Acumulação capitalista e Lumpemproletariado

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Acumulação capitalista e lumpemproletariado. Lisandro Braga A proposta central desse trabalho é compreender o lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, analisando-o como uma classe social composta pelo exército industrial de reserva (desempregados, sem-teto, mendigos, subempregados, delinqüentes, prostitutas etc.). Partimos da hipótese segundo a qual o processo de lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de proletarização, no período de consolidação do capitalismo, vem se ampliando intensamente no regime de acumulação integral, tanto nos países imperialistas quanto nos países subordinados, de uma forma jamais vista em outros períodos do capitalismo, exceto no período de emergência desse modo de produção. Para confirmar essa hipótese iremos analisar o processo de lumpemproletarização no regime de acumulação extensivo (da Revolução industrial até, aproximadamente, 1871) e, posteriormente, no regime de acumulação integral para, a partir daí, buscar constatar que esse processo vem sofrendo uma intensificação na contemporaneidade semelhante à época do primeiro regime de acumulação capitalista, dominante em quase todo o século XIX. Com o propósito de melhor compreender a dinâmica da acumulação capitalista, suas leis, tendências e contra-tendências, assim como a formação do lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital, realizaremos, nesse capítulo, uma discussão acerca das múltiplas determinações que envolvem o modo de produção capitalista, a produção e extração de mais-valor (sua determinação fundamental), a lei geral da acumulação capitalista e o processo de lumpemproletarização derivado dela. Visando, também, compreender as mudanças históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas (processo de valorização, formas estatais e relações internacionais), a história do capitalismo será apresentada aqui enquanto uma sucessão de regimes de acumulação, demonstrando as especificidades do regime de acumulação integral e suas implicações no processo de ampliação do lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009). Historiador e sociólogo por profissão e militante por convicção - do Movimento Autogestionário MovAut.

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Acumulação capitalista e lumpemproletariado.

Lisandro Braga▪

A proposta central desse trabalho é compreender o lumpemproletariado à luz

de uma teoria das classes sociais, analisando-o como uma classe social composta pelo

exército industrial de reserva (desempregados, sem-teto, mendigos, subempregados,

delinqüentes, prostitutas etc.). Partimos da hipótese segundo a qual o processo de

lumpemproletarização, que emerge concomitantemente ao processo de proletarização,

no período de consolidação do capitalismo, vem se ampliando intensamente no regime

de acumulação integral, tanto nos países imperialistas quanto nos países subordinados,

de uma forma jamais vista em outros períodos do capitalismo, exceto no período de

emergência desse modo de produção. Para confirmar essa hipótese iremos analisar o

processo de lumpemproletarização no regime de acumulação extensivo (da Revolução

industrial até, aproximadamente, 1871) e, posteriormente, no regime de acumulação

integral para, a partir daí, buscar constatar que esse processo vem sofrendo uma

intensificação na contemporaneidade semelhante à época do primeiro regime de

acumulação capitalista, dominante em quase todo o século XIX.

Com o propósito de melhor compreender a dinâmica da acumulação capitalista,

suas leis, tendências e contra-tendências, assim como a formação do

lumpemproletariado e seu papel no processo de acumulação de capital, realizaremos,

nesse capítulo, uma discussão acerca das múltiplas determinações que envolvem o

modo de produção capitalista, a produção e extração de mais-valor (sua determinação

fundamental), a lei geral da acumulação capitalista e o processo de

lumpemproletarização derivado dela. Visando, também, compreender as mudanças

históricas pelas quais o capitalismo sofre em suas formas (processo de valorização,

formas estatais e relações internacionais), a história do capitalismo será apresentada

aqui enquanto uma sucessão de regimes de acumulação, demonstrando as

especificidades do regime de acumulação integral e suas implicações no processo de

ampliação do lumpemproletariado na contemporaneidade (VIANA, 2009).

▪ Historiador e sociólogo por profissão e militante – por convicção - do Movimento Autogestionário –

MovAut.

1– A dinâmica da produção capitalista de mercadorias

A sociedade capitalista, como já afirmara Marx, se caracteriza por uma

“imensa coleção de mercadorias”, porém não haveria nenhuma novidade histórica nessa

sociedade se a forma como se produz tais mercadorias não fosse absolutamente inédita

na história da humanidade, pois é verdade que a análise da mercadoria por ela mesma

não revela o segredo da exploração capitalista. Por conseguinte, poderíamos, então,

questionar sobre as razões que levaram Marx a iniciar sua obra sobre o modo de

produção capitalista (O capital, vol. 1, 1867) com a análise sobre a mercadoria e

porque, ainda hoje, vários autores, críticos da economia política, continuam a iniciar

suas análises sobre tal modo de produção, também, pela mercadoria, ao invés de irem

direto ao processo de produção e exploração dos trabalhadores pelo capital?

O essencial no modo de produção capitalista não se encontra simplesmente no

fato desse modo de produção se caracterizar como numa “imensa coleção de

mercadorias”, mas sim no fato de tal produção de mercadorias se equivaler à produção e

extração de mais-valor. No entanto,

este essencial não poderia ser estudado se não tivesse previamente mostrado

que a mercadoria é a forma social que tem de revestir qualquer bem na

economia capitalista. A mercadoria é o fenômeno concreto da produção

capitalista; enquanto fenômeno, ela não basta para caracterizar o capitalismo,

mas impõe a sua forma particular a todos os fatores e produtos do trabalho

efetuado nas condições capitalistas. A primeira condição da compreensão do

capital (e, como se verá, do seu devir) é ver bem, nos elementos do processo

econômico capitalista, não apenas objectos, bens de produção e de consumo,

forças de trabalho, produtos materiais desempenhando uma função técnica

determinada, mas mercadorias que possuem valor (BARROT, 1977, p. 54).

É exatamente por conta dessa novidade que Marx inicia sua obra O Capital

(1967) com a análise sobre a mercadoria. Ele foi o primeiro teórico a elaborar uma

teoria sistematizada do modo de produção capitalista, por isso é a partir dele que

buscaremos compreender as determinações desse modo de produção. O propósito de

Karl Marx na sua obra O Capital (1967) consiste em revelar a exploração da sociedade

capitalista que possui seu fundamento na extração de mais-valor no processo de

produção de mercadorias. Visando compreender a essência (no sentido ontológico) da

mercadoria, Marx, a partir do “método da abstração”, procura descobrir suas múltiplas

determinações e sua determinação fundamental.

No capítulo A mercadoria do volume I de O capital, o autor inicia

questionando o que determina o valor da mesma. Para responder a essa questão,

primeiramente, torna-se necessário, segundo Marx, saber o que há de comum em todas

as mercadorias. Ele acaba afirmando que o que há de comum é que as mesmas são

produtos do trabalho humano e que o tempo de trabalho socialmente necessário gasto

em sua produção está diretamente relacionado com a determinação do seu valor.

No entanto, cabe indagar: como Marx chega a tal conclusão? A mercadoria é

ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca. Enquanto valor de uso a mercadoria

deve possuir utilidade para, enfim, ser consumida. Tais valores de uso são portadores

materiais do valor de troca, ou seja, são mercadorias. Tomemos os seguintes exemplos

para melhor compreender a questão dos valores. Se 01 determinado caminhão equivale

a 03 determinados automóveis ou 02 determinados tratores, logo 03 desses automóveis

valem o mesmo que 02 desses tratores ou 01 desse caminhão. Por conseguinte, possuem

a mesma expressão do seu conteúdo. Sendo assim, pode-se concluir que 03 automóveis

e 02 tratores, assim como 01 caminhão, possuem algo de comum e da mesma grandeza,

mesmo sendo, enquanto valores de uso, coisas distintas. Percebe-se, então, que há uma

“terceira coisa” além dos valores de uso e de troca nas quais eles se reduzem. Em que

consiste essa “terceira coisa”?

As mercadorias enquanto valores de uso possuem diferenças qualitativas e

enquanto valores de troca possuem apenas diferenças quantitativas. Enquanto valores de

troca, as mercadorias possuem apenas uma “propriedade comum”: são produtos do

trabalho humano. Assim, Marx descobre em que consiste a “terceira coisa” e afirma:

deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a ela

apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o

produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se

abstraímos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas

corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio

ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram.

Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do

fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao

desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil

dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as

diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se

um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a

trabalho humano abstrato (1985, p. 47).

Dessa forma, o que se pode perceber é que as mercadorias possuem como

“propriedade comum” o fato de serem produtos do trabalho humano, “uma simples

gelatina de trabalho humano indiferenciado”, trabalho humano abstrato. Conclui-se,

então, que é o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria

que determina seu valor. Vale destacar que o autor está tratando do tempo médio social

de trabalho e não do tempo de trabalho efetivo, e trata-se do valor da mercadoria e não

do seu preço. A diferença de um valor em relação a outro é meramente quantitativa. A

grandeza quantitativa do valor é medida através do tempo de trabalho gasto na sua

produção que, por sua vez, é medido pela sua duração (horas, dias etc.). Porém, esse

trabalho é “trabalho abstrato”, ou seja, trabalho social médio e não “trabalho concreto”.

Sendo assim,

é portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo

de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso o que

determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui apenas

como exemplar médio de sua espécie. Mercadorias que contêm as mesmas

quantidades de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de

trabalho, têm, portanto, a mesma grandeza de valor. O valor de uma

mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como

o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de

trabalho necessário para a produção de outra (Ibid, 1985, p. 48).

O trabalho humano utilizado na produção de uma mercadoria possui duplo

caráter: trabalho concreto e trabalho abstrato. Primeiramente, o trabalho é produtor de

valor de uso, produz para ser útil a determinadas necessidades. Por outro lado, tal

trabalho é abstrato, produz mais valor, acrescenta valor à mercadoria. Tal duplicidade

do trabalho se reproduz na mercadoria como valor de uso e valor de troca. A mercadoria

enquanto coisa de valor é imperceptível. Somente representa valor quando expressa

trabalho social e, conseqüentemente, o seu valor só pode ser expresso numa relação

sócio-mercantil de mercadorias para mercadorias.

Marx compreende o concreto (real) como sendo “síntese de múltiplas

determinações”, mas que possui uma determinação fundamental. De acordo com o

“método da abstração” desenvolvido por ele, o concreto-dado é ponto de partida, visto

que antes da pesquisa ele se encontra no nível das “representações cotidianas”, “senso

comum” e não se apresenta de imediato em sua “essência”, mas a partir das abstrações

atingimos o concreto-determinado, pensado. Isto é, no início, temos o concreto-dado, a

representação cotidiana do fenômeno a ser estudado, ou seja, a aparência. Depois de

pesquisar, através da abstração chegamos ao concreto-pensado, determinado. Por

conseguinte, o concreto-dado é transpassado para o concreto-pensado, possibilitando

expressá-lo, teoricamente, em sua totalidade (VIANA, 2006).

Dessa maneira, é que podemos afirmar que o preço da mercadoria é o concreto-

determinado, e o processo de abstração possibilitou chegar ao valor, sua determinação

fundamental. Portanto, o que Marx busca fazer no capítulo A mercadoria é superar o

concreto-dado, a aparência, através da abstração, chegando à essência – determinação

fundamental - para assim chegar ao concreto-determinado, que é a mercadoria em suas

múltiplas determinações.

Resta, agora, sabermos que relações sociais concretas existem entre a produção

de mercadorias e a definição do valor das mesmas, ou seja, de que forma se define o

valor de uma mercadoria na sociedade capitalista?

1.1.1 – A produção de mais-valor e classes fundamentais

Creio não ser necessário realizar grandes análises para concluirmos que a

produção capitalista só ocorre se a mesma for geradora de lucro, ou seja, se a classe

capitalista detentora dos meios de produção necessita, ao produzir mercadorias, vendê-

las no mercado por um valor superior aos custos da sua produção, conseqüentemente o

valor final da comercialização deve ser maior do que os gastos com maquinaria,

matérias-primas e salários. Desse modo, todo capitalista

quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos

valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a

força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer

produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso,

mas valor e não só valor, mas também mais-valia (Ibid, 1985, p. 155).

Tanto as máquinas quanto as matérias-primas apenas repassam seus valores no

processo produtivo, por conseguinte o trabalho deve ser processo de valorização, pois

“como a própria mercadoria é unidade de valor de uso e valor de troca, seu processo de

produção tem de ser unidade de processo de trabalho e processo de formação de valor”

(Ibid, 1985, p. 155). Então, devemos questionar de onde e de que maneira vem o

acréscimo de valor?

Anteriormente já foi adiantado que o valor de uma mercadoria é determinado

pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, portanto é a força de

trabalho (capital variável) o único elemento que acrescenta valor à mercadoria. Dessa

maneira,

a força de trabalho é uma mercadoria particular, completamente diferente dos

meios de trabalho. Enquanto que estes últimos fornecem ao produto o seu

valor, a força de trabalho não só fornece o seu próprio valor como também

acrescenta o valor do trabalho que ela realiza. É criadora de trabalho; e,

portanto, de valor. O seu consumo é produtivo: dá mais do que custou

(BARROT, 1977, p. 58).

O processo de constituição do valor de determinado produto é composto por

diferentes determinações envolvidas na produção. De um lado temos aquilo que Marx

denominou de capital constante, ou seja, “a parte do capital que se converte em meios

de produção” – matérias-primas, maquinaria e meios de trabalho em geral. Do outro

lado encontra-se o capital variável, isto é, a força de trabalho que além de reproduzir

seus custos adiciona mais-valor, gera excedente (MARX, 1985). Neste sentido, percebe-

se que o capital constante apenas repassa seus custos durante o processo de produção

enquanto o capital variável, além de repassar seus custos, consiste no único elemento

presente no processo produtivo capaz de agregar mais-valor à mercadoria. Marx chama

esse conjunto (capital constante + capital variável) de composição orgânica do capital

(MARX, 1985a).

A composição orgânica do capital expressa, conseqüentemente, a tendência

declinante da taxa de lucro médio, pois com o intuito de garantir a reprodução ampliada

do capital, a classe capitalista investe cada vez mais em meios de produção (trabalho

morto), que apenas repassa seus custos, e cada vez menos em força de trabalho (trabalho

vivo) que é o único elemento gerador de mais-valor, portanto, se o elemento que apenas

repassa custos amplia em detrimento do elemento que gera mais-valor, desenvolve-se a

tendência declinante da taxa de lucro médio1. Tal tendência é de extrema importância

para a compreensão da dinâmica do capitalismo e de suas transformações históricas,

pois revela uma das potencialidades fundamentais da crise capitalista.

A relação que se estabelece entre as duas classes fundamentais do capitalismo,

ou seja, entre a burguesia e o proletariado, é uma relação de compra e venda, pois a

burguesia compra no mercado tanto matérias-primas, maquinaria e outros meios de

trabalho, assim como a força de trabalho. Porém, essa última, ao contrário dos meios de

trabalho, não apenas é consumida durante a produção, mas também é geradora, pois o

acréscimo de valor que a força de trabalho realiza possibilita ao capitalista acumular

capitais uma vez que a reposição dos custos e o dispêndio com força de trabalho –

salários - equivalem apenas a uma parcela do mais-valor produzido. Já, “o valor do

capital constante reaparece no valor do produto, mas não entra no novo produto-valor

criado” (MARX, 1985, p. 241).

1 “Esta tendência é constituída devido ao desenvolvimento das forças produtivas, pois quanto mais

desenvolvida é a tecnologia e quanto mais esta entra no processo de produção, menos se utiliza a força de trabalho, que é a fonte geradora de mais-valor” (VIANA, 2009, p. 93).

Esse é o segredo da exploração capitalista: a existência do mais-valor só é

possível quando o proletariado se encontra completamente separado do resultado do seu

trabalho, que passa a ser substituído por um salário equivalente apenas a uma parcela

infinitamente menor do que o realmente produzido. Desta forma, percebe-se que a

relação entre capitalista e proletariado é fundada na exploração de uma classe não

produtora, mas que apropria do resultado de trabalho alheio não pago, sobre a classe

produtora. Nesse sentido,

a chave do aumento do lucro é o aumento da parte não-paga do dia de

trabalho em relação à parte paga, aumento do produto excedente em relação

ao produto necessário para fornecer os meios de subsistência do trabalhador,

ou aumento da taxa de mais-valia (EATON, 1965, p. 99).

Portanto, a produção capitalista de mercadorias corresponde à produção de

mais-valor e esse pode ser obtido de duas formas. A primeira forma, denominada de

mais-valor absoluto, é produzida pelo prolongamento das jornadas de trabalho. A

segunda forma, denominada de mais-valor relativo, decorre da ampliação da produção

no mesmo período de tempo ou até mesmo em jornadas de trabalho reduzidas. Cabe,

por conseguinte, indagar: Como isso é possível? Como os operários podem produzir

mais no mesmo período de tempo?

Historicamente a burguesia vem utilizando duas principais formas de

ampliação da produtividade. Uma forma é a organização racionalizada do processo de

produção a qual os operários passam a ser minuciosamente controlados, fiscalizados,

rigidamente disciplinados, cronometrados e vigiados pelos especialistas nessa função,

espécies de “agentes carcerários da produção” (BRAGA, 2009). Os horários para

utilização do banheiro, realização de refeições e para saída de fumantes do local da

produção vem sofrendo uma significativa diminuição.

Além dessas formas, ainda existe o sistema de multas por atraso, por destruição

de ferramentas, por descuido com as máquinas, etc. Com isso, a classe capitalista

objetiva evitar o desperdício de tempo necessário para a produção de mais-valor, pois “o

capital personificado, o capitalista, cuida de que o trabalhador execute seu trabalho

ordenadamente e com o grau adequado de intensidade” (Ibid, 1985, p. 244). Outra

forma consiste no constante aperfeiçoamento tecnológico utilizado para o

desenvolvimento de máquinas cada vez mais eficientes e produtivas. Dessa forma, os

capitalistas garantem a ampliação da produtividade operária.

John Eaton, em sua obra Manual de economia política (1965), ainda nos

apresenta outra estratégia capitalista que consiste na forma de pagamento de salários.

Segundo ele,

as formas de pagamento de salários constituem uma batalha entre o

empregador e os sindicatos. Salário-tarefa, ou seja, salário pago de acordo

com a produção proporciona ao capitalista um meio de obrigar o trabalhador

a fazer mais durante o dia de trabalho, já que disso depende quanto o

trabalhador leva para casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento

de salários-tarefa contradiz o que dissemos anteriormente sobre os salários e

o valor da força de trabalho, como correspondendo aproximadamente ao

valor dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou

seja, de acordo com a produção, sugere que quando esta se eleva, os salários

se elevarão de forma correspondente. Isso só ocorre a prazo muito curto. A

experiência de muitas décadas mostrou aos trabalhadores que os salários-

tarefa são, no final, fixados em preços baseados em salário-tempo, e na soma

de artigos que o trabalhador deve comprar para viver. Se a produção aumenta

acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O

salário-tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do

que o salário-tempo do dia, mas a isso se contrapõe o fato de que a maior

intensidade de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o

capitalista, porém, é compensador pagar pelo trabalho executado, já que essa

produção extra aumenta o volume de mais-valia numa proporção que excede

consideravelmente qualquer extra pago em salários (EATON, 1965, p. 101).

A pedra angular da luta de classes no capitalismo, conforme já dizia Marx, gira

em torno da disputa pelo controle do tempo de trabalho, pois se de um lado a burguesia

visa ampliar a extração de mais-valor sobre o tempo de trabalho do proletariado, esse

visa diminuí-lo e devido aos interesses antagônicos dessas classes, o processo de

valorização acaba por ser marcado pelo conflito. Por isso, a burguesia se vê coagida a

desenvolver formas cada vez mais eficazes de controle sobre o trabalho operário,

enquanto esse se vê também coagido a desenvolver formas de lutas que avancem em

direção à diminuição do tempo de trabalho para extração de mais-valor.

Conseqüentemente,

isto ocorre devido ao fato de que é no próprio processo de trabalho,

simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção de mais-

valor. Desta forma, o trabalhador, ao resistir em utilizar toda a sua

capacidade de trabalho, tende a diminuir a extração de mais-valor. É por isso

que surge uma luta nas unidades de produção, em que o capitalista busca

controlar a força de trabalho para que ela não desperdice tempo e, por

conseguinte, faça decair o seu lucro (VIANA, 2009, p. 49).

A determinação fundamental da organização do trabalho na sociedade capitalista

é a luta de classes entre burguesia e proletariado, porém é necessário compreender, de

forma pormenorizada, como se relaciona burguesia e proletariado no processo de

produção, como se dá a luta de classes e como a mesma interfere na organização do

trabalho e na alteração dos regimes de acumulação.

O ser humano se humaniza ao realizar atividades, essencialmente humanas,

interferindo na natureza a partir do trabalho em cooperação com outros seres humanos,

objetivando, dessa maneira, reproduzir as condições materiais da sua existência. Essa é

a essência do trabalho autônomo, ou seja, a garantia da reprodução do próprio ser e sua

auto-realização total. Já o trabalho alienado é a negação da essência humana existente

no trabalho, pois, com a divisão social do trabalho e a instauração do controle do

processo de produção pelo não-trabalhador, se institui a total separação entre o produtor

e o produto e com isso o homem não produz mais as garantias das necessidades

humanas, mas sim mercadorias que não lhe pertence (MARX, 2004).

A afirmação do capital realiza-se na negação do proletariado uma vez que este,

no processo de produção, desempenha atividades alheias às suas necessidades, não

atinge através de suas potencialidades sua auto-realização total, encontra-se

completamente separado dos produtos do seu trabalho e, dessa forma, aliena-se.

Segundo Marx,

O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar junto a si fora

do trabalho e fora de si no trabalho. Está em casa quando não trabalha e,

quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é, portanto, voluntário,

mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de

uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele.

Sua estranheza evidencia-se aqui tão pura que, tão logo inexista coerção

física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho

externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-

sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece

para o trabalhador como se não fosse seu próprio, mas de um outro, como se

não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo,

mas a um outro (2004, p. 83).

Por conta desse caráter alienado do trabalho, o proletariado procura

incessantemente encontrar formas que garantam o mínimo da sua integridade física no

trabalho e isso se evidencia nas inúmeras possibilidades e maneiras de resistência e luta

contra a opressão do capital. Essas atitudes de resistência ocorrem de diversas formas,

tais como as mais pacíficas e camufladas como a “operação tartaruga”, o absenteísmo, o

atraso nos locais de trabalho, a destruição de peças e ferramentas que emperram o

desenrolar da produção, as constantes idas ao banheiro e sua demora etc.

Vale lembrar que a luta operária pelo controle e diminuição do tempo de

trabalho destinado à produção de mais-valor representa apenas o primeiro momento da

luta operária, ou seja, essa luta equivale ao momento imediato da luta de classes.

Contudo, o interesse histórico2 do proletariado se funda na tendência em eliminar a

existência do mais-valor na sua totalidade. Além dessas formas imediatas, as lutas

contra a exploração do trabalho tendem a adquirir em momentos de crise e de

radicalidade, uma postura mais nitidamente política3, tal como é perceptível nos

processos de realização de greves que atingem caráter geral, com a ocupação de fábricas

e auto-organização da produção, no qual o proletariado deixa de ser uma “classe em si”

para se tornar uma “classe para si”. Essa dinâmica acompanha o desenvolvimento

capitalista desde o seu nascimento até os dias atuais e inúmeros exemplos históricos

poderiam ser citados: As revoluções de 1848 na Europa, a Comuna de Paris em 1871, as

experiências russas a partir dos sovietes em 1905 e 1917, a revolução alemã nas décadas

de 1920, a ocupação de fábricas na Argentina do final da década de 1990 até

aproximadamente 2004 e assim por diante. Essa é uma tendência intrínseca ao modo de

produção capitalista.

Um amplo debate sociológico já existe em torno dessa mudança de postura do

proletariado, porém não é nosso interesse resgatar tal debate, mas tão somente

apresentá-lo segundo a perspectiva do proletariado, ou seja, procurando compreender

quem é essa classe social, como se relaciona com a sociedade capitalista e como

enxerga tal sociedade a partir da experiência que mantém com a mesma. Em síntese,

“essa perspectiva, segundo Marx, marcaria a unidade entre o que é visto e a forma como

se vê” (Viana, 2007, p. 75).

A análise que Marx realiza sobre o proletariado consiste em uma análise sobre

a ontologia do proletariado, sobre sua essência e não sua aparência. Sendo assim, é

possível encontrar na teoria de Marx uma análise sobre o ser-do-proletariado, conforme

explicitado na seguinte passagem: “não se trata de saber que objetivo este ou aquele

2 “Quais são os interesses históricos do proletariado? Abolir a relação-capital, ou seja, as relações de

produção capitalistas, o que significa abolir a classe capitalista, a si mesmo enquanto classe e a todas as demais classes. Mas os interesses históricos do proletariado não se limitam a esse trabalho destrutivo, pois, ao mesmo tempo em que deve abolir o modo de produção capitalista, ele deve construir um novo modo de produção. O processo de destruição é, aqui, ao mesmo tempo, um processo de construção. E como podemos apreender esse processo de construção, ou seja, a formação de um novo modo de produção. Isto só pode ser descoberto através da experiência histórica do movimento operário. Portanto, a compreensão do modo de produção capitalista em sua historicidade e a prática histórica da classe operária é o que nos permite descobrir quais são os interesses históricos desta classe. São destes interesses históricos que derivam os interesses imediatos” (VIANA, 2008, p. 87). 3 O termo política empregado aqui é derivado da idéia de luta de classes em sentido amplo e não no

sentido comumente adotado que resume a luta política às lutas parlamentares, eleitorais ou através de golpe armado visando à conquista do Estado. Uma vez que, para Marx, o fundamental para a compreensão de uma sociedade são suas relações de produção, logo este é por essência o local privilegiado da luta de classes e todas as demais lutas políticas derivam daí.

proletário, ou até o proletariado inteiro, tem momentaneamente. Trata-se de saber o que

é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com este ser”

(Marx & Engels, 1979, p. 55).

Nesse sentido, a resistência implementada pelo proletariado não visa apenas

adquirir, de imediato, melhores condições de trabalho e vida, mas, também, a abolição

do trabalho alienado e da extração de mais-valor que é seu fundamento. Nesse processo

histórico de enfrentamento o proletariado forma sua consciência de classe ao negar o

trabalho alienado e a consciência hetero-determinada derivada dele, e busca afirmar na

prática (trabalho autônomo) e, consequentemente, na consciência, sua

autodeterminação. Portanto, constrói suas estratégias de lutas, abandona estratégias

ultrapassadas e forja novos mecanismos de resistência e avanço da luta em direção à

construção daquilo que Marx denominou de “livre associação de produtores”.

A luta de classes entre burguesia e proletariado, assim como a produção de

mais-valor, representa dois dos principais fundamentos do modo de produção

capitalista. O processo de trabalho na sociedade capitalista é marcado por duas

características centrais que consistem no fato do proletariado trabalhar sobre o controle

da burguesia (trabalho heterogerido) que comprou sua força de trabalho e o fato do

produto do trabalho ser apropriado pela burguesia, via extração de mais-valor. Percebe-

se então que o trabalho é processo de valorização (MARX, 1985).

A luta de classes no processo de produção é mediada por um conjunto de

relações que existem tanto dentro quanto fora do processo diretamente produtivo. Tal

luta em torno do processo de produção de mais-valor é a determinação fundamental do

enfrentamento entre a classe capitalista e a classe operária no processo de produção de

mercadorias (VIANA, 2009). No entanto, esse enfrentamento se expande para outras

esferas das relações sociais. Basta percebermos que o conflito que se inicia no século

XIX entre capitalistas e operários em torno da diminuição da jornada de trabalho

operária (aproximadamente de 16 horas diárias) resulta numa alteração jurídico-

institucional que possibilita sua redução para 10 horas diárias e, posteriormente, 08

horas diárias. É nesse contexto que se inicia a reação burguesa para evitar a redução da

taxa de mais-valor, respondendo com a “organização científica do trabalho” elaborada

por Friedrich Taylor em sua obra Princípios da Administração Científica (1987).

É importante destacar que burguesia e proletariado compõem as classes sociais

fundamentais do modo de produção capitalista, mas que, no entanto, coexistem outras

classes sociais que, inclusive, derivam da complexa relação que se estabelece entre

essas classes fundamentais e da luta de classes no processo de produção. Uma dessas

classes sociais, e que é objeto central desse estudo, é o lumpemproletariado. Conclui-se

que o modo de produção capitalista engendra tanto um processo de proletarização

quanto um processo de lumpemproletarização, ou, como prefere Offe, uma

proletarização ativa e uma proletarização passiva (OFFE, 1984). É sobre a dinâmica

formadora do lumpemproletariado que, a partir de agora, prestaremos nossa análise.

1.1.2 – Acumulação de capital e lumpemproletarização

Para compreender a formação do lumpemproletariado no regime de

acumulação extensivo4, recorreremos, fundamentalmente, à análise de Marx contida na

sua obra O Capital, vol. 2 (1985a). No capítulo XXIII do volume 2 de O Capital - A lei

geral da acumulação capitalista - Marx procurou demonstrar que no processo

capitalista de produção de mercadorias há uma tendência em promover uma acumulação

ampliada de capital por um lado e por outro lado, há, também, uma tendência

simultânea em promover o crescimento ampliado da miséria da classe trabalhadora.

Segundo ele,

a acumulação de riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a

acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância,

brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que

produz seu próprio produto como capital (Marx, 1985a, p. 210).

A discussão teórica que Karl Marx realiza nesse capítulo, busca compreender a

lei geral da acumulação capitalista, suas tendências e contratendências. Aqui ela será

utilizada para pensar o processo histórico de formação do lumpemproletariado e sua

dinâmica no regime de acumulação extensivo. Para isso, analisaremos o

lumpemproletariado à luz de uma teoria das classes sociais, considerando-o uma classe

social composta pelo exército industrial de reserva. Desse modo, o conceito de

lumpemproletariado equivale à classe social formada pelos indivíduos que se encontram

marginalizados na divisão social do trabalho e alijados do mercado de consumo, e que

compõem os setores mais empobrecidos de desempregados, mendigos, sem-teto,

vagabundos, prostitutas, delinqüentes, subempregados etc. da sociedade capitalista.

4 “Predominante desde a revolução industrial até o final do século XIX, caracterizava-se pelo predomínio

da extração de mais-valor absoluto, pelo Estado liberal e pelo neocolonialismo” (VIANA, 2009, p. 95).

Sendo assim, nossa análise se distancia de algumas análises dominantes e

presentes nos discursos acadêmicos e científicos que busca compreender a sociedade a

partir de uma dualidade abstrata que afirma a existência dos incluídos/excluídos sociais

e que, no fundo, não consegue explicar muita coisa, pelo contrário, obscurece a

totalidade das relações sociais ao ocultar toda a complexidade envolta no processo de

lumpemproletarização que acompanha o desenvolvimento histórico de produção e

reprodução do capitalismo e de suas classes sociais. Nesse primeiro momento, o

objetivo é resgatar a discussão realizada por Karl Marx sobre o processo de acumulação

de capital e sua dinâmica geradora de uma superpopulação relativa ou

lumpemproletariado.

Na primeira parte deste capítulo intitulada Demanda crescente da força de

trabalho com a acumulação, com composição constante do capital, o autor já apresenta

o assunto geral da sua discussão, ou seja, da influência que o crescimento do capital

exerce sobre o destino da classe trabalhadora. Marx considera que a composição do

capital e suas modificações constituem os fatores mais importantes nessa investigação.

Com o intuito de melhor compreender essa análise, trilharemos o mesmo

caminho do autor, reconstituindo seu pensamento. De acordo com ele, a composição do

capital deve ser entendida a partir de uma dupla perspectiva: primeiramente ele faz uma

análise da perspectiva do valor na qual afirma que a composição orgânica do capital é

determinada pela proporção em que ele se reparte em capital constante (valor dos meios

de produção) e capital variável (valor da força de trabalho), soma global dos salários.

Posteriormente, ele apresenta a perspectiva da matéria, ou seja, como ela funciona no

processo de produção. Nessa análise Marx afirma que cada capital se reparte em meios

de produção (composição valor) e força de trabalho viva (composição técnica) (MARX,

1985a).

A produção de capital é formada por dois componentes existentes no processo

de produção denominado de trabalho morto (matéria-prima, maquinaria e tecnologia em

geral) e trabalho vivo que consiste na força de trabalho operária. Como vimos

anteriormente, o primeiro não tem capacidade de gerar valor e apenas repassa seus

custos durante o processo produtivo, já o segundo é a única força geradora de capital, ou

seja, acrescenta à mercadoria mais do que o valor gasto na sua produção. Por isso esse

capital extra é denominado mais-valor. Sendo assim, após um ciclo gerador de mais-

valor, a burguesia tende a aplicar parte desse na expansão da produção o que implica

necessidade de ampliação do mercado consumidor e maior demanda por força de

trabalho.

Nesse sentido, o

crescimento do capital implica crescimento de sua parcela variável convertida

em força de trabalho. Uma parcela da mais-valia transformada em capital

adicional precisa ser sempre retransformada em capital variável ou fundo

adicional de trabalho (Ibid, 1985a, p. 187).

No século XIX, com o passar dos anos o número de trabalhadores ocupados

cresceu em relação aos anos anteriores e com isso chegou-se ao ponto das necessidades

da acumulação crescer além da costumeira oferta de trabalho e assim tendeu a ocorrer

um aumento salarial. Porém, independentemente, do aumento salarial e da geração de

condições mais favoráveis para a classe operária e sua multiplicação, isso em nada

modificou o caráter básico da produção capitalista. Em outras palavras, a exploração do

proletariado em sua totalidade mantém-se a mesma, visto que essa exploração revela-se

na extração de mais-valor (sua lei absoluta) e não no preço do salário, seja ele qual for.

É válido ressaltar que o aumento salarial implica apenas na diminuição quantitativa de

trabalho não-pago (mais-valor) que o trabalhador “concede” ao capitalista, no entanto,

“essa diminuição nunca pode ir até o ponto em que ela ameace o próprio sistema” (Ibid, 1985a, p. 192).

A acumulação capitalista promove na mesma escala a ampliação da classe trabalhadora,

visto que

a reprodução da força de trabalho, que incessantemente precisa incorporar-se

ao capital como meio de valorização, não podendo livrar-se dele e cuja

subordinação ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais

a que se vende constitui de fato um momento da própria reprodução do

capital. Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado

(Ibid, 1985a, p. 188).

Marx demonstra que esse processo, no entanto, tende a promover um

decréscimo na acumulação. Isso significa que a partir do momento em que ocorre uma

diminuição na acumulação, ocorre, do mesmo modo, uma diminuição da necessidade

por força de trabalho, ou seja, a desproporção que existia entre capital e força de

trabalho - razão do aumento salarial - desaparece (momentaneamente) e assim o

processo de acumulação capitalista elimina seus próprios obstáculos. Logo, o salário

volta a decrescer. Adverte-se, no entanto, que até aqui Marx analisava somente uma fase

particular desse processo, ou seja, “aquela em que o crescimento adicional de capital ocorre com

composição técnica do capital constante. Mas o processo ultrapassa essa fase” (Ibid, 1985a, 193).

O crescimento absoluto do capital durante seu transcurso histórico é reflexo da

sua capacidade de ampliar o desenvolvimento da produtividade do trabalho social

tornando-a sua principal alavanca de acumulação. A principal expressão desse crescente

desenvolvimento da produtividade do trabalho advém do volume crescente dos meios

de produção em comparação com a força de trabalho, ou seja, “no decréscimo da grandeza do

fator subjetivo do processo de trabalho, em comparação com seus fatores objetivos” (Ibid, 1985a, p. 194).

Nesse momento Marx já está tratando da mudança que a composição técnica do capital

(força de trabalho viva) sofre no decurso do desenvolvimento do modo de produção

capitalista. Se na primeira fase de acumulação a multiplicação do capital representava

multiplicação do proletariado, agora essa relação tende a se inverter, pois

essa mudança na composição técnica do capital, o crescimento da massa dos

meios de produção, comparada à massa da força de trabalho que os vivifica,

reflete-se em sua composição em valor, no acréscimo da componente

constante do valor do capital à custa de sua componente variável (Ibid, 1985,

p. 194).

Aqui já é possível perceber que no processo de desenvolvimento capitalista, a

parte do mais-valor reconvertida na ampliação da produção via aumento do trabalho

morto (maquinaria e tecnologia em geral) tende a ultrapassar significativamente o

trabalho vivo ou o componente variável do capital orgânico (força de trabalho) e,

conseqüentemente, diminui a demanda por força de trabalho aumentando o desemprego.

Portanto,

esse movimento no sentido de acrescer a parte das máquinas em relação à

força-de-trabalho, a aumentar a produtividade do trabalho, tende a diminuir a

intensidade da demanda de força-de-trabalho pelos capitalistas, tende, por

conseguinte, a criar desemprego, no caso em que oferta de força-de-trabalho

pelos trabalhadores diminua também. O progresso técnico, realizado em

condições capitalista de produção, é assim um fator de expulsão de empregos

pelo capital (Salama & Valier, 1975, p. 86).

Com essa mudança o capitalismo contrai uma tendência a tornar supérflua ou

subsidiária uma parcela populacional significativa da classe trabalhadora que passa a

ampliar o lumpemproletariado. Vejamos melhor esse processo.

Inicialmente a acumulação de capital aparece apenas como uma ampliação

quantitativa, porém, percebe-se que ela realiza-se também numa alteração qualitativa

ininterrupta de sua composição com ampliação crescente dos meios de produção, tais

como maquinaria e tecnologia em geral, em detrimento da força de trabalho empregada

numa velocidade infinitamente maior do que a anteriormente existente. O resultado

dessa alteração qualitativa apresenta-se da seguinte forma:

a acumulação capitalista produz constantemente – e isso em proporção à sua

energia e às suas dimensões - uma população trabalhadora adicional

relativamente supérflua ou subsidiária, ao menos concernentes às

necessidades de aproveitamento por parte do capital (...) A população

trabalhadora produz, portanto, em volume crescente, os meios de sua própria

redundância relativa. Essa é uma lei populacional peculiar ao modo de

produção capitalista, assim como, de fato, cada modo de produção histórico

tem suas leis populacionais particulares, historicamente válidas (Marx, 1985,

p. 199-200).

Marx denominou essa população trabalhadora supérflua de “superpopulação

relativa” e a compreendeu como parte imprescindível do funcionamento do modo de

produção capitalista, pois

ela constitui um exército industrial de reserva disponível, que pertence ao

capital de maneira tão absoluta, como se ele o tivesse criado à sua própria

custa. Ela proporciona às suas mutáveis necessidades de valorização o

material humano sempre pronto para ser explorado, independente dos limites

do verdadeiro acréscimo populacional (Ibid, 1985, p. 200).

Além da função de mão-de-obra disponível para as necessidades do capital,

porém nem sempre utilizada, e em grande quantidade na reserva, o exército industrial de

reserva cumpre outra função essencial no capitalismo que é a de pressionar os salários

para baixo. Ele transforma-se, assim, numa das principais alavancas da acumulação

capitalista uma vez que a oscilação dos salários passa a ser regulada pelo movimento de

expansão e contração desse contingente populacional formado pelo exército industrial

de reserva. Ao contrário da “teoria” populacional malthusiana5 que possui uma

concepção abstrata e ligada aos interesses de classe da burguesia, a teoria da população

em Marx busca analisar a dinâmica populacional no interior do modo de produção

capitalista, pois

a dinâmica populacional não pode ser compreendida se extraída, arrancada

para fora, do conjunto das relações sociais nas quais emerge. Este

pressuposto metodológico será seguido por Marx na sua teoria da população,

que é, na verdade, uma teoria da dinâmica populacional sob o capitalismo

(VIANA, 2006, p.1011).

Segundo Marx, o exército industrial de reserva existe em diversas ocasiões

possíveis e todo trabalhador o compõe durante todo o tempo em que está desempregado

parcial ou inteiramente. Esse exército de reserva ou superpopulação relativa possui três

formas: líquida, latente e estagnada. Nos grandes centros industriais modernos do século

XIX os trabalhadores constantemente eram ora repelidos, ora atraídos em maior

proporção. Isso ocorre de tal forma que, mesmo em proporção decrescente em relação à

5 A lei da população de Malthus se fundamenta na relação entre „meios de subsistência‟ e „aumento

populacional‟ (e isto gera sua explicação sobre as causas da fome e da miséria). Segundo Malthus, a

população cresce em progressão geométrica (2, 4, 8, 16...) e a produção de alimentos (meios de

subsistência) em progressão aritmética (1,2,3,4...), o que geraria a escassez, a fome. Marx é um severo

crítico dessa concepção, opondo-lhe tanto a questão metodológica quanto os seus equívocos teóricos

derivados de sua concepção metafísica, ligada a determinados interesses de classe (Viana, 2006, p. 1011).

ampliação da produção, o número de trabalhadores ocupados crescia. Nesse caso a

superpopulação existe em forma líquida (fluente).

É certo que a acumulação capitalista exige um número crescente de força de

trabalho, porém em proporção cada vez menor em relação ao capital constante. Por isso

a indústria necessita de trabalhadores até sua idade adulta, todavia atingida tal idade o

trabalhador se encontrava de tal forma exaurido que somente uma pequena parcela

continuava sendo empregada enquanto maior parte é demitida, pois “está constitui um

elemento da superpopulação fluente, que cresce com o tamanho da indústria. Parte

emigra e, de fato, apenas segue atrás o capital emigrante” (Marx, 1985, p. 207).

Portanto, o capital necessita de massas maiores de trabalhadores em idade jovem e

massas menores em idade adulta. Por conta dessa realidade é que mesmo existindo uma

grande parcela da população desocupada havia milhares de queixas reclamando a

necessidade de braços para o trabalho. É preciso lembrar que além da baixa expectativa

de vida entre os trabalhadores, o desgaste da força de trabalho era tão grande que mal o

trabalhador atinge a idade mediana “ele cai nas fileiras dos excedentes ou passa de um

escalão mais alto para um mais baixo”. A solução encontrada pelo capital para esse

problema era a promoção de casamentos precoces entre a classe trabalhadora e a

premiação para as famílias que oferecessem seus filhos para a exploração.

A segunda forma de superpopulação relativa - latente - apontada por Marx é

proveniente da consolidação do capitalismo na agricultura e que tende a promover uma

demanda decrescente absoluta de força de trabalho. Deste modo, a população

trabalhadora rural sofre uma repulsão não acompanhada de maior atração e,

conseqüentemente,

parte da população rural encontra-se, por isso, continuamente na iminência de

transferir-se para o proletariado urbano ou manufatureiro e à espreita de

circunstâncias favoráveis a essa transferência. Essa fonte da superpopulação

flui, portanto, continuamente. Mas seu fluxo constante para as cidades

pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo, cujo

volume só se torna visível assim que os canais de escoamento se abalam

excepcionalmente de modo amplo. O trabalhador rural é, por isso, rebaixado

para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo

(Ibid, 1985, p. 207-208).

A terceira forma de superpopulação relativa denominada de estagnada é

composta por parcela do exército ativo de trabalhadores, no entanto ocupada de forma

bastante irregular. Essa categoria fornece ao capital fonte inesgotável de força de

trabalho “disposta” a ser explorada uma vez que sua condição de vida encontra-se muito

abaixo do nível normal médio da classe trabalhadora e que, portanto, faz dessa

população uma “(...) base ampla para certos ramos de exploração do capital. É caracterizada pelo

máximo do tempo de serviço e mínimo de salário (... ) Seu volume se expande na medida em que, com o

volume e a energia da acumulação, avança a „produção da redundância‟” (Ibid, 1985, p. 208).

Finalmente a camada mais miserável da superpopulação relativa e que reside

na desgraça do pauperismo. Conforme afirma Bellon,

o último resíduo da superpopulação relativa habita o inferno do pauperismo.

Abstraindo dos vagabundos, dos criminosos, das prostitutas, dos mendigos e

de todo esse mundo a que se chama as classes perigosas, esta camada social

compõe-se de três categorias: os desempregados capazes de trabalhar; os

filhos dos órfãos; enfim as vítimas da indústria: doentes estropiados, viúvas,

trabalhadores idosos e trabalhadores desqualificados (1975, p. 44).

Portanto, aqui reside a lei geral da acumulação capitalista: quanto maior a

riqueza social e a grandeza absoluta do proletariado e sua força produtiva, tanto maior o

exército industrial de reserva ou, conforme definido por nós, o lumpemproletariado.

Nesse sentido, portanto,

quanto maior, finalmente, a camada lazarenta da classe trabalhadora e o

exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. “Essa é a lei

absoluta geral da acumulação capitalista. Como todas as outras leis, é

modificada em sua realização por variadas circunstâncias” (Marx, 1985, p.

209).

Ao encerrar o resgate da análise de Marx sobre A lei geral da acumulação

capitalista concluímos que essa análise corrobora a afirmação e percepção que esse

autor possuía desde o início dos seus trabalhos germinais, escritos em Paris em 1844, e

que em determinado momento assim protestava:

o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto

mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna

uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a

valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a

desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente

mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria,

e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral (Marx, 2004,

p. 80).

O conceito de lei a que se refere Karl Marx no XXIII capítulo do volume 2 de

O Capital deve ser entendido aqui como equivalente a tendência. Nesse sentido, sua

reflexão aponta para uma tendência existente no capitalismo de gerar tanto riqueza,

quanto miséria em proporções diretas ao avanço das potencialidades produtivas. Isto

significa que o lumpemproletariado é resultado da própria dinâmica do modo de

produção capitalista e que, portanto, essa classe social, assim como suas classes

fundamentais - a burguesia e o proletariado - são intrínsecas a esse modo de produção.

1.2 – Formação e desenvolvimento do lumpemproletariado

Com o propósito de responder a um dos problemas centrais desse trabalho, ou

seja, as determinações da expansão do lumpemproletariado na contemporaneidade

analisaremos, primeiramente, a formação e desenvolvimento dessa classe social no

regime de acumulação extensivo para, no próximo capítulo, analisar as multiplicidades

de determinações que envolvem a expansão dessa classe no regime de acumulação

integral e suas conseqüências, tanto no capitalismo imperialista quanto no capitalismo

subordinado (especificamente na Argentina e no último capítulo no Brasil).

Dessa forma, objetivamos apreender as mudanças e permanências, tanto

formais, quanto essenciais, das tendências histórico-sociais que o lumproletariado

possui na contemporaneidade. Para isso, analisaremos o lumpemproletariado enquanto

uma classe social que é determinada historicamente e que, portanto, seu comportamento

social e político tende a serem determinados de forma diferenciada em contextos

históricos distintos. Por conseguinte, o lumpemproletariado e suas tendências não serão

tratados aqui de forma estanque, como se possuísse uma essência no seu ser-de-classe

que sempre o coagisse a adotar posturas políticas conservadoras e reacionárias, estando

passivo de ser freqüentemente cooptado como sugere diversos teóricos que o analisaram

(GUIMARÃES, 2008; FREITAS, 2010).

A transformação de dinheiro, mercadorias, meios de produção e de subsistência

em capital só pode ocorrer em determinadas circunstâncias que se apresenta da seguinte

maneira. A existência no mercado de duas espécies de possuidores de mercadorias é

essencial, pois de um lado estão os possuidores de dinheiro, meios de produção e

subsistência e que tem como finalidade valorizar o montante de dinheiro que possui

através da compra de força de trabalho alheia, do outro lado “trabalhadores livres”

dispostos a venderem sua única mercadoria, a força de trabalho (MARX, 1985a). “Com

essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção

capitalista” (Ibid, 1985a, p. 262).

Para os nossos intentos cabe indagar: qual é a origem desses indivíduos

possuidores unicamente da mercadoria força de trabalho na sociedade capitalista? Na

sociedade capitalista que emerge a partir daí, todos os indivíduos “dispostos” a

venderem sua força-de-trabalho terão a venda da sua mercadoria garantida nesse

mercado? Ou uma parcela significativa desses indivíduos irá compor outra classe social

e contribuirão com o processo de produção capitalista de outras maneiras, assim como

podem, enquanto classe, contribuir com sua destruição? E dessa forma podemos, então,

acreditar que tal classe pertence ao capital e, conseqüentemente, só poderá ser abolida

com a abolição do capitalismo?

A partir do final da segunda metade do século XIV a servidão se encontra

praticamente abolida na Inglaterra. O grosso da população rural inglesa era constituído

nessa época, e principalmente no século XV, de camponeses livres e economicamente

autônomos, que nos seus momentos livres trocavam sua força de trabalho por um

assalariamento nas grandes propriedades fundiárias. Além dos salários esses

camponeses recebiam um terreno arável de aproximadamente 4 acres e possuíam o

direito de usufruir das propriedades comunais, nas quais criavam seu gado e extraíam os

elementos necessários para aquecer seus lares e preparar seus alimentos, tais como a

lenha e a turfa.

O desenvolvimento dos grandes centros industriais ingleses, juntamente com o

crescimento paulatino da sua população, está diretamente relacionado com as grandes

transformações que veio ocorrendo, desde aproximadamente o século XIV até o século

XVIII, na propriedade da terra. De forma geral, esse processo ficou denominado de

cercamentos (enclosures)6 e foi caracterizado por uma intensa e violenta onda de

desapropriação camponesa de suas propriedades e das terras comunais, acompanhada da

expulsão de milhares de camponeses para as nascentes cidades.

Em diversos momentos em toda a história inglesa desse período a população

camponesa foi violentamente desapropriada e obrigada a migrar para os grandes centros

urbanos industriais. Dessa forma era fornecido à indústria capitalista aquilo que ela

necessitava para transformar dinheiro, maquinaria e matérias-primas em capital, ou seja,

a indústria necessitou de indivíduos completamente despojados dos meios materiais

garantidores da sua existência e sobrevivência para que assim pudessem “livremente”

vender sua força de trabalho aos capitalistas. Aqui reside, sinteticamente, portanto, a

fórmula encontrada pela nascente burguesia inglesa para dar início à produção

capitalista de mercadorias.

6 O cercamento consistiu na prática adotada pelos grandes latifundiários de cercar os campos,

acompanhado da expulsão dos camponeses que ali residiam e trabalhavam, com o intuito de utilizar a terra visando à obtenção de maiores lucros. A prática mais comum era a de cercar os campos para a criação de ovelhas, que passava a representar uma possibilidade de maiores lucros na venda da sua lã para as nascentes indústrias têxteis. Essa prática se inicia ainda no final do século XV, mas adquire fôlego e intensidade a partir do século XVI.

O resultado direto dessa expropriação/expulsão cruel e violenta consiste no

processo de proletarização da mão-de-obra camponesa migrada para as cidades e a

formação de um mercado urbano interno. Porém, a capacidade de absorção dessa mão-

de-obra pelas nascentes indústrias possuía uma velocidade infinitamente menor do que

o crescimento do número de camponeses expulsos do campo. Isso acabou por

promover, também, um processo de lumpemproletarização, que está na origem do

capitalismo e, como veremos adiante, possui a tendência de acompanhar seu

desenvolvimento histórico. E assim, as cidades inglesas passaram a conviver com um

grande número de operários empregados na indústria, mas também com um número

crescente e assustador de lumpemproletários que “se converteram em massas de

esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos casos

por força das circunstâncias” (Ibid, 1985a, p. 275).

Uma passagem extraída do subtítulo Gênese do capitalista industrial do

capítulo XXIV do volume II de O Capital sintetiza muito bem todo esse processo:

Tanto esforço fazia-se necessário para desatar as “eternas leis naturais” do

modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre

trabalhadores e condições de trabalho, para converter, em um dos pólos, os

meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a

massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres,

essa obra de arte da história moderna. Se o dinheiro, segundo Augier, “vem

ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”, então o

capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos

pés (Ibid, 1985a, p. 292).

Durante a segunda metade do século XIX a Europa experimenta um fenômeno

fascinante e ao mesmo tempo amedrontador, o extraordinário crescimento das cidades

industriais e de sua população. As indústrias recrutavam cada vez mais operários fabris

e com isso ocorria um desenfreado crescimento das cidades. Na passagem do século

XVIII para o século XIX, a Inglaterra tem seus campos despovoados e um grande

afluxo de migrantes corre para as cidades:

Londres, que em 1750 contava com 676 mil habitantes, já em 1820 chegava a

contar quase o dobro, ou 1.274 milhão. Mais de uma terça parte da população

da Inglaterra residia em cidades de mais de 5 mil habitantes à altura da

metade do século XIX, quando no meio do século XVIII não passava de uma

quinta parte. Na década 1821-1831, o crescimento de cidades como

Liverpool, Manchester, Birmingham e Leeds ultrapassou quarenta por cento

(GUIMARÃES, 2008, p. 48).

Além de indivíduos prestes a se proletarizar, as cidades atraíam uma infinidade

de pessoas que não encontrariam condições materiais garantidoras da sua sobrevivência

e, consequentemente, o processo de lumpemproletarização crescia vertiginosamente e

tais cidades passavam a serem habitadas por um grande número de mendigos,

prostitutas, jovens desempregados, ladrões, desabrigados, subempregados, e todo tipo

de desempregados, etc. A constituição das primeiras cidades industriais do século XIX

revela um dos processos migratórios mais brutais que a história ocidental já conheceu.

Milhares e milhares de pessoas perderam todo o vínculo com um modo de vida secular,

costumes, tradições, solidariedades, enfim toda uma habitual forma de se viver foi quase

que completamente destruída e suas principais vítimas foram relegadas a um mundo

sombrio e desconhecido marcado pelo frio, pela fome, por todo tipo de doença,

imundice, criminalidade, pela violência cotidiana, tanto na esfera do trabalho, quando se

tem um, quanto na esfera da vida privada. Indubitavelmente a sociedade capitalista

nasce e se reproduz sob a marca da completa desumanização de milhões de seres

humanos.

A rotina do proletariado inglês era marcada por uma jornada de trabalho de

aproximadamente 16 horas diárias, nas quais toda a sua família, desde as crianças de 04

anos de idade até os idosos ainda com condições físicas, era obrigada pelas

circunstâncias a trabalhar. Essa era uma condição imposta pelos miseráveis salários para

que uma família operária pudesse ter o mínimo suficiente para garantir sua

sobrevivência e, conseqüentemente, e sua força de trabalho para valorizar o capital.

Além das extensas jornadas de trabalho, da exploração do trabalho infantil, do

trabalho idoso e feminino (esses recebiam salários inferiores), as condições de trabalho

eram as piores possíveis, pois as fábricas não possuíam condições mínimas de higiene.

Caracterizadas por serem lugares pouco arejados, com ar poluído, sem nenhuma

preocupação com a saúde operária, sem nenhum sistema de proteção no trabalho, o

proletariado se via constantemente ameaçado pelo desemprego e pela fome, pois a

inexistência de legislação trabalhista fazia com que qualquer acidente ou doença que o

impossibilitasse a trabalhar resultasse em demissão sumária. E os acidentes de trabalho

ou até mesmo a morte de milhares de operários, principalmente as crianças, eram

elevadíssimos7.

7 “As estatísticas da mortalidade revelam níveis altíssimos, principalmente por causa da morte entre as

crianças pequenas da classe operária. O delicado organismo de uma criança é o que oferece a menor resistência aos efeitos deletérios de um modo de vida miserável; o abandono a que freqüentemente se vê expostas quando os pais trabalham, ou quando um deles morre, logo faz sentir seu impacto – e, portanto, não pode ser sem razão de espanto se, por exemplo, em Manchester, conforme um relatório que já citamos, mais de 57% dos filhos de operários morrem antes de completar 5 anos, ao passo que essa taxa é de 20% para os filhos das classes mais altas e, nas zonas rurais, a média é de 32%” (ENGELS, 2008, p. 147).

Nesse aspecto o lumpemproletariado crescente, derivado do processo de

cercamento de terras, cumpre um papel importantíssimo na acumulação de capital, isto

é, quanto maior for o contingente lumpemproletário, maior será a pressão sobre o

proletariado para aceitar suas condições de trabalho e salários miseráveis. Portanto, é

possível perceber que o proletariado do século XIX se via muito facilmente ameaçado

pela lumpemproletarização. O proletariado vivia constantemente a ponto de

lumpemproletarizar-se. E assim a existência de um grande contingente

lumpemproletário cumpria uma das suas principais funções no capitalismo: promover

uma alavanca de acumulação via pressionamento dos salários e divisão da classe

trabalhadora.

Não só as condições de trabalho possibilitavam uma vida degradante para o

proletariado, mas sim todas as esferas da sua vida representavam um profundo contato

com a degradação física e moral. Sua condição de moradia é, nesse sentido, reveladora

de tal deterioração. É preciso compreender que em uma sociedade marcada pela

completa mercantilização da vida, o acesso da classe operária a determinados bens

primários, tais como, moradia, alimentação, vestuário, saúde, etc. passa pelo valor do

seu salário e das possibilidades derivada dele. E uma vez que o salário operário é

miserável, conseqüentemente, o acesso a tais bens se dá de forma bastante precária.

Toda grande cidade industrial no século XIX, assim como hoje, revela na

arquitetura diferenciada dos seus bairros, nas condições de suas ruas, na sua limpeza, no

seu odor, etc. a divisão entre classes sociais, em outras palavras, a divisão entre

exploradores e explorados. Na Inglaterra desse período os bairros operários eram

chamados de “bairros de má fama” (ENGELS, 2008). De acordo com Engels,

na Inglaterra, esses “bairros de má fama” se estruturam mais ou menos da

mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da

cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois

andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de

maneira irregular. Essas pequenas casas de três ou quatro cômodos e cozinha

chamam-se cottages e normalmente constituem em toda Inglaterra, exceto em

alguns bairros de Londres, a habitação operária. Habitualmente, as ruas não

são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais,

sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos.

A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como

nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade

do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom

tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são

usados para secar roupa (2008, p. 70).

Os bairros operários, no geral, possuem as mesmas características em todo o

território inglês. São marcados pela existência de ruas estreitas, geralmente imundas,

tanto por conta do ineficaz sistema de limpeza urbana quanto, pela inexistência de rede

de saneamento e esgoto, fazendo com que os dejetos das “residências” sejam lançados

ao ar livre nas ruas. Nesses bairros era comum encontrar em suas ruas a instalação de

um mercado aberto que vendia legumes e frutas, todos de péssimas qualidades e de

cheiro horripilante. Juntamente com essas frutas e legumes, a carne que era vendida e

consumida pelos operários quase sempre se encontrava em estado putrefato.

A alimentação operária era extremamente minguada e isso, é claro, se deve aos

péssimos salários recebidos e, conseqüentemente, da limitada possibilidade de se

consumir bons alimentos. Freqüentemente o proletariado “optava” por consumir nas

feiras e mercados os produtos que durante todo o dia as “classes médias” se recusaram a

comprar devido a sua má qualidade. Portanto, o grosso da alimentação operária era

formado por alimentos de escassa qualidade, muitas vezes já em estado de

decomposição. Assim se encontrava, também, a carne consumida. Os açougues dos

bairros operários eram lotados de carne de todo tipo de animal (ganso, boi, porco,

presunto etc.), mas geralmente em estado impróprio para o consumo. O jornal

Manchester Guardian, fundado em Manchester por J. E. Taylor em 1821,

constantemente trazia denúncias sobre processos e condenações de diversos açougueiros

que, abusando da miséria operária, ofertava diariamente carnes putrefatas.

O periódico inglês The Artizan (outubro de 1843), nos possibilita visualizar, de

forma geral, as condições sanitárias dos bairros operários:

Essas ruas são em geral tão estreitas que se pode saltar de uma janela para

outra da casa em frente e as edificações têm tantos andares que a luz mal

pode penetrar nos pátios ou becos que as separam. Nessa parte da cidade não

há esgotos, banheiros públicos ou latrinas nas casas; por isso, imundice,

detritos e excrementos de pelo menos 50 mil pessoas são jogados todas as

noites nas valetas, de sorte que, apesar do trabalho de limpeza das ruas,

formam-se massas de esterco seco das quais emanam miasmas que, além de

horríveis à vista e ao olfato, representam um enorme perigo para a saúde dos

moradores. É de espantar que não se encontre aqui nenhum cuidado com a

saúde, com os bons costumes e até com as regras elementares da decência?

Pelo contrário, todos os que conhecem bem a situação dos habitantes podem

testemunhar o ponto atingido pelas doenças, pela miséria e pela degradação

moral. Nesses bairros, a sociedade chegou a um nível de pobreza e de

aviltamento realmente indescritível. As habitações dos pobres são em geral

muito sujas e aparentemente nunca são limpas; a maior parte das casas

compõe-se de um só cômodo que, embora mal ventilado, está quase sempre

muito frio, por causa da janela ou da porta quebrada; quando fica no subsolo,

o cômodo é úmido; frequentemente, a casa é mal mobiliada e privada do

mínimo que a torne habitável: em geral, um monte de palha serve de cama a

uma família inteira; ali deitando-se, numa promiscuidade revoltante, homens,

mulheres, velhos e crianças. Só há água nas fontes públicas e a dificuldade

para buscá-la favorece naturalmente a imundice (Apud ENGELS, 2008, p.

79).

Em suma, as condições materiais do proletariado inglês o condenava a viver na

miséria, em condições habitacionais horripilantes, tendo uma dieta alimentar muito

carente, vestindo-se de poucos trapos, possuindo restritas condições de se higienizar,

perseguido pelo frio e por diversos tipos de doenças8. Essas últimas se apresentam como

uma das portas de entrada para uma vida lumpemproletária, pois, devido à dura rotina

de trabalho nas indústrias aliada a uma alimentação precária e uma moradia insalubre, o

operário chefe da família corria o risco constante de ter seus músculos e órgãos falidos e

de adoecer seriamente, ficando impossibilitado para o trabalho. “E é então que se

manifesta, agora de forma mais aguda, a brutalidade com a qual a sociedade abandona

seus membros justamente quando mais precisam de sua ajuda” (Ibid, 2008, p. 115).

Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII e de todo o século XIX,

predomina no imaginário coletivo europeu, especificamente na Inglaterra e França, o

crescente temor e pânico das classes dominantes diante das inúmeras possibilidades de

sublevações das classes desempregadas e miseráveis, em outras palavras, do

proletariado e do lumpemproletariado em geral. Tal estado de pânico coletivo não é

gratuito, basta perceber em que condições viviam a maioria da população pobre das

principais cidades industriais européias, Londres e Paris, por exemplo, para

constatarmos que as condições materiais degradantes e desumanas eram mais do que

suficientes para alimentar protestos, sublevações, saques, roubos e todo tipo de motins

populares violentos.

Não é à toa que diversos questionamentos da época apontavam para esse risco.

Dentre eles, e o mais citado, encontra-se o realizado por Friedrich Engels no prefácio à

edição inglesa de O Capital, que assim indagava: “Entrementes, em cada inverno,

renova-se a pergunta: O que fazer com os desempregados? Enquanto se avoluma, cada

ano, o número deles, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos

8 “Testemunhos provindos de fontes as mais diversas confirmam que as habitações operárias nos piores

bairros urbanos, somadas às condições gerais de vida dessa classe, provocam numerosas doenças (...) as doenças pulmonares são a conseqüência inevitável desta condição habitacional e, por isso, são particularmente freqüente entre os operários. A aparência de tísicos de tantas pessoas que se encontram pelas ruas é claro indicativo de que a péssima atmosfera de Londres, em especial nos bairros operários, favorece ao extremo o desenvolvimento da tuberculose (...) Além de outras doenças respiratórias e da escarlatina, o grande rival da tuberculose, causador de devastações entre os operários, é o tifo. Segundo relatórios oficiais sobre as condições sanitárias da classe operária, esse flagelo universal é provocado pelo péssimo estado das habitações operárias, a má ventilação, a umidade e a sujeira. Nessas informações, preparadas – é bom recordá-lo – pelos melhores médicos da Inglaterra, com base em relatos de outros médicos, afirma-se que um único pátio mal arejado, um único beco sem rede de esgoto, sobretudo quando os operários vivem amontoados e nas proximidades existem matérias orgânicas em decomposição, pode provocar a febre, e quase sempre a provoca” (ENGELS, 2008, p. 138).

prever o momento em que os desempregados perderão a paciência e encarregar-se-ão de

decidir seus destinos com suas próprias forças”. Assim como Engels, diversos outros

teóricos e romancistas da época já alertavam para o perigo do crescimento absoluto

dessa massa faminta. Balzac colocava a questão da seguinte forma:

Há necessidades invencíveis, porque, enfim a sociedade não dá o pão a todos

os que têm fome; e quando estes não tem nenhum meio de ganhar a vida, que

quereis que eles façam? A política terá previsto que no dia em que a massa

dos infelizes for mais forte que a dos ricos, o estado social estará estabelecido

de outra maneira? No presente momento, a Inglaterra está ameaçada por uma

revolução desse gênero. O imposto para os pobres tornou-se exorbitante na

Inglaterra; e no dia em que sobre 30 milhões de pessoas houver 20 milhões

que morrem de fome, a infantaria, os canhões e a cavalaria nada poderão

fazer (Apud GUIMARÃES, 2008, p. 88).

Além dessa postura temerosa diante das possíveis e previsíveis ações que o

lumpemproletariado se via coagido a realizar, as classes capitalistas e suas classes

auxiliares, inspiradas nos seus valores e perspectivas que lhes são próprios, construíram

diversas representações pejorativas dos míseros proletários e, principalmente,

lumpemproletários e das sensações e sentimentos que a existência, comportamentos e

hábitos dessas classes vos geravam. Dentre os principais termos alguns se destacam pela

repulsa que os mesmos provocavam e que nos possibilita apreender a forma como tal

classe era expressa pelos valores aristocrático-burgueses da época. Dentre vários

podemos citar: vagabundos, mendigos, vadios, maltrapilhos, esfarrapados, escória,

ralés, desajustados sociais etc.

Se essas eram as condições nas quais se encontravam o proletariado, em que

condições viviam então o “proletariado em farrapos”, isto é o lumpemproletariado? Se

vendendo sua força de trabalho por salário o proletariado vivia na miséria absoluta,

como diferenciar as condições de vida dos que se encontram à margem da divisão social

do trabalho? É possível que exista uma classe social vivendo em condições abaixo da

miséria? Como viviam o lumpemproletariado das principais cidades industriais

européias e como reagiam diante dessa realidade a ponto de gerar tanto temor? A busca

por respostas a essas questões nortearam todo o desenvolvimento da discussão em torno

da formação e desenvolvimento do lumpemproletariado no período de vigência do

regime de acumulação extensivo.

De início gostaríamos de enfatizar que o lumpemproletariado é considerado por

nós uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de reserva

(superpopulução relativa) e não apenas pelos extratos mais baixos dessa superpopulação

relativa, conforme exposto por Marx no capítulo XXIII do volume 2 de O Capital – A

lei geral da acumulação capitalista. Concordamos com Viana (2011) quando o mesmo

destaca a importância de ressignificar o lumpemproletariado para melhor compreendê-

lo no interior da dinâmica do modo de produção capitalista. De acordo com ele,

o primeiro ponto é ressignificar o lumpemproletariado, que não pode ser

considerado apenas os extratos mais baixos da superpopulação relativa e sim

ela em sua totalidade. Assim, o lumpemproletariado abarca o conjunto do

exército industrial de reserva. É composto, portanto, pelos trabalhadores

potenciais do capitalismo, com suas subdivisões, e pelos subempregados e

em trabalhos precários, não produtores direto de mais-valor. Ou seja, inclui

tanto aqueles que estão na fronteira com o proletariado (desempregados

temporários, subempregados, etc.) quanto os que sobrevivem sob outras

formas (prostituição, mendicância, etc.) (VIANA, 2011).

É válido ressaltar que devido à nossa compreensão do que seja o

lumpemproletariado, consideraremos, nas análises de diversos outros autores, como

frações do lumpemproletariado ou o lumpemproletariado em sua totalidade, as análises

referentes aos marginais, à multidão, às classes perigosas, aos miseráveis, etc.

Consideramos que nessas análises, apesar da denominação diferenciada da nossa, os

indivíduos que a compõe são os mesmos que compõe o exército industrial de reserva,

logo, de acordo com nossa definição, equivale ao lumpemproletariado. Mais adiante

entraremos em detalhes sobre o lumpemproletariado nos escritos de Marx.

A existência de um proletariado miserável nos países industrializados da

Europa do século XIX subentende a existência de um vasto contingente

lumpemproletário que possibilite a manutenção de baixos salários, disputa por

empregos, divisão e enfraquecimento da classe trabalhadora. Portanto, no capitalismo

um não existe sem o outro. Se no modo de produção capitalista existe de um lado

riqueza e do outro pobreza, abaixo da pobreza existe um miséria extrema que tende a

crescer concomitante ao crescimento de produção da riqueza. Não é essa a lei geral da

acumulação capitalista?

Nesse sentido, podemos adiantar desde já que os bairros operários europeus

estavam abarrotados de indivíduos que compõe o lumpemproletariado e que boa parte

dessa classe, na Inglaterra, é composta por imigrantes irlandeses.

Aqui vivem os mais pobres entre os pobres, os trabalhadores mais mal pagos,

todos misturados com ladrões, escroques e vítimas da prostituição. A maior

parte deles são irlandeses, ou seus descendentes, e aqueles que ainda não

submergiram completamente do turbilhão da degradação moral que os rodeia

a cada dia mais se aproximam dela, perdendo a força para resistir aos

influxos aviltantes da miséria, da sujeira e do ambiente malsão (ENGELS,

2008, p. 71).

Em diversas passagens de jornais e periódicos da época, assim como na

excelente pesquisa realizada por Engels e que resulta em 1845 na extraordinária obra

sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, é possível identificar uma

grande quantidade de lumpemproletários sobrevivendo nas ruas das principais cidades

industriais inglesas. Segundo o Times – principal diário inglês de cunho conservador –

de 12 de outubro de 1843:

Nossa seção policial publicada ontem indica que dormem nos jardins, todas

as noites, cerca de cinqüenta pessoas, sem outra proteção contra as

intempéries que árvores e tocas escavadas em muros. Em sua maioria, são

moças que, seduzidas por soldados, vieram do campo e, abandonadas neste

vasto mundo à degradação de uma miséria sem esperança, tornaram-se

vítimas inconscientes e precoces do vício.

Na realidade, isso é assustador. Os pobres estão em toda parte. Por toda parte,

a indigência avança e insere-se, com toda a sua monstruosidade, no coração

de uma grande e florescente cidade. Nos milhares de becos e vielas de uma

populosa metrópole sempre haverá – dói dizê-lo – muita miséria que fere o

olhar e muita que não será vista.

Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da

elegância, junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do

esplêndido palácio de Bayswater, onde se encontra o velho e o novo bairros

aristocráticos, numa área da cidade onde o requinte da arquitetura moderna

prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza,

numa área que parece consagrada ao desfrute da riqueza, é assustador que

exatamente aí venham instalar-se a fome e a miséria, a doença e o vício, com

todo o seu cortejo de horrores, destruindo um corpo atrás de outro, uma alma

atrás de outra!

É uma situação verdadeiramente monstruosa. O máximo prazer

proporcionado pela saúde física, a atividade intelectual, as mais inocentes

alegrias dos sentidos lado a lado com a miséria mais cruel! A riqueza que, do

alto dos seus salões luxuosos, gargalha indiferente diante das obscuras feridas

da indigência! A alegria que inconsciente, mas cruelmente, zomba do

sentimento que geme ali embaixo! Todos os contrastes em luta, tudo em

oposição, exceto o vício que conduz à tentação e aqueles que se deixam

tentar ... Que todos reflitam: na área mais luxosa da cidade mais rica do

mundo, noite a noite, inverno a inverno, vivem mulheres, jovens em idade e

envelhecidas pelos pecados e pelo sofrimento, expulsas da sociedade,

atoladas na fome, na doença e na sujeira (...) (Apud ENGELS, 2008, p. 75-

76).

Como qualquer outra mercadoria, a força-de-trabalho está inserida na lógica da

oferta e da procura no mercado. Portanto, quanto maior for a oferta de mão-de-obra

disponível para ser empregada, tanto maior será o rebaixamento dos salários e tanto

maior será o número da população “supérflua” – o lumpemproletariado. Além disso, é

importante destacar que o capitalismo do século XIX, assim como o atual, é

caracterizado pela existência de crises constantes e a cada crise a situação tende a

esmagar, ainda mais, os setores frágeis da sociedade e, nesses períodos, o proletariado

tende a ter seus salários rebaixados profundamente, uma vez que o lumpemproletariado

tende a ampliar-se e, conseqüentemente, a ampliar, também, a pressão sobre os

operários empregados. Assim, o proletariado ainda empregado, mas que se vê ameaçado

constantemente pelo desemprego, tende a se submeter, a não ser em períodos de

radicalização da sua luta, a condições ainda mais precárias de trabalho e vida, pois,

no pior dos casos, o operário, para subsistir, preferirá renunciar ao grau de

civilidade a que estava habituado: preferirá morar numa pocilga a não ter

teto, aceitará farrapos para não andar desnudo, comerá batatas para não

morrer de fome. Preferirá, na esperança de dias melhores, aceitar metade do

salário a sentar-se silenciosamente numa rua e morrer na frente de todo

mundo, como já aconteceu com tantos desempregados. É esse pouco, quase

nada, que constitui o mínimo salário. E se há mais operários que aqueles que

à burguesia interessa empregar, se, ao término da luta concorrencial entre

eles, ainda resta um contingente sem trabalho, esse contingente deverá morrer

de fome, porque o burguês só lhe oferecerá emprego se puder vender com

lucro o produto de seu trabalho (ENGELS, 2008, p. 119).

Tarefa difícil é a de precisar a linha que separa o proletariado do

lumpemproletariado em relação à habitação, vestimenta, alimentação, saúde, hábitos e

etc. em todo o século XIX, pois o que percebemos é que, nesse período, a exploração e

miséria são generalizadas e que tanto o proletariado quanto o lumpemproletariado são

suas maiores vítimas. O lumpemproletariado assim como qualquer outra classe social

no capitalismo, precisa acessar, mesmo que em condições extremamente desiguais,

alguns bens básicos para sobreviver. Para isso ele se vê coagido a obter dinheiro, seja de

qual forma for: mendigando, prostituindo-se, roubando, varrendo ruas e recolhendo

imundices, transportando esterco e pequenos objetos, realizando comércio ambulante ou

biscates, cometendo crimes diversos etc.9

É impressionante a grande quantidade de lumpemproletários que ocupam as

ruas, principalmente, dos bairros operários ingleses. É exatamente nesses locais que o

lumpemproletariado encontra alguma solidariedade e consegue a partir de algumas

esmolas, concedidas pelos próprios operários, garantir a sua existência paupérrima. Por

isso milhares de famílias se instalam nessas ruas nos horários de maior circulação dos

operários, pois geralmente “só contam com a solidariedade dos operários, que sabem,

por experiência, o que é a fome e que a todo momento podem encontrar-se na mesma

situação” (Ibid, 2008, p. 128).

9 “São espantosos os expedientes a que esses indivíduos recorrem para ganhar qualquer coisa. Os

varredores de rua (cross sweeps) de Londres são conhecidos em todo o mundo; mas até pouco tempo atrás, também as ruas e calçadas de outras grandes cidades eram limpas por desempregados, contratados para esse fim pelas repartições encarregadas da assistência ou pelas autoridades responsáveis pela conservação das ruas; hoje existe uma máquina que, diária e ruidosamente, limpa as ruas, tirando daqueles desempregados até mesmo esse meio de sobrevivência. Nas grandes vias que ligam as cidades e nas quais há muito movimento, encontra-se uma quantidade de indivíduos empurrando carrinhos de mão que, sob o risco de atropelamento, circulam entre carroças e outros veículos de tração animal, recolhendo o esterco fresco dos cavalos para vendê-lo depois – para o que ainda pagam semanalmente alguns shillings à administração das estradas” (Ibid, 2008, p. 126).

De acordo com os relatórios de inspetores para a lei sobre os pobres, na

Inglaterra e no País de Gales, o número de lumpemproletários (os ditos “supérfluos”)

representa em média 1,5 milhões. Porém esse número poderia ser bem maior visto que

nesse 1,5 milhões só estão compreendidos aqueles indivíduos que oficialmente recebem

alguma assistência pública, estando excluídos desse número os milhares de

lumpemproletários que sobrevivem sem essa assistência.

Em períodos de crise econômica, a miséria atinge graus alarmantes e acirra o

descontentamento e o ódio das classes miseráveis que declaram guerra à toda sociedade

civil, obrigando-o a sobreviver do banditismo. Os anos de 1842 e 1847 são reveladores

do peso que sobrecai no proletariado e em alguns setores das “classes médias” e que os

vitimizam com a lumpemproletarização (desgraça ainda maior que a proletarização) em

períodos de crise:

Um relatório sobre a situação das áreas industriais em 1842, baseado em

dados fornecidos pelos industriais e preparado em janeiro de 1843 pelo

Comitê da Liga contra a Lei dos Cereais, informa que o imposto para os

pobres era então duas vezes maior que em 1839, mas que, no mesmo período

de tempo, o número de necessitados havia triplicado ou até quintuplicado;

que agora muitos postulantes à assistência pública pertenciam a classes

sociais que antes jamais haviam solicitado ajuda; que os meios de

subsistência de que a classe operária podia dispor eram no mínimo dois

terços a menos em relação aos que dispunha em 1834-1836; que o consumo

de carne havia caído muito, 20% em alguns locais, 60% em outros; que

artesãos, ferreiros, pedreiros etc., que até então, mesmo nos períodos de crise

mais grave, encontravam trabalho, agora também sofriam muito com a falta

de trabalho e com os baixos salários; e que, ainda em janeiro de 1843, os

salários continuavam caindo. E essas são informações dos industriais! (Ibid,

2008, p. 129).

Promovendo essas condições de existência para milhares de seres humanos, a

sociedade inglesa favorecia a eclosão de uma verdadeira guerra social, pois boa parte

dos operários pobres e do lumpemproletariado passam a promover diversos motins e

rebeliões, além de buscar a sobrevivência a partir da pilhagem, do roubo e, até mesmo,

do assassinato. As últimas décadas do século XIX experimentam o crescente temor de

ver renascido o velho espectro da multidão amotinada (a mob), disposta a ver seus

interesses e necessidades garantidos através da ação direta, provocada pelos motins e de

todo tipo de movimentos promovidos pelos desempregados enfurecidos, e que tanto

risco à propriedade e à vida eles representam. Elementos típicos de uma sociedade que

se afirma na utilização do trabalho social para produzir riquezas de forma ampliada, mas

que são negadas para seus próprios produtores que são relegados e forçados a viver no

“pântano do pauperismo”. No entanto, ninguém acreditava de fato que tal multidão

desempregada e faminta aguardaria de braços cruzados que algum auxílio caísse do céu,

ou que algum messias as socorresse, pelo contrário, em períodos de crise e miséria

social, as ideologias (religiosas) costumam cair por terra e o lumpemproletariado, por

diversos momentos, partiu para a ação. Segundo Bresciani,

coincidentemente, os homens que agitam Londres em fevereiro de 1866 e

tentam de início resolver o problema do desemprego num inverno rigoroso

através das vias legais, pedindo trabalho-público e auxílio-desemprego, são

trabalhadores. Em Trafagal Square, a assembléia que dá início ao movimento

compõe-se de 20 000 homens desempregados das docas e da construção.

Contudo, bastaram algumas provocações para que a marcha pacífica em

direção ao Hyde Park se transformasse num ataque a todas as formas de

propriedade, riqueza e privilégio: janelas e vitrinas foram quebradas,

carruagens foram quebradas e seus ocupantes assaltados; em suma na

observação do Times, “o West End (bairro rico de Londres) esteve por

algumas horas nas mãos da multidão”. O pânico tomou conta da cidade;

notícias desencontradas sobre multidões avançando em direção à City ou ao

West End e destruindo tudo no seu avanço mantêm os proprietários, o

governo e as tropas em prontidão durante mais dois dias que, nas palavras do

historiador S. Jones se assemelharam ao Grande Medo (“Grande Peur”) da

Revolução Francesa (1990, p. 47).

O que esperar dessa classe social que durante toda a sua existência convive

com todo tipo de infortúnio? É possível aguardar de seres desumanizados e famintos

atitudes que prezem pela vida e propriedade alheia? O século XIX inaugura o século do

banditismo social generalizado. As ruas que, durante o dia, eram infestadas de

mendigos, subempregados e todo tipo de desempregados procurando alguma forma de

garantir sua sobrevivência, pela noite, se encontrava repleta de todo tipo de ladrão e

criminoso. Nascia, assim, um dos termos pejorativos mais utilizados para classificar o

lumpemproletariado: Classes perigosas.

Na introdução da sua obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural

(2008), Alberto Passos Guimarães afirma o seguinte em relação à origem da palavra

classes perigosas (dangerous classes):

O dicionário mais importante da língua inglesa, o Oxford English Dictionary,

registrou o uso da expressão em 1859, mas dez anos antes ela já figurava no

título de uma obra (Reformatory scholls for the children of the perishing and

dangerous classes, and for juvenile offenders) de autoria de Mary Carpenter,

escritora bem conhecida por seus trabalhos sobre matéria criminal. Na

conceituação de Mary Carpenter, as classes perigosas eram formadas pelas

pessoas que houvessem passado pela prisão ou as que, por ela não tendo

passado, já vivessem notoriamente da pilhagem e que se tivessem convencido

de que poderiam, para o seu sustento e o de sua família, ganhar mais

praticando furtos do que trabalhando (2008, p. 21).

É visível que o termo classes perigosas é criado e, posteriormente,

desenvolvido por vários intelectuais do século XIX e expressa, nitidamente, um

preconceito em relação às classes pobres e miseráveis formadas tanto pelo proletariado,

quanto pelo lumpemproletariado, pois, no entender de alguns desses intelectuais, a

prática do roubo e do crime em geral era fruto da escolha individual e não resultado das

míseras condições sociais em que se encontrava uma multidão de indivíduos.

Dessa forma, empregar o termo classes perigosas, assim como vários outros

termos preconceituosos, ao invés de lumpemproletariado - o que na época exigia uma

ampla análise teórica sobre as classes sociais e a dinâmica de sua constituição e

desenvolvimento no capitalismo – possibilitou a expansão de olhares pejorativos e

preconceituosos sobre o lumpemproletariado e que, ainda hoje, é comumente praticado

por alguns intelectuais ditos marxistas. Tanto Karl Marx quanto Friedrich Engels

acabam sendo influenciados por esse preconceito dominante na época e, em alguns

escritos, também, adotaram termos preconceituosos para classificar o

lumpemproletariado. Mais adiante entraremos em detalhes sobre tais escritos.

Nesse momento de nossa análise já é possível visualizar que a expansão do

lumpemproletariado e da criminalidade em diversas regiões industrializadas,

principalmente, da Inglaterra e da França, são resultados da própria dinâmica da

produção e reprodução do capitalismo (conforme expresso no item 1.1.2 desse capítulo)

e que tendem a se intensificar em períodos de carestia, fome e crise, ou seja, em

períodos com fortes tendências ao crescimento generalizado do desemprego. A prática

do roubo como forma garantidora da sobrevivência de uma multidão urbana ganha o

século XIX:

O roubo reina sozinho em meados do século, atingindo seu máximo

correcional entre 1851-1855 (24.000 casos, 42.000 indiciados). Enquanto

diminuem os roubos nas igrejas e nas grandes estradas, estes, apanágios de

jovens que ainda sonham com Mandrin, crescem todas as formas de roubos

urbanos: roubos domésticos, severamente reprimidos, fantasma dos

burgueses de Balzac ou de Pot-Bonille, rivalizados a partir de 1850 pelo

roubo do balcão, que recrudesce com o fascínio exercido pelos Grandes

Magazines sobre o público feminino; miúdos furtos de o bjetos – a vitrine

cobiçada inaugura muitas carreiras delinqüentes – mas, cada vez mais, roubos

de dinheiro, pequenas somas surrupiadas, as únicas que estejam ao alcance da

mão (...) Entretanto, a “gatunice de alimentos”, na origem de tantas

inculpações de crianças ou vagabundos, esboça o horizonte medíocre de uma

sociedade de penúria, a existência de uma fome marginal, mas persistente

(PERROT, 1988, p. 250-251).

Constata-se que nesses períodos a expansão do lumpemproletariado e de suas

práticas ameaçadoras da ordem social (rebeliões, atos de violência generalizada etc.) e

dos bens das classes privilegiadas (roubos, saques etc.) veio acompanhada da expansão

de diversas instituições nascidas para amenizar as crescentes perturbações sociais

promovidas por essa massa imensa formada por diversas frações que compunham o

lumpemproletariado (mendigos, assaltantes, prostitutas, subempregados, ex-operários

desempregados etc.) da época. Dentre essas instituições destacam-se: os asilos, os

“hospitais‟ e as prisões.

Para toda essa gama de problemas sociais inaugurada, já de forma

intensificada, pelo modo de produção capitalista, não há resolução concreta nos limites

das fronteiras do capital. Pelo contrário, a manutenção do capitalismo depende, e ao

mesmo tempo representa sua ameaça, da conservação de sua essência produtora de toda

essa problemática. Aqui me refiro, principalmente, ao processo de

lumpemproletarização e de criminalização do lumpemproletariado, existente desde a

origem do capitalismo e que remonta ao processo de cercamento de terras:

Os expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela intermitente e

violenta expropriação da base fundiária, esse proletariado livre como

pássaros não podia ser absorvido pela manufatura nascente com a mesma

velocidade com que foi posto no mundo. Por outro lado, os que foram

bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam

enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição.

Eles se converteram em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em

parte por predisposição e na maioria dos casos por força das circunstâncias.

Daí ter surgido em toda Europa Ocidental, no final do século XV e durante

todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os

ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela

transformação, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação

os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa

vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam

(MARX, 1985a, p. 275)10

.

O próprio processo de criminalização do lumpemproletariado revela, tanto no

século XIX, quanto na contemporaneidade, a impossibilidade da construção de uma

solução eficaz para essa ampla marginalização de milhares de indivíduos da divisão

social do trabalho. Afinal, a raiz da expansão da criminalidade se encontra na própria

dinâmica da produção capitalista de mercadorias que para promover a reprodução

ampliada do capital depende da existência de um contingente, cada vez maior, de

indivíduos marginalizados na divisão social do trabalho. A criminalização via

aprisionamento do lumpemproletariado tende a reproduzir, ainda de forma mais extensa,

sua condição de marginalizado do trabalho, pois sua vida após o cumprimento da pena

carrega a “marca da detenção” e essa gera uma enorme repulsa social que facilita ainda

mais sua condição de lumpem. Nesse sentido,

10

Nos primeiros parágrafos após essa citação, na obra de Karl Marx (1985a) encontra-se as diversas leis que foram criadas com o intuito de criminalizar o lumpemproletariado e castigá-lo pela sua condição social e mendicância. Parafraseando Marx: “Que cruel ironia!”.

todos os testemunhos concordam: há extrema dificuldade em se conseguir

trabalho. “A partir do momento em que o véu que encobria sua condição de

liberto é rompido, todos os evitam ou fogem dele; se trabalha numa oficina,

os que um momento antes tratavam-no como camarada não toleram mais sua

presença em meio a eles a não ser com impaciência e aflição; não só não é

mais seu companheiro de trabalho, como também não é mais seu igual, seu

semelhante. Não haverá ordem e harmonia na oficina, enquanto não tiver

sido expulso”, escreve Frégier. E mais: “Como se sabe, existe na França uma

repulsa inveterada em todas as classes da população em relação aos ex-

detentos” (PERROT, 1988, p. 270).

Antes mesmo do século XIX, ainda nas décadas finais do século XVIII, o

lumpemproletariado já era um dos alvos principais do sistema carcerário. Na França, em

diversos momentos de crise econômica e crescimento acelerado do desemprego, a

criminalização do lumpemproletariado foi a principal arma utilizada pelas classes

dominantes para conter a desordem social derivada da pobreza generalizada que atingia

essa classe:

as manufaturas a que estávamos tão apegados caem de todos os lados; as de

Lyon vieram abaixo: há mais de 12 000 operários mendigando em Rouen,

outro tanto em Tours, etc. Contam-se mais de 20 000 desses operários que

abandonaram o reino desde três meses atrás para ir para o exterior, Espanha,

Alemanha, etc., onde são acolhidos e onde o governo é econômico

(ARGENSON, Apud FOUCAULT, 1997, p. 401).

Na tentativa de combater esse movimento expansivo de lumpemproletarização,

decreta-se o aprisionamento de todos os mendigos: “Foi dada a ordem de prender todos

os mendigos do reino; os marechais atuam nesse sentido no interior, enquanto a mesma

coisa é feita em Paris, para onde se tem certeza que eles não refluirão, estando cercado

por todos os lados” (Ibid, 1997, p. 402). Na segunda metade do século XVIII na França

esse processo de criminalização do lumpemproletariado é permanente:

De um lado e do outro, responde-se à crise com o internamento. Cooper

publica em 1765 um projeto de reforma das instituições de caridade; propõe

que se criem, em cada hundred, sob a dupla vigilância da nobreza e do clero,

casas que teriam uma enfermaria para os doentes pobres, oficinas para os

indigentes válidos e centros de correção para os que se recusassem a

trabalhar. Inúmeras casas são fundadas no interior a partir desse modelo,

inspirado por sua vez na workhouse de Carlford. Na França, um édito real de

1764 prevê a abertura de depósitos para mendigos, mas a decisão só

começará a ser aplicada após uma deliberação do conselho de 21.09.1767:

“Que se preparem e estabeleçam, nas diferentes generalidades do reino, casas

suficientemente fechadas para nelas receber pessoas vagabundas ... Os que

forem detidos nas ditas casas serão alimentados e mantidos às custas de Sua

Majestade (...)”. No ano seguinte abrem-se 80 depósitos de mendigos em

toda a França. Têm quase a mesma estrutura e o mesmo destino que os

hospitais gerais; o regulamento do depósito de Lyon, por exemplo, prevê que

ali serão recebidos vagabundos e mendigos condenados ao internamento por

decisão do preboste, “as mulheres de má vida detidas pelas tropas”, “os

particulares mandados por ordem do rei”, “os insensatos, pobres e

abandonados, bem como aqueles pelos quais se paga pensão” (Art. 1 do título

do regulamento do depósito de Lyon 1783, cit. In LALLEMAND, IV, p.

278). Mercier dá uma descrição desses depósitos que mostram como eles

diferem pouco das velhas casas do Hospital Geral: a mesma miséria, a

mesma mistura, a mesma ociosidade (FOUCAULT, 1997, p. 403).

O século XIX, conforme afirma Perrot, inaugura a era do aprisionamento

permanente. Depois do asilo, a prisão, “gêmea sua, torna-se o objeto de uma história

cada vez mais assombrada pelo lado sombrio das sociedades: doença, loucura,

delinqüência (...)” (PERROT, 1988, p. 235). Como era de se esperar o

lumpemproletariado passa a ser a visita prioritária desse novo e assustador

estabelecimento, ou melhor, depósito de infelizes seres humanos.

Para finalizar esse capítulo, passaremos a discutir o lumpemproletariado nos

escritos de Marx. O termo lumpemproletariado tem origem nos escritos de Karl Marx,

porém esse autor não chegou a desenvolvê-lo de forma sistematizada e em várias obras

(O Manifesto Comunista, A luta de classes na França, O 18 Brumário e O capital) o

termo é mencionado, em alguns casos, com diferenças de significado. Na obra O

manifesto do partido comunista (1998), Marx e Engels assim comenta sobre o

lumpemproletariado:

O lumpemproletariado, essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da

velha sociedade, pode, aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma

revolução proletária; no entanto, suas condições de existência o predispõe

bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias (1988, p. 76).

Nessa passagem é possível perceber alguns aspectos que consideramos

limitados e ao mesmo tempo um pouco taxativo na análise de Marx, pois quando ele

afirma que o lumpemproletariado representa essa “putrefação passiva dos setores mais

baixos da velha sociedade” ele acaba por exagerar na postura passiva dessa classe, pois

não é bem isso que a história do século XIX mostra. Em diversos momentos o

lumpemproletariado reagiu à sua condição material de existência através de ações

contra a propriedade, contra a vida aristocrática e burguesa, assim como participou de

diversos motins e rebeliões. É claro que essas ações não vinham acompanhadas de

nenhum projeto político, nem tão pouco possuía nenhuma radicalidade que ameaçasse a

sociedade vigente, todavia, sua postura não era exatamente passiva.

Por outro lado, há um aspecto importante nessa citação sobre a postura política

do lumpemproletariado e de suas possibilidades. Trata-se do seguinte trecho: “pode,

aqui e ali, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária”. Ora, essa

passagem nos possibilita perceber que, ao contrário do que afirma alguns teóricos, Marx

e Engels, pelo menos nessa obra, mostravam que, apesar das condições materiais de

existência dessa classe social que tendia a predispô-la “bem mais a se deixar comprar

por tramas reacionárias”, como ocorreu na luta de classes na França (um episódio

histórico concreto), o lumpemproletariado poderia - e pode - contribuir com a revolução

proletária. Esse detalhe é importante, pois demonstra que a postura política do

lumpemproletariado não resulta de uma espécie de essência do seu ser-de-classe que

sempre o arrasta para um papel conservador e reacionário na luta de classes, pelo

contrário, apresenta que essa classe, também, possui outras possibilidades e que tudo

depende da dinâmica da luta de classes e de sua correlação de forças em determinados

contextos históricos.

Além dessa passagem presente na obra O manifesto do partido comunista,

outras passagens são importantes para compreendermos a visão de Marx sobre essa

classe social e a influência que a mesma exerceu em teóricos posteriores que discutiram

o lumpemproletariado. Nas suas duas principais obras históricas, O 18 Brumário (1997)

e As lutas de classes na França – de 1848 a 1850 (2008), Marx analisa os interesses de

classes envolvidos nas lutas que se desenvolveram nesse contexto histórico francês e as

estratégias que as classes sociais em luta utilizaram para garantir tais interesses. Para

compreendermos um pouco esse processo, utilizaremos de algumas extensas citações.

Em A luta de Classes na França, Marx assim descrevia:

A revolução de fevereiro tinha atirado o exército para fora de Paris. A Guarda

Nacional, isto é, a burguesia nas suas diferentes gradações, constituía a única

força. Contudo, não se sentia suficientemente forte para enfrentar o

proletariado. Além disso, fora obrigada, ainda que opondo a mais tenaz das

resistências e levantando inúmeros obstáculos, a abrir, pouco a pouco, e em

pequena escala, as suas fileiras e a deixar que nelas entrassem proletários

armados. Restava, portanto, apenas uma saída: opor uma parte do

proletariado à outra.

Para esse fim, o governo provisório formou 24 batalhões de guarda móveis,

cada um deles com mil homens, cuja idades iam de 15 aos 20 anos. Na sua

maioria pertenciam ao lumpemproletariado, que em todas as grandes cidades

constituiu uma massa rigorosamente distinta do proletariado industrial, um

centro de recrutamento de ladrões e criminosos de toda a espécie que vivem

da escória da sociedade, gente sem ocupação definida, vagabundos, gente

sem pátria e sem lar, variando segundo o grau de cultura da nação a que

pertencem, não negando nunca o seu caráter de Lazzaroni capazes, na idade

juvenil em que o governo provisório os recrutava, uma idade totalmente

influenciável, dos maiores heroísmos e dos sacrifícios mais exaltados como

do banditismo mais repugnante e da corrupção mais abjeta. O governo

provisório pagava-lhes 1 franco e 50 centavos por dia, isto é, comprava-os.

Dava-lhes um uniforme próprio, isto é, distinguia-os exteriormente dos

homens de blusa de operário. Para seus chefes eram-lhe impostos, em parte,

oficiais do exército permanente, em parte, eram eles próprios que elegiam

jovens filhos da burguesia que os cativavam com suas fanfarronadas sobre a

morte pela Pátria e a dedicação à república (p. 84-85).

Em O 18 Brumário podemos ler:

Nessas excursões, que o grande Moniteur oficial e os pequenos Moniteurs

privados de Bonaparte tinham naturalmente que celebrar como triunfais, o

presidente era constantemente acompanhado por elementos filiados à

Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou-se em 1849. A

pretexto de fundar uma sociedade beneficente o lúmpen-proletariado de

Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas

e sob a chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués

decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com

arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados

desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés,

chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores,

maquereaus, donos de bordéis, carregadores, soldadores, mendigos – em

suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em Meca,

que os franceses chamam La bohème; com esses elementos afins Bonaparte

formou o núcleo da Sociedade de 10 de Dezembro. “Sociedade beneficente”

no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam

necessidade de se beneficiar às expensas da nação laboriosa; esse Bonaparte,

que se erige em chefe do lùmpen-proletariado, que só aqui reencontra, em

massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa

escória, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a única classe em

que pode apoiar-se incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o

Bonaparte sans phrase (p. 78-79).

O que Marx nos apresenta com tais passagens? O que é possível apreender

dessas passagens e o que pode ser interpretado como exagero dogmático nas releituras

de outros autores sobre o lumpemproletariado? Nessas passagens, extraídas de duas

obras de caráter histórico, isto é, obras que analisaram determinados acontecimentos em

contextos históricos específicos, Marx descreve como o lumpemproletariado –

reenfatizando: naquele contexto – foi cooptado pelo Estado francês, sob comando de

Luís Bonaparte, e utilizado na luta contra o avanço das lutas proletárias. Ou seja, nesse

episódio a possibilidade do lumpemproletariado ser cooptado e utilizado como

“ferramenta subornada da intriga reacionária” se confirmou.

A obra As classes perigosas – banditismo urbano e rural (2008) de Alberto

Passos Guimarães se apresenta como uma interpretação tipicamente dogmática da

análise que Marx e Engels realizaram sobre o lumpemproletariado. Nessa obra, seu

autor transforma as afirmações de Marx e Engels sobre o lumpemproletariado, do

século XIX, em “leis naturais e universais” e que podem ser aplicadas a qualquer

situação e contexto histórico, pois para esse autor:

Tanto Marx quanto Engels sempre tiveram essa posição contrária à

utilização de elementos do lumpemproletariado na ação revolucionária, por

considerá-lo instrumentos mobilizáveis pela reação, em todos os tempos,

como havia mostrado a experiência histórica (2008, p. 24).

E, posteriormente, ele continua com suas ênfases dogmáticas:

Mas em nenhum momento Marx e Engels deixaram de considerar as

peculiaridades de cada uma das formas e categorias da superpopulação

relativa, de seu papel e de suas funções na economia e na sociedade. Nunca

deixaram de salientar o antagonismo entre o caráter revolucionário da classe

operária e a tendência contra-revolucionária do lumpemproletariado (Ibid,

2008, p. 28).

Porém, é necessário compreender que a postura política do lumpemproletariado

não é uma “lei natural e universal” que pode ser aplicada para qualquer situação, em

qualquer contexto histórico. No entanto, foi isso que diversos autores ditos “marxistas”

fizeram: interpretaram essas passagens de Marx sob o lumpemproletariado de forma

dogmática, tornando-as espécies de “verdades reveladas” (assim disse o Senhor Marx

no capítulo x, versículo y, amém). Postura essa que não possui nada de marxista, pois

trata a ação de uma classe social de forma estanque, desconsidera as especificidades das

condições materiais de existência, o desenvolvimento da correlação de forças e as

tendências próprias da dinâmica da luta de classes em contextos históricos distintos.

Nesse sentido,

a vulgarização e deformação da teoria de Marx promoveram uma

simplificação e, aliado com determinados interesses e situações, transformou

o lumpemproletariado em puramente reacionário (e deixando de lado o que

Marx denominou “condições de existência”, como numa espécie de

maniqueísmo que transforma essa parte da sociedade em “representante do

mal”. Porém, além de resgatar o que Marx realmente disse, é necessário

perceber a evolução do lumpemproletariado e sua relação com o

desenvolvimento capitalista e, assim, compreender melhor seu papel político

contemporaneamente (VIANA, 2011).

Em nossa análise o lumpemproletariado é considerado uma classe social

intrínseca ao modo de produção capitalista e que, conseqüentemente, vem se

desenvolvendo e se ampliando quantitativamente com o desenvolvimento desse modo

de produção. No entanto, não acreditamos que o lumpemproletariado seja, em sua

essência, contra-revolucionário, assim como o proletariado é revolucionário na sua

essência, pois acreditamos ser possível constatar que na contemporaneidade,

especificamente no período de vigência da acumulação integral, o lumpemproletariado

tende a se aliar ao proletariado, em momentos de crise e enfrentamento, contra o capital

e, conseqüentemente, contribuir com a transformação social.

Percebe-se, então, que ao contrário dos teóricos que analisaram o

lumpemproletariado de forma estanque e dogmática, aqui buscaremos analisar o

lumpemproletariado na sua evolução histórica, intentando buscar respostas que

confirmem a tendência dessa classe em adquirir um caráter cada vez mais contestador e

uma aliança revolucionária com o proletariado. Esse é o objetivo do próximo capítulo:

analisar a expansão do lumpemproletariado no regime de acumulação integral e toda a

complexa dinâmica que envolve esse processo.

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