Acumulação capitalista e Lumpemproletariado
Transcript of Acumulação capitalista e Lumpemproletariado
Acumulação capitalista e lumpemproletariado.
Lisandro Braga▪
A proposta central desse trabalho é compreender o lumpemproletariado à luz
de uma teoria das classes sociais, analisando-o como uma classe social composta pelo
exército industrial de reserva (desempregados, sem-teto, mendigos, subempregados,
delinqüentes, prostitutas etc.). Partimos da hipótese segundo a qual o processo de
lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de proletarização,
no período de consolidação do capitalismo, vem se ampliando intensamente no regime
de acumulação integral, tanto nos países imperialistas quanto nos países subordinados,
de uma forma jamais vista em outros períodos do capitalismo, exceto no período de
emergência desse modo de produção. Para confirmar essa hipótese iremos analisar o
processo de lumpemproletarização no regime de acumulação extensivo (da Revolução
industrial até, aproximadamente, 1871) e, posteriormente, no regime de acumulação
integral para, a partir daí, buscar constatar que esse processo vem sofrendo uma
intensificação na contemporaneidade semelhante à época do primeiro regime de
acumulação capitalista, dominante em quase todo o século XIX.
Com o propósito de melhor compreender a dinâmica da acumulação capitalista,
suas leis, tendências e contra-tendências, assim como a formação do
lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital, realizaremos,
nesse capítulo, uma discussão acerca das múltiplas determinações que envolvem o
modo de produção capitalista, a produção e extração de mais-valor (sua determinação
fundamental), a lei geral da acumulação capitalista e o processo de
lumpemproletarização derivado dela. Visando, também, compreender as mudanças
históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas (processo de valorização,
formas estatais e relações internacionais), a história do capitalismo será apresentada
aqui enquanto uma sucessão de regimes de acumulação, demonstrando as
especificidades do regime de acumulação integral e suas implicações no processo de
ampliação do lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009).
▪ Historiador e sociólogo por profissão e militante – por convicção - do Movimento Autogestionário –
MovAut.
1– A dinâmica da produção capitalista de mercadorias
A sociedade capitalista, como já afirmara Marx, se caracteriza por uma
“imensa coleção de mercadorias”, porém não haveria nenhuma novidade histórica nessa
sociedade se a forma como se produz tais mercadorias não fosse absolutamente inédita
na história da humanidade, pois é verdade que a análise da mercadoria por ela mesma
não revela o segredo da exploração capitalista. Por conseguinte, poderíamos, então,
questionar sobre as razões que levaram Marx a iniciar sua obra sobre o modo de
produção capitalista (O capital, vol. 1, 1867) com a análise sobre a mercadoria e
porque, ainda hoje, vários autores, críticos da economia política, continuam a iniciar
suas análises sobre tal modo de produção, também, pela mercadoria, ao invés de irem
direto ao processo de produção e exploração dos trabalhadores pelo capital?
O essencial no modo de produção capitalista não se encontra simplesmente no
fato desse modo de produção se caracterizar como numa “imensa coleção de
mercadorias”, mas sim no fato de tal produção de mercadorias se equivaler à produção e
extração de mais-valor. No entanto,
este essencial não poderia ser estudado se não tivesse previamente mostrado
que a mercadoria é a forma social que tem de revestir qualquer bem na
economia capitalista. A mercadoria é o fenômeno concreto da produção
capitalista; enquanto fenômeno, ela não basta para caracterizar o capitalismo,
mas impõe a sua forma particular a todos os fatores e produtos do trabalho
efetuado nas condições capitalistas. A primeira condição da compreensão do
capital (e, como se verá, do seu devir) é ver bem, nos elementos do processo
econômico capitalista, não apenas objectos, bens de produção e de consumo,
forças de trabalho, produtos materiais desempenhando uma função técnica
determinada, mas mercadorias que possuem valor (BARROT, 1977, p. 54).
É exatamente por conta dessa novidade que Marx inicia sua obra O Capital
(1967) com a análise sobre a mercadoria. Ele foi o primeiro teórico a elaborar uma
teoria sistematizada do modo de produção capitalista, por isso é a partir dele que
buscaremos compreender as determinações desse modo de produção. O propósito de
Karl Marx na sua obra O Capital (1967) consiste em revelar a exploração da sociedade
capitalista que possui seu fundamento na extração de mais-valor no processo de
produção de mercadorias. Visando compreender a essência (no sentido ontológico) da
mercadoria, Marx, a partir do “método da abstração”, procura descobrir suas múltiplas
determinações e sua determinação fundamental.
No capítulo A mercadoria do volume I de O capital, o autor inicia
questionando o que determina o valor da mesma. Para responder a essa questão,
primeiramente, torna-se necessário, segundo Marx, saber o que há de comum em todas
as mercadorias. Ele acaba afirmando que o que há de comum é que as mesmas são
produtos do trabalho humano e que o tempo de trabalho socialmente necessário gasto
em sua produção está diretamente relacionado com a determinação do seu valor.
No entanto, cabe indagar: como Marx chega a tal conclusão? A mercadoria é
ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. Enquanto valor de uso a mercadoria
deve possuir utilidade para, enfim, ser consumida. Tais valores de uso são portadores
materiais do valor de troca, ou seja, são mercadorias. Tomemos os seguintes exemplos
para melhor compreender a questão dos valores. Se 01 determinado caminhão equivale
a 03 determinados automóveis ou 02 determinados tratores, logo 03 desses automóveis
valem o mesmo que 02 desses tratores ou 01 desse caminhão. Por conseguinte, possuem
a mesma expressão do seu conteúdo. Sendo assim, pode-se concluir que 03 automóveis
e 02 tratores, assim como 01 caminhão, possuem algo de comum e da mesma grandeza,
mesmo sendo, enquanto valores de uso, coisas distintas. Percebe-se, então, que há uma
“terceira coisa” além dos valores de uso e de troca nas quais eles se reduzem. Em que
consiste essa “terceira coisa”?
As mercadorias enquanto valores de uso possuem diferenças qualitativas e
enquanto valores de troca possuem apenas diferenças quantitativas. Enquanto valores de
troca, as mercadorias possuem apenas uma “propriedade comum”: são produtos do
trabalho humano. Assim, Marx descobre em que consiste a “terceira coisa” e afirma:
deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a ela
apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o
produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se
abstraímos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas
corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio
ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram.
Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do
fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao
desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil
dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as
diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se
um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a
trabalho humano abstrato (1985, p. 47).
Dessa forma, o que se pode perceber é que as mercadorias possuem como
“propriedade comum” o fato de serem produtos do trabalho humano, “uma simples
gelatina de trabalho humano indiferenciado”, trabalho humano abstrato. Conclui-se,
então, que é o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria
que determina seu valor. Vale destacar que o autor está tratando do tempo médio social
de trabalho e não do tempo de trabalho efetivo, e trata-se do valor da mercadoria e não
do seu preço. A diferença de um valor em relação a outro é meramente quantitativa. A
grandeza quantitativa do valor é medida através do tempo de trabalho gasto na sua
produção que, por sua vez, é medido pela sua duração (horas, dias etc.). Porém, esse
trabalho é “trabalho abstrato”, ou seja, trabalho social médio e não “trabalho concreto”.
Sendo assim,
é portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo
de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso o que
determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui apenas
como exemplar médio de sua espécie. Mercadorias que contêm as mesmas
quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de
trabalho, têm, portanto, a mesma grandeza de valor. O valor de uma
mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como
o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de
trabalho necessário para a produção de outra (Ibid, 1985, p. 48).
O trabalho humano utilizado na produção de uma mercadoria possui duplo
caráter: trabalho concreto e trabalho abstrato. Primeiramente, o trabalho é produtor de
valor de uso, produz para ser útil a determinadas necessidades. Por outro lado, tal
trabalho é abstrato, produz mais valor, acrescenta valor à mercadoria. Tal duplicidade
do trabalho se reproduz na mercadoria como valor de uso e valor de troca. A mercadoria
enquanto coisa de valor é imperceptível. Somente representa valor quando expressa
trabalho social e, conseqüentemente, o seu valor só pode ser expresso numa relação
sócio-mercantil de mercadorias para mercadorias.
Marx compreende o concreto (real) como sendo “síntese de múltiplas
determinações”, mas que possui uma determinação fundamental. De acordo com o
“método da abstração” desenvolvido por ele, o concreto-dado é ponto de partida, visto
que antes da pesquisa ele se encontra no nível das “representações cotidianas”, “senso
comum” e não se apresenta de imediato em sua “essência”, mas a partir das abstrações
atingimos o concreto-determinado, pensado. Isto é, no início, temos o concreto-dado, a
representação cotidiana do fenômeno a ser estudado, ou seja, a aparência. Depois de
pesquisar, através da abstração chegamos ao concreto-pensado, determinado. Por
conseguinte, o concreto-dado é transpassado para o concreto-pensado, possibilitando
expressá-lo, teoricamente, em sua totalidade (VIANA, 2006).
Dessa maneira, é que podemos afirmar que o preço da mercadoria é o concreto-
determinado, e o processo de abstração possibilitou chegar ao valor, sua determinação
fundamental. Portanto, o que Marx busca fazer no capítulo A mercadoria é superar o
concreto-dado, a aparência, através da abstração, chegando à essência – determinação
fundamental - para assim chegar ao concreto-determinado, que é a mercadoria em suas
múltiplas determinações.
Resta, agora, sabermos que relações sociais concretas existem entre a produção
de mercadorias e a definição do valor das mesmas, ou seja, de que forma se define o
valor de uma mercadoria na sociedade capitalista?
1.1.1 – A produção de mais-valor e classes fundamentais
Creio não ser necessário realizar grandes análises para concluirmos que a
produção capitalista só ocorre se a mesma for geradora de lucro, ou seja, se a classe
capitalista detentora dos meios de produção necessita, ao produzir mercadorias, vendê-
las no mercado por um valor superior aos custos da sua produção, conseqüentemente o
valor final da comercialização deve ser maior do que os gastos com maquinaria,
matérias-primas e salários. Desse modo, todo capitalista
quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos
valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a
força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer
produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso,
mas valor e não só valor, mas também mais-valia (Ibid, 1985, p. 155).
Tanto as máquinas quanto as matérias-primas apenas repassam seus valores no
processo produtivo, por conseguinte o trabalho deve ser processo de valorização, pois
“como a própria mercadoria é unidade de valor de uso e valor de troca, seu processo de
produção tem de ser unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor”
(Ibid, 1985, p. 155). Então, devemos questionar de onde e de que maneira vem o
acréscimo de valor?
Anteriormente já foi adiantado que o valor de uma mercadoria é determinado
pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, portanto é a força de
trabalho (capital variável) o único elemento que acrescenta valor à mercadoria. Dessa
maneira,
a força de trabalho é uma mercadoria particular, completamente diferente dos
meios de trabalho. Enquanto que estes últimos fornecem ao produto o seu
valor, a força de trabalho não só fornece o seu próprio valor como também
acrescenta o valor do trabalho que ela realiza. É criadora de trabalho; e,
portanto, de valor. O seu consumo é produtivo: dá mais do que custou
(BARROT, 1977, p. 58).
O processo de constituição do valor de determinado produto é composto por
diferentes determinações envolvidas na produção. De um lado temos aquilo que Marx
denominou de capital constante, ou seja, “a parte do capital que se converte em meios
de produção” – matérias-primas, maquinaria e meios de trabalho em geral. Do outro
lado encontra-se o capital variável, isto é, a força de trabalho que além de reproduzir
seus custos adiciona mais-valor, gera excedente (MARX, 1985). Neste sentido, percebe-
se que o capital constante apenas repassa seus custos durante o processo de produção
enquanto o capital variável, além de repassar seus custos, consiste no único elemento
presente no processo produtivo capaz de agregar mais-valor à mercadoria. Marx chama
esse conjunto (capital constante + capital variável) de composição orgânica do capital
(MARX, 1985a).
A composição orgânica do capital expressa, conseqüentemente, a tendência
declinante da taxa de lucro médio, pois com o intuito de garantir a reprodução ampliada
do capital, a classe capitalista investe cada vez mais em meios de produção (trabalho
morto), que apenas repassa seus custos, e cada vez menos em força de trabalho (trabalho
vivo) que é o único elemento gerador de mais-valor, portanto, se o elemento que apenas
repassa custos amplia em detrimento do elemento que gera mais-valor, desenvolve-se a
tendência declinante da taxa de lucro médio1. Tal tendência é de extrema importância
para a compreensão da dinâmica do capitalismo e de suas transformações históricas,
pois revela uma das potencialidades fundamentais da crise capitalista.
A relação que se estabelece entre as duas classes fundamentais do capitalismo,
ou seja, entre a burguesia e o proletariado, é uma relação de compra e venda, pois a
burguesia compra no mercado tanto matérias-primas, maquinaria e outros meios de
trabalho, assim como a força de trabalho. Porém, essa última, ao contrário dos meios de
trabalho, não apenas é consumida durante a produção, mas também é geradora, pois o
acréscimo de valor que a força de trabalho realiza possibilita ao capitalista acumular
capitais uma vez que a reposição dos custos e o dispêndio com força de trabalho –
salários - equivalem apenas a uma parcela do mais-valor produzido. Já, “o valor do
capital constante reaparece no valor do produto, mas não entra no novo produto-valor
criado” (MARX, 1985, p. 241).
1 “Esta tendência é constituída devido ao desenvolvimento das forças produtivas, pois quanto mais
desenvolvida é a tecnologia e quanto mais esta entra no processo de produção, menos se utiliza a força de trabalho, que é a fonte geradora de mais-valor” (VIANA, 2009, p. 93).
Esse é o segredo da exploração capitalista: a existência do mais-valor só é
possível quando o proletariado se encontra completamente separado do resultado do seu
trabalho, que passa a ser substituído por um salário equivalente apenas a uma parcela
infinitamente menor do que o realmente produzido. Desta forma, percebe-se que a
relação entre capitalista e proletariado é fundada na exploração de uma classe não
produtora, mas que apropria do resultado de trabalho alheio não pago, sobre a classe
produtora. Nesse sentido,
a chave do aumento do lucro é o aumento da parte não-paga do dia de
trabalho em relação à parte paga, aumento do produto excedente em relação
ao produto necessário para fornecer os meios de subsistência do trabalhador,
ou aumento da taxa de mais-valia (EATON, 1965, p. 99).
Portanto, a produção capitalista de mercadorias corresponde à produção de
mais-valor e esse pode ser obtido de duas formas. A primeira forma, denominada de
mais-valor absoluto, é produzida pelo prolongamento das jornadas de trabalho. A
segunda forma, denominada de mais-valor relativo, decorre da ampliação da produção
no mesmo período de tempo ou até mesmo em jornadas de trabalho reduzidas. Cabe,
por conseguinte, indagar: Como isso é possível? Como os operários podem produzir
mais no mesmo período de tempo?
Historicamente a burguesia vem utilizando duas principais formas de
ampliação da produtividade. Uma forma é a organização racionalizada do processo de
produção a qual os operários passam a ser minuciosamente controlados, fiscalizados,
rigidamente disciplinados, cronometrados e vigiados pelos especialistas nessa função,
espécies de “agentes carcerários da produção” (BRAGA, 2009). Os horários para
utilização do banheiro, realização de refeições e para saída de fumantes do local da
produção vem sofrendo uma significativa diminuição.
Além dessas formas, ainda existe o sistema de multas por atraso, por destruição
de ferramentas, por descuido com as máquinas, etc. Com isso, a classe capitalista
objetiva evitar o desperdício de tempo necessário para a produção de mais-valor, pois “o
capital personificado, o capitalista, cuida de que o trabalhador execute seu trabalho
ordenadamente e com o grau adequado de intensidade” (Ibid, 1985, p. 244). Outra
forma consiste no constante aperfeiçoamento tecnológico utilizado para o
desenvolvimento de máquinas cada vez mais eficientes e produtivas. Dessa forma, os
capitalistas garantem a ampliação da produtividade operária.
John Eaton, em sua obra Manual de economia política (1965), ainda nos
apresenta outra estratégia capitalista que consiste na forma de pagamento de salários.
Segundo ele,
as formas de pagamento de salários constituem uma batalha entre o
empregador e os sindicatos. Salário-tarefa, ou seja, salário pago de acordo
com a produção proporciona ao capitalista um meio de obrigar o trabalhador
a fazer mais durante o dia de trabalho, já que disso depende quanto o
trabalhador leva para casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento
de salários-tarefa contradiz o que dissemos anteriormente sobre os salários e
o valor da força de trabalho, como correspondendo aproximadamente ao
valor dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou
seja, de acordo com a produção, sugere que quando esta se eleva, os salários
se elevarão de forma correspondente. Isso só ocorre a prazo muito curto. A
experiência de muitas décadas mostrou aos trabalhadores que os salários-
tarefa são, no final, fixados em preços baseados em salário-tempo, e na soma
de artigos que o trabalhador deve comprar para viver. Se a produção aumenta
acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O
salário-tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do
que o salário-tempo do dia, mas a isso se contrapõe o fato de que a maior
intensidade de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o
capitalista, porém, é compensador pagar pelo trabalho executado, já que essa
produção extra aumenta o volume de mais-valia numa proporção que excede
consideravelmente qualquer extra pago em salários (EATON, 1965, p. 101).
A pedra angular da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia Marx, gira
em torno da disputa pelo controle do tempo de trabalho, pois se de um lado a burguesia
visa ampliar a extração de mais-valor sobre o tempo de trabalho do proletariado, esse
visa diminuí-lo e devido aos interesses antagônicos dessas classes, o processo de
valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por isso, a burguesia se vê coagida a
desenvolver formas cada vez mais eficazes de controle sobre o trabalho operário,
enquanto esse se vê também coagido a desenvolver formas de lutas que avancem em
direção à diminuição do tempo de trabalho para extração de mais-valor.
Conseqüentemente,
isto ocorre devido ao fato de que é no próprio processo de trabalho,
simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção de mais-
valor. Desta forma, o trabalhador, ao resistir em utilizar toda a sua
capacidade de trabalho, tende a diminuir a extração de mais-valor. É por isso
que surge uma luta nas unidades de produção, em que o capitalista busca
controlar a força de trabalho para que ela não desperdice tempo e, por
conseguinte, faça decair o seu lucro (VIANA, 2009, p. 49).
A determinação fundamental da organização do trabalho na sociedade capitalista
é a luta de classes entre burguesia e proletariado, porém é necessário compreender, de
forma pormenorizada, como se relaciona burguesia e proletariado no processo de
produção, como se dá a luta de classes e como a mesma interfere na organização do
trabalho e na alteração dos regimes de acumulação.
O ser humano se humaniza ao realizar atividades, essencialmente humanas,
interferindo na natureza a partir do trabalho em cooperação com outros seres humanos,
objetivando, dessa maneira, reproduzir as condições materiais da sua existência. Essa é
a essência do trabalho autônomo, ou seja, a garantia da reprodução do próprio ser e sua
auto-realização total. Já o trabalho alienado é a negação da essência humana existente
no trabalho, pois, com a divisão social do trabalho e a instauração do controle do
processo de produção pelo não-trabalhador, se institui a total separação entre o produtor
e o produto e com isso o homem não produz mais as garantias das necessidades
humanas, mas sim mercadorias que não lhe pertence (MARX, 2004).
A afirmação do capital realiza-se na negação do proletariado uma vez que este,
no processo de produção, desempenha atividades alheias às suas necessidades, não
atinge através de suas potencialidades sua auto-realização total, encontra-se
completamente separado dos produtos do seu trabalho e, dessa forma, aliena-se.
Segundo Marx,
O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora
do trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e,
quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário,
mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de
uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele.
Sua estranheza evidencia-se aqui tão pura que, tão logo inexista coerção
física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho
externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-
sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece
para o trabalhador como se não fosse seu próprio, mas de um outro, como se
não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo,
mas a um outro (2004, p. 83).
Por conta desse caráter alienado do trabalho, o proletariado procura
incessantemente encontrar formas que garantam o mínimo da sua integridade física no
trabalho e isso se evidencia nas inúmeras possibilidades e maneiras de resistência e luta
contra a opressão do capital. Essas atitudes de resistência ocorrem de diversas formas,
tais como as mais pacíficas e camufladas como a “operação tartaruga”, o absenteísmo, o
atraso nos locais de trabalho, a destruição de peças e ferramentas que emperram o
desenrolar da produção, as constantes idas ao banheiro e sua demora etc.
Vale lembrar que a luta operária pelo controle e diminuição do tempo de
trabalho destinado à produção de mais-valor representa apenas o primeiro momento da
luta operária, ou seja, essa luta equivale ao momento imediato da luta de classes.
Contudo, o interesse histórico2 do proletariado se funda na tendência em eliminar a
existência do mais-valor na sua totalidade. Além dessas formas imediatas, as lutas
contra a exploração do trabalho tendem a adquirir em momentos de crise e de
radicalidade, uma postura mais nitidamente política3, tal como é perceptível nos
processos de realização de greves que atingem caráter geral, com a ocupação de fábricas
e auto-organização da produção, no qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si”
para se tornar uma “classe para si”. Essa dinâmica acompanha o desenvolvimento
capitalista desde o seu nascimento até os dias atuais e inúmeros exemplos históricos
poderiam ser citados: As revoluções de 1848 na Europa, a Comuna de Paris em 1871, as
experiências russas a partir dos sovietes em 1905 e 1917, a revolução alemã nas décadas
de 1920, a ocupação de fábricas na Argentina do final da década de 1990 até
aproximadamente 2004 e assim por diante. Essa é uma tendência intrínseca ao modo de
produção capitalista.
Um amplo debate sociológico já existe em torno dessa mudança de postura do
proletariado, porém não é nosso interesse resgatar tal debate, mas tão somente
apresentá-lo segundo a perspectiva do proletariado, ou seja, procurando compreender
quem é essa classe social, como se relaciona com a sociedade capitalista e como
enxerga tal sociedade a partir da experiência que mantém com a mesma. Em síntese,
“essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como
se vê” (Viana, 2007, p. 75).
A análise que Marx realiza sobre o proletariado consiste em uma análise sobre
a ontologia do proletariado, sobre sua essência e não sua aparência. Sendo assim, é
possível encontrar na teoria de Marx uma análise sobre o ser-do-proletariado, conforme
explicitado na seguinte passagem: “não se trata de saber que objetivo este ou aquele
2 “Quais são os interesses históricos do proletariado? Abolir a relação-capital, ou seja, as relações de
produção capitalistas, o que significa abolir a classe capitalista, a si mesmo enquanto classe e a todas as demais classes. Mas os interesses históricos do proletariado não se limitam a esse trabalho destrutivo, pois, ao mesmo tempo em que deve abolir o modo de produção capitalista, ele deve construir um novo modo de produção. O processo de destruição é, aqui, ao mesmo tempo, um processo de construção. E como podemos apreender esse processo de construção, ou seja, a formação de um novo modo de produção. Isto só pode ser descoberto através da experiência histórica do movimento operário. Portanto, a compreensão do modo de produção capitalista em sua historicidade e a prática histórica da classe operária é o que nos permite descobrir quais são os interesses históricos desta classe. São destes interesses históricos que derivam os interesses imediatos” (VIANA, 2008, p. 87). 3 O termo política empregado aqui é derivado da idéia de luta de classes em sentido amplo e não no
sentido comumente adotado que resume a luta política às lutas parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado. Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são suas relações de produção, logo este é por essência o local privilegiado da luta de classes e todas as demais lutas políticas derivam daí.
proletário, ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata-se de saber o que
é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser”
(Marx & Engels, 1979, p. 55).
Nesse sentido, a resistência implementada pelo proletariado não visa apenas
adquirir, de imediato, melhores condições de trabalho e vida, mas, também, a abolição
do trabalho alienado e da extração de mais-valor que é seu fundamento. Nesse processo
histórico de enfrentamento o proletariado forma sua consciência de classe ao negar o
trabalho alienado e a consciência hetero-determinada derivada dele, e busca afirmar na
prática (trabalho autônomo) e, consequentemente, na consciência, sua
autodeterminação. Portanto, constrói suas estratégias de lutas, abandona estratégias
ultrapassadas e forja novos mecanismos de resistência e avanço da luta em direção à
construção daquilo que Marx denominou de “livre associação de produtores”.
A luta de classes entre burguesia e proletariado, assim como a produção de
mais-valor, representa dois dos principais fundamentos do modo de produção
capitalista. O processo de trabalho na sociedade capitalista é marcado por duas
características centrais que consistem no fato do proletariado trabalhar sobre o controle
da burguesia (trabalho heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do
produto do trabalho ser apropriado pela burguesia, via extração de mais-valor. Percebe-
se então que o trabalho é processo de valorização (MARX, 1985).
A luta de classes no processo de produção é mediada por um conjunto de
relações que existem tanto dentro quanto fora do processo diretamente produtivo. Tal
luta em torno do processo de produção de mais-valor é a determinação fundamental do
enfrentamento entre a classe capitalista e a classe operária no processo de produção de
mercadorias (VIANA, 2009). No entanto, esse enfrentamento se expande para outras
esferas das relações sociais. Basta percebermos que o conflito que se inicia no século
XIX entre capitalistas e operários em torno da diminuição da jornada de trabalho
operária (aproximadamente de 16 horas diárias) resulta numa alteração jurídico-
institucional que possibilita sua redução para 10 horas diárias e, posteriormente, 08
horas diárias. É nesse contexto que se inicia a reação burguesa para evitar a redução da
taxa de mais-valor, respondendo com a “organização científica do trabalho” elaborada
por Friedrich Taylor em sua obra Princípios da Administração Científica (1987).
É importante destacar que burguesia e proletariado compõem as classes sociais
fundamentais do modo de produção capitalista, mas que, no entanto, coexistem outras
classes sociais que, inclusive, derivam da complexa relação que se estabelece entre
essas classes fundamentais e da luta de classes no processo de produção. Uma dessas
classes sociais, e que é objeto central desse estudo, é o lumpemproletariado. Conclui-se
que o modo de produção capitalista engendra tanto um processo de proletarização
quanto um processo de lumpemproletarização, ou, como prefere Offe, uma
proletarização ativa e uma proletarização passiva (OFFE, 1984). É sobre a dinâmica
formadora do lumpemproletariado que, a partir de agora, prestaremos nossa análise.
1.1.2 – Acumulação de capital e lumpemproletarização
Para compreender a formação do lumpemproletariado no regime de
acumulação extensivo4, recorreremos, fundamentalmente, à análise de Marx contida na
sua obra O Capital, vol. 2 (1985a). No capítulo XXIII do volume 2 de O Capital - A lei
geral da acumulação capitalista - Marx procurou demonstrar que no processo
capitalista de produção de mercadorias há uma tendência em promover uma acumulação
ampliada de capital por um lado e por outro lado, há, também, uma tendência
simultânea em promover o crescimento ampliado da miséria da classe trabalhadora.
Segundo ele,
a acumulação de riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a
acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância,
brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que
produz seu próprio produto como capital (Marx, 1985a, p. 210).
A discussão teórica que Karl Marx realiza nesse capítulo, busca compreender a
lei geral da acumulação capitalista, suas tendências e contratendências. Aqui ela será
utilizada para pensar o processo histórico de formação do lumpemproletariado e sua
dinâmica no regime de acumulação extensivo. Para isso, analisaremos o
lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, considerando-o uma classe
social composta pelo exército industrial de reserva. Desse modo, o conceito de
lumpemproletariado equivale à classe social formada pelos indivíduos que se encontram
marginalizados na divisão social do trabalho e alijados do mercado de consumo, e que
compõem os setores mais empobrecidos de desempregados, mendigos, sem-teto,
vagabundos, prostitutas, delinqüentes, subempregados etc. da sociedade capitalista.
4 “Predominante desde a revolução industrial até o final do século XIX, caracterizava-se pelo predomínio
da extração de mais-valor absoluto, pelo Estado liberal e pelo neocolonialismo” (VIANA, 2009, p. 95).
Sendo assim, nossa análise se distancia de algumas análises dominantes e
presentes nos discursos acadêmicos e científicos que busca compreender a sociedade a
partir de uma dualidade abstrata que afirma a existência dos incluídos/excluídos sociais
e que, no fundo, não consegue explicar muita coisa, pelo contrário, obscurece a
totalidade das relações sociais ao ocultar toda a complexidade envolta no processo de
lumpemproletarização que acompanha o desenvolvimento histórico de produção e
reprodução do capitalismo e de suas classes sociais. Nesse primeiro momento, o
objetivo é resgatar a discussão realizada por Karl Marx sobre o processo de acumulação
de capital e sua dinâmica geradora de uma superpopulação relativa ou
lumpemproletariado.
Na primeira parte deste capítulo intitulada Demanda crescente da força de
trabalho com a acumulação, com composição constante do capital, o autor já apresenta
o assunto geral da sua discussão, ou seja, da influência que o crescimento do capital
exerce sobre o destino da classe trabalhadora. Marx considera que a composição do
capital e suas modificações constituem os fatores mais importantes nessa investigação.
Com o intuito de melhor compreender essa análise, trilharemos o mesmo
caminho do autor, reconstituindo seu pensamento. De acordo com ele, a composição do
capital deve ser entendida a partir de uma dupla perspectiva: primeiramente ele faz uma
análise da perspectiva do valor na qual afirma que a composição orgânica do capital é
determinada pela proporção em que ele se reparte em capital constante (valor dos meios
de produção) e capital variável (valor da força de trabalho), soma global dos salários.
Posteriormente, ele apresenta a perspectiva da matéria, ou seja, como ela funciona no
processo de produção. Nessa análise Marx afirma que cada capital se reparte em meios
de produção (composição valor) e força de trabalho viva (composição técnica) (MARX,
1985a).
A produção de capital é formada por dois componentes existentes no processo
de produção denominado de trabalho morto (matéria-prima, maquinaria e tecnologia em
geral) e trabalho vivo que consiste na força de trabalho operária. Como vimos
anteriormente, o primeiro não tem capacidade de gerar valor e apenas repassa seus
custos durante o processo produtivo, já o segundo é a única força geradora de capital, ou
seja, acrescenta à mercadoria mais do que o valor gasto na sua produção. Por isso esse
capital extra é denominado mais-valor. Sendo assim, após um ciclo gerador de mais-
valor, a burguesia tende a aplicar parte desse na expansão da produção o que implica
necessidade de ampliação do mercado consumidor e maior demanda por força de
trabalho.
Nesse sentido, o
crescimento do capital implica crescimento de sua parcela variável convertida
em força de trabalho. Uma parcela da mais-valia transformada em capital
adicional precisa ser sempre retransformada em capital variável ou fundo
adicional de trabalho (Ibid, 1985a, p. 187).
No século XIX, com o passar dos anos o número de trabalhadores ocupados
cresceu em relação aos anos anteriores e com isso chegou-se ao ponto das necessidades
da acumulação crescer além da costumeira oferta de trabalho e assim tendeu a ocorrer
um aumento salarial. Porém, independentemente, do aumento salarial e da geração de
condições mais favoráveis para a classe operária e sua multiplicação, isso em nada
modificou o caráter básico da produção capitalista. Em outras palavras, a exploração do
proletariado em sua totalidade mantém-se a mesma, visto que essa exploração revela-se
na extração de mais-valor (sua lei absoluta) e não no preço do salário, seja ele qual for.
É válido ressaltar que o aumento salarial implica apenas na diminuição quantitativa de
trabalho não-pago (mais-valor) que o trabalhador “concede” ao capitalista, no entanto,
“essa diminuição nunca pode ir até o ponto em que ela ameace o próprio sistema” (Ibid, 1985a, p. 192).
A acumulação capitalista promove na mesma escala a ampliação da classe trabalhadora,
visto que
a reprodução da força de trabalho, que incessantemente precisa incorporar-se
ao capital como meio de valorização, não podendo livrar-se dele e cuja
subordinação ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais
a que se vende constitui de fato um momento da própria reprodução do
capital. Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado
(Ibid, 1985a, p. 188).
Marx demonstra que esse processo, no entanto, tende a promover um
decréscimo na acumulação. Isso significa que a partir do momento em que ocorre uma
diminuição na acumulação, ocorre, do mesmo modo, uma diminuição da necessidade
por força de trabalho, ou seja, a desproporção que existia entre capital e força de
trabalho - razão do aumento salarial - desaparece (momentaneamente) e assim o
processo de acumulação capitalista elimina seus próprios obstáculos. Logo, o salário
volta a decrescer. Adverte-se, no entanto, que até aqui Marx analisava somente uma fase
particular desse processo, ou seja, “aquela em que o crescimento adicional de capital ocorre com
composição técnica do capital constante. Mas o processo ultrapassa essa fase” (Ibid, 1985a, 193).
O crescimento absoluto do capital durante seu transcurso histórico é reflexo da
sua capacidade de ampliar o desenvolvimento da produtividade do trabalho social
tornando-a sua principal alavanca de acumulação. A principal expressão desse crescente
desenvolvimento da produtividade do trabalho advém do volume crescente dos meios
de produção em comparação com a força de trabalho, ou seja, “no decréscimo da grandeza do
fator subjetivo do processo de trabalho, em comparação com seus fatores objetivos” (Ibid, 1985a, p. 194).
Nesse momento Marx já está tratando da mudança que a composição técnica do capital
(força de trabalho viva) sofre no decurso do desenvolvimento do modo de produção
capitalista. Se na primeira fase de acumulação a multiplicação do capital representava
multiplicação do proletariado, agora essa relação tende a se inverter, pois
essa mudança na composição técnica do capital, o crescimento da massa dos
meios de produção, comparada à massa da força de trabalho que os vivifica,
reflete-se em sua composição em valor, no acréscimo da componente
constante do valor do capital à custa de sua componente variável (Ibid, 1985,
p. 194).
Aqui já é possível perceber que no processo de desenvolvimento capitalista, a
parte do mais-valor reconvertida na ampliação da produção via aumento do trabalho
morto (maquinaria e tecnologia em geral) tende a ultrapassar significativamente o
trabalho vivo ou o componente variável do capital orgânico (força de trabalho) e,
conseqüentemente, diminui a demanda por força de trabalho aumentando o desemprego.
Portanto,
esse movimento no sentido de acrescer a parte das máquinas em relação à
força-de-trabalho, a aumentar a produtividade do trabalho, tende a diminuir a
intensidade da demanda de força-de-trabalho pelos capitalistas, tende, por
conseguinte, a criar desemprego, no caso em que oferta de força-de-trabalho
pelos trabalhadores diminua também. O progresso técnico, realizado em
condições capitalista de produção, é assim um fator de expulsão de empregos
pelo capital (Salama & Valier, 1975, p. 86).
Com essa mudança o capitalismo contrai uma tendência a tornar supérflua ou
subsidiária uma parcela populacional significativa da classe trabalhadora que passa a
ampliar o lumpemproletariado. Vejamos melhor esse processo.
Inicialmente a acumulação de capital aparece apenas como uma ampliação
quantitativa, porém, percebe-se que ela realiza-se também numa alteração qualitativa
ininterrupta de sua composição com ampliação crescente dos meios de produção, tais
como maquinaria e tecnologia em geral, em detrimento da força de trabalho empregada
numa velocidade infinitamente maior do que a anteriormente existente. O resultado
dessa alteração qualitativa apresenta-se da seguinte forma:
a acumulação capitalista produz constantemente – e isso em proporção à sua
energia e às suas dimensões - uma população trabalhadora adicional
relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos concernentes às
necessidades de aproveitamento por parte do capital (...) A população
trabalhadora produz, portanto, em volume crescente, os meios de sua própria
redundância relativa. Essa é uma lei populacional peculiar ao modo de
produção capitalista, assim como, de fato, cada modo de produção histórico
tem suas leis populacionais particulares, historicamente válidas (Marx, 1985,
p. 199-200).
Marx denominou essa população trabalhadora supérflua de “superpopulação
relativa” e a compreendeu como parte imprescindível do funcionamento do modo de
produção capitalista, pois
ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao
capital de maneira tão absoluta, como se ele o tivesse criado à sua própria
custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o
material humano sempre pronto para ser explorado, independente dos limites
do verdadeiro acréscimo populacional (Ibid, 1985, p. 200).
Além da função de mão-de-obra disponível para as necessidades do capital,
porém nem sempre utilizada, e em grande quantidade na reserva, o exército industrial de
reserva cumpre outra função essencial no capitalismo que é a de pressionar os salários
para baixo. Ele transforma-se, assim, numa das principais alavancas da acumulação
capitalista uma vez que a oscilação dos salários passa a ser regulada pelo movimento de
expansão e contração desse contingente populacional formado pelo exército industrial
de reserva. Ao contrário da “teoria” populacional malthusiana5 que possui uma
concepção abstrata e ligada aos interesses de classe da burguesia, a teoria da população
em Marx busca analisar a dinâmica populacional no interior do modo de produção
capitalista, pois
a dinâmica populacional não pode ser compreendida se extraída, arrancada
para fora, do conjunto das relações sociais nas quais emerge. Este
pressuposto metodológico será seguido por Marx na sua teoria da população,
que é, na verdade, uma teoria da dinâmica populacional sob o capitalismo
(VIANA, 2006, p.1011).
Segundo Marx, o exército industrial de reserva existe em diversas ocasiões
possíveis e todo trabalhador o compõe durante todo o tempo em que está desempregado
parcial ou inteiramente. Esse exército de reserva ou superpopulação relativa possui três
formas: líquida, latente e estagnada. Nos grandes centros industriais modernos do século
XIX os trabalhadores constantemente eram ora repelidos, ora atraídos em maior
proporção. Isso ocorre de tal forma que, mesmo em proporção decrescente em relação à
5 A lei da população de Malthus se fundamenta na relação entre „meios de subsistência‟ e „aumento
populacional‟ (e isto gera sua explicação sobre as causas da fome e da miséria). Segundo Malthus, a
população cresce em progressão geométrica (2, 4, 8, 16...) e a produção de alimentos (meios de
subsistência) em progressão aritmética (1,2,3,4...), o que geraria a escassez, a fome. Marx é um severo
crítico dessa concepção, opondo-lhe tanto a questão metodológica quanto os seus equívocos teóricos
derivados de sua concepção metafísica, ligada a determinados interesses de classe (Viana, 2006, p. 1011).
ampliação da produção, o número de trabalhadores ocupados crescia. Nesse caso a
superpopulação existe em forma líquida (fluente).
É certo que a acumulação capitalista exige um número crescente de força de
trabalho, porém em proporção cada vez menor em relação ao capital constante. Por isso
a indústria necessita de trabalhadores até sua idade adulta, todavia atingida tal idade o
trabalhador se encontrava de tal forma exaurido que somente uma pequena parcela
continuava sendo empregada enquanto maior parte é demitida, pois “está constitui um
elemento da superpopulação fluente, que cresce com o tamanho da indústria. Parte
emigra e, de fato, apenas segue atrás o capital emigrante” (Marx, 1985, p. 207).
Portanto, o capital necessita de massas maiores de trabalhadores em idade jovem e
massas menores em idade adulta. Por conta dessa realidade é que mesmo existindo uma
grande parcela da população desocupada havia milhares de queixas reclamando a
necessidade de braços para o trabalho. É preciso lembrar que além da baixa expectativa
de vida entre os trabalhadores, o desgaste da força de trabalho era tão grande que mal o
trabalhador atinge a idade mediana “ele cai nas fileiras dos excedentes ou passa de um
escalão mais alto para um mais baixo”. A solução encontrada pelo capital para esse
problema era a promoção de casamentos precoces entre a classe trabalhadora e a
premiação para as famílias que oferecessem seus filhos para a exploração.
A segunda forma de superpopulação relativa - latente - apontada por Marx é
proveniente da consolidação do capitalismo na agricultura e que tende a promover uma
demanda decrescente absoluta de força de trabalho. Deste modo, a população
trabalhadora rural sofre uma repulsão não acompanhada de maior atração e,
conseqüentemente,
parte da população rural encontra-se, por isso, continuamente na iminência de
transferir-se para o proletariado urbano ou manufatureiro e à espreita de
circunstâncias favoráveis a essa transferência. Essa fonte da superpopulação
flui, portanto, continuamente. Mas seu fluxo constante para as cidades
pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo, cujo
volume só se torna visível assim que os canais de escoamento se abalam
excepcionalmente de modo amplo. O trabalhador rural é, por isso, rebaixado
para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo
(Ibid, 1985, p. 207-208).
A terceira forma de superpopulação relativa denominada de estagnada é
composta por parcela do exército ativo de trabalhadores, no entanto ocupada de forma
bastante irregular. Essa categoria fornece ao capital fonte inesgotável de força de
trabalho “disposta” a ser explorada uma vez que sua condição de vida encontra-se muito
abaixo do nível normal médio da classe trabalhadora e que, portanto, faz dessa
população uma “(...) base ampla para certos ramos de exploração do capital. É caracterizada pelo
máximo do tempo de serviço e mínimo de salário (... ) Seu volume se expande na medida em que, com o
volume e a energia da acumulação, avança a „produção da redundância‟” (Ibid, 1985, p. 208).
Finalmente a camada mais miserável da superpopulação relativa e que reside
na desgraça do pauperismo. Conforme afirma Bellon,
o último resíduo da superpopulação relativa habita o inferno do pauperismo.
Abstraindo dos vagabundos, dos criminosos, das prostitutas, dos mendigos e
de todo esse mundo a que se chama as classes perigosas, esta camada social
compõe-se de três categorias: os desempregados capazes de trabalhar; os
filhos dos órfãos; enfim as vítimas da indústria: doentes estropiados, viúvas,
trabalhadores idosos e trabalhadores desqualificados (1975, p. 44).
Portanto, aqui reside a lei geral da acumulação capitalista: quanto maior a
riqueza social e a grandeza absoluta do proletariado e sua força produtiva, tanto maior o
exército industrial de reserva ou, conforme definido por nós, o lumpemproletariado.
Nesse sentido, portanto,
quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o
exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. “Essa é a lei
absoluta geral da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, é
modificada em sua realização por variadas circunstâncias” (Marx, 1985, p.
209).
Ao encerrar o resgate da análise de Marx sobre A lei geral da acumulação
capitalista concluímos que essa análise corrobora a afirmação e percepção que esse
autor possuía desde o início dos seus trabalhos germinais, escritos em Paris em 1844, e
que em determinado momento assim protestava:
o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto
mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna
uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a
valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a
desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente
mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria,
e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (Marx, 2004,
p. 80).
O conceito de lei a que se refere Karl Marx no XXIII capítulo do volume 2 de
O Capital deve ser entendido aqui como equivalente a tendência. Nesse sentido, sua
reflexão aponta para uma tendência existente no capitalismo de gerar tanto riqueza,
quanto miséria em proporções diretas ao avanço das potencialidades produtivas. Isto
significa que o lumpemproletariado é resultado da própria dinâmica do modo de
produção capitalista e que, portanto, essa classe social, assim como suas classes
fundamentais - a burguesia e o proletariado - são intrínsecas a esse modo de produção.
1.2 – Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado
Com o propósito de responder a um dos problemas centrais desse trabalho, ou
seja, as determinações da expansão do lumpemproletariado na contemporaneidade
analisaremos, primeiramente, a formação e desenvolvimento dessa classe social no
regime de acumulação extensivo para, no próximo capítulo, analisar as multiplicidades
de determinações que envolvem a expansão dessa classe no regime de acumulação
integral e suas conseqüências, tanto no capitalismo imperialista quanto no capitalismo
subordinado (especificamente na Argentina e no último capítulo no Brasil).
Dessa forma, objetivamos apreender as mudanças e permanências, tanto
formais, quanto essenciais, das tendências histórico-sociais que o lumproletariado
possui na contemporaneidade. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado enquanto
uma classe social que é determinada historicamente e que, portanto, seu comportamento
social e político tende a serem determinados de forma diferenciada em contextos
históricos distintos. Por conseguinte, o lumpemproletariado e suas tendências não serão
tratados aqui de forma estanque, como se possuísse uma essência no seu ser-de-classe
que sempre o coagisse a adotar posturas políticas conservadoras e reacionárias, estando
passivo de ser freqüentemente cooptado como sugere diversos teóricos que o analisaram
(GUIMARÃES, 2008; FREITAS, 2010).
A transformação de dinheiro, mercadorias, meios de produção e de subsistência
em capital só pode ocorrer em determinadas circunstâncias que se apresenta da seguinte
maneira. A existência no mercado de duas espécies de possuidores de mercadorias é
essencial, pois de um lado estão os possuidores de dinheiro, meios de produção e
subsistência e que tem como finalidade valorizar o montante de dinheiro que possui
através da compra de força de trabalho alheia, do outro lado “trabalhadores livres”
dispostos a venderem sua única mercadoria, a força de trabalho (MARX, 1985a). “Com
essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção
capitalista” (Ibid, 1985a, p. 262).
Para os nossos intentos cabe indagar: qual é a origem desses indivíduos
possuidores unicamente da mercadoria força de trabalho na sociedade capitalista? Na
sociedade capitalista que emerge a partir daí, todos os indivíduos “dispostos” a
venderem sua força-de-trabalho terão a venda da sua mercadoria garantida nesse
mercado? Ou uma parcela significativa desses indivíduos irá compor outra classe social
e contribuirão com o processo de produção capitalista de outras maneiras, assim como
podem, enquanto classe, contribuir com sua destruição? E dessa forma podemos, então,
acreditar que tal classe pertence ao capital e, conseqüentemente, só poderá ser abolida
com a abolição do capitalismo?
A partir do final da segunda metade do século XIV a servidão se encontra
praticamente abolida na Inglaterra. O grosso da população rural inglesa era constituído
nessa época, e principalmente no século XV, de camponeses livres e economicamente
autônomos, que nos seus momentos livres trocavam sua força de trabalho por um
assalariamento nas grandes propriedades fundiárias. Além dos salários esses
camponeses recebiam um terreno arável de aproximadamente 4 acres e possuíam o
direito de usufruir das propriedades comunais, nas quais criavam seu gado e extraíam os
elementos necessários para aquecer seus lares e preparar seus alimentos, tais como a
lenha e a turfa.
O desenvolvimento dos grandes centros industriais ingleses, juntamente com o
crescimento paulatino da sua população, está diretamente relacionado com as grandes
transformações que veio ocorrendo, desde aproximadamente o século XIV até o século
XVIII, na propriedade da terra. De forma geral, esse processo ficou denominado de
cercamentos (enclosures)6 e foi caracterizado por uma intensa e violenta onda de
desapropriação camponesa de suas propriedades e das terras comunais, acompanhada da
expulsão de milhares de camponeses para as nascentes cidades.
Em diversos momentos em toda a história inglesa desse período a população
camponesa foi violentamente desapropriada e obrigada a migrar para os grandes centros
urbanos industriais. Dessa forma era fornecido à indústria capitalista aquilo que ela
necessitava para transformar dinheiro, maquinaria e matérias-primas em capital, ou seja,
a indústria necessitou de indivíduos completamente despojados dos meios materiais
garantidores da sua existência e sobrevivência para que assim pudessem “livremente”
vender sua força de trabalho aos capitalistas. Aqui reside, sinteticamente, portanto, a
fórmula encontrada pela nascente burguesia inglesa para dar início à produção
capitalista de mercadorias.
6 O cercamento consistiu na prática adotada pelos grandes latifundiários de cercar os campos,
acompanhado da expulsão dos camponeses que ali residiam e trabalhavam, com o intuito de utilizar a terra visando à obtenção de maiores lucros. A prática mais comum era a de cercar os campos para a criação de ovelhas, que passava a representar uma possibilidade de maiores lucros na venda da sua lã para as nascentes indústrias têxteis. Essa prática se inicia ainda no final do século XV, mas adquire fôlego e intensidade a partir do século XVI.
O resultado direto dessa expropriação/expulsão cruel e violenta consiste no
processo de proletarização da mão-de-obra camponesa migrada para as cidades e a
formação de um mercado urbano interno. Porém, a capacidade de absorção dessa mão-
de-obra pelas nascentes indústrias possuía uma velocidade infinitamente menor do que
o crescimento do número de camponeses expulsos do campo. Isso acabou por
promover, também, um processo de lumpemproletarização, que está na origem do
capitalismo e, como veremos adiante, possui a tendência de acompanhar seu
desenvolvimento histórico. E assim, as cidades inglesas passaram a conviver com um
grande número de operários empregados na indústria, mas também com um número
crescente e assustador de lumpemproletários que “se converteram em massas de
esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos
por força das circunstâncias” (Ibid, 1985a, p. 275).
Uma passagem extraída do subtítulo Gênese do capitalista industrial do
capítulo XXIV do volume II de O Capital sintetiza muito bem todo esse processo:
Tanto esforço fazia-se necessário para desatar as “eternas leis naturais” do
modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre
trabalhadores e condições de trabalho, para converter, em um dos pólos, os
meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a
massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres,
essa obra de arte da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem
ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”, então o
capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos
pés (Ibid, 1985a, p. 292).
Durante a segunda metade do século XIX a Europa experimenta um fenômeno
fascinante e ao mesmo tempo amedrontador, o extraordinário crescimento das cidades
industriais e de sua população. As indústrias recrutavam cada vez mais operários fabris
e com isso ocorria um desenfreado crescimento das cidades. Na passagem do século
XVIII para o século XIX, a Inglaterra tem seus campos despovoados e um grande
afluxo de migrantes corre para as cidades:
Londres, que em 1750 contava com 676 mil habitantes, já em 1820 chegava a
contar quase o dobro, ou 1.274 milhão. Mais de uma terça parte da população
da Inglaterra residia em cidades de mais de 5 mil habitantes à altura da
metade do século XIX, quando no meio do século XVIII não passava de uma
quinta parte. Na década 1821-1831, o crescimento de cidades como
Liverpool, Manchester, Birmingham e Leeds ultrapassou quarenta por cento
(GUIMARÃES, 2008, p. 48).
Além de indivíduos prestes a se proletarizar, as cidades atraíam uma infinidade
de pessoas que não encontrariam condições materiais garantidoras da sua sobrevivência
e, consequentemente, o processo de lumpemproletarização crescia vertiginosamente e
tais cidades passavam a serem habitadas por um grande número de mendigos,
prostitutas, jovens desempregados, ladrões, desabrigados, subempregados, e todo tipo
de desempregados, etc. A constituição das primeiras cidades industriais do século XIX
revela um dos processos migratórios mais brutais que a história ocidental já conheceu.
Milhares e milhares de pessoas perderam todo o vínculo com um modo de vida secular,
costumes, tradições, solidariedades, enfim toda uma habitual forma de se viver foi quase
que completamente destruída e suas principais vítimas foram relegadas a um mundo
sombrio e desconhecido marcado pelo frio, pela fome, por todo tipo de doença,
imundice, criminalidade, pela violência cotidiana, tanto na esfera do trabalho, quando se
tem um, quanto na esfera da vida privada. Indubitavelmente a sociedade capitalista
nasce e se reproduz sob a marca da completa desumanização de milhões de seres
humanos.
A rotina do proletariado inglês era marcada por uma jornada de trabalho de
aproximadamente 16 horas diárias, nas quais toda a sua família, desde as crianças de 04
anos de idade até os idosos ainda com condições físicas, era obrigada pelas
circunstâncias a trabalhar. Essa era uma condição imposta pelos miseráveis salários para
que uma família operária pudesse ter o mínimo suficiente para garantir sua
sobrevivência e, conseqüentemente, e sua força de trabalho para valorizar o capital.
Além das extensas jornadas de trabalho, da exploração do trabalho infantil, do
trabalho idoso e feminino (esses recebiam salários inferiores), as condições de trabalho
eram as piores possíveis, pois as fábricas não possuíam condições mínimas de higiene.
Caracterizadas por serem lugares pouco arejados, com ar poluído, sem nenhuma
preocupação com a saúde operária, sem nenhum sistema de proteção no trabalho, o
proletariado se via constantemente ameaçado pelo desemprego e pela fome, pois a
inexistência de legislação trabalhista fazia com que qualquer acidente ou doença que o
impossibilitasse a trabalhar resultasse em demissão sumária. E os acidentes de trabalho
ou até mesmo a morte de milhares de operários, principalmente as crianças, eram
elevadíssimos7.
7 “As estatísticas da mortalidade revelam níveis altíssimos, principalmente por causa da morte entre as
crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos deletérios de um modo de vida miserável; o abandono a que freqüentemente se vê expostas quando os pais trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, portanto, não pode ser sem razão de espanto se, por exemplo, em Manchester, conforme um relatório que já citamos, mais de 57% dos filhos de operários morrem antes de completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas e, nas zonas rurais, a média é de 32%” (ENGELS, 2008, p. 147).
Nesse aspecto o lumpemproletariado crescente, derivado do processo de
cercamento de terras, cumpre um papel importantíssimo na acumulação de capital, isto
é, quanto maior for o contingente lumpemproletário, maior será a pressão sobre o
proletariado para aceitar suas condições de trabalho e salários miseráveis. Portanto, é
possível perceber que o proletariado do século XIX se via muito facilmente ameaçado
pela lumpemproletarização. O proletariado vivia constantemente a ponto de
lumpemproletarizar-se. E assim a existência de um grande contingente
lumpemproletário cumpria uma das suas principais funções no capitalismo: promover
uma alavanca de acumulação via pressionamento dos salários e divisão da classe
trabalhadora.
Não só as condições de trabalho possibilitavam uma vida degradante para o
proletariado, mas sim todas as esferas da sua vida representavam um profundo contato
com a degradação física e moral. Sua condição de moradia é, nesse sentido, reveladora
de tal deterioração. É preciso compreender que em uma sociedade marcada pela
completa mercantilização da vida, o acesso da classe operária a determinados bens
primários, tais como, moradia, alimentação, vestuário, saúde, etc. passa pelo valor do
seu salário e das possibilidades derivada dele. E uma vez que o salário operário é
miserável, conseqüentemente, o acesso a tais bens se dá de forma bastante precária.
Toda grande cidade industrial no século XIX, assim como hoje, revela na
arquitetura diferenciada dos seus bairros, nas condições de suas ruas, na sua limpeza, no
seu odor, etc. a divisão entre classes sociais, em outras palavras, a divisão entre
exploradores e explorados. Na Inglaterra desse período os bairros operários eram
chamados de “bairros de má fama” (ENGELS, 2008). De acordo com Engels,
na Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da
mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da
cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois
andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de
maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha
chamam-se cottages e normalmente constituem em toda Inglaterra, exceto em
alguns bairros de Londres, a habitação operária. Habitualmente, as ruas não
são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais,
sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos.
A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como
nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade
do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom
tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são
usados para secar roupa (2008, p. 70).
Os bairros operários, no geral, possuem as mesmas características em todo o
território inglês. São marcados pela existência de ruas estreitas, geralmente imundas,
tanto por conta do ineficaz sistema de limpeza urbana quanto, pela inexistência de rede
de saneamento e esgoto, fazendo com que os dejetos das “residências” sejam lançados
ao ar livre nas ruas. Nesses bairros era comum encontrar em suas ruas a instalação de
um mercado aberto que vendia legumes e frutas, todos de péssimas qualidades e de
cheiro horripilante. Juntamente com essas frutas e legumes, a carne que era vendida e
consumida pelos operários quase sempre se encontrava em estado putrefato.
A alimentação operária era extremamente minguada e isso, é claro, se deve aos
péssimos salários recebidos e, conseqüentemente, da limitada possibilidade de se
consumir bons alimentos. Freqüentemente o proletariado “optava” por consumir nas
feiras e mercados os produtos que durante todo o dia as “classes médias” se recusaram a
comprar devido a sua má qualidade. Portanto, o grosso da alimentação operária era
formado por alimentos de escassa qualidade, muitas vezes já em estado de
decomposição. Assim se encontrava, também, a carne consumida. Os açougues dos
bairros operários eram lotados de carne de todo tipo de animal (ganso, boi, porco,
presunto etc.), mas geralmente em estado impróprio para o consumo. O jornal
Manchester Guardian, fundado em Manchester por J. E. Taylor em 1821,
constantemente trazia denúncias sobre processos e condenações de diversos açougueiros
que, abusando da miséria operária, ofertava diariamente carnes putrefatas.
O periódico inglês The Artizan (outubro de 1843), nos possibilita visualizar, de
forma geral, as condições sanitárias dos bairros operários:
Essas ruas são em geral tão estreitas que se pode saltar de uma janela para
outra da casa em frente e as edificações têm tantos andares que a luz mal
pode penetrar nos pátios ou becos que as separam. Nessa parte da cidade não
há esgotos, banheiros públicos ou latrinas nas casas; por isso, imundice,
detritos e excrementos de pelo menos 50 mil pessoas são jogados todas as
noites nas valetas, de sorte que, apesar do trabalho de limpeza das ruas,
formam-se massas de esterco seco das quais emanam miasmas que, além de
horríveis à vista e ao olfato, representam um enorme perigo para a saúde dos
moradores. É de espantar que não se encontre aqui nenhum cuidado com a
saúde, com os bons costumes e até com as regras elementares da decência?
Pelo contrário, todos os que conhecem bem a situação dos habitantes podem
testemunhar o ponto atingido pelas doenças, pela miséria e pela degradação
moral. Nesses bairros, a sociedade chegou a um nível de pobreza e de
aviltamento realmente indescritível. As habitações dos pobres são em geral
muito sujas e aparentemente nunca são limpas; a maior parte das casas
compõe-se de um só cômodo que, embora mal ventilado, está quase sempre
muito frio, por causa da janela ou da porta quebrada; quando fica no subsolo,
o cômodo é úmido; frequentemente, a casa é mal mobiliada e privada do
mínimo que a torne habitável: em geral, um monte de palha serve de cama a
uma família inteira; ali deitando-se, numa promiscuidade revoltante, homens,
mulheres, velhos e crianças. Só há água nas fontes públicas e a dificuldade
para buscá-la favorece naturalmente a imundice (Apud ENGELS, 2008, p.
79).
Em suma, as condições materiais do proletariado inglês o condenava a viver na
miséria, em condições habitacionais horripilantes, tendo uma dieta alimentar muito
carente, vestindo-se de poucos trapos, possuindo restritas condições de se higienizar,
perseguido pelo frio e por diversos tipos de doenças8. Essas últimas se apresentam como
uma das portas de entrada para uma vida lumpemproletária, pois, devido à dura rotina
de trabalho nas indústrias aliada a uma alimentação precária e uma moradia insalubre, o
operário chefe da família corria o risco constante de ter seus músculos e órgãos falidos e
de adoecer seriamente, ficando impossibilitado para o trabalho. “E é então que se
manifesta, agora de forma mais aguda, a brutalidade com a qual a sociedade abandona
seus membros justamente quando mais precisam de sua ajuda” (Ibid, 2008, p. 115).
Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII e de todo o século XIX,
predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente na Inglaterra e França, o
crescente temor e pânico das classes dominantes diante das inúmeras possibilidades de
sublevações das classes desempregadas e miseráveis, em outras palavras, do
proletariado e do lumpemproletariado em geral. Tal estado de pânico coletivo não é
gratuito, basta perceber em que condições viviam a maioria da população pobre das
principais cidades industriais européias, Londres e Paris, por exemplo, para
constatarmos que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do que
suficientes para alimentar protestos, sublevações, saques, roubos e todo tipo de motins
populares violentos.
Não é à toa que diversos questionamentos da época apontavam para esse risco.
Dentre eles, e o mais citado, encontra-se o realizado por Friedrich Engels no prefácio à
edição inglesa de O Capital, que assim indagava: “Entrementes, em cada inverno,
renova-se a pergunta: O que fazer com os desempregados? Enquanto se avoluma, cada
ano, o número deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos
8 “Testemunhos provindos de fontes as mais diversas confirmam que as habitações operárias nos piores
bairros urbanos, somadas às condições gerais de vida dessa classe, provocam numerosas doenças (...) as doenças pulmonares são a conseqüência inevitável desta condição habitacional e, por isso, são particularmente freqüente entre os operários. A aparência de tísicos de tantas pessoas que se encontram pelas ruas é claro indicativo de que a péssima atmosfera de Londres, em especial nos bairros operários, favorece ao extremo o desenvolvimento da tuberculose (...) Além de outras doenças respiratórias e da escarlatina, o grande rival da tuberculose, causador de devastações entre os operários, é o tifo. Segundo relatórios oficiais sobre as condições sanitárias da classe operária, esse flagelo universal é provocado pelo péssimo estado das habitações operárias, a má ventilação, a umidade e a sujeira. Nessas informações, preparadas – é bom recordá-lo – pelos melhores médicos da Inglaterra, com base em relatos de outros médicos, afirma-se que um único pátio mal arejado, um único beco sem rede de esgoto, sobretudo quando os operários vivem amontoados e nas proximidades existem matérias orgânicas em decomposição, pode provocar a febre, e quase sempre a provoca” (ENGELS, 2008, p. 138).
prever o momento em que os desempregados perderão a paciência e encarregar-se-ão de
decidir seus destinos com suas próprias forças”. Assim como Engels, diversos outros
teóricos e romancistas da época já alertavam para o perigo do crescimento absoluto
dessa massa faminta. Balzac colocava a questão da seguinte forma:
Há necessidades invencíveis, porque, enfim a sociedade não dá o pão a todos
os que têm fome; e quando estes não tem nenhum meio de ganhar a vida, que
quereis que eles façam? A política terá previsto que no dia em que a massa
dos infelizes for mais forte que a dos ricos, o estado social estará estabelecido
de outra maneira? No presente momento, a Inglaterra está ameaçada por uma
revolução desse gênero. O imposto para os pobres tornou-se exorbitante na
Inglaterra; e no dia em que sobre 30 milhões de pessoas houver 20 milhões
que morrem de fome, a infantaria, os canhões e a cavalaria nada poderão
fazer (Apud GUIMARÃES, 2008, p. 88).
Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações que o
lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas e suas classes
auxiliares, inspiradas nos seus valores e perspectivas que lhes são próprios, construíram
diversas representações pejorativas dos míseros proletários e, principalmente,
lumpemproletários e das sensações e sentimentos que a existência, comportamentos e
hábitos dessas classes vos geravam. Dentre os principais termos alguns se destacam pela
repulsa que os mesmos provocavam e que nos possibilita apreender a forma como tal
classe era expressa pelos valores aristocrático-burgueses da época. Dentre vários
podemos citar: vagabundos, mendigos, vadios, maltrapilhos, esfarrapados, escória,
ralés, desajustados sociais etc.
Se essas eram as condições nas quais se encontravam o proletariado, em que
condições viviam então o “proletariado em farrapos”, isto é o lumpemproletariado? Se
vendendo sua força de trabalho por salário o proletariado vivia na miséria absoluta,
como diferenciar as condições de vida dos que se encontram à margem da divisão social
do trabalho? É possível que exista uma classe social vivendo em condições abaixo da
miséria? Como viviam o lumpemproletariado das principais cidades industriais
européias e como reagiam diante dessa realidade a ponto de gerar tanto temor? A busca
por respostas a essas questões nortearam todo o desenvolvimento da discussão em torno
da formação e desenvolvimento do lumpemproletariado no período de vigência do
regime de acumulação extensivo.
De início gostaríamos de enfatizar que o lumpemproletariado é considerado por
nós uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de reserva
(superpopulução relativa) e não apenas pelos extratos mais baixos dessa superpopulação
relativa, conforme exposto por Marx no capítulo XXIII do volume 2 de O Capital – A
lei geral da acumulação capitalista. Concordamos com Viana (2011) quando o mesmo
destaca a importância de ressignificar o lumpemproletariado para melhor compreendê-
lo no interior da dinâmica do modo de produção capitalista. De acordo com ele,
o primeiro ponto é ressignificar o lumpemproletariado, que não pode ser
considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim
ela em sua totalidade. Assim, o lumpemproletariado abarca o conjunto do
exército industrial de reserva. É composto, portanto, pelos trabalhadores
potenciais do capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e
em trabalhos precários, não produtores direto de mais-valor. Ou seja, inclui
tanto aqueles que estão na fronteira com o proletariado (desempregados
temporários, subempregados, etc.) quanto os que sobrevivem sob outras
formas (prostituição, mendicância, etc.) (VIANA, 2011).
É válido ressaltar que devido à nossa compreensão do que seja o
lumpemproletariado, consideraremos, nas análises de diversos outros autores, como
frações do lumpemproletariado ou o lumpemproletariado em sua totalidade, as análises
referentes aos marginais, à multidão, às classes perigosas, aos miseráveis, etc.
Consideramos que nessas análises, apesar da denominação diferenciada da nossa, os
indivíduos que a compõe são os mesmos que compõe o exército industrial de reserva,
logo, de acordo com nossa definição, equivale ao lumpemproletariado. Mais adiante
entraremos em detalhes sobre o lumpemproletariado nos escritos de Marx.
A existência de um proletariado miserável nos países industrializados da
Europa do século XIX subentende a existência de um vasto contingente
lumpemproletário que possibilite a manutenção de baixos salários, disputa por
empregos, divisão e enfraquecimento da classe trabalhadora. Portanto, no capitalismo
um não existe sem o outro. Se no modo de produção capitalista existe de um lado
riqueza e do outro pobreza, abaixo da pobreza existe um miséria extrema que tende a
crescer concomitante ao crescimento de produção da riqueza. Não é essa a lei geral da
acumulação capitalista?
Nesse sentido, podemos adiantar desde já que os bairros operários europeus
estavam abarrotados de indivíduos que compõe o lumpemproletariado e que boa parte
dessa classe, na Inglaterra, é composta por imigrantes irlandeses.
Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos,
todos misturados com ladrões, escroques e vítimas da prostituição. A maior
parte deles são irlandeses, ou seus descendentes, e aqueles que ainda não
submergiram completamente do turbilhão da degradação moral que os rodeia
a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos
influxos aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS,
2008, p. 71).
Em diversas passagens de jornais e periódicos da época, assim como na
excelente pesquisa realizada por Engels e que resulta em 1845 na extraordinária obra
sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, é possível identificar uma
grande quantidade de lumpemproletários sobrevivendo nas ruas das principais cidades
industriais inglesas. Segundo o Times – principal diário inglês de cunho conservador –
de 12 de outubro de 1843:
Nossa seção policial publicada ontem indica que dormem nos jardins, todas
as noites, cerca de cinqüenta pessoas, sem outra proteção contra as
intempéries que árvores e tocas escavadas em muros. Em sua maioria, são
moças que, seduzidas por soldados, vieram do campo e, abandonadas neste
vasto mundo à degradação de uma miséria sem esperança, tornaram-se
vítimas inconscientes e precoces do vício.
Na realidade, isso é assustador. Os pobres estão em toda parte. Por toda parte,
a indigência avança e insere-se, com toda a sua monstruosidade, no coração
de uma grande e florescente cidade. Nos milhares de becos e vielas de uma
populosa metrópole sempre haverá – dói dizê-lo – muita miséria que fere o
olhar e muita que não será vista.
Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da
elegância, junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do
esplêndido palácio de Bayswater, onde se encontra o velho e o novo bairros
aristocráticos, numa área da cidade onde o requinte da arquitetura moderna
prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza,
numa área que parece consagrada ao desfrute da riqueza, é assustador que
exatamente aí venham instalar-se a fome e a miséria, a doença e o vício, com
todo o seu cortejo de horrores, destruindo um corpo atrás de outro, uma alma
atrás de outra!
É uma situação verdadeiramente monstruosa. O máximo prazer
proporcionado pela saúde física, a atividade intelectual, as mais inocentes
alegrias dos sentidos lado a lado com a miséria mais cruel! A riqueza que, do
alto dos seus salões luxuosos, gargalha indiferente diante das obscuras feridas
da indigência! A alegria que inconsciente, mas cruelmente, zomba do
sentimento que geme ali embaixo! Todos os contrastes em luta, tudo em
oposição, exceto o vício que conduz à tentação e aqueles que se deixam
tentar ... Que todos reflitam: na área mais luxosa da cidade mais rica do
mundo, noite a noite, inverno a inverno, vivem mulheres, jovens em idade e
envelhecidas pelos pecados e pelo sofrimento, expulsas da sociedade,
atoladas na fome, na doença e na sujeira (...) (Apud ENGELS, 2008, p. 75-
76).
Como qualquer outra mercadoria, a força-de-trabalho está inserida na lógica da
oferta e da procura no mercado. Portanto, quanto maior for a oferta de mão-de-obra
disponível para ser empregada, tanto maior será o rebaixamento dos salários e tanto
maior será o número da população “supérflua” – o lumpemproletariado. Além disso, é
importante destacar que o capitalismo do século XIX, assim como o atual, é
caracterizado pela existência de crises constantes e a cada crise a situação tende a
esmagar, ainda mais, os setores frágeis da sociedade e, nesses períodos, o proletariado
tende a ter seus salários rebaixados profundamente, uma vez que o lumpemproletariado
tende a ampliar-se e, conseqüentemente, a ampliar, também, a pressão sobre os
operários empregados. Assim, o proletariado ainda empregado, mas que se vê ameaçado
constantemente pelo desemprego, tende a se submeter, a não ser em períodos de
radicalização da sua luta, a condições ainda mais precárias de trabalho e vida, pois,
no pior dos casos, o operário, para subsistir, preferirá renunciar ao grau de
civilidade a que estava habituado: preferirá morar numa pocilga a não ter
teto, aceitará farrapos para não andar desnudo, comerá batatas para não
morrer de fome. Preferirá, na esperança de dias melhores, aceitar metade do
salário a sentar-se silenciosamente numa rua e morrer na frente de todo
mundo, como já aconteceu com tantos desempregados. É esse pouco, quase
nada, que constitui o mínimo salário. E se há mais operários que aqueles que
à burguesia interessa empregar, se, ao término da luta concorrencial entre
eles, ainda resta um contingente sem trabalho, esse contingente deverá morrer
de fome, porque o burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com
lucro o produto de seu trabalho (ENGELS, 2008, p. 119).
Tarefa difícil é a de precisar a linha que separa o proletariado do
lumpemproletariado em relação à habitação, vestimenta, alimentação, saúde, hábitos e
etc. em todo o século XIX, pois o que percebemos é que, nesse período, a exploração e
miséria são generalizadas e que tanto o proletariado quanto o lumpemproletariado são
suas maiores vítimas. O lumpemproletariado assim como qualquer outra classe social
no capitalismo, precisa acessar, mesmo que em condições extremamente desiguais,
alguns bens básicos para sobreviver. Para isso ele se vê coagido a obter dinheiro, seja de
qual forma for: mendigando, prostituindo-se, roubando, varrendo ruas e recolhendo
imundices, transportando esterco e pequenos objetos, realizando comércio ambulante ou
biscates, cometendo crimes diversos etc.9
É impressionante a grande quantidade de lumpemproletários que ocupam as
ruas, principalmente, dos bairros operários ingleses. É exatamente nesses locais que o
lumpemproletariado encontra alguma solidariedade e consegue a partir de algumas
esmolas, concedidas pelos próprios operários, garantir a sua existência paupérrima. Por
isso milhares de famílias se instalam nessas ruas nos horários de maior circulação dos
operários, pois geralmente “só contam com a solidariedade dos operários, que sabem,
por experiência, o que é a fome e que a todo momento podem encontrar-se na mesma
situação” (Ibid, 2008, p. 128).
9 “São espantosos os expedientes a que esses indivíduos recorrem para ganhar qualquer coisa. Os
varredores de rua (cross sweeps) de Londres são conhecidos em todo o mundo; mas até pouco tempo atrás, também as ruas e calçadas de outras grandes cidades eram limpas por desempregados, contratados para esse fim pelas repartições encarregadas da assistência ou pelas autoridades responsáveis pela conservação das ruas; hoje existe uma máquina que, diária e ruidosamente, limpa as ruas, tirando daqueles desempregados até mesmo esse meio de sobrevivência. Nas grandes vias que ligam as cidades e nas quais há muito movimento, encontra-se uma quantidade de indivíduos empurrando carrinhos de mão que, sob o risco de atropelamento, circulam entre carroças e outros veículos de tração animal, recolhendo o esterco fresco dos cavalos para vendê-lo depois – para o que ainda pagam semanalmente alguns shillings à administração das estradas” (Ibid, 2008, p. 126).
De acordo com os relatórios de inspetores para a lei sobre os pobres, na
Inglaterra e no País de Gales, o número de lumpemproletários (os ditos “supérfluos”)
representa em média 1,5 milhões. Porém esse número poderia ser bem maior visto que
nesse 1,5 milhões só estão compreendidos aqueles indivíduos que oficialmente recebem
alguma assistência pública, estando excluídos desse número os milhares de
lumpemproletários que sobrevivem sem essa assistência.
Em períodos de crise econômica, a miséria atinge graus alarmantes e acirra o
descontentamento e o ódio das classes miseráveis que declaram guerra à toda sociedade
civil, obrigando-o a sobreviver do banditismo. Os anos de 1842 e 1847 são reveladores
do peso que sobrecai no proletariado e em alguns setores das “classes médias” e que os
vitimizam com a lumpemproletarização (desgraça ainda maior que a proletarização) em
períodos de crise:
Um relatório sobre a situação das áreas industriais em 1842, baseado em
dados fornecidos pelos industriais e preparado em janeiro de 1843 pelo
Comitê da Liga contra a Lei dos Cereais, informa que o imposto para os
pobres era então duas vezes maior que em 1839, mas que, no mesmo período
de tempo, o número de necessitados havia triplicado ou até quintuplicado;
que agora muitos postulantes à assistência pública pertenciam a classes
sociais que antes jamais haviam solicitado ajuda; que os meios de
subsistência de que a classe operária podia dispor eram no mínimo dois
terços a menos em relação aos que dispunha em 1834-1836; que o consumo
de carne havia caído muito, 20% em alguns locais, 60% em outros; que
artesãos, ferreiros, pedreiros etc., que até então, mesmo nos períodos de crise
mais grave, encontravam trabalho, agora também sofriam muito com a falta
de trabalho e com os baixos salários; e que, ainda em janeiro de 1843, os
salários continuavam caindo. E essas são informações dos industriais! (Ibid,
2008, p. 129).
Promovendo essas condições de existência para milhares de seres humanos, a
sociedade inglesa favorecia a eclosão de uma verdadeira guerra social, pois boa parte
dos operários pobres e do lumpemproletariado passam a promover diversos motins e
rebeliões, além de buscar a sobrevivência a partir da pilhagem, do roubo e, até mesmo,
do assassinato. As últimas décadas do século XIX experimentam o crescente temor de
ver renascido o velho espectro da multidão amotinada (a mob), disposta a ver seus
interesses e necessidades garantidos através da ação direta, provocada pelos motins e de
todo tipo de movimentos promovidos pelos desempregados enfurecidos, e que tanto
risco à propriedade e à vida eles representam. Elementos típicos de uma sociedade que
se afirma na utilização do trabalho social para produzir riquezas de forma ampliada, mas
que são negadas para seus próprios produtores que são relegados e forçados a viver no
“pântano do pauperismo”. No entanto, ninguém acreditava de fato que tal multidão
desempregada e faminta aguardaria de braços cruzados que algum auxílio caísse do céu,
ou que algum messias as socorresse, pelo contrário, em períodos de crise e miséria
social, as ideologias (religiosas) costumam cair por terra e o lumpemproletariado, por
diversos momentos, partiu para a ação. Segundo Bresciani,
coincidentemente, os homens que agitam Londres em fevereiro de 1866 e
tentam de início resolver o problema do desemprego num inverno rigoroso
através das vias legais, pedindo trabalho-público e auxílio-desemprego, são
trabalhadores. Em Trafagal Square, a assembléia que dá início ao movimento
compõe-se de 20 000 homens desempregados das docas e da construção.
Contudo, bastaram algumas provocações para que a marcha pacífica em
direção ao Hyde Park se transformasse num ataque a todas as formas de
propriedade, riqueza e privilégio: janelas e vitrinas foram quebradas,
carruagens foram quebradas e seus ocupantes assaltados; em suma na
observação do Times, “o West End (bairro rico de Londres) esteve por
algumas horas nas mãos da multidão”. O pânico tomou conta da cidade;
notícias desencontradas sobre multidões avançando em direção à City ou ao
West End e destruindo tudo no seu avanço mantêm os proprietários, o
governo e as tropas em prontidão durante mais dois dias que, nas palavras do
historiador S. Jones se assemelharam ao Grande Medo (“Grande Peur”) da
Revolução Francesa (1990, p. 47).
O que esperar dessa classe social que durante toda a sua existência convive
com todo tipo de infortúnio? É possível aguardar de seres desumanizados e famintos
atitudes que prezem pela vida e propriedade alheia? O século XIX inaugura o século do
banditismo social generalizado. As ruas que, durante o dia, eram infestadas de
mendigos, subempregados e todo tipo de desempregados procurando alguma forma de
garantir sua sobrevivência, pela noite, se encontrava repleta de todo tipo de ladrão e
criminoso. Nascia, assim, um dos termos pejorativos mais utilizados para classificar o
lumpemproletariado: Classes perigosas.
Na introdução da sua obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural
(2008), Alberto Passos Guimarães afirma o seguinte em relação à origem da palavra
classes perigosas (dangerous classes):
O dicionário mais importante da língua inglesa, o Oxford English Dictionary,
registrou o uso da expressão em 1859, mas dez anos antes ela já figurava no
título de uma obra (Reformatory scholls for the children of the perishing and
dangerous classes, and for juvenile offenders) de autoria de Mary Carpenter,
escritora bem conhecida por seus trabalhos sobre matéria criminal. Na
conceituação de Mary Carpenter, as classes perigosas eram formadas pelas
pessoas que houvessem passado pela prisão ou as que, por ela não tendo
passado, já vivessem notoriamente da pilhagem e que se tivessem convencido
de que poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais
praticando furtos do que trabalhando (2008, p. 21).
É visível que o termo classes perigosas é criado e, posteriormente,
desenvolvido por vários intelectuais do século XIX e expressa, nitidamente, um
preconceito em relação às classes pobres e miseráveis formadas tanto pelo proletariado,
quanto pelo lumpemproletariado, pois, no entender de alguns desses intelectuais, a
prática do roubo e do crime em geral era fruto da escolha individual e não resultado das
míseras condições sociais em que se encontrava uma multidão de indivíduos.
Dessa forma, empregar o termo classes perigosas, assim como vários outros
termos preconceituosos, ao invés de lumpemproletariado - o que na época exigia uma
ampla análise teórica sobre as classes sociais e a dinâmica de sua constituição e
desenvolvimento no capitalismo – possibilitou a expansão de olhares pejorativos e
preconceituosos sobre o lumpemproletariado e que, ainda hoje, é comumente praticado
por alguns intelectuais ditos marxistas. Tanto Karl Marx quanto Friedrich Engels
acabam sendo influenciados por esse preconceito dominante na época e, em alguns
escritos, também, adotaram termos preconceituosos para classificar o
lumpemproletariado. Mais adiante entraremos em detalhes sobre tais escritos.
Nesse momento de nossa análise já é possível visualizar que a expansão do
lumpemproletariado e da criminalidade em diversas regiões industrializadas,
principalmente, da Inglaterra e da França, são resultados da própria dinâmica da
produção e reprodução do capitalismo (conforme expresso no item 1.1.2 desse capítulo)
e que tendem a se intensificar em períodos de carestia, fome e crise, ou seja, em
períodos com fortes tendências ao crescimento generalizado do desemprego. A prática
do roubo como forma garantidora da sobrevivência de uma multidão urbana ganha o
século XIX:
O roubo reina sozinho em meados do século, atingindo seu máximo
correcional entre 1851-1855 (24.000 casos, 42.000 indiciados). Enquanto
diminuem os roubos nas igrejas e nas grandes estradas, estes, apanágios de
jovens que ainda sonham com Mandrin, crescem todas as formas de roubos
urbanos: roubos domésticos, severamente reprimidos, fantasma dos
burgueses de Balzac ou de Pot-Bonille, rivalizados a partir de 1850 pelo
roubo do balcão, que recrudesce com o fascínio exercido pelos Grandes
Magazines sobre o público feminino; miúdos furtos de o bjetos – a vitrine
cobiçada inaugura muitas carreiras delinqüentes – mas, cada vez mais, roubos
de dinheiro, pequenas somas surrupiadas, as únicas que estejam ao alcance da
mão (...) Entretanto, a “gatunice de alimentos”, na origem de tantas
inculpações de crianças ou vagabundos, esboça o horizonte medíocre de uma
sociedade de penúria, a existência de uma fome marginal, mas persistente
(PERROT, 1988, p. 250-251).
Constata-se que nesses períodos a expansão do lumpemproletariado e de suas
práticas ameaçadoras da ordem social (rebeliões, atos de violência generalizada etc.) e
dos bens das classes privilegiadas (roubos, saques etc.) veio acompanhada da expansão
de diversas instituições nascidas para amenizar as crescentes perturbações sociais
promovidas por essa massa imensa formada por diversas frações que compunham o
lumpemproletariado (mendigos, assaltantes, prostitutas, subempregados, ex-operários
desempregados etc.) da época. Dentre essas instituições destacam-se: os asilos, os
“hospitais‟ e as prisões.
Para toda essa gama de problemas sociais inaugurada, já de forma
intensificada, pelo modo de produção capitalista, não há resolução concreta nos limites
das fronteiras do capital. Pelo contrário, a manutenção do capitalismo depende, e ao
mesmo tempo representa sua ameaça, da conservação de sua essência produtora de toda
essa problemática. Aqui me refiro, principalmente, ao processo de
lumpemproletarização e de criminalização do lumpemproletariado, existente desde a
origem do capitalismo e que remonta ao processo de cercamento de terras:
Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e
violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como
pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma
velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram
bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam
enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição.
Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em
parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias.
Daí ter surgido em toda Europa Ocidental, no final do século XV e durante
todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os
ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela
transformação, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação
os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa
vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam
(MARX, 1985a, p. 275)10
.
O próprio processo de criminalização do lumpemproletariado revela, tanto no
século XIX, quanto na contemporaneidade, a impossibilidade da construção de uma
solução eficaz para essa ampla marginalização de milhares de indivíduos da divisão
social do trabalho. Afinal, a raiz da expansão da criminalidade se encontra na própria
dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a reprodução
ampliada do capital depende da existência de um contingente, cada vez maior, de
indivíduos marginalizados na divisão social do trabalho. A criminalização via
aprisionamento do lumpemproletariado tende a reproduzir, ainda de forma mais extensa,
sua condição de marginalizado do trabalho, pois sua vida após o cumprimento da pena
carrega a “marca da detenção” e essa gera uma enorme repulsa social que facilita ainda
mais sua condição de lumpem. Nesse sentido,
10
Nos primeiros parágrafos após essa citação, na obra de Karl Marx (1985a) encontra-se as diversas leis que foram criadas com o intuito de criminalizar o lumpemproletariado e castigá-lo pela sua condição social e mendicância. Parafraseando Marx: “Que cruel ironia!”.
todos os testemunhos concordam: há extrema dificuldade em se conseguir
trabalho. “A partir do momento em que o véu que encobria sua condição de
liberto é rompido, todos os evitam ou fogem dele; se trabalha numa oficina,
os que um momento antes tratavam-no como camarada não toleram mais sua
presença em meio a eles a não ser com impaciência e aflição; não só não é
mais seu companheiro de trabalho, como também não é mais seu igual, seu
semelhante. Não haverá ordem e harmonia na oficina, enquanto não tiver
sido expulso”, escreve Frégier. E mais: “Como se sabe, existe na França uma
repulsa inveterada em todas as classes da população em relação aos ex-
detentos” (PERROT, 1988, p. 270).
Antes mesmo do século XIX, ainda nas décadas finais do século XVIII, o
lumpemproletariado já era um dos alvos principais do sistema carcerário. Na França, em
diversos momentos de crise econômica e crescimento acelerado do desemprego, a
criminalização do lumpemproletariado foi a principal arma utilizada pelas classes
dominantes para conter a desordem social derivada da pobreza generalizada que atingia
essa classe:
as manufaturas a que estávamos tão apegados caem de todos os lados; as de
Lyon vieram abaixo: há mais de 12 000 operários mendigando em Rouen,
outro tanto em Tours, etc. Contam-se mais de 20 000 desses operários que
abandonaram o reino desde três meses atrás para ir para o exterior, Espanha,
Alemanha, etc., onde são acolhidos e onde o governo é econômico
(ARGENSON, Apud FOUCAULT, 1997, p. 401).
Na tentativa de combater esse movimento expansivo de lumpemproletarização,
decreta-se o aprisionamento de todos os mendigos: “Foi dada a ordem de prender todos
os mendigos do reino; os marechais atuam nesse sentido no interior, enquanto a mesma
coisa é feita em Paris, para onde se tem certeza que eles não refluirão, estando cercado
por todos os lados” (Ibid, 1997, p. 402). Na segunda metade do século XVIII na França
esse processo de criminalização do lumpemproletariado é permanente:
De um lado e do outro, responde-se à crise com o internamento. Cooper
publica em 1765 um projeto de reforma das instituições de caridade; propõe
que se criem, em cada hundred, sob a dupla vigilância da nobreza e do clero,
casas que teriam uma enfermaria para os doentes pobres, oficinas para os
indigentes válidos e centros de correção para os que se recusassem a
trabalhar. Inúmeras casas são fundadas no interior a partir desse modelo,
inspirado por sua vez na workhouse de Carlford. Na França, um édito real de
1764 prevê a abertura de depósitos para mendigos, mas a decisão só
começará a ser aplicada após uma deliberação do conselho de 21.09.1767:
“Que se preparem e estabeleçam, nas diferentes generalidades do reino, casas
suficientemente fechadas para nelas receber pessoas vagabundas ... Os que
forem detidos nas ditas casas serão alimentados e mantidos às custas de Sua
Majestade (...)”. No ano seguinte abrem-se 80 depósitos de mendigos em
toda a França. Têm quase a mesma estrutura e o mesmo destino que os
hospitais gerais; o regulamento do depósito de Lyon, por exemplo, prevê que
ali serão recebidos vagabundos e mendigos condenados ao internamento por
decisão do preboste, “as mulheres de má vida detidas pelas tropas”, “os
particulares mandados por ordem do rei”, “os insensatos, pobres e
abandonados, bem como aqueles pelos quais se paga pensão” (Art. 1 do título
do regulamento do depósito de Lyon 1783, cit. In LALLEMAND, IV, p.
278). Mercier dá uma descrição desses depósitos que mostram como eles
diferem pouco das velhas casas do Hospital Geral: a mesma miséria, a
mesma mistura, a mesma ociosidade (FOUCAULT, 1997, p. 403).
O século XIX, conforme afirma Perrot, inaugura a era do aprisionamento
permanente. Depois do asilo, a prisão, “gêmea sua, torna-se o objeto de uma história
cada vez mais assombrada pelo lado sombrio das sociedades: doença, loucura,
delinqüência (...)” (PERROT, 1988, p. 235). Como era de se esperar o
lumpemproletariado passa a ser a visita prioritária desse novo e assustador
estabelecimento, ou melhor, depósito de infelizes seres humanos.
Para finalizar esse capítulo, passaremos a discutir o lumpemproletariado nos
escritos de Marx. O termo lumpemproletariado tem origem nos escritos de Karl Marx,
porém esse autor não chegou a desenvolvê-lo de forma sistematizada e em várias obras
(O Manifesto Comunista, A luta de classes na França, O 18 Brumário e O capital) o
termo é mencionado, em alguns casos, com diferenças de significado. Na obra O
manifesto do partido comunista (1998), Marx e Engels assim comenta sobre o
lumpemproletariado:
O lumpemproletariado, essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da
velha sociedade, pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma
revolução proletária; no entanto, suas condições de existência o predispõe
bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias (1988, p. 76).
Nessa passagem é possível perceber alguns aspectos que consideramos
limitados e ao mesmo tempo um pouco taxativo na análise de Marx, pois quando ele
afirma que o lumpemproletariado representa essa “putrefação passiva dos setores mais
baixos da velha sociedade” ele acaba por exagerar na postura passiva dessa classe, pois
não é bem isso que a história do século XIX mostra. Em diversos momentos o
lumpemproletariado reagiu à sua condição material de existência através de ações
contra a propriedade, contra a vida aristocrática e burguesa, assim como participou de
diversos motins e rebeliões. É claro que essas ações não vinham acompanhadas de
nenhum projeto político, nem tão pouco possuía nenhuma radicalidade que ameaçasse a
sociedade vigente, todavia, sua postura não era exatamente passiva.
Por outro lado, há um aspecto importante nessa citação sobre a postura política
do lumpemproletariado e de suas possibilidades. Trata-se do seguinte trecho: “pode,
aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária”. Ora, essa
passagem nos possibilita perceber que, ao contrário do que afirma alguns teóricos, Marx
e Engels, pelo menos nessa obra, mostravam que, apesar das condições materiais de
existência dessa classe social que tendia a predispô-la “bem mais a se deixar comprar
por tramas reacionárias”, como ocorreu na luta de classes na França (um episódio
histórico concreto), o lumpemproletariado poderia - e pode - contribuir com a revolução
proletária. Esse detalhe é importante, pois demonstra que a postura política do
lumpemproletariado não resulta de uma espécie de essência do seu ser-de-classe que
sempre o arrasta para um papel conservador e reacionário na luta de classes, pelo
contrário, apresenta que essa classe, também, possui outras possibilidades e que tudo
depende da dinâmica da luta de classes e de sua correlação de forças em determinados
contextos históricos.
Além dessa passagem presente na obra O manifesto do partido comunista,
outras passagens são importantes para compreendermos a visão de Marx sobre essa
classe social e a influência que a mesma exerceu em teóricos posteriores que discutiram
o lumpemproletariado. Nas suas duas principais obras históricas, O 18 Brumário (1997)
e As lutas de classes na França – de 1848 a 1850 (2008), Marx analisa os interesses de
classes envolvidos nas lutas que se desenvolveram nesse contexto histórico francês e as
estratégias que as classes sociais em luta utilizaram para garantir tais interesses. Para
compreendermos um pouco esse processo, utilizaremos de algumas extensas citações.
Em A luta de Classes na França, Marx assim descrevia:
A revolução de fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda
Nacional, isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única
força. Contudo, não se sentia suficientemente forte para enfrentar o
proletariado. Além disso, fora obrigada, ainda que opondo a mais tenaz das
resistências e levantando inúmeros obstáculos, a abrir, pouco a pouco, e em
pequena escala, as suas fileiras e a deixar que nelas entrassem proletários
armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do
proletariado à outra.
Para esse fim, o governo provisório formou 24 batalhões de guarda móveis,
cada um deles com mil homens, cuja idades iam de 15 aos 20 anos. Na sua
maioria pertenciam ao lumpemproletariado, que em todas as grandes cidades
constituiu uma massa rigorosamente distinta do proletariado industrial, um
centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem
da escória da sociedade, gente sem ocupação definida, vagabundos, gente
sem pátria e sem lar, variando segundo o grau de cultura da nação a que
pertencem, não negando nunca o seu caráter de Lazzaroni capazes, na idade
juvenil em que o governo provisório os recrutava, uma idade totalmente
influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como
do banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjeta. O governo
provisório pagava-lhes 1 franco e 50 centavos por dia, isto é, comprava-os.
Dava-lhes um uniforme próprio, isto é, distinguia-os exteriormente dos
homens de blusa de operário. Para seus chefes eram-lhe impostos, em parte,
oficiais do exército permanente, em parte, eram eles próprios que elegiam
jovens filhos da burguesia que os cativavam com suas fanfarronadas sobre a
morte pela Pátria e a dedicação à república (p. 84-85).
Em O 18 Brumário podemos ler:
Nessas excursões, que o grande Moniteur oficial e os pequenos Moniteurs
privados de Bonaparte tinham naturalmente que celebrar como triunfais, o
presidente era constantemente acompanhado por elementos filiados à
Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou-se em 1849. A
pretexto de fundar uma sociedade beneficente o lúmpen-proletariado de
Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas
e sob a chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués
decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com
arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados
desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés,
chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores,
maquereaus, donos de bordéis, carregadores, soldadores, mendigos – em
suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca,
que os franceses chamam La bohème; com esses elementos afins Bonaparte
formou o núcleo da Sociedade de 10 de Dezembro. “Sociedade beneficente”
no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam
necessidade de se beneficiar às expensas da nação laboriosa; esse Bonaparte,
que se erige em chefe do lùmpen-proletariado, que só aqui reencontra, em
massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa
escória, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a única classe em
que pode apoiar-se incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o
Bonaparte sans phrase (p. 78-79).
O que Marx nos apresenta com tais passagens? O que é possível apreender
dessas passagens e o que pode ser interpretado como exagero dogmático nas releituras
de outros autores sobre o lumpemproletariado? Nessas passagens, extraídas de duas
obras de caráter histórico, isto é, obras que analisaram determinados acontecimentos em
contextos históricos específicos, Marx descreve como o lumpemproletariado –
reenfatizando: naquele contexto – foi cooptado pelo Estado francês, sob comando de
Luís Bonaparte, e utilizado na luta contra o avanço das lutas proletárias. Ou seja, nesse
episódio a possibilidade do lumpemproletariado ser cooptado e utilizado como
“ferramenta subornada da intriga reacionária” se confirmou.
A obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural (2008) de Alberto
Passos Guimarães se apresenta como uma interpretação tipicamente dogmática da
análise que Marx e Engels realizaram sobre o lumpemproletariado. Nessa obra, seu
autor transforma as afirmações de Marx e Engels sobre o lumpemproletariado, do
século XIX, em “leis naturais e universais” e que podem ser aplicadas a qualquer
situação e contexto histórico, pois para esse autor:
Tanto Marx quanto Engels sempre tiveram essa posição contrária à
utilização de elementos do lumpemproletariado na ação revolucionária, por
considerá-lo instrumentos mobilizáveis pela reação, em todos os tempos,
como havia mostrado a experiência histórica (2008, p. 24).
E, posteriormente, ele continua com suas ênfases dogmáticas:
Mas em nenhum momento Marx e Engels deixaram de considerar as
peculiaridades de cada uma das formas e categorias da superpopulação
relativa, de seu papel e de suas funções na economia e na sociedade. Nunca
deixaram de salientar o antagonismo entre o caráter revolucionário da classe
operária e a tendência contra-revolucionária do lumpemproletariado (Ibid,
2008, p. 28).
Porém, é necessário compreender que a postura política do lumpemproletariado
não é uma “lei natural e universal” que pode ser aplicada para qualquer situação, em
qualquer contexto histórico. No entanto, foi isso que diversos autores ditos “marxistas”
fizeram: interpretaram essas passagens de Marx sob o lumpemproletariado de forma
dogmática, tornando-as espécies de “verdades reveladas” (assim disse o Senhor Marx
no capítulo x, versículo y, amém). Postura essa que não possui nada de marxista, pois
trata a ação de uma classe social de forma estanque, desconsidera as especificidades das
condições materiais de existência, o desenvolvimento da correlação de forças e as
tendências próprias da dinâmica da luta de classes em contextos históricos distintos.
Nesse sentido,
a vulgarização e deformação da teoria de Marx promoveram uma
simplificação e, aliado com determinados interesses e situações, transformou
o lumpemproletariado em puramente reacionário (e deixando de lado o que
Marx denominou “condições de existência”, como numa espécie de
maniqueísmo que transforma essa parte da sociedade em “representante do
mal”. Porém, além de resgatar o que Marx realmente disse, é necessário
perceber a evolução do lumpemproletariado e sua relação com o
desenvolvimento capitalista e, assim, compreender melhor seu papel político
contemporaneamente (VIANA, 2011).
Em nossa análise o lumpemproletariado é considerado uma classe social
intrínseca ao modo de produção capitalista e que, conseqüentemente, vem se
desenvolvendo e se ampliando quantitativamente com o desenvolvimento desse modo
de produção. No entanto, não acreditamos que o lumpemproletariado seja, em sua
essência, contra-revolucionário, assim como o proletariado é revolucionário na sua
essência, pois acreditamos ser possível constatar que na contemporaneidade,
especificamente no período de vigência da acumulação integral, o lumpemproletariado
tende a se aliar ao proletariado, em momentos de crise e enfrentamento, contra o capital
e, conseqüentemente, contribuir com a transformação social.
Percebe-se, então, que ao contrário dos teóricos que analisaram o
lumpemproletariado de forma estanque e dogmática, aqui buscaremos analisar o
lumpemproletariado na sua evolução histórica, intentando buscar respostas que
confirmem a tendência dessa classe em adquirir um caráter cada vez mais contestador e
uma aliança revolucionária com o proletariado. Esse é o objetivo do próximo capítulo:
analisar a expansão do lumpemproletariado no regime de acumulação integral e toda a
complexa dinâmica que envolve esse processo.
Referências Bibliográficas
BARROT, Jean. O movimento comunista. Lisboa: & etc, 1975.
BELLON, Bertrand. Desemprego e capital. Porto: A regra do jogo, 1975.
BENAKOUCHE, Rabah. Acumulação mundial e dependência. Petrópolis, RJ: Vozes,
1980.
BRAGA, Lisandro. Acumulação integral e mais-violência no trabalho na
contemporaneidade. Revista Enfrentamento, número 07, jul./dez. 2009.
____. Regime de acumulação integral e criminalização do lumpemproletariado. Revista
Ciências Humanas, vol. 01, número 04, set./dez. 2010.
____. Acumulação capitalista e tendência à lumpemproletarização. Revista
Enfrentamento, número 08, jan./jun. 2010a.
BRESCIANI, Maria S. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São
Paulo: Brasiliense, 1990.
EATON, John. Manual de economia política. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo:
Boitempo, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1997.
FREITAS, César Augustus. A reciclagem e sua dinâmica reprodutora de uma situação
de lumpemproletariado. 2010. Tese (doutorado em geografia) – Universidade Federal
de Goiás, Goiânia, 2010. 249 p.
GUIMARÃES, Alberto P. Classes perigosas – banditismo urbano e rural. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
LATOUCHE, Serge. Análise econômica e materialismo histórico. Rio de Janeiro:
Zahar, 1977.
MARX, Karl. & ENGELS, Friedrich. A sagrada família. Lisboa: Presença, 1979.
____. Manifesto do partido comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.
MARX, Karl. O capital. Vol. 1, 2ª edição. São Paulo: Nova cultural, 1985.
____. O capital. Vol. 2, 2ª edição. São Paulo: Nova cultural, 1985a.
____. O 18 brumário e cartas a Kugelmann. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
____. As lutas de classes na França – de 1848 a 1850. São Paulo: Expressão popular,
2008.
OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo
brasileiro, 1984.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história – operários, mulheres, prisioneiros. Rio
de Janeiro: Paz e terra, 1988.
SALAMA, Pierre & VALIER, Jacques. Uma introdução à economia política. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 1975.
VIANA, Nildo. Introdução à sociologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
____. A consciência da História – ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. Rio
de Janeiro: Achiamé, 2007.
____. Escritos metodológicos de Marx. Goiânia: Alternativa, 2007a.
____. O que é o marxismo? Rio de Janeiro: Elo, 2008.