A revolução como uma urgência da história

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1 A revolução como uma urgência da história Será necessário que se reunam condições completamente excepcionais, independentes da vontade dos homens ou dos partidos, para libertar o descontentamento das cadeias do conservadorismo e levar as massas à insurreição. Portanto, essas mudanças rápidas que as idéias e o estado de espírito das massas vivem nas épocas revolucionárias não são um produto da elasticidade e mobilidade da psíque humana, mas, ao contrário, de seu profundo conservadorismo(...) As massas não vão à revolução com um plano preconcebido de sociedade nova, mas com um sentimento claro da impossibilidade de continuar suportando a sociedade velha. Só o setor dirigente de cada classe tem un programa político, programa que, no entanto, necessita todavía ser submetido à prova dos acontecimentos e à aprovação das massas(...) As distintas etapas do processo revolucionário, consolidadas pelo deslocamento de uns partidos por outros, cada vez más radicais, sinalizam a pressão crescente das massas para a esquerda, até que o impulso adquirido pelo movimento tropeça com obstáculos objetivos. Então começa a reação: decepção de certos setores da classe revolucionária, difusão da apatia. 1 Leon Trotski 1 Introdução A crise econômica aberta em 2008 expõe os limites do capitalismo, confirma a necessidade de transformações no mundo contemporâneo, e contextualiza a iminência de situações revolucionárias nos elos mais frágeis do sistema. Não existiu, todavia, na história crise econômica sem saída para o Capital. A saída de crises econômicas nunca foi, evidentemente, indolor. Exigiu destruição massiva de capitais, um aumento do patamar de exploração da força de trabalho, uma intensificação 1 TROTSKY, Leon. Historia de la Revolucion Russa. Bogotá, Pluma, 1982, Volume 1, p. 8.

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A revolução como uma urgência da história

Será necessário que se reunam condições completamente excepcionais,

independentes da vontade dos homens ou dos partidos, para libertar o

descontentamento das cadeias do conservadorismo e levar as massas à

insurreição. Portanto, essas mudanças rápidas que as idéias e o estado de

espírito das massas vivem nas épocas revolucionárias não são um produto da

elasticidade e mobilidade da psíque humana, mas, ao contrário, de seu

profundo conservadorismo(...) As massas não vão à revolução com um plano

preconcebido de sociedade nova, mas com um sentimento claro da

impossibilidade de continuar suportando a sociedade velha. Só o setor

dirigente de cada classe tem un programa político, programa que, no

entanto, necessita todavía ser submetido à prova dos acontecimentos e à

aprovação das massas(...) As distintas etapas do processo revolucionário,

consolidadas pelo deslocamento de uns partidos por outros, cada vez más

radicais, sinalizam a pressão crescente das massas para a esquerda, até que

o impulso adquirido pelo movimento tropeça com obstáculos objetivos. Então

começa a reação: decepção de certos setores da classe revolucionária,

difusão da apatia.1

Leon Trotski

1 Introdução

A crise econômica aberta em 2008 expõe os limites do

capitalismo, confirma a necessidade de transformações no mundo

contemporâneo, e contextualiza a iminência de situações

revolucionárias nos elos mais frágeis do sistema. Não existiu,

todavia, na história crise econômica sem saída para o Capital.

A saída de crises econômicas nunca foi, evidentemente,

indolor. Exigiu destruição massiva de capitais, um aumento do

patamar de exploração da força de trabalho, uma intensificação1 TROTSKY, Leon. Historia de la Revolucion Russa. Bogotá, Pluma, 1982, Volume 1, p. 8.

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da concorrência entre monopólios, e da competição entre

Estados, ou seja, imensos perigos.2

Enquanto o capitalismo vivia sua época histórica de gênese

e desenvolvimento, estas crises destrutivas eram,

relativamente, mais rápidas e suaves. O debate histórico mais

interessante da atualidade remete, portanto, a este tema: a

época em que o capitalismo ainda tinha um papel progressivo, ficou ou não para

trás? O argumento deste texto é que estamos diante de um período

histórico de decadência do sistema. Uma época em que reformas

são mais difíceis, embora não sejam impossíveis, e revoluções

mais prováveis, embora o desenlace da luta pelo socialismo

permaneça muito incerta.

As últimas crises confirmam que os limites históricos do

capitalismo estão mais estreitos. Estes limites não foram, não

são, não poderiam ser fixos. Eles resultam de uma luta

política e social. Em alguns períodos se contraíram (depois da

vitória da revolução russa; depois da crise de 1929; depois da

revolução chinesa; depois da revolução cubana), e em outros se

expandiram (depois do New Deal de Roosevelt; depois do acordo

de Yalta/Potsdam, ao final da II Guerra Mundial; depois de

Reagan/Thatcher nos anos 80). O capitalismo não terá “morte

natural”, o que não é o mesmo que dizer que não se manifestou

na história uma tendência à “crise final”, isto é, uma

tendência a crises cada vez mais sérias e destrutivas, que

ficou conhecida na tradição marxista como a teoria do colapso.3

2 O livro de Osvaldo Coggiola é uma recente e excelente referência sobre o tema. As Grandes Depressões (1873-1896 e 1929-1939) . São Paulo, Editora Alameda, 2009.3 Há um debate interessante sobre o tema. Uma referência útil pode ser encontrada no livro organizado por Lucio Colletti: El marxismo y el

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Todos os Estados, mesmo aqueles que têm uma posição

dominante no mercado mundial, estão condicionados pela pressão

do capital financeiro. Os mágicos keynesianos substituíram os

artistas neoliberais à frente de vários governos, mas

enfrentam muitas dificuldades para “salvar” o capitalismo dos

capitalistas. Os impostos futuros, consumidos nos últimos anos

na forma de emissão de dívida para a compra de participação

estatal em empresas e bancos ameaçados de falência,

comprometerão a possibilidade de emissão de novos títulos

amanhã, sob pena de uma desvalorização das moedas de

entesouramento (dólar norte-americano; libra inglesa, franco

suíço, euro; yen), ou seja, o perigo de inflação. A crise

aberta em 2008 vem confirmando as análises que estimam que ela

só pode ser comparada com a crise de 1929, e não deve ser

considerada somente a forma da última crise cíclica, como em

2000/2001, 1991/92, ou 1981/82.4

2 2008/2011: uma crise diferente das últimas três crises

Em perspectiva, a questão histórica determinante para a

compreensão das três últimas décadas foi o significado da

derrota político-social que assumiu a restauração capitalista,

primeiro na China, a partir de 1978, e depois na URSS, a

partir de Gorbatchev. economia capitalista conheceu, ao longo

dos últimos trinta anos, três ciclos de ampliação econômica

que dependeram muito da financeirização, embora ela tenha

“derrumbe” del capitalismo. 3ª ed. México, SigloVeintiuno Editores, 1985.4 O livro de Robert Brenner O boom e a bolha', publicado em português pela Record em 2003 é uma apresentação do tema da crise que exploduiu ao final dos anos noventa.

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sido, essencialmente, uma inovação em consequência da recessão

dos anos setenta. Foi a financeirização que facilitou a

expansão do crédito que impulsionou os mini-booms dos anos

oitenta com Reagan, dos anos noventa com Clinton, e dos anos

de 2001/2008 com Bush. Operaram, com força de influência

variada, os outros quatro fatores identificados por Marx como

contra-tendências de freio à queda da taxa média de lucro,

expressão do esgotamento e da tendência à decadência: o

barateamento das matérias primas; a renovação de tecnologias;

a internacionalização até à última fronteira e, o mais

importante, o aumento da exploração do trabalho.

Nas dois primeiros mini-booms verificaram-se quedas

importantes nos preços do petróleo e dos grãos, embora não na

última; o desenvolvimento da micro-eletrônica e da telemática

foram significativas para o impulso da restruturação

produtiva, sobretudo, nas duas últimas duas décadas do século

XX; o crescimento chinês e, em menor medida, da Índia, foi um

fator de impulso nos últimos vinte anos; a estagnação do

salário médio nos EUA e a restauração capitalista,

incorporando centenas de milhões ao mercado mundial,

pressionou para baixo o salário médio na Europa e Japão.

Mas foi o barateamento do crédito o fator decisivo da

rápida recuperação das últimas três crises mundiais. A

montanha de derivativos cresceu até atingir o pico de US$ 600

trilhões, ou mais de 10 PIB’s mundiais e, transformou-se em um

obstáculo intransponível, porque o movimento de rotação de

capital não é possível nesta escala: deixou de ser possível a

valorização de capital, mesmo que seja muito lenta, quando o

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volume de capitais fictícios atingiu esta dimensão

estratosférica. Em outras palavras, esse estoque de capitais,

se a valorização for à escala de 2,5% ao ano, ou seja, o nível

da inflação anual dos países centrais, teria que consumir 25%

do PIB mundial, o que só seria verossímil com a restauração de

condições de vida semelhantes às da escravidão.

O mesmo problema está na raiz da crise dos endividamentos

públicos acima dos 100% dos PIB’s nos países centrais. O

endividamento do Estado não é senão a antecipação para o

presente de receitas fiscais futuras, os impostos que serão

pagos nos anos por vir e, em prazo mais longo, pelas futuras

gerações. Ao contrário de empresas, Estados não podem falir,

mas podem cair em situação de inadimplência por incapacidade

de rolagem dos juros, com moratória das dívidas. Foi o que

aconteceu com o Brasil durante o governo Juscelino Kubitschek,

nos anos cinqüenta, e José Sarney, nos anos oitenta. Isso

significa que Estados, mesmo os Estados centrais, não

conseguem se endividar além de sua capacidade de pagamento,

porque os investidores perderão a confiança nos títulos, e

exigirão em contrapartida juros mais elevados para renovação

dos empréstimos. Um maior endividamento se traduzirá em um

comprometimento de despesas que impedirá investimentos futuros

e provocará recessão crônica, ou desestabilização política

pelos cortes nas despesas dos serviços públicos com seqüelas

sociais imprevisíveis. A expectativa dos rentistas

condicionou, historicamente, o volume de estoque das dívidas

públicas e o custo de rolagem dos empréstimos. A

financeirização transformou os títulos públicos de qualquer

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Estado - inclusive, no limite, os dos EUA - em papéis que

podem, também, apodrecer, desde que os investidores percam a

confiança de que o Estado poderá honrar seus compromissos. Não

há qualquer garantia, a priori, de que os títulos públicos não

virem tóxicos.

A parasitagem das dívidas públicas foi um dos negócios

mais rentáveis da expansão mundial da liquidez das últimas

três décadas. Os credores dos títulos públicos se entesouram

nestes papéis, buscando a máxima rentabilidade e a máxima

segurança. O aumento da dívida do Estado em relação ao PIB

eleva, contudo, o custo da rolagem da dívida. O que se

revelou, no passado, incompatível com a preservação dos gastos

públicos e traz como ameaça um agravamento da recessão. Desde

que Washington renunciou à convertibilidade fixa do dólar, em

1971, e preferiu que ela flutuasse livremente, em função da

oferta e procura, o Estado aumentou as possibilidades de

endividamento. Foi uma resposta fiscal de tipo keynesiano à

desaceleração do crescimento do pós-guerra nos anos setenta. A

moeda norte-americana desvalorizou-se, porém, preservou o seu

papel de moeda de reserva mundial.

Por isso é que os marxistas afirmam que o limite do

capital é o próprio capital. Em outras palavras, a superação

da crise atual não é impossível, mas terá o custo de uma

regressão econômica social imensa – pelo menos a destruição do

padrão de vida na Europa no último meio século - reatualizando

o prognóstico marxista de socialismo ou barbárie.

Mudanças desta magnitude só foram possíveis depois de um

brusco, intenso, e desfavorável deslocamento da relação social

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de forças entre as classes em cada país, e uma alteração do

posicionamento dos Estados no sistema mundial. Essas

gigantescas transferências de riqueza e poder entre classes,

entre monopólios, e entre Estados nunca puderam ser feitas sem

enfrentar resistências. Quando a reação fracassa, e a

possibilidade de concessões parciais, por variados fatores,

fica diminuída ou é mais restrita, a probalidade de situações

revolucionárias aumenta. O que está em disputa é uma

reconfiguração econômica, social e política do mundo tal como

o conhecemos.

O argumento deste texto é que quando uma ordem econômica,

social e política revela incapacidade para realizar mudanças

por métodos de negociação, concertação ou reformas, as forças

sociais interessadas em resolver a crise de forma progressiva

recorrem aos métodos da revolução para impôr a satisfação de

suas reivindicações. Essa foi a forma que assumiu a defesa de

interesses de classe na história contemporânea. A história,

contudo, não é sujeito, mas processo. O seu conteúdo é uma

luta. Essa luta assume variadas intensidades. A revolução

política é uma dessas formas, e a frequência maior ou menor em

que ela se manifesta é um indicador do período histórico.

Todas as revoluções contemporâneas tiveram uma dinâmica

anticapitalista, maior ou menor, mas não foram todas

revoluções, socialmente, proletárias. Todas as revoluções

socialistas da história começaram como revoluções políticas,

ou como revoluções democráticas.

Quando existiu a possibilidade de revolução, esteve

presente, também, o desafio de vencer o perigo da contra-

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revolução. No passado, soluções reacionárias da crise

econômica, como depois da crise dos anos setenta, ou até uma

saída contra-revolucionária, como foi o nazi-fascismo depois

da crise 1929, permitiram uma recuperação transitória, que não

foi suficiente para impedir que novas crises, ainda mais

sérias, explodissem alguns anos mais tarde. O sistema

conseguiu ganhar algum tempo, mas a anarquia da produção

capitalista voltou a se manifestar de forma catastrófica,

demonstrando que o prognóstico marxista sobre o destino do

capitalismo permanecia vigente.

O ano de 2001 foi o ano em que a revolução atingiu o norte

de África e o Médio Oriente, aumentando o isolamento político

de Israel, e potencializando a resistência palestina. Uma

segunda onda revolucionária sacudiu o mundo árabe com uma

força de impacto só comparável com a onda que se iniciou na

luta pelas independências dos Impérios europeus, e que

culminou na Argélia entre o final dos anos cinquenta e início

dos sessenta.

As consequências desta segunda onda revolucionária, em uma

das regiões onde se decidirá o futuro da situação mundial,

ainda são incertas, por muitas razões. Entre outras, poderá

até incendiar a disposição de luta de dezenas de milhões de

muçulmanos que constituem a fração mais explorada do

proletariado da Europa, sobretudo, na França, onde os árabes

já superam 10% da população economicamente ativa, e na

Alemanha, onde a imigração dos turcos foi essencial para

manter reprimidos os custos da força de trabalho. O ano de

2011 foi, também, o ano em que as mobilizações na Grécia, na

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Espanha, em Portugal e, em menor medida, na Itália,

sinalizaram a perspectiva de situação revolucionárias na

Europa do Mediterrâneo, pela primeira vez, desde o final dos

anos setenta. Estará em disputa a possibilidade da revolução

no norte da África e do Oriente Médio abrir o caminho para

segundas independências, com todas as sequelas que teria a

aperda de controle do imperialismo sobre as maiores fontes de

abastecimento de petróleo, mas, também, a destruição das

políticas públicas de bem estar social que ainda estão de pé

na europa Ocidental, ou a redução da Grécia, Portugal e,

talvez, até da Espanha à condição de semi-colônias do eixo

franco-alemão na União Européia.

A iminência da revolução é um conceito perigoso, porém,

inescapável: por iminência deve-se compreender ameaça ou

proximidade. O que condicionou, historicamente, a

possibilidade de revoluções foi a pressão objetiva de crises

de dimensões catastróficas. Mas, só a existência de crises

nunca foi o bastante para que se iniciassem processos

revolucionários. Foi indispensável, igualmente, que a

mentalidade de milhões de pessoas fosse sacudida pela

experiência terrível de que não existiria mais esperança em

saídas individuais. Somente quando a nova geração acordou para

a inescapável constatação de que teria que aceitar condições

de sobrevivência inferiores às dos seus pais, ou seja, somente

quando o que era inacreditável em condições normais se impôs

de forma ineludível, se precipitaram situações

revolucionárias. A hipótese deste texto é que a urgência da

revolução voltou a ter significado político imediato. Mas não

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autoriza a conclusão de que o socialismo está mais perto. A

luta pelo socialismo requer mais do que ações revolucionários

contra o governo e regime no poder: exige protagonismo

proletário independente e projeto internacionalista.

3 Mais difícil

Já se disse que as próximas revoluções serão sempre mais

difíceis que as últimas, porque a contra-revolução aprende

depressa. A contra-revolução burguesa foi um dos fenômenos de

dimensão mundial do século XX. As revoluções contemporâneas

manifestam-se como revoluções na esfera nacional, mas esta

aparência é uma ilusão de ótica que remete à centralidade da

luta política imediata contra o Estado. As revoluções do

séculço XX não enfrentaram somente os seus inimigos nacionais

imediatos, mas a contra-revolução à escala internacional. Os

Estados se definem pela vigência das fronteiras nacionais,

todavia a dominação mundial capitalista foi se estruturando,

crescentemente, sobre uma institucionalidade mundial: o

sistema internacional de Estados, ou seja, ONU, a Tríade

( EUA, UE, Japão), o FMI, o G-8, o G-20, o Banco Mundial, o

Banco de Compensações Internacionais de Basiléia, etc.

As revoluções contemporâneas estiveram inseridas, desde o

fim da Primeira Guerra Mundial, em contextos, pelo menos,

regionais, ou semi-continentais, e assumiram a forma de ondas

de expansão que cruzaram mais ou menos rapidamente as

fonteiras nacionais. Por isso as revoluções contemporâneas

merecem ser caracterizadas como processos de refração da

revolução mundial. A revolução mais recente pode ser

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interpretada, portanto, como “o futuro de um passado”, e

começa onde a última foi interrompida. Essa é uma das

tendências do processo histórico da época contemporânea. Mas a

hipótese da iminência da revolução, ou seja, a possibilidade

de revoluções mais próximas, não

A situação revolucionária aberta na Alemanha em novembro

de 1918 foi muito mais difícil do que aquela que seguiu-se ao

fevereiro de 1917 na Rússia, porque a burguesia é uma classe

dominante que reage à escala internacional, e retira,

prontamente, suas lições e conclusões. A crise revolucionária

aberta na Espanha em 1936, com o início da guerra civil de

pois da vitória eleitoral da Frente Popular foi muito mais

difícil do que a crise aberta na Rússia com a tentativa de

golpe de Kornilov em agosto de 1917. Ao final da Segunda

Guerra Mundial, a revolução vietnamita foi muito mais difícil

que a chinesa. A revolução em El Salvador foi muito mais

difícil que na Nicarágua nos final dos anos setenta.

Entretanto, a crise do capitalismo aberta em 2008 sugere

que a precipitação de situações revolucionárias é uma hipótese

cada vez mais provável. A evolução da situação na Grécia

indica a dinâmica da situação nos países europeus

mediterrânicos. Paradoxalmente, a experiência histórica das

últimas décadas sugere, também, que rupturas anticapitalistas

que iniciam a transição ao socialismo ficaram mais difíceis. A

etapa histórica dos substitucionismos sociais e políticos,

entre 1945/75, ficou para trás. No Programa de Transição de

1938, Leon Trotsky tinha previsto que, excepcionalmente, em

condições extraordinárias de crise, aprisionados entre a

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pressão do imperialismo e a pressão da mobilização de massas,

direções nacionalistas poderiam ir além dos limites do

capitalismo. O que tinha sido previsto como improvável, acabou

sendo quase um padrão entre 1945 e 1975.

Uma parcela das direções nacionalistas radicalizadas,

acossadas pelo imperialismo e apoiadas na mobilização das

massas populares, mas ameaçadas, também, pelo perigo de um

desbordamento pela sua esquerda, expropriaram o capital. O

substitucionismo social do proletariado por massas camponesas

e populares, e o substitucionismo político dos marxistas por

direções nacionalistas traduziram a grandeza e, também, os

limites das revoluções do pós-guerra.

Ao mesmo tempo, em uma parte das ex-colônias ou

semicolônias que mergulharam em situações revolucionárias, mas

aonde não se deu a ruptura anti-capitalista - como Argélia nos

anos sessenta, ou na Nicarágua e Irã, no final dos setenta -

surgiram Estados independentes. Alguns lograram manter esta

independência, sobretudo, em países com recursos estratégicos

como o petróleo. Entretanto, revoluções sociais anti-

capitalistas não aconteceram mais desde a derrota americana no

Vietnam. Portugal, Nicarágua, Irã, Haiti, Filipinas, Indonésia

e África do Sul, entre outros países, conheceram revoluções

políticas que derrubaram regimes ditatoriais pró-

imperialistas, mas não transbordaram em revoluções sociais. Os

processos revolucionários estagnaram e foram contidos nos

limites dos novos regimes.

As direções nacionalistas, não só recuaram, primeiro, de

qualquer veleidade anti-capitalista – vide o PC da África do

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Sul, o mais influente partido comunista depois da restauração

do capitalismo na URSS - como recuaram depois, em sua maioria

– vide a OLP de Arafat - do projeto de se afirmar até como

Estados independentes.

4 A revolução no Magrehb: o século XXI começou no norte de

África

O ano de 2011 inaugurou uma nova situação internacional

com a onda de revoluções políticas no Magreb. Duas conclusões

se impõem de forma irrefutável ao final de onze meses.

Primeiro, o que aconteceu nas ruas de Túnis e Cairo, e tantas

outras cidades do mundo árabe, merece ser considerado como

revolução no sentido pleno do conceito: uma irrupção legítima

e amplamente representativa da vontade popular com o objetivo

de derrubar as ditaduras. Segundo, o processo revolucionário

se estendeu na forma de uma vaga sincronizada que foi

contaminando, em maior ou menor medida, todos os regimes da

região, pelo efeito arrebatador do exemplo das vitórias

fulminantes na Tunísia e Egito. Mas afirmar que foram somente

revoluções políticas democráticas significa dizer, também, que

não só não realizaram rupturas anticapitalistas, como destacar

que a participação política dos trabalhadores não ocorreu

ainda, predominantemente, de forma independente.

Estas duas formas políticas da revolução árabe não foram,

historicamente, incomuns. As ditaduras do Cone Sul da América

Latina – Argentina, Uruguay e Brasil – foram, também,

desafiadas por mobilizações de massas entre 1982/84. Estes

processos sugerem que existe um padrão recorrente, se

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analisarmos a dinâmica política da época contemporânea.

Parecem corresponder a duas regularidades: (a) regimes

ditatoriais em países periféricos em processo de urbanização

podem se manter no poder, até por algumas décadas, mas serão

derrubados por revoluções democráticas, mais cedo ou mais

tarde, pelo surgimento de um bloco social muito mais poderoso

do que a oligarquia arcaica que os sustentou: um proletariado

e uma classe média asssalariada plebéia massiva; (b) o efeito

exemplo do triunfo de uma revolução democrática, em uma época

histórica em que a informação circula quase instântaneamente,

acelerou a experiência política de massas, e funcionou como um

gatilho que incendiou os países da região vizinha, produzindo

uma internacionalização rápida da revolução.

5 Revoluções políticas e revoluções sociais

Não obstante a radicalidade do processo, é verdade que

estas revoluções democráticas não foram revoluções sociais.

Revoluções sociais são aquelas nas quais a derrubada do

governo coincide com o deslocamento da classe dominante do

poder. Uma revolução só pode ser caracterizada como revolução

social quando se abre um processo de transição ao socialismo.

Mas estes conceitos, como todos os conceitos teóricos, são

aproximativos, portanto, relativos, porque são por definição

generalizações abstratas.

A vitória de uma revolução política significa a queda

abrupta dos governantes odiados, e, simultaneamente, o colapso

do regime político, ou seja, da forma institucional que o

Estado assumia. Nada mais, mas também, nada menos: o poder não

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pode continuar sendo exercido com antes. Conquistam o poder

outros representantes da classe dominante, ou, mais

excepcionalmente, e somente quando as revoluções políticas são

muito radicalizadas, das classes médias que pretendem negociar

com a burguesia. O desenho do novo regime político tem que ser

radicalmente diferente diante da nova legitimidade que nasceu

das ruas e, por isso, quase invariavelmente eleições são

convocadas em prazos maiores ou menores.

Os novos governos provisórios perseguem o objetivo de

desmobilizar as massas em luta e estabilizar o novo regime. No

entanto, todas as revoluções políticas da história

contemporânea tiveram alguma consequência econômica e social.

A revolução portuguesa de 1974/75 derrubou um regime fascista,

desapropriou quase 70% das propriedades que controlavam o PIB

do país, e chegou a existir, por poucas semanas, um governo

provisório em que a representação direta da burguesia era

quase invisível - o V Governo dirigido por Vasco Gonçalves -,

mas a burguesia não tinha sido derrotada: tinha passado para a

oposição ao governo sem perder o controle de uma parte das

instituições do regime. Se o controle do Estado, ou mesmo

somente de uma parcela das instituições do Estado, em

especial, se uma parte das Forças Armadas não escapou à

burguesia, ainda não triunfou uma revolução social.

Quando triunfa uma revolução política, muda o regime

político, mas a ordem econômica e social permanece mais ou

menos ilesa, e as relações de propriedade ficam, para o

fundamental, incólumes. Foi assim na Nicarágua em 1979: a

ditadura sucumbiu, as propriedades da família Somoza foram

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expropriadas para fins de reforma agrária, mas o novo regime

anunciou, desde o início, que iria manter o funcionamento de

uma economia de mercado com uma forte regulação estatal, mas

capitalismo. Os dirigentes sandinistas decidiram, com o apoio

da direção cubana, que a Nicarágua não seria uma nova Cuba.

Todas as revoluções da época contemporânea se iniciaram

como revoluções políticas, porque o ato de derrubar o governo

– a principal instituição de poder de qualquer regime

político, mas não a única - e, quando mais radicalizadas, os

próprios regimes políticos – ou seja, o deslocamento da maior

parte das instituições do Estado, ou a totalidade delas - foi

o ato inaugural do processo revolucionário. O que aconteceu,

nos últimos vinte anos, de inusitado, ou até mesmo inesperado,

é que: (a) revoluções políticas aconteceram contra variados

tipos de regimes, ou seja, governos bonapartistas ditatoriais,

como na Tunísa, Egito, Líbia, Bahrein, Yemen ou Síria, ou

governos democraticamente eleitos, como no Equador, Argentina

e Bolívia; (b) a eclosão de revoluções na forma de ondas

sincronizadas confirmou a natureza da época histórica como uma

época de decadência do capitalismo, mas o desafio de

reconstrução do internacionalismo socialistas permanece

intacto.

6 Interpretações objetivistas e subjetivistas do marxismo

Argumentamos que revoluções são cada vez mais prováveis,

mas que as transições ao socialismo revelaram-se mais

difíceis. Em outras palavras, a surpresa histórica foi que o

bloco de classes disposto a ações revolucionárias foi mais

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amplo do que a hipótese formulada pelo marxismo clássico, mas

a imaturidade do proletariado em assumir a luta

anticapitalista foi também maior do que o previsto.

Uma análise muito diferente que parte de premissas, em

certo sentido, opostas aquelas expostas anteriormente foi

apresentada por Kurz. O enfoque de Kurz foi radicalmente anti-

politicista, portanto, anti-subjetivista, afirmando que já

teríamos assistido a uma mudança de época, mas não porque o

capitalismo tivesse superado as contradições da época do

imperialismo, mas porque teria mergulhado a civilização na

barbárie. Defendeu que o novo quadro histórico, se definiria

pela tendência ao esgotamento da forma mercadoria e pela

anulação do valor, quase simultaneamente a conclusões

semelhantes desenvolvidas por Mészáros. A tese defendida por

Kurz é que as forças produtivas capitalistas de tão maduras,

já começaram a apodrecer: ou seja, defende a possibilidade de

ir além da regulação imposta pelo valor em escala

generalizada, ultrapassando a forma de mercadoria que ainda

assumem os bens e serviços. Estaríamos assim, segundo Kurz,

paradoxalmente, no limiar de uma nova época de barbárie

global. Nunca as possibilidades de emancipar a humanidade da

ditadura da necessidade estiveram tão perto, mas nunca os

obstáculos políticos para avançar no sentido da socialização

da produção e da distribuição foram tão grandes: tão longe e

tão perto, essa é a amarga ironia.

Entre outras razões, segundo Kurz, porque o proletariado

se integrou de forma irreversível: uma nova atualização das

teses “soixante-huitards” vaticinando o aburguesamento dos

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trabalhadores. Mas a discussão ficaria desfocada se

considerássemos a análise do estágio atingido pelo

desenvolvimento das forças produtivas sem o sentido das

proporções, que deve ser apreciado pela dimensão das

necessidades humanas globais. Ainda assim, parece muito

razoável que pelo menos em relação aos bens e serviços com

menor valor agregado que são, por sua vez, os que respondem às

necessidades mais intensamente sentidas, que Kurz tem razão, e

que elas poderiam ser satisfeitas se a produção não estivesse

bloqueada pelas relações mercantis. Esta análise anuncia os

limites históricos do modo de produção capitalista, que

estaria realizando uma curva civilizatória regressiva e

perigosa:

Se, no início do século XX, a transformação do modo de produção

capitalista (...) (imperialismo, economia de guerra,

taylorismo, ideologização das massas, etc.), (...) talvez a

ruptura de época, no final do século XX, exija uma

transformação ainda mais ampla. (...)Só agora, passado o

período de incubação dos anos 80, as novas forças produtivas

pós-fordistas da microeletrônica e seus conceitos correlatos de

racionalização (descritos em seu conjunto, de acordo com o

referencial teórico escolhido, como segunda ou terceira

revolução industrial) mostram seu verdadeiro potencial de

crise: pela primeira vez, a riqueza material (e também

ecologicamente destrutiva) é produzida antes pelo emprego

tecnológico da ciência que pelo dispêndio trabalho humano

abstrato. O capital começa a perder sua capacidade de

valorização absoluta e alcança com isso aquele estágio, ex-

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trapolado logicamente por Marx, no qual a forma de socialização

do sistema produtor de mercadorias – que "repousa no valor" –

esbarra em seus limites históricos. A crise da forma-mercadoria

é, no entanto, filtrada pelo movimento do mercado mundial (...)

luta essa que possibilita (e domina) as próprias forças

produtivas que serão responsáveis pela desvalorização da força

de trabalho. Os capitais mais produtivos abatem

concorrencialmente aqueles que não podem mais acompanhar o

elevado padrão de produtividade, mobilizando para tanto

vultuosas somas de capital fixo. Os velhos perdedores e os

novos retardatários só podem continuar no páreo à custa de

baixos salários (ou ainda trabalho forçado ou escravo)

(...)Podia parecer, à primeira vista, que o processo de crise

transcorreria de maneira escalonada(...) e deixaria por último

as nações mais fortes do ponto de vista do capital, capazes de

sustentar por mais tempo o processo de simulação monetária

através do endividamento do Estado e do sistema de crédito.

Primeiro sucumbiram as economias do Terceiro Mundo e do

socialismo de Estado, que passaram a ser exemplo de uma

"modernização tardia", fadada desde então ao fracasso no

interior do horizonte burguês. Nos anos 90, porém, a crise

parece avançar a passos largos em direção às economias

nacionais estabelecidas.”5

Estamos, portanto, diante de uma análise original, que

identifica nas novas forças produtivas liberadas pela micro-

eletrônica, a capacidade de abrir uma nova época histórica, em

que mudam os fundamentos do processo de acumulação do capital,

e que inaugura uma fase de desenvolvimento que se definiria

5 KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis , Vozes , 1998. p.67-8.

20

tendencialmente pela anulação histórica do valor. A nova época

teria como traços constituintes a crescente barbarização das

relações sociais, como expressão dos limites do trabalho com a

forma mercadoria. Em outras palavras, a proporção de valor

agregado pelo trabalho vivo seria cada vez mais irrelevante,

na medida que a ciência e a tecnologia se emancipam como a

principal força produtiva, e a queda da taxa média de lucro

atingiria tal nível, que o horizonte histórico dos limites da

acumulação estariam cada vez mais próximos.

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, em uma identificação dos

impasses do modo de produção de continuar garantindo a

valorização do capital, condenado à crise de superacumulação,

e à degeneração na barbárie global. Naturalmente decorre desta

análise, de uma radicalidade objetivista que surpreende, uma

nova compreensão do papel dos sujeitos sociais na luta

anticapitalista. Como se poderá conferir no fragmento que

apresentamos na seqüência, Kurz desenvolve a crítica da

esquerda a partir da ótica da necessidade de superar o

politicismo. Afirma a abertura de uma nova época histórica, de

estagnação degenerativa do capitalismo. Coloca-se, portanto,

contra a corrente, em uma linha de crítica irreconciliável da

“terceira via”, e da exaltação de uma nova Renascença. Rema

também contra a maré do socialismo de mercado, a nova

coqueluche da esmagadora maioria da esquerda mundial.

Suas premissas são, na verdade, simétricas: onde a

esquerda politicamente organizada (pós-comunista ou pós-

socialdemocrata) conclui pela perenidade da regulação

mercantil em um processo de transição ao socialismo, Kurz

21

defende a sua caducidade, e a necessidade de ir além da forma

mercadoria e além das formas estatistas. O outro aspecto

original de sua análise é o deslocamento do protagonismo

revolucionário das mãos do proletariado:

Os remanescentes do velho radicalismo chegam a ponto de

denunciar os prognósticos de uma transição iminente para a

barbárie global como ‘falsa certeza’(...) Os náufragos críticos

da sociedade foram de tal modo arruinados pela política e

imbecilizados pela agitação, que só pode lhes parecer amalucada

a tentativa de analisar uma revolução industrial (a

microeletrônica), lançando mão de conceitos teóricos de crise.

Eles tomam por supérfluas tanto uma definição de época, quanto

uma nova historização do desenvolvimento interno do

capitalismo, pois este, concebido em conceitos escolares, nunca

deixou de ser o mal de sempre, imutável (...) Eles não ousam

mesmo acusar de ‘objetivismo’, precisamente, a análise e a

crítica das estruturas (realmente) objetivadas, por terem desde

sempre operado com conceitos burgueses irrefletidos de sujeito

e vontade. Não chega a espantar, assim, que a demanda por uma

supressão da forma-mercadoria e da forma-política, que no atual

estágio da crise do sistema mundial plenamente desenvolvido

deve ser formulada de maneira muito distinta que no passado,

seja vista como reformismo ou fundamentalismo. 6

Todas as grandes revoluções políticas da nossa época

foram, também, revoluções sociais em processo, porque só a

mobilização de massas em grande escala pôde garantir a vitória

das revoluções democráticas. Mesmo quando classificadas como

6 KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1998. p.75-6.

22

democráticas, pelas tarefas colocadas, as revoluções políticas

merecem caracterizadas como revoluções sociais incompletas, ou

interrompidas, pelos sujeitos sociais que foram convocados

para o seu triunfo. A armadilha da história é que as

revoluções democráticas são processos em disputa cujo

desenlace é incerto.

Não eram vermelhas as bandeiras dos jovens que saíram às

ruas de Túnis, do Cairo, da Líbia, do Bahrein, do Yemen, e da

Síria. Inexistem organizações marxistas revolucionárias

importantes no mundo árabe. A revolução voltou à primeira cena

da arena mundial, porém, as massas populares em luta contra as

ditaduras de Ben Ali, Mubarak, Gadhafi, Assad e os outros

califas não fizeram reivindicações anticapitalistas. As

situações revolucionárias abertas nesses países ainda não se

encerraram. Aonde os ditaduras foram derrubadas, a revolução

democrática foi uma antesala de combates de classe cuja

dinâmica histórica será, objetivamente, anticapitalista,

porque a contra-revolução da nossa época histórica foi,

invariavelmente, burguesa. Mas este terrível aprendizado de

que as revoluções democráticas foram revoluções inacabadas

terá que ser feito no calor das lutas que virão, ou seja, com

uma margem de improviso político elevado.

7 Dois perigos teóricos simétricos

Existem dois perigos simétricos de impressionismo na

análise de processos revolucionários como o da Primavera

Árabe: sobreestimar o grau de independência política da classe

trabalhadora e a dinâmica anti-capitalista da revolução; ou

23

subestimar a grandeza da revolução democrática como revolução

popular, em função da fragilidade política da auto-organização

do proletariado. Os dois erros, embora opostos, têm como

fundamento comum um excesso de determinismo sociológico. Em

sociedades que viveram a industrialização de forma ainda muito

incompleta, e a urbanização moderna há menos de duas gerações,

a classe operária costuma ser muito minoritária

proporcionalmente à população economicamente ativa. Este marco

histórico é importante, mas não deve ser exagerado. A

espontânea aliança operária e estudantil que observamos no

Egito, e na maioria das situações revolucionárias do mundo

árabe, sinaliza que um proletariado, politicamente,

inexperiente, pode ser socialmente muito mais poderoso que o

seu peso demográfico.

Os últimos 150 anos têm sido pródigos de exemplos de

revolucionários socialistas que generosamente foram vítimas do

auto-engano em relação à avaliação das situações e conjunturas

nas quais estavam chamados a atuar. A aferição das relações de

força entre as classes é com certeza uma das questões

decisivas do abecedário marxista, o que não impediu que os

impressionismos “derrotistas” ou “ufanistas” tenham sido

recorrentes. Nem Marx e Engels ficaram imunes a esse tipo de

erros. A seguir uma arguta localização do tema, ou seja, das

medidas subjetivas do tempo, e da pressa dos revolucionários,

feita por Gorender:

A sofreguidão de Marx e Engels não é difícil de explicar. A ex-

pectativa de realização de um ideal revolucionário não pode ser postergada para

24

além da vida do revolucionário. Se este não tiver em vista a possibilidade do êxito do

seu esforço ainda em sua geração, estará, na verdade, adotando um credo religioso.

A esperança da realização de um ideal pelas gerações seguintes equivale à fé na vida

após a morte, à crença no sobrenatural. O revolucionário luta para que ele próprio e

seus contemporâneos façam a revolução. E se convence de que sua

perspectiva é acertada. Marx e Engels se distinguiram dos

utopistas sectários pelo projeto de elaboração de bases cien-

tíficas para o objetivo comunista e pelo encaminhamento do

movimento operário no sentido da luta política. Mas se

identificavam com eles no que se refere à paixão

revolucionária(...) O que sucede é que, ao lutar pelo triunfo

revolucionário em seu proprio tempo, os revolucionários, no

melhor dos casos, contribuem para que a revolução triunfe em

algum tempo. No deles ou no dos seus sucessores.”(grifo nosso)7

Assim como as revoluções podem ser confundidas com a idéia

da revolução, também se pode, de forma precipitada, confundir

a crise do socialismo, ou melhor, do movimento socialista, com

uma crise das revoluções. São, evidentemente, dimensões muito

diferentes da questão. As revoluções políticas e as revoluções

sociais são um fenômeno histórico anterior à divulgação das

idéias socialistas e, embora tenham estado associadas no

século XX à preponderante influência do marxismo nos

movimentos sociais, em especial no movimento operário, é muito

duvidoso que venham a diminuir a sua frequência.

Evidentemente, sem revoluções, o projeto socialista perde sua

vigência. Não obstante, a precipitação de situações

revolucionárias, embora condição necessária, demonstrou-se,7 GORENDER, Jacob, Marxismo sem Utopia, São Paulo, Ática, 1999, p.16.

25

historicamente, condição insuficiente para abrir o caminho

para transições ao socialismo. A transição socialista é um

desafio que exige condições subjetivas muito mais complexas do

que a derrubada de ditaduras tirânicas. Sem uma reorganização

da esquerda em escala mundial, o futuro do socialismo

permanece muito longe.

8 Cinco dimensões novas do desafio socialista

Isto é assim porque a crise da esquerda e, portanto, do

projeto socialista, é ainda muito grave. Os argumentos

críticos ao marxismo e sua hipótese sobre a transição pós-

capitalista são poderosos e merecem ser considerados. As

dificuldades remetem à questões irresolvidas em, pelo menos,

cinco dimensões diferentes: (1) a crise objetiva do sujeito

social, porque o peso econômico-social decrescente do

operariado teve uma tendência de diminuição sobre o conjunto

da população economicamente ativa, e as diferenciações sociais

dentro do proletariado aumentaram com a reestruturação

econõmica dos anos 80/90, criando obstáculos à afirmação

hegemônica da classe operária sobre a maioria da população

oprimida; (2) a crise subjetiva do sujeito social, já que o

proletariado ainda não demonstrou, pelo menos, nos países

imperialistas, depois do pós-guerra de 1945, o mesmo

protagonismo revolucionário do passado, à excepção, até hoje,

da classe operária portuguesa, ou seja, em um país periférico

do centro, como a Grécia, e, por outro lado, teve muitas

dificuldades de controlar suas organizações burocratizadas;

(3) a crise do internacionalismo, já que a questão nacional se

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confirmou uma pressão ideológica perene ao longo do século, e

a dificuldade do proletariado de se organizar para além de

fronteiras nacionais foi crônica; (4) a crise do estatismo, já

que a experiência da URSS, entre outras, demonstrou que a

expropriação anticapitalista não conduz “em linha reta” à

socialização, pelo menos, sem mobilização permanente e

democracia de massas alargada; (5) a crise das experiências de

democracia socialista e da representação livre do proletariado

nas experiências revolucionárias, já que as experiências de

democracia direta foram fugazes.

Todas essas considerações são tão importantes quanto

polêmicas, e da sua resposta depende a capacidade de gerar uma

nova esquerda marxista que possa ambicionar ter novamente

influência de massas. A inexistência de qualquer experiência

de uma sociedade em transição ao socialismo, neste início do

século XXI, diminuiu a força de atração do marxismo como

programa político nas grandes mobilizações revolucionárias que

eclodiram no mundo árabe. A destruição do internacionalismo

com o divórcio, durante mais de três décadas, das lutas no

Ocidente e no Leste, e a identificação do socialismo às

tiranias burocráticas estão entre as derrotas mais profundas

daqueles que, ainda que divididos em diferentes partidos e

tendências, reivindicam o marxismo. Essas derrotas políticas

antecederam em muito a restauração capitalista dirigida pelos

dirigentes dos partidos comunistas, mas não foram menos

nefastas. Sem a reconstrução do internacionalismo,

infelizmente, o socialismo continua muito longe.