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Revista mensal de

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MAIO DE 1 941

ANO NUM. 3

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ANO I

NUM. 3

Sumário deste número:

SOBERANIA INTERNACIONAL DO ÜRASIL 5

1) — Problemas políticos e soctyls

A DEFESA COLETIVA DA AMÉRICA," por-Jaime

de Barros 11

AÇUDAGEM E IRRIGAÇÃO NO NORDESTE, por

Osias- Guimarães si

NOSSA POLÍTICA DE COMUNICAÇÕES, por Mário Travassos 2»

POLÍTICA DIPLOMÁTICA E ECONOMICA DE RODRIGUES ALVES, por

José Maria Belo 39

ALIMENTAÇÃO, POLÍTICA NACIONAL, por

Dante Costa 5a

O PROCESSO DE DECULTURAÇÃO NAS ÁREAS DA CAATINGA, por

Djacir Menezes 6l

A AUTOiNOMIA MUNICIPAL E O PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA

FINANCEIRA, por

Menelick de Carvalho 75

A INFLUENCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA DO

BRASIL, por

Monte Arrais 85

O SANEAMENTO NO AMAZONAS, por Azevedo Lima 98

A OBRA SOCIAL DO GOVERNO E O APROVEITAMENTO DA AMAZÔ-

N1A, por

Raimundo Pinheiro 112

O SEGURO SOCIAL E A SUA EVOLUÇÃO NO BRASIL, por Alcides

Marinho Rêgo llí:*

A EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL — i.° Período

de expansão> até 1555, por

Artur Hehl Neiva 125

EDUCAÇÃO NACIONALISTA NO DISTRITO FEDERAL, por

Neusa Feital 141

RAZOES DE SER DO D. A. S. P., por

Beatriz Marques de Souza 148

EVOLUÇÃO POLÍTICA REPUBLICANA, por Azevedo Amaral 154

Z) <— O pensamento político do Chefe do Governo

TRADIÇÃO POLÍTICA DE PRINCÍPIO DE UNIDADE NACIONAL, por

Sílvio Peixoto 175

3) — A estrutura juridico-politica do Brasil

O PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 10 DE NOVEMBRO DE

1937, por

Carlos de Oliveira Ramos 191

4) — Textos e documentos históricos

AS ELEIÇÕES NO BRASIL DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA 203

MEMORÀNDUM SôBRE A SITUAÇÃO AGRÍCOLA NACIONAL NO ÜLTI-

MO PERÍODO DO II IMPÉRIO 209

CARTA RÉGIA DO REI DE PORTUGAL AO GOVERNADOR E CAPITÃO

GERAL DAS MINAS, LUIZ DIOGO DA SYLVA E O CONSE-

QUENTE PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO VICE REI CONDE

DA CUNHA ...Y 213

5) — Atividade governamental

PANORAMA DA ATIVIDADE GOVERNAMENTAL 219

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO (III), por

Luiz Antônio da

Costa Carvalho 228

6) — Brasil social, intelectual e.artístico

INFLUÊNCIA POLÍTICA SOBRE A EVOLUÇÃO SOCIAL, INTELECTUAL

E ARTÍSTICA DO BRASIL (III)

v. 241

A) EVOLUÇÃO SOCIAL 244

A ORDEM POLÍTICA E A EVOLUÇÃO SOCIAL (III), p. 244

-

QUADROS E COSTUMES DO CENTRO E DO SUL (III), por

Marques

Rebêlo, p.

246 —

QUADROS E COSTUMES DO NORDESTE (III), por

Graciliano Ramos, p. 250

— O POVO BRASILEIRO ATRAVÉS DO

FOLCLORE (III), por

Basílio de Magalhães, p. 252

— INTÉRPRETES

DA VIDA SOCIAL BRASILEIRA (III), p. 256

- PAGINAS DO PAS-

SADO BRASILEIRO (III), p. 258.

B) EVOLUÇÃO INTELECTUAL 262

A ORDEM POLÍTICA E A EVOLUÇÃO INTELECTUAL (III), p. 262

— LITERATURA DE FICÇÃO (III), por Wilson Lousada,

p. 264

LITERATURA DE IDÉIAS (III)j por

Pedro Dantas, p. 267

— LITE-

RATURA HISTÓRICA (III), por Hélio Viana,

p. 269

- LITERATU-

RA LATINO-AMERICANA (I), por Guerreiro Ramos,

p. 274 — HIS-

TÓRIA LITERÁRIA DO BRASIL (III), p. 276

- ESTUDOS E PES-

QUIS AS CIENTÍFICAS (III), por

Vieira Pinto, p. 278

- EDUCAÇÃO

(III), por F. Venâncio Filho,

p. 281

— MOVIMENTO BIBLIOGRAFI-

CO (III), por Antônio Simões dos Rf.is,

p. 285.

C) EVOLUÇÃO ARTÍSTICA 290

A ORDÉM POLÍTICA E A EVOLUÇÃO ARTÍSTICA (III), p. 290

MÚSICA (III), por Luiz Heitor,

p. 292

— ARTES PLÁSTICAS (III),

por Carlos Cavalcanti,

p. 295 — TEATRO (III), por

R. Magalhães

Júnior, p. 299

— CINEMA (III), por Lúcio Cardoso, p. 302

— RADIO

(III), por Martins Castelo,

p. 304.

Direção de

ALMIR DE ANDRADE

Secretaria e Redação:

Rua da Misericórdia —

Palácio Tiradentes

4.0 andar

Telefone: 22-7610, ramal-36

BRASIL

RIO DE JANEIRO

\

A soberania internacional

do Brasil

"E

preciso encarar as imposições da realidade com ânimo

sereno e repudiar as opiniões apaixonadas, se quisermos

sal-

vaguardar o futuro

da Pátria; pois

não a servem, não servem

ao seu dever, os que pretendam

lançá-la à fogueira dos con-

flitos internacionais. Não há,

presentemente, motivos de es-

pécie alguma, de ordem moral ou material,

que nos acon-

selhem a tomar partido por qualquer

dos povos

em luta. O

que nos cumpre é manter estrita neutralidade

— neutralidade

ativa e vigilante, na defesa do Brasil. . .

"Habituados

a cultivar a paz

como diretriz de convivência in~

ternacional, continuaremos fieis

ao ideal de fortalecer, cada

vez mais, a união dos povos

americanos. Com êles estamos

solidários para

a defesa comum em face

de ameaças ou intro-

missões estranhas, cumprindo, por

isso mesmo, abster-nos de

intervir em lutas travadas fora

do Continente. E essa união,

essa solidariedade, para

ser firme

e duradoura, deve basear-se

no mútuo respeito das soberanias nacionais e na liberdade

de nos organizarmos, politicamente,

segundo as próprias

ten-

dências, interesses e necessidades".

Getulio Vargas

a SOBERANIA das nações no campo internacional é uma pro-

jeção natural da sua soberania interna.

A ordem política

representa, para

cada povo,

uma necessidade

de vida e de organização. Cada povo procura,

ao estruturar-se poli-

ticamente, viver de acordo consigo mesmo —

com suas tendências, ne-

cessidades e aspirações. O Estado representa, para

a nação que

o cons-

troi, um instrumento de defesa da sua liberdade: liberdade de crear

para si instituições adaptadas à sua maneira de ser, liberdade de tra-

6CULTURA POLÍTICA

balhar para

consolidar as bases da sua subsistência e prosperidade

econômica, liberdade de reclamar para

si o espaço de terra e a forma

de govêrno

de que

necessita para progredir.

Historicamente —

e hoje mais do que

nunca —

o Brasil sem

pre reconheceu a veracidade desses

princípios.

Fomos um Império, quando

nenhum outro império existia no

solo americano, porque

as condições da nossa formação social e poli-

tica exigiam a unidade de um govêrno

monárquico. E isso não im-

pediu jamais que formássemos ao lado de nossos vizinhos,

para a de-

fesa dos interêsses comuns e para

a comunhão dos ideais america-

nos. Diversa era a nossa forma de govêrno;

diversos eram os prin-

cípios poh

icos que

internamente inspiravam a nossa conduta. Mas

nunca deixámos, por

isso, de manter a nossa política

externa de co-

operação e amizade, de solidariedade e pacifismo.

Um dia, condições históricas particulares

exigiram uma mu-

dança brusca na vida interna do Brasil: proclamámos

a República e

adotámos, na prática

constitucional, todos os princípios

da liberal-

democracia. Nossa atitude internacional nao se modificou com isso,

nem se alterou a coerência tradicional da diplomacia brasileira.

Sustentámos sempre, não apenas em tese, mas também na evi-

dência das nossas ações, na evidência da nossa conduta internacional

de todos os instantes, a independência absoluta entre a política

inter-

na e a política

externa. Externamente procuramos

os interêsses co-

muns que

nos unem aos outros povos;

internamente buscamos os

nossos interêsses próprios, que

definem a nossa personalidade

de povo

e a originalidade da nossa cultura.

Externamente, orientámos sempre a nossa diplomacia no sen-

tido de atender às necessidades supremas de defesa da nossa sobe-

rania e de solidariedade com todas as nações a que

nos prendem

inte-

rêsses comuns. Internamente sempre nos esforçámos para

viver de

acordo com as nossas próprias

necessidades, escolhendo o sistema de

organização política

melhor ajustado às condições econômicas, sociais,

administrativas e espirituais da nossa formação nacional.

Não é outra a atitude do Brasil no presente

momento, em que

o mundo se debate em violentos conflitos de soberanias e de sistemas

de govêrno.

Mais uma vez mudámos, em Novembro de 1937, o nosso sis-

tema de govêrno, procurando

adaptá-lo às nossas realidades mais pre-

mentes e também àquilo que julgámos

ser as tendências mais imedia-

CULTURA POLÍTICA 7

tas da evolução política

do mundo, na fase de transição por que pas-

sa. Pelo que

fizemos em nosso país,

nenhuma explicação devemos aos

demais. O sistema político que

adotámos nasceu das condições histó-

ricas e sociais que precipitaram a revolução de 1930 e

que se cristali-

zaram no atual regime.

Quaisquer que sejam os métodos de

govêrno dos

povos ami-

gos ou vizinhos, o Brasil conservará o sistema de

que precisa, sem

pre-

juízo de suas relações internacionais. Estas ultimas teem outros fun-

damentos, outros objetivos e outros métodos. Elas se baseam nas exi-

gências de cooperação

pelo bem comum de

povos irmãos. Ao

passo

que as relações

políticas internas se fundam nas exigências do traba-

lho coletivo, necessário à expansão da nossa cultura, ao fortalecimen-

to da nossa economia^ ao respeito aos nossos direitos e à nossa per-

sonalidade de povo.

O reconhecimento internacional dessa soberania, dêsses direi-

tos sagrados que

exigimos para

sustentáculo do nosso sistema de orga-

nização interna — é condição sine

qua non da cooperação brasileira

para a ordem, a

paz e a solidariedade continental.

Por si mesmo, o regime de 10 de Novembro de 1937 não al-

terou a linha tradicional da diplomacia brasileira da Primeira Repú-

blica, assim como a revolução de 15 de Novembro de 1889 n^° al te-

rou a linha diplomática da política

imperial. A mudança de regime

político interno não influe,

por si mesmo, na orientação da

política

externa: eis um princípio

essencial, que

sempre esteve explícita ou im-

plicitamente contido na conduta do Brasil, há mais de um século.

A independência absoluta dos dois campos de ação produz

duas

conseqüências imediatas: primeiro,

a necessidade de aceitar em sua

objetividade e de respeitar em sua soberania o regime político

interno

de qualquer

nação, quando

se trate de conseguir a sua cooperação in-

ternacional; segundo, a inexistência de qualquer

compromisso defi-

nitivo entre a conduta exterior de um país

e as suas transformações

políticas internas. Esta última

parte é também

preciso frisar.

Assim, se a mudança de regime político

não implica, por

si

mesma, nenhuma mudança de orientação diplomática, por

outro

lado ela também não envolve, nem pode

envolver, qualquer

subor-

dinação da conduta de um país

a interêsses ou compromissos exte-

riores que,

acaso, deixem de satisfazer às suas necessidades de vida in-

terna, às exigências da sua produção,

do seu comércio, do seu desen-

volvimento econômico e social.

8CULTURA POLÍTICA

O realismo sadio e vigilante, oportuno e darividente, que or

povos estão hoje empregando na

gerência dos seus negócios internos

-- está sendo reclamado e

posto em

prática, igualmente, na orientação

dos seus negócios externos. Não são mais as simpatias ou antipatias

de credos políticos que guiam

as nações em suas relações exteiiores c

às incitam à cooperação. Sob êste aspecto, também a política

interna

c a política

externa devem manter-se independentes. Na rapidez com

que se

processam hoje as transformações sociais e

políticas, também

a órbita das relações internacionais pode ser afetada neste ou naquê-

le ponto:

e os povos

chamados a definir-se nas horas graves

em que,

acaso, sua definição se torne inevitável, devem guiar-se,

não por

mo-

tivos sentimentais de idealismo político,

mas por

motivos reais dc

conveniência recíproca e por

uma compreensão justa,

fria e objetiva

dos seus mais prementes

interesses economicos, étnicos e sociais.

Um único pensamento

anima o Brasil de hoje: trabalhar em

paz, produzir, refazer-se das crises internas do

passado, reconsti uir-se

para a conquista de dias mais

prósperos e mais felizes. O respeito à

nossa soberania, na ordem internacional, é um reconhecimento da

sinceridade dos nossos propósitos

de cooperação pacífica.

Lutamos

por um mundo melhor e mais humano, de ordem, de equilíbrio e de

justiça. Êsse ideal nos inspirará sempre: tanto nas horas de

paz que

desfrutamos, como nas horas das grandes

decisões, quando,

em algum dia

próximo ou longiquo, acaso estiver em

jogo o nosso futuro.

Somos brasileiros não apenas por

dentro e de coração; devemos

sê-lo também internacionalmente. A' margem de quaisquer

simpa-

tias doutrinárias, políticas

ou raciais, é brasileiramente que

devemos

sempre pensar

em nosso futuro e como brasileiros que

devemos re

solver os supremos interesses do Brasil.

A. de A.

»

1

Problemas políticos

e sociais

E' consagrada esta seção ao estudo de todos os proble-

mas políticos e sociais do Brasil: quer os problemas

de ordem

geral, quer os problemas regionais. Uns e outros teem o

mesmo sentido nacional e interessam aos homens de todos os

Estados, que se guiam, hoje, por

um só pensamento: o Brasil

grande e unido, com uma só alma e como um só todo solidário.

Estas colunas estão abertas aos estudiosos de todas as

regiões; nelas colaboram filhos de todos os Estados do Brasil:

do Norte, do Nordeste, do Centro e do Sul.

O objetivo de "Cultura

Política" é promover, estimular

e desenvolver o concurso de todos os estudiosos brasileiros

de Norte a Sul, de litorol ee sertão —•

poro o esclare-

cimento dos problemas e realidades do Brasil.

O Brasil Novo recobra a conciência de si mesmo — da

sua unidade histórica, econômica, social e intelectual.

A defesa coletiva da América

JAIME DE BARROS

Do Ministério das Relações Exteriores do Brasil

O problema

da defesa da América é, talvez, o magno problema

interna-

cional do continente, na hora em que

vivemos. Já havendo tratado no

j.° número desta Revista, da "Política

do Brasil na América", volta-se

hoje o autor para

o estudo das origens e evolução da doutrina de Monroe,

suas causas e objetivos, suas várias interpretações no decurso de cento e

vinte anos e, muito especialmente, sua repercussão na diplomacia brasi-

leira. Nossa política,

vigorosamente panamericanista,

orientou-se para

dar

à doutrina de Monroe uma interpretação muito mais larga do que

a pro-

posta inicialmente; essa doutrina sempre foi para

o Brasil, não um motivo

para o estabelecimento de

privilégios entre as nações da América, mas, ao

contrário, um meio de confraternização, um instrumento de defesa coletiva

e móvel de uma sã política

de boa vizinhança.

A

IDÉIA de uma união

defensiva das nações ame-

ricanas, que

só agora co-

meça a traduzir-se da manei-

ra menos indecisa e vaga, sur-

giu antes mesmo de iniciados

os movimentos emancipadores no

continente. Existem esparsos, re-

colhidos por

diversos pesquisado-

res, documentos do comêço do

século XIX, em que já

se enun-

ciava o pensamento

de, uma vez

proclamada a independência dos

países americanos,

quaisquer que

fossem as formas do govêrno

ado-

tadas, instituir-se o sentimento

pan-americanista, guiado por uma

política americana.

Não eram outras as expressões

que usava Henry Ciai, em 1810.

Também Bolivar proclamou

os

mesmos ideais e esboçou o plano

de uma Liga das Nações America

nas, que

ainda não pôde

ser con

cretisada numa iniciativa feliz, tais

as dificuldades que

sempre en

controu nas assembléias interna-

cionais. O próprio

Brasil chegou

a formular, segundo assegura o

sr. Heitor Lira nos seus Ensaios

Diplomáticos, o espírito da dou-

trina continental antes mesmo da

mensagem de Monroe.

12CULTURA POLÍTICA

A mensagem de Mon

roe, em 1823

A verdade porém

c que

o pri-

nieiro documento político em

que

se proclama

a completa liberdade

da América para

resolver os seus

problemas sem a interferência da

Europa, foi a célebre mensagem de

Monroe, de 2 de Dezembro de

1823. Diante das manobras da

Santa Aliança, visando a recoloni-

zação do Novo fylundo, aquele

presidente dos Estados Unidos

lançou o célebre documento, no

qual afirmava:

"Os continentes

americanos, por sua livre e inde-

pendente condição atual, não

podem, de agora em diante, con-

siderar-se objeto de futura colo-

nização por parte

de nenhuma po-

tência européia". E logo acres-

centava:

"O sistema

político das

potências aliadas é essencialmen-

te diverso do americano. Deve-

mos, pois,

em atenção à tranque-

za e às boas relações de amizade

existentes entre os Estados Uni-

dos e êsses países,

declarar que

consideramos toda tentativa de

sua parte,

visando prolongar

seu

sistema a qualquer porção

dêste

hemisfério, como perigosa

à nos-

sa paz

e segurança".

As primeiras

interpretações

da doutrina de Monroe

Mas êsse importante documen-

to político,

longe de precipitar

ou ao menos favorecer a imediata

união defensiva dos países

ame-

ricanos, ainda em pleno

tumul-

to de sua organifcação política,

suscitou neles a mais profunda

desconfiança. Interpretações

bias da doutrina de Monroe, que,

infelizmente, os próprios

Estados

Unidos autorizaram com alguns

erros clamorosos de sua ação no

continente, acabaram emprestan-

do sentido malicioso à expressão

"a América

para os americanos",

à qual

se acrescentava. ..

"do

Norte".

Pouco importava aos que

ali

mentavam tais prevenções

com os

Estados Unidos a intenção clara

da mensagem de Monroe. E' cer-

to que

o documento, quando se

referia à tentativa de recoloniza-

ção de

"qualquer

porção dêste

hemisfério", considerando-a peri

gosa

nossa paz

e segurança",

tinha em vista a paz

e a seguran-

ça dos Estados Unidos. Não se

devia esquecer, entretanto, que,

antes, aquela mesma mensagem

já proclamara não

poderem ser

"os continentes americanos" ob-

jeto de recolonização. Além dis-

so, naquele momento, como ain-

da hoje, a tentativa da Europa de

"prolongar seu sistema a

qual-

quer

"porção dêste hemisfério",

ameaçava não só os Estados Uni-

dos como todo o continente. Poi

isso mesmo, a União Americana

sentira-se, em 1823, como se sente

em nossos dias, no dever e na ne-

cessidade de acudir em defesa de

"qualquer

porção dêste hemisfé

rio ameaçada pela

cobiça euro-

/ • n

peia .

Se a linguagem então falada pe-

los Estados Unidos indicava o

propósito do

govêrno de Washin-

gton de agir sozinho em caso de

perigo, é

que na época os

países

continentais não dispunham ain-

A DEFESA COLETIVA DA AMÉRICA 13

da de recursos apreciáveis para

promover sua

própria de tesa.

Dentro dessa interpretação foi

que evoluímos

para o

projeto da

defesa comum, no plano

de igual-

dade das soberanias.

As vozes dissonantes que

de-

pois fizeram coro confuso na

América contra os pretensos

in-

tuitos imperialistas dos Estados

Unidos não impediram que

mes-

mo na época do aparecimento da

mensagem de Monroe alguns pai

ses americanos compreendessem e

proclamassem o alto sentido da-

quele documento. Santander, vi

ce-presidente do Senado da Co-

lômbia, a êle se referindo, dizia,

em 1824:

"Essa

política, consola

dora para

a natureza humana, as-

segura à Colômbia um aliado po

deroso, caso a nossa independên-

cia seja ameaçada pelas potências

aliadas da Europa".

Quando recebia o ministro dos

Estados Unidos, Forbes, o Gover-

nador das Províncias Unidas do

Rio da Prata, depois de reconhe-

cer a importância dos princípios

proclamados por Monroe, decla-

ra-se

"convicto da necessidade de

adotá-los" e disposto a aceitar pa-

ra esse fim

"qualquer oportuni-

dade que

se apresente". Não foi

menos satisfatória a repercussão

no Chile, cujo Governador mani-

festou os seus agradecimentos ao

Embaixador Allen dos Estados

Unidos.

O apoio decidido do

Brasil

Mas entre todos os países

con-

tinentais, coube ao Brasil assumir

dêsde logo atitude de franco e de-

cidido apoio à doutrina de Mon-

roe, cujo verdadeiro sentido com-

preendemos imediatamente. A

31 de

Janeiro de 1824, acentúa o

sr. Hélio Lobo no seu excelente

trabalho

"O

pan-americanismo, e

o Brasil", o nosso Encarregado de

Negócios em Washington recebia,

instruções para

"sondar

a dispo-

sição dêsse Govêrno a respeito de

uma liga ofensiva e defensiva com

o Império, como parte

do conti-

nente americano, contando que

semelhante liga não tivesse por

base concessões algumas de parte

a parte,

mas que

decorra tão sò-

mente do princípio geral

da con-

vivência mútua, proveniente

da

mesma liga".

Com a admirável visão política

que caracterizava os

grandes es-

tadistas do Império, o então mi-

nistro dos Negócios Estrangeiros,

Carvalho e Melo, escrevia ainda

ao nosso representante em Wash-

ington que

a Europa havia de

prever e receiar

"a

União ou

aliança que podemos

fazer com

os Estados Unidos, formando as-

sim uma política

totalmente ame-

ricana, que

lhes dará cuidado pe-

los acontecimentos que

daí po-

dem decorrer".

Já então, como se depreende

das instruções transmitidas ao

nosso Encarregado de Negócios

em Washington, o Brasil coloca-

va a questão

de sua defesa no pia-

no continental e no terreno da

igualdade das soberanias, em face

de uma investida da Europa,

acentuando que

a liga acaso for-

mada com os Estados Unidos se-

ria feita sem concessões algumas

de parte

a parte,

baseando-se a

aliança tão somente no principio

geral da conveniência mútua.

14CULTURA POLÍTICA

Como que

a reforçar o sentido

pan-americanista dessa

primeira

interpretação ampla da doutrina

de Monroe, Carvalho e Melo lem-

brava que,

dêsse modo, se forma-

ria uma política

totalmente ame-

ricana.

Não será por

certo exagêro afir-

mar, diante de tais antecedentes,

que o Brasil lançou, há mais de

um século, os alicerces da nossa

política de defesa solidária do con-

tinente, baseada na aplicação ir-

restrita da doutrina de Monroe e

numa sólida amizade com os Es-

tados Unidos.

Dificuldades do Brasil

na América

Mas, a exemplo do que

sucede-

ra, por

outros motivos, aos Esta-

dos Unidos, também o Brasil não

pôde colaborar eficientemente,

nos primeiros

tempos, para

o

desenvolvimento da idéia de uma

união defensiva das nações ame-

ricanas. Preconceitos e preven-

ções separaram-nos durante lon-

go período da nossa história dos

países ibero-americanos. A dife-

rença de língua, a conservação do

trono, o regime da escravidão, a

guerra Cisplatina, a

guerra com

o Paraguai, a navegação dos rios

comuns, constituíram as razões

perigosas dêsses desentendimentos.

No entanto, a conservação do

trono representou para

nós a ga-

rantia da unidade nacional, o tra-

balho escravo foi uma fatalidade

da fase de colonização do país

e

as lutas que

sustentamos no Pra-

ta, a despeito dos êrros cometidos,

foram-nos impostas pelas

circuns-

tâncias. Não houvesse o Brasil

acudido em defesa da Província

Cisplatina, quando

D. João

An-

tônio Lavalleja e Frutuoso Rive-

ra invadiram Montevidéu em

1825 e 0 Uruguai não teria desde

logo assegurado sua existência

como país

soberano. A derrota

do exército brasileiro sob o co-

mando de Barbacena, pelo

exér-

cito argentino às ordens de Al-

vear, com a perda,

em Ituzaingo,

de oito mil homens e quarenta

e

oito mil contos de réis, não repre-

sentou o fim da jornada.

A luta

só foi encerrada graças

à media-

ção da Inglaterra, mesmo depois

de negociada e celebrada no Rio

de Janeiro,

em 24 de Maio de

1827, uma convenção com D. José

Manoel Garcia.

O general

Tasso Fragoso, no

seu livro

"A batalha do Passo do

Rosário" escreve que

"a causa

principal do nosso revés foram os

fatores morais". A vitória de

Ituzaingo não pode

ser conside-

rada decisiva. À propósito,

Ro-

nald de Carvalho, que

foi um dos

mais lúcidos pesquizadores

da

nossa história diplomática, escre-

veu, na terceira série de

"Estudos

Brasileiros":

"Depois da vitória,

e apesar dela, o exército de Al-

vear entrou em decomposição,

segundo se colige dos próprios

depoimentos do chefe argen-

tino. Sem munição, sem canhões,

nem armamento ligeiro, com os

soldados em atrazo, desprovida

de roupas e fardamento, sofrendo

de vexações e enfermidades cruéis,

a tropa de Alvear perdeu

o cará-

ter de coesão e unidade, para

se

transformar na

"montonera" in-

disciplinada e revel".

Quanto à

guerra do Paraguai,

quarenta anos mais tarde, também

resultou da invasão do nosso ter*

A DEFESA COLETIVA DA AMÉRICA 15

ritório e lutamos cinco anos, alia-

dos a duas outras repúblicas, a

Argentina e o Uruguai, o que

bas-

ta para

desfazer as intrigas a res-

peito dos nossos

pretensos propó-

sitos imperialistas.

• Restavam a separar-nos da

América espanhola, na verdade, o

trono, a escravidão, a navegação

dos rios comuns, as questões

de

limite.

Já sabemos o

que o trono re-

presentava para a unidade bra-

sileira. Assim, não nos restava

outro caminho senão resistir às

intrigas decorrentes da afirmação

de que

a doutrina democrática

dos libertadores americanos, Bo-

livar, Sucre, San Martin, 0'Hig-

gins, Rivadavia, era incompatível

com o regime imperial.

Em relação à navegação dos

rios comuns, só na aparência era

contraditória a nossa doutrina,

pois o

que exigíamos era a regu-

lamentação da matéria de acordo

com o princípio

clássico da supre-

macia do ribeirinho interior.

No que

diz respeito com os li-

mites dos países

vizinhos, nossa

doutrina tradicional sempre foi a

do uti possidetis

na época da In-

dependência, em antagonismo com

o uti possidetis

chamado de di-

reito.

De tudo isso resultaram desin-

teligências, confusões, dificulda-

des sem conta, durante quasi

um

século. Todos os obstáculos, en-

tretanto, acabaram abatidos. O

Brasil não só desfez as prevenções

que o cercavam como contribuiu

para dissipar as

que se erguiam

contra os Estados Unidos.

As Conferências Pan•

A mericanas

Quando Bolivar tomou, em

1826, a iniciativa da primeira

con-

vocação das nações americanas

para uma assembléia no ístimo do

Panamá, declarou: "O

dia da tro-

ca de poderes

entre nossos pleni-

potenciários formará memorável

época na história diplomatica

americana.

Quando, decorridos séculos, a

posteridade indagar das nossas ins-

tituições políticas

e voltar as vis-

tas para

o pacto que

houver con-

solidado nosso destino, consultará

com veneração os protocolos

do

ístimo.

Nêles descobrirá as bases das

primeiras alianças,

que deverão

regular nosso desenvolvimento

com o Universo. Que

será então

o ístimo de Corinto comparado

com o de Panamá?"

As idéias do Libertador maio-

graram, porém, logo de início.

Por diferentes motivos, o Chile, a

Argentina e os Estados Unidos

não tomaram parte

na Conferên-

cia. O Brasil, embora houvesse

nomeado um representante, não

o fez embarcar, devido aos rumo-

res de uma coligação contra o Im-

pério, motivada

pela guerra na

Província Cisplatina.

Resultou, ainda assim, da Con-

ferência, além de uma tratado de

união, uma convenção em que

se

fixava um contingente militar pa-

ra a defesa comum da América.

A solução das divergências inter-

nacionais pelo

arbitramento, a

abolição do tráfico de escravos, a

garantia da integridade territorial,

foram também assuntos debatidos,

ao mesmo tempo que

vários ou-

16CULTURA POLÍTICA

tros eram transferidos a uma

conferência de plenipotenciários

que se deveria reunir mais tarde.

Entre estes, figuravam as bases

para o desenvolvimento

das rela-

ções entre os

países continentais,

a preservação

da paz,

o emprêgo

dos bons ofícios e da mediação,

problemas comerciais.

Fracassaram igualmente várias

tentativas do México em 1833»

1838, 1840, no sentido da assina-

tura de tratados de amizade e

comércio, bem como para

assentar

meios de evitar a guerra,

resolver

questões de limites e crear um di-

reito público

uniforme. Em 1847,

realizou-se em Lima uma reunião,

à qual

não compareceu o Brasil,

apesar de haver manifestado sua

concordância como os interêsses do

continente. Um fato importante

assinalou a atividade dessa assem-

bléia. Assinou-se um tratado de

confederação, visando a defesa da

América, na base da igualdade

das soberanias, para

a proteção

comum. Além disso, tomou-se

por base,

para resolver os

proble-

mas de limites, o uti possidetis

de

1810, tratou-se do arbitramento,

dos bons ofícios, da extradição,

sugerindo-se a criação da União

Pan-americana e a reunião perió-

dica de um congresso das Nações

continentais, no gênero

do que

fôra lembrado no Panamá, em

1826.

Em 1856, o Chile, o Equador

e o Perú assinaram em Santiago

um tratado de aliança e em 1864

realizou-se uma conferência em

Lima, à qual

não compareceram

vários países,

inclusive o Brasil,

que mais uma vez manifestou sua

solidariedade quando perigassem

a integridade e a independência

das nações americanas. Motivou

a nossa ausência o receio de que

fosse ali tratada a questão

da

guerra, com o Paraguai.

As conferências de caráter ju-

rídico, reunidas, respectivamente,

em Lima e Montevidéu, em 1878

e em 1888, produziram

alguns re-

sultados práticos.

Na primeira,

o Perú, o Chile, a Bolívia, o Equa-

dor, a Venezuela, Costa Rica e a

Argentina assinaram um tratado

de

"codificação

quasi integral do

direito internacional privado".

Infelizmente, a guerra que

então

explodiu no Pacífico impediu

sua execução.

Ainda na conferência de 1878,

verificou-se a ausência do Brasil,

assim justificada

no relatório do

Ministro de Negócios Estrangei-

ros de 1867:

"O

govêrno imperial

reconhece a conveniência e mes-

mo a necessidade de se tornarem

uniformes as legislações nos pon-

tos indicados; crê que

isso é pos-

sível em certa extensão; mas pen-

sa que

só se obterá num futuro

remoto, menos pela

ação diplomá-

tica do que pela

científica, indi-

vidual e coletiva; e que

é prefe-

rível aguardar os resultados dos

trabalhos do Instituto de Direito

Internacional.

Também entende que,

como a

matéria não é de interêsse exclu-

sivamente americano, antes con-

viria um congresso geral

do que

o que

exclusivamente se propõe".

Depois de uma primeira

tenta-

tiva de James

Blaine, Secretário

de Estado dos Estados Unidos da

América, em 1881, para

reunir

uma Conferência Inter-America-

na, ao desencadear-se a guerra

en-

tre a Bolívia e o Chile, na qual

interveiu o Perú em favor daque-

A DEFESA COLETIVA DA AMÉRICA 17

le país,

cm 1888 foi proposta

no-

va conferência, com um progra-

ma mais amplo. Dizia Blaine no

, seu convite:

"Os

delegados pode-

rão mostrar ao mundo uma hon-

rosa, pacífica

conferência de de-

zoito países

americanos indepen-

dentes, unidos em têrrtios de ab-

soluta igualdade; uma conferên-

cia na qual

não haverá nenhum

esforço para

obrigar qualquer

delegado contra o que julgar

in-

terêsse do seu país;

uma confe-

rência que

não permitirá

maqui-

nações secretas em matéria algu-

ma, ao contrário dará com fran-

queza ao mundo o teor de suas

conclusões; uma conferência que

não tolerará o espírito de conquis-

ta, cultivará, sim, a simpatia ame-

ricana tão ampla quanto

o con-

tinente, uma conferência que

não

fará alianças egoístas contra as ve-

lhas nações das quais

nos orgulha-

mos de dizer descendentes; uma

conferência, afinal, que

nada pro-

curará, nada tolerará que

não se-

ja de acordo com o sentido

geral

dos delegados —

oportuna, pru-

dente, pacífica".

Nesse mesmo ano, já

o Brasil

comparecia à conferência de Mon-

tevideu, onde assinou, com o

Chile, Uruguai, Argentina, Peru'

e Bolívia, quatro

convenções sô-

bre as profissões

liberais.

Afinal, reunida em Washin-

gton de 20 de Outubro de 1889

a 19 de Abril de 1890, a Primeira

Conferência Internacional Ame-

ricana iniciou a marcha para

o

congraçamento e a união de todos

os países

do continente. Um

projeto de tratado sôbre o arbi-

tramento, processo que

deveria

ser também usado para

resolver

as pendências

entre a América e

a Europa, foi aprovado. Firmou-

se uma declaração em que

se ba-

nia a conquista territorial do di-

reito público

americano, sendo

consideradas nulas as concessões

de território sôbre a pressão

de

forças armadas ou ameaças de

guerra. Instituiu-se o arbitramen-

to obrigatório em todas as ques-

tões relativas aos privilégios

di-

plomáticos e consulares, aos li-

mites, às questões

territoriais, às

reclamações pecuniárias,

à nave-

gação, à validez, interpretação e

execução dos tratados.

Creou-se ainda o Bureau Inter-

nacional das Repúblicas America-

nas, destinado a reunir e publi-

car informações relativas ao cò-

mércio, aos produtos,

às leis e às

tarifas dos países que

o com-

põem".

Evolução da política pan-

americanista do Brasil

No correr dos trabalhos dessa

Primeira Conferência Internacio-

nal Americana, proclamou-se

a

República no Brasil, tendo sido

pouco antes abolida a escravidão,

Embora o Conselheiro Lafaiete

Rodrigues Pereira solicitasse de-

missão, os demais delegados bra-

sileiros permaneceram

nos seus

postos e a nossa colaboração foi

ali das mais eficientes. Habitua-

dos à prática

do arbitramento em

tratados e convenções para

resol-

ver questões

internacionais, a:n-

da que

com a ressalva da liberda-

de para

a escolha do árbitro,

apoiámos dêsde logo sua institui-

ção, sugerindo fosse organizada

uma lista permanente

de juizes,

de onde se escolheria o árbitro, o

que foi mais tarde adotado em

Haia.

18 CULTURA

Onze anos depois, reuniu-se no

México, de 2 de Outubro de

1901, a 31

de Janeiro

de 1902, a

Segunda Conferência Internado

nal Americana, à qual

compare-

ceram 19 países, pois

acabava de

ser proclamada

a Independência

de Cuba. Nela, ressalvou-se que

a política

americana não visava se-

parar-se do Velho Mundo, fonte

da nossa civilização. Problemas

econômicos e financeiros, meios

de comunicações, questões alfan-

degárias e outros assuntos corre-

latos foram objeto de exame, re-

comendações e debates. Re for-

mado e ampliado o Bureau Inter-

nacional de Washington, cuidou-

se de intensificar o intercâmbio

cultural e artístico, sob diversas

formas, entre os países

continen-

tais. Medidas sanitárias, a extra-

dição de criminosos, a repressão

ao anarquismo também merece-

ram a atenção da conferência.

Sòmente quanto

ao arbitramen-

to, o progresso

foi pequeno,

ape-

sar de já

assinada em Haia, a 29

de Julho

de 1899, a convenção

para solução

pacífica dos confli-

tos internacionais, com a creação

da Corte Permanente de Justiça,

onde seriam escolhidos os juizes

para cada

pendência. Em com-

pensação, a idéia da codificação

do direito internacional america-

no, proposta pelo

delegado brasi-

leiro José

Higino, entrou então

em marcha.

Apesar dos sucessos relativos

dessas duas primeiras

conferên-

cias, a reunião decisiva para

o

desenvolvimento da idéia da

união dos países

americanos foi

a realizada no Rio de Janeiro.

À Terceira Conferência Interna-

cional Americana, reunida de 21

POLÍTICA

de Julho

a 26 de Agosto de 1906,

só não compareceram a Venezue-

la e o Perú. A presença

de Elihu

Root, Secretário de Estado da

União Americana, de Rio Bran-

co, então Ministro das Relações

Exteriores, de Joaquim

Nabuco,

nosso Embaixador em Washing-

ton, e outras circunstâncias, mar-

caram de maneira excepcional a

memorável assembléia.

A política

de Rio Branco

Data desse acontecimento a in-

corporação definitiva do Brasil

entre as nações que

caminhavam

à frente do movimento pan-ame-

ricanista. Sua posição

em face

dos demais países

continentais já

se havia modificado de modo sen-

sível. Em i9°5» P°r

ocasião do

Terceiro Congresso Científico La-

tino Americano, Rio Branco,

traçava, com sua habitual cia-

rividência, o caminho segura

que a América deveria tri

-

lhar. Afirmava então o grande

chanceler:

"E' indispensável que,

antes de meio século, pelo

menos,

quatro ou cinco das maiores na-

ções da América Latina,

por no

bre emulação, cheguem, em recur-

sos defensivos, como a nossa gran-

de irmã do Norte, a competir

com os mais poderosos

Estados

do mundo".

Pouco depois, na inauguração

da Terceira Conferência Inter-

nacional Americana, para

mos-

trar que

nessa atitude da Amé-

rica não havia nenhuma hostili-

dade à Europa, Rio Branco decla-

rava:

"Aos

países da Europa, a

que sempre nos ligaram e hão de

ligar laços morais e tantos inte-

reses econômicos, só desejamos

A DEFESA COLETIVA DA AMÉRICA 19

continuar a oferecer as mesmas

garantias que lhes tem dado até

hoje o nosso constante amor à

ordem e ao \ progresso".

A essa política permaneceu

sem-

pre fiel o Brasil e Rio Branco foi,

durante largo período,

o seu obs-

tinado executor. Êle lançou, co-

mo acentuou Calógeras nos seus

"Estudos

Históricos e Políticos",

as bases da verdadeira cooperação

dos povos

americanos, procuran-

do

"fazer

do conjunto dos seus

respectivos territórios o continen-

tc da paz".

A ação de Joaquim Nabucc

Os conceitos de Joaquim

Na-

buco iam, por

vêzes, além dos de

Rio Branco, nesse particular

.n

Êle não hesitava em afirmar, em-

bora reconhecendo os resultados

fecundos da transplantação da

cultura européia para

a Améri-

ca, que

estávamos, pelo

menos

politicamente, desligados

por

completo da

"órbita

européia".

São palavras

suas:

"a

conciência

americana é o sentimento da nos-

sa órbita especial, inteiramente

separada da européia, com a qual

se movem a Ásia e a África, sem

falar na Austrália. Com tôda a

nossa simpatia e interêsse pela

Europa, côncios do que

devemos

ao influxo europeu, produto que

somos do transbordamento das ra-

ças européias, duvidando mesmo

que em nosso solo as hastes da

cultura européia possam produ-

zir os mesmos frutos ou as m65-

mas flores que

no próprio

solo,

somos todavia um sistema políti-

co inteiramente desligados da ór-

bita européia".

Esclarecida assim a posição

da

América em face da Europa, cou-

be ainda a Joaquim

Nabuco ini-

ciar o trabalho do Brasil para

dis-

sipar velhas prevenções

da Amé-

rica espanhola com os Estados

Unidos e sua aversão à doutrina

de Monroe. Afim de assegurar o

êxito da Conferência do Rio de Ja-

neiro, que

constituiu um sólido

marco fincado na estrada larga

do pan-americanismo, êle ainda

escrevia: "...

é necessário que

as

Repúblicas Americanas não jul-

guem o

papel que os Estados Uni-

dos tiveram e teem que

represen-

tar para

defender a doutrina de

Monroe, como ofensivo de modo

algum ao orgulho e dignidade de

quaisquer delas, mas, ao contrá-

rio, como uiíi privilégio que

tô-

das devem apoiar, ainda que

seja

só com a simpatia e gratidão.

Is-

so será, sem dúvida, o resultado

da Conferência Pan-Americana".

Mais adiante acrescentava: "Es-

sas conferências são os meios de

comunicação, enquanto não se

tornam a comunhão das Repúbli-

cas americanas".

O Brasil e a doutrina

de Monroe

Desde essa época, a diplomacia

brasileira não cessou de trabalhar

no sentido de; ampliar a interpre-

tação da doutrina de Monroe, vi-

sando incorporá-la ao pan-ameri-

canismo e ao mesmo tempo pro-

mover a organização efetiva da

defesa do continente. Na Con-

ferência do Rio de Janeiro,

Elihu

Root favoreceu êsse trabalho,

acentuando no seu discurso:

"Não

desejamos vitórias senão as da

paz; território senão o nosso; so-

berania alguma, a não ser a so-

berania sobre nós mesmos.

20 CULTURA

Consideramos a independência

e a igualdade do direito do me-

nor e do mais fraco membro da

família, com o mesmo título a se-

rem respeitadas que as do mais

vasto império; e consideramos a

observância desse direito a prin-

cipal garantia

dos fracos contra a

opressão dos fortes.

Não reclamamos nem

quere-

mos direitos, nem privilégios,

nem

poderes, senão os

que francamen-

te reconhecemos a cada Republi-

ca americana.

Desejamos aumentar a nossa

prosperidade, expandir o nosso

comércio, crescer em riqueza, em

saber e em espírito; porém a nos-

sa concepção do verdadeiro cami-

nho, para

isso conseguir, não é

derrubar os outros e aproveitar-

mos da sua ruína, mas sim, auxi-

liar todos os amigos a alcançar a

prosperidade geral

e a riqueza co-

mum, afim de que juntos possa-

mos tornar-nos maiores e mais

fortes".

A Conferência do Rio de Ja-

neiro reformou mais uma vez o

Bureau de Washington, incum-

bindo-o de preparar

o programa

poiiinoA

das Conferências e

promover

a

ratificação de suas deliberações.

Os problemas

economicos, finan-

ceiros, de comunicações, sanitá-

rios, de policia,

as marcas de f«.i-

bricas, as relações comerciais fo-

ram assuntos que avançaram

bastante. Uma Junta

de Júris-

consultos, da qual participariam

pelo menos doze

países america

nos, foi incumbida de promover

a codificação do Direito Interna

cional americano, de organizar

um Código de Direito Internado-

nal Público e outro de Direito In-

ternacional Privado, baseados nos

tratados e convenções da Améri-

ca, nos tratados de Montevidéu

e nos projetos

da segunda Confe-

rência Internacional Americana.

A extraordinária projeção dos

grandes homens que participaram

da Conferência, um ambiente em

que se desenvolveram

os traba-

lhos, as conclusões a que

chega-

ram os delegados, fizeram com

que essa assembléia fosse consi-

derada uma etapa decisiva na pe-

nosa evolução da idéia da união

dos países

americanos para a de-

fesa coletiva do continente.

Açudagem e irrigação no Nordeste

O fator

"tempo"

na solução do problema

econômico-

social da região seca

OSIAS GUIMARÃES

Da Comissão de Serviços Complementares

da Inspetoria de Sêcas

Servindo como engenheiro e técnico do serviço de obras contra as sêcas

do Nordeste brasileiro, autor de uma obra recentemente publicada,

"Amor

à Terra" (Rio, 1941), sobre as realizações do Governo no Nordeste

expõe-nos o autor nêste artigo, o estado atual dos serviços de açudagem e

irrigação. tles exigem o fator

"tempo"

para serem resolvidos; mas

estão hoje em vias de franco e cabal solucionamento.

"Não temos a

preterição de apresentar resultados conclusivos,

mesmo após três anos, porque as

questões sociais evoluem, carecem

de uma compreensão poli-angular e não se deixam interpretai

somente pela rigidez matemática dos números estatísticos".

(GUIMARAES DUQUE

— Fomento da Produção Agrícola)

O

SISTEMA governamental

do País, melhorado pelas

idéias esboçadas na revolu-

ção de

30 e completamente

esta-

belecido com a organização do

Estado-Novo, trouxe como conse-

quência fundamental a modifica-

ção de hábitos, até então arraiza-

dos e que

só um trabalho eficien-

te com demonstrações práticas e

honestas conseguiu transformar.

O curto período presidencial,

sujeito a variações bruscas, ao sa-

bor de correntes políticas

domi-

nantes, criou uma mentalidade

prejudicial ao brasileiro, sempre

apto a receber as inovações pra-

ticadas com a preocupação pri-

mordial de verificar imediatamen-

te o fruto dessas iniciativas que

quasi sempre caíram no descrédi-

to pela

impossibilidade de reali-

zação no curto prazo

estabelecido.

O regime das

"clássicas

O

plataformas"

Vivia-se então no regime das

"clássicas

plataformas" que conti-

nham uma série de promessas

de

cuja conclusão dependia a conti-

nuação do mesmo sistema de go-

vêrno, com a prévia

aceitação do

••

CULTURA POLÍTICA

candidato, escolhido anteriormen-

te pelos poderes políticos.

Estas soluções de continuidade,

entravando o desenvolvimento do

País, trouxeram como consequên-

cia a apresentação de inúmeros

trabalhos até certo ponto

úteis à

Pátria, mas de cujo valor depen-

dia o período

em que

deveriam

ser executados.

O sucesso de uma administra-

ção estava

portanto na razão di-

reta das realizações efetuadas den-

tro de um prazo

relativamente

curto.

O nosso espírito, criado num

regime cuja base principal

se

apoiava na assertiva que

fizemos

linhas acima, até hoje sofre êstes

efeitos perniciosos que

só um

trabalho inteligente, mercê de

propagandas honestas conseguirá

modificar.

O êxito da forma

de governo

O segrêdo portanto

do êxito de

uma forma de govêrno

residirá

na confiança que

a Nação deposi-

tar em seus dirigentes.

O Estado-Novo, criado em 37,

parece ter compreendido a impor-

tância dêste problema

essencial à

vida e progresso

do País.

Uma forma de govêrno,

cujo

fator de sucesso depende do ele-

mento tempo para

solução de seus

problemas, está invariavelmente

sujeita a fracassos, porque

ela in-

sensivelmente provoca

no espíri-

to dos observadores a atenção pa-

ra determinados pontos

cuja cri-

tica fortalecerá ou diminuirá os

seus propósitos por

mais louvâ-

veis que

sejam .

Podia-se pensar

na organização

do ensino público

se esta organi-

zação estivesse sujeita a transfor-

mações num período

relativamen-

te curto de 4

anos?

Ter-se-ia a solução do proble-

ma da siderurgia se fatores políti-

cos, sugeitos a transformações tem-

porárias, modificassem o ritmo

indispensável à sua conclusão?

A lógica apoia positivamente

o

nosso ponto

de vista.

Se questões,

cujo fim está niti-

damente estabelecido, sofrem es-

sas modificações prejudiciais

o

que poderemos dizer de

proble-

mas de relevada importância so-

cial-econômica, cujo fator êxito

dependerá exclusivamente de ob-

servações cuidadosas e demoradas?

Não seria o antigo regime, per-

tubado pelas

transformações pe-

riódicas, a causa da insolubilida-

de de inúmeras questões que

hoje

vêm sofrendo soluções adequadas

dentro dos princípios

normais de

trabalho?

Só se procura

construir alguma

coisa com a certeza absoluta de

conclusão que

será assim o justo

prêmio dos esforços dispendidos.

Mas, quando

não existe essa

certeza absoluta, não nos encora-

ja a iniciativa de determinados

estudos, ora com o receio natural

e humano de um fracasso por

fal-

ta de tempo indispensável, ora

pelo desgosto

que muitas vêzes nos

causa a incompreensão que

trás

como conseqüência a paralização

de serviços.

Não nos parece

necessário des-

cer a minúcias ou citar exemplos

para melhor explicar o nosso

pon-

to de vista.

Uma das maiores obras

do Brasil

O Govêrno Ge túlio Vargas exe-

cuta no Nordeste uma das maio-

AÇUDAGEM E IRRIGAÇAO DO NORDESTE 23

res obras que

o Brasil conseguiu

realizar até a presente

data. E

no entanto êste serviço, que

é um

verdadeiro atestado do valor e

operosidade dos técnicos nacio-

nais, teve o seu ritmo de trabalho

por diversas vêzes interrompido,

dependendo a sua melhor ou

peior situação dos

governos que

se sucediam vertiginosamente e

que demonstravam interêsse ou

não pelas questões

nordestinas.

Não se desconhecia em absolu-

to a extrema necessidade de se re-

solver um problema

social de

magna importância. E não falta-

ram também exemplos que

enco-

rajassem os nossos dirigentes no

combate às causas que

impossibi-

litavam o desenvolvimento eco-

nômico social da região.

No entanto, por

diversas vêzes,

o serviço foi interrompido.

Em determinadas ocasiões uma

larga distribuição de verba era

endereçada à repartição compe-

tente. Noutras, a importância a

distribuir era tão ridícula que

praticamente desaparecia o servi-

ço de assistência à região sêca. E

nessas alternativas escoava-se um

tempo precioso

sem que

se conse-

guisse chegar a uma solução

pra-

tica, capaz de compensar as des-

pesas efetuadas.

Havia portanto,

como existe

hoje em dia, um paralelo

entre o

desenvolvimento dos trabalhos

da Inspetoria e o período presi-

dencial em vigor.

Estabelecido um progra-

ma de ação

A partir

de 30, porém,

foi esta-

belecido um programa

de ação

para a Inspetoria de Sêcas e dos

resultados colhidos por

êste im-

portante órgão dos serviços

pú-

blicos pode-se

avaliar a atuação

de um governo, que

além de ter

a seu lado o número necessário

de técnicos competentes, soube

contar com um fator primordial,

que é o tempo, base onde se apoia

sua ação construtora.

Dos trabalhos executados pela

Inspetoria Federal de Obras Con-

tra as Sêcas não se pode

esperar

um resultado prático

subordina-

do a um espaço de tempo prévia-

mente estabelecido. Êsse é justa-

mente o êrro em que

labutam os

eternos descontentes ou aquêles,

que ainda não afeitos ao novo re-

gime, criticam o valor de uma ad-

ministração pelo programa

apre-

sentado e pelo

tempo que

dispõe

para a execução dos serviços.

O problema

econômico-

social da região

O problema

econômico-social

da região sêca há de ser soluciona-

do com a lentidão que

o caso re-

quer, explorando-se

previamente

o terreno, verificando-se as ques-

tões minuciosamente, empregan-

do-se enfim meios que podem

va-

ri ar, de acordo com os fatores

existentes.

Não há termo de comparação

entre os serviços outrora realiza-

dos no Nordeste e a finalidade

que resulta de um estudo cuida-

cioso, destinado a colhêr, sem pra-

zo previamente

determinado, os

frutos provenientes

da melhoria

de uma região, que

apresenta co-

mo garantia

indispensável, possi-

bilidades econômicas de grande

alcance.

Não desconhecemos em abso-

luto os esforços dispendidos no

24CULTURA POLÍTICA

auxílio aos flagelados do Nordcs-

te. Foram, porém,

ações isoladas,

passageiras, que muito serviram

aos necessitados mas pouco

influi-

ram, no ponto

de vista econômico-

social, à região sôbre a qual

se

abateram os flagelos do inverno

rigoroso e da seca impiedosa.

O estudo das secas do

Nordeste

Não é recente entre nós o estu-

do das sêcas do Nordeste. Acom-

panhando a História, vamos en-

contrar referências sôbre o assun-

to no século XVII (1625,

1777

e 1791), onde tres períodos,

rela-

tivamente longos, assolaram o

Ceará, Rio Grande do Norte e

Paraíba.

Partindo desta data, verifica-

mos a sucessão alarmante das va-

riações climáticas que

impossibi-

litou as condições normais de

vida de uma região, outrora fértil

e produtiva.

Ainda no tempo do

Império as conseqüências desas-

trosas da terrível sêca de 1877 ser-

viram para que

o Govêrno passas-

se a olhar de modo diferente o

problema, tal o desiquilíbrio eco-

nômico verificado após 31

anos dc

bons invernos, que

haviam colo-

cado a região numa posição

inve-

jável na balança comercial do

País.

A despesa de 8o.ooo:ooo$ooo na

sêca de 77

serve como atestado fri-

sante do interesse do Govêrno em

auxiliar a região flagelada.

Infelizmente o impulso inicial,

até certo ponto

explicável pela

situação de miséria existente, li-

mitava-se mais a uma obra de as-

sistência momentânea do que pro-

priamente ao estudo de uma

ques-

tão que

custou ao País uma de>-

pesa considerável e largos anos de

estudo.

Como bem diz o articulista

Naílor Vilas Boas...

"... o sentimento religioso

afinado ante o espetáculo dz

miséria extrema generalisada,

todo o impulso dos dirigentes

se conduzia muito naturalmen-

te, no sentido de caridade ape-

nas. . .

O impulso humanitário do Go-

verno teve influência capital no

auxílio que

se fazia mister.

Amparava-se, portanto,

o lio-

mem, o que

de fato era indispen-

sável, mas se esqueciam da causa,

da região, que

se devia melhorar

como único meio de combate efi-

caz às situações que

desta maneira

se criavam.

E o problema por

largo espaço

de tempo continuou o mesmo, so~

frendo modificações, de acordo

com as variações existentes no am-

biente. E pelo

resumo que

iremos

fazer das atividades no tempo do

Império, pode-se

muito bem ava-

liar de que

modo o Govêrno en-

carou a questão

e quais

os meios

que dispunha

para resolvê-la.

A primeira provi-

delicia oficial

Em 1831 surgiu a primeira pro-

vidência oficial com um decret >

que autorisava a abertura de

"fontes

magnesianas", podendo

o

Govêrno empregar engenheiros

naturais ou mandar vir da Euro-

pa engenheiros hábeis em as fa-

zer.

Em 1844 cogitou-se da constru-

ção de açudes e em 1847-48 a Pro-

víncia da Paraíba manteve uma

AÇUDAGEM E IRRIGAÇAO DO NORDESTE 25

comissão para

estudo do interior,

com a finalidade de indicar e pro-

jetar as obras

que se tornassem

necessárias .

Apesar de algumas outras me-

didas tomadas sobre o assunto, a

seca de 77 quasi

nada encontrou

que lhe

podesse servir de obstá-

culo e só então o problema

se re-

vestiu de gravidade,

chegando ao

ponto de

provocar imediata rea-

ção por parte do Governo,

que,

como já

dissemos, refletiu-se sô-

bre elevado número de retiran-

tes, vítimas do terrível flagelo.

Mas a situação continuou a

mesma, com pequenas

alternati-

vas, até o advento da República

onde começaram a ter lugar as

obras de assistência à região sêca.

Assim vamos encontrar no ano

de 1900 um crédito de dez mil

contos de réis (io.ooo:ooo$ooo)

para ser empregado com o apro-

veitamento de indigentes. Foi

efetuada a construção de açude >

(Acaraú-Mirim, Jordão, Panta e

Paparí, sendo muito curto o pe-

ríodo de execução, pois

em 1901

os trabalhos foram suspensos.

Teve lugar então o despovoa-

mento da região nordestina com

a remessa de braços para

a Ama-

zônia, solução que

no momento

pareceu a mais indicada.

O inicio do serviço no

governo Rodrigues

A Ives

N o Govêrno Rodrigues Alves

começou o serviço a adquirir uma

certa feição, registrando-se a cria-

ção de diversas Comissões, tais co-

mo: a Comissão de Açudes e Irri-

gação, com séde no Ceará, a Co-

missão de Estudos e Obras Con-

tra os Efeitos das Sécas e a Co-

missão de Perfurações de Poços.

Em 1906, ministro Lauro Mui-

ler, houve a fusão das tres Comis-

sões, sendo criada a Superinten-

dência de Estudos e Obras Contra

as Sêcas.

Somente no Govêrno Afonso

Pena, sendo ministro Miguel Cal-

mon, iniciou-se o desenvolvimen-

to das atividades governamentais.

Na presidência

Nilo Peçanha,

ministro Francisco Sá, foi criado

o verdadeiro órgão dos serviços

públicos e com o Decreto n.°

7619,

de 21 de Outubro, teve lugar a

instalação da Inspetoria que pas-

sou a funcionar sob a direção de

Arrojado Lisboa, abrangendo um

campo de ação no total de nove

Estados, isto é, do norte de Minas

até o Piauí.

Constantes alterações

Desta data em diante o ritmo

de vida da Inspetoria foi constan-

temente alterado. Inúmeras re-

formas se realizaram e em 1920,

com a formação da Caixa Espe-

ciai das Obras de Irrigação, pou-

de o Governo realizar diversos tra-

balhos de grande

significação téc-

nica.

O Decreto 16.403 de 12 de

Março de 1924 extinguiu a Caixa

Especial e houve uma verdadeira

paralização dos serviços

que tão

destacadamente se vinham im-

pondo.

De 1924 a 1930 muito pouco

te-

mos a registrar, sendo a partir

desta data traçado o programa

da

Inspetoria que

hoje vem se desen-

volvendo em toda expressão do

seu valor, constituindo, com a fi-

nalidade de seus serviço se pelos

técnicos de que

dispõe, um ele-

mento de primeira grandeza

na

'

26CULTURA POLÍTICA

obra de reerguimento econômico

que o Govêrno Vargas vem exe-

cutando no País.

Como poderemos

explicar as

alterações que pertubaram

a fina-

lidade do importante serviço cria-

do para

atender as necessidades

do Nordeste? Os dados econônu-

cos a partir

de 1909 esclarece-nos,

por um lado, êste detalhe:

1909/10

1911/14 ;

1915/18 (inclusive crédi-

ditos especiais por fôr-

ça de sêcas)

1919/22 (vigência da

Caixa Especial) . . •

1923/26

1926/30

Os resultados no pe-

riodo 1930-40

Os resultados obtidos no perío-

do 30-40

mostra-nos realmente o

motivo porque

sòmente agora se

consegue alguma coisa de aprovei-

tável na resolução dos problemas

de irrigação e da melhoria do am*

biente econômico-social da região

sêca.

Não existe mais a preocupação

de executar um serviço dentro de

um espaço de tempo limitado. Se-

gue-se à risca um

programa tra-

çado e os seus orientadores, inte-

grados num mesmo sentimento

patriótico, dispendem as suas

energias na certeza absoluta de

que atingirão um fim colimado,

que será o

justo prêmio dos es-

forços empregados numa luta

constante contra a natureza in-

grata do sertão. E os

que caem

no caminho do dever incentivam

os demais no prosseguimento

da

grande obra.

A direção dos trabalhos

A Inspetor ia Federal de Obras

Contra as Sêcas possue

uma pléia-

1.545*.6o5$6i9

I7-972:i33$i83

19.ii2:o27$3oo

o

316.507:7858899

87.O56:275$526

35.644:1195731

de notável de técnicos, dirigidos

por um orientador esclarecido,

espírito afeito aos problemas

do

Nordeste, engenheiro Luiz Augus-

to da Silva Vieira. O número de

publicações atesta o trabalho exe-

cutado e hoje quem percorre

os

sertões da Paraíba pode

verifi-

car os resultados colhidos pela

Comissão de Serviços Complemen-

tares, que

teve como seu organi-

zador e orientador a figura ines-

quecível de

José Augusto Trin-

dade, cujo desaparecimento re-

cente representa uma perda

ines-

timável para

a Pátria.

Um dos seus últimos trabalhos,

"Os Postos Agrícolas da Inspeto-

ria de Sêcas" é um resumo magní-

fico das atividades governamen-

tais no amparo à lavoura, na as-

sistência à pecuária

e no auxílio

indispensável ao homem do ser-

tão. Por êle podemos

verificar

"a

ação direta dos Postos Agrícolas

sobre o ambiente sertanejo, como

amostra, exemplo e encaminha-

mento da própria

lavoura irriga-

da da região em suas estreitas re-

lações com o mesmo ambiente".

Não teve êsse serviço, de real

AÇUDAGEM E IRRIGAÇAO DO NORDESTE 27

Importância, a preocupação

dos

ciados estatísticos.

A função dos Postos

Agrícolas

"O

que os Postos Agrícolas da

I. F. O. C. S. realizam, com re-

sultados concretos, é um estudo

experimental imediato da irriga-

^ão no sertão, nos seus vários as-

pectos, econômico, agronômico e

sociológico. E' a entrosagem da

irrigação no ambiente físico, eco-

nômico e social do sertão". (José

Augusto Trindade).

Os Postos Agrícolas atuam,

pois, diretamente, no sentido de

melhorar as condicões: de vidaj

na região seca.

Nêles reside o aproveitamento

das grandes

obras hidráulicas, que

a engenharia tiacional, numa ma-

gnífica demonstração de valor e

técnica, executa no Nordeste. E

pelo número de trabalhos

que

vem realizando, pode-se

ter uma

idéia de sua importância e do

quanto tem contribuído

para a re-

solução do problema

social-eco-

nômico da região:

"métodos

de preparo

do solo

para a irrigação, regras

para

aplicação dágua; ensaios de ada-

ptação de unia numerosa cole-

cão de novas espécies e varie-

dades de plantas

de valor eco-

nômico, estudo comparativo 5Ô-

bre as culturas de exploração

mais conveniente sob irrigação,

do ponto

de vista de adaptabi-

lidade ao meio, de colocação

nos mercados e de rendimento;

a associação da criação à irri-

gação, aproveitando os nossos

recursos forrageiros desta deri-

vados, em suplemento às fon-

tes naturais de gramíneas

e ra-

ma; formação de reservas for-

rageiras pela

fenação e ensila-

gem; observações sobre o com-

portamento no sertão dentro

das novas condições trazidas pe-

la irrigação, de raças finas de

bovinos, porcinos

e aves e o seu

cruzamento com o gado

criou-

lo

".

(José Augusto Trindade —

Boletim da IFOCS — 1940).

Os Postos Agrícolas, dotados de

técnicos competentes, realizam

suas experiências em todos os se-

tores da atividade biológica, sob

o ponto

de vista fundamental da

irrigação.

A recente instalação dos labo-

raiórios no Posto Agrícola de São

Gonçalo veiu tornar possível

a

solução de inúmeros problemas

da agricultura irrigada e de ques-

toes agrológicas, peculiares

ao

Nordeste.

A assistência à lavoura e à pe-

cuária, o aproveitamento econômi-

co da flora indígena, serviços de

cooperação, questões

de sociolo-

gia rural, tudo enfim faz

parte do

programa traçado

pela comissão

de Serviços Complementares, cujos

resultados podem

ser, em parte,

apreciados.

No seu importante trabalho,

"Fomento

da Produção Agrícola",

o agronômo Guimarães Duque

traça em planos gerais

a conduta

a se seguir 110 Nordeste com rela-

cão ao desenvolvimento da agri-

cultura.

E* um verdadeiro programa,

on-

de estão bem esclarecidos os pon-

tos em que

se deve apoiar o Go-

vêrno na obra de assistência ao

sertanejo e na fixação do elemen-

to indispensável à terra.

28CULTURA POLÍTICA

"O flagelado é

pobre, o seu

capital inicial é a sua moral e

a de seus filhos. O colono ir-

rigante precisa

ser moldado,

trabalhado, formàdo nas minu-

cias de qualidades

morais e nos

conhecimentos técnicos para

a

nova vida".

A melhoria das con-

dições de x'ida

A melhoria das condições de

vida do sertão não pode

ser obti-

da, senão após longos anos de ex-

perinientação e trabalhos bem

orientados.

As experiências feitas pelo

agrô-

norao Guimarães Duque, atual

Secretário da Agricultura do Es-

tado da Paraíba, revelaram a pos-

sibilidade de se atingir a um fim

previamente determinado, ressal-

tando o fator tempo, como pon-

to principal

da questão.

O preparo

da terra e o rendi-

mento obtido nas culturas de di-

versos operários do Posto foram

largamente compensadores nas

experiências feitas

por aquêle

ilustre profissional.

O resultado obtido pela

divi-

são de determinada área de ter-

ra (16

hectares) por

um número

proporcional de

pessoas (16 famí-

lias) constituiu a base do estudo

do importante problema

da colo-

nização da bacia de irrigação.

O desenvolvimento das escolas

rurais, os ensinamentos técnicos

indispensáveis, tudo isto enfim, fa-

zendo parte

dos trabalhos da Co-

missão de Serviços Complementa-

res, contribuiu poderosamente pa-

ra a grande

obra que

o Govêrno,

por intermédio da Inspetoria Fe-

deral de Obras Contra as Sêcas,

vem realizando em pról

do desen-

volvimento econômico da impor-

tante região.

"Compreende-se

que as sêcas,

como fenômenos naturais não

possam ser evitadas, mas é cri-

me não lhes neutralizar os efei-

tos devastadores pela

execução

de uma série de medidas previ-

dentes". (Getulio

Vargas).

Nossa política

de comunicações

O plano

Bicalho e o plano

Bulhões

MARIO TRAVASSOS

Tenente-Coronel, Instrutor-Chefe do Curso de Pre-

paração da Escola de Estado Maior do Exército

Nêsse estudo o autor pretende

reconstituir os fundamentos e a evolução

da política

de comunicações brasileira, apreciando os fatos à luz das regiões

naturais de circulação que

admitiu, para

o nosso território, no ensaio

saido a lume no primeiro

número desta Revista. Deve-se ainda acres-

centar que

o presente

trabalho, assim considerado, servirá de base ao

estudo do Plano Geral de Viação Nacional que

corporifica a atual política

de comunicações brasileira.

COMETERIA

grave injustiça

quem deixasse de reconhecer

os sérios esforços, já

dispen-

didos pelos

homens públicos

bra-

sileiros, para garantir

a unidade

e a segurança de nosso país por

meio de judiciosa política

de co-

municações.

Como veremos, as linhas de

menor resistência ao tráfego em

nosso vasto espaço geográfico,

ou

melhor, as suas linhas naturais de

circulação, não passaram

desper-

cebidas aos responsáveis pela

coi-

sa pública

em nosso país, pelo

me-

nos a partir

do momento em que

se tornou possível, para

êles, en-

saiar visões de conjunto sôbre os

problemas nacionais.

Infelizmente, pode-se

hoje cons-

tatar, por

estudos retrospectivos,

que todos os seus esforços não

conseguiram dominar senão a pri-

meira parte

da tarefa de crear-se

uma política

de comunicações, de

vez que

uma tal poltica

só se ma-

nifesta no terreno da prática pe-

la escolha judiciosa, pelo

emprê-

go adequado de meios de trans-

porte mais aptos à neutralização

de certas anomalias viatórias, no

caso brasileiro causadas por

uma

evolução histórica a mercê do pre-

domínio, mais ou menos genera-

lisado, das influências marítimas.

Sempre que

abordámos a segun-

da parte

da formulação de nos-

sa política

de comunicações —

a

parte essencial

porquanto só os

meios de transporte podem

dar vi-

da às linhas naturais de circula-

ção

— temos nos deixado vencer,

quer pela visão imediatista ori-

unda de pressões

regionais, quer

30 CULTURA POLÍTICA

por preconceitos gerados pela téc-

nica dos meios de transporte ou,

ainda, por

ambas essas forças ne-

gativas conjugadas, isto é, atuan-

do concurrentemente.

Desse estado de coisas resultou

que, em

princípio, quasi sempre

pudemos ver bem a

questão dos

traçados, mas quasi

nunca temos

podido realizá-los.

O primeiro plano

de

viação nacional

Sòmente em 1881, as linhas ge-

rais de uma política

de comuni-

cação poude

ser formulada num

plano de viação

que, por sua en-

vergadura, poder-se-ia

chamar de

nacional.

Devemos esse plano

ao Enge-

nheiro Honório Bicalho, então

chefe da Diretoria de Obras Pú-

> blicas que,

segundo instruções

recebidas, organizou o projeto

da

rede geral

das comunicações bra-

sileiras, para

efeito de uma lei

que o Govêrno Imperial apresen-

taria ao Poder Legislativo.

Da exposição com que

apresen-

ta a seu plano,

cumpre-nos fazer

os precisos

comentários sôhre tres

de seus tópicos, destacados pelos

autores do plano

de viação na-

cional vigente.

No primeiro

désses tópicos con-

ceitúa o Engenheiro Bicalho:

"Se

até aqui, quando

havia

maior massa de interesses co-

merciais a satisfazer em primei-

ro lugar, podia

bastar para

a

distribuição do favor da lei a

procura promovida pelo espí-

rito de iniciativa industrial e

de associação, é hoje indispen-

sável que

o Govêrno adote um

sistema para

uso de nova lei,

de modo'a fazer convergir seus

favores de preferência para

as

emprezas que

dêles mais carece-

rem e segundo a urgência de

sua realização".

Nesse primeiro

tópico transpa-

rece, pela primeira

vez, a necessi-

dade de orientar-se as atividades

no sentido dos interesses nacio-

nais e a preciosa

noção da ordem

de urgência, como dos mais es-

senciais às condições de execução-

dos trabalhos viatórios.

No segundo tópico diz o Enge-

nheiro Bicalho:

"Para

base desse sistema e

necessário estabelecer o plano

das grandes

linhas principais

de

viação, que

devem facilitar co-

municações internas entre todas

as províncias

do Império e pro-

porcionar entroncamentos mais

próximos às vias de comunica-

ções de mais ou menos limita-

do interêsse local, que

levem a

todos os pontos

o benefício de

um meio de transporte aperfei-

çoado".

Nêsses conceitos lança o Enge-

nheiro Bicalho a idéia dos gran-

des troncos, com os quais

deve-

riam articular-se vias ou redes tri-

butárias, noção essa fundamental

em qualquer

sistema de comuni-

cacões.

Finalmente, no terceiro tópico,

dos citados no atual Plano de Via-

ção e

que estamos comentando,

conceitúa, ainda, o Engenheiro

Bicalho:

"O

primeiro meio

que mais

naturalmente se apresenta para

vencer as grandes

distâncias que

quasi isolam as diversas

provín-

NOSSA POLÍTICA DE COMUNICAÇÕES 31

cias do Império é utilizar a na-

vegabilidade natural e aperfei-

çoada dos rios mencionados e

dos seus afluentes e ligá-los por

meio de estradas de ferro con-

venientemente traçadas em po-

sição das grandes

linhas futu-

ras, e formar assim primeiras

linhas gerais

mixtas de viação a

vapor, que

atuem como gran-

des artérias para

levar o movi-

mento da vida intelectual e o

impulso do progresso

das capi-

tais a todos os pontos

do gigan-

te corpo do Brasil".

Nesse terceiro e último tópico,

dos escolhidos para

a caracteriza-

ção do Plano Bicalho, ressaltam

dois aspectos decisivos para

a de-

terminação de uma política

de

comunicações, num território

complexo como o do Brasil, a

saber:

i.° —

a idéia de assegurar a

continuidade das comu-

nicações, naturalmente

pelo emprego de trans-

portes mistos;

2.0 —

fazê-lo de modo a facili-

tar, de futuro, a homo-

genização dos transpor-

tes,

como que

o seu plano

assume ca-

ráter de objetividade realmente

espantosa para

sua época. E essa

objetividade reside precisamente

no emprego de meios de transpor-

tes adequados, lançando-se mão da

máquina a vapor, sem dúvida o

índice daqueles tempos, que

a

rapidez atual dos meios de trans-

porte moto-aéreos começa a tor-

nar longínquos.

Os troncos Bicalho e

as regiões naturais

de circulação

Mas não é êle modelar sòmente

pelo acêrto dessa objetivação

quanto ao emprêgo dos meios de

transporte, senão, também, pelo

traçado de seus troncos como se

pode verificar de breve discussão

do esboço anexo.

Pelo seu Grande Leste Oeste,

(i.° Tronco)

poria São Salvador

em contato com Belém do Pará

e, consequentemente com a na-

vegação do Rio Amazonas, por

meio de três segmentos terrestres

e tres segmentos fluviais.

Pelo seu Grande Central Norte

(2.0 tronco),

poria o Rio de

Ja-

neiro em contacto com S. Luiz do

Maranhão por

meio de tres seg-

mentos terrestres e dois segmen-

tos fluviais. Por cruzamento com

o i.° Tronco (Grande

Leste-Oes-

te) ligaria também o Rio de Ja-

neiro e São Salvador a Belém do

Pará.

O São Francisco, continuando

o seu papel

histórico, constitui-

ria, assim, o verdadeiro nexo do

sistema de comunicações ao Nor-

te e com o Norte.

Com êsses dois troncos fica-

riam estabelecidas a corda do pe^

queno arco de círculo do Nordes-

tc (São

Salvador -

São Luiz) e a

corda do grande

arco de círculo

do segmento litorâneo em que

predominam as convexidades da

costa (de

Vitória para

o Norte).

O pequeno

trecho do S. Fran-

cisco entre a barra do Rio Gran-

de e Joazeiro

faria a ligação entre

essas cordas, promovendo

assim

dois entroncamentos de suma im-

portância político-militar:

33 CULTURA

o de Joazeiro

em relação ao

Nordeste;

o da barra do Rio Grande

em relação à Amazônia, ateit-

dendo, assim, às regiões na-

turais de circulação do Nor-

te e do extremo Norte.

Continuando o exame do Pia-

no Bicalho verifica-se que pelo

seu

Grande Central Sul (3.0

tronco)

estabeleceria a ligação do Rio de

Janeiro com o Rio Grande do Sul

por meio de um segmento terres-

tre de São Paulo ao alto Paraná,

continuando por

um segmento

fluvial integrado por

êsse rio e

um seu afluente, admitamos o

Piquirí, e prolongado por

um se-

gundo segmento terrestre,

que

cortaria os Estados do Paraná e

Sta. Catarina rumo Sul.

O alto Paraná seria comum a

êsse $.°

tronco e ao 4.0

tronco —

ao Grande Noroeste —

o qual por

Mirandas —

São Luiz de Cáceres

— Matto Grosso —

Porto Velho

poria em comunicação São Paulo

com Belém do Pará por

meio de

quatro segmentos terrestres e

qua-

tro segmentos fluviais —

o alto

Paraná, o alto Paraguai, o Gua-

poré, o Madeira e o Amazonas

constituiriam êstes segmentos.

Como se vê, as zonas essenciais

das regiões naturais de circula-

ção do Sul e do extremo Sul fi-

cariam atendidas, e. por

uma ou-

tra via mais interna, seria alcan-

çada de novo a região natural de

circulação do extremo Norte.

E' merecedora de todo apreço,

por sua alta significação

político-

militar, a preocupação

do Enge-

nheiro Bicalho —

com o seu

Grande Leste-Oeste e o seu Gran-

de Noroeste —

em procurar

a neu-

POLÍTICA

tralização da excentridade da

Amazônia. Ainda é interessante

notar que

a continuidade de co-

muni cações da bacia do Prata às

bocas do Amazonas constituiria

pelo menos o esboço de uma

pri-

meira trapscontinental em terri-

tório Sul-americano.

O plano

Bicalho e a ex-

periênciá alheia

Dentro da idéia básica de esta-

belecer a continuidade das com 11-

nicações por

meio de transportes

mistos, nos quais

deveriam pre-

dominar os fluviais, idéia básica

por nós deduzida através os con-

ceitos da exposição de Bicalho e

do traçados dos troncos de seu

Plano, não restam dúvidas sobre

que o Plano Bicalho

poderia ser

considerado perfeito

se compreen-

desse também a ligação dos seus

dois grandes

sistemas — O Cen-

trai Norte e o Central Sul —

No-

roeste —

perfeito no

quadro de

sua idéia fundamental, respeita-

mos, de:

"utilizar

a navegabilidade 11a-

tural e aperfeiçoada das vias

mencionadas e dos seus afluen-

tes e ligá-los por

estradas em

posição das

grandes linhas fu-

turas", conforme seu linguajar.

A Noroeste e a Central baiana

e mais o prolongamento

desta em

território Piauiense e a estrada

de ferro S. Luiz-Teresina, não são

outra coisa que

os traçados de Bi-

calho

"em

posição das

grandes li-

nhas futuras" segundo o seu mo-

do de dizer as coisas.

E' sensível a influência do

exemplo alheio na elaboração do

Plano Bicalho.

*

IRRIGAÇÃO NO NORDESTE — Um campo de experimentação florestal

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IRRIGAÇÃO NO NORDESTE — Horticultura no sertão

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IRRIGAÇÃO NO NORDESTE Trecho

do canal sul, talhado emrocha, vendo-ta ao fundo parte das instalações do Posto Agrícola

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NOSSA POLÍTICA Dfe COMUNICAÇÕES

Em todas as partes

do mundo,

exceção feita do Brasil, a viação

fluvial se fez pioneira

dos trans-

portes e mesmo, após a interven-

<:ão de novos meios de transporte,

as aquavias não foram despresa-

das senão, bem ao contrário disso,

cada dia mais aperfeiçoados, para

que pudessem suportar a fase de

competição, que precede

sempre

a de cooperação, quando

se trata

da ocurrência de meios de trans-

porte novos.

E o mais notável no Plano Bi-

calho é a capacidade de resistên-

cia de seu autor ao ambiente fer-

ro-viarista do momento em que

lançou as suas idéias, tanto mais

«que os países

industrialisados co-

meçavam a lançar estradas de fer-

ro como vias pioneiras,

desbrava-

<loras de sertões e semeadoras de

civilização. Poucos seriam capa-

zes de ver que

assim procediam

esses países pelas

facilidades de

construção que

lhes outorgava seu

parque industrial e sem

que es-

-quecessem a estrutura de suas vias

navegáveis, cuja viabilidade ca-

<da dia mais aperfeiçoavam.

Simplistas como por

vêzes nos

permitimos ser na apreciação dos

fatos, mesmo de fatos de assom-

brosa complexidade, em regra só

consideramos navegáveis os rios

que assim o sejam em estado de

natureza. Nenhum esfôrço hu-

mano levamos em seu socorro,

nem mesmo dos mais elementares

como a dragagem, o balisamento

de canais ou o alargamento de

certos trechos, de modo a se cor-

rigirem certas irregularidades dos

"Thalwegs",

a variação do nível

das águas e da intensidade das

correntes —

nós que, por

todas as

razões, deveríamos possuir

o mais

rico parque

de transportes flu-

viais do mundo.

Ao passo que

na Europa e nos

Estados Unidos —

para não refe-

rir a exemplos de outros países

sul-americanos — o aparecimento

e a exploração comercial das vias

férreas incrementaram ainda mais

o zêlo proverbial pelo

rendimen-

to das aquavias, até pela

canaliza-

ção das

principais delas como

aconteceu ao Sena, ao Rodano, ao

Volga, ao Reno, ao Mississi-

pe, etc., e à construção de canais

navegáveis que

articulassem vias

fluviais, entre nós a viação férrea

acabaria por

atrofiar, definitiva-

mente, as vias fluviais, não pro-

priamente pela hipertrofia da-

. quelas

mas pela

inadequada re-

partição dos recursos finailceiros.

Visto como não poderíamos

ir

do Rio a Belém do Pará em via

férrea, em excelentes carros Pul-

man, acabamos por

não ir de ne-

nhum outro modo, a não ser pela

velha linha marítima.

Assim foi que

o sonho da con~

tinuidade das comunicações de

Bicalho por

meio do emprêgo de

transportes mistos, nos quais pre-

dominassem inicialmente os flu-

viais, nasceu votado ao fracasso.

Somente a excelência de seus

traçados restariam de seu Plano,

como uma luz a iluminar o cami-

nho da evolução de nossa política

viatória, que

longe de extinguir-

se reacende-se reconfortada pela

multiplicidade dos transportes de

que dispomos nesse incerto meia-

do de século.

O segundo plano

de

viação nacional

Infelizmente para

nós —

em

que pese êsse

julgamento assim a

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¦ 9*

IRRIGAÇÃO NO NORDESTE

— Trecho do canol sul, talhado em rocha, vendo-se ao fundo parte das instalações do Posto Á9rícola

wwrnm

NOSSA política dè comunicações

Em todas as partes

do mundo,

exceção feita do Brasil, a viação

fluvial se fez pioneira

dos trans-

portes e mesmo, após a interven-

•ção de novos meios de transporte,

as aquavias não foram despresa-

<las senão, bem ao contrário disso,

cada dia mais aperfeiçoados, para

que pudessem suportar a fase de

competição, que precede

sempre

a de cooperação, quando

se trata

•da ocurrência de meios de trans-

porte novos.

E o mais notável no Plano Bi-

calho é a capacidade de resistên-

cia de seu autor ao ambiente fer-

ro-viarista do momento em que

lançou as suas idéias, tanto mais

«que os países

industrialisados co-

meçavam a lançar estradas de fer-

ro como vias pioneiras,

desbrava-

cloras de sertões e semeadoras de

civilização. Poucos seriam capa-

zes de ver que

assim procediam

esses países pelas

facilidades de

construção que

lhes outorgava seu

parque industrial e sem

que es-

•quecessem a estrutura de suas vias

navegáveis, cuja viabilidade ca-

•da dia mais aperfeiçoavam.

Simplistas como por

vêzes nos

permitimos ser na apreciação dos

fatos, mesmo de fatos de assom-

brosa complexidade, em regra só

consideramos navegáveis os rios

que assim o sejam em estado de

natureza. Nenhum esfôrço hu-

mano levamos em seu socorro,

nem mesmo dos mais elementares

como a dragagem, o balisamento

de canais ou o alargamento de

certos trechos, de modo a se cor-

rigirem certas irregularidades dos

"Thalwegs",

a variação do nível

das águas e da intensidade das

correntes — nós

que, por todas as

razões, deveríamos possuir

o mais

rico parque

de transportes flu-

viais do mundo.

Ao passo que

na Europa e nos

Estados Unidos —

para não refe-

rir a exemplos de outros países

sul-americanos — o aparecimento

e a exploração comercial das vias

férreas incrementaram ainda mais

o zêlo proverbial pelo

rendimen-

to das aquavias, até pela

canaliza-

ção das

principais delas como

aconteceu ao Sena, ao Rodano, ao

Volga, ao Reno, ao Mississi-

pe, etc., e à construção de canais

navegáveis que

articulassem vias

fluviais, entre nós a viação férrea

acabaria por

atrofiar, definitiva-

mente, as vias fluviais, não pro-

priamente pela hipertrofia da-

. quelas

mas pela

inadequada re-

partição dos recursos finailceiros.

Visto como não poderíamos

ir

do Rio a Belém do Pará em via

férrea, em excelentes carros Pul-

man, acabamos por

não ir de ne-

nhum outro modo, a não ser pela

velha linha marítima.

Assim foi que

o sonho da con-

tinuidade das comunicações de

Bicalho por

meio do emprêgo de

transportes mistos, nos quais pre-

dominassem inicialmente os flu-

viais, nasceu votado ao fracasso.

Sòmente a excelência de seus

traçados restariam de seu Plano,

como uma luz a iluminar o cami-

nho da evolução de nossa política

viatória, que

longe de extinguir-

se reacende-se reconfortada pela

multiplicidade dos transportes de

que dispomos nesse incerto meia-

do de século.

O segundo plano

de

viação nacional

Infelizmente para

nós —

em

que pese êsse

julgamento assim a

34 CULTURA POLÍTICA

"prosteriori" —

logo em 82, quan-

do aqui se reunia o Primeiro Con-

gresso Ferroviário, uma comissão

foi designada para

a elaboração

de um plano

de vi ação nacional,

de cuja orientação se pode

con-

cluir pelo

seguinte trecho do rela-

tório com o qual

aquela comis-

são apresentou os seus estudos:

"A necessidade de organizar

um plano geral

de viação fér-

rea não se pode

chamar de

idéia nova; há anos foi larga-

mente discutido no parlamen-

to e tem figurado muitas vezes

nas aspirações dos relatórios,

mas para

cair sempre no esque-

cimento. Não acreditamos que

este adiamento provenha

da fal-.

ta de vontade de ligarem os Go-

vêrnos o seu nome a tão indis-

cutível melhoramento".

Por essa simples citação pode-

se desde logo concluir que

o pro-

blema das comunicações e dos

transportes ficaram de algum mo-

do baralhados pela preocupação

exclusivista da aplicação, em lar-

ga escala, de um único meio de

transporte —

no caso a estrada de

ferro. Já,

então, podia-se

dispor,

além da estrada de ferro, ainda

da estrada de rodagem e das vias

fluviais.

De um exame, mesmo sumário,

dos traçados do plano

da referi-

da comissão, hoje conhecido pe-

la designação de

"Plano

Bulhões",

verifica-se que

só incidentemente

lança mão das vias navegáveis,

embora, faça-se justiça,

os autores

do Plano Bulhões se tivessem es-

forçado em seguir quanto possí-

vel, os traçados da rede de comu-

nicações do Plano Bicalho.

Os troncos Bulhões e as

regiões naturais de

circulação

1

Quatro seriam os seus troncos,

conforme se verifica do esboça

junto.

O Grande Leste-Oeste ligando o

Rio de Janeiro

a localidade de

Mato Grosso às margens do Gua-

poré, tronco terrestre

que, com o

prolongamento da Central, atin-

giria o divisor dáguas entre as ba-

cias do Amazonas e do Prata. Pas-

sando por

Goiás, Cuiabá e São

Luiz de Cáceres, esse tronco já

in-

sinuava a aspiração de atingir-se

o planalto

Boliviano.

O Grande Central Sul, tronco

também terrestre, ligando, por

S.

Paulo, o Rio de Janeiro

à rede fer-

roviária do Rio Grande através a

faixa do território entre o Rio

Paraná e o Oceano.

Dêsses dois troncos soo segun-

do atenderia às necessidades do

fácies circulatório da região na-

tural de circulação do Sul, de

vez que

o primeiro

escapa fran-

camente à órbita dessa região na-

tural de circulação do espaço geo-

gráfico brasileiro.

Se levarmos em conta o que

es-

tá realizado, verificaremos a supe-

rioridade do Plano Bicalho sobre

o Plano Bulhões nesta região na-

tural — a Noroeste nada mais fez

do que

retificar o traçado do Pia-

no Bicalho, fato aliás previsto

quando ele

preconisava

"ligar

as

vias navegáveis por

estradas de

ferro em posição

das grandes

li-

nhas futuras", o mesmo aconte-

cendo com o traçado de seu Gran-

de Central Sul, retificado pela

S.

Paulo-Rio Grande que, por

sua

vez, ratifica o traçado do Gran-

NOSSA POLÍTICA DE COMUNICAÇÕES

35

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36 CULTURA POLÍTICA

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A

NOSSA POLÍTICA DE COMUNICAÇÕES 37

de Central-Sul do Plano de Bu-

lhões.

As influências históricas, o cli-

ma e a imigração, constituíram as

causas capitais dessas realizações.

O terceiro tronco do Plano Bu-

lhões é o Grande Norte Sul que,

partindo de Guaíra até onde fosse

navegável o alto Paraná e em se-

guida prolongado por uma via

férrea ao encontro do primeiro

trecho navegável do Tocantins ou

do Araguaia, deveria atingir Be-

lém do Pará, vencidas, se preciso,

as cachoeiras do alto e baixo To-

cantins por

vias terrestres. Êsse

tronco, cruzando como Leste-Oes-

te, articularia o Rio de Janeiro

com o Norte e o Sul.

O quarto

tronco —

o Grande

Noroeste — ligaria S. Salvador a

S. Luiz, por Joazeiro-Teresina

(Parnaíba)

— Caxias e em segui-

da o Itapicurú.

Ao S. Francisco caberia a gran-

de sôbre-carga de ligar os quatro

troncos o que

não passa

de uma

fôrça de expressão por que,

real-

mente, êle só ligaria, como uma

espécie de roçada, o Grande Les-

te-Oeste e o Grande Noroeste.

Não é preciso grande

esforço

para se concluir

que êstes troncos

mistos não vão muito além de

uma homenagem ao Plano Bica-

lho, uma espécie de ficha de con-

solação, não só pela

dificuldade

de ligar-se por

via férrea os tre-

chos navegáveis extremos do alto

Paraná e do Alto Tocantins, ain-

da hoje por

fazer-se, como pela

maneira displicente por que

se

sobrecarregaria o tráfego do São

Francisco.

Assim é que,

a não ser a corda

S. Salvador-S. Luiz, comum aos

dois Planos, o Plano Bulhões

atenderia mal às regiões naturais

de circulação do Norte e por

uma

única via, com a precariedade

as-

sinalada, atingiria o Amazonas

(extremo Norte).

Quer parecer-nos que apesar da

falta de ligação já

assinalada en-

tre os troncos meridionais e se-

tentrionais do Plano de Bicalho,

particularmente se comparado

com o Plano Bulhões, êste se apre-

senta mais rígido senão mesmo

mais esquemático.

Embora o Plano Bulhões, em

82, melhorasse em alguns aspectos

o Plano Bicalho, de 81, pecou pe-

la preponderância

emprestada às

vias férreas, em conseqüência da

sedução, realmente tentadora, das

fortes características de potência

e velocidade dêsse meio de trans-

porte excepcionalmente apto aos

transportes pesados

a longas dis-

tâncias.

Conclusão

Seja como for, tanto ao pri-

meiro como o segundo Plano fal-

tou um órgão especialmente desi-

gnado para regular suas condições

de execução.

Um plano

de viação —

se bem

definidas as linhas de menor re-

sistência ao tráfego contidas nas

regiões naturais de circulação e

se judiciosamente

determinado o

emprêgo dos meios de transpor-

te —

constitue apenas a base para

a política

de comunicações de um

país qualquer. A ordem de ur-

gência e a mais rigorosa vigilân-

cia técnica das realizações é que

constituem, em última análise, a

política de comunicações.

A ausência dêsse aparelho é

que principalmente impediu, a

38 CULTURA POLÍTICA

qualquer dos

planos, realização

consentânea com as suas finalida-

des.

Com o advento da República

as coisas não melhoraram, apesar

de que já

em 1890 o Govêrno Pro-

visório baixasse decretos mandan-

do organizar o plano

de viação

nacional e regulando a competên-

cia da União e dos Estados para

legislarem sobre comunicações e

meios de transporte.

Tudo porém,

foi em vão, redu-

zindo-se a política

de comunica-

ções a simples atos de

política ad-

ministrativa. Enquanto isso o

parque ferroviário foi se desen-

volvendo ao sabor imediatista das

correntes partidárias

e dos inte-

rêsses regionais e, com a elevação

progressiva do custo do material

ferroviário, em se tratando de

um país

sem indústrias siderúrgi-

cas como o nosso, acabamos, com

um parque

ferroviário deficitá-

rio técnica e financeiramente,

até quasi

ao desmantêlo, pela

de-

sastrosas condições técnicas a

que chegaram as linhas, cujo so-

corro inadiável exige, pelo

me-

nos dois milhões de contos, se-

gundo estimativas feitas.

Do mesmo passo

ficou o país

sem a necessária continuidade de

comunicações terrestres, ligando

regiões vitais para

a unidade po-

lítica e a segurança militar da

Nação.

Devemos convir, porém, que,

apesar dos pezares,

tanto o Plano

Bicalho como o Plano Bulhões

calaram na conciência dos res-

ponsáveis pela coisa

pública no

Brasil. Em tudo que

temos em

matéria de comunicações e meios

de transporte se encontram vesti-

gios flagrantes da

profunda im-

pressão deixada

por aquêles

pia-

nos —

o que

faz dêles os funda-

mentos indiscutíveis de política

de comunicação brasileira, que

o

Plano de Viação Nacional de

1934 pretende

consolidar, como

veremos.

Potitica diplomática e econômica

de Rodrigues Alves

JOSÉ MARIA BELO

Ex-Senador Federal pelo

Estado de Pernambuco.

Procurador da Fazenda no Distrito Federal.

O govêrno

Rodrigues Alves já foi apreciado

pelo autor, no

primeiro número

desta Revista, em vários dos seus erandes aspectos. Hoje, conclue êle êsse

estudo, analisando a diplomacia do Barão do Rio Branco, suas vitórias

internacionais, o Tratado de Petrópolis, a incorporação do Território do

Acre, a questão

com as Repúblicas Platinas; passa,

em seguida, a conside-

rar a reorganização das forças armadas, a atividade governamental

no campo

da viação e obras públicas,

das finanças, da

política caféeira, do câmbio

e comércio exterior; e termina encarando rapidamente o problema

da suces-

são e a candidatura de Afonso Pena. E' mais um depoimento objetivo

para acrescentar-se à história da República no Brasil.

A

REPÚBLICA recebera do

Império a tradição de uma

política externa um tanto

burocrática e formalística, mas ar-

guta, cautelosa, sinceramente

pa-

cifista e, sobretudo, animada de

espírito de continuidade, o que

nem sempre, nas constantes mu-

tações dos governos parlamenta-

res, poderia

inspirar os outros se-

tores administrativos. Todavia,

a singularidade do seu regime

monárquico criara para

o Brasil

uma espécie de insulamento mo-

ral na comunhão republicana da

América Latina, agravado pelos

ressentimentos, ainda não com-

pletamente extintos, da

guerra do

Paraguai, e pela

manutenção da

•escravatura negra. Com os Esta-

dos Unidos, ricos, poderosos

e

geográficamente longínquos, es-

quecidos alguns incidentes em

tôrno da guerra

da Secessão e a

leviandade da política

do Impé-

rio, quando

reconhecera a triste

e afrontosa aventura de Maximi-

liano no México, atenuavam-se,

naturalmente, os preconceitos

nas-

cidos da diferença das formas de

Estado; daí, a tendência para

mais

viva aproximação diplomática en-

tre a grande

República do Norte

e o vasto reino do Sul do Conti-

nente. Tendo evitado sempre

comparecer aos Congressos e

Conferências intercontinentais, o

Brasil imperial fazia-se represen-

tar, emfim, em 1889, na primeira

Conferência Pan - americana de

40 CULTURA POLÍTICA

Washington. A preocupação

dos

equilíbrios diplomáticos, tão em

voga na Europa do século XIV,

levara também a Monarquia bra-

sileira a cultivar especialmente as

relações amistosas com a Repú-

blica conservadora e aristocrática

do Chile. Um navio de guerra

chileno em festiva visita ao Rio

de Janeiro,

assistia, em 16 de No-

vembro de 1889, ao colápso do

Império...

A política

externa de Quin-

tino Bocaiúva

Os primeiros governos

da Re-

pública não alteraram os

gran-

des rumos da política que

se fa-

zia no antigo Ministério dos Ne-

gócios Estrangeiros, mantendo em

seu serviço os antigos agentes di-

plomáticos e os velhos chefes bu-

rocraticos, como o visconde de

Cabo Frio, zeladores intransigen-

tes e, algumas vêzes, estreitos, das

tradições, e habituados a impor

a sua orientação aos ministros ti-

midos e temporários, que

a ro-

tação dos governos parlamentares

lhes impunha. Assumindo, no

Governo Provisório, a pasta

do

Exterior, Quintino

Bocaiúva, jor-

nalista doutrinário, idealista, mui-

to propenso

à República Argen-

tina e à solidariedade continental,

apressou-se em aceitar a proposta

da chancelaria de Buenos Aires,

sobre a divisão do Território das

Missões, de domínio disputado

entre os dois países.

A Repúbli-

ca brasileira, desprezando a solu-

ção de arbitramento,

proposta no

último ano do Império, retribuía

com o gesto

romântico, as caloro-

sas manifestações de regozijo com

que o seu advento fôra recebido

na Argentina. Mais tarde, Quin-

tino Bocaiúva, mesmo, peniten-

ciando-se do erro político

come-

tido, aconselhava o Congresso

brasileiro a não ratificar o TL rata-

do que

assinara. Reabria-se, pois,

a porta para

o arbitramento, em

que o Brasil, defendido

pelos co-

nhecimentos especializados e pe-

la habilidade do barão do Rio-

Branco, conseguia, em 1895, o

laudo favorável do Presidente

Cleveland, dos Estados Unidos.

Pouco tempo depois, o mesmo ba-

rão do Rio Branco marcava outro

grande triunfo diplomático com

a decisão do presidente

da Suiça

na questão

do Amapá. Por laudo

arbitrai do rei da Itália, apesar

de contrário aos nossos justos

tí-

tulos, resolvíamos também o dis-

sídio de fronteiras com a Guia-

na Inglesa. Mas continuavam

em aberto outras questões

lindei-

ras com as Repúblicas do Conti-

nente. Resolvê-las era um dos

compromissos do governo

Rodri-

gues Alves. Integrado, emfim,

no sistema republicano da Amé-

rica, tendo feito do arbitramen-

to nos litígios internacionais um

dos preceitos

da sua Constituição,

o Brasil desejava terminar pacifi-

camente a definição do seu ter-

ritório.

Traços da vida do Barão

do Rio Branco

Convidando o barão do Rio

Branco para

seu ministro do Ex-

terior, Rodrigues Alves escolhia

o homem melhor indicado a exe-

cutar o novo programa

da poli-

tica externa. Filho de eminente

estadista do Império, o visconde

do Rio Branco, o barão do mes-

mo nome tivera mocidade estou-

vada e boêmia, estuante de seiva.

POLÍTICA DIPLOMÁTICA E ECONÔMICA DE RODRIGUES ALVES 41

Acompanha o pai

numa missão

diplomática, no decurso da guer-

ra do Paraguai, ao rio da Prata;

passa rapidamente

pelo Parla-

mento, pelo

magistério oficial e

pelo jornalismo político; ingressa

na carreira consular, donde se

transfere, depois da vitória do

Amapá, para ministro

plenipo-

tenciário em Berlim. Confor-

ma-se com a República, apesar de

confessadas simpatias monárqui-

cas, para

serví-la com eficiência

desde os seus primeiros

dias, co-

mo comissário geral

na Europa

da emigração para

o Brasil. Dis-

tinguira-se desde moço pelos

seus

trabalhos sôbre geografia

e his-

tória brasileiras. Floriano Peixo-

to, que

fôra seu condiscípulo e o

tinha em aprêço, indica-o advoga-

do do Brasil na questão

das Mis-

sões, facilitando-lhe, assim, a pri-

meira oportunidade para

a pro-

jeção nacional do seu nome. Vi-

vendo 30

anos do ambiente euro-

peu, nêle apurara as suas virtudes

inatas de habilidade diplomática,

forma de transposição psicológica

das qualidades políticas paternas.

Mas apesar de longa residência

na Inglaterra vitoriana, como

cônsul em Liverpool, parece que

fora a Alemanha bismarkiana e

de Guilherme II, em plena

ascen-

ção de fôrça e orgulho, o maior

influxo sofrido pelo

seu espírito.

Acompanhando de perto

a tra-

ma diplomática da Europa de-

pois da

guerra de 1870 e a for-

mação do imperialismo colonial,

o jovem

cônsul adquirira uma vi-

são realista da vida, que

caracte-

rizaria sempre a sua personalida-

de. Patriota ardente e naciona-

lista sincero, Rio Branco era, co-

mo os homens da família de Bis-

mark, robusto de alma e de cor-

po, um oportunista sagaz, desde-

nhoso dos idealismos declamató-

rios, tão expontâneos sempre no

sool tropical da América Latina,

atento aos fatos, absorvente e au-

toritário, sob aparências polidas,

sabendo servir-se dos homens, das

suas virtudes como dos seus de-

feitos, e certo de que

na diploma-

cia, mais do que

alhures, as for-

mas jurídicas

apenas importam,

quando servidas

pelo dinheiro ou

pela espada. Para o seu

pátrio-

tismo, pois,

só se completaria a

imagem do Brasil no fastígio do

plano internacional. Ninguém

saberia melhor conciliar o amor

do passado

do Brasil com a ima-

gem de sua futura

grandeza. Con-

servando o que

havia de substan-

ciai na tradição diplomática do

polácio do Itamaratí,

para onde

se transferira o Ministério do Ex-

terior, êle não se conformaria

jamais com o seu ranço burocrá-

tico, a sua atmosfera de extrema-

do formalismo.

O clima de confiança e otimis-

mo, que

a política

de realizações

materiais de Rodrigues Alves de-

terminava para

o Brasil, era uma

condição propícia

ao êxito da di-

plomacia audaz do barão...

Inicio da diplomacia de Rio

Branco: a questão

do Acre

Dentre as nossas pendências

de

fronteiras era a mais grave

a que

mantinhamos com a Bolívia, in-

cindindo sôbre a vasta região do

Acre, no Alto Amazonas. Até o

desenvolvimento da indústria ex-

trativa da borracha, as divergên-

cias sôbre fronteiras nos rios, pân-

tanos e floresta inacessíveis do

42 CULTURA POLÍTICA

Amazonas não tinha grande

al-

cance. Para o Brasil como para

a Bolívia, enormes, despovoados,

ainda desaparelhados para

a pie-

na mise en valeur das suas re-

giões mais em contacto com a ci-

vilização, o Acre era um deser-

to misterioso e hostil, mal aflora-

do das águas diluvianas, incerta

zona geográfica, que

servia de

pretexto a

periódicas e bisantinas

discussões diplomáticas. Nos úl-

timos anos do século passado,

am-

pliado cada vez mais,

pela técni-

ca da vulcanização, o emprego in-

dustrial da borracha, êste produ-

to quasi

exclusivo das selvas ama-

zônicas, começava a adquirir re-

levo em nossa vida econômica. No

início do govêrno

Rodrigues Al-

ves, a sua exportação regulava

perto de 20

% das nossas vendas

totais para

o exterior. E entre as

regiões do Amazonas nenhuma

mais rica em seringueira do que

a

do Acre; a reivindicação do seu

domínio tornara-se, pois,

essen-

ciai, ao Brasil, principalmente

porque eram brasileiros,

que o

povoaram e heroicamente lhe ex-

pioravam as riquezas.

Um Tratado diplomático de

1867 estabelecera os limites entre

o Brasil e a Bolívia; ficando, no

entanto, sem execução, não fora

possível determinarem-se as linhas

divisórias, de forma a precisar

a

situação jurídica

do Acre. Dois

protocolos datados de 1895 e

1899, aliás provocando

um dêles

protesto de terceira nação, o Pa-

rú, aceitava a título provisório

certos limites. Desde que

se in-

tensificara a exploração da bor-

racha silvestre, afluiam para

o

Território, nominalmente boli-

viano, constantes correntes de

brasileiros, especialmente de ser-

tanejos do Nordeste, acossados pe-

Ias sêcas. Os freqüentes motins,

agravados desde os primeiros

anos

da República, tinham-se converti-

do em verdadeira insubordinação,

com intermitentes explosões. Em

1895, um aventureiro espanhol

chefiava um movimento separa-

tista para

erigir o Território do

Acre em Estado independente.

Os govêrnos

brasileiro e bolivia-

no tentaram contornar as dificul-

dades de momento pelo

Protoco-

lo de 1899. Defendendo o princí-

pio do uti

possedetis das velhas

tradições diplomáticas vindas da

antiga Metrópole portuguesa,

o

Brasil procurava,

no entanto, con-

ciliá-lo com o respeito do Trata-

do de 1867. Incapaz de fazer

prevalecer a sua soberania sôbre

uma zona geograficamente

sec-

cionada da sua órbita imediata

de ação, o govêrno

da Bolívia as-

sinava em 1901 contrato com um

sindicato de capitalistas norte-

americanos, o Bolivian Syndicate,

entregando-lhe a exploração de

todo território contestado. O

contrato eqüivalia, realmente, a

uma transferência da soberania;

o Bolivian Syndicate assumia a

plenitude do

govêrno civil do

Acre, com direitos soberanos, que

a própria

administração de La

Paz não poderia

controlar.

O Tratado de Petrópolis

Instituía-se, assim, na América

do Sul uma espécie de regime de

capitulações. Homens de negó-

cios de poderosa

nação, suspeita,

na época, a todo o Continente pe-

Ias tendências imperialistas de

sua política,

instalavam-se como

irrestritos senhores numa vastís-

POLÍTICA DIPLOMATICA E ECONÔMICA DE RODRIGUES ALVES 48

sima área, dominando grande par-

te do Alto Amazonas, artéria vi-

tal para

o Brasil. Foi enorme a

repercussão sòbre o patriotismo

brasileiro; as outras Repúblicas

sul-americanas, sempre pouco

in-

clinadas ao Brasil, não ocultavam,

entretanto, as suas apreensões. O

govêrno de Campos Sales não con-

seguira impedir nem a assinatura

do contrato e nem a sua ratifica-

ção pelo Congresso legislativo da

Bolívia. Ao barão do Rio Bran-

co ficava reservada a tarefa de re-

solver o perigoso

dissídio. Em

Agosto de 1902, nova revolução

chefiada por

um brasileiro, Pláci-

do de Castro, dominava toda re-

gião do Acre, forçando a rendição

das forças bolivianas concentra-

das no posto

aduaneiro de Puerto

Alonso. Tropas da Bolívia, sob

o comando superior do presiden-

te da República, general

Pando,

preparavam-se para marchar, atra-

vés das altiplanuras andinas e

dos pântanos

amazônicos, contra

os revolucinários brasileiros. Não

se perdia

em inúteis palavras

a

diplomacia realista de Rio Bran-

co; por

sua vez, tropas brasileiras

seguiam par

o Alto Amazonas.

Apoiando-se nas forças milita-

res, o chanceler brasileiro tinha

os elementos essenciais para dis-

cutir e para

evitar uma guerra,

mais perigosa pelas

suas futuras

conseqüências políticas

do que

pelo seu imediato alcance; dirige,

assim, hábeis negociações no sen-

tido de rescindir amigavelmente a

concessão do Bolivian Syndicate.

Em 17 de Novembro de 1903, era

assinado o Tratado de Petropolis,

que encerrava definitivamente

a

questão do Acre. Antes disto o

sindicato norte-americano fora

eliminado da contenda, recebendo

do govêrno

Rodrigues Alves a

indenização de 126.000 libras. O

Brasil pagava

à Bolívia 2 milhões

esterlinos e obrigava-se a construir

a estrada de ferro Madeira Ma-

moré, julgada

há muito tempo de

grande significação

política e

econômica para

os dois países

vi-

zinhos.

A incorporação do Terri-

tòrio do Acre

O Brasil, além de derimir ve-

lha e irritante pendência,

incor-

porava pacificamente ao seu ter-

ritório uma área de cerca de

180.000 quilômetros quadrados,

a

mais rica da Amazônia em borra-

cha nativa. Fracassara a tentati-

va de se implantar na América La-

tina o sistema das Shartered Com-

panies, precursoras, tantas vêzes,

na história contemporânea da

África e da Ásia, de conquistas co-

loniais. Em tres anos, as rendas

fiscais da União no Território do

Acre, mesmo imperfeitamente ar-

recadadas, bastariam para

resar-

cir as indenizações pagas

e co-

brir os serviços do empréstimo

para a linha férrea Madeira-Ma-

moré. Rio Branco conseguira a

sua maior vitória diplomática;

par tal tivera de reduzir a apai-

xonada oposição de parte

do Con-

gresso e da Imprensa. Tornou-

se-lhe enorme a popularidade;

talvez nenhum homem público

no Brasil tivesse conquistado ja-

mais tão alto prestígio.

Outras vitórias diplomáticas

Resolvida a pendência

com a

Bolívia foi mais fácil à chancela-

ria brasileira liquidar por

enten-

dimentos diretos as outras ques-

44 CULTURA POLÍTICA

toes de limites com o Perú, Equa-

dor, Colômbia, Venezuela e Guia-

na Holandesa. Rui Barbosa pou-

de chamar o barão do Rio Bran-

co com ênfase oratória

"Deus

terminus das fronteiras nacio-

nais". Outra vitória diplomática,

que muito tocava ao sentimento

nacional, era a escolha do primei-

ro cardeal brasileiro, que

seria

também o primeiro

da América

Latina. Os governos

norte-ame-

ricano e brasileiro elevavam à ca-

tegoria de embaixadas as respecti-

vas legações no Rio de Janeiro

e

em Washington. Joaquim

Na-

buco, nomeado embaixador do

Brasil naquela última cidade, rea-

liza notável trabalho no sentido

de mais íntima aproximação en-

tre as duas nações. O Brasil, co-

mo os outros países

latino-ameri-

canos, começavam a libertar-se

da absorvente influência eco-

nômica e política

da Inglaterra.

Apesar de sua educação européia

e da impressão que

nêle exercera

o primeiro

Reich, Rio Branco

torna-se um dos precursores

do

novo espírito de solidariedade

continental, que

implicaria o iní-

cio da transformação da doutri-

na pan-americana.

O Rio de Ja-

neiro seria em breve a séde da 3-a

Conferência Pan-Americana, rece-

bendo igualmente a visita do se-

cretário de Estado dos Estados

Unidos, Root.

Os equívocos platinos

Entretanto, as vitórias diplo-

máticas de Rio Branco ou, pelo

menos, a sua deturpação que

ele

mesmo nem sempre soubera ou

tentara evitar, haviam criado nu-

merosos equívocos entre as chan-

celarias do Rio de Janeiro

e de

Buenos Aires, sob a direção esta

de Estanislau Zeballos, que

fôra

signatário com Quintino

Bocaiu-

va do Tratado dos Missões e, pos-

teriormente, advogado vencido

do seu país, perante

o juízo

arbi-

trai do presidente

da Suiça. Não

se estimavam ou não se compre-

endiam os dois ministros, apesar

de possíveis

traços análogos de

mentalidade ou de educação poli-

tica. Zeballos encarnava certas ve-

lhas tendências brasilófobas, que

somente o tempo viria diluir. A

rivalidade, pois,

entre os dois ho-

mens parecia

traduzir um estado

latente de animosidade entre as

duas nações. Brasil e Argentina

repetiriam, no cenário sul-ameri-

cano, a concorrência a hegemonias

continentais, que

caracterizava a

diplomacia européa e prepararia

a guerra

de 1914. Tudo servia

de pretexto

à animadversão do

estadista argentino; a reorganiza-

ção militar e naval do Brasil, co-

mo muitos outros casos e inciden-

tes, que

as paixões

do momento

facilmente envenenavam. Nem

mesmo faltou um telegrama fal-

so, capaz de precipitar

a luta en-

tre os dois países,

como o que,

em

1870, ateara a guerra

franco-

prussiana... O bom senso dos di-

rigentes brasileiros e argentinos

conseguiu sobrepôr-se à insidiosa

campanha; as duas maiores nações

da América do Sul voltaram a ter-

mos pacíficos.

Não se ofuscaram

as vitórias da diplomacia brasilei-

ra com a sombra da inimisade ar-

gentina. . .

A reorganização das

forças armadas

A reorganização das fôrças ar-

madas foi um dos maiores cuida-

N

POLÍTICA DIPLOMÁTICA E ECONÔMICA DE RODRIGUES ALVES 43

dos do quatriênio

Rodrigues Al-

ves. O Brasil, sob a diplomacia

clarividente de Rio Branco, deve-

ria cuidar da própria

defesa mate-

rial, aparelhando-se para

as conti-

gências que pudessem ameaçá-lo.

O apaziguamento das antigas lutas

internas e a situação de prosperi-

dade do Tesouro Federal permi-

tiam ao Govêrno iniciar um

programa de construções mate-

riais, do qual

ressaltavam a re-

forma do ensino militar, a insta-

lação de uma fábrica moderna de

pólvora, a construção de linhas

estratégicas militares, etc. Reali-

zavam-se pela primeira

vez em

campo próximo

da capital as

grandes manobras de divisão. Ao

restauração da Marinha de Guer-

ra, que

fôra durante o Império a

primeira da América Latina e

que

a revolta de 1893 praticamente

aniquilara, era premente

neces-

sidade. Uma lei de dezembro de

1904 autorizava o govêrno

a cons-

tituir uma esquadra de tres cou-

raçados de 12 a 15.000 toneladas,

ou seja, dos mais poderosos

da

época, tres cruzadores de 9.200

a

9.700 toneladas, seis contra-torpe-

deiros, tres submarinos, além de

outros navios auxiliares. Ao mes-

mo tempo, como complemento

do programa

naval, o govêrno

construiria moderno arsenal, nas

proximidades da capital. Os na-

vios escolas com a bandeira repu-

blicana, ainda tão pouco

conhe-

cida voltavam, como outrora, os

da Monarquia, a cruzar os mares

estrangeiros.

A atividade do Ministério

da Viação e Obras

Públicas

Intensa também era a ativida-

de do Ministério da Viação e

Obras Públicas. O novo porto

do

Rio de Janeiro, que

implicara o

saneamento e a modernização da

cidade, dera-lhe, enfim, o aspecto

de uma capital moderna estimu-

lava as outras cidades marítimas

do país.

Diretamente ou por

in-

termédio de emprezas concessio-

nárias iniciava-se a construção dos

portos da Baía, Recife, Belém do

Pará e barra do Rio Grande do

Sul. Prolongavam-se algumas das

linhas férreas essenciais e inaugu-

ravam-se os primeiros

trechos de

outras, como a que

deveria ligar

S. Paulo a Mato Grosso e frontei-

ras da Bolívia, e S. Paulo ao Rio

Grande do Sul. Pela primeira

vez concretizava-se o pensamento

de que

a rêde ferroviária deveria

ter um sentido nacional, e não

servir apenas a regiões ou Estados

isolados, pela

comunicação entre

os seus liinterlands e orlas marí-

timas, como se cada um deles for-

masse um centro econômico es-

tanque.

A gestão

das finanças

públicas

A gestão

das finanças públicas

era certamente o setor adminis-

trativo que

mais deveria interes-

sar a um antigo ministro da Fa-

zenda como Rodrigues Alves.

Alargando a concepção essencial-

mente fiscal da política

financei-

ra de Campos Sales, êle a condi-

ciona mais de perto

à vitalidade

econômica do país.

A transfor-

mação do Rio de Janeiro,

o de-

senvolvimento das vias férreas e

do comércio de cabotagem cria-

vam entre os brasileiros uma for-

ma de confiança mais realista na

sua pátria.

Perdiam eles um pou-

co do ingênuo narcisismo de ou-

40 CULTURA POLÍTICA

trora, que

se contentava com de-

clamações retóricas sôbre rique-

zas, tantas vezes imaginárias, da

"terra incomparável", do

"porque

me ufano do meu país", para

co-

meçar a vêr e analizar as realida-

des nacionais com olhos menos lí-

ricos. O recenseamento, mesmo

falho, pudera

mostrar os grandes

aspectos da geografia política

e

econômica do país;

estatísticas e

cálculos, mesmo precários,

davam

também aproximada imagem dos

fatos.

Poltica demográfiui

e imigração

A população

ascendera de 10

milhões de almas, em que

era es-

timada em 1872, a 17 milhões.

Entre 1890 e 1900 o Distrito Fe-

deral passara

de 500

a 700

mil ha-

bitantes, e a cidade de S. Paulo,

de 64.000 a 240 mil. Os grandes

centros urbanos do norte, como

Baía, Recife e Belém, conserva-

vam-se estacionários, se não re-

grediam. Deslocara-se completa-

mente o centro econômico e po-

lítico, do Norte para

o Sul. Em

1872, equilibravam-se as popula-

ções das duas

grandes zonas

geo-

gráficas; em 1900, a diferença a

valor da última era de cerca de 3

milhões de almas. Tinham tri-

plicado as suas

populações S.

Paulo e Rio Grande do Sul. A

marcha para

o oeste dos cafezais

paulistas, através de matas vir-

gens e índios bravios, lembrava o

movimento de fronteiras internas

do War West norte-americano. A

imigração estrangeira, intensifi-

cada nos últimos anos do Impé-

rio —

em 1887 entravam em S.

Paulo 35.000

colonos europeus —

atingia o máximo em 1891, com

216.000 colonos ingressados nos

Estados do Sul. Diminuindo nos

anos imediatos, tendia novamen-

te a nível superior a 100.000 en-

tradas anuais. O Rio de Janeiro,

que fôra outrora o

principal cen-

tro de imigração européia —

por-

tuguesa em sua enorme maioria

— seguido

pelo Rio Grande do

Sul (alemães

e italianos) cedera

lugar a São Paulo, para

cuja la-

voura cafeeira afluiam em massas

compactas os italianos. Em 1900,

sôbre uma população

total de

2.200.000 habitantes, contava S.

Paulo com 530

mil estrangeiros.

Tal invasão de estrangeiros in-

fluía naturalmente não só nas ca-

racteristicas éticas das populações

do sul como na técnica do tra-

balho rural. Limitado ao cres-

cimento vegetativo de sua gente,

mais sujeito às endemias locais e

a alto coeficiente de mortalidade,

principalmente infantil,

pelo mau

regime de alimentação e de higie-

ne geral,

cada vez mais o Norte se

distanciava-a do Sul. A produção

de S. Paulo representava cerca

de metade da produção

nàcional.

A exportação de café, regulando

de 60 a 70 %

das exportações to-

tais, definia economicamente o

Brasil. A borracha da Amazônia

fizera de Manáus o centro urbano

mais isolado das grandes

corren-

tes de civilização mundial, uma

cidade de luxo, de esbanjamentos

e de aventuras. Importava o

Brasil a maior parte

dos gêneros

alimentícios e a quasi

totalidade

dos objetos manufaturados. Pou-

co se elevara, salvo nas grandes

cidades e nas regiões de imigran-

tes do Sul, o triste nível de vida

das classes proletárias,

de cuja

existência os governos

individua-

POLÍTICA DIPLOMÁTICA E ECONÔMICA DE RODRIGUES ALVES 47

listas e tão inclinados ao capita-

lismo da concepção da época, mal

se apercebiam.

Câmbio e comércio

exterior

Entretanto, a remodelação do

Rio de Janeiro,

como supuzera e

prometera Rodrigues Alves, basta-

ra para

fazer renascer a confiança

dos capitais europeus no futuro do

Brasil. Com eles pudera

o seu

govêrno realizar uma

política

construtora, sem abalo nas finan-

ças e no crédito

públicos Fiel

às suas velhas idéias liberais, aliás

quasi inatingíveis à crítica no seu

tempo, o antigo ministro da Fa-

zenda de Floriano Peixoto e de

Prudente de Morais mantinha a

política iniciada

por Campos Sa-

les, de resgate do papel

moeda,

fundo de garantia,

deflação pau-

latina, impostos ouro, etc. A

taxa cambial elevara-se, entre

1902 e 1906, de 12 a 16 ds; di-

minuíra a circulação inconversí-

vel; reduzira-se a dívida pública;

encerravam-se com saldos os or-

çamentos anuais; do empréstimo

para o

pôr to do Rio. de

Janeiro

passavam para o

govêrno seguin-

te 3

milhões de libras; o Tesouro

tinha largas disponibilidades em

Londres e em dia os seus paga-

mentos. Regulavam 200 mil con-

tos os saldos médios das exporta-

ções sôbre as importações.

Em

resumo, na modéstia dos nossos

recursos econômicos — no

plano

econômico da Europa do Norte

ou dos Estados Unidos, o Brasil

devia ser visto como um país, não

de 20 milhões mas de 4 ou 5

mi-

lhões de habitantes - tínhamos

começado uma fase de incontes-

tada prosperidade.

A crise de super-pro-

dução do café

No campo aparentemente tran-

quilo da

gestão econômica, nem

sempre entretanto, fora fácil o

govêrno de Rodrigues Alves. A

primeira grande crise de super-

produção do café leva-o a colo-

car-se em atitude adversa aos in-

terêsses imediatos dos lavrado-

res e homens de negócios de São

Paulo e agrava as dificuldades po-

líticas. Mantendo, como já

vi-

mos, as linhas gerais

do programa

financeiro de Campos Sales, de

valorização do meio circulante,

facilitada ademais pelo

afluxo dos

capitais estrangeiros, invertidos

nas obras públicas,

Rodrigues Al-

ves conseguira, não sòmente ele-

var as taxas cambiais, como tor-

ná-las mais estáveis. Esta poli-

tica, que

servia aos interesses ge-

rais do país,

contrariava os dos

exportadores de café e dos grupos

mais ou menos ligados às nascen-

tes industriais fabris, não satis-

feitas com a proteção

alfandegá-

ria. Quanto

mais baixo estives-

se o câmbio, maior soma de di-

nheiro produziria

o café vendido

nos mercados exteriores; da mes-

ma forma, encarecendo as uti-

lidades importadas, facilitaria

maior margem de lucro às fabri-

cas nacionais. Se os industriais

ainda não podiam

impôr os seus

imediatos interêsses ao govêrno,

os produtores

e exportadores de

café já se

julgavam suficientemen-

te fortes para

determinar a ori-

entação da política

econômica.

Vinham caindo progressivamente

os preços

do café; na safra de 1905

tinham descido ao mínimo em

dinheiro nacional. Semelhante

quéda de valor coincidia com

48 CULTURA POLÍTICA

extraordinário aumento de pro-

dução. Alargando-se das terras

cançadas do norte e do centro do

Estado de S. Paulo, a lavoura

cafeeira alastrava-se por todo lon-

gínquo oeste, a caminho dos ser-

tões do Paraná e Mato-Grosso,

derrubando matas virgens, cons-

truindo estradas de ferro, impro-

vizando cidades e riquezas ator-

doantes, e criando entre os pau-

listas, com uma espécie de orgu-

lho nativista, hábitos de extrema

audácia nos negócios, de luxo e

de prodigalidade.

Tendo batido

rapidamente os países

concorren-

tes, o Brasil, ou mais especialmen-

te S. Paulo, conseguira o monó-

polio virtual do café. A safra de

1906 atingia a limite até então

desconhecido: 22 milhões de sa-

cas. Somada aos estoques ante-

riores de cêrca de 4

milhões, ela

viria representar um excedente de

16 milhões de sacas sobre o con-

sumo mundial.

Pânico na indústria

cafeeira

Esta formidável superprodu-

ção, determinando maior avilta-

rriento de preços,

criava entre os

homens do café, aliados a certos

interêsses políticos,

uma situação

de pânico.

Somente poderia

sal-

vá-los a direta intervenção do

governo federal nos mercados do

produto. Mas não se resumiam a

solicitar imediato auxílio para

a

regularização dos estoques e con-

sequente defesa dos preços

exis-

tentes. Pleiteiavam medidas mui-

to mais amplas, que,

além de for-

çar a valorização artificial do ca-

fé, afetavam a estrutura da poli-

tica monetária do govêrno

Rodri-

gues Alves. Êste teria de fixar o

câmbio de 12 ds. para

os negó-

cios decorrentes da valorização, à

semelhança do que

se praticara

na

República Argentina. Os gover-

nadores dos tres principais

Esta-

dos cafeeiros, S. Paulo, Rio de Ja-

neiro e Minas Gerais, reunidos

na cidade de Taubaté, no pri-

meiro daquêles Estados, e sem

acôrdo prévio

com o Govêrno Fe-

derai, assinavam um convênio de

defesa e valorização do café, que

seria a primeira

etapa de uma po-

lítica intervencionista, cujo crack

final em 1929 determinaria a vi-

tória da Revolução ou a queda

da

República de 1889... Os tres

Estados obrigavam-se a manter

certo preço por

saca de café nos

portos de embarque, retendo

par-

te da produção,

equivalente ao

excesso sôbre o consumo mundial.

Para o financiamento de tal pia-

no, criava-se uma taxa especial

de 3

francos ouro, incidindo sô-

bre o café exportado, e que

de-

veria cobrir os serviços de juros

e amortizações de empréstimos

especiais a serem feitos.

Apesar de grande

fazendeiro de

café e de suas ligações partidárias

em S. Paulo, o .presidente Rodri-

gues Alves resistiu tenazmente a

endossar a aventura, como numa

clara previsão

do seu futuro de-

sastre. Se o govêrno

da União

não podia

impedir o acôrdo en-

tre os tres Estados sôbre a valori-

zação do café —

eram ainda mui-

to vivos na época os sentimentos

federalistas —

cabia-lhe, no entan-

to, opinar sôbre as modificações

propostas à

política monetária.

Nêste ponto,

êle mantém a sua

intransigência. Em mensagem ao

Congresso, critica com serenidade

e firmeza a tentativa da política

POLÍTICA DIPLOMÁTICA E ECONÔMICA DE RODRIGUES ALVES 49

de câmbio baixo, e de possível

quebra do

padrão monetário. Sae

vitorioso da luta; mas é, de al-

gum modo, efêmero, o seu triun-

fo. Os políticos que

êle contra-

riara provocam a crise da sua su-

cessão na presidência

da Repú-

blica e preparam

o êxito próximo

da orientação intervencionista.

problema da sucessão;

a candidatura de

Afonso Pena

Ainda em 1904, antes de decor-

ridos os dois primeiros

anos do

seu período presidencial,

Rodri-

£ues Alves fôra em excursão ao

Estado de Minas Gerais. Atri-

buiu-se à semelhante visita claro

sentido político;

o presidente pre-

pararia a candidatura dio vice-

presidente Afonso Pena à sua su-

cessão. Os políticos

em oposição

declarada ou latente encontraram

o pretexto para

uma campanha

de opinião pública:

as candidatu-

ras oficiais. A interferência do

chefe do govêrno

na escolha do

seu sucessor, explicável na falta

de partidos

nacionais, era tido o

maior dos atentados à pureza

do

regime republicano. Pinheiro

Machado, senador pelo Rio Gran-

de do Sul e cuja força e prestígio

na direção da política federal se

tinham afirmado durante o go-

vêrno de Campos Sales, torna-se

o chefe da corrente hostil aos pre-

tensos intuitos de Rodrigues Al-

ves. Entrementes, o partido que

empolgara o poder

em S. Pau-

lo e fizera elevar à chefia do Exe-

cutivo federal tres presidentes su-

cessivos, levanta a candidatuia de

Bernardino de Campos, republi-

cano histórico, antigo presidente

do Estado, antigo ministro da Fa-

zenda e oito anos antes indigitado

sucessor de Prudente de Morais.

Rodrigues Alves nada tinha a

apor ao nome do seu coestaduano,

prestigiados pelos seus correiigio-

nários comuns. Os políticos, que

haviam esgrimido contra a pers-

pectiva da candidatura oficial de

Afonso Pena reavivam a campa-

nha oposicionista, de forma mui-

to mais virulenta, pois

não com-

batiam apenas em nome de um

princípio de duvidosa sincerida-

de, mas igualmente o candidato e

as idéias que

o mesmo defendia.

Bernardino de Campos era ti-

do como um homem franco, de

atitutdes e pensamentos

definidos.

Durante o período

da guerra

ci-

vil do Rio Grande do Sul e da

revolta da Armada, exercendo o

govêrno de S. Paulo, colocara-se

resolutamente ao lado da legali-

dade de Floriano Peixoto, evitan-

do que

o seu Estado fosse envol-

vido na luta fraticida e facilitan-

do a indicação de Prudente de

Morais. Ministro da Fazenda, re-

velara em seus relatórios pontos

de vista pessoais

sobre as questões

econômicas e financeiras. Não o

seduzia a política

unilateral de

Campos Sales; não o tentava o

fomento as indústrias pela

exclu-

siva proteção alfandegarias, era

adverso à quebra

do padrão

mo-

netário. Alcindo Guanabara, jor-

nalista estreitamente ligado ao

grupo de Pinheiro Machado, con-

segue de Bernardino de Campos

uma entrevista, que valia como

um programa

de govêrno.

O po-

lítico paulista

não oculta a sua re-

pulsa às tentativas protecionistas

e intervencionistas, de

que o

Çon-

vênio de Taubaté representaria

pouco depois o mais audacioso

50 CULTURA POLÍTICA

passo. A congregação dos inte-

rêsses partidários

e econômicos

ameaçados abre implacável cam-

panha de imprensa. Ao nome de

Bernardino de Campos, Pinheiro

Machado opõe o de outro paulis-

ta, Campos Sales, cuja obra de

saneamento financeiro no govêr-

no da República começava a ser

julgada com maior serenidade.

Aceitando a indicação que

lhe pa-

recia uma reparação nacional às

injustiças sofridas, Campos Sales

acaba por

dela desistir, convenci-

do de que

fora apenas o instru-

mento de hábil manobra políti-

ca para

enfraquecer o prestígio

do seu próprio

Estado. Sacrifica-

das as duas candidaturas de S.

Paulo, harmonizavam-se os ami-

ços de Pinheiro Machado e Ro-

drigues Alves em tôrno de Afon-

so Pena, que justamente

servira

de primeiro pretexto para

a cisão

política. A

política de S. Paulo

perdia a oportunidade de fazer o

quarto presidente da República;

mas triunfavam com a ascenção

do político

mineiro os apologis-

tas do protecionismo

industrial,

da intervenção do govêrno

nos

negócios de café e da reforma mo-

netária. Em Março de 1906, assi-

nava-se o Convênio de Taubaté,

e um dos governadores que

o fir-

mavam, Nilo Peçanha, era o can-

didato oficial à vice-presidência

da República...

Pinheiro Machado e o novo

Partido Republicano

Federal

Organizando as maiorias poli-

ticaj num bloco, cuja principal

finalidade teórica era a de reivin-

dicar para

elas próprias

a indica-

ção dos candidatos à

presidência

da República, Pinheiro Machado

parecia consolidar definitivamen-

te o seu prestígio político.

A

candidatura Afonso Pena, surgi-

da sobre o fracasso da candidatu-

ra Bernardino de Campos, assi-

nalaria retumbante vitória. Re-

aparecia, assim, no cenário poli-

tico da República novo

"Partido

Republicano Federal". Em vez,

no entanto, da chefia maneirosa

de Francisco Glicério, o forte co-

mando de um homem de ação, de

um antigo caudilho, bravo, rude,

tenaz, voluntarioso, o que

não o

impedia, aliás, de transigir e la-

dear nos momentos difíceis, más-

cara morena e impressionante,

de fortes linhas talhadas em bron-

ze, porte

marcial, amando a vida

faustosa, os desportos, o jogo,

os

golpes de audácia e de aventura,

recebendo sem muitos cuidados

de seleção na sua larga casa de

mau gosto,

fiel aos amigos, saben-

do inspirar dedicações ardentes e

ódios irredutíveis. Chefe arbi-

trário do Senado Federal, cuja

presidência efetiva exercia, tendo

conseguido disciplinar sob sua di-

reção os homens mais ilustres, os

bacharéis mais parladores,

os mais

broncos coronéis da politicagem

eleitoral, ligado a homens de ne-

gócios, Pinheiro Machado encar-

nava poder paralelo

ao do presi-

dente da República. A sua re-

sidência, o famoso palacete

do

"morro

da Graça" num dos arra-

baldes burguezes do Rio de Ja-

neiro, era o centro de atração diá-

ria dos políticos.

Êle distribuía

soberanamente, nos escandalosos

reconhecimentos do Congresso,

os mandatos de representação na-

cional. Acolhedor e afável, des-

POLÍTICA DIPLOMÁTICA E ECONÔMICA DE RODRIGUES ALVES 5J

pertava, mesmo entre

jovens in-

telectuais, hostis ao seu tipo de

vida, esta simpatia, que

distingue

os homens fáceis no arriscar o di-

nheiro e a vida, forma primitiva

de generosidade

dalma, que

com-

pensa tantos outros defeitos.

Tendo impedido o êxito de nova

candidatura paulista,

Pinheiro

Machado julgava-se

o natural tu-

tor da futura presidência

de Afon-

so Pena.

Rodrigues Alves, no término do

seu prazo

de govêrno,

teve a cau-

tela de não externar os dissídios,

deixando de aceitar os desafios

do Congresso, inspirado por

Pi-

nheiro Machado. Pela primeira

vez na história da República,

perdia o

govêrno o apoio das

maiorias parlamentares,

sem que

por isto se

perturbasse o ritmo da

administração e se ameaçasse a

paz interna. Em 15 de Novem-

bro de 1906, o antigo conselheiro

do Império transmitia a outro

conselheiro o govêrno

do Brasil,

que soubera exercer com argúcia,

eficiência e serena coragem, para

a êle voltar ainda uma vez, doze

anos depois, mas já

alquebrado e

vencido pela

morte próxima.

. .

Alimentação,política

nacional

DANTE COSTA

Chefe da Seção de Alimentação da Policlínica

Geral do Rio de Janeiro.

Médico do Departa-

mento Nacional da Criança e Professor de

Dietética no Ministério do Trabalho.

Clinico e especialista em nutrição; membro da "Societé

Scientifique d'Hy-

giène Alimentaire" da

"Societé de Chimie Biologique" de Paris, da

"Socie-

dade de Medicina e Cirurgia" do Rio de Janeiro, da "Sociedade

Brasileira

de Gastroenterologia e Nutrição"; tendo representado o Brasil em vários

congressos científicos estrangeiros e publicado

diversos livros e mono gr

a-

fias cientificas sôbre a matéria de sua especialidade, como "Bases

da Ali-

mentação Racional" (2.a

ed., Rio de Janeiro, 1940), "O

Problema da Ali-

mentação na Amazônia" (Rio, 1941),

"Necessidade da assistência alimentar

à criança" (Rio, 1935),

"Metabolismo da água"

(Rio, 1936),

"Padrão die-

tético do Brasileiro" (Rio,

1937), "Merendas

escolares" (Rio,

1939, edição

do ministério cia Educação e Saúde) — o autor analisa, neste artigo, a im-

portância social e

política do

problema da alimentação

popular. Apôs um

esboço histórico da evolução das idéias alimentar es, até a era cientifica

moderna, encara êle a questão

alimentar no Brasil, a necessidade de uma

educação dietética do brasileiro e as soluções práticas já

tentadas pelo

atual Govêrno.

A

RESOLUÇÃO do proble-

ma da alimentação popu-

lar é considerada, hoje,

uma verdadeira obrigação gover-

namental. A ciência nascida das

observações empíricas de todo o

tempo e dos laboratórios fecun-

dos que

a integraram em suas ba-

ses fisiológicas —

última fase his-

tórica da ciência da nutrição, co-

mo veremos a seguir —

vinha cha-

mar a atenção para problemas

de

uma transcendência mágna, re-

lacionados com a alimentação:

pois esta, base da vida, logo se al-

çou às mais altas zonas de inte-

rêsse prático.

Foi um simples raciocínio: a

alimentação está na raiz dos fe-

nômenos biológicos, ela interessa

o homem na realização de fenô-

menos basilares, quais

os de cres-

cer, desenvolver-se, reproduzir-se,

dirigindo-lhe a normalidade das

condições de vida. Cumpre, por-

tanto, assegurar às populações

uma alimentação racional, para

valorizá-las como expressões de

trabalho e de força social.

ALIMENTAÇÃO, POLÍTICA NACIONAL 33

Valor social da alimentação

Já ninguém mais discute o va-

lor social da alimentação.

Experiências de laboratório já

mostraram, em animais, que

é

possível modificar de tal maneira

os caracteres somáticos de uma

determinada espécie —

ratas al-

binas —

que se creará uma nova

espécie animal, com o triplo do

desenvolvimento tísico, pesando

duas vezes mais que

os animais

primitivos, e

possuindo modifica-

ções ósseas e viscerais de

gran-

de extensão (Osborne

e Men-

dei).

No homem uma grande quan-

tidade de fatos semelhantes já

tem sido observada. Os filhos

de imigrantes pobres

são em ge-

ral mais altos que

os pais quando

adquirem, noutros países,

condi-

ções mais favoráveis de vida, fa-

vorecendo melhor alimentação.

As crianças pobres

são, em ge-

ral, mais baixas que

as crianças

ricas, no mesmo termo médio de

idade, e é a desnutrição, causada

pelas condições econômicas de

baixo nível, que

determina tal fa-

to (Boas,

Pagliani, Geissler, Jack-

son). Por outro lado, crianças

creadas ao seio —

alimentação

ideal para

o latente — morrem

menos que

as crianças alimenta-

das artificialmente durante o pri-

meiro ano de vida. O uso do

leite produz,

nas crianças que

o

incluem na alimentação diária,

um aumento nítido de pêso

e de

estatura em face de grupos

de

crianças da mesma idade às quais

falta, em porções

úteis, esse gran-

de alimento cálcico. São muito

numerosas as experiências reali-

zadas no estrangeiro nêsse senti-

do, convindo destacar as deM. S.

Rose, na Universidade de Colúm-

bia. Estamos interessados em

verificar até que ponto

a ausên-

cia de leite influe no desenvolvi-

mento das crianças brasileiras e

realizamos, neste momento, no

Rio, uma experiência em tres

grupos de crianças escolares, ain-

da não concluída. Oportuna-

mente publicaremos

os nossos re-

sultados.

Exemplo dos benefícios presta-

dos ao homem pela

alimentação

podem ser obtidos em toda a

parte. Um estudante inglês, co-

mo termo médio da sua classe, é

de 10 centímetros mais alto que

o

operário inglês: 1111,75 P21121

um>

101,65 para

outro, e isto porque

o

estudante se nutre melhor e es-

tá em condições econômicas que

lhe tornam possível,

além de me-

lhor alimentação: melhor repou-

so, melhor esporte, etc. E é pre-

ciso fazer notar que

isso aconte-

ce num país

onde o problema

quantitativo da alimentação

foi satisfatoriamente resolvido: a

Inglaterra, para

satisfazer às ne-

cessidades quantitativas

da ali-

mentação da sua população,

or-

çadas em

44.300 biliões de calo-

rias, apresenta um consumo de

50.100 biliões de calorias.

A questão

alimentar

no Brasil

No Brasil a questão

alimentar

possue uma importância de

pri-

meira ordem: infelizmente ainda

somos um dos grandes

territórios

mundiais de sub-alimentação.

Possuímos mais de 27 milhões de

desnutridos, entre homens, mu-

lheres e crianças.

As tabelas de pêso

e altura das

crianças brasileiras oferecem índi-

54 CULTURA POLÍTICA

ces inferiores às americanas e às

européias, e devemos apontar a

desnutrição como fator prepon-

derante no quadro

dos elementos

causais de tal fenômeno.

A mesma coisa em relação ao

pêso e altura dos adultos, convin-

do notar que

no Norte, onde a

sub-alimentação é mais intensa, os

homens são mais baixos que

no

Sul, onde as necessidades alimen-

tares são melhor atendidas. Sa-

bemos que

há outros fatores,

principalmente de ordem etno-

gráfica, a considerar no estudo

dessa questão,

mas a falta de ali-

mentação adequada e útil é, sem

dúvida, o principal

fator deter-

minente.

Ora, uma condição de vida as-

sim significativa deixa de interes-

sar apenas ao indivíduo. O emi-

nente mestre sul-americano Prof.

Pedro Escudero creou a expres-

são:

"Política

nacional de alimen-

tação", para

significar a obriga-

ção governamental de atender ao

problema da alimentação, e as

bases de realização dêsse progra-

ma, por

êle fixados para

a Ar-

gentina. (1).

A obrigação de atender às ne-

cessidades do problema

da ali-

mentação popular

— em seu trí-

plice aspecto: fisiológico, econô-

mico e educacional —

constitue,

pois, obrigação social capaz de

tornar-se verdadeira preocupação

permanente.

Resolver essa questão

é ga-

rantir, para

o país,

uma popula-

ção de homens fortes, aptos

para

o trabalho, saudáveis, livres das

doenças carenciais ou dos esta-

dos debilitadores que

a alimen-

tação defeituosa sempre determi-

na, população

de homens úteis,

capazes de transformarem em

realidade positiva

todas as fôrças

potenciais da civilização brasi-

leira.

Já disse Mc-Lester:

"o

futuro

do homem dependerá bastante

do alimento que

coma". Deve-

mos atentar nas palavras

do ilus-

tre dietólogo americano, agora

que iniciamos, no Brasil, os

pri-

meiros passos para

a solução ra-

cional do nosso grave problema

alimentar, pois

é bem verdade

que

"a

alimentação influe na du-

ração da vida, no desenvolvimen-

to dos caracteres somáticos, na

conservação da saúde, na aptidão

para o trabalho e na

produção

do trabalho, no aproveitamento

mental, no comportamento social,

e portanto

transcende o interês-

se de cada um, para

interessar ao

país, ao

povo, e à raça".

(Dante

Costa).

Evolução das idéias

alimentar es

A história da alimentação con-

funde-se, em sua origem, com a

própria história do homem, do

qual a alimentação representa

apenas um dos instintos mais pri-

mitivos. A necessidade de comer

está na base da vida animal.

O homem primitivo

comeu

apenas por

instinto, para

satisfa-

zer às necessidades mais essenciais

da sua organização: para

locomo-

ver-se, para garantir

o processo

mental primário, para

viver a pre-

cariedade das suas abstrações e da

sua cultura material.

(1) La

política nacional de la alimentacion en la Republica Argentina —

Pedro Escudero — Buenos Aires — 1939.

ALIMENTAÇAO, POLÍTICA NACIONAL 35

A seguir, o aperfeiçoamento so-

ciai transformou o instinto de co-

mer na conciência de comer. A

alimentação passava

a ser uma

preocupação, um ato

que mere

cia reflexão, um gesto

a ser diri-

gido. Mas essa

preocupação evo-

luiu lentamente, arrastou-se va-

garosa durante milênios até

po-

der encontrar as suas justificati-

vas científicas e as suas bases di-

retoras. A ciência da nutrição

tem apenas os seus cincoenta anos,

mas a alimentação tem a idade do

homem.

Já dividimos a evolução histó-

rica da dietologia em tres gran-

des períodos:

— período

arcaico —

que vai

dos tempos antigos até o desen-

volvimento da química,

no sé-

culo XVIII;

— período pré-científico

que vai dessa época aos últimos

anos do século XIX;

— periodo científico ou fisio-

lógico —

que começa nos fins do

sécuo XIX e vem até nossos dias.

A alimentação na Antigui-

dade e Idade Média

Mesmo nas mais remotas civi-

lizações prehistóricas

encontram-

se documentos relativos à impor-

tância dos hábitos alimentares na

vida individual e até na organi-

zação coletiva. No Egito foi en-

contrado o exemplar de um pa-

piro milenar

— 3.400

anos A. C.

— onde se revelava a existência

<le

"medidas

governamentais"

no

sentido de fornecer

"nutrição" e

"alimentos"

a uma determinada

coletividade. Havia mercados pú-

blicos em Tello, cidade da Meso-

potamia, 2.000 anos antes da nos-

sa éra. Contenau descobriu mui-

to recentemente, na Caldéa, no

templo de Obeid, perto

de Ur,

um baixo-relevo representando a

ordenha de vacas e o preparo

da

manteiga por processos

ainda ho-

je usuais em algumas

populações

sírias.

Na velha Grécia fazia-se o estu-

do das idéias. Hipócrates esbo-

çou, se bem

que empiricamente,

o estudo da dietologia. Êle já

se referia à maior necessidade de

alimentos que

tem a criança, em

relação ao adulto, e êste em rela-

ção ao velho.

(2).

A medicina romana também

muito se interessou pelos proble-

mas alimentares. E a facilidade

com que

ainda hoje o povo

fala

em alimentos

"fracos"

e

"fortes",

"pesados"

e

"leves" —

denomina-

ções desprovidas de rigor cientí-

fico —

deriva de uma classsifica-

ção de Celsus, médico romano.

Galeno publicou

o livro: Fa~

culdades ou poderes

dos alimen-

tos, descrevendo abundantemen-

te, e de preferência,

os alimentos

vegetais. O grego

Pitágoras era

"vegetariano" —

mal e defeituoso

regime: hoje sabemos que

a boa

alimentação exige a utilização de

alimentos de todas as espécies,

animais e vegetais, utilizados em

porções satisfatórias e em

propor-

ções adequadas, de acôrdo com as

qualidades nutritivas

que o cara-

cterizem. A alimentação racio-

nal compõe-se harmonicamente

não pode

ser baseada na exclusi-

(2) Les aphorismes d'Hyppocratte - L'enseigne du

post cassé

- Paris -

1934. Aforismas XIII c XIV —

págs. 46 e 47*

56CULTURA POLÍTICA

vidade de nenhum grupo

de ali-

mentos. (3.

Santórius foi outro médico da

antigüidade que teve as vistas

voltadas para

o problema

alimen-

tar, chegando a estabelecer rela-

ções entre

pêso e a nutrição. Dêle

diz M .S. Rose (4) que,

teria re-

solvido muitos dos mistérios en-

tão existentes em nutrição se, por

esse tempo, já

existisse a ciência

química.

A medicina medieval também

se preocupou

muito com as ques-

tões alimentares. Ela é farta de

publicações, livros, regras, aforis-

mas, relativos aos cuidados a ter

com a alimentação. Joanítius

es-

creveu o Isagoge, rico livro de

conceitos dessa espécie. A chama

da

"Escola de Salerno" tem os seus

famosos Aforismas, obra em ver-

so muito citada, cuja origem e

autoria verídica são desconheci-

das, presumindo

alguns que

te-

nham sido escritos em 1.066. Des-

taco do aforisma XVII":

tética de qualquer

livro de edu-

cação alimentar.

Passou o tempo, muitos outros

documentos poderiam

ser cita-

dos, mas não é êste o lugar para

detalhar a evolução minuciosa da

ciência da nutrição.

O período pré-cientifico

da ciência da

nutrição

Lavoisier, dando à química

o

impulso que

deu, lançou as ba-

ses do que

iria ser, futuramente,

a ciência da nutrição.

"The fa-

ther of a science of nutrition"

chama-lhe M. S. Rose (5).

Com êle começa o que

chamo

período pré-científico da ciência

da nutrição. Pleno desenvolvi-

mento da química.

Os laborató-

rios descobriam velhos mistérios

e os livros de alimentação dêsse

tempo são bem expressivos.

Por êssa época aparece, em lin-

gua portuguesa, o livro do dr.

Mirandela, médico de D. João

V,

publicado em Lisboa, em i749>

Âncora medicinal para

conservar

a vida com saúde, divulgado e

comentado entre nós por

Peregri-

no Júnior.

Em 1834, o médico inglês For-

syth publicou

o seu Dictionnary

of Diet. Dicionário de alimentos!

Aproximavamo-nos do período

de

formação científica da nutriciolo-

gia. Em meiados do século XIX

os termos

"amiláceos", "sacarí-

neos", e outros se vulgarizam, re-

lacionados com os alimentos. E

"Choisissez une nourriture

Simple et conforme a la nature.

Mangez de bons oeufs frais, n'en

perdez point le lait".

E o simples título de alguns ou-

tros aforismas darão bem a idéia

das preocupações

do autor ou dos

autores dos famosos aforismas.

N.° XXV:

"II

faut regles ses re-

pas suivanta la saison de Tan-

née"; n.° XVI:

"Boire

en man-

geant, et ne

pas boire entre les

repas", o que

é, de resto, regra die-

«Vft

|

(3) Vide: Bases da Alimentação racional

— Dante Costa — Cia. Editora

Nacional — 1040

— 2.a edição; capítulo "Harmonia

Alimentar" —

pág. 95.

(4) M. S. Rose: Foundations of Nutrition

— New-York — *939 3'

(5) M. S. Rose

— Opus cit. — Frontespldo.

ALIMENTAÇAO, POLÍTICA NACIONAL 57

um médico anglo-português, o

dr. Jonatan

Pereira, em 1843,

utiliza pela primeira

vez uma pa-

lavra que

se firmaria para

sem-

pre no estudo da nutrição huma-

na:

"proteína".

A éra cientifica; contri-

buição brasileira

Chega-se ao último período:

a

fisiologia da nutrição encontra,

nos fins do século passado

e no

início de 1900, os caminhos defi-

nitivos para

a resolução do velho

problema humano. Forma-se a

ciência da nutrição, no sentido

em que

hoje a amamos e servimos,

ciência cujos principais pontos

de

reparo são:

1. as necessidades calóricas

do organismo humano —

em repouso, em trabalho,

em crescimento, etc.

2. as necessidades plásticas

do

organismo humano.

3. a adequação dos alimentos

e sua variação freqüente.

4. a harmonia alimentar; con-

ceito qualitativo

e quanti-

tativo das diétas; leis da

alimentação.

5. as relações entre os múl-

tiplos fatores da nutrição.

6. as vitaminas e seu papel

na intimidade biológica.

E para

terminar êste resumo his-

tórico vale a pena

dizer que

um

dos primeiros

a se referir a

"doen-

ças de carência", como a chama-

mos hoje, isto é, doenças causadas

por falta de determinadas substan-

cias alimentares, foi um médico

brasileiro, o dr. Hilário de Gou-

vêa, que

em 1882 publicou,

entre

nós, uma comunicação, reprodu-

zida em 1883 na Alemanha, afir-

mando que

a hemeralopia, ou ce-

gueira noturna, era devido a um

"vício

de nutrição", era

"determi-

nada por

insuficiência alimentar".

Hoje sabe-se que,

de fato, essa

doença é devida à ausência de ali-

mentos ricos em vitamina A.

Alimentação e geografia;

a alimentação popular

no Brasil

E' vasto e complexo o proble-

ma da alimentação popular,

Se o quizermos

resolver há que

estar atento a diversos fatores: o

fator regional, ou geográfico,

o

fator econômico, o fator educa-

cional, são os de mais significati-

va expressão.

Tôda a política

nacional de

alimentação deve ser realizada de

acordo com o levantamento das

necessidades alimentares do país

e de acordo com as possibilidades

de solução específica do proble-

ma alimentar brasileiro. Bem diz

Escudero:

"no

hay un problema

nacional de alimentacion, sino la

suma de problemas

regionales".

Assim, o nosso problema

ali-

mentar deverá ser estudado e re-

solvido em função da geografia

do país. Já

dizíamos em 1937,

tratando de um

"padrão

dietéti-

co do brasileiro":

"No

Brasil,

país enorme,

que contém em seus

vastos limites todos os climas su-

portáveis, seria difícil e errado a

organização de um padrão

rígido,

a ser seguido por

todos. Primei-

ro, porque

há alimentos que

exis-

tem em uma região c não são en-

contrados em outra. E' preciso

contar, no estudo da alimentação

brasileira, com estas modificações

58 CULTURA. POLÍTICA

impostas pelo

tamanho da terra e

pela diversidade de costumes".

A resolução do problema

ali-

mentar brasileiro deverá sair de

laboratórios brasileiros e de li-

vros brasileiros —

e eis porque

é

tão animador o interêsse atual

por êsse

problema. Pioneiros co-

mo o dr. Eduardo de Magalhães,

cuja

"Higiene alimentarpubli-

cada em 1912 ,encerra tantos con-

ceitos úteis para

o tempo, e que

ainda hoje subsistem, como o

prof. R. de Souza Lopes,

publi-

cando também significativo tra-

balho precursor

dos seus atuais

estudos, como o dr. Alfredo de

Andrade, realizando o estudo do

valor nutritivo dos nossos ali-

mentos, como o eminente Afrâ-

nio Peixoto, como o ilustre prof.

Paula e Souza, realizando em

1921 a calorimetria dos alimentos

brasileiro, atualmente desenvol-

vida em seu fecundo

"Instituto de

Higiene", outros, poderão

ver no

interêsse atual pela

ciência da

nutrição, a partir

de 1935, um si-

nal de correspondente interêsse

por uma das mais importantes

questões nacionais.

O Brasil, por

sua feição geográ-

fica, apresenta vários problemas

alimentares. Por exemplo: a de-

ficiência de carne na Amazônia

e sua resolução natural pelo

maior

consumo de peixe;

a existência

de diétas regionais erradas e uni-

laterais, a base de farinha de

mandioca, a base de carne seca, a

base de feijão preto, que,

de

acordo com as pesquizas

de F. A.

de Moura Campos não é o mais

nutritivo tipo de feijão entre os

usuais na alimentação humana,

etc.; os problemas

ligados ao for-

necimento de leite, alimento im-

precindível em toda a diéta cien-

tificamente composta para

o ho-

mem são; os problemas

ligados

ao pouco

consumo de verduras e

de frutas, etc.

Cabe aqui especial referencia à

questão da área cultivada de

pro-

dutos alimentares e das necessi-

dades alimentares de determina-

da região. São necessários 50

a

80 ares cultivados de produtos

alimentares, por

habitante, para

que a alimentação de uma região

se possa

fazer satisfatoriamente.

Realizando o cálculo para

uma

família de quatro pessoas,

essa

necessidade mínima sobe a 200

ares por

família. Na África Equa-

torial cabem a cada família 60

ares da terra cultivada; em nossa

Amazônia, a cada família cabem

apenas 10 ares.

Felizmente a situação não é a

mesma nas demais regiões brasi-

leiras, mas essas cifras, que

apre-

sentamos a recente Congresso

Científico, representam um sinal

bem expressivo do aspecto que

o

problema toma em nosso

país.

A educação alimentar

do brasileiro

O problema

da alimentação do

brasileiro apresenta, ao lado do

aspecto puramente

econômico,

uma outra face igualmente im-

portante: o aspecto educacional.

Êsse dilema —

pauperismo e igno-

rância, nem sempre tem uma si-

tuação tão dramática quanto

em

nosso país.

E' certo que

em toda a parte

gente pobre e

gente que não sabe

comer. Porém o gráu

dessa po-

breza e dessa deseducação varia.

alimentaçao, política nacional 59

Nos Estados Unidos, por

exem-

pio, o alto

padrão de vida e o

elevado nível dos salários darão

cores menos vivas ao problema

econômico da alimentação, e mes-

mo assim Mc. Collum ainda afir-

mava, em 1934, a existência de

20 milhões de crianças america-

nas desnutridas. Em certos pai-

ses da Europa, por

outro lado, a

tradição da boa cozinha contri-

bue para

tornar menos significa-

tiva a questão

educacional da

alimentação. Conforme pude

ob-

servar em alguns países

da Euro-

pa, em 1938, o

problema alimen-

tar europeu é bem diverso do nos-

so. Não temos, na vida doméstica,

mesmo entre as famílias abasta-

das, o amor do bom prato, que

le-

va à pesquiza

de novos alimentos

culinários, que

leva ao prazer

da

variedade —•

eis uma das causas

que explicam as nossas tendências

de repetição, de monotonia ali-

mentar —

mesmo entre classes de

nível econômico mediano.

Já é uma verdade sabida: o

brasileiro não sabe comer. Diz

Alexandre Moscoso:

"urge

edu-

car, corrigir os erros, indicar a

acertada escolha dos alimentos,

mostrar qual

deve ser a alimen-

tação apropriada", etc. Helion

Povoa define bem:

"A

sub-nutri-

^ão resulta do baixo nível de

educação e da escassez econômi-

ca. Salário só, não basta; é pre-

ciso também educação: usar lei-

te, comer frutas, empregar legu-

mes na alimentação habitual. O

nosso homem do interior precisa

ser instruído, precisa

saber que

não se deve alimentar só do bal-

cão da venda, que

lhe devora tô-

da a bolsa pobre; precisa

se con-

vencer de que

a terra é dadivo-

sa; deve plantar

e colher".

O pauperismo

é, em verdade,

apenas uma das partes

do drama

alimentar das clases menos favo-

recidas. A outra parte

dêsse dra-

ma, e igualmente imperiosa, é a

falta de educação alimentar.

As soluções; a política

alimentar do atual

Govêrno

Xão se conseguirá realizar o

vasto trabalho de solucionar o

nosso problema

alimentar sem

muito espírito de determinação.

Desde 1935 a conciência brasi-

leira sentiu chegada a hora de

resolver êsse problema:

a

"Gam-

panha Nacional

pela Alimenta-

ção da Criança", realizada

pelo

prof. Olinto de Oliveira, atual

diretor geral

do Departamento

Nacional da Criança, foi o pri-

meiro passo

nêsse sentido. Uma

campanha educacional realizada

por aquêle eminente técnico do

Ministério de Educação e Saúde.

Iniciativas outras, tais como o

Inquérito realizado pelo

Depar-

tamento Nacional de Saúde, di-

rigido pelo

dr. J.

de Barros Bar-

reto, são dignas de nota. E a

recente creação do Serviço de Ali-

mentação da Previdência Social,

no Ministério do Trabalho, veio

constituir o grande

exemplo de

assistência alimentar aos nossos

trabalhadores. Torna-se neces-

sário dotar êsse novo organismo —

cujas iniciativas até agora teem si-

do tão acertadamente planejadas

e executadas —

de meios capazes

de transformar em ação nacional

o que já

está realizado no Distri-

to Federal, dando-lhe também re-

6QCULTURA POLÍTICA

cursos para

não só assistir como grave problema da alimentação

educar à grande

massa trabalha- no Brasil.

dora do país.

OS. A. P. S. re- Começamos agora, também nós,

presenta o inicio de um

grande uma verdadeira

política nacional

passo no sentido de solucionar de alimentação.

O processo

de deculturaçào

nas áreas da caatinga

(Introdução ao estudo das realizações do Governo

no Nordeste Brasileiro)

II

DJ AC IR MENEZES

Diretor cia Faculdade de Ciências Econômicas do Ceará.

— l)o Instituto do Ceará. — Catedrático da Faculdade de

Direito do Ceará.

Tendo estudado, no numero inaugural desta Revista o processo

de "acul-

turação" nas áreas da caatinga, estuda hoje o autor o processo

inverso, ou

de "deculturação".

A situação dos indígenas que povoam o Nordeste su-

gere problemas da mais alta relevância. São os

grandes aspectos políticos

e

sociais desses problemas que

o autor procura focalizar

no artigo que

se segue.

REPETIDAS

vezes já

se chamou

a atenção dos estudiosos para

a importância e o interêsse

que as

pesquizas etnológicas apre-

sentam no Brasil, com intrincados

problemas decorrentes de tão

complexo melting pot.

Em cada

região do país

o processo

etnogê-

nico oferece aspectos que

se con-

trastam variadamente. Pondo de

parte a

questão politicamente

ex-

piorada da

"superioridade das

raças", que

Stewart Chamberlain

atiçou e outros continuaram, mui-

tas vêzes a serviço de ideologias

imperialistas, — não se

pretende

hoje erigir os motivos étnicos em

causas matrizes da evolução so-

ciai e política

dos povos.

O apru-

mo científico de um Le Bon,

acusando a mestiçagem de ser a

responsável pela

desordem eco-

nômica e financeira da América

latina, é de uma futilidade infi-

nita. Mesmo os que

sustentam,

precavidos e reticentes, a tese da

incapacidade ou debilidade físi-

ca ou mental dos tipos mestiços,

encontram, nos fatos nacionais, as

mais rijas negativas.

Êsse problema para

nós está a

exigir as mais sérias investigações

experimentais: prossegue o

pro-

cesso de caldeamento dos elemen-

62 CULTURA POLÍTICA

tos resultantes das cruzas anterio-

res. Pode-se delimitar, nas lindes

periféricas do sertão, a franja en-

tre culturas autóctones remanes-

centes e a civilização rural: e as-

sinalam-se ali os fenômenos de de-

composição cultural. Essa franja

refoge sempre para

os recessos

bravios, na mobilidade das fron-

teiras econômicas, que

se dilatam.

As relações, que

se travam entre

êsses longínquos aborígenes e as

populações mais

próximas, são di-

gnas de mais acurado exame. O

belo trabalho de Herbert Baldus

representa valiosa contribuição

nesse particular (1).

No que

tange ao nordeste, ês-

ses fenômenos de contactos cul-

turais já

se não verificam. Mas

a análise étnica e antropológica

de suas populações

revela a gran-

de percentagem

de sangue indí-

gena, altanando a média dos ti-

pos caboclos

(2). Êste mamelu-

co indioide não se confunde com

pardo, o mulato negroide. Nas

zonas da caatinga, a diluição dos

sangues puros

se iniciou há mui-

to, com as primeiras

tentativas de

fixação. O aborígene foi assimi-

lado com relativa facilidade pelo

sistema de trabalho libérrimo do

pastoreio, gerando os

primeiros

contingentes da plebe

das zonas da

caatinga, em larga miscigenação.

Acresce notar a extrema mobi-

idade das populações

nordesti-

nas. Os centros mais concentra-

dos, como Joazeiro, por

exemplo,

denotam a convergência de indi-

víduos afluindo de pontos

os mais

distantes. As dificuldades de vi-

da do meio explicam em parte

essa transhumância, a que

as ca-

lamidades periódicas

dão as cores

trágicas e violentas, tão exaltadas

pelos dissertadores literários.

E' possível

discriminar, no po-

limorfismo dos tipos constitucio-

nais dos nossos aborígenes, o tipo

constitucional dominante, com os

dados que

ainda nos restam? Em

seguida: é possível

acompanhar,

no mestiço do nordeste atual, to-

mando o tipo mais acentuada-

mente dominante nas suas popu-

lações, os caracteres que

herdou

das raças formadoras? Depois: qual

sua fórmula dinâmico-humoral?

qual sua morfologia?

qual sua

psi-

cologia? Nos bandos de fanáticos

e os bandos de cangaço, que

teem

fisionomia diversa, comportamen-

to social diverso, —

quais os tipos

prevalecentes? Será

possível efe-

tuar-se algum discrime?

O despedaçamento das

culturas indígenas

De passagem,

referimos que

as

plagas nordestinas, contrariamen-

te ao que pensaram

alguns, eram

densamente povoadas.

Os trechos

mais agrestes e sáfaros eram per-

lustrados por

tribus variadas. De

maneira geral, podemos

dizer que

os tapuias (na

sua quasi

maioria

do grupo

cariri), habitavam o in-

terior e praias

do norte; e da ri-

beira do Jaguaribe para

o sul, vi-

viam os aborígenes da grande

fa-

mília tupi. Resenhemo-los, rapi-

damente.

No alto sertão caririense, ha-

bitavam os carcuassús e os calaba-

ças, pelas margens do rio Salgado;

(1) HERBERT BALDUS, Ensaio de Antropologia Brasileira.

(2) O autor refere-se ao Nordeste semi-árido, onde Capistrano viu aparecer

uma "civilização

do couro".

O PROCESSO DE DECULTURAÇAO NAS ÁREAS DA CAATINGA 63

os cariús, pelos

rios Cariús e Bas-

tiões; os Genipapos (que, em

1724, juntos

aos cariús, sob a di-

reção dos Feitosas, assolaram as

propriedades dos Montes); —

nas

faldas do Araripe, os Carirís, Ca-

rirés ou Kiriris; os Icós, da na-

ção Carirí, rechassados da Paraí-

ba, onde depredavam os centros

colonizados e que

foram outrora

doutrinados por

Malagrida, quei-

mado pela

Inquisição portuguesa;

os Jucás,

errando pelas paragens

de Inhamuns, aldeados em 1727

nas margens do Jaguaribe,

de on-

de surgiu mais tarde a cidade de

Arneirós; os Quixelós

e Candan-

dús, de cujo aldeamento se ori-

ginou, posteriormente, a

povoa-

ção de Telha; os Paiacús ou

Baiacús, povoando

as zonas entre

Assú, baixo Jaguaribe

e serra do

Apodí; os Jaguaribáras, que

eram

Paiacús, situados entre o rio Ja-

guaribe, a serra de Baturité e o

rio Mundaú, tendo apoiado os

portugueses no combate contra a

sublevação dos seus parentes

Paiacús; Quixadás

ou Quixarás,

nas margens do Sitiá; os Guanas-

sés, ou Anassés, os Guanasseguas-

sú e Guanassémirim, inimigos

acérrimos, observados por

Ma ti as

Beck, bem como os Jaguaraúnas

e

Jagoarisguaris, espalhados

pelas

margens do Curú e Acaraú; os

Teremembés, que

se alongavam

além do Mundaú até o Parnaiba;

os Tacarijús, que

mataram o pa-

dre Francisco Pinto, que

foi vin-

gado depois

pelos Tabajaras; os

Potiguares do Ceará, que

auxilia-

ram as lutas contra os tapuias Ca-

rirís, na penetração

feita pelo

sul;

Xirirís e Xocós, pervagando

entre

Ceará e Paraíba; os Minaús, pela

serra do Piancó, contando, em

1643, apenas algumas centenas,

bravios e belicosos; e ainda Qui-

xariús, Xorós, Javós,

Uriús, Ca-

nindés, etc. (3).

O simples enunciado comprova

a asserção sôbre a densidade do

povoamento. Viviam em

peque-

nos grupos, que

facilmente se

subdividiam a se inimistavam,

como no caso dos Paiacús. A vida

econômica inferior não tornava

possível grupos sociais mais es-

truturados — traços típicos

que a

área cultural revela nos seus as-

pectos mais

gerais. Em estádio

convizinhando ao sedentarismo

agrícola, situam-se, entretanto, em

plano inferior ao da maioria das

tribus tupis. Daí talvez sua in-

disciplina e inaclimabilidade aos

centros da lavoura canavieira do

nordeste pernambucano.

Daí tam-

bém sua facilidade de adaptação

ao trabalho irregular das caatin-

gas, no impulso

que emprestou à

cultura pastoril.

Diferenciação

profunda, advinda de imperativos

da ambiência física.

Mas são eles o potencial

de

energias que

alimentam as agita-

ções de nossa época colonial. Sua

pacificação é lenta, a ferro e fo-

go. Repetimos. Resistem, en-

quanto possível, a dissolução ad-

vinda ao contacto do branco ci-

vilisador.

A civilização avançava. Ela ex-

primia a

quebra violenta de todos

os paradigmas

essenciais de sua

<*\ C ARI OS STUDART, Notas históricas sôbre os indígenas cearenses. Re-

vista trimestral do Instituto do Ceará, 1931. TRISTÂO DE ALENCAR ARARIPE,

11a enumeração que faz na sua História da Província do Ceará, edição de^1850, pags.

15 e 16, opina que

os Guanacés e Jaguaraunas, citados por

Ayres do Cazal, eram

tribus Anassés. -'

64CULTURA POLÍTICA

cultura. Êles foram heróicos na

oposição desesperada. Quem ler

o documentário dos capitães-mo-

res, dos ouvidores, as queixas

dos

sesmeiros apropriados das terras

dêles, (4)

sente o esforço tremen

do para

viver nas lutas que

en-

frentaram. Êsse caráter de pugna-

cidade e energia desmente o que

dêles disse levianamente Joaquim

Catunda nos seus Estudos de His~

tória do Ceará (5).

Pinta-os decadentes, como res-

tos de raça que,

em tempos ime-

moriais, atingira apogeu civilisa-

do.

"Seus usos e costumes só re-

velavam animalidade; nos homens

nem nas mulheres nenhum reca-

to nas relações sexuais; pariam

as

cunhans como alimárias dos cam-

pos, onde

quer que sentissem as

dores e apenas acabavam de sen-

tir as dores metiam-se nágua com

o filho...", etc. O ilustre sena-

dor não atentou que

o parto

é um

acontecimento animal, que

a au-

sência de civilização apenas o des-

pe dos

preconceitos creados, c

que êsse fato era o mesmo em

qualquer tribu sul-americana. O

que não existia em todos era o

fenômeno da couvade, que

cara-

cterisa um complexo cultural vil-

timamente bem estudado.

O historiador cearense enegre-

ce torvamente o quadro:

— e atri-

bue o despovoamento do nordes-

te a grande pederastia

reinante

entre os tupinambás, a que

filia

todo o matizado dos ameríncolas

aqui localisados. Sabemos que

não era tal. A região era habita-

díssima. Quanto

ao homo-sexua-

lismo, que

Catunda descobriu, é

uma invencionice inexplicável.

Não perquirimos

onde o escritor

foi descortiná-la, nem que

autori-

dades a escoram, desde que

não é

testemunha presencial dos fatos

narrados e examinados. Mas dis-

cutamo-la.

A bravura dos incolas

A extraordinária bravura dês-

ses incolas, escrevendo as páginas

mais sangrentas de resistência, à

colonização, que

os esfacelará e

oprimirá, exclue o quadro

de in-

dolência, amolecimento e degene-

rescência que

nos descreve. Até

a retórica, como sintoma de decre-

pitude, êle aponta. Os instintos

de agressividade e luta são proíun-

damente machos. Maranon já

mostrou luminosamente como o

trabalho e a luta, atividades que

o homem desenvolve contra o

meio, depende de fortes instintos

relacionados com o sexo. O traba-

lho está ligado ao instinto de con-

servação individual e não se opõe

ao sexo, como não se opõe o indi-

víduo à espécie. Intensa luta pe-

la vida exprime e exige forças

instintivas e sexuais. A forma mais

robusta e expressiva da masculi-

nidade é a luta.

A imensa energia desenvolvida

pelos turbulentos ameríncolas, na

resistência porfiada que

oferece-

ram, é o traço mais vigorosamen-

te macho que poderiam pôr

em

relevo. Dizíamos pela pederastia,

teriam outra psicologia

e outra

história. O contacto com a inva-

são civilisadora e sifilizadora, co-

mo diz Gilberto Freyre, far-se-ia

(4) BARÃO DE STUDART, Datas e fatos para

a História do Ceará, 3 vols.

— Documentos para a História do Ceará, 1 vol., ANTÔNIO BEZERRA — Algumas

Origens do Ceará.

(5) J. CATUNDA, Estudos da História do Ceará, 2.a ed.

O PROCESSO DE DECULTURAÇAO NAS AREAS DA CAATINGA 65

de maneira completamente diver-

sa da em que

se fez.

Ademais, sabe-se hoje como as

excitações sexuais, a que

recorre

o selvagem, como dansas, cânti-

cos, bebidas, são sintomas de sua

sexualidade mais débil. Das ra-

ças cruzadas, foi a branca a mais

erótica. A que

vinha em busca da

índia núa e da liberdade sexual.

E, como diz em sua linguagem

pitoresca o autor de Casa Grande

e Senzala, o branco tropeçava em

carne desde a beira da praia.

De-

sembarcava vibrando de luxúria.

Foi grande

a perseguição

à fe-

mea. Alguns jesuítas

não esca-

param às solicitações

genésicas. A

Venus aborígene acordou em al-

guns o

que se

julgara amor ta-

lhado.

Fisionomia da cultura abo-

ri gene

do noroeste

e nordeste

Está bem descrita a fisionomia

geral das culturas indígenas do

noroeste: caça, pesca,

cultura da

mandioca, tabaco e coca. Às vê-

zes, inhamum, girimum, pimenta.

O processo

de agricultura de coi-

varas, que passou

aos colonisado-

res. Tabaco usado como bebida

em certas cerimônias. Uso do

curare, da flexa, da lança, do ar-

co, do remo, do anzol, da arma-

dilha. Sinais por

meio de tam-

bôres.

Êsses traços, sumariados por

Whiffen, serviriam, com algumas

eliminações, para

caracterisar as

tribus tupis e tapuias do nordes-

te. A descrição que

nos deu Clau-

(6) ESTEVAM PINTO, pág. 237:

mais altos: os auetós, os parecis, os nauq

indígenas do Nordeste, vol. 1.

de Abeville das tribus do Mara-

nhão permitiria

se apôr alguns to-

que no

quadro. Cabanas oblon-

gas, cobertas de

palha ou folhas

de pindoba,

caindo até o solo, dis-

pondo de um orifício de entrada.

Em tempos de guerra,

cavavam

um fosso em volta de algumas al-

deias, garantindo-o

com cercas de

pau-a-pique. Em cada cabana,

acumulavam-se dezenas, às vêzes

uma centena de tupinambás —

de-

põe Abeville. Redes de embira,

instrumentos musicais, maracás

sagrados, machados de pedra,

ba-

laios, panacús, jarras

de cauim,

cabaças etc.

Tipo antropológico

Quanto ao tipo antropológico,

nem sempre são acordes as descri-

ções que nos deixaram cronistas e

historiadores.

Herckmann vê os tupis e gês

como

"amorenados"

(bruynach-

tlich), Gandavo acha-os

"baços",

frei Vicente do Salvador julga-os

"castanhos", Markgraf conside-

ra-os

"negros"

(nigros), Anchieta

opina para

o

"vermelho", Barleus

fala em

"azeitonado escuro". Bons

dentes, talhe proporcionado,

não

se pode

escorçar um tipo que

re-

suma a variedade das raças. A

estatura não atingiria a do borô-

ro, entre os quais

a média era de

1.80, consoante Botelho de Maga-

lhães. Nem o extremo oposto, on-

de o mauê faz lembrar os pi-

gmeus e negrilhos

(6).

O

"cabeça chata" do nordeste,

xantodermo indioide que

não fo:.

estudado ainda como devêra, re

"Os borôros, os carajas, os caiapós, são os

ias e os iamandis são os mais baixos". Os

66

#

CULTURA POLÍTICA

vela, na tendência braquitípica.

Na sua reatividade subitânea, que

o transfigura, como pintou

Eucli-

des, exsurgem os caracteres dos

contingentes étnicos aqui outrora

estacionados e diluídos na massa

das populações

rurais.

Agassiz fez comparações entre

o tipo indígena e o tipo do ne-

gro. Vale a

pena ouví-lo.

"O

que desde logo me impres-

sionou, vendo índios e negros re-

unidos, foi a diferença marcada

que há nas

proporções relativas

das diferentes partes

do corpo.

Como os macacos de braços com-

pridos, os negros são em

geral es-

guios; teem

pernas compridas e

tronco relativamente curto".

Em linguagem bio-tipológica:

um longilíneo, micro-esplânchi-

co, cuja psicologia

é freqüente-

mente esquizoide, sobre o que

vol-

veremos adiante. Continua Agas-

siz:

"Os

índios, ao contrário, teem

pernas e braços curtos e o corpo

longo; sua conformação geral

é

mais atarracada. Prosseguindo na

minha comparação, direi que

o

porte dos negros lembra os hilo-

batas, esguios e irrequietos, ao

passo que o índio tem algo do

orango, inativo, lento e pesado.

Está entendido que

há exceções a

esta regra, que

se encontram ne-

gros curtos e atarracados, bem

como índios altos e esbeltos; mas

tão longe quanto pude

observar, a

diferença essencial entre as raças

indígenas e negra é a altura e a

forma quadrangular

do tronco,

aliadas a curteza dos membros, na

primeira, e o arcabouço estreito,

o tronco curto, as pernas

alta-

mente talhadas e os braços com-

pridos, na segunda".

Estão aí esboçados, ligeiramen-

te, os tipos longilíneos e brevilí-

neos, dos quais

tiraríamos as duas

modalidades: os tipos astênicos e

estênicos, respectivamente. Pode-

se aceitar como verdade, pelo

me-

nos no que

disser respeito à an-

tropologia nordestina. Acrescen-

tamos outros traços, extraídos de

João Francisco Lisboa, ao tratar

dos tapuias:

"Posto

que exista uma analogia

notável entre todas as tribus do

litoral e do sertão, é certo que

os

tapúias, mais que qualquer

outra

nação americana, guardaram

o

cunho selvagem do tipo mongóli-

co (7).

Tinham as maçãs do ros-

to saliente e o ângulo do olho re-

montava para

as frontes. Eram

baixos e reforçados, e a cor da

pele, bem

que em

geral acobrea-

da, mitigava-se em certas tribus,

o ponto

de se aproximar ao bran-

co. Os cabelos lisos e negros des-

ciam pelas

espáduas, e a acreditar-

mos a Rouloux Baro, em certos

povos eram tão compridos e

pro-

fusos, que

aqui valiam a uma ves-

tidura".

A semelhança entre

os sexos

Impressionou ainda Agassiz a

maior semelhança entre os sexos:

a mulher índia, vista de costas,

exibia um aspecto inteiramente

masculino. Vem a mente aquela

passagem de Gandavo sobre cer-

tas mulheres aborígenes que

"de-

(7) A antropologia moderna conta muitos sábios (jue asseveram, como

ponto

fora de debate, a ascendência asiática do ameríndio. BOAS fixa no período

intei-

glacial sua vinda

para a América. Cf. ROY NASCH, A Conquista do Brasil.

O PROCESSO DE DECULTÜRAÇAO NAS AREAS DA CAATINGA 67

terminam ser castas, as quais

não

conhecem homem algum de ne-

nhuma qualidade, ainda

que as

matem". Abandonam as ativida-

des comum às suas companheiras

e

"imitam os homens e seguem

seus ofícios, como sinão fossem

suas femeas" (8).

Cortam os ca-

belos, vão à guerra,

caçam, pes-

cam, mantendo outra companhei-

ra, com quem

"se

comunicam e

conversam como marido e mu-

Iher".

O grande

observador notára

ainda que

não havia nelas a de-

licadeza feminina peculiar

aos ti-

pos da raça civilizadas. Essa si-

militude entre os sexos, verificá-

vel entre povos

salvagens, sugerem

algumas considerações interessan-

tes. Maranon menciona a poliga-

mia como sexualidade indiferen-

ciada —

e é sempre encontradiça

nessas fases de evolução social. A

diferenciação cresce dos animais

inferiores aos superiores. Social-

mente, há a mesma diferenciação.

Basta lembrar a história evolucio-

nal da família. Só as sociedades

que já ingressaram na barbaria

ou já

vão atingindo as fases civi-

lisadas marcham para

a comple-

ta diferenciação monogâmica.

"Sexo

e trabalho —

diz aquele

endocrinologista — desde os al-

bôres de nossa vida no planeta

aparecem unidos por

indisolúvel

laço biológico".

O trabalho, nas sociedades infe-

riores, surge como o diferencia-

dor máximo entre os indivíduos.

E é ainda o sexo que

determina a

primeira divisão histórica do tra-

balho. Entretanto, essa diíeren-

ciação não é absoluta, participan-

do muitas vezes os dois sexos de

atividade comum Essa indiferen-

ciação relativa induziu Catunda

em êrro: mas errou porque

visio-

nou justamente

o que passava

despercebido a outros, sem ele-

mentos para

estudar o problema.

Aliás, o que

mostramos aqui é a

tendência masculinisante das mu-

lheres, imposta pelas

condições da

vida selvagem.

Já com a negra o fato é dife-

rente, como notára Agassiz. "De

sorte que

se pode

dizer que

a mu-

lher índia é notável pelas

suas

formas masculinas, enquanto o

negro o é pela

sua aparência fe-

minina". Adiante, êle atenua as

observações: "A

diferença prove-

niente da diversidade de sexos

não é tão marcada nas duas raças:

a mulher indígena assemelha-se

muito mais ao homem do que

a

negra ao negro; as negras teem

geralmente o trabalho mais deli-

cado que

os homens de sua raça".

O exame do sábio vai às par-

ticularidades. Os seios da negra

são mais próximos que

os da ín-

dia. Nesta, os mamilos voltam-

se para

fóra, erectos e cônicos.

Olhada de perfil,

o seio parece

projetar-se sobre o braço. Na

ne«ra, o seio cilíndrico é mais,

mole, derrama-se sobre o peito.

Deculturação e

introversão

Fez-se muita literatura sôbre a

tristeza brasileira. Paulo Prado

chegou mesmo a ver nela uma de-

terminante mais do que

uma re-

sultante. Quiz

explicar muita coi-

sa a custa dessa tristeza irreme-

diável. Graça Aranha, ainda fa-

zendo literatura, disse alguma coi-

(8) GANDAVO, Piovincia de Santa Cruz, n. 48, cap. X.

68 CULTURA POLÍTICA

sa sobre a nostalgia das raças que

aqui se mesclaram. Outros foram

flauteando no mesmo estribilho.

As raças formadoras seriam tris-

tes? E que

é um ser triste? Ten-

temos encarar êsses fatos à luz da

psicologia e da biologia.

O prazer

de viver se manifesta

nos povos que

encontraram for-

mas político-sociais

compatíveis

com seu estádio de desenvolvi-

mento e expansão de forças pró-

prias. Está um

pouco vago, mas

prossigamos. As desadaptações,

que desajustam o indivíduo ou

grupos de indivíduos, de condi-

ções normais de atividade, operam

naturalmente a dissimetria, a in-

satisfação, o constrangimento.

Com maior intensidade, a revolta.

Si não caminha para

a revolta,

como meio de afastar os tropê-

ços, e não descobre meios racio-

nais, inteligentes, que

alcancem o

equilíbrio, há de fatalmente con-

formar-se. Resigna-se. Eis en-

tão outras formas sociais de com-

portamento: resignação,

pessi-

mismo, indolência etc. Isso não

é esquematizável e se reveste de

formas variadíssimas.

O índio era feliz, portanto

ale-

gre, na sua atividade normal, em

consonância com seu padrão

cul-

tural e com sua biologia de povo

em certa fase evolutiva. Não era

raça concentrada, melancólica,

que alguns viram

já dizimada e

escorraçada das terras melhores:

deculturada. Toda deculturação

é uma degeneração social pelas

dissimetrias desadaptantes, intro-

duzidas por

outros povos

mais

capazes de explorá-las. Leiam-se

as páginas

descritivas dos folguê-

dos, danças, cânticos, deixadas pe-

los missionários. Êstes, si bem que

fossem os mais mansos e terríveis

perturbadores do ritmo cultural,

notaram a espontaneidade vital

dos íncolas. Para não ir muito

longe, basta e aleitura de Cardim,

que, entretanto, di-los

"melancó-

licos, mas com muitos jogos,

di-

versões, raramente se desavindo".

"Logo

de pequenino

os pais

en-

sinam a bailar, a cantar e os seus

bailos não são diferentes de mu-

dança, mas é um contínuo bater

de pés,

estando quêdos,

ou an-

dando ao redor e meneando o cor-

po e cabeça, e tudo fazem

por tal

compasso e com tanta serenidade,

ao som de um cascavel feito ao

modo do que

usam os meninos de

Espanha, com muitas pedrinhas

dentro ou umas certas sementes

de que

também fazem muito boas

contas e assim bailam cantando

juntamente, porque não fazem

uma coisa sem outra, e teem tal

compassados uns atrás dos outros,

acabam todos juntamente

uma

pancada, como si estivessem todos

em um lugar".

Prossegue o cronista narrando

a estima recíproca que

reina en-

tre êles, o tratamento que

dão as

mulheres, etc. Uma série de in-

dicações que

denotam certa ex-

troversão. Nas cartas dos jesuítas

encontramos, vêzes sem conta, re-

ferências aos folguêdos indígenas.

Uma curiosa carta de autoria dos

meninos do colégio da Baía ao

padre Domenech, em 1552, diz

que

"êles

são amigos de coisas mú-

sicas",

"tudo

se consegue dêles

com cantorias" (9).

A tristeza e a introversão fo-

ram ,até certo ponto,

uma conse-*

quência dos contactos

perturba-

(9) SERAFIM LEITE, Novas Cartas Jesuiticas, pág.

148.

O PROCESSO DE DECULTURAÇAO NAS ÁREAS DA CAATINGA 60

dores entre as culturas indígenas

e a penetração

colonisadora. Nem

cabe atribuir somente ao colono

essas dissimetrias de culturalisan-

tes. Si o colono combatia-os, ma-

tando-os ou submetendo-os dura-

mente, o jesuíta

não era menos

desorganizador da cultura aborí-

gene. O imperialismo religioso

foi apenas uma guarda

avançada

do imperialismo da Europa bur-

gueza, na maturidade de sua ex-

pansão comercial. Na vanguar-

da do avanço, o padre

adoçava o

contacto. Funcionava como óleo

para suavisar o atrito. Produzia

uma deculturação homeopatica.

Mas o sentido de seu papel

está

em conexão com o desenvolvimen-

to civilizador do ocidente, que

vinha crescendo economicamente.

As chamadas Reduções, que

Aires de Casal, em 1630, contava

em número de 20, com mais de

70.000 habitantes, dos Guaranis,

no sul, dão uma idéia aproxima-

da do sistema que

os missionários

sonhavam implantar em todo o

continente. O Paraguai foi um

exemplo fascinante. Os aldeamen-

tos incompatíveis com a vida li-

vre, a fiscalização fradesca dos

corpos e das almas, o aniquila-

mento da espontaneidade da vida

(libérrima dentro daquêle para-

dígma cultural), a destruição da-

quêles moldes sociais... Introdu-

zia-se uma repentina sedentarie-

dade, novos modos de pensar

e

sentir, "folk-ways"

que se impri-

miam de chofre, normas de con-

duta sexual, etc. A mesma obser-

vação faz, hodiernamente, um

competente na matéria, o sr. Hei-

bert Baldus, em Toldo de Ias

Lontras, entre os Tapirapecós.

E o que

verificou foi a incapaci-

dade para

adaptarem-se dentro

do nosso processo

econômico.

"Nossa

civilização tem profun-

da influência nas relações entre as

gerações: faz surgir contrastes que

decompõem cada vez mais a co-

munidade". E adiante comenta:

"Pela

finalização do estado de

guerra, e

pela introdução de ins-

trumentos de ferro, a dureza da

luta pela

vida é diminuída de

modo que

lhe transforma, não ra-

ro, em ociosidade, a índole com-

bativa e produtiva".

Faz-lhe perder

o

"sentido

da

vida". Não compreende a ativi-

dade desenvolvida sob outros pa-

drões culturais, sem consonância

com sua mentalidade.

O micróbio da desa-

gregação

O elemento europeu, que

se

imiscue como condutor das uni-

dades culturais aborígenes, é o

micróbio que

vai desagregar a

comunidade, onde há certa soli-

dariedade orgânica, pela

destrui-

ção de seus valores vitais. Mesmo

em se tratando do jesuíta,

ou,

principalmente, em se tratando

dêle. Suaviter in modo, fortiter

in re. Aparentemente macio, as

conseqüências foram as mais pro-

fundas para

desarticular a cultu-

ra ameríndia. Desapareceram ra-

pidamente. Não fizeram a luta

estúpida e deshumana, —

mas a

destruição invisível das tramas

sociológicas e psicológicas,

heredi-

tárias e estabilisadoras, que

dão

unidade e homogeneidade ao gru-

po, que aparece como um com-

plex network, na expressão de

70 CULTURA. POLÍTICA

Hollingshead (10).

Daí a perda

do sentimento e alegria da vida.

Porque não admitir sua trans-

formação psicológica?

Os pro-

cessos orgânicos hereditários de-

terminam os caracteres indivi-

duais dentro de uma ambiência

social, que

resulta de interação

entre sêres humanos, ligados na

vida associativa. A ponto

de es-

crever Edward B. Reuter que,

na

acepção sociológica,

"uma

raça é

um sub-tipo físico de formação

cultural". Com isso quer

acen-

tuar a fôrça modeladora da am-

biência, e não esquecer, concomi-

tantemente, o valor dos fatores

heredológicos.

Ora, os destroços das culturas

esfaceladas não podiam

apresen-

tar tipos humanos orientados e

equilibrados: seus objetivos fo-

ram abalados, pervertidos,

subs-

tituídos, anulados. E a nova cul-

tura, que

se desenvolvia em tôr-

no, tinha condições diferentes de

vida. Tornaram-se estranhos. De-

sapareceram, desfeitos, os liames

ecológicos. Desajustaram-se cada

vez mais. E introverteram-se. A

muitos parecerá

audaciosa a con-

jectura. Mas freqüentemente o

explorado torna-se psicologica-

mente, um introvertido.

Dentro dos moldes da cateque-

se não se poderia

conservar aquê-

le

"sentido "espontâneo

da vida

aborígene, sòmente compatível

nos seus quadros

valorativos. Mo-

dificado o ambiente no sentido da

nova técnica econômica e das re-

lações sociais baseadas nela, per-

turbava-se inteiramente o equilí-

brio da comunidade íncola. Ês-

te não sabia mais porque

traba-

lhava, para que

trabalhava. Dis-

sipava-se o sentido vital da reali-

dade social em que

até então es-

tivera mergulhado. Da noite pa-

ra o dia, escamoteavam-lhe o re-

sultado de uma longa heredita-

riedade cultural, estabelecendo as

novas molduras instantâneas de

outra cultura, que

se impunha de

improviso.

òáo, pois,

motivos de ordem so-

ciológica, que

nos levam a admi-

tir a tese dociclotimismo do índio,

defendida com outros argumentos

por Pompeu Sobrinho. E são

esses caracteres psíquicos que pre-

valeceram no noáso caboclo. Idên-

tica a opinião de Álvaro Dória:

as perturbações

somato-psicoló-

gicas, endócrinas e

psicológicas,

resultantes de deficits orgânicos,

transmitem-se: e no tipo òrevilí-

neo estênico do caboclo ainda se

vislumbra a ciclotimia das raças

aborígenes.

Política e instinto

sexual

Outro traço das culturas indi-

genas, que comporta interessantes»

interpretações, está na couvade.

Como viu Gilberto Freyre, nêsse

complexo cultural tão caracterís-

tico das tribus brasileiras, os psi-

canalistas principalmente

acha-

riam bom veio para

sua literatu-

ra. Ali é manifesto o critério da

bi-sexualidade, que

aludimos an-

teriormente ao referir a fase de

relativa indiferenciação sexual co-

mum aos povos

inferiores, quan-

do os tipos morfológicos menos

se distinguem entre si, aproxima-

dos pelo

sistema de trabalho pe-

culiar aos grupos

de economia

naturística, os Naturvõlker dos

etnólogos alemães.

(10) ROBERT PARK, An Outline of the Principies of Sociology, 1939.

O PROCESSO DE DECULTURAÇÀO NAS ÁREAS DA CAATINGA 71

Tal fenômeno pode

ser enca-

rado como a reação do parentes-

co patrilinear

contra as fases ma-

trilineares anteriores. "Sociologi-

camente —

diz o escritor pernam-

bucano —

a couvade representa o

reconhecimento da importância

biológica do pai

na geração".

A análise de Goldenweiser, já

precedida pela de Westermarck,

expõe como a sexologia influiu

mesmo na posição

dos indivíduos

diretores dos grupos

sociais. A

combatividade é instinto sexual

secundário e caracterisa os ma-

chos bem machos da comunidade.

Enquanto na mulher predominam

instintos de passividade

e submis-

são, que

se liga a determinadas

fórmulas hormônicas, —

no ho-

mem se pronunciam

tendências

de agressividade e luta. O ato

sexual é efêmero: a manutenção

da prole

absorve a mulher no alei-

tamento enquanto arrasta o ho-

mem ao contacto social.

A atividade política

na comu-

nhão humana é uma das formas

dessa luta, que

se observa desde

sociedades inferiores. Pois, Gol-

denweiser viu a posição

de co-

mando em que

se colocavam os

homo ou bi-sexuais na sociedade

primitiva. Em todo caso a homo-

mixia, notada nas tribus amerín-

dias, não é o fato dominante, ca-

paz de sancionar a interpretação

de Joaquim

Catunda, que

não

dispunha das modernas informa-

ções etnológicas e biotipológicas,

para elucidação do fato. E' co-

nhecimento corrente que

a vida

sexual do primitivo

devia ser fra-

ca. As danças, músicas e afrodisía-

cos não exprimiam excesso de

erotismo, mas necessidade de ex-

citação para

o coito. O civilisa-

do é, como viram os pesquisado-

res do assunto, muito mais sensual

conseguindo, com pequenas

exci-

tações psíquicas,

aquilo que

êles

alcançavam com o afrodisíaco do

suor, das bebidas, das danças.

As sociedades secretas masculi-

nas, como a baita, por

exemplo,

tinha certo fim político,

a que

se

pode legitimamente ligar a in-

fluência do homem reagindo con-

tra a mulher. A pederastia, que

por vêzes se verificava nessas so-

ciedades, era, como estuda Gil-

berto Freyre, uma consequên-

cia (11),

não um

"motivo".

Con-

viria tomar ainda em considera-

ção a situação econômica em

que

se achavam essas tribus amerín-

dias, em pleno

nomadismo. E'

na agricultura que

se valorisa

mais a mulher, nascendo dessa fa-

se o código moral que

dá como

sagrado o parir

muitos filhos.

Eram unidades necessárias ao tra-

balho agrícola: daí função eco-

nômica do crescit et multiplicami-

ni, que

o desenvolvimento indus-

trial nas concentrações urbanas

iria depois pôr

em cheque.

Ainda se nota a necessidade de

dominar o macho em muitos ou-

tros costumes. Koppers conta co-

mo, em certas tribus, os homens

querem que as mulheres mani-

festem medo ante determinadas

danças. Cita o que,

na terra do

Fogo, a tradição indígena relata:

e, período

remoto as mulheres ti-

nham ligas secretas, graças

às

quais mantinham os homens em

completa obediência. Um dia,

porém, êles descobriram e coliga-

ram-se. Na dança dos ãnãpèsè —

acrescenta Baldus —

os tregeitos

(11) G. FREYRE, Casa Grande e Senzala.

72 CULTURA POLÍTICA

e gatimanhas

dos homens, ame-

drontando as mulheres, é o pro-

testo contra o seu poder.

Práticas

parecidas observara Von den

Steinen entre os borôros.

O índio na massa rural

do Nordeste

Essa longa divagação em torno

do contingente aborígene, como

elemento formador da grande

parte das

populações do nordeste

sêco, justifica-se justamente

em

face de sua provável percentagem

em relação as demais contribuído-

ras de nosso melting pot.

. . Quando

se acompanha o povoa-

mento do Ceará, que

tomamos co-

mo

"pivot" do nosso estudo, é

mister considerar outra ordem de

fatores antropológicos. A popu-

lação rural em que

se fusionam

elementos negros, e, em fraca es-

cala, até ciganos, com a massa

íncola, vai cedo diferenciando-se

dos contingentes brancos, dos a>

lonisadores, minoria mais benefi-

ciada, que

começa a cultivar as

terras mais férteis e organiza o

aparelho de govêrno.

Ainda ho-

je corre a tradição sertaneja sô-

bre os desmandos daqueles tem-

pos, quando várias cidades se ha-

viam formado e o comércio se de-

senvolvia. O policiamento

do m-

terior, na monarquia, realisado pe-

los volantes (forças

de linha, cha-

madas), comparecia durante as

feiras concorridas das cidades do

sul: Crato, Barbalha, Icó. Geral-

mente, a desordem era grande.

Desarmar os cabras que

vinham

ao mercado, com a fralda da ca-

misa fora da calça, era luta certa.

A expressão passar

a camisa ain-

da é conhecida entre alguns ve-

lhos da zona. Significava obrigar

a meter as fraldas para

dentro da

calça —

o que

era uma humilha-

ção para êles. Muitos reagiam va-

lentemente —

e, invariavelmente,

havia mortes.

Desenvolvia-se assim uma pie-

be já

em desinteligência com os

agentes do poder.

Elaboravam-se

as elites dirigentes com material

humano onde escasseava mais o

sangue aborígene. Os esmiuçado-

res da genealogia

das principais

famílias em relêvo no Estado, já

nos tempos finais da monarquia,

vão encontrar seus grandes

tron-

cos em indivíduos procedentes

de

classes superiores, e, freqüente-

mente, do clero. Muitos sacerdo-

tes foram exemplares pais

de fa-

mília. Eram os elementos mais

eugênicos do meio, melhormente

educados, empenhando-se em edu-

car os filhos. Prepararam ho-

mens que

se sobresaíram na poli-

tica, nas letras e artes. A sua si-

tuação prestigiosa

na sociedade

em formação explica em parte

os

fatos. As mancebias clericais não

eram vistas com os rigores do có-

digo moral que

vigoraria poste-

riormente.

O tapuia na formação

étnica

Para a formação étnica das po-

pulações rurais da caatinga con-

tribuiu com maior percentagem

o

tapuia. Os tupis, sempre dispôs-

tos ao combate,

"estatura

meã,

cor muito baça, bem feitos, dis-

postos e muito alegres de rosto e

bem assombrados" —

como descre-

ve Gabriel "Soares,

— estacionaram

pelas orilhas atlânticas. Embora

inferiores socialmente aos africa-

nos, conheciam a cerâmica, a arte

culinária, praticavam

a lavoura.

O PROCESSO DE DECXJLTURAÇAO NAS ÁREAS DA CAATINGA 73

O tapuia adaptou-se facilmente

à atividade pastoril.

Tipo longi-

líneo, suas cruzas marcaram a

massa sertaneja, rústica, combati-

va e vigorosas. O xantodermo

indioide reinou como vaqueiro da

zona semi-árida, aclimado às rela-

ções de trabalho ali desenvolvi-

das. E o processo

de trabalho é

seletivo de tipos. Foi êle que

deu

predominância aos longilíneos sô-

bre os brevilíneos nas áreas da

caatinga. O grande pesquisador

Álvaro Ferraz trouxe contribui-

ção segura

para o

que dissemos

no Outro Nordeste dispondo ape-

nas de observações pessoais (12).

Houve quem

visse no compor-

tamento social resabiado e esqui-

vo do caboclo, os laivos hereditá-

rios do índio, cuja esquizoidia,

em nossa opinião, seria efeito da

ambiência de opressão e desajus-

tamento creada pelo

colono.

Pode-se, entretanto, admitir

que é ainda decorrente de condi-

ções sociais a

que se não ajustou,

assimilado pelo processo

regular

de trabalho, as características psi-

cológicas do sertanejo. Nas qua-

lidades físicas, é mais visível a

influência indígena. O grande

concurso de sangue na aenogênese

das caatingas foi, incontestável-

mente, o dos Carirís. Essa vasta

família dos tapuias (.

.. Tapuia-

rum genere

cariri dicuntur —

ano-

ta Markgraf) espalhou-se pelos

sertões do Piauí à Baía. Também

Gês e Caraibas fluiram para

o

melting pot

dessas regiões. E ain-

da há remanescentes aborígenes

que si não souberam classificar.

Pompeu Sobrinho estuda atual-

mente os Fulniôs e Carnijós, e he-

sita na sua classificação etnológi-

ca. Mantidos em estado de rela-

tivo isolamento, estão se dissemi-

nando na massa rural aos poucos.

Os Carirís eram fortes, mem-

brudos, cheios de pêlos: prolixe

capillitio, diz Barleus. Nitida-

mente braquicéfalos, astuciosos,

de assombrosa resistência física,

sempre prontos para

a luta. Elias

Herckmann admirou-se de sua ca-

pacidade alimentar: um dêles

po-

dia comer como 5

homens! E

podiam passar alguns dias em

pie-

no jejum.

Registrou ainda sua

longevidade. "Vivem

muito e não

encalvecem" — disse Barleus.

Von Martius teve um quadro

da decadência indígena em Pedra

Bonita. Os índios estavam aldea-

dos sob a direção de juiz

e de um

escrivão. Eram Cariris e Sabujás.

O municpio contava então 600

habitantes.

"Ambas

as tribus —

informa

Martius —

estão em relações amis-

tosas e não se distinguem nem

pela conformação do corpo, nem

pelos costumes e hábitos, mas

apenas pela

diferença das linguas.

São de estatura mediana, bastan-

te esbeltos, de pouca

força físi-

ca, de cor pardo

clara, cabelos li-

sos e compridos. Não se defor-

mam nem pela

tatuagem nem pe-

lo bodoque nos lábios, nariz ou

orelhas e não teem na fisionomia

coisa nenhuma que

os distinga

dos demais selvagens do Brasil".

Mas não escapou ao sábio a de-

pendência e sujeição dêles aos bra-

sileiros e portugueses.

Viu como

obedeciam a contra gosto.

"São

indolentes, visionários, preguiço-

sos, indiferentes a iniciativas ou-

tras que

não as paixões

baixas".

(12) A. FERRAZ, A Morfologia do Homem do Nordeste.

74 CULTURA POLÍTICA

E notou ainda:

"São

muito uni-

dos entre si contra os europeus".

Mas estavam obrigados a plan-

tar mandioca, milho, bananas, sob

a direção do intendente. Como

interessar-se pelo

esfôrço? Obser-

va ainda o sábio que

não tinham

na lingua tradução para

a pala-

vra

"amigo". Havia um termo

equivalente:

"camarada". Isto é,

o colega do trabalho. Em face

dessa incapacidade para

a ami-

zade, Martius exclama:

"como is-

so é significativo para

o caráter

dêsses homens!"

Elementos assim deculturados

são naturalmente infelizes. E vão

contribuir, século afora, para

as

rebeliões que

estalam. Quando

o

presidente do Ceará Souza Mar-

tins (1840)

vai debelar os rema-

nescentes dos balaios, já

nas cer-

canias de Vila Viçosa, encontra,

engrossando a onda desordeira,

"descendentes de indígenas na

maior parte

e outros de cor mista,

a que

chamam cabras, e alguns

negros fugidos de seus senhores",

vestidos de camisa e ceroulas de

algodão, tingidos de vermelho.

O próprio

sistema de guerra

era o do índio, emboscando as

tropas legais, com espias, sem aco-

meter a campo raso, já

atirando

destramente com clavinotes, es-

parsos no interior das matas. E

contam-nos alguns relatos oficiais

que, nas fugas

precipitadas, ma-

tavam os filhos que

não podiam

carregar.

?

A autonomia municipal

e o pressu-

posto da autonomia

financeira

MENELICK DE CARVALHO

Diietoi cio Departamento de Justiça da Secretaria

cio Interior do Estado de Minas Gerais. Ex- Pre-

feito de Juiz de Fora c de Uberaba

Continuando os estudos que

iniciou, no número anterior desta Revista,sobre os

problemas da organização dos municípios, o autor mostra, hoje,

Que o antigo

principio da autonomia municipal, sobre que

se apoiara

a Constituição de 1891, baseava-se no falso pressuposto de uma

"auto-

nomia financeira" do município, a

qual c

praticamente impossível, não

só em nosso pais,

como à luz do próprio

exemplo dos Estados Unidos da

América do Norte. Demais, misturavam-se, na antiga organização, esferas

de atividade que

deviam permanecer distintas, como a

"política", no sentido

eleitoral, partidário,

e a "administrativa"

propriamente dita; não havia,

por isso mesmo, uma contabilidade

pública municipal,

que era simples

luxo burocrático, entregue ao arbítrio dos personalismos.

O Estado Novo,

centralizando e regulando a administração dos municípios, começou a

sanar todos êsses males. Introduziu a contabilidade, instaurou o método

das prestações de contas, uniformizou os orçamentos, consolidou as finan-

ças municipais, deu vida nova ao município. Os primeiros

benefícios da

nova organização já

se estão verificando na prática.

Outros problemas

relevantes já

se encontram em vias de solução.

ê

Aos mais autorizados defensores da autonomia comu-

nal não repugna o jus

supremae inspectionis, que

começou

a esboçar-se no século XVI, com a noção da unidade poli-

tica do Estado, num movimento de reação lenta contra os

privilégios, estatutos e direitos especiais dos corpos locais

dotados de auto-administração.

Nem há limitação proibida

ou condenável à autonomia

do município, quando

o Estado institue aparelhos que,

evi-

tando ou corrigindo a delapidação dos dinheiros municipais

(e a hipótese entre nós, em se tratando de municipalidades,

está muito longe de ser gratuita)

obriguem as municipali-

dades de manter-se dentro do regime legal, que

é incompa-

tível com essas malversações, que se

pretende devam ficar

impunes à sombra de uma autonomia que,

sob êsse aspecto,

seria, como disse Nilo Peçanha, a irresponsabilidade — o

que importa dizer a negação do

próprio regime republicano.

(Vide BARBALHO, Coment.

p. 267).

CASTRO NUNES

76CULTURA POLÍTICA

UM

DOS GRAVES males da es-

truturação administrativa do

nosso país,

segundo o modelo

clássico de outras nações, foi ou-

trora, dar-se aos negócios locais^ a

emancipação coerente com o prin-

cípio de que

"o Município esta

pa-

ra o Estado, assim como o Estado

está para

a União", princípio

fal-

so, que poz

no mesmo nível de

igualdade quantidades positiva

mente desiguais. A desigualdade é

manifesta, quer do

ponto de vista

político e histórico, quer quanto

ao aspecto econômico e adminis-

trativo. Nem o Estado pode

exi-

gir da União um tratamento de

igual para

igual —

pela simples

razão de que

ele é uma criação

dela —

nem o Município pode

competir com as prerrogativas

do

Estado —

simplesmente porque a

êste é que

cabe a missão constitu-

cional da sua organização, embo-

ra sujeito à observância dos limi-

tes teóricos do interêsse peculiar.

Portanto, se no Brasil, desde os

primórdios da sua formação

po-

lítica, a divisão administrativa

partiu do centro

para as sub-di-

visões, isto é, da União para

os

Estados e os Municípios, ficando,

porém, no centro a soberania

una e indivisível, conforme a me-

lhor conceituação jurídica,

— é

evidente que

a autonomia muni-

cipal não podia,

na realidade, ter

a configuração igualitária, que

se

lhe emprestou até o advento da

Revolução e quasi

convaleceu ali

por volta de 1934 a 1937-

A impossibilidade de uma

autonomia financeira

dos Municípios

Porque autonomia política

pressupõe, além do mais, autono-

mia financeira, como bem acen-

tuou Castro Nunes, em memorá-

vel assembléia constituinte

de

1933> ao tratar ^a emancipação

dos governos

locais; a autonomia

financeira é ideal inatingível,

porque resulta, pelo

menos, da

coordenação de dois fatores ba-

silares: — capacidade de

gestão

máxima e campo de inversão mí-

nimo, isto é, difusão de um ele-

vado índice de cultura em todo

o país

e delimitaçao estreita dos

encargos das administrações lo-

cais. Quanto

ao primeiro

fator,

esbarrou-se de frente com o pro-

blema da instrução pública

e

contramarchou-se, diante da vei i-

ficação de que

as fôrças educado-

ras, os mestres e a metodologia,

tinham de partir

do centro; quan-

to ao< segundo fator, a verificação

foi de máximo e não de mínimo,

ou por

outra, nos municípios, as

necessidades locais tendem é para

o crescimento, porque, neles, a

grande verdade é esta*.

— tudo es-

tá para fazer:

água, saneamento,

iluminação, pavimentação,

fontes

econômicas, instrução, tudo, en-

fim, que

diz da existência huma-

na, são problemas

eternamente

angustiosos e eternamente em so-

lução dispendiosa. Não há fon-

tes de economia local capazes de,

por si sós, atenderem aos encar-

gos da cidade; elas não

prescin-

dem de uma constante e crescen-

te ação da presença

de agitado-

res externos. Como na vida hu-

mana, o município não pode

exis-

tir fora da sociedade política, que

é o Estado, a Nação.

Tentou-se, por

isso, solucionar

a questão

financeira, conferindo

aos municípios ampla liberdade

na realização dos meios de se bas-

A AUTONOMIA MUNICIPAL E

tarem a si mesmos, dando-se-lhes

até o poder

de amoedar dinheiro,

que não foi outro o de emitir tí-

tulos da dívida pública e con-

trair empréstimos externos. E

foi o que

se viu: — compromissos

elevados a cifras astronômicas,

obras pública por

acabar ou ain-

da por

fazer, epidemias de insol-

vência, descrédito, depauperamen-

to, desânimo e, nesses transes

amargos,. . . apelos aflitivos à mãe

generosa, a União; nada de me-

lindres autonomistas!...

A lição dos Estados Unidos

Então, nos Estados Unidos, de

cujas lições sempre nos servimos,

o panorama

municipal se pintou

com estas cores, da pena

de W.

B. Munro:

"...

the cities were virtually

permitted to borrow at will,

without any legal or admi-

nistrative restrictions. The

result was that many of them

raw heavily into debt, parti-

cularly those wich adopted

the policy

of granting

bonu-

ses to turnpikes, canais and

railroads. I?i some cases these

debts exceeded the total va-

lue of ali the assessed proper-

ty within the municipali-

ty..(1).

E começou, sem parar

mais, o

programa das restrições,

que logo

após passou

do campo da autono-

mia financeira e veio para

o da

autonomia poltica

mesma, com a

instituição dos city manager

plans, que vêm dando os melho-

res resultados administrativos e

^(1)

Municipal Government and

(2) Ob. cit.,

p. 482.

PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA 77

estão adotados na maioria dos

municípios americanos.

As municipalidades brasileiras

passaram pelos mesmos apuros da

malograda tentativa de autonomia

financeira, que

é muito mais am-

pia e mais

profunda do

que a

mera abundância de recursos mo-

netários.

Não basta arrecadar; é pre*

ciso saber gastar

Ainda a esse título, vem à bai-

la a velha advertência doméstica

de que

o problema

não é só arre-

cadar, mas, principalmente

saber

gastar; e, nêste

ponto, a munici-

palidade tem muito de aprender

nos exemplos dos negócios parti-

culares, como lembra o mesmo

professor Munro:

"This

is a field in which the

American municipality has

still a good

deal to learn

from the methods of private

business..." (2).

Vem daí a decadência das fór-

mulas clássicas, dos modelos de

importação. Pensávamos, com

amarga tristeza, que

tudo era fru-

to da nossa falta de cultura, do

nosso atrazo sertanejo, e —

mais

grave ainda

— chegamos a des-

confiar de um certo amolecimen-

to de virtudes morais diante da

tentação dos dinheiros do povo.

Pois, avultadas emissões, grandes

empréstimos e fartas arrecadações

amealhadas para

determinados

fins, desapareciam sem nenhum

reflexo nas finalidades previstas.

O abastecimento dágua, por

exem-

pio, era bandeira de vários movi-

mentos de operações de crédito,

Administration — Vol. II — P. 483.

73CULTURA POLÍTICA

e, „o emamo, „ torneira, conri- cipc,

nuavam secas...

As campanhas partidárias

ti-

nham, então, campo vasto e fér-

til para

destruir ídolos e

criar novos sóis em cjuc pesassem

os sulcos que

as vergastadas in-

sólitas deixavam na reputação do

poder público.

Mas, olhando por

sôbre os mu-

ros, vimos que

o mal era uni ver-

sal; por

toda parte,

ouvimos o

ecoar do mesmo estribilho —

"cá

e lá, mas fadas ha...

Castro Nunes, em seu notável

compêndio da ciência da admi-

nistração, conta-nos coisas do ar-

co da velha que

se passavam

na

história das comunas européias e

americanas. (3).

Necessidade de separar

"política" e

"ad-

ministração"

E' que

havia uma exagerada

concepção da autonomia munici-

pai, uma confusão insolúvel de

prerrogativas políticas de munici-

pes com as atribuições adminis-

trativas da municipalidade, ou se-

ja o impossível conciliar de duas

forças contrárias.

Cumpria que se distinguissem,

formal e substancialmente, as

duas componentes do organismo

municipal, definindo o que

fos-

sem liberalidades de feição priva-

da, individual, própria do muni-

g o que

fosse administra-

ção, de índole coletiva, impessoal,

duradoura e geral.

Em outros

termos, cumpria que se separas-

sem, já que

nao foi possível

har-

monizar, a política

e a adminis-

tração, isto é, o direito do muni-

o poder

de determinação, atuan-

te sôbre ambos, como função da

una e indivisível soberania na-

cional.

A situação de fato, a realidade

palpável e

palpitante,

não podia

ser mais contraditória Ci decepcio-

nante. Atos e fatos de caracterís-

ticas meridianamente administra-

tivas eram englobados, confundi-

dos e moídos, como se fossem de-

liberações imperiais, fora da apre-

ciação comum, jus imperii e não

jus gestionis, e

passaram para os

arquivos da coisa julgada

inape-

lável e posta

sob perpétuo

sigi-

lo. E' o caso da administração

financeira, da

prestação de con-

tas, processo puramente

adminis-

trativo, que, longe disto, era o

barômetro do prestígio pessoal,

do

índice da influencia política,

contas más e até inexistentes eram

dadas por

excelentes e aprovadas;

e contas excelentes, claras e

pre-

cisas, eram tidas por

mas, confu-

sas e erradas, e desaprovadas ou

não aprovadas. E não havia fôr-

ças humanas capazes de instituir

o princípio

da verdade, porque

o

caso escorregava subrepticiamente

do terreno da verificação júris

tantum, para o da

presunção ju-

ris et de* jure.

. . Questão

de con-

fiança política,

e...

"assuntos

que

non ío, pero

el tiempo reglará... ;

pedra em cima, tumularmente

guardado o

processo das contas...

A contabilidade era

' luxo

burocrático" nos

Municípios

(3)

A contabilidade era o luxo

burocrático", que nem tod^s as

O Estado Federado e sua Organização Municipal.

A AUTONOMIA MUNICIPAL

E PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA 79

municipalidades podiam desfru-

tar, e, naquelas em que

êsse atri-

buto de civilização penetrava, so-

fria ele rudes golpes e era campo

das mais curiosas variações acro-

báticas da ginastica das cifras.

Aurino de Morais, o infatigá-

vel investigador do Conselho Téc-

nico de Economia e Finanças, em

brilhante exposição apresentada

aos peritos

em contabilidade

pú-

blica e assuntos fazendários, que

se reuniram para

última demão

na padronização

dos orçamentos,

faz o seguinte comentário:

"A "química

orçamentá-

ria" ou "de

contabilidade",

expressões usadas na lingua-

gem dos contadores, tornou-

se uma "irregularidade

regu-

lar". Comprar um microscó-

pio com a verba de concêrto

de elevador, um automóvel,

com a de construção de pon-

tes, algumas máquinas de

escrever com a de alimenta-

ção de

presos, um tapete com

a de auxílios a hospitais, pa-

gar o

jardineiro ou o empre-

gado particular com a verba

de lubrificantes, comprar

tinta e papel

com os decursos

destinados à conservação de

estradas ou limpeza de ruas,

etc., etc., são, infelizmente,

verdades das quais

todos nós

conhecemos grande

número.

A repetição e a tolerância

destas irregularidades, tor-

nando-as uma praxe,

em uso

generalizado, constitue um

dos problemas

mais sérios en-

tre Ob que

reclamam solução

urgente".

K' uma revelação que,

à primei-

(4) MUNRO - Ob. cit.

p. 477.

ra vista entristece, e, em reação,

dá estímulos para que

não desfa-

leçamos nos propósitos de corri-

gir os nossos males.

Mas, em verdade, êles são peca-

dos veniais, em face do que

se

passava, por exemplo, em Boston,

onde o legislador foi levado a

elaborar uma lei, em virtude da

qual ficava sujeito à

pena de

pri-

são até um ano, ou de multa até

1.000 dólares, o oficial que,

na

execução do orçamento, excedes-

se as dotações legais. Entretan-

to — acrescenta um cronista da

época — tal risco

penal não foi

suficiente para prevenir

os "de-

ficits"... (4).

Faltava o meio de tornar efe-

tivo o preceito

disciplinar. Por

melhores que

sejam as leis, não

passarão de mero

flatus voeis se

não houver como e quem

deva

executá-las.

Foi quando

a contabilidade co-

meçou a ter o seu primado

na vi-

da da administração municipal.

Já nos negócios

privados ela rea-

lizava a magia da faca de dois

gumes, provando a favor, e

pro-

vando em contrário também, do

próprio detentor e escriturário

dos livros comerciais.

A "prestação

de contas"

na Administração

Abriu-se, dessarte, combate os-

tensivo e vitorioso contra os abu-

sos, que,

dia a dia, vieram perden-

do terreno e se abrigando a refú-

gios descobertos, sujeitos ao mar-

telar incessante das baterias da

ordem financeira. As "outras

despesas", as

"diversas

origens",

80

CULTURA POLÍTICA

os

"eventuais", as

"despesas ím-

previstas", as

"miscellaneous ex-

penses" ou

"miscellaneous itens

— que

tanto irritavam a intolerân-

cia dos tratadistas, — foram os

últimos oásis da velha guarda

dos

inimigos da contabilidade.

Triunfante a contabilidade,

muito empirismo malsão perdeu

a sua influência e muita verda-

de flutuou, afinal, no confusio-

nismo especioso.

E a prestação

de contas deixou

de ser o vexame que produzia

arrepios na sensibilidade dos

pu-

ritanos, para ser um

processo nor-

mal, não apenas de constatação

da honestidade pessoal, mas das

fundações em que

se assenta a

solidez dos planos

de administrar

o presente

no sentido do futuro.

— "The

purpose

of accounting is

not only ensure honesty on the

part of the financial

officers, but

to facilitate the intelligent

con-

duct of the city's business", na fe-

liz imagem do municipalista ilus-

tre que

estamos citando.

O Estado moderno, onde quer

que se fundem as suas origens,

destaca-se pela racionalização

dos

serviços públicos, ou seja

pela pia-

nificação com o objetivo certo de

idealizar, começar e acabar todas

as modalidades do interesse cole-

i^ivoj e isto seria impossível sem

o conhecimento do custo exato

das utilidades e do fator huma-

no. Neste caso, o Estado moder-

no, na sua luta incessante com o

rotinismo, abre uma trégua, bus-

cando no passado pontos

de apoio

para suas realizações:

— sem sa-

ber ao certo quanto gastou

em de-

terminado serviço, no tempo e no

espaço, não haveria base segura

para fixar o

que deve

gastar no

futuro. A prestação

de contas e,

assim, um comêço e não um fim

da atividade.

O

"modus

faciendi" da

prestação

de contas

O modus faciendi da

prestação

de contas pode ser direto ou m-

direto, quer quanto ao exame es-

pecífico das despesas ,realizadas

através dos documentos de

quita-

cão, quer quanto

à simples de-

monstração da execução orçamen-

tária.

No primeiro

caso, a conferência

far-se-á in loco, na Prefeitura, ou

mediante a apresentação

das or-

dens quitadas

ao órgãos central

da verificação. E' a tomada

de

contas segundo o velho estilo, um

pouco parecida

com as devassas

de outros tempos, contra as quais

sempre houve reação local. Pro-

cesso empírico, apartoso

e de

custo caro, além de irreverente

quanto á dignidade da autorida-

de municipal, em razão da pre-

sença dê comissões apuradoras

es-

tranhas, — é usado excepcional-

mente, isto é, quando

há indicio

veemente de fraude na escritura-

ção.

O processo

indireto é o mais

usual, por

ser mais político, pres-

cindindo do exame local e mes-

mo das cédulas quitadas das des-

pesas. Parte do

pressuposto

de

uma boa organização contábil, se-

ja do

ponto de vista da técnica

da escrituração, seja da autorida-

de moral do contador, guarda-li-

vros, funcionários, enfim, encar-

regados dos lançamentos. Efeti-

va-se através da execução do or

çamento, cuja fiscalização pode

ser exercida à distancia, por meio

A AUTONOMIA MUNICIPAL E PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA 81

de balancetes periódicos-mensais

ou trimestrais. O tribunal, co-

missão central, departamento de

contas, ou que

nome tenha o ór-

gão fiscalizador, acompanha

pari-

passu a execução orçamentária e

esta sempre habilitado, em qual-

quer instante, a

julgar com

pre-

cisão do estado das despesas, ain-

da que

não estejam liquidadas al-

gumas, porque o empenho

prévio

é também contabilizado.

Processo ideal, pela

simplicida-

de e discreção de movimentos,

pressupõe, porém, como dissemos,

uniformidade da técnica contábil

e idoneidade de agentes da exe-

cução local: —

contabilidade e

contadores fidedignos.

Difundida a contabilidade pú-

blica e dignificado o contador

municipal, a prestação

de contas

se faz como que

automaticamen-

te, sem os sustos dos extravios dos

documentos originários e sem a

incômoda presença

de fiscais fo-

rasteiros.

E' o ideal que

se procura

atin-

gir no nosso País e

que, presente-

mente, já

tem um grande

cami-

nho andado.

Para a rehabilitação do conta-

dor, registraram-se, nêstes últimos

tempos, dois acontecimentos de

larga projeção:

— as leis de disci-

pu na da

profissão dos contadores,

peritos e

guarda-livros, pelas quais

só os técnicos poderão

exercê-la;

e as garantias

de indemissibilida-

de do funcionalismo

municipal,

outrora batido pelas

tremendas

derrubadas partidárias

e contami-

nando de um comovente servilis-

mo. Ora, sendo técnico e tendo,

como tem, a indispensável cora-

gem profissional, que lhe dá a

certeza de contar com o patrocí-

nio da Constituição da Repúbli-

ca, o funcionário municipal não

se prestará

aos manejos da

"quí-

mica orçamentária" e cumprirá o

seu dever, para que

não mais "se

paguem jardineiros pela verba de

lubrificantes".

E o grave problema

da fé-ju-

rada do contador da Prefeitura

tem a solução adequada e prati-

camente realizada.

ê

O Estado Novo uniformizou

a técnica da contabili-

dade publica

O outro aspecto do pressuposto

da boa organização contábil — a

uniformidade da técnica —

tem

merecido também atenções espe-

ciais, no novo regime do país,

mormente de 1938 para

cá.

Depois da Constituição de 37,

que definiu com sobriedade e

jus-

teza a figura da autonomia muni-

cipal, afastando dela a hipótese

anacrônica da

"livre

aplicação dos

dinheiros públicos",

temos tido

legislação orgânica de profundos

efeitos saneadores na boa ordem

das finanças locais.

O decreto-lei número 1.202, de

8 de Abril de 1939, que

organi-

zou os Estados e Municípios den-

tro do Estado Nacional,

"teve

em

vista, em matéria financeira, a

economia do supérfluo e a boa

aplicação orçamentária, sem a

qual não

pode haver

gestão sadia,

com mais esta virtude: armar os

administradores de um instru-

mento de força superior para

re-

sistir à pressão

dos falsos interês-

ses locais, cuja impertinência tão

freqüentemente lhes dificulta a

realização dos sinceros propósitos

de zelar pela

coisa pública.

Mais:

82CULTURA. POLÍTICA

sujeitando todos os Estados à mes-

ma norma financeira, e, assim,

evitando uma certa competição

que em mais de um caso se tem

mostrado danosa, ela contribuirá

para sanear o ambiente financei-

ro do país

e o seu crédito interno

e externo". (5).

A seguir os decretos-leis núme-

ros 1.804 e 2.416, respectivamen-

te, de 24 de Novembro dé 1938 e

17 de Junho

de 194°* e portarias

ministeriais armaram o Conselho

Técnico de Economia e Finanças

e os/ Departamentos Administrati-

vos, bem como os Governos Esta-

duais, de poderosos

recursos nor-

mativos, que

lhes permitiram

rea-

lizar uma obra de organização

financeira de amplo alcance prá-

tico e sem exemplo na história re-

publicana.

O Conselho Técnico, reunindo

periodicamente os

peritos em

contabilidade pública e assuntos

fazendários, federais, estaduais e

municipais, e entrando a fundo

no propósito

sério de organizar

as finanças públicas,

tem tido

uma atuação freqüente e salutar

em todos os setores, e, silenciosa-

mente, discretamente ( porque

até

usa do mimeógrafo para

a cir-

culação de suas notáveis mono-

grafias, ao invés de fazer

gemer os

grandes prélios das editoras) cons-

trói a estrutura de um eficiente

organismo de govêrno

financeiro.

A padronização

dos orçamen-

tos, dentro de um modêlo único,

para a União, os Estados e os Mu-

nicípios, que

dantes parecia

uma

utopia, pelo

intrincado dos casos

regionais e locais e pelo

vetusto

preconceito de

que

"o

Brasil é

grande demais

para as fórmulas

unitárias" —

é hoje uma realida-

de, não mais a

"realidade vito-

riosa" dos exageros tribunícios

(porque já passou do momento

da descoberta do ovo de Colom-

bo), mas sim uma realidade con-

creta e normal na vida das admi-

nistrações municipais.

I

O que

tem sido a prática

do

"orçamento-padr&o"

Há dois anos, já

se prática

em

todo o país

o regime do orçamen-

to-padrão, a uniformização da

contabilidade pública, a ordem

sistematizada das finanças regio-

nais e locais.

E tudo se fez sem estardalhaços,

sem atritos, sem humilhações, e,

sobretudo, com a vontade decidi-

da e inquieta de tornar efetivo

um ideal e instalar em fundamen-

tos sólidos a confiança do crédi-

to governamental

e a defesa da

economia pública.

Seria interessante contar aqui

alguns episódios acerca do que

viu e observou e resolveu o C.

T. E. F., de preferência

no cam-

po das* atividades municipais, a

começar pelas

1.396 denomina-

ções dos tributos fiscais,

que êle

reduziu a 65, apenas, expressões

reais da nossa língua. Mas isso é

matéria para

volumes de crôni-

cas, —

deliciosas umas, pitorescas

outras e curiosíssimas todas, —

que Valentim Bouças e Aurino

de Morais e Oto Prazeres hão de

escrever um dia.

No magro espaço que

nos res-

ta cabe, porém,

a menção do se-

guinte episódio:

(5) FRANCISCO CAMPOS

— O Estado Nacional —

p. 118.

A AUTONOMIA MUNICIPAL E PRESSUPOSTO DA AUTONOMIA 83

— Em

pouco mais de

48 horas

do findar do mês de Janeiro pró-

ximo findo, o Departamento de

Assistência aos Municípios de Mi-

nas Gerais fornecia-nos, a pedido,

dois quadros

interessantíssimos,

contendo dados completos sobre

a vida financeira das municipali-

dades mineiras no corrente ano

de 1941! E' a ante-visão do que

elas vão arrecadar e do que

vão

empregar no presente

exercício

financeiro, com as indicações por-

menorizadas, que

satisfarão a

quaisquer requintes de curiosida-

de dos técnicos e estudiosos de as-

suntos administrativos.

Nêsses quadros,

vimos, com en-

tusiasmo, expressivos documentos

do acervo dos cometimentos ousa-

dos do novo regime.

Importância da discrimi-

nação orçamentária

Quem, em outros tempos

que não vão muito longe

pode-

ria informar de pronto quanto

gastam os municípios e,

por

exemplo, qual

o orçamento da

educação pública,

das obras de

utilidade coletiva, dos serviços in~

dustriais custeados pela

fazenda

local?

De duas ou três cidades, ser-lo-

ia possível,

mesmo assim impre-

cisamente, imperfeitamente, e ao

cabo de uma espera incomoda.

Mas de 288, em conjunto e cada

uma de per

si, com menção de

códigos, rubricas e incidências,

órgãos, serviços, elementos e ou-

tros particularismos

da contabili-

dade pública

— nãol Nunca! Por-

que ninguém sabia, nem

podia

aprender, eis que

o regime domi-

nante não permitia que

a União

ou o Estado exercesse a ação ins-

trutora e educacional, normativa

e organizadora, que

hoje se exer-

ce através das prefeituras.

Entretanto, agora, as respostas

não se fazem esperar: — em Mi-

nas, as municipalidades fixaram

em 134 -54^:542$ooo os seus orça-

mentos para

1941, destinando:

9-339:^3®$00°» para o serviço

de educação pública,

12.451:395Í000, para

os servi-

ços industriais, e

48.884:4341800, para

os servi-

ços de utilidade

pública.

E, se quisermos

saber o que

se

passa com as entidades dos de-

mais Estados, a presteza

é a mes-

ma e a mesma é a precisão.

Bas-

ta que

nos dirijamos ao Conselho

Técnico de Economia e Finanças

do Ministério da Fazenda.

Outros problemas

em

vias de solução

E' uma bela amostra de esforço

e uma quitação

histórica de de-

ver cumprido; mas é, também e

principalmente, uma demonstra-

ção de fé na capacidade da nossa

inteligência e do nosso labor, pa-

ra construir o Estado moderno,

num alto sentido de brasilidade,

e elevar a ciência das finanças pú-

blicas ao nível da civilização nova.

A obra feita é já

enorme, nu-

mérica e qualitativamente.

Muito há, porém,

ainda que

empreender, para podermos

afir-

mar que

não está longe da reali-

dade o pressuposto

da autonomia

financeira na outorga da autono-

mia municipal.

Outro problema

dos mais com-

plexos e urgentes caminha

para

a solução que

se impõe: — har-

84CULTURA POLÍTICA

monizar numa noção nacional a

legislação tributária da União,

Estados e Municípios, de manei-

ra que

a tríplice competência de

imposição não exacerbe a capa-

cidade fiscal do contribuinte e não

desanime o fomento das fontes da

economia.

Estudos aprofundados e impres-

sões colhidas nas últimas confe-

rências regionais promovidas pelo

C. T. E. F., autorizam a crença

de que,

dentro do corrente ano,

teremos a solução esperada, que,

se não for por

agora a velha e so-

nhada aspiração do imposto-úni-

co, há de ser uma fórmula em que

predomine o espírito da unidade

de justiça, que

hoje impera em

todo o território do país.

E' a missão que

vai ter, nestes

próximos meses, a Conferencia

Nacional de Legislação Tributá-

ria, que

se preparai

sob os melho-

res auspícios.

E a justiça fiscal

há de flores-

cer entre nós, como floresceram a

justiça civil, a

justiça comercial,

a justiça penal

e a justiça

da uni-

dade processo:

— igual para

todos

cm todo o Brasil.

Belo Horizonte, Fevereiro de

1941 •

A influência do poder pessoal

na

unidade

política do Brasil

II

Período monárquico

MONTE ARRAIS

Ex-depi.tado Federal pelo

Estado do Ceará

Continuando a desenvolver o tema que

iniciou no i.° número desta Re-

vista com a fase colonial, estuda hoje o autor a influência do poder pessoal

na 2.a fase da nossa evolução política

— a Imperial. A figura do Impera-

dor como um ponto

de convergência de forças sociais de dominação po-

litica — c o que

êle ensaia pôr

em fóco, numa tentativa de esclarecer esse

período tão importante da vida

política nacional.

EM

ESTUDO anterior, expuze-

mos como os agentes de nossa

catequese, em contraste com

os da norte americana, agiram

sempre, durante a fase colonial,

dominados por

um profundo

sen-

timento de fidelidade ao rei, cujo

poder pessoal e absoluto se difun-

diu pelos

vários setores das anti-

gas capitanias hereditárias, como

símbolo de unidade.

Representante dos

princípios fun-

damentais

E' necessário exprimir que,

quando afirmamos haver sido o

poder pessoal do imperante a for-

ça coordenadora da unificação do

país, não

queremos atribuir à au-

^ toridade real e

pessoal o caráter

de uma ação unilateral, em tôrno

**

da qual

se congregassem, em me-

ra atitude administrativa, as cor-

rentes dos povoadores

nacionais

de várias procedências.

O que,

com a afirmativa desejamos evi-

denciar, é que

dada a feição ab-

solutista de que

se revestia, então,

o representante da dinastia colo-

nizadora, o rei, pela

natureza de

suas funções majestáticas, repre-

sentava todos os princípios

funda-

mentais de nossa formação, desde

que dêle emanava a totalidade das

normas de ação pública

e priva-

da. A fé, consubstanciada no cul-

to e no regime católico, era por

êle impulsionada através de cate-

86CULTURA POLÍTICA

quistas eclesiásticos

ou leigos que

a difundiam em seu nome. A

lingua e os seus monumentos li-

terários, da mesma maneira, a êle

se ligavam. Camões, Vieira, antes

e depois da descoberta de Cabral,

não exaltaram os feitos a esta an-

teriores ou ulteriores senão em

função do desejo de honrar e de

glorificar a majestade

real. O

rei era o principal

de que

a pró-

pria nação e as colonias eram fôr-

ças accessórias.

Em face disto, forçoso é reco-

nhecer que todo o desdobramen-

to sucessivo da conquista e da

conseqüente assimilação dos ele-

mentos selvícolas ou africanos se

subordinou àquele

preceito máxi-

mo do rito político

dos domina-

dores. E' óbvio que,

ao afirmar a

preponderância

do português

co-

mo força nacionalizadora, não

queremos com isto negar

que os

dois outros fatores étnicos da nos-

sa mestiçagem também tenham in-

fluído, com o seu particularismos

de hábitos e de costumes especí-

ficos, na constituição coletiva do

espírito nacional. Contra esta

conclusão irromperiam, proceden-

temente, os mais veementes pro-

testos, fundados em realidades

históricas indisfarçáveis.

A m es cia de nossas

origens

Na língua, por

exemplo, o nu-

meroso vocabulário de origem in-

dígena e africano, que

ainda hoje

enriquece a nossa forma de ex-

pressão comum, representaria um

atestado flagrantemente denun-

ciador da inverdade inerente a

uma tal proposição.

Na literatu-

ra e nas artes rítmicas ou plásti-

cas, o canto, a dansa, e nos ofícios

domésticos, os trabalhos e arran-

jos culinários aí estariam

para

comprovar que nossas origens se

mesclam numa incontestável pro-

miscuidade, não sòmente racial,

mas igualmente artística, religiosa

e cultural. Então em religião, a

simples sobrevivência da

"ma-

cumba" e a fé em paranóicos

do

quilate dos Antonios Conselheiros

e outros revelariam, ex abundan-

tia9 sob tal faceta, o antagonis-

mo da nossa primitiva

existência

espiritual. O samba, os cantares

plangentes, as toadas várias, ora

remontando a uns, ora aos outros

ancestralismos, põem de relêvo a

infinita variedade de influências

sôbre que

se alicerçou a nossa vo-

cação nacionalista.

Seria, portanto,

absurdo admi-

tir que

fatores ainda agora pre-

sentes à marcha da nossa evolu-

ção não se corporificassem no seu

argamassamento histórico para,

conjuntamente com o ramo mais

predominante na hibridação, in-

fluir nas diretrizes da vida orgâ-

nica do país.

Dizer que

na cons-

tituição étnica nacional sôbre os

dois outros ramos predominou,

na

ordem política,

ou em qualquer

das demais, um traço de uma das

civilizações concorrentes, não é

a mesma coisa que

se afirmar a

anulação integral de tôdas as ma-

nifestações procedentes

das de-

mais fontes psico-biológicas

origi-

nárias.

O nosso sentido

institucional

A nossa tese é que,

no sentido

institucional, o Brasil, desde a

fase colonial aos nossos dias, foi

um país,

cuja unificação geográ-

fica e etnológica, como política,

A INFLUÊNCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA 87

foi determinada, pelo

menos

quanto às suas linhas mestras,

pe-

lo impulso de um estado políti-

co rigorosamente caracterizado

pelo poder de um órgão unipes-

soai. Si, durante o período

me-

tropolitano, o rei de Portugal pro-

moveu a catequese dos nativos por

intermédio de prepostos

seus, re-

vestidos, nêste Continente, das

insignias reais de chefes das Ca-

pitanias a

que dominavam como

senhores e por

direito próprio

e

não em vista de qualquer

manda-

to oriundo dos seus jurisdiciona-

dos, um exame, mesmo perfunctó-

rios, sôbre a situação do primei-

ro império ou do segundo logo

convence que

a instituição do go-

vêrno nacional, em contraposi-

ção ao das côrtes

portuguesas, em

nada modificou essencialmente,

nesse aspecto, a nossa primitiva

estruturação político-social.

Nenhuma transformação

na autoridade

política

Após as graves

comoções pro-

duzidas pelo

rompimento dos vín-

culos políticos que

nos ligavam

aos antigos colonizadores, o que

vimos é que,

reimplantada a di-

tadura monárquica no recem-cons-

tituído Estado Nacional, através

do regente convertido em Impera-

dor perpétuo,

nada se transfor-

mou, quando

à natureza pessoal

do poder

de um em relação ao do

outro. Como dantes, a autorida-

de política permaneceu

ligada

exclusivamente ao arbítrio indi-

vidual do reinante. O Impera-

dor era tudo e a Nação — como

união de forças humanas delibe-

rantes, detentora do seu próprio

destino — era nada ou

quasi nada.

Alguns fatos isolados, como

pronunciamento de Câmaras Mu-

nicipais, verificados antes ou de-

pois da Independência, ou como

as revoluções das chamadas repú-

blicas do Equador, no Norte, é

do Piratinin, no Sul, não pode-

riam indicar movimentos de opi-

nião capazes de, tomados em seu

sentido genérico,

traduzir que

o

pensamento das massas

popula-

res já

se havia libertado da pro-

funda influência pessoal

exercida

pela casa reinante.

Sufocados sem uma

vitória real

Além disto, é preciso

não olvi-

dar que

um ou outro dos pronun-

ciamentos, não só não lograram

propagar

- se, extendendo

- se à

maioria dos grupos provinciais,

como ainda foram sufocados sem

alcançar sequer uma vitória real,

impondo, no terreno dos princí-

pios, qualquer apreciável modifi-

cação nos sentimentos gerais

do

país, do

ponto de vista da conve-

niência de restringir o âmbito de

ação quasi

ilimitado da pessoa

do

imperante.

A Independência, si represen-

tou um acontecimento que,

até

certo limite, associou o povo

ci-

tadino, não logrou, do mesmo

passo, consubstanciar-se em reali-

dade jurídica,

sinão pela

aquies-

cência do príncipe

regente ao

transmutar-se voluntariamente de

agente do govêrno

metropolitano

em supremo magistrado da nova

soberania por

êle mesma esta-

tuída.

8*5CULTURA POLÍTICA

A Proclamação da

Independência

Sem a existência das incompati-

bilidades pessoais que, pouco a

pouco, irritando a Pedro I, o le-

varam a desvincular-se da domi-

nação ultramarina, não é

possível,

com apoio nos fatos, afirmar que,

por seu desígnio exclusivo, as

po-

pulações brasileiras possuíssem já,

então, aptidão para

atingir a igual

resultado. Não proclamou

o povo,

assim, sua própria

independência,

fê-lo o

governante estranho, como

um ato de benignidade ao em-

polgar-se pelo ódio e

pela paixão

do comando, em plena

revolta

contra seu próprio pai

e os digni-

tários da côrte de que

se despren-

dia sem respeito aos próprios

elos

da sua cadeia de ancestralidade

consanguínea.

Os brasileiros, é verdade, lhe

aplaudiram o ato, por

lhes ser pro-

veitoso, mas o grito

do Ipiranga,

traduzido no

"Independência ou

Morte!", soou primeiro,

isolada-

mente, dos lábios de um só ho-

mem, que

se aclamava de guia

e

protetor perpétuo para depois, en-

tão, reboar, por

todos os recantos,

como um éco de exaltação po-

pular.

A diferença da libertação

dos americanos

do Norte

Que diferença não se

pode di-

visar entre esta forma de liberta-

ção nacional e a da América do

Norte, em que

um punhado

de

patriotas, embebendo em sangue o

próprio solo e organizados em um

congresso, que era, de fato, o ór-

gão específico da vontade

geral,

sem apêlo a qualquer protetor

de origem real e de sangue euro-

peu, aboliu, em um ato de

perfei-

ta auto-determinação, os liames

que prendiam as varias colonias

ao poder

extra-territorial?! Co-

mo entre estas duas formas de

conduzir os acontecimentos se ma-

nifesta, inequívoco, o divórcio de

orientação dos métodos políticos

dominantes em cada um dos dois

hemisférios americanos!?

A disparidade de ação

Dois episódios subsequentes

ilustram, ainda melhor, a dispa-

ridade de agir de um e do outro

povo continental.

Proclamada a

Independência Americana com a

adoção de uma república gover-

nada por

um órgão coletivo, pou-

co depois periclitante

a unidade

territorial e demografica do novo

país, logo um segundo congresso

de nacionais —

a Convenção de

Filadélfia, -

apercebendo-se das

falhas institucionais do primeiro

regime, convoca-se e delibera por

si mesmo mudar o caráter do go-

vêrno, mediante a promulgação

de outra carta política.

Um cor-

po de homens e de

patriarcas au-

tenticamente nacionalistas, num

gesto de expressão imorredoura,

coletivamente, resolve em plena

solidariedade, sôbre a sorte da

Nação. Decretada a libertação do

Brasil, bem diverso foi o rumo

aqui trilhado para prover

o país

de uma constituição modeladora

do nosso govêrno geral.

Origina-

riamente, apelou-se para

uma

constituinte; mas esta, antes de

haver dado cumprimento à mis-

são intrínseca à sua investidura, é

dissolvida, afim de deixar sobre-

viver plenamente,

sem qualquer

contrapêso ou limitação, o poder

A INFLUÊNCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA 89

pessoal do

governante, de estirpe

estranha, a cuja graça

e generosa

magnanimidade haveríamos de

dever, como um gesto

espontâneo

cia sua própria

outorga, o primei-

ro pronunciamento

da vontade de

nossa existência de presumido

Es-

tado livre e independente.

O mesmo funcionamento

Si a abdicação e o ato adicional

representaram uma reação dos

sentimentos populares

contra a

absorção das prerrogativas popu-

lares, os seus efeitos práticos ja-

mais se fizeram, entretanto, sentir

sôbre o meneio das instituições. A

segunda regência, e o reinado de

Pedro II, continuaram a funcio-

nar do mesmo modo que

os re-

gimes precedentes e dentro do

mesmo ritmo de predominân-

cia da vontade pessoal

do gover-

nante supremo sôbre todos os cír-

culos das atividades de ordem le-

gal ou

particular que com êle fo-

ram chamadas a cooperar em me-

ro caráter consultivo ou de assis-

tência pessoal.

Tentativa de critica

institucional

E' intuitivo que

neste estudo,

comprimido pela

estreiteza do es-

paço, não nos

propomos a reali-

zar um exame integral de tôdas as

múltiplas causas sociais ou de to-

dos os fatos sociológicos que, com

maior ou menor intensidade, te-

nham concorrido para imprimir

a nossa evolução política o íeitio

personalíssimo que lhe acabamos

de apontar. Empreendemos, nes-

te escorso, mais um trabalho de

síntese, fundado na feição histó-

rica da nossa vida nacional, em

que o fenômeno estudado se

pa-

tenteie como um traço dos nossos

pendores espontâneos

para os

go-

vêrnos de um só titular, do que

propriamente uma minuciosa aná-

lise de fundo sociológico, de-

monstra tiva dos particularismos

que tenham servido de fontes a

uma tal situação. Fazemos uma

tentativa de crítica institucional

e não uma determinação precisa

das causas geradoras

do nosso de-

senvolvimento. Não é ocioso, en-

tretanto, que, para

atingir o mes-

mo alvo, encaremos aquêle aspe-

cto do assunto, embora perfunto-

riamente. Si a nós mesmos for-

mulassemos as perguntas

— "por-

que assumiram os regimes

políti-

cos do Brasil o prisma

de pes-

soalismo extremo?" —

"quais

as

causas sociais que para

isso contri-

buiram"? —

assim responderia-

mos:

"as

causas dessa orientação

devemos buscá-las em duas ori-

gens distintas

— uma, a

principal,

de ordem extrínseca ou extra-

continental; a outra, secundária,

da nossa própria

conformação in-

trínseca.

A primeira

e mais profunda

razão, à conta de que podemos

le-

var o nosso irresistível instinto de

dominação pessoal,

reside no fa-

to de termos aparecido na ordem

internacional como uma comuni-

dade colonial, submetida, em tu-

do que

se relaciona com a sua

formação coletiva, aos imperativos

de uma civilização já precedente-

mente constituída e transfundida

para o nosso solo nacional, com

tôdas as características que

lhe

eram próprias,

as quais

não se mo-

dificaram, ao menos quanto

às li-

nhas gerais,

nos seus delineamen-

tos básicos.

90 CULTURA POLÍTICA

Transmissão de

conhecimento

E' sabido, e isto já

nos ensina-

va Herbert Spencer, que

os povos

colonizados assimilam o conteu-

do da civilização veiculada pelos

colonizadores com os mesmos re-

quisitos que a ela sejam

peculia-

res. E' esta, aliás, uma condição

resultante da inferioridade psí-

quica, política e social em

que es-

tão os primeiros

em relação aos

últimos. O conhecimento se trans-

mite, em tais circunstâncias, so-

bretudo pela

difusão resultante do

contágio e, si nêste repousa o

princípio da transmigração das

idéias, é óbvio que

um tipo de ci-

vilização superior, ao entrar em

relação direta com um outro de

padrão inferior, tende sempre a

suplantá-lo. E' isto o que

se ve-

rifica até em casos em que

as ar-

mas de um povo

de nível mental

retardado abatem as de uma na-

ção de maior

potencialidade cul-

tural. Ao invés de impor o ven-

cedor seu estalão de vida ao ven-

ddo, êste é que

domina psíqui-

camente os triunfadores. Conclu-

dente é o exemplo dos romanos,

ao absorverem os povos germâ-

nicos barbarizados, após a catás-

trofe que

abateu materialmente

a nação.

Produto de uma

liga racial

Ora, nós, brasileiros, somos o

produto de uma liga racial

para

a qual

concorreram, em plena

dis-

paridade de nível intelectual,

por-

tugueses, indígenas e africanos.

Entre os coeficientes da mestiça-

gem, sòmente o

português era

portador de um

gráu de cultura,

relativamente elevado. Os dois

outros, embora a dissemelhança do

meio físico de que procediam,

ni-

valavam-se pela

ausência de qual-

quer progresso espiritual. A su-

perioridade do

peninsular não

podia, por tal maneira, deixar de,

pela absorção ou eliminação, su-

plantar os seus copartícipes de

hibridação etnológica e de forma-

ção social. Desde o seu encontro

inicial na zona litorânea até o seu

deslocamento para

a penetração

nas profundidades

do hinterland,

o precipitado

biológico da nossa

tripla formação demográfica se

portou de modo a confirmar,

pe-

los fatos, a proposição que

avan-

çámos.

A exploração das ri-

quezas nativas

Na exploração das riquezas na-

tivas, a partir

das do sub-solo até

as da superfície, outra não foi a

atitude dos nossos povoadores

e

desbravadores primitivos.

A con-

cepção fetichista do íncola ou do

negro cedeu, diante da pressão

violenta ou da persuassão

tran-

quila do conquistador reinícola.

A tribu, cultuando Tupan e do-

minada por

seus pagés,

simulta-

neamente sacerdotes, juizes

e guer-

reiros, é gradativamente

transfor-

mada nos núcleos rurais dos ci-

vilizados ou em aldeias em que

a

comunidade natural é automati-

camente substituída por

uma or-

ganização civil, orientada

para a

submissão ao agente do rei ou ao

apóstolo de Deus, entregues ao

desempenho da função de disci-

plinar, dirigir,

julgar, educar e

converter. O garimpeiro

de Mi-

nas-Gerais, o cultivador de São

Paulo, o senhor de engenho de

A INFLUÊNCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA #1

Pernambuco ou o creador do Nor-

deste, variando apenas de objeti-

vos profissionais,

emparelham-se,

no entanto, no mesmo mister so-

ciai de uniformização do nosso ti-

po humano,

psíquico e social. Em

derredor da fazenda, onde se ar-

ma, em volta da "casa

grandea

vasta curralaria, o branco, ocupan-

do a posição

central, sempre con-

duziu o negro e o selvícola ir-

manados pelo

trabalho, sob a égi-

de do orientador comum.

O comércio no

interior

Nas povoações

ou nos vilarejos,

a venda dos produtos

agrários e

pecuários, ou mesmo a troca e a

permuta de espécie

por espécie,

ou os atos votivos presididos pe-

los sacerdotes cristãos, reúnem,

nas feiras livres ou nos templos,

as populações

circumvizinhas. A

esta confluência de pessoas

soli-

darizadas pelo

interêsse ou pela

fé sempre se superpoz o chefe lo-

cal, quasi

invariavelmente um

regulete, sob o disfarce de prote-

tor e conselheiro.

Fisionomia típica

social

Em todos os tempos e, ainda até

há bem pouco, qualquer

dos Esta-

dos nordestinos apresentava esta

típica fisionomia social. O juiz,

o delegado de polícia,

o agen-

te do fisco moviam-se, não guia-

dos por

um princípio

de legisla-

ção escrita, mas ao impulso da

vontade ocasional de uma figura

poderosa, a cujas instruções mo-

mentâneas todos obedeciam. Ao

lermos, em Alexandre Herculano,

a descrição da vida municipal

portuguesa, temos a impressão até

de que

êstes centros primitivos^

da formação lusitana se desdobra-

ram para

o nosso meio, com tô-

das as cambiantes de sua feição

metropolitana. Em todo o perío-

do da penetração,

da conjunção e

fixação das tres raças em fusão,

o que

vemos, através do movi-

mento das bandeiras, da imigra-

cão nordestina para

a Amazônia,

da distribuição das populações

pelo alto sertão, é o

poder indi-

vidual do branco representativo

superar e anular a vontade da

massa popular, quer

no terreno

social e econômico, quer

no es-

tritamente político.

O índio e o

negro jamais

mandaram ou go-

vernaram, em qualquer

setor das

atividades nacionais. Não pode

haver dúvida que,

no seu senti-

do político,

tôda democracia pres-

supõe igualdade e liberdade jurí-

dicas, não só individual, sinão

também coletiva, isto é, de homem

a homem, de grupo

a grupo,

de

comunidade a comunidade. Co-

mo admitir que

imperasse no

país, durante todo o Império, um

tal regime, si era o acima indica-

do e não outro qualquer

o esta-

do social dominante? E' verdade

que Cassiano Ricardo, descreven-

do no seu

"Rumo ao Oeste", a

marcha das vanguardas bandei-

rantes para

o interior, salienta o

papel pelas mesmas exercido sô-

bre os tres elementos da mestiça-

gem, acentuando, com firmeza, o

caráter, inerente às bandeiras, de

fontes históricas da democratiza-

cão nacional.

No sentido da igualdade de

sangue e da parceria

de hábitos,

o princípio

é inteiramente certo.

Na sua acepção estritamente po-

92 CULTURA POLÍTICA

lítica, porém,

não cremos que

os de autocracia e da forma demo-

sucessivos govêrnos gerais

institui- cratica indireta. De modo algum,

dos sobre o país,

ou mesmo sôbre o Estado Brasileiro, como organi-

as circunscrições provinciais

te- zação máxima da ordem política,

nham emanado exclusivamente se configurou pelo

concurso da

daquela fonte de argamassamen- ação dos estadistas, isto e, das

to interno. Na constituição dos elites, conjugada a da população

poderes políticos, não operámos, em geral.

A Nação intelectual, re-

em qualquer

tempo, da periféria unida

em tôrno de uma íigura de

para o centro. Antes, avançamos maior

relevo, deliberava, por

m-

no sentido oposto, do centro para termédio

dela, após o que

a mas*

as extremidades. A evolução ve- sa amorfa recebia o ato sem re-

rificou-se entre nós por

compres- voltas nem aplausos, e por

vezes,

são, exercida pelos

núcleos mais em atitude de perfeita

incline-

gerais sôbre os mais locais e cir^ rença.

cunscritos, e jamais por

uma re-

ação coletiva advinda da irradia- Os únicos instrumentos

cão dêstes sôbre todo o organis- do pensamento

estatal

mo.

A influência de duas

correntes

Após a proclamação

do primei-

ro Império, o Brasil, políticamen-

te, sofreu a influência, mais ou

menos acentuada, de duas corren-

tes que

se contrapesavam entre

si. Ambas eram de caráter exter-

no, sendo que

uma metropolita-

na e a outra oriunda de outros

centros de civilização absoluta-

mente antagônicos aos processos

do nacionalismo português.

A

primeira destas fôrças inspirou-nos

o sentimento dos govêrnos

centra-

lizados, gravitando

em tôrno de

personalidades eminentes. A se-

gunda tentou conduzir-nos à ado-

ção da forma representativa com

bases nas deliberações do povo

devidamente organizado, como ex-

pressão de unidade auto-determi-

nante.

Foi do evolver paralelo

e con-

tínuo de tais orientações que

sur-

giram, no choque de interesses, os

nossos poderes

imperiais, mistos

Assim foi, ao outorgar-se, a

Constituição de 1824 e assim tam-

bém sucedeu por

ocasião da ado-

ção do chamado

"Ato Adicional",

de 1834, que

foram, de modo for-

mal, os únicos instrumentos po-

líticos consubstanciadores do pen-

samento estatal, em todo o exten-

so período

de dominação monár-

quica. Está

patente, pois, que

si a nossa democracia representa-

tiva correspondesse a uma forma

orgânica, intrínseca à evolução

política interna, e

que promanas-

se de um estado social integrado

ao espírito da nacionalidade —

os

movimentos destinados a consti-

tuí-la não resultariam das delibe-

rações de uma insignificante elite.

Ao revés, envolveriam a generali-

dade das classes em que

se divi-

dia a população,

disseminada pe-

lo território do país.

Era isto o

que demandariam, também, os

princípios inerentes a um verda-

deiro Estado Nacional, em que

o

govêrno se alicerçasse sôbre bases

populares e eletivas, fundadas em

A INFLUÊNCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA 93

qualquer gênero de sufrágio, ou,

mesmo em qualquer

espécie de

participação do elemento

popu-

lar na instituição dos poderes

públicos.

O exame da estruturação dos

poderes representativos e demo-

cráticos de qualquer país que

te-

nha atingido a um nível de cul-

tura relativamente apreciável, mi-

nistra-nos dados confirmativos de

quanto acabámos de expressar.

Na Inglaterra saxônia

ou normanda

Na Inglaterra saxônia ou nor-

manda, a prática

da colaboração

do povo

inteiro na Constituição

e na deliberação dos poderes pú-

blicos, emergiu da própria

célula

nuclear dos seus mais rudimenta-

res agrupamentos humanos. O

saxão primitivo,

ao congregar-se,

logo desenvolveu os germes

do

seu pendor para

os governos

de

feição coletiva, pois, jamais

ali se

gravitou em torno de um chefe

investido da supremacia do co-

mando. Mal despontavam os bur-

gos e os condados, com eles, con-

comitantemente, se definiam os

primeiros órgãos de

govêrno regu-

lar, representados por

assembléias

e tribunais eletivos. Articuladas

umas às outras, tais células cole-

tivas iam, paulatinamente,

se am-

pliando, por integrações sucessi-

vas, em organizações mais dilata-

das. Ao mesmo tempo que

isto

se verificava, o princípio

repre-

sentativo, igualmente, dilatava a

sua esfera de gravitação

legal. E

é por

assim ter sido que

os ana-

listas ingleses podem,

indiferente-

mente, ao examinar os seus textos

legais, concluir pela

afirmativa de

que as raízes da democracia bri-

tânica se soterram na profundida-

de da sua própria prehistória.

E*

este o aspecto de uma democra-

cia real, normalmente robusteci-

da através de causas autentica-

mente internas, viscerais e orgâ-

nicas.

O corpo da nossa

democracia

No Brasil, si as bandeiras, va-

rando os sertões numa promís-

cua composição de brancos, ver-

melhos e negros, fixaram o ho-

mem ao sólo sob um critério igua-

litário de ordem biológica, ape-

nas deram à democracia o cor-

po, mas não lhe infundiram a al-

ma que

devia constituí-la como

norma de govêrno generalizado.

Aqui podemos precisar,

como uma

resultante natural, que

a nossa

idiossincrasia pelos

regimes de

base representativa do tipo an-

glo-saxão promana do berço da

própria civilização nacional.

Somos, como povo,

um conglo-

merado derivado de tres fatores

que, considerados isoladamente,

jamais acusaram

qualquer grau de

inclinação pelos

regimes de go-

vêrnos de cunho eleitoral. O ne-

gro e o índio não ultrapassaram

a concepção retardatária de uma

organização puramente

tribal, co-

locada sob o mando dos pagés

de

vários tipos. O português,

na

pátria de origem ou no meio ame-

ricano, jamais

fugiu ao culto his-

tórico da coroa e dos seus reis

absolutistas revestidos de insígnias

e atribuições de arrogantes suze-

ranos.

A concepção particular

de qual-

quer forma

política não advem da

terra, mas do povo.

E' certo que

o meio físico, o ambiente geo-

94 CULTURA POLÍTICA

gráfico reagem sobre a massa hu-

mana, moldando o seu caráter e

as suas inclinações à feição das no-

vas circunstâncias intercorrentes.

Desta reação bem pode

resultar,

pela eventualidade de uma nova

forma adaptativa, mudança de di-

reção no espírito público

capaz de

aluir os alicerces psicológicos

de

qualquer comunidade de

povo ou

de raça. Não obstante, a realida-

de brasileira não foi absolutamen-

te esta. O elemento lusitano re-

presentou para nós o fator

predo-

minante na ordem geral

do nos-

so desenvolvimento político.

Re-

duzida a uma fórmula esquemáti-

ca o nosso ancestralismo socioló-

gico, nela encontraríamos o se-

guinte quadro de expressão:

Fatores democráticos represen-

tativos = o.

Fatores propícios

à investidura

pessoal == 100

% .

Dentro da objetividade histó-

rica, daí não há que

fugir. O

brasileiro é, por

constituição, um

indivíduo que, quando

associa-

do, normalmente se orienta para

a direção de uma chefia unipes-

soai. Essa tendência se manifes-

tou, quer

na esfera local ou esta-

dual, através dos coronelatos ma-

tutos e do caudilhismo província-

no, quer

na federal, encarnada, si-

multaneamente, nos chefes de

partido e nos

governantes que, en-

tre si, compartilhavam os desti-

nos nacionais. A diferença entre

o governante

e os chefe de parti-

dos, de então, era apenas que

os

últimos agiam por

trás das corti-

nas e os primeiros

manobravam

direta e ostensivamente a máqui-

na burocrática.

Encarado dês te prisma,

mesmo

já no

período da

primeira repú-

blica, Pinheiro Machado foi uma

síntese individual da nossa evolu-

ção histórica.

Quanto exprimi-

mos nos revela que,

um estudo

conciente do nosso processo

de

formação, comprova que

o que

re-

presentou continuadamente a

nossa normalidade, de fato, foi o

govêrno da feição

pessoal, e,

ja-

mais, o eletivo. Neutralizada nês-

se domínio a influência local e

circunscrita dos elementos aborí-

genes, o

que subsistiu,

já que sô-

bre êle em nada podia

influir o

ramo de origem africana, foi a

concepção portuguesa

de um na-

cionalismo anti - representativo,

apoiado na autoridade singular

de um monarca hereditário e in-

tangível. Daí as dificuldades en-

contradas pelos

estadistas do Im-

pério, ao

pretenderem transformar

a monarquia presidida pelos

des-

cendentes da dinastia bragantina,

de absoluta em representativa e

parlamentar. Não houve consti-

tuição ou lei, eloqüência tribúni-

ca ou doutrinação capazes de ven-

cer os desígnios inatos que

herda-

mos da estirpe metropolitana, mi-

nistradores da nossa mais remota

compreensão do govêrno

nacio-

nal, fundada no arbítrio ilimita-

do de sua Majestade de real. A vio-

lência, a irresponsabilidade e a

impunidade suprimiram, nas suas

fontes, o próprio

voto primário,

quando não entravaram o

parla-

mento por

êle ficcionalmente ins-

tituído.

Sem a confiança da maio-

ria parlamentar

No segundo Império, o monar-

ca magnânimo, mas voluntarioso,

governava, sempre,

permanente-

A INFLUÊNCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA 95

mente, com um ministério, da

sua e não da confiança da maio-

ria parlamentar.

E' isto, pelo

me-

nos, o que

nos consigna a histó-

ria.

A sorte das províncias

e dos mu-

nicípios pendeu,

sempre do arbí-

trio dos prepostos

diretos da sua

extensa rede burocrática, influen-

ciada pelos

áulicos da sua prefe-

rência política,

e nunca da ação

legal dos poderes

de feição eleti-

va que

as leis deixavam presumir.

O poder político,

como a vida ci-

vil e religiosa, movia-se automati-

camente em torno do astro cen-

trai, —

o Imperador —,

quando

não gravitavam

no plano

secundá-

rio de meros satélites dos presi-

dentes provinciais.

Ao lado desta

realidade é que

se erigiu, como

um palitativo,

a estrutura do go-

vêrno constitucional e parlamen-

tar nascido do esforço de alguns

sonhadores a quem

circunstân-

cias converteram em discípulos

do parlamentarismo

francês e do

catecismo cívico de Benjamin

Constant. Para compreender co-

mo o espírito brasileiro se definia

sociologicamente no sentido da

primeira e não da última forma

de orientação, basta racionar com

os dados da própria

vida política

das duas Américas e tomar em

conta a diversidade dos seus res-

pectivos fundamentos etnológi-

cos.

Si, no América do Norte, o in-

glês parlamentarista, ocupando o

novo habitat, converteu-se no

americano, democrático e presi-

dencialista, na América latina os

pendores dos espanhóis e

portu-

gueses pela dominação

pessoal dos

seus imperantes, logicamente, só

podiam gerar o fenômeno opos-

to, dado o absoluto antagonismo

das duas situações de origem. A

duplicidade de rumos históricos

bem evidencia porque

medrou

com tanto vigor entre os america-

nos setentrionais a autoridade co-

letiva das massas populares,

en-

quanto, no hemisfério sul, o espí-

rito político

se projetou

invaria-

velmente para

as hegemonias pes-

soais.

As portadoras

de

germes

As sementes advindas de climas

diferenciados eram portadoras

de

germes que, ao desabrocharem,

conservaram a marca de suas pe-

culiaridades genéticas.

No Bra-

sil, as idéias de fonte lusitana fio-

resceram em primeiro

lugar. Sua

feição política

difundiu-se, por

isto, muito antes de soprar sobre

os nossos quadrantes

sociais o tu-

fão que

se desencadeára da Fran-

ça para todos os

pontos cardiais

do pensamento

universal, vei-

culando o pólen

fecundante do

democratismo liberal. A implan-

tação dêste tornou-se, assim, obra

penosa e difícil,

por contrariar o

que já se infiltrava até o cerne da

emotividade do país.

Os ideais

da Escola Francesa que

o escol dos

publicistas, dos

parlamentares e

dos homens de Estado nos incul-

cou através do fraseado tribuní-

cio adquirido na leitura de Ben-

jamin Constant, Guizot, Franque-

ville, Jules

Simon e outros surdi-

ram como móveis sociais em an-

tagonismo com tôda a concepção

de vida pública que

entre nós os

antecederam. Daí nunca haverem

êles logrado, no âmbito dos cír-

culos de atividades nacionais, o

bom êxito vaticinado por

seus

96 CULTURA POLÍTICA

predicadores na fase da

propa

ganda. A técnica

parlamentar

brasileira sempre se manifestou

falha e deficiente. O mecanismo

eleitoral que

a acionava, igual-

mente funcionou como um aprês-

to cujo rendimento, quasi

nulo,

era, além disto, da peior

espécie.

O eleitorado que

o impulsionava,

o funcionário que

lhe coletava os

sufrágios, os poderes que

lhe apu-

ravam os resultados, longe de

lhes impor os objetivos demanda-

dos, pareciam

conspirar contra a

sua própria

implantação. A prá-

tica não era, por

tal modo, obje-

tivada sinão como um meio de

desmoralizar e de desmentir os so-

nhos alviçareiros previstos pela

pregação doutrinária. O

povo, se-

ja qual for o seu

grau de cultura,

é, por

intuição, realista. Não crê

sinão nos fatos e nos efeitos que

lhe são sensíveis.

A insuficiência do nosso

parlamen tarism o

O nosso parlamentarismo pode-

ria revestir os coloridos mais vi-

vos e fascinadores, quando

enca-

rados como mote da eloqüência

política. Como instrumento

prá-

tico de realização, de construção

da grandeza

e do bem estar pre-

nunciados, revelou-se, não só insu-

f iciente como decepcionante e per-

turbador. As eleições processa-

vam-se sob o ruído das assoadas

demagógicas, quando

não sob o

troar dos clavinotes ou o es tale j ar

dos cacetes. O ódio que

delas re-

sultou desunia homens, estirpes

e comunidades. O país

não pro-

gredia. Tudo marchava no ritmo

vagaroso dos tardigrados: — a

agricultura, a pecuária,

as comu-

nicações, os transportes, a eco-

nômia e a segurança. Os ade<

ptos do

poder pessoal do Impera-

dor, ou seja da conservação dos

antigos métodos de supremacia

real, sentiam, em tudo isto, a de-

bilidade do sistema e não perdiam

oportunidade para provocar,

cada

vez mais, a sua desmoralização,

desencantando o povo.

Êste, en-

tre o que

via e o que

lhe era pro-

metido pelos próceres

do regime,

preferia acreditar nos fatos. A

convicção que

se firmara, pois,

era a cíe que

o parlamento

e o re-

gime liberal de

que ele era o or-

gão personificador, não serviam

sinão para

embaraçar a ação vini-

pessoal do

grande Pedro II, com-

pelido a desperdiçar o seu tempo

para corrigir,

pelo exercício do

poder moderador, os transviamen-

tos, quer

do parlamento, quer

dos

chefes de partidos

cjue neles to-

mavam assento. Deste cotejo de

valores tão desiguais, o que po-

dia razoavelmente resultar, como

de fato resultou, foi o descrédito

da forma representativa e, com

a crença na sua inadaptabilidade,

uma fervorosa preferência por

aquelas em que

a ação pessoal

de

um chefe digno sentia-se inteira-

mente livre para

lutar contra o

mal e a corrupção dos homens

públicos.

Sobrepondo-se ao prurido

do democratismo

avançado

Não parece

de difícil compreen-

são que

si uma das direções do es-

pírito institucional, além de ser

extranha, conduzia à dissolução,

e a outra, sobre ser mais radicada

à vida nacional, levava à digni-

dade, a massa popular

se inclinas-

se instintivamente para

a que

me-

A INFLUÊNCIA DO PODER PESSOAL NA UNIDADE POLÍTICA 97

lhor se impuzera à sua insipiente

mentalidade. Foi por

esta forma

que o

poder pessoal enraizou-se

na conciencia geral e, sobrepondo-

se ao prurido do democratismo

avançado, prevaleceu como o mais

alto pendão

da unificação nacio-

nal. Menosprezados e diminuídos

nas suas prerrogativas os

poderes

originados do voto, (Parlamento,

Assembléias provinciais, Câmaras

municipais), a admiração pública

se fixava nos pró-homens da épo-

ca, e toda a marcha dos aconte-

cimentos que

favoreceram o de-

senvolvimento da unidade nacio-

nal se processou

sob a influência

direta, ou indireta dos mesmos.

Em nome do Imperado)

Em nome do Imperador, e não

em nome das instituições parla-

mentaristas, defendeu o nosso glo-

rioso exército nacional as fron-

teiras meridionais do país.

Em

nome dêle, ainda, manteve, o

mesmo exército, sob a suprema

inspiração do grande Caxias, a

persistência do vínculo tradicio-

nal de ligação entre as províncias

por vêzes ameaçadas na sua uni-

dade, pelas

rebeliões de fundo

cessecionista, intencional ou não.

Um povo

de onze milhões de

habitantes, e de quasi

cem por

cento de analfabeto, distribuído

por um vastíssimo território, sem

acesso aos grande

centros de cul-

tura do país,

não podia

compreen-

der e sentir as vantagens de um

sistema, como o representativo,

cujo conhecimento exige sempre

um alto grau

de preparação

in-

telectual e uma acentuada dispo-

sição de simpatia.

O saneamento do Amazonas

AZEVEDO LIMA

Chefe de Distrito Médico Pedagógico, na

Secretaria Geral de Educação e Cultura

da Prefeitura do Distrito Federal.

Esboçando os grandes problemas do saneamento do vale amazônico, o

autor nos transporta para um dos campos mais ricos de

possibilidades

bara o futuro brasileiro. A ação do Govêrno no reerguimento do Amazonas

iá se está fazendo sentir profundamente. Dia virá, diz o autor, em

que a

Amazônia poderá realizar a

profecia de vir a ser o celeiro do mundo

Marchamos para lá, vencendo a natureza, protegendo

o homem, garantin-

do-lhe a vida e a saúde contra as endemias, revalorizando-o pela revalo-

rização da terra.

"Precisamos dominar as endemias, para que

den-

"tro de

pouco, a média de crescimento da

população

"melhore e o seu rendimento econômico alcance os

"coeficientes dos países

civilizados. Fixando o homem

gléba saneada e

produtiva, dando-lhe educação

"apropriada ao meio rural, evitaremos o êxodo dos

"lavradores e a fuga dos elementos jovens

e animo-

"sos, desviados do campo

para as grandes

cidades,

"com a ilusão de uma existência fácil e confortável".

GETULIO VARGAS

PARA

1.820.000 quilômetros

quadrados, apenas 450.000

habitantes. Que

é isso? Um

deserto. E esse deserto é o Ama-

zonas: a imensa planície

eqüino-

ciai que

a civilização contaminou.

Sim, contaminou-a.

Quanto se

podia fazer,

para dis-

simular a imprevidência crimino-

sa dos homens, já

foi feito. En-

tretanto, a verdade é que,

entran-

do pelas

regiões férteis e verde-

jantes da bacia amazônica, atra-

vés da rede maravilhosa dos seus

cursos potâmicos,

bandos de mas-

cates e aventureiros imprudentes

foram semeando pelo

deserto bra-

vio, mas virgem, os germes

letí-

feros.

A natureza amazônica

A natureza era hospitaleira e

boa. Era aquêle fervedouro de vi-

da, evocado pelo

cientista genial,

em páginas

memoráveis que

não

se desdouram entre os mais belas

e mais modernas das antologias

o SANEAMENTO DO AMAZONAS

alemãs. Recebeu a consagração de

salubérrima pelo gênio

do autor

do "Kosmosque,

em fecundas

explorações científicas, percorreu

a Amazônia, pelos

tributários do

Orenoco, até as fronteiras do

Brasil. Arrancou à imaginação só-

bria do naturalista apóstrofes de

arrebatamento poético:

"In

jedem

Strauch, in der gespaltenen Rin-

de des Baumes, in der von Hant-

füglern bewohnten Erde regi sich

hõrbar das Leben. Es ist wie eine

der vielen Stimrnen der Natur,

vernehmbar dern frommen, en

pfãnglichen Gemiite des Mens-

chen".

Em cada arbusto, em cada cór-

tice fendida de árvore, na terra

habitada por

himenópteros, ou-

via-se como que

um borbulhar de

vida. As vozes da natureza, em

festa perpétua,

acordavam os sen-

tidos do homem — do homem, do

desbravador, do conquistador, que

iria por

ela passar

espalhando em

seu rastro as sementes do mal. As

matas despovoadas, a imensidade

impérvia da jungle

amazônica,

que encheram de assombro, com

sua palpitação

de vida, a mentali-

dade excepcional de Von Hum-

boldt, a solidão feracíssima da

planície tropical, em

que reinava

o clima paradisíaco

de terras vir-

gens, iria receber um século mais

tarde, como ferrete indelével, a

antonomásia de "Inferno

Verde

com que

a pena

imaginosa do pro-

sador Alberto Rangel estigmati-

zou aquela vasta região do terri-

tório nacional.

A população

amazônica

Quatrocentos e cincoenta mil

viventes em superfícies de perto

de

dois milhões de quilômetros qua-

99

drados! Com franqueza, aí está a

prova de

que a natureza violada

se vinga dos invasores que

a po-

luiram, devorando-os. Dir-se-ia

que a Amazônia é um matadouro.

Ondas e mais ondas de nordesti-

nos audazes que

se obstinam em

povoá-la são por

ela tragadas.

Iinpi opera-se-lhe a inclemência

do clima. Faz mais de cincoenta

anos que

a literatura de ficção e

as descrições impressionistas dos

forasteiros a desmoralizam

e difa-

mam. O mundo imensurável do

Amazonas acena aos cúpidos com

a miragem de riquezas inexplora-

das e fabulosas de Golconda.

Mas os que

investem com os obs-

táculos das florestas impenetrá-

veis, si não morrem, adoecem. Es-

preita-os uma traição em cada

barranco de igarapé. Rondam-

lhes os passos

enxames de anofe-

linas. Os flibusteiros que

trans-

põem os

paúes e varam os

plainos

abrasadores, si se põem

a salvo

dos ferrões dos carapanãs, ou dos

gilvazes dos potòs,

si fogem dos

exércitos de saúvas enfurecidas

que arrazam tudo, aquelas saca-

saias escomungadas que

metem

mais medo aos imigrantes do que

os jaguares

de v. Humboldt, si

voltam dos barracões no bôjo das

montarias, deixando nas várzeas

encharcadas, no mistério das ma-

tas, as desilusões de seringueiros

falidos, veem pálidos, esquálidos,

salteados de sezões, farrapos de

homens, espectros de gente.

Não

há quem

o desminta.

E' verdade que

Raimundo de

Morais, aquela formosa inteligên-

cia de autodidata, que

há pouco

se» apagou, muito lido em Agas-

sis, Martius, Wallace, Hartt, Cas-

telnau, Spix, D'Orbigny Gibbon,

100 CULTURA POLÍTICA

Chandlçss, Bates, etc., a infindá-

vel legião dos naturalistas, que

andaram perscrutando,

em todos

os sentidos, os segrêdos da Ama-

zônia, ex-comandante de gaiolas

portanto, de intimidade com-

provada com as selvas amazonen-

ses __

para honrar a Amazônia, re-

buscou o estilo em ditirambos de

entusiasmo espasmódico. Multi-

plicou-se em literatura de

gênero

meio afetado, meio bucólico, que

cheira a poemas

campestres de al-

gum Teócrito

passadista, para

desagravar o

"celeiro do mundo ,

opondo ao Inferno Verde, de

Alberto Rangel., o Paraíso Verde,

da sua imaginação.

O vale e o clima

No entanto, desponta, a cada

passo, nas entrelinhas das apoio-

gias, a verdade involuntária. Re-

leiam-se os seus livros flamejan-

tes. Não varia o estilo. Aqui vá

de exemplo:

"Mal o navio atinge

a zona pastoril

da embocadura do

Xingu, dos campos do Aquiqui

para cima, a cerração se manifes-

ta com tôda a energia, tornando-

se perigosa.

Há noites em que,

vingadas as colinas da Prainha, o

vale parece

imensa fornalha de

mil chamas destruidoras. A at-

mosfera é morna e abafadiça. Fo-

gueiras sinistras, de altas línguas

de fogo, recordando a matéria

ígnea das crateras vulcânicas, Iam-

bem o espaço e iluminam o qua-

dro sensacional, grandioso

como o

do Vesúvio sepultando Hercula-

num e Pompéia na lava, à vista

aterrada de Plínio. A várzea abra-

zada, a crepitar, a chiar, a esta-

lar, arde por

todos os quadram*

s,

espavorindo as aves, afugentando

os quelónios,

atemorizando os

sáurios, assombrando as serpen-

tes...". E, nêste cenário dantes-

co, irrespirável, asfixiante, o ho-

mem vive, súa, trabalha, produz.

Descontemos as exagerações do

evocador. Sempre há-de sobrar

alguma coisa.

Outro, e êste verdadeiramente

notável, uma das glórias

da nos-

sa raça, espírito de escól, grande

alma chamejante de Quixote, per-

pétuo paladino de humilhados e

de terras ofendidas, também que-

brou lanças pelo

"clima calunia-

do". Foi Euclides. Mas, nas pá-

ginas cintilantes do seu ensaio sô-

bre as condições mesológicas da

Amazônia, não se chega a saber

bem si o ilustre autor de Peru ver-

sus Bolívia rehabilitou a natureza

desacreditada ou terçou armas pe-

lo heroismo silencioso, pela

intre-

pidez estoica dos caboclos do Nor-

deste, esses povoadores

abnegados

da gléba

ingrata.

E, na verdade, não é o clima do

Amazonas o que

os sanitaristas

caluniam. E' a hostilidade do

habitat o que

se procura

corrigir.

Há quem

viva na ilha de Dickson,

no mar de Kara, em pleno

oceano

Ártico, açoitado por

tempestades

polares, durante noites de cento

e tres dias, sob temperatura in-

terna de 12 gráus

abaixo de zero.

Vivem tibetanos na aldeia de

Thok-Djalank, a cinco mil me-

tros de altitude. Habitantes de

La Paz residem em arrabaldes si-

tos a 4.200

metros acima do ní-

vel do mar. E todos, naturalmen-

te, suportam bem as pressões

at-

mosféricas, sem vertigem das al-

turas, mais ou menos adatados à

anoxihemia anêmica das altitu-

des. Aqui, muito perto

de nós,

nas localidades ainda não sanea-

O SANEAMENTO DO AMAZONAS 101

das da Baixada Fluminense, ve-

geta uma

população de opilados.

Haverá aí quem

lhes inveje a

sorte?

O que

cumpre apurar é si está

ao alcance do poder publico,

si

depende da vontade dos homens

modificar o meio habitado e am-

pliar o habitável, no sentido de

oferecer possibilidade

de vida

aprazível as populações

dos solos

aluviais, afogados em enchentes

periódicas, que lhes devastam as

lavouras, e

"desarraígam

florestas

inteiras", servidos pelos

regimes

de cursos dágua transbordantes,

encharcados de pantanais

e ala-

gadiços, cobertos de florestas im-

praticáveis, inundados

por chuvas

torrenciais, e em cuja atmosfera

ardente enxameiam mosquitos.

E' o caso do Amazonas.

Euclides disse, em certo lugar,

que o homem aí chegou cedo de

mais:

"A impressão dominante

que tive, e talvez correspondente

a uma verdade positiva,

é esta: o

homem, ali, é ainda um intruso

impertinente. Chegou sem ser es-

perado nem

querido

quando a

natureza ainda estava arrumando

o seu mais vasto e luxuoso salão.

Encontrou uma opulente desor-

dem".

As origens do mal

Sem dúvida, as antigas tribus

de indígenas amazonenses desço-

nheciam a patologia

complicada

da idade contemporânea.

E' claro que

as regiões êrmas da

Amazônia ainda não eram assola-

das pelas

endemias de agora, ao

tempo em que

nelas galopavam

as

Amazonas fabulosas de Orellana.

Foram as correntes imigratórias

que veícularam a fauna

parasi-

tária até as longínquas paragens

do Cucuí, em que penetra

o Rio

Negro, e as terras lindeiras do sis-

tema hidrográfico que

deságua na

torrente do Rio Purús.

Encontram-se as fontes de in-

salubridade, ou as origens epide-

miológicas da Amazônia, nas in-

vasões do homem civilizado. Os

naturalistas estrangeiros que

visi-

taram os firmes

e tesos da planí-

cie desconforme, de Humboldt a

Martius, assombraram-se com a

opulência nunca vista da vegeta-

ção prodigiosa, em cujo regaço

impenetrável, à sombra de madei-

ros seculares, fervilha o reino zoo-

lógico que

a todos maravilhou. O

bem que

disseram dela! Mas às

enfermidades endêmicas que

ho-

je aí

grassam nenhum se refe-

riu. Ao contrário, gabaram

to-

dos a salubridade endêmica das

selvas.

Martius, Wallace, Agassis fes-

te j aram-lhes as virtudes

pacifica-

dor as, com acentos de éclogas ver-

gilianas. Durante nove anos es-

tanciou em Teffé o naturalista

Battes.

O próprio

Voltaire, que

a seu

tempo lia tudo, a literatura cien-

tífica e amena, a imaginosa e a

sábia, inclusive as lendas amazô-

nicas do cavalheiro Walter Ra-

leigh, não teria feito voltar, in-

dene de sexões, o seu Candide,

das aventuras do Eldorado, rumo

a Surinam, provavelmente

através

dos pântanos

e tremedais da Ama-

zônia, onde se foram perdendo

cargas de ouro e pedraria,

si sou-

besse que

lhe não custaria nada

agravar as aflições do sofredor

com o martírio das maleitas.'

102 CULTURA POLÍTICA

Doenças da Amazônia

O certo é que,

no quadro

noso-

lógico da antiga província

amazo-

nense, não figuram enfermidades

autóctones. As infecciosas e trans-

missíveis são, até, de importação

relativamente recente. A febre

amarela denunciou-se, pela pri-

meira vez, no Amazonas, em 1856,

quasi sete anos depois da data em

que explodiu nesta Capital a ter-

rível pandemia.

Aqui, na anti-

ga Côrte, asentou domicílio, du-

rante mais de meio século, o mór-

bo devastador. Dela e das cida-

des do litoral partiam para

o ex-

tremo Norte, em levas sucessivas,

os transmissores da desmoralizan-

te enfermidade, definitivamente

extirpada, em 1908, não por

mo-

dificações eventuais nas condições

do clima, mas graças

à obra pa-

triótica de inolvidável sábio: Os-

valdo Cruz.

A cólera desembarcou, no Ama-

zonas, de bordo do vapor Marajó,

em 1855, e fez-lhe nova visita em

1856, procedente

do Pará, no bô-

jo do Tapajós.

O impaludismo, doença plane-

tária, que

se instalou no Brasil,

pela primeira vez, em 1829, na

cidade de Macacú, província

do

Rio de Janeiro,

não é por

certo

originário dos trópicos, nem o co-

nhecia o Amazonas antes que

acometesse as ilhas da Guanabara

e alcançasse terra firme, propa-

gando-se pela antiga

província

fluminense, onde ainda agora rei-

na, como reina nos arredores da

Capital e em não raras metrópo-

les européias.

As leishmanioses amazonenses,

ou os vários aspectos clínicos da

mesma enfermidade parasitária,

reconhecem como agente patogê-

nico um protozoário

de procedên-

cia oriental.

O beri-beri nem é doença tro-

picai, nem é mal infeccioso. Pe-

la perpetuação

dele —

está isto,

hoje, exuberantemente provado

não responde, também, o clima do

extremo Norte.

Assiste, portanto,

aos amazo-

nenses razão para que

se rebelem

contra os que

irrogam ao seu Es-

tado natal a pécha

de insalubre.

As cifras de morbilidade

e obituário

Entretanto, a realidade crucian-

te é esta: as cifras de morbilidade

e obituário, no Amazonas, alcan-

çam proporções assustadoras.

Quaisquer que sejam as concep-

ções, mais ou menos razoáveis, in-

vocadas para

a explicação do fe-

nômeno do despovoamento, ou do

nomadismo amazonense; quer

busquem as doutrinas fundamen-

to nos mistérios dos anos clima té-

ricos, quer

se estribem em condi-

ções mais objetivas, de ordem te-

lúrica, atmosférica, agrária, topo-

gráfica ou econômica, o fato so-

ciai é que

não corresponde a den-

sidade da população

dispersa pe-

los latifúndios da Amazônia às in-

calculáveis riquezas em potencial,

nas regiões tão decantadas por

naturalistas e viajantes.

Thomas Buckle, na estupenda

introdução à

"História

da Civili-

zação na Inglaterra", monumento

de erudição científica, infelizmen-

te inacabado, no qual procurou

subordinar a evolução histórica a

princípios deterministas, e o

pro-

gresso social,

principalmente, às

influências poderosas

do meio

cósmico, hauriu nas lições dos na-

turalistas embevecidos a hipótese

/

O SANEAMENTO' DO AMAZONAS 103

de que

aos ventos aliseus poderia

atribuir-se o ritmo retardado do

desenvolvimento indígena. Ao

resumir o quadro panorâmico

desta terra maravilhosa, parece

que se limitou às leituras dos

que

se inebriaram com as exuberân-

cias da natureza amazonense, pa-

ra assim concluir:

"Tais

são a efu-

são e abundância vitais que

dis-

tinguem o Brasil entre todos os

países do mundo. Porém, no meio

dessa pompa,

desse esplendor da

natureza, não há lugar para

o ho-

mem. Fica reduzido à insignifi-

cância pela

majestade que

o cer-

ca. Tão formidáveis são as for-

ças que se lhe opõem

que nunca

poude dominá-las ou resistir à

sua imensa pressão".

Ora —

exemplo extraordinário

da falibilidade dos gênios!

— o

sábio insigne e pessimista, que

se

apoiou na ciência positiva para

a explicação de fatos sociais, não

chegou a vislumbrar as possibili-

dades imensas desta mesma ciên-

cia, a serviço da sociedade, para

correção da natureza e melhoria

do gênero

humano. Laplace, o

grande astrônomo, negou também,

com razões indignas do seu vasto

saber, a existência de meteoritos.

Galileu, físico imortal e revolu-

cionário, contestou a influência

da pressão

atmosférica sobre os lí-

quidos, depois de haver determi-

nado o pêso

do próprio

ar. Fre-

derico II, estadista sem par

e

protetor de talentos literários

cosmopolitas, não imaginou que

vivia ao pé

dêle um compatriota

ilustre, maior do que

todos os

outros —

Goethe. Luiz Felipe, ao

receber a notícia da morte de

Cuvier, o fundador da anatomia

comparada e da paleontologia,

perguntou, espantado,

quem era

êsse

"empregado

do Tardim das

Plantas".

O Amazonas, sorvedouro

de vidas

Não há, pois,

vergonha alguma

em confessar a verdade: o Ama-

zonas foi e é um sorvedouro de

vidas. Quanto

maior for a ca-

lamidade, maior será também a

glória de subjugá-la.

Carlos Chagas, o saudoso pro-

tozoologista nacional, honra e

luminar da nossa escola experi-

mental, confessou-a, sem rebuço:

"Sem

dúvida, na grande

Amazô-

nia, a dificuldade de viver só en-

contra medida exata na própria

facilidade de morrer, sendo ali a

vida humana quasi

uma epopéia,

pela imensidade de causas des-

traidoras".

Civilizações seculares teem-se ar-

ruinado por

culpa da inépcia hu-

mana. Lê-se em Gumplowicz que

o fisiologista Liebig explicou a

decadência do império romano

pelo empobrecimento

químico do

solo, em conseqüência de méto-

dos primitivos

de agricultura, es-

poli adores de sais de

potássio e

fósforo. No entender de Conrad,

atribuir-se-ia a degeneração social

à derrubada irracional das fio-

restas e, consequentemente, à de-

gradação do índice

pluviométrico.

Segundo Du Bois-Reymond, teria

baqueado a hegemonia política

do

Lácio porque

a ignorância das ci-

ências naturais privara

os roma-

nos da posse

de armas de fogo,

com que

sustariam as torrentes

das hordas invasoras. Não é do

próprio Buckle, em certo

passo

da sua obra magistral, a afirma-

ção de

que a civilização traduz

104 CULTURA POLÍTICA

"o

triunfo do espírito sobre os

agentes exteriores"?

A cultura humana é, pois,

ca-

paz de reagir, com êxito, contra

as influências deletérias do meio.

Na verdade, o homem, que

estra-

ga, corrompe, degrada a nature-

za, é apto, igualmente, a regenerá-

la.. A obra da aclimação não é si-

não pertinaz

esforço de saber apli-

cado ao preparo

do ambiente que

os grupos

humanos elegem para

domicílio. E' a adatação do ho-

mem ao habitat, é o domínio dos

agrupamentos sociais sobre a

agressividade do meio cósmico.

"A

vitória sobre as coisas, eis a

função do homem", escreveu

Emerson.

Essa obra de inteligência e cul-

tura nacionais havemos de reali-

zá-la. Um homem forte já

nô-la

prometeu. Confiemos nêle.

Índice endêmico

As primeiras pesquizas para

a

determinação do índice endêmi-

co, nas regiões malarígenas do

Amazonas, foram realizadas pelo

professor Carlos Chagas, segundo

métodos rigorosos, durante a sua

excursão científica de 1913-

Atraiu-lhe a atenção a considerá-

vel disparidade entre o elevado

índice malárico e a escassez numé-

rica das espécies de anofelinas.

Entretanto, já

havia sido regista-

do fenômeno idêntico por

Plehn,

em Duala, em Novembro de 1900,

e por

Hans Ziemann, no Came-

rum e outras localidades, antes

de 1908.

O melhor é dar a palavra

ao sá-

bio patrício:

"O

índice endêmi-

co pela

malária é elevadíssimo, po-

dendo-se afirmar, sem exagêro,

que, excetuados alguns indivíduos

residentes em centros populosos,

a totalidade da população

do in-

terior acha-se infectada pelo pias-

modium. Observações fizemos,

nêsse sentido, de levar ao desalen-

to. Em S. Felipe, pequena

cida-

de do Rio Juruá,

cuja população

oprimida poderia

ser avaliada em

850 ou 900

almas, colhemos da-

dos oficiais que

nos referiram

uma letalidade superior a 400 pes-

soas, no primeiro

semestre de

1911! Quer

dizer: metade dos ha-

bitantes de uma pequena

cidade

vitimada, em seis meses, por

uma

moléstia evitável e de processos

curativos bem estabelecidos. E

quando aí chegámos, nessa

pe-

quena

"necrópole",

ainda nos foi

dado apreciar os efeitos da inten-

sa e mortífera epidemia. Quasi

todos os habitantes de S. Felipe

achavam-se infetados, apresentan-

do os sinais clínicos da moléstia e

especialmente êsses volumosos ba-

ços, que tomam todo o abdômen,

característico da malária mal

curada. Nas crianças, em muitas

dezenas que

nos vieram a exame,

mais notáveis eram as consequên-

cias da moléstia, expressando-se

nas condições caquéticas de quasi

tôdas, na decadência profunda

de

pequenos organismos

quasi ina-

ptos para a vida e ainda menos

para o desenvolvimento físico,

combalidos pela permanência

de-

morada e, sem dúvida, definitiva

da infecção".

As mesmas devastações epidê-

micas foram pelo

falecido profes-

sor observadas em outros centros

e nos seringais de todos os rios,

onde a mortandade atingia a cifra

anual de 30

a 40%. Junto

aos

cursos dágua interiores, em zo-

nas produtoras

de borracha, nas

O SANEAMENTO DO AMAZONAS 105

proximidades do Abunã, no Alto

Acre, nos tributários do Purús,

do Rio Negro, do Juruá,

do Acre,

campeava o impaludismo, a pon-

to de dizimar 70%

da população,

cada ano, dessangrando, assim, o

País escassamente povoado,

depri-

mindo a produção, promovendo

o êxodo dos trabalhadores ater-

rados.

As tres espécies do hematozoá-

rio, com predominância

dos pa-

rasitos da terçã grave

e da beni-

gna, mais aspectos originais, mor-

fológicos e biológicos, do da

quarta, causador de manifestações

clínicas atípicas (

edema pretibial

precoce, às vêzes

generalizado, sín-

dromos nervosos, com aparição de

fenômenos par

ali ticos e evolução

infausta rápida), fizeram que

se

impressionasse Carlos Chagas com

a extrema difusão da enfermida-

de e o elevadíssimo índice de le-

talidade.

A leishmaniose tegumentária, o

purú-purú dos índios Paramirís,

a bouba, a lepra, o beri-beri, a

uncinarióse e, até, a tripanoso-

míase eqüina, epizootia mortífera

dos muares amazonenses, objeto

de estudo, in loco, do saudoso pro-

fessor, expuzeram-lhe ao exame

um quadro

epidemiológico que

ainda hoje nos espanta, pelo

som-

brio espetáculo de sofrimento, re-

presentado naquêle imenso cená-

rio equatorial.

Era essa a situação, há vinte e

sete anos.

A epidemiologia atual

A salvação do Amazonas terá de

se operar mediante vasto comple-

xo de providências

sanitárias, de

ordem pública

e particular, que

visem, ao mesmo passo,

os homens

e os agentes morbíficos.

Em face da grandeza

territorial

e das condições mesológicas de

uma natureza notoriamente hos-

til à vida e ao trabalho normais,

só a energia inquebrantável de

um governo

sem tibiezas, auxilia-

do pela

colaboração de técnicos

nacionais, executará a missão pa-

triótica de resolver cumulativa-

mente o duplo problema

da valo-

rização sanitária do homem e da

valorização econômica da terra.

Por certo, ao govêrno

do pre-

claro Presidente Getulio Vargas se

deparará, no próprio

Brasil, um

viveiro de capacidades profissio-

nais, nos domínios da medicina

tropical, da higiene pública,

da

engenharia hidráulica e da agro-

nomia científica, à altura de es-

boçar o plano grandioso,

de so-

corro às populações,

flageladas por

enfermidades evitáveis, e de assis-

tência técnica à agricultura roti-

neira.

No memorável discurso que

proferiu, no Pará, de volta da sua

excursão aos remotos sertões do

Oeste, prometeu

o presidente

Ge-

túlio Vargas, entre aplausos fer-

ventes de todos os concidadãos,

levar a efeito a emancipação eco-

nômica das regiões malsinadas, as-

sim pela proteção

sanitária dos

caboclos amazonenses, como pelo

amparo oficial à produção

agoni-

sante. Das promessas

à realização

não dista sinão um passo,

no go-

vêrno reconstrutor do Chefe de

Estado. Demonstram os fatos que

não se lhe opõem obstáculos in-

transponíveis, quando

a Nação

apéla para

a clarividência do go-

vêrno.

Assim, mal que

chegou do Nor-

CULTURA POLÍTICA

te, adotou o presidente

Getulio

Vargas a providência preliminar

que se impunha a iniciativa de

tamanha magnitude: determinou

que uma comissão de sanitaristas

fosse examinar, no local, os fato-

res disgenésicos, que

depreciam a

resistência dos trabalhadores, e

as condições deprimentes do meio,

salteado de enfermidades trans-

missíveis.

E' este o primeiro

estádio do

amplo programa

de saneamento,

o que

balizará a entrada dos ban-

deirantes da salvação sanitária

nos sertões martirizados por

um

século de desídia oficial.

Ainda não são conhecidas as ci-

fras reais do obituário, nem fo-

ram trazidos à luz os elementos

de informação colhidos pela

co-

missão especial de inquérito. Tu-

do nos induz a crêr, sem embar-

go, que ministrarão os mais dra-

máticos subsídios sobre as condi-

ções epidemiológicas do Amazo-

nas dos nossos dias. E' possível,

é quasi

certo que

os erros acumu-

lados durante mais de um quarto

de século de boêmia republicana

tenham contribuído para que

se

multiplicassem os algarismos as-

sustadores que

nos deu a conhecer

a expedição cientifica de Carlos

Chagas.

A revalorização do homem

Não existem enfermidades,

transmissíveis, ou não, no quadro

nosológico amazonense, para

o

combate às quais

não correspon-

dam, no arsenal terapêutico ou

profilático, armas eficientes.

A uncinarióse americana, a ma-

lária, as hipovitaminóses, a leis-

hmanióse, a febre amarela, a tri-

panozomíase

— os mais conside-

ráveis fatores de hecatombe e de-

pouperamento físico da

popula-

ção regional,

graças à intervenção

oportuna da assistência médica,

poderão ser, sinão riscadas defi-

nitivamente do obituário, pelo

menos combatidas, com indubi-

tável êxito, pelos

meios curativos,

pela higiene individual e

pela

profilaxia pública.

Identificadas, como estão, as

doenças locais, conhecidos os

agentes patogênicos,

a sua biolo-

sria, os insetos vectores, as formaso 7

clínicas, as condições de contá-

gio e

propagação, os métodos mo-

dernos de diagnóstico, a etiolo-

ei a, os recursos medicamentososo 7

adequados e, por

assim dizer, es-

pecíficos, não faltará às autori-

dades médicas sinão o concurso de

elementos materiais para que

che-

guem à revalorização sanitária dos

homens do Norte: curando os en-

fermos; reduzindo ao mínimo os

fócos de disseminação mórbida;

prevenindo a contaminação dos

sãos.

E' óbvio que

tal obra de sa-

neamento exigirá a cooperação de

especialistas excepcionalmente do-

tados, do ponto

de vista de vigor

físico e do de capacidade profis-

sional. Mais. Sem estar apercebi-

do de verdadeiro sentimento de

abnegação patriótica,

não haverá

pugilo de sábios capaz de arcar

com as responsabilidades dessa

façanha hercúlea. O trabalho no

sertão amazônico jamais

será uma

diversão oficial. Constituirá, an-

tes, um sacrifício premeditado,

permanente, contínuo dos ho-

mens, em prol

da coletividade na-

cional.

Por isto, o saneamento dessa

O SANEAMENTO DO AMAZONAS 107

terra infeliz terá de ser feito por

brasileiros.

Mercê de Deus, sobejam ao Bra-

sil, nesta hora de renovações so-

ciais, discípulos notáveis da gran-

de escola de medicina experimen-

tal, fundada pelo gênio

tutelar de

Osvaldo Cruz. Do seio das novas

gerações de médicos, agrônomos,

higienistas e urbanistas sairão os

elementos exclusivamente nacio-

nais, com que

o Presidente Ge tu-

lio Vargas empreenderá a obra

dentre todas soberba de incorpo-

rar a opulenta unidade federati-

va do extremo Norte à comunhão

brasileira —

saneada, redimida,

purificada, civilisada.

E' escusado imaginar que

a

imensidade oceânica do Amazo-

nas possa

ser reconquistada à sa-

lubridade, de súbito, por

obra

dalguns passes

de mágicos. O

Agro Pontino resiste ainda a ten-

tativas milenares de saneamento.

Capitais da Europa continuam in-

festadas, apesar de constantes es-

forços dos sanitaristas. Os mais

modernos métodos de engenharia

sanitária arruinariam a fazenda

nacional, e ao cabo seriam impro-

fícuos, si se empregassem em ser-

viços de defesa contra as inunda-

ções e drenagem dos

pantanais,

através dos seringais nativos, em

cuja atmosfera húmida vivem ho-

mens audazes, a arrostar a incle-

mência das selvas e a hostilidade

da fauna.

Os grandes problemas

do saneamento da

Amazônia

Naturalmente, o primeiro

tra-

balho do saneador consistirá em

atrair à vida, em centros de po-

pulação condensada, os sertanejos

dispersos pelas

áreas remotas em

que bracejam florestas rarefeitas

de héveas. Terão de ser chama-

dos ao convívio gregário

os habi-

tantes das solidões. Núcleos colo-

niais saneados permitirão

a prá-

tica das medidas de polícia profi-

lática, sob a vigilância permanen-

te de médicos, de urbanistas e de

engenheiros. Nem de outra ma-

neira poderia

conceber-se a ado-

ção de meios eficientes de assis-

tência sanitária, que

vão desde o

tratamento individual dos conta-

minantes até o estabelecimento

das instalações mais ou menos dis-

pendiosas recomendadas

pela en-

genharia urbana.

A higiene pública

moderna des-

vendou os segrêdos da insalubri-

dade. E descobriu os meios de

atenuá-la. Mas, só o otimismo

amaurótico e panglossiano

admi-

rirá a hipótese de ser saneado, de

chofre, um Estado dentro do qual

caberiam, juntos,

Portugal, a

França, a Espanha, a Italia, a

Suiça, a Holanda e a Dinamarca.

Cumpre consignar, ainda, que,

sem concentração prévia

dos agru-

pamentos humanos dos barracões

em povoados

salubres, baldados

serão todos os esforços no sentido

do aproveitamento econômico da

terra.

Preparar regiões circunscritas

para salvar os amazonenses

— eis

o programa.

Nêste sentido, ne-

nhum sacrifício pecuniário

será

grande demais

para a Nação in-

teira. No formoso elogio fúnebre

de Osvaldo Cruz, mais do que

formoso, eruditíssimo, proferido

pela eloqüência incomparável de

Rui Barbosa, aduz-se um exemplo

do que

seria para

a riqueza nacio-

nal a salvação dos párias

herói-

*

108 CULTURA POLÍTICA

cos, que

morrem à míngua, nos

sertões do Amazonas:

"Quando

os

Estados Unidos, em uma epide-

mia de tifo americano que por

éles grassou

no derradeiro quar-

tel do século dezenove, perderam,

por ela, vinte mil homens, dentre

cento e vinte mil acometidos, o

congresso nacional, estimando em

valores pecuniários

a soma do

dano infligido a república, o or-

çou em duzentos milhões de dóla-

res ou cêrca de oitocentos a no-

vecentos mil contos em nossa moe-

da. Ora, adotada para

o cálculo

a mesma base de preço,

tendo-nos

morrido, só aqui no Rio, dêsse

mal, em cincoenta e sete anos,

perto de sessenta mil doentes, ha-

vemos de concluir, segundo a es-

timativa americana, que

o Brasil,

no curso dêsse período,

só nesta

cidade, perdeu,

em vidas huma-

nas sorvidas na voragem da fe-

bre amarela, não menos de dois

milhões de contos de réis. Êste,

o contingente apenas desta capi-

tal. Adicionai-lhe, agora, as par-

celas relativas a todas as outras

no imenso litoral do Norte bra-

sileiro, desde o Amazonas até ao

Espírito Santo, pelo

interior dês-

ses Estados, e, no Sul, através dos

mais populosos,

como S. Paulo,

na metrópole estadual, em Santos,

em Campinas; adicionai-lhe essas

parcelas e apurai onde não irá

parar o total dos milhões de con-

tos de réis, que

a devoradora ca-

lamidade nos terá tragado...".

Não exageraria, sem dúvida,

quem afirmasse

que o Amazonas,

sózinho, perdeu

mais, muito mais,

infinitamente mais, em valor eco-

nômico, durante meio século de

obscurantismo e abandono siste-

mático da defesa sanitária.

Revalorização econômica

da terra

Conjugam-se a proteção

da vi-

da e a exploração inteligente da

terra. E' mesquinha a produção

do homem combalido. E' nulo o

rendimento da gléba poluída.

Quantos não fujam da terra mal-

si nada, despovoando-a, vegetarão

nela, sem frutos.

Aí está por que

o Amazonas é

um deserto. Poderiam nêle viver

folgados cento e cincoenta mi-

lhões de homens. Poderia ser o

"celeiro do mundo". Por enquan-

to não passa

de promessa

de ce-

leiro. Mas, já

é o cemitério de ca-

boclos intrépidos.

O Presidente Ge túlio Vargas

vai valorizar o homem. Logo, va-

lorizará a planície

voraz: sanean-

do-a primeiro, povoando-a

em se-

guida, explorando-a

por fim.

O grande

Estado foi a terra de

promissão dos forasteiros. De-

sentranhava-se em riquezas prodi-

giosas e fáceis. A borracha, nos

tempos felizes, transformava aven-

tureiros em rajás perdulários.

Ca-

da igarapé amazonense rolava em

suas águas lendas do Pactolo.

Manaus, a capital, era a Babilô-

nia de orgias.

Depois, à medida que

o macha-

do do seringueiro depredava a

floresta, sangrando a árvore para

colher o látex, com a mesma des-

preocupação bestial do selvícola

australiano, que

abate a planta

para colher o fruto, iam-se abrin-

do claros na densidade das selvas.

Embrenhavam-se nas matas os

caçadores de seiva. Contamina-

vam os sítios paludosos,

ou eram

picados pelas anófelinas infeccio-

nadas. Plantar, não plantavam

nada. Destruíam, só.

O SANEAMENTO DO AMAZONAS109

Campeou a miséria no paraíso

devastado. Em 1900, os seringais

selváticos do Amazonas produ-

ziam 27.000 toneladas de borra-

cha; em 1910, 40.000

toneladas;

em 1913, 39.000

toneladas. E o

rendimento foi descendo, descen-

do, até despenhar-se em 14.000

toneladas, no ano de 1930.

Entrementes, e ao revés, a se-

mente da hévea aclimada no Ori-

ente, em campos submetidos a

métodos racionais de agricultura,

em fazendas orientadas por

dire-

trizes científicas, dava 4

tonela-

das, em 1900; 8.200, em 1910;

304.000, em 1920, e, dez anos mais

tarde, 800.000 toneladas!

Resultado, aqui: homens arrui-

nados e doentes, terra esterilizada

e deserta. De sorte que

a ressur-

reição do Amazonas terá de mar-

char, pari passu,

com a restaura-

ção sanitária dos trabalhadores.

A missa© médica, que promo-

ver a recuperação da saúde, será

seguida da missão de agrônomos,

que iniciará as

populações agrá-

rias na cultura racional do sólo.

Cidades asseiadas e salubres. Cam-

pos saneados e limpos.

A colonização da

Amazônia

Preparada a terra para

receber

o trabalho do lavrador, onde ir

buscar os homens que

a povoem

e

agricultem?

Admitamos que

vivam dentro

das fronteiras nacionais quarenta

e cinco milhões de habitantes.

Ninguém se atreverá, certamente,

a dizer que

correntes migratórias

brasileiras, deslocadas para as zo-

nas saneadas da Amazônia, sejam

suficientes para

atender as necessi-

dades agrícolas de um Estado que

comporta população

laboriosa su-

perior à da República Americana.

Tanto mais que

temos, nós brasi-

leiros, o direito de aspirar, atento

o ritmo vertiginoso da civilização

moderna, à ascenção rápida da

prosperidade nacional.

E' evidente que

o propósito

das

instituições políticas presididas

por govêrnos emancipados de

pre-

conceitos raciais e obsessões jaco-

binistas —

e ao número dêles, se-

gundo se verifica

pelo vulto das

realizações, pertence

o do Presi-

dente Getulio Vargas —

consiste,

nomeadamente, em adiantar o re-

lógio do progresso

material.

De que

serve sanear um deser-

to, si não o povoarmos

depois?

Solos dadivosos acendem a co-

biça dos homens. Drenado, na

América do Norte, o vale do Rio

Colorado, irrigados os areais sá-

faros, que

distam do sul da Cali-

fórnia às fronteiras áridas do Es-

tado de Arizona, alastrou-se pela

região intérmina, conquistada pe-

la engenharia hidráulica à tirania

do infortúnio climático, uma po-

pulação laboriosa de nacionais e

ádvenas, ávidos de lucro, sôfregos

de ouro. A política

de coloniza-

ção americana orientou as torren-

tes dos novos povoadores,

locali-

zando-os em núcleos, radicando-os

ao solo. O que

era um Saára

inhóspito, até há pouco,

logo se

converteu em fertilíssimo pomar,

uma das glórias

da ciência ame-

ricana, orgulho de estadistas, fon-

te inesgotável de riqueza pública

e copioso celeiro de abastecimen-

to mundial. E, o que

mais é, va-

leu, também, como índice expres-

sivo da capacidade de absorção dos

elementos alienígenas pelas

raças

miscigêneas da América do Norte.

110 CULTURA POLÍTICA

"Governar

é povoar",

eis o afo-

rismo político

de imortal estadista

sul-americano, aquêle êmulo de

Hamilton, de quem

disse certo po-

lígrafo mexicano que

foi

"mara-

vilhoso inventor social e esquisi-

to inventor literário".

"A

his-

tória e a legislação argentinas são

carne e sangue de Alberdi, nas

obras que

legou à sua pátria

o

profundo estadista tucumano".

"Ali,

na Europa —

escreveu Al-

berdi, há um século, em

"Bases"

o seu livro magistral —

sobra, até

o ponto

de constituir um mal, a

população de

que aqui temos ne-

cessidade vital. Chegarão aque-

Ias sociedades a incompatibilida-

des fundamentais, quando possuí-

mos ao seu alcance um quinto

do

globo terráqueo deshabitado? O

bem estar de ambos os mundos

concilia-se casualmente; e median-

te sistema de política

e de insti-

tuições adequadas, os Estados do

outro continente devem propen-

der a enviar-nos, por

imigrações

pacíficas, as

populações que os

nossos devem atrair por política

e

instituições análogas. Esta é a lei

capital e sumária da civilização

cristã e moderna, nêste continen-

te... Nós, europeus de raça e ci-

vilização, somos os donos da Amé-

rica. E' tempo de reconhecer esta

lei do nosso progresso

americano

e tornar a chamar, em socorro da

nossa cultura incompleta, aquela

Europa, que

combatemos e ven-

cemos nos campos de batalha, po-

rém que

estamos longe de vencer

nos campos do pensamento

e da

indústria".

O futuro

Modelando o futuro do Ama-

zonas, a obra do govêrno

resgata-

rá os pecados pretéritos.

Durante

meio século de administração re-

publicana, a

grandeza cósmica do

Amazonas nunca figurou nos cál-

c.ulos dos alquimistas liberais. Sa-

bia-se, vagamente, da existência

dêsse país

de lendas fantásticas e

depravações republicanas. Era

um quisto

enorme encravado no

território da Republica. Vivia à

margem da civilização, sugado o

povo pelas ventosas dos hemató-

fagos, roído em suas energias pe-

los hematozoários de Laveran, es-

poiiado pela praga social dos re-

gatões e atravessadores.

Vai o presidente

Getulio Var-

gas reenxertá-lo na comunidade

nacional. Empreza abençoada,

que significa apenas isto: enrique-

cer o patrimônio geográfico

do

Brasil com um corpo estranho de

um milhão oitocentos e vinte mil

quilômetros quadrados, relegados

ao desprezo pela

incúria crimino-

sa dos velhos estadistas!

Com o seu corpo de técnicos ofi-

ciais, fará o govêrno

ressurgir uma

unidade federativa que

reúne tô-

das as condições de clima, ferti-

lidade, abundância, extensão e ri-

quizas naturais,

para chegar a ri-

valisar, por

si só, com qualquer

das mais poderosas

nações do

globo.

Concluída essa obra beneméri-

ta de patriotismo,

não seria exa-

gero adiantar

que a nossa civiliza-

ção se deslocará

para o extremo

septentrional do Brasil. O Norte

marcará, então, o ritmo do nosso

progresso. Oferecerá hospitalida-

de acêrca de cento e cincoenta

milhões de homens. Ensinará aos

brasileiros do futuro o amor da

vida agrícola. Trará às cidades

do litoral a fartura do seu solo, a

O SANEAMENTO IX) AMAZONAS111

lição da vida honesta, o exemplo

do trabalho e a prova

da nossa

grandeza.

Concorrerá aos mercados do

mundo com os frutos da nossa la-

voura. Carreará para

o Brasil os

excessos de população que

trans-

bordam na Europa desesperada, e

abrirá aos brasileiros cépticos os

braços generosos

da sua natureza

pródiga.

Bem haja, pois,

o govêrno que

vai iniciar a obra de 1 itans, en-

:>randecendo a Pátria.

Mercê dela, veremos então con-

vertida em realidade, pelo gênio

de brasileiros, a profecia

de V on

Humboldt.

O Amazonas será mais cêdo do

que era lícito esperar, o celeiro do

Mundo.

t

A obra social do govêrno

e o

aproveitamento da Amazônia

RAIMUNDO PTXHEIRO

Ex-inspetor escolar no Estado do Pará

Encara êste artigo um outro aspecto do mesmo tema do artigo anterior:

o reer&uimento da Amazônia e a obra social que ali vem realizando o

Govêrno. O autor conhece diretamente os problemas

da região e a percorreu

pelo interior, como inspetor de ensino.

AS

palavras de fé e de en-

tusiasmo patriótico

no fu-

turo grandioso

do Brasil

com que

o Presidente Getulio

Vargas sempre se dirige à Nação,

infundem uma confiança tão

grande nos

propósitos do

govêrno

que a ninguém é lícito, em cir-

cunstâncias tais, recusar a sua co-

laboração à campanha de recons-

trução nacional que

vem realizan-

do, principalmente quando

é sa-

bido o cuidado que

o govêrno

lhe

dispensa, em que pese

a sua des-

valia, como agora.

O que

o Estado Novo

- realizou na

Amazônia

A confiança que

se gera

da pa-

lavra oficial só pode

ser explica-

da, aliás, pela

exatidão com que

o govêrno,

fugindo aos moldes da

época que

o mundo atravessa,

tem resgatado as promessa

feitas

ao País. Tudo o que

o Estado

Novo já

realizou ou continua rea-

lizando no sentido de revigorar o

organismo da Nação, restauran-

do-lhe antigas energias e desper-

tando-lhe forças novas, ou até en-

tão desconhecidas, foi objeto de

promessas formais do

govêrno tal

a certeza de poder

cumpri-las. As

reservas da vitalidade e de capa-

cidade de realização de que

o Es-

tado Novo vem dando fartas mos-

tras, revelam e significam a con-

ciência e a serenidade que

sem-

pre presidem às deliberações do

govêrno no cogitar e resolver os

problemas nacionais,

por mais

complexos ou trabalhosos que

se

apresentem.

A par

dos benefícios sociais e

econômicos advindos da criação

dos ministérios da Educação e do

Trabalho, dando-nos leis sábias de

amparo aos trabalhadores do cam-

A OBRA DO GOVÊRNO E O APROVEITAMENTO DA AMAZÔNIA 113

po e da cidade, ou fomentando a

agricultura, a indústria e o comér-

cio, sem esquecer as inumeráveis

realizações dos demais setores da

administração, tão conhecidas e

aplaudidas teem sido elas, ainda

agora vem o governo

de pôr

mãos

à grande

obra da alta siderurgia,

empreendimento que

deverá ficar

como expressão viva deste decênio

de operosidade.

Ao Presidente Ge túlio Vargas

não seduz apenas governar.

A

ânsia demonstrada por

S. Excia.

de saber o que governa

e para

o

conhecimento exato do que já

peregrinou pelos quatro cantos do

País, é que

explica essa clarivi-

dência que

S. Excia. tem das rea-

lidades nacionais.

Algumas realizações do

decênio Vargas

Foi do contato direto com a

terra e com a gente que

S. Excia.

compreendeu a oportunidade de

muitas das suas mais arrojadas

iniciativas. Não podem proceder

de outra origem, conquistas como

a da Justiça

do trabalho, a lei dos

2/3, as do salário mínimo e aas

oito horas de trabalho, a sindica-

lização classista, a criação dos ins-

titutos de previdência

social, o

reajustamento do funcionalismo

público civil e militar, a lei de

usura, o estatuto do funcionário,

as obras da Baixada Fluminense e

Contra Sêcas, a criação do Insti-

tu to do Livro e do Patrimônio

Histórico, a proteção

ao teatro

nacional, o reaparelhamento das

fôrças do ar, terra e mar, a ele-

trificação da Central do Brasil e

a construção da sua nova estação

principal, a criação dos institutos

do álcool, café, cacáu, mate, sal,

a instituição do crédito agrícola

e industrial, a criação do Institu-

to dos Resseguros, o reaparelha-

mento do Loide Brasileiro, a en-

campação da Amazon River, a

criação do S. N. do Petróleo e

do Cons. Federal do Comércio

Exterior, o recenseamento nacio-

nal, a criação dêsses dois grandes

serviços —

o Instituto Nac. de

Est. Pedagógicos e o Departamen-

to Administrativo do Serviço Pú-

blico, cujos trabalhos de seleção

de valores para

servir ao Estado

tem sido simplesmente útil e no-

tável, como útil e notável foi a

criação do Departamento de Im-

prensa e Propaganda no sentido

de coordenar, amparar e orientar

a nossa vida artística e cultural,

assim como propagar

o desenvol-

vimento a que

atingimos.

A comunhão brasileira

Dessas medidas, um propósito

ressalta inconfundível, evidente: o

interêsse em dar ao homem o má-

ximo de confôrto, de segurança

pessoal e de assistência social

pa-

ra que

êle, fortalecido de corpo e

de espírito possa,

afinal, produzir

mais e melhor para

a coletivida-

de. O indivíduo no Estado No-

vo, quer

seja empregado ou pa-

trão, homem ou mulher, velho ou

criança, intelectual ou simples

operário, nacional ou estrangeiro,

tem uma função social determi-

nada no conjunto das atividades

coletivas, que

lhe dá direitos in-

transferíveis e invioláveis mas que

o obriga a produzir

em correspon-

dência com os benefícios recebi-

dos. Graças a essa compreensão

de responsabilidades, restabeleci-

114 CULTURA POLÍTICA

da a ordem interna e externa, a

comunhão brasileira, surge, já

agora, como uma máquina perfei-

tamente ajustada produzindo

aci-

ma da expectativa.

O restabelecimento da

confiança

A promessa governamental,

tão

desmoralizada que

andava pela

função que

lhe era atribuída nas

plataformas eleitorais, readquire,

assim, o prestígio que

lhe deve

caber, restabelecendo a confiança

que desertára do coração dos bra-

sileiros. Aquêle ceticismo doentio

e profundamente

epidêmico em

que se alimentavam as ideologias

exóticas para gerar

a desarmonia,

está virtualmente extinto. E o

brasileiro que

descria de tudo, in-

clusive de si mesmo, cobra animo

e crê novamente!

O Brasil, porém,

é tão grande,

tão grande que, por

maior que

te-

nha sido a atividade governamen-

tal, se muito se fez, não se fez tu-

do ainda.

Do Rio Grande do Sul ao Ama-

zonas a ação dos poderes públicos

tem realizado obras que

mais pa-

recem milagres. Não há dificul-

dades irremovíveis nem obstá-

culos que

façam deter a marcha

acelerada da máquina administra-

tiva no seu afã de transformar so-

ciai e economicamente o Brasil,

utilizando para

isso as próprias

re-

servas que jaziam

inexploradas.

E' recente a resolução do govêr-

no federal de ampliar os seus ob-

jetivos na Amazônia, onde, se é

um fato que

o caboclo já

travou

conhecimento com os benefícios

de assistência social oferecidos a

todos os brasileiros, não é menos

verdade que

ele ainda

"vive

qua-

si na miséria dentro do maior ce-

leiro do Mundo" —

como disse

Alfredo Ladislau (1).

A complexidade da

limpeza

Que o Presidente Ge túlio Var-

gas não desconhece a complexida-

de da empreza a que

se propoz,

testemunha-o claramente sua vi-

sita ao setentrião, no propósito

de

ver e sentir, êle mesmo, as pró-

prias forças em face da magnitu-

de dos problemas,

tão cioso S.

Excia. tem se mostrado das pro-

messas que

faz. E quando

todo o

País, acompanhando mentalmen-

te S. Excia. através das paragens

mais longínquas e inóspitas dês-

se pedaço

enorme do Brasil, qua-

si esperava a desistência dos seus

alevantados propósitos,

eis que

o

Presidente Vargas, num impulso

muito seu, mais uma vez o sur-

preende e desnorteia, reafirman-

do a sua fé inabalável nos gran-

des destinos do Brasil de hoje,

que compreende a Amazônia tam-

bem!

"Olhos de

quem quiz ver"

S. Excia. viu a Amazônia com

"olhos de

quem quiz ver" e com-

preendeu, com a lucidez extraor-

dinária que

lhe remarca o espíri-

to ágil e empreendedor, que o seu

principal problema é, antes de

tudo, curar o homem, física e es-

piritualmente, para torná-lo apto

a produzir

o máximo. Para que

as riquezas inexgotáveis que

a ter-

rae o rio guardam

invioláveis no

(1) ALFREDO LADISLAU

— Terra Imatura.

I

A OBRA DO GOVÈRNO E O APROVEITAMENTO DA AMAZÔNIA 115

seu seio, como para premiar

o es-

forço do homem, possam

ser con-

venientemente exploradas, urge,

primeiro, dar a êsse homem a for-

ça necessária

para que êle

possa

confiar em si mesmo na luta in-

gente que terá de travar. E' ine-

gável

— e o

governo o sabe

que

nenhum esforço humano poderá

transformar, em dez anos, o In-

ferno Verde num Paraíso. Não

será, talvez, para

a nossa geração

que isso se realizará. Poder-se-á,

porém, só

por isso,

procrastinar o

início dessa campanha nacional,

que a incúria do

passado retar-

dou? Será c^ue os homens de hoje

não se sentiriam imensamente fe-

lizes de poderem

reservar para

as

próximas gerações, que serão car-

ne da nossa carne e sangue do

nosso sangue, a certeza de um fu-

turo grandioso?

Coube ao Chefe

do Govêrno, numa coincidência

notável que

não me furto em as-

sinalar, responder a essas pergun-

tas que

sempre me fiz, no dia em

que, precisamente, há dez anos

passados, nós, os revolucionários

de 30,

lá estavamos, no quartel

do

26 B. C. de armas na mão para

lutar, também, por

um Brasil

melhor!

As riquezas da

Amazônia

A Amazônia nascida da última

convulsão geogênica que

sublevou

os Andes, e mal ultimou o seu

processo evolutivo com as várzeas

quaternárias que se estão forman-

do e lhe preponderam

na topo-

grafia instável, sendo talvez a ter-

ra mais nova do mundo consoan-

te as conhecidas induções de Wal-

lace e F. Hartt, (2)

abrem-se,

(2) EUCLIDES DA CUNHA

agora, com o seu pretendido

apro-

veitamento, perspectivas

fantásti-

cas. Ela tem tudo e tudo pode

produzir. Suas maravilhas tão co-

nhecidas e proclamadas pelos

mais notáveis sábios do mundo co-

mo Wallace, Edward, d'Orbegny,

Martius, Bates, Agassiz, Hartt,

Humboldt e tantos outros que

prelustraram a região só teem ser-

vido, porém,

à nossa vaidade. No

tempo mesmo em que

ela, num

transbordamento extravagante das

suas riquezas inexgotáveis, encheu

o vale de ouro e de aventurei-

ros, foi ainda à vaidade do ho-

mem que

êsse ouro mais ajudou.

Lá estão, ainda, em Belém e Ma-

náus, os vestígios dessa época de

magnificência, a atestar a impre-

vidência do caboclo e a falta de

uma providência governamental

no sentido de orientá-lo, de re-

crutá-lo e aos seus recursos para

que êle

pudesse subjugar comple-

tamente o meio, como agora, sem

aquêles recursos, o govêrno pre-

tende fazer.

Nem só o dinheiro

constroi

Contestando os argumentos de

conceituado economista o qual

me

afirmava —

poucos dias antes da

conferência que

realizei, sobre o

assunto, na Associação Brasileira

de Imprensa, por

iniciativa do

Grêmio Paraense —

ser impossí-

vel o aproveitamento da Amazô-

nia a que

o govêrno

se propõe

sem que para

isso possa

reservar

um numerário que

anda pela

ca-

sa do fantástico, dizia eu: E' sem

dúvida que

nada se faz sem di-

nheiro. Mas será o problema

ape-

nas de dinheiro, como querem

à margem da história.

116 CULTURA POLÍTICA

muitos? O passado

faustoso mos-

tra claramente que

não. Dinhei-

ro e muito convergiu para

a re-

gião

quasi beirando

por êsses

números altos —

lá permaneceu

e

de lá saiu novamente, no seu

eterno fadário, sem deixar, em

troca, a nova civilização que

bem

poderia ter sido criada com êle.

E a verdade é que

deixou até o

homem mais miserável ainda,

com a falta de uma infinidade de

coisas que

lhe tinha sido dado

conhecer. A borracha não custa-

va senão o trabalho de cortá-la.

Agora era preciso

lutar —

a ter-

ra se tornara esquiva! A princí-

pio lutou mesmo, lutou muito,

desesperado como um náufrago

que procura salvação. Depois, aos

poucos, foi

perdendo as energias

e acabou desistindo de tudo! Ho-

je êle é um vencido ainda

— é

mais do que

isso, é um ser doen-

te, física e moralmente, que

con-

tagia tudo com o seu céticismo

enorme. Seus filhos nascem do-

entes do corpo e desde os primei-

ros dias de vida adquirem essa en-

fermidade de alma que

os inutili-

za, que

lhes dá aquele aspecto de

sombras vivendo mecanicamente,

sem vontade, apenas pelo

instinto

de conservação inerente a todo

ser animal —

ou seja aquêle

"as-

pecto esdrúxulo de

povo velho,

velho por possuir

crenças escas-

sas no futuro", como bem preci-

sou Vicente Licínio Cardoso" (3).

Trabalho difícil

e penoso

Não basta, como se vê, inundar

a Amazônia de dinheiro. Nem só

de pão

vive o homem. E' preci-

so, antes, tirá-lo do abatimento

em que

vegeta ainda. Certo, não

será trabalho fácil provocar

o are-

jamento da alma soturna dêsse fi-

lho do norte, cujo céticismo pro-

vêm da sua persuassão,

a priori,

da inutilidade da ação, porque

seu

sub-conciente previne-o

de que

sua ação será fragmentária, des-

contínua, sem unidade social, se-

gundo Menotti dei Picchia

(4).

Ninguém se pertence

inteiramente

Convém demonstrar-lhe o equí-

voco, fazendo-o compreender ao

mesmo tempo que

nenhum indi-

víduo se pertence

inteiramente

pois como membros

que somos,

indistintamente, da coletividade,

não podemos,

segundo a vontade

constitucional, negar a nossa con-

tribuição para

o seu bem estar. E'

preciso que êle

perceba, de resto,

que nenhurrf esforço é vão, con-

soante a velha lei de Lavoisier

pela qual nada se cria ou se

per-

de na Natureza. Em suma: urge

renovar-lhe as esperanças do mes-

mo modo que

reativar suas ener-

gias embotadas. A esperança

ge-

ra a ação. E' mesmo, como preci-

sa Alexis Carrel, um dos fatores

mais ativos do ajustamento do

indivíduo a um meio desfavorá-

vel (5).

E' preciso,

assim, des-

mentí-lo mesmo —

quando êle

pe-

la boca de Aiuna afirma:

"O

ex-

tremo norte nunca existiu, e,

quem sabe?

jamais existirá talvez

para os estadistas do sul"

— como

o Presidente Ge túlio Vargas a ca-

ba de fazer!

(3) V. LICÍNIO CARDOSO — À margem da história do Brasil.

(4) MENOTTI DEL PICCHIA - Soluções Nacionais.

(5) ALEXIS CARREL — O homem, êsse desconhecido.

A OBRA DO GOVÊRNO E O APROVEITAMENTO DA AMAZÔNIA 117

Conhecido o homem e

suas realizações

Todo o Brasil conhece o seu

Presidente e as suas realizações.

O caboclo sabe, inclusive, que

a

êle deve o regresso dos últimos

nordestinos —

aqueles

"brabos"

que tanto concorreram

para o fas-

tígio de outiora —

que souberam

sua terra saneada e livre, afinal,

das agruras das sêcas! E êle bem

o compreende o que

isso repre-

senta!

Ninguém pode

negar que

a vi-

sita do Chefe do Govêrno, abriu,

naquêle sentido, clareiras novas

no céu carrecado da vida arnazô-

nica. Suas palavras

de fé vale-

ram, por

certo, como o som de

um novo canglor conclamando a

gente do vale também

para a cam-

panha de redenção

que transfor-

mou o Brasil do Pindorama dos

Poetas na oficina de trabalho em

que, hoje, se forjam e se retem-

peram as energias nacionais!

V

1

O seguro social e a sua

evolução no Brasil

ALCIDES MARINHO RÊGO

Autor de uma obra esplêndida sôbre "A

Vitória do Direito Operário no

Decênio 1010-1940"; médico dc institutos de aposentadoria e pensões

- o

nome que assina êste artigo focaliza uma das melhores e mais humanas

conquistas da legislação social brasileira: o seguro socai, que se traduz

auer no seeuro contra acidentes de trabalho, quer na creaçao das Caixas

e Institutos de Aposentadorias e Pensões, quer na assistência medico-nos-

pitalar ao trabalhador.

"El seguro social supera Ias divisiones que pro-

vienen dei reparto desigual de la produccion,

resti-

tuye la vida econômica y social a los indivíduos que

se ven privados de su capacidad de trabajo, dando-les

una parte modesta, pero

cierta, de los bienes indis-

pensables para una existencia digna de ser denomi-

nada humana".

(JÚLIO BUSTOS

— La Seguridad Social)

A

INSTITUIÇÃO dos segu-

ros sociais, relegada duran-

te muitos anos a plano

in-

ferior, mesmo nos países

em que

as leis trabalhistas tiveram maior

desenvolvimento, passou a consti-

tuir um dos problemas

mais im-

portantes para o mundo de após-

guerra.

A experiência alemã, cujos re-

sultados haviam sido considera-

dos de grande

utilidade, durante

o período

de conflagração mun-

dial, induziu os demais povos

ci-

vilizados a adotarem, de modo

rápido, novos métodos de seguro

social, tanto para

os riscos de ve-

Ihice, doença, invalidez e morte,

como também para

os de desem-

prego involuntário, uma das con-

seqüências mais trágicas da últi-

ma grande guerra.

Acompanhando a evolução da

política social

processada no velho

continente os países

americanos

foram também, gradatiyamente,

aperfeiçoando a sua legislação sô-

bre questões

do trabalho, mesmo

sem a pressão

de fatores que

tor-

navam cada vez mais complexa a

tarefa dos govêrnos

europeus. Os

efeitos do desenvolvimento indus-

trial vertiginoso c dos sistemas

de racionalização do trabalho, o

"chômage", as lutas de classes,

foram questões que

não agitaram

O SEGURO SOCIAL E A SUA EVOLUÇÃO NO BRASIL119

as populações

da América latina,

num sentido profundo,

ou mes-

mo não chegaram a tomar aspe-

cto apreciável.

Os Seguros Sociais, como escre-

veu o professor

Hitze, devem ser

considerados como medidas para

o asseguramento do salário justo,

pois

"o salário

percebido pelo

trabalhador, enquanto é apto pa-

ra o trabalho e pode

encontrá-

lo, não só há de cobrir suas ne-

cessidades nos dias de inatividade,

sinão também a amortização do

capital representado pelos cuida-

dos e pela preparação

recebidos

durante a juventude,

assim como

os desembolsos ocasionados pelas

enfermidades, a

perspectiva da ve-

lhice e, finalmente, os riscos para

a saúde e à vida inherentes ao

trabalho". Êsse caráter comple-

mentar do salário, atribuído aos

seguros sociais, define, de manei-

ra precisa,

o conceito que se deve

emprestar ao valimento do traba-

lhador, cujo único, capital, duran-

te tôda a existência, se resume no

rude labor quotidiano. A deli-

nição de Hitze, bem entendida,

se refere, integralmente, ao tra-

balhador com orientação e pre-

paração profissionais.

Seguro cofitTCL acidentesde

trabalho

A primeira

modalidade de se-

guro social posta

em prática

no

Brasil visou os acidentes de tra-

balho, tendo sido instituída com

a lei n.° 3.724. de 15 de

Janeiro

de 1919-

O decreto n.° 24.637, de 10

de Julho

de 1934- veiu ,dar

um

sentido mais amplo ao risco pro-

fissional, equiparando aos aci-

dentes a doença profissional. Foi

essa uma grande

conquista da

nossa legislação trabalhista pois,

como ensina Ferrannini,

"em me-

dicina se considera enfermidade

tudo o que

não é estado fisiolo-

gico e ao conceito de enfermidade

não se pode

opor outro conceito

que o de estado normal da saú-

de". Não se justificava,

assim,

qualquer antagonismo entre o

acidente de trabalho e a doença

profissional. As diferenças entre

ambos residem tão sòmente no

modo por que

se processa

o seu

desenvolvimento. Esta distinção é

bem focalizada por Boccia:

"a

anormalidade e a imprevisão, re-

quisitos para dar vida

jurídica

ao conceito de acidente de traba-

lho, não existe no conceito de en-

fermidade profissional, que é re-

sultante de elementos danosos,

necessariamente relacionados com

um ofício determinado e, por

conseguinte, nem anormais nem

imprevisíveis. Esta diferença, con-

tinua o autor de

"Medicina dei

Trabajo", é tão evidente que,

às

vêzes, a mesma casualidade lesiva

pode atuar seja como acidente,

seja como enfermidade profissio-

nal, o que

vale dizer, ora em for-

ma violenta, rápida, imprevista,

ora em forma contínua, lenta, co-

nhecida".

Encontram-se, porém, em am-

bas as ocorrências, os mesmos ele-

mentos que caracterizam o risco

de trabalho, podendo conduzir à

eventualidade de um dano. A

condição precípua do direito à

indenização é que

sejam, uma ou

outra, resultantes exclusivamente

do trabalho, ou a êle inerentes

ou peculiares.

120 CULTURA POLÍTICA

As indenizações

i

As indenizações, de acôrdo com

a lei vigente, são calculadas em

relação às seguintes modalidades

de acidente:

a) morte;

b) incapacidade permanente

e total;

c) incapacidade permanente

e parcial;

d) incapacidade temporaria e

total;

e) incapacidade temporaria e

parcial.

O empregador, além das inde-

nizações estabelecidas, é obrigado,

"em todos os casos e desde o mo-

mento do acidente", à prestação

de assistência médica, farmacêu-

tica e hospitalar.

A incapacidade parcial

ou to-

tal si durar, quando

temporária,

mais de um ano, passa

a ser con-

siderada permanente.

Enquanto em alguns países

os

seguros contra acidentes de tra-

balho são realizados pelo pró-

prio estado ou

por instituições

autárquicas, no Brasil vigora, ha-

bitualmente, o regime de institui-

ções privadas. A

garantia de exe-

cução da lei é assegurada pela

obrigatoriedade dos empregado-

res a ela sujeitos terem contrato

de seguro contra acidentes, co-

brindo todos os riscos previstos,

ou, na ausência do mesmo, de fa-

zerem, em estabelecimento de cré-

dito garantido pelo poder públi-

co, um deposito na proporção

de

2o:ooo$ooo para

cada grupo

de 50

empregados ou fração, até ao má-

ximo de 200 contos.

Algumas instituições de previ-

dência social, como o Instituto de

Aposentadoria e Pensões da Esti-

va, garantem

os seus associados

contra os acidentes de trabalho,

cobrando, obrigatoriamente, dos

empregadores e dos sindicatos a

êle subordinados, os respectivos

prêmios do seguro.

As Caixas de Aposenta-

dorias e Pensões

A segunda fase dos seguros so-

ciais, em nosso país,

é demarcada

pela creação de Caixas de Apo-

sentadoria e Pensões para

os fer-

roviários, instituídas, em 1923,

pelo dec. n.°

4.682.

A forma de constituição do pa-

trimônio adotada foi a de trípli-

ce contribuição. Em regime de

verdadeira cooperação social, con-

correm empregados, empregado-

res e o Estado, em quotas

iguais,

para a formação dos fundos ne-

cessários.

O sistema de aposentadoria e

pensões estendido em 1926 aos

portuários, começou a

generali-

zar-se, graças

ao decreto n.° 19.497,

de 17 de Dezembro de 1930. As

Caixas, que

nêsse ano somavam

42, já em 1934

perfaziam o total

de 173. A receita global

das mes-

mas, que

em 1923 atingia a

13 • 592:96o$ooo,

elevava-se, em

19552, a 92.883:4251214.

Em 1937,

o montante das arrecadações dava

a cifra de 127.878:7171400.

Iniciou-se, então, a formação

dos Institutos de Previdência por

categoria profissional,

de modo a

que pudesse o seguro social ficar

centralizado em organizações de

grande vulto, capazes de, à custa

da concentração dos seus efetivos,

garantir a sua estabilidade finan-

ceira, sem os riscos das pequenas

O SEGURO SOCIAL E A SUA EVOLUÇÃO NO BRASIL 121

Caixas, que

se disseminavam, com

rapidez, por

todo país.

Um dos mais reputados técni-

cos do Bnreau International du

Travail, S. A. Tixier, após exa-

minar a nossa organização de se-

guro social, em fase ainda de ex-

perimentação, escreveu interessan-

te relatório, cheio de observações

oportunas, que

saiu publicado

no

Boletim do Ministério do Traba-

lho, Indústria e Comércio, n.° 5,

de Janeiro

de 1935.

Assinalava o articulista as prin-

cipais medidas necessárias à solu-

ção do

problema de constituição

dos institutos de previdência

so-

ciai, medidas que, acrescentava,

coincidiam com a opinião recolhi-

da entre os nossos técnicos.

Essas medidas eram as seguin-

tes: a necessidade da fusão das

Caixas existentes, numerosas de-

mais; a urgência da elaboração

de bases estatísticas e de previsões

atuáriais; a utilidade de uma coor-

denação dos textos dos diversos

decretos relativos às Caixas de

Aposentadoria e Pensões.

O esboço de solução, então tra-

çado por A. Tixier, comportava

tres diretivas. A primeira,

mais

radical, consistia em crear um só

"Instituto Nacional de Seguros

Sociais", em que

seriam segurados

todos os trabalhadores do

país,

plano de execução dificílima em

face da grande

extensão territo-

rial a ser considerada. A segunda,

de forma conciliatória, previa a

creação de caixas independentes

em cada Estado, com o mínimo

de 5.000

associados, inspeciona-

das por

um Instituto Central de

Seguros Sociais e garantidas por

um Fundo Central de Resseguro.

A terceira planejava

a instalação

de vários Institutos Centrais, ten-

do como órgãos de execução cai-

xas regionais e agências locais, sob

a fiscalização do Conselho Nacio-

nal do Trabalho.

As reformas sugeridas pelo

di-

retor dos Seguros Sociais de Gene-

bra, dando maior apoio às ten-

dências dominantes no espírito

dos nossos especialistas na maté-

ria, foram sendo cuidadosamente

encaminhadas, já com o auxílio

imprescindível de dados positivos,

fornecidos pelo

Serviço Atuarial

do Ministério do Trabalho, crea-

do em 1934.

O plano

de fusão das pequenas

caixas fez reduzir, inicialmente,

as 186 que

existiam em 1937 a

103. As novas instituições resul-

taram em conseqüência da fusão

verdadeira de diversas pequenas

caixas, ou da incorporação de al-

gumas menores a outras de maior

estrutura.

Foram surgindo, progressiva-

mente, e de acôrdo também com

as novas diretrizes de organização,

outros organismos de seguro so-

ciai, formados, não em relação às

emprezas, como o são as Caixas,

porém, sob base

profissional. As-

sim sucedeu quanto às classes dos

marítimos, comerciários, estivado-

res, industriários e empregados em

transportes e cargas. O incremen-

to notável trazido pelos grandes

Institutos ao sistema de previdên-

cia social pode

ser aferido pela

simples verificação do patrimô-

nio total, realizado anualmente.

0Em 1938, ultrapassava o mesmo

meio milhão e excedia, ao fim do

exercício de 1939» a quant^a

vu^"

tosa de um milhão e meio de con-

tos de réis.

122CULTURA

POLÍTICA

Os benefícios das aposen-

tadorias e

pensões

As aposentadorias e as

pensões,

isto é, o auxílio direto ao asso-

ciado e o auxílio prestado à famí-

lia no caso do seu falecimento,

constituem os benefícios

funda-

mentais dados pelas Caixas e

pe-

los Institutos de Aposentadoria e

Pensões. Outras modalidades de

auxílio são, porém, dispensadas

aos segurados da Previdência

So-

ciai: assistência médica e hospi-

talar, auxílio-maternidade, auxí-

lio-funeral, empréstimos

em di-

nlieiro e construção de casa pro-

pria.

As aposentadorias, a

princípio,

tanto podiam ser ordinarias

co-

mo por

invalidez. No primeiro

caso, bastava que o associado

ti-

vesse, no mínimo, 5° anos de ida-

de e 30

anos de serviço efetivo, ou

60 e 20 respectivamente. Essa

prá-

tica, recentemente abolida, cons-

tituiu, sem dúvida, experiencia

arriscada. A despesa sempre cres-

cente com o pagamento

das apo-

sentadorias por invalidez mostrou,

ao fim de algum tempo, a situa-

ção periclitante que resultaria, si

fossem mantidas as aposentado-

rias ordinarias. O montante

das

importâncias correspondentes

às

últimas, superior ainda ao rela-

tivo às primeiras,

não poderia

permitir fossem estas atendidas,

dentro de um futuro próximo,

sem dano visível para a estabili-

dade financeira das instituições.

A resolução adotada pelo govêr-

no, que determinou

a suspensão

das aposentadorias ordinárias,

constituiu medida mais que

aÇe^"

tada. O afastamento de indiví-

duos ainda válidos, embora com

longo tempo de serviço ativo, não

se iustifica, razoavelmente, para

um regime de perfeito

equilíbrio

social, quando do mesmo decor-

rem conseqüências prejudiciais.

O

auxílio-velhice, no entanto, per-

manece, por intermédio

da apo-

sentadoria compulsória, desde que

o tempo de serviço não seja infe-

rior a dez anos.

Nenhuma aposentadoria pode,

atualmente, ser inferior a 200$000,

nem superior a 2*.ooo$ooo.

O projeto

de reforma da legis-

lação sôbre Caixas de Aposenta-

doria e Pensões, já concluído, es-

belece maiores vantagens para a

aposentadoria por invalidez, cuja

concessão dependerá, apenas, do

período de carência e não mais

do tempo de serviço ou de contri-

buições. As pensões

obedecerão,

de acordo com o mesmo projeto,

ao critério de proporcionalidade

ao número de beneficiários do se-

gurado. A cada um destes corres-

ponderá uma quota

suplementar,

de 10%, além da quota

fixa de

25 %, calculadas sôbre o valor de

aposentadoria por invalidez.

A assistência médico-

hospitalar

A assistência médico-hospitalar

dispensada nas instituições de se-

guro social comporta, até agora, o

tratamento geral em ambulatório

e o internamento hospitalar, nos

casos de intervenções cirúrgicas e,

de acordo com rècentíssimo de-

creto, nos casos de doenças men-

tais. O auxílio em espécie é con-

cedido aos segurados que tenham

direito à aposentadoria por in-

validez.

O govêrno

vem cogitando, há

bastante tempo, da creação de um

O SEGURO SOCIAL E A SUA EVOLUÇÃO NO BRASIL 123

seguro-doença especial. Muito se

tem debatido, ultimamente, sobre

tal questão.

Essa modalidade de

seguro, constituída de maneira

independente, graças

à arrecada-

ção de uma taxa à

parte, permi-

te assegurar ao trabalhador en-

fermo, não apenas os recursos ne-

cessários ao tratamento, seja êste

de natureza médica, hospitalar ou

sanatorial, preventivo

ou curati-

vo, mas ainda o pagamento

de um

salário adequado às suas necessi-

dades econômicas.

O seguro-doença ideal é, indis-

cutivelmente, o que

abrange, de

modo indistinto, qualquer

espé-

cie de enfermos. Um seguro es-

pecial contra a tuberculose, já

estudado por uma comissão de

técnicos, nomeados pelo

Ministro

do Trabalho, poderia

constituir

o início de um seguro geral,

si a

instituição imediata dêste se afi-

gurasse de difícil realização. A

tuberculose, no Brasil, atinge a

cifras muito altas, tanto de mor-

bilidade como de mortalidade. O

desfalque levado, à sua conta, ao

patrimônio dos órgãos de

previ-

dência social tem merecido par-

ticular atenção dos que

cuidam do

assunto, daí surgindo a idéia de

se atender à questão por

meio do

seguro-tuberculose.

Não apenasmente curativa, po

rém e sobretudo preventiva, se-

ria a campanha contra a peste

branca entre os beneficiários do

seguro social, visto como as Cai-

xas e os Institutos de Aposentado-

ria e Pensões prestariam, de acor-

do com o projeto

elaborado pela

citada comissão, tanto o auxílio

em natureza (médico e higiêni-

co), mediante a instalação de vas-

ta rede de dispensários, sanato-

rios e preventórios,

como o auxí-

lio em espécie, com o pagamento

de 50

a 75 %

do último salário

básico do associado.

O seguro contra a tuberculose,

si realizado, não daria, por

certo,

solução definitiva ao problema

de

assistência ampla às massas tra-

balhadoras, no interêsse de pre-

servar-lhes a saúde e a própria

vida. Seria, contudo, outro avan-

ço no terreno das realizações do

seguro social, que vai sendo con-

solidado, no Brasil, de maneira

auspiciosa.

Em política

social, embora ten-

do à vista paradigmas

das expe-

rimentação feita alhures, qual-

quer problema a ser atendido,

reclama longo e acurado estudo

das condições econômicas e so-

ciais ambientes, baseado em da-

dos estatísticos e previsões

atua-

riais, o que

não permite,

muita

vez, aos que

fazem julgamento

supereial ou afoito, uma compre-

ensão justa da demora relativa

que acompanha a elaboração de

muitas decisões.

O patrimônio

das institui-

ções de

previdência

O patrimônio

das instituições

de previdência,

representando

grandes reservas da economia ge-

ral, não pode

tender para

o con-

gelamento; precisa ser aplicado de

maneira vantajosa, porém

de mo-

do a que

os valores voltem a cir-

cular, estimulando o desenvolvi-

mento de novas fontes de rique-

za para

o país, que

são, em última

análise, vantagens maiores para a

coletividade.

Essa orientação vem sendo se-

guida pelo governo, nas disposi-

ções adotadas em relação ao em-

124CULTURA

POLÍTICA

prêgo das importâncias

acumula-

das pelo sistema

do seguro so-

C13.1 . . i» »¦

A inversão de capitais,

limita-

da, de início, à tomada de títulos

públicos, passou a ser feita, mais

tarde, na aquisição de casas desti-

nadas à moradia dos segurados e

na creação de carteiras de empres-

timos. O crédito agrícola, por úl-

timo estabelecido, tornou ainda

mais amplo o campo de circulaçao

do dinheiro arrecadado,

cuias dis-

ponibilidades careciam

de mobili-

zação garantida e compensadora.

As operações imobiliárias,

rea-

lizadas pelas Caixas e Institutos

de Aposentadoria e Pensões,

re-

presentam uma das formas de ati-

vidade mais úteis às classes traba-

lhadoras. Atendendo

à circuns-

tância de serem as habitações pro-

letárias, na sua mór parte, precá-

rias, quanto aos requisitos de con-

fôrto e higiene, além custarem

preço elevado,

determinou o

go-

vêrno pudessem ser empregados,

na solução dêsse problema, até

,0% dos saldos das instituições

de previdência

social. Milhares

de habitações, inúmeras

vilas e

verdadeiras cidades operárias

teem

surgido, em todos os estados, em

conseqüência dessa orientação,

atestando, de maneira eloqüente,

os grandes benefícios que

vai pro-

duzindo, em nosso país,

o seguro

social.

1

Evolução da

política

imigratória do Brasil

Ul —

Primeiro período de expansão, até 1555

ARTUR HEHL NEIVA

Membro do Conselho de Imigração e Colonização

e Diretor Geral do Expediente e Contabilidade

da Polícia Civil do Distrito Federal.

NO

ARTIGO precedente

mos-

tramos de que

forma ha-

viam sido, por

D. João

III,

encaradas as solicitações veemen-

tes de Nobrega, logo após sua che-

gada ao Brasil, no sentido de ser

incentivado o povoamento,

trans-

crevendo trecho da carta que,

em

Setembro de 1550, o monarca es-

crevera a Per o Anes do Canto,

nos Açores, procurando

facilitar

a canalização, para o nosso

país, de

forte corrente imigratória de

ilhéos.

As mesmas medidas de

quatro séculos

atrás

Êssc documento merece

^

uma

análise mais detida, em

^

virtude

de sua importância capital, por-

que vein mais uma vez

provar co-

mo, já

naquela época, o Govêrno

empregava em relação ao proble-

ma em estudo a maior parte

das

medidas que ainda hoje, decorri-

dos quasi 4

séculos, são postas

em

prática para atingir o mesmo re-

sultado. Embora julgue, pessoal-

mente, bastante aleatória a apli-

cação irrestrita do princípio

da

causalidade aos fenômenos histó-

ricos, é forçoso convir que, pelo

menos nêste caso, temos um dos

mais belos exemplos da demons-

tração da existencia do nexo cau-

sal entre um determinado proble-

ma social e as providências

toma-

das pelo

Poder Público desejoso

de seguir a mesma norma políti-

ca, embora separadas por um

pe-

ríodo de tempo de quasi 400

anos.

Com efeito, o problema que

então avultava era o mesmo, pra-

ticamente, de hoje em dia —

en-

cher o país

de gente

boa, que

ete-

tuasse a tnise en valeur das suas

126CULTURA POLÍTICA

riquezas potenciais,

e a atitude

do Govêrno, em última análise,

também não se modificara — agir

no sentido de fomentar o

povoa-

mento com elementos nessas con-

dições. ,

Como salientei acima, geral-

mente, em historia,

r *

causas não produzem

eleitos equi-

valentes, afirmativa que seria ab-

surda nas ciências matemáticas,

apesar dos paradoxos

logicos

deram origem às tres escolas do

pensamento matemático

moderno,

os logísticos de Rússel, os intuicio-

nistas de Brouwer e Weyl e os

formalistas de Hilbert,

irreconci-

liavelmente em conflito. Já

nas

ciências físicas, Heisenberg, Born

e Dirac atacam de frente o prin-

cípio, embora Planck e Einstein

mantenham a

possibilidade

de

sua existência. E* fato comum

que, nas ciências biológicas, a

ação do princípio

da causalidade

é bem mais imprecisa, o mesmo

remédio, por exemplo, provocan-

do reações diferentes, embora em-

pregado de maneira semelhante,

em pacientes

diversos. E, por

conseguinte, natural que, dada a

complexidade e variabilidade

das

causas, freqüentemente imponde-

ráveis ou desconhecidas, que afe-

tam os fenômenos sociais, seja

praticamente

ilusória sua aplica-

cão rigorosa a casos suficientemen-

te separados espacial ou tempo-

ral mente.

Fenômenos diferentes

provenientes

da

mesma causa

Exemplificando: a luta entre o

rei e os nobres, com vantagem

para êstes, conduziu, na Inglater-

ra, à constituição de um estado

forte, do tipo parlamentar,

plena-

mente apto a progredir

durante

séculos e a manter o equilíbrio in-

terno, indispensável a

qualquer

nação organizada; e na Polônia a

uma situação de verdadeira anar-

quia, impeditiva cia criação de um

estado intrinsicamente habilitado

à estabilidade, que permitiu sua

desaparição em fins do século

XVIII. E assim poderiam

ser mui-

tiplicadas as instâncias em que,

pela ação de outras concausas, os

efeitos foram divergentes, embo-

ra os mesmos fenômenos históri-

cos atuassem primitivamente.

Passando à análise do documen-

to em questão,

vemos que:

1) o

rei deseja a imigração para o Bra-

sil; 2) Para incentivá-la, dá um

certo número de facilidades aos

emigrantes açorianos,

vantagens

essas de natureza econômica, a)

fornecimento de viagem gratuita,

b) alimentação e c) doação de

terras.

A política

real agia, pois,

com

perfeito acêrto psicológico,

jo-

gando com vários fatores da na-

tureza humana — o espírito de

aventura, o desejo de lucro e a

ambição de ser proprietário,

to-

dos tres molas fundamentais ^de

ação, embora muitas vêzes recôn-

ditas, especialmente o último que,

excitava o sentimento de fome

de

terra, tão comum nos povos

euro-

peus. Era o

que se

poderia cha-

mar de imigração colonizadora

em mais alto gráu.

Idênticos os incentivos,

hoje, empregados

Pois bem: Hoje, ainda, os incen-

tivos empregados são idênticos. Os

govêrnos, atualmente, quando

de-

evolução da política imigratória no brasil127

sejam fomentar a imigração, lan-

çam mão dos mesmos recursos.

S. Paulo, por

exemplo, financiou

o transporte marítimo dos imi-

grantes até 1927, conforme dados

do Dr. Henrique Doria de Vas-

concelos, grande

autoridade no

assunto, que

em brilhante artigo

sobre as Oscilações do movimen-

to imigratório no Brasil, publi-

cado no n.° 2, vol. 1, da Revista

de Imigração e Colonização",

pp. 211-233, demonstra à sacieda-

de o paralelismo

existente entre

as quantias

despendidas nessa ru-

brica e o número de imigrantes

entrados naquêle Estado. Mais

recentemente ainda, o Estado de

Minas Gerais despendeu, em

1940, 25o:ooo$ooo a título de

adiantamento para o

pagamento

das passagens

marítimas para

um

certo número de ilhéos portugue-

ses, provenientes

da Ilha da Ma-

deira.

Concomitantemente, usa-se na

atualidade, apenas de maneira

modificada pelas circunstâncias

presentes

— é

preciso nunca esque-

cer que

o período que

medeia en-

tre o documento e a data de ho-

je, alterou totalmente as condi-

ções do mundo

— o atrativo da

terra, o desejo de ser proprietá-

rio de um imóvel rural, facili-

tando-se ao máximo o pagamen-

to por parte

do imigrante, o qual

poderá ver satisfeita sua ambição

num prazo que

depende exclusi-

vãmente do seu trabalho indivi-

dual.

Finalmente, pode

ser traçado o

paralelo entre os mantimentos

El-Rei mandava fornecer aos imi-

grantes e a assistência hoje em dia

prestada pelos órgãos competen-

tes sob a forma de empréstimo e

nas doações in natuxa de semen-

tes, ferramentas e utensílios indis-

pensáveis ao

pleno aproveitamen-

to do terreno a ser colonizado.

As colunas mestras do

fomento imigratório

Êstes tres fatores — subvenção

ou auxílio para

as passagens,

doa-

ção ou cessão de terras

por quan-

tia mínima e assistência sob tôdas

as suas formas, técnica, social ou

financeira, — constituem ainda

nêste momento, as colunas mes-

tras de qualquer política

de fo-

mento da imigração, visando in-

fluir, de maneira positiva,

sôbre

o povoamento

do solo. São, em

pleno século XX, absolutamente

indispensáveis, embora associa-

das a outras, em todos os progra-

mas de imigrações colonizadoras,

sendo encaixadas em todos os pia-

nos de colonização técnicamente

organizados.l J

Profunda a visão dos

estadistas lusos do

cinquecento

\

Sentimos, pois,

mais uma vez, a

transcendência das medidas to-

madas, em meiados do século

XVI, pela

Coroa portuguesa

em

relação ao Brasil, e a profunda

visão das realidades dos grandes

estadistas lusos do cinquecento.

Era apenas natural que

o Rei

dêsse conhecimento, ao Governa-

dor Geral, dessa sua política,

des-

dobrando-a em detalhes aplicá-

veis ao Brasil. Foi o que

ocorreu,

conforme se verifica do alvará pu-

blicado a pp. 333"^ vo*'

XXXV dos Does. Hist., e que pe-

la sua suma importância aqui

transcrevo;

128 CULTURA POLÍTICA

"Eu El-Rei faço

saber a Vós

Thomé de Souza do Meu Conse-

lho, e Capitão da Bahia do todo-

los Santos, e Governador das ou-

tras Capitanias, e terras do Br a-

sil, que

havendo eu respeito ao

muito que

importa a serviço de

Deus, e Meu haver nessa Cidade

do Salvador; e nas outras Povoa-

ções dessas Partes moradores, e

ahastança, que

as possam povoar,

e aproveitar em Engenhos e Fa-

zendas de assucares, que

lá se en-

nohreçam, e que quanto

com mais

brevidade se nisso prover

tanto

mais cedo as ditas terras se pode-

rão segurar, e dar novidades, e

rendimentos; e para que

muitos

com elles por

vontade folguem

de

empregar lá suas fazendas,

e de

se irem lá viver; Hei por

bem,

que toda a

pessoa, que a sua custa,

e despesa se for

a essa Cidade, e

Povoações para

nellas viver e as

povoar, e aproveitar neste anno

de 1551, e no que

virá de 1552,

e assim os que

lá mandarem no

dito tempo a fazer

de novo Enge-

nho de assucar, ou reformar os

que tinham nessa Capitania des-

sa Bahia, e na do Espirito Santo

de Vasco Fernandes Coutinho an-

tes de se despovoarem, sejam es-

cusos de pagarem

o Dizimo, que

me pertence

de suas novidades por

tempo de cinco annos, que

come-

çarão a correr de sua chegada a

terra, onde fizerem

seu assento

em diante, e isto se entenderá as-

sim nessa Capitania, como em

cada uma das outras dessa terra,

e os Lavradores, e outras Pessoas,

que nos ditos dois annos tenho

ordenado, que

vão das Ilhas da

Madeira, e dos Açores, e de São

Thomé, e de outras Partes para

moradores da dita Cidade do Sal-

vador, e que

mando dar a custa

de minha Fazenda embarcação, e

mantimento para

a viagem e para

alguns mezes em terra serão es-

cusos de pagarem

o dito Dizimo

de suas novidades por

tempo de

tres annos de suas novidades di-

go annos de sua chegada em di-

ante. E porém

sendo algum dei-

les Carpinteiros da Ribeira, ou

de Casas, Calafates, Tanoeiros,

Ferreiros, Serralheiros, Besteiros,

Pedreiros, Cavoqueiros, Serrado-

res, ou Oleiros, os taes por

respei-

to dos seus Officios gozarão

da

dita Liberdade por

tempo de

cinco annos pela

maneira sobredi-

ta, posto que

houvessem embar-

cação, e mantimento para

a via-

gem a custa de Minha Fazenda; e

uns, e outros pagarão

aos Capitães

sua redizima, e os mais Direitos,

que lhe

pertencem; e aos meus Of-

ficiaes qualquer parte, que lhes

couber haver dos seus mantimen-

tos; porque

a mercê, que

lhes as-

sim faço

é somente de que fica

li-

vre para

Mim do dito Dizimo por

Me pertencer.

Notifico-vol-o as-

sim, e ao Provedor-mór de Mi-

nha Fazenda, ou Almoxarifado

faça fazer um titulo, em

que re-

giste as Pessoas,

que nestes ditos

dois annos lá forem

viver, e fize-

rem, ou mandarem fazer

Enge-

nhos novos, ou reformar, os que

dantes tinham com declaração,

dos que foram,

ou mandaram a

sua custa, e dos que

houveram a

dita embarcação, e mantimentos

para cada um

gozar da dita liber-

dade pela

maneira sobrédita por

este só Alvará, o qual,

ou o tras-

lado delle por

vós assignado, e

Sellado com o Sello de Minhas

Armas valerá durante o dito tem-

po, como se

fosse Carta em

fór-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL 129

ma, posto que

não fosse passado

por minha Chancelíaria. Feito

em Almeirim a 20 de Julho de

Comentando, observamos que:

1) o Govêrno quer povoar;

2) De-

seja aproveitar economicamente a

região, pela

instalação de enge-

nhos e fazendas de açúcar; 3)

Pa-

ra cumprir seus objetivos, isento

da Dízima real —

vantagens de na-

tureza econômica —

os que

volun-

tariamente se constituíssem po-

voadores, por 5

anos, prazo

êsse

reduzido a 3

anos para

os ilhéos

que se hajam aproveitado das van-

tagens oferecidas pela

carta ante-

riormente transcrita, a Pero Anes

do Canto; 4)

Concede vantagens

especiais aos técnicos enumerados,

equiparando-os, para

efeito de

isenção de impostos, aos povoado-

res à custa própria,

embora se ha-

jam aproveitado das concessões

feitas aos ilhéos; 5)

Finalmente,

manda estabelecer um registro

dêsses imigrantes.

O equilíbrio econômico

da colônia

Torna-se necessário frisar, aqui,

especialmente os pontos

seguintes.

Preliminarmente, o objetivo de

tornar a colônia economicamente

aproveitável, rendosa, não mais

pela indústria extrativa apenas,

como a do páu

brasil, mas pela

fixação de colono ao solo pelo

trabalho agrícola, empregando os

incentivos usuais ainda hoje em

dia, de isenção tributária, com os

efeitos psicológicos

e materiais

daí decorrentes, sem, ao mesmo

tempo, prejudicar

excessivamente

as receitas indispensáveis à manu-

tenção do aparelho administrati-

vo —

só a dízima era suprimida.

Em segundo lugar, o paralelo

perfeito que ainda

pode ser esta-

belecido —

passados 4 séculos I en-

tre as políticas

relativas à intro-

dução de técnicos. As mudan-

ças são, apenas, de

grau entre

aquela época e a atualidade; a

idéia fundamental é a mesma.

Hoje, graças

ao vertiginoso pro-

gresso da técnica, iniciado

pela

revolução industrial e que,

nos

seis múltiplos aspectos, é o cara-

cterístico mais marcante da éra

em que

vivemos, a da máquina,

favorecemos especialistas de ou-

tra natureza —

mas esta é a úni-

ca diferença. Então, o Brasil, pre-

cisava construir habitações e na-

vios, defender-se; hoje, carece de

industrializar-se ao máximo, na

variedade infindável dos sectores

que a complexidade da civilização

atual criou. Nada mais. Na

legislação atualmente vigente,

procura-se até atrair e facili-

tar a vinda, além dos agricultores,

aos técnicos de indústrias rurais,

que gozar de

preferência de

quo-

ta como aquêles (Dec.

lei n. 406,

de 4

de Maio de 1938, art. 16;

Dec. 3.010,

de 20 de Agosto de

1938, arts. 10, 222, passim.).

Por fim, a criação de uma de-

terminada modalidade de registro

para os imigrantes. Embora vi-

sando apenas objetivos fiscais, é,

em germe,

a organização hoje de-

sabrochada, do Serviço de Regis-

tro de Estrangeiros, um dos pon-

tos capitais da legislação atual

(Dec. lei

406, citado, capítulo VI,

e dec. 3.010,

arts. 130 a 164), que

o nosso país

foi o^ primeiro

a in-

troduzir no Continente America-

no e que

outras nações se apres-

saram a imitar.

130 CULTURA POLÍTICA

Ampla publicidade

do

primitivo alvará

E' conveniente salientar que

o

alvará referido foi prorrogado por

mais tres anos, conforme provi-

são real de 22 de Junho

de 1554,

determinado o rei, agora a D.

Duarte da Costa, que

enviasse o

traslado do primitivo

alvará a tô-

das as Capitanias e PovoaçÕes da

costa do Brasil, para

dar-lhe a

mais ampla publicidade (Does.

Hist., XXXV. pp. 336

e 337).

Infelizmente, não sabemos qual

o resultado prático, quantitativo,

da aplicação de tão sábias dire-

trizes.

Preocupemo-nos, pois,

com ou-

tro aspecto do problema, já que

os documentos disponíveis não

nos permitem perquirir

mais mi-

nuciosamente êste ponto.

Do-

cumento bastante posterior,

data-

do de 12 de Junho

de 1555. per*

mite-nos apenas verificar que

con-

tinuava a política

a favorecer a

imigração de ilhéus, possivelmen-

te nas mesmas condições anterio-

res, conforme se conclue do se-

guinte trecho da carta de Simão

da Gama de Andrade ao Rei, e

que se encontra

publicada na

pag.

380 do

3.0 vol. da História da Co-

lonização Portuguesa no Brasil:

"Senhor —

Da ylha

de São Mi-

guell hesprevi ha vosa Alteza tu-

do ho que

hatelli me tinha ço-

cedido e asi esprevi ao comde e

mandey ha certidão de Manoell

da Camara da gemte que

da ylha

trouve, como V. A. me mandava

no regimento que

me deu e o mes-

mo faço

haguora que

mando húa

certidão do governador

e outra

de Manuell da Camara de toda

ha gente

com que

haqui cheguey,

hasy de llixboa como das ylhas

peíla quall poderá ver

que não

foy ho numero tanto como

pare-

cia que

nas ylhas

se poderiam

achar, ha rezão porque

senão

quisseram então enbarquar foy

por ha terra hestar muito habas-

tada de todos mantimentos pryn-

cipallmente pão que

vallia a

trynta reaes ho allqueire".

Solicitada a vinda de

mulheres brancas

Já tivemos ensejo de ver como

Nobrega, em suas cartas, não se

cansava de solicitar a vinda de

mulheres brancas para

o Brasil

(Cartas, pag. 79-80, 109, 111, 126,

132), no que

era secundado pelo

Pe. Francisco Pires, em sua carta

de 1552 para

os Irmãos de Portu-

gal (Cartas Avulsas, XIV,

pag.

128). Também, sabemos que,

com

intuito de fixar definitivamente

ao solo os imigrantes como colo-

nos, os jesuítas

insistiram pela

vinda de pessoas

casadas (Nóbre-

ga, Cartas do Brasil,

p. 85, e

João

de Aspilcueta Navarro, Cartas

Avulsas, 1, p. 53).

Êste último,

em 28 de Março de 1550, assim

se exprime

"...

e muito mais se

ajudariam si dahi viessem homens

de bem casados para

habitarem

esta terra". Desta mesma opi-

nião, aliás expressa com muita

clareza e vigor, é o Provedor-mor

Antônio Cardoso de Barros, que

em carta a El-Rei, aos 30

de Abril

de 1551, referindo-se provável-

mente à cidade do Salvador, es-

creve:

"...

muy vazia asy de ca-

sas como de jemte posto que

cada

dia se não fazemdo

a jemte que-

rera deus que

venha pera que

va

em crecimento e lembro a vossa

alteza que

aproveito ca mais hu

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL 131

ornem casado que

dez solteiros por

que os solteiros nam

precurã se-

não como se am dir e os casados

como amde nobreser a terra e sos-

tentala". (Anais

da Biblioteca

Nacional, vol. LVII, p.

19).

A família

como elemen-

to de fixação

Nunca será demasiado salientar

que, como elemento de fixação, a

família é insubstituível quando

se

trata de colonizar, sendo por

êsse

motivo exigida, nas mais moder-

nas legislações, sua vinda, como

se poderá

verificar, para

não citar

senão a lei brasileira, no §

i.° do

art. 61 do Dec. 3.010,

de 20 de

Agosto de 1938.

Em 1551 chega ao Brasil a ar-

mada sob o comando de Antônio

de Oliveira, a qual,

segundo Frei

Antônio San Roman, História Ge-

neral, Valladolid 1603, pag.

694,

citado por

Serafim Leite, História

da Companhia de Jesus no Bra-

sil I, 174, nota 3,

trouxe gado,

sementes, e muitas mercadorias.

Gabriel Soares, no seu Tratado

Descriptivo do Brasil èm 15^7»

pag. 105, a ela se refere, afir-

mando que

nela vieram

"... ou-

tros moradores casados e alguns

forçados, em a

qual mandou a

Rainha D. Catharina. . . algu-

mas donzelas de nobre geração,

das que

mandam criar e recolher

no mosteiro das orphãs, as quaes

encommendou muito ao governa-

dor por

suas cartas, para que

as

casasse com pessoas principaes

da-

quelle tempo; a

quem mandava

dar em dote de casamento os offi-

cios de governo

da fazenda

e jus-

tiça, com o que

a cidade se foi

des-

envolvendo".

Parece laborar em erro o ilus-

tre observador do Brasil quinhen-

tista. Com efeito, a pag.

104, dá

a vinda do i.° bispo em 1550,

quando aquêle só chegou aqui a

22 de Junho

de 1552 (Nóbrega,

Cartas do Brasil, X, pag.

128), de

modo que,

como uma data depen-

de da outra pela

redação que

lhe

dá, as órfãs citadas só teriam aqui

aportado em 1553, o que

deve ser

a realidade, pois

antes desta data

não se encontra a menor referên-

cia às mesmas nos Documentos

Históricos da Biblioteca Nacio-

nal, vols. XIV, pg. 361,

e XXXV,

pag. 384.

A nosso ver trata-se de uma

confusão cuja explicação deve ser

razoável —

vinda, por

várias vê-

zes, das armadas reais, trazendo

elementos de civilização material,

e talvez haver sido Antônio de

Oliveira o comandante da própria

flotilha que

trouxe D. Duarte da

Costa, o que

não pudemos

apu-

rar.

Antes da vinda do 2.0 governa-

dor chegaram ao Brasil órfãos,

meninos, para

serem educados nos

colégios dos jesuítas;

órfãs, po-

rém, com o intuito de servirem

de elementos colonizadores, pelo

casamento aqui, só a partir

de Ju-

lho de 1553. Com a documenta-

ção de

que disponho, esta afir-

mativa é formal, pois

não se com-

preende que nos mandados de

pa-

gamento que cobrem todo o

pe-

ríodo em questão,

consignando

todas as despesas determinadas

pelo governador Tomé de Sou-

za —

ou pelo

Provedor Mór An-

tônio Cardoso de Barros, não se

encontre um único em benefício

das órfãs, antes do grupo

das 9

que vieram com D. Duarte

(Cf.

Documentos Históricos, vol XIV,

p. 361).

132 CULTURA. POLÍTICA

A política

das órfãs

Julgo de interêsse fornecer aqui

os motivos da política

de vinda

das órfãs. Quem

nô-la dá é, com

sua costumeira clareza, Pedro de

Azevedo na História da Coloniza-

ção Portuguesa no Brasil,

3, pp.

341-342 nos seguintes termos:

"No

século XVI, as guerras

ou

expedições ultramarinas rouba-

vam ao reino um número consi-

derável de homens válidos, que

por lá morriam ou desapareciam,

deixando na metrópole ao aban-

dono os filhos,

e por

outro lado o

estado sanitário na capital do

reino era deplorável e por

isso

as epidemias ceifavam todos os

anos adultos, como se pode

veri-

ficar nos registros

paroquiais dês-

se tempo, ainda existentes. Den-

tro do Castelo de Lisboa estabe-

leceu-se um recolhimento de ór-

fãs, onde estas eram educadas e

recebiam um dote para

se casa-

rem". Das 9, que

constituíram a

primeira leva, só conhecemos o

nome de duas através dos Do-

cumentos Históricos: Clemência

Dória. casada com Fernão Vaz da

Costa (vol.

XXXVI, pp.

XIII e

152) e Jeronima

de Gois, casada

com João

Velho Galvão (vol.

XXXV, p. 383).

Sabe-se ainda

que vieram a cargo de uma ma-

trona, que pereceu

no naufrágio

do bispo D. Pero Fernandes, por

uma referência feita à

"velha

que

veo com has orffans" na carta em

que os oficiais da Câmara do Sal-

vador, em 18 de Dezembro de

1556, noticiaram ao rei o trágico

destino do bispo (História

da Co-

lonização Portuguesa no Brasil,

3, p. 381). Seria Maria Dias,

creada das órfãs, a quem

foi en-

tregue o mantimento das mesmas

"duzentos réis

para cada uma,

pa-

ra peixe

e miudezas" (Does.

Hist.

XIV, p. 361),

ou pertencia

êste

nome a

"hua moça orfã criada das

orfans que

vieram em minha com-

panhia", a

que se refere D. Duar-

te da Costa na carta que

escreve

ao monarca em 3

de Abril de

l553< pedindo

a graça

do degre-

dado Sebastião D'elvas que

com

ela se casou, a seu pedido, quan-

do asilado no colégio dos jesuí-

tas, para

evitar que

fosse açoitado

e desorelhado por

crime de furto

(Hist. Col. Port. no Brasil,

3,

p. 371)? E' êste mais um dos

pe-

quenos e irritantes mistérios de

nossa história.

Além das órfãs, as poucas

mu-

lheres brancas que

aqui existiam

eram as esposas de funcionários,

como por

exemplo D. Beatriz,

casada com Duarte Coelho, em

Pernambuco, as de alguns portu-

gueses casados

que as mandaram

buscar ao reino (Nóbrega,

Cartas

do Brasil, p.

120:

"Há cá muita

somma de casados em Portugal

que vivem cá em

grandes pecca-

dos; a uns fazemos

ir, outros

mandam buscar suas mulheres"),

e, finalmente, cêrca de 30

espa-

nholas que

naufragaram ao sul de

S. Vicente, a cujo respeito Tomé

de Souza nos dá a seguinte notí-

cia, em carta dirigida ao rei em 1

de Junho

de 1553, publicada

a

pp. 364

— 6, vol.

3, da Hist.

Col. Port. no Brasil:

"De Cas-

tella partiu

hua armada com 300

pessoas pouquo mais ou menos

per a o rio da Prata, a

quoall par-

te delia na Ilha do Príncipe na

Costa da Guiné e parte

na costa

entre ho Rio da Prata e São Vi-

cente 60 lleguoas delle honde se

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL 133

chama o Rio dos Patos se perdeo

casy toda e se salivarão soomente

6o pessoas

casy a metade molheres

honde entrava a molher do gover-

nador que

tão bem falleceo que

se chamava Fernando de Saraiva

e suas filhas e

parentes em

que

erão nove ou dez molheres fidall-

gas afora outras, os

yndios como

virom que

era gente que

se pa-

recia com nosquo e dizerem lhe

que erão

yrmão nossos nam lhes

fizeram mall allgum antes muy-

to guasalho,

como se vyão asy per-

didos veyo hum capitam daquella

companha que

se chamava Johão

do Sollazar que foy

criado do du-

qne d'Aveiro a

quem fez deitar o

abito de Santiguo ê chegando es-

te homem a São Vicente cheguei

eu e me pedio que

mandase bus•

car aquelles homens e molheres

que estavão ally

perdidos pareceu

me serviço de Deus e de V. A.

mandallos buscar em hum navyo

he trazellos a São Vicente para-

cendo me que

as molheres virão

tão em fadadas

dos trabalhos que

pasarão que casarão ahy com

quem lhes der de comer e os ho-

mens que farão

cada hum sua

roça. E parti

com elles desa po-

breza minha que

llevava e nom

foy tam pouco que

nom fose

mais

do que

eu tinha do meu de trinta

he cinquo anos".

Epílogo triste

A história subsequente dessas

desafortunadas é interessante, se

bem que,

como geralmente

ocorre

a tôdas as aventuras da vida real,

tenha um epílogo triste, ou pelo

menos muito prosáico.

Em 10 de

Abril de 1556, D. Duarte da Cos-

ta promulga

uma ordem real re-

ferente às mesmas, sendo êsse,

aliás, o último documento de que

tenho ciência em relação às náu-

fragas, que

depois disso não mais

deixam vestígios.

Diz o texto em questão, publi-

cado nos Does. Hist., vol. XXXV,

pp. 344-5

"...

Faço saber que

eu

mandei no anno de 1553 ao Dou-

tor Per o Borges do Desembargo

do dito Senhor, e Provedor-mor

de sua Fazenda, e seu Ouvidor Ge-

ral com alçada nestas Partes á Ca-

pitania de São Vicente, e lhe man-

dei que

da Fazenda de Sua Alte-

za desse a umas mulheres Caste-

lhanas Fidalgas, que

Thomé de

Souza ahi mandara vir do Porto

dos Patos cem cruzados, e assim

algum panno,

e resgate ao Capi-

tão Salazar, e escrevi a Sua Al-

teza coom fizera

isto por

me pa-

recer seu Serviço, porque

o dito

Thomé de Souza lhe mandara

dar outros cem cruzados da Fa-

zenda do dito Senhor quando

as

mandara ir á dita Capitania, e

Sua Alteza me respondeu em uma

Carta assim, e no Cabo do Capi-

tulo diz o seguinte: E porque

não

hei por

Meu serviço disperder-se

mais de Minha Fazenda cousa al-

guma com as ditas mulheres, lhe

não mandareis dar mais nada à

custa delia, e porém

Ordenareis,

que se lhe

faça em tudo todo bom

tratamento".

Flagrante das condições

prevalecentes

Não era para

estranhar que

sò-

mente viessem voluntariamente

para o Brasil mulheres em

pe-

queno número e

que não fossem,

precisamente, de

qualidade, a

menos que

se tratasse de casos es-

peciais como os

já citados, e isto

134 CULTURA POLÍTICA

porque as condições de terra não

eram exatamente as que

se pudes-

sem denominar de confortáveis,

mesmo para

aquela época. A

respeito, existe um contexto ver-

dadeiramente edificante, como se

fora uma fotografia instantânea

das condições que

aqui prevale-

ciam. Trata-se da carta escrita da

Baía em 13 de Julho

de 1551, e

publicada a

pp. 24-28 do vol.

LVII dos Anais da Biblioteca Na-

cional, por

Luiz Dias, mestre das

obras da fortaleza e cidade do

Salvador desde Janeiro

de 1549,

a Miguel de Arruda, em Lisboa,

na qual,

depois de contar que

"eu

qua pude apanhar emprestado

ajmda por que

dei Rey do soldo

diguo hü so cyltill me deraão nem

paguarão nem ai de

quem mo

pa-

guar por o

que vem do reino he

fero velho como ho

que se vemde

na feira

em Lisboa e com histo se

pagua a

pobre gemte que qua tra-

balha que

os Rimdimentos do

brazil com que qua

nos mãoda-

vão he tudo burlaria por que

não

hai ahi com que

se pague

mejo

ordenado dum destes senhores",

relata que

as casas são de taipa-

ria, de parede

de mão, de barro e

feno, mostra as condições de tra-

balho e as promessas

enganosas"

"pareçiame

a mim que

se lhe a

vosa ?7i. quitaçe

e lhe paguaçem

o te7upo que qua

tem servido po-

lo virem ser vir tam lomge e os

emguanarem com tais paguamen-

tos j

e que

aviam de dar de co-

mer e damlhe hü pouquo

de fa-

rinha de pao

com hu pouquo

de

vinagre e azeite e sem houtra car-

nee nem pexe

e jsto

Asim 7ne va-

lha a verdade com he verdade//",

e implora "pelas

simquo chaguas

de Jesu christo que...

me quei-

rais tirar de qua pois foi

sua vom-

tade que

eu viese qua",

dizendo

ainda

"e

düa maneira ou doutra

folguari aque v. m. me mãodace

hir por

amor de noso senhor por-

que lhe sertefiquo

que se

qua

morer que

hei de hir dereito ao

imforne e mais lhe diguo senhor

que não se

pode la dizer tamto

que mais não

pacemos qua de

fo-

me e trabalho emquãoto esta ba-

hia não tiver sem moradores em

que emtrem cimquoemta de ca-

valo nunqua deles farão

bons nem

comerão bom bocado / / porque

teras de criação de todolas cou-

zas deste mundo não na hai em

toda a tera como hesta mes (sic)

ho gemtio

dela he demonios//".

Finalisa sua jeremiada

informan-

do que

os "omens

todolos outros

não comem senão farinha e hü

pouquo de azeeite eu da

pasqua

pera qua não tenho

pam de

por-

tuguall nem vinho/". Como se

vê, a vida da Cidade do Salvador

não era sedutora em meiados do

século XVI...

Imensa a obra de

Tomé de Souza

Seja como for, a obra de Tomé

de Souza no setor da atividade que

nos interessa é imensa. Posterior-

mente, tres lustros após sua saída

do poder,

Gandavo lhe faz jus-

tiça, ao afirmar, referindo-se à

Capitania da Baía: "O

primeiro

Capitão que

a conquistou, e que

a começou de povoar, foi

Fran-

cisco Pereira Coutinho: ao qual

desbaratarão os índios com a for-

ça de muita

guerra que lhe

fize-

rão a cujo impeto nam pode

re-

sistir, pela

multidão dos inimigos

que entam se conjurarão

por to-

das aquellas partes

contra os Por-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL 135

tuguezes. Depois disto tornou a

ser restituida, e outra vez povoa-

da por

Thomé de Souza o pri-

meiro governador geral que foi

a

estas partes.

E daqui por

deante

forão sempre os moradores multi-

plicando com muito acrecenta-

mento de suas fazendas". (His-

toria, p.

88) .

A influência de Tome

de Souza

A influência de Tomé de Sou-

za, porém,

ainda se faz sentir de-

pois de sua

partida para o reino.

E' assim que, já

na corte, influe

para a vinda ao Brasil de uma

grande expedição colonizadora,

que deveria fixar-se no norte do

país. Efetivamente a armada, no

dizer de Gabriel Soares de Sou-

za e de Frei Vicente do Salvador,

constava de tres naus e duas cara-

velas (Varnhagen

I, p. 330

e I, p.

341), e vinha sob o comando de

Luiz de Melo, conduzindo, além

de 300

infantes e 50

cavalarianos,

grande número de mulheres e fa-

mílias.

As referências mais interessan-

tes são, a respeito dessa imigra-

ção, infelizmente malograda,

pois

naufragou nos baixios da costa,

salvando-se poucas pessoas,

as que

se encontram nos abundantes co-

mentários de Capistrano de Abreu

e Rodolfo Garcia que

constituem

a nota VI, pp. 339-42,

à secção

XVI do i.° vol. de Varnhagen,

Hist. Ger. do Bras.

Transcrevo, aqui, apenas duas

cartas, que

esclarecem perfeita-

mente o assunto.

"Em

carta sem data, extractada

numa do Príncipe, de 13 de Ju-

nho de 1554, Luís Sarmiento es-

creve: "cerca

de la armada que

el

Serenisimo Rey avia enbiado al

brasil con un capitan que

se dizia

antonio delorero con muchos ca-

sados para poblar

en la costa dei-

la y

la que postreramente

estaba

para partir de

que es capitan luis

de melo en ciertos navios que

avia armado, en que

llevaba mas

de trezientos honbres los cincuen-

ta o sesenta de acaballo los qua-

les van todos a sus costas a des-

cubrir con licencia dei dicho Se-

renisimo Rey" —

Carta do Prin-

cipe, de Ponferrada, 13 de Junho

de 1554.

Carta de Joan de Samano, es-

cripta por

mandado do Príncipe,

de Valladolid, a 9

de Março de

1554, em resposta a outra de 5

de

Fevereiro: "He

visto lo que

dezis

cerca dei armada que

el Serenisi-

mo Rey enbia al brasil de que

va

por capitan antonio lourero,

y

que lleba mucha

gente y casados

con sus mujeres e hijos para po-

blar por

aquelas partes y

outra

gente para descubrir

y que se di-

ze alia en el brasil que

tiene mu-

cha gente por

aquela costa en lo

que tiene

poblado y que aveis

procurado por aver traslado dela

ynstruccion que lleban

y que no

abeis aliado horden de poder

la

aver,f.

O Príncipe, citado, é o filho de

Carlos V, o qual

dois anos depois

ascenderia ao trono de Espanha e

que a História conhece como Fe-

lipe II. Pelas suas qualidades

de

estadista, que

nunca lhe poderão

ser negadas, sejam quais

forem os

sentimentos que

lhe dediquemos,

o Imperador confiou-lhe a regên-

cia de Espanha desde 1543, quan-

do completou dezesseis anos; por

conseguinte, desde aquela época,

intervinha na política geral,

como

136CULTURA POLÍTICA

bem o salientou Rafael Altamira

no ensaio sôbre Felipe II que

constitue o 6.° capítulo do II vol.

da Coleção "Hommes

d'État", Pa-

ris *937> publicada

sob a direção

de A. B. Duff e F. Galy (pp.

521, 539).

O povoamento do

Brasil

Tratamos, até agora, do povoa-

mento do Brasil, referindo-nos

especialmente à Baía,

pois a Ci-

dade do Salvador, como capital,

era o centro político-administrati-

vo mais importante, onde se

po-

deria, por

conseguinte, medir

mais facilmente os efeitos da po-

litica imigratória, objeto de nos-

so estudo.

Entretanto,

já Pedro de Azeve-

do, em seu feliz comentário à p.

335 do vol. III da Hist. Col.

Port. Bras., evidencia com clare-

za a verdadeira situação do Go-

vêrno Geral: "Como

vemos pela

carta de nomeação de Thomé de

Souza, este foi encarregado

da ca-

pitania da Bahia e de governa-

dor geral de tôdas as outras, não

sendo, portanto, extinto

por com-

pleto o sistema das donatarias,

ha-

vendo só a mais uma entidade in-

termédia entre o soberano e os

capitães".

E, pois, justo que

lancemos

uma breve olhadela pelas

outras

capitanias, onde, embora lenta-

mente, começavam a repontar os

frutos da sábia política de fa-

vorecer o povoamento.

A profícua administração

de Duarte Coelho

Assim, em Pernambuco, conti-

nuavam a prosperidade e o

pro-

gresso devidos à boa administra-

ção do seu donatário, Duarte Coe-

lho, que,

no dizer de Oliveira

Lima na "A

Nova Lusitânia", cap.

VII do 3.0

vol. da Hist. Col.

Port. no Brasil, p.

284, "tomára

a precaução de trazer consigo ca-

patazes proficientes, já adestrados

na Madeira e em São Tomé, e

obreiros industriosos,

pela mór

parte judeus, que eram o melhor

elemento econômico do tempo e

que lucravam com

fugir à fúria

religiosa que grassava na Penín-

sula". Também, com êle, foi fei-

ta a primeira

tentativa da intro-

dução, no pais,

de donzelas, como

a D. Isabel de Fróes que, para

aqui casar-se e com recomenda-

ção da rainha, acompanhou

a es-

posa do donatário à sua capita-

nia, (Ibid,, pg.

288). Infelizmen-

te, depois de sua morte, ocorrida

provavelmente em Agosto de

*554» (Varnhagen, I,

p. 372, nota

VIII), a capitania começou a de-

clinar pela

falta de capacidade ad-

ministrativa de seus herdeiros.

E' conveniente abrir aqui um

ligeiro parêntesis. Como

já ti-

vemos ensejo de salientar em ar-

tigo anterior, a época dos primei-

ros povoadores e donatários coin-

cidiu com, e seguiu-se logo após,

a perseguição dos

judeus de Por-

tugal e sua conseqüente expul-

são. Daí a sua vinda para

o Bra-

sil, no século XVI, em apreciável

quantidade, especialmente

para

Pernambuco. Sôbre êste

proble-

ma, aliás, teem sido publicados

vários estudos, conforme se pode-

rá ver na bibliografia que

indica-

mos. >1

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL 137

Freqüentemente visitado

por navios do Reino

Além dos fatos apontados exis-

tem, porém,

razões pelo

menos

tão ponderáveis quanto

as citadas

para explicar o florescimento de

Pernambuco. Entre outras, en-

contramos em Gandavo a obser-

vação, a nosso ver, decisiva:

"E a

causa principal

de ella hir sem-

pre tanto avante no crecimento

da gente, foi por

residir continua-

mente nelle o mesmo Capitão que

a conquistou, e ser mais frequen-

tada de navios deste Reino por

estar mais perto

delle que

cada

huma das outras. . (Historia,

p. 87).

Já anteriormente, o espírito

lúcido de Tomé de Souza se

apercebera da imprescindibilida-

de da ação constante e da presen-

ça dos donatários à testa de suas

respectivas capitanias, pois,

con-

forme se verifica da carta que

es-

creve a el-Rei em i.° de Junho

de 1553, publicada

a pp. 364-6,

da Hist. Col. Port. no Brasil, 3.0

vol., afirma, na pitoresca

lingua-

gem da época, e empregando lo-

cuções então correntes, mas que

hoje seriam tidas pelo

menos co-

mo inadequadas:

"It. Como dise

a V. A . não farey

senão as lem~

branças muito necessarias sem as

quais esta terra se não

poderá

sustentar senão se hum homem

pode viver sem cabeça. V. A.

deve mandar que

os capitães pro-

prios residão em suas capitanias

e quando

isto não por

allgúns

justos respeitos

ponhão pesoas de

que V. A. seya contente

porque

os que

aguora servem de capitais

não os conhece a may que

os

pario. . .".

A capitania de Ilhéus

A capitania de Iheus, como ve-

mos em Gandavo, História, pp.

88-9, foi doada a

"Jorge

de Fi-

gueiredo Corrêa, Fidalgo da Ca-

sa de El Rey nosso Senhor: e por

seu mandado a foy povoar

hum

João Dalmeida, o qual

edificou

sua povoaçam

trinta legoas da

Bahia de Todos os Santose

Nóbrega, Cartas do Brasil VII, p.

107, escreve que

em

"Porto Se-

guro e em Ilhéos encontrei uma

certa gente que

é casta de Topi-

nichins, entre os quais

existem

muitos dos nossos... Como es-

ta carta é de 6 de Janeiro

de

1550, verificamos que, já

nessa

data, estava em vias de ser feito

o povoamento

naquela região.

As primeiras

tentativas

da colonização do

hinterland

Anteriormente, tive oportuni-

dade de referir-me a uma carta

dirigida ao soberano em 12 de

Maio de 1548 por

Luiz de Gois.

Dêsse documento, publicado

na

íntegra em Hist. Col. Port. no

Bras. 3.0, p.

259, conclue-se que,

naquela época, a situação da ca-

pitania de São Vicente, no tocan-

te à população,

era esta:

"... soo

nesta capitania entre homens e

molheres e mininos e mais de

seiscentas almas (cristãs)

e de es-

cravaria mais de tres mil. ..

Em 25 de Janeiro

de 1554, nos

campos de Piratininga, registra-se

a fundação da futura cidade de

São Paulo, que

se desenvolveu em

tôrno do Colégio de jesuítas

cria-

do por

Nóbrega, perto

do vale

do Anhangabaú, embora Serafim

Leite preferia

a data de 30

de

138 CULTURA POLÍTICA

Agosto de 1553. (Hist.

Comp.

Jesus no Brasil, I, pp.

270-1).

Essa é uma das primeiras

tenta-

tivas de colonização de hinterland

brasileiro. Houve outras, porém,

geralmente com o caráter de ex-

pedições de descoberta, como

por

exemplo aquela de Martim Car-

valho que,

segundo Gandavo,

Tratado, p. 59,

entrou

"pela

ter-

ra algumas duzentas e vinte le-

goas", partindo de Porto Seguro,

o que

representa, indubitavelmen-

te, um feito importante. Deixe-

mos, porém, para

mais tarde o

estudo das entradas.

Na carta de Tomé de Souza,

acima citada, assevera o Governa-

dor que

"O Espirito Santo he a

melhor capitania e mais abastada

que ha nesta costa mas está tam

perdida como o capitão delia

que Vasco Fernandez Couti

-

nho..". Aliás, êsse infeliz donatá-

rio tem, em sua vida, um episódio

para nós tão incompreensível

que

não posso

furtar-me a ligeira di-

gressão, a

qual espero me será

perdoada pelo estranho sabor

que possue.

O desenvolvimento do

hábito de fumar

Quando, pouco depois da des-

coberta da América, foi introdu-

zido na Europa o hábito de fu-

mar, aprendido pelos

marinheiros

de Colombo, ninguém poderia

supor o extraordinário desenvol-

vimento que

iria ter, no mundo,

o mais inocente dos vícios moder-

nos. Talvez o destino, com a sua

habitual ironia, haja querido

fa-

zer justiça poética,

avassalando

definitivamente os conquistado-

res do Novo Mundo pela

sujeição

a um elemento cultural das raças

cujas civilizações destruíram, im-

placavelmente, na sua ilimitada

cobiça de ouro e na estupidez de

seu estreito fanatismo religioso.

Sabemos, hoje em dia, que

de

nada adiantaram as medidas re-

pressivas empregadas contra os

fumantes pelos potentados

de

todo o mundo —

nem a ameaça

de pena

capital, executada na In-

glaterra por ordem do rei

Jaime I,

embora por

outros motivos, em

Sir Walter Raleigh, que passa por

haver sido o introdutor do ca-

chimbo naquêle país,

apesar de

haver aprendido o seu uso pelo

i.° Governador da Virgínia Ralph

Lane, que

o presenteara

com um

em 1586; nem o castigo de abla-

ção dos lábios dos

que fumavam

e do nariz dos tomadores de rapé,

infligido por

Abbas I, chá da Pér-

sia, ou a pena

de morte decreta-

da por

Miguel Fedorovich, czar

da Rússia, nem finalmente a ex-

comunhão com que,

em 1624, 0

Papa Urbano VIII fulminou to-

dos os fumantes. Como sóe acon-

tecer, o vício venceu.

Considerado como

crime

Mas, na época que

estamos ana-

lisando, fumar era considerado

prática nefanda, infame. E o

po-

bre donatário da capitania do Es-

pírito Santo,

que o havia contraí-

do, sofreu, como vários outros, as

conseqüências dêste seu costume,

pela intolerância do i.° bispo, D.

Pero Fernandes, conforme se vê

do seguinte trecho de carta que,

em 20 de Maio de 1555, foi en-

viada ao rei por

D. Duarte da

Costa (Hist.

Col. Fort. no Bras.

3, p. 375):

"Vasco

Fernandes Cou~

tinho chegou aqui velho pobre

e

I

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA IMIGRATÓRIA NO BRASIL 139

cansado, bem injuriado do bis-

po, porque em Pernambuco lhe

tolheo cadeira despaldar na igre-

ja e apregoou

por escomungado

de mistura com homens baixos

por beber

fumo segundo mo êle

dise, eu o agasalhei em minha

casa e com minha Fazenda lhe so-

corri a sua pobreza pera

se poder

ir pera

o Espirito Santo e o bis-

po o agasalhou com dizer no

púl-

pito cousas delle tam descorteses

estando elle presente que

o puse-

ram em condigam de se perder

do que

eu o desviei e hei vergo-

nha de decrarar o que

lhe disse e

por lhe defender a elle o

fumo

sem o qual

nam tem vida segun-

do elle diz o defendeu nesta ei-

dade com excomunhões e gran-

des penas

dizendo que

era rito

gentilico sendo hüa mezinha

que

nesta terra sarava os homens e as

alimarias de muitas doenças e que

parece que nom devia de defen-

der e por

se achar que

hum po-

bre homem o bebia o mandou

pôr nu da cinta

pera cima na See

hum domingo á missa com os fu-

mos no pescoço

e condenou a ou-

tro na mesma pena

o qual

de

vergonha de a cumprir fugio pe-

ra os gemtios

tutiapara e o mata-

ram la e o bispo foi

causa desta

morte e da guerra que pode

su-

ceder do troco que

hei de tomar

como tiver tempo e certa infor-

maçam da maneira de sua morte".

Felizmente, os tempos muda-

ram...

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Educação nacionalista

no Distrito Federal

NEUSA FEITAL

Professora em exercício no Departamento de Educação

Nacionalista da Prefeitura do Distrito Federal.

A obra de educação nacionalista que

o atual govêmo

vem realizando é

uma das tarefas mais importantes do renascimento político

brasileiro. Es-

pecializada nêsses

problemas, apresentamos a autora um documentário do

que é essa obra no Distrito Federal, tal como a vem sendo desenvolvida nos

planos realizadores da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal.

i —•

Conceito atual de

Educação

DESDE

as mais remotas épo-

cas, inúmeros pensadores

preocuparam-se em definir

Educação.

Na antigüidade, devemos a Só-

crates, a Platão e Aristóteles —

máximos esplendores do pensa-

mento grego

profundos e belís-

simos conceitos acerca de proble-

mas educacionais. As luzes, que

essas mentalidades privilegiadas

projetaram sobre a civilização he-

lênica, adquiriram com o decor-

rer dos tempos, cintilações cada

vez mais brilhantes. E os educa-

dores modernos não podem pres-

cindir dos sábios ensinamentos

que as tres das mais fulgurantes

expressões da filosofia grega

lega-

ram à posteridade.

Na Idade

Média, no Renascimento, na Éra

Moderna, nos dias contemporâ-

neos sempre houve quem

se de-

tivesse em formular doutrinas sô-

bre Educação.

Uma análise das teorias educa-

cionais nos diferentes períodos

da

História da Humanidade, seria

tarefa demasiado longa, sem ca-

bimento no estudo rápido a que

ora nos propomos.

Todos os grupos

humanos, des-

de as tribus trogloditas aos super-

civilizados homens das grandes

cidades hodiernas, possuíram

e

possuem idéias sobre Educação.

Ainda sem o saber, muitas vê-

zes, tal sucedia ao interessante

Mr. Jourdain

fazendo prosa...

Ao falarmos em conceito atual

de Educação, de certo modo da-

mos margem a que

se pense

em

alguma coisa que

se transformou.

142 CULTURA POLÍTICA

E realmente. Sobram-nos razões

para que assim nos expressemos.

O caráter essencialmente trans-

formador da civilização de nos-

sos dias, as incessantes e rápidas

mudanças que

se operam nas con-

dições atuais da vida, não pode-

riam deixar de atingir a Educa-

ção.

O antigo conceito de que

a

Educação era o processo pelo qual

a geração

adulta preparava

a in-

fância para

a vida futura, teve de

ser desprezado. Diante das rápidas

mudanças a que

todos assistimos,

seriam inevitáveis os fracassos que

poderiam advir de um tal

pro-

cesso.

À compreensão de que

a Edu-

cação e a Vida são coisas estreita-

mente correlatas é que

devemos

chamar de conceito atual de Edu-

cação.

"Educação é Vida, e viver, é

desenvolver-se, é crescer. Vida e

crescimento não estão subordina-

dos a nenhuma outra finalidade,

salvo mais vida e mais crescimen-

to", assim se expressa John

De-

wey.

Aos educadores de hoje cabe a

responsabilidade de preparar

os

educandos para

uma vida cada vez

mais ampla e mais feliz. No mo-

mento presente,

e nunca num fu-

turo longínquo e imprevisível. A

Educação deixou de ser ensaio,

treinamento, para

ser a própria

vida.

Dentro dêsse ponto

de vista,

abandonou-se a falsa concepção de

que sòmente

pais e

professores

educavam. Hoje ninguém con-

testará que

não unicamente a Fa-

mília e a Escola, mas o Parque

de Recreio, a Igreja, a Imprensa,

o Teatro, o Cinema, o Rádio, os

Clubes e tantas outras organiza-

ções que conhecemos, são fatores

que exercem influência sobre a

educação de um grupo

social. A

Família e a Escola, não negamos,

são os maiores responsáveis pela

Educação. A proporção que

a

vida moderna restringe as opor-

tunidades da primeira,

a tarefa da

Escola e das outras instituições

vai tomando maior vulto.

Uma vez definido o conceito

atual de Educação, em têrmos da

próprio vida,

passaremos a tra-

tar da

2 —

Educação nacionalista

Nas horas conturbadas que

vi-

vemos, vim exame, ainda que

su-

perficial, na vida

política dos

grandes povos faz-nos

pensar na

necessidade cada dia mais pre-

mente de cultivarmos nos indiví-

duos o amor à Pátria e a conciên-

cia da nacionalidade.

"Precisamos reagir em tempo

contra a indiferença pelos princí-

pios morais, contra os hábitos do

intelectualismo ocioso e parasitá-

rio, contra as tendências desagre-

gadoras, infiltradas

pelas mais

variadas formas nas inteligências

moças, responsáveis pelo

futuro

da Nação; precisamos

com a

maior urgência, dar sentido cia-

ro, diretrizes construtoras e re-

gras uniformes à

política educa-

cional, o mais poderoso

instru-

mento a utilizar no fortalecimen-

to de nossa estrutura moral e eco-

nômica", —

foram palavras

do

Presidente Vargas, por

ocasião da

cerimônia comemorativa do pri-

meiro centenário da fundação do

Colégio Pedro II, a 2 de Dezem-

bro de 1937. Pronunciadas há tres

\

EDUOAÇAO NACIONALISTA

anos, elas se tornam agora mui-

to mais veementes e expressivas.

A lição que podemos

colher do

terrível cataclisma europeu vem

mostrar-nos o quanto

é necessá-

rio reagir. Sim, porque

não bas-

ta agir.

Conciente das responsabilida-

des que pesam

sobre os seus om-

bros, todo educador precisa

ter

formado —

não com a rigidez de

um dogma, mas de maneira inte-

ligente e crítica —

um corpo de

doutrinas filosóficas. A matéria

prima com

que trabalha o educa-

dor é demasiado plástica para

que êle se aventure a modelá-la

sem idéias preconcebidas

e sem

alvos bem delimitados.

Quando inquirimos:

"Que

se

deseja fazer das crianças, educan-

do-as? Que

sentido deve ter a Edu-

cação?" estamos em pleno

domí-

nio da Filosofia.

"A

grande tarefa dos nossos

dias é preparar

o homem novo

para o mundo novo,

que a má-

quina e a ciência estão exigindo".

Necessitamos estudar com cui-

dado quais

os processos

educati-

vos mais adequados às nossas con-

dições sociais.

A Educação Nacionalista deve

ser compreendida como a cuida-

dosa preparação

do indivíduo no

sentido de tornar a Pátria mais

feliz, fazendo-a mais disciplinada

e mais forte.

Assim, entre nós esta educação

especializada — despertando na

alma brasileira o senso da Histó-

ria, o amor às tradições, o culto

dos grandes

nomes nacionais, a

cooperação de cada qual

na vida

coletiva do país

— em todos in-

cutirá clara noção das possibilida-

des espirituais e materiais do Bra-

NO DISTRITO FEDERAL 143

sil, e os meios de aumentá-las, no

interesse da amplidão dos seus

destinos.

Integrados na realidade brasi-

leira as gerações

atuais não se-

guirão os visionários e os céticos.

Nem aos que

enchem a boca com

as riquezas do Brasil, sem refletir

sõbre os meios de aproveitá-las.

Nem aos pessimistas que

espalham

aos quatro

ventos boatos derro-

tistas e notícias alarmantes.

A creação do Departamento de

Educação Nacionalista, na Secre-

taria Geral de Educação e Cultu-

ra do Distrito Federal, foi a afir-

mativa de que

se tornou necessá-

rio dar um novo e claro sentido

às diretrizes da nossa política

edu-

cacional.

Vejamos como se desenvolve

3 —

O plano

de realizações

no Distrito Federal

Creado pelo

Decreto 6.641, de

14 de Março de 1940, o Depar-

tamento de Educação Nacionalis-

ta vem pondo

em prática

um lou-

vável programa

de realizações.

Fazem parte

dês te órgão admi-

nistrativo os

Serviços de

Educação Cívica

Educação Musical e

Artística

Educação Física

Correspondência

O Departamento de Educação

Nacionalista propõe-se

a estender

sua ação educacional paralela-

mente à grande

obra socializado-

ra das escolas, quer

as que

estão

subordinadas diretamente aos go-

vêrnos municipal e federal, quer

as de iniciativa particular.

CULTURA. POLÍTICA

fundamental do monumento que de

brasileiras. .. ,

se construiri. Num future bem Atravds da

palavra predicadora

pr6ximo, pequeninas c&ulas do do professor,

de construtivas alo-

Departamento de Educa^o Na- cu^Ses de rAdio-conferencistas

e

cionalista integrar-se-So aos orga- de filmes educativos, desenvolver-

nismos vivos que

sSo as nossas fd- se-a um

patnotismo sad.o conci,

bricas, as oficinas, os clubes e de- zente com o lema

- conhecer o

• _ nua oct-oiim Brasil e ama-lo •

Isto representa, apenas, a pedia

tido para

a infância e a juventu-

fundamental do monumento que

se construirá. Num futuro bem

próximo, pequeninas células do

Departamento de Educação Na-

cionalista integrar-se-ão aos orga-

nismos vivos que

são as nossas fá-

bricas, as oficinas, os clubes e de-

mais agrupamentos que estejam a

requerer cuidados educacionais.

Sôbre todos exercerá uma açãoServiço de Educação

Fisica

bem definida, continuada e^ per-

sistente, o sentido da formação de São

atrjbuições deste Serviço:

brasileiros aptos a elevar o ra melhorar

as condições de saúde

sil ao plano

das grandes potências ^

educandos, ministrar conhe-

Serviço de Educação oportunidades de uma vida sadia,

Cívica. £ortalecendo os indivíduos atra-

vés de desportos e exercícios gi-

A êste setor do Departamento násticos, enfim desenvolvendo vi-

de Educação Nacionalista com- gorosas

mentalidades.

pete" disseminar noções relativas Q

preceito ^e

Juvenal

"mens

à história pátria,

desenvolvendo sana m corpore sano" é o objeti-

nas crianças e nos adolescentes vo

vjsa(jo pelo

Serviço de Educa-

culto das tradições nacionais. -písica. do Departamento de

conhecimento da vida dos gran- Educação Nacionalista. E não se

des homens servirá de estímulo limita aqui a tarefa educacional

ao aperfeiçoamento dos educan- desta organização. A certeza de

dos. Quantos

sentimentos de in- que o aproveitamento útil das

ferioridade, dêsses que

a doutrina horas de lazer é um dos recursos

do sábio de Viena denominou importantes da educação moder-

"complexos", serão libertados com na

veju prestigiar

a recreação di-

o conhecimento de fatos tais: rigida,

no processo

educacional

a precária

situação econômica de que vaj sendo

posto em

prática,

eminentes vultos históricos, a ori- qs parqUes Infantis e Centros de

gem modestíssima de outros e tu- Recreação

são núcleos educacio-

do mais que possa

servir de estí- najs em vitorioso funcionamento

mulo aos desalentados por

fato- entre nós.

res desta ordem.

Além disso, ao Serviço de Edu- Serviço de Educação Mu-

cação Cívica compete difundir se- sical e Artística

guras noções sôbre a realidade

brasileira. A grande

siderurgia, O desenvolvimento artístico co-

marcha para

Oéste, o combate as mo fator de engrandecimento da

endemias, as obras contra as sê- nacionalidade, é o alvo primor-

cas, não serão expressões sem sen- dial dêsse Serviço.

mundiais.cimentos científicos sôbre

ques-

tões de Higiene, proporcionar

EDUCAÇAO NACIONALISTA NO DISTRITO FEDERAL 145

O culto da Arte e o amor ao

Belo vão sendo conseguidos atra-

vés do ensino de canto orfeônico

e de música heróica e folclórica:

um material sonoro pleno

de bra-

silidade.

As realizações do Serviço de

Educação Musical e Artística teem

merecido palavras

de louvor díe

figuras de indiscutível projeção

nos meios políticos,

sociais, edu-

cacionais e artísticos.

As demonstrações de canto or-

feônico constituem índice de de-

senvolvimento do ensino de mú-

sica no Distrito Federal.

De outro lado, as exposições de

desenho e artes aplicadas, sobre-

tudo nas escolas secundárias e pro-

fissionais, são um atestado elo-

quente do

que estamos afirmando.

Os Serviços de Educação Musi-

cal e Artística e de Educação Cí-

vica teem objetivos de tal forma

aproximados, que

será difícil es-

tabelecer-se diferenças entre um e

outro relativamente à finalidade

que visam:

— educar.

Serviço de correspondência

E' o órgão administrativo do

Departamento de Educação Na-

cionalista.

Serviço de documentação, de

pesquisas e de ligação, irradia

suas atividades através de todo o

Departamento.

O Departamento de Educação

Nacionalista, cujo programa

de

ação vimos de expor, realiza sua

importante obra educacional por

meio dos Centros Cívicos.

4 —

Os centros cívicos

—- Função nacionalizadora.

— Objetivos educacionais.

A 27 de Junho

de 1940 foram

creados os seguintes Centros Cí-

vicos Distritais:

— Almirante Tamandaré,

na Ilha do Governador.

— Santos Dumont, no bair-

ro da Saúde.

— Duque de Caxias, no

bairro de Itapirú.

— Rui Barbosa, no

Jardim

Botânico.

— Tiradentes, em Copaca-

bana.

— José

Bonifácio, em São

Cristovão.

— Barão do Rio Branco, em

Vila Isabel.

— D. Pedro II, no Engenho

Novo.

— Marechal Deodoro, no

Engenho de Dentro.

10 — Francisco Manuel, em

Madureira.

11 — Marechal Floriano, na

Penha.

12 — José

de Alencar, em Ja

carépaguá.

13 — Olavo Bilac, na Vila Mi

litar.

14 — Osvaldo Cruz, em Cam-

po Grande.

15 — Diogo Feijó, em Santa

Cruz.

Além dêstes, em cada escola

municipal foi instituído um Cen-

tro Cívico Escolar.

Estas instituições, espalhadas

por todo o Distrito Federal, como

se pode

verificar no mapa anexo,

teem a seu cargo a tarefa de exe-

cutar o programa

de ação do De-

partamento de Educação Nacio-

nalista.

Os Centros Cívicos Distritais

são destinados a coordenar e ori-

entar as atividades da infância' e

da juventude

da Capital da Re*

146 CULTURA POLÍTICA

pública quando à educação cívi-

ca, à educação física e à educação

artística.

Instalados em cad$ Distrito

Educacional e em perfeita

arti-

culação com os Centros Cívicos

Escolares —

que teem atividades

semelhantes e são a êles subordi-

nados, — destinam-se a influir

poderosamente nas crianças e nos

jovens brasileiros

quanto à for-

mação da conciência nacional.

Através de auditórios, bibliote-

cas, parques, ginásios

e instala-

ções complementares

— inclusive

para projeções cinematográficas

e

audições radiofônicas — cabe-lhes

uma ação regular e contínua, quer

nos dois turnos da secção diurna,

para crianças e adolescentes, quer

na noturna — destinada a adultos,

matriculados ou não nas escolas

públicas e

particulares.

Cada Centro Cívico tem como

responsável um professor

"Coor-

denador" e —

professores especia-

lixados para

as atividades de au-

ditório, biblioteca, cinema, de-

senho, trabalhos manuais, músi-

ca, canto orfeônico e educação

física, que,

também, conta com o

concurso adequado do serviço me-

dico.

A creação do Departamento a

que vimos de nos referir, marca-

rá uma nova fase de progresso

na

história da formação de uma con-

ciência nacional, capaz de tornar

o Brasil uma nação mais forte e

mais feliz.

O D.E.H.

AGE Eli TODO O DISTRITO FEDERAL

/

~

-./

! »sf ^

k

.

• -I A

DEPARTAtlf WTO j« EDUCA^AO

MACIWAllSTA

Sctvi^o dt Servi^o de Seivi^© de C. jcrvi^o de

E. Ci^kCA E fibica. fW*cdcAit»ilKJi CoireapondenciA

Cenlros Cfvfcos

JEdwca.ç4o HicioruloU.

d* Cf *nç*s aJo.

le*»c«rvt«^ c ddoltot».

£dtfca,f4o Jilauoruli^U

de cr An?*) Ad».

le*»c«rvt«^ c Adoltotx.

1

I

Razões de ser do D. A. S. P.

BEATRIZ MARQUES DE SOUZA

Oficial administrativo em exercício na Divisão de

Organização e Coordenação do Depaitamento

Administrativo do Serviço Público

Tendo-se especializado em Administrarão Pública na "School

of Public

AHnir*" da 4*American

University , em Washington, D. C.,E. U. A., real%

Sà"líS3£

™ninPdZrM;

«

fSBSffV''A^merTa^e 72SE

d? raió- tendo servido também no Conselho Federal do Serviço

°P^rc°a

&il9£'4"Z creação até

^ ^Unção

- a autora conUnua a

série de artigos sôbre a organização do DASPque esia revisia » «

tuiçâo de 1937*

MUITO

se tem escrito e fa-

lado sobre o D. A. S. P.

Onde quer que

se vá, há

de se ouvir referências a êle, co-

mentários a respeito desta ou da-

quela decisão sua. Trata-se, umas

vêzes, de concurso aberto, ou de

nova repartição creada; outras, de

modificação num regulamento de

pessoal, ou em normas relativas a

material . E muitas mais facetas

de sua atividade são objeto de

análise.

A um observador atento e

imparcial, não é preciso pesqui-

sar muito para

chegar à conclu-

são de que,

de um modo geral,

entre o funcionalismo ou entre

aquêles apenas indiretamente in-

teressados, a opinião assim ex-

pressa não é favorável ao D. A.

S. P.

Aquêles, porém, que

_

acom-

panham de

perto a atuação dêsse

órgão, sabem sem cabimento tal

conceito * Não podem,

entretan-

to, deixar de reconhecer quão

prejudicial é esse estado de coisas,

não só para

o D. A. S. P. pro-

priamente, como também para

o

processamento

da reforma admi-

nistrativa brasileira que o mes-

mo ajuda a levar avante.

"Porque é o D. A. S. P.

olhado com tanta antipatia"? per-

guntam êles.

RAZOES DE SER DO D. A. S. P.

\

Também não parece

necessá-

rio indagar muito para

saber a

resposta. E' que,

esse D. A. S. P.

de que

todos falam, ainda é,

paradoxalmente, desconhecido.

Sim, porque

não se sabe qual

sua

razão de ser, quais

os princípios

que motivaram sua creação; não

se tem idéia de seu papel

no sis-

tema administrativo federal, nem

de sua projeção

no cenário da vi-

da pública

do país.

O que

se sa-

be é ser êle o

"terror", o

"inimi-

go" do funcionalismo,

pois:

"Fu-

lano foi preterido

em sua última

promoção por causa do D.A.S.P."

(sic);

"Beltrano —

tão inteligente

e culto! —

foi inhabilitado em

concurso realizado pelo

D. A. S.

P." E outras mais situações dêsse

gênero são as

que cream um am-

biente injustamente hostil para

o

D. A. S. P.

Portanto, é indispensável tor-

ná-lo melhor conhecido. Dizer

porque, para que êle existe;

pro-

var que

foi creado por

absoluta

necessidade de existência de um

órgão de sua natureza; demons-

trar que,

si alguns de seus atos

não atendem a interêsses indivi-

duais, talvez justos,

é porque

re-

sultam da aplicação de critério

geral, o único

que consulta às con-

veniências da coletividade; fazer

sentir que

não se trata de um mo-

vimento de repercussões limitadas

a determinado setor da adminis-

tração, mas de um programa

de

racionalização de todo o mecanis-

mo administrativo.

Uma vez isso feito, não creio

que ainda houvesse

quem não se

sentisse animado a colaborar com

149

o D. A. S. P. tornando, assim,

possível a

plena realização de

seus objetivos.

•Para essa obra de divulgação,

claro é que

desejem contribuir es-

pecialmente aquêles

que, por o sa-

berem empenhado na reconstru-

ção de nosso sistema administra-

tivo sob mais sólidas bases de

economia e eficiência, nêle depo-

sitam suas esperanças de um Ser-

viço Público verdadeiramente ra-

cional.

Filio-me, com orgulho, a ês-

se grupo

dos que

acreditam no

D. A. S. P. Tentarei, pois

— e

o que

se segue é êsse ensaio —

con-

tribuir para

seu mais amplo co-

nhecimento pelo público, pro-

curando responder a várias per-

guntas que pairam no ar.

ii

Como bem diz John

A. Fair-

lie (1)

"in its broadest sense Pu-

blic Administration consists of

ali those operations having for

their purpose

the fultillment or

enforcement of public policy

as

declared by the competent auto-

rities".

Portanto, Administração Pú-

blica é a ação do Govêrno na

proteção à Vida, à Saúde e ao Tra-

balho; na orientação e fiscaliza-

ção da Educação; no fomento e

controle da Produção, da Indús-

tria e do Comércio; na Defesa Na-

cional; na construção das vias de

comunicações e transportes; e em

todas as demais funções que

dizem

respeito às finalidades do Estado.

FAIRLIE TOHN A. — Public Administration and Administrative Law,

• in'/

"Haines", C. G! and Dimock, M. E., eds., Essays on the Law and Pratice of

crovernatnental Administration, 1935» 3~43*

150 CULTURA POLÍTICA

Para executar esse progra- ou

"especiais", ou

"de

administra-

ma, a Administração precisa mon- ção especifica",

tar e fazer funcionar um meca- Hoje,

quasi já nem mais

nismo apropriado, no qual

caçla comporta discussão a tese de que

peça se entrose

perfeitamente o

exercício das atividades

"meios"

trabalhe em harmonia com as de- tem que

ser conferido a órgãos

mais. Na composição e no fun- exclusiva e especialmente consti-

cionamento dessas peças

— ou se- tuídos para

êsse fim. Porquanto,

ja no

que Leonard D. White

(2) si atribuídas aos

que teem a seu

denomina

"the management of cargo o desempenho de atividades

men and materiais in the accom- funcionais, não só desviarão, com

plishment of the

purpose of the seu volume e complexidade, a

State" - os mesmos elementos atenção

do comando para

sua so-

são sempre encontrados. Assim lução, em

prejuízo daquelas, co-

é que, nêste ou naquêle setor da mo não

poderão merecer toda a

Administração, nenhuma realiza- atenção que sua técnica especialis-

ção é levada avante sem

que haja sima demanda,

constituição e delimitação de au- Além disso, por

serem as

toridade; definição de objetivos; atividades institucionais, como já

formação estrutural racional e mé- ficou visto, comuns a todos os ór-

todos de trabalho adequados; pes- gãos da administração, é de todo

soai e material; e recursos finan- aconselhável evitar-se diversidade

ceiros suficientes. em seus processos

de execução,

Essas atividades não são, co- aplicando-se critérios

gerais, pa-

mo se vê, atribuição precípua

do dronizando-se normas e

processos

Estado, e, sim, verdadeiros

"meios" de trabalho, e controlando-se, me-

de que

êste se utiliza para

conse- diante supervisão única, o seu

cução de seus

"fins". exercício.

Classificam-nas os tratadistas Daí os

princípios que acon-

modernos -

especialmente os selham a execução das atividades

none americanos,Pq„e ao es.ndo * adm.msuraçSo geral

•da Administração Pública veem especializados, sob a onentaçao

dedicando especial carinho -

ora coordenaçao e fiscal.zaçao de um

como

"institucionais", ora como outro,

também especializado e co-

"housekeeping", ou

"auxiliares", locado no sistema administrativo

ou

"adjetivas", ou, ainda,

"de ad- «mo peça

central , de modo a

ministraçâo geral",

em contrapo- ter a visão de conjunto

que o ha-

^

bilite

a a<nr sempre no interesse

siçao as atividades que

constituem uiuit, a

0 ^

a finalidade precípua

do Estado, geral.

e a que

denominam

"funcionais", Não são outros os ensina-

ou

"primárias", ou

"substantivas", mentos de Willoughby (3),

Pfif-

(2) WHITE, L. D. — Introdution to the Study of Public Administration,

The Mac Millan Co., New York, pág. 6.

(3) WILLOUGHBY, W. F. Principies of Public Administration, The

Brookings Institution, Washington D. C., i927»

RAZOES DE SER DO D. A. S. P. 151

fner (4),

Walker (5),

White (6)

Lewis (7)

e alguns mais que

se de-

•dicaram ao estudo da Administra-

^ão Pública e

que tanto veem

contribuindo para colocar o meca-

nismo administrativo dos Estados

Unidos entre os mais eficientes ho-

je existentes.

Também nós vimos nos be-

neficiando do que

teem êles pre-

conizado. A legislação iniciada

-em 1936 obedece, inegavelmente,

à sua doutrina.

Com efeito, que

foi o Con-

selho Federal do Serviço Público

Civil sinão a tentativa — feliz-

mente coroada de êxito, — de

centralização da seleção de pes-

soai, conseqüente da implantação

do sistema do mérito; da super-

visão das demais fases de admi-

nistração de pessoal;

e da organi-

zação do nosso serviço público?

Moldado em linhas seme-

lhant.es às da

"Civil Service Com-

mission" norte americana, não foi

o Conselho, porém,

sinão uma

etapa na adoção daquêles princí-

pios. Menos de dois anos após sua

creação, foi o mesmo integrado

num órgão de mais complexa e

ampla ação: o D. A. S. P., ao

qual cabe

proceder à seleção de

pessoal para execução dos servi-

ços públicos, cuidar do aperfei-

çoamento do mesmo e readaptá-lo

a outras funções, quando

necessá-

rio; classificar os cargos e funções

públicas; examinar e

propor alte-

rações em níveis de remuneração;

orientar e fiscalizar a execução da

legislação referente a direitos e

deveres dos servidores públicos;

estudar, permanentemente,

a or-

ganização e funcionamento dos

serviços públicos, procurando

dar-

lhes melhor estruturação, evitan-

do conflitos de competência e pa-

ralelismo de funções e propondo

adoção de normas de trabalho

mais racionais; estudar a simpli-

ficação da variedade de material

em uso, estabelecendo padrões e

sugerindo melhores métodos para

aquisição, requisição, distribuição,

guarda e utilização de material.

E a todas essas funções virá jun-

tar-se, futuramente, mais outra de

maior relevância: a elaboração da

proposta orçamentária e a fisca-

lização da execução do orçamento.

No decorrer de seus traba-

lhos, assume o D. A. S. P., qua-

si sempre, o aspecto de um

"esta-

do maior" da Presidência da Re-

pública, isto é: não tem funções

executivas, mas opinativas; acon-

selha, não manda. Constituem ex-

ceção a essa regra as funções re-

lativas à seleção de pessoal,

à sim-

plificação e à

padronização de

material, em que

a multiplicidade

de execução grandes prejuízos

acarretaria, não só por

ser prová-

vel a falta de uniformidade de cri-

tério, como também por

se faze-

rem necessários bem maiores re-

cursos financeiros.

Como foi assinalado acima,

o D. A. S. P. é a peça

central do

(4) PFIFFNER, JOIIN M.

— Public Administration, The Ronald Press Co.,

New York, 1935.

(5) WALKER, HARVEY

— Public Administration in the United States,

Farrar and Rinchart, New York, 1937*

(6) WHITE, LEONARD D.

— Op. cit.

tn\ MERIAN, LF.WIS, e SCHEMECKEBIER, LAURENCE F. - Reorgani-

sation of the National Government, The Brookings Institution, Washington,

D. C., 1939.

152 CULTURA POLÍTICA

sistema de integração das ativida-

des de administração geral. Para

melhor compreensão desse con-

junto, convém acrescentar que

suas demais peças

são os Departa-

mentos de Administração e as

Comissões de Eficiência, dos Mi-

nistérios, e a Comissão de Orça-

mento do Ministério da Fazenda.

Cabem agora aqui —

pois

que me referi aos ensinamentos

dos mestres estadunidenses sôbre

o assunto —

algumas observações

a respeito do que

aquela grande

nação tem realizado nêsse tempo.

Em 1929, o

"Institue for Go-

vernment Research" da

"Broo-

kings Institution" propoz

a cen-

tralização, num

"Service of Ge-

neral Administration", das ativi-

dades institucionais do Govêrno

Federal Norte Americano (8). E'

tão evidente a identidade de pro-

pósitos entre êsse

plano e o

que

presidiu à creação do D. A. S. P.,

que parecem desnecessários maio-

res comentários sôbre êsse aspecto

da questão.

Quando a Brookings Insti-

tution apresentou tal proposta, já

vigorava, porém,

nos E. U. A., a

centralização das atividades rela-

tivas à seleção de pessoal

e cias-

sificação de cargos, na

"Civil Ser-

vice Commission"; das de orça-

mento, no

"Bureau of the Bud-

get", então no

"Treasury Depar-

tment"; das de organização, par-

te nêsse mesmo Bureau e parte

no

de

"Efficiency", existente desde

1916; e das de material, na

"Pro-

curement Divison" do

"Treasury

Department". Dêsse modo, em-

bora ainda houvesse carência de

unidade de comando, pelo

menos

já havia órgãos especializados

pa-

ra tratar dêsses assuntos.. Por ou-

tro lado, qualquer

reorganização

geral do sistema dependia de

aprovação do Congresso, o que

tornava difícil e demorada sua

realização. Acresce que

o grande

desenvolvimento do ramo admi-

nistrativo Federal Norte America-

no tornava muito mais complexa

a solução do problema.

Por essas razões, não pôde

obter concretização a proposta

da

Brookings. Gradualmente, po-

rém, veem sendo efetuadas reor-

ganizações parciais que importam

no reconhecimento da excelên-

cia de sua doutrina.

Assim é que

se extinguiu,

em 1933, o

"Bureau of Efficiency",.

e centralizaram-se no

"Bureau of

the Budget" os estudos de orga-

nização. E em 1939, em conse-

quência, especialmente, dos estu-

dos realizados pelo

Presidentas

Commitee on Adminisrative Ma-

nagement", e dos trabalhos efe-

tuados pelo próprio

"Bureau of

the Budget", foi êste último sub-

metido a uma reforma, mediante

o

"Plano

de Reorganização n. 1"

e várias

"Executive

Orders (9).

Hoje, compreende o Bureau 5

di-

visões:

"Estimates", "Fiscal", "Le-

gislative Reference",

"Administra-

tive Management" e

"Statistical

Standards".

A adoção integral daquela

proposta continua a ser

por mui-

(8) Proposal for a Service of General Administration of the National Go-

vernment of the United States, "Public

Personnel Studies" December, 1929, Vol. 7,

11. 12, págs.

166-179.

(9) U. S. A. Government Manual, U. S. A. Government Printing Officc,.

Washington, D. C.

RAZOES DE SER DO D. A. S. P. 153

tos aconselhada, mas se apresenta

bastante difícil, visto como a gran-

de expansão do Poder Executivo

norte americano, nêstes últimos

anos, acarretou um formidável de-

senvolvimento das atividades de

administração geral,

a ponto

de

tornar talvez demasiadamente vul-

tosos os encargos que

seriam atri-

buídos ao

"Service

of General Ad-

ministration".

Do exposto se verifica que,

consideradas as grandes

diferen-

ças existentes entre os ambientes

a que pertencem,

são bem seme-

lhantes as organizações adminis-

trativas brasileira e americana.

Os princípios

doutrinários em que

se baseiam são da mesma origem, e

nossos administradores teem pro-

curado aqui aproveitar, adaptan-

do-os a nosso meio, os ensinamen-

tos que

a experiência norte ame-

ricana possa

nos oferecer. Tam-

bém o D. A. S. P. segue essa

orientação, para

o que

envia,

anualmente, mediante seleção,

funcionários federais aos Estados

Unidos, para

realização de cursos

em universidades e estágios em re-

partições públicas e na indústria

privada.

Sendo reconhecidamente efi-

cientes os serviços públicos

norte

americanos, a manutenção dessa

política permite considerar-se,

pa-

ra os nossos serviços públicos

e,

em conseqüência, para

o país,

bas-

tante animadora a perspectiva.

Po-

rém, mais, muito mais o seria, si

aqueles que,

numa luta surda, fa-

zem com que

o trabalho de racio-

nalização efetuado pelo

D. A. S. P.

só consiga progredir

à custa do es-

forço sobrehumano de uns tantos

idealistas e patriotas, procuras-

sem, ao invés disso, examinar,

criteriosamente, as atividades dês-

se órgão, prestando

atenção não

apenas a um ou outro aspecto iso-

lado —

que pode, mal situado, ser

impropriamente compreendido —

mas ao todo, à grande

obra que

se

realiza. Que

essas pessoas

não

neguem, antes de ver; que

não

tentem destruir sem siquer ter

noção do que

se está construindo.

Que, animadas de espírito

patrió-

tico e progressista,

estudem o que

é e o que

faz o D. A. S . P., pa-

ra saber que

muito mais poderá

êle ser e fazer si puder

continuar

seu caminho num ambiente de

compreensão e boa vontade.

Evolução da

política

republicana

AZEVEDO AMARAL

'0?

'

na /ase anterior à vitória revolucionaria de 1930

Estudando

em artigo pu-

blicado na edição anterior

de Cultuvcí Política a evo-

lução da política

imperial, ti-

vemos ensejo de mostrar como os

acontecimentos naquêle

período

da história brasileira obedeceram

à ação de influências, que se vi-

nham caracterizando desde eta-

pas precedentes da formação na-

-cional. Passando agora à analise

da marcha progressiva

da política

republicana, devemos desde logo

acentuar que

o mesmo fato não se

reproduziu no ciclo historico que

vamos examinar. Na evolução da

política republicana observa-se

muito menos lógica no encadeia-

mento das suas sucessivas fases e

sobretudo é impressionante a fal-

ta de uma concatenização perce-

ptível entre o desenvolvimento das

instituições republicanas e os efei-

tos de influências anteriores ao

estabelecimento do regime surgi-

do do golpe

militar de 15 de No-

vembro.

A República de 1889

e as ideologias

republicanas

elaboradas no período

impe-

rial e provindas

mesmo do fim

da época colonial não se acham

vinculadas por uma associaçao,

que torne o advento do regime re-

publicano uma conseqüência

na-

tural e lógica da difusão de cor-

rentes caracterizada por uma coe-

sa orientação democrática. Tem-

se insistido tanto na existência de

uma idéia republicana, que se te-

ria tornado verdadeira tradição,

mantida e desenvolvida ati aves

dos sete decênios de regime mo-

nárquico, que a lenda de um íe-

publicanismo histórico se integrou

no espírito público,

como fato real

e indiscutível. Entretanto, o exa-

me mais cauteloso da história do

pensamento político brasileiro

não parece justificar

o que pela

grande maioria é aceito como ma-

teria pacífica.

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA 155

Para tornar bem claro o ponto

<que estamos apreciando, é neces-

sário distinguir cautelosamente

dois aspectos diferentes do assun-

ito em aprêço. De certo modo po-

de-se afirmar que

uma tendência

republicana existiu no Brasil, des-

de a época em que

condições fa-

voráveis facilitaram o surto de as-

pirações nacionalistas e a medita-

ção sobre temas

políticos. A' se-

melhança do que

ocorreu sempre

países novos de formação co-

lonial e nos quais

a sociedade se

dividia em classes, não havendo

na camada superior grandes

di-

ferenças de nível econômico, esta-

beleceu-se entre nós no período

colonial uma situação de igualda-

de dos elementos constituintes do

grupo que representava a elite di-

rigente. Assim não havia famí-

lias que

ocupassem posição

de pre-

ponderância, capaz de outorgar-

lhes títulos para

se candidatarem

a tornar-se a dinastia nacional,

quando a emancipação

política do

país viesse a ser uma realidade.

Um sentimento de igualdade so-

ciai nivelava os membros do que

se poderia

chamar a nossa classe

aristocrática, que

era constituída

pelos grandes proprietários terri-

toriais. Todos julgavam-se

com

os mesmos direitos e de fato ti-

nham razão para

isso, sendo por-

tanto inconcebível qualquer

fu-

tura forma de organização inde-

pendente da Nação, em

que os

membros dessa elite não comparti-

lhassem em termos idênticos no

govêrno do

país.

Daí a impossibilidade da ada-

tação de instituições monárquicas

a um ambiente em que

nada per-

mitia o surto de uma dinastia. A

forma de govêrno para

a qual

ins-

tintivamente gravitavam

as aspi-

rações dos que

começavam a for-

mular idéias vagas sobre a inde-

pendência, era forçosamente a de

uma organização política,

na qual

os representantes do feudalismo

agrário, que

empiricamente se

constituíra, seriam os árbitros dos

destinos da Nação. Em outras

palavras, elaborara-se subconcien-

temente na classe superior do pe-

ríodo colonial uma idéia republi-

cana, plasmada

segundo as linhas

de uma organização aristocrática.

Era a idéia formulada em termos

precisos em 1710

por Bernardo

Vieira de Melo, ao propor

a ins-

tituição de uma república, copia-

da nas suas linhas gerais

do mo-

dêlo veneziano. Na Inconfidên-

cia esse pensamento já

não se

apresenta com a mesma clareza,

porque no espírito dos conspira-

dores de Vila Rica já

começavam

a infiltrar-se as idéias que

na mes-

ma ocasião iam propelir

o revolu-

cionismo francês e haviam chega-

do até o altiplano mineiro, como

importações culturais da Europa

trabalhada pelas

conseqüências

políticas das idéias do século

XVIII.

Foi a introdução dêsse exotis-

mo cultural, que

a partir

do mo-

mento assinalado pela

conspira-

ção frustra dos

patriotas de Minas

Gerais atuou em diversos pontos

do nosso território, dando lugar

ao aparecimento de núcleos de ir-

diação ideológica, identificados

com uma nova forma de republi-

canismo. O que

se poderia

cha-

mar de autêntica tradição republi-

cana do Brasil era anterior e na-

da tinha de comum com o pensa-

mento promanado

das influências

156CULTURA POLÍTICA

que se originaram nas idéias de

Rousseau e nas tendências do

enciclopedismo francês. O nosso

republicanismo colonial emergira

espontaneamente das condições

econômicas e sociais do meio bra-

sileiro. Tinha assim as caracte-

rísticas 'inconfundíveis de uma

creação autêntica das forças pias-

madoras da nacionalidade e era,

portanto, uma corrente mais ins-

tintiva que

ideológica, integrada e

profundamente enraizada na rea-

1 idade nacional.

O republicanismo, que a

partir

do fim do século XVIII aparece,

refletindo em terras americanas a

ação longínqua dos catastróficos

acontecimentos que subvertiam a

antiga ordem européia, era de

natureza muito diferente. Tra-

tava-se neste caso do efeito da

elaboração meramente subjetiva

processada nos espíritos mais cul-

tos e mais fortemente influencia-

dos pela

observação daquêle agi-

tado e fascinante período

históri-

co. Êsse republicanismo destaca-

va-se da realidade brasileira, ao

ponto de não apreender em

que

proporções as fórmulas renovado-

ras do revolucionismo francês

contradiziam a nossa realidade

geográfica, econômica e social,

tornando-se evidentemente inada-

ptáveis à solução do

problema

político, que se iria apresentar aos

contrutores da nacionalidade in-

dependente.

Um surto de dema-

gogia republicana

veiu a intercalar-se no curso

da nossa evolução política

nos

anos imediatamente precedentes

à

emancipação do rompimento dos

nossos vínculos com a metrópole.

Com a transferência da séde da

monarquia portuguesa para

o Rio

de Janeiro,

começaram a afluir ao

Brasil elementos empolgados pela

ideologia revolucinária que se

propagara de França e

penetrara

em larga escala em Portugal com

a invasão napoleônica. O prestí-

gio das idéias revolucionárias,

aqui chegadas desde o fim do sé-

culo XVIII, exercera-se até então

quasi exclusivamente em um cír^

culo social limitado a certos meios

da classe superior da sociedade

brasileira. Eram elementos inte-

lectuais que

acompanhavam os

acontecimentos da Europa, ad-

quirindo dêles e das forças ideo-

lógicas em jôgo

um conhecimento

tão minucioso e preciso, que

cau-

sava surpresa e quasi

espanto aos

viajantes ilustres que

visitavam o

nosso país.

No espírito desses brasileiros,

mais ou menos cultos todos êles,

e na sua grande

maioria coloca-

dos em situação econômica e so-

ciai confortável, a ideologia revo-

lucionária não passava

de fonte

de prazer

intelectual e entre a

aceitação teórica dos postulados

do

republicanismo democrático e

qualquer tendência à sua aplica-

ção prática mais ou menos ime-

diata havia para

aquêles homens

um abismo intransponível. Bem

outra era a maneira como os fatos

políticos se apresentavam aos ele-

mentos de uma classe socialmente

inferior, que

se encaminharam pa-

ra o Brasil após a vinda da famí-

lia real para

o Rio de Janeiro.

Esta nova categoria de republi-

canos sentia impaciência em trans-

formar em realidades concretas a

ideologia mal digerida e defeituo-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA

samente assimilada, que haviam

absorvido na atmosfera da Euro-

pa agitada

pelo terremoto revo-

lucionário. O republicanismo

dessa gente

assumiu logo a forma

de uma atividade demagógica, que

por ser exercida subterraneamen-

te não era menos eficiente na de-

terminação de graves

efeitos per-

turbadores da vida brasileira. Por

volta de 1815 começaram a surgir

as lojas maçônicas, que

se multi-

plicaram rapidamente. Eram nú-

cleos de irradiação revolucionária,

donde, se incontestavelmente par-

tiam idéias de emancipação nacio-

nal, se projetavam

sobretudo ten-

dências fortemente coloridas pelas

expressões mais radicais do pensa-

mento revolucionário de 1789 e

1792.

Êsse movimento inconfundivel-

mente demagógico e com finalida-

des subversivas bem patenteadas

nas crises revolucionárias nordes-

tinas de 1817 e 1824 fez sentir a

sua influência nas agitações do

primeiro reinado e adquiriu

pro-

porções particularmente acentua-

das no decurso da Regência. Mas

após a proclamação

da maiorida-

de de Pedro II e sobretudo depois

de subjugado o movimento revo-

lucionário de 1842 e pacificada

em 1845 a província

do Rio Gran-

de do Sul, a influência do repu-

blicanismo exótico, transplantado

de Portugal no princípio

do sé-

culo, dissipou-se rapidamente,

sem deixar vestígios apreciáveis na

opinião pública, que

a experiên-

cia desoladora da Regência desi-

ludira do democratismo e aceita-

ra satisfeita a afirmação do po-

der imperial.

O republicanismo

organizado

só começa a esboçar-se com a

iniciativa concretizada no Con-

gresso de Itü e no Manifesto de

Campinas, publicado

em 3

de De-

zembro de 1870. Na gênese

das

correntes políticas que

então se

encaminharam de modo definido

para o combate às instituições mo-

nárquicas entraram vários fatores.

Um dêles e de certo modo o mais

importante foi o esgotamento das

forças do partido

liberal, que

ha-

viam mantido nesta agremiação

política vestígios mais ou menos

acentuados das vagas idéias repu-

blicanas do fim da época colonial

e dos dois primeiros

decênios do

Império. Após o abandono da

política de fusão dos

partidos,

concebida e executada pelo

mar-

quez de Paraná, o liberalismo res-

tabelecido como força partidaria

e de novo em concorrência com

os conservadores não apresentava

mais traços apreciáveis das influ-

ências radicais, que

anteriormen-

te o haviam de certo modo torna-

do ambiente propício

ao cultivo

de tendências republicanas.

Assim os liberais que poderiam

ser qualificados

de adiantados e

radicais sentiram-se deslocado nas

novas configurações do liberalis-

mo, que

se convertera incondicio-

nalmente ao regime monárquico,

conversão que

tivera espetacular

exemplificação no que

foi enca-

rado pelos

contemporâneos como

a apostasia de Sales Torres Ho-

mem. Para êsses elementos, cuja

orientação ideológica era incom-

patível com o novo feitio do

par-

tido liberal, as perspectivas

de

uma carreira política

dentro dos

quadros monárquicos

passaram a

158 CULTURA POLÍTICA

ser extremamente problemáticas.

Era, portanto,

natural que

na ló-

gica da situação assim delineada

os descontentes do partido

liberal

se congregassem em uma nova

facção, francamente caracterizada

pela hostilidade ao regime impe-

rial.

A este motivo político

do surto

das formações republicanas asso-

ciavam-se outras razões, que

re-

forçavam o movimento solene-

mente definido nos termos do his-

tórico Manifesto de Campinas. As

guerras do Prata e a campanha do

Paraguai haviam colocado o Bra-

sil em um contacto muito mais

direto e íntimo com o espírito re-

publicano predominante em tôdas

as outras nações do nosso conti-

nente. Surgia assim um fator sen-

timental, que

viria a ter grande

influência no incremento ulterior

do republicanismo. E ao lado

dêle uma determinante de ordem

econômica também fazia sentir a

sua ação orientada, de modo a ca-

var uma separação cada vez maior

entre a nova geração

e as insti-

tuições monárquicas.

A partir

de 1850 a economia

brasileira entrara em uma fase de

expansão apreciavelmente acele-

rada. O desenvolvimento das

construções ferroviárias determi-

liara efeitos altamente estimulan-

tes sôbre as atividades agrícolas,

acentuando sobretudo a propaga-

ção rápida da lavoura cafeeira

pa-

ra novas zonas. Com o desloca-

mento dos cafesais das regiões flu-

minenses do vale do Paraíba para

o norte de S. Paulo e depois na

direção de oeste da província

ban-

deirante, verificou-se nestas no-

vas áreas de exploração do café

um surto econômico, cujas pro-

porções não tardaram em reper-

cutir em um progresso

acelerado

de S. Paulo.

A formação de novos e impor-

tantes interêsses na região paulis-

ta redundou na eclosão ali de

preocupações concernente a uma

ampliação da autonomia adminis-

trativa, encarada como impres-

cindível ao aproveitamento em

larga escala das possibilidades

de

riqueza, que

tão inconfundivel-

mente se vinham apresentando.

Sob a pressão

destes novos fatores,

as aspirações federalistas que já

se haviam aplacado mesmo nas

regiões do país,

onde anterior-

mente se tinham manifestado com

maior vigor, recrudesceram. E

agora S. Paulo, que

acelerada-

mente se ia tornando a mais im-

portante região econômica do<

país, passava a ser o

principal fo-

co de irradiação das reivindica-

ções autonomistas. O federalis-

mo nascente em S. Paulo atuou

como estimulante poderoso

das

idéias análogas que

estavam ador-

mecidas em outras províncias

e

notadamente no Rio Grande da

Sul, onde o cilo de guerra

civil,

encerrado pela pacificação

de

1845, deixara indeléveis e fortes

traços de um tenaz espírito fede-

ralista.

Em face do reaparecimento das

aspirações autonômicas das pro-

víncias mais importantes, que

se

apresentavam influenciadas por

motivos novos de ordem econômi-

ca, cuja eficácia era incomparavel-

mente maior que

a das razões sen-

timentais do federalismo dos pri-

meiros tempos do Império, a mo-

narquia encontrava-se em posição

muito difícil. O êrro mais grave

do regime imperial nesse setor po-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA

lítico fôra animar os partidaris-

nios regionais com o Ato Adicio-

nal de 1834, ao mesmo tempo que

mantinha e de certo modo acen-

tuava mesmo um rígido sistema

de administração fortemente cen-

tralizada. As províncias

mais im-

portantes se haviam tornado nú-

cleos de fôrças políticas

locais,

cuja influência era tacitamente

reconhecida pelo poder

central

em tudo que

se inscrevia na ór-

bita propriamente política

da vi-

da regional. Mas enquanto des-

frutavam êsses privilégios

de na-

tureza política,

as províncias

ti-

nham a sua administração inter-

na colocada na esfera do govér-

no, que

do centro regulava o rit-

mo das mais íntimas -atividades

administrativas e econômicas de

cada província.

Semelhante estado de coisas era

evidentemente insustentável, em

face da expansão econômica que

se verificava em certas regiões e

notadamente no sul do país,

so-

bretudo em S. Paulo, onde à

sombra da prosperidade que

ia

sendo creada pelo

café se desen-

volvia um compreensível senti-

mento de orgulho regionalista.

As aspirações

federalistas

representam portanto,

desde a

década de 70,

o elemento vitaliza-

dor e propulsor

da propaganda

republicana. O Império, preço-

cemente envelhecido e restrin-

gido na sua capacidade renovado-

ra pelo

ritmo da acanhada menta-

lidade política

de PedroII, mos-

trou-se inapto para

uma obra de

reajustamento, que

lhe poderia

ter permitido

a sobrevivência.

Anos mais tarde, já

ao avizinhar-

se o colapso das instituições mo-

nárquicas, a necessidade inadiável

da transformação do Império uni-

tário em organização federativa

impunha-se a muitos dos mais es-

clarecidos espíritos que

milita-

vam nas fileiras da política par-

tidária.

"Federação

com o Impé-

rio" reclamava Joaquim

Nabuco.

''Federação com ou sem o Impé-

rio" retrucava Rui Barbosa, como-

expoente da ala do partido

libe-

ral que

aceitava implicitamente o-

sacrifício das instituições vigentes.

Para o entendimento claro da

processo ulterior de evolução da

política republicana é imprescin-

dível acentuar que

a incompati-

bilidade entre a monarquia e a

Nação resultou, não de um anta-

gonismo essencial da opinião

pú-

blica ao regime monárquico, mas

da contradição iniludível entre as-

novas realidades da economia bra-

sileira e a obsoleta organização ad-

ministrativa, rigidamente centra-

lizada da Constituição de 1824.

As fôrças

demagógica?

que desempenharam do última

decênio da monarquia papel

sa-

liente na agitação do espírito das

massas e sobretudo das novas ge-

rações, suscitando nelas correntes

sentimentais de hostilidade ao-

Império, tiveram influência in-

comparavelmente menor que

se

lhes poderia

atribuir, diante da

lenda creada ao redor da propa*

ganda republicana. A atuação-

dos propagandistas populares

foi

limitada na sua órbita de influên-

cia e extremamente superficial e

efêmera nos seus efeitos. O repu-

blicanismo demagógico não pas-

sou de um fenômeno que

não se

fez sentir para

além dos ambien-

160 CULTURA POLÍTICA

tes acadêmicos e de círculos so-

ciais, que

nas condições da época

não dispunham absolutamente de

meios para

operar uma transfor-

inação institucional.

A Abolição e a Quês-

tão Militar

foram por

outro lado episódios,

cuja repercussão nacional teve in-

caiculávcl alcance no determinis-

mo da proclamação

da Repúbli-

ca. Em ambos os casos os acon-

tecimentos foram aproveitados e

explorados com inexcedível habi-

1 idade por Quintivo

Bocaiúva, o

mais eficiente dos propagandistas,

senão o único cuja atuação exer-

ccu influência verdadeiramente

decisiva sobre o curso do movi-

mento anti-monárquico. Os sin-

tomas de decadência do Impe-

rio, manifestados em tantas das

expressões da vida política

do

país, delinearam-se com rcáxima

nitidez na questão

militar e na

campanha abolicionista.

A necessidade da substituição

do trabalho escravo pela

ativida-

de economicamente superior do

homem livre era tão evidente,

que nem mesmo os mais ferrenhos

conservadores e os espíritos mais

rotineiros se atreviam a defender

a instituição servil, justificando-a

com argumentos ideológicos. E

essa necessidade se tornara ainda

muito mais imperiosa, quando

o

surto da lavoura cafeeira de São

Paulo impoz o desenvolvimento

de uma política

imigratória, sem

a qual

seria evidentemente inviá-

vel o plano

ambicioso da avança-

da dos cafesais para

o oeste. Mas

o afluxo de trabalhadores brancos

era inexequível, em face da re-

pugnância dos europeus em virem

trabalhar ao lado de negros escra-

vos nas nossas lavouras. Foi com-

preendendo êsse

ponto essencial

da questão, que

os agricultores e

políticos paulistas se tornaram os

campeões da abolição e foram de

fato os que

decisivamente contri-

buíram para

a realização da gran-

de reforma.

A atitude do poder

imperial ti-

nha pois

de pautar-sé pelo

reco-

nhecimento da necessidade de re-

organizar o trabalho nacional,

em harmonia com as injunções

inconfundíveis dos tempos novos

e de realidades sem precedente

no passado.

Mas entre a simpatia

e o apoio que

a coroa devia dar

ao movimento em prol

da eman-

cipação dos escravos e uma a ti-

tude desabridamente demagógica,

pondo-se à frente do mais avan-

çado radicalismo abolicionista,

havia muita diferença.

Em artigo ulteriormente publi-

cado em Cultura Política acer-

ca da evolução da política

im-

perial, tivemos ensejo de assinalar

que durante o último decênio da

monarquia o velho imperador en-

veredara pela

demagogia, em uma

tentativa baldada de captar para

a dinastia o apôio popular.

No

plano político essa tendência ca-

racterizou-se na substituição das

eleições indiretas, únicas consen-

tâneas com a realidade brasileira,

por um

processo de eleição dire-

ta, cuja finalidade era apenas di-

minuir a fôrça e a influência dos

elementos que justificadamente

dirigiam a política

nacional. Na

esfera social e econômica a mes-

ma tendência fez-se sentir em re-

lação ao abolicionismo, de que

a

princesa herdeira da coroa se tor-

nou figura exponencial, obede-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA 161

cendo evidentemente à orienta-

ção traçada

pelo próprio sobe-

rano.

Com a sua atitude no caso da

questão servil, a monarquia afas-

tou de si as principais

forças di-

rigentes da Nação, representadas

pela classe dos

proprietários ter-

ritoriais. E foi nêsse meio que

nos

últimos anos do Império se veri-

ficou o maior número de deser-

ções das fileiras monárquicas

pa-

ra o campo republicano, trazendo

esses elementos uma força efetiva

e respeitável, cujo concurso deu

extraordinário ímpeto à onda re-

publicana.

Paralelamente ao afastamento

das forças sociais mais identifica-

das com o regime e cujo apôio lhe

era indispensável, o poder

impe-

liai deixou que

os políticos pro-

fissionais, tradicionalmente hos-

tis às classes armadas creassem e

mantivessem em aberto uma peri-

gosa questão militar. O estudo

dêsse assunto não poderia

ser

mesmo sucintamente feito aqui,

ihas não podemos

nos abster de

registrar que

essa crise, cujo de-

senvolvimento trouxe na sua lógi-

ca o colapso da monarquia, envol-

ve a demonstração mais impres-

sionante da falta de senso políti-

co, senão mesmo de lastimável di-

minuição dos sentimentos patrió-

ticos dos homens que

dirigiram o

Império no período

final do ci-

cio monárquico. Ter permitido

que insignificantes

questões disci-

plinares, facilmente solucioná-

veis por

medidas de simples bom

senso, se transformassem em um

verdadeiro rompimento do poder

político com as forças armadas, é

realmente uma das mais surpre-

endentes exibições de inépcia que

é possível

imaginar.

O advento da Republica

ocorreu em uma atmosfera ine-

quivocamente influenciada

por

três fatos de preponderante

rele-

vância. O primeiro

era a ascen-

dência que

as idéias federalistas

haviam conquistado sobre o espí-

rito da camada dirigente do país.

A este ponto

capital vinculam-se

outros dois elementos. Um deles

era a desorganização da econo-

mia agrícola que

se observava em

muitas regiões do país,

como

efeito da abolição realizada em

um ambiente demagógico e sem

que o

poder público tivesse toma-

do as medidas imprescinpíveis pa-

ra a substituição normal do es-

cravo pelo

trabalhador livre. Fi-

nalmente a questão

militar, tra-

zendo o Exército, contra a sua

vontade, para

arena política,

conferiu automaticamente às cias-

ses armadas uma função decisiva

na plasmagem

da nova ordem na-

cional. No estudo das determi-

nantes da evolução da política

re-

publicana, a

primeira questão a

ser examinada é o papel

dos mili-

tares na crise histórica de 1889.

A intervenção do Exército, pre-

ci pitando

a proclamação

da Re-

pública, constitue um dos episó-

dios mais felizes de todo o desen-

volvimento histórico do Brasil.

Quando se analisa o

papel das

forças armadas em 15 de Novem-

bro de 1889, a conclusão que

se

impõe, com a força irresistível

de uma verdade insofismável, é

que naquela ocasião o Exército

prestou ao

país um serviço muito

maior ainda que

o simples impe-

to dado pelo golpe

militar ao pro-

132 CULTURA

gresso político d<i nacional idade.

A iniciativa resoluta de Deodoro

e dos outros elementos militares

que cercaram o

glorioso veterano,

teve antes e acima de tudo o ca-

ráter de um gesto

salvador da

própria existência política

da Na-

ção.

Quando o

gabinete Ouro Pre-

to encetou a sua obra de vigorosa

reação anti-republicana em

Junho

de 1889, já

se tornara evidente que

a queda

da monarquia era ine-

vitável. Os dias do regime esta-

vam contados e o seu encerramen-

to previamente

designado para a

hora em que

terminasse a vida já

em franco declínio de Pedro II.

As forças sentimentais sempre tão

poderosas no nosso meio

garan-

tiam o prolongamento

da agonia

do regime, que

assim iria morrer

no momento em que

desapareces-

se o soberano, cercado pelo

res-

peito e carinho da imensa maio-

ria dos brasileiros. Mas êsse mo-

do de encarar a solução do proble-

ma nacional, embora refletisse a

nobreza de alma da nossa gente,

envolvia um êrro político,

capaz

de acarretar tremendas e imprevi-

síveis possibilidades.

O Império identificara-se por

tal modo com a personalidade

do

segundo Imperador e a tenacida-

de da vontade de domínio dêste

atrofiara por

tal forma as forças

ativas da política

nacional, que

o

desaparecimento daquela figura

central determinaria em quais-

quer circunstâncias uma crise

muito grave.

Os perigos

de se-

melhante situação haviam se tor-

nado incomparavelmente maio-

res diante dos sinais de uma re-

ação concertada para

assegurar

o êxito do terceiro reinado.

POLÍTICA

Em uma atmosfera tranqüila,

em que

a substituição da mo-

narquia pela república

por oca-

cião da morte de Pedro II fos-

se aceita como ponto pacifico pe-

la maioria da Nação, a mudança

de instituições podia ser aguar-

dada com a paciência

e serenida-

de que

caracterizava a atitude de

muitos republicanos, entre os

quais provavelmente

figurava o

próprio Benjamin Constant.

Mas a orientação do Ministério

Ouro Preto mudara por

comple-

to a fisionomia política do

país.

Os partidários

do terceiro reina-

do reinado organizavam-se e mo-

bilizavam as suas forças para

com-

bater o republicanismo que avan-

cava. Em tais circunstâncias, a

morte do Imperador assinalaria a

hora do comêço de uma guerra

ci-

vil. E o Brasil de 1889 não teria

podido talvez conservar a unida-

de da sua personalidade política

diante dos choques de uma luta,

que assumiria talvez as mais amea-

çadoras proporções. Foi êsse

imenso perigo que

as classes ar-

madas evitaram, precipitando

a

proclamação da República e sal-

vando assim o país

da mais peri-

gosa crise de todos os tempos.

As diretrizes dos ho-

rriens de 1889

O regime republicano nasceu

entre nós como resultante da ação^

convergente de forças geradas

no

dinamismo social e econômico do

país e não como conseqüência da

influência exercida pelas

tendên-

cias ideológicas de uma minoria

dirigente. A revolução de 1889 foi

um movimento emergido do sub-

conciente nacional, embora as

condições culturais da Nação na-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA 163

quela época não

permitissem a

comparticipação efetiva das mas-

sas populares

nos acontecimen-

tos de que

redundou a proclama-

ção da Republica.

À semelhança do que

ocorrera

em 1822 na crise da Independên-

cia, a República surgiu sem que

o seu advento fosse, mesmo em

parcela muito

pouco considerá-

vel, determinado por

uma atitude

insurreicional do povo.

Êste, con-

forme o testemunho autorizado e

insuspeito de um dos mais pre-

eminentes protagonistas

do 15 de

Novembro,

"assistiu bestializado"

a queda

da monarquia e o nasci-

mento da República. A frase cé-

lebre de Aristides dá Silveira Lo-

bo, bem característica na sua bru-

talidade do temperamento da-

quêle republicano histórico, foi

também uma expressão rigorosa

do espírito de veracidade do seu

autor. E o alcance dá observação

tão melancolicamente pessimista

de Aristides Lobo tem inexcedí-

vel relevância, quando

se procura

interpretar a evolução ulterior da

política republicana. O regime

democrático foi instituído entre

nós sem que

o povo

tivesse com-

partilhado ou

pelo menos se in-

teressado pela grande

metamor-

fose política que

se operava.

O fenômeno mais impressionan-

te que

se depara ao estudioso da

história na primeira

República

encontra a sua chave interpreta-

tiva naquela indiferença, que

con-

tinuou durante quarenta

anos,

mantendo uma separação profun-

da entre o Estado republicano e

as massas da população

brasileira.

A causa desse lato tão desconcer-

tante e cujos efeitos foram de

tanto alcance, encontra-se em unia

circunstância a que já

aludimos

em linhas anteriores. A propa-

ganda republicana verdadeira-

mente eficiente e da qual

a mais

típica exemplificação temo-la no

apostolado jornalístico

de Quin-

tino Bocaiúva, exerceu a sua in-

fluência apenas em certos meios

da elite nacional. E essa propa-

ganda explorou apenas temas de

atualidade prática,

difundindo na-

quêles meios a convicção de

que

uma transformação institucional

poderia solucionar

problemas pre-

mentes da vida da nacionalidade.

Dando assim um cunho pra-

gmatista à sua

propaganda, Quin-

tino Bocaiúva patenteou

os tra-

ços superiores da sua mentalidade

de estadista e a grande

capacida-

de que possuía

como homem de

ação revolucionária. Mas por

outro lado uma propaganda

con-

duzida em tais termos tinha for-

çosamente de deixar a opinião

pú-

blica dirigente sem adequada òri-

entação ideológica, que

lhe per-

mitisse vir a tornar-se um ele-

mento de colaboração conciente

e ativa no momento da organiza-

ção das novas instituições. A cam-

panha demagógica feita

paralela-

mente pelos pregadores populares

da República também não trou-

xe contribuição alguma, no senti-

do de educar o povo

sôbre a natu-

reza do regime que

lhes era apre-

sentado como fórmula de renova-

ção nacional. O leit motiv das

declamações desses propagandis-

tas era invariavelmente a diatri-

be contra a dinastia bragantina e

contra os políticos que

militavam

nos partidos

monárquicos. Êsse

caráter puramente

negativista e

164 CULTURA POLÍTICA

demolidor da evangelização po-

pular da República explica o fe-

nômeno extranho que Aristides

Lobo registou, em palavras

tão ás-

peras, no seu comentário sarcásti-

CO sôbre a atitude do povo

em 15

de Novembro de 1889.

A corrente positivista

destaca-se no nascimento da

República como isolada manifes-

tação de um sentido ideológico

definido, a que

a ausência de fôr-

ças intelectuais

que o contrabalan-

çassem deu um

poderio desmedi-

do naquêle momento histórico. O

núcleo contista, que

representou

papel tão

proeminente na fase

inicial do período

republicano,

era na sua maioria constituído por

oficiais do Exército, sôbre os quais

se exercera a influência educacio-

nal de Benjamin Constant, um

dos primeiros

adeptos da filoso-

fia positivista

no Brasil. Trata-

va-se de uma pleiade

de moços,

alguns dêles de grande

valor in-

telectual e todos equipados por

uma sólida cultura fundamental,

o que

os tornava no momento

uma fôrça, não apenas de orien-

tação espiritual do Exército, co-

mo também de atuação conside-

rável no conjunto da vida nacio-

nal.

O grupo

contista do Exército,

a que

se associavam elementos ci-

vis, cuja insignificância numéri-

ca era compensada pela

autorida-

de cultural e moral que possuíam,

constituía ao tempo da proclama-

ção da República um núcleo de

elite, cujo sólido preparo

cientí-

fico contrastava com o beleletris-

mo superficial que

caracterizava a

grande maioria da classe dirigen-

te do Império. Assim orientados,

os positivistas

estavam natural-

mente predestinados

a impor o

cunho das suas idéias na plasma-

gem das instituições republicanas,

para cujo advento haviam contri-

buído em larga escala como agen-

tes de infiltração republicana nos

quadros do Exército.

Considerada de um modo ge-

ral, a influência do núcleo de dis-

cípulos de Augusto Comte foi be-

néfica, como fôrça orientadora da

evolução da política

republicana.

Realmente, se sob certos pontos

de vista os positivistas

comprome-

teram o vigor dos sentimentos na-

cionalistas, devido ao prestígio que

sôbre eles exerciam utopias hu-

manitárias e ilusões pacifistas,

é

incontestável que

à influência do

positivismo se deve

principalmen-

te terem sido muito atenuadas as

tendências liberais - democráticas

que, sem a ação moderadora da-

quela corrente, teriam

provável-

mente levado o país

ao estabele-

cimento de instituições, em que

se prolongaria

o parlamentarismo

anarquisante da época anterior.

Foram os positivistas que

in-

cutiram na república nascente as

idéias sadias de um autoritarismo

em harmonia com o espírito re-

publicano, autoritarismo

que foi

nos primeiros

anos da nova or-

dem política

fator decisivo da

consolidação do regime e da re-

pressão eficaz das forças anarqui-

santes de todo o gênero.

A elaboração da Cons-

tituição de 1891

realizou-se em condições con-

sideravelmente desfavoráveis ao

êxito de uma obra construtora,

qual a exigiam os interêsses nacio-

nais. Várias circunstâncias con-

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA 165

corriam para

crear uma atmosfe-

ra de perturbação

espiritual em

torno do trabalho de organização

das novas instituições.

O primeiro

dêles era a ausência

de um preparo prévio

de nature-

za ideológica, a que já

nos refe-

rimos anteriormente. A propa-

ganda republicana não tivera o

aspecto de uma obra educacional

da elite do país, por

forma a tor-

ná-la capaz e colaborar concien-

temente na elaboração de um es-

tatuto político

consentâneo com as

exigências da realidade nacional.

Outra causa de confusão ainda

mais grave

era a influência exer-

cida pelos

elementos monárquicos

que aderiram em massa ao regi-

me triunfante em 15 de Novem-

bro. De certo modo essas ade-

sões foram úteis e poder-se-ia

mes-

mo dizer providenciais, porque

sem elas a alta direção do país

fi-

caria desamparada de elementos

eficientes, que

somente em núme-

ro muito exiguo poderiam

ser en-

contrados nos quadros

do chama-

do republicanismo histórico. Mas

embora úteis senão mesmo indis-

pensáveis sob êsse

ponto de vista,

os adesistas formavam uma cor-

rente perturbadora

da atmosfera

política, no tocante à organiza-

ção institucional a

que se ia

pro-

ceder. Eram homens viciados e

deformados pelos processos

da po-

lítica eleitoral que

o Império en-

tretivera, no seu esforço para

acli-

matar no Brasil instituições in-

compatíveis com as realidades do

nosso ambiente social.

Além disso essa gente, profun-

damente impregnada do demago-

gismo inerente ao eleitoralismo,

tendia, em obediência à inclina-

ção habitual de todos os converti-

dos ao extremismo nas suas novas

idéias, a tornar-se propugnadora

de excessos em matéria de auto-

nomia provincial,

afim de lison-

jear o espírito federalista,

por tô-

da a parte

surgido como reação

contra os processos

centralizado-

res do regime decaído. Um caso

típico do que

acabamos de assina-

lar foi o do velho Saraiva, que

eleito para

a Constituinte como

representante da Baía, tornou-se

naquela assembléia expoente de

um federalismo tão desbragado,

que se incompatibilizou com o

novo ambiente parlamentar,

ao

ponto de ser relegado a uma obs-

curidade melancólica e quasi

hu-

milhante.

O perigo

de uma confusão anar-

quisante na marcha dos trabalhos

da Constituinte reunida em 1890

não era atenuado pela

falta de au-

toridade moral das credenciais

eleitorais dos seus membros. O

pleito em

que foram eleitos os

constituintes em 15 de Setembro

de 1890 realizara-se de acôrdo com

as normas prescritas

em um re-

gulamento expedido

pelo minis-

tro do Interior, Cesário Alvim, e

no qual

aquêle antigo político

li-

beral, passado para

as fileiras re-

publicanas na última sessão da

Câmara dos Deputados do Impé-

rio, aplicara às primeiras

eleições

do novo regime métodos calca-

dos na tradição monárquica da

fraude eleitoral.

A Constituinte eleita em tais

condições inaugurava o regime,

dando ao povo

a certeza de que,

em matéria de eleições pelo

me-

nos, o 15 de Novembro nenhuma

modificação trouxera aos nossos

costumes políticos.

CULTURA POLÍTICA

Rui Barbosa e Júlio

de Castilhos

aparecem na elaboração da

Constituição de 1891 como expo-

entes de duas correntes que

se

defrontariam na evolução da po-

lítica republicana, até o momen-

to da revolução nacional de 1930.

Rui Barbosa, com uma cultura

fortemente impregnada do espí-

rito jurídico

e integrado pela

sua

formação intelectual nas idéias do

democratismo anglo-saxônio, é a

figura representativa de tendên-

cias liberais democráticas desloca-

das da realidade nacional e exis-

tentes apenas no plano

subjetivo

de concepções doutrinárias aprio-

rísticas e puramente

teóricas. Jú-

lio de Castilhos, a única figura

verdadeiramente grande

de esta-

dista e pensador político

surgida

na fase inicial do ciclo republi-

cano, é o expoente de um concei-

to realista dos problemas

nacio-

nais e de uma organização esta-

tal, calcada não em abstrações e

postulados puramente jurídicos,

mas na apreciação objetiva das

condições sociais e políticas

do

meio brasileiro.

As coiídições políticas

e cultu-

rais que predominavam

na atmos-

fera da Nação, ao reunir-se a as-

sembléia que

elaborou a Consti-

tuição de 1891, eram infelizmente

muito mais propícias

à prepon-

derância das idéias de Rui Bar-

bosa, ainda quando

êste não pos-

suísse para

ampará-las os recursos

«excepcionais de um extraordiná-

rio poder

de expressão verbal. O

Brasil de 1891, conservando os úl-

cimos vestígios das taras coimbres-

cas e nutrido espiritualmente ape-

nas pela

cultura superficial, que

o beleletrismo e o arcaismo filo-

sófico e jurídico

ainda mal abala-

do pelos golpes

de Tobias Barre-

to haviam entretido durante o Im-

pério, não se achava

preparado

para plasmar as suas novas insM-

tuições nas linhas que

lhe teriam

sido dadas, se a Júlio

de Castilhos

houvesse cabido a direção do tra-

balho de elaboração constitucio-

nal.

Os pontos

de partida

da

evolução política

vieram a ser portanto

os pos-

tulados decorrentes da influên-

cia simultânea do liberalismo her-

dado da monarquia e do federa-

lismo imposto pelas

reivindica-

ções das

províncias, empolgadas

por um movimento de reação

contra o excessivo sistema centra-

lizador do regime decaído. Desen-

volvimento exorbitante da auto-

nomia concedida aos Estados e sa-

crifício dos interêsses da coletivi-

dade em proveito

do indivíduo

teriam de caracterizar a marcha

da política

republicana, até que

os inconvenientes e os perigos

des-

sa orientação creassem fôrças de

reação da conciência nacional, ca-

pazes de alterar o rumo históri-

co, como aconteceu afinal com a

revolução de 1930.

Durante a fase de consolidação

da República aquelas fôrças de

ação centrífuga que

tendiam a

afrouxar os vínculos da unidade

nacional e a enfraquecer o Esta-

do, diminuindo-lhe a autoridade

e o prestígio

e tornando-o inca-

paz de enfrentar os

problemas

práticos que se apresentavam, fo-

ram felizmente contidas pela

in-

tervenção do poder

militar. Nês-

se caso temos um dêsses exemplos

evolução da política republicana167

do próprio

mal tornar-se um fa-

tor de resultados benéficos.

Houvesse prosseguido o traba-

lho de consolidação e adaptação

•do regime em um ambiente de

normalidade e

provavelmente as

íòrças desintegradoras do federa-

lismo e da demagogia animada

pelos excessos do liberalismo do

estatuto de 1891, teriam chegado

a extremos capazes de determinar

.efeitos irremediáveis. Mas as lu-

tas suscitadas pelo

choque das

paixões facciosas das ambições in-

dividuais, a que

se associaram ma-

nobras do impenitente saudosis-

mo monárquico, deram lugar a

situações de grave perturbação.

Em face destas o poder

central,

que ainda apresentava naquela

•época uma fisionomia acentuada-

mente militar, viu-se obrigado a

adotar medidas, que

redundaram

cm um controle dos Estados pela

autoridade nacional e em prolon-

gadas suspensões das

garantias

com que

a Constituição protegia

e estimulava excessos de liberalis-

mo individualista.

Assim a Nação pôde

atravessar

um período

extremamente crítico,

r indo a emergir dele com a ma-

nutenção íntegra da sua unidade

e sem ter sofrido profundos

aba-

los sociais, econômicos e políti-

cos causados pelos

desmandos da

demagogia. Quando

em 15 de

Novembro de 1894 Floriano en-

tregou ao primeiro presidente

ci-

vil, Prudente de Morais, a presi-

dência cia República, o Brasil

não somente mantinha em condi-

ções de

perfeita solidez a sua es-

trutura nacional, como sofrerá

muito menos que

se poderia

espe-

rar os efeitos das lutas facciosas

e da guerra

civil. O Exército,

que com a

proclamaçâo da Repú-

blica salvara o país

dos mais gra-

ves perigos,

completara a sua obra

restringindo os excessos possíveis

do federalismo e impedindo que

uma onda de demagogia anarqui-

sante avassalasse a Nação.

A importância da função exer-

cida por

um govêrno

forte, con-

tando implicitamente com o apôio

da força armada, patenteou-se

lo-

go no

primeiro quatriênio subse-

quente ao encerramento do man-

dato de Floriano. O primeiro

presidente civil, apesar de haver

revelado grandes qualidades

e in-

discutível espírito de patriotismo,

mostrou-se desde logo incapaz de

impedir a recrudescência da agi-

tacão, recalcada e esmagada pela

energia do seu predecessor.

E se

circunstâncias felizes ligadas

^

a

atitude disciplinada e patriótica

das forças armadas permitiram

a

Prudente de Morais levar a termo

o seu govêrno,

a maneira como

ocorreu a agitação em tôrno da

sua sucessão poz

em relêvo sinais

inequívocos de uma perigosa

acentuação dos regionalismos, que

ameaçavam transformar o sistema

federativo da Constituição de

1891 em uma verdadeira confe-

deração de Estados quasi

indepen-

dentes.

A fragmentação

da per-

sonalidade política

da Nação,

que Floriano mantivera coesa

através das vicissitudes do seu agi-

tado govêrno,

começou a operar-

se logo no início da presidência

Prudente de Morais. Alguns dos

mais esclarecidos e patrióticos

che-

fes republicanos, como Quintino

Bocaiúva, Campos Sales, Francis-

168 CULTURA POLÍTICA

co Glicério, Júlio

de Castilhos e

outros, compreenderam a necessi-

dade de coordenar a política

na-

cional em uma organização disci-

plinada e centralizada. Daí a for-

mação do Partido Republicano

Federal, que

constituiu o primei-

ro esforço unificador, cuja verda-

deira finalidade era restringir as

tendências centrífugas dos regio-

nalismos exaltados.

As condições políticas

do país

já se caracterizavam

porém de

modo tão acentuado, no sentido

de uma expansão cada vez maior

das autonomias estaduais e do

predomínio dos regionalismos,

que aquêle

partido, em vez de ser-

vir para

os objetivos coordenado-

res visados pelos que

o haviam

fundado, tornou-se uma demons-

tração impressionante do perigo

da dissolução política

da Nação.

As 21 bancadas que

até o tercei-

ro ano da presidência

Prudente

de Morais representavam as fôr-

ças políticas confiadas* à leaderan-

ça hábil de Francisco Glicério, re-

fletiam outros tantos núcleos dês-

se espírito regionalista, que

sò-

mente viria a ser definitivamente

vencido mais de quarenta

anos

depois pela

instituição do Estado

Nacional.

A sucessão de Prudente de Mo-

rais, precedida por

uma das mais

vivas agitações parlamentares

e

jornalísticas da

primeira Repú-

blica, realizou-se em linhas incon-

fundivelmente indicadoras do par-

celamento da política,

segundo as

configurações dos interêsses esta-

duais. Os efeitos da luta que

ha-

via chegando ao ponto

de justifi-

car as mais vivas apreensões de

um retôrno ao período

da guerra

civil, foram contudo neutraliza-

dos pela

intercorrência de um epi-

sódio, que

impressionou profun-

damente toda a Nação. Em prin-

cípios de 1898 as dificuldades fi-

nanceiras resultantes em parte

das

despesas extraordinárias acarreta-

das pelos

acontecimentos dos anos

anteriores, mas sobretudo deter-

minadas pelas

flutuações cambiais

promanadas do abalo do crédito

e dos primeiros

sinais de declínio

nas cotações do café crearam uma

situação insustentável para

o Te-

souro.

As diferenças de câmbio passa-

ram a avultar em proporções

as-

sustadoras no conjunto das despe-

zas da República, tornando pra-

ticamente impossível à manuten-

ção dos

pagamentos relativos à

nossa dívida externa. O primei-

ro funding

negociado pelo

minis-

tro da Fazenda Bernardino de

Campos foi a única solução pos-

sível para

um problema, que

apresentava como alternativa uma

desastrosa confissão de falência. A

concordata porém

não era para

o

orgulho nacional muito menos

humilhante que

o descalabro in-

tegral do nosso crédito. Os ad-

versários do regime republicano

exploravam a situação e a opi-

nião pública

manifestava o seu

profundo desapontamento diante

do que

acontecera. Entretanto o

espírito da Nação não se abateu e

a conciência da necessidade de re-

erguer a todo o transe o crédito

do Brasil fez com que

se esqueces-

sem as amarguras da recente luta

política, formando-se uma unani-

midade de apôio ao novo Presi-

dente, que

teria de cumprir os

termos do acôrdo firmado com os

nossos credores externos.

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA 160

A política

dos

gotfcrnadores

As circunstâncias em que

Cam-

pos Sales assumiu a

presidência da

República não iludiram entretan-

to o arguto homem de Estado, que

tomava conta do govêrno

onera-

do por

tão tremendas responsabi-

1 idades. Bem sabia êle que

os

elementos descontentes, cuja co-

ordenação já

vinha sendo manho-

samente tentada pelos poucos

mas tenazes sobreviventes do mo-

narquismo, dificilmente deixa-

riam de crear ao seu govêrno

di-

ficuldades capazes de tornar in-

viável a obra de restauração fi-

nanceira, para

a qual

obtivera a

colaboração eficiente de Joaquim

Murtinho. A necessidade de as-

segurar não apenas a estabilidade

da ordem pública,

mas uma tran-

quilidade política que permitisse

ao govêrno

contar implicitamente

com o apoio do Congresso, indu-

ziu Campos Sales a dar um pas-

so, que

veiu a ter conseqüências

de grande

envergadura na mar-

cha ulterior da política

repübli-

cana.

Firmando entre o executivo fe-

deral e os governadores

das uni-

dades federativas um pacto

de so-

lidariedade, nos termos do qual

cada governador

se tornava o ar-

bitro da política

do seu Estado,

comprometendo-se em troca a ga-

rantir ao Presidente da Repúbli-

ca o apôio incondicional das suas

bancadas na Câmara e no Sena-

do, Campos Sales realizou na evo-

lução da política

' republicana o

primeiro ato orientado no senti-

do de coordenar e unificar poli-

ticamente o Brasil. Nenhum epi-

sódio da história da primeira

Re-

pública foi mais discutido e con-

trovertido que

a organização da

política dos

governadores. A cri-

tica dos que

divergiam da atitu-

de de Campos Sales insistiu prin-

cipalmente sobre o tema de que

aquele estadista, formando o blo-

co dos chefes das unidades fede-

rativas, fortalecera as oligarquias

regionais e conferira ao Presi-

dente da República um poder

in-

contrastável, que

se apontava co-

mo incompatível com o espírito

do regime e a própria

letra do

seu estatuto fundamental. Ou-

tros viram na política

dos gover-

nadores apenas um expediente

ocasional, que

se poderia justifi-

car pela premência

dos proble-

mas que

assoberbavam então o go-

vêrno federal e para

cujo encami-

nhamento satisfatório se tornava

imprescindível afastar possibilida-

des de qualquer

agitação parla-

mentar.

Há nessas críticas um fundo de

indiscutível verdade. Com a po-

lítica dos- governadores

Campos

Sales estabeleceu um sistema ba-

seado no poder

verdadeiramente

absoluto dos situacionismos esta-

duais, que

eram as expressões das

oligarquias dominadoras nas anti-

gas províncias. E é também fora

de dúvida que

o poder presiden-

ciai, contando com a colaboração

incondicional dos satrapas esta-

duais, adquiria estabilidade e pro-

porções, que necessariamente vi-

riam abrir-lhe novas perspectivas

de predomínio.

Nem é também

possível contestar

que o motivo

principal e imediato da iniciativa

de Campos Sales tenha sido a com-

preensão da imperativa necessida-

de de assegurar ao seu govêrno

plena liberdade de ação no

pros-

seguimento de uma política

finan-

170CULTURA POLÍTICA

ceira, envolvendo medidas drás-

ticas e que

iriam ferir os mais di-

versos interesses.

Mas uma vez admitido tudo is-

so, parece-me

ainda justo

apreciar

a política

dos governadores

de um

ponto de vista histórico mais ele-

vado. Paralelamente às conveni-

£nc«as da administração financei-

ra, que

em uma fase tão crítica se-

riam certamente atendidas pela

coesão disciplinada e dócil das re-

presentações no Congresso, aque-

ia política,

fortalecendo o poder

presidencial em uma escala sem

precedente desde o encerramento

<lo período

da guerra

civil, vinha

crear o primeiro

elemento de re-

ação eficaz contra as forças centrí-

fugas dos regionalismos dissolven-

tes. Encarada por

êste prisma

a

política dos

governadores de Cam-

pos Sales marca o

ponto de

par-

tida de um movimento centraliza-

dor, a princípio quasi

imperce-

ptível e titubeante, mas

que se

foi progressivamente

definindo,

até concretizar-se na ação orgâ-

nica desenvolvida pelo

Presidente

Getulio Vargas desde a revolução

de 1930, para

culminar enfim nas

«configurações do Estado Nacional

de 1937.

E quando

se considera a obra

«de Campos Sales, levando em con-

ta as tendências nacionalistas e o

espírito de brasilidade daquele

grande estadista republicano, não

é possível

evitar-se pelo

menos a

hipótese de que,

entre as razões

•da sua política

unificadora, ti-

vesse entrado o pensamento

de en-

cetar uma reação contra as forças

dissolventes de ura federalismo

mal compreendido e desvirtuado.

A campanha civilista

veio dez anos após o início do

movimento de consolidação do

poder presidencial, cujo

ponto de

partida fôra a

política dos

gover-

nadores de Campos Sales, impri-

mir uma fisionomia nova à evo-

lução do regime instituído em

1891. Durante os primeiros

vinte

anos de existência das instituições

republicanas, as forças políticas

em ação tinham atuado quasi

ex-

clusivamente dentro da órbita

traçada pelas

configurações de um

sistema inconfundivelmente oli-

gárquico. Era a organização do

Império continuada com as for-

mas exteriores do estilo democrá-

tico. O povo

não atuava na mar-

cha dos acontecimentos, senão pe-

lo reflexo que

as opiniões entre

ele elaboradas iam ter nos círculos

detentores do monopólio da dire-

çáo dos negócios

públicos.

Êste sistema, por

mais contra-

ditório que

fosse à doutrina do

regime republicano, tal qual

êle

se organizara nos termos da Cons-

tituição de 1891, era entretanto

um resultado natural das condi-

ções que realmente se apresenta-

vam no meio brasileiro. E se por-

ventura é possível

alegar que

do

afastamento das massas populares

da política

redundava o atrazo na

educação cívica das mesmas, por

outro lado é indiscutível que

na

prática o monopólio oligárquico

não acarretou resultado aprecia-

velmente desvantajosos e permi-

tiu mesmo que

evitássemos situa-

ções mais ou

•menos anárquicas,

patenteadas no desenvolvimento

histórico de outras nações do nos-

so continente. Rui Barbosa, com

os formidáveis recursos que

a

sua eloqüência e extraordinário

EVOLUÇÃO DA POLÍTICA REPUBLICANA 171

poder de expressão verbal lhe con-

feriam, creou em torno da sua

•candidatura à presidência

em 1909

uma agitação até então sem pre-

cedente na história republicana.

As massas populares

foram

atraídas por aquela campanha a

uma intervenção na marcha da

política, em escala muito maior

que a verificada em episódios ana-

logos do ciclo imperial. Nem a

agitação que precedeu o encerra-

mento dramático do reinado de

Pedro I, nem a campanha aboli-

cionista e a propaganda

da Repú-

blica extenderam as atividades de-

magógicas a um círculo tão vas-

to de elementos populares.

Com êsse deslocamento da po-

lítica para

o plano

de uma de-

tnagogia de vastas proporções,

a

evolução do regime passou

a com-

plicar-se por forma a tornar ex-

tremamente difícil o prossegui-

mento natural e lógico da marcha

progressiva pela qual se vinha

encaminhando a ordem republica-

na. Daí em diante a consolida-

cão do poder presidencial, que

na

lógica do presidencialismo

da

Constituição de 1891 e sob a pres-

são de imperativos da realidade

nacional se vinha acentuando

desde a presidência

Campos Sales,

passou a

processar-se em uma at-

mosfera sobrecarregada de pai-

xões populares

e sempre propícia

a todas as maquinações demagó-

gicas. O tato dos

políticos que

solucionaram o caso da . sucessão

do marechal Hermes da Fonseca

impediu a reprodução no qua-

driênio imediato de uma crise

idêntica à que

Rui Barbosa defla-

grara. A circunstância especialís-

sima da sucessão Wencesláu Braz

ter lugar durante a guerra

euro-

péia e

quando o Brasil

já se acha-

va envolvido no conflito interna-

cional afastou também a possibi-

lidade de uma análoga luta po-

lítica.

A segunda tentativa de Rui não

conseguiu tornar o pleito,

em que

saiu vitorioso o nome de Epi-

tácio Pessoa, uma repetição do

que se

passara dez anos antes.

Mas dois anos depois o problema

da sucessão delineou-se em condi-

ções particularmente críticas,

que

evidenciaram como se tornara

complexa a política

republicana,

deixando perceber

as perspectivas

de uma inevitável e próxima

mu-

tação histórica. Já

não se trata-

va apenas de agitação demagógi-

ca creada pela

influência domina-

dora de uma grande personalida-

de, excepcionalmente dotada pa-

ra agitar e fazer vibrar intensa-

mente a alma das multidões.

Eram os problemas

fundamentais

do Brasil que

começavam a im-

por-se à Nação, exigindo um re-

ajustamento institucional, que

não poderia

ser adiado por

muito

tempo. Os defeitos insanáveis do

regime estabelecido em 1891 tor-

navam-se patentes

à Nação, a

princípio iludida

pela idéia de se-

rem os males de que

se queixava

resultantes da aplicação defeituo-

sa da Constituição vigente, mas

convencida pouco

a pouco

de que

a reforma imperiosamente recla-

mada teria de atingir a própria

estrutura daquela organização

constitucional.

A revolução de 1930

ponto culminante da série de

perturbações que acidentaram os

últimos oito anos da primeira

Re-

pública, foi a expressão ainda mal

172 CULTURA POLÍTICA

definida das aspirações nacionais,

no sentido de uma transformação

radical da ordem política

manti-

da durante quarenta

anos. A co-

incidência daquela grande

crise

de mutação histórica com o mo-

mento em que

se acentuavam em

outros países

as manifestações da

reação de um espírito novo con-

tra a democracia liberal, cujo fra-

casso universal ia sendo gradual-

mente reconhecido, imprimiu à

revolução brasileira um aspecto

peculiar.

Uma inevitável confusão ideo-

lógica caracterizou o movimento

de Outubro, cujo ímpeto propul-

sor seguia apenas o rumo traçado

pela quasi unanimidade

que se

formara em tôrno do reconheci-

mento implícito da necessidade de

uma reforma política

radical. A

personalidade do Presidente Ge-

túlio Vargas, providencialmente

surgida como centro de direção e

coordenação desse movimento re-

novador, impediu a anarquia po-

lítica, que

sem a intervenção dês-

se predestinado

chefe nacional te-

ria sido inevitável.

Personificando os sentimentos,

as aspirações e a vontade do Bra-

sil como nenhum outro homem

de Estado o fez em toda a nossa

história, o chefe da revolução de

1930 tornou-se o mandatário da

Nação para

executar a obra de

reorganização, que

deveria cons-

ti tu ir o empreendimento a ser le-

vado na última etapa da evolu-

ção da

política republicana. A

influência do chefe nacional des-

pertou no

povo forças de ação cí-

vica, com as quais

êle pôde pias-

mar instituições novas, chegando

na lógica dêsse processo

evoluti-

vo ao coroamento da obra reno-

vadora com a Constituição de 10

de Novembro de 1937* Dentro

das configurações do Estado Na-

cional, a política

republicana se-

guirá o curso da sua marcha

pro-

gressiva sem sobressaltos e sem

afastar-se das linhas traçadas pe-

Ias realidades históricas e atuais,

em uma adaptação evolutiva às

situações e aos problemas

novos

que forem surgindo.

2

O pensamento

político

do

Chefe do Govêrno

I

Nêstcs dez oitos do lotos políticos polo estobilizoçõo dos

conquistos o concretização dos aspirações revolucionários do

1930, tom sido o Presidente Getulio Vorgos o pensomoitfo

diretor e inspirador do nosso vido público, o móis ativo dou-

trinedor do novo Estado Brasileiro, o que moior oco o com-

preensõo tem encontrado em todos os comodos populores

do país.

Em sues polovros e, oindo móis, em sues oções, teem-se

refletido aspirações profundos do povo brasileiro, em seus

ideeis de paz o de concórdia, de tolerância o de equilíbrio,

de fórça o de branduro, de respeito oo trabolho o de «mor

eo homem e à terra.

Definir e interpretar esse pensamento, esclarecê-lo sob

todos os aspectos, é o finalidade desta seção — que viso,

com isso, um esclarecimento o uma interpretação dos pró-

prios rumos políticos brasileiros, que nele se toem espelhado

em seus momentos mais significativos.

O escritor que se incumbe da análise de hoje, é um

historiador de nome, autor de "No

Tempo do Floria no"

(Rio, 1940), "História

do Fortaleza de Santa Cruz" (Bi-

blioteco Militar, Rio, 1941), "Aspectos

históricos do Estodo

Novo" (Rio, 1940) — o que, destacando em trecho ezpressivo

de "A

Novo Político do Brasil", demonstro como o pensamento

do Presidente se integrou no ritmo dos tradições políticos do

Brasil, de cujo sentido êle se fez intérprete, em benefício da

unidade nacional.

Tradição política

do principio

de unidade nacional

SÍLVIO PEIXOTO

"A nova Constituição, colocando a realidade acima dos for-

malismos jurídicos, guarda

fidelidade às nossas tradições e

mantém a coesão nacional, com a paz

necessária ao desen-

volvimento orgânico de tôdas as energias do país".

Getulio Vargas —

A Nova Política do

Brasil, Vol. V, pag.

114.

NAO

SE IMPROVIZAM mo-

mentos ria vida dos povos.

Nem na História, na lenta e

impassível sucessão dos fatos, con-

cederia ao espírito humano o ar-

bítrio de criar situações em que

ele agisse como única fôrça deter-

minante.

Xanto os fatos culminantes da

vida social, como os homens que,

pela sua

genialidade, os represen-

tam, são surpresas que

só se ex-

plicariam com apelos ao misté-

rio e a forças extra-humanas.

Os espíritos que

se habituaram

a pesquisar

as origens das causas e

dos fatos, sabem que

tanto os cha-

mados momentos decisivos, como

os homens que

representam esses

instantes definitivos da humani-

dade, foram demoradamente pre-

parados, resultaram de um longo

processo de cristalização histó-

rica.

Não se pense que

essa concepção

que tudo subordina à

justas deter-

minantes, possa

destruir o prestí-

gio que as

grandes datas, ou os

homens representativos, exercem

sôbre a psicologia

das multidões.

Recursos da própria

história

Êsse processo

de investigação e

análise, na serenidade de seu jul-

gamento, como

que engrandece a

própria condição humana. Êle

nos ensina, assim, que

os aspectos

mais emocionantes da vida social,

quer se traduzam em fatos ou em

gestos humanos,

podem ser expli-

cados com recursos de nossa pró-

pria história, sem a necessidade de

176 CULTURA POLÍTICA

apelos a elementos estranhos aos

milagres de nossa inteligência.

Basta recompor paisagens

vis-

tas, recordar caminhos já per-

corridos, reencontrar o fio do pas-

sado, para que

sintamos esclare-

cido todo mistério da ação pre-

sente que

nos envolve e nos sur-

preende.

O Estado Nacional e o estadis-

ta que

assumiu a responsabilida-

de de sua criação, não foram um

fato gratuito

na história do nos-

so país.

Muito pelo

contrário, re-

presentam uma dádiva do

passa-

do feita ao presente

do Brasil.

Dos tempos remotos da

Inconfidência

Mineira

As angústias e as inquietações,

os sobressaltos e as impaciências

que temos vivido desde a revolu-

ção de 1930, até Novembro de

37,

não foram mais do que

forças

componentes de uma paisagem

so-

ciai que já

se delineara desde os

tempos remotos da Inconfidência

Mineira.

Nos primitivos

anseios de eman-

cipação nativista, quando

clarea-

vam nos horizontes de nossa his-

tória os primeiros

relâmpagos de

liberdade, fugidios, mas anun-

ciando, na sua rapidez, tempesta-

des que

não viriam longe, tal co-

mo se escrevia na legenda herói-

ca

"Libertas

quae sera tamen",

insinuavam que

no solo pátrio

estavam se arraigando as primei-

ras raízes do Estado Nacional.

Talvez a expressão — Estado

Nacional —

pareça um

pouco pre-

cipitada para

designar a concreti-

zação dêsses idealismos nativis-

tas. Mas isso só acontecerá aos

observadores demasiadamente afei-

çoados aos rótulos

jurídicos com

que o Direito Constitucional cos-

tuma designar as realidades so-

ciais. Como quer que

seja, aquê-

les movimentos já

denunciavam a

eclosão de uma conciência nacio-

nal que,

mais tarde, haveria de se

cristalizar na forma de govêrno

que hoje serve ao

país.

Reduzida a uma inconsistente

e pueril,

contenda de vocábulos

— Estado, Conciência

— temos

que a nossa situação

política de

hoje, realiza objetivamente o sub-

jetivismo libertário dos Inconfi-

dentes, e se recuarmos um pouco

mais, de todos os movimentos na-

tivistas que

ficaram anônimos, ou

esquecidos no registro da nossa

história.

De qualquer

maneira, o que

im-

porta é o caráter nacional

que ês-

ses movimentos já

revelavam e

que foram amplamente consubs-

tanciados em normas de govêrno,

pela vocação

política do Presi-

dente Vargas.

O sentido representativo

do Estado Novo

Acorde que

foi com o passado

político da nação, o Estado Na-

cional não representou uma vio-

lência imposta às tradições e ao

idealismo social da América. Si

na ordem interna êle representa

uma cristalização de tendências,

na ordem externa significa afir-

mação dos propósitos

de paz

e

equilíbrio social que

animaram

sempre as jovens

repúblicas do

Continente.

Atravessámos uma fase aguda,

em que

a unidade da Pátria amea-

çava destruir-se, em

que a infil-

tração de ideologias orientadas

para à agressão e a rapinagem in-

\

O PENSAMENTO POLÍTICO DO CHEFE DO GOVÊRNO

ternacional lançava os

germes da

dissolução e do terror no seio da

comunidade nacional, quando

surgiu, como um imperativo de

sobrevivência, uma fatalidade a

que não

poderíamos fugir, sob

pe-

na de vermos destruídas a nossa

soberania, nossa independência e

nossas liberdades — o Estado Na-

cional.

Realizando a concentração da

autoridade e do

poder público na

figura do primeiro

magistrado da

nação, o novo regime antecipava,

num mundo em desordem, a úni*

ca fórmula possível

de salvação da

ordem democrática. Nunca se

fastou do conteúdo jurídico

do

Estado Novo o sentido social da

Democracia, que é, em última

análise, a própria

vocação políti-

ca da América.

Evitando aqui a implantação

dos regimes de compressão totali-

tária, dos sistemas de ditaduras

de partidos,

o Estado Nacional

conjurou os fantasmas da servidão

è da desordem, reintegrando-nos

na paz,

no tradicionalismo e na

fraternidade da América.

Foi assim o nosso atual sistema

de govêrno

uma reafirmação da

ordem nacionalista do Brasil na

ordem continental da América.

Vitória do espirito

de autonomia

O Sete de Setembro, assinalan-

do a data de nossa emancipação

política, representa a vitória mais

expressiva do nosso espírito de au-

tonomia.

Toda a história do Brasil, pro-

cessada em sentido anterior a essa

data, não é mais do que

a luta pela

conquista de nossa soberania. E'

o ciclo formidável e heróico das

revoluções nativistas, tangencian-

do todas as Províncias em que

se

alastravam, unificando-as sôbre o

domínio de uma fôrça espiritual

que era

quasi uma mística: a de

que era necessário

proclamar-se

nossa Independência. E' um ca-

pítulo ainda a se escrever, na nos-

sa história, o da influência dessas

revoluções como força unificadora

do país.

Foi a compreensão da

Independência e o sentimento

profundo de sua necessidade,

que

nos deram o sentido unitário da

nacionalidade.

Depois do Sete de Setembro, a

nossa atitude histórica passou

a

ser outra: a de defesa intransigen-

te do bem alcançado com o Grito

do Ipiranga. Todo o nosso esfôr-

ço passou então a se orientar no

sentido de manter intacta a uni-

dade nacional, ora atravessando

a fase de sua consolidação, ora

vivendo os momentos angustiosos

de sua defesa.

As raízes do Instituto

Jurídico

Tanto no ciclo das revoluções

nativistas, como na fase que

se

abriu com o advento da Indepen-

dência, o analista menos apressa-

do de nossas realidades sociais,

poderá encontrar as raízes mais

longínquas do instituto jurídico

que, sob a exata designação de Es-

tado Nacional, consubstância a vi-

da política

da nação.

No ciclo das revoluções nativis-

tas predominou

o sentido de au-

tonomia nacional, que

é o mesmo

que se expressa, nos dias corren-

tes, na necessidade de afirmar, pe-

remptoriamente, a intangibilida-

de de nossa soberania.

Na fase que

sucedeu ao Sete de

178 CULTURA POLÍTICA

Setembro o pensamento predomi-

nante nas elites que

nos dirigiam

foi o de consolidar a vitória do es-

pírito de soberania, tornando ca-

da vez mais sensível e mais palpi-

tante o sentido de nossa unidade

política .

A necessidade dessa política

unitária foi a que

determinou,

em Novembro de 37, quando

o

país atravessava uma fase

perigo-

sa de desagregação, o aparecimen-

to do Estado Nacional, como úni-

co recurso de manter, pelo

mila-

gre da centralização do

poder, in-

destrutível o destino da naciona-

lidade.

Encontram-se, assim, no tempo

e no espaço, as duas constantes

fundamentais de nossa vocação

política: Autonomia e Unidade.

O caminho à desagregação

Quando a Côrte

poz em dúvi-

da a lealdade de D. Pedro, o seu

primeiro cuidado, fora isolar do

Rio de Janeiro

as demais Provin-

cias, subordinando-as, política

e

administrativamente, à Lisboa.

Si essa medida visava diminuir o

poder de D. Pedro,

que ficava,

assim, reduzido à condições de

Capitão-Mor do Rio de Janeiro,

não há negar que

ela repercutiria

de maneira mais profunda

no or-

ganismo nacional: à desagrega-

ção seríamos fatalmente conduzi-

dos pelo

ato de D. João

VI.

O comentário que

essa atitude

comporta sugere conclusões edi-

ficantes, às quais

não podemos

ser indiferentes. A mais grave

de

todas, é a que

demonstra como a

quebra da unidade nacional e

conseqüente desagregação inter-

na, era o primeiro

objetivo a ser

considerado pelos que,

no exte-

rior, tentavam e planejavam

a

nossa servidão política.

O retorno à unidade

A conciência dessa verdade não

passou em brancas nuvens ante os

olhos prescutadores

e sábios de

José Bonifácio. Tanto assim

que

êle, que

foi a alma suprema da

campanha emanei padora,

o Pa-

triarca da Independência, logo

após o Fico, aconselhou D. Pedro

a convocar um Conselho de Pro-

curadores-Gerais das Províncias

do Brasil, o que

foi feito por

de-

creto de 16 de Fevereiro de 1882.

Voltaram, dessa forma, a se con-

gregar as nossas Províncias, devi-

do à percepção política

do anima-

dor genial

da Independência.

Era o retorno à unidade.

Para consolidar essa volta, foi

ainda, sob a inspiração do Patriar-

ca, que,

a 21 de Fevereiro do mes-

mo ano, D. Pedro ordenava que

lei alguma de Lisboa fosse exe-

cutada no Brasil, sem o Cumpra-

se do Príncipe-Regente.

Afirmava-se, nessa atitude, com

propositada veemência, a inten-

ção de

jugular a influência dis-

solvente do Reino.

O novo ato, respondendo a D.

João VI, conduzia o

govêrno do

Príncipe Regente ao único cami-

nho que permitiria

a vitória do

espírito emaneipador.

Fora da disciplina da unidade,

violado o seu ritmo, não nos res-

taria, sinão a condição de país

sub-colonial. Essa degradação só

poderia ser conjurada, si nos man-

tivéssemos unos, disciplinados sob

as ordens do poder

central, bem

longe do divórcio a que,

solerte-

mente, nos quiz

arrastar D.

João VI.

#

O PENSAMENTO POLÍTICO DO CHEFE DO GOVERNO 179

O ato do Príncipe-Regente con-

vocando uma Constituinte Brasi-

leira, a 3

de Junho

de 1822, inse-

re-se ainda entre as medidas acon-

selhadas por José Bonifácio

para

manter, com vitalidade, o prínci-

pio de coordenação unitária do

país.

4

Tríplice da unidade

nacional

Como forças que prepararam

a

Independência é preciso, pois,

a

essa altura, julgar

e definir os tres

atos a que

acima nos referimos: a

ordenação de que

nenhuma lei

portuguesa fosse cumprida no

Brasil sem a referenda do Prínci-

pe Regente, a convocação do Con-

3elho de Procuradores Gerais das

Províncias e a convocação da

Constituinte Brasileira. Êsses tres

atos, bem que

deveriam passar

à

História, com a designação de

Tríplice da Unidade Nacional.

Já então

poderíamos considerar

vitoriosa a idéia emaneipadora.

A circunstância do Sete de Se-

tembro tem, dessa forma, um ca-

ráter meramente adjetivo: fala

mais a ordem cronológica da His-

tória do que

ao seu sentido poli-

tico e à sua interpretação social.

Os atos de D. Pedro pelos quais

declarava inimigos todas as tropas

que, de Portugal ou de

qualquer

outra nação, desembarcassem no

Brasil, (Decreto

de i.° de Agosto

de 1822) e o Manifesto dirigido

aos Governos e aos países

amigos,

oferecendo oportunidade para

com êles estabelecer relações de

amizade, e declarando ainda con-

tinuarem abertos ao comércio do

mundo os portos

do Brasil (6

de

Agosto de 1822), são iniludivel-

mente atos de uma nação sobera-

na, nobremente integrada na pos-

se de seu govêrno

e na conciência

de sua independência.

Orientações tradiciona-

listas da política

imperial

Só agora, já

decorrido tanto

tempo, durante o qual

tem sido

tão fecunda e rica a nossa experi-

ência política, podemos

compre-

ender o enorme benefício que

resultou dos atos que,

no capítu-

lo anterior, designamos por

Tri-

plice da Unidade Nacional.

Mais do que

a Independência,

êles possibilitaram

a nossa exis-

tência política,

isenta de dissen-

ções, isolacionismos e de desagre-

gações.

Graças, unicamente à alta e

genial visão de estadista de

José

Bonifácio devemos êsse milagre,

que é a manutenção, no tempo e

no espaço, do princípio

vital de

nossa unidade.

A Independência importa para

nós, porque

sem soberania não é

possível admitir estado livre, mas

importa, sobretudo, como fator

precípuo de nossa existência, a

condição unitária. Não fosse a

força da coesão nacional, nascida

do ritmo das revoluções nativis-

tas e prestigiada pelos

atos com

que D. Pedro respondeu à inter-

venção dissolvente de D. João

VI,

que nos teria contecido, logo após

o Sete de Setembro?

O exemplo da própria

América

Latina, a que

estamos incorpora-

dos, é expressivo para

todos nós.

O resultado^das lutas pela

in-

dependência dos grandes

Vice-Rei-

nados espanhóis na América, foi

o seu desmembramento em repú-

blicas turbulentas, logo confiadas

180 CULTURA POLÍTICA

à ação devastadora dos caudilhis-

mos, e ainda ao perigo,

não me-

nos inquietante, das economias in-

suficientes.

Fomos prevenidos

contra a fa-

talidade da desagregação, pela

sa-

bedoria política

dos homens que,

preparando a Independência, cui-

daram também de manter isento

de falseamentos, o princípio

da

união nacional. E' o depoimento

de José

Bonifácio que

se impõe,

ainda a essa altura:

"Sem

a monarquia não have-

ria um centro de força e união

e sem êste não se poderia

re-

sistir às Cortes de Portugal e

adquirir a Independência Na-

cional".

A política

objetica de

José Bonifácio

E o seu esforço, mais que

o de

qualquer um outro, foi o de criar

uma Pátria orgânica, em que

ca-

da Estado fosse uma célula indis-

pensável à super-estrutura

poli ti-

ca da nação.

Por isso, a sua política

foi ni-

tidamente objetiva, e em razão

dessa objetividade, teve mesmo

de se opor ao subjetivismo libe-

ral dos que,

sôbre o comando de

vultos como Gonçalves Lêdo, que-

riam que

à Independência suce-

desse, imediatamente, a Repú-

blica.

Com o seu profundo

amor à

evidências, homem de pensamen-

to frio mais do que

imaginação e

idealidade, — não lhe fôra inútil

o longo contacto com o estudo

das ciências geológicas, que

lhe

imprimiu à inteligência um pro-

fundo sentido de realismo no jul-

gamento dos fatos

José Bonifá-

cio viu, claramente, os perigos

a

que estaríamos expostos, se logo

após o Sete de Setembro adotas-

semos o regime republicano.

Havíamos saído de uma luta

tremendamente feroz pela

con-

quista de nossa soberania, em

que

todas as Províncias experimenta-

ram, sem sintonia no tempo, a ru-

deza das revoluções nativistas.

Nessas lutas, como que

elas ga-

nharam uma certa individualida-

de autônoma, acentuando tendên-

cias regionalistas que poderiam

ser levadas a um paroxismo peri-

goso.

E foi êsse paroxismo

o alvo de-

sejado pelo

reino, quando

na lu-

ta contra D. Pedro, as subordi-

nou diretamente à Lisboa. Ora,

em emergência como essa, a que

nos poderia

levar a República?

A resposta parece

clara, se vol-

tarmos ao exemplo que

a própria

América Latina nos oferece e ao

qual já nos referimos: a desagre-

gação do Brasil,

que viria suas

Províncias, constituídas do dia

para a noite, em Repúblicas ou

pequenos Estados inteiramente

desligados da comunidade nacio-

nal.

Monarquia —

força

ordenadora

O binômio Independência —

Monarquia, pareceu

a José

Boni-

fácio como única força capaz de

nos ordenar, de novo, no ritmo

da unidade nacional, disciplinan-

do regionalismo que

as revoluções

nativistas exasperaram e o Reino

tentou, ingloriamente explorar.

Foi assim que

a Monarquia ca-

racterizou a fase da consolidação

da Independência, inaugurando

para o

país os ciclos das lutas em

favor da centralização do poder.

O PENSAMENTO POLÍTICO DO CHEFE DO GOVERNO 181

Desde então a nossa vida poli-

tica dividiu-se em duas correntes:

uma nitidamente objetiva, en-

quanto a outra dc batia-se,

gene-

rosa, mas, romanticamente, no

empirismo vago das soluções sub-

jetivas.

José Bonifácio condicionou sua

vocação ele homem público

à uma

norma de ação positiva,

a essa

mesma diretriz de pragmatismo

político a

que se subordina, nos

dias presente,

o Governo da Re-

pública.

A dissolução da Consti~

tuinte de 1823

O ato de dissolução da Cons-

tituinte (12

de Novembro de

1823), levado a efeito pelo

Impe-

rador, não representou, como a

muitos pareceu

ou ainda possa

parecer, uma violência contra a

ordem jurídica

em que

se inau-

gurara os destinos de um

país tão

novo ainda na posse

de sua sobe-

rania; liga-se êle, evidentemente,

ao imperativo de política

objeti-

va, única capaz de tornar impôs-

sível a divisibilidade da nação.

Salvou-se assim, com esse apa-

rente ato de violência estatal, a

obra construtora de homens que,

a exemplo de José

Bonifácio, so-

brepunham os destinos do país

à

sedução e ao brilho fácil das idéias

importadas.

O primeiro

atentado con-

tra a Unidade

Uma prova

de que

a verdade

histórica estava com os pugnado-

res do binômio Independência —

Monarquia, reponta no movimen-

to da Confederação do Equador

que, si desfraldava a bandeira da

República abria também aos ven-

tos a flámula odiosa do separa-

tismo.

A esse surto de liberalismo, des-

ligado das realidades nacionais e

que, já depois de nossa constitui-

ção em

país autônomo, representa

o primeiro grave

atentado contra

a nossa unidade, prendem-se,

co-

mo conseqüência, a vitória dos

caudilhos da Lavalleja, no sul, e

a perda

da Província Cisplatina,

que integrava o nosso

patrimônio

territorial.

Todos êsses acontecimentos

trouxeram em convulsão agônica

o primeiro

reinado que

foi, en-

fim, eclipsar-se com a abdicação

de D. Pedro.

A renúncia do Imperador, sen-

do uma vitória dos brios naciona-

listas, feridos pela

insolência dos

reinós, que

tentavam insinuação

triunfante na máquina política

do

país, trouxe

para nosso calendá-

rio cívico a data do 7

de Abril,

gênese da Regência.

O ponto

culminante da

nossa história

política

Não resta a menor dúvida que

o Primeiro Reinado, embora con-

sumasse as idéias de Independên-

cia, foi, de um certo modo, uma

herança de Portugal legada ao

Brasil. Eis por que

a Regência,

passando a significar, com mais

verdade histórica, e mais acentua-

da nitidez política,

a fase real de

nossa emancipação, reúne aspectos

capazes de definí-la, de acôrdo

com a frase de Euclides da Cunha:

"E' o

ponto culminante de nossa

história política".

Êsses aspectos mencionam-se no

sentido nacionalista com que

se

enriquece a renúncia de D. Pe-

182 OULTURA POLÍTICA

dro, e no objetivo de, entre dis-

senções ideológicas, manter inta-

cto o princípio

da unidade do

país.

A Confederação do Equador

não ficou sem repercussão na sen-

sibilidade de nossos patrícios.

As idéias de federalismo repu-

blicano, que

caracterisaram aquê-

le movimento subversivo, conti-

nuaram em fermentação, lançan-

do o país

numa fase aguda de no-

vas revoluções e perturbações

d:i

ordem pública.

Êsses movimentos

insurrecionais começam no Rio

de Janeiro

com a sedição de tro-

pas do Exército e da Marinha na

Ilha das Cobras; com a revolta

no Maranhão e outra no Recife

(A Setembrada); com nova sedi-

ção no Ceará, comandada

pelo

Coronel Pinto Madeira; com a

Cabanada, em Pernambuco; com

a Sabinada, na Baía; com a re-

volta dos Balaios, de novo, no Ma-

ranhão, encerrando-se o ciclo re-

volucionário com a guerra

dos

Farrapos, no Rio Grande do Sul.

Delicadíssima a missão

da Regência

A missão da Regência foi pois

delicadíssima; coube-lhe a conju-

ração de todos êsses movimentos,

não só em benefício da ordem e

da segurança do Govêrno, como

da salvaguarda dos propósitos,

mesmos, de sobrevivência e per-

petuidade nacionais. Felizmen-

te estavam à sua frente Evaristo,

Feijó, e Caxias, a cuja energia de-

vemos o milagre da indissolubili-

dade da Pátria, triunfando sem-

pre sôbre os antagonismos regio-

nalistas e as divergências ideoló-

gicas.

Para realizar êsse programa,

a

Regência não fugiu ao manda-

mento da centralização do poder.

A conciência de que

essa fór-

mula política

era a única capaz

de garantir

a coesão do país,

re-

velam-se em todos os seus atos.

Assim, por

exemplo, quando

Caxias partiu para

o Maranhão,

afim de sufocar a Balaiada, leva-

va consigo o poder

civil e o po-

der militar. Nessa conjugação de

autoridades, evidencia-se a noção

de que

as crises internas só podem

ser vencidas quando

aquelas duas

forcas, civil e militar, atuam unís-

sonas, em favor do fortalecimen-

to do poder.

Força viva da

unificação

Além cie proporcionar

o espe-

táculo de energia nacionalista qut

foi a conjuração de todos os movi-

mentos insurrecionais, o período

regencial revelou ainda ao país

a

fôrça mais viva de sua unificação,

aquela que

melhor age no sentido

de trazer sempre imperturbável o

ritmo da indivisibilidade brasi-

leira: essa fôrça é a que

repousa

no prestígio

e no espírito de sa-

crifício do Exército.

Foi nessa época aguda que

sur-

giu, para nós, a figura de Caxias,

cujos serviços ficaram ligando,

como numa cadeia ininterrupta,

os destinos da Regência aos des-

tinos do segundo Reinado.

E' aí, então, que

se vão crista-

lizar, sôbre o olhar benevolente e

compassivo do Imperador, todas

as promessas

de união nacional.

Fase decisiva da afir-

mação nacional

Apesar de todas as lutas inter-

nas, umas travadas no terreno lím-

O PENSAMENTO POLÍTICO DO CHEFE DO GOVERNO 183

pido das idéias, outras sangrando

no campo raso das revoluções fra-

tricidas, ou das guerras

civis, o

Segundo Reinado assinala a fase

decisiva da afirmação nacional.

Ora enfrentando as crises inter-

nas mais agudas, ora sendo sur-

preendido por uma

guerra ingló-

ria e injusta, que

lhe foi impôs-

ta pelo

capricho e a desmedida

ambição de poder

de um tirano,

insatisfeito de escravisar a sua

própria Pátria, Pedro II discipli-

na todas as forças vivas do pensa-

mento democrático brasileiro, har-

monisa todas as energias iniciais

de nossa riqueza, por tal forma,

que o seu

govêrno permite a cris-

talização dos anseios mais altos da

nacionalidade.

Garantida, como indestrutível,

a unidade do país, que

resiste até

mesmo às agressões externas, re-

vitalizando-se nêsses embates, está

garantida, também, na ordem das

relações internacionais, a nossa

soberania. Todo o trabalho de

seu Govêrno, orientou-se nêsse

sentido: a de projeção

continen-

tal do Brasil, projeção

sem impe-

rialismos, apesar da ronda de cau-

dilhos que

cercava as nossas fron-

teiras com o Prata. Para alcan-

çar tal objetivo, tornou-se impres-

cindível a referência interna de

nossa união.

E foram tão grandes

os serviços

prestados nêsse sentido,

que du-

rante o seu reinado, de meio sé-

culo, o livre debate dos proble-

mas mais fundamentais do país,

— Abolição e República

— tive-

ram curso, e muitas das vêzes, ape-

sar de contrários à estrutura da

Monarquia, receberam o apoio do

próprio Monarca.

Referimo-nos, particularmente,

à Gampanha Abolicionista, cujas

vitórias iniciais foram consagra*

das pelo

Parlamento Monárqui-

co, para

não citar o próprio

fim

vitorioso da campanha, que

sen-

do o colapso do Império, não im-

pediu, por mãos régias, a

promul-

gação da Lei Áurea.

A Campanha Abolicionista

origem da República

Na crise econômica em que

a

extinção do braço escravo lança-

ria o país,

estava a origem da Re-

pública. Esta viria imposta

por

invencível determinismo históri-

co, mas sugeitando-se sempre aos

dois princípios

basilares da forma-

ção nacional: Unidade e Centra-

lização do Poder.

As crises que

o país

experimen-

tou, sob o novo regime, veriam

demonstrar que

todo o distancia-

mento daquela política

fundamen-

tal, importaria ao nosso sacrifí-

cio, conduzindo-nos, por

vêzes, a

perigos irremediáveis.

Imposto a centralização

do poder

A essa altura, porém, quando

todos os êrros acumulados no de-

correr de quarenta

anos de vida

republicana, creavam para

o Bra-

sil um clima de asfixia, que

nos

seria fatal, acarretando a nossa

submersão numa onda total de

anarquismo e desordem, podemos

voltar as vistas aos apêlos profun-

dos das lições do passado, que

nos

impunham uma volta imediata

ao sistema de concentração do po-

der. Êste, salvando a ordem e to-

das as demais conquistas espiri-

tuais e materiais que

se haviam

definitivamente incorporado ao

patrimônio de nossa História, es-

CULTURA POLÍTICA

taria, também, salvaguardando os

princípios nucleares da nacional i-

dade: Unidade e Soberania. Fo-

ram ainda essa forças, que

trazem

a marca indeclinável de nossa ini-

ciação no concêrto dos países

li-

vres e das nações fortes, que

im-

primirem ao Estado Nacional o

sentido histórico em que

êle fun-

damenta as suas orientações de

política tradicionalista e ação emi-.

nentemente brasileira.

Vocação histórica do

governo provisório

A República veio mais da Abo-

lição do que

talvez mesmo da pro-

paganda a

que se dedicaram os

legionários de Silva Jardim.

As suas origens repousaram na

crise econômica, determinada pe-

la libertação do braço escravo,

num país

em que

a vida indus-

trial ainda não se organizára, de

maneira a compensar o desnivela-

mento provocado pela

Lei Áurea.

Essa verdade histórica paten-

teia-se, com a fôrça de uma evi-

dência irrefutável, quando

consi-

déramos que

os maiores embara-

ços creados à Consolidação da Re-

pública, foram inspirados no de-

sassossegado e irrequieto saudosis-

mo político

dos barões e viscondes

que, então, nos dirigiam.

Foram as tentativas de restaura-

ção monárquica,

quer se apresen-

tassem sob feição meramente po-

lítica, quer

surgissem na explosão

violenta das sedições militares,

atentados praticados,

muitas vê-

zes, não só contra a nova ordem

constituída, como também contra

os dois princípios

nucleares da

civilização brasileira.

À essa altura, para

salvar os

destinos da jovem

República, que

eram também os destinos da na-

cionalidade, tornou-se imperioso

o retorno às tradições centraliza-

doras de nossa conduta política.

Deodoro, à frente do Govêrno

Provisório, ora enfrentando a in-

quietude restauradora dos monar-

quistas, ora fazendo barreira aos

excessos e desmandos ideológicos

dos republicanos dissidentes logo

aos primeiros

dias da República,

apoiado na conciência do nosso

primeiro constitucionalista, reali-

zou Deodoro esse milagre de equi-

líbrio, que

é a concentração do

poder dentro das formas rígidas

dos princípios jurídicos

de liber-

dade e justiça

social.

A centralização do poder

e o

fortalecimento da autoridade não

representaram, aos seus olhos de

patriota cheio de desvêlo

pelos

destinos do Brasil, termos de uma

equação ditatorial.

Toda a sua ação à frente do

Govêrno Provisório, demonstra

lucidamente, êsse apêgo aos prin-

cípios fundamentais de nossa vo-

cação política.

Sem a centralização do poder,

não seria possível

disciplinar o

cáos e o tumulto dos primeiros

dias da República. Mas era pre-

ciso, nessa emergência, que

o gran-

de soldado, para prestar

realmen-

te, inestimáveis serviços à Pátria,

não confundisse o fortalecimen-

to do poder

central com os trans-

bordamentos do excesso de poder.

E nisso, na exata compreensão

dos limites em que

se devia con-

ter, foi que

Deodoro se manifes-

tou o estadista ao qual

a Repú-

blica deve a sua sobrevivência.

As questões,

como a das emis-

sões bancárias e a da construção

O PENSAMENTO POLÍTICO DO CHEFE DO GOVÊRNO 185

do pôrto

das Torres, não deixa-

ram, sem marcas, a sua passagem

entre os debates ministeriais.

O combate à política

financeira de Rui

O ardor com que

Demétrio Ri-

beiro, fiel às lições rígidas do po-

sitivismo, combateu a

política fi-

nanceira de Rui, lançou a chama

da inquietação em que

se abra-

zou a sensibilidade inexperiente

do primeiro

Ministério Republi-

cano.

Figura de prol

entre os corifeus

da República, o eminente Minis-

tro gaúcho

foi o opositor mais

violento da política

econômica

de Rui. O choque entre os dois

assumiu as proporções

de um pré-

lio entre titans. Nêsse momento,

mais do que

em qualquer

outro,

Deodoro portou-se

à altura de sua

fé no ideal republicano. Presti-

giando, em toda a linha, a figura

de Rui, o Marechal revelava o

sentimento de política

objetiva

que o animava. Não importa

que

tenha fracassado a política

finan-

ceira de Rui. O que

antes se de-

ve destacar é o tato político

de

um militar que,

embora sem ne-

nhum tirocínio de poder,

explica-

do pelas

condições mesmas de sua

vida dedicada ao Exército, ao to-

mar o pulso

da República, logo

lançasse a sua vista para

o pro-

blema inadiável da reorganização

econômica do país.

Embaraços à ação

construtora

As lutas e divergências manti-

das no seio do próprio

Ministé-

rio, ou das fileiras Republicanas,

corriam, entretanto, pário com as

conspirações de retôrno à vida

monárquica.

Homens eminentes, ou porque

tivessem interesses contrariados pe-

lo novo regime, ou porque

man-

tivessem o platônico

compromisso

de gratidão

com o Imperador exi-

lado, foram pródigos

em fomen-

tar embaraços à ação construtora

do primeiro

Govêrno Republi-

cano.

Como quer que

seja, o que

re-

sultava era a creação de um cli-

ma de impaciências e sobressai-

tos, em que

cada vez mais se ge-

neralizava a campanha favorável

à volta ao regime encerrado com

a promulgação

da Lei Áurea, pois

já escrevemos

que a Abo\ição foi

a última pulsação

de vida do Im-

pério.

Entrave à ação do

govêrno

A imprensa que,

nessa época,

atingira ao auge do instinto com-

bativo, pois

fora ela, com Patro-

cínio, a grande

voz libertadora da

raça negra, e com Quintino,

o

clangor reboando o advento na

nova éra, responsabilizou-se mui-

to pela

manutenção dêsse estado

de coisas contrárias à ação obje-

tiva do Govêrno provisório.

Con-

fundindo liberdade de pensamen-

to, com licença e desbragamento,

em que

à análise das idéias se

preferia a retaliação das dignida-

des pessoais,

êsse jornalismo

de

barricada, provocando

irritações,

fomentando antipatias, tornou-se

veículo da restauração monárqui-

ca. As medidas que

então se to-

maram contra eTa, restringiam-se

unicamente, ao número das pro-

vidências indispensáveis à preser-

vação da paz

e da ordem. Nem

se podia

compreender que

tra-

duzissem uma atitude de violên-

186 CULTURA

cia à liberdade de expressão, uma

vez que

emanavam do mesmo go-

vêrno que, pela palavra

de Demé-

trio Ribeiro, agitara a questão

das

liberdades públicas,

e pelo

saber

jurídico de Rui, afirmara corajo-

samente, a liberdade de cultos,

mantendo separados o Estado e a

Igreja.

E' de Campos Sales, também, a

atitude de repressão ao abuso em

que decaiu o

panfletarismo, ten-

do sido êle mesmo o autor do de-

creto que,

nos dias agitados do

Governo Provisório, regulou a

matéria. E não é possível,

diante

da pureza

inequívoca de seus

ideais, tão prodigiosamente

defen-

didos numa vida de consagração

à intangibilidade dos destinos de-

mocráticos, atribuir-lhe intenções

de arbítrio e prepotência.

A falência

de Maná

O quadro geral

de nossa exis-

tência política, que

nos havia si-

do legado pelos

destroços do Im-

pério, não apresentava nenhum

rendimento apreciável. Todas as

fôrças do progresso

nacional esta-

vam inoperantes. A falência de

Mauá, nos últimos dias do Im-

pério, mostra bem como era an-

gustiosa a situação das energias fo-

mentadoras da economia poli

ti-

ca. Reduzia à análise desapaixo-

nada, sabe-se, hoje, que

a falên-

cia de Irineu Evangelista de Sou-

za decorreu mais da atitude de

desinterêsse do Estado em face dos

fenômenos de produção

da rique-

za do que

mesmo da incapacidade

de financista e industrial revela-

da por

'Mauá.

A República, assentando os seus

fundamentos sobre o areai move-

diço e escorregadio da falsa eco-

POLÍTICA

nomia escravagista, teria de cui-

dar imediatamente do problema

econômico, pondo

ordem ao dese-

quilíbrio financeiro do

país. Na

luta para

solucionar êsse proble-

ma, empenhou-se, resolutamente,

o Govêrno Provisório, graças,

não

só à sabedoria de Rui, como prin-

cipalmente à energia inquebrantá-

vel do Generalíssimo.

A ação do govêrno

Provisório

Ao lado dêsse problema

funda

mental corriam outros a que

não

ficou indiferente o Govêrno Pro-

visório. A criação da pasta

da

Instrução Pública, as reformas da

Escola Normal, do Instituto dos

Cegos e do Museu Nacional, bem

como a revisão do ensino superior

e o projeto

de reforma do Obser-

vatório Astronômico, a construção

de quartéis,

o Serviço Geográfico

do Exército, a grande

naturaliza-

ção etc., demonstram o aprêço

do Govêrno aos problemas

e aos

apêlos da realidade nacional.

E tudo isso, o que

feito e o que

ficou apenas em debate, deve-se

unicamente à persistência

com

que Deodoro manteve o

princípio

da centralização do poder, graças

ao qual

foram vencidas todas as

tentativas orientadas no sentido

de perturbar

a vida da Repú-

blica.

A atuação do Generalíssimo é

uma lição fecunda, a manter, in-

tacta, na multiplicidade de suas

sugestões, a diretriz suprema da

política brasileira, através de to-

dos os tempos.

Tendo assumido a responsabi-

lidade dos destinos nacionais nu-

ma hora aguda de transição, em

O PENSAMENTO POLÍTICO DO CHEFE DO GOVERNO 187

que a mentalidade monárquica

era substituída pela clara ideoló-

gica republicana, Deodoro repre-

senta o protótipo

do estadista bra-

sileiro.

As circunstâncias que adjetiva-

ram o seu govêrno

eram as que

levam à anarquia e à desordem.

Nessa emergência, apoiado pelo

Exército, e pela

conciência jurí-

dica do país,

êle surge como o ho-

mem providencial.

Reunindo to-

das forças, centralizando o poder

e fortalecendo a autoridade, não

derrapa, contudo, no plano

incli-

nado da opressão e da negação

das liberdades públicas.

Refletem-se nessa sua atitude as

constantes essenciais de nossa ten-

dência política.

Assim como na

Regência foi preciso

voltar ao sis-

tema de concentração do poder,

para que se salvasse os

princípios

nucleares da unidade e da sobe-

rania nacionais, no Govêrno Pro-

visório tornou-se imperiosa a ado-

ção dessa mesma atitude, em vir-

tude não só da situação de tran-

sição política

em que

nos encon-

travamos, como também, por

im-

posição de contingências históri-

cas invencíveis.

Não se muda de regime sem

quebra do

que se

poderia cha-

mar de

"normalidade social".

Um novo regime representa

sempre uma rotura dessa norma-

lidade, razão pela qual

os govêr-

nos que

iniciam novas éras políti-

cas são, necessariamente, govêr-

nos de força e autoridade. Fôrça

que se apoia, não na violência e

na arbitrariedade, mas que

emer-

ge de sua

própria necessidade de

sobrevivência e consolidação.

Ponto de contacto com a

instituição jurídica

de

10 de Novembro

Em Deodoro, na sua energia

férrea e indomável, mercê da qual

foi possível

salvar, não só os des-

tinos da República, mas os pró-

prios destinos do

país, é

que po-

demos encontrar uma das refe-

rências mais luminosas da insti-

tuição jurídica

fundada a 10 de

Novembro.

Os propósitos

de ordem e de

paz que animaram o disciplina-

dor do cáos republicano proje-

tam-se até nós, numa afirmação

de que

fora do círculo em que

se

restringe a nossa experiência poli-

tica, não há govêrno que

se ajus-

te às necessidades do país.

O Estado Nacional tem uma

das suas fontes originárias, na li-

ção de energia com

que Deodoro

dirigiu os primeiros

momentos da

vida Republicana.

As coincidências entre o Ge-

neralíssimo e o nosso atual Chefe

de Govêrno, são de ordem histó-

rica, e mais do que

isso, inspi-

ram-se nas razões profundas

das

tradições políticas

do Brasil.

Tanto no Govêrno Provisório,

como no Estado Nacional, são os

mesmos os problemas

a solucio-

nar: o de nossa continuidade, ou

antes, o da continuidade de nossa

soberania, afirmando-se vitoriosa

sôbre as fatalidades da inquietu-

de universal.

A preservação

da paz

e da uni-

dade brasileiras são, hoje, os fun-

damentos essenciais do Estado

Nacional, como a ordem e a in-

tegridade nacionais foram hon-

tem a vocação histórica do Govêr-

no Provisório.

3

estrutura jurídico

-

política do Brasil

A Constituição de 10 de Novembro de 1937 se coracte-

riso pelo seu sodio realismo, odoptcdo às realidades e tradi-

çóes brasileiras, e pelo seu espírito avançado e integrado nas

grandes correntes da evolução política do mundo moderno.

Os debates e comentários que ilustram esta seção, con-

fiados sempre a Magistrados, membros do Ministério Público,

Desembargadores e Ministros do Supremo Tribunal, Juriscon-

sultos ou figuras eminentes das letras jurídicas nacionais,

visam esclarecer êsses dois troços e acompanhá-los em seus

desenvolvimentos e raízes profundas.

O estudo de hoje, sobre o Poder Judiciário na Constituição

de 1937, é subscrito por um Juiz da Justiça do Distrito Fe-

de rol, sócio titulor do Instituto Brasileiro de Cultura e da

Sociedade Ceorense de Geografia, autor de "Do

Proteção Legal

ao Trobalho das Mulheres e Menores", "Da

Proteção à Mater-

nidade rto Direito Operário", "Justiço

do Trabalho".

O poder judiciário

na

Constituição de 10 de

Novembro de 1937

CARLOS DE OLIVEIRA RAMOS

Juiz da 2.a zona do Registro Civil do Distrito Federal

APÓS

a instituição do regime político

atualmente vigorante entre

nós, o Presidente da República, que

é a sua incarnação e a

autoridade máxima do novo sistema, tem sido objeto de estudo

e análise por parte

dos doutos e entendidos em matéria constitucional.

Natural, aliás, é que

isso aconteça, dada a circunstância de que

o Presidente da República, pela

soma de poderes que

concentra em

suas mãos, tornou-se o diretor supremo dos destinos da nacionalidade

e, assim, o grande

responsável pela

vigência da nova ordem política

estabelecida. Reforçada a sua autoridade —

por fôrça da função

que

lhe é reservada, —

pela Constituição de 10 de Novembro, com o sacri-

fício, que

se fazia mister, das atribuições do Poder Legislativo, claro

é que

essa circunstância determinasse em tôrno do Presidente da Re-

pública um interêsse todo especial dos estudiosos do Direito Público

em nosso país.

Não faz muito tempo tivemos o ensejo de ler brilhante traba-

lho, subordinado à epígrafe

uO

Poder Executivo da nossa Constitui-

ção", da lavra autorizada dêsse talentoso causídico que

é Jorge

Severiano.

Com relação ao Poder Judiciário,

entretanto, o mesmo inte-

rêsse se não se verificou, o que,

aliás, plenamente,

se explica, não só

192 CULTURA POLÍTICA

pelo fato da natureza não

política de suas funções,

que não tem, assim,

na vida nacional a repercussão que

logra o exercicio das funções exe-

cutivas e legislativas, como também pela

circunstância, merecedora de

realce, de que

não sofreu o Poder Judiciário,

no estatuto do Estado

Novo, qualquer

alteração nas normas e princípios que

orientavam a

sua organização e definiam as garantias

dos juizes,

anteriormente.

Posta em confronto a lei fundamental do Estado Novo com a Gaita

Constitucional de 16 de Julho,

na parte

referente ao Poder Judiciário,

constatamos que,

efetivamente, no novo estatuto político,

estão repro-

duzidos os princípios

e as regras mandadas observar pela

constituição

precedente, não havendo, desta maneira, nesse

ponto, diferença entre

os dois estatutos mencionados.

Em verdade, é essa a conclusão que

se impõe, inelutavelmente,

ante o exame atento das duas constituições.

O art. 63 da carta política

de 1934, tratando dos órgãos do

Poder Judiciário,

dispunha:

"São órgãos do Poder

Judiciário:

a) a Corte Suprema;

b) os Juizes

e tribunais federais;

c) os juizes

e tribunais militares;

d) os juizes

e tribunais eleitorais.

O estatuto de 10 de Novembro repetiu êsse dispositivo em seu

art. 90,

apenas fazendo voltar a tradicional denominação do mais

alto pretório

do país, que

retomou o seu velho nome de Supremo

Tribunal Federal, substituindo, na letra

"b",

juizes e tribunais fede-

rais", em face da supressão desses, por

"Juizes

e tribunais dos Estados,

do Distrito Federal e dos Territórios" e suprimindo a letra

"d"

do

art. 63, por

conseqüência do desaparecimento da justiça

eleitoral.

No que

diz respeito, porém,

às garantias

dos juizes

é onde mais

se torna patente

e se evidencia a absoluta identidade entre os dois

diplomas constitucionais, o que

vem demonstrar que

foi o mesmo,

nessa parte,

o pensamento que presidiu

à elaboração das duas cons-

tituições.

Assim é que

o art. 91

da Constituição vigente reproduziu in-

tegralmente, nas mesmas palavras,

as prescrições

acauteladoras da in-

dependência do exercício da nobre e difícil missão de distribuir jus-

tiça do art. 64 da constituição anterior.

Para melhor exposição de nossa tese, pomos

diante um do outro,

e por partes,

os preceitos

a que

aludimos, das duas constituições.

O PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1937 193

Diz o art. 64 da constituição de 16 de Julho

de 1934:

"Salvas

as restrições expressas na constituição, os juizes go-

zarão das garantias

seguintes":

Prescreve o art. 91

da nova constituição:

"Salvas

as restrições expressas na constituição, os juizes gozam

das garantias

seguintes".

Notamos, aí, que

a única diferença que

surge entre os dois

textos é que

um emprega o verbo gozar

no futuro, enquanto que

o

outro dele se serve no indicativo presente.

Continuemos.

A letra a do art. 64 está redigida assim:

"A)

Vitaliciedade, não podendo perder

o cargo senão em vir-

tude de sentença judiciária,

exoneração a pedido,

ou aposentadoria,

a qual

será compulsória aos 75

anos de idade, ou por

motivo de inva-

lidez comprovada, e facultativa em razão de serviços públicos presta-

dos por

mais de 30

anos, e definidos em lei".

A letra a do art. 91

é esta:

"A)

Vitaliciedade, não podendo perder

o cargo senão em vir-

tude de sentença judiciária,

exoneração a pedido,

ou aposentadoria,

compulsória aos 68 anos de idade ou em razão de invalidez compro-

vada, e facultativa nos casos de serviço público prestado por

mais de

30 anos, na forma da lei".

Como se vê, o preceito

é o mesmo. Apenas há uma redução

no limite da idade, para

efeito da aposentadoria compulsória. De

75 anos,

que era,

passou para 68.

A disposição da letra b no art. 64 da Constituição de 1934 e

art. 91

do atual estatuto básico é a seguinte:

A disposição da letra b no art. 64 da Constituição de 1934 e no

no art. 91

do atual estatuto básico é a seguinte:

"A)

inamovibilidade, salvo por promoção

aceita, remoção a

pedido, ou

pelo voto de dois terços dos

juizes efetivos do Tribunal

Superior competente, em virtude de interêsse público".

Cumpre apenas salientar que,

na Constituição de 1934, a re-

moção a pedido

figurava como a primeira

causa da amovibilidade dos

magistrados.

Resta a letra c asseguradora aos juizes

da garantia

da irredu-

tibilidade dos vencimentos. Na Constituição de 1934 diz-se que

os

vencimentos dos juizes

ficam sujeitos aos impostos gerais.

Na atual

Constituição, fala-se sòmente em impostos.

194 CULTURA POLÍTICA

I

No paralelo que

estabelecemos entre os dois artigos justo

não

esquecer a eliminação sofrida, no pacto

constitucional vigente, do

§ único do art. 64. E'

plenamente compreensível o desaparecimento

da restrição que

ali se fazia ao preceito

salutar da vitaliciedade, quan-

to aos juizes

federais

"com

funções limitadas ao preparo

dos proces-

sos e à substituição dos juizes julgadores",

dado que já

não é possí-

vel a creação dos juizes

de que

naquele preceito

se cogitava.

Prossigamos, porém,

no confronto que

vimos fazendo entre as

duas constituições.

O preceito

do art. 65 da Carta de 16 de Julho que

trata da

proibição aos

juizes do exercício de

qualquer outra função

pública,

está reproduzindo no art. 92

do Estatuto de 10 de Novembro. Su-

primiu-se nêste entretanto, a expressão

"salvo

o magistério e os casos

previstos nesta Constituição",

que era uma exceção à regra

proibitó-

ria. E' que

no Estado instituído em 1937, não se tolera qualquer

es-

pécie de acumulação,

quer se trate de funções,

quer dos

proventos que

elas proporcionam.

A regra do art. 66 da Constituição de 1934 desapareceu da

nova lei fundamental, por

força da natureza mesma do regime vi-

gente, que eliminou, em

proveito da Nação, os

partidos políticos.

No que

toca à competência dos Tribunais quanto

à sua eco-

nomia interna, houve uma diminuição na soma de atribuições que

lhes é facultada. No art. 93

da Carta de 1937, que

é a reprodução

do art. 67 da Constituição de 1934, constata-se a eliminação da letra

c que

dava aos Tribunais competência para

nomear, substituir e de-

mitir os funcionários de suas secretárias, cartórios e serviços auxiliares.

A regra do art. 68 da Constituição de 1934 está, hoje, contida

no art. 94

da nova Carta.

Os dispositivos dos arts. 69, 70, 71

e 72

da Constituição pas-

sada não tiveram reprodução no pacto

vigente. Em compensação, sur-

gem nêstes dois

preceitos novos: o do art.

95, que trata dos

pagamen-

tos devidos pela

Fazenda Federal, em virtude de sentença judiciária;

e o do art. 96, que

versa sobre a declaração da insconstitucionalidade

de lei ou ato do Presidente da República, pelos

Tribunais.

Demoremos, agora, a nossa atenção e o nosso exame sobre o

capítulo referente ao Supremo Tribunal Federal, que,

na Carta de

16 de Julho

tinha denominação de Côrte Suprema.

Verificamos que,

embora de pouca

monta, há algumas altera-

O PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1937 106

ções a registrar nêsse capítulo da Carta de 10 de Novembro, sôbre o

mais alto Tribunal de Justiça

do País, nos seus arts. 97

a 102.

No Estatuto de 1934, o assunto era regulado em 5

artigos, os

de ns. 73

a 77.

Apareceu, assim, mais um artigo na nova Cons-

tituição. E' o que

tem o n. 99

e trata do Chefe do Ministério Pú-

blico Federal. E' um preceito

novo no capítulo. Na Constituição

anterior, êle aparecia no §

i.° do art. 95,

na secção I —

do Minis-

tério Público —

do capítulo VI —

Dos órgãos de cooperação nas ati-

vidades governamentais.

O art. 97

da atual Constituição é o art. 73

da anterior. De-

sapareceu, entretanto, o §

2.0, e o §

i.° passou

a ser §

único.

O Supremo Tribunal conservou a sua composição: onze Minis-

tros. Permitiu-se, como dantes, a elevação do número desses minis-

tros e proibiu-se

terminantemente a sua redução.

Na regra do art. 98,

o Estatuto vigente conservou a do art.

74 da

presente, apenas com a exclusão das locuções

"alistados

eleito-

res" e

"salvo

os magistrados", a primeira

contendo uma exigência

para ser nomeado ministro do Supremo,

que já se não

justifica no atual

regime, a segunda portadora

de uma exceção favorável aos magistra-

dos, que,

então, não estavam sujeitos aos limites de idade, mínimo e

máximo, fixados constitucionalmente, para

o ingresso no Supremo.

A competência para

aprovar as nomeações dos Ministros do Supremo

Tribunal passou

do Senado para

o Conselho Federal, que,

como sa-

bemos, substituiu, na atual organização política,

com as naturais pe-

culiaridades ao novo Estado, a chamada Câmara Alta.

O preceito

do art. 75

da Carta de 1934 está reproduzido no

art. 100 da atual. Entretanto, a competência para processar

e julgar

os Ministros do Supremo passou

do Tribunal especial a que

se refe-

fria o art. 58

da Constituição de 1934, para

o Conselho Federal.

Com referência à competência do Supremo Tribunal Federal,

matéria definida, anteriormente, no art. 76

da Constituição de 16 de

Julho, e, hoje no art. 100 do diploma Constitucional de 10 de No-

vembro, se bem que,

de modo geral,

se possa

afirmar que

êsse dis-

positivo manteve aquêle, houve algumas modificações

que merecem ser

postas em evidência.

Assim é que já

não tem o Supremo Tribunal competência para

processar e

julgar, originariamente, o Presidente da República e

não existem os dispositivos que

antes figuravam nas letras ceido

n. I. do art. 76 já

citado. E' que

desapareceram do organismo ju-

196 CULTURA POLÍTICA

diciário da Nação os juizes

federais e seus substitutos e já

não cabe

a medida protetora

do

"mandado

de segurança contra atos do Presi-

dente da República e de seus ministros.

Quanto à competência

para julgar da mais elevada Corte de

Justiça do

país, também se constata alteração digna de nota. Dêste

modo, à letra a do n.° 11, 2, do art. 76

se deu, na nova Constituição,

o seguinte substitutivo:

"a)

As causas em que

a União for interessada como autora

ou ré, assistente ou opoente".

O dispositivo da letra b do mesmo n. e artigo, desapareceu,

por força da supressão da

Justiça Eleitoral. A regra da letra c do n.

11, 2, do já

referido art. 76 passou

a ser a da letra b do art. 101, 11,

2, com a seguinte redação.

"As

decisões de última ou única instância denegatórias de

"ha-

beas-corpus".

Cumpre, ainda, assinalar o desaparecimento da norma do n. 3

do art. 76

da Constituição anterior, que

tratava da revisão, em be-

nefício dos condenados, dos processos

findos em matéria criminal.

As secções III e IV do cap. IV —

do Poder Judiciário

que

tratavam, respectivamente, dos juizes

e Tribunais Federais e da Jus-

tiça Eleitoral, desapareceram.

Resta-nos para

conclusão dêste nosso ligeiro estudo sobre o Po-

der Judiciário

no Estatuto de 10 de Novembro, o exame do capítulo

relativo à Justiça

dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios,

que constituía matéria do título II da Carta Política de 1934.

E' interessante sobremodo e, por

sem dúvida, oportuna apre-

ciação dêsse capítulo do diploma constitucional que

ora rege os des-

ti nos da Nação Brasileira.

Poderá parecer

a quem,

menos avisado, e sem a noção exata

da estrutura do nosso novo sistema político,

estudá-lo, que

o Esta-

tu to de 10 de Novembro, dando, como deu, e era imprescindível, maior

amplitude à órbita de ação do Poder Executivo, cuja preponderância

é, hoje inegável, o tenha feito, também, em detrimento do Poder j«-

diciário.

Já deixamos dito, de início,

que êsse alargamento da esfera do

Poder Executivo é feito em prejuízo

apenas do Legislativo, que

teve

sensivelmente diminuídas as suas atribuições.

O Poder Judiciário

continuou a ser o que

era dantes. Não

O PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1937 197

houve nenhuma restrição quanto

às suas funções, nem quanto

às pre-

rogativas e garantias

dos seus membros.

Desta forma, relativamente à Justiça

dos Estados, da metrô-

pole Federal e do Território do Acre, lícito é dizer

que, presente-

mente, a situação é a mesma que

vigorava antes do golpe

de Estado

de que

resultou a implantação do atual regime.

E\ pelo

menos, o que

forçosamente se deduz do texto consti-

tucional, estabelecido, para

conclusões mais seguras e procedentes,

um

paralelo, nessa

parte, entre os dispositivos das duas cartas magnas.

Do mesmo modo que

o art. 104 da Constituição de 1934, o art.

103 da Constituição de 10 de Novembro deixa aos Estados inteira

liberdade para

legislar sôbre a sua divisão e organização judiciária

e

para prover os respectivos cargos, obrigando-os apenas à observância

de determinado: preceitos.

Êsses preceitos, que

os Estados não podem

deixar de respeitar religiosamente, são os da Vitaliciedade, Inamovi-

bilidade, Irredutibilidade de vencimento e Incompatibilidade para

o

exercício de outra qualquer

função pública,

e mais os enumerados nas

letras a e f

do art. 103 citado e que,

antes, vinham nas mesmas le-

tras do art. 104 da Constituição de 1934, à exceção da letra c, e no

§ i.° do mesmo art.

Com relação ao preceito

da letra /

do art. 103 da atual Cons-

tituição, reprodução quasi

literal do contido no §

i.° do art. 104 da

anterior cumpre observar que

não é ele mais que

um reforçamento

da garantia

da inamovibilidade, consagrada na letra b do art. 91

da

presente Carta Política, reforçamento êsse

que é feito tendo em mira,

evitar tão sòmente que,

mediante a chicana da mudança da sede de

um juízo,

se sacrificasse o princípio

da inamovibilidade e, destarte,

se tornasse o respectivo titular amovível. Urge ainda salientar, a

propósito dessa regra Constitucional,

que, na Constituição em vigor,

se deu maior vitalidade, expressão mais forte, ao direito do juízo,

no

caso de mudança da séde do juízo que

ocupa. Assim é que,

emquanto

na lei, fundamental de 1934, nêsse caso, era facultado ao juízo

remo-

ver-se com a nova séde, ou pedir

disponibilidade, com vencimentos

integrais, no Estatuto de 10 de Novembro se permite

ao Juiz

se não

quizer acompanhar a nova séde, entrar em disponibilidade.

Em lugar do direito de pedir,

tem, hoje o juiz

o direito de en-

trar em disponibilidade, o que

constitue, inegavelmente, uma defini-

ção mais segura, mais

positiva, da

garantia que .0 legislador consti-

tuinte quiz

assegurar aos magistrados.

198 CULTURA POLÍTICA

Dispondo a constituição de 1934, na hipótese que

vimos ana-

lizando, que

ao juiz

é facultado pedir

disponibilidade, poderia pare-

cer que

êsse pedido

estaria sujeito à apreciação de autoridade supe«

rior, podendo

ser ou não deferido, e, evidentemente, não foi isso

o que quiz

o constituinte da s.a república.

Dando melhor redação ao dispositivo, a carta política

de 1937

não deixa margem a nenhuma dúvida, ressaltando patente

e claro

de seu texto que

o ato do juiz

de entrar em disponibilidade não de-

pende de

qualquer apreciação.

Ainda no capítulo da justiça

dos Estados do Distrito Federal e

dos territórios, notamos que

as normas dos parágrafos

2.0 e 3.0

do

art. 104 da constituição de 1934 não aparecem no estatuto presen-

te, que,

assim, não cogita da promoção por

merecimento.

A regra do § 4.0

é, atualmente, matéria do art. 104 e a do

§ 6.° matéria do art. 105.

O preceito

do § 7.0

aparece, agora, no art. 106.

O § 5.0

não tem correspondente na carta atual.

O art. 105 da Constituição de 1934, referente à organização da

justiça do Distrito Federal e dos territórios, igualmente, não foi

mantido.

Aparecem, no estatuto do Estado Novo, entretanto, dispositivos

novos relativos à justiça

local. São os dos arts. 107, 108 e seu §

único,

109 e seu parag.

único e 110.

O art. 107 estatue que,

à exeção das causas da competência do

Supremo Tribunal Federal, todas as demais são da competência da

justiça local..

O art. 108 e seu §

único tratam das causas em que

a União for

autora ou ré, assistente ou opoente.

O art. 109 consigna uma medida complementar, de um certo

modo, das formas do art. anterior e seu parágrafo. Determina

que,

das sentenças proferidas em

primeira instância, nas causas referidas

no art. 108 e seu parágrafo,

havera recurso direito para

o Supremo

Tribunal Federal.

O paragrafo

único do art. 109 dispõe sôbre a cobrança da dí-

^da ativa da União, matéria hoje regulada pelo

decreto-lei n. 960,

de 17 de Dezembro de 1938.

Finalmente, o art. 110 prescreve que

"a

lei poderá

estabelecer

para determinadas ações e competência originária dos tribunais de

apelação".

O PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1937 199

Com as ligeiras observações e comentários que

aí ficam, em

face do exame dos textos das duas constituições brasileiras, a de 1934

e a vigente, nos capítulos referentes ao poder judiciário,

reforçamos

a convicção, que

firmamos de início, de que

o pacto político que

nos

deu o Estado Novo não alterou os princípios

e as regras em que

assen-

tava, no estatuto anterior, a organização daquêle poder.

Por outro

lado, manda a verdade proclamar que

as garantias que proporcionam

aos juizes

inteira liberdade e absoluta independência no exercício de

seu nobre e elevado mister, foram integralmente mantidas e até, de

uma certa maneira, reforçadas, como acontece, em relação ao preceito

da letra

"f"

do art. 103, por

uma mais clara redação do texto

constitucional.

1

%

4

Textos e documentos históricos

Quaisquer citações bibliográficas de velhos autores, ou

de novos anteriores a 1930; quaisquer documentos históri-

cos, que interessam à vida política do Brasil — terão oco-

Itiida nesta seção.

As eleições no Brasil durante

a Primeira República

As eleições. no Brasil, sempre foram uma ameaça constante a tranqüilidade

pública e a boa orientação dos governos, perturbados nas suas diretrizes

pelos demagogos exaltados, e, não raro,

pelos motins dos entusiastas creado-

res de boatos atrevidos e falsos, dc conseqüências quasi

sempre funestas.— Entretanto,

quantos homens de

gênio não foram arrastados

pelo perigo

da oratória e dos vivas, atraiçoados pelas palmas

dos ambientes tumul-

tuáriosl — O interior do Brasil era bem a expressão da barbaria, e o su-

bôrno, deformando os caracteres era o maior incentivo ao crime, ao ban-

ditismo, pela conquista do dinheiro

fácil, adquirido em "tempos

de eleição

Os inúteis, os preguiçosos,

os comodistas, esperavam com o seu voto o bom

tempo da "safraOs

espertos, os trapaceiros, criminosos, esperavam a con~

fusão para assassinatos, assaltos, roubos, desordens e toda sorte de crimes.

E a família patriarcal, a tradicional família dos engenhos e das fazendas,

vivia então sobressaltada, infeliz, correndo de lá para cá, trancando as mo-

çoilas nos colégios, escondendo os rapazes turbulentos nos porões,

ou fa-

zendo-os emigrar para as Capitais, temendo a traição dos disparos

que

nunca se descobria de onde vinham. — Transcrevemos hoje, nestas páginas

do passado, um interessante documento daquela época de

pavor e susto,

cheirando aifida a sangue e a intriga. E* o depoimento do então menino

Teotônio Tavares de Miranda Neto, testemunha ocular da hecatombe de

Garanhuns, ocorrido no dia 15 de Janeiro de 1917, extraído dos autos de

inquérito instaurado pelo

Bel. José Francisco Ribeiro Pessoa, então Juiz

de Direito na Comarca de Gravatá. — Foi durante o govêrno de Manoel

Borba, adversário do General Dantas Barreto, que se deu a catástrofe,

naquela bela e conhecida cidade Pernambucana. — Era o resultado das

campanhas eleitorais. ..

CORPOS de delicto de Fl. a Fl. , constantes do inque-

T 1 rito, dão a certeza dos homicídios praticados

na hecatom-

be conseqüente do assalto da cadeia, bem como dos que

foram mortos e feridos na repulsa do assalto e não foram occultados

pelos interessados.

"Para

dar uma idéia, tanto quanto possível,

completa, de como

se passaram

os vários crimes sucessivos em connexão ocorridos por

occasião do assalto á cadeia, basta recorrer ao depoimento de uma

testemunha occular, ainda que

simplesmente informante por

ser filho

de uma das victimas —

Tenente Coronel Argemiro Miranda, —

o

menor de dez annos de idade, a respeito de cuja informação, diz a lei

processual reguladora da especie,

quanto as declarações das

pessoas em

204 CULTURA POLÍTICA

tais condições inhibidas de deporem: essas informações terão o cre-

dito, que

o Juizo

entender que

lhes deve dar, em attenção as cir-

cunstancias". — Art. 267 do Reg. n. 120 de

31 de

Janeiro de 1842

ainda em vigor.

"Veja-se essas declarações do citado informante, do nome

Theotonio Tavares de Miranda Netto, que

se encontram a fl. 337

usque fl. 340,

combine-se com as de quasi

todas as testemunhas jura-

das do inquérito e seus appensos e ter-se-á a descrição, a mais cabal,.

de toda a chacina.

"Não

precisarei aqui reproduzir ipsis verbis a hedionda

descripção.

"O tenente Meira Lima, antes de começado o tiroteio, cum-

pre observar, fora com antecedencia a Cadeia e fizera d'ahi retirar

toda a munição ahi existente, recommendando aos soldados da Guar-

da não consentisse entrar ali ninguém, nem mesmo conduzindo refei-

ção alguma

para os recolhidos, aos

quaes não

permitira conduzirem

armas, porque

affirmava-lhe estarem plenamente garantidos

em suas

vidas, repetindo-lhes sempre o estribilho de que

dali não sairia ele

Delegado,

"sem

que passassem antes sobre o seu cadaver".

"Entretanto, isto feito,

poz-se logo ao fresco, indo ali raras ve-

zes, sendo certo que, poucos

momentos antes do assalto, a pretexto

de

haver recebido um recado do Juiz

de Direito Dr. Abreu e Lima, cha-

mando-o, desapareceu inteiramente da cadeia, indo para

a casa da

viuva, onde, nessa ocasião, também permanecia

o mesmo Dr. Abreu.

"Isto

feito, começara, logo após, o tiroteio pelos

assaltantes, em

numero crescido, os quais

atacaram-na a mesma cadeira, pela

frente,

pelo oitão e

pelo lado de detraz, havendo ahi subido

por uma esca-

da, colocada na supra janella,

e galgando

o batente desta, o can-

gaceiro conhecido

por Caju, a

quem o tenente Antonio Padilha for-

necera antes um rifle, dispara tiros certeiros e de pontaria, pelo

oculo

aberto na mesma janela,

sobre os recolhidos naquele compartimento.

"Ao

mesmo tempo, os assaltantes do lado da frente faziam

dahi cerrado fogo para

dentro, alvejando a porta

do dito comparti-

mento, capitaneando esse grupo

de assaltantes, entre outros o fami-

gerado Antonio Rosa Filho.

"Na

angustia desse trevoso momento, a tragédia hedionda que

- ahi se desenvolvera, a chacina resultante de todo esse descomunal as-

salto, jamais

talvez visto ainda na serie dos crimes comuns os mais

pavorosos, somente equiparavel aos

que o cyclone da

guerra europea

ha dado lugar serem consumados por

creaturas humanas, é quasi

in-

descri ti vel, não ha cores carregadas com as quaes

seja possivel

des-

creve-lo.

"Como

já foi dito, os tiros foram dados, ao mesmo tempo,

pela

porta da frente da cadeia e

pelo oculo da alludida

janella do mata-

douro da morte, onde se encontravam os citados refugiados.

"O

primeiro destes a ser baleado

pelo bandido Cajú desse

ultimo ponto,

fora logo Francisco Yeloso da Silveira, que

cairia ime-

0

TEXTOS E DOCUMENTOS HISTÓRICOS 205

diatamente fulminado por

certeira bala. Em seguida, Júlio

de Miran-

da, depois Sátiro Ivo da Silva, atingido por

um projétil

de rifle em uma

das orelhas. Logo apos o mesmo Sátiro recebe um outro tiro na mão

direita, deixando-a meio decepada.

"Quasi ao mesmo tempo, abrindo a

porta do compartimento a

força, ai penetram

dois outros sicarios —

Antonio Rosa Filho e outro

de nome Manoel Francisco, tipo baixo e grosso,

na expressão do ci-

tado informante, o menor Teotonio de Miranda Neto, filho de Ar-

gemiro, e

que tudo

presenciára de vista. Desses indivíduos o

pri-

meiro descarrega o rifle sobre Manoel Jardim

e o segundo sobre a

cabeça do dr. Borba Júnior, quando

ambas as victimas já

se acha-

vam deitadas sobre o solo do quarto.

Em seguida, ainda Antonio

Rosa Filho, sangra lentamente a punhal,

na carótida, a altos brados,

ouvidos na visinhança, nos extertores da agonia e das dores lancinan-

tes por que

estava passando

com semelhante genero

de morte, gri-

tava em berros:

"acabem-me logo de matar, sem mais demora,

por

amor de Deus!".

"Dai

passa esse mesmo consumado facínora Antonio Rosa a d»ir

profunda punhalada em Sátiro Ivo,

já deitado sobre o solo. Nesse

comenos, Júlio

de Miranda, pode

apanhar uma espingarda, encon-

trada no chão, e com ela procura

defender-se disparando vários tiros,

ainda dentro do recinto da cadeia, mas já

fora do compartimento em

que se achava, até

que, esgotada a munição da arma, e deixada esta,

apodera-se de uma outra carabina, abandonada pelo

cabo de policia

Cobrinha, que,

na defesa heróica da cadeia já

havia tombado fui-

minado pelos

cangaceiros.

"Com a referida carabina, sustenta ainda o fogo, com denodo e

heroísmo, não vulgares, contra estes, até esgotar também a respectiva

munição, isto ainda dentro da cadeia, e saltando, pouco

antes de es-

gotada a mesma municação, encontrada já

no chão, arrecadada e for-

necida por

seu filho menor, o referido informante, a fls. 337

do in-

querito, salta

para o lado de fora da mesma cadeia, ahi continuando a

defeza, até que

é atingido por

uma nova carga de tiros dos canga-

ceiros, como o fora

"Cobrinha" e, como este, cae fulminado e varado

de balas, deixando ao expirar, uma enorme poça

de sangue, ainda vi-

sivel no lugar do sacrifício, isto é, no solo e junto

a parede

do lado

direito do edifício da cadeia, conforme se constata do auto de exame

do mesmo edifício, por

mim e com a minha assistência e de testemu-

nhas procedido, já

oito dias decorridos da hecatombe, ut fls. 68 us-

que 70 v. dos autos do inquérito.

"Destruídos esses últimos redutos de resistencia

— "Cobrinha

e

Argemiro Miranda, já

se achando ferido mortalmente Vicentâo e mor-

tos tres ou quatro

dos cangaceiros, penetra então no interior da ca-

deia a restante horda de assaltantes, ainda em numero avultadissimo, e

ainda praticam

as maiores crueldades, e roubos, para

coroação final de

sua obra.

206 CULTURA POLÍTICA

"E'

assim que

vibram alguns deles novas facadas nas vitimas,

já cadaveres e nos

que ainda se achavam agonisantes, nos últimos

pa-

roxismos da morte, dão-lhes coronhadas nas faces, nos rostos, nas ca-

beças, deformando-lhes' as fisionomias, de modo a quasi

se desconhe-

ce-los a simples inspeção ocular. Não só isso, mais também decepam

o dedo em que

o Dr. Borba, tinha o seu anel simbolico de medico,

para roubarem-no,

quebram-lhe a outra mão, dão-lhe uma forte co-

ronhada na face dilacerando-lhes as carnes e fazendo aparecerem a des-

coberto da epidermes os ossos faciais. Assim também praticam

como

outras vitimas da chacina, como o coronel Sátiro Ivo, cujo ventre

abrem a golpe

de navalha, deixando vasarem-lhe os intestinos, alem

de deformarem-lhe o rosto, roubando-lhes as jóias,

manchadas de san-

gue, que em seu

poder tinha,

jóias essas

que, afinal, o mesmo Anto-

nio Rosa fora expontaneamente entregar ao tenente Teofanes, hoje

capitão, já

na ocasião no exercício que

assumira á tardinha daquele

mesmo dia 15 de Janeiro.

"Roubaram de todas as vitimas dos recolhidos

presos ali

pelo

tenente Meira Lima, em numero de sete, todo o dinheiro que

haviam

conduzido consigo, em crescida soma, deixando-lhes os bolsos vasios

do lado de fora das vestes. Apos fica um desses bandidos a guarnecer

a cadeia, da qual

soltaram e deram evasão a dois presos

ali anterior-

mente recolhidos, para

reforçarem ainda mais os grupos

dos assaltan-

tes. Esse facinora fora o individuo de nome Antonio Pedro Francis-

co, ou Manoel Francisco, por

cujo nome é também conhecido pelo

informante de fls. 337,

o qual, procura

na ocasião do assalto tam-

bem mata-lo, não o fazendo por

ter-lhe sido ponderado pelo

mencio-

nado Antonio Rosa Filho

"não

ser conveniente matar-se uma creança".

"Desacata, maltratando, também, com

palavras injuriosas, a mãi

dessa creança —

d. Ignez de Miranda —

que em companhia deste e

dos outros seus filhos menores, fora ali ver o cadaver de seu mari-

do e tratar de conduzi-lo para

sua casa, afim de dar-lhe sepultura de-

cente, não lhe respeitando nem a dor inconsolavel da viuvez, nem as

lagrimas derramadas diante do cadaver de seu marido, com quem

abraçada se lamenta da perda

irreparavel sofrida e da fileira de orfão-

sinhos que

ficaram sem os seus carinhos e proteção.

"Malditos! Amaldiçoada

gente!.. .

"A

todas as viuvas que

ali foram com os mesmos intuitos, ne-

gava-se aquele facinora a

permitir a retirada dos cadaveres das

pes-

soas que

lhe foram seus arrimos e protetores

naturaes.

"Enquanto isso se

passava, conservaram-se na casa da viuva

Brasileiro, em sua companhia, os citados tenentes Meira Lima, e Pa-

dilha, o Juiz

de Direito Dr. Abreu e Lima, e outros e outros, a bom

recato, intimamente regosijados talvez pelo

êxito feliz da campa-

nha dantes traçada nos Estados Maiores da politicagem

local.

"Aguardavam a volta dos assaltantes. Estes, terminada a cha-

cina, voltam, pressurosos,

a citada casa e ahi, para

onde eram, também

e ao mesmo tempo, transportados os cangaceiros feridos no assalto,

TEXTOS E DOCUMENTOS HISTÓRICOS 207

entram e abraçam rejubilados, todas as pessoas

de ambos os sexos, a

começar da viuva Brasileiro, sua filha casada com José

Viana, a este,

ao Dr. Abreu e Lima, Juiz

de Direito, tenentes Meira Lima, Padi-

lha, Fausto Galo, Jacome

Sampaio e sua mulher e outros parentes

e

amigos ali presentes,

como o revelara a Testemunha Francisca Barbo-

sa, com a confirmação da referida, nesse ponto,

o Dr. Pacifico dos

Santos, promotor

efetivo da comarca, que

se achava presente

nessa

mesma ocasião em a mencionada casa Vid os seus respectivos depoi-

mentos nos autos. Feito isso, já quasi

ao anoitecer, trataram de trans-

portar os cadaveres de

quasi todas as victimas, com excepção apenas

de poucos

delles, para

os quaes

a complacência e longanimidade da

vingança, já

saciada dos seus principaes

responsáveis, acoçados, de

certo, pelo

remorso que já

lhes começava a invadir a alma de bar-

baros, fora permitido

a condução para

as casas das respectivas viuvas,

os irmãos Júlio

e Argemiro, Veloso, Manoel Jardim

e sobrinho, e

Sátiro Ivo, em uma carroça de lixo da Prefeitura Municipal, com

destino a igreja Matriz, onde ficaram depositados, com proibição

dos

cangaceiros ali postados

de guarda, por

consentimento das autorida-

des principais

da localidade, de permitirem

a quem quer que

fosse

lá penetrar.

Essa carroça, em seus trajetos, com esse destino, tinham ordem

os seus carroceiros de pararem

em frente a casa da mencionada viuva,

para poder e ter ela a certesa de haverem sido cumpridas as suas or-

dens. Saia então de sua casa o seu parente

afim farmacêutico Jaco-

me Coelho de Matos Sampaio, morador comvisinho, para

isso verifi-

car na rua e transmitir-lhe para

lá a noticia, e somente depois dessa

verificação, tinham ordem os carroceiros de prosseguirem

a viagem. O

cadaver do dr. Borba Júnior,

era visto sobre os outros, em decubito

dorsal, com as pernas

dependuradas da carroça, encharcadas as suas

vestes de sangue, já

coagulado. Já

era quasi

noite e os raros Iam-

peões da iluminação da cidade, achavam-se apagados em sua totali-

dade. Tudo que

venho de narrar encontra-se e se verifica da leitu-

ra dos autos do inquérito e seus dois Apensos.

"Malograra-se, entretanto, uma ultima

parte do

programa tra-

çado da tragédia. Não tiveram tempo de incendiar as casas comerciaes

da cidade, pertencentes

as victimas, para

o que já

haviam colocado

nas portas

do estabelecimento dos irmãos Miranda, latas de gasolina

e fachos apropriados, a esse fim, conforme fora ainda encontrado e

talvez por

isso mesmo, pelo

Delegado, já

em exercício, o então tenen-

te Teofanes Torres, hoje capitão, a quem

infelizmente não me foi pos-

sivel ouvir em depoimento a esse respeito, por

não ter esse oficial per-

maneado aqui até o encerramento das diligencias, sendo transferido,

muito antes, para

a cidade de Olinda, Recife, afim de assumir o co-

mando do esquadrão dc Cavalaria. Seria então a destruição completa

da cidade, pelo

incêndio total delia, alimentado pela

enorme copia

de matérias inflamaveis, nestas mesmas casas existente. Repetir-se-ia

no século actual da electricidade, mais uma nova tragédia dos antigos

208CULTURA POLÍTICA

tempos de Roma pagã,

tendo por

autores os novos Neros caricatos de

Garanhus, que desapareciam na voracidade do incêndio,

para ser re-

construída, pela base,

por novas

gerações, talvez compostas de menos

selvagens do que a actual constituída como era a anterior

por canga-

ceiros, por meio dos

quaes pretendia a família Brasileiro e os seus

mentores e amigos dedicados implantar a civilisação, com o seu per-

petuo poderio e mandonato local. Convém, a

proposito dos

prepa-

rativos do malogrado incêndio, chamar a attenção para

uma circuns-

tancia característica do fornecimento da gasolina, para

tal fim desti-

nada. Somente na cidade eram possuidores

de semelhante combus-

tivel, o capitão Tomaz da Silva Maia, prefeito

em exercício, preso pre-

ventivamente, com confirmação dessa prisão pelo

Superior Tribunal,

em denegação de habeas corpus por

ele impetrado, e o negociante Ni-

colau Deletieri; implicado nos fatos criminosos do dia 15 de Janeiro,

com indicios, porem,

ainda vir a ser apurada. Antes de terminar

essa longa narrativa, apurada no inquérito, de todos os fatos crimi-

nosos ocorridos e dos seus responsáveis cumpre ainda referir-me, e por

ultimo, mais ao seguinte.

"Logo na manhã seguinte a hecatombe, aproveitando o trem

especial que

conduzira para

ser ali enterrado o cadaver do coronel Ju-

lio Brasileiro, a sua viuva, os tenentes Meira Lima e Padilha, Fausto

Galo, Eutiquio Brasileiro, Alfredo Brasileiro (Doca)

o dr. Abreu e

Lima e respectivas familias, e alguns outros, protogonistas

da mesma

hecatombe, seguiram para

a capital, onde se conservaram até hoje, não

mais regressando aqui um só deles!

"O

que poderá significar semelhante attitude, somente

justifica-

vel naquelles, dentre elles, que

foram presos preventivamente,

ou se

achavam foragidos por

terem tido noticia dos mandados de prisão,

também preventiva,

expedidos por

este Juizo,

contra elles, senão o

remorso de suas consciências pelo

receio de serem passiveis

de qual-

quer castigo, em represalia dos crimes de

que foram autores ou cum-

plices, no supramencionado dia, nesta mesma cidade?

"Disa?it Paduani

"Fazendo

ponto aqui, no tocante à narrativa dos fatos crimino-

sos passaremos

a outra parte

do relatório".

t

0

Memorandum sobre a situação

agrícola nacional no último

período

do II Império

Êsse memorandum histórico consta da Proposta apresentada aos Poderes do

Estado pelo

Com. Domingos Teodoro de Azevedo e pelo

Tenente Coronel

Augusto de Miranda Jordão, fazendeiros na Província do Rio de Janeiro,

proprietários e altos negociantes daquela época, matriculados

pelo Tribunal

do Comércio da Corte. — A referida Proposta tinha por fins principais:

A

Amortização da Divida Interna, fundada pela Lei de 15 de Nov. de 1827;

Conversão da Moeda Papel do Govêrno em ouro ao par;

empréstimo à La-

voura a juro

módico e a prazo

longo. — Por ela sente-se a incerteza política

e financeira de 7iossa última fase do Império. — O receio dos lavradores,

a insegurança da indústria agrícola eram o espantalho dos economistas da-

quela época, a

"assombração" dos capitalistas latifundiários,

que viam de~

saparecef o braço servil, pela fatalidade da Abolição. — A

questão dos

juros

altos, que

arruinou tantos capitalistas, a insuficiência da capital nacional

para fomento, atemorizavam as iniciativas em toda a vastidão do Império.

Dai surgirem os comentários mais absurdos, as hipóteses mais desastradas

no sentido de evitar o abismo para

onde se precipitava,

cada vez mais, o

Brasil. — Infelizmente, porém

a nossa economia tomava aspectos alarmantes,

E como tudo se reorganizou tão diferentemente de tais prognósticos!

Vejamos por

exemplo quanto

a emissão do papel

moeda, recurso hoje

adotado em todos os países.

— A creação dos Institutos4 as leis do Reajus-

tamento Econômico, as Leis de Proteção aos trabalhadores rurais, as Leis

de Assistência Social, a técnica de especialização, e tantos outros benefícios

alcançados pela

numerosa classe, representam uma paisagem

nova na his-

tória agrícola do nosso Pais. — Já não é a velha história enferrujada dos

"engenhos" no atrazo das veredas para

carros "plangentes"

e retardatários,

ou para

as "aranhas"

aristocráticas dos "Senhores". — As estradas largas,

os caminhos de Ferro, ligando quasi todas as Cidades do Brasil imenso, e

ainda as linhas aéreas, nem recordam mais aquéle legitimo quadro

colonial,

quasi lendário no

pensamento da nova

geração.

J/y. 1 INGUEM desconhece porque se acha na consciência geral, que

o Paiz luta

|\| com serias difficuldades economicas e financeiras, há

já alguns annos.

" ^ "Que

estas difficuldades têm produzido crises commerciaes não

perio-

dicas, mas quasi permanentes,

causando sempre graves embaraços á Lavoura^ ao

Commercio e a toaas as mais Industrias, tudo com grande dano da riqueza

publica.

"Que situação anômala em

que, infelizmente, se acha o

paiz, tem a sua

erigem na falta de capitaes disponíveis para satisfazer as necessidades das Indus-

trias, muitas dellas largamente remuneradoras: escassez do meio circulante, que não

<está em relação com as avultadas transações deste vasto Império; e principalmente

a incompatibilidade do papel

moeda.

210

4

CULTURA POLÍTICA

"E,

que esta situarão reclama urgentemente medidas que

impeção a con-

tinuacão de sua marcha» _, •

Os capitaes que devem ser fornecidos á lavoura tornão-se raros e inaccessi-

veis a essa industria por differentcs causas.

•« j

o Falta de confiança na sorte dos imóveis ruraes pela dependencia do

valor dos braços escravos. ...... i_

"Crise do trabalho agrícola pela

diminuição de braços, pelas

va-

gas incertezas de seu futuro, e

pelo malogro de todas as emprezas

a "Dalií*

vem a dependencia senão a inferioridade desta indus-

tria quando concorre com outras, pedindo auxilio de capitaes.

?•o o _ inimobilização dos capitaes em Apólices da Divida Publica, com juros

de seis por cento. A ruina da Lavoura tem vindo dos altos juros que

paea; são efficientes as causas da impontualidacle do lavrador, que

não é para admirar, que este tenha sido obrigado a

pagar juros al-

tissimos, que tem arruinado a uns e .paralizado o desenvolvimento da

cultura a outros.

(Tal como aconteceu agora aos lavradores, milagrosamente salvos,

pelas Leis

do Reajustamento Economico).

"E

quando o legislador tem querido promulgar

medidas á favor

da Lavoura, que tem feito?

"Tem-lhe offcrecido a perspectiva

de juros de seis

por cento

de annuidade fixa de amortização, além de despezas onerosas de ava-

liacões e de dependencias de favor do Banco do Brasil e da insut-

ficiencia do Capital de vinte e cinco mil contos para soccorrer uma

Industria que reclama o quádruplo

desse capital.

"Com taes favores a Lavoura não melhorou, melhorarao ape-

nas alguns devedores, que substituirão débitos mais onerosos por

ou-

tros menos onerosos, quanto a juro

e quanto

a prazo,

"o o \ perspectiva de

juro de seis por

cento ainda nao lhe facilitou o Capital»

"Em concurrencia com os Títulos da Divida Publica interna,

fundada a Lei de 15 de Novembro de 1827, que hoje se acha elevada

a duzentos e sessenta e seis mil contos, os Títulos Hypotecarios, longe

de serem preferidos, são desprezados.

"Emquanto o Estado

pagar semestralmente juros

a seis por

cen-

to ao anno pela sua Divida interna, a taxa de juro para

a Lavoura

e para

todas as Industrias será forçosamente mais elevada, e os capi-

talistas negarão a todas estas a provisão de Capital necessário a

pro-

durão, contentando-se com a segurança do emprestimo e juro

das

Apólices."A

prova desta verdade está no malogro das Lettras Hypote-

carias as quaes hoje são cotadas com descontos de vinte e trinta por

cento, e que

sendo dadas nos emprestimos á Lavoura como Capital,

elevão os juros

dos emprestimos a oito, e nove, e mais por

cento.

"Mas como é

possível esperar o Credito das Letras Hypotheca-

rias emquanto o Governo pagar semestralmente juros

a seis por

cento

ao anno pelos Títulos de Divida fundada?

"A insufficiencia do capital nacional

para fomento, e actividaue

das Industrias e principalmente

da Lavoura é um facto incontestável.

"Para isso tem concorrido o emprego, embora reproduetivo, nas

Estradas de Ferro e outras vias de Communicação; os impostos gra-

vosos que pesão

ainda sobre as Industrias e sobre os consumidores^

absorvendo uma boa parte

dos seus lucros, mas, cuja continuação será

necessaria para que o Governo recue na carreira dos melhoramentos,

materiaps; e também um tal ou qual

desequelibrio entre quantidade

actual do meio circulante e as transações novas e mais activas na

vasta extensão do Império.

"Mas

principalmente e

para a escassear o Capital animador das

Industrias a derivação irresistível daquelle para o emprego em Apoli-

ces da Divida Interna. A pouco

mais de dez annos a Divida interna

fundada tem ciescido em mais de duzentos contos além do Empresti-

mo de 1868, e da Divida Fluctuante sempre crescente, esses empregos

absorvem mais de trezentos contos de Capital, desviados dos empregos,

industriaes.

TEXTOS E DOCUMENTOS HISTÓRICOS 211

"O remedio radical

para curar o mal da actual situação eco-

nomica será pois a creação de um Banco

que tenha

por fins:

"1.° — AMORTIZAR A DIVIDA PUBLICA FUNDADA PELA LEI DE 15

DE NOVEMBRO DE 1827, NO VALOR DE DUZENTOS E SESSEN-

TA E SEIS MIL CONTOS.

"2.0 - RESGATAR TODO O PAPEL MOEDA DO GOVERNO, CUJA IM-

PORTANCIA ACTUAL DE CENTO E QUARENTA

E NOVE MIL

E QUINHENTOS

E DOIS CONTOS — começando o resgate em um

período determinado e substituído integralmente

por moeda de ouro

todo o restante papel

moeda e a emissão do Banco.

"3.0 - EMPRESTAR A LAVOURA ATE' CINCOENTA MIL CONTOS, com

juros de seis

por cento a taxa da annuidade

para a amortização, se-

gundo as condições da Proposta

junta.

"São obvias as vantagens da

proposta.

1

"O Estado em trinta e

quatro annos se desonera de toda a sua divida fundada

na somina de 266.ooo:ooo$ooo e consequentemente de seus juros.

"Em mais de

quatro annos todo o

papel moeda na somma de i49.502:ooo$ooo

será convertida em ouro com garantias que

offerece a proposta

de deposito na

Caixa de Amortização de Apólices da Divida Interna e na Agencia Financeira do

Governo em Londres de Títulos de valor real.

"A Lavoura obterá emprestimos mais fáceis menos onerosos e

por maior

prazo

até a soma de 50.000:000^000

e mesmo ate i io.ooo:ooo.Sooo conforme o art. 14 da

mesma proposta.

"Todas as Industrias aproveitarão os resultados de augmento de uma emissão,

garantida com Deposito de Títulos de Divida do Estado e convertivel em moeda forte.

"Os títulos da Divida Interna não

poderão descer abaixo do

par, o Governo

poderá ter recurso de nova emissão de Apólices, certamente

por juro menor e os

títulos da divida externa que poderão

ser adquiridos pelos Bancos se fortalecerão,

augmentando-se o Credito Publico no exterior, e fácilitando-se assim qualquer

opera-

cão que

o Governo possa

ter necessidade ou vantagem de fazer no exterior.

"Alem disso as Letras Hypothecanas cujo curso não tem sido

possível esta-

belecer vantajosamente no Império forçosamente adquirirão o credito de que pre-

cisão para

favor da Lavoura, tornando-se o emprego preferível para

os capitacs

que hoje se immobilisáo nas Apólices da Divida Publica Interna.

"Bastaria este resultado

para justificar a

proposta por quanto estes títulos de

tanto merecimento conquistarião toda a confiança a quem direito, essa confiança

para com

que a Lavoura,

grande e

principal fonte de riqueza Nacional adquirisse

tríplice força, não definhado como infelizmente vai acontecendo por falta de capitaes.

"O credito territorial, diversão benefica para

os capitaes, seria então entre nós

uma realidade e obtida sem esses grandes sacrifícios do Thesouro Nacional,

que

constantemente estão sendo reclamados.

"E, uma vez

que as Letras Hypothecarias, emmittidas com

juros e; amortiza-

ção por sorteio adquirirem o credito publico

de que

devem gosar,

serão natural-

mente substituídas as Apólices para

o emprego dos capitaes das corporações de mão

morta, das Companhias de Seguros e sociedades particulares a cujos Patrimonios Pios

ou Beneficentes as Apólices sei vem de base.

"Então todos os Bancos que

fazem ou fizeram emprestimos á Lavoura po-

derão alargar as suas emissões e facilitar e tornar menos onerosos os capitaes neces-

sarios para

fomento das outras Industrias os capitaes que se não empregam naquellas.

"Tantas vantagens,

por certo não se

pode obter, sem algum favor do Estado.

Esse favor único é o da emissão facultada ao Banco para

realizar uma grande

operção financeira e economica.

"AMORTIZAÇÃO DA DIVIDA PUBLICA INTERNA EM TRINTA E

QUATRO ANNOS;

"RESGATE DO PAPEL MOEDA E DA EMISSÃO DO BANCO EM MAIS

QUATRO ANNOS ALEM DOS TRINTA E QUATRO;

"E EMPRESTIMO

' LAVOURA EM TAL ESCALA QUE

FIQUE FUNDADO

O CREDITO DAS LETRAS HYPOTHECARIAS, sSo vantagens que

legitimarão

mesmo um sacrifício por parte

do Estado.

"Aléin de

que o favor que

sq pede

da emissão não pode

ter inconvenientes

inherentes ao crescimento do meio circulante:

212 CULTURA POLÍTICA

441,0 _ porque a emissão é feita com garantia

de Deposito de Apólices da

Divida Publica que desde o momento do Deposito se tornao ín-

alienaveis. .. ,

442.o Porque, por

effeito desta emissão um anno depois de ter ella chegado

ao máximo o Banco começará a recolher annualmente^IU-

1. ^oo:oooSooo de papel moeda do Governo que

será no fim ao prazo

do contracto, resgatado integralmente, bem como a emissão pedida,

sendo o pagamento feito em ouro, na razão do par.

Libras ester-

linas a 27 dinheiros por mil reis;

44o o Porque a emissão assim garantida contribuirá para

restabelecer o equi-

librio entre as crescentes transações mais activas das nossas Industrias

com a quantidade actual do nosso meio circulante cuja escassez ate

certo ponto retarda, ou restringe o movimento mais accelerado ho|e

das transações entre differentes praças do Império.

"40 — Porque a emissão será feita gradualmente

e a proporção dos Deposi-

tos de Apólices e portanto não deverá occasionar baixa de Cambio,

que não possa ser contrariada por

expedientes do Governo e que nao

seia imediatamente compensada pelo augmento das Rendas Publicas

resultante do mais activo das immensas vantagens que offerecem a

44Admitindo

que se dê o facto de baixa de Cambio, não im-

porta isso em desfavor a combinação da Proposta, porque, qualquei

sacrifício que dessa baixa proviesse, quando muito, poderia

ser cori-

siderado como um imposto indirecto PRIVATIVAMENTE a fins tao

grandiosos como são: AMORTIZAÇÃO DA DIVIDA BUCA IN-

TERNA — e

— CONVERSÃO DO PAPEL MOEDA DO GOVERNO

EM OURO - AO PAR, e IMPOSTO, O MAIS EQUITATIVO POR

QUE SERÃO AS CLASSES MAIS ABASTADAS QUE O SLiPORTA

RAO QUASI EXCLUSIVAMENTE.

"A Lavoura so tem a ganhar porque

venderá por mais altos preços,

os seus

produtos; o mesmo se

pode dizer de todas as outras industrias; O Commercio nada

pode porque sempre vende na razão do

preço que compra.

"Os Bancos de Credito Real, as Emprezas de Estradas de Ferro, e da Nave-

gacão de nosso extenso Littoral, e dos nossos Rios, a Exploração de nossas Riquezas

Mineraes, as Edificações e melhoramentos de nossas cidades reclamão Capitaes e

Credito, que não encontrão e cuja restrição retarda o engrandecimento do Império.

44A Proposta, pois

tem por

objeto mobilizar o Capital Nacional, e encami-

nhar a sua distribuição, segundo as legitimas exigencias de todas as Industrias,

fazendo ao mesmo tempo o grande Serviço de Amortização que

a DIVIDA PUBLICA

TNTERNA CONVERTENDO A CIRCULAÇAO MONETARIA DE PAPEL INCON-

VERTIVEL EM OURO.

"Emfim, tornando arithmethica a demonstração da vantagem de

que offe-

rece ao Estado o Banco que

os Proponentes querem fundar, exporão as seguintes

bases de calculo:

"Em

34, annos fica amortizada a Divida Publica interna

na somma de 266.ooo:ooo$ooo

E mais 4 annos fica resgatado o

papel moeda

na somma de 149.502:000^000

"Somma da Divida do Estado amortizada 415.502:000^000

"Continuando as cousas como estão terá o Estado de

pagar naquelle prazo:

Rs. 6o6.48o:ooo$ooo e no fim do prazo

continuará o Estado devedor dos mesmos

266.000:000^000 em Apólices vencendo o juro

de seis por

cento, e do papel

moeda

no valor de 149.502:0003000 cuja Amortização muito lenta e muito onerosa por

meio de impostos se tem sempre malogrado.

"Entretanto,

que o Banco só receberá do Estado cerca de 420.ooo:ooo$ooo,

juros das Apólices

que adquirir e depositar 11a Caixa da Amortização até o

prazo

cie trinta e quatro

anos, e que

serão logo consideradas como amortizadas, pela

clausula^ de inhabilidade com que

ahi serão depositadas. Convencidos das immen-

sas vantagens desta Proposta a qual

não faltão — UTILIDADE PUBLICA NO FIM,

HONESTIDADES NOS MEIOS, NEM GARANTIAS PRECISAS -

a sua aprovação

e autorização para reunir o Capital necessário para

a fundação do Banco".

Carta régia do Rei de Portugal ao

governador

e capitão geral

das mi-

nas, Luiz Diogo da Sylva e o con-

sequente pedido

de exoneração

do vice rei conde da Cunha

Revolvendo velhos documentos históricos é que

sentimos a verdadeira

expressão de nossas conquistas no tempo. — Vejamos, hoje,

por exemplo,

como se escoava o ouro nacional, no tempo dos vice-reis, por

esta carta

régia do Soberano de Portugal ao Governador e Capitão General das

Minas Luiz Diogo da Sylva, redigida a 30

de julho

de 1766 e o conse-

quente pedido de demissão do Vice-rei Conde da Cunha que

tanto policiou

contra o contrabando do ouro, verdadeiro fantasma da Corte.

— Naquêle

tempo, em que todas as nossas riquezas caminhavam para

Portugal, ca-

minharam também com elas, mais 330.000 oitavas de diamante e 36.000

arroubas de ouro. — Devemos, pois,

a Pedro I a justa homenagem do nosso

reconhecimento pelos primeiros passos do Progresso Nacional na conquista

de nossa Independência. - O

primeiro documento conserva a ortografia

do texto original, o segundo, entretanto, transcrito de uma coletanea pu-

blicada recentemente, perdeu, infelizmente, aquela forma

arcaica.

"LUIZ DIOGO DA SYLVA, Governador e Capitão General das Mi-

' nas Geraes, Amigo: Eu El-Rey vos invio muito saudar: Os freqüentes

e importantes extravios de ouro, que por contrabando se tem dezenca-

minhadO dessas Minas Geraes para as Cidades do Rio de Janeiro,

Bahia,

e Portos a ellas adjacentes, sendo prejudiciaes ao Meu Real Serviço o foram

ainda muito mais aos Meus Vassallos moradores nas referidas Minas

Geraes subsidiariamente obrigados a completar nas Casas de Fundição

as quotas nellas estabelecidas para

a arrecadaçao dos Quintos que

se

devem ao Meu Alto e Supremo Domínio. E porquanto pela

Devassa

a que mandei proceder

com estes justos, e indispensáveis moüv» «

ptOTOu

Dlenissimamente, que a cauza mayor daquelles roubos feitos à Minha Real

Fazenda e aos Meus sobreditos Vassallos, consiste no grande numero

deOurives, que nas Cidades do Rio de Janeiro,

Bahia, ei Olinda e mais

lugares daquellas Capitanias se tem multiplicado; os quaes recolhendo a

si o ouro em folhetas, hu'as vezes o reduzem a barras falsas, sem ha-

verem pago o direito dos quintos:

outras o converte nas obras delma-

gens torpes, e indecentes, de rozarios e em outras do uzo das gentes,

oara com estes artifícios cobrirem os referidos roubos, e os passarem

a este Reino debaixo da especie das referidas obras: Querendo obviar a

tâo perniciosos

descaminhos; arrancando a cauza deltepelas '«asraizc^

e exercitando ao mesmo tempo a Minha Real benignidade, Hou p

214CULTURA POLÍTICA

bem por hu'a parte

mandar soltar os prezos culpados' na referida De-

vassa, e rezolver que por ella se não procedesse

ate Segunda Ordem Minha.

E fuy servido ordenar por outra parte, que

os Governadores CapiUes

Generaes das sobreditas Capitanias do Rio de Janeiro, Bahia, ei Pernam-

buco, logo que recebessem as Cartas que

lhe fis dirigir, fizessem prender

e incorporar nos Regimentos d'aquellas Cidades todos os Officiaes, e

Aprendizes do referido Officio de Ourives de ouro ou prata, que fossem

solteiros, ou pardos forros, incorporando-os nos Regimentos pagos

das

referidas Capitanias, ou nas de qualquer outras das vezinhas. Que

depois»

de o haverem assim executado fizessem fechar todas as loges dos Mestres dos

referidos Officios demolindo se todas as forjas delles. e seqüestrando se lhes

todos os instrumentos que costumão servir para

as fundições, ou para

as

obras de ouro. e de prata; pagando-se lhes pelo justo

valor que tiveram ao

tempo dos sequestros, e remetendo se para as Cazas da Moeda, ou Hm-

dicão das respectivas Cidades: Que cada hura dos referidos Mestres fi-

zesse termo judicial assignado perante

o Intendente Geral pelo qual

termo se obrigasse a não exercitar mais o referido Officio sem especial

Ordem do Governo respectivo nos cazos adiante declarados debaixo das

penas estabelecidas contra os falsificadores de Moeda. Que os Aprendi-

zes ou Artífices escravos fossem logo mandado para as cazas de seus

Senhores, obrigando se estes por outros termos a se servirem delles

para outros differentes, exercícios sem lhes permitirem trabalhar de

ourives nem conservar algu* instrumento da referida arte, debaixo das

penas de perdimento dos Escravos e de degredo para

Angola com

inhibicão para voltarem ao Estado do Brazil: Que

as mesmas penas se

executarão d'aqui em diante contra todas as pessoas de

qualquer estado,

qualidade, e condicão que fossem, em cujas cazas se acharem quasquer

officinas de fundições, ou instrumentos proprios pa. ellas se fazerem:

Oue aquelles dos Mestres dos sobreditos Officios de Ourives de ouro,

ou de prata, que considerando a facilidade que

a Ley de dez de^ Setem-

bro do anno proximo passado deu, para

a communicação quazi quoti-

diana, desse estado com este Reino quizesse vir estabelecer nelle as

suas loges para

nellas trabalharem, o poderão

livremente fazer, e se

lhes darião por aquelles Governos Guias para

se transportarem com as

suas famílias, sendo peritos nas artes das suas

profissoens, de boa vida

e costumes sem haverem padecido nota nos seus

procedimentos, fossem

empregados com preferencia nas cazas da Moeda, e Fundição actuaes

dessa Capitania das Minas Geraes, Goyaz, e da de Matto Grosso, e S.

Paulo, que fuy servido mandar e estabelecer; sem

que deste Reino se

podesse mandar outros Artífices para

as referidas cazas, em quanto

na-

quelles Estados os houvesse hábeis, e qualificados

na sobredita forma:

Que as Alfandegas respectivas se não desse despacho de entrada a ins-

trumentos de fundição, ou de Ourives que não fossem remetidos ás In-

tendências Geraes, com arrecadaçoens, e Guias da Caza, da Moeda desta

Corte, com avizo da Secretaria de Estado dos Negocios da Marinha, e

Domínios Ultramarinos, debaixo das penas

de perdimento

dos Officios

aos que taes despachos derem, sendo Proprietários, ou de valor delles

sendo serventuários: E que

finalmente em todos, e cada hum dos cazos

acima declarados, se admitissem denuncias em segredo, nas quaes

sendo

justificadas pela corporal aprehensão, se aplicaria a metade das penas

tão

bem particularmente aos Denunciantes, e a outra a metade das obra:>

dos hospitaes. E Sou Servido outrosim, que pela

vossa parte

executeis,

o que

fica referido em tudo o que

for aplicavel, não consentindo por

modo algum, que nessa Capitania se estabeleção com

qualquer pretexto

ourives de ouro, ou de prata:

O que

tudo fareis executar na sobredita

forma, não obstante qualquer

Leys Regimentos Ordens, ou Dispoziçoens

que sejão em contrario.

"Escripta no Palacio de Nossa Senhora da Ajuda a trinta de

Julho

de mil sete centos sessenta e seis. — Rey".

"Illmo. Exmo. Sr. -- Na ultima ocasião em

que tive a honra de

me por

aos reais pês

de EL Rei Nosso Senhor, lhe pedi (com aquela per-

turbação que naturalmente costumo ter na sua real

presença) que fôsse

servido mandar-me um sucessor logo que

lhe constasse que por causa

de minha curta capacidade obrava alguns desacertos, e porque

a Praça

de Lisboa e a desta terra, e descobriram em mim muitos que

eu não

sabia que

o eram, pois

os de que

eles me podem

criminar serão tão

TEXTOS E DOCUMENTOS HISTÓRICOS 215

somente, os terem executado fielmente as reais ordens, que Sua Magestade

foi servido dar-me na sua regia carta de 16 de Dezembro de 1753, para

serem presos

e seqüestrados os extraviados dos seus reais direitos, não

me podia persuadir que

observando eu religiosamente, o que na mesma

real carta se me ordenava excedia a minha obrigação, porem para me

capacitar de que

não sirvo, nesta parte,

a meu amo tão bem como

devia, basta-me o ver que

o mesmo Senhor me manda promover

o zêlo

com que o sirvo, com a prudência

e a dissimulação e como não obstante

esta determinação, não alcanço o como a posso praticar, peço

a El Rev

Nosso Senhor, que

se alguns dos meus serviços tem algum merecimento

por remuneração deles, me faça mercê de me mandar sucessor, pois

tam-

bem por outros motivos que

nesta referirei se vê que com bastante causa

peço esta graça que

também é precisa para

o bem comum e quietação

desta Capital.

O primeiro motivo consiste o

que em outras ocasiões tenho dito

a V. Excia. que os meus muitos anos, os esquecimentos que

êles me

causam, os achaques que padeço, e o não poder

com o excessivo pêso

deste governo, me obrigava a pedir

sucessor, a fim de que Sua Magcs-

tade podesse

ser mais bem servido. Isto é o que

tenho pedido nas mi-

nhas súplicas sendo tão verdadeiras como justas, porém como ainda ha

outros motivos graves que parece ser necessário, que por

causa deles

Sua Magestade queira mudar de Governador, os devo relatar a V. Ex.

para que cheguem a real

presença do mesmo Senhor.

Segundo motivo é sem dúvida ser necessário que o Governador seja

benquisto com todos, especialmente com os militares e com estes por

infelicidade minha o não posso conseguir, não obstante o estarem todos

fardados e pagos,

até do que

lhe ficaram devendo meus antecessores,

alem do que teem sido muito acrescentados nos

postos, atendidos por

mim em todos os seus particulares,

e estimados como nunca nesta terra

se viu. Estes mesmos a quem tantos benefícios tenho feito me desejam

ver vendido, porque só se lembram da liberdade que

houve no tempo

do Conde de Bobadela, e ainda a apetecem para poderem gozar aquela

soltura e desobediencia em que

se criaram e viveram não menos que

trinta anos completos, pelo que todos esperam que

meu sucessor queira

seguir aquele sistema.

Terceiro os Ministros desta Relação que deviam concorrer para

a boa harmonia do mesmo Tribunal, e para

a boa arrecadação da Real

Fazenda, e se uniram ao Chanceler João Alberto Castelo Branco, para

protegerem homens indignos e outros devedores em quantias^ graves

a

Real Fazenda, estes procedimento toram tão excessivos que

ate na mes-

ma Relação e fora dela fizeram algumas desatenções ao Procurador da

Joroa e ainda que a cena vai presentemente

mudada, e a meu entender

melhorada com a posse do novo Chanceler, êles me temem e me desejam

fora desta terra, mas poderá ser que

sucedendo assim eles se emende

venham a ser muito bons Ministros porem já agora por

nenhum modo

poderão ser meus bons amigos; e pelo que

tenho dito a alguns deles

sobre o seu procedimento

me desejam ver fora daqui, e se Gonçalo José e

o Procurador da Coroa ficarem nesta terra depois de eu sair dela, os

hão de apedrejar por teiem servido até ao presente

com muita honra,

e uni crànde zelo da Real Fazenda e isto com desinteresse e verdade

pelo que rogo a V. Excia. os patrocine para que possa

haver muito

Ministros que os queiram imitar. ,

r t

"Quarto o Bispo (se

me é permitido

repetir alguns dos fatos que

com cie tem sucedido) posso dizer o muito que

se tem interessado pelo

Tesoureiro da Casa da Moeda Alexandre de Faria, o intento que teve

de intimidai- o Desembargador Procurador da Coroa para que nao apr-

casse as contas que a este homem se deviam tomar, o muito que a

Prelado aistou largar a prata que

a sua Magestade pertencia, e

que

estava no deposito eclesiástico, as vergonhosas deligencias que a^sefl"

/eram nara a não darem que tudo e notorio pelo que

claro esta que

também este Bispo me não gostará, ainda que

aparentemente mostra

SCr

"Ouinto!ga Camara Eclesiástica e Clero que poucos

eram os cabe-

dais desta Capitania, para o que

êles lhe tiravam com as habilitações

dos cue se queriam ordenar, e estes por

não poderem presentemente con-

segu?r as oXís Tulgam uns e outras que

eu lhes causei este prejuízo,

216 CULTURA POUTICA

que só

quando me ausentar poderão

melhorar de fortuna, pelo que todos

eles me não gostam. ?"Sexto,

tendo frades vivido sempre (nesta Capitania) com escanda-

losa liberdade, e vendo que esta se lhe tem quordado_

alguma cousa, na

meu tempo, e neste experimentam o embaraço de não poderem

tornar

noviços, se persuadem de que

eu sou o que lhe tem feito este dano que

tem experimentado, e por esta causa também com êles estou malquisto.

"Sétimo, é infalível que

nem os homens de negócio, hão de deixar

de continuar os contrabandos, nem eu ao que deva obrar aue os evitar,

porque isto é o que Sua Magestade presentemente

me ordena, e como

êles malquistando-me nas duas praças conseguem o

perdão dos seus

excessos, pode Sua Magestade estar na certesa que

estes homens se quei-

xarão sempre de mim, sem deixarem de extraviar os diamantes; ouro,.

e direitos das fazendas.

"Oitavo, também é certo que

nenhum Governador se pode benquis»

tar, não tendo com que pague a quem

manda tomar os gêneros que

precisa, para manter e

prover as praças

do S;il e satisfazer o soldo das

tropas e porque

a falta das frotas tem causado um grande embaraço no

comércio, se experimenta uma grande diminuição no rendimento da Al-

fândega, e com estes motivos como pode um Governador remediar estas

faltas de meios para ser benquisto, com a mesma tropa é com os ne-

gociantes a

quem não

poderá pagar?: a meu sucessor nao será difícil o

remediar esta falta, porque se lhe

permitirá logo o poder

se valer da

casa da moeda, liberdade esta que o Conde de Bobadela teve, e de

que

também usaram com larguesa os Governadores interinos, e que

eu não

pude conseguir não obstante o te-la

pedido ha tres

para quatro anos,

sem merecer nem a resposta desta representação, pelo que

naturalmente

por este motivo, também me irei malquistando cada vez mais.

"Nono, sabe-se

que a maior rua desta terra e a mais

populosa e a

dos Ourives, e que

esta inumerável gente se sustentava daqueles ofícios

de que já não pode

usar, e todos sup&em que

foi arbítrio a sua extinção,

pelo que de mim se

queixam incessantemente, e este só motiv.o bastava

para me malquislar, e fazer aborrecido no Rio de

Janeiro."Décimo,

neste Capítula mostrarei últimamente outros motivos pelos

quais se vê claramente

que com todos me tenho malquistado, e

que por

esta causa me parece

ser necessário que para

esta terra venha com bre-

vidade Governador que se

possa fazer amado.

"Todos os oficiaes da Alfândega, vendo o cuidado em

que nela

estou e no seu despacho, se não satisfazem deste novo zelo, os da Fazenda,

como pela

nova regulação perdem

os ofícios de que

se sustentavam, per-

suadem-se que

eu fui o árbitro desta novidade e se queixam

de mim.

"Oq da Casa da Moeda com as necessárias e importantes diligências

que tenho feito nela, estes mais

que todos me desejam o sucessor

que

peço e

porque em descaminhos da Real Fazenda tenho achado cúmplices

alguns oficiais militares, que

tenho presos

e lhe estou averiguando as

culpas particularmente,

também estes e seus camaradas, ansiosamente

desejam novo governo."Estes

grandes motivos me impossibilitam

para me

poder benquistar,

o que

será muito fácil a qualquer outro que me vier suceder,

porque

conhecendo estas gentes que êle não podia ter

parte nos meus desacertos

se poderá

fazer muito amado o que

muito importa ao real serviço de

Sua Magestade, que

não tem conquista tão importante como esta, a

qual achei

perdida por todos os modos, e

por toaas as suas

partes mais

importantes, porque

não havia nelas mais que

desordens — insultos —

ruínas — pobresas

— roubos, sendo nestes a Fazenda Real a mais pre-

judicada, as conquistas do sul, V. Excia. sabe o deplorável estado em

que estavam, e como tudo se reformou, satisfaço-me com

que o digam

as pessoas que

na praça

de Lisboa e na desta Capital me malquistaram;

e para que

o beneficio (que com tanta despesa da Real Fazenda e tra-

balho meu) possa permanecer, conheço

que é preciso

novo Governador

como todos desejam, para que

com a sua prudência e dissimulação, venha

consolar os que ainda lamentam a

perda que tiveram na falta do Conde

de Bobadela, e na brevidade do Govêrno interino."Deus

guarde a V. Excia. muitos anos — Rio de Janeiro, a

7 de

julho de 1767 — Senhor Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Conde

da Cunha".

5

A atividade governamental

I

Esto seção registo, mensalmente, o atividade do Govêrno,

no esfera legislativo e administrativo

B

Panorama da atividade

governamental

III

As obras de remodelação da cidade

NADA

mais exagerado do que

considerar-se o Rio de Janeiro

como

vim resultado quasi

exclusivo de favores da natureza, menospre-

zando-se a ação que

aqui tem tido a mão do homem. Porque si

há cidade no mundo que

seja legítimo produto

do trabalho humano,

essa é, certamente a nossa Capital. O êrro acima vem da confusão

que se faz entre a beleza natural e as condições urbanísticas do Rio.

Por certo, a paisagem

é magnífica, esplendorosa, um presente para

os nossos olhos e um consolo para

o espírito, mas ao lado dêsse quadro

deslumbrante, a velha urbe colonial encontrou toda sorte de hostili-

dade para

desenvolver-se. Começa

por isto: o

próprio conjunto de

montanhas e de colinas, que

dá encanto à cidade, traça um rumo irre-

guiar e difícil à sua expansão. O Rio não encontrou uma planície

suave como Paris, onde a pequena

elevação de Montmartre forma o

único acidente orográfico, nem a horizontahdade tranqüila do

pampa

por onde se extendeu

vertiginosamente Buenos Aires. Mesmo Sao

Paulo, pouco

feliz sob o ponto

de vista de sua topografia urbana,

fundada numa colina, teve melhor sorte que

o Rio, pois

a aiea cir-

cuniacente favoreceu plenamente o desenvolvimento da cidade.

A Capital do Brasil vê-se apertada entre dois obstáculos intrans-

poníveis: o mar e a montanha. Dir-se-á

que nisto vai todo seu atra-

tivo, toda sua originalidade. Certamente, mas uma cidade e um aglo-

merado humano e o homem costuma procurar

os luRares. onde as

condições da natureza tornam a vida mais fácil. Tudo impe

Rio de vir a ser uma grande

cidade si os seushabuanesnaosedis-

puzessem a lutar com a natureza.

Foi o que

fizeram, d.sassomb a

220CUI/TTJRA POLÍTICA

mente, desenvolvendo um esforço hercúleo, em cujo resultado as ge-

rações de hoje devem mirar-se orgulhosas.

Quem observa a configuração da baía Guanabara

nos textos,

cartográficos de duzentos anos atraz pode

avaliar amplamente a ex"

tensão dêsse trabalho humano. Estampas antigas mostram-nos o bair-

ro da Lapa como um verdadeiro lago, quando já

existiam os arcos do.

aqueduto de Santa Tereza. Onde se ergue hoje a igreja da Candeia-

ria encalhou outrora um barco e êsse fato se prende

mesmo ao nome

do templo. Também o bairro da Tijuca, hoje tão aristocrático e sa-

lubre não passava de um

pântano. O solo do Rio na sua maior ex-

tensão estava todo sulcado de veios de água, cujo drenamento seria

bem demorado e trabalhoso. Em lugar de recuar e procurar

outro

sítio mais propício para

instalar-se, o homem, entretanto, resolveu en-

frentar os obstáculos e adaptar às necessidades urbanas os que

não

podiam ser removidos. A luta foi lenta, embaraçando durante mui-

tos decênios o progresso

do Rio, mas nem por

isso o homem dei-

xou de vencer.

Nos primeiros

dias da República, nossa Capital ainda apiesen-

tava precário aspecto, sem

poder nem de longe comparar-se aos

gran-

des centros da Europa e mesmo da América. Basta dizer que

sua rua

principal e de maior movimento, eixo em tôrno do

qual girou no de-

correr de muitos anos toda a vida do país

— a rua do Ouvidor

— eia

simplesmente um beco. Tal a exclamação desoladora que parte

dos.

lábios do herói da

"Capital Federal" de Coelho Neto. Vindo de Mi-

nas, a sonhar alvoroçado com as belezas do Rio, o provinciano,

logo-

ao saltar aqui, manifesta o desejo de ver a rua do Ouvidor. E que

decepção! Aquilo a famosa artéria tão decantada no Interior?

A mesquinhez do cenário urbano contrastava com a magnifi-

cência da natureza. Ao lado de montanhas colossais aquela aglome-

ração de casas minúsculas e enegrecidas, de vielas, tortuosas, a antiga

cidade das

"Memórias de um Sargento de Milícias". E assim mes-

mo, grande já

tinha sido a conquista do homem nessa época; daí em

diante, porém,

é que

ela vai tomar seu maior impulso. Há ainda o

flagelo da febre amarela. O estrangeiro evita a nossa Capital, con-

siderando as belezas naturais coisas para

se ver de longe e nossos na-

vios sofrem toda sorte de intervenções vexatórias no estrangeiro. Er

preciso trabalhar muito no

quadro magnífico com

que a natureza

nos brindou.

Estamos em 1904. Rodrigues Alves sóbe ao poder

e, graças

à

política financeira do seu antecessor, empreende o

grande plano de

remodelação da cidade. Não precisamos

encarecer aqui, mais uma

vez, o espírito de iniciativa do Presidente paulista.

Convém repetir,

entretanto, que um dos seus maiores méritos foi o de ter sabido esco-

lher seus auxiliares. Pereira Passos incumbe-se da tarefa de transfor-

mar o Rio numa Capital apresentável. Para isso é preciso

demolir.

Casarões horrendos, becos, vicias, tudo forma um

"carrefour" medo-

PANORAMA DA ATIVIDADE GOVERNAMENTAL221

nho no centro urbano. (O

calor fazia com que

se abrissem ruas muito

-estreitas afim de que

os habitantes fossem beneficiados pela

sombra).

O alvião do progresso

desceu impiedoso sôbre ò velho Rio. Rasgou-

se a Avenida Central, abriram-se praças,

construiram-se jardins.

Foi

a época do

"Bota

abaixo". Essas medidas, coincidindo com a extinção

da febre amarela pelo

saneamento da cidade, realizado por

Osvaldo

Cruz, assinalou completa transformação da Capital. Nos anos subse-

quentes novas remodelações foram se

processando em ritmo acelerado:

arrazou-se o morro do Senado e depois o do Castelo, em 1922 gran-

de obra que

deu mais uma vasta faixa de terra à urbe, melhorando

além disso as condições higiênicas da parte

central da cidade; Copa-

cabana transformou-se num bairro de arranha-céus, o movimento au-

mentou extraordináriamente, tornando-se o Rio em tudo semelhante

aos maiores Capitais do mundo. Falar-se diante disso apenas em be-

leza natural, esquecendo a obra da homem, é não querer

reconhecer

a verdade.

Entretanto, pode-se dizer

que o Rio moderno expandiu-se, den-

tro do traçado de remodelação do prefeito

Passos. E o que

êsse in-

teligente administrador não podia

supor é que

o progresso

da cidade

fosse tão rápido, a ponto

de em trinta anos tornar as referidas obras

inadatáveis ás novas necessidades urbanas. A Avenida Rio Branco,

por exemplo, era bastante larga em 1904; hoje é excessivamente estreita.

O prefeito

Passos não imaginava o que

seria o Rio de 1941. E assim

fez uma cidade apenas para

seis lustros.

Isso concorreu para que

se tornasse indispensável outro plano

de remodelação, visando não só as condições do Rio atual, como a

crescente expansão da nossa Capital. E' a obra que já

começou a ser

posta em

prática pela Prefeitura, de acordo com o Governo Federal.

Será arrazado o morro de Santo Antônio, aterrada uma parte

da en-

seada do Rússel, abertos novos túneis e novas vias publicas,

entre

quais se destaca a Avenida Getulio Vargas. Êste ultimo empreendi-

mento é dos principais

do aludido plano, pois prolongando

até o

cais do pôrto

a Avenida do Mangue vai descongestionar extraordina-

riamente o movimento do centro urbano. Corrige assim nao só a lar-

eura exígua da Avenida Rio Branco, como das ruas transversais, que

tanto embaraço causam ao tráfego. A 1 ** Jpn

sistema de financiamento racional e inteligente para

a realizaçao des-

sas obras de maneira a torná-las menos dispendiosas aos cofres

pu-

blicos. Eo Govêrno atual

já não incidirá no êrro antigo. Teremos,

desta vez, um Rio para

cem ou duzentos anos.

Locação de empregados em serviços domésticos

o extraordinário progresso verificado no Brasil nestes últimos

anos, em matéria de leis sociais, cada vez mais seaja. Vamos

dando ao mundo o exemplo de uma leg^iaçao trabalb sta mode ar,

surpreendendo os especialistas estrangeiros que

nao. nos teem regatea

222CULTURA POLÍTICA

do louvores. O fato torna-se mais significativo si levarmos em conta

o curto espaço de tempo em que

se realizou essa obra tão vultosa. Que

possuíamos nesse sentido em 1930? Nada ou

quasi nada. O traba-

lhador vivia sem proteção

alguma. Nem férias, nem aposentadoria,

nem outra garantia qualquer.

Apenas o sentimento de humanidade

dos patrões.

Estavamos muito atrazados com relação a vários países

do mundo. E compreende-se que

dessa situação se prevalecessem

os agi-

tadores, os propagandistás

de extremismo subversivos para ativai seu

nefasto proselitismo.

Protegiam-nos, entre outras tantas 1 azoes, a

obstinação de certos espíritos ronceiros, fanatizados pelo

culto de um

liberalismo inadequado às condições do mundo moderno. Afastando

as influências dêsse espírito retrogado, ao mesmo tempo que

destruía

o fermento das ideologias extremistas, o govêrno

do Presidente Var-

gas dava cumprimento a um

programa sindicalista,

que há de ser

sempre considerado verdadeira obra prima

de política

administrativa,

reciprocidade de direitos entre empregados e patrões para

segurança

comum e maior rendimento do trabalho. E não se pode

falar em sa-

crifícios e concessões quando

se trata apenas de justiça

— deveres e

direitos. Decretos sôbre decretos foram com rapidez extraordinária,

dando uma configuração magnífica à nossa organização sindical.

O que

outros povos

haviam arrancado à custa de luta e san-

gue, na turbulência das

greves, nós o conseguimos numa atmosfera

de paz,

com o concurso de técnicos e legisladores. Foi um dos mais

belos exemplos de revolução pacífica que

se conhecem. A transfor-

mação operou-se sem abalos de qualquer

espécie e sem o menor dese-

quilíbrio econômico. Na

grande parada proletária de Novembro do

ano passado,

o Presidente Getulio Vargas poude

ter a comprovação

dos resultados fecundos de sua obra, recebendo as mais expressivas

manifestações de gratidão

do trabalhador brasileiro. Mas essa obra

continua a aperfeiçoar-se, pois

seria impossível atingir-se tão rapida-

mente uma forma definitiva. A própria

natureza das leis do traba-

lho faz com que

elas estejam sujeitas a modificações de acordo com

o desenvolvimento do país.

O decreto 3.078,

ultimamente assinado

pelo Presidente da República, é mais uma bela conquista de tão vasto

e complexo aparelhamento. Dispõe sôbre a locação de empregados

em serviços domésticos com o mesmo espírito de equidade já

evi-

denciado na regulamentação de outros ramos profissionais.

No Brasil sempre houve crise de serviçais domésticos. Mal re-

munerados e sem garantias,

os indivíduos que preferiam

essa profis-

são nunca a consideravam um meio de vida efetivo, empenhando-se

por isso com

pouco interêsse no labor e abandonando-o na

primeira

oportunidade. Quer

no Interior, quer

nas Capitais, a dificuldade para

se encontrar bons empregados dessa categoria era geral.

Com o de-

creto ora incorporado às nossas leis trabalhistas, a situação vai

mudar fatalmente, pois

os direitos de tais profissionais

assegurados,

não só aumentarão o número dêles, como os levarão a um cumpri-

mento mais solerte de suas respectivas obrigações.

PANORAMA DA ATIVIDADE GOVERNAMENTAL 223:

A fabricação

de pólvora

de base dupla

lnauguraram-se no dia 13 de Março as novas instalações da Fá-

brica de Pólvora de Base Dupla, de Piquete, presididas

as solenida-

des pelo

General Gaspar Dutra, Ministro da Guerra.

Há quarenta

anos que

o General Mallet, ministro do govêrno

Campos Sales, pensara

em instalar no mesmo local, junto

ao dorso

da Mantiqueira, uma fábrica capaz de produzir,

suficientemente, pól-

vora da referida qualidade.

Mas a idéia encontrou sérios obstáculos

e o que

vínhamos tendo até a pouco, para

suprir as necessidades das

nossas forças armadas era a pólvora

de base simples. Para isso havia-

mos adquiridos vultosos maquinários nos Estados Unidos. Nossos

técnicos em balística, porém,

não cessavam de exaltar as qualidades

da base dupla —

como observou o General Silo Portela, em discurso

feito por

ocasião do ato inaugural —

e os industriais de Piquete sem-

pre encararam a

possibilidade de vir a fabricá-la, embora com sacri-

fício das montagens que

tão caro haviam custado ao govêrno

e não

podiam ser utilizadas sinão em

pólvora simples.

O Presidente Getulio Vargas, encarando a questão

de frente,,

segundo a norma de todos seus atos, não hesitou em ordenar o aban-

dono das construções antigas e o conseqüente aparelhamento de novas

instalações de acordo com os progressos

de tal ramo industrial. Lon-

gos e

profundos estudos

- diz o General Portela, na inteligente espia-

nação do seu discurso — foram empreendidos por

elementos da Di-

retoria do Material Bélico -

dentre êstes sobresaindo-se o de especia-

listas de Piquete —

não só em nossa terra como no estrangeiro, com

o fito de orientar a administração sobre a mais conveniente escolha

entre os vários processos

industriais utilizados em diferentes países.

Não era de fácil solução o problema por

termos de opinar em assuntos,

cuia prática continuava completamente desconhecida no Brasil e

qualquer conclusão apressada

poderia levar-nos ao mesmo impasse an-

terior: o desaproveitamento de instalações tão dispendiosas.

Afinal, depois de todos êsses estudos, conseguiu-se padronizar a

fabricação com o emprêgo de nitrocelulose e nitroglicerma. Tinha-

mos, pois,

a pólvora

de base dupla, com a vantagem nao so de ser

adequada ao aparelhamento bélico

que acabamos de adquirir no

estrangeiro, como de permanecer

longo tempo em perfeito

estado de

conservação, graças aos estabilizantes que possue.

A fabrica de P -

quete é a

primeira dessa

pólvora instalada na América do Sul, o

que

ainda nos dá o privilégio

de podermos

exportar o produto.

1 al a

nova iniciativa de vulto tomada pelo govêrno para

intensificação da

grande obra de nossa defesa e segurança.

Por decreto de 25 de Março, o Govêrno aprovou o regulamen-

to da Escola Técnica do Exército, destinada a formar engenheiros

militares necessários ao mesmo e indispensáveis ao preenchimento

de

cargos especializados de suas diferentes funções técnicas.

224 CULTURA POLÍTICA

Instruções sobre a Escola de Aeronautica

Tendo sido, por

decreto do Governo, extintas a Escola de

Aviação Naval c Escola de Aeronáutica do Exercito, foram criadas,

«consequentemente, a Escola de Especialistas de Aeronáutica e Escola

»de Aeronáutica. Sôbre esta última, o Ministro Salgado Filho baixou

as seguintes instruções: A formação de oficiais aviadores passará

a ser

feita agora numa só escola denominada de Aeronautica, que

utilizará

para seu funcionamento as instalações e recursos do extinto estabele-

cimento congênere do Campo dos Afonsos. A instrução a ser minis-

trada aí compreenderá um curso completo de tres anos pelos quais

será convenientemente distribuído o ensino, abrangendo: a) Instru-

<ção fundamental —

relativas às disciplinas necessárias ao preparo

bá-

:sico superior do futuro oficial; b) Instrução militar relativa a regu-

lamentos militares, à reorganização de serviços da Aeronáutica, do

Exército e da Armada; c) Instrução Aeronáutica relativa aos assun-

tos que

são necessários ao preparo profissional

do futuro oficial, tais

como: Aerodinâmica, Teoria do vôo, Motores, Navegação, Armamen-

to, Metereologia, Tecnologia Aeronáutica, Fotografia Aérea, Rádio,

Tática e Instrução Prática de vôo. A Escola funcionará em 1941 com

seu curso completo, obedecendo no que

lhe for aplicável o regula-

mento da extinta Escola de Aeronáutica do Exército, regulando-se

«os casos omissos e nos decorrentes da fusão por

meio de instruções

.provisórias, baixadas pelo

seu comandante.

A fiscalização

dos entorpecentes

O Brasil tem sabido defender-se contra o flagelo dos entorpe-

•centes. E é preciso

intensificar cada vez mais a fiscalização de ma-

neira a não permitir

as manobras audaciosas dos viciados e dos tra-

ficantes da morte. Tanto os primeiros,

como os segundos lançam mão

dos processos

mais engenhosos para

burlar a vigilância das autori-

dades. Com as medidas ultimamente tomadas, porém,

as dificuldades

para os violadores da lei multiplicam-se. Hoje,

já são impossíveis cer-

tos truques de que

lançavam mão os viciados, como, por

exemplo, o

•de se apresentarem numa casa de saúde para

se submeterem a um tra-

tamento de desintoxicação que,

no fundo nada mais era sinão uma

forma segura e econômica de entreter o vício. A grande

responsa-

bilidade dos médicos nêsse terreno leva as autoridades policiais

a não

lhes perdoar

as menores infrações. Porque si não há função social

mais sublime e de maior significação humana do que

a da medicina,

bem grande

é a culpa dos que

dela se prevalecem para

alimentar ví-

cios tão nocivos. O uso dos entorpecentes veio do Oriente, dêsses po-

vos para

os quais

a vida real quasi

não tem significação. Entre a ati-

tude do hindú que

fica horas e horas de cabeça curvada, meditando

sôbre a bemaventurança eterna do não ser e a do indivíduo que

en-

tra numa

"fumerie" de ópio

para mergulhar no sonho a identidade é

perfeita. O entorpecente favorece uma evasão, sendo

por isso mes-

PANORAMA DA ATIVIDADE GOVERNAMENTAL 223

mo uma negação da vida. Que

a arte se tenha beneficiado algumas

vêzes dessas evasões não duvidamos, mas são benefícios tão insignifi-

cantes, que pesam

tão pouco

no rói das grandes

criações do espírito

humano, que

não podemos por

aí descontar a menor partícula

dos

danos do vício.

Si recorrermos à história da literatura, veremos que

a contri-

buição dos paraísos

artificiais

"nela

é quasi

nula: Tomás Quincey,

Raudelaire, e mais alguns poetas

de segunda ordem resumem todo o

contigente das obras inspiradas por

tal vício. Por outro lado, muitos

dos que

exaltaram os entorpecentes nos seus livros fizeram-no apenas

por snobismo, como no caso de

Jean Lorrain,

que tanto falava em

ópio mas nunca conseguiu suportá-lo.

Não há, pois,

nenhuma tenuante para

um flagelo tão voraz.

Vício das sociedades decadentes, a toxicomania deve ser combatida

com a maior energia no Brasil, povo jovem,

em pleno

elan^ de vi-

talidade e progresso.

Cada viciado comete um crime não so contra

si mesmo, como contra a coletividade, infiltrando nela um fermento

de desagregação.

Incrementando o combate sem tréguas a êsse mal, o Governo

acaba de organizar a Comissão encarregada da fiscalização dos cntor-

pecentes. Compõe-se ela do Diretor do Departamento Nacional de

Saúde, de um representante da Diretoria de Saúde do Exército, de um

representante do Corpo de Saúde da Armada, de um representante do

Ministério da Justiça

e outro do Ministério do Trabalho, do Chefe

de Divisão de Atos, Congressos e Conferências Internacionais do Mi-

nistério das Relações Exteriores, do Diretor da Secção de Fiscalizaçao

do Exercício Profissional do Ministério da Educação, da autoridade

policial encarregada do serviço de fiscalização e repressão ao uso e co-

mércio ilicito de tóxicos e entorpecentes, de um conferente designado

pelo inspetor da Alfândega do Rio de

Janeiro, de um representante

do Instituto de Química

Agrícola do Ministério da Agncultura de

um representante de estabelecimento clinico especializado em toxico-

mania e de um funcionário das clases K e

J do Ministério das Rela

ções Exteriores, que

exercerá as funções de secretario.

Essa Comissão tem funções amplas, devendo focalizar a impor-

tacão e o trânsito de entorpecentes pelo territorio nacional. Nao sera

concedido o certificado de importação a

quem tenha sido condena o

em processo por qualquer infração da lei

que regula o uso

,de

e^or-

pecemesf r^m à sociedade

comercial de que

o mesmo .nd,v,d„o

faça parte.

Proteção aos servidores do Estado

Os aue louvam os privilégios

de certas funções públicas

não

se lembram de que

estes são contrabalançados poi' ia^r£^

t„. „

rUrn, imareos Está nessas condiçoes o cargo de iiscai ae ím

<"¦« ctí* p"*

°timc,onàno

226 CULTURA POLÍTICA

inimizades, ódios e dificuldades de toda sorte. Entre o contiibuinte

e o representante do fisco nem sempre ha o entendimento perfeito

que a honestidade e o civismo do

primeiro deviam

garantir. in-

compreensão e a má fé do contribuinte leva-o a receber, muitas vezes,

com agressividade o fiscal. Vem o propósito

lembrar um exemplo

literário, mas nem por

isso menos expressivo: o de Cervantes. No-

meado cobrador de impostos na Espanha, o autor do D. Quixote

,

apesar da penúria

em que

vivia, acabou desistindo das funções ante

as hostilidades que

teve de enfrentar. A maioria das pessoas,

no seu

julgamento apressado, não atenta

para o lado difícil e escabroso de

tais cargos. E é preciso

notar que

os obstáculos são maiores para

os

que trabalham no Interior do

país, em regiões mais ou menos atra-

zadas, onde o homem não se compenetrou ainda devidamente da

legitimidade do imposto e dos deveres de todo cidadão para

com

o Govêrno.

Foi com tais obstáculos que

se viu a braços o fiscal de consu-

mo José

Bernardo Bezerra de Menezes, procurando

desempenhar ho-

nesta e rigorosamente suas funções no Interior do Ceará, para

onde

havia sido designado. Ali prostou-o

morto a reação violenta de um

contribuinte recalcitrante, fato amplamente divulgado por jornais-

desta Capital.

O Govêrno, considerando os serviços prestados pelo

extinto e

a circunstância de ter sido assassinado no cumprimento dos seus de-

veres, resolveu conceder uma pensão

especial à viuva e filhos meno-

res do referido funcionário. E' um legítimo ato de justiça,

revelando

o interêsse e o carinho com que

o Govêrno vê a sorte dos seus devo-

tados servidores.

Instituto Nacional do Pinho

Por decreto de 19 de Março, o Govêrno criou mais um órgão

especializado para

o fomento dos nossos produtos

agrícolas. Trata-se

do Instituto Nacional do Pinho, cujas funções são as seguintes:

a) coordenar e superintender os trabalhos relativos à produção

do pi-

nho; b) promover

o fomento do seu comércio no interior e no ex-

terior do país;

c) contribuir para

o reflorestamento nas zonas de

produção de

pinho; d)

promover os meios de satisfazer os

produto-

res, industriais e exportadores quando

às necessidades de crédito e fi-

nanciamento; e) manter em colaboração com o Ministério da Agri-

cultura a padronização

e a classificação do pinho;

f) fixar preços

mí-

nimos, estabelecer quotas

de produção

e de exportação; g)

organizar

o registro obrigatório dos produtores,

industriais e exportadores;

h) providenciar

sobre a construção em locais adequados de usinas de

secagens e armazéns para

depósito de madeiras; i) regular a instala-

ção de novas serrarias, fábrica de caixas de beneficiamento de madei-

ras; j) promover

a criação de órgãos industriais autônomos para

a ex-

ploração de indústrias derivadas da madeira; k) manter um serviço

de estatística e informações; 1) fiscalizar a execução das medidas e re-

?

PANORAMA DA ATIVIDADE GOVERNAMENTAL 227

I

soluções tomadas, punindo

os infratores de acôrdo com as penalidades

que forem fixadas no regulamento do Instituto Nacional do Pinho;

m) instituir e organizar os demais serviços necessários às realizações de

seus objetivos.

Um dos grandes

males do Brasil foi a monocultura, erro em

que vínhamos incidindo até há

pouco tempo. Imaginávamos

que só

poderíamos ser

grandes produtores de café e

que êste vastíssimo solo

tão fértil, de natureza geológica

tão variável e, em condições atmos-

féricas tão diversas não podia prodigalizar-nos

outras riquezas. Como

já acentuamos aqui na vez anterior, nem mesmo cuidamos de estudar

as possibilidades

de produção

da nossa terra. A situação privilegiada

que desfrutávamos no mercado mundial como exportadores de café,

fazia com que

todos os nossos esforços se concentrassem no cultivo,

atitude que

hoje, racionalmente abandonamos, graças

ao plano

de

política econômica do Estado Novo.

Restrições à entrada de estrangeiros no pais

Logo depois de decretar a obrigatoriedade de registro para

os

forasteiros, que

entrarem no país

em caráter temporário, o Govêrno

assinou outro decreto, restringindo a entrada de estrangeiros. Fica

assim suspensa a concessão de vistos temporários em passaportes

de

filhos de outros países, que pretendam permanecer

no Brasil, excetu-

ando-se os nacionais de Estados Americanos, os indivíduos de outra

nacionalidade, desde que

façam prova

de possuir

meios de subsistên-

cia. O visto permanente

também acaba de ser suspenso, com exclusão

dos seguintes casos: a) quando

se tratar de estrangeiros os técnicos ru-

rais, que

venham para

o Brasil com emprêgo garantido;

b) de estran-

geiros que transfiram

para o Brasil

quantia correspondente no nu-

nimo a quatro

contos de réis; c) a técnicos de mérito notoriamente

excepcional, que

encontrem no Brasil ocupação adequada. Nos ca-

sos

"a"

e V a imigração será autorizada sob a condição de não poder

o estrangeiro exercer outra atividade remunerada, durante os primei-

ros dez anos de sua residência no Brasil e tendo-se em vista o seguin-

le: sua aptidão para

o trabalho a que

se propõe;

suas condições de

assimilação pela população

brasileira; sua localização no Brasil de

maneira a evitar-se a formação de núcleos de difícil absorção e a con-

densação nos centros urbanos.

Como se vê, essas medidas estão perfeitamente

de acôrdo com

as que

todos os países

teem tomado com relação à entrada de estran-

geiros, pela necessidade de defeza econômica. No Brasil, sempre hou-

ve a mais descabida tolerância nêsse assunto, só agora encarado no

seu devido aspecto, e com o rigor necessário.

Transformações

no

campo do direito

III

LUIZ ANTÔNIO DA COSTA CARVALHO

Professor na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil

O artigo anterior cogitou das "Transformações"

de caráter orgânico-judi-

ciário operadas no primeiro período de governo

do Piesidente Vargas,

porque tudo quanto

se fez nesse

particular deve ser anotado para

o efeito

da fixação histórica dessa época, movimentada e fecunda,

da V'd""e*,°'

nal importa tratar da creação da Justiça de exceção

— que

e de

juridico-processual

— antes de examinar o trabalho realizado nesse campo

durante os períodos

subsequentes<

"Justiça Revolucionária"

FIEL

ao seu pensamento

e ao seu propósito

e aplicando o ponto

de

vista que

expoz no discurso de 3

de Novembro de 1930, quando

se empossou na Chefia do Govêrno Provisório, o Presidente Ge-

túlio Vargas baixou o Decreto n.° 19.440, de 28 dêsse mês pelo qual

deu organização ao Tribunal Especial, creado pelo

art. 16, do De-

creto institucional n.° 19.398, de 11 de Novembro, com a competên-

cia especial de julgar

os crimes políticos

e funcionais que

menciona

enumera.

Por outro lado o decreto em aprêço impõe as sanções de cara-

ter político, que prevê,

em defesa dos princípios

do regime republi-

cano, do decoro e do prestígio

da administração, do erário, da ordem

numa palavra,

do interêsse público

em geral*

Nos termos dessa lei o Govêrno se reservou a faculdade de apli-

car, de plano,

essas sanções quando julgasse

conveniente, limitando a

competencia do Tribunal Especial aos fatos que

tivessem ocorrido no

período do Govêrno cuja ação

político-administrativa determinou a

Revolução.

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO229

A jurisdição

do Tribunal se estendia a todo o território nacio-

nal. cumprindo, entretanto, que,

na aplicação das penas

e sanções

de sua atribuição, atendesse aos interesses nacionais, à segurança da

ordem pública

e considerasse, em cada caso, as respectivas circunstân-

cias agravantes e atenuantes.

A lei em aprêço declarava quais

os atos passíveis

de sanções

como as providências

de caráter político que poderiam

ter aplicação

cumulativa e regulava o funcionamento do Tribunal, que

era consti-

luído por

cinco membros, assistidos por

dois Procuradores especiais

nomeados, todos, livremente pelo

Governo.

O decreto, que

declarava expressamente as atribuições de jui-

zes e procuradores,

cogitava também da nomeação de comissões de sin-

dicáncia, que fossem necessárias, das respectivas atribuições e da or-

dem dos serviços, e estabelecia a forma do processo

a ser observado.

Êsse processo

deveria ser escrito, salvo quando

se tratasse dos

incidentes de natureza ordinatória, que poderiam

ser propostos

e tra-

tados verbalmente. .

O ume o recurso

Das sentenças do Tribunal, sempre escritas e fundamentadas, o

único recurso cabível seria o de embargos para o

próprio Tribunal,

ao qual era lícito requisitar todas as

providências, diligencias e infor-

mações que julgasse

convenientes, como também ordenar a prisão

dos indiciados. .

As circunstâncias de se tratar de

justiça de exceção e de n

ter o Tribunal Especial nenhuma instância superior à sua, que pudes-

se rever as suas sentenças, explicam o fato de não dar a lei de sua or-

ganização outro recurso das respectivas decisões que

o de embargos.

Dispostas as atribuições

Em 7

de Janeiro

de 193» foi baixado o Decreto n.°79-575 que

dispunha sobre as atribuições dos

procuradores

especiais

£0

T«buna

Especial e dava algumas outras providencias

de ordem interna e

natureza proc«sual^

Especial, creado pela

Lei orgânica n° 19.398,

de „ de Novembro de ,9S» e organisado pelo

28 do mesmo mês, foi dada nova organizaçao mais conforme com a

exigências do interêsse público, pelo Decreto n.° i9-7*9> de 20 «jc

Fevereiro o qual,

outrossim, estabeleceu

o processo

de julgamento

dos

crimes de sua competência e deu outras providencias.

Criada a

"Junta de Sanções

Êsse órgão de Justiça

Revolucionária, como algures se denomi-

„ou o Tribunal Especial,'pouco .empo depois de

dame„« de coÜL'

lar a LSncia® dLa organização

e, por

isso, o tramformou em

230 CULTURA POLÍTICA

uma

"Junta

de Sanções", constituída por

tres Ministros de Estado e

a ela conferiu a competência, que

era atribuída ao Tribunal, em de-

fesa dos princípios

do regime republicano, do decoro e do prestígio

da administração, do erário nacional, da ordem e do interêsse públi-

co em geral.

Êsse Decreto n.° 19.811 não só traçava as normas constitutivas

da Junta

e regulava o seu funcionamento como estabelecia a forma

do processo

respectivo.

Reduzido o número de seus membros

A organização do Ministério Público com função perante

a

"Junta", foi alterada com a redução do número de seus membros a

um único Procurador, auxiliado por

dois adjuntos, denominados sub-

procuradores e aos

quais caberiam as atribuições

que o referido decre-

to menciona no art. 5.0.

Corrigidos os erros iniciais

Passados as primeiras

horas de agitação partidária,

resultante

natural e conseqüência lógica da vitória da Revolução, ou atenuada

essa agitação pela

ação sedativa do tempo, com a volta da calma e da

reflexão aos espíritos, foi possível

ao egrégio Chefe do Govêrno orien-

tar-se melhor e mais seguramente para guiado pela

serenidade que

caracterisa todas as suas atitudes, rigorosamente equilibradas, corrigir

êrros de seus auxiliares e impedir abusos de autoridade, como vedar a

prática de atos de vindíta

pessoal e

política contra adeptos e auxilia-

res da situação deposta, que,

aliás, sofreram não poucos

vexames inú-

teis, desnecessários e injustos tão desconformes com a índole e com o

espírito do Presidente Getulio Vargas.

Assim, como o propósito patriótico

de pacificar

os espíritos a

bem da nova ordem de coisas que

a Revolução creara, uma das pri-

meiras providências

e das mais acertadas de que

usou o Presidente

foi a que

consta do Decreto n.° 20.270, de 3

de Agosto de 1931 pelo

qual revogou o Decreto n.° 19.630, de 27 de

Janeiro dêsse ano,

que

continha disposições referentes à interdição de bens das pessoas

de que

cogita o Decreto n.° 19.440, de 28 de Novembro de 1930.

Como motivo ou razão fundamental da providência

simpática,

inteligente e necessária de apaziguamento e de justiça

figurava em

primeiro plano a cessação das causas

que determinaram a restrição da

livre movimentação de bens particulares,

e entre essas a de estarem

assegurados e salvaguardados os interêsses da Fazenda Nacional.

Elevado o número de membros da "Junta99

O Decreto n.° 20.329, de 27 de Agosto elevou de tres para

cin-

co o número de membros da

"Junta

de Sanções" a que já

fiz referên-

cia, creada pelo

Decreto n.° 19.811, de 28 de Março, em substituição

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO 231

ao

"Tribunal Especial", e o Decreto n.° 20.346, regulou a execução

cias decisões da

"Junta".

Medidas de natureza orgânico-judiciária

Os decretos n.° 19.408, de 1930 e n.° 19.656, de 1931, que,

res-

pectivamente, reorganisaram a Côrte de Apelação e o Supremo Tri-

bunal Federal, vedavam, um e outro, pelos

seus artigos 14 e 20, aos

Juizes federais e locais e aos membros do Ministério Público Federal

e local a aceitação e exercício, mesmo gratuito,

de qualquer

função pú-

blica, salvo do magistério.

Essa proibição, porém,

conforme declarou o Decreto n.° 20.680,

<le 18 de Novembro, não abrangia o desempenho das funções de ár-

bitro mesmo quando

a Fazenda Pública tivesse interêsse na pendência.

Como providência

necessária e recomendável para

o desafogo

das pautas

e solucionamento do grande

número de feitos paralisados

nos cartórios à espera de julgamento,

o Decreto n.° 20.699, de 23 de

Novembro determinou que

o Supremo Tribunal Federal realizaria,

enquanto não esgotasse a pauta

das causas com dia, quatro

sessões

semanais, de 1 de Abril a 30

de Novembro e tres de 1 de Dezembro

a 31

de Janeiro.

Desdobramentos de serviços

Com o propósito

de facilitar os serviços respectivos e, conse-

«quentemente, atender melhor ao interêsse das partes,

o Decreto n.°

20 731 de 27 de Novembro desdobrou em dois o Cartório de Registo

de Interdições e Tutelas do Distrito Federal, e, ao mesmo tempo de-

clarou o objetivo dêsse Registo; mencionou as atribuições, encargos e

vantagens dos respectivos oficiais, e enumerou o que

devia ser obriga-

toriamente registado de modo a valer contra terceiros.

Criado mais um lugar de solicitador

Pelo Decreto n.° 20.746, de 2 de Dezembro foi creado mais um

lugar de Solicitador da Fazenda Nacional,

junto

ao Supremo Tribunal

Federal e pelo

Decreto n.° 20.752, de 3

desse mes ficou^«tabelecicto

que não constitue incompatibilidade

sujeita a sançao legal.°desem-

penho de comissão conferida pelo

Governo a magistrados federais

para a elaboração

de Anti-projetos de organização e

processo dos

juízos

¦e tribunais da União ou de codificação das suas leis.

Vedado o conhecimento de habeas-corpus

Com o propósito de evitar os inconvenientes resultados e os ma-

les decorrentes dos embaraços areados

pela intervenção da

administrativa por provocação

de funcionários atingidos p p

dades disciplinares, o Govêrno baixou o Decreto n. 20.810 de 17 de

232 CULTURA POLÍTICA

Dezembro de 1931 pelo qual

vedou expressamente o conhecimento de

habeas corpus ou de outros quaisquer

recursos interpostos em conse-

quência da aplicação de tais

penalidades por autoridade competente.

Facilitada a verificação e o exame dos livros

O interesse pela

regularidade e eficiência da fiscalização do

imposto de sêlo contra a qual

se opunham embaraços e dificuldades,

exigia providências

adequadas que

foram adotadas pelo

Decreto n.°

20.816 de 17 de Dezembro, o qual

determinou que

os tabeliães de

notas e demais serventuários da Justiça

do Distrito Federal seriam

obrigados a exibir, para

verificação e exame, aos Agentes da Recebe-

doria do Tesouro Nacional, os livros e documentos, sujeitos à sela-

gem, existentes nos respectivos cartórios.

Crcados dois cargos de Pro?notores dos Registros Públicos

Ainda pelo

motivo de considerar que

o interesse superior da

Fazenda Pública como o legítimo interesse das partes

merecem o maior

acatamento e o máximo desvêlo, exigindo, consequentemente, uma

fiscalização severa nos cartórios dos tabeliães de notas, dos oficiais de

protesto, dos registros

públicos e dos distribuidores da

Justiça local, e

tendo em consideração a circunstância de que

esses serventuários não

estão debaixo de fiscalização permanente

e contínua dos Juizes

e mem-

bros do Ministério Público, o Governo, pelo

decreto n.° 22.159, de 8

de Março, creou dois cargos de Promotores dos Registos Públicos des-

criminando-lhes as atribuições.

Resguardada a defesa judicial

dos interesses da União

Motivos relevantes, quais

os que

dizem respeito diretamente à

defesa judicial

dos direitos e interesses da União Federal, atribuída

aos Procuradores da República, da qual

se ocupava o Decreto n.°

10.902, de 1914, inspiraram os preceitos

contidos no Decreto n.° 21.367,

de 5

de Maio de 1932 que

dispoz a respeito além de tratar de outros

assuntos de interesse para

a administração da Justiça, pela qual

o

Presidente Getulio Vargas revelou sempre o máximo interêsse e para

a qual

tem sempre voltada a sua atenção vigilante e solícita.

Desdobrado o cargo de i.° Contador

Pelo Decreto n.° 22.561, de 20 de Março foi desdobrado o car-

go de i.° Contador e alterada a numeração dos cargos de contadores

tendo em vista a conveniência do serviço público que

reclamava uma

providência correspondente ao desenvolvimento dos encargos compre-

endidos na esfera de competência dêsses serventuários.

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO

Creadas as funções

de testamenteiro e tutor judicial

Pelo motivo de considerar que

a maior eficiência do exercício'

do cargo de testamenteiro dativo depende, em parte,

da reunião dos

poderes respectivos em mãos de determinada

pessoa, assim como no

tocante à representação e defesa dos interêsses dos incapazes quando,

porventura, seus interêsses colidirem com os dos seus representantes

legais, houve por

bem o Govêrno crear os cargos de testamenteiro e

Tutor Judicial pelo Decreto n.° 22.850 de

5 de

Julho de 1933.

Êsse decreto disciplinou as atribuições que

competiriam aos

titulares dos cargos creados e regulou o sistema de sua nomeação,

substituição e remuneração.

Providências de natureza judiciária

e fiscal

O Decreto n.° 22.957, de 5

de Julho provendo,

como fez, sôbre

os meios assecuratórios da cobrança da dívida fiscal adota outras pro-

vidências de natureza judiciária

e fiscal.

Entre essas providências

importa destacar a que

declara que

os

Estados quando requererem

perante a

Justiça Federal ficariam sujei-

tos ao pagamento dos respectivos sêlos, taxas e demais emolumentos-

fixados em lei, ou regulamento federal e a que

denomina de Adjuntos

do Procurador da República os antigos Solicitadores da tazenda.

O preenchimento

das vagas de Oficiais de Justiça

Modificando o decreto n.° 21.728, de 1931 foi baixado o de-

creto n.o 23.020, de 3»

de Julho

de 1932 ^

dispoz sobre o preen-

chimento das vagas de Oficiais de Justiça

das Pretorias e Varas Ci-

veis do Distrito Federal devendo ser observadas, em cada caso, as con

dições de antigüidade, idoneidade moral e capacidade prof.ss.onal

dos candidatos.

A 2.a Procuradoria Criminal c a

9.a Promotoria

Pública

O Decreto **.9.3. * '» J»lh°

foi Pp" "

ÍJr

de crear, pelo,

motivos q.te declara, os cargos

£

Criminal na Tustiça Federal do Distrito e o de 9°

Promotor Publico,

na Tústiça kKal, regulando as respectivas

atribuições e dtspondo que

a primeira

nomeação seria feita livremente.

Direção, guarda e conservação

do Palácio da Justiça

Fm 16 de Outubro foi baixado o Decreto n.° 23.214, que

apro-

vou as instruções s6bre aJir«ç£

^ ^Sole

aíS

fiíX" ÊwoV—

* —« *—

CULTURA POLÍTICA

Dezembro de 1931 pelo qual

vedou expressamente o conhecimento de

habeas corpus ou de outros quaisquer

recursos interpostos em conse-

quência da aplicação de tais

penalidades por autoridade competente.

Facilitada a verificação e o exame dos livros

O interesse pela

regularidade e eficiência da fiscalização do

imposto de selo contra a qual

se opunham embaraços e dificuldades,

exigia providências

adequadas que

foram adotadas pelo

Decreto n.°

20.816 de 17 de Dezembro, o qual

determinou que

os tabeliães de

notas e demais serventuários da Justiça

do Distrito Federal seriam

obrigados a exibir, para

verificação e exame, aos Agentes da Recebe-

doria do Tesouro Nacional, os livros e documentos, sujeitos à sela-

gem, existentes nos respectivos cartórios.

Cveados dois cargos de Promotores dos Registros Públicos

Ainda pelo

motivo de considerar que

o interesse superior da

Fazenda Pública como o legítimo interesse das partes

merecem o maior

acatamento e o máximo desvêlo, exigindo, consequentemente, uma

fiscalização severa nos cartórios dos tabeliães de notas, dos oficiais de

protesto, dos registros

públicos e dos distribuidores da

Justiça local, e

tendo em consideração a circunstância de que

esses serventuários não

estão debaixo de fiscalização permanente

e contínua dos Juizes

e mem-

bros do Ministério Público, o Govêrno, pelo

decreto n.° 22.159, de 8

de Março, creou dois cargos de Promotores dos Registos Públicos des-

criminando-lhes as atribuições.

Resguardada a defesa judicial

dos interesses da União

Motivos relevantes, quais

os que

dizem respeito diretamente à

defesa judicial

dos direitos e interesses da União Federal, atribuída

aos Procuradores da República, da qual

se ocupava o Decreto n.°

10.902, de 1914, inspiraram os preceitos

contidos no Decreto n.° 21.367,

de 5

de Maio de 1932 que

dispoz a respeito além de tratar de outros

assuntos de interêsse para

a administração da Justiça, pela qual

o

Presidente Getulio Vargas revelou sempre o máximo interêsse e para

a qual

tem sempre voltada a sua atenção vigilante e solícita.

Desdobrado o cargo de i.° Contador

Pelo Decreto n.° 22.561, de 20 de Março foi desdobrado o car-

go de i.° Contador e alterada a numeração dos cargos de contadores

tendo em vista a conveniência do serviço público que

reclamava uma

providência correspondente ao desenvolvimento dos encargos compre-

endidos na esfera de competência dêsses serventuários.

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO

Creadas as funções

de testamenteiro e tutor judicial

Pelo motivo de considerar que

a maior eficiência do exercício

do cargo de testamenteiro dativo depende, em parte,

da reunião dos

poderes respectivos em mãos de determinada pessoa,

assim como no

tocante à representação e defesa dos interesses dos incapazes quando,

porventura, seus interêsses colidirem com os dos seus representantes

legais, houve por

bem o Governo crear os cargos de testamenteiro e

Tutor Judicial pelo

Decreto n.° 22.850 de 5

de Julho

de 1933-

Êsse decreto disciplinou as atribuições que competiriam aos

titulares dos cargos creados e regulou o sistema de sua nomeação,

substituição e remuneração.

Providências de natureza judiciária

e fiscal

O Decreto n.° 22.957, de 5

de Julho provendo,

como fez, sôbre

os meios assecuratórios da cobrança da dívida fiscal adota outras pro-

vidências de natureza judiciaria

e fiscal.

Entre essas providências

importa destacar a que

declara que

os

Estados quando requererem

perante a

Justiça Federal ficariam sujei-

tos ao pagamento

dos respectivos selos, taxas e demais emolumentos

fixados em lei, ou regulamento federal e a que

denomina de Adjuntos

do Procurador da República os antigos Solicitadores da Fazenda.

O preenchimento

das vagas de Oficiais de Justiça

Modificando o decreto n.° 21.728, de 1931 foi baixado o de-

creto n.° 23.020, de 31

de Julho

de 1932 que

dispoz sôbre o preen-

chimento das vagas de Oficiais de Justiça

das Pretonas e Varas Ci-

veis do Distrito Federal devendo ser observadas, em cada caso, as con-

dições de antigüidade, idoneidade moral e capacidade profissional

dos candidatos.

A 2.a Procuradoria Criminal e a g.a

Promotoria Pública

O Decreto n.° 22.913, de 10 de Julho

foi baixado para

o efei-

to de crear, pelos

motivos que

declara, os cargos de 2° Procurador

Criminal na ]ustiça

Federal do Distrito e o de 9.0

Promotor Publico,

na Justiça

local, regulando as respectivas atribuições e dispondo que

a primeira

nomeação seria feita ln reniente.

Direção, guarda e conservação do Palácio da Justiça

Em 16 de Outubro foi baixado o Decreto n.° 23.214, que apro-

vou as instruções sôbre a direção, guarda e conservação do Palácio

da Justiça e em 17 dêsse mês o de n.° 23.220 para

o efeito de alterar

a composição da Corte de Apelação pelo

aumento do número de seus.

234 CULTURA POLÍTICA

membros para

vinte e tres, pela

investidura do Procurador Geral no

cargo de desembargador e pela

designação de um dos desembargado-

res, pelo

Chefe do Govêrno Provisório, para

exercer, em comissão, o

cargo de Procurador Geral e para

regular a substituição eventual deste

foi promulgado

o decreto n.° 23.302, de 30

do mesmo mês.

Em defesa da Família Brasileira

Tantas e de tão diversas formas foram as fraudes e tão escan-

dalosa e desenvolta se tornou a indústria das anulações de casamento

que o Chefe do Govêrno Provisório,

profundamente impressionado

pela situação

que se creava em detrimento dos altos interesses sociais

e da segurança do instituto da família, se viu na contigência patrió-

tica e benemérita de agir enérgica e eficazmente no sentido de de-

fender a sociedade brasileira e coibir severamente os abusos.

Averbadas as sentenças

E, assim, além das providências

de ordem policial

e de nature-

za criminal que

foram adotadas para

a apuração regular dos fatos e

punição severa, consequentemente, dos criminosos, resolveu o Presi-

dente Vargas baixar o Decreto n.° 23.301, de 30

de Outubro, pelo

qual determinou

que as sentenças decretatórias de nulidade ou anu-

lação de casamento seriam averbadas, necessariamente, no Registo Ci-

vil, para que produzissem

os seus efeitos legais somente depois de confir-

madas, definitivamente, na instância superior.

Para que, porém, pudesse

haver confirmação definitiva pela

instância superior, —

porque poderia não haver recurso voluntário da

parte

— determinou a lei

que o

Juiz prolátor da decisão anulatória

apelaria de ofício, isto é, interporia necessariamente a apelação na

mesma sentença, sem prejuízo

do recurso, porventura,

interposto por

qualquer interessado.

O decreto referido dispoz, outrossim, sôbre o processo

da aver-

bação das sentenças e sôbre as penalidades

aplicáveis aos infratores.

A venda de bens em leilão Público

Alterando pelo

decreto n.° 23.303, de 30

de Outubro, o disposto

arts., 2.0 § 4.0,

letra a e 6.° do Regulamento a que

refere o decreto n.°

2.818, de 23 de Fevereiro de 1898, ficou estabelecido que

o Depositá-

rio Geral do Distrito Federal, vencido o prazo

de 90

dias dos depósi-

tos, comunicaria à autoridade competente e anunciaria, por

editais,

publicados na forma indicada, a venda dos bens em leilão

público, re-

colhendo-se o produto

à Caixa Econômica em nome e à disposição

do Juízo.

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO 235

Criado o lugar de Juiz Substituto da

Fazenda Municipal

O Decreto n.° 23.597, de 18 de Dezembro, em virtude dos mo-

tivos nêle largamente expostos, creou no Distrito Federal o lugar de

Juiz Substituto dos Feitos da Fazenda Municipal com a competência

de processar

e julgar

as infrações de leis, regulamentos e posturas

mu-

nicipais, ficando êsse cargo, para

todos os efeitos, equiparado ao

<le Pretor.

Dispunha mais êsse decreto sôbre a nomeação, substituição e

remuneração dêsse titular, como também sôbre o recurso cabível das

suas decisões.

Elevado o número de Procuradores

da Fazenda Municipal

Pelo decreto n.° 20.039, de 26 de Maio de 1931» cuja referên-

cia havia omitido, foi creado mais um lugar de Procurador dos Fei-

tos da Fazenda Municipal a ser nomeado pelo

Interventor do Distrito

Federal e não pelo

Presidente da República, como era em virtude do

art. 34,

do Decreto n.° 5.160,

de 1904, que

foi revogado.

Porque revigorado pelo

art. 2.0 dêsse decreto n.° 20.039, o art.

39, do citado decreto n.°

5.160, os Procuradores dos Feitos teriam o

triplo dos prazos para

arrazoar e dar provas.

1.

7.° Oficio do Registo de Imóveis do Distrito Federal

Foi creado pelo

decreto n.° 20.134, de 24 de Agosto o j.°

Ofício

{lo Registo Geral de Imóveis do Distrito Federal, constituído pelas

freguesias ou distrito municipais de Candelaria, São jose,

Engenho

Velho e Ilha do Governador desmembrados dos i.°, 2.0, 3.0

e 5.0

.Ofícios.

Medidas de caráter juridico-fiscal

e penal

Pelo Decreto n.° 19.414, de 20 de Novembro de 1930, publicado

pelo

"Diário Oficial" nos dias 22, 23 e 25 dêsse mês, atendendo às

dificuldades da situação e dando uma demonstração concreta do seu

interêsse pela

sorte das classes contribuintes o honrado Chefe do

Governo resolveu, inteligente e patrioticamente,

autorisar a cobrança

amigável, como foi dito, das dividas provenientes

de impostos e taxas,

de responsabilidade individual, sem as multas de mora, a que, por-

ventura, estivessem sujeitas, devendo-se proceder

na conformidade das

"Instruções"

que acompanhavam o mesmo decreto e baixadas

pelo

Ministro da Fazenda para

serem observadas e executadas pela

Direto-

ria da Receita Pública do Tesouro Nacional.

236CULTURA POLÍTICA

Acautelados os interesses da Fazenda Pública

Afim de acautelar os interesses da Fazenda Pública, quanto

à

efetivação das providências

a que

se referem os arts. 9

e 12 do De-

creto n.° 19440, de 28 de Novembro de 1930, pelo qual

£01 dada or-

ganizacão ao Tribunal Especial e tendo em visto o

que dispoz o art.

43 dêsse Decreto no tocante à alienação, oneração ou desistencia de

bens, direitos ou ações de responsáveis pela gestão ou aplicaçao de di-

nheiros públicos, foi

promulgado em 27 de

Janeiro de 1931 o De-

creto n.° 19.630, mantendo a indisponibilidade de tais bens; proibido

o levantamento de depósitos bancários e regulando, também, a forma

de liberação ou desoneração dêsses mesmos bens ou fundos.

Indulto, por

clemência

Apoiado aos motivos justificativos que

constam do Preâmbu-

lo" do Decreto n.° 19 445,

de 1 de Dezembro de 1930, resolveu o Go-

vêrno, clementemente, indultar todos os criminosos incursos nos arts.

124, 134, 303, 306, 377, 399

e 402,

do Código Penal ainda que

se ve-

rificasse alguma das hipóteses do art. 66 do mesmo Codigo, e os que,

porventura, estivessem respondendo a

processo-crime por qualquer dos

crimes ou contravenções referidos, estabelecendo, entretanto, as con-

dições que

devem ser observadas para

a concessão do indulto.

Em defesa da Saúde do Povo

Porque se tornassem vulgares as falsificações e fraudes de gê-

neros alimentícios em detrimento da saúde do Po\o houve poi

bem

o Chefe do Govêrno cogitar do assunto pelo

Decreto n.° 19.604, de

19 de Janeiro

de 1931, para

"julgar crime de estelionato, com as

pe-

nas previstas

no art. 338,

do Código Penal, fabricar, dar e vendei

ou expor ao consumo público gêneros

alimentícios nas condições men-

cionas nos n.° I a V do art. 1.° dêsse Decreto.

Considerando a importância do dano resultante dessa práti-

ca criminosa e no propósito

de uma coibição severa, declara que

tais

crimes são inafiançáveis, ficando seu autor obrigado a indenizar o

dano que

haja causado, independentemente do processo

e julgamento

de ação criminal.

O recolhimento dos depósitos judiciais

Providência útil, necessária e vantajosa que,

entretanto, não

teve, especialmente nos Estados, a aplicação devida, era a que

resulta-

ria do Decreto n.° 19.870, de 15 de Abril de 1931, que

determinava

a obrigatoriedade de recolhimento às Caixas Econômicas Federais das

importâncias em dinheiro dos depósitos judiciais,

bem como as das

cauções constituídas para garantir

a execução de qualquer

contrato,

TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DO DIREITO 237

a prestação

de qualquer

serviço ou o fornecimento de qualquer

utilidade.

Retificação e regulamentação

Um mês, após, porque

a execução da medida falhara, o Govêr-

no baixou outro decreto, o de n.° 19.987, de 13 de Maio, para

o fim

de retificar e regulamentar o anterior, de n.° 19.870.

E, nêsse intuito, estabeleceu no art. i.° quais

os depositos

cujo recolhimento seria obrigatoriamente feito nas Caixas onde as

houvesse.

Além de outras providências

apropriadas, que deu o decreto em

apreço, declarou que

seria facultativa a remoção para

as Caixas Eco-

nômicas dos depósitos judiciais

em dinheiro, anteriores a vigência do

decreto n.° 19.870, não cabendo aos depositários judiciais qualquer

iniciativa a respeito, mas tão sòmente atender às determinações do Juiz

do processo.

A

"indústria das multas'

Como providência relevante e moralisadora foi baixado o De-

creto n.° 19.455. de 4

de Dezembro de 1930 pelo qual

foi declarado

que

"nenhum

Juiz, ou funcionário administrativo,^

federal, estadua

ou municipal, perceberá percentagem,

ou bonificação direta ou indi-

reta, de multa, pena pecuniária,

ou qualquer

dívida fiscal, em proces-

so de qualquer

natureza, que tenha

julgado, ainda mesmo em

pri-

meira instância", aplicando-se o dispositivo aos processos pendentes.

Medida essa altamente moralizadora e de grande

alcance social,

que deu excelentes resultados, mas

que, infelizmente, foi abolida com

referência aos funcionários administrativos que, com algumas exce-

cões honrosas e louváveis, mas muito poucas,

desgraçadamente, se

servem dela, agora, como arma de perseguição

contra os contribuintes

em benefício próprio

e em desconceito da administração pública, pela

exploração organizada da rendosa

"indústria das multas",

que está a

pedir a atenção esclarecida e o corretivo severo do honrado cheie

da Nação.

gpppp

I

6

Brasil social; intelectual e artístico

Colaboram nesta seção elementos escolhidos dentre os

mais significativos da eli»a intelectual do Brasil: elementos

de diversas correntes literárias, artísticas e cientificas, visto

que esta Revista não tem partidos e há-de procurar

sempre

espelhar tudo o que é genuinamente

brasileiro; elementos

de todos as gerações que hoje vivem no Brasil

— gerações

iovens de apás-guerro; gerações do princípio

do século; ge-

rações que nasceram com a República; gerações

de antes

da República, que assistiram a Abolição. Cada qual

tem um

representante, assinando as crônicas mensais desta seção.

A ordem social, a paz, o trabolho. a tolerância política

favorecem o desenvolvimento de todas as capacidades

creadoras da coletividade. A vida popular conquista um mais

alto nivel de estabilidade. Usos, costumes, artes, literatura,

ciências — adquirem um impulso novo, de verdadeira flora-

ção intelectual e estética.

Estas páginas refletem êsse espetáculo extraordinário de

renascimento do Brasil Novo. Elas constituem um depoimento

vivo e irretorquível do espirito de pax, de concórdia, de

tolerância e de unidade, que hoje desfrutamos.

Influência

política sôbre a evo-

lução social, intelectual e

artística do Brasil

III

A

GRANDE verdade sociologica, que

a história dos povos

orga-

nizados nos transmite é esta: não há regimes bons, nem re-

gimes maus ha regimes

políticos adequados a determinado

tempo, à determinada sociedade, a determinado povo,

à determinada

raça. Êsse enunciado, aparentemente complexo, é facilmente compre-

ensível se, por

seu intermédio ou pela

sua aplicação, pretendermos

re-

constituir, mesmo em linhas rapidas e apressadas, toda a curva que

a história política

do Brasil vem traçando, da centralização adminis-

trativa inaugurada por

Tomé de Souza, na Baía, à centralização que

retomamos em 1937.

Por várias vêzes, em variadas circunstâncias, fugimos à nossa vo-

cação política,

fugindo, portanto,

aquilo que

há de mais profundo

em

nós, essa personalidade

nacional que

nos afirma diversos, em tudo

por tudo, no continente americano, como os detentores de uma ter-

ceira América, diferente pela

língua, pela

formação intelectual, pela

formação espiritual, pela

formação religiosa mais pura, pela

formação

política mais característica. Tais fugas de vim roteiro

que eqüivale,

sem dúvida, a uma positiva

vocação, só ocorreram em momentos nos

quais suponhamos estar certos

pela embriaguez das fórmulas de

que

nos deixamos tomar. Foram precisos

sacrifícios enormes e renún-

cias espetaculares para que

verificássemos o quanto

a realidade trans-

borda do conceito, no provérbio

escolástico e fora dêle.

Pois só quando

um regime político

é adequado ao seu meio, só

quando êle incidir sôbre a sociedade como

que atraído

pela fôrça de

um polo

magnético contrário, êle poderá

dar os resultados que

a

letra de fôrma pretende

e que

a intenção dos homens de boa von-

242CULTURA POLÍTICA

tade desejam. Há, também, no ajuste entre o regime político

e uma

sociedade, a intromissão daquilo que

os sociólogos mais eminentes

chamam de o

"preconceito do

patriotismo", êsse mesmo

preconceito

que Comte, no seu tempo, reputava ser o maior entrave à evolução

social» intelectual e artística de um povo.

Preconceito político

é, em resumo, essa vontade passiva que

se

manifesta apenas em potência,

mas que,

em ato, não existe ou nao

existirá jamais. Foi contra êle

que se insurgiram os homens de

30,

assim como, em seu nome, as crises sucessivas que

daquela data atra-

vessamos nos assolaram. Foi contra êle, com a sua coorte espectacular

de conseqüências malsãs que

se insurgiu, por

sua vez, em 37

o Pre-

sidente da República, evitando, com uma intuição prodigiosa

de nos-

sas necessidades, o esfacelamento da unidade nacional, ameaçada

tantas vêzes pelo

apetite

"patriótico" de tantos brasileiros iludidos

pela deformação da

paisagem que a sêde de mando dá e a

preocupa-

rão da conquista da autoridade concede.

Eliminando o preconceito patrioteiro

e não apenas patriótico,

o reaime político

inaugurado em 37 poude

devolver, à sociedade para

a qual

foi criado, a sua influência bemfazeja. Então, a evolução co-

meçou em todos os setores. A pessoa

encontrando maiores possibili-

dades, maior aisance para

os seus movimentos como unidade moral; o

indivíduo dispondo de maiores possibilidades para

o exercício de seus

direitos, como unidade social. A inteligência encontrando melhores

campos para

o seu exercício e a imaginação criadora valendo-se da re-

ceptividade social para

a veiculação fértil de seus produtos.

Convidado a colaborar com o govêrno

na obra comum, o indi-

viduo deixou de ser um instrumento inativo da ordem política para

ser, êle mesmo, uma componente da ordem social. Quer

dizer, des-

pojando-se de sua forma de existencia

passiva, passou, por sua vez, a

atuar, também, à margem do Estado, em prol

do bem comum. Os

resultados de tal reviravolta foi êsse progresso

inegável que

assistimos

em todos os meios nos quais palpita

a vida do Brasil, das camadas

mais subalternas da população,

dos mocambos aos palácios,

dos palá-

cios às ruas, das ruas aos campos, dos campos aos salões. O brasi-

leiro começou a adquirir conciência de seu papel

social, de sua função

socialisadora e não meramente política,

estatística (para

a hora de

votar), numérica (para

a hora de constituir o aglomerado das mani-

festações de encomenda).

As artes, como reflexo da sociedade, e, entre todas, a literatura,

como uma componente do próprio

meio, evoluiram na mesma pro-

porção. Começamos a olhar

para nós mesmos, como a criança da ane-

dota e ficamos espantados com a nossa própria

nudez. E como as

vestimentas para

o nosso corpo estavam relegadas nos porões

do pas-

sado, fomos buscá-las para

essa festa em que

todos participamos, para

comemorar o redescobrimento de nós mesmos.

Esta revista está mostrando, em secções especialisadas de que

EVOLUÇÃO SOCIAL, INTELECTUAL E ARTÍSTICA

se constitue, como êsse redescobrimento se processa.

Como corres-

pondemos, como tentamos corresponder

política, social, intelectual e

artisticamente a tudo o que

de mais puro

reside na alma nossa que

os

nossos maiores criaram e para

cuja ressurreição trabalhamos. Con-

fíantes, porque

só a confiança no passado permite

resistir aos emba-

tes do presente.

E porque

é dessa confiança que

se forjam a alma

e o corpo dos vencedores, isto é, dos que

lutam com fé.

a) Evolução social

A ordem política

e

a evolução social* •

iii

INTERDEPENDÊNCIA necessária

A

entre a ordem política

e a evo-

lução social faz-se por

meio de

um como que

acordo tácito entre a

vontade do poder

e o meio em que

ês-

te se exerce. Não é que

a política

che-

gue a influenciar o social a

ponto de

determinar-lhe a mudança completa da

fisionomia íntima. Porque a alma de

um povo

não é modificável em função

de decretos e regulamentos.

Êsse acordo deve, pode

e só existe,

realmente, quando

o regime político

no

tempo representa uma aspiração social

latente, que

só ainda não se manifes-

tara à espreita do momento propicio

para fazê-lo.

Essa verdade é tanto mais verificável

quanto sabemos

que, pela oposição

pas

siva dos povos

não há govêrno que

re-

sista à impopularidade fatal. Os sis-

temas representativos vivem dêsse prin-

cípio. As mudanças que

sofrem ou as

transformações por que passam

ou que

determinam nascem dessa fôrça que

sóbe, incoersível, dos comentários de

rua, dos anedotários de salão, dos de-

sejos que

não se manifestam, que

mor-

rem no silêncio de cada um, mas cuja

trama invisível constróe êsse ambiente

de mal estar que

é o sinal mais do que

característico da presença

da tempes-

tade.

Quem analisar o meio social brasi-

leiro, nêste momento, há-de verificar

que tal não acontece entre nós. E se

quizer explicá-lo, só

poderá fazê-lo em

função política,

confrontando o mini-

mo das aspirações populares

com o que

o Estado Novo lhe concede, pelas

ins-

tituições de amparo que

criou, pelas

formas de assistência social que

inaugu-

rou, pelas previsões que pratica,

a todo

o momento, da nossa preparação

de hoje

para o amanhã

que virá.

O govêrno

sabe que

os rótulos nada

significam e que

as idéias sociais só se

atirmam realmente férteis quando

nas-

cidas de um desejo nacional. As demo-

cracias são acôrdos do povo

com o go-

vêrno. E é dêssse acordo que

vivemos,

debaixo de sua proteção que

traba-

lhamos.

Cônsultae o homem da rua, a mu-

lher do campo, o cavalheiro habituê

dos salões, se estão satisfeitos com o

Brasil, com a posição

do Brasil em face

de si mesmo e em face do mundo.

Perguntae ao homem do comércio, ao

lavrador da terra, ao operário das ci-

dades se está feliz com as leis que

o

govêrno lhe oferece, se tem algo a re-

clamar contra o estado geral

da vida,

de sua vida, em confronto com a sua

vida de anos atrás. Todos lhe respon-

derão pela

afirmativa, porque

só a se-

gurança permite tal resposta. De tal

modo a vida política

do país

se ajusta

à vida social, de tal maneira as duas

se influenciam mutuamente, numa tro-

ca de concessões socialisadoras, que

o

descontentamento não existe. Vozes iso-

ladas, porém, poderão

se erguer para

reclamar. Mas o seu eco se perderá

com

A ORDEM POLÍTICA E A EVOLUÇÃO SOCIAL 245

o próprio

sentido das palavras que pro-

nunciar, porque,

também elas, não en-

contram correspondência na realidade.

E é da realidade que

estamos vivendo,

nêste momento. Passou o tempo em que

acreditavamos nas fórmulas vasias de

sentido prático

e nos embalavamos com

as promessas

fulgurantes que

nos faziam.

O povo

sabe o que quer

e o govêrno

quer o

que o

povo deseja. Nossas leis

são recebidas com aplausos, nossas ini-

ciativas são prestigiadas pelo govêrno.

Govêrno e povo

se irmanam e os seus

entendimentos não se fazem mais à

sombra dos partidos políticos, detrato-

res da autoridade e fomentadores de

vaidades inconfessáveis.

Nossos interêsses são discutidos às

claras, porque

os nossos interêsses se

resumem num interesse comum: a fe-

licidade do Brasil para

o bem de todos.

A tranqüilidade de todos para

bene-

fício de cada um. Não há mais em jôgo

o jôgo

individual. Não há mais em

jôgo, o jôgo

dos grupos.

As possibili

dades são iguais porque

as oportuni-

dades também o são.

Quadros e

do Centro

iii

cos tum e s

do Sul

(Ccitagvazes)

MARQUES REBÊLO

QUANDO

Verde não saiu mais,

quando os meninos se espalha-

ram — Guilhermino César e

Francisco Inácio Peixoto foram para

Belo Horizonte estudar Direito, Ascâ-

nio Lopes foi para

um sanatório e dai

para o céu. Rosário Fusco foi ser cató-

lico no Rio, uns para

ali, outros para

acolá e alguns para

tão longe que

nun-

ca mais ninguém ouviu falar nêles —

quando tudo isto se deu, o correio de

Cataguazes teve o seu movimento dimi-

nuido de cincoenta por

cento e não du-

vido que

em virtude de tal baixa o di-

retor regional tenha mandado fazer sin-

dicâncias e inquéritos.

Da esfolada carteira do grupo

escolar,

o menino Rosário, que já

fazia os seus

poemas sucessivamente parecidos

com

os de Mário de Andrade, Ronald de

Carvalho, Omar Kaiam etc., escrevia

a Paulo Prado em termos tão livres e

íntimos que

deixava o circunspecto es-

critor um tanto alarmado, chegando

mesmo um dia a reclamar ao Antônio

de Alcântara Machado um certo "man-

de colaboração, seu burro", que

êle

achava um tanto desrespeitoso. Escre-

via ao Mário que

foi o mestre da tur-

minha, escrevia ao Oswald de Andra-

de que gostaria

de ser o mestre e a An-

tônio Alcântara, Sérgio Milliet, Pruden-

te de Morais Neto, Couto de Barros,

Menotti dei Picchia, Guilherme de Al-

meida, Cassiano Ricardo, Manuel Ban-

deira, ligava-se ao norte e ao sul, ao

Pará, Ceará, Baia, Paraná. Comuni-

cava-se com a França — Blaise Cendras,

Paul Morand, Max Jacob,

Guillaume

Apolinaire, — com a Argentina, onde

tinha uma namorada de nome Maria

Clemência que

lhe mandava linólios e

desenhos, com o Uruguai, o Perú. o

Chile.

Chico Peixoto, que

tinha uma Buick

verde, tinha amores epistolares com

poetisas da Bolívia. La Paz! La Pazl

— e os sinos de Cataguazes feriam o

coração do poetinha,

e as chuvas de

Cataguazes enchiam o poetinha prêso

em casa de fartas melancolias.

E chegavam cartas, jornais,

revistas,

relatórios, manifestos, livros, desenhos,

listas, originais, artigos, ensaios, muita

poesia, do Equador, do Paraguai, de

Portugal, Espanha, Cuba, Venezuela,

Costa Rica.

Os colecionadores de sêlos farejavam

a agência, procuravam

subornar os car-

teiros... Mas era impossível. O grupo

de "Verde"

não esperava carteiro em

casa. Presenciava a abertura das ma-

Ias. Pegava no enorme maço postal

e

ia para

o café repartir os troféos. Gui-

lhermino era elogiadíssimo na Colôm-

bia. A poetisa

boliviana mandava car-

?

QUADROS E COSTUMES DO CENTRO E DO SUL 247

tas em branco com a marca dos seus

lábios em rouge, e Peixotinho chorava

comovido! Rosário lia alto coisas que

não estavam nas cartas, segrêdos, inti-

midades com 06 grandes

homens que

não moravam em Cataguazes, desperta-

va invejas. £ tinha tardes melancólicas

— hoje so recebi doze cartas... Maria

Clemência só me mandou vinte dese

nhos esta semana... Prudentinho há

três dias que

não me escreve...

£ tudo era mocidade que

é mais

que beleza. £ tudo era

graça inteli-

gência nova, corações ardentes, entu-

siasmo, sangue, alegria. Mas a cidade

não levava a sério os seus meninos, in-

grata cidade

que ignorava onde mora a

beleza, o que

é a beleza. Talvez não

zombasse abertamente dêles porque

os

pulsos dos rapazes tinham bastante

energia para

não suportar zombarias,

mas se riam em casa, às escondidas, o

que dá

quasi na mesma. O

que a ci-

dade não sabe e que

Cataguazes só exis-

tiu quando

havia a Verde e o cinema

de Humberto Mauro. Só será lembra-

da como uma realidade quando

nos

tratados de literatura se falar em certo

interessantíssimo período

da nossa cul-

tura, que

se chamou o movimento mo-

dernista, ou quando

se falar nos pri-

mórdios de filmagens no Brasil. No

mais não existe, apesar do seu riso. £'

uma cidade como tantas cidades, à

beira dum rio como tantos rios, com

uma ponte

metálica como tantas ou

tras pontes

metálicas feitas pela

enge-

nharia estadual.

* # #

Estão abrindo a urna das Marias. O

que se entende

por urna das Marias é

a urna eleitoral correspondente mais

ou menos à letra M do eleitorado da

cidade, e como Maria é nome dos hu-

mildes — Maria da Silva, Maria de

Je-

sús, Maria das Dores, Maria das Dores

Correia, Maria da Fonseca, Maria de

Jesus Batista, Maria

José da Silva, Ma-

ria Rodrigues da Silva, Maria Teresa

de Jesús,

Maria Antônia da Concei-

ção... — e como um dos

partidos tira-

bram em cumprimentar na rua as co-

sinheiras e as copeiras, em abraçar as

lavadeiras e as engomadeiras, pois

acha

que isto é

que é fazer

política pelo

povo, a abertura da urna é esperada

com ansiedade pela população que

tem

comparecido diariamente à apuração,

acompanhando os resultados com a mes-

ma paixão

com que

acompanhasse um

campeonato esportivo no qual

a honra

da torcida estivesse empenhada.

O partido popular que

está sendo

derrotado por pequena

margem, conta

com uma vitória estrondosa na urna

das Marias, que

o rehabilite e o pre-

pare para uma vantagem mais ampla

quando se abrirem as urnas de Laran-

jal, onde o eleitorado é francamente

seu. Lá fora, na rua, há sujeitos com

foguetes na mão esperando o resulta-

do... Os ouvidos dos adversários que

agüentem.

Partido A, partido

B, partido

A, par-

tido B — os votos se equilibram... E

a assistência toma nota: treze a treze,

quatorze a treze,

quinze a treze,

quin-

ze a quatorze, quinze

a quinze...

O

ambiente está tenso de emoção. De re-

pente as Marias do

povo começam a

atraiçoar o partido

dos abraços na rua.

Começam e não param.

£ quando

can-

tam o último voto da urna, o partido

dos abraços foi derrotado por

uma di-

ferença de mais de duzentos votos. £s-

touram lá fora outros foguetes que

não

os do partido

dos abraços. Como doíam

fundo aquêles estouros! £ os derrotados

chefes saíam melancólicos da Prefeitu-

ra, onde se está processando

a apura-

ção. Vá se acreditar em

povo e em

abraços! — e

pensam com acre descren-

ça nas urnas de Laranjal, tanto mais

que os adversários andaram

por lá dis-

tribuindo um horror de sapatos e pe-

ças de algodãozinho...

• # *

Gordo, amável, sorridente, entusias-

mado, Antero Ribeiro é proprietário

das Oficinas Gráficas Ribeiro e do Bar

da lei teria, mas não há empreendimen-

to local que

não tenha o seu apôio

imediato.

Cataguazes é terra de calor forte.

Faltava uma sorveteria. Comprou uma

máquina elétrica e refrigerou a popu-

lação com o famoso picolé

Rui Barbosa.

# * *

A família Peixoto se mostra enver-

gonhadíssima do

pobre almôço

que pô-

de oferecer ao visitante ilustre.

248 CULTURA POLÍTICA

O cardápio compunha-se dos seguin-

tes pratos:

Sôpa de ervilhas, Peixe as-

sado, Empadas e Pastéis, Galinha assa-

da, Salada de alfaces e agrião, Carne re-

cheiada, Lombo de porco

com tutú de

feijão, Arroz de forno, Lingüiça e fa-

rofa de torresmo, Couve à mineira, An-

gú à mineira, Rósbife. Como sobreme-

sa havia: Doce de côco, Doce de leite,

Arroz doce, Gelatina, Goiabada cascão,

Melado e várias espécies de queijo.

Co-

mo bebidas: Vinhos portugueses,

bran-

cos e tintos, Champanhe francesa,

Águas minerais e café.

A família estava envergonhadíssima!

« * »

O café do falecido Aristides ficava

na praça

mais importante, daí sua fre-

guezia ser numerosa.

As moças chegavam, sentavam, pe-

d iam:

Sorvete de chocolate, seu Aristides.

Aristides era amável, tinha coisas en-

graçadas:

Sorvete acabou, mas tem guaraná

geladinho, muito diurético.

* « *

Nasceu a menina Bárbara. A cidade

se escandaliza, fala abertamente que

é

uma vergonha dar-se o nome de Bárba-

ra a uma inocente. Tanto nome bonito

— Marlene, Daisí, Marí, Jurací,

Adail,

Berenice, Nilze, Dulce, Ivone, Ivonete,

tantos, tantos! E não falam apenas, pas

sam a agir. Conversam com o pai, pro-

curando por

meios persuassórios

con-

vencê-lo de que

a criança será fatal-

mente infeliz, pois

terá a vergonha do

nome etc., (quem

diz isto é dona

Aglaia). Enviam cartas anônimas, ter-

minam por

falar com o vigário que

não

batise a menina, mas o vigário infeliz-

mente respeita muito o pai

do anjinho,

que é

pessoa potentada na cidade. Há

uma semana de agitação, ao fim da

qual o

pai vai ao cartório e registra a

menina — Bárbara. O povo

ainda fala

dois ou três dias, depois, cansado e der-

rotado, volta-se para

outro acontecimen

to não menos palpitante:

seu Talino

cuspiu na cara da mulher. Mas secre-

tamente prepara

um apelido para

a ino-

cente Bárbara.

• • •

José César

possue uma coisa rara era

Minas Gerais: bons dentes. Mas pos-

sue uma coisa que

é comum nos mí-

neiros: malícia.

Ei-lo à porta

da sua farmácia, sor-

rindo, maliciando, deixando a vida pas-

sar. Hoje é calma, sossegada, o filho

vai bem em Belo Horizonte, dona Isau-

ra não envelhece, é sempre a mesma

esposa dedicada, a mesma quituteira

de mão cheia. Mas houve tempo...

Comprou duzentos mil réis de merca-

doria fiados, botou nas costas de um

burro, bateu para

São Manuel, abriu

a botica. Isto é a vida. E sorri. O sol

de Cataguazes tem os mesmos belos fui-

erores do sol de outras terras. Está dou-

rando agora os altos da Vila Teresa.

José César sorri.

• • «

O batuque está lavrando para

as ban-

das do Meia Pataca:

"Botei meu cará no fôgo,

Maria pra

vigiar,

Maria mexeu, mexeu

Deixou o cará queimar".

O batuque está lavrando para

as ban-

das da Pedreira:

"As moças de Cataguaiz

Não andam de pé

no chão".

Não, Cataguazes! As tuas moças an*

dam de olhos no chão.

# # #

Quando o telegrama chegou

já pas-

sava de dez horas, e a notícia correu

como um raio pela

cidade: pelo

trem

do meio dia chegariam não sei quantos

turistas para

visitar Cataguazes.

O caso era êste: certa sociedade fi-

larmônica de Petrópolis, em cada seis

meses, fretava um trem especial, en-

chia-o com os seus sócios e sua banda

de música, enfeitava-o de bandeiras e

escudos e ia visitar uma cidade qual-

quer onde

passava o domingo, num am-

pio piquenique. Aquele semestre tocá-

ra a Cataguazes ser a cidade visitada.

A palavra

turista era inédita em Ca-

taguazes, e o povo gosou-a

orgulhosa-

mente. O dia era de intenso calor, mas

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CATAGUAZES — Praça Santa Rita

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QUADROS E COSTUMES DO CENTRO E DO SUL 249

na hora da chegada do trem a estação

estava cheia. Muito antes do trem apa-

recer já

se ouviam os foguetes. Quando

o trem chegou mais perto,

ouviu-se a

banda de música num festivo dobrado.

Quando o trem

parou foi um vivório

louco. Armou-se o cortêjo. A banda

de música petropolitana

ainda se fez

mais marcial, mais alegre. E foram su-

bindo para a

praça Rui Barbosa. Na

praça Rui Barbosa é

que fica o clube

de Cataguazes, por

cima do cinema, que

na verdade foi construído para

teatro

rio tempo que

não havia cinema. Hou-

ve a recepção. O presidente

da socie-

dade filarmônica, um cavalheiro gordo,

de guarda-pó

e boné, elogiou imensa-

mente Cataguazes antes de conhecê-la

e ofereceu uma corbeile de flôres pe-

tvopolitanas, que

simbolisava a amiza-

de destas duas cultas e progressistas

ci-

dades etc. e tal. O prefeito

infeliz-

mente não estava presente

— tinha ido

na véspera para

a sua fazenda nos ar-

rabaldes. Quem

agradeceu em nome da

cidade foi o Arruda, jornalista

local.

Abria as portas

de Cataguazes àquela

plêiade de amigos, e o coração dos ca-

taguazenses também estava aberto para

recebê-los como irmãos. O presidente

da sociedade estava comovido. Arruda

arrematou: "Cataguazes

é vossa, meus

irmãos!

E os turistas saíram para

visitar a

cidade. Infelizmente, Cataguazes não é

grande, e

pior do

que isto é uma das

cidades menos turísticas do Brasil. O

resultado foi que

em cinco minutos os

turistas tinham visto tudo. E as ruas

sem árvores, e o sol rachando, os tu-

listas suavam como bicas. Só havia um

remédio — voltar

para a

praça Rui Bar-

bosa onde algumas poucas

árvores da-

vam um pouco

de sombra. Foi lá que

eles desembrulharam os seus farnéis,

abriram suas garrafas

térmicas, mata-

ram a fome e a sede. Foi lá que

êles

ficaram o dia todo como um bando de

ovelhas cansadas até que

o trem se

formasse às seis horas para

levá-los de

volta para

a fresquíssima e pitoresca

Petrópolis.

E durante todo o dia o que

se deu

foi que

Cataguazes rodava à volta da

praça para ver os turistas. E na Vila

Teresa, no bairro do hospital, na estra-

da de Sinibú, havia diálogos assim:

Já foi ver os turistas?

já. .. O V.' 3

Eu fui ver os turistas agora.

Eu vou mais tarde. Deixe passar

o sol.

No céu não há estréias. Vou esten-

d ido no fundo da canoa, sozinho, ao

sabor da correnteza, que

é fraca. Por

vêses, piados

extranhos cortam o negror

da noite, e veem dos bambuais penosos

gemidos. Há o coaxar das rãs. O bater

leve das águas contra alguma pedra

escondida, o assobio dos morcegos cru-

zando rápidos sôbre a canoa.

No céu não há estrelas. Faz um pou-

co de frio. Agasalho-me no cobertor.

E a canoa continúa devagar ao sabor

das águas. Agora já

estou longe da

ponte. E as luzes da cidade, nas mar-

gens, são como círios

que ladeassem um

esquife.

Canta o poeta paulista:

"Ouero ir ver de

forde verde

os verdes

de Cataguazes".

E' a vida que

responde:

"Partiram, não estão mais lá!"

Quadros e costumes do Nordeste

iii

GRACILIANO RAMOS

NA

CIDADEZINHA de cinco mil

habitantes, elevados a dez mil pelo

bairrismo, o caixeiro da farmácia

publica experiências de boas letras no

semanário independente e noticioso, que

tira quinhentos

números e, por

ser pou-

co noticioso e muito independente, já

rendeu sérios desgostos ao diretor. Mo-

léstias, remédios nauseabundos, suspen

são da fôlha, que,

depois de quinze

dias, três semanas, um mês, volta a dr-

cular com mais notícias e menos inde-

pendência. Veem daí as relações do

ajudante da farmácia com o diretor da

íôlha. Há nela uma seção literária — e

foi isto que

seduziu o rapaz, homem de

raras ocupações e desejos imoderados.

Vira êle em jornal grande

uma linha

preciosa:

"As ruas fustigadas

por vio-

lentíssimo temporal". Folheara atento o

dicionário pequeno

e ficara surpreen-

dido. Ora muito bem. "Fustigadas

por

violentíssimo temporal". Que

beleza!

Nunca ninguém na cidadezinha de cinco

mil habitantes, elevados a dez mil pelo

bairrismo, havia composto frase tão so-

nora e difícil. O vocabulário da povoa-

ção era minguado, e a sintaxe variava

de indivíduo para

indivíduo. A filha

do telegrafista cantava, desafinada e sen

timental: "A

brisa corre de manso".

Mas a professora

vizinha achava que,

sendo brisa uma palavra

feminina, de-

via emendar-se a cantiga: "A

brisa corre

de mansa '.

O moço da farmácia decidira servir-se

dos temporais e evitar as brisas. Redi-

gira e

publicara na fôlha independente

uma coluna verbosa, mas com tanta in-

felicidade que

o promotor,

hábil em

poesia e

gramática, afirmara nas bar-

bearias que

aquilo era de Vitor Hugo.

Intimado a exibir prova,

o bacharel

respondera que

não se lembrava da pas-

sagem plagiada,

mas tinha certeza de

que havia furto. O autor, brioso, lera to-

dos os livros de Vitor Hugo, alcançara a

absolvição e, dono dessa cultura razoável,

xingara o promotor

em becos e esquinas.

Assim teve principio

a carreira li te-

rária do ajudante da farmácia. Adquiriu

diversos volumes, encheu-se de regras,

estudou metrificação e leu jornais.

Deseja transpor os limites da cidade-

zinha, mas por

enquanto ainda é um

escritor municipal. Capricha na orga-

nização de contos, manda-os a revistas,

aos concursos que

se fazem na cidade

grande, sonha com

prêmios de vulto,

com ilustrações vivas, em tricromia. Es-

fôrço vão. Ninguém lá fora o enxerga.

Zanga-se, julga-se

vítima de injustiça.

Depois desanima. As histórias arranja-

das pacientemente,

desmanchadas, refei-

tas, são ruins. Porque? Não há ali uma

criatura que

lhe possa

dar explicações.

Aprende só — e isto é doloroso. Neces

sário enorme trabalho para

compreen-

der, em seguida esquecer, recomeçar,

orientar-se de novo. Evidentemente as

QUADROS E COSTUMES DO NORDESTE 251

lições vistas nos livros estavam erradas.

Volta, procura

lições diferentes, que

abandona. Avança em alguns pontos,

em outros permanece

ignorante. Não

dispensa os temporais que

fustigam as

ruas.

Bem. Agora é capaz de utilizar brisas

e temporais, certo de que

a combinação

está sofrível. A diretora do grupo

esco

lar pediu-lhe

discursos para

os meninos

que tinham findo o curso

primário. Fez

uns quatro, que

foram preteridos pelos

do juiz

de direito, um maluco. Está

melhorando, sem dúvida. Os chavões de

juiz de direito foram recebidos com

muito elogio, sinal de que

não presta-

vam. Bobagens de arrepiar.

Provavelmente os temporais que

açoi-

tam as ruas também não valem nada.

Se valessem, os contos, direitinhos na

conjugação e na concordância, teriam

sido publicados,

com ilustrações de San-

ta Rosa.

Continua a trabalhar, só, adiantando-

se em alguns lugares, emperrando em

outros. Tem um bando de nomes na ca-

beça, mas emprega-os sem discernimento

e deforma-os na pronúncia.

Envergonha-

se de usá-los em conversa, porque

ali não

os conhecem. Certamente o consideram

pedante quando receoso, larga uma da-

quelas palavras longas

que viu no ro-

mance cacete. Cacete, pois

não, embora

lhe falte coragem para

dizer isso. Desço-

briu num rodapé louvores excessivos ao

romance e ficou grogue,

matutando, co-

mo quem

decifra charada. Precisa reler

aquela droga, bocejar em cima dela.

Dirá que

é magnífica, está visto. Presu-

mirão que

êle sabe julgar.

Ainda nSo

sabe, mas saberá.

Tem armazenado noções valiosas, dan-

do por paus

e por pedras,

vencendo

crises de apatia. Ultimamente conseguiu

perceber defeitos

graves nuns versos e

isto o alegrou. Assevera interiormente os

seus progressos.

Pensa em sujeitos ani-

mosos que

subiram sozinhos. Como se

chamava o carvoeiro que

chegou a pre-

sidente do Estados Unidos? Lincoln ou

Washington? Um dos dois.

Efetivamente os temporais são chin-

frins: arruinaram-lhe os contos. Os tem-

porais e as brisas. E' bom livrar-se des-

sa verbiagem. Mas habituou-se. Que

adotará para

substituí-la? Impossível

achar um conselho. Irá caminhando às

apalpadelas, batendo nas paredes.

E tal-

vez acerte. Acertará, sem dúvida. Den-

tro de vinte anos terá os cabelos brancos

e os joelhos

duros, morderá com dentes

postiços e lerá com óculos. Permanecerá

solteiro e abstêmio. Mas poderá juntar

palavras, modificá-las, envernizá-las. Será

um técnico e assinará coisas notáveis.

Choca projetos

doidos. Não os confessa

por temer

que o metam a ridículo. Vinte

anos, trinta anos quando

muito.

— Vejam o Lincoln.

opovo

brasileiro através do folclore

iii

BAStLlO DE MAGALHÃES

Membro do Instituto Histórico e Geográfico Bra-

sileiro. Professor catedrático do Instituto

de Educarãoj

CUMPRE-NOS

ainda esclarecer alguns

aspectos do folclore místico-religio-

so, de que

sumariamente tratámos

nos artigos anteriores. Um dêles é o que

se refere aos santos erigidos pelo

nosso

povo à categoria de

patronos de várias

modalidades da nossa existência objeti-

va ou de advogados especiais contra so-

frimentos físicos, animais venonosos e ca-

lamidades cósmicas. Embora essa cren-

ça nos tenha vindo principalmente

de

Portugal, ela, como se pode

ver em

Mal ver t, Ciência e religião (pág. 208),

desde muito que

se generalizára

na Eu-

ropa. Entre êsses patronos

celestiais,

existe um, que

não citámos no artigo

antecedente: é São Julião,

a quem

Wal-

ter Scott, em seu admirável Quentin

Durward, atribui o encargo de prote-

ger os viajantes. Além disso, nos

países

europeus de mais intensa atividade mi-

litar sempre se acreditou que

São Mar-

cos livra de arcabuzamento ou fuzila-

mento os seus devotos e que

São Jorge

é quem

dá coragem ao soldado para

combater os inimigos. Consigne-se tam-

bem que

a crença em São Brás, como

patrono contra as doenças da

garganta,

é correntia na Espanha, segundo Ro-

driguez Marin, Cantos populares es-

panfioles (vol. I,

pág. 444). Que de

Portugal foi que

nos veiu a fé em San-

ta Apolônia, como advogada contra as

dores de dentes, é o que

se infere do

que diz o erudito Leite de Vasconcelos,

em suas Tradições populares

de Por-

lugal (pág.

20), José

da Alencar, em

O ermitão da Glória, deixa bem cia-

ro não se tratar do arcanjo São Miguel,

potestado da côrte celestial,

porém sim

de certo mortal canonizado, um dos pa-

tronos que

mencionámos no artigo do

mês próximo-passado.

Eis o que

diz na

sua sobredita novela o grande roman

cisca brasileiro: — "No

risco de perder

a mão, e talvez a vida, valeu-se de São

Miguel-dos-Santos, advogado contra os

cancros e tumores, e prometeu-lhe dar

para sua festa o

peso em

prata do mem-

bro enfermo". Daniel de Gouveia, fi-

nalmente, em seu Folk-lore brasileiro

(pág. 3^), conta

que, tendo de através-

sar um capinzal, o nosso matuto, em-

bora leve ao pescoço,

como patuá

con-

tra os répteis venenosos, um dente de

jacaré, reza a seguinte oração: —

"São

Bento, água-benta, Jesús-Cristo

no al-

tar! Arredai todo bicho feroz, que

esti-

ver no caminho, que

eu quero passar!"

E acrescenta que,

si os nossos sertane-

jos

"encontrarem uma cobra, no mo-

mento em que

nada tenham para

ma-

ta-la, servem-se de um lenço, em que

dão ires nós, dizendo: — Preso por

or~

dem de São Bento!'*

Vem a ponto

consignarmos aqui não

ser êsse caso único de mixtum compo-

situm da dupla e simultânea influên-

O POVO BRASILEIRO ATRAVÉS DO FOLCLORE 253

cia exercida no espírito dos nossos pa-

trícios do hinterland pelo

fetichismo e

pelo cristianismo. Dessa miscigenação

místico-religiosa, tão profundamente

es-

tudada por

Nina Rodrigues com rela-

ção ao elemento africano introduzido

110 Brasil, há frisante exemplo num dos

melhores romances de Bernardo Gui-

marães. Assim, Gonçalo, o protagonis-

ta do Ermitão de Muquém, conduzia

à cinta certa mandinga ou caborge,

amuleto poderoso, que

lhe dera ura

preto velho, feiticeiro de fama; e do

pescoço lhe

pendia, em relicário de ou-

10, uma imagem de Nossa Senhora da

Abadia, dádiva materna. E êle, "todas

as vêzes que

se achava em apêrtos, com

uma das mãos apalpava o cinturão, em

que trazia o talismã da superstição afri-

cana, e com a outra levava aos lábios

o lelicário, confundindo desta maneira,

em sua tosca imaginação, o culto da

mãe de Deus com uma grosseira

fei-

ticária".

Já se nos ensejou dizer

que a dois

santos portugueses,

São Gonçalo-de-

Amaranie e Santo Antônio-de-Lisboa, è

que se atribui, além e aquém-Atlântico,

a meritória missão de casamenteiros, o

primeiro como

patrono das velhas e o

segundo como advogado das moças. Não

foi somente este que

mereceu, a mais

de um aspecto, o tradicional carinho do

nosso povo, pois

aquele também achou

benévola acolhida 110 coracão dos nos-

sos sertanejos.

Antes de tratarmos do grande

tauma-

turgo lisboeta, cujo trânsito para

a gló-

lia ocorreu na cidade italiana de Pá-

dua, e que

merece mais longas refe-

rências, pelo

muito que

influiu em nos

sa história e em nosso folclore, passa

lemos em rápida revista o culto po

pular prestado no Brasil a São Gonça-

lo-de-Amarante.

Oriundo de família nobre, nasceu na

aldeia de Arriconha, do arcebispado de

Braga. A princípio padre

secular, pe

regrinou pela

Terra-Santa e esteve em

Roma; por

fim, professou

na ordem do-

minicana; e, como se infere do "Fios

sanetorum'' e do que

escreveram sôbre

êle frei Luiz de Sousa e Silva Pinto

(este às

págs. 21-26 de seus Santos

portugueses, ed. de 1895), além de ha-

ver projetado

e levado a cabo a ponto

cie Amarante (topónimo que

se lhe jun-

tou ao nome de batismo), andou por

muito tempo a pregar pelas povoações

rurais, pedindo

esmola para

os mise-

ráveis e esforçando-se por

dar lenitivo

a todos os sofrimentos, notadamente os

dos enfermos e dos velhos. Disso resul-

tou, como é óbvio, o haver-se tornado

patrono do casamento das mulheres de

idade avançada. A lenda lusitana, mi-

grada para o Brasil, representa-o tam-

hém como violeiro e dansador, acres-

rentando, todavia, que, para

se peni-

tenciar desses pecadilhos,

as solas dos

seus sapatos traziam pregos pontudos,

que lhe feriam as

plantas dos

pés.

Todas as circunstâncias acima refe

ridas constam das trovas que

até agora

são cantadas em vários pontos

do inte-

rior do nosso país,

em honra do bene-

mérito santo português.

Note-se que

o

nosso povo, que

conserva imutável a

data da festa de Santo Antônio-de-Lis-

boa, olvidou o dia em que

a Igreja co-

memora o trânsito de São Gonçalo-de-

Amarante, 10 de janeiro,

como se pode

ver na monumental obra do padre

Paul

Guérin, Vies des saints (vol.

I, pág.

260 da 6.a ed.). A tresena de Santo An-

tônio-de-Lisboa realiza-se sempre de 1

a 13 de Junho,

ao passo que

a home-

nagem rendida pelos

nossos sertanejos

ao referido dominicano luso é a geral*

mente celebrada em um domingo da se

gunda quinzena de Setembro.

A quem quiser

inteirar-se pormeno-

rizadamente das singularidades dêsse

nosso culto tradicional recomendamos

dois trabalhos ainda recentes. O pri

meiro é o capítulo, tão curioso quanto

cheio de louçânias de estilo, intitulado

"A dansa de São Gonçalo" (págs.

167-

176), que

se encontra no livro de con

tos (publicação póstuma)

de Antônio

cie Alcântara Machado, tão cedo arre

batado pela

morte à fecunda carreira

intelectual que

havia brilhantemente

encetado. O segundo é um mais de

tençoso estudo (magnificamente ilus-

trado), devido a Marciano dos Santos,

"A dansa de São Gonçalo", inserto em

1937 no vol. XXXIII da "Revista

do

Arquivo Municipal de São Paulo"

(págs. 85-116). A famosa festividade

popular foi outrora descrita

por frei

Miguel do Sacramento Lopes Gama, em

seu célebre Carapuceiro (1839),

e à

mesma fizeram referências não despi-

ciendas Gilberto Freire, Edmundo

Krug, Paulo Cursino de Moura e ou-

254 CULTURA POLÍTICA

tros cultores das nossas tradições.

Em duas quadras, que

evidentemente

vieram de além-Atlântico para

o Bra

sfl, percebe-se

o sainete lusitano:

"Viva e reviva

São Goncalinho!.*

Dai-me, meu santo.

Bom maridinho;

Seja bonitinho

£ me queira

bem;

Aquilo que

é nosso

Não dê a ninguém!"

A trova em que

se manifesta a fun-

cão de mais relêvo, atribuída ao ca-

nonizado dominicano luso, quasi

não

variou na sua migração para

o Brasil:

"São Gonçalo-de-Amarante.

Casamenteiro das velhas,

Por que

não casais as moças?

Que mal vos fizeram elas?"

Alberto Pimentel, em "O

livro das

lágrimas" (Lisboa,

1874), dá a forma

que consta da

poesia popular lusitana:

São Gonçalo d'Amarante,

Casamenteiro das velhas.

Por que

não casais as novas?

Que mal vos fizeram elas?"

Pelo fato de ser comumente de ma

deira a sua imagem ou de trazer êle,

às vezes, uma viola sobraçada, a isso se

reporta uma das quadras que

lhe são

dirigidas pelos

seus festejadores:

São Gonçalo-de-Amarante,

Que és feito de nó de

pinho,

Dá-me fôrça nas canelas,

Como porco

no focinhoí"

E' indubitavelmente portuguesa, e

consigna o haver o santo dominicano

morado à beira do Tâmega, outra tro-

va bastante curiosa:

"São Gonçalo caiu na água,

Por morar perto do rio.

O' santo, dou-te minh'alma,

Para que

eu não morra de frio!"

Há, entretanto, nada menos de qua-

tro silvas em que

os devotos do casa-

menteiro das velhas não obedeceram ao

rigor das rimas, preferindo

as simples

toantes, a exemplo do que geralmente

se encontra na poesia popular

caste

lhana.

A primeira,

si confirma que

o tauma-

turgo de Arriconha visitou a Cidade-

Eterna, exagera a sua capacidade casa

menteira. ao ponto

de promover as

n ripei as do próprio,

seu compatrfdo, fa-

tecido era Pádua:

"São Gonçalo

já foi

padre

Em uma igreja de Roma,

Onde êle fez casar

O nosso bom Santo Antônio".

A segunda comprova a penitência

do

calçado cheio de pregos,

a que já

fize-

mos alusão, e põe

de manifesto que

o

dominicano altarizado é também patro-

no das parturientes:

"São Gonçalo tem rasgado

Sola dura de sapato,

Somente por

visitar

Mulheres que

estão de parto".

A terceira indica ter sido êle um de-

fensor dos vinhêdos na terra de Afonso

Henriques, juntando-se, assim, a dois

outros santos que,

conforme Paulo de

Morais ("Novo

manual de agricultura

prática, pág. 769), lá presidem à vin-

dima. e à vinificação:

"Dia de São Mateus,

Vindimam os sisudos,

Semeiam os sandeus".

"Por São Martinho,

Prova teu vinho".

A sobredita terceira silva, até agora

cantada 110 Brasil, é a seguinte:

"Si fôres a São Gonçalo,

Trazei-me um cacho de uvas;

Si o santo ficar com raiva,

Dizei que já

estão maduras".

A quarta patenteia a confusão

que a

fantasia de lusos e brasileiros es tabele-

ceu entre os dois santos, o de Lisboa e

o de Arriconha, originado ainda êste

último à categoria de patrono

contra

as injúrias ou calúnias proferidas por

lábios femininos:

O POVO BRASILEIRO ATRAVÉS DO FOLCLORE 2SS

"São Gonçalo é santo bom,

Pois livrou o pai

da fôrca.

Livrai-me, santo, livrai-me

Das mulheres de má bôcal"

Como se pode

ver no desenvolvido

estudo feito por

Marciano dos San-

tos (cumpre-nos ponderar que prefe-

rimos a certas expressões das suas tro-

vas algumas variantes ouvidas por

nós

em Minas), a festividade popular,

com

que se celebra ainda em nosso

país o

casamenteiro das velhas, termina pela

inesperada referência a outro mortal

canonizado, São Lourenço, tão querido

na terra ibérica, onde, em homenagem

ao mesmo, tem a fôrma de uma gré-

lha o célebre Escoriai, mandado erguer

por Felipe II

para comemorar a vitó-

ria de São-Quintino, Com efeito, a

dansa em louvor de São Gonçalo ter-

mina por

uma ceremônia de agitação

de lenços, como que para

um adeus, en-

quanto os violeiros e o côro clunagitan-

te entoam o seguinte:

"Vamos dar a despedida

Vamos dar a despedida

Em louvor de São Lourenço

Em louvor de São Lourenço.

Em louvor de São Lourenço,

Em louvor de São Lourenço,

Todos guardem

os seus lenços

Todos guardem

os seus lenços".

Em suma: do nosso folclore místico-

religioso, uma das tradições mais inte-

ressantes, por patentear a influência dos

taumaturgos lusitanos em nossa terra,

é, sem dúvida alguma, a antiga e curió-

sa "Dansa

de São Gonçalo".

Intérpretes da vida social brasileira

iii

JOSE'

Maria da Silva Paranhos, Ba-

rão do Rio Branco, nasceu no Rio

de Janeiro

a 2 de Abril de 1845, na

Travessa do Senado n.° 8, hoje rua 20

de Abril. Era filho do grande

estadista

do mesmo nome e que

teve o título de

Visconde do Rio Branco.

Fez no Colégio Pedro II, em seis anos,

o curso de humanidades que

então era

feito em sete anos. E transferindo-se

para São Paulo, formou-se na célebre

Faculdade.

Terminado o curso, foi professor

in-

terino de História e Corografia do Bra-

fiil no Colégio Pedro II e depois foi

nomeado promotor público

na cornar-

ca de Nova Friburgo, na então provin-

cia do Rio de Janeiro,

cargo que

exer-

ceu por pouco

tempo.

Filho de quem

era, não foi atraído

pela política, mas naturalmente levado

para ela. E assim foi eleito deputado

geral pela província de Mato Grosso nas

legislaturas de 1869 a 1872 e de 1872

a 1875. Sua atividade parlamentar foi

destacada, e tendo brilhado também co-

mo jornalista

nas páginas

de "A

Na-

ção" abandonou

jornalismo e política

porque, desgostoso da

política partidá-

ria, preferiu

trocar a sua posição por

um lugar no corpo consular.

^Liverpool foi o primeiro consulado

onde trabalhou e depois da proclama-

ção da República até 1892,

José Maria

da Silva Paranhos ocupou o lugar de

superintendente geral da imigração.

Em 1894 foi nomeado ministro pleni-

potenciário e enviado extraordinário do

Brasil perante

o governo

dos Estados

Unidos da América, no processo

de ar-

bitragem da secular questão

de limites

entre o Brasil e a Argentina. Data real-

mente daí a grande

carreira do Barão

do Rio Branco, figura ímpar na nossa

diplomacia, que

soube a rasgos de ta-

lento, honestidade e habilidade fixar os

verdadeiros limites do Brasil, ampliar

o seu território, elevar aos olhos do

mundo a soberania brasileira, fazer vol-

tar para

a América os olhos do Velho

Mundo. A decisão do presidente Cie-

veland, dando ganho

de causa ao Brasil

no território das Missões, foi o seu pri-

meiro grande triunfo diplomático.

Mais uma vitória logrou êle alcan-

çar logo depois,

quando, perante o

go-

vêrno da Suíça, teve a incumbência de

advogar os direitos do Brasil na pen-

dência de limites com a Guiana Fran-

tesa. Em 1902 foi levado ao cargo de

Ministro das Relações Exteriores, e a

sua trajetória nesse pôsto

foi de um

brilho estelai, que

só a morte apagou,

pois o Barão do Rio Branco morreu

quando ainda exercia as funções de Mi-

nistro de Estado, em 1912, atravessando

portanto quatro períodos presidenciais—

o de Rodrigues Alves, o de Afonso

Pena, o de Nilo Peçanha e o do Mare-

chal Hermes da Fonseca.

Na qualidade de Ministro, resolveu a

intrincada questão do Acre, asseg^uran-

do ao Brasil, pelo

Tratado de Petrópo-

lis, celebrado a 17 de Novembro de 1903

entre o Brasil e a Bolívia, um novo,

imenso e produtivo território,

que ex-

cede em superfície a vários Estados da

INTÉRPRETES DA VIDA SOCIAL BRASILEIRA 257

União. Conseguiu do Vaticano a cria-

•ção do primeiro

cardinalato sul-ameri-

cano para

o Arcebispo do Rio de Ja-

neiro. Conseguiu que

fôsse realizada no

Rio de Janeiro

a 3-a Conferência In-

ternacional Americana. Conseguiu a

participação conspícua do Brasil na

Conferência da Paz, em Haya. Firmou

o Tratado de condomínio da lagôa Mi-

rim do rio Jaguarão,

afirmando à Rc-

pública do Uruguai e ao mundo a

per-

duração das generosas

tradições da po-

lítica brasileira no continente.

Figura singular de homem, amante

da bôa mesa, inseparável do charuto,

bonacheirão, distraído, (na

sua mesa de

trabalho, que

era um mundo desorde-

nado de papéis,

foram encontrados de-

pois da sua morte mais de dez relógios

perdidos no meio da sua

papelada), era

principalmente despido de todas as vai-

dades, e recusou sempre todas as pro-

postas que lhe fizeram

para que che-

gasse à Presidente da República.

Rio Branco, que

foi presidente

do

Instituto Histórico e Geográfico e mem-

bro da Academia Brasileira de Letras,

escreveu: Episódios da guerra

do Pr a-

ta, 1825-1828, trabalho que

saiu pri-

meiramente em uma revista mensal do

Instituto Científico de SSo Paulo; um

esbôço biográfico do general José

de

Abreu, Barão do Serro Largo, trabalho

publicado na revista do Instituto His-

tórico; anotações copiosíssimas à obra

de Schneider A guerra

da tríplice

aliança, que

foram traduzidas do ale-

mão por

Manuel Tomaz Alves Noguei-

ra; inúmeras notas em francês sôbre o

Brasil e o nosso café, divulgadas em

1884 quando

representava o país

na

Exposição de Petersburgo; a parte

his-

tórica, também escrita em francês e de

notável valor de síntese, na obra Le

Brésil em 1889, organizada pelo

Sindi-

cato Franco-Brasileiro na Exposição

Universal de Paris, realizada naquela

data: umas Efemérides brasileiras, que

apareceram primeiro

no "Jornal

do Co-

mércio" do Rio de Janeiro;

e as pre-

ciosas memórias apresentadas nos Es-

tados Unidos e na Suíça para

defesa dos

nossos direitos nas questões

das Missões

e do Amapá, sendo que

somente estas

últimas formam um livro de 840 pá-

ginas, repletas de seríssima documen-

tação e de uma segurança de conclusões

simplesmente notável, porque

como cs-

critor Rio Branco, antes de tudo, era

de uma grande

clareza, de uma grande

correção e de uma grande

limpidez de

estilo.

Em 3

de Fevereiro de 1912 sofreu o

Barão do Rio Branco, uma síncope de-

pois do

jantar, e não refeito dela expi-

rou a 10 do mesmo mês, num dia de

carnaval. O carnaval foi transferido pa-

ra que

o Brasil envolto em imenso

luto, pudesse

acompanhar até o cemi-

tério do Cajú o corpo daquêle que

em

vida fôra o maior defensor dos seus

direitos.

Páginas do passado

brasileiro

iii

Entre os intérpretes da vida citadina fluminense, poucos escritores como

França Júnior puderam fixá-la com tanta simplicidade, tanta segurança e

tanto bom humor. A pena

de França Júnior é ágil e a influência que

êle exerceu na crônica do jornalismo carioca é evidente até os nossos dias.

Nos seus famosos

"Folhetins" semanais,

publicados no "Globo

Ilustrado",

no "Correio

Mercantilno "O

Pais", na "Gazeta

de Noticias", êle foi o

caricaturista exímio das vidas e dos costumes da cidade do Rio de Janeiro

no último quartel

do século XIX, exatamente quando

as primeiras ma-

nifestações ao progresso urbano se faziam sentir com o aparecimento dos

bondes, do gás,

das grandes emprêsas comerciais, das estradas de

ferro etc.

Escolhendo entre os inúmeros "Folhetins"

de França Júnior o que êle dedi-

cou às organizações ministeriais, lembramos que

os tormentos de uma

política de vaudeville dominavam a côrte, e iriam,

preparando o caminho

para a República, tornar a República, como tornou, vitima da mesma

insegurança aue acabou por abalar o Império,

falsa política, nefasta po-

litica que felizmente terminou na aurora do Estado Novo.

#/ j.

POLÍTICA é uma das mais

A sérias preocupações do Brasil,

' * e especialmente desta mui leal

e heróica cidade do Rio de Janeiro,

onde a vida pública e

privada dos ho-

mens de Estado é discutida em altas

vozes nos botequins, confeitarias, lojas

de charutos, armarinhos, praças e

pon-

tos de bonde.

A julgar pela parte ativa

que cada

cidadão toma nos negócios oficiais, êste

país deveria ser uma república de anjos,

Infelizmente assim nSo é.

Os tais anjos brincam por

dá cá aque-

la palha, e os negócios conservam-se

sempre no mesmo estado.

Por que

brigam? Pelas idéias, pelos

princípios.

E quereis

saber, como entre nós se

briga pelos princípios?

E' assim:

O Machado Pereira é conservador.

Está enganado; é liberal.

Nunca foi liberal; votou sempre

com os vermelhos.

Na última eleição votou conosco.

Êle é tão conservador, como o Ar-

ruda.

Quem? O Arruda da Guaratiba?

Sim, senhor.

Êste era liberal, foi demitido

por

prevaricador...

E' verdade.

-- Eu conheço-o como as

palmas de

minhas mãos. Depois passou-se para

os conservadores, quando subiu o

ga-

binete Quintanilha...

Não foi no

gabinete Quintanilha

que êle virou casaca, mas sim no Minis-

tério do Luiz Pereira.

Ora, meu caro amigo, outro ofício.

No ministério do Luiz Pereira èle já

era republicano, e escrevia da "Espada

de Damocles", um jornal democrata

que

aqui houve, aquelas célebres cartas con-

tra o chefe de Estado assinadas "A

sen-

tinela".

Por sinal

que o

govêrno, para ca-

lar a bôca do tal marreco, nomeou-o

cônsul para a Suíça.

PAGINAS DO PASSADO BRASILEIRO 259

E fez mais ainda — deu-lhe o tí-

tulo de conselho.

Foi uma grande bandalheira!

Mas era preciso.

Êsses conservadores foram sempre

assim.

E os liberais são ainda piores.

Sabe o que

mais, meu amigo, fique

com as suas idéias, que

eu ficarei com

as minhas.

E eis aí o que

são as idéias e os prin-

cipios de que

falam quasi

todos.

E pelas

idéias e pelos princípios

co-

metem-se injustiças, torce-se a lógica,

abocanham-se reputações e quebram-se

cabeças às portas

das igrejas.

Êste exórdio, com tiradas cheirando

a artigo de fundo de jornal

de Oposi-

ção, foi-me sugerido

pelo papel impor-

tante que

representa a política

em to-

dos os atos da nossa vida.

Quem quiser ver o Rio de

Janeiro

com febre e perder

a cabeça, basta di-

zer-lhe ao ouvido:

Caiu o ministério!

A notícia circula de bôca em bôca,

sai do Castelões, entra no Bernardo,

para na

"Gazeta de Notícias", volta

para o Farani, estaca nos

pontos dos

bondes, embarca nos ditos e percorre

um por

um todos os arrabaldes.

No dia seguinte não fica ninguém

em casa.

A rua do Ouvidor é pequena para

conter os curiosos.

Formam-se grupos às

portas das lo-

jas, pelas esquinas, e em cada semblan-

te lê-se o seguinte ponto

de interro-

gação:

Quem foi chamado?

Começam as versões:

Já sei quem

é o organizador.

Quem é?

O Soares da Silva.

Ora, oral

Acabo de estar agora mesmo

com êle.

Se não estás caçoando conosco, es-

tás mentindo.

Quanto apostas?

Mas como é isto possível,

se o

Soares partiu

ontem com a família para

Teresópolis?

E' verdade; porém ontem mesmo

recebeu o telegrama e desce hoje.

Aí vem o Goulart.

Homem, o Goulart deve estar bem

informado.

Oli, Goulart, quem

foi o chamado?

O Silveira de Assunção.

O que

estás dizendo?!

A pura

verdade.

Com os diabos, por

essa não es-

perava eu!

Estou aqui, estou demitido.

E dois.

Mas isto é certo?

E até já

está organizado o minis-

tério.

Quem ficou na Fazenda?

O Alberto da Rocha.

E na Justiça?

O Brandão. Para a Guerra entrou

o Felício; para

a Agricultura o barão

de Pitanga Vermelha.

O barão de Pitanga Vermelha?!

Sim, pois

não o conheces?! E* o

Ladislau de Medeiros.

Ah! já

sei.

Para estrangeiros o visconde de Pe-

dregulhos; para

a pasta

do Império o

Serzedêlo e para

a da Marinha o Lucas

Viriato.

Quem é o Lucas Viriato?

Não o conheço.

Nem eu.

O que

é êle?

Não sei, mas dizem-me que

é ra-

paz muito inteligente e muito honesto.

Bom dia, meus senhores.

Ora viva, senhor Comendador.

—• Então, já

sabem?

—• Acabamos de saber agora mesmo.

O presidente

do conselho é o Silveira

de Assunção.

-- Não há tal; foi chamado, é verda-

de, mas não aceitou.

Mas senhor comendador, eu sei de

fonte limpa...

Também eu sei que

o homem es-

teve no Paço cinco horas a conversar

com o rei, e que

de lá saiu à meia noi-

te, sem se haver decidido coisa alguma.

Ora aí está quem

nos vai dar no-

tícias frescas.

Quem é?

O conselheiro Anastácio, que

ali

vem.

Chama-o.

Senhor conselheiro, satisfaça-nos a

curiosidade; quem é o homem

que vai-

nos governar?

Pois ainda não sabem?

São tantas as versões...

Pensei que

estivessem mais adian»

tados. Ora ouçam lá; presidente

do

200 CULTURA POLÍTICA

conselho, visconde da Pedra Funda; mi-

nistro do Império, André Gonzaga; da

Marinha, Bento Antônio de Campos...

— Muito bem, muito bem! Ora gra-

ças a Deus

que já se fez alguma coisa

que vale a

pena.

Ministra da Fazenda, barão do

Bico de Papagaio.

Para a Fazenda?!

Sim senhor.

Porém êste homem nunca deu pro-

vas de si... E' pouco

conhecido... As

circunstâncias em que

se acha o país...

Não diga isto. E aquêle aparte que

•êle deu ao Ramiro na questão

bancária?

Não me lembro.

Pudera não! O senhor não acom-

panha os debates

parlamentares, não es-

tá enfronhado nos negócios do país!

—- Vamos adiante.

Ministro da Guerra, Antônio Hor-

ta

Magnífico!

Da Agricultura, João

Cesário; fica

na pasta

de Estrangeiros o presidente

do Conselho.

Antes êle ficasse na da Fazenda.

Assim se tinha combinado a prin-

cípio; porém

depois reconheceu-se que

êle andaria melhor como ministro de

estrangeiros, porque já

esteve na Eu-

ropa e fala muito bem diversas línguas.

Após o conselheiro aparece um ba-

rão, sucede a êste um jornalista,

veem

depois diversos empregados públicos,

e

cada qual

trás o seu ministério em um

pedacinho de

papel, dizendo: Êste é o

^verdadeiro.

Os políticos

da rua do Ouvidor são

dignos de sérios estudos.

Em primeiro

lugar figura o político

bem informado. E' aquêle que

sabe

de tudo. Exemplo:

Êste ministério devia infalivelmen-

te cair.

Está visto; êle não podia

ficar go-

vernando o país

eternamente.

Há muito tempo que

os sujeitos

andavam brigados; eu já

fui oficial de

gabinete e sei o

que são essas coisas.

Além disto pessoa

fidedigna asseverou-

me que

o Pereira nunca mais poude

tragar o Almeida, desde o dia em que

êste não quis

nomear-lhe o sobrinho

para a Alfândega da Baía. O Ernesto

Pessoa também não olhava com bons

olhos para

o Miguel Faria desde a ques-

tão do matadouro, que,

a meu ver,

foi o que

deu com o ministério em

terra. O organizador do novo gabinete

não é o Matias de Araújo, ou o Si-

queira, como dizem

por aí. Deixe-os

falar; a coisa já

está assentada.

— Quem

é então?

-jfc E' segrêdo; não posso

dizer por

ora.

Êsses políticos

bem informado são, em

geral, grandes jogadores de voltarete.

Ora os leitores não ignoram a influên-

cia que

o voltarete exerce sôbre a nos-

sa política.

Segundo rezam as crônicas,

até alguns ministérios teem sido orga-

nizados em partidas

de Voltarete, e mui-

tos indivíduos devem ao codilho as po-

sições que

ocupam.

Os políticos

bem informados, apenas

sobe um ministério, indicam logo os

nomes dos presidentes

de província,

dos

chefes de polícia,

dos delegados, sub-

delegados, de todos aquêles, enfim, que

vão erguer-se ufanos sôbre os destroços

da derrubada.

Tipo oposto é o do político que

não

sabe de coisa alguma, que

nada lê, que

no fundo é completamente indiferente

aos negócios públicos;

mas que

afeta

acompanhar a marcha dos acontecimen-

tos franzindo o sobrôlho e dizendo

sempre:

Isto é uma grande

bandalheira!

Quando se encontra com algum ami-

go assume um ar misterioso e

pergunta:

O que

há de novo?

Não sei; fala-se que

o ministério

caiu e que já

está organizado outro.

Então chama-o para

um lado, encos-

ta-lhe a bôca ao ouvido e exclama:

Isto é uma grande

bandalheira!

Na primeira

esquina encontra-se com

outro amigo, e repete a mesma frase.

Há ainda o tipo do político

esperto,

que é aquêle

que tem em cada

par-

tido um compadre com probabilidade

de subir ao poder.

Os tipos desta or-

dem estão sempre com o govêrno

em

casa. E' por

ocasião das organizações

ministeriais que

êles sobem à tona dá-

gua, para a

pesca.

O belo sexo também toma parte

ati-

va nêsse movimento.

Tomára já

ver êste ministério or-

ganizado.

Eu estou pelos

cabelos!

E eu então?! Há dois anos que

meu marido está desempregado e que

nós vivemos no... no... como se cha •

PAGINAS DO PASSADO BRASILEIRO261

ma aquilo, menina, que teu

pai fala

todos os dias lá em casa?

No ostracismo, mamãe.

E' isto mesmo. Quando penso que

aquele malvado demitiu Luiz por

cau-

sa das eleições de Santa Rita...

Meu marido foi também demitido

por causa das tais malditas eleições. Eu,

se fôsse homem, acabava com câmara,

com governo,

com liberais, conservado-

res e republicanos e reformava este país.

Ai, ail E' o que

eu digo muitas

vèses. A minha desgraça é vestir saia.

Os pretendentes

roem as unhas, an-

dam às tontas, e são os que

mais per-

guntam .

Dias depois os jornais publicam

a

organização do gabinete.

O novo mi-

nistério é recebido com hosanas pelos

correligionários, e a ferro e fogo pelos

adversários. E eis aí o que

é a poli-

tica. Tinha razão um amigo meu, su-

jeito de vistas largas,

quando dizia:

— Eu pertenço

ao partido, que

tem

por partido tirar

partido de todos os

partidos".

,* ¦ •* .

» .

b) Evoiuçào intelectual

A ordem política

e a

evoiuçào intelectual

iii

INTELIGÊNCIA não produz

em

A série. As vocações não se impro-

/ ^ visam. Cada ato intelectual é um

ato de fé em algo, que

vem, por

si

mesmo, comprometido por um feitio

particular, por um modo de ser espi-

ritual. Eis porque

o espirito não se dá

e nem se subordina. Toda vez que

um

governo supõe

poder sufocar a inteli-

gência, dai

por diante os sem dias se-

rão contados. As relações que

se esta-

belecem, necessariamente, entre os pro-

dutos intelectuais e o meio social de

determinado tempo são de tal modo iti-

timas que poderemos, por

seu intermé-

dio, tomar o pulso

das intenções poli-

ticas dêsse tempo.

A inteligência parte do real

para pro-

jctar-se. E essa

projeção é sempre a

devolução de um reflexo do meio em

que se exercita, para que

vive e do

qual se alimenta. Mas êsse

jôgo de re~

flexos, produtor daquilo

que se respon-

sabiliza pelo

trabalho da inteligência,

precisa ser auxiliado

pela correspondên-

cia necessária entre o ambiente social

e o ambiente político, ambos,

por sua

vez, produtores

e produtos,

a um tem-

po, do

que essa mesma inteligência

constrói, pelo que

veicula ou pelo que

cria.

Não desprezando a inteligência, de

nenhum modo e de nenhuma maneira,

prestigiando a cultura em todas as suas

manifestações, o govêrno

do Brasil sa-

bc que

os povos

sô se prolongam,

atra-

vès do tempo e através das idades, por

intermédio das criações intelectuais.

A alma da França nasceu com a

Chanson de Roland, chorou pelas

lágri-

mas de seus românticos, sorriu com Vol-

taire, sofreu, odiou e amou pelo

sofri-

mento, pelo

ódio e pelo

amor de seus

filhos que viveram em função pura

da

inteligência. O espirito inglês ou a al-

ma alemã foram unificados, fortaleci-

dos, aprenderam a impor-se, um e ou-

tra, por

intermédio de Shakespeare ou

Milton, Luthero ou Goethe. Pela lin-

gua uniforme, afirmando o

prestigio de

uma literatura e o coração de uma pá-

iria, Dante representa, na Itália, o

mesmo que

Camões em Portugal, Cer-

vantes, na Espanha, ou Machado de As-

sis e Euclides da Cunha no Brasil.

As obras políticas ficam pelos

bene-

fiei os

palpaveis que prolongam, atra-

vés das obras que forem

criadas conco-

mitantemente com êsse ou aquêle go-

vêrno. A inteligência não pode,

de mo-

do algum, divorciar-se do social, assim

como o social não pode

viver divor-

ciado do político.

Essa interdependén-

cia subtilissima é que prolongou

até nós

o prestigio

dos gregos

e romanos, fun-

d adores do mundo. E é essa mesma

trama, feita de atrações

que se ajus-

tam e cotnpreensões que

se identificam

que há-de firmar o

prestigio da era

que

atravessamos, a mais fértil de quantas

A ORDEM POLÍTICA E A EVOLUÇÃO INTELECTUAL

assistimos durante tôda a nossa histó~

ria como povo

e como nação.

Ao cabo de 10 anos de govêrno,

cujas

realizações, todas, nos transmitem uma

lição de boa vontade e de cordura, o

que apreendemos, da ação

política do

chefe do govêrno

é essa vontade de

acertar as idéias políticas do Brasil com

as necessidades sociais de um tempo do

mundo.

Afinando a sociedade brasileira às

aspirações políticas do nosso

presente

(que, por sua vez,

prolongam as nossas

vocações mais acentuadas do passado)

o

que assistimos è a vigência de um

go-

vêrno de coerência com o passado,

atenção ao presente, preocupado

em

preparar-nos para o futuro.

Por isso,

agora, a inteligência não se afasta do

Estado. Por isso, os intelectuais já en-

contram, nas preocupações

do Brasil,

nos seus problemas

mais angustiantes,

os seus próprios problemas

ou os temas

de suas obras. Entre nós, a inteligência

renasce. E renasce para

servir ao pais,

por intermédio daquêles que fazem

a

opinião, que unem govêrno

e povo,

porque êles é

que pensam, êles é

que

criam, êles é que,

em primeiro plano,

estão encarregados de fazer prolongar,

para o futuro próximo,

as indicações

dos rumos que

devemos seguir, traçados

pela nova

política do Brasil.

Literatura de ficção

iii

WILSON LO USA DA

A EVOLUÇÃO da moderna poes>a

N

brasileira, a intencionalidade revo-

lucionária de forma, no aitist^i,

em certos casos, foi bem mais inferior

à substância real dessa mesma poesia.

Quando findava a

primeira parte do

nosso modernismo, toda ela entregue ao

veiso, assim como a segunda entregou-

se à prosa,

o que

sentiamos de realmen-

te grande

nos poetas

de todas as cor-

ientes vinha muito mais do pensamento

que da técnica de composição de cada

um.

A estética modernista, que abolira o

dogmatismo parnasiano, que libertara a

métrica e concedera mais flexibilidade

ao ritmo, deixava de valer, para o in-

dividualismo do artista, como a ultima

palavra. Naturalmente, o mesmo acon-

teceu a todas as escolas e artistas do

passado, ainda que

se possa

argumentar,

em contrário com as épocas clássicas do

verso e da prosa.

Nos poetas,

entre-

tanto, êsse fato explica-se sem grande

dificuldade. Sob qualquer ponto

de

vista que

seja encarado, o artista do

verso é sempre muito mais individua-

lista que

o da prosa.

Seu- potencial

de

emoção, através de um instrumento tão

maleável e tão rico em efeitos verbais

e sonoros, como é o verso, torna-se du-

piamente mais

profundo e extenso. Daí,

também, seu isolamento maior no que

se refere à expressão dos sentimentos ín-

timos, e que

se libertam mais facilmen-

te que

os de um romancista, por exem-

pio.

No caso particular

da moderna poe-

sia brasileira, nomes como os de um Ma

nuel Bandeira, Ribeiro Couto, Emilio

Moura, Jorge de Lima, Murilo Men-

des, Carlos Drumond de Andrade, Au-

gusto Frederico Schmidt e Vinicius de

Moraes, representaram, no que

diz res-

peito à forma muito menos do

que se-

ria possível

esperar de revolucionários

estéticos. Todos, ou quasi

todos, mar-

caram realmente essa fase posterior

a

1930 muito mais pelo

fundo poético

de

cada um que

mesmo pelo emprêgo sis-

temático e intencional de uma nova

técnica na composição do verso. No mo-

men to, todavia, o que

impressionava era

a libertação, mesmo superficial, de to-

dos os laços do passado.

Num ambien-

te onde a desordem espiritual conta-

minava as melhores inteligências, onde

a crítica a quaisquer

experiências in-

telectuais era mal compreendida, ou

sem valor, onde um vasio terrível de

espiritualidade corrompia tudo, o que

parecia mais absurdo ou

grotesco, mais

ousado ou violento, mesmo incompreen-

sível, atraía sempre. Foi o tempo de

muito modernismo de convenção, de

poesia só no

papel, de excessos que

comprometiam o pensamento

tantas vê-

zes admirável de vários poetas

nossos

realmente anunciadores de uma liber-

tação e de um estado de espírito novo.

E' claro, todavia, que

certos aspectos

da nossa poética

tinham raízes na face

inicial do modernismo. Raízes que

se

prolongaram no tempo e

que se adivi-

LITERATURA DE FICÇÃO26ã

nhavam ainda no período

de 193° a

1931 como uma lembrança e uma ad-

vertência.

A reação a êsse estado de coisas foi

natural, quasi expontânea e, embora

tardia, iluminou certas faces do pro-

blema intelectual brasileiro até então

desconhecidas ou obscuras.

Para muitos dos que escreviam poe-

sia nos primeiros anos da revolução,

afigurava-se que o ambiente literário

brasileiro pouco se havia transforma-

do. O mais fácil, portanto,

seria pro-

loncrar os métodos anteriores. Fazer

violência, pela audacia de certas atitu-

des, puramente

exteriores em alguns

casos, ao espírito adormecido e confor-

mista da burguesia literária, chocando-a

ou ridicularizando-a. Êsse o caso de

muita poesia sem finalidade, também

chamada, por um crítico, de

poesia gra-

tuíta, que se andou escrevendo no pe-

ríodo fácil dos primeiros

instantes da

vitória revolucionária. Onde tudo se-

ria motivo para sucessos rápidos, onde

a literatura andava sujeita às piores

concessões de um pretenso

espírito mo-

derno. Não seria razoável, aliás, es-

perar qualquer outra atitude de um

meio visceralmente anárquico e dema-

gógico como o nosso na época a

que

me refiro. Por outro lado, no entanto,

muita coisa admirável se escreveu, mui-

ta coisa que nos advertia sôbre a fal-

sidade do terreno pisado. Sinais inquic-

tos, sinais de uma espiritualidade laten-

te mas sufocada, sinais desesperados, às

vezes, de muitos que ainda tateavam in-

decisos entre os diversos caminhos aber-

tos à imaginação criadora. Não que

a poesia

convencional, feita para

espan-

tar ou chocar o gosto comum houvesse

desaparecido por completo. Mas a rea-

cão nascera do próprio

excesso de ru-

mos, da inconsequência de certos pro-

blemas, do vasio em que estavamos ati-

rados. Ainda não definíramos o senti-

do da nossa libertação, ainda não sa-

biamos ao certo que caminho escolher.

Enquanto esperavamos, no entanto, ia-

mos fazendo experiências, com escalas

em todos os matizes literários, misturan-

do o falso e o sincero, o exibicionismo

c a realidade.

Aos primeiros

sinais de uma nova fase

que se esboçava vigorosamente, às

pri-

meiras advertências de alguns livros que

nos falavam da realrlade das coisas, to-

da a nossa passividade

no aceitar qual-

quer malabarismo de forma começou a

desaparecer. Seria mesmo desnecessário

citar o Passaro Cégo, de Augusto Fre-

derico Schmidt, para documentar su-

ficientemente o que

afirmo, no sentido

do abandono de certos processos

artis-

ticos. Alguns poemas de Manuel Ban-

deira, em Libertinagem, demonstra-

riam que,

num modernista de primeira

linha já se harmonizavam forma e

pen-

samento, num espírito de aguda sen-

sibilidade, embora o poeta

da Estrela

da Manhã seja considerado um dos

mais perfeitos

artífices do verso. Não

me refiro, é claro, a certos poemas

seus

essencialmente descritivos, exteriores, co-

mo "Evocação

do Recife",

"Mangue",

"Belém do Pará" e

poucos outros. Re-

firo-me antes a essa profissão

de fé em

que o

poeta diz estar

"farto do Uris

-

mo comedido, do lirismo bem compor-

tado", ao "anjo

da guarda",

à cantiga

da andorinha e a outras pequenas

obras-primas de beleza interior. E não

se diga que posso

citar apenas Ma-

noel Bandeira como exemplo do pouco

valor que

o exibicionismo de forma ia

adquirindo. Alguma poesia, de Carlos

Drumond de Andrade, e Poemas, de

Murilo Mendes, livros de 1930, confir-

mam e acentuam os mesmos sinais, as-

sim também como Remate de Males,

de Mario de Andrade, sob certos pon-

tos de vista apenas. Os dois primeiros,

no entanto, marcaram nitidamente a

transformação que se iniciava e conti-

nuaria nos anos posteriores, num sen-

tido de despojamento exterior, de per-

da dos atributos apenas estruturais do

verso que

se fazia então. Conservando

absoluta independência de temas, ês-

ses poetas

revelaram aspectos diferentes

da nossa sensibilidade criadora, num

período de excepcional gravidade,

e de-

finiram também uma renúncia indis-

pensável aos

processos que haviam ini-

ciado os primeiros

tempos modernistas.

O individualismo do pensamento

anu-

lava, portanto,

nesses poetas,

a comu-

nlião mais ou menos geral em torno

de certos teoremas de completa liber-

dade de forma, até então inatacáveis.

Pois a característica mais importante,

ou mais observada, em alguns escritores

dêsse período,

assim como em muitos

dos primeiros

modernos, era o desejo

de libertação. Tanto Manuel Bandeira

266CXJXiTURA POLÍTICA

falava em libertação, na sua Poética

como Mario de Andrade fazia o mes-

mo, antes, no prefácio

de Paulicea

Desvairada. Libertinagem, mesmo, é

um título expressivo dessa vontade de

rompimento com o passado.

Todavia,

após os poetas que

citei, outros viriam,

ou êles próprios mais tarde, livres de

certos preconceitos e menos inclinados

aos malabarismos, ao puro jôgo verbal

das formas então usadas. Canto da

Noite, por exemplo, de 1934» trouxe ao

verso moderno uma absoluta puresa de

composição. Assim como Estrela da

Manhã, de Manuel Bandeira. Forma

e Exegese, de Vinícius de Moraes. Can~

to da hora amarga, de Emílio Moura,

Poesias, de Adalgisa Nerí, A túnica

inconsútil, de Jorge

de Lima, Poesta

em pânico, de Murilo Mendes, Sen-

timento do Mundo, de Carlos Dru-

mond de Andrade. Todos evoluindo do

exterior para o interior. Despojando-se

dc muita coisa supérflua. Pois não fo-

ram poucos os imitadores de Manuel

Bandeira, os medíocres, naturalmente,

que se

julgaram no direito de inter-

pretar, a seu modo, o verso de Poé-

tica: "todos

os ritmos sobretudo os

inumeráveis". Muito belo, mas não pa-

ra qualquer

um e também não mal

compreendido.

Literatura de idéias

iii

PEDRO DANTAS

PROCURARAM

as crônicas anterio-

res salientar a importância que ul-

timamente assumiu para o

pensa-

mento brasileiro a conciência do seu

sentido nacional. O que

há de mais

significativo nessa atitude, hoje domi-

nante, é a sua relativa novidade, pois

são ainda bem próximos

os tempos em

que não estávamos habituados a

pen-

sar assim. Dominava-nos, então, certo

sentimento de inferioridade, que se di-

ria antes acentuado do que

reduzido

pela exaltação momentânea devida a

êxitos internacionais, algumas vêzes re-

tumbantes, mas sempre extraordinários

e surpreendentes para nós mesmos. Na

obra de Carlos Gomes, por exemplo,

celebrávamos principalmente o

que nos

parecia conter de inesperado prodígio,

e essa impressão mesma nos vinha tal-

vez menos da própria

música do que

do acolhimento favorável que lhe dis-

pensára a crítica italiana.

"A Europa

curvou-se ante o Brasil", verificávamos,

exultantes, a propósito

de Santos Du-

mont. Mas essa ingênua expressão de

orgulho nacional trazia implícita a no-

ção subconciente de

que o fato repre-

sentava uma subversão dos valores pa*

cificamente admitidos. Rui Barbosa

"roubou" — como hoje se diz na gíria

cinematográfica — a conferência de

Haya, mas em nosso entusiasmo, não

deixamos de discernir no episódio o

triunfo pessoal de um homem

que sem

pre tivemos tendência a classificar en-

tre os gênios

e não era, portanto,

re-

presentativo.

No seu segundo número, em home-

nagem a Afonso Arinos, a revista "Eu-

clídes" publica

uma carta que

Alceu de

Amoroso Lima, em 1915, dirigiu ao ad-

mirável "conteur"

de "Pelo

Sertão".

Nêsse depoimento da adolecência, dizia

o hoje notável ensaísta católico que

so-

fríamos de uma crise de patriotismo,

por nos faltarem

"razões" de amar ao

nosso país.

Precisávamos de quem

nos

apontasse essas "razões",

como acabava

de fazer Afonso Arinos numa confe-

rência, gênero que

o grande

escritor

mineiro versava com inexcedível maes-

tria. "Essa

é a questão

magna", con-

cluia Amoroso Lima, "o

resto viria de-

pois". Em abono do

que vínhamos sus-

tentando, não se poderia

desejar do-

cumento mais expressivo.

Sobreviera, porém, a

guerra de 1914.

Dir-se-ia — naquele tempo

— um fim

de civilização. A duração da catástro-

fe criou para

nós uma situação de iso-

lamento que

nos obrigava a voltar-nos

para nós mesmos. Subitamente brota

ram no país

atividades que as

próprias

barreiras alfandegárias não haviam con-

seguido impor. Nossa condição de mer-

cado abastecedor de matérias primas

e

gêneros de necessidade favorecia o im-

pulso econômico. A indústria aclimou-

se entre nós em caráter definitivo, pois

não nos seria mais possível

abandoná-

la, ainda que

a sua defesa custasse uns

tantos sacrifícios. Com a participação

do país

no conflito, cristalizou-se o

sentimento patriótico, momen tanea -

mente despreocupado das boas-razões

268CULTURA POLÍTICA

que muito custára a encontrar Amoro-

so Lima. O problema

da força impu-

sera-se novamente à consideração uni-

versai, como um fim, para

os belicosos,

romo um meio, para os pacíficos.

O

Brasil pacifista, que entrára na Rucr-

ra por princípios, continuando a assis-

tir a guerra, não podia

escapar a essa

geral apreensão: coube a um puro

in-

telectual, o poeta Olavo Bilac, príncipe

entre os seus pares, iniciar e dirigir a

campanha pela preparação militar da

mocidade. através do sorteio e das li-

nhas de tiro, recorrendo, para a sua

propaganda, a uma argumentação

na-

cionalista exaltada.

Tudo isto se seguira de perto à re-

modelação urbanística da capital da Re-

pública e ao seu saneamento. Segundo

a frase corrente, o Rio civilizara-se, to-

mando ares de grande cidade. A expo-

sição internacional de íqoo já deixára

uma impressão favoravel da nossa ca-

pacidade produtora e organizadora:

liam-se, a respeito, as crônicas entu-

siásticas de João

do Rio. Assim, quan-

do, mal terminada a guerra, o

preparo

dos festejos comemorativos do nosso pri

meiro centenário de independência nos

fez considerar o caminho percorrido, o

estudo do que realizáramos nesse pe-

riodo, lá veio encontrar um pensamen-

to nacional mais contente de si e predis-

posto a auto-satisfação.

Isso, porém, não foi tudo, nem assi-

nalou, a bem dizer, o instante decisi-

vo. Naquela mesma oportunidade, mui-

tos, mais exigentes, não se conforma-

Aam ainda com os resultados obtidos.

Sentia-se, apesar de tudo, uns restos do

antigo espirito colonial no próprio

cui-

dado que púnhamos em disfarçá-lo, na

aceitação indiscutida de valores ajusta-

dos superficialmente e quasi

sempre já

substituídos nos seus lugares de ori-

gem. Havia, pois,

certa puerilidade e

certa contradição num nacionalismo que

não tinha, para apoiar-se, sinão valores

encontrados segundo uma escala nao

nacional, e o mais das vêzes caída em

desuso. Tal nacionalismo deveria ser

o das "juvenilidades

auri verdes", que

apresentou, por aquela época, num

curiosíssimo poema-sinfonia, que

foi

Mário de Andrade.

Foi isto pelo início do movimento

modernista Vimos, na ultima crônica,

que esse movimento trazia, como con-

teúdo ideológico inicial, a atualizaçao

e a universalização da arte e do

pen-

samento brasileiros. Passada a fase des-

truídora dos primeiros

combates, verifi-

caram, porém, os seus elementos de

primeira linha que

éste segundo obje-

tivo não poderia ser atingido direta-

mente, mas haveria de ser o resultado

quasi involuntário de um processo

an-

terior de verdadeira integração nacio-

nal. Por coincidência, outro tanto se

passava nos centros estrangeiros mais

influentes, si bem que não pelos

mes-

mos motivos. Nosso caminho estava,

pois, traçado e,

para os modernistas,

nem podia

ser outro, em virtude de al-

guns dos

princípios essenciais do seu

programa de realizações. Sua contri-

buição fundamental, que imprimiu ao

espirito brasileiro uma direção decisi-

va, foi a conversão de valores até en-

tão havidos como negativos —

porque

eram diferentes dos valores cosmopoli-

tas — em

positivos, por uma aceitação

que parecia impraticável. Foi êsse o

verdadeiro sentido de algumas varian-

tes nem sempre levadas muito a sério

pelos seus

próprios criadores, como a

do "Pau-brasil"

e da "Antropofagia",

abandonadas, mas não exauridas, por

Oswald de Andrade e seus compa-

nheiros.

Literaturahistórica

iii

HÉLIO VIANA

Professor catedrático de História do

Brasil na Faculdade Nacional de Fi-

losofia, da Universidade do Brasil

S RECENTES comemorações dos

Àl centenários portugueses propor-

cionaram a publicação

de mui-

Ias dezenas, senão mesmo de algumas

centenas de volumes dedicados à His-

tória de Portugal, especialmente quan-

to aos períodos

relativos à Fundação do

Reino, descobrimentos marítimos, colo-

nização e Restauraçao de 1640. Interes-

sando diretamente à História do Bra-

sil muitas das edições oficiais portu-

guesas então aparecidas, vamos nos

ocupar, a seguir, das que

foram lan-

cadas pela

Agência Geral das Colonias,

repartição superiormente dirigida pela

alta capacidade administrativa de Jú-

lio Gaiola.

O descobrimento do

Brasil

Começando, cronologicamente, pelo

descobrimento do Brasil, merece os mais

francos aplausos e agradecimentos a ini-

ciativa da reunião, em um só volume,

em grande

formato, com reproduções

integrais em fac-similes, d'Os Sete Úni-

cos Documentos de 1500, conservados

em Lisboa, referentes à Viagem de Pe>

dro Alvares Cabral. Precedidos de eru-

ditas explicações da lavra de um dos

maiores, senão o maior especialista em

história náutica dos tempos modernos,

A. Fontoura da Costa, (1) são os

seguintes êsses documentos em boa hora

divulgados nessa edição tecnicamente

incomparável a qualquer

outra anterior:

_ Carta Régia da nomeação de Pe-

dro Álvares de Gouveia para capitão-

mór da armada que vai

paia a Índia.

Assinada pelo Secretário de Estado An-

lônio Carneiro, em nome do Rei D.

Manuel I, datada de Lisboa, a 15 de

fevereiro de 1500, conforme o registo

existente rto Arquivo Nacional da Tôr-

re do Tombo.

II — Borrão original da primeira

fô-

lha das Instruções de Vasco da Gama

para a viagem de Cabral. Êsse impor-

tantíssimo documento, escrito, sem in-

dicação de local e data, pelo

Secretário

de Estado Alcáçova Carneiro, adquiri-

do na Espanha pelo

historiador brasi-

leiro Visconde de Porto Seguro, foi, por

este, depois de devidamente aproveitado

em sua História Geral do Brasil (ainda

hoje, graças aos acréscimos de Capistra-

no de Abreu e Rodolfo Garcia, a me-

lhor que possuímos),

oferecido ao Ar-

quivo da Torre do Tombo, onde ainda

se encontra. Sua leitura, ipsis litteris,

feita pelo

insigne Diretor do mesmo

Arquivo, Antônio Baião, acha-se acom-

panhada, na

presente edição, de uma

"versão em linguagem atual", da auto-

ria de A. Fontoura da Costa.

III — Borrão original de algumas fô-

lhas das Instruções Régias (Regimento

Real), dadas a Cabral para a sua via-

270 CULTURA POLÍTICA

gem. Também sem indicações de local

e data, as 23 páginas

dêsse documento,

provavelmente descoberto pelo

mesmo

Varnhageii na Tôrre do Tombo, inte-

ressam ao conhecimento da ação de Ca-

bral na índia e em Melinde.

IV — Borrão original das Instruções

Régias Adicionais, sob a forma de Car-

ta, dadas a Cabral para

a sua viagem.

Igualmente sem data é local, essa outra,

descoberta do Visconde de Pôr to Seguro

no velho arquivo português,

diz respei-

to à navegação e vigilância das merca-

dorias a serem embarcadas na índia,

à possibilidade

da compra, ali, de na-

vios, bem como à participação

de es-

trangeiros na viagem.

— Carta de D. Manuel ao Rei de

Calecut. Escrita em Lisboa, a i.° de

Março de 1500, e enviada por

intermé-

dio de Cabral. "Esta

carta deve ser con-

siderada como a credencial acreditando

Pedro Álvares Cabral, como embaixador

extraordinário do Rei de Portugal jun-

to ao Samorim", diz A. Fontoura

da Costa. E* reproduzida pela

cópia

existente na Biblioteca Nacional de

Lisboa.

VI — Carta do Achamento do Brasil,

escrita por

Pero Vaz de Caminha, do

Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz, a

i.° de Maio de 1500, e dirigida ao Rei

D. Manuel. Publicando, mais uma vez,

o importantíssimo documento que

é a

"certidão de batismo do Brasil", a

pu-

blicação do Ministério das Colônias, de

Portugal, reproduziu, linha a linha, em

perfeito fac-simile, as 28 páginas

ma-

nuscritas do precioso

original que

se

guarda no Arquivo Nacional da Tôrre

do Tombo. Contribuindo para

divulgar

ainda mais o singular depoimento pres-

tado pelo

minucioso escrivão da feito-

ria que

se iria estabelecer em Calecut,

acompanha o seu texto integral uma

bem clara "versão

em linguagem atual*',

da autoria de A. Antônio Baião.

VII — Carta de Mestre João,

bacharel

em artes e medicina, dirigida a D.

Manuel, do mesmo local e data. Sem

se deixar seduzir por

exageros, ultima-

mente correntes a respeito do signatá-

rio dês te outro interessante documento

referente ao descobrimento do Brasil,

aceita A. Fontoura da Costa, no res-

pectivo Preâmbulo, a

possibilidade de

ser identificado o seu autor como o

espanhol Mestre João

Faras, tradutor

da Geografia de Pompônio Mela, como

primeiramente lembrou Sousa Viterbo,

em 1900. Destaca, entretanto, o erudito

comentador d'Os Sete Únicos Documen-

Los, "o

tópico mais importante da carta,

referente à belíssima constelação aus-

tial que

Mestre João

isolou, descreveu,

esqueniou e denominou: a Cruz (Cru-

zeiro do Sul)". A leitura da Carta do

discutido Mestre João

também foi fei-

ta por

Antônio Baião, competindo

a sua "versão

em linguagem actual"

ao falecido Prof. Luciano Pereira da

Silva, outro eminente especialista em

História Náutica Portuguesa.

A exploração da costa

Ainda sôbre o descobrimento do Bra-

sil, seus antecedentes e conseqüências,

valiosas referências constam de outras

publicações portuguesas recentes, da

Agência Geral das Colônias.

Assim é que,

além de alusões ao

Tratado de Tordesilhas, de 1494, e às

reuniões da Junta

de Badajoz, em 1524,

também reproduções dos mapas de

Cantino (1502)

e Hamy (posterior

a 1504), bem como do globo

de Mer-

cator (1541),

nos quais

figura o Brasil,

— aparecem na volumosa segunda edi-

ção, aumentada, do

primoroso e,

possi-

velmente, mais completo trabalho em

seu gênero,

escrito em nossa língua, que

é A Marinha dos Descobrimentos, de

A. Fontoura da Costa.

Na lista dos "Roteiros

Portugueses

até 1700", que

faz parte

dêsse livro de

532 páginas, como no volume especia-

lizado do mesmo autor, intitulado Bi-

bliografia Náutica Portuguesa até 1700,

e na reedição, ainda por

êle prefacia-

da, da Prática da Arte de Navegar, es-

crita em 1673, segundo as lições do oi-

tavo cosmógrafo-mor de Portugal, Luiz

Serrão Pimentel, — surgem indicações

preciosas para a História Marítima do

Brasil (de

cujo levantamento cuida, pre-

sentemente, o nosso Ministério da Ma-

rinlia). São as que

se referem aos

numerosos Roteiros de Portugal a vá-

rios pontos

da costa do Brasil e entre

êstes, que

do século XVI ao XIX tanto

serviram à navegação a vela, excelente-

mente demonstrando o permanente

adiantamento de Portugal em todos os

setores da arte náutica.

LITERATURA HISTÓRICA 271

Mas onde aparece uma contribuição

de valor realmente inapreciável para

os historiadores, pela

revelação, que

só-

mente agora foi feita, em nosso idioma,

quanto ao discutido caso da

primeira

viagem portuguesa

de exploração do li-

toral atlântico sul-americano, servindo

para retirar, definitivamente, de Amé-

rico Vespúcio, o fundamento de tôdas

as alegações referentes à sua prioridade

na concepção continental das novas ter-

ras descobertas, — é na publicação,

tam-

bém devida à Agência Geral das Co-

lônias, das Cartas das Ilhas de Cabo

Verde, de Valentim Fernandes —

7506-/50^.

Nêsse volume, além dos estudos car-

tográfico e bio-bibliográfico, relativo

àquelas ilhas e àquele tipógrafo ale-

mão, tradutor, escritor e tabelião pú-

blico dos mercadores de sua naciona-

lidade, estabelecidos em Lisboa, — es-

tudos esses ainda uma vez eruditamente

feitos por

A. Fontoura da Costa,

— está incluída, em anexo, a "Tradu-

ção do ato notarial de Valentim Fer-

nandes, feito em Lisboa, aos 20 de Maio

de 1503". Refere-se, êsse documento,

primeiramente, à viagem de Pedro Ãl-

vares Cabral, em que

se "descobriu,

num mar desconhecido, sob a linha

equinocial, um outro mundo, pela

Di-

vina Providência ignorado de tôdas as

outras autoridades". Depois de tratar,

com minúcias que

fazem supor per-

feito conhecimento, dos selvagens que

habitavam a nova terra, o que

se deve,

provavelmente, aos degredados aqui

deixados pela

frota descobridora, e que

teriam voltado a Portugal, — fala, a

referida carta registada pelo

tabelião

moraviano, numa "outra

armada do

mesmo cristianíssimo rei" (de

Portugal)

"destinada a êsse fim",

que percorreu"o

litoral daquela terra por quasi 760

léguas". A pele

de um crocodilo (ja-

caré) e a "imagem"

de um de seus ha-

bitantes, então enviadas a Bruges pelo

alemão João

Draba, acompanhavam a

aludida carta, que

foi lida por

Valen-

tim Fernandes "presente

diante da ré-

gia majestade, dos seus barões, supre-

mos capitães e pilotos

ou governadores

dos seus navios da supracitada terra dos

antípodas com o novo nome de terra de

santa cruz e todos unanimemente a

confirmaram

Os grandes

vultos da

colonização

Destacadas figuras da colonização

portuguesa no Brasil forneceram mate-

riais para

uma série de folhetos de

menos de cem páginas

cada um, em

que a respectiva biografia, sucintamen

te traçada por

escritores do Brasil e de

Portugal — principalmente pelos pri-

meiros — está acompanhada, algumas

vezes, da transcrição de importantes do-

cumentos a seu respeito guardados nos

arquivos portugueses.

Abrindo cronologicamente a coleção,

escreveram pequenos

e brilhantes en-

saios sôbre os desbravadores do Ceará

Pero Coelho de Sousa e Martim Soa-

res Moreno, os acadmicos Gusta-

vo Barroso e Afrânio Peixoto. Cinco

valiosos documentos relativos ao legen-

dário "guerreiro

branco", colhidos no

Arquivo Histórico Colonial, de Lisboa,

enriquecem o segundo dêsses trabalhos.

D. Marcos Teixeira, quinto

bispo do

Brasil, Visitador do Santo Ofício na

Baía em 1618, governador

revolucioná-

rio e organizador da resistência à inva-

são holandesa no Salvador em 1624, —

foi concienciosamente biografado, com

os poucos

elementos informativos atual-

mente disponíveis por

Wanderley Pinho,

noutro folheto da coleção.

A vida e os feitos, principalmente no

Brasil, de Salvador Correia de Sá e Be-

nevides, constituíram o objeto de outro

meticuloso levantamento biográfico rea-

lizado por

Ciado Ribeiro de Lessa.

A figura do ilustre carioca (que

agora

um genealogista

argentino, Alfredo

Diaz de Molina, na Revista Ge-

nealógica Brasileira, sensacionalmente

apresentou como nascido em Cádiz, na

Espanha), — filho e neto de governa

dores do Rio de Janeiro, governador,

êle mesmo, por

três vêzes, desta cidade,

além de defensor do Espírito Santo

contra os holandeses, em 1625, e *n"

sígne Restaurador de Angola, em 1648,

constitue, sem dúvida, atrativo sufi-

ciente para

os pesquizadores que

de-

sejarem esclarecer os pontos

ainda ne-

bulosos de sua agitada e fecunda exis-

tência. Os documentos apresentados e

cotejados por

Ribeiro de Lessa, os

quadros genealógicos adicionados ao vo-

lume (que

é o maior da coleção), as

investigações, enfim, a que procedeu

o

272 CULTURA POLÍTICA

distinto bibliófilo, merecem ser devida-

mente continuadas, afim de que

se ob-

tenha a solução das lacunas ainda sub-

sistentes, a respeito do ilustre represen-

tante seiscentista da família de Men

de Sá.

Três guerreiros

das lutas contra os

holandeses encerram a série de úteis

brochuras biográficas, relativas ao Bra-

sil Colonial, lançadas pela

Agência Ge-

ral das Colônias: Luiz Barbalho,

por Bernardino José

de Souza; Henri-

que Dias,

por Frazão de Vasconce-

los; Francisco Barreto, por

Pedro Cal-

mon. Embora curtas, essas tentati-

vas de reconstituições isoladas da vida e

feitos dos valorosos cabos de guerra

o herói da retirada do Pôrto dos Tou-

ros a Baía, o notabilíssimo negro da

luta contra os invasores de Pernambuco

e o general

de sua restauração final, —

poderão, certamente, contribuir

para

chamar a atenção geral para êsses

gran-

des vultos de nossa História, brasilei-

ros, afro-brasileiros e portugueses (mes-

mo nascidos em outros países,

como é o

caso do acidentalmente peruano Fran-

cisco Barreto), que

tanto e tão árdua-

mente trabalharam pela

manutenção

integral do território da Pátria.

A restauração de 1640

e o Brasil

A Restauração de 1640, seus prece-

dentes e sua repercussão nas colônias

portuguesas, constituiu, como era natu-

ral, assunto de numerosos ensaios agora

publicados em Portugal.

Um dos mais volumosos conjuntos de

estudos a êsse respeito está contido na

obra intitulada A Restauração e o Im~

pério Colonial Português, em

que cola-

boraram diversos escritores de Portugal

e do Brasil.

Em suas 545 páginas,

depois de uma

inteligente "Explicação

Prévia", de au-

Geral das Colônias, Júlio

Caiola, apa-

receu dois estudos introdutivos de-

aparecem dois estudos introdutórios de-

vidos a historiadores de grande

reno-

me internacional: "Conseqüências

ime-

diatas da união com a Espanha na de-

cadência do Império Colonial Portu-

guês", por Manuel Múrias, o no-

tável Diretor do Arquivo Histórico Co-

lonial, de Lisboa, e "O

Impéiio Por-

tuguês na hora da Restauração", pelo

Prof. Daniião Péres, da Universidade

de Coimbra. Seguem-se três partes

re-

lativas à Reconquista do Império", des-

tinadas, sucessivamente, ao Brasil, à

África e ao Oriente. Na primeira,

ocupou-se do "Brasil

Político-Militar",

Pedro Calmon, e do "Brasil

Social '

(de 1500 a 1640), o autor dêste artigo.

Das partes

seguintes, referentes à África

e ao Oriente, trataram alguns dos mais

conhecidos especialistas em História Co-

lonial Portuguesa, como o Coronel Lei-

te de Magalhães, Gastão Sousa Dias,

General Teixeira Botelho, General Fer-

reira Martins e Gastão de Melo de

Matos.

Não ficaram aí, apenas, as contri

buições para

a História da Restaura-

cão de Portugal, editadas pela

Agência

Geral das Colônias. Dois volumes, bem

ilustrados e documentados, de Subsídios

para a História das Guerras da Restau-

ração, no Mar e no Além-mar (inclu-

sive no Brasil, de 1646 a 1654) escre-

veu o Contra-Almirante A. Botelho

de Sousa. Resumiu-os, mesmo, em par-

te, num folheto intitulado O Perio-

do da Restauração nos mares da Me-

tròpole, no Brasil e em Angola.

O padre

Antônio Vieira

Versando, porém,

tantos temas histó-

ricos do Brasil e de Portugal do século

XVII, das Jutas contra os invasores ho-

landeses à Restauração e suas dificul-

dades, não seria possível que

ficasse

esquecida a figura sem par

do luso-bra-

sileiro típico que

foi o Padre Antônio

Vieira. E, apesar de já

existirem tantas

e tão valiosas contribuições bio-biblio-

gráficas a seu respeito, abalançou-se a

Agência Geral das Colônias a lançar

mais uma, confiando-a, entretanto, à

competência, dificilmente superável, de

Hernani Cidade, Professor da Facul-

dade de Letras de Lisboa.

Padre Antônio Vieira é o título dessa

obra que, pela

sua original concepção,

não teme confrontos com outras ante-

riormente dedicadas ao famoso jesuíta

do Colégio da Baía e superior das Mis-

sões do Maranhão e Grão-Pará.

Começa por

um Estudo Biográfico e

Critico acompanhado de um sermão

e sua apologia acêrca do Quinto

Impé-

rio, disto constando todo o primeiro

vo-

lume. Referem-se principalmente

ao

LITERATURA HISTÓRICA273

Brasil o segundo e o terceiro tomos,

dedicados "à

Guerra e a Política na Co-

lônia" e "à

Vida Social e Moral na Co-

lonià", respectivamente. O quarto

volu-

me, afinal, último até agora publicado,

trata d' "A

Crise da Restauração — Em

Portugal", como os dois anteriores fa-

zendo-o sempre através dos Sermões do

inolvidável orador sacro, conforme a se-

leção e ordenação de Hernani Ci-

dade, autor, também, do Prefácio e das

notas que

a cada um eruditamente

acompanham.

# # *

As atividades editoriais assim tão ai-

tamente demonstradas pela

Agência Ge-

ral das Colônias, de Portugal, não pre-

cisam, realmente, de elogios que

não

sejam os resultantes da análise, mesmo

superficial e apressada, dos respectivos

conteúdos. Se somente aquêles que

mais de perto dizem respeito ao Bra-

sil são tantos e tão notáveis, imagine-

se o valor dos que

se referem às nume-

rosas conquistas, colônias e ex-colônias

de Portugal, espalhadas por

tôda a

África e por grande parte da Asia e da

Oceania. Ao lado de uma apresentação

gráfica sempre perfeita, a escolha dos

têmas e sua entrega a especialistas repu-

tados faz com que

os volumes editados

por aquela repartição

possam ser con-

siderados modelares, amplamente cora-

provando o bom gosto e a capacidade

de seus eminentes organizadores.

* • í1^ IleStava

.comPosta crônica

quando chegou a noticia do falecimento,em Lisboa, desse eminente técnico em história da navegação e dos descobrimentos

portugueses. Pelo muito que direta ou indiretamente serviu à historiografia brasi-

leira, é justo que aqui,

por êsse motivo, seja prestada uma

pequena, mas significativahomenagem a Fontoura da Costa. s

Literatura latino-americana

I

GUERREIRO RAMOS

Entre o movimento literário e intelectual do Brasil e o de toda a América

Latina há profunda afinidade. Os povos

latino-americanos comungam em

certos ideais comuns, em tendências sociais e culturais, que

lhes emprestam

a todos um mesmo espirito de solidariedade continental. A seção de "Lite-

ratura latino-americana", que

inauguramos neste número, se ajusta ad-

miravelmente à expressão do movimento intelectual do Brasil, que

se in-

tegra no todo maior da evolução cultural da América Latina. Iremos pro-

curar os pontos

comuns que

nos aproximam, aquêle "sentido

de americani-

dade" que está presente em todas as literaturas luso e hispano-americanas.

Foi confiada esta secçâo a um escritor e professor

da nova geração,

técnico

da Diretoria de Cultura e Divulgação da Baia, jornalista, ensaísta e

poeta,

autor de "O

Drama de ser dois" (Poesia,

Baia, 1937), "Introdução

à Cul-

tura*p (Baia, 1939, incluído na relação bibliográfica latino-americana da

Inter-American Book Exchange de Washington), "Rilke

e o estado poético",

e tendo ainda em preparo

um volumoso ensaio sôbre "A

Formação da Lite-

ratura Nacional".

NAO

será difícil reconhecer, nesia

hora em que

a Europa se peni-

tência tragicamente de seus êrros,

que os

povos americanos se encontram

numa situação oportuníssima para

cx-

plicitarem, em termos de cultura e dc

civilização, o espírito continental, o sen-

timento de americanidade. Seria, po-

rém, ingênuo acreditar no definitivo de-

clínio do continente europeu como é,

por outro lado, ingênuo um certo con

tinentalismo, ou melhor, o americanis-

mo que prevê, para

breve, uma surpre-

macia da América sôbre a Europa. Co-

locando-nos entre o otimismo de uns

e o pessimismo

de outros, pensamos

que, nêste instante, o

que a América

apresenta de superior, talvez, ao Velho

Mundo é uma comunidade histórica

mais viva e recente, uma possibilidade

maior de comunhão entre os diversos

povos que a constituem.

Aquêle sentimento de americanidade

si bem que

obscuro, e em pressentimen-

to, ainda, não é uma palavra,

apenas,

para ser usada em discursos diplomá-

ticos, mas corresponde a alguma cousa

viva na alma do continente e poderá

lazer da América um mundo, isto é,

um todo constituído de partes

organi-

camente aderentes. Na Idade Média, a

Europa foi, de fato, um mundo, por-

que suas nacionalidades, de contôrnos

pouco precisos e definidos, trabalhadas

pelo sal da Igreja Católica, não se sepa-

ravam por

fronteiras eçonômicas, po

líticas e geográficas

tão nítidas, como

nos tempos modernos. A organicidade

que o Velho Mundo

perdeu, com a dis

solução das formas da medievalidade,

lhe dava a conciência de u'a missão a

cumprir e identificou o seu destino com

o destino do Ocidente. Si o Ocidente

começou no Golgota, como diz Mari-

tain, foi na Europa que

se exprimiu

morfologicamente como um tipo de ci-

vilização distinto do tipo hindú, do chi-

nês, do islâmico. A guerra

a que

as-

LITERATURA LATINO-AMERICANA 27b

sistimos é a liquidação de um mundo

infiel à sua vocação, é o termo de um

processus que se iniciou com a Renas-

cença, que

representa a rutura da hie

rarquia, da ordem, da organicidade.

Êsle é um instante raro para

a Amé-

rica no sentido em que

lhe cumpre as-

sumir uma vocação, também, elaborar

um novo mundo, pois,

o fermento do

Ocidente foi lançado em suas entra-

nhas.

Numa revista de cultura política,

co-

mo esta, que quer

ser uma pesquiza

incessantes das linhas mestras da na-

ção em todos os setores da cultura e ura

esfôrço de penetração

em busca do sen-

tido de nossas tradições, que quer,

atra-

?és dos seus quadros,

espelhar a vida do

país, seria uma lacuna a ausência de

uma secção sôbre a literatura latino-

americana, um dos aspectos da ativida-

de intelectual por

onde é mais fácil o

acesso à intimidade dos países

irmãos.

Nas futuras crônicas dêste lugar, se-

rá sempre considerando que

o Brasil

não se pode

dissociar do continente

americano, que

exploraremos os planos

da literatura latino-americana, ora apre-

sentando uma visão de conjunto sôbre

um período,

uma época, ora estudando,

especialmente, personalidades cujas

obras sejam portadoras

da teluricidade,

da nota continental que

nos interessa.

Ser-nos-á fácil, numa espécie de mé-

todo comparado, aproximar a evolução

literária americana da formação nacio-

nal e encontrar, em uma e outra, pon-

tos de contacto que

revelem uma se-

melhança de fisionomia histórica e so-

ciai, desde um Bolívar, no terreno po-

lítico, em cujas cartas, proclamaçôes e

discursos se acham, em germe, a doutri-

aa de uma democracia continental e a

idéia da organicidade, até às obras lite-

rárias que

denunciam a aura da terra,

de Sarmiento, em Facundo, de Hernán-

xiez, em Martin Fierro, de Guiraldes, em

Don Segundo Sombra, de Hugo Wast,

em Desierto de Piedra, de Zorrila, em

Tabaré, de Laireta, em Zogoibi, de

Reyles, em El Terruno e ainda, em ou-

trás esferas, as de um Rubén Darío, um

Amado Nervo, um José

Enrique Rodó,

um Santos Chocano, um Ricardo

Palma...

Muito de nosso interêsse, entretanto,

será dirigido para

os atuais poetas,

ro-

mancistas, novelistas, sociólogo e filó-

sofos que,

como no Brasil, estão dando

às literaturas de seus países uma indi-

vidualidade, enriquecendo-as de obras

de ambiência genuinamente nacionais.

Êste fenômeno de maturidade vem

sendo marcado pelo

aparecimento de

estudos de psicologia literária como Por

la emancipaciôn da la America Latina,

e A donde va indo a América? de Haya

de la Torre; Siete ensayos de interpre-

tación da la realidad peruana de Ma-

riátegui; Vida y pasiôn

de la cultura

en America de Luiz Alberto Sanchez;

Hispana-America e intuición de Chile y

otros ensayos de Mariano Picón Salas;

America inicial de Luiz Franco; Seis

ensayos en busca de nuestra expressión

de Henriquez Urefia; La sensibilidad

americana de Emílio Trugoni.

Sem nenhuma dúvida, a moderna li-

teratura latino-americana é muito m»fri

rica e fecunda do que

a dos períodos

anteriores. Como aconteceu no Brasil,

a evolução literária dos outros povos

americanos se assinala por

trés grandes

etapas distintas: a colonial em que

a

margem deixada à arte foi o sermão,

a crônica, e a elegia, como diz Ludwig

Lewisohn, num livro, aliás, referente

aos Estados Unidos (The

Story of Ame-

rican Literature), cuja pista

haveremos

de seguir em algumas das próximas

crônicas; a romântica, de importância

não apenas literária, mas também poli-

tica e até filosófica, sob cuja influência

as nacionalidades americanas tomaram

conciência de si mesmas e começou,

literatura, a experiência afetiva da ter-

ra e, por

fim, a fase contemporânea

que é um tournant, uma confluência

de anseios e que, pelo

notável acêrvo

de obras originais, nos confirma que

a

América já

encontrou suas formas ge-

nuínas para

dizer-se.

Valha, assim, esta crônica inicial como

uma exposição dos motivos que justifi-

cam estas novas colunas de CULTURA

POÍTICA, as quais

não serão um sim-

pies registro bibliográfico mensal, mas

uma janela

aberta para

a América La*

tina, cuja paisagem literária é tão bela

como a de um amanhecer...

História literária do Brasil

III

ROSÁRIO FUSCO

j.

PESAR de acabarmos o primeiro

século em prosa (1500-1600), pro-

sa poética embora, é,

paradoxal-

mente, um livro de poesia que

serve

de marco ou ponto

de referência de tu-

do o que

nos ficou do século XVI.

Queremos falar da Prosopopéa, de

Bento Teixeira Pinto, estampado em

1601, em Portugal, em louvor de Duar-

te Coelho Pereira, primeiro donatário

de Pernambuco, morto em África, lu-

tando com D. Sebastião contra os mou-

ros.

Como manifestação mais remota da

literatura do Brasil, êsse poema camo

neano de reinol Bento Teixeira deve

ser emparelhado à Relação do Naufra-

gio de Jorge de Albuquerque e o Dia-

logo das Grandezas do Brasil. Isso si

quizermos excluir, do mesmo rol, co-

mo realmente o fazemos, o Tratado

Descritivo, de Gabriel Soares, que é de

587-

Mas é só mesmo com Botelho de Oli-

veira que

começa o nosso nativismo li-

terário, que

— esboçando-se nos ver-

sos da Ilha da Maré se acentúa, forte-

mente, na Historia do Brasil de Frei

Vicente do Salvador. Êsse nativismo li-

terário que

correu paralelo ao

políti-

co, na colônia, prolonga-se, pelo

tempo

afóra até o século XVIII.

E é ainda sob a imposição de suas

normas, — mais contágio do

que in-

fluência — que

os arcades mineiros pre-

pararão êsse romantismo brasileiro de

que tanto falam os historiadores,

presos

à necessidade de uma divisão das esco-

Ias literárias entre nós.

Todos os autores são unânimes em

mostrar que

foram as lutas políticas,

que por tantas vêzes chegaram a fazer

periclitar a integridade da colônia, que

fomentaram e insuflaram o espírito na-

ti vista de nossos escritores e poetas.

E realmente, só depois das guerrilhas

como os holandeses, na Baía e em Per-

nambuco, das lutas com os franceses,

no Maranhão, das complicações políti-

cas com os jesuítas, no Pará —

é que

os nossos intelectuais começam a pen-

sar mais no Brasil, apreendendo melhor

isso que

Barrés chama de "noção

de

pátria" que os livros não dão e

que

só a atmosféra social empresta ou nos

faz adquirir por um fenômeno

próxi-

mo da osmose.

Os fidalgos continuam enchendo as

ruas de Salvador. Os funcionários do-

govêrno geral prosseguem fazendo or-

gias nas ladeiras excusas e escuras da"cidade

D'el Rei e Côrte do Brasil",

índios mansos e negros se misturam pe-

lo sexo e pelas atitudes

públicas, pe-

HISTÓRIA LITERÁRIA DO BRASIL 277

los gôstos e

pelas preferências ao al-

cool, aos amores escandalosos, à in-

fluência perniciosa dos reinois ociosos

"que vivem do nada fazer e se apai-

xonam com o tudo esperar", para

usar

a expressão pitoresca de um cronista

daquêles recuados tempos.

Pois é nessa atraosféra, como reação

a êsse meio e a essa sociedade, é que

nascem, para

viver, e vivem, para pro-

duzir, os poetas

do nosso período clás-

sico que

constituem a Escola ou o cha-

mado Grupo Baiano, a que pertencem,

entre outros, Botelho de Oliveira, San-

ta Maria Itaparica e o próprio diver-

gente Gregório de Matos.

Estudos e pesquisas

cientificas

III

VIEIRA PINTO

Professor na Faculdade Nacional de Filosofia da

Universidade do Brasil. Ex- professor de Filosofia

das Ciências na Universidade do Distrito Federal

A radioatividade de alguns minerais brasileiros

NOSSO

POTENCIAL econômico e

constituído em parte primordial

pelos recursos minerais. Dêstes, al-

guns estão

já estudados e em exploração

mais ou menos avançada, mas a maioria

não achou ainda a maneira de atualizar

em nosso benefício a sua prodigiosa

ri-

queza. E' um

problema dos mais sérios

para o nosso

país, pois devemos aprovei-

tar as circunstâncias atuais para

con

correr com a nossa produção

mineraló-

gica nas condições

perturbadas da eco-

nomia mundial. A fase primitiva

do

nosso ciclo econômico mineral caracte-

rizou-se pela

exploração dos minérios

de luxo, o ouro e as pedras preciosas.

A entrada do ferro e do manganês e

recentemente do carvão no cenário eco

nómico é uma segunda fase, ainda não

satisfatória, em face do imenso poderio

ainda inutilizado. A terceira fase deve-

rá ser a do aproveitamento total das

riquezas do sub-solo. Para isso tende

a política

do Govêrno, promovendo de

todos os modos as pesquizas geológicas,

paia localização e estudo dos minérios

e suas jazidas.

Com o desenvolvimento dêsses estu-

dos, ao lado do conhecimento metódico

e mais extenso dos minérios já

des-

cobertos, outros podem

vir a ser encon-

trados, que

constituirão surpreendente

revelação. Assim, queremos

referir-nos

nesta crônica aos estudos a que

se de-

votou o Prof. J.

Costa Ribeiro, da Fa-

culdade de Filosofia, da Universidade

do Brasil, e que

vieram revelar a

existência de minerais brasileiros do-

tados de alta radioatividade. Será util

divulgar os trabalhos de superior in-

terêsse científico e nacional dêsse jovem

mestre, e que,

tendo sido comunicados

à Academia Brasileira de Ciências, não

tiveram no público geral

a merecida

repercussão.

Conseguiu o Prof. Costa Ribeiro en-

contrar numa espécie mineral que

lhe

fôra enviada, um teor de rádio supe-

i lor ao conhecido entre os minerais

congêneres, mesmo aquêles que

são

hoje industrializados para

a produção

regular do rádio. Procurando estudar

os valores comparativos de diversas

amostras de minerais radioativos achou

numa delas, proveniente

do município

de Rio Branco, em Minas Gerais, um

elevado índice de radioatividade.

A técnica usada nestas pesquizas

consistia em reduzir a pó

impalpável

os minerais em estudo e obter uma

suspensão do pó

em clorofórmio. Sôbre

um disco metálico de área determi-

nada obteve-se por

evaporação do cio-

rofórmio uma camada aderente de es-

pessura uniforme. Com tôdas as amos-

tras procedeu

da mesma forma, resul-

ESTUDOS E PESQUISAS CIENTÍFICAS279

tando uma coleção de discos para o

estudo comparativo da emissão radio-

ativa.

Para determinar as correntes de ioni

/ação produzidas por esses minerais,

<reou o Prof. Costa Ribeiro um método

especial. Consiste éste na utilização de

um método de ponte para medir as

< 01 rentes de ionização, no qual a

que-da de tensão resultante da

passagemda corrente a ser medida

por uma re-

sistência niuiro elevada é equilibrada

pela aplicação de uma diferença de

potencial de compensação. Utiliza-se um

electrômetro de grande sensibilidade

paia indicação do equilíbrio e mede-se

a difeiença do potencial de compensa-

c.ão com um milivoltimetro ou com um

potcnciômetro de fio calibrado, si se

deseja maior precisão.

A característica corrente-tensão dêsse

aparelho apresenta um trecho inicial

sensivelmente retilíneo correspondente

aos pequenos valores de tensão, só se

encurvando para

valores mais altos, e

tornando-se paralela ao eixo das ten-

soes no regime de saturação. A parte

retilínea é extremamente favorável às

medidas de radioatividade, pelo mé-

iodo de comparação entre substancias

a ensaiar e outra padrão. Assim, se as

tensões não ultrapassam o percurso re-

lilíneo da curva a proporcionalidade

existente entre os valores de v e os d ei

permite comparar as tensões direta-

mente medidas no circuito de ponte,

obtendo-se a relação entre as correntes

de ionização produzidas pela

substâu-

i ia em estudo e outra tomada como

padrão.

Com o emprêgo déste método exami

naram-se espécies minerais de vá-

rias procedências. Assim foram estuda-

das a monazita e a samarskita de Divi-

no de Ubá, a policrasita de Pomba, ^

uranita da Serra da Moeda e do En-

genho Central, e a curita do Congo

F»elga. O óxido negro de urânio foi

a substancia usada como padrão.

Foi exatamente no curso dessas me

didas que

se tornou evidente a proemi-

nência da radioatividade das amostras

do Engenho Central. Podemos ver no

quadro abaixo os valores da radioati-

vidade relativa, isto é, a relação entre

as intensidades das correntes de ioni-

>-a.,áo do mineral e do óxido de urânio,

u inado como termo de comparação.

Radioatividade

relativa

(Valores médios)

fVvido negro de urânio

Monazita

Samarskita

Policrasita

Uranita (Ser. da Moeda)

Uranita <Eng. Central).

Curita

1.00

°'37

°'53

<>,54

°-54

3 <85

3'62

Após estas medidas, minuciosamente

verificadas e repetidas várias vezes, che-

gou-se à conclusão da existência de um

mineral dotado de um teor de radioati-

vidade mais alto que

o da própria curita

do Alto Katanga, de onde provém atual-

mente a maior parte do rádio utilisado

no mundo.

Julgou então o Prof. Costa Ribeiro

necessário continuar os estudos em tôr-

no desta descol^erta de tão grande inte-

rêsse. O problema que

se segue é o de

verificar qual a natureza do rádio —

ele-

mento responsável pela alta radioativi-

dade do mineral.

Para isso é necessário estudar a ema-

nação desprendida de uma solução do

mineral, mantida em balão fechado, du-

rante um tempo suficiente para garan-

tir o equilíbrio dos produtos de desin-

tegração com os rádio-elementos pre-

sentes na solução. Foi usado o método

de circulação para

as primeiras medi-

cias, mais tarde repetidas pelo

método

de ebulição. Em todos os casos verificou-

se que

a curva de evolução da corrente

11a câmara de ionização tem a forma

característica da produzida pela

emana-

< ão do rádio.

Comparando as soluções de minério

do Engenho Central com as da pech

blenda de Joachimstal encontraram-se

valores de radio sempre superiores no

produto brasileiro. Por exemplo, na pri-

meira medida efetuada os valores indi-

cavam um teor em rádio correspondente

a i>73 miligramas de rádio por

tonelada

de mineral. Em uma série de medidas

os valores médios obtidos foram os se-

guintes:

280 CULTURA POLÍTICA

Teor expresso em

mg. Rá./ton.

Pechblenda 215

Mineral em estudo 253

Êsses valores indicam uma riqueza de

cêrca de 18 %

mais elevada no mineral

brasileiro que

na pechblenda.

Fica esta-

belecido ser o rádio o elemento causai

da radioatividade reconhecida. O tórlo

deve ser excluído. Para verificação do

seu teor em urânio são usados processos

químicos, assim como

para estudar a

sua composição centesimal, e, uma vez

êstes dados obtidos, será possível

cal-

cuiar então a sua "idade"

provável.

FÍlo será demasiado encarecer o alto

sentido destas pesquizas, que podem

ser

a origem de um aproveitamento eco-

nômico considerável. Dada a grande

ne-

cessidade do rádio para

o tratamento

das neoplasias, e a sua completa carên-

cia entre nós, estamos certos que,

si

fosse possível

a sua exploração, lucra-

riamos com isso, não apenas a aquisição

de uma nova fonte de riqueza, mas tam-

bém de uma fonte de saúde de que,

por enquanto, se acham privados

a

imensa maioria dos necessitados dessa

terapêutica.

Entretanto, é ainda cedo para julgar

dessa possibilidade.

O Prof. Costa Ri-

beiro termina unia de suas monografias

tom estas palavras

de prudente

reserva:

"Trata-se de um mineral

que se apre-

senta com características que poderão

ser do maior interesse para

o País, caso

ocorra em quantidade

apreciável e em

condições de ser explorado industrial-

mente, o que,

no entanto, ainda não é

possível afirmar".

Educação

iii

F. VENANCIO FILHO

Professor catedrático do Instituto de Educação do

Distrito Federal. Sócio fundador e ex-Presidente

da Associação Brasileira de Educação

A

EDUCAÇÃO secundária foi sem-

pre, no Brasil, ensino, no sentido

restrito do étimo do vocábulo.

Nunca teve qualquer

estrutura forma-

tiva, sendo, de caráter meramente infor-

inativo. Foi sua nota tSnica a de trân-

sito para

as escolas das profissões

libe-

rais e por

conseqüência, como estas,

simples graduação

social. Não é por

acaso que

o Brasil é o único país

em

que todos os cursos

profissionais são

marcados por

anéis coloridos...

E por

isso que

sempre assim foi, não

se justifica o refrão

permanente da de-

cadência que

se lhe vem atrib»'*ndo,

desde épocas imêmores. O diagrama de

sua evolução seria quando

muito repre-

sentado por

linha reta paralela

ao eixo

horizontal e nunca pela parábola

des-

cendente com que

a pintam

observado-

res apressados. Decaindo sempre, desde

tanto tempo, já

teria atingido ao cen-

tro da terra. No período

colonial a sua

organização era naturalmente precária.

Nasceu da necessidade de formar mis-

sionários, catequistas e professores para

a Companhia de Jesus.

Só um esta-

belecimento atingiria níveis bem altos,

um pouco

adiante da sua época, êste

admirável Seminário de Olinda, do

grande Azeredo Coutinho, o notável re-

presentante da cultura do tempo,

"ma-

temático e economista" que

"de algu-

ma sorte já prefigurava,

no versar os

mais díspares assuntos, o traço essencial

de nosso espírito vezado às generaliza-

ções brilhantes em detrimento das es-

pecializações fecundas".

O Império pouco

adiantaria à situa-

tão da colônia. Não poude José

Boni-

fácio, o estadista culto e sábio, em meio

às múltiplas e complexas questões que

teve de enfrentar, atentar para

o pro-

blema da formação da cultura do país,

que já, a êsse tempo, preocupava os

po-

vos adiantados. A Constituição, outor-

gada em 1824

pela Coroa,

propugnando

a "instrução

primária gratuita" e para

todos, atingia antes a uma aspiração que

à realidade, remota ainda em nossos

dias e os' "colégios

e universidades" se-

riam votos esquecidos ou ignorados. O

Ato Adicional, dez anos mais tarde,

transferia a instrução primária às Pro-

víncias, ficando ao poder

central o en-

sino superior e, em têrmos vagos, "ou-

tros quaisquer

estabelecimentos que

ve-

nham a ser criados". As aulas régias,

soltas e dispersas por

várias cidades do

Brasil, iam preparando uma certa cul-

tura secundária, sobretudo em algumas

províncias. Antes do Colégio Pedro II,

oficializando o Seminário de S. Joa-

quim, na regência de Araújo Lima,

o Rio Grande do Norte, por

atq> do

Presidente Basílio Quaresma Torreão,

de 2 de Dezembro de 1836, creava o

Ateneu, reunindo as aulas avulsas. Sur-

282 CULTURA POLÍTICx\

giriam posteriormente, em outras pro

víncias, estabelecimentos oficiais de en-

sino secundário, alguns de renome.

E' de 1811, talvez, o primeiro

esta-

belecimento secundário de iniciativa

particular, devida a Felisberto Antônio

de Figueiredo Moura. Com a criação

dos cursos jurídicos,

em 1827. a exi-

gência de exames,

perante bancas ofi-

ciais, de algumas matérias, traía a fei-

ç3o de trânsito, até hoje típico de cur-

so secundário. Em 1832, o Seminário de

Olinda se transforma em estabeledmen-

to de ensino secundário, mais tarde

curso anexo da Faculdade de Direito,

que se estendeu a S. Paulo. Em 1854

surgem exigências novas para

as ma-

trículas nas Faculdades de Medicina e

Direito, ligeiramente diferentes para

ca

da qual,

sendo que

nas primeiras

os

exames eram prestados perante

bancas

oficiais, presididas pelo

Diretor da es-

cola.

Só a partir

de 1874 é que

os cha-

xnados preparatórios puderam

ser feitos

nas províncias que

não possuíam

esco-

Ias superiores, só existentes no Rio. em

S. Paulo, na Baía e no Recife.

A educação feminina, dominantemen-

te doméstica, era feita também em es-

tabelecimentos particulares,

religiosos,

especialmente católicos. Só se ampliou

com o advento das escolas normais, efe-

tivamente começadas em 1880 na Corte.

Depois de 60 desenvolvem-se inúme-

ros colégios secundários, de iniciativa

privada que atingiram alguns, sob o

idealismo de educadores eminentes, ní-

veis bem altos, com os de Tautphoeus.

Freese, Micaúbas. Pujol, Kopke. Mene-

zes Vieira. Aquino. O ensino oficial se

limitava ao Colégio Pedro II, e outros

provinciais com número

pequeno de

alunos, dos quais

minoria fazia o curso

de bacharelado em ciências e letras.

# ? #

Com o advento da República não te

ve novos rumos a educação brasileira.

Faltou-lhe um jefferson ou um Sar-

miento. Espanta que

o não tivesse sido

Rui Barbosa, esquecido do autor do

Parecer famoso de 1882 e que passaria

cincoenta anos de apostolado cívico,

defensor das liberdades brasileiras, de-

satento aos seus fundamentos. São opor-

tunnas e justas, por

isso, aquelas pá-

ginas de Vicente Licínio, 11

* "A Margem

da História do Brasil", quando

o re-

lembra e inclue na mesma acusação

Pedro II, que,

de volta dos Estados

Unidos, em 1876, nenhum passo

real

déra pela

educação.

Benjamin Constant, transferido por

conveniências políticas, para

a pasta

es-

drúxula e efêmera de "Instrução

Pú-

blica, Correio e Telegrafos", fez a sua

reforma, logicamente modelada pela

sua

escola filosófica, ambiciosa de mais pa-

ra a nossa cultura, pela

falta da peça

essencial, que

era o professor. E como

se ativera à escala enciclopédica da ad-

mirável série comteana, não a ajustou

às possibilidades e necessidades

pedagó-

gicas e iniciou a famosa

"congestão ce-

rebral" de que

vem, no papel, padecen<-

do o nosso ensino secundário. Não

cumprida a sua reforma, foi modificada

por Fernando Lobo e finalmente refor-

mada em 1901 por

Epitácio Pessôa.

Convém observar que

no exame das

leis do passado há o esquecimento ou

a ignorância de inumerável série de fa-

tos e episódios parasitários,

reais ou in

ventados, que

lhes acompanhavam a

execução, enquanto que

dos coevos te-

mos conhecimento, tanta vez deforma-

do pelo

interêsse ou pela

raaledicência

O ' Código de Ensino" de 1901 durou

10 anos. Reforma revolucionária se se-

guiria, para o ensino secundário, com

a Lei Rivadávia Correia, em 1911, que

o desoficializou. E porque

não foi pre

parada por um largo debate, antes fru

to de trabalho quasi

secreto de gabinete

ministerial, teve efêmera duração, subs-

tituída pela

Reforma Carlos Maximilia

110, em 1915.

Permaneceria 10 anos, modificada em

1925 pe*o Ministro

João Luiz Alves,

com a Reforma chamada Rocha Vaz.

Chegamos enfim à Reforma Francisco

Campos, com a Revolução de 30,

de 18

de Abril de 1931, em que pela primeira

vez em toda a história de educação no

Brasil a legislação do ensino secundário

se fazia separada da do ensino superior.

# # #

A despeito das afirmativas de cada

legislador de que

tudo o que

encontra-

va eram ruínas e escombros, pode-se

vislumbrar, sem dificuldade, uma níti-

da linha evolutiva, no nosso ensino se-

cundário. especialmente 110 período

re-

publicano.

EDUCAÇAO283

A reforma Francisco Campos, quer

a

de Ensino Superior, aí realmente su-

perior, porque incluiu o universitário e

não apenas os profissionais clássicos,

quer a do ensino secundário, represen-

tam outros rumos, dentro da corrente

renovadora iniciada em 1927 pela

Re-

forma Fernando de Azevedo, no Distri-

10 Federal, que

incorporava em lei, pe-

la primeira

vez, as novas idéias, origi-

nadas das pesquisas em

psicologia e so-

ciologia educacionais.

Após a extinção do Ministério da

Instrução Pública, voltou o ensino a

depender do Ministério da Justiça

e

Negócios Interiores, (antigo do Impé-

rio), com uma Diretoria apenas de ca-

ráter burocrático, ficando todas as ques-

tões em relação direta com a Secretaria

da pasta política, a

que se devem to-

das as reformas até a de 1931, já

do

Ministério da Educação, criado em 1930.

Com a reforma de 1911 surge o pri-

meiro órgão de natureza técnica, em-

bora de ação temporária, e meramente

consultivo, que

foi o Conselho Superior

de Ensino, constituído dos diretores dos

institutos federais e de um represen tan-

te eleito pelas

congregações de cada

qual.

Em 1925, aparece um órgão perma-

nente, além do Conselho, êste na lei

desdobrado em 3

secções, mas só na lei,

com uma composição mais ampla, pois

abrangia o ensino do gráu primário e

de outros ramos.

Êste órgão é o Departamento Nacio-

nal de Ensino, que

se desenvolveu, pas-

sando por

várias denominações, até o

atual Departamento Nacional de Edu-

cação, a que

se subordina todo o ensi-

no mantido e fiscalizado pela

União, â

exceção dos que

teem autonomia, como

a Universidade do Brasil e o Colégio

Pedro II.

A despeito da descontinuidade admi-

nistrativa, tão característica; apesar das

declarações uniformes das exposições de

motivos dos reformadores de que

o que

encontravam de nada servia, sendo pre-

ciso modificar tudo, edificar de novo, fa-

zendo tábua raza, apesar de tudo isso,

há, talvez sem se dar conta, uma con-

tinuidade subterrânea, em alguns prin-

cípios fundamentais à educação secun-

dária.

Assim a idéia de seriação de curso é

um princípio

em evolução contínua.

Do regime de "preparatórios"

soltos,

isolados, sem ligação de fundamentos

foi-se chegando ao curso em série, de

matérias agregadas em conjunto, a prin-

cípio sob a forma de exames, depois

de ensino.

A preocupação exclusiva do exame,

apressado, subjetivo, em forma de lo-

teria, que

ia desde as bancas examina-

doras, variáveis ao acaso do figor dos

seus componentes até a do ponto,

subs-

titue-se a do ensino seriado, feita a

apuração em provas parciais,

cada vez

mais amplas de conteúdo, ao lado das

provas mensais e da

prova oral, de me-

nos valor e portanto

de menos pêso.

Ao envés do ensino secundário restri-

to a uma percentagem insignificante da

população adolescente, uma maior ex-

tensão, pois

de 1930 a 1936 variou o

número de alunos, de 40 mil a cêrca

de 160 mil, para uma variação de

po-

pulação de

40 milhões para 42 milhões.

Extensão às moças dêsse ensino, pois

em 1907 concluíram o curso secundário

de bacharelado em letras as duas pri-

meiras jovens que

a êle se aventuraram

e hoje o número delas eqüivale ao do

sexo masculino.

As avaliações estatísticas relativas ao

ensino eram obtidas globalmente nos

lecenseamentos gerais, enquanto

que

hoje já

se possuem

dados do país

todo,

dignos de fé e em dia.

Ouvem-se por

toda a parte pregoei-

ros da decadência, que

todos se julgam,

sem excessão, depositários de uma gran-

de cultura, esquecidos do que

foi o en-

sino do seu tempo e dos que

sobraram

na massa imensa que

se perdeu pela

vida afora e do esfôrço próprio

de cada

um, aceita sem discussão aquela pre-

sença de cultura pessoal...

Os dados que permitem

a afirmativa

segura de que

o ensino melhorou são

escassos e é evidente que

êle não aten-

de àquela finalidade formativa, que

é

precipua. Falta-lhe aquêle sentido de

organicidade e de unidade, de sistema

desmodrômico, de cultura ajustada para

a vida, no meio e no tempo, que

llie

deve ser peculiar.

Considera-se agora que

hoje há exi-

gências de higiene de

prédios, de ins-

talações para

os colégios secundários.

E outrora?

Há uma preocupação

mais ampla de

disciplinas coletivas, como educação fí«

284 CULTURA POLÍTICA

sica, canto orfeônico. Hoje os progra-

mas e pela primeira

vez na escola se-

cundária apresentam normas metodoló-

gicas.

E' óbvio que

a média geral

do ensino

piorou em absoluto, e o fenômeno é

geral, uma vez que

essa extensão do

ensino secundário não se fez acompa-

nhar da medida necessária, imprecindi-

vel, urgentíssima, da formação especí-

fica do professor

secundário, que

aliás

o legislador reconhecia como providên-

cia sem a qual

tudo o mais falharia.

De 13 mil professores que

havia em

1932 passou,

o número em 1936, a 18

mil, só nêste período,

sendo que

nesta

data cêrca de 50 %

dêsse professorado

não tinha curso secundário completo.

Convém não esquecer que já

se en-

contrará hoje, quem

faça do magistério

profissão e

que outrora êle era cons-

tituído em quasi

totalidade de médicos,

que ensinavam física,

química e histó-

ria natural, engenheiros, que

ensinavam

matemática e desenho, advogados que

ensinavam o resto.

E' certo que

havia bons e até ótimos ,

professores, mas não os há hoje também?

Entretanto o magistério é profissão

que exige formação específica, não ape-

nas o primário,

mas igualmente o se-

cundário, pois que

tem que

trabalhar

com sêres dotados de uma psicologia

própria e

que vão agir em seu meio

social.

O que

a educação secundária exige é

reforma^ diremos mesmo revolução, de

métodos e não de currículo, de seriação

e de programas.

? # #

A grande

reforma da educação secun-

dária, compatível com as aquisições pe-

dagógicas do nosso tempo, tem de ser

radical. "O

sistema de hábitos, atitudes

e comportamentos que

o habilitem (o

estudante) a viver por

si mesmo e a

tomar em qualquer

situação as decisões

mais convenientes e mais seguras", con-

forme se lê na magistral exposição de

motivos do Ministro Campos, exige uma

modificação de estrutura, não só no pcs-

soai docente, o que

é essencial, como

na própria

construção do currículo e

sobretudo nos processos

de aprendi-

zagem.

Seria solução inteira e positiva

a essa

análise indeterminada a que

reduzisse

o estudo com professor

às duas discipli-

nas instrumentais: linguagem (nacional

e estrangeira) e matemática. Esta da-

ria o pensamento

funcional e a primei-

ra o pensamento

lógico. As demais se-

riam conteúdo das duas, adquiridas, co-

mo são na realidade, para

uma incor-

poração definitiva, as ciências físicas e

naturais, a geografia

e a história, em

bibliotecas, laboratórios, oficinas, numa

atividade pessoal

e direta de cada ado-

lescente, além das disciplinas coletivas

de educação física e canto.

Uma reforma dêsse tipo poderia

cons-

truir uma transformação molecular da

educação secundária para

os nossos dias.

Talvez seja cêdo de mais para

tentá-la.

Movimento bibliográfico

III

ANTÔNIO SIMÕES DOS REIS

Do Instituto Nacional do Livro, do Ministério

da Educação e Saúde

RELAÇÃO DOS LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL EM MARÇO DE 1941

Livros Brasileiros

Biografias — Memórias e auto-biografias

MACEDO. ROBERTO — O barão do Rio Verde. Rio, Alba, 1941, 168

p.NAPOLEÃO, ALUIZIO — O segundo Rio Branco. Rio,

"A Noite", 1941, 187

p.

Contos

MARINS, NILZA — Primeiro sonho

(Contos). Rio, Cia. Brasil Ed., 1941.

XAVIER, BRAULIO - Vidas em tumulto. Rio, Pongetti, 1941,

409 p.

Ciências médicas

ARAÚJO (H. C. de Souza; e A. F. Rodrigues de Albuquerque) — A lepra na

cidade do Rio de Janeiro. Sep. "Ata

Médica", Rio, Imprensa Nacional

1941, De pp.

63-90.

ARAÚJO, H. C. DE SOUZA — Aspectos da prostituição e do combate às doenças

venéreas nalguns países Sul-Americanos. Separata, Rio, Imprensa Nacional,

1941. De pp. 745-750.

LAMARE, RINALDO DE — A vida do bebê. Rio, Freitas Bastos, 1941, 344 p.

Critica

PINTO, LEONARDO PINTO — Origens da literatura portuguesa. S. Paulo,

1941, 8 p.

Direito e legislação

SILVEIRA, ALÍPIO — A boa fé ?io Direito Civil. Ensaio. Carta-prefácio de Clovis

Bevilaqua. S. Paulo, Tip. Paulista, 1941, 204 p.

Diversos

DELGADO, LUIZ e ANDRADE BEZERRA — Recepção de Luiz Delgado na Aca-

demia Pernambucana. Recife, 1941, 47 p.

MAUL, CARLOS — Há um rumor de lutas nas catacumbas. (Crônicas da atuali-

dade brasileira. Rio, Zelio Valverde, s. d., 200 p,

286 CULTURA POLÍTICA

VIEIRA, CELSO — Estudos e orações. (Trabalhos

da Presidência). Rio, Publica-

ções da Academia Brasileira, 1941. 288 P»

ERSE. ARMANDO (.João Luso)

— Assim falou Polidoro. Rio, Cia. Editora Ame-

ricana, 1941, 208 p. ... o

Orações e palestras.

Rio. Livraria José Olímpio editora, 1941, 258 p.

Educação

FONTE. GUIOMAR DE SA* — A moça moderna. Rio, Pongetti, 1941, 108

p.

Estado Novo. I: Administração

DUTRA, EURICO GASPAR — O Exército em dez anos de

governo do Presidente

Vargas. Conferência, Rio, D. I. P., n. 168, 70 p.

Estado Novo, II: Direito e Legislação

DUARTE, GIL —4 A paizagem

legal do Estado Novo. Rio. Livraria José Olímpio

Editora. 1941» 203 p.

Estado Novo, III: Diversos

PALAVRA (A) DOS ESTADOS

— Rio, D. I. P., n. 165.

Estado Novo, IV: Educação

SANTOS, FRANCISCO MARTINS DOS — O

fato moral e o fato

social úi década

getuliana. 2.a ed.. Rio, Zelio Valverde, 1941, 144 P

Estado Novo, V: Produção

CORDEIRO DE SOUZA, OCTACILIO PINTO — Aspectos da Produção Animal n *

Estado Novo. Rio, D. I. P.. n. 164, 157 p.

Estado Novo. VI: Sociologia

GUIMARÃES, OSIAS — Amor à terra. (Decenal da revolução brasileira^. Obra

premiada no concurso de monografias instituído pelo

D. T. P. Rio, De-

partnmento de Impren»a c Propaganda, 191». n. 174, 208 p.

PADILHA, JOÃO — O Brasil na

posse de si mesmo. Rio, D. I. P., 1941. n. 163, 127

p.

Estado Novo, VII: Urbanismo

CRUZ, H. DIAS — Os morros cariocas 110 novo regime. Rio, 1941. 67

p.

Estado Novo, VIII: Viação

MELLO. VIEIRA DE; e TEIXEIRA BRANDÃO - A nova

política ferroviária <í >

Brasil. Rio. D. I. P.. n.° 173. 1941, 138 p.

e uma f. desdobrável.

Folclore

GOMES, ANTONIO OSMAR — A chegança. Contribuição folclórica do Baixo São

Francisco, Rio, s. d. 1874-4 (n. nums.).

História do Brasil% 1

MORTE, JOSE' MATOSO MAIA — O município de Niterói. Corografia. História.

Estatística. MenwSria. Rio, "Jornal

do Comércio", 1941, 370 p.

GOYCOCHEA, CASTILHOS — O espirito militar na

questão acreana. Rio, Biblio-

teca Militar, 1941, 124 p.

LEITE, AURELIANO — São Francisco de Paula de Ouro-Preto nas Minas Gerais.

2.a ed., S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1941, 142 p.

MOVIMENTO BIBLIOGRÁFICO 287

\

LISBOA, BALTAZAR DA SíLVA -- Anais do Rio de Janeiro. Tomo I, Rio, Pre-

-ri.!»? 1? Plstru,°

te^5rai' 'W' '35 P- Com o retrato de Henrique de

Toledo Dodsworth e Pio Borges.

Livros didáticos

Aritmética:

ZANELLO. HÍPÉRIDES — Aritmética

primária. 3a ed.. S. Paulo, Cia. EditoraNacional. 1941, 226

p.

Biologia:

RIALVA, RITA AMIL 13E Noções de biologia geral. Para o curso complementar

e escolas normais. 3«a

ed., Rio. F. Briguiet, 1941, 572 p.

Ciências físicas e naturais:

FACCINI, NIARIO — Ciências físicas e naturais. 2.a série, ,t.a ed.. Rio. F. Bri-

guiet Sc Cia., 19}if 260 p.,

ilus.

Física c química:

FACCINI, MARIO — Física e química. 3a

série, 8a ed.. Rio, F. Briguiet. 1941, 430 p.

Francês:

ALEM, NEIF ANTÔNIO, e DULCfi DE MORAIS BIANCHINI — Précis de litté-

rature. S. Paulo. Cia. Melhoramentos, 1941, 186 p.

Geografia:

GABAGLIA. F. A.; e J. C. RAJA OABACIA — Curso de geografia. i.a série.

Rio, F. Briguiet, 1941, 162 p.,

ilust.

História da civilização:

SERRANO, JÔNATAS

— História da civilização. Volume IV. A civilização moder-

na. Rio, F. Briguiet, 1941, 298 p.

SILVA, JOAQUIM

— História da civilização. 4.0 ano

ginasial. 12a ed., S. Paulo.

Companhia Editora Nacional, 1941, 273 p.

História do Brasil:

SILVA, JOAQUIM

— História do Brasil para

o quarto ano

ginasial. Rio. Cia.

Editora Nacional, 1941, 226 p.

SERRANO, JÔNATAS

— Épitome de história do Brasil. g.a

ed.. Rio, F. Briguiet.

1941, 250 p.

SILVA, JOAQUIM

— História do Brasil. Para o

quinto ano ginasial.

S. Paulo,

Cia. Editora Nacional, 1941, 233 p.

Inglês:

SERPA, OSWALDO; e PAULO CEZAR MACHADO DA SILVA - A. B. C. Direct

metho Pictured bv A. Espinheira. Rio, Livraria Alves, 1941.

A. B. C. — Exercise-book. Rio, Livraria Alves, 16 p.

Latim:

FARIA, ERNESTO — O latim pelos

textos. (Trechos

escolhidos, anotados e gra-

duados para

o estudo do latim). 3a

ed., Rio, F. Briguiet, 1941, 408 p.

ilust.

Livros de leitura:

BRAGA, ERASMO — Leitura. I (Série Braga). 148.0 ed., S. Paulo, Cia. Melho-

ramentos, 1941, 187 p.

288 CULTURA POLÍTICA

Leitura. II (Série Braga). iu.a ed., S. Paulo, Cia. Melhoramentos, 1941, 217

p.

Leitura. III (Série Braga). 72a

ed. S. Paulo, Melhoramentos, 1941, 259 p.

FLEURY, RENATO SENECA - Na roça. (Cartilha) 29a ed., S. Paulo, Cia. Me-

lhoramentos, 1941, 64 p.

OLIVEIRA, MARIANO DE — Cartilha. Ensino Rápido de Leitura. 2i6.a ed.,

S. Paulo, Cia. Melhoramentos, 1941, 48 p.

Páginas infantis. 56.a ed., S. Paulo, Cia. Melhoramentos, i94f> 111

P*

SOUSA, JÜLIO DE FARIA E — Cartilha intuitiva. Leitura intermediária. Se-

jamos bons. io.a ed., S. Paulo, Liv. Record, 1941*

Português:

CRUZ, MARQUES DA — Português prático. 3a

série. S. Paulo, Cia. Melhoramen-

tos, 1941, 316 p.

Química:-

QUINTELA, DONALDSON MEDINA

— r.° caderno de química prática.

Rio,

"Jornal do Comércio", 1941, 294

p.

Zoologia:

FEIO, JOSÉ'

LACERDA DE ARAÚJO — Sinopse de sistemática zoológica. Acom-

panhada de sucinta caracterização

para ordens e

grupos superiores e de um

glossário de termos usados em zoologia. Rio,

"Jornal do Comércio",

194I» *7* P-

Literatura infantil

DUARTE, BANDEIRA — Rondon o bandeirante do século XX. Desenhos de F.

Acquarone. S. Paulo, Livraria Martins, s. d., 204 p.

Romances

AZEVEDO. ALUIZIO O mulato. 11a ed., Rio, F. Briguiet. 1941, 475 p.

CELSO, MARIA EUGENIA — O diário de Ana Lúcia. Rio, Liv.

José Olímpio,

1941, 240 p.

NABUCO, CAROLINA — A sucessora. 3.a

ed., Rio, Liv. José

Olímpio, 1941.

OLIVEIRA, ALVARUS DE — Romance

que a

própria vida escreveu. Rio, Cia.

Brasil ed., 1941, 194 p.

Poesia

CORRÊA, DOM F. DE AQUINO — Terra natal. g.a

ed., Rio, Imprensa Nacio-

nal, 1941, 206 p.

CRUZ, FRANCISCO VERA — Sonho e paizagem. S. Paulo, Elvino Pocaí, 1941,

94 p.

SAMPAIO, B. — Taça vazia. S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1941, 217 p.

SANTOS, ARLINDO VEIGA DOS — Isenso da minha miséria. (Trailler literário).

S. Paulo, 1941, 24 p.

VIEIRA, OLDEMAR — Folhas de chá. S. Paulo, Ed. Cadernos da Hora Presente,

1941, 126 p.

Sociologia

ANDRADE, ALMIR DE — Formação sociológica brasileira. Vol. I. Os primeiros

estudos sociais no Brasil. Séculos XVI, XVII e XVIII. (Coleção documen-

tos brasileiros, v. 27). Rio, Livraria José Olímpio, 1941,

320 p.

CARNEIRO, DAVID — Evolução moderna. Epopéia Indústria. Drama. S. Paulo,

Athena Editora, s. d. 243 p.

LIMA, A. M. BUARQUE DE — Navalismo contemporâneo. Rio, Getulio Costa,

1941, 190 p.

MOVIMENTO BIBLIOGRÁFICO289

Viagens

GABAGLIA, RAJA — Em águas do Pacifico. Rio, Imprensa Naval, 1941, 12

p.SILVEIRA, ALÍPIO — A Argentina de hoje. Impressões e estudo. S. Paulo, Tio.

Paulista, 1941, 56 p. r

TRADUÇÕES

Ciências médicas

ROSEMBERG. MAX — Clinica das afecções renais. Trad. Heitor Jobim e Raul

Margarida. 7.*

ed., S. Paulo, Melhoramentos, 1941, 260 p.

SCHICK, BílLA; e WILLIAM ROSENSON — O novo guia

das mães. Pref. Marta*

gão Gesteira. Trad. Fernando Tude de Sousa. Rio, Li\* José Olímpio,

1941, 270 p.

Romance

VANCE, ETHEL — Fuga (Escape) Romance.

(Fogos Cruzados-2). Trad. Lúcio

Cardoso. Rio, Liv. José Olímpio, 1941,

458 p.

Sociologia

ROMAIN, JULES

— Os sete mistérios da Europa. Trad. Ernil Fahrat. Capa de

Raul Brito. Rio, Liv. José Olímpio, 1941,

324 p.

c) Evolução artística

A* ordem política

e

a evolução artística

iii

ESTÉTICA

ou filosoficamentc, a arte

— qualquer forma de arte — é um

élo que

tios une à realidade. Por

intermédio dela afirmamos e negamos,

a um tempo, o mundo que

nos cerca.

Mas é do presente

valendo-se dos dados

que êste nos fornece, que partimos pa-

ra recuar ou avançar no tempo.

Um artista não tira, de dentro

meandros de sua própria

alma, a alma

de seus personagens. assim como um

pintor não improvisa os seus motivos.

assim como um músico não inventa ?io-

1 ações sonoras inéditas para

compor a

sua sinfonia'.

Os artistas vivem de associações de

dados conhecidos, porque a arte se ali•

menta de um conhecimento universal,

capaz de identificá-la em qualquer la-

titude. A música de Bethoveen, ale-

mão, poderá

ser entendida por um nor-

te-americano, assim como a miísica de

César Franck, francês, poderá ser apre-

ciada por um inglês ou um uruguaio.

A arte não tem pátria porque a sua

linguagem não conhece fronteiras. Ela

c sempre, entretanto, ate certo modo

um produto do meio de onde

provem.

uma vez que

os meios sofrem as in-

junções dos fatores externos e internos,

a que

se referem os sociólogos.

Na classe dos fatores internos, estão

compreendidos aqutles que poderíamos

chamar fatores constantes da alma do

homem, propriedades eternas do espi-

rito, que

existem independentemente

das condições de raça, lingua, naciona-

lidade. As variações espirituais são mi-

nimas, no caso, porque

o fim das artes

è um único. Elas perseguem a beleza

e a beleza tanto pode

residir num rosto

mutilado como numa face de

"auroras

feita" como dizia Cruz e Sousa.

A arte brasileira, que

hoje se afirma

mais do que

ontem, está, nêste momen-

to, vivendo um de seus períodos mais

fulgurantes justamente porque, aspi-

rando o universal, parte

do nacional

para afirmar-se juntamente com as ca-

racteristicas essenciais da nossa alma,

da alma do Brasil. Não traindo a sua

origem, portanto, ela não trai a sua

função socializadora nacional e a sua

função unificadora universal. Sua, men-

sagem é a mensagem do país, que

ela

carrega no seu bojo, espalhando os nos-

sos motivos, impondo os fiossos temas,

esclarecendo as nossas particularidades

de povo e divulgando o nosso

feitio de

nação.

Tomai os nossos livros de estudos,

ouvi as nossas músicas, ascultai as nos-

sas pequenas artes

populares menores

— que

refletem o ambiente social em

que vivemos, criado pelo ambiente

poli-

tico de que

dispomos.

Então, ver eis que

o Brasil participa

das nossas manifestações artísticas e que

as nossas artes também trabalham a

unidade nacional. Todas as escolas, to-

dos os gêneros (da

literatura às artes

plásticas) se identificam, no fundo, pe-

EVOLUÇÃO ARTÍSTICA 291

la aspiração comum: brasilidade, uni-

ver sal idade.

Partimos do Brasil, mas aspiramos o

mundo.

E o mundo há-de compreender-nos

porque, valendo-nos da sua experiência,

utilizando-nos de seus modelos, soube-

mos, vagarosa mas firmemente, libertar-

nos da sua influência para

assegurar a

nossa independência artística.

E eis como a legenda de um grande

autor brasileiro tornou-se, com a per-

missão social legada pela política,

o

lema inconciente dos artistas patrícios.

"Cria o teu ritmo livrementedizia

Ronald de Carvalho no inicio do mo-

vimento modernista brasileiro. E é li-

rrremente que

estamos criando: sem a

tutela do Estado, sem a sua direção,

mas com a sua assistência. Êle não tn-

vade o domínio das artes: protege-os.

Êle não provoca conflito entre os in-

leresses dos artífices de todas as artes:

separa-os. Êle prestigia as artes do Bra-

sil, porque

é dêsse prestigio que

vivem

os governos patrióticos, concientes de

reu papel

e côncios de seu dever.

Música

iii

LUIZ HEITOR

Professor catedrático da Escola Nacional de

Música da Universidade do Brasil

BRASÍLIO

Itiberê constitue um "ca

so'' na música brasileira. Brasilio

Itiberê, o Segundo, vamos logo pre-

cisar, pois

em meiados do século pas-

sado, quando

o gênio

de Carlos Gomes

cometia suas primeiras

sortidas, na Côr-

te do Império, revelando as primeiras

óperas brasileiras de grande

sucesso,

um outro Brasilio Itiberê, que

havia

de ter carreira brilhante na diplomacia,

também fazia jús

a duradouros triun-

fos, aproveitando em sua célebre peça

para piano, a Sertaneja, e

pela primei-

ia vez em nossa história musical, te-

mas populares

ou arranjados à feição

dos populares.

Êsse velho Brasilio Iti-

berê, morto em Berlim, em 1913, como

Ministro do Brasil junto

ao governo

do Kaiser, não chegou a ser um músico

ativo porque

a arte, para

êle, teve de

conservar-se no terreno do diletantismo,

só corno tal servindo para

conferir ain-

da maior brilho à vida social de quem

foi um mestre das boas maneiras, ex-

poente legítimo das mais nobres tra-

dições da Carrièrre. Êsse salto do dile-

tantismo para

a profissão

artística é a

proeza que cometeu o nosso Brasilio

Itiberê, sobrinho do primeiro,

aceitan-

do, em 1938, a primeira

cátedra de Foi-

clore Musical criada no Brasil: a da

extinta Universidade do Distrito Fede-

ral; e entrando a compor, desde uns

dois anos antes, uma obra que,

apesar

da critica impiedosa do autor, capaz

de suprimir tudo o que

não lhe agra-

da, alguns meses depois de terminado,

vai dia a dia se avolumando e se apre-

sentando mais firme e mais original.

O "caso",

tratando-se de Brasilio Iti-

berê, não é, propriamente,

a sua pas-

sagem da profissão

de engenheiro para

a de professor

de música e compositor,

mas o tardio dêsse chamado vocacional

e a ausência de formação técnica regu-

lar do compositor que,

entretanto, en*

frentou sobranceiramente, sem temor e

sem alarde, a situação difícil que

se

criava para

êle, resolvendo-a na solidão,

com os seus próprios

recursos, com o

interêsse profundo

e altivo que

sem-

pre devotou àquela arte

que um dos

grandes espíritos do século XYr chama-

va de Frau Música (Lutero).

Sabemos,

através do "caso"

Mussorgsky ou do

"caso" Vila-Lobos, a

que transcenden-

te amadurecimento, inconfundivelmen-

te vigoroso e puro,

essa formação au-

todidática do compositor pode

chegar,

tratando-se de indivíduo impulsionado

por uma verdadeira fôrça criadora.

Não se pode generalizar, pretendendo,

como muitos o fizeram, que

o composi-

tor deve encontrar por

si mesmo, sem

as muletas das disciplinas escolares, suas

próprias harmonias e suas

próprias for-

mas. Mas é certo que

em alguns casos

(e o de Brasilio Itiberê é típico: gran-

de maturidade intelectual* espírito

boêmio, imaginação vagabunda, inca*

paz de sujeitar-se à intolerável sêca dos

estudos fundamentais), é certo que

em

MÚSICA298

alguns casos a dispensa desses estudos

torna-se necessária. Aventurar-se sem o

seu auxilio no caudal da produção mu-

sical contemporânea, tão refinadamente

alentada de técnica, em algumas de suas

expressões, talvez seja temerário; mas

essa própria ausência de técnica, tra-

dicional ocasionando um?, espontaneida

de cheia de imprevistos e uma agreste

originalidade, pode

muito bem vir em

auxilio do compositor, sobrepondo suas

obras, em virtude dessas qualidades no

vas, às que

no requinte da técnica, en

Demostram um certo esgotamento, uma

debilidade criadora habilmente enroti-

pada. E no caso de Brasílio Itiberê há

a considerar, como acima ficou dito, a

psicologia do autor,

quarentão, boêmio,

conhecedor refinado de tudo o que,

no

Brasil, podemos

conhecer de boa músi-

ca; submetê-lo ao regime de cantos da-

dos e contrapontos invertíveis seria as-

sassinar a sua imaginação, roubar todo

o brilho e tôda sedução à livre obra

de arte, méta exclusiva dos seus tardios

esforços.

Natural do Paraná, como toda a di-

nastia dos Itiberês, entre os quais

se

conta esse precioso João

Itiberê da

Cunha, que

assinava Iwan d'Hunnc

suas primeiras

obras musicais, e hoje é

conhecido, nos círculos de arte de todo

país, pelas

iniciais JIC,

com que

subscreve a sua secção de música no

Correio da Manhã (1),

Brasílio Itiberê

veio ao mundo em maio de 1896. A luz

suave do planalto

e o estímulo do clima

temperado, que

contribuem para

um

mais harmonioso equilíbrio da persona-

idade, formaram o ambiente de sua in-

fância e piimeiros

anos da mocidade.

Curitiba viu despontar o seu interêsse

pela música,

pelas letras e

pelo caudal

fecundo da arte e da vida do povo.

Dois músicos estrangeiros, retidos no Es-

tado pela

doçura do seu clima e de sua

gente (como aconteceu a tantos outros),

ministraram-lhe todos os conhecimentos

técnicos que

recebeu através de profes-

sores de música: um italiano, o maes-

tro Corradi, e um suíço (autor

de uma

ópera sobre o romance Inocência, do

Visconde de Taunay): Léo Kessler. Mas

o discípulo de estrangeiros, ao surgir

nos, muitos anos depois, como compo-

sitor levanta o estandarte de um con-

victo nacionalismo, sem alardes, sem cx-

clusivismos, porém simples e seguro de

seu rumo. Não fôra, certamente, 11a

escola daquêles mestres que

êle rece-

bera tão exótica iniciação, ou, sequei,

o gôsto por

essa música impura... Ou-

tios haviam sido, na verdade, seus guias.

Sei de um jovem compositor brasileiro,

autodidata como Brasílio Itiberê, porém

tendo vivido desde criança dentro da

profissão musical, e, por

isso, talvez,

dotado de espantosa habilidade, no tra

to de suas obras, que,

sempre que

in-

terrogado acêrca de seus professores de

composição, responde com a maior

fleugma: "Bach

e Beethoven"... Brasí

lio Itiberê poderia

dizer o mesmo; po-

rém acrescentando: "o

povo". Porque

realmente, ao lado do estudo dos gran-

des monumentos da música, foi nêsse

convívio íntimo com o povo que

êle

buscou tôdas as normas de sua arte.

Brasílio Itiberê nasceu folclorista. Ne-

nhum de nossos artistas tem partici-

pado mais intimamente do

que êle da

vida do povo, porque

nenhum, como

êle, tem pelo povo

tanto interêsse, tan-

ta ternura, mesmo, ou uma igual ca-

pacidade de adaptar-se e inspirar con-

fiança. Durante anos a fio, ao lado das

suas leituras e de concertos avidamente

assistidos, foi observando os folguedos e

trabalhos do povo que

Brasílio Itiberê

passou os seus melhores momentos de

lazer. E' um profundo

conhecedor das

escolas de samba do Distrito Federal e

membro destacado de várias delas. Bi-

sonho, muitas vêses, em nossa socieda-

de, êle se transforma, quando

em con-

tato com a sua gente, divertido com o

pemosticismo de uns, as

"vantagens" de

outros ou a impermeável burrice de al-

guns. Mas a todos observando com fi-

nura e, de uns anos para

cá, quando

a

sua vocação se definiu mais precisa-

mente, recolhendo cuidadosamente tôda

documen tação preciosa.

Sua primeira

obra tornada pública

foi

uma suite para piano (Invocação, Co-

ral, Dansa), premiada,

em 1936, num

concurso instituído pela

Associação dos

Artistas Brasileiros. Em germe,

encon-

tramos nessa obra todas as caracterís-

ticas de seu estilo, apuradas e robuste-

(1) João Itiberê da Cunha é autor de obras

pianísticas de ótima fatura, hoje

em dia incluídas no repertório de quasi

todos os nossos concertistas e de muitos

estrangeiros. A Marcha Humorística é, de todas, a mais divulgada.

294 CULTURA POLÍTICA

cidas nas que

se têm seguido, até à Suite

n.° 2 (O protetor Exú, Ogum, Xangô),

que o

pianista Arnaldo Estréia incluiu,

recentemente, em um de seus progra-

mas. Em 1938 uma outra obra de Bra-

sílio Itiberê era premiada

em concurso:

Ponteio p'ra

São João (canto e

piano),

-fr-ft

vencedora do concurso de canções bra

sileiras instituído pelo jornal

A Noite.

Sôbre um motivo obstinado de acom-

panhamento, só modificado 110 trecho

central da canção, quando

a veemência

expressiva chega ao auge, desenvolve-se

a linha vocal, placidamente

sincopada:

I 1 •'

J; ,1; n\

,v« « T/or*«rwN ---.po

A bagagem de Brasílio Itiberê, tôda

ela datando dêstes últimos quatro anos,

c relativamente importante e muito va-

riada. Inclue peças para piano (além

das duas suites citadas 6 Estudos e uma

Tocata), para cravo

(3 Invenções),

para

cravo e flauta (Divertimento),

música

de câmara (Trio

n.° 1, para

violino, vio-

loncelo e piano; Quarteto

n.° 1, para

cordas; Quarteto

n.° 2, para

flauta,

óboe, clarinete e fagote), canções popu-

lares harmonizadas para

canto e piano

e duas obras vocais de mais amplas di-

mensões: Praça 11 (para

coro misto, 3

pianos e instrumentos de

percussão) e

Oração da noite (para

contrai to solo e

côro misto.

Para 2 pianos

escreveu Brasílio Itibe-

rê uma peça

muito curiosa que,

aliás, a

vista das tendências expostas em todo

êsse grupo

de composições, pode

ser to-

mada como uma espécie de manifesto-

programa: Conversa de Bach e Naza-

reth. O velho João

Sebastião, dos co-

rais e do Cravo bem temperado, em

bate-bôea com o Ernesto do Turuna...

Nazareth é um dos ídolos de Brasílio

Itiberê (basta

lembrar a sua conferên-

cia para

a Associação dos Artistas Bra-

sileiros, em 1939); mas Bach também é.

E em quasi

toda a sua obra, através do

sabor acre de fruta da terra e das cruas

dissonâncias ditadas pelo

seu instinto

modernista, percebemos

a substância da

música do grande

Cantor de Sto. Tomaz,

na harmonização e na maneira de con-

duzir as vozes. Essa presença

de Bach na

obra de Brasílio Itibirê (apregoada

como

sendo do melhor nacionalismo por

Vila-

Lobos, o inventor das bachianas brasilei-

ras...), é tão evidente que

em uma de

suas Invenções para

cravo o tema, lem-

brando alguma gavota que

não figurou

no Limo de Ana Madalena:

T i H t

s

mu

transforma-se 11a seguinte variação, bem carioca:

Na verdade, começamos a pensar,

com Andrade Muricí (2), que

Bach é brasileiro..

(2) Andrade Muricí, Música brasileira moderna. Revista da Associação

Brasileira de Música, Rio de Janeiro,

1932, n.° 1, pág.

14.

Artes

plásticas

iii

CARLOS CAVALCANTI

Conservador de Museus de Arte do Ministério

da Educação e Saúde

NO

ÜLTIMO artigo desta secção ten-

tei uni trailer" do desenvolvimen-

to de nossas artes plásticas nos sé-

culos XVIII e XIX. Fixei rapidamen-

te, quasi no feitio de uma notícia de

jornal, como se deveria fazer a prepa-

ração técnica do jovem artista colonial,

cujo mais barato e constante mestre te-

ria sido a estampa religiosa italiana, a

estampa solta, autônoma, rolando sózi-

nha pelos pecados ou aplacando esses

pecados dentro dos livros de orações e

dos missais.

Pelo modo como se educavam os ar-

tistas das manhãs brasileiras, pode

ima-

ginar-se as dificuldades por êles certa-

mente experimentadas. Não deveriam

dispor de bons e numerosos instrumen-

tos técnicos, tintas, pincéis e telas, már

more e bronze, que

os ajudassem na

execução de suas obras.

As condições gerais

da época não po-

deriam permitir

rápido progresso

das

artes. As ordens religiosas pagavam

tão

mal quanto

aos govêrnos

e os partícula-

res. Valentim lamentava-se da parei-

mônia de seu garboso

vice-rei e com-

parando-se o preço

conhecido de tan-

tas obras de arte com o padrão

de vida

do tempo verifica-se que

como sempre

os artistas eram mal pagos.

Sem os pa-

trimônios que

foram humildemente

acumulando, as irmandades talvez os

contentassem concedendo-lhes lugares

importantes nas procissões e honrarias

vistosas. As deficiências de material e

de dinheiro andavam assim no -mesmo

tom para qualquer arte. Os escultores

lutavam com enormes dificuldades pa-

ra o sonho louco da fundição de seus

trabalhos. No Brasil antigo, o portu-

gues fundia era muito ouro. A eseul-

tura em madeira floresceu porque si

madeira era de dar com o pé

e não

tinha preço.

Todos sabemos as duras

provações de Valentim para

fazer correr

a liga com que

moldou as estátuas e

ornamentos do Passeio Público.

Não se serviram da pedra,

material

fundamentalmente escultórico, por

in-

capacidade técnica e taml>ém porque a

escultura que

conheciam era uma es-

cultura aceleradamente da decadência

de uma decadência. Mesmo depois da

chegada de Dom João

VI, a situação

não se modificou em linhas gerais. Os

artistas franceses reclamavam a falta

de material, necessitando mandar bus-

cá-Io na Europa, com a enervante

demora dos navios. Pradier, para

ir em-

bora, naturalmente arrependido de ter

vindo, apresentou a razão, por

tôdas

aceita apesar da existência da Impren-

sa Régia. de não dispor o Rio dos ele-

mentos necessários à execução de suas

gravuras. E Grandjean de Montigny viu

impraticáveis seus belos e ardentes pro-

jetos, em face da

poupança do govêr-

no e dos particulares. Tôdas essas cir-

296 CULTURA POLÍTICA

cunstâncias precisam ser consideradas

para a

justa compreensão do desdobra-

mento de nossas artes naquêles tempos.

Quanta coisa seria explicada se

pudes-

semos conhecer exatamente os proces-

sos técnicos utilizados pelos nossos

pri-

meiros artistas, o trabalho do pintor,

do

escultor e do dourador, do encarnador

e do ornamentista.

O sentido meramente cronológico e

episódico com que

muitas pessoas

orientam seu interêsse pela história de

nossas artes faz com que

se estude e

exemplifique apenas o aspecto pitores-

co da obra de arte, isto é, o que

ela

comporta como geografia,

como senti-

mental, como história, em suma, ex-

clusivamente como assunto. Relega-se

para segundo plano

sua estrutura téc-

nica, seu conteúdo eminentemente piás-

tico, a pintura,

a escultura e a arqui-

tetura consideradas em si mesmas, ex-

primindo-se com os meios

próprios de

expressão.

O mal de origem de nossa historio-

grafia de arte e seus resultüilcs até ago-

ra tão precários para

a compreensão de

nossa evolução é sem dúvida êsse cará-

ter simplesmente literário, sua ausên-

cia de sentido sociológico e sua subes-

timação do que

na obra de arte repre-

sentam os elementos plásticos

e técni-

cos, independentes do assunto. Com es-

sa coisa tão excessivamente pouco

lite-

rária que

é pintura

se faz no Brasil

muita literatura, uma cerebriníssima li-

teratura, metafísica pura para

um le-

gítimo pintor que vê e ama êste

gran-

de mundo de Deus apenas na melodio-

sa simplicidade dos fenômenos cromá-

ticos e lineares. Atente-se, por

exem-

pio, na abundante bibliografia do Al ei-

jadinho, quasi tôda

puramente históri-

ca, sem tentativas sérias de interpreta

ção crítica, com a análise dos elemen-

tos constitutivos de sua plástica.

Em

virtude disso, sabemos hoje muita coi-

sa do grande

estatuário, mas ainda

ignoramos o essencial — somos incapa-

zes de situar-lhe o estilo. Alguns exe-

getas de Portinari —

apenas côr, forma

e linha — desconhecem-lhe talvez quais

as cores da paleta.

Descobrem-lhe, por

outro lado, tão transcendentes intenções

que o devem assustar, na candura do

mundo colorido em que

de olhos aber-

tos mergulhou para

o resto da vida.

A obra dos pintores

visceralmente

plásticos não se

pode conciliar com a

interpretação literária. Um quadro

de

Cézanne, eis um plástico,

é a coisa me-

nos suscetível de apreciações li terá-

rias, porque

se resume em cores, com

exclusão radical de qualquer

intenção

anedótica. O assunto na sua obra é as-

sim o mais insignificante, pretexto ape-

nas para

a solução de problemas,

crea-

ções novas nos domínios da

plástica.

Conta-se, aliás, que

êsse extraordinário

homem depois de apreciar longamente

um quadro

de Rubens não conseguia,

dias passados,

identificá-lo pelo assun-

to, mas tão sómente pelos

tons domi-

nantes, a disposição e as relações das

massas coloridas nas suas maravilhosas

e indizíveis harmonias.

Não me posso

furtar à gana

de trans-

crever, nesta altura, algumas palavras

justíssimas de Paul Signac, a

propósito

dêsse verdadeiro truismo que

é o ane-

dótico e o estético na obra de arte.

Escreveu êle que

o assunto anedótico

como fator de emoção não age senão

sôbre os incapazes de emoção estéti-

ca. Quanto

menos o observador é sen-

sivel à emoção estética ou técnica, mais

se sensibiliza com o assunto. Aquêlcs

que se arrepiam diante do sorriso da

Gioconda, que

ouvem o badalar dos si-

nos no Angelus, ou o ruído do vento e

do mar diante das marinhas de Claude

Monet, formam outra categoria, tam-

bém deploravelmente insensível às har-

monias das linhas e das cores. Uma

classe de outras vítimas é constituída

daquêles que querem

ver uma porção

de coisas nas quais

o pintor

absoluta-

mente não pensou:

humanidade, sen-

sualidade, ternura etc. Os mais cultos

se deixam cair nêsses disparates. Quan-

do em 1896, Georges Seurat expôs sua

téla-manifesto: Un dimanche à la Grau-

ae Jatte, as duas escolas literárias que

então reinavam, naturalistas e simbo-

listas, julgaram-na

segundo suas ten-

dências. Huysmans, Paul Alexis, Ro-

beit Caze viram a ociosidade domini-

cal de gente

simples, aprendizes, mu-

lheres catando aventuras pelas

ruas, en-

quanto que Paul Adam admirava na

rigidez dos personagens

cortejos faraó-

nicos e o helenista Moreas via procis-

sões panateanas.

Ora — conclue Paul

Signac — Seurat procurára

apenas uma

composição clara e alegre, num jôgo

ARTES PLÁSTICAS297

equilibrado de verticais e horizontais,

uma dominante de tintas quentes e de

tons claros, com branco, o mais lumi-

noso, ao centro.

Compreende-se pois a importância

que a análise da estrutura

plástica re-

presenta para a explicação da obra de

arte, o estudo do trabalho de creação

técnica do pintor ou do escultor ou do

arquiteto, a maneira por que êles se

utilizam dos recursos próprios de sua

arte.

Êsse estudo impõe-se irrecorrivelmen-

te com a ciência de que

só os especia

listas são capazes, em todo o desenvol-

ver de nossas artes. Por isso mesmo,

pelo critério de competência

que ele

exige, não tenho a intenção de fazê-lo.

mas apenas de encarecê-lo, com a co-

operação de desvalioso subsídio, cons-

fante de algumas receitas usadas pelos

pintores, douradores e ornamentistas

portugueses dos

princípios do XVII e

fins do XVIII séculos. Essas receitas

foram extraídas de um tratado de pin-

tura amplamente divulgado em Por tu-

gal e. ao que

se pode

licitamente pre-

sumir, também em nosso país.

Não

me parece um destempero

julgá-lo uti-

lizado pelos

nossos coloniais. Trata-se

da "Arte

Poética e da Pintura e Si me-

tria com princípios

de Perspectiva com-

posta por Philipe Nunes natural de

Villa Real". Êsse livro foi editado em

Lisboa em 1615, com a primeira parte

consagrada à poética

e a segunda tra-

tando de problemas

técnicos de pintura

e de desenho. Seu autor foi um nome

no tempo, no dizer de Taborda. Mas,

suas receitas poéticas parece

não alcan-

çaram o mesmo êxito das pintóricas,

porque vamos encontrar em 1767, mais

de século e meio depois, estas últimas

reeditadas, num pequeno

e módico vo-

lume, tipo de edição popular.

Deve

concluir-se, assim, de sua valia para

o

aprendizado e uso nos atelieres da épo-

ca. Na verdade, o livro é um perfeito

manual, sumamente prático

e instruti-

vo, desvendando os segredos técnicos, de

preparação de télas, tintas, que

os mes-

tres relutavam em transmitir honesta-

mente aos discípulos. Aliás êsse foi o

propósito mesmo de Philipe Nunes que

o confessa no prefácio,

intitulado Pró-

logo aos Pintores.

Depois de fazer o louvor da pintura

e ministrar regras práticas

de perspec-

tiva e proporções humanas, entra no

vasto receituárío que oferece de

pre-

paração de télas, panos, madeiras e vi-

dro para pintura, de tintas

para os que

saibam "lavrar"

a fresco, a óleo, à têm-

pera, em iluminura, para

os dourado-

res em páo,

como em couro e em pedra.

Assim, logo de início, êle nos infor-

ma os "nomes

das tintas que

se lavrâo

a oleo: Alvavade, Vermelhão, Verdete,

Zarquão, Sinopera, Oenolim, ou, como

outros dizem. Machim, Masicote, Som-

bra de Cintra, ou de osso Queimado,

Cinzas, Ocre Claro. Esmalte, Ocre Es-

curo, Lacra, Cochonilha, Preto de Elan-

des, ou Carmin, Verdacho. Terra Roxa,

Almagra, Jalde.

Todas estas se móem

nas pedras,

salvo os Azuis, que

são dei-

gados, que na paleta com o oleo se

concertão. Depois de moidas, para

es-

tarem frescas, para

em todo tempo se

lavrarem, se porão

na agoa em suas

vieiras cobertas com papel a Alvayade,

Zarquão, Masicote, Vermelhão, as ou-

tras se cobrirão muito bem porque

nSo

lhes entre pó".

Senhor dos segrêdos da cozinha pin-

tórica de seus contemporâneos, ensina

nos em seguida o "Modo

para appare-

lhar panno,

e madeira para a

pintura;

de usar Jalde a oleo; o Alvayade e Cin-

zas; de fazer Verdes; "as

mesclas de cô-

res como se fazem"; "como

se faz poli-

mento"; "o

azul ultramarino como se

lavrar (como

he tão caro, não se usa

muito, e portanto

não se sabe o uso

delle tão facilmente)"; modo de fazer

"cambiantes" e

já agora, entre tantas

outras, que

seria longo enumerar, uma

receita para

fazer boas sombras nos ros-

tos. E* assim; "Osso

queimado e moido

com agoa, e depois de secco moido a

oleo he sombra para

os rostos mimo-

sos. Também para

rostos mimosos se

faz sombras com Cinzas, e a mesma en-

carnação. Também se faz outra sombra

com Ocre Claro e Preto de Flandes.

Também Verdacho faz muito boa som-

bra. Para os rostos rústicos Sombra de

Cintra com a EncarnaçSo, que já

fica

dita acima. Também o preto

lápis com

a Encarnação faz uma sombra graciosa

para os rostos mimosos".

Voltamos a página

e encontramos:

"Como se faz mordente

para dourar**;

"modo de

perfilar", onde se lê

que:"para

fazer hum veo branco, que

cubra

cabellos, ou que quizerem,

depois da fi-

298 CULTURA POLÍTICA

gura enxuta a banhai com oleo. e alim-

pai brandamente, depois ide

perfilando

o veo com branco, e com hum pincel

ide sol vendo, e aonde for necessário re-

tocar com mais branco, se pode

retocar".

Depois de minuciosas explicações sô-

bre pintura

à têmpera, a fresco e ilu-

min ura, modos de obter efeitos de pers-

pectiva aérea, de copiar urna cidade.

Philipe Nunes passa

a dar noções sobre

composição dos quadros

à maneira de

trípticos, reminicência flamenga: de

pintar bandejas á moda China e cie uti-

lizar o nanquin.

Algumas receitas revelam, entretan-

to, aspectos curiosos. Mostram que

muitos cores minerais vinham, como se

sabe. em estado bruto — aos torrões,

em pedras, que

se "móem,

lavão e apu-

rão. em agoa de gomma sem mais

pu-

rificacão, ou, em huma pouca

de agoa,

com hum dedo de mel, pouca

cousa

ou açúcar cándi". Outras manifestam

influência da magia dos alquimistas. O

preparo é

quasi cabalístico:

"O Machim

te-lo-hão primeiro

de molho em ouri-

na de moço virgem, ou çuino de lima.

e com elle o moerão em lugar de agoa.

e com sromma se fará".

Através de outras receitas ainda, ve-

mos como se introduziram na química

dos atelieres portugueses e, forçosamen-

te, dos nossos, corantes vegetais brasi-

leiros. Vejam como se obtém a "côr

Roseta": "Tomem

páo do Brasil, e ras-

pado com hum vidro, tomarão as ras-

pas e bóta-las-hão em huma

panella vi-

drada, e a huma onça de Brasil botarão

seis de vinho branco, e esteja assim de

molho vinte e quatro

horas, o logo se

porá ao fogo, e ferverá até

que mingue

a terça parte,

e tirar-se-ha logo fóra a

panella, lancem-lhe meya onça de

pe-

dra hume moida, e para

se affinar mais

lancem-lhe meya onça de cal virgem, ou

graã em

grão, e meva onça de

gomma

Arabica, e depois de coada se pôde

usar".

Na mesma página,

outra receita, la-

conicamente intitulada "Brasil":

— "To-

marão páo

do Brasil que

seja doce na

lingoa, e fa-lo-hão em rachas miúdas,

e botar-lhe-hão agoa em quantidade

que fique tres dedos coberto o

páo, e

estará assim de molho hum dia, e huma

noite, e depois ferverá até que gaste

quase metade, e depois de frio lancem

o páo

a huma parte, que

fique a agoa

só, na qual

botarão huma pequena

de gomma

Arabica, e esteja assim até

que a

gomma se derreta, mexendo-a,

cada dia, duas. ou tres vezes, e como

for derretida, ponha-se

outras vez em

fo^o brando, e em começando de fer-»

ver lhe botem pedra

hume bem pizada,

pouca, e

pouca, até

que faça a agoa

muito vermelha, e quando

estiver (pro-

vando-a na unha) em côr de carmesin,

botem-lhe huma pequena

de pimenta

machucada, e como ferver tire-se do

ío^o e coe-se. e guarde-se em hum vi-

dro e use-se".

Estas algumas das lições do bom Phi-

lipe as quais

como já

disse presumo

te-

níiam também servido aos nossos pinto-

res, aos nossos douradores de altar,

ornamentistas, encarnadores e mais artis-

tas. Numas receitas manuscritas, que

se

me afiguram à primeira

vista do século

XVIII, topei com fórmulas de Philipe

Nunes ligeiramente alteradas. E' pois

mais um indício a que

se acrescenta a

multiplicidade de exemplares do Tra-

tado de Pintura existentes ainda em

nosso país.

Só na Biblioteca Nacional

se encontram, salvo erro. cinco. E para

terminar, quero

fazê-lo como Philipe

no seu Prólogo aos Pintores: —

"Emen-

de, e acrescente quem

souber, e apren-

da quem

não souber, e todos dem gló-

ria ao Senhor. Qui

vivit, & regnat per

omnia saecula saeculorum".

Te atro

iii

R. MAGALHÃES JÚNIOR

RENE'

Rocher, antigo diretor do tea

tro Vieux Colombier, da capital

francesa, ao embarcar, há meses, no

Rio, de regresso à Europa, levou sob o

braço os originais de algumas peças

de

autores brasileiros, prometendo

solene-

mente representá-las (êle

é também

ator) em Paris, com sua companhia, a

mesma que

o nosso público

várias vê-

zes aplaudiu no Teatro Municipal. Êsse

gesto espontâneo de René Rocher

possi-

velmente será adiado até que

a paz

volte

a reinar na conturbada Europa, mesmo

porque de nada adiantaria aos seus au-

tores que

essas peças

subissem agora à

cena, dado o ambiente de nervosismo

atual, com todas as atenções voltadas

unicamente para

a guerra.

Pode mesmo

ser esquecido, com o correr do tempo,

pois não se

pode alimentar maiores ilu-

sões quanto

ao interêsse de um grande

centro cosmopolita, como Paris, por

um

teatro como o nosso, cujas expressões

mais significativas destes últimos tem-

pos têm sido

justamente as

peças de

sabor mais particularmente

local, vin-

culadas a episódios ou alusões à nossa

história, que por

serem ali desconheci-

dos pouco

ou nenhum interêsse pode-

riam despertar.

A promessa

de René Rocher me fez

lembrar, por

natural associação de

idéias, a figura de um dos nossos mais

interessantes dramaturgos, cujo nome,

porém, está caindo em lamentável e in-

justo esquecimento. Aludo a Roberto

Gomes, que

também um dia viu André

Brulé embarcar para

a França com có-

pias de suas

peças, depois de haver

pro-

metido solenemente ao autor o mais

forte empenho no sentido de as fazer

representar em Paris. A imprensa da

época registrou também em têrmos en-

tusiásticos a iniciativa que

exprimiria

a gratidão

de André Brulé aos círculos

intelectuais brasileiros bem como ao pú-

blico do Rio pelo

caloroso acolhimento

que sempre tivera entre nós. À distân-

cia. porém, premido por

outras solici-

tações, por

empenhos de autores presti-

giosos, André Brule ia encenando as

obras de Roger Ferdinand, de Jacques

Nathanson. Pierre Mortier ou Jager-

Schmidt, sem dispensar maior interêsse

à promessa que

fizera ao autor brasi-

leiro. Por vezes, quando

Roberto Go-

mes lhe escrevia algumas linhas, no seu

excelente francês, perfeito

como o de

um parisiense, perguntando-lhe

se tinha

ainda a intenção de cumprir a palavra

empenhada. André Brulé mandava-lhe

um bilhete cordialíssimo, na sua letra

larga e garranchenta,

dizendo maravilhas

do autor e da peca,

mas que

ainda não

surgira a oportunidade própria.

Ro-

berto Gomes que

esperasse, pois,

sur-

gindo essa oportunidade, iria a

peça

à cena...

Acontece que

a peça

em questão,

Ao

decimar tio clia, premiada

em segundo

lugar no concurso de teatro brasileiro

que a Prefeitura do Distrito Federal

realizára logo após haver sido construí-

do o Teatro Municipal, havia sido dada

300 CULTURA POLÍTICA

em nosso idioma nesse ano (1909) e, al-

gnm tempo depois representada, em

francês, na mesma casa, pela

companhia

de André Brulé. Êsse ilustre ator não

só prometera

a Roberto Gomes repre-

sentar em Paris Ao declinar do dia,

como ainda a vigorosa obra dramática

Berenice, que

o próprio

autor vertera

para a língua em

que o

gênio de Mo-

liére se exprimiu.

Tudo isso aconteceu há pouco

mais

de vinte anos. A Europa estava em

condições normais e. nem assim, as

peças de

"Roberto

Gomes foram repre-

sentadas. Não que

lhe faltasse mérito

como autor dramático. Êsse mérito, bas-

ta para

comprová-lo a circunstância de

haver Roberto Gomes levantado, por

duas vezes seguidas, o prêmio

munici-

pai de teatro, a

primeira vez com a

peça acima mencionada e a segunda, em

1910, com o romance lírico Canto sem

palavras. Escrevendo nos lazeres

que

lhe dava a sua atividade de professor

de francês do Instituto Benjamin Cons-

tant (depois foi promovido

a inspetor

escolar), Roberto Gomes era um entu

siasta da literatura dramática francesa

e suas peças

eram escritas, com uma

nota pessoal

de originalidade, sem dú-

vida, mas dentro dos moldes das peças

do teatro parisiense

da época. Henry

Bataille o influenciou profundamente.

Canto sem palavras

é positivamente

in-

fluenciado pelo

romantismo de Bataille

de Songe d'un soir d'amour, o Bataille

poeta. Berenice

já trás o entono do Ba-

taille de La marche nupciale e de La

femme nue. Nessa época, Bataille ainda

não havia passado,

como hoje. Con-

quanto tivesse escrito ainda várias ou

tras obras, — Sonho de uma noite de

luar (até o título é uma

pura evocação

da peça

de Bataille que já

lhe sugerira

o Canto sem palavras,

e Inocência, era

Berenice a obra preferida

de Roberto

Gomes. O escritor chegou mesmo a vi-

ver o trágico epílogo dessa obra quando,

minado por

enfermidade incurável, for

çado a aposentar-se na função

pública

que exercia, neurastenizado

pelo isola-

mento e pela

inatividade forçada, — êle

que fôra um homem de salão, um

"cau-

seur" fascinante, um espírito mundano

por excelência, — resolveu despedir-se

pateticamente do teatro da vida. Como

a protagonista

da sua peça,

a torturada

Berenice, Roberto Gomes encerrou o úl-

ti mo ato da existência com um tiro no

peito.

"Morrer! Como esta idéia me

persegue e atormenta!" Podia-se dizer

que era o

próprio dramaturgo quem

fa-

lava, nêsse momento do IV ato de Be-

renice, pela

bôca da protagonista,

uma

mulher que

começára irremediavelmente

a envelhecer...

Escritor teatral por

excelência, por

vocação, não tendo feito outra espécie

de literatura. Roberto Gomes teve seu

nome lembrado pela

última vez no car-

taz dos nossos teatros quando Jaime

Costa, em 1932, realizou no João

Cae*.a-

no uma temporada oficial brasileira. A

peça de maior êxito dessa temporada

foi Berenice, cujo papel

central foi vi-

vido pela atriz Iracema de Alencar.

Obra de fôlego, tendo vinte e dois per

sonagens, além de alguns figurantes,

Berenice, só por

isso, talvez não seja

mais freqüentemente representada nos

nossos teatros e pelas

companhias em

excursão. Canto sem palavras

fez parte

também do repertório de Jaime

Costa.

Mas uma dessas superstições tão pe

culiares aos meios artísticos condenou

irremissivelmente o belo trabalho. Di-

zia-se que

a peça

dava azar e que

su-

cediam coisas desagradáveis nos dias em

que a representavam. Aqui, rebentava

uma desordem e, em face do pânico,

os espetáculos tinham de ser suspensos.

Ali, registrava-se um incidente entre a

companhia e os estudantes. Além, ou-

tia coisa qualquer.

Por exemplo: a em-

briaguês do maquinista, que

acabava

não montando o cenário do espetáculo,

ou a indisposição de um ator, prejudi-

cando a representação. Juntou-se

a isso

mais um detalhe: alguns atores assegu-

iam haver visto um desconhecido, de

rosa ao peito, passeando

nos bastidores

do teatro, durante a representação. Era

assim, de rosa ao peito, que

andava

sempre Roberto Gomes, nos salões, co-

mo nos teatros e concêrtos, pois

seu

labor jornalístico

se dividia entre a crô-

nica elegante, a crítica de teatro e a

crítica musical.

Aos poucos,

vai-se apagando o nome

de Roberto Gomes, que

escolheu o dia

31 de dezembro de 1922

para desertar

da vida e da sua enfermidade incurável.

E' pena que

tal suceda, pois

Roberto

Gomes foi e é uma das expressões mais

legítimas das nossas letras teatrais. Pa-

rece-me justo

sugerir, por

isso mesmo,

TEATRO 301

que na coleção de teatro das edições

oficiais do Ministério da Educação e

Saúde Pública, de que por

enquanto sai-

ram apenas dois volumes, não se co-

nhecendo o que

está programado a se-

guir ou se a série será suprimida de

vez, sejam reeditadas as principais

obras

de Roberto Gomes, Berenice e Canto

sem palavras.

Do mesmo modo, seria

interessante, afim de não deixar que

a

obra desse talentoso dramaturgo caia

no olvido, fazer o Curso Prático de Tea-

tro as provas

anuais com uma dessas

obras. Roberto Gomes desprezou tudo

pelo teatro. Não se

pode compreendei

que o teatro o despreze e esqueça,

que

repudie a sua memória e a sua obra,

lançando ainda sôbre ela o estigma das

abusões mais ridículas.

Eis aonde nos pode

conduzir o giio

do pensamento,

como diria Machado de

Assis, que quis

fazer teatro e nisso fa-

lhou inteiramente, embora triunfante

no conto e no romance de "humor*.

De René Rocher fomos a André Brulé.

De Brulé a Roberto Gomes e, agora,

como se estivessemos fazendo uma

"round-trip", voltemos novamente ao

ponto inicial, ou seja, às

peças brasi-

leiras em francês. Não há dúvida que

o sistema Roberto Gomes-Brulé é o

que está mais

próximo da viabilidade.

Se as companhias francesas representa-

rem peças

brasileiras nas suas tempo-

radas no Municipal, — ao menos uma

em cada "saison",

— e se essas peças

agradarem, não só ao público

como

aos atores que

as criarem, é bem pos-

sfvel que,

em ocasião propícia,

numa

"tournée" de emergência ou em caso

de carência de originais franceses, con-

quistem os nossos autores,

por fim, a

excelente oportunidade para

valorizar o

seu nome através de um cartaz em Pa-

ris. Até lá, é necessário que

não haja

mais guerra

e, em lugar desta, surja a

bôa vontade do nosso prefeito,

no senti-

do de determinar essa exigência, em ca-

lá ter irrevogável, como condição básica

para a realização das temporadas fran-

cesas tão generosamente

subvencionadas

pelo povo, através do seu.govêrno, e

pe-

Ias elites, através da bilheteria...

Cinema

III

LÚCIO CARDOSO

Outro

assunto de grande

impor-

tância e também atualmente

bastante discutido em nossos jor-

nais e revistas literárias é o que pren-

de a literatura diretamente ao cinema.

Já Erico Veríssimo,

que como todos

sabem ocupa lugar de tão gran-

de destaque em nossa literatura moder

na. declarou em Nova York que

o ro-

mance brasileiro está abandonando a

sua subserviência ao romance europeu e

voltando-se para

o americano. Palavras

que não são inteiramente destituídas de

sentido, pois

é sabido também que

Erico Veríssimo orienta toda uma cor-

rente da nossa literatura.

Ora, nada existe de mais estupenda-

mente falso do que

essa literatura que

os americanos crearam à margem do ci-

nema. Ainda nêste momento, vamos en-

contrar num jornal qualquer

um ar-

tigo sobre o momentoso assunto, e em

que alude o articulista à esplêndida

harmonia reinante nos dois arraiais,

se assim se pode

dizer. Até há pou-

co, segundo o mesmo, ou até antes

de Sem novidade no front, ainda não

tínhamos assistido à realização perfei-

ta dêsse "casamento".

Decerto, para

quem o assina, e como êle

próprio se

incumbe de avisar no princípio do ar-

tigo, literatura é só esta que

vem das

trincheiias molhadas de sangue, que

mostra os grandes anceios da humani-

dade, coletividade e todas essas babozei-

ras que

estavam em moda há dez anos

passados. O caso é que

tínhamos as

sisudo antes vários filmes adaptados de

obras famosas. Os franceses, entre ou-

tros muitos haviam tentado Salamm-

bô, Ana Karenina já

fôra vista várias

vezes, Os Miseráveis já

era um assunto

ultra batido, Notre Dame de Paris que

fizera a fama de Lon Chaney. O homem

que ri, até mesmo o Hamlet de Sha-

kespeare e a Tragédia Americana de

Dreiser.

E tinham sido filmes que

haviam ren-

dido milhões, já que,

segundo aquêlc

articulista, é o dinheiro o fim a visar

em qualquer

dos dois campos. Mas, que

sucedeu depois do ultra-medíocre ro

mance de Remarque? Apenas isto: uma

literatura inteira nasceu à sombra des-

sa adaptação famosa. Já

não precisava

o cinema afrontar a poeira

inútil das

bibliotecas. Toda uma valente equipe

(íe escritores disponíveis se encarrega-

ria de crear essa literatura dos "best-

sei ler", dos milhões de exemplares, que

teriam o destino de acompanhar os fil-

mes como os programas nas mãos dos

espectadores ou o "chiclet"

das moci-

nhas enjoadas. E tivemos então Rebe-

ca, Kitty Foyle, Tudo isto, e o céo

também c tudo o mais que poderiam

produzir escritores da classe dos IJpton

Sinclair, dos Sinclair Lewis, James

Hil-

ton, Steimbeck e não sei que

mais. Não

foi o cinema que

se casou com a lite-

ratura. Foi a literatura que

se escravi

sou ao cinema. O que

assistimos agora

é o soberbo espetáculo dessa degrada-

câo, na produção

ininterrupta dos "best

CINEMA303

seller" que

descem como cachoeiras dos

Estados Lnidos.. . I odos cies já

veem

de antemão com o sucesso garantido,

bem como a fortuna do autor, é claro.

Como há de resistir o triste literato na-

cional ao esmagador desfile dêsses mi

Ihões que

se sucedem aos seus olhos atò-

nitos? O único meio de atingir essa

faustosa perspectiva, é

passar com ar-

mas e bagagens para

o lado dessa nova

literatura. Lancemos o grito de inde-

pendência, creemos a nossa literatura ci-

nematográfica. Façamos de conta que

os Estados Unidos descobriram uma no-

va literatura. Inventemos essas histó-

rias de meninos perdidos que

o cinema

russo popularizou num filme suspeito,

retratemos com cores negras o destino

dêsses garotos abandonados às forças do

crime pela

incúria da sociedade, pinte

mos com amoroso delírio as multidões

famintas, os pés

inchados, a escraviza-

cão das fábricas, o triunfo dos senhores

ricos e cruéis que

deshonram tímidas

operárias...

Teremos conseguido então um resul-

tado quasi

sobrenatural: estaremos fren

te a frente com uma literatura nula.

sem fundo real, sem destino, que

nada

significa, pois

nada traduz — e o

que

é pior, a

que falta o veículo

para que

foi destinada: o cinema. Pois não te

mos ainda cinema e Hollywood não se

preocupa com os escritores do Brasil,

que entretanto teimam em caprichar

nos temas que

rendem milhões. Os nos-

sos "best-sellers"

apresentam resultados

desoladores. Ou si acaso rendem algu-

mas dezenas de contos, permanecem co-

mo coisas estranhas, inacabadas, trunca

das por

um destino maléfico. Como estão

longe dos rumorosos sucessos de Ernesi

Hemingwy!... Começamos agora a pre-

senciar a "blitzkrieg"

dos escritores na-

ctonais contra o cinema americano Hol-

lywood é o pôrto

mais próximo

a que

se

destinam. Mas si bem que lutem furio-X

samente por

uma clareira, uma nesga

onde possam

introduzir a imortal obra

indígena, nada conseguem, tudo perma-

nece em silêncio. O espírito de Deus

ainda não reina sobre as águas.

*• * #

C)ue me perdoem essa revolta inútil.

Mas diante de escritores que

ousam le-

vantar cifras como documento de valor

literário, como não ferir logo a origem

do mal, como não atacar esse cinema

cuja fôrça é bastante para

corromper

o destino de uma literatura inteira? O

nosso dever é não voltar os olhos para

essa arte standartizada, não nos preo-

cupar com os problemas

dessa literatura

artificial. Pois na medida que

nos afas-

tarmos da experiência ganha pela

lite

ratura européia, estaremos apenas crian-

do uma coisa subalterna, uma coisa sem

nome, sem expressão, sem vida, sem

autonomia*, sem grandeza, sem nada. O

dia em que perdermos de vista Sha-

kespeare ou Tolstoi ou Sthendal ou

Balzac ou George Meredith, estaremos

caminhando para a ruína. Como os ho-

mens a quem

um assassinato coloca

fora da lei. estaremos fora da literatura,

como tão bem disse um dos nossos mais

conhecidos críticos, a respeito de uma

obra qualquer

da nossa literatura, gê

nero "best-seller".

Em vez de tantos

dramas vasios de sentido, em vez de

tantas histórias calcadas, na remissão de

dores que

existirão eternamente sôbre

a terra, cuidemos de coisas mais pró-

ximas e mais reais. Porque, este sim.

é o verdadeiro realismo. O resto é

ficção, e o que

é pior,

do mais desen •

cantado romantismo.

Aliás, para

cinema, não precisamos

de recorrer a nenhum argumento espe-

ciai. Temos obras que garantiriam fil-

mes de sucesso e autores que poderiam

escrever autênticos cenários.

Rádio

iii

MARTINS CASTELO

NÃO

teem sido poucos

os esforços dis-

pendidos, nos últimos anos, com o

propósito de melhorar a

produ-

ção literária radiofônica. As normas es-

tabelecidas para a música em 1928, no

Congresso de Goettingen, tornaram-se

extensivas à literatura — ação claramen-

te exposta e forma concisa. E devem

ser observadas ainda, como regras fun-

damentais, a conveniência do número

restrito de personagens,

a necessidade de

uma situação dramática e a fiel suges-

tão do ambiente. São estas, aliás, as

características do verdadeiro rádio^tea-

tro (1).

O gênero

reclama uma técni-

ca própria para

a "produção"

e para

a "interpretação",

exigindo uma colabo-

ração estreita do autor, dos artistas e

do "metteur

en ondes". Uma cena não

basta. E* preciso,

às vêzes, todo um gru-

po de estúdios

para a transmissão de

uma peça.

Existem traços particulares que

dis-

tinguem a "peça

radiofônica" da "peça

teatral". Aí estão a possibilidade

de mu-

dança rápida das cenas, a supressão da

distância, a "montagem"

dos elementos

— palavras,

música, ruídos — e o "dé-

cor" acústico, enfim toda a gama

de

nuanças e de efeitos sonoros. E duas

modalidades se prestam

admira velmen-

tc ao teatro do espaço — o tema atual,

tomado à vida quotidiana

e apresenta-

do de uma maneira realista, e a peça

especulativa ou mística, dominada pelo

fantástico e pelo

irreal. Mas, como pon-

to nevrálgico do problema,

há um obs-

táculo que

vem impedindo o progresso

do rádio-teatro. No "broadcasting",

um

drama é irradiado oito ou dez vêzes no

máximo, enquanto no palco

uma obra

de sucesso pode

ter quinhentas

ou seis-

centas representações. Com o objetivo

de remediar essa situação desfavorável

aos autores que escrevem

para o micro-

fone, a "Union

Internationale De Ra-

diodiffusion" facilita, o mais possível,

a

permuta de

peças radiofônicas, assina-

lando aos seus membros todas as pro-

duçôes de êxito, com indicações do as-

sunto, particularidades

técnicas e tradu-

cões existentes. Basta dizermos que.

em

c inco anos, aquêle organismo genebrino

distribuiu às emissoras dos quatro

can-

tos do mundo listas sinóticas de três

mil novecentos e vinte e sete rádio-

dramas (2).

A questão

econômica arrefece, porém,

o entusiasmo dos rádios-autores. E caí-

mos no regime das dramatizações de ro-

mances ou das adaptações de peças

tea-

trais, como se já

não devesse pertencer

inteiramente ao passado

aquela primei-

ra experiência de R. E. Jeffrey,

feita

em Abordaen, na Escócia, a 6 de Outu-

bro de 1923, com uma das obras de

(1) CHARLES LARRONDE — Theâtre Invisible — Paris. 1938.

(2) Problèmas De La Radiodiffusion — Publicação da

"Union Internatio-

nale De. Radiodiffusion" — Genebra, 1930.

RADIO 305

Walter Scott. Porque a verdade é que

•cada arte

possue a sua

"substância", in-

capaz de se transferir, sem prejuízos

e

deformações, a uma outra arte. Temos

inúmeros exemplos de peças

vitoriosas

no palco que,

levadas para

o microfo-

ne, constituem fracassos indiscutíveis.

O seu enrêdo, as suas situações, os seus

diálogos estão longe de ser "radiofôni-

cos", fugindo à "definição

auditiva" do

rádio-teatro, que

apenas sob um ponto

de vista físico e unidimensional.

Vale a pena,

a esta altura, abrirmos

um parêntesis para

uma questão

inte-

ressante, proposta,

há tempos, em um

livro de Rudolf Arnheim (3).

O aper-

feiçoamento da televisão terá, como uma

de suas conseqüências, a morte do atual

rádio-teatro? O conhecido técnico ger-

mânico acha que

o "broadscating"

e

o cinema caminham para

uma fusão.

E fala em um futuro "rádio-filme",

que

•serviria, pela

descoberta de John

L.

Baird, às salas dos cinemas, transforma-

das em receptoras de rádio-filme tele-

visado. Esta opinião não é, entretanto,

aceita por várias autoridades na maté-

ria, inclusive Enrico Rocca (4). O au-

tor de "Panorama

Dell'Ar te Radiofôni-

•ca" põe

em dúvida essa fusão total e

deixa de admitir a absorpção de uma

"arte autônoma" pela

simples aquisição

•de um melhoramento técnico. Concor-

da a tese de que,

certamente, o espe-

táculo radiofônico se modificará com a

televisão, mas observando que não

po-

demos antecipar em que

sentido e como

será levada a efeito essa alteraçao. E

parece-nos razoável esta

prudência, mui-

to mais de acôrdo com o espirito artís-

tico do "broadcasting"

do que

a hipó-

tese simplificadora do especialista ale-

mão, que

é a pura

submissão da arte

à técnica.

A derradeira afirmativa sôbre o as-

sunto pertence ao futuro. E, enquanto

os debates permanecem no terreno in-

seguro dos prognósticos,

o rádio-teatro

vai procurando

fortalecer-se em face do

cinema e da televisão, com o apareci-

mento de novos gêneros. Kurt Paqué

defende o princípio

de que,

se no ci-

nema sonoro a imagem não perdeu

o

:seu prestígio

completando-se com a pa-

lavra, a palavra

deve, 110 rádio, pro-

curar o complemento da imagem, sem

prejuízo de sua hegemonia

(5). O

"Horspiel" apresenta-se, nêste caso, co-

mo o "rádio-drama,

ideal" dos dias que

correm. E' mais ou menos uma efeti-

vação daquêle "television

panei", pre-

conizado, em 1930, por

Lane Sieveking

(6), à margem das realizações da

"Oes-

terreichische Rádio-Verkehrs A. G.".

De fato, nenhuma emprêsa de "broad-

casting" do mundo fez tanto, a favor da

criação de uma "cena

do rádio", como

aquela organização da antiga Áustria,

que apresentou três formas diferentes

de peças para

o microfone. A primei-

ra, denominada "Horspiel"

e a que

pouco nos referimos, é um

jôgo radio-

tônico em que

aí palavras predominam

sôbre a música e os ruídos, compreen-

dendo dramas inteiros. Vem, depois, a

"Hoerfolge",

que, um

pouco aparenta-

da à reportagem, consiste em variações

em tôrno de um grande

tema, apresen-

tando, dentro de uma expressão poé-

tica e musical, as curiosidades e os pro-

blemas de um país.

E temos, finalmen-

te, o "Querschintt",

uma espécie de di-

vagação através de um determinado as-

sunto, misto de verso e de prosa,

com

equilíbrio dos efeitos sonoros.

No Brasil, andámos, durante muito

tempo, completamente alheios às con-

quistas do rádio-teatro. Deixámos de

tomar conhecimento até dêsse popula-

ríssimo "So

and So" dos inglêses, que,

transmitido a uma hora fixa e composto

de uma história curta, corresponde ao

"desenho animado" do cinema. Mas,

nos últimos três anos, as coisas muda-

ram consideravelmente, verificando-se

mesmo um movimento renovador, com

o "radiato"

de Pedro Bloch. O autor

de Anhangá prega a

"especificidade"

do teatro pelos

ares, onde as "emoções

musicais", com o seu extraordinário vi-

gor, reforçam as frases do texto. E se

a sua técnica, que

tanto avançou entre

Marilena Ver sus Destino e E* Pr oi-

bido Fumar e Sonhar, ainda pode

ser

motivo de discussões, todos concordam

com os aplausos dispensados às realiza-

ções do nosso rádio-teatro policial

e às

peças que veem focalizando episódios

(9) RUDOLF ARNHEIM

- Rádio - Londres, 1936.

(4.) ENRICO ROCCA — Panorama Dell*Arte Radiofonica

— Milão, 1930.

/rO KURT PAQUÉ — Horspiel Und Schaupiel

— Breslau, 1936.

(6) LANCE SIEVEKING

— The Stuff of The Radio — Londres, 1934.

306 CULTURA POLÍTICA

culminantes da história pátria. Os

dramas que Jorací Camargo escreveu

paia a

"Hora do Brasil", em tôrno da

retirada da Laguna e dos cinquentená-

rios da Abolição e da República, pos-

súem as qualidades

suficientes para mos-

trar o quanto

o "broadcasting"

pode

servir à "educação

cívica" do povo (7).

Não é demais repetirmos que o civismo

não se aprende com lições, pois,

no

caso, temos como ponto

de partida

as

"vivências" do individuo experimenta-

das em uma "atmosfera

cívica". E ao

rádio cumpre um grande papel

na cria-

cão desse ambiente em que

se forma o

cidadão. As mesmas características reco-

mendáveis encontramos, no seu setor,

nas aventuras do detetive Roberto Ri-

cardo, cuidadosamente seriadas por

Aní-

bal Costa. O sensacionalismo fácil é

substituído, nessas peças, pelo

raciocí-

nio de um tipo reflexivo auxiliado pela

técnica (8).

Aníbal Costa procura,

de fato, es-

capar às influências nocivas dos "dra-

mas amarelos" no espírito dos ouvintes.

O seu objetivo, ao traçar os enrêdos, é

demonstrar que

não há "crime

perfei-

to". E, mais do que

isso, não deixa de

acentuar que

o delinqüente vai sempre

punido. Êste

princípio fortalece o

psi-

quismo do sintonizador na concepção

da vida justa,

aumentando, beneficamen-

te, o prazer

da correção integral da sua

conduta na sociedade. Mas temos, ain-

da, um outro aspecto das produções

do

autor de "Aventuras

de Roberto Ricar

do" que

merece ser registrado. Conan

Doíle, que

legou ao mundo a figura

que é o símbolo dos agentes da lei,

deu nos um Sherlock Holmes calmo e

frio, irônico por

vezes, por

vêzes exces-

sivamente sarcástico. O seu sarcasmo di

rige se à famosa "Scotland

Yard e apre-

senta-se, não raro, de uma crueldade ex-

trema. Roberto Ricardo é diferente.

Êle se distingue pela simpatia à

policia

brasileira. Colabora com as autoridades,

respeita-lhes as diligências, e, mesmo

quando aponta os seus erros, o faz com

tóda a conveniência. E isso — é claro

— transmite ao público

uma confiança

salutar na organização policial do nos-

so país.

Queremos, antes do

ponto final, fa-

zer uma observação que talvez expli-

que o insucesso cie alguns rádio-dramas

policiais. A

"unidade de lugar" e a

"unidade de tempo" mostram-se, atual-

mente, indispensáveis às histórias de cri-

mes e mistérios, que

devem ter um am-

biente onde nada possa

falsear o exer-

cício da inteligência (9). O leitor

reparou na tendência cada vez mais

acentuada para se situarem os fatos em

um mundo materialmente fechado, co-

mo um navio em alto mar, um trem

em marcha ou uma propriedade

blo-

queada pelo máu tempo ou

por deter-

minação das autoridades? As investiga-

ções dos detetives, apoiando-se apenas

no raciocínio, reclamam as mesmas con-

dições de isolamento de uma experiên-

cia química,

sem nenhuma intervenção

exterior. Esta verdade ainda não foi,

entretanto, compreendida, em toda a sua

extensão, por

determinados autores.

Uma peça pôde

ser movimentadíssima,

ter uma extraordinária sedução, pas

sando-se somente em uma sala, durante

duas ou três horas. As palavras,

a mú-

sica e os ruídos é que

emprestam, no

fim de contas, quatro

dimensões ao ri-

dio-teatro reduzindo o mundo ao ta-

manho de um microfone.

(7) T. H. REED

— Civic Education By Radio — Nova York, 1936.

(8) ANÍBAL COSTA

— Aventuras de Roberto Ricardo -*• Rio, 1940.

(9) REGIE MESSAC — Le Detective Novel Et L'Influence De La Pensée

Scientifique — Paris, 1939.

MANUFATURADA PELA

INDÚSTRIA DO LIVRO LIMITADA

RUA PEDRO l.°, 29 - SOB.

RIO DE JANEIRO