mas na quantidade em que apareciam, estava

havendo uma epidemia de pais tarados por suas crianças! Ou então, as

pacientes haviam desejado aquele fato quando pequenas. Freud descobriu

então uma estrutura comum a todos aqueles casos: uma fantasia incestuosa.

Ora, mas se era a criança que desejava a sedução, isto dava sinal de uma

sexualidade já existente.

Para a psiquiatria da época, a idade natural e “normal” do desabrochar

das intenções sexuais era a puberdade. Krafft-Ebing relata no Psycopathia

Sexualis vários casos de sexualidade infantil, mas eles sustentavam um dos

argumentos da degenerescência dos perversos: “Na idade de cinco anos ele

pediu à pequenas garotas que o despissem e o espancassem em suas

nádegas nuas”6 (caso 60/ masoquismo). Para o século XIX, somente um

“louco” poderia se interessar tão precocemente pelos prazeres do corpo.

Freud passou a acreditar em uma universalidade deste desejo infantil

incestuoso inovando a visão de homem ao propor uma sexualidade nas

crianças. Esta seria não genitalizada e voltada para si mesma, pois não havia

ainda um objeto externo de seu desejo. Toda a satisfação física da criança,

como o mamar, seria acompanhada de um prazer. Foi este prazer conseguido

por todo o corpo e ainda não focado nos órgãos genitais que Freud chamou

sexualidade infantil.

Causando verdadeiro horror para a época, a partir deste momento os

limites entre os “doentes sexuais” e os sãos tornaram-se apenas uma questão

de grau de manifestação e capacidade de repressão, pois “tampouco a

predisposição às perversões é uma particularidade rara, mas deve, antes, fazer

6 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psycopathia Sexualis, Londres, Velvet Publications, 1997, pág. 64

65

parte da constituição que passa por normal” 7. Assim pensadas, as “aberrações

sexuais” conhecidas e estudadas nos adultos eram nada mais que uma

sexualidade que não havia se desenvolvido ou que havia regredido novamente

ao período infantil.

Aqui começam os problemas que Freud enfrentará com o mundo

científico e acadêmico: um jovem, de Viena - lugar de festas, valsas, não de

“ciência” - propõe erotizar anjos ingênuos e puros - as crianças! Mesmo

considerando a sexualidade infantil como algo polimorfo e ainda não

genitalizado, o choque foi intenso. As teorias deste homem se iniciaram

desviando, “pervertendo” o próprio caminho da psiquiatria. Ele começou então

a mudar o foco dos estudos psiquiátricos sempre tão voltados para os

“perversos”, e passou a analisar também os “normais”.

Em 1896 morreu seu pai, e Freud percebeu que estava tendo muitos

sonhos significativos com o período pelo qual passava. Começou então a dar

mais atenção aos eventos da vida psíquica até então relegados ao campo da

superstição, iniciando um processo de auto-análise que vai se estender por

quase toda a vida. Disto surge, em 1900 a publicação de “A Interpretação dos

Sonhos”. A partir de então, todos os homens, sejam “doentes” ou não, tem

uma vida psíquica dividida em consciente e inconsciente.

Os sonhos seriam manifestações dos desejos empurrados para o

inconsciente – reprimidos - que ao ter a vigilância exercida sobre eles

afrouxada durante o sono, poderiam vir à mente disfarçados, e assim, ao

menos em parte, realizarem-se. Mas o que eram estes desejos tão perigosos -

pois deviam ser reprimidos - e ao mesmo tempo tão insistentes - encontrando

brechas de se manifestar seja na vida cotidiana8, seja durante o sono?

Novamente, a sexualidade incestuosa!

Um apelo sexual intenso passava a comandar o comportamento não só

de todos, mas seus reflexos estavam em tudo. Como estes desejos surgiam

logo aos primeiros contatos do recém-nascido com a mãe, e durante o

7 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 8 Como Freud demonstra em Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901-1904). FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, Rio de Janeiro, Imago Editora

66

desenvolvimento da criança deveriam ser bloqueados pela figura do pai - que

alimentava na criança uma forte vontade de destruí-lo, Freud chamou a este

processo de “complexo de Édipo”9. Em troca de poder ter uma mulher própria

no futuro, o garoto não seduz a mãe nem assassina o pai, reprimindo o melhor

possível estas intenções. A passagem não bem resolvida por este complexo

seria a fonte das futuras neuroses e perversões.

Durante toda sua vida, Freud tentou decifrar o funcionamento da psique

humana, e embasou as análises feitas sempre sobre a clínica e/ ou os

acontecimentos de seu tempo. Apesar da reação inicial agressiva, a

psicanálise foi sendo aceita nos meios médicos com uma velocidade cada vez

maior, e em 1908 realizou-se o I Congresso internacional de Psiquiatria, com

membros de seis países. Em seguida ele viu a primeira Guerra Mundial e

percebeu com receio o surgimento da segunda, sendo inclusive obrigado em

1938 a partir para Inglaterra fugindo dos nazistas, que já haviam anos antes

(1933) queimado suas obras.

O tema da agressividade humana é algo que vai inquietá-lo durante toda

vida, seja no campo individual e erótico da relação dos sádicos ou

masoquistas, seja no social, com as guerras. Em 1930 ele reflete: “Sei que no

sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do

instinto destrutivo (dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao

erotismo, mas não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado

a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em

conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida” 10.

A partir de 1923 a saúde de Freud vai tornando-se cada vez mais frágil

com o surgimento de um câncer na região da boca e mandíbula. Depois de

trinta e três operações frustradas para deter a dor e a doença que se expandia,

veio a falecer em setembro de 1939, na Inglaterra.

II

9 Novamente a tragédia grega. Mas, se Édipo tivesse “complexo de Édipo”, não haveria tragédia. 10 “O Mal-Estar na Civilização” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

67

Em 1905, surgem os “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”,11

onde Freud afasta-se das concepções mais biológicas de “instinto” passando a

analisar o homem como possuidor de “pulsões”. Sendo ambos geneticamente

determinados, a diferença básica seria que o instinto é um comportamento

visando um objeto, enquanto as pulsões são impulsos biológicos mas sem um

objeto já programado. Elas dividem-se neste momento em “Pulsão de

Autopreservação” e “Pulsão Libidinal”, sendo esta segunda a fonte da

sexualidade.

No primeiro dos Três Ensaios intitulado “As Aberrações Sexuais”, Freud

recusou a visão degenerativa e biológica procurando explicações mais

psicológicas dos comportamentos sexuais “aberrantes” - sem contudo deixar

de ser influenciado pela época a qual pertencia, pois dentro deste estudo são

analisados também o sexo oral, anal e outras “impropriedades” 12. Desta

forma, continuam em destaque os “anormais da vida sexual que, em todos os

outros pontos, correspondem à média” 13, levando sempre em conta as

“insinceridades convencionais”14 das mulheres. As perversões não têm mais

uma origem genética, embora não deixem nunca de serem “perigosas”.

Os desvios em relação ao alvo sexual poderiam ser: a) Transgressões

anatômicas - ou seja, o sexo com/ em outras partes do corpo que não os

genitais; b) Demoras nos momentos precedentes ao ato sexual propriamente

dito. Aqui se enquadram o sadismo e o masoquismo, como: “Fixações de alvos

sexuais provisórios - Surgimento de novas intenções” 15.

Parece que a tentativa burguesa desesperada de normalização humana

passou - e muitas vezes ainda passa - como um trator sobre todas as

sutilezas, peculiaridades e particularidades da vida sexual. Se o discurso

11 Esta cronologia dos estudos sobre sadismo e masoquismo de Freud terá como base o estudo de Armando Colognese Jr. em COLOGNESE Jr, Armando, O Conceito de Sadismo e Masoquismo na Obra de Freud in Boletim, Publicação do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Spientiae, Ano V, Vol. V, Nº 1, São Paulo, 1996 12 Como o item: “Substituição Imprópria do Objeto Sexual - Fetichismo” ou a “transgressão anatômica” que é o sexo anal ou oral; in “As Aberrações Sexuais”. FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 13 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 14 Idem, Ibidem 15 Idem, Ibidem

68

oriental sobre sexo foi essencialmente o de uma Ars Erotica16, na qual os

prazeres devem ser aprendidos e apreendidos pela sensibilidade, com ênfase

nas preliminares, máximo estímulo de sensações (perfumes, músicas, carícias,

sabores, vestimentas, adereços), e o prazer em si mesmo visto como uma arte,

no Ocidente tudo isso ficou sob suspeita. Sexo para nós é ciência, razão e

sobretudo algo muito, muito sério. Na cultura ocidental não se “brinca em

serviço” 17. Embora nesta época qualquer demora em ir logo ao ato genital

fosse vista com desconfiança, Freud vai justamente questionar esta fase de

importância “secundária”, pondo em evidência toda a precariedade da idéia de

“normalidade” do ato sexual.

Quanto ao sadismo e ao masoquismo, já de partida ele assumiu que: “A

inclinação a infligir dor ao objeto sexual, bem como sua contrapartida, que são

as mais frequentes e significativas de todas as perversões, foram denominadas

por Krafft-Ebing, em formas ativa e passiva, de “sadismo” e “masoquismo”

(passivo)” 18. Os nomes destas “perversões” e a concepção de opostos

complementares foi aceita sem maiores questionamentos. Como para o autor

de Psycopathia Sexualis, Freud também considerava o sadismo como um

aumento patológico da agressividade natural masculina, sendo somente o

prazer condicionado exclusivamente pela “sujeição e maus-tratos”19

caracterizado como perversão.

O masoquismo por sua vez, era o sadismo do sujeito lançado a si

mesmo como objeto. O retorno do desejo de humilhar e agredir sobre a própria

pessoa causava o comportamento masoquista. Freud duvidava se este desejo

de sofrer dores e ser humilhado seria primário ou uma derivação do sadismo,

embora conclua neste trabalho: “(...) o esclarecimento desta perversão de

modo algum tem sido satisfatório (...)” 20.

As definições encontradas neste texto são: “o sadismo corresponderia a

um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual,

16 FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I - A Vontade de Saber, Op. Cit. 17 Toda a briga da psicanálise em seu início foi para ser aceita como “ciência”, assim merecedora de respeito, por mais cômico que pareça a primeira vista um texto intitulado “Caráter e erotismo Anal”. 18 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 19 Idem, Ibidem 20 Idem, Ibidem

69

movido por deslocamento para o lugar preponderante”; e “(...) masoquismo

abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a

mais extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao

padecimento de dor física ou anímica advinda do objeto sexual ”21.

Aqui também existe a concepção de atividade relacionada ao masculino

- sadismo - e passividade relacionado com o feminino. Mesmo adotando a

concepção das pulsões ao invés de instintos, a influência das idéias de base

genética utilizadas pela psiquiatria - como as noções de “atividade” e

“passividade” relacionadas aos sexos - ainda eram frequentes em sua obra.

Como Freud acreditava que o ser humano era psiquicamente bissexual, logo

ele também o era psiquicamente “ativo” ou “passivo”.

Daí surgiu talvez a grande contribuição do fundador da psicanálise

quanto aos estudos da perversão predileta do universo das ciências da psique.

Pela primeira vez, o sadismo e o masoquismo foram transformados em uma

unidade dentro de uma mesma pessoa. Agora, estes sintomas não eram mais

exclusividade de “doentes” nem encontrados em apenas uma de suas

expressões (ativa ou passiva) em cada indivíduo. Dentro de cada um, estavam

as duas facetas de uma só perversão: “A particularidade mais notável desta

perversão reside, porém, em que suas formas ativa e passiva costumam

encontrar-se juntas numa mesma pessoa” 22.

Se para Krafft-Ebing, o sujeito estava enfermo de sadismo ou

masoquismo, sendo que em cada um dos casos haviam sentimentos, desejos

e sensações distintas surgidas de fontes opostas apesar de complementares,

agora estes mesmos sentimentos, desejos e sensações originam-se de uma

fonte única. Neste momento dos estudos de Freud, a origem era a pulsão

libidinal unida ao exagero da agressividade natural masculina. A existência de

mulheres sádicas era considerado um fenômeno tão raro que não valia a pena

nem ser discutido23.

21 Idem, Ibidem 22 Idem, Ibidem 23 Não vamos nunca nos esquecer: esta é uma sociedade patriarcal, com predominância da visão masculina sendo estes estudos feitos por um homem - as mulheres com orgasmo clitoridiano e não vaginal - o mais “maduro” - que o digam.

70

Assim sendo, estes “problemas sexuais” representavam duas

manifestações de uma só perversão. Desta forma, concluiu-se que “O sádico é

sempre e ao mesmo tempo um masoquista”24, sendo a manifestação de

sadismo ou masoquismo definida pelo aspecto ativo ou passivo predominante.

Quem sentia prazer em infligir dor no ato sexual, também era capaz de

regozijar-se com a dor sentida na própria pele (ou alma).

É também neste texto em que Freud propõe a sentença: “neurose é o

negativo da perversão”, pois enquanto o perverso tem os desejos sexuais -

ainda infantis - e anormalmente expressos, o neurótico os têm anormalmente

reprimidos, com ambos os casos gerando danos ao direcionamento “correto”

da vida psíquica e sexual.

No segundo dos Três Ensaios, “A Sexualidade Infantil”, Freud emprega

pela primeira vez25 a expressão “sadomasoquista” ao falar da relação prazer/

dor na infância: “Presumindo-se que também as sensações de dor intensa

provoquem o mesmo efeito erógeno, (...) estaria nessa vinculação uma das

principais raízes da pulsão sadomasoquista” 26. Aparece então um novo sujeito

perverso que tão assustadoramente vai povoar o imaginário - e as fichas

policiais e médicas - do mundo ocidental. Não mais o sádico apenas, ou

somente o masoquista, mas o “sadomasoquista”, com toda a carga de perigo

de seu lado “ativo” e toda a estranheza da “doença” do lado passivo. Este

termo voltará a aparecer em 1918 (1914) em “História de Uma Neurose

Infantil”, no caso do “homem dos lobos”.

A ainda tão assustadora masturbação era tema central, e Freud propõe

uma nova visão sobre o tema: nas crianças, ela seria “normal”, mas nos

adultos não seria digamos, “sadia”. Seus perigos ainda existiam, apesar de

atenuados por este médico. Eram agora o risco de uma fixação em objetivos

sexuais infantis - por isto estava ligada diretamente aos “perversos” - e ainda

os temíveis prejuízos orgânicos podendo “ocorrer, mediante algum mecanismo

24 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 25 Sempre tendo como base as Obras Completas em CD-Rom da Editora Imago 26 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

71

desconhecido” 27. Inclusive ele próprio afirma que, com base em sua

experiência clínica, a masturbação poderia causar perda da potência

masculina, mesmo que aparente, embora esta falta estivesse ligada

diretamente ao processo civilizatório, onde ela “facilita a prática (...) das

virtudes da moderação e confiança sexual” 28.

Em 1915, novos estudos são feitos sobre “as mais significativas de

todas as perversões” 29, no texto “O instinto e suas vicissitudes”. Por esta

época, a teoria das pulsões já havia sido modificada, sendo estas divididas em

“Pulsões do Ego” (ou “Pulsão Libidinal Egótica”) e “Pulsões Sexuais” (ou

“Pulsão Libidinal Objetal”). Nesta segunda visão, não existe conflito entre as

Pulsões do Ego e as Sexuais, pois ambas são forças libidinais, diferindo

apenas no objeto da atenção. Na pulsão Egótica, o prazer é voltado para o

próprio corpo sendo autopreservativo, enquanto na Objetal é voltado para um

corpo externo.

As vicissitudes (ou mudanças, ou destinos) a que uma pulsão30 está

sujeita são: reversão ao oposto; retorno em direção ao próprio indivíduo;

repressão e sublimação. É pela reversão e retorno que se pode explicar os

fenômenos do sadismo e masoquismo: na reversão de uma pulsão em seu

oposto, ocorre uma mudança da forma ativa para a passiva. Assim, é a

finalidade da pulsão que sofre reversão: o que antes era sadismo, vira

masoquismo. O mesmo dá-se com a escopofilia (olhar) e o exibicionismo (ser

olhado).

No retorno, reforça-se a primeira reflexão de Freud que o masoquismo é

um sadismo voltado ao próprio indivíduo: “Um masoquismo primário, não

27 “Contribuções Para um Debate Sobre a Masturbação” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. Segundo a “Nota do editor inglês” este texto foi fruto de debates ocorridos na Sociedade Psicanalítica de Viena ocupando “9 noites, de 22 de novembro de 1911 a 24 de abril de 1912”. Sem jamais perder a consciência da importância científica e social destas discussões, não posso deixar de lembrar aqui das reuniões da “Real Academia de Sacanagem” criada pelos humoristas da extinta revista “Casseta e Planeta”, que passavam as noites discutindo questões como “A mulher que só transa com travesti é lésbica?” ou “Um travesti operado arrependido, que reimplantou um pênis de plástico para enrabar uma mulher é lésbico?” in: Revista Casseta e Planeta Nº17 - setembro de 1994 28 “Contribuções Para um Debate Sobre a Masturbação” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 29 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

72

derivado do sadismo na forma que descrevi, não parece ser encontrado” 31. A

finalidade da pulsão permanece a mesma, mudando apenas o objeto. No “par

de opostos sadismo-masoquismo” 32 unem-se a reversão e o retorno: “Com o

retorno em direção ao eu, efetua-se também a mudança de uma finalidade

instintual ativa para uma passiva” 33. O masoquista é aquele que necessita de

uma outra pessoa para assumir o papel de “sujeito” sádico identificando-se

com este. O gozo sádico é conseguido através da identificação do sujeito com

o objeto da dor; o gozo masoquista vem através da pulsão sádica original. Nos

dois casos, não é a dor em si a causa do prazer, mas a excitação sexual a elas

unida. Mas a pulsão sádica originava-se de onde? Nosso doutor acreditava em

uma “pulsão de dominação”, que visava a princípio o controle sobre os outros

(e sobre si mesmo), e não a dor. Desta pulsão poderia surgir mais tarde o

sadismo.

Assustado com a quantidade de clientes com fantasias de crianças

apanhando, Freud publica um novo texto sobre as perversões em 1919: “Uma

Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais”34.

Aqui, ele afirma: “um sentimento de culpa é invariavelmente o fator que

converte o sadismo em masoquismo” 35, distinguindo os processos de

fantasias “perversas” dos meninos e das meninas, tendo sempre como base o

“complexo de Édipo”. A garota, pune seus desejos de ter relações sexuais com

o pai (repressão e culpa) e os substitui por outro tipo extremo de contato físico,

o espancamento, projetando-os em outra criança qualquer. Para o menino,

ocorre o mesmo processo, embora o desejo pelo garoto seja também pelo pai,

não pela mãe, o que é chamado “Édipo negativo”.

30 Estando consciente dos problemas de tradução da edição brasileira, utilizarei o conceito original de Freud de “pulsão” ao invés do traduzido “instinto”. Esta segunda palavra só aparecerá no sentido “pulsional”, nas citações. 31 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 32 Idem, Ibidem 33 Idem, Ibidem 34 Logo no começo, ele fala da influência que determinados livros podem ter tido nos jovens estimulando-lhes a imaginação, tais como “A Cabana do Pai Tomás”. Infelizmente, toda uma já tradicional literatura erótica não é aqui lembrada. 35 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

73

Quando o prazer proibido está na fase de identificação com a criança

que apanha, ele é do tipo masoquista; quando posteriormente ele passa a

apenas apreciar a situação a uma devida distância, volta a ser um deleite

sádico, como em sua origem. Vemos então que se a mulher neste caso é

considerada como possuidora de um desejo “ativo”, no homem retorna um

tanto quanto sutilmente a velha correlação: passividade = homossexualismo.

“Pode-se ter como certo que os instintos com propósito passivo existem,

particularmente entre as mulheres” 36. O masoquismo masculino é diferente do

feminino, e Freud já repara uma constante nas fantasias desta perversão no

homem: Quem aplica os castigos quase sempre é uma mulher37.

Na interpretação formulada por este doutor, o desejo inconsciente de

ser amado pelo pai, transforma-se no consciente de ser espancado pela mãe.

Mesmo nas “perversões”, o ideal é a figura masculina, o pai. O feminino só

aparece como substituto: “Em ambos os casos, a fantasia de espancamento

tem sua origem numa ligação incestuosa com o pai”38.

Talvez para a época, um verdadeiro “desvio sexual” fosse a completude

em si do elemento feminino, ou seja, a idéia de que a mulher seria um ser

“completo” com uma sexualidade própria, e não uma versão derivada do

homem. Mas não havia este perigo, a ciência deste período nem fantasiava

tamanho absurdo. Sete séculos depois de São Tomás de Aquino dizer que,

quando a natureza não tinha forças suficientes para produzir um homem,

formava uma mulher, a psicanálise viria atualizar este conceito transpassando-

o para o campo da psique. Os “machos falidos” - ou sejam, as mulheres - do

pensador cristão adquirem novo vigor nas “mulheres castradas” e com “inveja

do pênis” de Freud.

Em 1920, outra análise sobre sadismo e masoquismo é feita em “Além

do princípio de prazer”. Novamente, a origem do masoquismo é o sadismo,

mas pela primeira vez é admitida a possibilidade de que “pode haver um

36 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 37 Isto será melhor analisado no próximo capítulo. 38 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

74

masoquismo primário” 39. Aqui esta desconfiança tem origem na nova mudança

da teoria das pulsões: agora elas dividem-se em “Pulsão de Vida” e “Pulsão de

Morte”, que seriam antagônicas e estariam constantemente lutando pela

totalidade de nossas limitadas “energias pulsionais”, convivendo misturadas

sem o predomínio completo de alguma delas.

A pulsão de vida compreenderia as duas pulsões anteriores, pois ela

seria egótica e objetal, enquanto a de morte seria uma tendência à voltar a um

estado inanimado, a uma estabilidade “original”, manifestado em uma

compulsão à repetição - de atos, sentimentos, idéias, mesmo desagradáveis -

sem a participação da libido. O limite das duas pulsões é a morte: “o objetivo

de toda a vida é a morte” 40. Isto estaria bem exemplificado no ato sexual, que

sendo “o maior prazer por nós atingível” 41, viria associado “à extinção

momentânea altamente intensificada” 42. As duas pulsões visam o prazer, cada

uma a seu modo.

Então em 1924, aparece um trabalho exclusivo sobre o fenômeno do

masoquismo - e do sadismo: “O Problema econômico do masoquismo”. Neste

estudo Freud divide o masoquismo em três formas: erógeno; feminino e moral.

O masoquismo erógeno é a fonte dos outros dois, sendo o mais explícito

deles, manifestando-se como o prazer no sofrimento. Apesar de Freud

encontrar na raiz deste masoquismo causas biológicas e constitucionais que

ele mesmo não compreende, acredita que a teoria das pulsões pode lhe dar

uma base de estudo. A origem do masoquismo agora é diferente, seguindo a

última formulação da teoria das pulsões: A pulsão de morte, convive ao lado

daquela de vida dentro do indivíduo, sendo posta em grande parte para fora do

sujeito - e sobre um objeto externo. Quando ela está unida à pulsão libidinal,

tem-se o sadismo propriamente dito. Aquilo desta pulsão destrutiva não

externalizado, ao ligar-se à pulsão libidinal transforma-se no masoquismo

erógeno ou primário, pois como nosso doutor já havia afirmado anos antes:

“temos todos os motivos para acreditar que as sensações de dor, (...), beiram a

39 “Além do Princípio de Prazer” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 40 “Além do Princípio de Prazer” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 41 Idem, Ibidem 42 Idem, Ibidem

75

excitação sexual e produzem uma condição agradável” 43. Ainda assim, o

sadismo pode voltar-se novamente para a pessoa, unindo-se com o

masoquismo primário, formando o “secundário”.

O masoquismo feminino é como o próprio nome indica, uma

manifestação das características de passividade femininas, sendo o mais

simples dos três. Aqui são analisados os casos dos impotentes, lembrando

novamente Krafft-Ebing com a equação: passividade = feminilidade =

impotência = homossexualidade. Homens masoquistas em plena virilidade de

seu membro não são concebidos, assim como mulheres masoquitas, afinal

elas já o são social e “instintivamente”.

Masoquismo moral é uma forma vital da conduta do indivíduo. Aqui a

característica sexual está afrouxada, sendo o sentimento de culpa

fundamental, justificando uma constante “necessidade de punição”, que

manifesta-se não mais preferencialmente no campo da sexualidade, mas no da

vida social e relações pessoais. Não há mais o fator do parceiro sexual como

algo determinante, mas vale o sofrimento em si, altamente dessexualizado,

embora: “Seu perigo reside no fato de ele originar-se do instinto de morte e

corresponder à parte desse instinto que escapou de ser voltado para fora,

como instinto de destruição. No entanto, de vez que, por outro lado, ele tem a

significação de um componente erótico, a própria destruição de si mesmo pelo

indivíduo não pode se realizar sem uma satisfação libidinal”44.

Embora Freud aponte pela primeira vez uma separação entre um

masoquismo “erógeno” e um “moral”, percebe-se não existir uma diferenciação

clara entre um estupro e uma relação consentida com um “sádico”. A hipótese

de uma sexualidade “diferente” ou “alternativa” não foi cogitada desde o início

destes estudos. Nosso doutor percebe: “os pervertidos que conseguem obter

satisfação raramente têm ocasião de procurar analista” 45, mas acredita que,

43 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 44 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 45 “Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

76

quer sejam nocivos aos direitos individuais ou não, “pode haver fortes motivos

para induzi-los a ir a um analista” 46.

Em 1927/28 no texto “Dostoievski e o Parricídio”, Freud emprega

novamente o termo “sado-masoquista” agora com um hífen separando as duas

concepções dentro de uma mesma palavra47. Voltará a usá-la desta maneira

em 1939 com “Moisés e o Monoteísmo”. Talvez neste ponto de seus estudos,

quando o masoquismo não é mais considerado como derivado, o termo seja

escrito de forma modificada para realçar a idéia de que, apesar de terem a

origem em uma mesma fonte48, são manifestações distintas e “primárias”. Mas

Freud nomeia o sujeito da perversão: o sadomasoquista. O termo

“sadomasoquismo” - com hífen ou não - como perversão única de duas caras,

apesar de conceitualmente criado por ele, não existe em sua obra.

Enfim, os sádicos e masoquistas deste doutor são os libertinos de Sade

ou os supra-sensuais de Masoch? A resposta é clara: nem uns, nem outros.

Exatamente como já foi visto nos estudos de Krafft-Ebing, Freud apropriou-se

não apenas das definições e nomenclaturas, mas também dos sujeitos.

Novamente em cena estão os burgueses: perversos, sãos ou degenerados.

Não existe - nem existirá mais - lugar para as crueldades embasadas em uma

filosofia e treinadas por uma vontade, como por exemplo, era proposto por

Dolmancé49. Os aristocratas de ambos os autores estão fora de cena já há

tempos.

Em compensação, a famosa indagação feita pelo criador da psicanálise

- que quer a mulher? - parece retirada da obra de Masoch. As visões sobre

este ser - que desde a antiguidade assusta ao dizer: “Recebe agora os teus

filhos ó pai”50 enquanto “Joga aos pés de Jasão (pai) os cadáveres dos dois

filhos”51 - são diferentes. Em Freud, a mulher é um quase-homem castrado.

Para o escritor de “A Vênus das Peles”, ela é um ser completo e muitas vezes,

46 Idem, Ibidem 47 Claro que para “nomear” desta forma o escritor referido. 48 Por isso uma só palavra (sado-masoquismo”), composta de dois termos? 49 Personagem de “A Filosofia na Alcova” de Sade. 50 Sêneca, Medéia, São Paulo, Abril Cultural, pág. 257 51 Idem, Ibidem

77

superior ao homem. Mas frente a este enigma que as mulheres parecem

encarnar, ambos concordam com a impossibilidade masculina de compreender

o universo feminino.

Parece que a grande contribuição feita pelo autor de “O Futuro de Uma

Ilusão” ao estudo das atitudes sádicas e masoquistas é também a sua grande

“falha” do ponto de vista da origem literária e dos comportamentos. Ao unir as

duas “perversões” como constitutivas de um mesmo indivíduo, consolidou-se a

idéia de pares complementares de opostos. Talvez não o sejam. Desde

Deleuze52 sabe-se o quanto estes mundos “perversos” podem ser distintos. O

parceiro “passivo” de um sádico não é um masoquista, jamais. O sádico

“perigoso”, como preferencialmente estudado por Freud, que também não é o

de Sade, quer e precisa das vítimas. O “ativo” do masoquista é alguém

treinado, ensinado, educado, enfim, criado por este, não um real sádico como

o citado acima53.

No sadismo existe um masoquismo próprio e vice-versa, um não

comungando com seu “equivalente” no outro. Ao deparar-se com as obras

destes autores, considerando-as descritivas de sintomas próprios, vê-se

claramente as distâncias e o diálogo impossível de igualdade, de

uniformização, e de “opostos complementares” 54. A dupla “sadomasoquista”

freudiana não existe, quer idealmente, quer na prática sexual.

Sade e Masoch não são citados nenhuma vez por Freud55, embora o

nome das “principais perversões” tão dedicadamente estudadas por ele

derivem destes homens e principalmente da obra literária destes. É, pois,

curioso que quem tenha ganho um prêmio de literatura seja justamente o

psicanalista, não os escritores56.

Com a psicanálise não mais se discriminou entre “degenerados”,

“pervertidos” ou “normais” pois ela tornou a todos potencialmente perversos,

52 DELEUZE, Gilles, Sade/ Masoch, op. cit. 53 O único lugar onde estes dois podem conviver e unirem-se em suas práticas é na “cultura SM” que veremos mais adiante, mas aí já não é mais o campo dos “necessitados de ajuda” das ciências da psique. 54 Espero que estas diferenças tenham ficado minimamente esclarecidas nos capítulos anteriores. 55 Segundo a ferramenta “pesquisa” no Cd-Rom das obras completas deste autor. 56 O prêmio Goethe de literatura, em 1930.

78

embora tenha continuado a insistir no caráter desviante de certos aspectos

sexuais - como o sadismo e o masoquismo - além da necessidade, se não de

cura, ao menos de tratamento57. Com isso, garantiu uma clientela que quase

um século depois continua lotando consultórios58 e mais, conseguiu quase um

monopólio do saber subjetivo em nosso século. Já não há mais verdade

científica sobre o “ser” humano que não leve em conta os ensinamentos e/ ou

adaptações da obra de Freud59.

Por isso encontram-se em jornais, programas de televisão e revistas

populares sempre uma sessão “pergunte ao analista” ou algo do tipo, nunca

sessões como “pergunte ao antropólogo” ao “religioso” ou ao “filósofo” sobre os

processos subjetivos humanos60. Ao fazer a ponte entre a psiquiatria e a

psicologia, pagando o preço pela decorrente popularização, as concepções

terapêuticas da psicanálise infiltraram-se em todas as camadas da sociedade

em troca de uma quase total diluição de seus conceitos mais elementares e

fundantes como a sexualidade infantil e as “perversões”. Fala-se em ego, id e

superego enquanto a masturbação nas crianças raramente é citada.

O que foi proposto por Freud como um modo de confrontação do

homem consigo mesmo, sem desculpas para elementos externos e “forças

superiores”, muitas vezes é usado e aceito como justificativa para a auto-

57 O “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV” Associação Psiquiátrica Americana ainda classifica o sadismo e o masoquismo como “transtornos sexuais”, embora como já foi dito anteriormente, o homossexualismo não o seja mais - em termos. O que dirá nossa ciência sobre estes temas daqui a um século? Talvez como no filme de Woody Allen “O Dorminhoco”, ela saiba a “verdade” de que bom para a saúde sejam as gorduras, o sal e o tabaco. Ou talvez, volte à tona o medo ainda existente sobre a masturbação. Então as revistas pornográficas masculinas virão com uma tarja alertando: “O ministério da Saúde adverte: a masturbação pode causar câncer de próstata, infertilidade e impotência”. Sobre o DSM-IV, falaremos mais à frente. 58 Desde aqueles que sofrem por profundos desajustes psíquicos, até aqueles a quem o problema mais grave já vivenciado é estourar o limite do cartão de crédito do parceiro (e que também merecem toda a atenção). Afinal, o tratamento é para todos. Mas a psicologia serve para ajudar a assumirmos uma postura “ativa” e mudarmos até o limite de nossas capacidades, ou é mais um modo de oficializar o conformismo? Ou nenhum dos dois? Infelizmente, muitos setores de Recursos Humanos das empresas parecem que já encontraram esta resposta, nos fazendo lembrar do que cantava Raul Seixas na música “Fim de Mês” de 1975: “Eu consultei e acreditei/ No velho papo do tal do psiquiatra que te ensina/ Como é que você vive alegremente, acomodado/ E conformado de pagar tudo calado/ Ser patrão ou empregado sem jamais se aborrecer/ Ele só quer, só pensa em adaptar/ Na profissão, seu dever é adaptar”. 59 Com exceção dos psiquiatras radicais e algumas linhas da biologia que reconhecem no psiquismo humano apenas movimentos químicos e elétricos. 60 Basta ver a voracidade com que a psiquiatria “interpreta” todas as outras ciências, as artes e culturas, como se estas não fossem capazes de conhecer a sua “verdade mais profunda” por si mesmas, e necessitassem sempre daquela para se “legitimarem” subjetivamente.

79

piedade. Com ele, ocorreu a coroação de um processo vindo desde o século

XVIII, colocando o sexo como o tema central da subjetividade no Ocidente.

Nunca uma outra sociedade pôde gerar um “Freud”, como em nenhuma outra

o tema da sexualidade foi tão central e determinante de todos os aspectos da

vida como na nossa: “A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a

atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação

econômica”61.

61 “O Mal-Estar na Civilização ” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

80

81

Capítulo V

A CULTURA S&M

82

“Eu não penso que este movimento [a chamada cultura sado-masoquista] de

práticas sexuais tenha nada a ver com a atualização ou a descoberta de

tendências sado-masoquistas profundamente enterradas em nosso

inconsciente. Penso que o s/m é muito mais do que isso. É a criação de novas

possibilidades do prazer que não tínhamos imaginado antes.”1

Desde as origens do Homem, a sexualidade “desviante” sempre

conviveu lado a lado com a “normal” 2. Como já foi visto no capítulo IV,

somente no século passado estas formas “alternativas” de vivenciar o prazer

sexual passaram a ser efetivamente pensadas como “doenças” (do corpo ou

da psique). Surgiu então o vasto e sempre mutável campo das “perversões”,

inaugurando-se assim a figura do “perverso”. Mas, a medicina e a psicologia,

ao assessorarem o campo jurídico na tentativa de separação entre “louco” e

“criminoso” 3 e delimitarem o “saudável” e o “perigoso” no campo dos prazeres,

colocaram juntos na mesma categoria o assassino real e o torturador

imaginário, “de brincadeira”. Ao estudar os casos e as causas de estupros,

violações, traumas e mortes relacionados ao sexo, patologizaram a ambos

igualando estes fenômenos com relacionamentos muitas vezes “violentos” mas

consentidos por ambas as partes.

Isto é fundamental: Krafft-Ebing, Freud e tantos outros não levaram

muitas vezes em conta a hipótese “consentimento”, especialmente nos casos

de “sadismo”, julgando-os a mesma coisa que um estupro. Mesmo o

“masoquismo”, apesar de implicar um consentimento implícito, não foi

entendido como um acordo para obtenção de prazer mútuo, e sim apenas

como um tipo de tendência suicida.

1 Citação de Michel Foucault em COSTA, Jurandir Freire, O Sujeito em Foucault: Estética da Existência ou Experimento Moral? in: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, Vol.7, Nº1-2, outubro de 1995, pág. 134 2 Nos estudos sobre erotismo e sexualidade dentro da arqueologia e da antropologia, podem ser encontrados vários exemplos. 3 Este é o momento em que “o crime se interioriza, perde seu sentido de absoluto, sua densidade real, para ocupar um lugar no ponto onde convergem público e privado, opinião e psicologia”. MORAES, Eliane Robert, Sade - A Felicidade Libertina, op. cit. pág. 128

83

A cultura S&M possui comportamentos, ritos, locais e códigos que

identificam os “adeptos” ao mesmo tempo em que delimitam seu “corpus”. Mas

mesmo entre os praticantes não há demarcações claras do que faz parte

exclusiva do sadomasoquismo ou não. Para ser mais claro: existem várias

“subdivisões” dentro deste conceito maior.

O próprio termo S&M ou SM é objeto de controvérsias, significando em

inglês4 tanto “Sadism” 5/ “Masoquism” como “Slave”/ “Master”. Muitas vezes,

ele vem unido à outro: BD, formando o BDSM, que pode significar “Bondage”/

“Discipline”, “Domination”/ “Submission” ou “Sadism”/ “Masoquism”, onde cada

termo designa um modo diferente de relacionamento, embora todos façam

parte de um mesmo universo. E para que este fique bem demarcado como um

todo em relação ao mundo “de fora”, as formas de sexo “convencionais” ou

“comuns” são chamadas de “baunilha”, enquanto as “alternativas” são “Kinky

sex” 6, ou seja, tortas, desviantes das “normais”.

Na relação dominador/ submisso, foca-se mais o lado psicológico no

jogo de poder de um parceiro sobre outro. A “bondage” é outra forma na qual

um parceiro “ativo” imobiliza e restringe os movimentos e reações do outro,

seja amarrando-o/ prendendo-o através de cordas ou algemas, ou através da

utilização de instrumentos médicos/ cirúrgicos exigindo bastante autocontrole

por parte de quem está sendo o agente “passivo” da situação, para não lhe

causar danos. Um exemplo disto é a inserção de sondas no canal da uretra, ou

de tubos nasogástricos (entram pelo nariz e vão até o estômago) ou tubos

orogástricos (entram pela boca). A “bondage” é considerada uma das formas

mais perigosas e artísticas do sadomasoquismo, pela habilidade e cuidado que

a pessoa deve ter para imobilizar a outra sem causar danos, além do caráter

estético que podem assumir os nós e amarras.

4 Uso os exemplos desta língua pois é nos EUA e na Inglaterra onde parecem haver os maiores movimentos destes grupos como “organizações políticas” em prol de seus direitos civis. 5 Muitos dos termos usados neste capítulo são gírias ou jargões usados no mundo S&M que não têm uma tradução exata para o português. Desta forma, quando estas palavras forem substantivos, não as traduzirei pois isto em muitos casos faz perder seu sentido original. 6 Este não é considerado um termo pejorativo. Ao contrário, é muitas vezes usado com orgulho.

84

Sadismo e Masoquismo geralmente são usados para uma relação com

foco na dor física. A Disciplina pode pautar-se tanto por um caráter físico como

psíquico, incluindo elementos dos outros “jogos”. Nos últimos tempos, os

termos mais empregados neste meio tem sido “Top” e “Bottom”, para designar

respectivamente o agente e o paciente, pois seriam a princípio nomes

“neutros”, que não levariam nenhuma tendência dentro de si. Outros elementos

como a zoofilia, o “banho marrom” (fezes), a “chuva dourada” (urina) ou o

“banho romano” (vômito), podem estar inclusos em qualquer uma das

denominações acima.

Mesmo sabendo das limitações em que incorrerei, neste trabalho vou

utilizar as palavras “sadismo” e “masoquismo” por serem comumente

consideradas termos gerais para abranger todas estas manifestações e por

representarem mais diretamente nossa atenção central: a dor e o prazer7.

Não poderei fazer aqui um histórico da cultura S&M pois não realizei

pesquisa sistemática neste sentido8. Além disso, este universo não tem um

limite fixo de origem, muito menos possui um caráter que permita a formatação

de uma história linear. O que conhecemos hoje como S&M é muito mais a

somatória de grupos e principalmente de pessoas que se identificam pelas

preferências sexuais e atitudes perante o mundo. Mesmo assim, tentarei traçar

um breve esboço do período considerado como a passagem deste modo de

ser do “submundo” para a “cultura de massa”.

Paralelo ao processo de medicalização do desejo, existiu toda uma

parcela de pessoas que continuaram com suas práticas pouco ortodoxas na

busca da satisfação sensual, não se importando muito com concepções cada

vez mais criativas sobre as “aberrações sexuais”. Apenas guardaram sigilo

para não serem “tratadas” a força. Toda uma “cultura” foi sendo formada às

margens das interpretações oficiais: “Foi no início da Europa moderna que a

7 Por não ser o foco deste trabalho, não vou tratar aqui da polêmica relação sexo X amor. 8 O estudo para este capítulo baseou-se mais em alguns poucos livros em português sobre esta cultura, algumas revistas (em inglês), fitas de vídeo, minha memória e em vários sites na internet. Como não conheço as leis de direitos sobre textos veiculados no ciberespaço, fiquei impossibilitado de usar citações desta mídia. Outro fator foi a grande dificuldade de contatar e entrevistar “adeptos”. O “clube” de S&M

85

pornografia pela primeira vez se tornou “um fim em si mesma” 9. Enquanto

Freud e seus discípulos discutiam a universalidade das pulsões sádicas e

masoquistas, homens e mulheres praticavam rituais de dor e prazer em plena

concordância entre si, não necessitando para isso de justificativas psicológicas

ou químicas (e nem sociais).

Nos anos 70 deste século, a cultura do sadomasoquismo vai começar a

sair indiretamente dos esconderijos através de um dos movimentos mais

radicais da contracultura: os punks. Surgidos na Inglaterra, estes jovens

anunciavam uma total falta de perspectivas para um mundo em constante

ameaça de uma catástrofe nuclear pregando a destruição dos valores vigentes,

através de uma atitude que fosse chocante e violenta. Toda agressividade

ignorada - e combatida - pelos anos hippies viera à tona com os punks. A

intenção era demonstrar uma força primal caótica que não podia - e não devia

- mais ser reprimida. A atitude era extremista: hábitos, idéias, corpos e roupas

foram alterados para causar má impressão e assustar. E muito do que foi

usado das roupas e ornamentos nestes corpos veio desta cultura subterrânea

conhecida como “S&M”.

Roupas de couro, peças de metal (como algemas, correntes), marcas e

perfurações na pele, tatuagens, foram fruto de todo um diálogo entre o

universo sadomasoquista, os punks e outros movimentos que questionavam a

sociedade e buscavam novas formas de “morrer em paz”10. Com a “indústria

cultural” já funcionando a toda, o idealismo rebelde previamente domesticado e

anestesiado, virou a “norma” da sociedade de consumo. A ordem é ser sempre

jovem, esperto e conformadamente inconformado, com todas estas posturas

podendo ser adquiridas em qualquer magazine ou supermercado, bastando

para isso apenas comprar os produtos desta identificação: “Até mesmo vitrines

de lojas de departamentos apresentavam manequins que estavam com os

olhos vendados, amarrados e que tinham recebido um tiro, e as revistas de

que eu conhecia fechou, e os praticantes que procurei, ou não queriam dar entrevista ou cobravam (R$ 200,00) por ela. 9 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, Rio de Janeiro, Rocco, 1997, pág. 29 10 Como os tatuadores, as “gangues” americanas de motoqueiros que também tinham nas roupas de couro uma de suas marcas, entre outras.

86

moda enfatizavam a perversidade e a decadência” 11. O que antes possuía

uma autêntica carga de contestação, agora estava ao alcance de qualquer um

que se dispusesse a pagar por isso.

O mundo S&M viu nisso uma maneira de se legitimar perante outros

grupos sociais e assim garantir direitos à suas formas de expressão como

qualquer cidadão “normal”. Se de um lado houve uma banalização com

consequente perda de sua essência, tornando-se desde referência para moda

de alta-costura12 até o signo sensual de uma sexualidade mais “crua”13, por

outro contribuiu para a aceitação desta mesma cultura na face visível da

sociedade14.

Apesar de não haverem regras e códigos universais, alguns elementos

são comuns e/ou facilmente identificáveis entre os adeptos, assim como

formas de conduta e uma certa ética são também exigidas. Existem os códigos

de roupas, nos quais os vários grupos se reconhecem, como o couro ou o

jeans. Nos bolsos, pode estar um lenço que de acordo com a sua cor

significará uma preferência. Por exemplo: negro= jogos com dor, flagelação;

vermelho= penetração com os punhos15. Isto é conhecido como o “hanky

code”, estando normalmente submetido a outro código, o da “esquerda e

direita”, ou seja, se estes lenços estiverem do lado esquerdo indicam uma

pessoa “sádica”; do lado direito, “masoquista”.

No campo da ética, uma das palavras de ordem é a paradoxal

convenção do “seguro, sadio e consensual”. Apesar de serem termos difíceis

de definir e passíveis de muitas interpretações pessoais, eles podem ser

entendidos como: seguro - os praticantes dizem não correr riscos sem as

11 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, op. cit. pág. 45 12 Muitas das criações de moda de Gianni Versace e Jean-Paul Gaultier entre outros são declaradamente inspiradas na estética S&M. 13 Como a personagem “Tiazinha”, encarnada pela modelo Suzane Alves, que apenas por usar uma máscara negra, e um chicote é considerada “sadomasoquista”, gerando acaloradas discussões sobre a influência de ideais “perversos” sobre as crianças. Ora, qualquer olhar com um mínimo de atenção percebe que a “Tiazinha” aparenta para aquelas mais como uma versão feminina do “zorro” em langeries do que uma adepta do S&M. 14 Claro que este processo ainda está em andamento, e sua aceitação se dá muito mais no nível ideológico. Para uma pessoa declarar ser “sadomasoquista” e ainda assim ser vista como uma igual por parentes, amigos, no trabalho, nas universidades e nos círculos sociais “normais” vai levar um bom tempo. 15 Conhecida como “fist fuck”.

87

devidas precauções, inclusive com respeito a doenças (venéreas ou não);

sadio - os praticantes asseguram estar de posse de todas as suas faculdades

mentais e equilibrados intelectual e emocionalmente, justamente para não

serem confundidos com psicopatas ou maníacos sexuais; consensual - as

duas (ou mais) partes devem estar de acordo, não caracterizando-se nunca

uma “violação” do outro. Segundo preconiza esta ética, ninguém é obrigado a

fazer o que não quer.

Há também um outro “lema”: “machucar sem maldade (ou danos)”16.

Toda a agressividade física ou psíquica deve ocorrer dentro dos limites já

preestabelecidos pelos parceiros, visando sempre o prazer do outro. Para que

estas regras sejam mantidas é que muitos clubes de S&M não servem bebidas

alcoólicas nem permitem o uso de outras drogas. A maioria destas práticas já é

suficientemente perigosa, sendo necessário que os praticantes estejam

completamente conscientes para evitar possíveis problemas.

O momento da relação sadomasoquista em si é chamado de “cena”,

talvez para reforçar a idéia de que o acontecimento não é “real”, e sim um

“teatro”. Isto também é reforçado pelo termo “to play” para designar a

participação no ato, pois ele significa tanto jogar, quanto brincar ou interpretar.

Toda a nomenclatura é forjada para realçar as diferenças desta forma de sexo

com aquelas consideradas realmente perigosas como os crimes sexuais ou

torturas “verdadeiras”. Atores não são presos por assassinarem personagens

no palco.

As cenas devem sempre ser combinadas antes de postas em prática, ou

seja, os parceiros devem saber exatamente o que o outro quer e quais seus

limites. Esta é uma fase considerada fundamental: a chamada “negociação”, e

todo o bom (ou mau) andamento da cena será decidido aqui. Por isso este

período de conhecimento e reconhecimento deve ser o mais minucioso

possível, estendendo-se também para além do período da relação.

Neste momento também decide-se a “palavra de segurança”, um termo

que quando dito pelo masoquista (ou eventualmente pelo sádico) é sinal de

que algo está errado e a cena deve parar. Esta palavra pode ser usada tanto

16 No inglês: “hurt not harm”.

88

por se alcançar um limite físico ou psíquico como por um acontecimento

inesperado indesejável. Nos casos em que a pessoa está impossibilitada de

falar (por exemplo: amordaçada), procuram ter sempre um meio disponível já

combinado de comunicar uma emergência, seja por movimentos do corpo, seja

por campainhas ou outros métodos.

Um dos elementos formadores desta cultura e que a ajuda a se

caracterizar enquanto tal é uma das consideradas perversões “de base” por

Krafft-Ebing: o fetichismo. É ele quem vai delimitar grupos e moldar

preferências. Objetos como chicotes, cordas, couro, são como que a “marca

registrada” do S&M. Sua influência estende-se a todas as práticas e o faz

confundir-se com a própria concepção deste universo. Para muitos, o

fetichismo é o sadomasoquismo, embora com ressalvas: enquanto a primeira

forma, em seu estado “puro” não requer uma inter-relação - pois trata-se

normalmente de um objeto - na segunda o relacionamento é fundamental e

indispensável.

Não existe a necessidade de relação genital, pois toda a cena é sexo,

todo o relacionamento é sexualizado ao máximo, e o uso (ou não) dos

aparelhos reprodutores também esta sujeito a uma prévia combinação17. A

carga de energia emocional é o que conta em primeiro lugar. Por isso, um

adepto diz: “Uma boa cena não termina com orgasmo - termina com catarse”18.

Objetos e partes do corpo são exaltados a ponto de tornarem-se

símbolos quase místicos de adoração. Em torno deles, formam-se grupos e

“ritos”. O S&M é também um ritual. Não no sentido religioso, mas como um

sentimento de entrega, com comportamentos padronizados e uma forte atitude

de “devoção” para com alguém ou algo. No livro “A História de O” estes

elementos ficam claros nas proibições da personagem principal em cruzar as

pernas (para simbolizarem a pessoa estar sempre disponível) e no beijo ao

chicote que a fustigou após as sessões de flagelação. O importante é o “clima”

e o estado emocional que ele proporciona, utilizando-se para isto de vários

17 Neste sentido pode parecer uma volta ao que Freud chamou de “sexualidade infantil”, ou seja, a sexualidade ainda não genitalizada. Mas existe uma grande diferença: a cultura S&M exercita não a regressão a um estado anterior, mas a uma “genitalização” de todo o corpo, ou seja, um estado posterior da sexualidade. 18 PORTER, Roy e TEICH, Mikulás, Conhecimento Sexual, Ciência, Sexual, op. cit. pág. 73

89

aparatos visando aguçar e impressionar todos os sentidos físicos. Levando em

conta o caráter de moda e participando de uma “indústria” talvez para muitos o

S&M seja o que o Ocidente criou de mais próximo à uma Ars Erótica, como

desenvolvida nas culturas orientais.

Justamente este caráter “fetichista” do S&M vai moldar a sua “estética”

própria e um “modo de vida” característico. Toda uma inútil e infantil discussão

sobre a diferença entre “erótico” e “pornográfico” ficou desnorteada com o

surgimento de trabalhos nas mais variadas áreas artísticas - especialmente a

fotográfica - onde os produtos mais “estranhos” da imaginação erótica

ganharam um contorno artístico nunca antes imaginado. O antes “perigoso” e

“sombrio”, passou a ser considerado por um segmento da sociedade

contemporânea como belo e atraente, ainda que só para olhar. Os adeptos

vêem a sua prática como uma arte, e como tal acreditam que ela deva ser

apreciada, mesmo por aqueles que não participam deste mundo - os de

sexualidade “baunilha”. A dor no S&M seria além de prazerosa, “bela”.

Mas esta “arte” não é apenas algo a ser feito apenas dentro das

“masmorras” 19. Ela deve estar impregnada em todo o corpo e alma da pessoa,

ela deve ser um ”estilo de vida”. Claro que as práticas sadomasoquistas podem

ser feitas por qualquer um, independente de participar ou não da “comunidade

S&M”. São práticas universais, e após Freud, tornaram-se também “normais”

dependendo do grau com que são praticadas nos relacionamentos humanos.

Mas quero focar neste capítulo apenas aqueles a quem estes aspectos

adquirem uma tonalidade social mais forte, tornando-se uma “forma de ser e

de sociabilidade” da pessoa.

Assim, os corpos adquirem uma nova significação, sendo vividos não

apenas fonte de prazer mas - através de vários tratamentos erotizados (como a

tatuagem, as escarificações, os cortes de cabelo, espartilhos que “deformam” a

silhueta) - uma obra de arte20. A separação entre papéis “sádicos” e

“masoquistas” deve ser clara também no físico. Em alguns grupos somente os

primeiros podem possuir pêlos púbicos, enquanto os segundos devem ser

19 Gíria com que são chamados os locais de práticas S&M.

90

completamente depilados, para demonstrar sua vulnerabilidade. O que se

chama nestes meios de “Body Art” é justamente isto. Transformar o corpo

numa peça única, bela e sexual.

Mas torna-se necessário algo mais. É preciso “atitude”. O corpo deve

estar em harmonia e expressar as idéias e intenções da mente. Não basta

apenas ter um visual, é necessária uma postura S&M, que muitas vezes atua

no campo da política e dos direitos. O prazer deve ser respeitado e garantido

em suas inúmeras manifestações.

Os vários grupos existentes divergem entre si em muitos pontos

(existem as comunidades homossexuais, as heterossexuais, as “de couro” os

“adoradores de chicotes”, entre outras), mas todos lutam pelo direito de

exercer livremente sua sexualidade e formas de convivência sem serem

taxados de “doentes”, “loucos”, ou sofrerem processos e riscos de prisão.

Seriam o “body art” e a “atitude” formas de atualização radical da “estética da

existência” da qual Foucault já falava21?

A mulher tem um papel fundamental neste contexto. Excetuando talvez

os grupos de homossexuais masculinos, elas ocupam uma grande parte dos

papéis sádicos22. Conhecidas como “senhoras”, “rainhas” ou “dominatrix”,

colocam em cheque a visão clássica na qual o sadismo seria o exagero da

agressividade natural masculina. Aqui o predomínio do “macho” não faz

sentido. Embora afirme as diferenças entre o desejo masculino e o feminino, o

S&M não se interessa por questões de gênero, procurando até mais do que

bissexualidade. O alvo é a chamada “pansexualidade”, pois o sexo biológico

não é o importante, e sim a postura de acordo com os sentimentos e

tendências íntimas de cada um. O amor (e a sexualidade) não tem sexo. E

nem objeto fixo.

Os papéis de sádico ou masoquista seriam “descobertos” pela pessoa

de acordo com seus sentimentos, muito mais do que “escolhidos”. O indivíduo

se adapta ao papel, e não o contrário. É como a noção de introvertido ou

20 Além de transformar estas partes do corpo em novas “zonas erógenas”. 21 FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres, Rio de Janeiro, Graal, 1988 22 Na quase totalidade de propagandas de serviços S&M, a chamada é feita através da figura de uma sádica, pois normalmente visa atingir um público que aceita mais facilmente a “dominação” feminina do que o homossexualismo masculino.

91

extrovertido. Nós somos os dois, que vão se manifestar de acordo com a

situação, mas uma tendência será a dominante. No S&M é a mesma coisa: o

sadismo e masoquismo seriam possibilidades abertas a todos (graças à

Freud!) mas um destes aspectos é que vai dominar em cada pessoa, de

acordo com sua personalidade23. Por isso em alguns grupos de adeptos diz-se:

“ou se é um, ou outro”. Sadomasoquista seria apenas a relação, não a pessoa.

A descoberta dos papéis sexuais passa a ser também um processo de auto-

conhecimento.

Mas dentro de alguns grupos, existem aqueles que assumem ambos os

papéis, dependendo do tipo de cena ou do parceiro com quem estão jogando.

Além dos limites de gênero, os próprios papéis sexuais são uma questão de

relação e interatividade. Isto mostra o quanto o “outro” é importante. Muito das

cenas são feitas pensando nele, não em si mesmo.

E chegamos a um ponto central da cultura S&M: quem “comanda” toda

a cena é o masoquista. Ele é o foco central, pois seus limites serão os

norteadores de toda relação. O sádico na verdade é quem “serve” a ele, tendo

toda a liberdade de criar novas situações, mas sempre balizando-se pelos

desejos e sinais do que sofre. O sadomasoquismo é uma entrega de ambos.

Isto é fundamental para algumas das cenas mais arriscadas: os “jogos

com sangue”. Seja via perfuração, cortes ou chicotadas, o foco no suplício da

carne não é nunca levado aos limites “reais”. O sangue torna-se um elemento

de prazer graças à sua cor, consistência, volume, temperatura, brilho, e claro,

pelas sensações que as feridas causam na pele. Existem várias técnicas de

flagelação que são ensinadas em livros ou sites da internet, com indicações

das melhores posições para o açoite, dos lugares mais sensíveis, onde o

sangue brota mais fácil e abundantemente e dos tipos de chicotes necessários

para cada forma de dor específica24. A atitude de concentração na dor leva à

23 Poderíamos propor uma analogia ao processo de descoberta do “clown” nas artes cênicas. Clown (ou palhaço) não é exatamente um personagem, é mais uma versão “artística” de uma faceta - a ridícula - da própria pessoa, que só pode ser criada ao tomar conhecimento de suas tendências íntimas mais restritivas, e tensas (clown branco) ou mais subversivas, e relaxadas (clown augusto). Ex: O Gordo (branco) e o Magro (augusto). 24 Como o “Bull Whip” e o “Signal Whip” entre outros, sendo que cada um causa uma dor própria.

92

percepção de que ela não é única, mas várias, com diferenças entre si de grau

e qualidade25.

Mas estas “brincadeiras” devem estar sujeitas à cuidados, sendo um dos

mais comuns o uso de luvas de borracha esterilizadas, para inclusive manter

uma característica bastante encontrada nestes meios: o sexo sem “troca de

fluidos”. Após o final da cena ou mais especialmente, após o gozo,

normalmente os jogos de punição corporal devem cessar, pois tudo o que a

excitação crescente tem capacidade de anestesiar, depois deste momento

torna-se muito mais sensível e “frágil”, transformando a dor antes prazerosa

em algo desagradável. Há sádicos que estudam enfermagem ou adquirem

noções médicas apenas para um melhor aproveitamento destes jogos com um

risco menor de acidentes26.

Muitas pessoas ainda acreditam inocentemente, que o masoquista é

aquele capaz de sentir toda e qualquer dor como prazer. Ora como já disse

Jean Paulhan, desta forma “os homens teriam encontrado o que tão

assiduamente procuravam na medicina, na moral, nas filosofias e nas

religiões”27. O masoquista é aquele que, em determinada situação específica,

consegue erotizar a dor, fazendo-a perder muito de seu caráter assustador ao

mesmo tempo em que surge o prazer, e não alguém que tem um orgasmo indo

ao dentista fazer uma obturação sem anestesia28. A dor não é substituída pelo

prazer. Este segundo surge concomitante a ela, sendo a atuação da sensação

dolorosa fundamental, do contrário este tipo de relação perde o sentido.

Há uma visão de mundo sadomasoquista que procura cada vez mais a

legitimidade social, nem que para isso, seja obrigada a se “profissionalizar”.

Desta forma, voltamos ao campo da cultura de massas e dos direitos civis.

Com o surgimento nesta última metade de século de uma “indústria da

25 Da mesma forma que uma dor de cabeça não é igual a uma dor de cólica, embora ambas sejam genericamente consideradas como “dor”. 26 É curioso que com uma intimidade corporal e uma entrega tão grande entre os adeptos, em suas festas e reuniões o ato de tocar alguém sem o conhecer é considerado extremamente grosseiro e incômodo, tornando quem cometeu esta falta uma pessoa não grata no ambiente. 27 PAULHAN, Jean, A Felicidade na Escravidão in: RÉAGE, Pauline, A história de O, São Paulo, Círculo do Livro, 1992, pág.12

93

pornografia”, o que antes era uma tolerância ao sexo, tornou-se um negócio

lucrativo29. De duas décadas para cá, o número de produtos e

estabelecimentos ligados à sexualidade cresceu enormemente.

Sex shops, terapias sexuais, fitas de vídeos “pornográficos”30, sensuais

apresentadoras de programas infantis, parecem agora apenas um elemento a

mais no cenário cotidiano. Mesmo a área da propaganda rendeu-se aos apelos

estéticos sadomasoquistas31. Neste contexto, a prostituição em muitos lugares

passa a ser discutida como uma opção de trabalho. Apesar de muitos grupos

S&M diferenciarem esta do sadomasoquismo comercializado, ele torna-se

mais um no leque do mercado sexual, garantindo-lhe uma influência maior na

sociedade através do fator já analisado acima e que muitas outras

comunidades não possuem: uma estética.

Claro que o S&M anunciado e divulgado nos meios de comunicação de

massa são sempre versões mais amenas dos estilos e práticas destes

grupos32. As propagandas focam muito mais o caráter de “dominação” e

“submissão” ao invés de uma possível relação envolvendo dor física e suplícios

da carne. A humilhação psicológica tem mais apelo “popular” do que a agonia

do corpo. Mesmo um rito de dor como é originalmente o “piercing”, ao virar

“moda” perde o caráter de tortura erótica, tornando-se apenas um elemento

estético33.

28 O masoquista continua sentindo normalmente a dor (física ou psíquica) como “dor” mesmo, igual a qualquer “baunilha”, a não ser quando está em uma cena. 29 Existe até um nome para a pessoa que trabalha neste mercado, muito usado nos EUA e pouco no Brasil: o “pornógrafo”. 30 Segundo Nuno César Abreu em seu livro “O Olhar Pornô”, foram as fitas pornográficas que ajudaram a solidificação das bases do até então flutuante mercado das videolocadoras. 31 Basta ver por exemplo uma propaganda do jeans “Fiorucci” a alguns anos atrás, onde a imagem que aparecia era uma garota de costas, nua, com as mãos presas por algemas forradas de pelica cor de rosa. Cômico é que o jeans, ou outro produto qualquer associado à esta marca nem aparece - ou é citado - na foto. 32 Por não ser uma comunidade “única” e “uniforme”, existem os vários graus de intensidade das práticas que dependem das inter-relações entre os adeptos, que vão desde versões mais “leves”, até atos criminosos que são declaradamente considerados por seus membros como contrários aos princípios do mundo S&M. 33 O atual estilo de usar piercing entre os jovens surge muito da mistura da estética S&M com a oriental, especialmente a indiana. Da Índia vem a inspiração dos “brincos” no nariz (primeiro movimento desta moda). Do S&M, os usados nos mamilos e outras partes “íntimas”. Mas o curioso é que a prática dos piercings definitivos veio do rito sadomasoquista de perfurar o corpo da pessoa - especialmente as zonas erógenas - com agulhas ou outros objetos pontiagudos como uma forma de causar prazer - e dor.

94

Mas existe também o mercado de produtos eróticos voltado quase

exclusivamente para estes adeptos. Revistas e filmes especializados possuem

clientela garantida que incentiva a sua continuidade, mesmo sabendo que em

locadoras de vídeo “normais”, muitas destas fitas34 (ou fotos) seriam

consideradas “exagero”. Máquinas de “tortura”, chicotes, aparelhos para

suspensão dos corpos, roupas e peças de borracha, couro, veludo;

equipamentos para lavagens intestinais, tudo é facilmente encontrado em lojas

ou clubes próprios. O universo S&M com suas práticas e posturas está ao

alcance de qualquer um, tendo como único limite às camadas mais “centrais”

deste meio, a restrição econômica35.

Os “sádicos” ou “masoquistas” da cultura S&M não são os mesmos

estudados pela psicologia36. As diferenças são claras. Nunca se ouviu falar de

um estuprador que violente suas vítimas com base no “seguro, sadio e

consensual”. Embora muitos adeptos possuam realmente um passado com

abuso sexual na infância, e usem o S&M justamente para exorcizar estes

fantasmas37, integrantes do meio afirmam que estes casos representam

apenas uma parcela desta população, e vários nunca sofreram qualquer

problema deste tipo38. O que existe é a tentativa de criar uma “outra”

subjetividade, que não procura se legitimar - ou se justificar através das teoria

“oficiais” sobre a psicologia humana. Como diz um editor da revista Rubber

News, especializada em fetichismo de roupas e acessórios de borracha: “Não

importa o quanto possa ser verdadeiro... não interessa o quanto possa ser

importante na sua cabeça, NÓS NÃO VAMOS PUBLICAR qualquer carta que

rastreie o gosto pela borracha até o fazer xixi na cama da infância” 39.

34 Por falar em filmes, em muitos deles os atores masculinos, sejam sádicos ou masoquistas, aparecem com o membro ereto e o usam neste estado normalmente, contrariando muito algumas hipóteses psicológicas que alegam que os praticantes de sadomasoquismo são pessoas impotentes. 35 Uma das características desta cultura é que os acessórios vendidos são incrivelmente caros. Adereços de couro - ou imitações - sessões de sadomasoquismo e mesmo fitas de vídeo mais “pesadas” são compradas somente por pessoas de poder aquisitivo muito alto. O S&M ainda é para poucos - que podem pagar. 36 Ressaltando que a ciência, assim como a religião ou qualquer outra prática homogenizante, em matéria de sexo está sempre em descompasso e atrasada para com a vida cotidiana. 37 E com bons resultados segundo eles mesmos. 38 Não posso confirmar se isto é fato ou não. Encontrei este tipo de afirmação em vários sites na internet mas todas sem “provas” mais consistentes. 39 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, op. cit. pág. 158

95

Os crimes sexuais diferenciam-se das práticas destes grupos pela

característica inscrita no próprio nome: são “crimes”, enquanto que no

sadomasoquismo o respeito ao outro é considerado a essência da relação.

Mesmo assim, o DSM - IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos

Mentais da Associação Psiquiátrica Americana) ainda vigente, classifica o

“sadismo” e o “masoquismo” como “transtorno sexual”. Ele afirma que estas

“parafilias” devem o ser assim diagnosticadas quando os atos feitos sob estes

impulsos sejam “reais, não simulados”. Ora, partindo-se de uma noção onde as

cenas S&M são “simuladas”, a diferença já está clara - mesmo elas sendo

“reais” no sentido em que as torturas e as dores sentidas são “verdadeiras”.

Vê-se então que existe um sério problema quanto as terminologias

usadas. As palavras “sadismo” e “masoquismo” são criações da ciências

médicas e estas não abrem mão de seus inventos. Os adeptos as tomaram

para si, tanto por imposição exterior como por desafio e para assumir uma

diferença. E por estes termos remeterem diretamente à obras “libertinas e

libertárias” e não a trabalhos “normalizantes e punitivos”, são ainda mantidos

por esta cultura40, embora com um sentido muito mais restrito. O termo

“sadomasoquismo” foi assumido aqui em sua expressão mais plena, pois

sendo um jogo, este é realmente o caso onde um sádico necessita de um

masoquista e vice-versa.

Muitos doutores também afirmam serem estes comportamentos

patológicos somente quando são a fonte única e exclusiva de excitação e

desejo sexual do indivíduo. Ora, neste sentido seria possível então classificar

como “transtorno sexual” todos aqueles que não possuem nenhum “desvio”

erótico como fonte de excitação - se é que existem pessoas assim - tendo

como único e exclusivo estímulo para o ato, a reprodução da espécie e até a

negação do prazer41. Sugiro para esta nova perturbação sexual o nome

“baunilhismo”.

40 Que como foi afirmado acima, prefere usar estes termos para focalizar cenas que envolvem dor física, possuindo outras palavras para diferentes focos, ou mesmo para as posturas gerais, como é o caso de “Top” e “Bottom”. 41 Faz lembrar Shakespeare: “Se fosseis tratar a todos de acordo com seu merecimento, quem escaparia ao chicote?” - SHAKESPEARE, William, Hamlet, Príncipe da Dinamarca, São Paulo, Abril Cultural, 1978, pág. 248

96

Mas estes adeptos são os mesmos libertinos de Sade ou os supra-

sensuais de Masoch? No primeiro caso, novamente a resposta é não,

essencialmente pelo mesmo motivo já exposto. Os devassos do Marquês

buscavam o perigoso, o prejudicial e o não-consensual. O prazer deveria ser

arrancado a lágrimas, agonia e desespero, tendo somente como limite a

imaginação do torturador. As intenções são completamente diferentes, e a

única justificativa em fazer o mal é o prazer causado pelo ato, e não uma

questão de sentimentos compartilhados ou surtos psicóticos. Apesar destes

atuais “sádicos” possuírem toda uma “filosofia” que os incentiva e distingue,

esta não é voltada para o egoísmo e a destruição do outro, ou seja, não é a

mesma pregada por personagens como “Juliette”. Os praticantes de S&M

querem o respeito a todos enquanto que os libertinos procuram o crime e o

assassinato, não procurando respeitar nada nem ninguém.

Já no caso de Sacher-Masoch poderíamos dizer que ele foi um

precursor - ou o “fundador” na literatura - da cultura S&M. Vários dos

elementos encontrados em sua obra como a importância do clima na cena, a

“educação” do sádico por parte do masoquista, o fetichismo, a suspensão

física ou subjetiva, o “sexo sem sexo”, tudo isso é essencial para o universo

sadomasoquista. Mas existe uma pequena diferença. Masoch via este erotismo

e sexualidade como um refinamento do ser, conseguido apenas depois de

ultrapassar os “pobres” limites da arte, filosofia e experiência física, sendo esta

última quase uma consequência das duas anteriores. No S&M, procura-se uma

nova via para se vivenciar tudo isto. Não é necessário o refinamento da nossa

cultura, pois busca-se uma outra cultura.

Sade e Masoch possuem universos próprios que como já foi visto, não

se misturam. No novo campo de atitudes e prazeres conhecido como

sadomasoquismo, este nome vem da união criada pela psicanálise, não das

obras destes autores. A idéia de pares opostos e complementares foi

assumida de prontidão, afinal nesta cultura, um depende do outro para o jogo

funcionar. Porquê neste caso, isto é antes de tudo um “jogo”. As idéias do

Marquês são completamente distintas, enquanto as do “Cavaleiro” são

bastante próximas. Tempos diferentes, sensibilidades e idéias diferentes.

97

Neste escorregadio campo da violência unida ao sexo, sabe-se o quanto

ás vezes é tênue a separação entre o “consentido” e o “abusado”. Para

complicar ainda mais, ao entrar na indústria pornográfica, a demanda de

produtos está para servir a estes dois clientes, seja de forma legal ou não.

Assim, muitas vezes filmes de S&M “sadios, seguros e consentidos” podem ser

confundidos com os lendários “snuff movies”42, não tanto por

irresponsabilidade dos integrantes desta cultura, mas por uma falta de clareza

do que sejam exatamente esta proposta de valorização de uma sexualidade

diferente, baseada nos direitos civis, e o que sejam os crimes sexuais. Gostaria

apenas de ressaltar aqui, justamente esta tentativa da cultura S&M de por

meio da legalização e aceitação pública, tornar estes limites mais claros e

explícitos. Como disse Valerie Steele: “Muitas pessoas acreditam que a

pornografia induz à perversão e a violência sexual. Mas isso é como dizer que

música country causa adultério e alcoolismo”43.

A cultura sadomasoquista formou-se graça à resistência de indivíduos

que não quiseram ser patologizados - e muito menos criminalizados - forjando

assim um “estilo de ser” que se diferencia tanto daqueles de sexualidade

“normal”, quanto dos assassinos e doentes das ciências da psique. Ganhando

cada vez mais espaço na mídia e na cultura de massas, ela nos mostra ser

possível descobrir novas formas de prazer com o corpo, onde o processo de

erotização de nosso “lado escuro” e mesmo da morte podem ser formas até

mesmo de aumentar nosso tão tímido respeito ao outro. Com todos os riscos,

perigos e liberdades inerentes a estes processos. E sem jamais perder a

capacidade de amar. “O que farão comigo me é indiferente”, murmurou, “mas

diga-me se me ama ainda”44.

42 “Snuff movies” são supostos filmes em que as pessoas são realmente violentadas e mortas na frente das câmeras. Os boatos sobre eles surgiram à algumas décadas com o aparecimento de alguns filmes “underground” com imagens violentas que logo ficaram famosos por serem considerados “verdadeiros”. Eles rapidamente sumiram de circulação mas a “lenda” criada sobre eles manteve-se até hoje. Na verdade, ainda não se sabe se eles realmente existiram - ou existem - o que, convenhamos não é nada impossível. Existem bons filmes que tratam deste tema, como o espanhol “Morte ao Vivo” (Tesis, Espanha, 1996, dir. Alejandro Amenabar), ou o recente “8mm” (Eight Millimeter, EUA, 1999, dir. Joel Schumacher). 43 STEELE, Valerie, Fetiche - Moda, Sexo e Poder, op. cit. pág. 195 44 RÉAGE, Pauline, A História de O, op. cit. pág. 142

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Capítulo VI

O SADOMASOQUISMO À LUZ DE SADE

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“Aqui encontrareis apenas egoísmo, crueldade, devassidão e a impiedade mais

arraigada”1

Muito se fala sobre a sexualidade desenfreada encontrada nos escritos

do Marquês. Orgias, ingestão de fezes, masturbação com os mais variados

objetos, zoofilia e tudo o mais o que a imaginação é capaz de conceber pode

ser encontrado nestes textos. Mas o que torna Sade tão ímpar não é este

enorme desfile de situações de gozo. Sua assinatura está mais ligada a

introdução da crueldade e do crime no terreno do prazer sexual.

Passados dois séculos desde seus primeiros escritos, muitas das

reivindicações de Sade quanto à liberdade sexual parecem hoje coisas óbvias -

pelo menos no mundo ocidental. As mulheres lutam pelo direito ao prazer; a

pornografia virou um negócio legal e extremamente lucrativo: em qualquer

banca de jornal ou videolocadora podem ser alugadas fitas com cenas que vão

desde tortura dos órgãos genitais à zoofilia ou sexo anal. Até as críticas à

religião soam atualmente quase como uma curiosidade histórica.

Mas mesmo com a relativa facilidade com que vemos hoje em dia

grupos organizados de “minorias” sexuais como gays e lésbicas, felizmente

não vemos passeatas de organizações como a “Sociedade dos Amigos do

Crime” em manifestações pelo direito ao assassinato. A ferocidade e a

desumanização encontradas nos livros do Marquês ainda hoje são elementos

que chocam e horrorizam, apesar de toda violência ao nosso redor.

Neste sentido seus escritos são únicos. A violência neles contida não é

banalizada - como a nossa cotidiana, considerada mais como uma

“conseqüência”, seja de um processo psíquico ou social maior que o indivíduo.

Para nós, os atos de fúria são tidos muitas vezes como fruto de algo

“incontrolável”. Mas para o criador de personagens como o “duque de

Blangis”2, a hostilidade é proposital; a dor e a morte são um espetáculo único

que merece toda a atenção para melhor ser “apreciado”. Os suplícios, apesar

1 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, São Paulo, Círculo do Livro, sem data, pág 106

102

de freqüentes, jamais se tornam algo “comum” no sentido de causarem apenas

uma fraca impressão sobre quem os assiste. Em Sade, a agressividade e a

destruição são intencionais, tendo como causa e finalidade apenas o prazer

egoísta. Diferente de assassinatos por bens ou torturas políticas, a morte e o

suplício podem ocorrer nestes escritos apenas por capricho.

Os libertinos têm como objetivo a realização do Mal por si mesmo, sem

a utilização deste para algum ganho que não seja o prazer de desgraçar uma

vida: “Quando se ama o crime pelo crime, não se precisa de veículo”3. A busca

por um delírio sempre mais intenso gera uma destruição cada vez maior, na

qual a quantidade de vítimas está em proporção direta com a qualidade do

gozo.

Isto leva a um dos elementos mais controvertidos em Sade: a repetição.

Duramente criticado por isto4, muitos não notam que este artifício é

fundamental para causar no leitor o mesmo “tédio” sentido pelos libertinos

frente às torturas mais incríveis. Como as personagens, somos levados muitas

vezes durante o texto a pensar: “um estupro de novo? Não tem nada

diferente?”, isso entre várias cenas de crueldade extremamente “criativas”,

demonstrando como mesmo atos terrivelmente bárbaros podem cair numa

“rotina”, tornando-nos também “apáticos”.

Nossa imaginação é chamada a todo o momento a participar da criação

de novas formas de crime, se quisermos nos manter ainda sensíveis a tais

ferocidades. Para os adeptos da devassidão, o objetivo é justamente calar esta

sensibilidade denunciadora de nossa “humanidade”: “Assim é a indiferença

fatal que caracteriza, mais do que qualquer outra coisa, a alma de um

verdadeiro libertino”5.

2 Personagem de “Os 120 Dias de Sodoma”. 3 SADE. D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op. cit. Pág. 141. 4 Para exemplificar, cito Otto Maria Carpeaux em seu prefácio à “Justine ou Os Infortúnios da Virtude”: “Não é preciso ler todas as obras. O autor se repete muito. Sente tanto prazer na descrição minuciosa de cópulas normais e menos normais (...) que enfim, o leitor se cansa”. CARPEAUX, Otto Maria, Sade nosso contemporâneo, in SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, Rio de Janeiro, Saga,1968, pág. 9 5 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit, pág. 172

103

Conforme já foi dito, a libertinagem é um estado de espírito. E quanto

“espírito” é necessário para alguém se tornar, por exemplo, uma Juliette! Sade

discute em seus escritos uma questão muito em voga no século XVIII: o quanto

de “natural” existe no homem social? A educação pode mudar a natureza

humana?

Quanto à primeira pergunta, os próprios devassos do Marquês são um

indício. Eles procuram encarnar aquilo que na concepção libertina, a natureza

possui de mais “puro”, ou seja, a destrutividade. Enquanto filósofos como

Diderot e Rousseau apostam em uma “bondade inata” manifesta tanto através

dos atos “criadores” do mundo natural como da moral humana, os adeptos do

crime abominam esta suposta “humanidade”, considerada por eles como algo

artificial. O homem socializado, limitado por regras e leis, crente em forças

sobrenaturais é um ser incompleto, frágil. Sua sensibilidade é anêmica, as

capacidades são restritas, a inteligência grosseira: “Os infelizes se consolam

vendo iguais por perto”6.

Quase no outro extremo, estão aqueles não iludidos por apelos

religiosos ou modos de vida covardes. Estes, para Sade, são os libertinos. A

pedagogia não pode mudar as pessoas, mas pode reforçar o que elas têm de

“natural”, valendo isto tanto para os admiradores do vício como os da virtude.

O que parece ser a princípio um ingênuo determinismo biológico, torna-se um

dos pontos mais cruciais da filosofia deste autor: “não sabes até onde nos

arrasta esta depravação, a embriaguez em que nos lança, a comoção violenta

que acontece no fluido elétrico com a irritação produzida pela dor sobre o

objeto que serve a nossas paixões; que excitação sentimos com as dores

dele!”7

Não basta apenas a inclinação para o Mal, é necessário um longo

treinamento nos caminhos do crime. Espírito e o corpo devem ser

incansavelmente educados e testados. Uma sensibilidade física desenvolvida

não é de grande valia se a mente ainda estiver presa às convenções sociais.

Da mesma forma, toda a filosofia só tem sentido se puder ser colocada em

prática na carne das vítimas. A inteligência deve estar a serviço do desejo e da

6 SADE. D. A. F., Ciranda dos Libertinos, op.cit. pág. 257.

104

crueldade para estes serem melhor apreciados: “Em suma, um era brutal por

gosto, o outro por refinamento”8. O gozo e a destruição atuam na alma e no

corpo mutuamente.

Toda esta pedagogia não visa um distanciamento da condição natural,

mas um refinamento que permite o indivíduo voltar ao máximo a esta situação

onde o egoísmo e a crueldade predominam. Pois como diz Minski, o eremita

antropófago de Sade, “É necessário muita filosofia para me compreender”9.

O egoísmo caracteriza os devassos. Qualquer tentativa de interação

torna-se infrutífera, pois esta é uma ilusão criada pelas regras sociais. O outro

não passa de um instrumento para o prazer sadiano. Mesmo quando entre

camaradas de libertinagem, esta associação é passageira, podendo a qualquer

momento ser exterminada por um jorro inesperado de desejo.

Lembrando o “estado de natureza” hobbesiano10, é somente na

condição de completa ausência de vínculos que as personagens do Marquês

encontram-se de posse da mais completa sabedoria e prazeres libertinos.

Parentes, amigos ou autoridades nada representam além de vítimas em

potencial. Por isso, o incesto, a traição, e todas as formas de assassinato em

família (parricídio, matricídio, etc) podem e devem ser praticadas. Como

explica Noirceuil a Juliette, ao propor-lhe a morte da filha desta: “Será que você

é tão imbecil a ponto de ter sentimentos ou escrúpulos para com este nojento

produto dos testículos de seu abominável marido?”11.

Assim como cada indivíduo mostra-se único, estando física e

psiquicamente isolado das outras pessoas, os desejos e paixões também são

singulares, não podendo ser submetidos a limites externos. O coração de cada

7 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit, pág. 133 8 Idem, Ibidem, pág. 104 9 SADE, D. A. F., citado em MORAES, Eliane Robert, A Leitura na Alcova, in Revista da USP, nº 40, São Paulo, USP, Dez/ Jan/ Fev – 1998-99, pág. 119. 10 Mas que são substancialmente diferentes, pois para Hobbes, o “estado de natureza” é uma condição quase animal, sem vestígios de “cultura” no sentido de conhecimento e atitudes criadas e transmitidas em grupo, e para Sade, o “estado de natureza” a ser alcançado pelos adeptos do crime requer antes de tudo muita “cultura”, justamente para quebrar com todos os tabus, ilusões e preconceitos sociais. HOBBES, Thomas, Leviatã, Coleção “Os Pensadores”, São Paulo, Abril Cultural, 1979. 11 SADE, D. A. F., Juliette, citado em SHATTUCK, Roger, Conhecimento Proibido, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pág. 269

105

ser humano não pode ser atingido por outro; a única maneira de se viver com

dignidade surge então através da livre vasão de tudo aquilo considerado mais

impuro e, no entanto, mais “natural” em cada um de nós. “(...) apenas

sacrificando tudo à voluptuosidade é que o infeliz indivíduo conhecido como

homem, e lançado a contragosto neste triste universo, pode conseguir semear

algumas rosas nos espinhos da vida”12.

O egoísmo é antes de tudo a conseqüência lógica e extrema da tomada

de consciência de nossa condição solitária no mundo, sustentáculo essencial

para o surgimento da “apatia” sadiana: “não imagineis que assim a trato por

vingança, por desprezo, por nenhum sentimento de raiva; é só uma questão de

paixões”13. É este distanciamento para com tudo e todos que permite ao

devasso sentir uma maior intensidade em seu gozo: “é absolutamente inútil

que o gozo seja partilhado para ser intenso”14 .

Qualquer tentativa de comunhão com o parceiro é considerada uma

divisão e uma conseqüente diminuição de sua parte no deleite. Assim sendo,

como é possível a formação de um “par” nas obras de Sade?

Para exemplificar melhor como funciona esta relação, vamos analisar

algumas passagens de um dos mais conhecidos e importantes livros de Sade:

“Justine – Os Sofrimentos da Virtude”. Este texto foi reescrito três vezes, e a

cada versão novas situações eram acrescentadas, além de um maior

desenvolvimento das anteriores. Pela ordem de criação, são elas: “Les

Infortunes de la Vertu”; Jutine, ou les Malheurs de la Vertu” e “La Nouvelle

Justine, ou les Malheurs de la Vertu”15.

Conforme o autor, o primeiro texto foi “concluído ao cabo de quinze dias,

8 de julho de 1787”16 na Bastilha, mas foi a segunda versão que deu fama à

obra, sendo esta o primeiro livro de Sade editado em vida (1791). Neste

trabalho utilizo apenas as duas primeiras versões.

12 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit. pág. 6 13 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 163 14 Idem, Ibidem, pág .138 15 No Brasil traduzidos comumente como “Os Infortúnios da Virtude”; “Justine, os Sofrimentos da Virtude” e “A Nova Justine”. 16 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit., pág. 158

106

O enredo de ambas narra a trajetória da jovem Justine que, ao ver-se

abandonada no mundo, tenta orientar sua conduta pela virtude e religião,

encontrando como pagamento apenas a desgraça e a dor, enquanto quem

segue pelo caminho do vício e do crime alcança todo tipo de prosperidade17.

Utilizando-se do velho argumento moral de que para se combater o Mal é

necessário antes conhecê-lo18, o Marquês defende suas concepções tendo

como base o ponto de vista da vítima. A infeliz Justine, por tentar manter-se

sempre delicada, justa e devota, vai sofrer os mais atrozes tormentos físicos e

morais vindo de pessoas para as quais o crime é não apenas um modo de

vida, mas uma opção ética: “nada melhor para atrair a felicidade do que

conceber um crime, e parece que só aos malfeitores é que o caminho da

ventura se abre facilmente”19

As desgraças desta jovem são exemplares para a discussão da

dinâmica torturador/ torturado, primeiro porque Justine é sempre uma vítima,

seja dos libertinos ou das circunstâncias da vida. Ela não possui controle

algum sobre as situações e qualquer ideal de liberdade não passa disso: uma

quimera, um sonho inalcançável.

Em segundo lugar, esta personagem é uma das poucas escravas

possuidora de voz e argumentos para discutir com seus algozes. “Entremos em

detalhes, concordo em fazer isso: a inteligência que reconheço em ti, Thérèse,

possibilita-te entende-los”20 diz Clément, monge beneditino que durante algum

tempo vai abusar terrivelmente de Justine. Um reconhecimento deste tipo

vindo da parte dos libertinos é quase um “elogio”; algo raro de encontrar nos

textos de Sade.

Aqui, o discurso da bondade é trucidado pelo do crime. O sustentáculo

do amor e da compaixão mostra-se tão inconsistente e frágil, quanto o da

destruição e violência aparece sólido e triunfante. Toda a argumentação de

17 Como por exemplo Juliette, irmã de Justine e uma das libertinas mais ferozes da obra do Marquês. 18 “O vós que derramastes lágrimas pelas desditas da Virtude; vos que lamentastes a desditosa Justine (...) Possais convencer-vos como ela de que a verdadeira felicidade só existe no seio da virtude” SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 259 19 SADE, D. A. F., Justine ou os Infortúnios da Virtude, op. cit., pág. 59 20 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 134. Justine é uma narração em primeira pessoa feita pela própria personagem que, para não ser reconhecida, esconde seu verdadeiro

107

Justine é sistematicamente desmontada e anulada em favor de uma razão

egoísta e tirânica. Também os sentimentos religiosos são escurraçados

através do medo e da fúria de caprichos assassinos, devoradores tanto da

matéria sensível dos corpos como da esperança das mentes. As próprias

orações feitas por ela revelam-se apenas lamentos de desespero, sem a

menor eficácia, seja para alterar situações ou mesmo acalmar o espírito: “Oh

meu Deus! – gritei – mais uma vez quisestes que uma inocente fosse vítima do

culpado”21.

Justine tem, em sua história de vida, o maior exemplo a favor do vício e

do ateísmo. Mesmo a natureza parece confirmar que “as atribulações e as

dores devem ser o terrível apanágio da virtude”22, pois não apenas o destino

desta jovem é uma sucessão de desventuras como ao final da obra, quando

tudo parece resolvido e o caminho da felicidade começa a se esboçar, um raio

vindo de uma nuvem de tempestade atravessa seu corpo, fulminando-a. Para

Sade, nem o mundo natural perdoa a ilusão da bondade.

A natureza descrita pelo autor não é a da harmonia e cooperação23, mas

algo caótico povoado por animais selvagens furiosos e tormentas atmosféricas.

É este universo alheio às desditas humanas quem dá o exemplo de uma busca

constante pela destruição, onde o devasso é o único “homem natural”

verdadeiro: “- Mas o homem de quem falais é um monstro. – O homem de

quem falo é o homem da natureza”24. Neste ambiente hostil e perigoso, a

crença em quimeras filosóficas e atitudes de mansidão para com a vida

caracterizam somente as vítimas. Como bem observou Octavio Paz, o libertino

do Marquês “não é o bom selvagem, e sim uma fera pensante”25.

Outra marca desta infeliz heroína é ser a encarnação de todas as

virtudes sociais esperadas de uma mulher: ingenuidade, beleza, bondade,

bons modos, pudor, delicadeza, religiosidade, compaixão e pureza de corpo e

nome e usa um substituto. Na primeira versão ela utiliza o pseudônimo de “Sofia”, enquanto na segunda, “Thérèse”. 21 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 68 22 Idem, Ibidem, pág. 115 23 Como ainda parece ser a de muitas pessoas dos meios urbanos hoje em dia, que idealizam uma vida “natural”, onde animais selvagens estão em “harmonia” com os homens e as doenças (como malária ou febre amarela) não existem. 24 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit. pág. 142

108

alma. Ou seja, tudo o que os adeptos do crime desejam de uma escrava pois,

quanto maior as violações nela infringidas, maior seu deleite: “São os

desregramentos delas que nos servem e que nos divertem; porém sua

castidade não poderia interessar-nos menos”26. Também o grande elemento

de valorização social da mulher, a maternidade, é considerado um crime e

punido violentamente pelos monges do Convento de Sainté-Marie-des-Bois.

A ruptura com o universo social proposta por Sade é tão grande que

mesmo os locais onde as vítimas vão passar a viver devem ser isolados. Seja

no interior de castelos, conventos, florestas ou calabouços, os infelizes

escravos afastam-se de qualquer contato com o mundo externo e sobrevivem

somente para servir aos senhores: “A partir deste instante, não sois portanto

mais deste mundo, já que podeis desaparecer dele pelo mais simples ato da

minha vontade”27

E isto indica algo fundamental na relação senhor/ escravo: o prazer do

libertino necessita de vítimas. Os quatro monges do convento apreciam tanto

causar dor física quanto recebê-la. Eles podem chicotear ou ser chicoteados

na busca do deleite: “Se o consultardes, confessará ser cruel? Nada fez que

ele próprio não suporte”28. Poderiam muito bem utilizar somente a si mesmos

em suas orgias, mas para estas serem completas, é imprescindível a presença

de escravos feridos e angustiados, pois os libertinos possuem um limite para a

capacidade de sentir dor, mas não para causá-la.

Os devassos ferem-se até quando as sensações provocadas geram-

lhes prazer, não mais que isso. Mas com as vítimas não existem limites,

podendo – e devendo maltratá-las ao extremo. Neste momento, é a dor do

escravo que vale o gozo. Da mesma maneira que o libertino banha-se em suor,

saliva e esperma, o corpo do supliciado desfaz-se em gritos, gemidos, lágrimas

e sangue. O organismo sensível dos sacrificados é a matéria-prima das orgias

sadianas, pois é nele que a fúria ilimitada se exercerá.

25 PAZ, Octavio, Um Mais Além Erótico: Sade, São Paulo, Mandarim, 1999, pág. 59 26 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit. pág. 20 27 Idem, Ibidem, pág. 164 28 Idem, Ibidem, pág. 112

109

Não é a sensação de dor que vai distinguir quem está de um lado ou de

outro da tortura, mas sim a capacidade de sentir prazer ou terror com isso. Os

libertinos somente alcançam o gozo quando as vítimas sentem não apenas a

agonia da laceração das carnes, mas o sofrimento do espírito, a miséria de

uma vida reduzida a objeto descartável. É o desespero do outro a causa do

prazer nos adeptos da devassidão: “Ninguém pode imaginar as angústias de

um desgraçado que espera o suplício a qualquer instante, de quem tiraram a

esperança e que não sabe se aquele momento em que respira será o último de

sua vida”29. “pois não é só a obrigação de satisfazer os desejos desenfreados

desses devassos que faz o suplício de nossa vida. É antes a perda de nossa

liberdade, - a maneira brutal como nos tratam nesta infame casa...”30

Só através da ferocidade e da destruição o deleite pode ser

conquistado. É este suplício do corpo e da alma que vai estimular os sentidos

dos carrascos levando-os ao clímax, pois afinal estes possuem o organismo e

a mente já educados para tal intento. Justine ilustra bem isto ao dizer: “quanto

mais vivas são minhas dores, mais intensos parecem ser os prazeres de meu

algoz”31. Uma vontade livre de crenças absurdas, preconceitos sociais e

ignorância filosófica parece ser algo que apenas os libertinos conquistaram.

Todas as outras pessoas são então, escravas.

A transgressão de mentes satisfeitas unicamente com a infelicidade de

outros, une-se às atrocidades físicas mais violentas e altamente sexualizadas,

criando um estado de “ferocidade racional” na qual qualquer traço de

humanidade parece não mais encontrar lugar. Citando Juliette: “O crime não é

temível quando se está fodendo”32. A lubricidade do corpo e da mente pode

destruir qualquer barreira psíquica ou física que impeça os devassos de

vivenciar prazeres criminosos.

Os libertinos são antes de tudo carrascos, e assim, necessitam de

vítimas: “a dor dispõe ao prazer”33; mas estas não devem em hipótese alguma

assumir uma postura ativa. Apesar de dependerem dos escravos, não existe o

29 Idem, Ibidem, pág. 180 30 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 90 31 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit. pág. 249 32 SADE, D. A. F., Juliette, citado em SHATTUCK, Roger, Conhecimento Proibido, op. cit., pág. 269

110

“jogo” entre algoz e supliciado no sentido de uma “troca”. Isto só é possível

para os devassos, pois entre eles e os “objetos de prazer” existe um abismo

sensorial, intelectual e claro, intencional.

Não podemos nos esquecer: os senhores falam apenas a “seus” pares,

ou seja, a todos aqueles que assumem a lubricidade como estilo de viver – e

de matar. Às vítimas não contam em momento algum, pois são instrumentos

descartáveis, não elementos individuais determinantes. É a esse seleto grupo

de adeptos do deboche que Sade dedica o livro “A Filosofia na Alcova”, sem

referir-se uma vez sequer aos sacrificados em nome dos prazeres cínicos:

“Voluptuosos de todas as idades e de todos os sexos, é a vós apenas que

ofereço esta obra (...) Mulheres lúbricas, que a voluptuosa Saint-Ange seja

vosso modelo (...) Donzelas cerceadas durante um tempo demasiado longo (...)

imitai a ardente Eugênia (...) E vós, amáveis debochados, vós que, desde a

juventude não tendes outros freios senão vossos desejos nem outras leis

senão vossos caprichos, que o cínico Dolmancé vos sirva de exemplo”34.

Se, por algum momento, o carrasco preocupar-se com a condição da

pessoa sacrificada, ele já não pode mais ser considerado um verdadeiro

libertino, pois está dando uma atenção indevida a quem, a princípio, não

merece nenhuma.

A concepção de uma “dupla” na qual um castiga e outro é castigado só

é possível pelo olhar normalizador e externo da modernidade, não pela visão

do libertino. Ao promover a unificação de gostos, corpos e comportamentos,

tendo um ideal de “igualdade” extrapolando o campo jurídico/ social e

penetrando no psíquico e biológico35, a cultura burguesa pôde criar uma

“verdade científica” a ser aceita, unida a um único modelo ideal de existência a

ser almejado. Logo a diferença entre estilos de vida e visões de mundo

existente entre um nobre cruel e um camponês violentado foi gradualmente

substituída pela noção de um perverso e uma vítima, ambos originados de uma

mesma matriz subjetiva.

33 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 88 34 SADE, D. A. F., A Filosofia na Alcova, op. cit. pág. 5 35 Igualdade claro, para os europeus brancos, do sexo masculino e adultos, ou seja, aqueles que criaram nossa noção de “ciência” como a conhecemos ainda hoje.

111

Para os devassos do Marquês, apesar de ser o elemento determinante

do prazer sadiano, a vítima é tratada apenas como um instrumento, algo como

um acessório para a masturbação; mas sem ele, o gozo não seria completo.

Suas orgias sangrentas estão muito mais para deleites individuais em que se

viola corporalmente o outro do que “relações” sexuais: “- Ó meu pai! esse lugar

é tão delicado, ides matar-me. – Pouco me importa, desde que eu me

satisfaça”36

Por isso outro elemento fundamental é o não consentimento por parte

dos supliciados. A dor destes aliada ao desespero, serve de base para o

regozijo das personagens do Sade: “teria duvidado do meu sucesso sem os

gemidos da vítima, mas meu triunfo está assegurado, pois cá está o sangue e

o choro”37. O que separa carrascos de vítimas não é a distinção entre quem

infringe a tortura e quem agoniza, pois já foi demonstrado como os libertinos

podem também gozar ao serem flagelados. A diferença está na permissão

intencional de ser torturado e com isto sentir prazer.

O limite entre estes dois universos é claro. Tão absurdo quanto um

devasso que se preocupa com as conseqüências dolorosas de seu crime

perdendo assim a capacidade de deliciar-se, somente uma vítima entregando-

se por iniciativa própria: “Eles querem estar certos de que os seus crimes

arrancam lágrimas, mandariam de volta uma moça que se entregasse a eles

voluntariamente”38.

Tal atitude de entrega voluntária, somente faria sentido se tivesse como

objetivo o alcance de algum prazer e, desta forma, a pessoa só poderia ser um

adepto do crime. Graças à educação e treinamento, distingue-se quem está de

qual lado: “mesmo uma mulher, numa escola semelhante, logo perdendo toda

a sua delicadeza e todo o recato de seu sexo, não poderia, segundo o exemplo

de seus tiranos, tornar-se senão obscena ou cruel”39. Às vítimas falta a

capacidade, a sensibilidade física e mental. Falta-lhes “espírito”. Como diz a

36 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 132 37 Idem, Ibidem, pág. 150 38 Idem, Ibidem, pág. 124 39 Idem, Ibidem, pág. 145

112

libertina Dubois ao tentar converter Justine ao vício: “tu amas mais do que eu

pensava a tua infelicidade”40.

Os senhores devem causar a maior dor possível: “nunca fustiguei

alguém que me proporcionasse tanto prazer"41; assim como os escravos

devem senti-la da maneira mais agonizante como testemunha Justine: “parecia

que me arrancavam os membros e que meu estômago, que estava sem apoio

e pendia pelo peso para o chão, iria abrir-se a qualquer momento; o suor

corria-me da fronte, eu existia apenas pela violência da dor“42, o que, por sua

vez excita ainda mais os devassos: “o sangue brota... Rodin fica extasiado;

deleita-se na contemplação dessas provas gritantes de sua ferocidade”43.

É difícil conseguir falar em uma “dupla” na dinâmica carrasco/ vítima

descrita pelos textos do Marquês, pois apesar da absoluta dependência dos

primeiros pelos segundos, todo o foco do prazer é centrado apenas nos

algozes. O “par” sadiano é, para o libertino, um só: ele mesmo.

40 SADE, D. A. F., Justine ou Os Infortúnios da Virtude, op. cit. pág. 140 41 SADE, D. A. F., Justine – Os Sofrimentos da Virtude, op. cit., pág. 131 42 Idem, Ibidem, pág. 54 43 Idem, Ibidem, pág. 80

113

114

Capítulo VII

O SADOMASOQUISMO À LUZ DE SACHER-MASOCH

115

“Em minha opinião, você é um grande corruptor de mulheres”1

Se o marquês de Sade interessa-se por vítimas, Sacher-Masoch deseja

escravos. Seu foco não está nos senhores, mas nos servos. No fundo, homem

e mulher procuram alguém para educar e depois, servir. A própria Wanda2

confirma isto: “Não um outro escravo, já estava farta do primeiro: um senhor. A

mulher precisa ter um senhor e adorá-lo”3. Para analisar o “par” dominador/

submisso no texto deste escritor austríaco, utilizarei exclusivamente o livro “A

Vênus das Peles” pelos mesmos motivos já expostos no capítulo II.

Os escravos necessitam de alguém sensível e inteligente, que não

apenas esteja livre de convenções sociais preconceituosas, mas seja capaz de

dedicar sua vida a um envolvimento sensual desconhecido e intenso. Assim

como consideram-se especiais, procuram por uma companhia que seja única:

“O senhor é, de fato, um homem fora do comum; seria preciso ir muito longe

para encontrar outro igual”4. O tirano é quem deve estar à altura do servo.

Nosso autor busca as mulheres refinadas, cultas, que sabem utilizar-se

de artifícios para realçar sua beleza natural: “Minha austeridade catoniana,

meu misoginismo, cediam lugar a um sentimento estético elevado a seu mais

alto grau (...) eu jurava que não iria prodigalizar minhas emoções com um ser

vulgar, mas sim reservá-las para uma mulher ideal, ou, talvez, para a própria

deusa do amor”5. O homem supra-sensual de Sacher-Masoch submete o

prazer à estética. Esta “supra-sensualidade” é também o resultado de uma

sensibilidade e um intelecto desenvolvidos. Como os corpos não devem ser

mostrados explicitamente, mas apenas insinuados, os adereços que os

acompanham merecem todo o destaque. Eles vão compor uma nova forma

ajudando a criar um “ambiente” propício.

Chicotes, peles, sapatos de salto ajudam a esconder a nudez e a revelar

a essência da mulher que os veste: “Ela mostra o pé sobre a bainha de cetim

1 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 189 2 Wanda personagem de “A Vênus das Peles”, não a esposa de Sacher-Masoch. 3 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 286 4 Idem, Ibidem, pág. 186 5 Idem, Ibidem, pág. 187

116

branco e eu, louco supra-sensual, neles coloco meus lábios”6. Igual a um

quadro raro, a imagem feminina deve transparecer uma beleza sobrenatural.

Não mais alguém simples em sua vida cotidiana, mas uma deusa, uma Vênus:

“Via na sensualidade algo sagrado (...) na mulher e sua beleza, algo divino”7.

Sem este encanto originado de um delicado sentimento estético, o prazer

torna-se grosseiro e apressado.

Mas toda esta beleza cria uma distância entre o admirador e a pessoa

adorada, tornando-a fria e impenetrável. O escravo está ali apenas para

testemunhar os encantos de sua senhora, mantendo-se no lugar inferior que

lhe é de direito. Na guerra dos sexos, a fêmea é o gênero vitorioso, pois só ela

mantém ainda a comunhão com a natureza: “o homem aceita sempre os

princípios, ao passo que a mulher segue sempre os seus impulsos”8. Ambas,

mulher e natureza, são extremamente cruéis. A relação dominador / submisso

em Sacher-Masoch expressa também uma “ordem natural”: “A natureza não

conhece a estabilidade nas relações entre homem e mulher”9.

O silêncio, a frieza e o distanciamento são a manifestação de algo

superior e imutável, encarnado na figura feminina: “E vi a mulher cruel como

sendo a natureza, que afasta de si aquilo que já teve serventia e de que já não

precisa; enquanto que para o homem são verdadeiras delícias os maus tratos,

a própria morte dada por uma mulher”10. Por esta proximidade com o lado mais

“selvagem” da vida, a mulher mostra-se o líder e algoz ideal. Para este autor,

justamente pelos sexos não estarem no mesmo nível, a relação mais legítima

entre eles é a de servidão.

Sendo o feminino o gênero mais espontâneo, também revela-se o sexo

mais “livre”, maleável, ou seja, mais apto a ser “educado” por um escravo. A

mulher que a princípio não deseja tornar-se uma tirana, é intensiva e

constantemente treinada para esta função até adquirir o gosto pela vilania:

“devo confessar-lhe algo. Você corrompe meu sonho; meu sangue ferve, e

começo a ter prazer nisso tudo”11. Mas o servo determina a quantidade e a

6 Idem, Ibidem, pág. 245 7 Idem, Ibidem, pág. 191 8 Idem, Ibidem, pág. 207 9 Idem, Ibidem, pág. 169 10 Idem, Ibidem, pág. 192 11 Idem, Ibidem, pág. 195

117

qualidade do sofrimento imposto. Não por dizeres explícitos, mas através do

conhecimento adquirido dos gostos e prazeres do subjugado.

O comando está nas mãos do escravo, pois o senhor deve orientar-se

pelos desejos e limites daquele: “mas tentarei isso por ti, Severino, pois te amo

como nunca amei ninguém”12. O carrasco na verdade é uma cria da vítima. Um

torturador real, tendo em vista antes o seu prazer do que o do escravo, não

apenas demonstra ser um perigo, mas uma decepção. Ele não pode ser

treinado e, já tendo gosto próprio, fracassa o projeto de educá-lo na mesma

sintonia do sacrificado.

Assim, para assegurar que o dominador corresponda aos anseios do

súdito, os contratos são imprescindíveis. Através deste pacto, muitas vezes

literal, o submisso garante a fidelidade do algoz, certificando ao mesmo tempo

a sua devoção a ser retribuída. A única maneira de este trato ser rompido

mostra-se justamente pela “desistência” do escravo. Quando o tirano

ultrapassa os limites impostos ou mostra-se incapaz de cumprir com as

“obrigações” cruéis, não há mais sentido na relação: “Enquanto era apenas

impiedosa e cruel pude ainda amá-la, mas está se tornando agora vulgar. Não

sou mais o escravo que se deixa pisotear e chicotear. A senhora mesmo

devolveu-me a liberdade e abandono esta mulher que só posso odiar e

desprezar”13. Nestes acordos, não é o dominador que compra ou conquista a

vida do sacrificado, mas este quem a oferece, como um presente após um

longo processo educacional.

“Tanto o seu corpo, sua alma me pertence também e, mesmo lhe

causando grande sofrimento, você deverá submeter à minha autoridade suas

sensações e sentimentos (...) Sua honra me pertence, assim como seu

sangue, seu espírito, sua força de trabalho. Eu sou sua soberana, senhora de

sua vida e de sua morte”14. Para assumir um tal compromisso, faz-se

necessária muita cumplicidade. Mesmo com trechos tão absolutos como estes

- atribuídos a um contrato de Leopold Von Sacher-Masoch com Wanda de

Dunaiew - parecendo impedir qualquer escape, é unicamente o consentimento

do cavaleiro que irá fazê-lo assinar tal papel.

12 Idem, Ibidem, pág. 196 13 Idem, Ibidem, pág. 283 14 Idem, Ibidem, pág. 310

118

Ainda que seja um servo de “corpo e alma”, existe uma opção íntima

que o faz aceitar tal sujeição, mesmo sob o jugo de um chicote que já não lhe

causa prazer: “Pensei por um instante em me vingar, matá-lo. Mas eu estava

preso àquele miserável contrato; nada podia fazer senão manter minha palavra

e trincar os dentes”15.

O contrato também garante a continuidade de um dos elementos

principais encontrados na relação entre as personagens Séverin e Wanda: o

clima, a atmosfera erótica. Para que esta possa ser criada, são necessárias as

roupas únicas, gestos próprios e até mesmo locais especiais: “De que me

adianta ter um escravo onde todo mundo o tem?”16 O ambiente deve ser

cuidadosamente preparado visando um aumento na intensidade da cena, mas

o foco gerador de tal tensão está na atitude da dominadora, que deve mostrar-

se autoritária correspondendo às expectativas: “Quanto mais me maltratas

como acabas de fazer, mais inflamas meu coração e embriaga meus

sentidos”17.

Na espera por este tipo de especial atenção, o escravo alimenta seu

prazer. Como em um rito, cada gesto é medido, podendo significar o chamado

para algum serviço ou mesmo um castigo: “Que encanto há nesta dúvida,

neste temor!”18 O clima de envolvimento entre tirano e servo não se restringe

apenas aos momentos de presença física, mas está presente também durante

a ausência dos corpos. Neste momento, o tempo “real” está suspenso,

passando a existir somente o prazeroso tempo subjetivo. O dominado sente-se

em um universo estático prolongando seu deleite, entregando-se a expectativa

de um chamado que pode vir a qualquer hora: “- Deves descer num instante

aos aposentos da senhora. – Pego minha touca, vou tropeçando pelos degraus

que me separam do primeiro andar e chego afinal felicíssimo diante da porta e

bato”19.

Masoch demonstra uma concepção de intimidade bastante comum à

aristocracia, embora estranha ao mundo burguês que se alastrava rapidamente

15 Idem, Ibidem, pág. 299 16 Idem, Ibidem, pág. 213 17 Idem, Ibidem, pág. 232 18 Idem, Ibidem, pág. 214 19 Idem, Ibidem, pág. 230

119

à sua volta. Como fica claro em “A Vênus das Peles”, é necessária muita

confiança e capacidade de entrega para o tipo de relacionamento proposto

neste livro. Mas esta “intimidade” não pressupõe uma abertura para um trânsito

fácil no mundo subjetivo nem na vida particular; concepções estas que

formarão um dos traços principais da “vida interior” moderna20: “Proíbo-lhe

qualquer familiaridade”21.

A verdadeira “natureza” da pessoa estava claramente à vista através

das roupas, posturas, maneiras de falar e agir. A “diferença” entre nobres e

plebeus, mostrava-se de maneira explícita e direta: a aparência era a

expressão da “essência”. São os burgueses que vão vestir roupas elegantes e

aprender gestos refinados para “parecerem” educados. Os nobres, dentro da

sensibilidade e da cultura européia dominante desta época, não precisavam

parecer, pois já “eram” educados22.

Como a “subjetividade” estava centrada na formalidade das relações

sociais e afetivas, em que estas apresentavam um caráter rígido em que

homens, mulheres, escravos e senhores conheciam bem seus deveres e

obrigações, qualquer tentativa de penetrar em uma “natureza interna” além da

já mostrada e demonstrada soava como uma violação, uma grosseria. Os

desejos e sonhos eram mais um segredo a ser mantido do que um mistério a

se desvendar23.

Assim chegamos a um ponto fundamental da relação dominador/

escravo: o limite. Da mesma forma que guerreiros mantêm uma distância

mínima para com seus pares ou inimigos, amantes devem igualmente

sustentar esta tensão geradora de mistério e angústia, mas também de desejo

e prazer: “Que delícia, se fores tão graciosa a ponto de permitir alguma vez ao

escravo beijar os lábios de que depende sua sentença de vida ou de morte!”24

20 Surgindo disto até algumas ciências que visarão a devassa do mundo bio-psíquico para melhor “curá-lo” - como a psicologia, a psiquiatria e a psicanálise. Para nós modernos, não existe nenhuma “intimidade” tão sagrada que uma ciência qualquer não possa fazer um diagnóstico completo. Sobre este tema, ver GORDON, Richard, A Assustadora História da Medicina, Rio de Janeiro, Ediouro, 1995 e do mesmo autor, A Assustadora História do Sexo, Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, além de FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber, op. cit. 21 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 222 22 RIBEIRO, Renato Janine, A Etiqueta no Antigo Regime, São Paulo, Brasiliense, 1983 23 Para esta discussão, cito novamente FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber, op. cit. 24 SACHER-MASOCH, Leopold Von, A Vênus das Peles, op. cit., pág. 210

120

A excitação parece ser a ponte imaginária que faz a ligação entre os seres

desiguais.

Este é mais um dos motivos porque o processo de educação do senhor

mostra-se tão importante. Sem este esforço pedagógico, o algoz poderia,

intencionalmente ou não, ultrapassar barreiras que anulariam o prazer do

escravo e transformariam o que deveria ser deleite em terror. O erotismo da

“Vênus das Peles” reside neste jogo com os limites. Os extremos devem ser

testados e trabalhados até onde seja possível expandi-los, alcançando desta

forma uma nova fronteira: “só que tenho a diabólica curiosidade de saber até

onde chega tua resistência”25.

Desta maneira, a participação deste outro na construção do prazer do

escravo torna-se patente: “Sinto, porém, a mágica armadilha que sua

extraordinária e verdadeira beleza estende para mim. Isto não é uma atração

do coração que nasce em mim; é uma sujeição física que se faz lentamente,

mas, pela mesma razão, completamente”26. O dominador deve atuar

constantemente de forma ativa nesta dinâmica, trabalhando sempre na

delicada e sutil região limite entre a humilhação prazerosa e a atitude ofensiva,

entre a dor que causa deleite e a agressão que fere a confiança.

Realmente pode-se falar de um “par” neste tipo de relação, embora o

controle final da situação esteja nas mãos de um só, o servo, pois é ele quem

determina os limites, permitindo-se receber as dores no corpo e na alma,

tirando ou conferindo poder ao senhor. Existe uma cumplicidade forjada às

custas de um processo pedagógico gerenciado pelo escravo: “Faça de mim o

que quiser, mas sem se afastar de mim”27. É o consentimento deste o qual

permite a formação de um jogo onde ele é a figura principal. Mas apenas

quando um elemento está inteiramente ligado ao outro este tipo de

relacionamento faz sentido. A própria Wanda pergunta: “- Quer ser meu

escravo?”28, deixando claro que, se a resposta fosse negativa, não haveria

sessões de flagelação nem servidão.

25 Idem, Ibidem, pág. 200 26 Idem, Ibidem, pág. 174 27 Idem, Ibidem, pág. 195 28 Idem, Ibidem, pág. 172

121

Graças a esta cumplicidade e a confiança depositada no déspota criado,

o escravo pode finalmente entregar-se ao deleite de ser castigado tanto na

carne como no espírito. Principalmente nesta segunda região, onde o sonho

mistura-se com a realidade e a imaginação torna-se capaz de transformar as

atrozes dores do corpo em sensações de gozo.

O suplício físico é apenas uma extensão da tortura moral, sendo esta o

desejo primeiro e fonte geradora de prazer: “Meu sonho tomou corpo”29. Com

isto o dominado garante ainda mais uma vez o controle sobre os atos e

intenções do tirano, pois para a flagelação do espírito, faz-se necessária uma

total atenção por parte do senhor sobre o escravo. A dor na carne só possui

sentido quando o “clima” está saturado de paixão, violência e um falso

desdém. Do contrário, pode tornar-se incômoda e perigosa.

Mas, uma pergunta fica no ar: se empregarmos o termo “dor” para

designar um estado físico ou psíquico desagradável e penoso, então seria esta

a palavra ideal para designarmos as sensações ocasionadas no tipo de relação

acima descrito?

Claro que a percepção física é real e intensa, podendo deixar em muitos

casos marcas e cicatrizes mais sérias e delicadas que as da mente, mas o

autor de “Dom Juan de Kolomea” nos ajuda a enxergar o quanto nossas

reações psíquicas e corporais sofrem influência da cultura a qual estamos

inseridos30.

O chamado “masoquismo”, justamente pela sensação dolorosa nele

envolvida, é, na concepção das personagens de Sacher-Masoch, fonte de

prazer; necessitando, não de um libertino “sádico”, mas de um escravo “supra-

sensual” unido a um compreensivo e bem treinado senhor.

29 Idem, Ibidem, pág. 201 30 O simples ato de depilar-se com cera quente, que tantas mulheres praticam tão despreocupadamente pode ser uma verdadeira tortura para muitos homens.

122

123

124

Capítulo VIII

O SADOMASOQUISMO À LUZ DE KRAFFT-EBING

125

“A contraparte perfeita do masoquismo é o sadismo. Enquanto no primeiro

existe o desejo de sofrer e ser submetido à violência, no segundo o desejo é

de infringir dor usando da violência. O paralelo é perfeito. Todos os atos e

situações usados pelo sádico no papel ativo tornam-se o objeto de desejo do

masoquista no papel passivo”1

Ao deixarmos de lado “Justine” e “A Vênus das Peles” para nos

aprofundarmos na “Psychopathia Sexualis” de Krafft-Ebing, saímos também do

campo da literatura para o domínio da clínica; da arte para a ciência. Nosso

foco transfere-se do libertino ou do homem supra-sensual – antes de tudo,

personagens literárias – para o sádico e o masoquista, indivíduos exemplares

de categorias clínicas criadas pela psiquiatria.

O que até então se afigurava como pertencente ao universo da fantasia

desvairada, agora é estudado como realidade concreta do cotidiano burguês.

Nesta passagem ficam de lado as intenções, sensibilidades e filosofias

contidas nas obras de Sade e Sacher-Masoch, entrando em cena o positivismo

médico.

O novo discurso sobre as “aberrações” do comportamento sexual surge

predominantemente no último terço do século XIX, originado do saber jurídico.

A sexualidade “monstruosa” era pensada até então, apenas como um dos

possíveis sintomas da loucura2. Os avanços da medicina, principalmente na

área do funcionamento cerebral – e o embasamento fisiológico daí decorrente

das teorias dos instintos, proporcionaram a justificativa científica para os

receios morais em relação ao sexo perverso, ao mesmo tempo em que davam

a impressão de estar completamente distantes um do outro: “a ninfomania era

uma perversão, não porque chocasse a decência, mas porque correspondia à

prevalência do centro medular sacro, habitualmente subordinado aos centros

superiores. (...) Os perversos não o eram porque fizessem amor

diferentemente da média das pessoas, nem porque suas condutas não

1 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 140 2 Este tópico já foi desenvolvido no capítulo III.

126

levassem à fecundação, mas porque seus comportamentos correspondiam a

uma desestruturação da ordem do sistema nervoso central.”3.

Da mesma maneira, anula-se a legitimidade do prazer orgásmico,

principalmente o feminino. Se a finalidade da vida sexual visa a reprodução, e

no homem a ejaculação se encontra intimamente ligada ao orgasmo, acredita-

se que o prazer é fundamental e intrínseco à estrutura masculina - embora não

obrigatório. No caso da mulher, o importante é a capacidade de concepção, o

útero fértil. Desta forma, a frigidez revela-se como um claro indício de que o

prazer feminino não se faz necessário à propagação da espécie: é um

elemento estranho aos fundamentos da psique feminina, não sendo de “bom

tom” que jovens finas e educadas, treinadas nas mais delicadas condutas da

civilidade entreguem-se à “sujeira” ou aos “perigos subversivos” do gozo

carnal.

Segundo Georges Lanteri-Laura, os perversos são então divididos

silenciosamente em duas categorias: os “bons” e os “maus”4. No primeiro

grupo encaixam-se os indivíduos respeitados por seus bens, capacidades

intelectuais e um sobrenome socialmente importante. Estas pessoas são

objetos de compaixão, vistas como infelizes sobre os quais um destino trágico

se abateu. Para eles, são desenvolvidos todos os esforços médicos e jurídicos

visando curá-los ou livrá-los das prisões. Como declara Krafft-Ebing: “Sua

aparência era inegavelmente masculina, sua conduta decente e além de

críticas. Ele queixava-se de neurastenia cerebral (fraqueza de mente, de força

de vontade, ausência de disposição, irritabilidade, timidez, ansiedade mental,

pressão na cabeça, etc.). Genitais normais. Ereções somente pela manhã”5

(caso 61/ flagelação passiva e masoquismo); ou o exemplo do sargento

Bertrand (caso 23), que embora praticasse necrofilia e mutilação de cadáveres

para fins sexuais, por ser excelente soldado foi sentenciado - por uma corte

marcial - a apenas um ano de prisão.

Já os segundos, sem posses, com pouca inteligência - embora esta seja

considerada astuciosa - e o sobrenome é quase sinônimo de marginalidade,

são encarados com rigidez, receio e desdém. A psiquiatria considera-os

3 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, pág. 56 4 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. 5 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 104

127

estando mais próximos do vício que da doença, da perversidade que da

perversão, e as faltas por eles cometidas declaram de antemão a condição de

culpados. Os manicômios judiciários e a psiquiatria forense são desenvolvidos

tendo em foco esta segunda categoria, como mostra este exemplo do

“Psychopathia Sexualis”: “O paciente exteriormente – sua cabeça mal formada,

suas orelhas largas e proeminentes, a deficiente enervação do músculo facial

direito ao redor da boca, a expressão neuropática dos olhos – indicava um

degenerado, um indivíduo neuropático”6 (caso 67/ masoquismo idealizado).

Ainda para Lanteri-Laura, os “pervertidos” com suas atitudes extremas

são vistos pelos médicos ora como ridículos, ora como monstros. E os sádicos

e masoquistas encarnam perfeitamente esta visão pendular.

Outro dado importante a ressaltar: nesse momento, o discurso passou

das mãos dos protagonistas para a de seus comentadores. Os debochados do

Marquês não mais discorrem tratados filosóficos nem as personagens de

Sacher-Masoch imploram para serem maltratadas. Agora são os médicos que

tomam a palavra e falam pelos pacientes, desvendando assim a “ignominiosa

doença” oculta sob paixões tão “equivocadas”.

Dos quarenta e três casos de sadismo analisados por Krafft-Ebing,

apenas dois - casos 21 (assassinato por luxúria) e 23 (mutilação de cadáver) –

possuem algumas linhas contendo declarações dos próprios “sádicos”: “Eu

tenho um indizível deleite em estrangular mulheres, experimentando ereções

durante o ato e um prazer sexual real”7 (21); “Depois de ter me aproveitado do

corpo por aproximadamente quarenta e cinco minutos, eu o cortei, como

sempre, e arranquei fora as entranhas”8 (23).

Já os masoquistas, que despertam uma curiosidade clínica tão grande

quanto a “gravidade” de seu “problema”, possuem uma fala mais longa. Em

trinta e sete exemplos, sete dão espaço para as declarações dos

protagonistas9: “Estou com trinta e cinco anos idade, mental e fisicamente

6 Idem, Ibidem, pág. 108 7 Idem, Ibidem, pág. 65 8 Idem, Ibidem, pág. 68 9 Casos 51 (masoquismo idealizado); 57 (flagelação passiva e masoquismo); 70 (masoquismo latente/ fetichismo por pés e sapatos); 80 (masoquismo/ coprolagnia) e 84 (masoquismo em mulheres).

128

normal”10 (caso 57/ flagelação passiva e masoquismo); “Eu fantasio que bater

em mim por amor dá a ele o mais alto prazer”11 (caso 84/ masoquismo em

mulheres).

Em todos os outros, ouve-se apenas a voz de Krafft-Ebing servindo de

intérprete, juiz ou guia para os “doentes”: “Este ato imoral desenvolvido numa

fantasia luxuriosa em que ele mentirosamente acreditava estar amarrado entre

as coxas de uma mulher, forçado depois a dormir debaixo dela e a beber sua

urina”12 (caso 81/ masoquismo – coprolagnia).

“Desta forma, - observa o médico - masoquismo e sadismo representam

contrapartes perfeitas. Isto é tão harmonioso que indivíduos afetados com

estas perversões consideram a perversão oposta no outro sexo como o

ideal”13. A partir desta concepção, o autor de “Psychopathia Sexualis”

apresenta como exemplo o caso 57 (flagelação passiva e masoquismo) e as

“Confissões” de Rousseau: “Seria errôneo, entretanto, supor que Rousseau

estivesse meramente preocupado com flagelação. A flagelação só despertou

idéias de natureza masoquista. Finalmente nessas idéias repousa o núcleo

psicológico de seu interessante estudo do Self. O elemento essencial com

Rousseau era o sentimento de subjeção à mulher. Isto é claramente mostrado

nas “Confissões”, na qual ele enfatiza expressivamente que “Estar aos joelhos

de uma imperiosa senhora, obedecer suas ordens, ter que pedir seu perdão,

esse era para mim um prazer muito suave”. Essa passagem prova que a

consciência da subjeção e humilhação perante a mulher eram o elemento mais

importante”14

Ora, mas é o próprio protagonista do caso 57 que esclarece o tipo de

“sádica” a quem ele procura: “Tenho dúvidas se existem mulheres de

constituição sádica como as heroínas de Sacher-Masoch. Mas se existissem

tais mulheres, e eu tivesse a sorte (!) de encontrar uma, ainda assim, no

mundo da realidade, o intercurso com ela pareceria somente uma farsa para

mim”15.

10 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 95 11 Idem, Ibidem, pág. 132 12 Idem, Ibidem, pág. 126 13 Idem, Ibidem, pág. 141 14 Idem, Ibidem, pág. 111 15 Idem, Ibidem, pág. 96

129

Apesar da decepção com a “farsa” do relacionamento real, a mulher

sonhada deve satisfazer todos os gostos do escravo e ter como modelo de

comportamento a própria Wanda da “Vênus das Peles” - que não podemos

nos esquecer, pertence ao terreno da fantasia - e não Jack, o estripador (caso

17/ assassinato por luxúria), ou mesmo Madame de Saint-Ange, de Sade, pois

como vimos antes, ambos não correspondem como “parceiros” ao universo

erótico do “masoquismo”.

Assim, vejamos como estes “perversos” conseguem realizar as

“fantasias destrutivas” de que se alimentam, e principalmente, qual o tipo de

“parceiro” lhes permite pôr em prática seus desejos. Nos 43 casos de sadismo

contidos no “Psychopathia Sexualis”, as únicas formas encontradas pelos

protagonistas para a realização de seu intento são:

1- Devaneios solitários e masturbação. Não existe um parceiro real ou uma

relação concreta neste sentido: “Ele nunca se sentiu inclinado a pôr suas

idéias sádicas em prática pois tem aversão ao intercurso sexual não natural”16

(caso 38/ sadismo idealizado).

2- Pagando prostitutas para serem humilhadas, feridas ou elas mesmas

humilharem/ ferirem a outros - inclusive animais. É algo consentido e

artificialmente preparado, ocorrendo mais por “profissionalismo” do que por

intenção: “São frequentes os casos em que homens com inclinações perversas

induzem prostitutas, pagando-lhes altos preços, a permitir a si mesmas serem

chicoteadas e até feridas por eles”17 (caso 31/ ferimentos a mulheres); “Um

oficial de Viena me informou que homens, através de grandes somas de

dinheiro, induzem prostitutas a sofrer cusparadas e a defecarem e urinarem em

suas bocas”18 (caso 33/ violação de mulheres). Poucos casos destes são

citados diretamente no livro, como o de número 46, no qual um homem paga a

prostitutas para torturarem pequenos animais.

3- Cometendo os crimes mais hediondos e repulsivos, como o assassinato, o

estupro, ou a violação de cadáveres nos quais não existe o consentimento da

vítima. Nesses casos, o prazer se encontra no terreno do crime: “Vadiando

aproximadamente oito dias na mata, surpreendeu uma garota de vinte anos,

16 Idem, Ibidem, pág. 78 17 Idem, Ibidem pág. 74 18 Idem, Ibidem, pág. 75

130

violentou-a, mutilou seus genitais, arrancou fora seu coração, comeu-o, bebeu

o sangue e enterrou os restos. Preso, de início ele mentiu, mas finalmente

confessou seu crime com um cínico sangue-frio” 19 (caso 19/ assassinato por

luxúria).

Krafft-Ebing parece enxergar algo de ridículo nas duas primeiras

maneiras de obtenção de prazer. São encenações, jogos armados ou

comprados, truques para iludir desejos bobos. Adultos masturbadores

incapazes de se relacionar “normalmente” com uma mulher ou que gastam

fortunas nas “casas de ilusão”, merecendo toda a piedade dos sábios e

“superiores” doutores. Para a ciência psiquiátrica da época, histórias como

estas servem para ilustrar toda a precariedade da psique humana e o quão

estupidificada ela pode se tornar sob a maligna força dos impulsos sexuais

desgovernados.

Quanto à terceira maneira, esta pertence ao terreno da monstruosidade.

Aqui encontra-se Vacher, outro estripador, ilustrando todas as razões para a

importância dos estudos sobre as perversões sexuais que visam evitar a

proliferação destes comportamentos assassinos através da cura ou punição

dos culpados por essas abominações.

São esses criminosos, particularmente aqueles classificados em

“ferimentos em mulheres” que serão identificados por Krafft-Ebing com as

personagens do criador de Juliette. Embora com violência parecida, mas sem a

“filosofia lúbrica” para lhes sustentar o gozo do corpo e da alma, do nome do

Marquês derivou-se uma categoria clínica das mais importantes para os

estudos da psique humana no Ocidente.

Passemos agora aos masoquistas, investigando como conseguem

realizar sua paixão. Por ser comumente um relacionamento consentido,

algumas poucas vezes a dupla é bem-sucedida, conseguindo o “perverso”

encontrar quem o satisfaça, apesar da desaprovação da “ciência” - como o

homem do caso 81/ masoquismo - coprolagnia: “Quando uma mulher urinou

em sua boca, ele sentiu um enorme prazer. Teve então o coito com esta

mulher vil. (...) Esta disputa mental enervou o paciente e ele queixava-se de

19 Idem, Ibidem, pág. 62

131

debilidade da memória, falta de disposição, impotência mental e pressão

cerebral. Sua última esperança era que a ciência médica tivesse sucesso em

libertá-lo de sua monstruosa aflição e restabelecer seu centro moral”20.

Veremos que os “métodos” para a obtenção de um parceiro são quase

idênticos aos já classificados quanto aos sádicos:

1- Devaneios e masturbação: “ele continuou a masturbar-se assistido pelo

fetichismo de sapatos e fantasias masoquistas”21 (caso 72/ masoquismo

latente – fetichismo de pés e sapatos).

2- Pagando prostitutas para os humilharem e/ ou ferir: “Ocasionalmente

obtinha uma prostituta, despia-se completamente (enquanto que ela não tirava

a blusa), e ela andava sobre ele, o chicoteava e batia”22 (caso 55/ flagelação

passiva e masoquismo).

3- Encontrando um parceiro que aceite esta forma de interação sexual e

assuma o papel de “senhor(a)”: “Ela era brilhante, inteligente e de bom-gênio, e

sentia-se totalmente feliz em sua perversa e homossexual existência. Ela

fumava e bebia cerveja”23 (caso 87/ masoquismo – coprolagnia –

homossexualismo) ;ou “Ele, mais tarde, tornou-se conhecido de uma garota

com uma tendência masoquista similar, e o coito tornou-se possível para

ambos, mas sempre tendo como recurso alguma situação masoquista”24 (caso

82/ masoquismo – fetichismo – coprolagnia). Ora, existe um ponto muito

curioso nestes exemplos: no caso 87, Krafft-Ebing afirma que a mulher assume

tanto o papel passivo quanto ativo em sua vida sexual. Já a companheira

perfeita do caso 82 também é masoquista, não uma “sádica”, parecendo

reforçar a idéia de que cada “perverso” procura um parceiro dentro de seu

universo próprio, não do “oposto”.

Dos seis25 casos contidos no item acima, em apenas um o

relacionamento não deu muito certo: “Mais tarde, depois que procurou

conselhos com os amigos, ela induzia seu marido a realizar o coito, e tiveram

20 Idem, Ibidem, 127 21 Idem, Ibidem, pág. 117 22 Idem, Ibidem, pág. 94 23 Idem, Ibidem, pág. 140 24 Idem, Ibidem, pág. 128 25 Casos nº 60; 63; 65; 82 e 87; excluindo o nº 86, no qual a paciente de um hospital tentava seduzir os ginecologistas daquela instituição durante os exames íntimos, sem obter sucesso.

132

três filhos neste tempo”26 (caso 63/ flagelação passiva e masoquismo). Este

também é particularmente interessante pelo fato de Krafft-Ebing considerar a

esposa possuidora de “sadismo simbólico”, o que a teria ajudado, durante

muito tempo, a suportar as taras do marido, sendo outro exemplo psiquiátrico

da interação sadismo-masoquismo.

Nas análises do masoquismo contidas no “Psychopathia Sexualis”,

parecem não existir “monstros” no sentido de criminosos - como os sádicos.

Agora a monstruosidade está ligada aos prazeres orais, mais especificamente

a coprolagnia27 – ou seja, o sexo oral, ou desejo em lamber os pés do parceiro

e/ou ingerir seus excrementos28: “Apesar destas ridículas tiradas, ordenadas

por ele mesmo, Z. olhava-as como um meio de satisfazer sua sexualidade

perversa. Estas monstruosidades sexuais, que para ele eram somente uma

anomalia congenital, não as considerava contrárias às leis da natureza, apesar

de admitir que elas poderiam ser repugnantes ao homem constituído

normalmente”29 (caso 80/ masoquismo – coprolagnia).

Ainda assim, o sentido patético e infantil na vida deste “doentes”

continua sendo observado no texto de Krafft-Ebing: ”Visitou periodicamente

uma prostituta que tinha que efetuar, previamente ao coito, a seguinte

comédia”30 (caso 66/ masoquismo simbólico); ou “Ele ficou tão agradecido com

sua cura, que veio me agradecer pela valiosa ajuda que encontrou na leitura

de meu livro, o qual mostrou-lhe o caminho certo para remediar seu defeito”31

(caso 72/ masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos).

Percebe-se que, no livro do psiquiatra, apenas o elemento “ativo” da

primeira dinâmica (sádico) e o “passivo” da segunda (masoquista) são

analisados, não seus pares ou o próprio relacionamento típico de cada caso.

Os sujeitos que sofrem os maus-tratos destes sádicos são mudos e

irrelevantes, tanto quanto os dominadores das práticas masoquistas. Desta

26 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 105 27 Um detalhe curioso: ao analisar a coprolagnia, Krafft-Ebing diz: “Um médico brasileiro contou-me sobre vários casos que ele teve conhecimento de defecação de uma mulher na boca de um homem”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 129 28 Ou nas palavras do doutor: “O impulso para atos repugnantes”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 123 29 Idem, Ibidem, pág. 125 30 Idem, Ibidem, pág. 107

133

forma, elementos ímpares de equações diferentes são unidos em uma nova

combinação. De duas moedas e quatro faces, forma-se uma só e nova moeda,

de duas faces “opostas”.

Mas neste sentido, nem todas as subdivisões de uma perversão

encontram um reflexo correspondente na outra, apenas as categorias em

geral. Por exemplo, Krafft-Ebing não encontra uma contrapartida perfeita no

masoquismo para o “assassinato por luxúria”, deduzindo que o instinto de auto-

preservação é mais forte que o prazer da destruição de si mesmo, embora este

possa ser abalado, como nos casos 62 e 63 (flagelação passiva e

masoquismo), por pessoas com devaneios eróticos envolvendo punhais e

lâminas ou mesmo desejando ser “morto por mulheres com facas” 32 (62).

Mesmo dentro da coprolagnia – uma subdivisão do masoquismo - a analogia

com o sadismo se faz presente na forma de canibalismo e “vampirismo”.

Em determinado momento, um paciente chega inclusive a acreditar em

uma técnica de “cura” através do relacionamento sádico – masoquista, pois

estas duas “doenças”, ao se defrontarem, tenderiam a restabelecer o

“equilíbrio” perdido: “Ele agora confinou-se em suas fantasias masoquistas,

tendo esperança que algum dia encontraria a mulher ideal que por meio de

atos sádicos poderia conduzi-lo ao intercurso sexual normal” 33 (caso 69/

masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos).

Krafft-Ebing crê que o sadismo e o masoquismo são perversões

distintas e independentes, embora complementares. Mas esta

complementaridade não surge da dinâmica dos parceiros em cada uma destas

“perversões”, ou de uma eventual leitura interpretativa das obras de Sade e

Sacher-Masoch, e sim de associações já pré-estabelecidas e estudadas no

capítulo III, tais como feminino= passivo= masoquismo em oposição a

masculino= ativo= sadismo.

Ora, mesmo com toda a sutileza da interpretação dos fatores

psicológicos que o faz notar detalhes até então desapercebidos da psiquiatria -

tais como a importância da fantasia sobre a dor física para o masoquista e o

31 Idem, Ibidem, pág. 118 32 Idem, Ibidem, pág. 105 33 Idem, Ibidem, pág. 114

134

prazer em causar dor além do campo genital/ sexual34 - muito da concepção de

“oposição complementar” deve-se à análise destas associações já existentes,

analisadas agora em relação à dor. Em suma, se o comportamento é passivo,

tem-se o masoquismo; quando ativo, origina-se o sadismo.

Disso decorre a conclusão de que sendo o homem “naturalmente” ativo,

o sadismo seria apenas um exagero da agressividade estrutural masculina; no

caso da mulher, considerada “naturalmente” passiva, o masoquismo se

originaria de um excesso de submissão. Desta lógica dual, resultariam os

“opostos complementares”:

masculino/ feminino

ativo / passivo

sadismo/ masoquismo

Nem todos os casos, parece, se enquadrariam nesta lógica: mesmo

sendo poucos, existem os “doentes” possuidores de traços das duas

perversões, embora uma delas seja a “principal”: “Os casos na qual sadismo e

masoquismo ocorrem simultaneamente em um indivíduo são interessantes,

mas apresentam algumas dificuldades de explicação. (...) De qualquer forma,

uma das duas perversões é sempre marcadamente predominante”35. Eles

serão fundamentais para mais adiante, com Freud, surgir o conceito de

“sadomasoquismo”. Estes homens e mulheres que não sofrem apenas com

uma “degeneração”, mas com duas, serão os primeiros a serem chamados de

“sadomasoquistas”36.

No livro “Psychopathia Sexualis” encontram-se quatro casos em que o

sadismo e o masoquismo acham-se no mesmo paciente. São eles : (57/

flagelação passiva e masoquismo; 67/ masoquismo idealizado; 74/

masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos e 75/ masoquismo latente

– fetichismo por pés e sapatos). “Ele poderia ser classificado como um caso de

masoquismo idealizado, com sadismo rudimentar”37 (67); além de uma rápida

análise do poeta Baudelaire, também incluído neste grupo: “Havia também

34 “Ainda assim, isto não é sadismo, contanto que elementos sexuais não entrem na consciência; e contudo é possível que, na vida inconsciente, um tênue fio conecte tais manifestações com as profundezas ocultas do sadismo”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 85 35 Idem, Ibidem, pág. 142 36 Não por Krafft-Ebing, mas por Freud.

135

elementos de masoquismo (e sadismo) no escritor francês C. P. Baudelaire,

que morreu insano. Baudelaire veio de uma família insana e excêntrica. Desde

sua juventude ele era psiquicamente anormal. Sua vida sexual era

decididamente anormal. Ele teve casos de amor com mulheres feias e

repulsivas – negras, anãs, gigantes (...)”38.

Em todos eles existe a preponderância do masoquismo sobre o

sadismo. Não há nenhum caso em que o sádico possua elementos

masoquistas, somente o contrário. Entre todos os exemplos, apenas o caso 74

(masoquismo latente – fetichismo por pés e sapatos) é descrito como: “o

elemento masoquista tão bem quanto o sádico estão em evidência”39. Este é o

único exemplo na qual as duas perversões aparecem com peso igual40, apesar

de serem ainda elementos distintos.

Vemos desta forma que a concepção de “sadomasoquismo” já está

semeada em Krafft-Ebing, embora este não a desenvolva41. Nenhuma análise

é feita neste sentido, pois para a psiquiatria da época, sadismo e masoquismo

são coisas separadas – e complementares.

Os nomes do Marquês de Sade e do Cavaleiro de Sacher-Masoch42

serviram apenas para nomear atitudes e intenções “perversas”, a princípio

independentes entre si. Vejamos o que é dito sobre estes autores: “O notório

Marquês de Sade, depois de quem esta combinação de luxúria e crueldade foi

nomeada, era como um monstro. O coito só o excitava quando ele podia

perfurar o objeto de seu desejo até o sangue sair. Seu maior prazer estava em

ferir prostitutas nuas e então fazer curativos” 43; “Eu sinto justificado chamar

esta anomalia de “Masoquismo”, porque o autor Sacher-Masoch

freqüentemente faz desta perversão, a qual até agora era bastante

desconhecida como tal do mundo científico, o substrato de seus escritos. (...)

Durante os últimos anos, fatos têm sido adiantados provando que Sacher-

37 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 108 38 Idem, Ibidem, pág. 112 39 Idem, Ibidem, pág. 119 40 Surgindo talvez daí o termo “sado-masoquismo” encontrado no livro editado pela Velvet Publications e já comentado no capítulo III. 41 Nem o conceito, nem o termo. 42 Que no livro é chamado de “campeão literário do masoquismo”. KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 125

136

Masoch era não somente o poeta do Masoquismo, mas ele mesmo era afetado

por esta anomalia”44.

Parece existir conhecimento dessas obras por parte de Krafft-Ebing,

mas não é delas que a dinâmica sadismo – masoquismo irá tirar suas bases.

Os escritos destes autores são usados para nomear sujeitos, não relações.

Dentro da psiquiatria, as categorias conhecidas como “sadismo” e

“masoquismo” tornam-se dois pólos contrários de uma mesma energia sexual

desviante. Libertinos, supra-sensuais, assassinos cruéis enfurecidos ou

pacatos amantes “criativos” são então unidos e aprisionados em uma mesma

camisa de força: o conceito de “perversão”: “Com respeito à oportunidade para

a satisfação natural do instinto sexual, toda a expressão disso que não

corresponda ao propósito da natureza – propagação – deve ser considerada

perversa”45 (...) Desta forma, masoquismo e sadismo aparecem como as

formas fundamentais da perversão psico-sexual, podendo fazer suas aparições

em qualquer ponto no domínio da aberração sexual”46.

43 KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis, op. cit., pág. 69 44 Idem, Ibidem, pág. 87. E o autor continua: “Refuto a acusação de que eu tenha unido o nome de um reverenciado autor a uma perversão do instinto sexual, a qual tem sido feita contra mim por alguns admiradores do autor e por alguns críticos de meu livro. Como homem Sacher-Masoch não pode perder nada da estima de seus cultos semelhantes simplesmente porque ele era afetado por uma anomalia dos sentidos sexuais” Idem, Ibidem, pág. 87 45 Idem, Ibidem, pág. 52 46 Idem, Ibidem, pág. 53

137

138

Capítulo IX

O SADOMASOQUISMO À LUZ DE FREUD

139

“Depois vêm os sádicos, essas pessoas enigmáticas, cujas tendências

carinhosas não têm outro fim senão o de causar sofrimento e tormento a seus

objetos, indo desde a humilhação até as lesões físicas graves; e, como que

para contrabalançá-los, seus equivalentes opostos, os masoquistas, cujo único

prazer consiste em sofrer toda espécie de tormentos e humilhações de seu

objeto amado, seja simbolicamente, seja na realidade”1

Com os estudos de Freud, uma nova mudança ocorre na maneira de

entender os perversos e, entre eles, os sádicos e masoquistas. Conforme foi

visto no capítulo IV, a perversão para ele é uma “falha” no desenvolvimento

psíquico sadio. Sendo a sexualidade infantil “naturalmente” perversa, ou seja,

não genitalizada e sem um objeto externo, o processo de amadurecimento

humano corre sempre o risco de estancar ou retroceder até a fase primeira.

Assim, os perversos não são mais doentes degenerados ou terríveis

promíscuos; são apenas “crianças”: “em suma, que a sexualidade pervertida

não é senão uma sexualidade infantil cindida em seus impulsos separados”2.

Ora, não podemos nos esquecer de que, apesar de Freud atentar para a

sexualidade num universo até então “puro”, o status infantil continua – como

até hoje – o mesmo: crianças são irresponsáveis, incapazes de pensar ou agir

por si próprias, necessitando sempre da gerência de um adulto sobre suas

vidas3.

Sendo “adultos em potencial”, o mundo infantil com toda a sensibilidade,

razão e fantasias próprias, é entendido como uma “fase” no caminho da tão

almejada maturidade. E o modelo base para atitudes, idéias, emoções ou

mesmo sonhos é o adulto4. A criança aparece como um homem ainda

incompleto, cheio de “falhas” graças a sua “imaturidade”. Ela é um “quase”

1 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 2 Idem, Ibidem. 3 Quantas pessoas não são ofendidas – ou se ofendem – pelos termos “imaturo” ou “infantil”, sendo estas palavras extremamente desabonadoras nos campos profissionais, afetivos e, claro, sexuais. 4 De preferência branco, forte, rico e culto. E homem.

140

adulto, assim como o perverso. Ser considerado “infantil” quando não

pejorativo, é no mínimo, minorativo5.

Mesmo a incapacidade das crianças em privilegiar a libido objetal (amor

ao outro) mais do que a libido narcísica (amor a si mesmo) vai caracterizar a

perversão adulta, como mostra Lanteri-Laura: “Embora ele nunca escreva que

o perverso é egoísta, Freud acaba, afinal, por excluir de antemão qualquer

autenticidade das paixões dos perversos: mesmo que a conotação moral tenha

pouca importância, persiste o fato de que os perversos são tidos por incapazes

de qualquer sentimento que não seja ilusório, sejam quais forem suas

aspirações. Seria difícil desprezá-los mais objetivamente”6

Crianças são como mulheres: iguais, mas inferiores aos homens. Da

mesma maneira que o prazer perverso infantil necessita transformar-se em

genital e heterossexual, privilegiando a interação pênis/ vagina - ou melhor,

pênis dentro da vagina - o orgasmo clitoridiano deve ceder lugar ao orgasmo

vaginal durante o amadurecimento feminino: “O processo pelo qual uma

menina se transforma em mulher depende muitíssimo da possibilidade de o

clitóris ceder sua sensibilidade ao orifício vaginal, na época oportuna e de

forma completa”7. Dessa forma, percebe-se a sutil diferença do gozo perverso:

por ser “infantil”, é inferior ao gozo “normal”.

É curioso notar como a mulher nesses estudos, manteve o caráter

“perigoso” que há séculos a acompanha na cultura Ocidental, oficializado

primeiro pela Igreja, depois pela psiquiatria. Sua intimidade com as perversões

exige do homem uma constante atenção para este não regressar aos tempos

da “barbárie” – ou do “infantilismo”: “Nesse aspecto, a criança não se comporta

de maneira diversa da mulher inculta média, em quem se conserva a mesma

disposição polimorfa (...) guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em

5 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 93 6 Idem, Ibidem, pág. 123 7 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. Freud ainda continua: “Nos casos conhecidos como de anestesia sexual das mulheres, o clitóris reteve obstinadamente sua sensibilidade”. “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. Ora, mas se a mulher está “anestesiada” sexualmente, como é que este “obstinado” clitóris continua sensível? É algo curioso, mas em alguns momentos Freud parece não ter muita familiaridade com este órgão feminino. No texto “A Sexualidade Infantil” ele afirma estar o clitóris relacionado à micção como a glande masculina: “(...) Nas crianças tanto de sexo masculino quanto feminino, está ligada à micção (glande, clitóris)” “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

141

todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual”8. A mulher, além de

um homem incompleto, é uma eterna criança. Portanto, a única maneira de

evitar que pacatas donas-de-casa revelem-se animais ferozes no cio é através

de muita “cultura” e claro, cuidado com os “hábeis sedutores”.

Embora as prostitutas apareçam também como pessoas com “aptidão”

para tal profissão graças à disposição polimorfa-infantil-perversa, é curioso

notar o fato de em toda obra freudiana existir apenas um caso de perversão

feminina9 - “A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher”

(1920)10. Se naquele momento, a mulher já possuía uma sexualidade – e bem

mais intensa que a masculina – por quê as perversões são estudadas – ou

encontradas – apenas nos homens? Talvez, pelo fato de a mulher ser

entendida aqui como um ser infantil e, dessa forma, “naturalmente” perverso.

Assim, na mulher a perversão não se caracteriza como tal exceto em casos

muito raros, da mesma maneira na qual a polimorfia da sexualidade infantil

ainda não é uma perversão real11.

Outra característica dessas pessoas “abomináveis” segundo Freud:

apesar de muitas possuírem um “elevado desenvolvimento intelectual e

ético”12, são vistas ainda como “vítimas apenas deste único desvio fatídico”13.

E, na qualidade de vítimas, perdem de vez a fala. Se em Krafft-Ebing ainda

havia alguns poucos discursos por parte dos perversos, não se encontra

nenhuma linha com a voz destas pessoas nos textos freudianos estudados

para este trabalho14. Como o doutor insiste em frisar, toda sua teoria é

formulada a partir da clínica, embora os pacientes falem exclusivamente “pela

8 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. O curioso deste exemplo é que a criança porta-se como mulher e não o contrário. 9 Segundo VALAS, Patrick, Freud e a Perversão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994, pág. 113 10 “A Psicogênese de um Caso de Homossexualismo numa Mulher” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 11 Ou talvez porque o centro dos estudos é a figura masculina, não a mulher. 12 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 13 Idem, Ibidem. Grifo meu. 14 São eles: “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905); Caráter e Erotismo Anal (1908); Contribuições para um Debate sobre a Masturbação (1912); Prefácio a Sactologic Rites of All Nations, de Bourke (1913); O Instinto e suas Vicissitudes (1915); A Vida Sexual dos Seres Humanos (1916); As Transformações do Instinto Exemplificadas no Erotismo Anal (1917); História de uma Neurose Infantil – Recapitulação e Problemas (1918); Uma Criança é Espancada. Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais (1919); Além do Princípio de Prazer (1920); O Problema Econômico do Masoquismo (1924); Dostoievski e o Parricídio (1928); O Mal-Estar na Civilização (1929); Moisés e o Monoteísmo – A Analogia (1939)”.

142

boca de seus porta-vozes científicos”15. Novamente, as “crianças” necessitam

de um ”adulto” que fale por elas.

Continua também da mesma forma a diferença quase imperceptível

entre os “bons” e os “maus” perversos. Agora, os primeiros residem no terreno

das perversões mais “leves”, próximas dos “normais”, tais como os

homossexuais (ou “invertidos”): “um ”terceiro sexo” que tem o direito de se

situar em pé de igualdade com os outro dois”16. Já os prazeres que chocam e

assustam, tais como a necrofilia, o sadismo, o masoquismo ou mesmo o sexo

oral, são atitudes de “pessoas anormais cuja atividade sexual diverge cada vez

mais amplamente daquilo que parece desejável para uma pessoa racional17.

Na sua multiplicidade e estranheza, somente podem ser comparadas aos

monstros grotescos”18.

Saindo do campo do determinismo psiquiátrico, para o autor de “Cinco

Lições de Psicanálise”, a história individual é um fator de extrema importância,

podendo determinar em última análise o rumo de uma vida perversa ou

normal. Não mais a hereditariedade ou a vida desregrada serão a causa das

atividades sexuais “loucas, excêntricas e horríveis”19. A primeira foi descartada

logo em 1905 no texto “As Aberrações Sexuais” e a segunda representou uma

grande mudança nos estudos sobre os perversos: a vida sexual anormal não é

mais causa da perversão, mas sim uma conseqüência desta.

Mostra-se então improvável uma pessoa se tornar “pervertida” no

sentido psiquiátrico do termo – maligna, desregrada – após uma série de

orgias e atos de devassidão, pois “Se procede o fato de que um aumento de

dificuldade em obter satisfação sexual normal da vida real, ou a privação desta

satisfação, põe à mostra as inclinações pervertidas que, anteriormente, nada

disso tinham demonstrado, devemos supor que nessas pessoas havia algo que

já se encontrava a meio-caminho das perversões; ou, se preferirem, as

perversões devem ter estado presentes, nessas pessoas, em forma latente”20.

15 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 16 Idem, Ibidem. 17 Isto significa que os “perversos” são irracionais? Ou apenas que, para Freud, os prazeres sexuais devem estar sempre subordinados à racionalidade ocidental? Esta poderia ser uma nova definição para este “problema”: perversão é o sexo “não racional”. 18 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 19 Idem, Ibidem. 20 Idem, Ibidem

143

Esse ser fixou sua sexualidade em um período ainda não maduro do

desenvolvimento sexual normal, sendo então, um “doente”, não um

degenerado.

Todos estes atos “aberrantes” que antes eram a origem quase mítica e o

grande elemento gerador de perversos tornam-se então o efeito da sempre

perigosa perversão.

A generalização fisiológica da psiquiatria cede espaço à universalização

psíquica da psicanálise. Para esta, existe uma estrutura da psique comum a

todos os seres humanos – o complexo de Édipo – e a resolução satisfatória -

ou não - desta passagem obrigatória do processo de amadurecimento, vai ser

decidida pela história de cada um. Novamente, um dos masoquistas prediletos

da ciência servirá de exemplo: “Desde as Confissões de Jean-Jacques

Rousseau, a estimulação dolorosa da pele das nádegas tem sido reconhecida

por todos os educadores como uma das raízes erógenas da pulsão passiva de

crueldade (masoquismo). Disso eles concluíram com acerto que o castigo

corporal, que quase sempre incide nessa parte do corpo, deve ser evitado em

todas as crianças cuja libido, através das exigências posteriores da educação

cultural, possa ser forçada para vias colaterais “21.

Dessa maneira, a sexualidade “normal” torna-se um tanto quanto

precária, pois pode guardar inúmeros “desvios ocultos”. O “diploma de

normalidade” que todas as pessoas “sãs” e merecedoras de respeito fazem

questão de ostentar pode a qualquer momento ser questionado por desejos ou

intenções inconscientes, originados de eventos já há muito esquecidos. Entre

esses terríveis comportamentos indesejados, o sadismo e o masoquismo terão

lugar de destaque.

Mas como se relacionam estas pulsões destrutivas? Existe um “par”

sádico-masoquista em Freud? Ora, uma das grandes contribuições deste

pensador está justamente em que sadismo e masoquismo encontram-se

unidos, existindo potencialmente em todas as pessoas. Aqueles poucos casos

estudados por Krafft-Ebing de enfermos possuidores tanto de características

sádicas quanto masoquistas, tornaram-se a totalidade dos perversos

21 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

144

“sadomasoquistas”. O elemento em comum das teorias dos dois médicos é a

concepção de que embora os “doentes” sejam “vítimas” das duas perversões,

sempre uma delas será a predominante.

Da mesma forma, os conceitos de “atividade” e “passividade”

relacionados ao “masculino” e ao “feminino”, continuam. Graças a esta

concepção, unida a idéia de bissexualidade psíquica, as duas perversões

podem ser interiorizadas em uma só pessoa. Assim é aberto o caminho para o

conceito de “sadomasoquismo” como uma só pulsão de duas faces opostas:

“ficaríamos tentados a relacionar a presença simultânea desses opostos com a

oposição entre masculino e feminino que se combina na bissexualidade,

oposição que amiúde é substituída na psicanálise pelo contraste entre ativo e

passivo”22.

Apesar de, no princípio, estes dois pares de opostos não estarem

unidos, esta junção ocorre com o desenvolvimento psíquico: “A antítese ativo-

passivo funde-se depois com a antítese masculino-feminino, a qual, até que

isso tenha ocorrido, não possui qualquer significado psicológico”23. Esta união

vem de uma base biológica que, mesmo enfraquecendo a analogia feminino=

passivo= masoquismo= homossexualidade, por ser “natural” e orgânica, ainda

assim a mantém: “A junção da atividade com a masculinidade e da passividade

com a feminilidade nos defronta, na realidade, com um fato biológico, mas não

é de forma alguma tão invariavelmente completa e exclusiva como tendemos a

presumir”24.

Isto fica claro no texto ”Uma Criança é Espancada”, no qual, conforme já

foi visto, o deleite do garoto em se imaginar espancado por uma mulher é na

verdade um modo pelo qual “o menino burla seu homossexualismo”25, pois o

desejo real é o de apanhar do pai, afinal “a atitude masoquista coincide com

uma atitude feminina”26.

Assim, nestes estudos não interessa mais a pessoa e seus parceiros,

nem as formas de relacionamento entre eles. A interação entre elementos

sádicos e masoquistas é interna, pertence à subjetividade do indivíduo. A

22 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 23 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 24 Idem, Ibidem. 25 “Uma Criança é Espancada: Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

145

manifestação dessas características agressivas tem apenas um interesse

secundário, pois a dinâmica determinante pertence ao universo do

inconsciente pessoal.

Por isso, a maneira de realizar as paixões e um possível consentimento

por parte dos parceiros são elementos descartados. Também estão fora

discussões sobre encontros entre sádicos e masoquistas. “Sadomasoquistas”

são em primeiro lugar as pulsões dos indivíduos, não as “duplas” de perversos

ou suas relações. O “par” analisado na psicanálise é entre pulsões.

Não podemos nos esquecer: em relação a estas perversões “opostas”

existem dois momentos na obra de Freud. No primeiro, não aparece um

masoquismo primário, sendo este apenas uma derivação do sadismo.

Podemos situar os textos referentes ao período como tendo início em “Três

Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905) indo até “Uma Criança é

espancada” (1919). No segundo momento, sadismo e masoquismo são

pulsões primárias e “distintas”. Essa concepção surge em “Além do Princípio

de Prazer” (1920) continuando até o fim de sua obra27. Vejamos novamente

este caminho trilhado:

Em “As Aberrações Sexuais” de 1905, o conceito básico criado por

Krafft-Ebing para sadismo foi mantido por Freud, conforme visto no capítulo IV;

sádico é aquele no qual ocorre um aumento patológico da agressividade

“natural” masculina que, por deslocamento, assume o lugar prioritário no prazer

sexual. Mas uma grande mudança em relação à psiquiatria vigente ocorre

quanto ao masoquismo: o prazer em sofrer dores ou humilhações no ato

sexual não existe enquanto elemento “primário”, ou seja, como pulsão original

e independente.

A perversão que provoca tantos escândalos na ordem social,

mostrando-se um dos mais difíceis enigmas da subjetividade humana, não

existe autenticamente. Ela é apenas o sadismo - este sim provado e aprovado

por séculos de civilização – voltado para si mesmo: “É freqüente poder-se

26 Idem, Ibidem. 27 Continuo me baseando no artigo de Armando Colgnese Jr, já citado no capítulo IV.

146

reconhecer que o masoquismo não é outra coisa senão uma continuação do

sadismo que se volta contra a própria pessoa”28.

Dessa forma Freud chega à conclusão de que “O sádico é sempre e ao

mesmo tempo um masoquista”29, pois tudo depende de uma mesma pulsão

apresentar-se de forma preponderantemente ativa (sadismo) ou passiva

(masoquismo): “Toda perversão “ativa”, portanto, é acompanhada por sua

contrapartida passiva (...) quem sofre as conseqüências das moções sádicas

recalcadas encontra outro reforço para seu sintoma nas fontes da tendência

masoquista”30.

Com a publicação de “A sexualidade Infantil” (1905), a origem do

sadismo é encontrada em uma “pulsão de dominação” que tem como objetivo

o controle sobre outros e sobre si mesmo. Esta aparece cedo na vida da

criança, podendo ser a fonte dos desejos agressivos: “podemos supor que o

impulso cruel provenha da pulsão de dominação e surja na vida sexual numa

época em que os genitais ainda não assumiram seu papel posterior”31. Trata-

se de uma crueldade natural, pois a barreira para este impulso, a capacidade

de se compadecer com o sofrimento do outro, demora a se formar na psique

infantil. A pulsão sexual, unida a esses impulsos cruéis pode mais tarde

originar o prazer sádico.

Ao analisar a possibilidade de a dor intensa provocar excitação sexual,

especialmente se “abrandada ou mantida a distância”32, Freud vê nisto uma

das principais fontes da “pulsão sadomasoquista”33. Ora, é a primeira vez que

o termo é usado e, neste momento designa a “pulsão”, podendo ela tanto ser

“sádica” como ”masoquista” - apesar de deixar subentendido também um

sujeito “sadomasoquista”.

No texto “O Instinto e suas Vicissitudes” de 1915, o autor pretende

esclarecer como é o processo de transformação do sadismo em masoquismo.

A “algolagnia passiva” pode surgir por duas maneiras: a pulsão ativa (sádica)

original sofre uma reversão em sua finalidade e torna-se passiva; ou ocorre o

retorno do sadismo para o próprio sujeito, havendo então uma mudança no

28 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 29 Idem, Ibidem. 30 Idem, Ibidem. 31 “A Sexualidade Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 32 Idem, Ibidem.

147

objeto34. Para Freud, o segredo da formação do “sadomasoquismo” estava não

apenas no retorno da pulsão, mas na união deste com a reversão: “o processo

pode ser representado da seguinte maneira: (A) O sadismo consiste no

exercício de violência ou poder sobre uma pessoa como objeto. (B) Esse

objeto é abandonado e substituído pelo eu do indivíduo. Com o retorno em

direção ao eu, efetua-se também a mudança de uma finalidade instintual ativa

para uma passiva. (C) Uma pessoa estranha é mais uma vez procurada como

objeto; essa pessoa, em conseqüência da alteração que ocorreu na finalidade

instintual, tem de assumir o papel do sujeito. O caso (C) é o que comumente se

denomina de masoquismo (...) Se existe, além disso, uma satisfação

masoquista mais direta, é muito duvidoso”35.

Na conferência “A Vida Sexual dos Seres Humanos” (1916), pouca coisa

é dita sobre sadismo e masoquismo, mas um elemento importante é lembrado:

os grupos de perversos dividem-se em dois: “aqueles que procuram sua

satisfação sexual na realidade”36 e “os que se contentam simplesmente com

imaginar essa satisfação”37. Ora, este dado vai ser fundamental para Freud.

Muitos dos sádicos e masoquistas de Krafft-Ebing sofriam de “sadismo/

masoquismo idealizado” justamente porque realizavam seus desejos apenas

no terreno onírico. Com a psicanálise, independente de concretizarem as

intenções perversas ou não, os sonhos e devaneios serão fundamentais para

análise da vida psíquica, seja ela “perversa” ou “normal”.

“História de Uma Neurose Infantil” (1918) trata da análise de um jovem

com fobia em relação a lobos. Não podemos nos esquecer que, como o título

indica, esse é o caso de um neurótico, pois como Freud já havia formulado em

1905, a “neurose é o negativo da perversão”, ou seja, os impulsos perversos

do garoto eram inconscientes e anormalmente reprimidos. Assim, apesar de

não ser sádico nem masoquista, ele sofria com essa pulsão: “O menino

persistia nas atividades sádicas, bem como nas masoquistas, mas reagia com

ansiedade a uma parte delas; provavelmente a conversão do sadismo em seu

33 Idem, Ibidem. 34 A mudança de conteúdo de uma pulsão só existe para Freud no caso de amor transformado em ódio e vice-versa. 35 “O Instinto e suas Vicissitudes” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 36 “A Vida Sexual dos Seres Humanos” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 37 Idem, Ibidem.

148

oposto fez mais progressos”38. Desta maneira, o termo “sadomasoquista”

aparece pela segunda vez em sua obra, nesse texto usado para designar a

“organização sexual” do garoto.

Com “Uma Criança é Espancada” de 1919, os estudos vão se focar

sobre a fantasia sádica e masoquista, com suas diferenças nos dois sexos39. É

ressaltada também a importância do sentimento de culpa na conversão do

sadismo em masoquismo. No desejo de ser espancado, que une a culpa ao

amor sexual pelo pai, Freud vê “a essência do masoquismo”40; embora, mais

adiante, ele diga: “A nossa exposição da fantasia de espancamento pouco

esclareceu a gênese do masoquismo”41, confirmando sua constante

preocupação com esta “perversão”.

Continuando, o autor de “A Interpretação dos Sonhos” afirma: “a

passividade contudo, não é a totalidade do masoquismo”42, pois o desprazer

também faz parte de sua constituição, atribuindo novamente ao sentimento de

culpa a causa dessa segunda característica.

A partir do texto “Além do Princípio de Prazer” de 1920, Freud já está

trabalhando com os conceitos de “Pulsão de Vida” e “Pulsão de Morte”. Dentro

dessa nova visão, tem início um segundo momento quanto à origem do

masoquismo. Apesar de ainda este ser considerado um desdobramento do

sadismo, o autor escreve pela primeira vez que talvez exista um masoquismo

primário. A origem de ambas as perversões continua a ser uma única pulsão –

Tanatos - mas o masoquismo voltou a possuir um status próprio.

Em 1924 surge ”O Problema Econômico do Masoquismo”, no qual a

perversão que antes era derivada, com esse estudo se divide em três tipos

relacionados mas distintos; são eles o masoquismo erógeno, feminino e moral.

O primeiro tipo é o já conhecido prazer na dor ou no sofrimento, sendo

este a fonte dos outros dois. Ele origina-se da pulsão de morte não dirigida a

um objeto exterior, permanecendo dentro do indivíduo; ao unir-se à libido,

surge o masoquismo primário. O sadismo é justamente esta pulsão destrutiva

unida à força libidinal e voltada a um objeto externo.

38 “História de Uma Neurose Infantil” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 39 Já visto no capítulo IV. 40 “Uma Criança é Espancada: Uma Contribuição ao Estudo das Perversões Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 41 Idem, Ibidem,

149

Aqui, se reforçam as correlações masoquismo= impotência (“indivíduos

masoquistas – e, portanto, amiúde impotentes”43) e perversão= infantilidade (“o

masoquista deseja ser tratado como uma criança pequena e desamparada,

mas, particularmente, como uma criança travessa”44). Novamente, uma grande

importância é dada a imaginação sexual, pois “Os desempenhos da vida real

de masoquistas harmonizam-se completamente com essas fantasias, quer

sejam os desempenhos levados a cabo como um fim em si próprio, quer sirvam

para induzir potência e conduzir ao ato sexual”45. Dessa forma devemos

compreender que “ato sexual” é a penetração do pênis na vagina, sendo o

deleite masoquista, ou seja, o prazer sexual em si sem necessidade de um

”objetivo” genital, apenas um “desvio com respeito ao alvo sexual”46, como

exposto em 1905.

Sadismo/ masoquismo ainda são opostos complementares, pois

revelam-se como a face ativa ou passiva da Pulsão de Morte. Mas a partir

desse texto estas duas perversões podem se manifestar independentes: “o

instinto de morte operante no organismo –sadismo primário – é idêntico ao

masoquismo”47. Ainda assim, é possível ocorrer o retorno do sadismo,

formando o chamado “masoquismo secundário”.

É a fantasia masoquista quem vai dar a característica da segunda

ramificação dessa perversão. O masoquismo feminino caracteriza-se por suas

qualidades passivas (tais como a “essência” da mulher), pois esses devaneios

“colocam o indivíduo numa situação caracteristicamente feminina; elas

significam, assim, ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz um bebê”48. Mais

uma vez subentende-se não apenas a “natureza” passiva da mulher, mas

também sua “atitude receptiva” frente ao mundo, afinal aqui ela não copula,

mas sim, é copulada.

Da mesma maneira, a correlação perversão= feminino= infantil está na

base desse segundo tipo de masoquista: “Por essa razão chamei essa forma

42 Idem, Ibidem. 43 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 44 Idem, Ibidem. 45 Idem, Ibidem. 46 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 47 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 48 “O Problema Econômico do Masoquismo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

150

de masoquismo (...) de forma feminina, embora tantas de suas características

apontem para a vida infantil”49.

Já a terceira forma de masoquismo surge através de um sentimento de

culpa: o indivíduo acredita merecer ser punido embora não saiba exatamente

qual foi seu crime. Esta é a forma mais dessexualizada e atua principalmente

no campo social da vida do “masoquista moral”. Ora, aqui encontra-se também

uma das maiores contribuições de Freud ao estudo das relações humanas. A

partir desse momento a psicanálise passa a dar mais atenção ao masoquismo

– e ao sadismo – nas formas de conduta não sexuais.

O masoquismo não é apenas uma fantasia sexual grotesca, mas pode

também aparecer como uma maneira de conduta na vida cotidiana. O

sofrimento imposto perde o vínculo com o objeto (a pessoa amada ou parceiro

sexual que proporciona as dores e humilhações) passando a ser um fim em si

mesmo. Essa maneira de viver é particularmente perigosa, pois quase sempre

mostra-se inconsciente, persistindo devido a um jogo subjetivo entre um

superego sádico e um ego masoquista: “A fim de provocar a punição deste

último representante dos pais (superego), o masoquista deve fazer o que é

desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas

que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência

real”50.

Em 1928, é justamente este masoquismo moral que vai tornar um

reconhecido escritor em um novo tipo de perverso no texto “Dostoievski e o

parricídio”: “Selecionamos, da complexa personalidade de Dostoievski, três

fatores (...) a extraordinária intensidade de sua vida emocional, sua disposição

instintual inata e pervertida, que inevitavelmente o marcava para ser um sado-

masoquista ou um criminoso, e seus dotes artísticos inanalisáveis”51.

Pela primeira vez, uma pessoa é assim “definida” – nos outros dois

casos onde este termo foi usado, “sadomasoquista” era a “pulsão” e a

“organização sexual”, apesar de também subentenderem um sujeito. Mas uma

mudança gráfica ocorreu52. Neste texto o termo é escrito com um hífen

49 Idem, Ibidem. 50 Idem, Ibidem. 51 “Dostoievski e o Parricídio” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 52 Sempre lembrando que não estou trabalhando com o texto na grafia original alemã. Utilizo aqui a tradução da Editora Imago em CD-Rom já citada e, portanto, talvez esta reflexão sobre a grafia do termo

151

separando as “polaridades” desta perversão. Isto talvez seja reflexo da

autonomia conquistada pelo masoquismo que, ao não ser mais uma

continuação do sadismo, provoca a perda de sentido da antiga forma

“sadomasoquista”.

Em “O Mal-Estar na Civilização” (1929), Freud faz uma análise dos

conflitos pulsionais humanos com a vida em sociedade, a chamada

“civilização”, que pede aos homens esforços cada vez maiores no sentido de

conter esses impulsos. Aqui também, sadismo e masoquismo (especialmente

o moral) são elementos de importância vital: “A questão fatídica para a espécie

humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento

cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo

instinto humano de agressão e autodestruição”53.

Mesmo nessa análise mais “sociológica”, estas categorias perversas não

se aplicam ao campo social, apenas ao individual. As guerras, a política, as

ideologias nunca são sádicas ou masoquistas em si mesmas, e sim apenas

como exteriorizações de forças psíquicas humanas unidas em grupo54. Talvez

para lembrar-nos que por mais sociais que esses fatos sejam, em última

análise sempre são decididos – e acatados – por indivíduos: “a inclinação para

agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-

subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à

civilização”55.

As ”mais significativas de todas as perversões” demonstram mais uma

vez porquê o são: representam não só um perigo real para o individuo, mas

para toda a “civilização”.

Finalmente, em “Moisés e o Monoteísmo” (1939), o termo “sado-

masoquista” aparece novamente, desta vez para esclarecer a fantasia de um

garoto citado no texto: “Sua atividade sexual permanecia limitada à

masturbação psíquica, acompanhada por fantasia sado-masoquista nas quais

“sadomasoquista” ou “sado-masoquista” não faça o menor sentido ou seja completamente equivocada quando analisada à luz da língua original. 53 “O Mal-Estar na Civilização” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 54 Embora exista neste texto um “superego social”: “O superego de uma época de civilização tem origem semelhante à do superego de um indivíduo”. “O Mal-Estar na Civilização” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 55 Idem, Ibidem.

152

não era difícil identificar ramificações de suas primitivas observações da

relação sexual entre os pais”56.

Percebemos dessa forma, como observou Lanteri-Laura, que os

“perversos” migram de uma proximidade com os “normais” em 1905 até um

novo distanciamento destes. Para Freud, justamente a objetivação das

tendências destrutivas dos primeiros que impede-os, entre outras coisas, de

amar a outros como estes são, e não como representantes dos pais do

sadomasoquista: “o adulto normal continua a ser um antigo perverso polimorfo,

mas, como chegou a uma prevalência da libido objetal, já não tem nada em

comum como os que, psicóticos ou perversos, continuam na libido narcísica.

Asilo ou presídio, mais do que liberdade, com ou sem divã”57.

Com o fundador da psicanálise, sádicos e masoquistas ganharam um

status até então nunca visto entre as perversões sexuais: de alguns indivíduos

doentes no século XIX, passaram à totalidade das pessoas no século XX, não

como sujeitos realizadores dessas tendências, mas como elementos pulsionais

constitutivos da psique. Da mesma forma, sadismo e masoquismo foram

unidos, nascendo um novo sujeito na história humana: o “sadomasoquista”. E

apesar de o termo “sadomasoquismo” não ser encontrado em sua obra, a

concepção de uma perversão única, que se manifesta de duas formas opostas

e complementares, surgiu e até hoje permanece graças aos estudos de Freud:

“O sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista, ainda que o aspecto

ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior

intensidade e represente sua atividade sexual predominante”58.

56 “Moisés e o Monoteísmo” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit. 57 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. pág. 123 58 “As Aberrações Sexuais” in FREUD, Sigmund, Obras Completas/ CD-Rom, op. cit.

153

154

155

CONCLUSÃO

156

“As culturas sobrevivem tanto à permissividade dos costumes quanto à

intransigência, acomodam-se igualmente com a tolerância e o rigor, tanto

podem perdurar favorecendo a necrofilia quanto reprovando a felação, mas

sabem que correm o risco de morrer se apercebem da impossibilidade de

fundamentar na natureza e na razão o corte entre os meios lícitos e os

métodos indevidos de chegar ao orgasmo”1.

I

Vimos como Sade e Sacher-Masoch descreveram universos eróticos

particulares e distintos. Literariamente, estes autores não comungam entre si,

e seus escritos não são “pares de opostos”, muito menos “complementares”.

Mas foram as obras escritas por eles que serviram de base para os primeiros

estudos sobre “sadismo” e ”masoquismo”, tornando-se paradigmas de

comportamentos clínicos. Antes dos fundadores da “sexologia” no século XIX,

os “exemplos patológicos” provinham quase exclusivamente do campo da

literatura, pois a pesquisa científica de tais atos até então não se fazia

“necessária”.

Apesar de Krafft-Ebing afirmar que não pretendia utilizar-se de Sacher-

Masoch como exemplo de “algolagnia passiva”, uma nova categoria de

“perversão sexual” surgiu inspirada no nome deste autor, não de personagens

por ele criados – a mesma coisa é válida para Sade. Através da psiquiatria,

foram assim nomeados os desejos e prazeres de ferir e ser ferido, humilhar e

ser humilhado - ambos entendidos como “opostos complementares”.

Desta forma, o livro “Psychopathia Sexualis” tornou-se a “bíblia” dos

exemplos de casos sobre perversos2 e “a súmula clínica de Krafft-Ebing (...)

constituiu para todo o mundo (...) o nível semiológico básico e o grau zero de

todas as interpretações”3. Logo, muito dos estudos clínicos foram

abandonados – pois já se encontravam “exaustivamente” realizados - em prol

da ênfase nos esforços teóricos. Com isso, a terminologia criada por este

1 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 141 2 Ainda hoje este livro é citado para exemplificar os mais variados tipos de “perversos”. 3 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 137

157

médico foi usada para análises cada vez mais abrangentes e, muitas vezes,

distanciada do sentido “original”: “As denominações (...) substituíam

adequadamente os objetos denominados (...) o discurso sobre o masoquismo

parecia remeter aos pacientes descritos por Krafft-Ebing (...) que efetivamente

pareciam autênticos perversos”4.

A nova visão sobre esses “perversos” “baseava-se na observação

fragmentada, mas também, algumas vezes, no tratamento psicanalítico de

neuróticos (...) Esses pacientes não tinham muita coisa em comum com as

descrições correspondentes à noção clínica de masoquismo, mas, apesar

disso, tornaram-se seus representantes, e foi a partir do estudo deles que se

propôs uma psicopatologia geral do masoquismo”5.

Não podemos nos esquecer que a origem dos termos “sadismo” e

“masoquismo” são os nomes de Sade e Masoch, em referência às obras

destes. Quando Freud uniu os dois conceitos6, a dupla trabalhada era entre

pulsões, não entre autores ou seus escritos, nem entre os pacientes do autor

de “Psychopathia Sexualis”.

Graças a esta mudança de foco, a psicanálise pôde avançar os estudos

além do campo dos cruéis estupradores ou soturnos auto-flageladores,

descobrindo traços e resquícios destas “perversões” – em especial o sadismo -

em pais amorosos, juízes íntegros, guardas valorosos, professores dedicados,

padres piedosos, militares honrados ou médicos generosos, em suma, em

todos aqueles que ocupam posições de destaque e poder. Da mesma maneira,

o masoquismo ultrapassou os limites sexuais configurando-se também como

uma perigosa maneira de viver – o “masoquismo moral”.

Mas, segundo Lanteri-Laura, apesar desta suposta “universalização” das

perversões, que a princípio sugere maior “tolerância” para com os perversos

“reais”, a teoria do desenvolvimento “normal” da sexualidade infantil de Freud

“entre os sucessores de seus sucessores (...) se tornou uma evolução normal,

desde o estádio oral até o genital, e é esse primado do genital que vem

garantir a base objetiva desse neo-moralismo sexual. O genital assim, define a

norma, ou seja, na prática, o bem (...) ele desempenha exatamente o mesmo

4 Idem, Ibidem, pág. 139 5 Idem, Ibidem, pág. 139 6 E forjou o termo “sadomasoquista”.

158

papel que tinha a possibilidade de procriação na cultura do século XIX: norma,

e norma tida como natural”7.

Esse furor por se estabelecer um comportamento “básico”, a partir do

qual, com algumas variações, é possível nomear as verdadeiras “perversões”,

também mostra-se como uma das características da psiquiatria – e da

psicologia. O ”Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais –

DSM-IV” da Associação Psiquiátrica Americana possui um capítulo sobre as

“Disfunções Sexuais”, onde figuram lado a lado sadismo, masoquismo,

pedofilia e voyeurismo, entre outros.

Claro que este manual não se baseia em conceitos como “complexo de

Édipo” ou “superego”8, nem utiliza termos como “perversão” ou “perversidade”.

Esses nomes foram mudados, com poucas alterações quanto ao conteúdo,

para “Parafilias” (as atuais “perversões sexuais”)9. É um estudo amplamente

apoiado em estatísticas, e desta forma “espera-se (...) quê as frequências mais

altas delimitem a sexualidade ortodoxa: embora se respeite a proibição de

ilustrar uma sexualidade normal, espera-se das percentagens que elas

esbocem sua imagem. (...) O positivismo não se conforma em não descobrir

uma norma natural nem nos animais, nem nos selvagens, nem nos números,

mesmo quando milita corajosamente contra as legislações repressoras”10.

O termo “sadomasoquismo” parece ser uma “gíria” originada dos jargões

das ciências da psique, conquistando um status “oficial” a ponto de ter sua

origem creditada aos “heróis fundadores” destas disciplinas. Isto parece ser

reforçado pelo dado de que em toda a bibliografia utilizada para este trabalho,

o termo aparece ora como “sadomasoquismo”, ora como “sado-masoquismo”.

Ou seja, parece não existir uma única grafia “correta” porque não se sabe qual

seria a forma “original”. Afinal, mesmo Freud usou dessas duas maneiras para

escrever a palavra “sadomasoquista”.

7 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 134 8 Estes termos nem aparecem no manual, apesar deste fazer, em poucos momentos, referências a teoria psicanalítica. 9 É curioso como, para evitar associações de julgamentos morais, a psiquiatria excluiu o termo “perversão” de seu vocabulário, enquanto que a psicanálise, talvez por se considerar isenta do risco de tais associações, manteve este termo. 10 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 120

159

“Sadismo”, “masoquismo” e “sadomasoquismo”, com seus respectivos

sujeitos são termos controversos. Literariamente, não fazem sentido, pois são

categorias clínicas, apesar do nome derivado de escritores. Dentro das

ciências da psique, são patologias caracterizadas por causar “sofrimento

clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional

ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo”11. No terreno de uma

cultura sexual própria, são expressões de práticas sexuais com violência

consentida e limites específicos para cada praticante. E no imaginário social

que perpassa todos esses campos, estas palavras significam uma mescla de

tudo isso.

É curioso como uma das características definidoras do “sádico” ou

“masoquista” na ciência é justamente a sua não opção por tais maneiras de

obter prazer, comumente valendo-se da não consensualidade do parceiro –

pelo menos nos casos de sadismo. Na verdade, a pessoa sente este tipo de

prazer muitas vezes contra a vontade. Ora, no caso da “cultura S&M”, o

praticante afirma estar ali por “escolha”12, diz respeitar os desejos e limites do

outro e, principalmente, não se apresenta com um “sofrimento clinicamente

significativo” ou “prejuízo no funcionamento social”13.

Assim sendo, estamos falando das mesmas pessoas nos dois casos?14

Para muitos cientistas, assim como médicos, não: como Freud já mostrou,

estas tendências são “naturais” sendo comuns a todos seres humanos, e

quando de comum acordo, dentro de limites, não representam doença ou

crime. Mas porque então essa distinção não é feita, seja nos trabalhos de

divulgação de massa (entrevistas, debates, palestras em revistas, programas

de TV, rádio), em romances eróticos ou mesmo nos tratados científicos e

acadêmicos, tanto da parte dos “médicos” quanto dos “praticantes”? Porque a

11 ASSOCIAÇÃO Psiquiátrica Americana, DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – CD-Rom, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995 12 Este tema da “escolha” é instigante: Quantos de nós - ou quem entre nós - escolhe conscientemente suas práticas sexuais, ou sua hetero ou homossexualidade como quem escolhe uma roupa para sair? Referente ao dado de uma pessoa só encontrar prazer com uma única prática, quantas pessoas possuem um vasto leque de prazeres, podendo adquirir novos, abandonar antigos ou simplesmente “escolher” qual deleite vai usufruir por dia? 13 Mais um exemplo da gritante distância que existe entre o universo das regras e normas – ciência, religião, legislações – e a vida cotidiana. 14 Novamente, cito Lanteri-Laura: “Uma outra escolha dos casos clínicos teria, sem dúvida, levado a um saber talvez diferente”. LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit., pág. 137

160

confusão entre estes dois sujeitos parece ser sempre renovada a cada

discurso sobre os “perversos”?

Parte-se do pressuposto de que qualquer pessoa já tem esta distinção

na cabeça, sabendo perfeitamente de qual dos dois “sadomasoquistas” se fala

no momento? Ou será uma simples questão de “reserva de mercado” (na

dúvida em qual dos grupos a pessoa se encaixa, melhor ela escolher um

tratamento psíquico)? Ora, a identificação entre esses sujeitos é encontrada

nos próprios livros formadores de médicos e especialistas: “Sadomasoquismo

está refletido na pornografia (filmes, fotografias, acessórios e dispositivos

sadomasoquistas), e em certa medida na arte”15. Claro, muito da “pornografia”

e da “arte” tratam dos prazeres perigosos e criminosos, mas todo esse

“mercado sadomasoquista” não é justamente uma das características da

chamada “cultura S&M” conforme visto no capítulo V?

Existe também uma confusão quanto à questão dos parceiros. A

psicanálise afirma que os “opostos complementares” são as pulsões, não os

parceiros. Já na “cultura S&M” o parceiro de um “sádico” é um “masoquista”,

pois a necessidade do primeiro não é a de uma agressão “real”, e o desejo de

ser agredido do segundo leva sempre em conta a sua própria segurança. Mas,

novamente no terreno do imaginário social, a periculosidade dos

“sadomasoquistas” da psicanálise une-se à diversão da dupla “S&M”, tornando

os primeiros menos ameaçadores e mais simpáticos enquanto os segundos

mais grotescos e menos atraentes.

Ainda segundo Lanteri-Laura16, a gênese desta confusão pode ser

encontrada em Freud, pois, ao afastar-se gradativamente da clínica para a

teorização, ele também se distanciou dos “perversos”, tratando apenas de

“neuróticos” com “traços de perversão”. A partir desses estudos, ele teria

criado concepções generalistas: “agiu-se como se um saber extraído do estudo

de pacientes que só poderiam ser chamados de masoquistas latissimu sensu,

por catacrese, ou mesmo por abuso dos termos, se aplicasse, ainda assim, aos

que eram denominados de masoquistas desde Krafft-Ebing”17.

15 EYSENCK, H. J., ARNOLD, W., MEILI, R., Encyclopedia of Psychology, op.cit., pág. 953 16 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. 17 Idem, Ibidem, pág. 139

161

II

Quanto à origem do termo “sadomasoquismo”, não foi possível

encontrar o autor que o empregou pela primeira vez, nem mesmo quando isso

ocorreu.

Ao começar este trabalho, acreditava ter sido Krafft-Ebing em

Psychopathia Sexualis. Pelo menos é isso o que a “Encyclopedia of

Psychology” de Eysenck diz: “Sadomasoquismo. Termo usado em ciência

sexual, introduzido por von Krafft-Ebing em 1907”18, mas como já vimos, ele

morreu em 1902 - além desta palavra não se encontrar no livro referido.

Imaginei então ser Freud, pois segundo o “Dicionário de Psicanálise” de

Roudinesco e Plon: “Sadomasoquismo – Termo forjado por Sigmund Freud, a

partir de sadismo e masoquismo”19 mas nada achei20 em suas obras. Procurei

em vários dicionários psiquiátricos, psicológicos, psicanalíticos e linguísticos,

sem resultados21.

O livro mais antigo em que encontrei o termo “sadomasoquismo” foi na

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, sem data de publicação, mas

com uma dica: No volume VIII, aparece o texto: “A ortografia seguida neste

volume é aquela que, em virtude da convenção ortográfica luso-brasileira de

1945, foi tornada obrigatória em todas as publicações editadas em Portugal,

por força do decreto Nº 35228, de 8 de dezembro de 1945” 22. Quanto ao

verbete sobre o tema, lê-se apenas: “Sadomasoquismo, s. m. Sexol. Perversão

sexual em que se associam sadismo e masoquismo”23.

Mais próximo desta data, somente encontrei o Dicionário de Psicologia

de Henri Piéron, com a 1ª edição em 195124: “Sadomasoquismo – Associação

de sadismo e masoquismo”25. Infelizmente, em nenhum dos verbetes

estudados se diz quando e/ ou quem usou o termo pela primeira vez.

18 EYSENCK, H. J., ARNOLD, W., MEILI, R., Encyclopedia of Psychology, op.cit., pág. 953 19 ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel, Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, pág. 681 20 Sobre esta busca, explico mais detalhadamente nos referidos capítulos. 21 Citados na bibliografia. 22 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa - Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Limitada, sem data, Vol. VIII 23 Idem, Ibidem, Vol. VIII, pág. 586 24 PIÉRON, Henry, Dicionário de Psicologia, Porto Alegre, Editora Globo, 1967 25 Idem, Ibidem, pág. 384

162

Mas é possível analisar alguns detalhes curiosos quanto a este assunto

nos diferentes livros de referência estudados26. Por exemplo, é comum

encontrar que o termo “sadismo” foi criado por Krafft-Ebing: “Em 1886 Krafft-

Ebing se sirvió de su ilustre patronímico para forjar el término de sadismo”27.

Também é possível encontrar certos exageros sobre o Marquês de Sade e

seus livros: “escrebió novelas escandalosas basadas em hechos reales”28,

citando como exemplos “Justine”, “A Filosofia na Alcova”, “Juliette” e “Os

Crimes do Amor”.

A antiga concepção de “perversidade” também é encontrada na

definição de sadismo de Álvaro Cabral (1974): “Prática psicopatológica que

consiste em maltratar uma pessoa com requintes de perversidade”29. Ora, para

este autor então, esta “prática” é uma perversão ou uma perversidade? Ou

ambas?

Quanto à concepção de sadismo e masoquismo como “opostos

complementares”, esta é um consenso tanto na psicanálise, quanto na

psicologia e psiquiatria: “A correlação íntima dos dois termos do par é tal que

não poderiam ser estudados separadamente, nem na sua gênese nem eu

qualquer de suas manifestações”30; “a excitação erótica está vinculada à

inflição (sadismo) ou sofrimento (masoquismo) de dor, comumente considerado

perversão”31; “Estas duas perversões não podem absolutamente ser

separadas, já que elas constituem dois pólos complementares”32.

26 São eles: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (sem data); Manual de Psiquiatria (Henri Ey, 1960); Dicionário de Psicologia (Henry Piéron, 1969); Dicionário Técnico de Psicologia (Álvaro Cabral, 1974); Encyclopedia of Psychology (H. J. Eysenck, 1975); Dicionário dos Termos de Psicanálise de Freud (1978); Vocabulário da Psicanálise (Jean Laplanche, 1983); Dicionário do Inconsciente (Jacques Mousseau, 1984); Dicionário de Termos Psiquiátricos (Isaac Mielnik, 1987); Diccionário Taxonômico de Psiquiatria (Jean Garrabé, 1993); The New Grolier Multimedia Excyclopedia (1993); Diccionário Oxford de La Mente (Richard L. Gregory, 1995); Dicionário Enciclopédico de Psicanálise (Pierre Kaufmann, 1998) e Dicionário de Psicanálise (Elisabeth Roudinesco, 1998). 27 GARRABÉ, Jean, Diccionário Taxonômico de Psiquiatria, México, Fondo de Cultura Econômica, 1993, pág. 253 28 GREGORY, Richard L. (org.), Diccionário Oxford de La Mente, Madrid, Alianza Editorial, 1995, pág. 1015. Grifo meu. 29 CABRAL, Álvaro e NICK, Eva, Dicionário Técnico de Psicologia, São Paulo, Cultrix, 1974, pág. 352 30 LAPLANCHE, Jean e PONTALIS, Jean-Baptiste, Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 1983, pág. 607 31 CABRAL, Álvaro e NICK, Eva, Dicionário Técnico de Psicologia, op. cit., pág. 352 32 EY, Henri, Manual de Psiquiatria, São Paulo, Editora Masson do Brasil, 1960, pág. 390

163

Dentro do universo das ciências da psique, o termo “sadomasoquismo”,

por significar atualmente uma dinâmica de forças internas opostas,

complementares originadas de uma única fonte, é perfeitamente cabível e

inteligível. Afinal, estamos falando do par clínico de “opostos complementares”

conhecido como “sadismo e masoquismo”. Mas literariamente, conforme

afirmou Deleuze, “sadomasoquismo” “é um desses nomes mal fabricados,

monstro semiológico”33, pois originado dos nomes de autores que não admitem

uma complementaridade entre si, o novo termo fica sem sentido etimológico,

causando uma idéia equivocada quanto a dinâmica de suas referências

literárias – ou clínicas: “Isso equivale a dizer, finalmente, que a sexologia,

tomada na acepção de um saber sobre o comportamento sexual, continua a

ser uma disciplina desprovida de fundamento, e que só extrai seu sentido e

sua razão de ser de concordar em fornecer à cultura respostas pretensamente

científicas, que ela não dispões de nenhum meio científico de fornecer”34.

33 DELEUZE, Gilles, Apresentação de Sacher-Masoch, op. cit., pág. 142 34 LANTERI-LAURA, Georges, Leitura das Perversões, op. cit. pág. 143

164

“Qual o apaixonado que não ficaria aterrorizado se medisse

por um instante o alcance do juramento que fez, não

irresponsavelmente, de engajar-se por toda a vida?”

Jean Paulhan

165

ANEXO I - FONTES DAS ILUSTRAÇÕES

Capa

THORPE, David, Rude Food, Londres, Macmillan, 1984

1 - Revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes - EUA, Setembro de

1998, pág. 150

Introdução

2 - Betty Page - Queen of Pin-Up, Taschen, 1993, pág. 22

Capítulo I

3 - “Revolutionary Prints 1789-1792: La Fayette and Marie - Antoniette” in: Erotica

Universalis, Germany, Taschen, 1995

4 - “Portrait Imaginaire de D. A. F. de Sade” de Man Ray (1940) in: SADE, D. A. F., A

Verdade, Lisboa, Antígona, 1989

166

5 - Sade Ilustrado, Madri, Ediciones Hipérion, sem data

6 - Idem, Ibidem

Capítulo II

7 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, Rio de Janeiro, Rocco, 1997,

pág.152

8 - Idem, Ibidem, pág. 18

9 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, Taschen,1992, pág. 112

10 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, op. cit., pág. 6

11 - Idem, Ibidem, pág. 173

Capítulo III

12 - Capa do livro de KRAFFT-EBING, Richard Von, Psychopathia Sexualis,

Londres, Velvet, 1997

13 - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, São Paulo, Edições e Publicações Brasil

Editôra S.A., 1958

14 - OBIOLS, Juan, Psiquiatria e Antipsiquiatria, Rio de Janeiro, Salvat, 1979, pág.

104

15 - Idem, Ibidem, pág, 105

16 - Idem, Ibidem, pág. 136

Capítulo IV

17 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 145

18 - Idem, Ibidem, pág. 139

19 - Idem, Ibidem, pág. 136

20 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, op. cit., pág. 87

Capítulo V

21 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 76

22 - Imagem retirada da propaganda da exposição “The Art Directors Club N.Y. in

Panamericana”, veiculada na revista Veja São Paulo de 4 de março de 1998

23 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Fevereiro de 1999, pág. 20

24 - Propaganda retirada da revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes -

EUA, dezembro de 1995, pág. 72

25 - Propaganda do jeans Fiorucci

26 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, março de 1999, pág. 21

167

27 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 33

28 - Capa da Revista CAPTURED - London Enterprises Limited - EUA, Vol. 3 Nº 12,

Agosto de 1993

29 - Propaganda retirada da revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, março de

1999, pág. 61

30 - Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 85

Capítulo VI

31 – Sade Ilustrado, op. cit.

32 – Idem, Ibidem.

33 – Idem, Ibidem.

34 – Idem, Ibidem.

35 – Idem, Ibidem.

Capítulo VII

36 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 85

37 – Idem, Ibidem, pág. 143

38 – Idem, Ibidem, pág. 74

39 - STEELE, Valerie, Fetiche - Moda Sexo e Poder, op. cit., pág. 178

40 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 151

Capítulo VIII

41 - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit.

42 – Idem, Ibidem.

43 - OBIOLS, Juan, Psiquiatria e Antipsiquiatria, op. cit., pág. 24

44 - SCHULTZE, J., A Flagelação Sexual, op. cit.

45 – Idem, Ibidem.

Capítulo IX

46 - NAZARIEFF, Serge, Jeux de Dames Cruelles, op. cit., pág. 101

47 – Idem, Ibidem, pág. 37

48 – Idem, Ibidem, pág. 25

49 – Idem, Ibidem, pág. 144

50 - SEUFERT, Reinhard (editor), The Porno-Photografia, Los Angeles, Arygle

Books, 1968

168

Conclusão

51 - Betty Page - Queen of Pin-Up, op. cit., pág. 22

52 - Revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes - EUA, junho de 1996,

pág. 106

Fontes das Ilustrações

53 – Propaganda retirada da revista NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes -

EUA, janeiro de 1996, segunda capa

Bibliografia

54 – Revista TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA, Setembro de 1998, pág. 52

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EDIÇÕES ESPECIAIS

Culto à Dor Troca Pancadaria por Fantasia, in: Caderno São Paulo - Jornal Folha de

São Paulo, 13 de setembro de 1998

Dominações Sexuais, in: Caderno Mais! - Jornal Folha de São Paulo, 8 de

novembro de 1998

Filósofo da Dor, O, in: Caderno 2/ Cultura - Jornal O Estado de São Paulo, 16 de

maio de 1999

Sexo Dá o Que Pensar, in: Caderno Mais! - Jornal Folha de São Paulo, 9 de julho de

1995

Todas as Formas de Amor, in: Caderno Mais! - Jornal Folha de São Paulo, 26 de

fevereiro de 1995

CD_ROM

176

ASSOCIAÇÃO Psiquiátrica Americana, DSM-IV - Manual Diágnóstico e Estatístico

de Transtornos Mentais, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995

CD-ROM FOLHA DE SÃO PAULO 1995, 1997, 1998 - Empresa Folha da Manhã

S/A, 1996

FREUD, Sigmund, Obras Completas em Cd-Rom, Rio de Janeiro, Imago

JACQUELINE, Mistress, Dungeon of Dominance, E.U.A., Full Motion Video e Sound,

1994

REVISTAS

CAPTURED - London Enterprises Limited - EUA

HUSTLER - editora StarVision - São Paulo - Brasil

LEG SHOW - Leg Glamour - Nova York - EUA

NUGGET - Firestone Publishing - Miami Lakes - EUA

RUDOLF - Edições Ki-Bancas LTDA - São Paulo - Brasil

SPANKED - London Enterprises Limited - Van Nuys - EUA

TABOO - L.F.P.- Beverly Hills - EUA

JORNAIS

SEX - Christian Rocha Editores e Associados - São Paulo

SITES DA INTERNET

Existe uma infinidade de sites que tratam do tema, desde os que propõem uma

discussão séria até os que apenas dão acesso a fotografias e filmes através de

pagamento. Selecionarei apenas alguns que considero terem mais afinidade com o

espírito deste trabalho:

Grupo SoMos:

http://www.nossomos.com.br

Deviant’s Dictionary:

http://www.queernet.org/deviant/

BDSM - Um Estilo de Vida:

http://www.geocities.com/WestHollywood/Park/5890/smestilo.html

177

Sexo “Bizarro”:

http://www.cvsbizarresex.com