A Memória entre duas guerras: uma História da Memória dos Veteranos da Força Expedicionária...

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Má rcio Bustamante A MEM Ó RIA ENTRE DUAS GUERRAS: Uma Hist ória da Mem ória dos Veteranos da For ça Expedicion á ria Brasileira Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Culturas Políticas Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Patto Sá Motta Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas 2006

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Márcio Bustamante

A MEMÓRIA ENTRE DUAS GUERRAS: Uma

Histór ia da Memór ia dos Veteranos da ForçaExpedicionár ia Brasileira

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da

Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito

parcial à obtenção do título de Mestre em História.

Área de Concentração: História e Culturas Políticas

Orientador : Prof. Dr . Rodr igo Patto Sá Motta

Belo Hor izonte

Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas

2006

2

Disser tação defendida e aprovada pela banca

examinadora constituída pelos professores:

_____________________________________

Prof. Rodrigo Patto Sá Motta - Orientador

_____________________________________

Prof. Celso Castro

_____________________________________

Profa. Mar ia Elisa Linhares Borges

3

Aos meus pais, irmãos e amigos

4

AGRADECIMENTOS

Tendo ingressado no curso de graduação em história da UFMG no ano de 2000,

venho trabalhando com a Força Expedicionária Brasileira e com os veteranos desde 2001.

Durante toda essa fase mantive contato com uma série de pessoas que agora, antes de

qualquer outra coisa, desejo agradecer. Pessoas que, direta ou indiretamente, foram

indispensáveis para que essa pesquisa fosse possível.

Na Fafich sou grato a todos os professores, funcionários e colegas do Departamento

de História, em especial ao meu orientador Rodrigo Patto pela onipresente disponibilidade

e pelo respeito às minhas opiniões e pontos de vista sobre os caminhos da história – a ele

também peço desculpas pelas “confusões” dos últimos meses. Agradeço também todo o

pessoal do Programa de História Oral – coordenadoras e colegas –, local onde estagiei e

aprendi alguns dos elementos que consistem no cerne dessa dissertação. Minhas

gratificações vão, igualmente, para o Prof. Francisco Ferraz da UEL – cujos textos e

observações me ajudaram na confecção deste trabalho.

Outro grupo de pessoas fundamentais à realização desse trabalho foram os veteranos

da FEB. Meus sinceros agradecimentos à ANVFEB seção Belo Horizonte e AECB seçãoRio de Janeiro e, em especial, a ANVFEB seção Juiz de Fora. Gostaria de fazer um

agradecimento individual ao veterano José Maria Nicodêmos, pela sua atenção,

acolhimento e disponibilidade em me ajudar nos tortuosos imbróglios da memória da FEB.

Meus sinceros agradecimentos vão, também, para os amigos que fiz durante todo

esse percurso. Ao Rajão, João Paulo e Luiz Alexandre, amizades extremamente ricas,

justamente pelas suas diferenças e devido à profundidade e beleza da personalidade de cada

um deles. Pessoas com quem aprendi e cresci muito como ser humano e historiador –grandes companheiros que ficarão para o futuro. Devo também considerações a vários

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outros fiéis amigos feitos nessa trajetória, meus agradecimentos ao Davidson, Fael, Dudu,

Enrique, Imara, Mariana, Lu, Humberto, Breno, Cornélio, Frankiw, Galbinha, Ricardo –sobretudo com o apoio das traduções –, João Marcos, Alex e Júnior.

Quanto à família, qualquer agradecimento não será o bastante. À minha família de

Belo Horizonte pelo apoio incondicional não só durante o período que lá residi, mas em

todas as circunstâncias. Meu muito obrigado para a Tia Nolasca, Tio Hilário, Jô e, em

especial, para meu eterno “amigo-irmão” Hilarinho – que você seja feliz em seus planos,

seja para onde você for terá o meu apoio.

Por fim, lembrando que os último serão os primeiros, meus mais sinceros

agradecimentos à minha família de Itanhandu. Eles me forneceram elementos dos quais sou

extremamente grato e que, apesar da vontade, sei que nunca poderei retribuir à altura. Meu

muito obrigado à amizade e solidariedade da Marcela, minha pequena/grande irmã e àsimplicidade, confiança e companheirismo do Caio, meu irmão caçula. Meus mais sinceros

agradecimentos vão para o meu pai, Antônio, que, mesmo na sua maneira introspectiva,

sempre me apoiou e confiou em mim; e também para a minha mãe, Márcia, cuja minha

existência eu devo, bem como tudo o que hoje sou e onde consegui chegar – a ela meu

muito obrigado. Amo vocês.

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Êsses homens que estão na frente não pretendem ser

bichos sobrenaturais, nem pensam em derrotar os nazistas a

gr ito ou a pelego. Êles lutam. Não são muitos, mas lutam – e

lutam honradamente, lutam direito, lutam dia e noite, ao fr io e

à chuva, uma luta penosa. Não precisam que ninguém, aqui ou

aí – exagere o que fazem, em tralalás patr ioteiros. Êles não sãomonstros: são lavradores, trabalhadores de vár ios ofícios,

estudantes, moços de escr itór ios, simples filhos de família – sãorapazes brasileiros que foram mandados para aqui ou vieram

como voluntár ios. E êles dão conta do seu recado.

Rubem Braga

Continuo preocupado com o inquietante espetáculo

proporcionado pela memór ia demais aqui, pelo esquecimento

demais acolá, para não falar na influência das comemorações e

dos abusos da memór ia – e de esquecimento. A idéia de uma

política da justa memór ia é, sob esse aspecto, um dos meus

temas cívicos confessos.

Paul Ricoeur

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é discutir o processo histórico de formação da memória

dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira, que lutou na Itália, durante a Segunda

Guerra Mundial, entre setembro de 1944 e maio de 1945. Abordando os vários momentos

pelos quais passaram: a formação do Corpo Expedicionário, a guerra, a volta para casa e o

longo processo de reincorporação social, analisar-se-á a dimensão essencialmente política

da produção das memórias individual e coletiva. Aspecto esse enfatizado, sobretudo, a

partir da apreciação da relação entre os veteranos e as diversas instituições que

fizeram/fazem parte desse processo: Associações de veteranos, Forças Armadas, sociedade

civil e o próprio Estado. Se originalmente grande parte dos que compuseram a FEB eram

de origem civil, com o tempo vão se aproximando e se identificando cada vez mais com as

Forças Armadas. A despeito disso, certos temas caros à identidade dos febianos nãodesapareceriam nesse movimento, caracterizando, dessa forma, um quadro extremamente

delicado e complexo nas negociações em busca pelo reconhecimento e afirmação de suas

experiências e identidades

Este trabalho fundamenta-se na abordagem da história da memória por meios de

fontes orais, bem como prioriza uma percepção que rompe com a história militar

tradicional, ao procurar distinguir os diferentes níveis de vivência da guerra e do pós-guerra

– altas e baixas patentes – analisando como isso influencia na configuração da memória e

da identidade dos vários sujeitos envolvidos no processo.

PALAVRAS-CHAVE

Memória; Identidade; Veteranos de guerra; Força Expedicionária Brasileira; Segunda

Guerra Mundial.

8

SUMÁRIO

SIGLAS 9

INTRODUÇÃO 11

Memória, identidade e os veteranos de guerra 17

Capítulo I – A EXPERIÊNCIA FUNDADORA 46

I.1 Experiências pessoais: o choque da guerra 47

I.2 A convocação 56

I.3 A guerra 88

I.4 O ‘salto identitário’ 128

Capítulo II – A VOLTA 135

II.1 De volta ao “Lar” 136

II.2 A reintegração social dos ex-combatentes 151

II.3 Os ex-combatentes, as Associações e o Exército: entre resistência e negociação 167

Capítulo III – ENCONTROS E DESENCONTROS DA MEMÓRIA DA FEB 198

III.1 As heranças de 64 199

III.2 Tempo de rememorar 210

III.2 Memória e comemoração 225

CONCLUSÃO 233

FONTES E BIBLIOGRAFIA 238

9

SIGLAS

AN: Arquivo Nacional

AECB: Associação dos Ex-Combatentes do Brasil

ALERJ: Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

ANVFEB: Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira

ANZAC: Australian and New Zeland Army Corps

APERJ : Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro

APM: Arquivo Público Mineiro

AVFEB: Associação dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira

BE: Batalhão de Engenharia

CEB: Corpo Expedicionário Brasileiro

CIA.: Companhia - Subdivisão de um batalhão comandado por um capitãoCPM: Centro de Preparação Militar

CPOR: Centro de Preparação de Oficiais da Reserva

CRIFA: Comissão de Readaptação dos Incapazes das Forças Armadas

CSN: Companhia Siderúrgica Nacional

CVCI: Clube dos Veteranos da Campanha da ItáliaDIE: Divisão de Infantaria ExpedicionáriaDIP: Departamento de Imprensa e Propaganda

DOPS: Departamento de Ordem Política e Social

DSN: Doutrina de Segurança Nacional

ESG: Escola Superior de Guerra

FAB: Força Aérea Brasileira

10

FEB: Força Expedicionária Brasileira

HCE: Hospital Central do Exército

HOESGM: História Oral do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial

INPS: Instituto Nacional de Previdência Nacional

LBA: Legião Brasileira de Assistência

MMSGM: Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro)

NSDAP: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista)

PAMA: Parque de Material da Aeronáutica (Lagoa Santa)

PCB: Partido Comunista do Brasil

PE: Polícia do Exército

RI: Regimento de Infantaria

STO: Serviço de Trabalho ObrigatórioSTJ: Superior Tribunal de JustiçaTO: Teatro de Operações

TOGM: Teatro de Operações de Guerra do Mediterrâneo

UNE: União Nacional dos Estudantes

USP: Universidade de São Paulo

11

INTRODUÇÃO

Que a memória constitui um dos elementos centrais ao entendimento das sociedades,

sobretudo se considerarmos os últimos vinte ou trinta anos, já se tornou lugar comum

afirmar. Entretanto, concordar que essa questão estaria esgotada em decorrência do seu

tratamento ad nauseam seria algo indiscutivelmente equivocado, ou em outras palavras,

crer que devido ao seu intenso uso, muitas vezes de forma indiscriminada, abusiva e

ingênua, a discussão estaria resolvida ou que não apresentasse mais polêmicas seria

incorrer em sério erro – para não dizer perigoso. Em face do que vemos atualmente ser dito

e feito em nome da memória é mais fácil, justamente, afirmar o contrário, ou seja, que

devido à sua onipresença, torna-se urgente e inadiável abordar de forma mais detida

questão tão importante. Certa sobrevalorização dos discursos e práticas de memória que

hoje vemos, é verdade, não é fato inédito; no entanto, a intensidade que se vê agora, quando

pronunciar a palavra ‘esquecimento’ gera constrangimentos e acusações de sacrilégio, éalgo próprio de nossa época.

As formas e canais por onde se manifesta esse boom da memória nas sociedades

contemporâneas são incontáveis: nacionalismos de fim e início de século, comemorações

das mais diversas naturezas, políticas patrimoniais de fundos estatais e privados,

manifestações literárias de cunho biográfico e memorialístico, filmes e músicas1, festivais e

eventos ditos ‘retrô’, em cd-rooms e na internet, projetos voltados ao ‘resgate’ e ‘proteção’

1 No momento em que escrevo este texto, vivemos, sobretudo por meios desses dois elementos das indústriascinematográfica e fonográfica, um nítido ‘retorno’ das décadas de 70 e 80. Artistas e bandas até entãoesquecidos ou em decadência voltam a fazer sucesso e a regravar antigos hits. Festas e shows temáticosganham vez nos espaços de entretenimento das grandes cidades. Quanto ao cinema, tornou-se gosto arefilmagem de filmes que tiveram grande repercussão e se tornaram clássicos naquelas décadas. Em suma, vê-se, não se sabe se gerado ou apenas repercutido pela indústria cultural, uma espécie de “entretenimentomemorialístico” – nos termos de Andreas Huyssen (2000) – aspecto também presente no crescimento dosmuseus interativos e via Web por meio de sites especializados na divulgação de nostalgia.

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da memória de grupos minoritários, desfiles e manifestações públicas, documentários,

programas e até canais de TV, na explosão do registro em sintonia com o avanço das

tecnologias digitais, a obsessão pela musealização do espaço e das coisas, as políticas de

incentivo ao turismo histórico entre outras formas. Ou seja, vê-se que nos, e pelos, mais

diferentes meios – políticos e econômicos, sociais e culturais –, bem como em múltiplos

níveis – Estado-Nação, grandes e pequenos grupos sociais e indivíduos – a questão da

memória tornou-se central. De forma que tal discussão não pode ser, portanto, relegada a

uma posição marginal na interpretação e compreensão das sociedades e dos grupos – sob o

risco da banalização dessa cultura da memória que está em voga atualmente.

Nesse contexto, surgem as polêmicas, questões e categorias levantadas para a

problematização e discussão desse tema complexo que é a relação das sociedades com as

suas memórias e, por extensão, com o infindável processo de construção e reconstrução das

identidades – aspecto esse intrinsecamente ligado às dinâmicas social e explicativa da

memória. Pontos importantes discutidos tratam das questões relativas à falta e, mais

importante hoje, ao excesso de memória. Pode-se afirmar que a ordem do dia no que toca àcondição em que se encontram os debates sobre a memória pode ser sintetizada por termos

como “excesso”, “abuso”, “saturação”, “banalização” entre outros – como vêm atestando

vários autores e estudos específicos.

Essa obsessão pela memória evidencia para as próprias sociedades o fato de que elas

têm e vêm de um passado, de forma que se deve valorizar e considerar os esforços pela

busca e manutenção da memória, não se esquecendo, entretanto, de se debruçar sobre os

problemas e a maneira como essas estão sendo produzidas, difundidas e consideradas pelos

respectivos grupos e/ou indivíduos. Polêmicas em torno dos estereótipos políticos e

culturais, as estratégias do(s) poder(es), a onda consumista de memória, a autoridade dos

13

que falam em nome dela, entre outros pontos, são fundamentais ao entendimento e àcondução de um painel que nos leve à liberdade e não à tirania da memória e da história.

Ocorre que este boom acaba por submeter muitas outras memórias e histórias, na medida

em que se criam identidades autoritárias e monolíticas, ou que por excesso de uns se

esqueçam de outros.

Muitas vezes tenta-se o estabelecimento de identidades harmônicas e coerentes o que

advém, certamente, de leituras problemáticas do passado – causando impasses frente ànatureza fragmentária, para não dizer caótica, dos indivíduos e grupos sociais. A fim de

evitar tais configurações, devemos estar atentos para os usos políticos do passado, bem

como para o poder que envolve a construção e o estabelecimento das memórias – sejam

quais forem os níveis em que esses processos se dão.

Desse modo, questões acerca da forma como se faz a seleção e divulgação do

passado, as polêmicas sobre o que e como deve ser lembrado e porque, bem como quem

está envolvido devem estar sempre em pauta. Paralelamente, temos que ter ciência de que

“nem sempre o culto à memória serve às boas causas”2, lembrando que a valorização da

memória e das comemorações foi levada ao extremo na Alemanha Nazista, na ItáliaFascista e sob o Stalinismo na URSS – o que não é verdade no caso da maioria das

democracias, pelo menos até algum tempo atrás e em certos países. Para Todorov, deve-se

também lembrar que, intrinsecamente, a memória não é nem boa nem má, dependendo, na

verdade, de que forma a mesma se apresenta e como se articulam os vários elementos que a

compõe e que estão em jogo na sua difusão. A memória deve servir ao homem e nunca a

ela mesma ou a qualquer outra coisa que não seja o homem, de modo que “o passado

2 TODOROV. Tzvetan. “Memória do mal, tentação do bem. Indagações sobre o século XX”, p.189.

14

sacralizado não nos evoca nada além dele mesmo, porque o mesmo passado, banalizado,

nos faz pensar em tudo e em qualquer coisa.”3. Em outros termos, se quisermos nos livrar

de quaisquer formas de absolutismos ou essencialismos – a memória sacralizada –, bem

como da relativização onde vale tudo – a memória banalizada –, é inadiável trazer tais

temas ao pensamento e à discussão.

Ambas, memória e história, são representações do passado e se definem por, entre

outras coisas, ter o passado como matéria-prima, de modo que, frente a mais simples

definição de memória, ou seja, que ela é a presença do passado no presente, não nos

surpreenderia ver a história também a partir desse prisma. Outros elementos viriam opo-las:

a história buscaria a verdade, ao passo que a memória a fidelidade; os princípios tambémdivergem, de modo que a história deve ser impessoal, enquanto a boa memória visa o

interesse pessoal4; os regimes de veracidade diferem também, já que “nossas lembranças

são irrefutáveis, pois valem por sua própria existência, e não pela realidade a qual

remetem.”5, o que não acontece com a história. Dessa forma, pode-se afirmar que a

memória é a ‘reconstrução’ de um real, ou melhor, ela é o real para aquele que rememora,

pois a memória se estrutura de forma a estabelecer uma identidade. Nesse contexto, éfundamental que se processe o que Todorov chama “Trabalho de memória”, ou seja, nãoapenas ‘resgatar’ a memória, mas sim pensar a denúncia, o luto, os sofrimentos e opressões,

realizar uma espécie de sedimentação e depuração do passado. Não deixando de chamar a

atenção para a autonomia da memória, impedimos outros usos, também possíveis, mas que

3 Ibidem. p.195.4 Deve ficar claro que não pretendo uma definição “objetivista” da objetividade em história – a minhaintenção aqui é atribuir um sentido filosófico acerca da diferenciação entre a história, que é uma ciência –com seu regime específico de verdade e que agora não vem ao caso – e memória que, se não portadora de uminteresse pessoal como, por exemplo, a preocupação explícita com o estabelecimento de uma identidade , nãopode ser vista como tal.

15

se enquadrariam numa “má memória”, ou seja, de caráter essencialmente utilitário e

politiqueiro.

A sacralização, a mitificação, a banalização pelo excesso e pelo consumismo, os

abusos das comemorações, a vitimização e a heroicização, entre outras possibilidades, são,

na verdade, uma apreciação da memória vista a partir de um foco em que não se valoriza o

seu estatuto próprio, que a vê de forma “piedosa” e submetida pela história. Enfim, é uma

forma de memória que engole o indivíduo e que torna, para ele, o passado algo pouco

palpável e distante – a singularidade das experiências não significa uma desimportância

universal, mas, muito pelo contrário, dá a importância da memória e da depuração do

passado nos termos da “boa memória” necessária a todos os homens.

Pretendo, então, fazer um trabalho de história da memória vendo esta na perspectiva

do que Todorov6 denomina “boa memória”, ou seja, percebe-la enquanto um objeto da

história sem, no entanto, anulá-la enquanto portadora de um estatuto, significação e

conhecimento próprios. Deve-se, dessa forma, colocar de lado certa crítica objetivista àmemória, pois, independente do caráter ‘falso’ ou ‘verdadeiro’, manipulatório ou não da

memória – se ela representou algo para alguém, e esse alguém vive e estabelece

representações e práticas com base nessa memória – ela tem a sua validade enquanto

memória mesmo. Enfim, deve-se tomar a memória como objeto considerando a sua

peculiar dimensão veritativa, valorizando assim o seu estatuto próprio e independente da

história. A memória tem menos a preocupação em conhecer o passado do que agir no

presente – ela atualiza o passado no presente com vistas ao futuro, ou seja, estabelece uma

coerência e uma identidade ao tempo que é fragmentado. E tudo isso de forma não apenas

5 TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.151.

16

racionalmente calculada, ou percorrendo caminhos estranhos aos indivíduos, na verdade, os

únicos e verdadeiros sujeitos do rememorar. Pelos caminhos que vêm sendo indicados – a

afetividade e os sentimentos, a preocupação com a fidelidade das lembranças e com a

identidade etc. – os indivíduos, num processo que é essencialmente político, pois fruto de

um diálogo, bem como de disputas e polêmicas, com outras temporalidades, outros

indivíduos e grupos, processa a sua memória com a finalidade de agir no presente, ou

simplesmente, viver.

Pelo lado da história da memória, esta consiste numa das ramificações da história que

mais se desenvolveu nas últimas décadas – em menor escala no Brasil, é verdade. Prova

disso são os vários temas que já se tornaram consagrados nessa área, como por exemplo, a

memória dos partidos, do proletariado, dos comunistas e de várias correntes políticas, as

das resistências francesa e italiana, dos judeus, a dos ex-internos em campos de

concentração e dos recrutados pelo STO – Serviço de Trabalho Obrigatório –, das regiões

sob ocupação durante as guerras do século XX, dos veteranos de guerra entre outros.

Algumas vezes usa-se a história da memória para explicar eventos de grandes proporções,

como o caráter dos regimes pós-guerra nos países que tiveram uma forte resistência – esta

sempre fragmentada; noutro caso para elucidar a situação do Exército Francês às vésperas

da Segunda Guerra que, em decorrências do frescor dos traumas de 1914-18, não se

preocupou em atualizar a sua doutrina; e até a recente onda nacionalista no Leste Europeu

como um ressurgir de valores até então reprimidos pelo comunismo soviético e que, atéentão, percorriam caminhos de uma “memória subterrânea”7 entre outros vários exemplos.

6 Cf.: TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”7 Cf.: POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,1989, p. 3-15.

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Por outro lado, a história da memória também colaborou com o aprimoramento nãosó da disciplina, mas também dos historiadores. De modo que se a memória tem uma

história, isso significa que essas duas categorias não se explicam por uma relação de

oposição. Em outro nível, analisar as representações do passado na história, acaba nos

mostrando, na prática, que esta é também uma forma de memória coletiva e que, portanto,

os historiadores ou quaisquer estudiosos do passado não são os detentores da verdade

histórica, posto que estejam percebendo o passado, na verdade, sempre a partir de

demandas do presente8. Por fim, vale colocar que a memória, obviamente, varia de acordo

com os indivíduos e grupos sociais, bem como nos diferentes momentos históricos. Hámomentos em que ela é mais ou menos valorizada – modifica-se de acordo com a relaçãoestabelecida entre “experiência” e “expectativa”9 –, bem como grupos em que é mais ou

menos considerada, e é daí que podemos vê-la enquanto objeto da história. Desse modo,

portanto, enfoquemos, a partir de agora, o processo de configuração da memória num dos

sujeitos protagonistas do “Extremo” século XX, a saber, os veteranos de guerra.

vMemór ia, identidade e os veteranos de guer ra

A memória, antes de consistir num espaço povoado por lembranças empoeiradas e

sem importância, é formada por uma complexa interação de diferentes temporalidades que

habitam os sujeitos no decorrer de suas vidas. Passado, presente e futuro, “experiências” e

“expectativas”, estão sempre em ‘jogo’ e, em companhia dos sujeitos que nos rodeiam,

8 Cf.: ROUSSO. “A memória não é mais o que era”. In: FERREIRA, Marieta de Morais. “Usos e abusos dahistória oral”. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.9 KOSELLECK, Reinhart. “‘Espacio de experiencia’ y ‘horizonte de expectativa’ dos categorías históricas”In: “Futuro passado. Para una semántica de los tiempos históricos” Barcelo: Ediciones Paidós Ibérica, 1979.333-358p.

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serão os responsáveis pelo estabelecimento de algo imprescindível aos indivíduos: a sua

identidade – o que evidencia a dimensão prática da memória.

Memória e identidade são produtos de um incessante trabalho artesanal – quase

sempre inconsciente – dos indivíduos, trabalho este sempre em diálogo com as experiências

e as necessidades dos sujeitos. Esse dois elementos são frutos de disputas intricadas e duras

lutas, diálogos, investimentos, aceitações e incompreensões, por vezes enfrentam políticas

de repressão, esquecimento e exclusão, e competem, também, em lutas pela justificação e

legitimação dos poderes, ou seja, são uma espécie de capital simbólico extremamente caro

aos indivíduos. Dessa forma, fica clara aqui a dimensão política desses dois elementos, bem

como a sua complexidade.

Seguindo uma proposta de Todorov10, segundo o qual as experiências extremas

consistem em momentos decisivos, e até de mais fácil apreciação, para o entendimento do

comportamento humano, apresento o tema a ser discutido: a experiência e a memória da

guerra. Ou seja, estou vendo, não na mesma intensidade que Todorov atribui à experiência

concentracionária, a guerra como portadora do caráter de uma experiência traumática – o

que significa alterações permanentes e irrevogáveis em quem quer que passou por isso, seja

militar ou civil.

Experiências traumáticas ou catastróficas como as guerras geram profundas

remodelações identitárias, com implicações em praticamente todas as esferas sociais –dependendo do tamanho e da intensidade que um conflito assume, bem como do grau de

envolvimento das populações. Vêem-se fortes impactos, também – e nesse caso isso é‘privilégio’ dos soldados –, na estrutura dos sentimentos, ou seja, ocorrem drásticas

10 Cf.: TODOROV, Tzvetan. “Em Face do Extremo” Campinas: Papirus, 1995.

19

alterações no âmbito das suas relações com a família, classe e gênero, bem como no que

toca à identidade nacional. No século XX, são as duas guerras mundiais responsáveis por

impactos determinantes no processo histórico, redefinindo-o, na verdade, nos múltiplos

níveis. Na Europa, por exemplo, sabemos que é impossível compreender o século XX sem

tratar das guerras e dos veteranos que voltavam para casa, seja qual for o tema: desde moda,

passando por economia e política, até as manifestações culturais e artísticas. No entanto,

para nos atermos somente aos que participariam diretamente dos conflitos, como se dava

esse trauma? E, de modo geral, quais foram os impactos específicos sobre esse grupo?

Conversando com veteranos de guerra, percebemos o peso dessa experiência de

imediato, a partir do simples fato de que a maioria deles, posteriormente, acaba

organizando suas memórias em função dela, ou seja, a biografia de um ex-combatente,

geralmente, se divide em antes, durante e depois da guerra. Cronologia também aplicada ao

século XX: o pré-guerra, a I Guerra Mundial, o entreguerras, a II Guerra Mundial, o pós-

guerra e a Guerra Fria11 – o que deixa claro que a guerra faz parte da estrutura da história e

de grande parte das memórias do século passado. Sobre os impactos da I Guerra Mundial,

Walter Benjamim afirmou:

“No final da guer ra, observou-se que os combatentes voltavam mudos doscampos de batalha não mais r icos, e sim mais pobres em exper iênciacomunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxur rada de livrossobre a guer ra nada tinha em comum com uma exper iência transmitida deboca a boca (...) Porque nunca houve exper iência mais radicalmentedesmoralizadora do que a exper iência estratégica pela guer ra detr incheira.”12

E ainda o autor coloca, posteriormente, que uma geração que foi à escola a cavalo, se

encontraria, de repente, num lugar em que tudo entre as nuvens e a terra seria transformado

11 Cf.: HOBSBAWM. “Era dos Extremos – o breve século XX, 1914-1991” 2o edição. São Paulo: Companhiadas Letras, 2001.12 BENJAMIN. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, p.198.

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pelo turbilhão de fogo e ferro lançado pelos exércitos em guerra. A guerra total, com os

seus mecanismos coercitivos, envolveria todos, de uma forma ou de outra, no evento

bélico: conscrição militar universal como pré-requisito à cidadania, a implantação e

generalização da lógica industrial, a instrumentalização dos sentimentos nacionalistas e de

certo espírito romântico até as vésperas de 1914, a conseqüente valorização do profissional

militar, o novo espaço aberto às mulheres entre outros elementos, acabariam por criar uma

realidade de onde todos sairiam, na verdade apenas os sobreviventes, radicalmente

transformados.

Todos sabem, e não se alongará aqui por questões práticas, das condições e da

situação a qual foram reduzidos os soldados na guerra de trincheiras: mares de lama,

invernos congelantes, fome, doenças de toda natureza, a banalização da violência e da

morte, a convivência com ratos, baratas e piolhos, corpos em putrefação para todo lado, as

neuroses de guerra, até então ignoradas13, o cansaço, a saudade de casa, a falta de um

sentido para aquilo tudo entre outros pontos. Todas essas condições em que viveram os

soldados durante a I Guerra foram imortalizadas pelo romance do então veterano alemãoErich Maria Remarque, “Nada de novo no Front” de 1928, na verdade um libelo pacifista

lançado no entreguerras pretendendo evitar o que já era provável desde a assinatura do

Tratado de Versalhes: uma outra guerra mundial.

13 A neurose de guerra, conhecida atualmente por “transtorno pós-traumático”, era vista durante a I Guerracomo nada mais do que covardia e medo – seja pelos oficiais comandantes, seja pelos soldados nãoacometidos por ela, obviamente. Na verdade, até a II Guerra Mundial, quando conceitos como neurose deguerra, fadiga ou exaustão por combate começaram a ser levados a sério – inclusive, a partir de então,unidades de neuropsiquiatria seguiam os soldados de perto, a FEB mesmo teve a sua – muitos os viam compreconceito. Tornou-se célebre passagem em que o general norte-americano George Patton humilhou empúblico um soldado de sua divisão que se encontrava na enfermaria em função de exaustão e crise de pânico –esse último também comum em situações extremas como as guerras. No entanto, é verdade que, por ordensdo alto comando aliado – na época sob responsabilidade do general Eisenhower, o “Eike” – Patton foiobrigado a pedir desculpas, em público, para o tal soldado. Sinal de que as coisas vinham mudando, mesmoque de cima para baixo.

21

Se a situação melhorou um pouco na II Grande Guerra, isso não significa que os

soldados passaram por menos dificuldades. O fato de serem arrancados dos lares e jogados

em uma linha de combate enfrentando duras condições, a morte de amigos, a escassez de

elementos essenciais a uma vida saudável e coisas do gênero, fez desse conflito,

igualmente, mas em proporções ainda maiores, um turbilhão transformador da vida de

milhões de pessoas. A sensação de ruptura e a instabilidade emocional e identitária, como

sabemos, tornaram-se problemas que percorreriam todo o século XX, para não citar os

reflexos que ainda hoje enfrentamos.

Ao contrário das guerras anteriores ao século XVIII, quando os conflitos envolviam,

sobretudo, militares profissionais e pequenas parcelas da população regidos por regras de

cavalheirismo, as guerras do século XX deram aos soldados uma sensação de pequenez e

inutilidade, num contexto em que potências nacionais e complexos industriais disputavam

territórios e vantagens políticas e econômicas, na maioria das vezes, alheias à sua

realidade. Por incrível que possa parecer essa afirmação, as guerras modernas forçam,

muito mais do que as anteriores, uma desumanização intensa. A própria estrutura de

coerção que mantém um soldado no front, bem como faça com que obedeça as ordens, éradicalmente alterada – agora, “a dinâmica da batalha moderna coage de uma forma mais

efetiva do que qualquer sistema de disciplina...”14. São “forças incógnitas”, que jamais

podem ser revidadas ou contestadas, que dominam os campos de batalha na modernidade,

aprisionam os indivíduos e os mantêm reféns das cargas mobilizadoras das artilharias, das

movimentações de gigantescos exércitos motorizados estando, no final das contas, restritos

a pequenas atividades e funções minúsculas frente a todo esse processo.

14 KEEGAN. “A face da batalha”, p.303.

22

Na verdade, a guerra moderna pretende ser racional, ou melhor, se percebermos de

perto a sua dinâmica, assemelha-se a uma imensa burocracia em funcionamento – e, de

fato, as I e II Guerras Mundiais são extremamente burocráticas. Mas é claro que, na

dimensão dos soldados que estão em suas trincheiras ou fox-holes, a guerra não se resume a

isso, pois as afetividades – o medo, o ódio, a solidariedade etc. – e suas identidades estãoem plena transformação. Desse modo, por mais que o discurso político procure legitimar a

guerra ou, como temos visto desde o pós-guerra, sobretudo nos últimos anos, certa

preocupação em mostrar a guerra como algo “limpo”, “exato” e de “objetividade cirúrgica”,devemos saber que:

“O que as batalhas têm em comum é humano (...) O estudo da batalha é,por tanto, sempre um estudo do medo e, normalmente, da coragem; sempreda liderança, comumente da obediência; sempre da compulsão, às vezes, dainsubordinação; sempre da ansiedade, ocasionalmente da ilação ou catarse;sempre da incer teza e da dúvida, ausência de informação e compreensão,normalmente também da fé e eventualmente da visão; sempre da violência,esporadicamente também da crueldade, do auto-sacr ifício, da compaixão;acima de tudo, é sempre um estudo da solidar iedade e costumeiramentetambém da desintegração – porque é a desintegração de grupos humanosque a batalha visa.”15

A partir dessas constatações, bem com de que a experiência bélica levou-nos ao

extremo, pode-se retomar a afirmação de que os impactos sobre cada soldado,

posteriormente veteranos de guerra, serão profundos e permanentes. Portanto, resumidos

aqui os fatores em jogo no contexto de uma guerra, dediquemo-nos, agora, àstransformações perpetradas – sobretudo após a volta para casa e durante o complicado

processo de reincorporação social.

vNa Odisséia de Homero, Ulisses volta para casa, Ítaca, após 20 anos de ausência e,

em decorrência disso, não a reconhece logo de início. Não a reconheceu, também, porque a

23

deusa Atena deixou o ar a sua volta denso, a fim de que primeiro “despertasse para as

coisas” para depois entrar em contato direto com a realidade que há muito deixara para

trás16.

É através do caso mais famoso de retorno para casa da literatura mundial, que Alfred

Schutz inicia um interessante artigo sobre a experiência dos soldados que vão para a guerra

e depois voltam – encontrando sérios problemas para restabelecerem a normalidade17.

Segundo Schutz, para aquele que retorna ao lar, num primeiro momento, este lhe parece

outra coisa que não aquele “Lar” harmônico e aconchegante de antes. Sobre o conceito de

“Lar” ele coloca:

“‘Lar é de onde se par te’, diz o poeta. ‘Lar é para onde o homem tem aintenção de retornar quando está longe’, diz o jur ista. O lar é o ponto depar tida assim como o ponto terminal. É o ponto zero do sistema decoordenadas que atr ibuímos ao mundo a fim de nos movimentarmos dentrodele.”

E depois:

“O caráter simbólico na noção de ‘Lar ’ é emocionalmente evocativo e difícilde descrever . Lar significa coisas diferentes para pessoas diferentes.Significa, é claro, a casa paterna, a língua materna, a família, o amor , osamigos: significa uma paisagem quer ida, ‘canções que minha mãe meensinou’, comida preparada de um determinado modo, coisas familiarespara uso diár io, costumes, hábitos pessoais – em suma, um estilo peculiar devida, composto de pequenos elementos impor tantes e quer idos.”18

Desse modo, conclui-se que o conceito de “Lar” pode muito bem ser visto em

consonância com as condições da memória do soldado que está prestes a partir de casa e,

nesse ponto, todos esses detalhes passam para ele de modo despercebido, para só mais tarde

serem lembrados. E esse é um aspecto importante, pois o “Lar” refere-se a diferentes coisas

se se está nele, longe dele, ou se retorna para ele.

15 Ibidem. p.278.16 Cf.: SCHUTZ, Alfred. “Aquele que retorna ao lar” In: WAGNER, Helmut R.(org.) “Fenomenologia eRelações Sociais. Textos escolhidos de Alfred Schutz” Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979. 289-302p.17 SCHUTZ, Alfred. “Aquele que retorna ao lar”.18 SCHUTZ. “Aquele que retorna ao lar”, p.290-291.

24

Se interrompida a relação “face a face” do “Lar”, é pressuposto dos indivíduos que

compunham originalmente aquele mundo que, com a volta e o restabelecimento da

condição ‘natural’, tudo possa voltar a seu curso original – como se nada tivesse acontecido

durante o período da interrupção. No entanto, isso raramente acontece – sobretudo quando

a partida e a volta são intermediadas por eventos traumáticos para um dos lados, no caso,

uma guerra. Quem saiu deixa de acompanhar o vivido do “Lar”, mas quando se espera

encontrar aquela situação harmônica de outrora, dá-se o desencontro. Estabelece-se um

conflito de memórias entre o veterano, a família e a sociedade. Na verdade, esse sentimento

de conflito e perda de identidade se inicia antes mesmo do soldado voltar para casa. A

comunicação que se dá por cartas já mostra muito bem o que viria pela frente, bem como as

licenças, em casa, que os soldados franceses e ingleses gozavam durante as I e II Guerras.

O soldado Louis Mairet ficaria chocado, quando de sua licença na retaguarda, ao ver

que a vida de seus familiares e conhecidos continuava como se nada estivesse acontecendo.

“Ficou especialmente aborrecido com aqueles que, ao serem informados de algumas das

condições precárias do front e da tenacidade do inimigo, bocejavam e reclamavam do preçoda carne de vitela”19. Um soldado Inglês, respondendo a um amigo sobre o que falou acerca

da vida no front para a mulher, diria: “Ela não me deu uma chance, ocupada como estava

em me falar do gato da Sra. Bally que matou o passarinho da Sra. Smith, do novo vestido

da irmã da Sra. Cramp, e do cachorro de Jimmy Murphy que tinha destruído a boneca de

Annie Allen”20. No que toca às cartas que vinham de casa, estas

“... eram freqüentemente dolorosas por causa de sua ingenuidade. As ironiassaltavam aos olhos dos soldados: ‘Procure não ser fer ido!’ ou ‘Nós tambémestamos passando dificuldades!’ ‘Meu Deus! Com o quê?’, foi a resposta de

19 EKSTEINS. “A Sagração da Primavera. A Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna”, p. 291. Apud.Diário, 5-12 de março de 1916, Mairet, Carnet, 131-32.20 Ibidem. p.292. Apud. “Literary Digest” , 60-10 (8 de março de 1919), p.105.

25

Delver t. Ao ler esses comentár ios vindos de casa, a sensação era de completoisolamento. As tropas bem que poder iam estar na lua. Viviam e lutavamnum lugar além da compreensão, além da imaginação e até além dosentimento.”21

A partir do momento em que o “Lar” foi rompido, os integrantes desse deixam de

compartilhar as mesmas redes de espaço e tempo – e se expressam, agora, de maneiras por

demais divergentes entre elas, sobretudo o soldado que é o mais afetado. Deixa-se de existir

o vivido cotidiano do “Lar”, sendo que, tanto os soldados, quanto suas famílias deixam de

se reger pelas mesmas coordenadas – estas últimas, vivendo o front interno, tambémpassam por um processo de mudança, que, entretanto, não é tão traumático quanto o

primeiro, além de ser efetuado em conjunto. Ou seja, atualiza-se a memória coletiva sem,

no entanto, a presença daquele que partiu. O que sobra do “Lar” em ambas as partes nãopassa de ‘tipos’ que se fundamentam numa harmonia anterior do “Lar”, idealizada, éverdade, em vista das situações tumultuadas pelos quais passam.

A pessoa que escreve uma carta tem como referência o ‘tipo’ que habita sua memória– sem saber que está sendo influenciada pela situação presente – desde a partida. Por sua

vez, a pessoa que lê, também espera de quem escreve uma compreensão pelo que estápassando, esperando que as relações e as memórias do “Lar” ainda estivessem intactas. “No

entanto, a mera mudança de ambiente faz com que outras coisas se tornem importantes para

ambos, as velhas experiências são reavaliadas, outras novas, inacessíveis ao outro, surgem

na vida de cada parceiro”22. Perde-se a intimidade e o entrosamento na dinâmica da

memória, dando lugar aos ‘tipos’, estereótipos e à saudade. É essa uma das dimensões

traumáticas da guerra.

21 EKSTEINS. “A Sagração da Primavera. A Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna”, p. 293.22 SCHUTZ. Op. cit. p.298.

26

O segundo momento do trauma, mais profundo e problemático, surge com a volta do

soldado para o “Lar”. Sabemos que o estabelecimento da identidade se dá num duplo

sentido: tem que ser aceita pelo grupo ou indivíduo que a forja e, ao mesmo tempo, cumprir

com regras de aceitabilidade e reciprocidade sociais. Vejamos pelo lado do soldado, cujas

mudanças foram mais profundas: este tem uma nova imagem de si, que não vai coincidir

com a imagem que foi construída a seu respeito pelos que ficaram. O único contato com a

realidade do soldado que as pessoas têm se dá através dos estereótipos feitos pela mídia –naquele tom patrioteiro e chauvinista de períodos de guerra já bastante conhecido: rádio,

jornais, filmes etc., para não falar no dirigismo desses, preocupados com fatores

macropolíticos, com a justificação da guerra e a manutenção do moral no front interno23.

Por parte do ausente, uma nova identidade foi estabelecida, que se baseia, inclusive,

numa comunidade de memória extremamente forte e que sustentou o indivíduo durante

toda a experiência traumática da guerra: a chamada ‘comunidade das trincheiras’, que vai

ser, mais tarde também, a sua mais importante base de fundamentação no pós-guerra – pois

são os únicos que satisfazem as condições de identificação e aceitabilidade das suas

lembranças e de sua experiência. Sem esquecer que a experiência da guerra é algo único e

insubstituível. E “não importa o que aconteça, essas circunstâncias particulares são suas

experiências únicas, individual, pessoal, que ele nunca vai permitir que seja tipificada”24. Éaté próprio dos veteranos criarem um sentimento de superioridade em relação ao civil que

não participou da guerra, uma superioridade moral, inclusive, dado que chegou próximo da

23 Como diz o famoso ditado: “Nunca se mente tanto antes de uma eleição, durante uma guerra e depois deuma pescaria”. Creio que a passagem ficou famosa na voz do estadista britânico Sir. Winston Churchill, masnão conto com dados que provem tal afirmação.24 SCHUTZ. Op. cit. p.297.

27

morte, sofreu as piores privações e ainda voltou para casa e não foi recebido como

esperava.

Nesse contexto, a ‘comunidade das trincheiras’ se transforma na coisa mais

importante na vida de um veterano, por questão de necessidades básicas. Foi ela que o

manteve quando de sua saída brusca do “Lar” e, depois, somente ela continuou

compreendendo o que estava passando. O choque da volta é problemático não apenas

devido à incompreensão dos que ficaram, mas também pelo fato de que novas

responsabilidades e atitudes são esperadas de homens que não foram preparados para tanto.

Após o retorno, o veterano sente-se perdido sem a orientação superior e a segurança tãopresente na vida militar – ele se sente como ‘uma criança sem sua mãe’. Tudo isso consistiu

num choque intenso para veteranos das duas guerras mundiais que, a despeito das

promessas governamentais sobre pensões e reincorporação social, tiveram que se virar

sozinhos num mundo que não mais queria saber de guerras e soldados. Enquanto estava em

atividade, todas as suas necessidades eram de responsabilidade do Estado – soldo roupas,

equipamentos, alimentação etc. – criando um forte vínculo que levava o soldado a se

acostumar com esse tipo de relação.

A “memória da glória” dura muito pouco tempo, e o militar deixa de ter o prestígio

das épocas do conflito. Esse descompasso abismal, que fora criado, produz uma profunda

angústia em face da destruição instantânea de elementos até então vistos como imutáveis e

sagrados. A maneira como se é retirado do “Lar”, o trauma da guerra e o choque da volta

destruiriam as referências dessas pessoas. Hoje podemos perceber a ingenuidade dos

28

soldados e a ânsia pela volta daquela harmonia do “Lar” que tanto prezavam em músicas

como esta, de um tommy25 inglês:

“Quando acabar esta guer raMando às favas a caserna.E mais uma vez a paisanaA vida volta a ser bacana.Domingos livres sem paradas,Sem igreja, nem passes, nada.Nosso bom Sargento-ajudanteQue enfie os passes... Ele sabe onde. ”26

Na verdade, os veteranos mal sabiam o que os esperava na volta.

vNa França, a partir de 1919, a população e os veteranos dão início à construção dos

memoriais da guerra – sendo que em 1922 já existiam mais de 30 mil monumentos de pé.Surgem comemorações organizadas não pelos poderes públicos, mas sim pelas Associações

de Ex-Combatentes, caracterizando-se pelo caráter civil, pacifista e antimilitarista dos

eventos. “O que importa é que a festa seja desprovida de qualquer aparato militar. Sem

tomada de armas, sem revista, sem desfile de tropas. Celebramos é a festa da paz não a

festa da guerra”27. Não é a pátria ou nação que é celebrada, mas sim essas que

homenageiam os veteranos e a memória dos mortos e de suas famílias. No entanto, éinteressante lembrar: se na França os monumentos de caráter pacifista e antimilitarista eram

maioria, isso não foi recíproco no Além-Reno, onde predominaram os que glorificavam a

luta, monumentos patrióticos do soldado triunfante e o culto aos soldados tombados pela

nação. Na Alemanha, também, eram inexistentes monumentos em referência ao Dia do

25 Apelido atribuído aos praças do Exército Inglês na I Guerra Mundial. Os franceses eram conhecidos por“Poilu” – cabeludo –, e os australianos por “Digger” – cavador. Já na Segunda Guerra, seriam os “G.I” . –Government Issue – norte-americanos e os “Pracinhas” , no caso do Brasil26 EKSTEINS. Op. cit. p.283.27 PROST & GÉRARD. “História da vida privada – da Primeira guerra a nossos dias”, p.211. Apud.“Journal des Mutilés” , 14 de outubro de 1922.

29

Armistício – ao contrário do que ocorreu na França, Inglaterra e EUA –, ou seja, nãoqueriam saber de nada que lembrasse o humilhante Tratado de Versalhes.

Como se sabe a Alemanha perdeu a guerra, o que conferiu a ela impasses mais graves

do que os vistos nos outros países. O processo de reincorporação foi muito mais

problemático, o acesso a indenizações, pensões e a programas de reintrodução no mercado

de trabalho esteve praticamente ausente até meados dos anos 30. A situação era crítica: sóem Berlim, em 1919, contava-se pelo menos 100.000 inválidos e feridos de guerra

esperando por assistência – e assim a situação permaneceria pelo menos até 1929, quando

as coisas se tornariam piores.

No âmbito nacional, dessa forma, os veteranos tornavam-se cada vez mais influentes,

de modo que sabemos que esses grupos, dado o seu tamanho e importância, freqüentemente

opinavam abertamente acerca de questões políticas da nação, e, no caso Francês, vê-se

muita pressão para o estabelecimento de uma política de defesa nacional pacífica, por

exemplo. No lado alemão, há uma pressão ainda maior dos veteranos junto às estruturas de

amparo do Estado e, na esfera da ação política, eles foram fundamentais na radicalização do

espectro político alemão tal qual se deu na década de 1930 – juntamente com os comunistas

e nazistas. É claro que, às vezes, os veteranos poderiam filiar-se à esquerda, mas é fato que

os ex-combatentes alemães da I Guerra se alinharam, em massa, à direita radical – trazendo

à tona, constantemente, a experiência da guerra e a ‘comunidade das trincheiras’ como algo

a ser reconstruído frente à “punhalada pelas costas” de 1918. Faltava apenas uma

organização ou líder capaz de capitalizar esses ressentimentos e atribuí-los a algum ‘bode

expiatório’ de modo a criar o inimigo que ‘traiu’ a Alemanha e que deveria pagar por isso

numa próxima guerra: os primeiros, o Partido Nazista e Adolf Hitler, o segundo, os judeus.

30

Como se sabe, as bases do NSDAP – Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei

– eram formadas por veteranos da guerra, dentre eles Hitler, que afirmava que a I Guerra

teria sido “a maior de todas as experiências”. Este pretendia a construção de um país que

nada mais seria do que a reprodução em larga escala da vida no front. O que mais era o

Nazismo que não isto, a pura e simples militarização de todas as instâncias da sociedade? E

os veteranos politizavam-se: “A ira de Hitler equivalia à de um número de veteranos

suficiente para proporciona-lhe o núcleo de um partido político, quando em 1921 adotou

posições de extrema direita”28. Mais tarde diria F.W. Heinz, veterano da I Guerra e, anos

depois, chefe das S.A.:

“Aquelas pessoas nos disseram que a guer ra estava terminada. Foi umagargalhada geral. Nós mesmos somos a guer ra: sua chama arde com forçaem nós. Envolve todo o nosso ser e nos fascina com o sedutor impulso dedestruir .”29

Vale lembrar que os partidos eram formados, em sua primeira fase, essencialmente por

veteranos, crescendo e se fortalecendo em quase toda a Europa – na Itália, por exemplo, os

Squadristi fascistas eram formados por 57% de ex-combatentes da I Guerra Mundial30.

A despeito de tudo que foi dito até aqui sobre os veteranos do entreguerras, vale

lembrar que não se pode percebê-los como responsáveis por tudo o que aconteceu.

Sabemos que o Nazismo e o Fascismo consistiram em eventos que foram muito além dos

veteranos, e que o imobilismo das Forças Armadas Francesas até as vésperas de 1939 nãose explica somente pelo trauma sofrido pelos soldados que foram à guerra. Em suma, vale

registrar que a cultura da guerra e os valores e experiências dos veteranos, se não são os

responsáveis pela radicalização política da década de 30, certamente ajudaram a colocar

28 KEEGAN. “Uma História da Guerra”, p.378.29 EKSTEINS. Op. cit. p.391.30 HOBSBAWM. “Era dos Extremos – o breve século XX, 1914-1991”, p.128.

31

‘lenha na fogueira’ – mas não se deve colocá-los, eles agora, como bodes expiatórios, sob o

risco de nos distanciarmos de qualquer coisa que lembre o totalitarismo em nós, bem como

esquecermos de outros grupos igualmente responsáveis pela tragédia.

Outro caso interessante de choque entre memórias de veteranos e da sociedade civil

foi analisado por Alistair Thomson31. Em seu trabalho, vê-se a memória individual dos

soldados e o descompasso que se estabeleceu entre a mesma e a memória coletiva que

colocava a experiência dos ANZAC – Australian and New Zeland Army Corps – como o

mito de fundação da nacionalidade australiana. A “Lenda do ANZAC”, como é chamada,

criou um estereótipo da experiência da guerra de modo que se encaixasse como um

importante elemento no processo de formação da identidade nacional na Austrália – o que

acabava, obviamente, passando por cima da percepção e da experiência da guerra vivida e

sentida pelos soldados. O mito público criado em volta do digger deixava muita coisa de

fora – erros, tragédias, problemas, covardia, neuroses, derrotas, perdas etc, vendo o soldado

como um herói portador de invulnerabilidades física e psicológica. A tragédia do

desembarque em Galipoli – o fracassado desembarque das tropas australianas no territórioturco em 25 de abril de 1915 –, nesse contexto, era glorificada.

O problema é que as memórias dos digger entraram em pane, porque elas nãoconseguiam se identificar com essa visão, e por muito tempo sofreram com neuroses que sóajudavam a piorar o quadro. Achavam-se soldados medíocres e covardes, tinham medo e

eram pouco confiantes – dificilmente conseguiram se restabelecer depois que viam grupos

inteiros de amigos serem exterminados num único ataque e os poucos restantes deles

voltarem mutilados. Qualquer manifestação de medo ou hesitação não era bem visto por

32

um mito de fundação da nacionalidade, induzindo os veteranos a reprimirem seus

sentimentos em vista da imagem pública que deviam manter. O mito nacional, dessa forma,

reprimia os vários aspectos humanos da ‘guerra burocrática’, como as mortes, as

mutilações, os sons e cheiros aterrorizantes, a fadiga, a exaustão nervosa, o estresse, as

neuroses, as crises psicológicas de ansiedade etc. O que, obviamente, gerou grandes

traumas e problemas de reincorporação entre os veteranos.

A longo prazo os problemas só aumentaram, gerando mais constrangimentos e

incompreensão: continuavam não conseguindo empregos, as promessas de apoio do Estado

não foram concretizadas e, além de tudo, foram acusados de abuso da situação em que se

encontravam para conseguir auxílios e vantagens. Apesar de tudo, a “... lenda do ANZAC

funcionou porque muitos veteranos queriam e precisavam identificar-se com ela.”32, bem

como pelo fato de ser a única coisa em que poderiam se agarrar mesmo que desprezassem

parte de suas individualidades – o que, é certo, não sairia de graça.

E no Brasil? Como se deu a questão dos veteranos de guerra? O envolvimento do

Brasil na II Guerra Mundial foi bem mais limitado se comparado aos países citados atéaqui, e isso também vale no que toca ao envolvimento da sociedade em geral com o evento.

O Brasil nunca foi palco de batalhas, e a única presença de tropas estrangeiras em territórionacional foi o estabelecimento das bases no Nordeste pelos aliados e – se considerarmos as

águas territoriais – submarinos alemães que acabaram por avariar ou colocar cerca de 35

navios a pique. No mais, as únicas influências da guerra que a população brasileira sentiria

diziam respeito à falta de alguns gêneros em decorrência da paralisação do mercado

31 THOMSON, Alistair. “Anzac memories. Living with the legend”. Melbourne: Oxford University Press,1994.32 THOMSON. “Memórias de Anzac: colocando em prática a teoria da memória popular na Austrália”, p.94.

33

externo, às filas desde padarias a pontos de ônibus, o gasogênio, às informações via rádio e

jornal e, por fim, uma falida tentativa – pelo Estado Novo e outros grupos como a UNE,

por exemplo – da criação de um clima de mobilização e de estado de guerra. Tudo isso com

direito à criação de campanhas para recolhimento de metal, comissões especiais de trabalho

e economia, ensaios de defesa civil em caso de bombardeio aéreo nas maiores cidades,

legiões de assistência e, por fim, a criação de um clima de medo via mídia governamental.

E finalmente, a partir de 1943/44, a formação de um Corpo Expedicionário a ser enviado

que, parecia, nunca sairia de terras brasileiras. Em suma, a guerra se fixou mais no âmbito

das negociações internacionais e de governo.

Mas porque isso é importante? Essas especificidades, entre outras, do caso brasileiro,

serão de fundamental importância ao entendimento das memórias da guerra até hoje,

passados mais de sessenta anos após a volta. Ao contrário da maioria dos países que

enviaram soldados para o front, todo o processo de formação bem como o contexto em que

ele se deu são muito particulares. Em primeiro lugar o contingente era extremamente

reduzido se comparado ao tamanho da população – pouco mais de 25.000 soldados numa

população de cerca de 42 milhões de habitantes. Pelo menos 2/3 da tropa era formado por

reservistas de 2o e 3o classes, tentativas de burlar a convocação eram regra e não exceção,

os militares profissionais, isto é, de carreira, em sua maioria, tentaram permanecer o mais

distante possível da formação e envio do corpo. De resto, o grupo acabou embarcando para

a Itália com pouco e péssimo treinamento, sem armas e uniformes adequados, com um

péssimo moral, desacreditados de si mesmos e pela sociedade, sem saber para onde iam

nem o porquê, ridicularizados por populares e por alguns setores da mídia – quando estes

conseguiam vir à tona, é claro.

34

Sem entrar nos detalhes das batalhas, a serem tratados posteriormente, o processo de

volta foi mais problemático ainda: foram rapidamente desmobilizados e a FEB dissolvida,

não contaram com projetos sistemáticos de reincorporação social, tiveram as suas

experiências e memórias estigmatizadas pelos grupos políticos que viriam depois de

Getúlio Vargas e, rapidamente, cairiam no esquecimento pela memória nacional. Há certas

questões impressionantes nas fontes e depoimentos que tratam da questão da volta e da

reincorporação dos veteranos: a despeito das variadas vertentes, opiniões e da

multiplicidade de pontos de vista, certas polêmicas, como a dissolução da FEB ainda na

Itália, por exemplo, são unânimes em receber críticas – entre outros pontos. A sensação de

deslocamento é sem precedentes, e os soldados brasileiros já sentiam isso dias após a

chegada, ainda no Rio de Janeiro. Depois vinha o isolamento, sentem-se como um corpo

estranho, apesar de serem vistos como heróis e todos quererem falar com eles e tocá-los, atéesquecê-los para sempre, alguns meses depois. Nas suas faces, o mundo desmoronava

completamente, e essas múltiplas rupturas e traumas dificultariam ainda mais o

estabelecimento de uma identidade e um senso de continuidade e coerência de si mesmos.

E tudo isso era apenas um começo, de muitos outros que ainda viriam pela frente.

vA bibliografia acadêmica existente sobre a FEB é pequena33, e a que se dedica ao

tema a ser aqui discutido, a história da memória dos veteranos, se restringe a uma, que é a

33 Listo aqui as referências de que tenho conhecimento até o momento: LINS, Maria de Lourdes Ferreira. “AForça Expedicionária Brasileira: uma tentativa de interpretação” São Paulo: 1972, dissertação de mestrado emHistória, FFLCH – USP. CABRAL, Francisco Pinto. “Um Batalhão da FEB no Monte Castello” São Paulo:1982, tese de doutorado em História, FFLCH – USP. NEVES, Luis Felipe da Silva. “A Força ExpedicionáriaBrasileira; uma perspectiva histórica” Rio de Janeiro: 1992, dissertação de mestrado em História, Instituto deFilosofia e Ciências Sociais – UFRJ. SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra” São Paulo: 1996,dissertação de mestrado em história, Departamento de História – PUC-SP. RIBEIRO, Patrícia da Silva. “Asbatalhas da memória: Uma história da memória do Ex-combatentes brasileiros” Niterói: 1999, dissertação de

35

dissertação de Patrícia Ribeiro. Indiretamente, a tese de Francisco Ferraz também trata do

tema; quanto ao restante das referências, a temática enfocada é a história das relações

internacionais que culminaram com a declaração de guerra ou sobre a história da FEB

propriamente dita, sua formação e a guerra – essas duas últimas numa perspectiva

essencialmente macroanalítica e da macropolítica, que interessa, agora, apenas a título de

eventual consulta.

Fazer história da memória é fazer a história de como os sujeitos rememoram

determinados eventos ou (re)sentimentos, em determinados períodos, procurando perceber

como compreendem e dão inteligibilidade ao seu passado, bem como os vínculos

identitários estabelecidos por meio das ligações entre experiência individual e o contexto

histórico. Portanto, fica claro que a memória varia de acordo com o momento em que étrazida à tona, uma vez que está sendo chamada à ação e vem em resposta a algo

demandado por aquele momento. Em nossas memórias, contamos o que achamos que

somos e o que queremos nos tornar, memórias são “passados significativos”, lembra

Thomson, que compomos para nos sentirmos confortáveis com nossas identidades34.

Isso exige uma aproximação e abordagem cuidadosas seja do tema ‘memória’, seja

das fontes elencadas para o trabalho. Vale colocar que as fontes base desta dissertação sãodepoimentos orais – no total vinte depoimentos –, embora duas outras tipologias de fontes

servirão de apoio e de baliza para comparação. Isso não quer dizer que a fonte oral, para ser

válida, deve ser confrontada com outras, mas sim que a “análise cruzada”35 sempre

mestrado em História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – UFF. FERRAZ, Francisco César Alves.“A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira (1945-2000)” São Paulo: 2002, tese de doutorado em História, FFLCH – USP. Há ainda alguns trabalhos avulsospublicados, inclusive de brasilianistas, bem como alguns capítulos de livros: Cf.: Referências Bibliográficas.34 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.10-11.35 Cf.: THOMPSON, Paul. “A Voz do Passado - História Oral”. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

36

enriquece uma pesquisa – já que cada espécie de fonte fornece um tipo, formato ou ponto

de vista próprio da realidade. Também não é verdade que a fonte oral seja mais adequada

para se fazer a história da memória – na verdade é tão fundamental quanto as outras.

Devemos ter em mente que uma testemunha, ao falar, “não falará senão do presente, com as

palavras de hoje, com sua sensibilidade do momento, tendo em mente tudo quanto possa

saber sobre esse passado que ele pretende recuperar com sinceridade e veracidade”36. E

essa especificidade da fonte oral deve ser vista como uma potencialidade, na medida em

que nos permite ver e sentir a vivência dos sujeitos, perceber ao vivo a dinâmica da

memória, sobretudo na sua dimensão individual – humana – para além de caracterizações

homogêneas e declaradamente políticas – elementos esse inacessíveis nos arquivos

tradicionais.

Por outro lado, é necessário desconstruir o discurso de depoente – sem esvaziar o seu

sentido próprio – de modo a não cair nas peças que a memória freqüentemente prega na

historiografia. Dentre os vários elementos que compõem a memória, tais quais os

acontecimentos vividos, o vivido por tabela, os marcos cronológicos e personagens, as

cristalizações bem como as regiões mais fluidas37, as tradições e etc., temos que ter em

mente que é necessário perceber o que é o “vivido” e o que é o “recordado”, o que é a

“experiência” e o que é a “memória”, bem como o que faz parte de uma memória herdada

e/ou compartilhada38. Ou seja, daí se vê a necessidade do uso de outras fontes que sirvam

de parâmetro para a análise do recordar em outros momentos que não o do depoimento

apenas – a despeito das dificuldades, e muitas vezes limites, que isso representa.

36 ROUSSO. “A memória não é mais o que era”, p.98.37 POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,1989, p. 3-15.

37

No entanto, deve ficar claro que não se pode eliminar algo que não possa ser

considerado e confirmado por mais de uma fonte, pois dessa forma “corremos o risco de

ocultar a tensão constitutiva própria dos testemunhos”39, ou seja, tomar a memória a partir

de uma noção rasa de objetividade, discussão essa que é de competência da história.

Devemos ver o cruzamento de fontes – sobretudo quando analisamos a memória de pessoas

vivas – como algo que não seja desrespeitoso e nem questione a veracidade daquela

memória enquanto portadora de estatuto próprio. Enfim, sempre todo cuidado é pouco, na

medida em que

“... muitas vezes a comparação se revela inconveniente, ou até ofensiva parao indivíduo. Ninguém vai dizer a uma pessoa que acaba de perder o filho quea sua dor é comparável à de muitos outros pais desditosos. (...) para cada umde nós, a exper iência é forçosamente singular e, de resto, a mais intensa detodas. Existe uma ar rogância da razão que é insupor tável para o indivíduo,ao ver -se despossuído de seu passado e do sentido que lhe atr ibuía, em nomede considerações que lhe são estranhas.”40

A história oral das décadas de 70 e 80, ao procurar criticar as concepções acerca da

relação opositiva entre história e memória, se caracterizou como um instrumento de

pesquisa de forte teor populista, na medida em que acabou aproximando demais as duas

categorias. Isso lhe rendeu críticas que até hoje pairam sobre sua validade e confiabilidade

como metodologia de pesquisa voltada à produção de documentos e, por seqüência, de

conhecimento científico. No entanto, isso não é de se estranhar, já que, superadas as críticas

no âmbito teórico, na prática, ainda, muitos pesquisadores acabam manuseando tal método

de forma equivocada, o que justifica crítica ainda válida hoje proferida por P. Vidal-

Naquet:

38 Cf.: AMADO, Janaína. “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral” História,São Paulo, n.14, 1995. 125-136p. Editora da Unesp.39 DUTRA. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos”, p.79.40 TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.91-92.

38

“Há tr inta anos abundam as obras que tratam de nos dizer o que se passouprecisamente nesse dia, segundo a lembrança de cr ianças e adultosguardadas em fitas magnéticas: elas não representam uma reflexão sobre amemór ia mas precisamente o contrár io. Com efeito, esses livros não tratamde expressar nossa relação como passado mas de supr imir a distância quenos separa dele, fazer como se a representação o tornasse presente.”41 (grifosdo autor)

Por outro lado, se essas críticas ainda são válidas para grande parcela dos trabalhos

que lidam com fontes orais e, mais especificamente, que se debatem sobre a metodologia da

história oral, vale elencar aqui elementos que apontam saídas interessantes a essa

abordagem mais “populista”, como ficou conhecida. Saídas essas que foram, também,

responsáveis por uma maior aceitação da fonte oral nos meios acadêmicos sem, no entanto,

deixar de lado particularidades que vêm desde seu surgimento42. Desse modo, ao

trabalharmos com as fontes orais, algumas considerações devem, necessariamente,

permanecer constantemente no horizonte do trabalho do pesquisador.

A fonte oral, ao contrário de qualquer outra, é construída deliberadamente para

atender às finalidades de uma pesquisa, ou seja, o depoente, encontra-se numa situaçãoatípica, que é transmitir as suas opiniões, pontos de vista, fazendo uma síntese de sua

biografia num curto espaço de tempo em que consiste uma entrevista. Isso é algo complexo

e cansativo para ambos: testemunha e pesquisador – de forma que esses elementos externos

devem sempre ser considerados quando da análise da fonte. O depoimento é uma “fonte

41 VIDAL-NAQUET, Pierre. “El héroe, el historiador y la elección.” In: Los judíos, la memoria y el presente.México: Fondo de Cultura Economica, 1996. p.247. Apud. SEIXAS. “Comemorar entre memória eesquecimento: reflexões sobre a memória histórica, p.77/78.42 Discutirei rapidamente aqui alguns aspectos da metodologia da história oral e das fontes orais em geral Noentanto, creio não ser necessário um tratamento mais detalhado por dois motivos: em primeiro lugar, pensonão ser mais necessário uma preocupação sistemática em legitimar a oralidade enquanto uma fonte deinformações – a fonte oral vem se tornando banal com o tempo e devemos deixar que esse processo siga seucaminho natural. Em segundo, já tive a oportunidade de faze-lo em outra oportunidade. Cf.: BUSTAMANTE,Márcio. “Os pracinhas e a Segunda Guerra através da história oral” Belo Horizonte: 2004, Monografia degraduação em História, FAFICH-UFMG. Sobretudo o Capítulo 1.

39

provocada”43, o que nos propõe a necessidade de uma percepção da diferença entre “açãoocorrida” e “ação contada”. Nesse âmbito, vale lembrar também da importância do

contexto da entrevista e da relação estabelecida entre testemunha e pesquisador na

qualidade dos dados coletados, e sobre isso já existem várias discussões consagradas44,

sobretudo na área da antropologia e da psicologia social – que se apoiam também na

determinação da “tendenciosidade e a fabulação da memória, o significado da retrospecçãoe a influência do entrevistador”45. E dessa forma, ‘distorções’ da memória, invenções,

incoerências, silêncios, exageros, distanciamentos devido à dor que trazem certas memórias

e a imaginação deixam de consistir em impecilhos, passando a elementos próprios da

riqueza do suporte oral e das narrativas.

Procurar informações sobre as redes de sociabilidade, bem como informações

biográficas, as origens, os meios por onde circulam os grupos de que participa entre outros

dados sobre o testemunho, também favorecem uma boa análise – fazendo o que E. Dutra46

chama “sociologia histórica dos testemunhos”. Esse tratamento acaba por potencializar algo

que é bastante próprio das fontes orais, que é permitir que estabeleçamos uma ponte entre a

experiência individual e a vivência coletiva como nenhuma outra fonte permite com tanta

precisão e riqueza. Na verdade, é uma trajetória de campo, prática própria da antropologia

social, que migra para a história via história oral – o que atesta o seu caráter

interdisciplinar. Várias outras categorias e questionamentos podem ser levantados na

43 Cf.: FRANK, Robert. “Questões para as fontes do presente”. In: CHAVEAU, Agnés & TÉTARD, Phillipe.“Questões para a história do presente”. São Paulo: EDUSC, 1999. 103-118p.44 Cf.: BOURDIEU, Pierre. “Compreender” In: BOURDIEU, Pierre (coord.). “A miséria do mundo”.Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p. 693-733. & LE VEN, Michel Marie. “História oral de vida: oinstante da entrevista” In: SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von (org.) “Os Desafios Contemporâneos daHistória Oral.” Campinas: UNICAMP, 1997. p.213-221.45 THOMSON. “Aos cinqüenta anos: uma perspectiva internacional da história oral”, p.52.

40

abordagem dos depoimentos orais. Dentre eles, podemos destacar a verificação da tipologia

do depoimento e do depoente, se uma narrativa apela mais ou menos para a dimensãoindividual e/ou coletiva, a questão da existência ou não de uma autoconsciência de sujeito

histórico e etc.

Por fim, vale colocar que, quando trabalhamos com fontes orais – mas sobretudo

quando o tema é a memória – certos deslocamentos devem ser realizados: seja de modo a

preservar a autonomia desta, seja a bem de uma perspectiva flexível de objetividade e

veracidade científicas. Muitas vezes, nos depoimentos, depois de transcritos e prontos para

análise, fica difícil ter certeza acerca do fato narrado, no entanto, e disso não há dúvida,

sabemos da existência dessa narrativa, ou melhor, de uma memória ou de um estado

discursivo composto com o nosso apoio. Rompendo com a abordagem tradicional – que jáse tornou lugar comum nas ciências humanas – que estabelece uma diferença rígida entre o

“fato” e a “representação do fato”, na medida em que o que mais importa é a repercussãoque um ou outro tem – sobretudo no caso da memória e da sua dinâmica de transmissão e

circulação – um novo quadro de veracidade, mais rico, surge. “A história oral e as

memórias, pois, não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um

campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias”47 – o que nos permite

afirmar que, na verdade, não existe fonte falsa, mas sim abordagens problemáticas e

rasteiras. Em outros termos, é a valorização da esfera simbólica dos fatos e das

representações destes.

46 DUTRA. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos: considerações preliminares” Locus, Juiz de Fora:n.2, v.6, 2000, p.75-8447 PORTELLI. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significados nas memórias e nas fontes orais”,p.72.

41

Isso nos leva ao próximo, e último, ponto fundamental à questão da objetividade em

história oral, que é a questão da representatividade dos depoimentos. Como já afirmei,

trabalho nesta dissertação com cerca de vinte depoimentos, de modo que se pode

questionar: como esse número restrito pode dar conta de um universo de pouco mais de

25.000 ex-combatentes que voltavam para o Brasil e se lançavam no turbilhão do processo

de reincorporação social? Mais uma vez vale lançar aqui os nomes de Paul Thompson, que

tem a preocupação de fazer um levantamento sociológico/quantitativo do grupo a ser

estudado – o que procurei fazer dentro do possível –, e de Alessandro Portelli48 que

trabalha com a noção de “representatividade qualitativa”. A idéia de Portelli é trabalhar

tendo por base os casos mais “excepcionais”, ou que passaram por experiências radicais e

que abram mais possibilidades no que toca ao grupo no qual ele está inserido. Isso

permitiria ao pesquisador vislumbrar o horizonte de expectativa daquele grupo que, em

termos de imaginário, é profundamente determinante no comportamento e na atitude dos

demais. Mas não só por isso uma entrevista é representativa do grupo do qual o respectivo

testemunho faz parte, mas também porque “os textos (...) são expressões altamente

subjetivas de pessoas, como manifestações de estruturas do discurso socialmente definidas

e aceitas (motivo, fórmula, gênero, estilo). Por isso é possível, através dos textos, trabalhar

com a fusão do individual e do social...”49. E concluindo, acerca da questão da objetividade

a partir das fontes orais, usando os instrumentos tradicionais de crítica interna e externa da

história, e apoiando-se numa bibliografia que trata do processo de reincorporação de ex-

48 Cf.: PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias enas fontes orais” Tempo. Rio de Janeiro: vol.1, n.2, 1996. p. 59-72. & PORTELLI, Alessandro. “As fronteirasda memória. O massacre das Fossas Ardeatinas. História, mito, rituais e símbolos” In: História &Perspectivas, Uberlândia, (25 e 26), jul./dez.2001 jan/jul.2002. 9-54p.49 DUTRA, Eliana de Freitas. “Para uma sociologia histórica dos testemunhos...”, p.64.

42

combatentes, é possível dar um bom embasamento ao trabalho com os depoimentos

colhidos.

Seriam os jornais de campanha – periódicos que rodam nas mãos dos soldados da

retaguarda e, quando possível, do front no período de guerra – outra das fontes a ser

mobilizada. Segundo Luis Felipe Neves50, justamente pelo caráter simples e rústico dessas

publicações, é difícil ter-se ciência de todos os que existiram, até porque não houve uma

preocupação sistemática em arquivar esses documentos, de modo que o acesso hoje éextremamente difícil – estando, na sua maioria, em arquivos pessoais de veteranos ou nos

arquivos das associações, sempre de modo incompleto e aleatório. O interesse nesses

jornais se justifica pelo fato deles permitirem vislumbrar certos valores, o espírito de corpo,

o clima da experiência da guerra, as sensibilidades da época, de modo a colocar isso frente

a frente com a memória da guerra de anos depois, a fim de analisar a sua evoluçãodiacrônica.

Por meio dos periódicos de campanha, percebemos a importância da narrativa

humorística, no apoio ao bem estar psicológico dos soldados, bem como na solidificaçãodos laços de solidariedade entre as tropas – o que justifica, no que toca ao comando, a

tolerância de coisas que em períodos normais jamais seriam aceitos. Interessantes são as

críticas e reflexões sobre a guerra e, às vezes, à posição ridícula em que se encontram

lutando por algo que não diz respeito a eles, e que não faz o sentido esperado pelo

comando. Os jornais também evidenciam uma cultura oral, expressões, o vocabulário, o

senso de humor e as aspirações dos soldados naquele momento – informações que se

revelam extremamente ricas para a comparação com a memória da guerra.

50 NEVES. “A Força Expedicionária Brasileira; uma perspectiva histórica”, p.50-52.

43

Quanto às memórias ou diários escritos durante ou depois da guerra, eventualmente

alguns serão usados e citados, na medida em que também cumprem um papel importante no

estabelecimento da memória de alguns veteranos, e de até certos grupos de veteranos onde

circulam textos de colegas ou que se consagraram em seu meio. De qualquer forma, o uso

desses documentos será mais restrito e pouco sistemático, isso porque pretendo privilegiar,

no momento, os depoimentos – principalmente porque disponho de maior base para o

tratamento desses, o que não acontece no caso das memórias escritas.

vDefinido o norte teórico dos principais conceitos e categorias a serem mobilizados,

abordado o papel dos veteranos nas sociedades, bem como elencadas as fontes e a

respectiva metodologia de abordagem; resta agora tratar da estrutura e organização do

argumento que norteará esta dissertação.

Os próximos três capítulos tratarão da história dos ‘três tempos da memória dos

veteranos’. “Tempos” esses não definidos de forma arbitrária, mas em função do que se

pode perceber nas fontes, na bibliografia sobre o tema, nos eventos e nas conversas com

cada veterano. Esses “tempos” consistem numa espécie de eixo sobre o qual se organizam

as lembranças das experiências, são as “fases da vida”, que cada um de nós cria de modo a

organizar as nossas memórias e, por extensão, nossas identidades. É claro que servirãoapenas como um guia geral, de forma que cada “tempo” possui diferentes intensidades,

durações e significados para cada um que recorda. E isso varia de acordo com a trajetóriaposterior à guerra e presente de cada indivíduo.

O pr imeiro capítulo tratará da ‘experiência fundadora’ da identidade que os

perseguiria por toda a vida, ou seja, o choque da participação na composição de uma ForçaExpedicionária que lutaria no maior conflito bélico da história. Farão parte desse capítulo

44

considerações sobre os vários aspectos que se tornariam centrais na conformação da

memória de cada veterano, a saber: a percepção da formação do Corpo Expedicionário, a

guerra, as viagens de ida e de volta, a avaliação de outros sujeitos – mídia, Estado, família,

amigos e a sociedade em geral – bem como a influência de questões macropolíticas que,

depois do conflito, acabariam fazendo parte da nova identidade dessas pessoas. Procurando

fazer um ‘jogo de escalas’ entre as dimensões pública e privada, macro e micro, espero

poder enfatizar a pluralidade de versões e significados das memórias dos veteranos –oriunda das múltiplas interações entre esses níveis.

Tratar das lembranças do processo de reincorporação dos veteranos é o tema do

segundo capítulo. Será feito o mesmo trabalho, ou seja, analisar os aspectos centrais no

estabelecimento da memória da FEB, avaliando agora o segundo “tempo”. Tal qual a

guerra, a reincorporação costuma ser uma experiência traumática para a maioria dos

veteranos, e isso fornece elementos decisivos à trajetória e identidade dos mesmos. Esse

segundo momento se mostra sempre como o de duração mais fluida na memória: para

alguns, poucos dias após a chegada no Brasil já bastaria para que tudo voltasse ao ‘normal’,para outros é um processo até hoje inacabado, sem nos esquecer daqueles que pereceram

nele. Simultaneamente, procurarei evidenciar os caminhos que a memória – ou

esquecimento – da FEB tomava nos âmbitos macropolítico e público/institucional – já que

são elementos que, a todo o momento, estão dialogando e determinando a trajetória e

memórias dos veteranos de guerra.

Por fim, é no terceiro capítulo que abordarei uma fase mais tranqüila e distante dos

turbilhões dos dois primeiros “tempos”. Momento de estabilização e “cristalização” – mas

nunca totalmente – das lembranças. Costuma ser a fase da maturidade da memória, quando

se avaliam as experiências, aprende-se a viver com os traumas e com as passagens ‘mal

45

resolvidas’. É nessa hora também que se faz um “balanço geral”, traçando o ‘testamento’ de

uma vida e atribuindo à mesma uma função para a eternidade – dimensão pedagógica que a

memória sempre traz em seu bojo. Nesse capítulo, será tratada também a atualidade da

memória dos veteranos, abordando as comemorações, festas e Encontros – ou seja, a

caracterização destas e o que significam e como são significadas pelos veteranos. Aqui,

mais uma vez, a pluralidade de versões dadas ao passado e à memória saltará aos olhos.

46

Capítulo I

A EXPERIÊNCIA FUNDADORA

47

I.1 Exper iências pessoais: o choque da guerra

Normalmente, quando pensamos em guerras, soldados, exércitos em movimento e

estados em mobilização, vêm à tona uma série de valores que julgamos próprios desse

distante mundo, conhecido através da leitura de livros e jornais, ou assistindo a noticiários e

filmes pela televisão e cinema. Patriotismo, abnegação, ódio pelos inimigos, austeridade

física e psicológica, disciplina, ordem e altruísmo, explosões de alegria pelo fim dos

conflitos51, rigor, trabalho, disposição etc., seriam algumas das categorias com os quais

observaríamos tais eventos. E os homens que participaram desses embates então,

verdadeiros super-heróis que, finda a guerra, voltam para casa gloriosos, tiram o ‘uniforme’e retomam a vida de onde pararam.

Essa imagem um tanto romântica das guerras, sobretudo as do século XX, é ainda

mais forte em países como Inglaterra, Austrália, Estados Unidos e França, primeiro devido

ao peso que a guerra detém na história desses países e, segundo, porque o voluntariado

consistiu, pelo menos na Primeira Guerra, na maior fonte dos soldados que cerraram as

fileiras dos respectivos exércitos. Tais fatores tornariam o terreno ainda mais movediçopara interpretações que procurassem fugir desses estereótipos, que tanto prejudicariam os

ex-combatentes e a memória daqueles tempos. No Brasil, a questão, dependendo do ponto

de vista, tende a ficar ainda mais dramática, pois na medida em que não há um passado

belicoso ou conflitos de grande envergadura em território nacional – ou mesmo fora, exceto

a Guerra do Paraguai –, menos se compreende a guerra e suas conseqüências sobre os que

dela fizeram parte – e, no que toca à FEB, isso se torna mais verdadeiro.

51A imagem de cidades inteiras em festa e de populações em regozijo após a libertação, tornar-se-ia marcaregistrada das memórias da Segunda Guerra Mundial em função, sobretudo, da cobertura feita pela mídia naépoca e pela filmografia posterior sobre o evento.

48

Certa historiografia mais tradicional ou mesmo a historiografia militar clássica

ajudaria a reforçar esses estereótipos – no Brasil e no mundo –, bem como a tornar o

assunto monopólio de militares estrategistas, especialistas ou pequenos grupos

deslumbrados com a dimensão técnica da guerra52. Afirmando que uma batalha é“decisiva” – adjetivo primordial nesse tipo de análise – historiadores militares e jornalistas

se referem, em geral, às conseqüências em nível de categorias globais e genéricas mais

amplas: como a queda de um general ou político, a derrota de um país, ao expansionismo,

recursos econômicos e questões macropolíticas. Segundo Keegan:

“Por cur ioso mecanismo de deformação profissional, a busca de resultadosdo histor iador militar é quase sempre dir igida a um ou a outro desses doisníveis: ou ao nível dos efeitos imediatos da batalha no poder de combate doexército e na mente do seu comandante, ou ao nível do seu impacto no morale nos recursos da potência que empreende a guer ra. No entanto (...), osefeitos mais impor tantes, os realmente ‘decisivos’ da batalha são maisimediatos e pessoais do que os per tencentes a tais categor ias.”53

Por outro lado, hoje já se tornou comum a crítica sobre essas abordagens mais

‘duras’, o que têm feito da guerra evento mais ‘humano’ – abordagem até então restrita

apenas ao gênero literário54. A revolução historiográfica dos anos 70 para cá possibilitaria

isso, de forma que hoje já contamos com uma bibliografia relativamente extensa tratando

do tema a partir de abordagens inovadoras. No Brasil, a historiografia militar também vem

sendo revisitada, seja por pesquisadores de instituições civis55, seja pelas próprias Forças

Armadas que, no entanto, ainda mantém suas publicações tradicionais – que cumprem

outras funções. Dessa forma, ao contrário de valores como os citados acima, outros vêmsubstituí-los na interpretação do fenômeno bélico: a angústia, o medo, a vergonha, a

solidariedade e a camaradagem, a guerra das baixas patentes, as neuroses, o pânico, a

52Cf.: KEEGAN, John. “A Face da Batalha” Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.53KEEGAN, John. “A Face da Batalha”, p.312.

49

saudade, as práticas de resistência, a desobediência, o autoritarismo, ou seja, as relações

humanas em geral.

E as mudanças não operam apenas no nível da historiografia acadêmica. No âmbito

da memória social essas reviravoltas têm possibilitado a revisão de uma série de tabus e

histórias nacionais. Estas, por muito tempo, estabeleceram noções rígidas da experiência da

guerra, de modo que as mudanças, dessa forma, têm valorizado uma apropriação mais

democrática e humana da história, bem como possibilitado a muitos ex-combatentes, que

não se enquadravam no mito do herói nacional ou do soldado com nervos de aço, que

fizessem as pazes com o passado – depois de décadas de sofrimento, exclusão e

desentendimentos56.

Mas e quanto à FEB? Como se deram as coisas com os ex-combatentes brasileiros?

Diria desde já que trajetória destes, bem como a imagem da FEB na memória coletiva não édas melhores, e não digo isso em termos de que a avaliação a respeito da ForçaExpedicionária deva ser positiva, pelo contrário. O que incomoda é como a memória desse

período, e dos homens que tomaram parte, se configurou durante todo esse tempo, desde

1945. Como veremos, a despeito de certa memória oficial – e vale lembrar que quando uso

o termo ‘memória’, lanço mão dos três elementos que, numa relação complexa e tensa a

formam: ‘lembrança’, ‘esquecimento’ e ‘silêncio’ – vê-se nas entrevistas com ex-

combatentes que a experiência, a memória da guerra e, sobretudo, do pós-guerra, sãoextremamente plurais e fragmentadas.

54O exemplo clássico é o romance de Erich Maria Remarque, “Nada de novo no front”, de 1928.55Cf.: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (orgs.) “Nova História Militar Brasileira”Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. Entre uma série de outras obras seja na área da história, seja no campo daantropologia social.56Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”Melbourne: Oxford University Press, 1994.

50

Nos depoimentos, percebe-se que a experiência da guerra e da volta – essa

completamente silenciada pela memória oficial – detém uma dimensão multifacetada,

contrariando a homogeneidade e a assepsia da memória oficial e da identidade por ela

reivindicada. A relação que se estabelece entre os a(s) memória(s) oficial(ais) – esta, na

verdade, não tão sólida quanto admite ser – e as memórias pessoais vão além de uma

relação pacífica e harmônica, como já se pretendeu mostrar. Vê-se formas de resistência,

rachas na memória, políticas, deliberadas ou não, de ‘esquecimento’, adaptações,

cooptações, ressentimentos, silêncios, revolta e todo aquele leque de elementos próprios do

complicado processo, nomeado por Pollak, do “enquadramento da memória”57. Processo

esse onde as fronteiras do que é o quê são sempre fluidas, encontrando-se em constante

processo de mutação. No entanto, vale lembrar, seguindo as premissas de Thomson em um

de seus artigos58, que não tenho a intenção de me colocar numa posição ingênua de

simplesmente contestar o que ele chama de “mito” – ou memória oficial –, mas sim

perceber como este interage com as reminiscências individuais criando complexas redes de

recordação do passado e geração de identidades.

Analisar os discursos de memória é algo que deve ser feito com cuidado e

sensibilidade, é necessário ter em mente o caráter permanentemente instável dessa

categoria. Devem-se descolar as várias camadas temporais que dele fazem parte, prestando

atenção nos eixos sobre os quais as lembranças se organizam – de modo a compreender

qual é a identidade que, naquele momento, o depoente reivindica, o que ele silencia e o

porquê, bem como as outras identidades que uma vez reivindicou. Desse modo, pode-se

57Cf.: POLLAK, Michel. “Memória, esquecimento, silêncio” Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3,1989, p. 3-15.58 Cf.: THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e asmemórias” Projeto História, São Paulo: 15 abr. 1997. p. 51-71.

51

notar que, grosso modo, a memória dos ex-combatentes se estruturaria em três tempos: a

guerra, a volta, e a atualidade – portando, nessa ‘trajetória’, identidades variadas.

Nesse capítulo, tratar-se-á do que chamarei ‘a experiência fundadora’, isso porque a

vivência da guerra – via participação na Força Expedicionária Brasileira – tem o

significado de um rompimento radical com a vida que se levava até então, bem como com

as expectativas que se tinha da mesma. A participação na guerra lhes traria a consciência de

que eram, agora, lutando no maior conflito bélico de todos os tempos, sujeitos da história –e pelo resto de suas vidas teriam que lidar com essa nova identidade, seja de forma pacífica

ou conturbada. Nas lembranças e silêncios desses senhores, hoje na casa dos 80/90 anos, a

guerra e o pós-guerra assumem, ainda hoje, na maioria das vezes, os papéis de

protagonistas.

Dessa forma, dediquemo-nos agora a entender o significado da guerra para quem dela

fez parte, percebendo como, a partir dessa experiência, forjou-se a base de uma arraigada e

durável/mutável identidade e que, também, consistiu na ‘matéria-prima’ com que os ex-

combatentes lidariam por toda a vida para (re)produzir suas lembranças e identidades.

vS. Ribeiro (82 anos, 3o cia. do 9o Batalhão de Engenharia – 9oBE) nasceu na cidade

de Cristina, sul de Minas Gerais, no ano de 1922. De família pobre, a sua mãe, solteira,

trabalhava como doméstica para sustentar a família – que contava com mais dois meios-

irmãos – e só conseguiria prover todos os filhos com a ajuda do avô. Durante toda infância

e grande parte da adolescência, trabalhou na fazenda do, até hoje amigo, José Ferraz – de

modo que só pôde estudar até o 3o ano do ensino fundamental, e quando completou dezoito

anos alistou-se no Exército – o que, na verdade, não lhe trouxe grandes constrangimentos.

Isso porque, em primeiro lugar, queria conseguir um emprego melhor, numa cidade maior.

52

Tinha a intenção de ir para São Paulo, mas, para conseguir trabalho, era necessário o

certificado de reservista, exigência da nova lei do serviço militar de 1939, o que o levou a

se apresentar em um quartel do Exército em Itajubá – lá, teria de ficar por mais algum

tempo, até que conseguisse a dispensa.

Viria então o ano de 1942 e, com a declaração do estado de guerra do Brasil àAlemanha, a cessão de dispensas seria bloqueada – o que, por conseqüência, o faria desistir

de consegui-la. Além disso, seria transferido para o 9oBE, em Aquidauana, Mato Grosso,

então criado por ocasião da mobilização para a guerra, a fim de integrar a 1oDIE – a

Divisão de Infantaria Expedicionária. De qualquer forma, Sebastião não achou ruim tal

situação, pois, e aqui ele deixa clara a segunda razão que levava os jovens ao voluntariado,

havia uma vantagem em estar ali:

“Estava ali mesmo, não deram baixa mais e...tinha que seguir (...) Aconteceque...sabe de uma verdade também: é que naquela época nós estávamospassando até falta mesmo...por aqui...então todo mundo quer ia ir para oExército, porque lá tinha comida, não é? Tinha comida, então...além disso,não trabalhava, não é? Porque lá era só fazer exercício e tinha comida...”59

Permaneceria lá em treinamento, sendo depois transferido para o Rio de Janeiro,

juntamente com o 9oBE – e de lá embarcaria para a Itália no 3o escalão, em 22 de setembro

de 1944, já vinculado a então recém criada Força Expedicionária Brasileira.

Caso interessante, também, se daria com o ex-combatente J. Pedreti (11oRI – o

décimo primeiro regimento de infantaria de São João Del Rei) –, natural da cidade de Juiz

de Fora. Pedreti trabalhava numa loja de autopeças que, com a crise de escassez do petróleo

em decorrência do acirramento da Segunda Guerra Mundial no restante do mundo, acabaria

mandando-o embora. Algum tempo depois conseguiria novo trabalho, entretanto, pediram-

lhe que conseguisse o certificado de reservista, agora exigido dos empregadores. Dessa

53

forma, devido à mesma situação de S. Ribeiro, teria a sua dispensa suspensa: “Aí a guerra

começou e me seguraram lá...”60.

Por fim, permito-me narrar a trajetória de mais um ex-combatente. A. Neto (81 anos,

I cia/I batalhão/1o RI – Primeiro Regimento de infantaria do Rio de Janeiro) nasceu em

Itamonte em 1923, e com três anos foi morar na cidade de Itanhandu – ambas no sul de

Minas Gerais. Não vinha de família abastada, mas tinha uma situação confortável, o que lhe

permitiu que, com doze anos, fosse para Taubaté terminar o ginásio. Lá ficaria até 1938,

quando decide ir para o Rio de Janeiro fazer o “complementar” – depois, faria vestibular

para o curso de arquitetura na Universidade do Brasil. Durante o “complementar”, como

não estava quite com o serviço militar, fez, conjuntamente, o CPOR/RJ (Centro

Preparatório de Oficiais da Reserva/Rio de Janeiro). Recebeu convite, então, para fazer um

estágio em Petrópolis já como aspirante a oficial, e lá permaneceria por mais seis meses,

indo, depois, parar em Lorena, pois fora designado para tal, por mais oito meses. Depois,

não teria, pelo menos até voltar da guerra, como completar o seu curso de arquitetura, pois

viria de Lorena para o Rio de Janeiro já como tenente da Força Expedicionária Brasileira.

Dentro de mais alguns meses, embarcaria no navio de transporte de tropas norte-americano

USS General M.C. Meigs, em 22 de setembro de 1944, destino: o TOGM – ou Teatro de

Operações de Guerra do Mediterrâneo.

Continuando, incorreria em grave equívoco se, a partir desses pequenos excertos das

biografias – certamente bem mais complexas do que isso – dessas três pessoas, tentasse

articular maiores análises. No entanto, a partir dessas pequenas passagens é possível que se

59 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.60 Entrevista com J. Pedreti, Juiz de Fora, dezembro/2004.

54

apresentem duas considerações sobre o tema que aqui vêm sendo discutido – de modo a

estabelecer os princípios do trabalho que se seguirá.A primeira questão diz respeito à condição traumática que a guerra traz, com maior

ou menor intensidade, para qualquer indivíduo que lhe encare. Até agora, falaram-se apenas

dos caminhos que levaram esses três homens a serem integrados na FEB, ou seja, nem da

guerra, propriamente dita, tratou-se ainda, mas já é possível perceber como ela mudaria

trajetórias de vidas que vinham se consolidando e se definindo, destruindo planos e

aspirações que possuíam até então. E por forçoso que isso possa parecer, mais cedo ou mais

tarde, a vida de todas as pessoas envolvidas diretamente nesse processo seriam alteradas,

valores revistos, identidades reformuladas, expectativas renovadas – ou destruídas –,ferimentos – físicos ou psicológicos – infligidos entre outros eventos. Por outro lado, essa

observação poderia ser contestada, pois não é difícil, também, encontramos ex-combatentes

que narrem suas histórias de vida de forma coerente, reta e homogênea, como se a guerra

não passasse de um encadeamento natural dos fatos. No entanto, deve-se ter cautela com

esse tipo de narrativa, não que sejam formas errôneas de percepção da guerra – não é isso –mas deve-se saber que quem pronuncia tais palavras são ex-combatentes já há seis décadas,

que passaram por muitas outras coisas e, lidando com essa experiência no decorrer de suas

vidas, foram ‘negociando’ com suas lembranças e identidades de modo que, ao entrevistá-los, pode-se ter a sensação de que a história contada é algo padrão, corriqueiro. Mas, na

verdade, é uma memória trabalhada – ou seria ‘tarimbada’ – que, na velhice, tende a

assumir, mas nem sempre, como se verá, certa estabilidade e maturidade próprias dessa fase

da vida.

Mas ainda poderia ser dito: “Existiram os voluntários, eles sabiam o que queriam,

escolheram esse caminho!”. No caso da FEB, sabe-se que o número de voluntários foi

55

mínimo – sobretudo entre os setores que foram às ruas pedir a guerra em função de uma

passageira euforia em decorrência do afundamento dos navios brasileiros em 1942. Nesses

casos, talvez, o choque da convocação tenha sido poupado, no entanto, posteriormente, ele

se mostraria igualmente traumático, na medida em que se criava uma expectativa da guerra

que, mais tarde, se mostraria ridícula. Prova disso é que, na Segunda Guerra, na Europa, o

voluntariado se mostraria muito reduzido em relação ao conflito de 1914-18 As causas

disso? O peso da memória das trincheiras e dos problemas dela oriundos que martelavam

toda a sociedade européia e anglo-saxã. Entre os países que tiveram altos índices de

voluntariado, a despeito de questões como nacionalismo ou idealismos em geral, estudos

recentes61 têm mostrado que as principais causas desse alistamento em massa se devem àpressão dos amigos e colegas – turmas inteiras que formavam companhias e até batalhões

inteiros, ímpeto aventureiro, vontade de viajar e conhecer o mundo – de graça –, diversão,

uma forma de fugir do trabalho e da autoridade familiar, alternativa ao desemprego e àpobreza entre outros aspectos. Nota-se que a maioria das razões, portanto, que levaram

milhões de jovens a se alistarem tinha como pano de fundo expectativas de redenção ou, no

mínimo, melhorias na qualidade de vida – mais tarde, isso só se mostraria como um fosso,

ainda maior, entre a expectativa e a experiência de estar numa guerra.

Quanto ao segundo aspecto que se pode deduzir dos excertos, e nesse caso me refiro

especificamente à FEB, é a pluralidade no que toca às origens dos que a compuseram –bem como das trajetórias pessoais – fatores que se mostram, igualmente, cruciais na

configuração da memória de cada um. Vários são os trabalhos acadêmicos sobre a FEB,

mas até hoje não se chegou a uma conclusão sólida e/ou bem delimitada acerca do ‘tipo

61 Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”Melbourne: Oxford University Press, 1994.

56

médio’ do febiano, bem como quais critérios foram levados em conta no ato da

convocação. E creio que isso seja mesmo impossível, não por falta de fontes ou

incompetência dos pesquisadores, mas simplesmente porque tais características nãoexistiram. Dessa forma, ao estudar a FEB, é com essa paisagem que se tem que lidar.

Se se forem escolher algumas palavras para definir o caráter do processo de

convocação e formação da FEB, certamente palavras como caos, correria, oportunismo,

desrespeito, alienação, autoritarismo entre outras, cairiam como uma luva. Desse modo

avaliar-se-á, agora, como o período da convocação aparece nas reminiscências dos ex-

combatentes – período que, em geral, serve de marco na definição do ‘primeiro tempo’ da

memória desses sujeitos.

vI.2 A convocação

Tendo que cumprir com as obrigações militares para permanecerem no emprego,

muitos dos homens que integrariam a FEB escolhiam fazer o chamado “tiro de guerra”,possibilitando que, ao invés de ficarem permanentemente no quartel, trabalhassem durante

o dia, ou noite, e fizessem o treinamento obrigatório após, ou antes, do trabalho.

Obviamente que isso chateava muita gente, pois além de não ganharem nada – soldo ou

alimentação – saíam cansados de um dia de trabalho para, depois, enfrentarem exercícios

físicos duros e oficiais insensíveis à situação gritando nos seus ouvidos. Outros ainda nem

preocupados estavam em conseguir o tal certificado de reservista, e acabavam indo parar no

exército por meio do sorteio entre os civis – prática corrente desde o Império62.

62 Cf.: MENDES, Fábio Faria. “A ‘Lei da Cumbuca’: a revolta contra o sorteio militar” Estudos Históricos,Rio de Janeiro, vol. 13, n. 24, 1999, p. 267-294.

57

O ex-combatente M. Couto (81 anos, II/11o R.I.), alistou-se e foi sorteado para fazer o

serviço militar e, dado que também tinha de ajudar a mãe, e mais 10 irmãos, via isso como

um grande incômodo. Couto já tivera a oportunidade de conhecer a vida militar quando fez

parte da Força Policial entre 1938 e 43, e, de modo geral, não havia criado gosto por tal

ofício.

“Eu tinha feito uma promessa: ‘Eu nunca mais vou para a força militar ... ’.Então se fala que a gente paga nessa ter ra... um mês depois eu fui sor teado...(...) Apresentei-me ao Exército... aí eu fui servir no CPM: Centro dePreparação Militar ... em traje civil... quem trabalhava durante o dia,estudava a noite; quem trabalhava à noite, trabalhava de dia no Exército... eeu troquei diversas vezes por causa do emprego: ar rumava um empregoaqui, aí mudava para noite e voltava para o dia... e não ganhava nada... oExército não dava nada...”

É claro que Couto desejava o fim daquilo tudo o mais rápido possível, e informa que,

no CPM, ficara estabelecido que os aprovados seriam dispensados, enquanto os outros

seriam incorporados definitivamente às fileiras do Exército que, naquela altura, já previa o

envolvimento do país na Segunda Guerra, procurando, portanto, conseguir novos recrutas.

Mas: “Quando chegou no dia não teve nada disso, todo mundo foi incluído”63. Dessa

forma, a sensação de rompimento com a situação, bem como com as expectativas de vida,

iam, aos pouco, mostrando-se mais profundas.

Sabe-se que grande parte dos convocados, antes das tropas se dirigirem para o Rio de

Janeiro ou mesmo de serem incluídas na FEB, faziam o chamado “tiro de guerra”,permanecendo em casa, passando apenas parte dos dias nos quartéis. Dessa forma, não se

criava um vínculo forte com a vida militar, tornando-se, então, não mais que um fardo a ser

tolerado. A vida dessas pessoas era completamente ligada à comunidade onde estavam64, o

que sugere que a quebra desses vínculos por meio da força, a curto e longo prazos, geraria

63 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.64 McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.286.

58

sérias conseqüências. A curto prazo, como veremos mais adiante, essa violência contra os

cidadãos se mostraria no desinteresse para com a mobilização e a guerra – o que geraria

uma série de formas de resistência. A longo prazo seriam criados desencontros entre, de um

lado, as memórias individuais na sua constante busca por reconhecimento público e

legitimação de suas identidades e, por outro, a rigidez de uma memória oficial que

justificava a guerra em função de discursos grandiloqüentes sobre a pátria e a liberdade

que, como estamos vendo, muito pouco sentido fez para os então recém convocados.

Frank McCann fala de uma prática corrente naqueles tempos que evidenciaria esse

forte vínculo entre os convocados, suas famílias e a comunidade, e mostra como esses laços

contribuiriam para dificultar e fragilizar o esforço mobilizador – dentro e fora dos quartéis.

“O pessoal dos regimentos era, via de regra, or iundo das redondezas [querdizer, o pessoal da ativa – os militares] e muitos deles moravam nas cidadescom suas família, indo ao quar tel cumpr ir seu dever , do mesmo modo queseus vizinhos iam trabalhar em lojas e fábr icas. Quando um homem erareconvocado, a família ia com ele. Em tempos normais esses deslocamentoseram toleráveis e pouco freqüentes, mas quando o 11oRI (...) recebeu 1.600homens do 12o RI de Belo Hor izonte e do 10o RI de Juiz de Fora, e quando o6o RI, de Caçapava, São Paulo, recebeu conscr itos em situação semelhante,as cidades-sedes de aquar telamento começaram a ar rebentar as compor tas.E o que fazer com as famílias quando as unidades se deslocassem para aconcentração da FEB nos ar redores do Rio de Janeiro? As providênciasimprovisadas do Governo para esperar esposas e famílias no Rio de Janeirodevastavam o moral da tropa.”65

O processo de convocação mobilizaria milhares de homens por todo o país – mais de

100.000, já que Vargas, inicialmente, visava o envio de três divisões para o front –, e já na

segunda metade do ano de 1943 se dariam os primeiros testes de seleção. No entanto, sabe-

se que nessa primeira fase, o convocado, para estar à altura dos requisitos mínimos

necessários a um integrante da FEB, teria de ser enquadrado na chamada “classe especial”,ou “classe E”. Esta se baseava nos critérios do Exército norte-americano, que estabelecia a

65 Ibidem. p.286-287.

59

altura mínima de 1,55 para praças e de 1,60 para oficiais, peso correspondente à altura, nãoportar corretor de visão, ter equilíbrio mental e emocional, bem como possuir, pelo menos,

idade mental de 10 anos – entre outros elementos.

Interessante lembrar que, nos depoimentos dos ex-combatentes, há uma informaçãoque freqüentemente é dada de forma diferente por cada um – que é justamente a questão do

rigor dos exames de saúde. Os critérios americanos adotados seriam considerados rígidos

aqui no Brasil, mas uma série de convocados acabariam sendo aprovados e levados a

integrar o Corpo Expedicionário. No entanto, percebeu-se que não seria possível completá-lo, pois a saúde dos brasileiros de forma alguma correspondia às tais exigências – para se

ter uma idéia, o principal item de reprovação nos teste de saúde foi “dentadura incompleta”.Por conseguinte, o Estado-Maior da FEB teria de relativizar os critérios de modo que fosse

possível, pelo menos, a formação de uma divisão. Daí a variação de respostas entre os

depoentes, vários deles falando da rigidez dos testes, ao que outros opõem – bem como

algumas memórias escritas66 – a fragilidade dos mesmos. O ex-combatente O. Arruda (82

anos, II/11oRI), que foi à guerra como sargento comandante de grupo de combate, foi

reprovado nos primeiros exames, pois era baixo mesmo para um praça, mas, na falta de

suboficiais, autorizou-se que “...aproveitassem todos os aproveitáveis.”67.

Com essa ‘flexibilização’ foi possível completar o Corpo Expedicionário, mas, como

se veria durante a guerra, a duras penas – pois a FEB, já na Itália, teria um número

considerado alto de baixas em decorrência de doenças e problemas dentários. Esse

relaxamento também ajudou na imensa demanda por reposição de efetivos, “...para

66 Para dar apenas três exemplos mais conhecidos, Cf.: SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas daForça Expedicionária Brasileira” Curitiba: Edição do autor, 1985. & ARRUDA, Demócrito Cavalcanti eoutros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB” 3 ª edição. Porto Alegre: Cobraci Publicações, s/d. &SCHNAIDERMAN, Boris. “Guerra em Surdina” Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Editora, 1964.

60

compensar o fluxo de transferências e evasão de praças e oficiais que causou claros nas

fileiras”68 – questão ainda a ser detalhada.

É possível, ainda, evidenciar mais algumas características gerais dos convocados que,

ora uma, ora outra, sempre acabam coincidindo com os depoentes entrevistados. A maioria

dos febianos era formada por civis recrutados, ou seja, reservistas de 1o, 2o ou 3o categorias

que, portanto, estavam muito pouco ambientados à vida militar – o que tornaria a

experiência ainda mais penosa. A imensa maioria, também, vinha de cidades do interior,

sobretudo dos estados do sudeste e portavam um alto grau de analfabetismo ou tinham

baixo nível educacional.

Quanto aos oficiais e suboficiais, sabe-se que pelo menos 60% dos que formariam a

FEB eram oriundos dos CPOR’s, em decorrência, principalmente, dos altos índices de

transferências de oficiais da ativa para unidades não expedicionárias – fato que ficou

marcado nas páginas do Diário Oficial que, regularmente, anunciava as tais transferências.

No que toca às suas ocupações, os oficiais R/2 – reserva – vinham de um nível mais

abastado: advogados, médicos, arquitetos, engenheiros e profissionais liberais em geral.

Obviamente que, a longo prazo, tal fato teria um impacto decisivo na configuraçãodas memórias dos ex-combatentes – dado que recairia diretamente sobre o ‘orgulho’ em ter

participado da FEB. Bem como a sensação, por parte dos que não foram, de ridículo e de

constrangimento ao estar cara-a-cara com os que voltavam ‘gloriosos’ – fato que ajudaria a

explicar a marginalização dos ex-combatentes que continuaram no Exército após a guerra.

Ainda hoje se vê um mal estar entre os ex-combatentes ao lidarem com essa questão,

67 Entrevista com O. Arruda, Belo Horizonte, agosto/2002.68 MAXIMIANO, César Campiani. “Neve, fogo e montanhas: a experiência brasileira de combate na Itália”In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (orgs.) “Nova História Militar Brasileira” Riode Janeiro: Editora FGV, 2004. p.346.

61

procurando, alguns deles, razões outras que não torne tão menosprezada a experiência da

FEB:

J. M. N.: “Eu par ticularmente, que isso não seja gravado e nem que vocêescreva isso no futuro, desde aqueles dias em que a gente estava sepreparando, eu ficava muito... como é que eu vou falar? Eu ficava muito sementender o número de oficiais de CPOR que estavam ingressando na ForçaExpedicionár ia... não para desfazer deles, não estou me desfazendo deles...eu ficava pensando assim: ‘Gente, nós temos um efetivo, embora pequeno,mas nós temos um efetivo no Exército... ser ia mais interessante uma divisãoformada com esse efetivo... ’ J. Fonseca: ‘Mas se a FEB se organizasse só compessoal da ativa, o Brasil ficar ia desguarnecido... precisaram comissionartenente a capitão porque os capitães já estavam envelhecidos’”69

Um deles interpreta o fato como, no mínimo, estranho e vergonhoso, o outro prefere

contornar a situação com um argumento que, certamente, não explicaria satisfatoriamente a

razão de tantos oficiais da reserva estarem sendo convocados.

Interessante é que alguns ainda conseguem tratar de forma mais criativa o fato da

FEB ter sido amplamente rejeitada na sua origem. Mesclando os irrefutáveis fatos acerca da

origem humilde dos convocados, bem como do desinteresse dos mesmos em relação ao

evento da guerra e, por último, elementos típicos do que chamaria “memória oficial”, D.

Medrado (81 anos, I/11oRI), faz da memória da FEB uma experiência de louvor àidentidade nacional. Da exclusão e da negação, consegue-se tirar um orgulho calcado na

noção do sacrifício e do patriotismo:

Nós tivemos muita dificuldade, porque (...) nós tínhamos companheiros queforam convocados que não sabiam nem como usar uma cama, nem comoesticar uma cama, ou como fazer uma cama, dormir numa cama, usar umainstalação sanitár ia... às vezes não sabia nem como calçar uma botina, tinhadificuldade, e acabava machucando o pé porque não estava habituadoàquilo, não é? Era gente muito simples mesmo... uma grande maior ia eragente muito simples. Mas por isso mesmo foi uma gente muito fácil de sermanobrada, e de ser colocado nas cabeças deles que ir iam servir a pátr ianuma situação daquela... porque dizia-se que nós íamos numa guer ra paracolocar fim nessa desgraça que era a guer ra...então deu a essa gente humilde,a esse soldado e a esse pracinha...ele se sentiu reforçado...ele se sentiu comouma pessoa altamente responsável. ‘Eu saí de lá do inter ior ... lá da minhacasa de café...montado em meu cavalo...e vou para fora do país...para servir

69 Entrevista com J. Fonseca e J. M. N., Juiz de Fora, dezembro/2004.

62

ao país, e trazer para o país uma liberdade, para trazer para o país umresultado desses’...então o sujeito encheu o peito...o sujeito se sentiu,realmente, uma pessoa impor tante e que estava cumpr indo um papelimpor tante: que ir ia botar fim numa desgraça que era a guer ra.”70

Esse trecho é extremamente rico para entendermos o funcionamento da memória,

pois, e isso ficará claro com o correr do texto, pode-se perceber a imbricação de vários

gêneros de argumento e de camadas temporais na fala de depoente. Que muitos ex-

combatentes, atualmente, justificam e valorizam a FEB em termos de valores e virtudes

nacionais é algo aceitável, mas atribuir esses valores à massa dos febianos na época do

conflito é algo próprio das reviravoltas que só a memória possibilita. Vale ressaltar que D.

Medrado é um ex-combatente que continuou no Exército e trabalhou, desde o início, no

estabelecimento da AECB/BH (Associação dos Ex-combatentes do Brasil/seção Belo

Horizonte) – sendo, até hoje, um dos responsáveis por fazer a ponte entre os ex-

combatentes e o Exército.

José Murilo de Carvalho, em prefácio à publicação do “Diário de Campanha” do

expedicionário Sebastião Boanerges Ribeiro71, afirma que conceitos como “fascismo”,“democracia” e “liberdade” não aparecem e, consequentemente, fazem pouco sentido para

aqueles soldados que só ouviam estas palavras da boca de chefes de estado através do rádio.

Afirma ainda que, analisando o diário, nota-se que a principal referência identitária desses

homens que lutariam na Europa se fundamentava na família, na terra, nos amigos, na

religião entre outros elementos típicos da comunidade que os cercavam.

Fica claro, também, no trecho acima, a idéia de que teria sido fácil “manobrar” essas

pessoas, inculcando-as com a idéia de acabar com a guerra e salvar o país. No entanto, essa

versão é de difícil sustentação e, se ainda aparece nos depoimentos, é porque tratar da

70 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

63

resistência à convocação surge, para muitos, como algo doloroso e até mesmo contrário àmemória da FEB – como fica óbvio nas palavras desse mesmo depoente:

Márcio: Por quais razões que essas pessoas conseguiram dispensa? D.Medrado: Razões diversas... r azões, com sincer idade, que eu não gostar ia defazer comentár ios... eu me negar ia a fazer comentár ios a esse respeitoporque é uma coisa que me deixou muito amargurado, eu fiquei muitoamargurado com essa coisa...”72

Outro ex-combatente, relatando caso sobre pessoas que conseguiam dispensas, interrompe-

se e diz: “... pode gravar e depois fica feio...”73.

No entanto, a despeito de certa memória ‘oficiosa’, sabe-se que a resistência àincorporação na FEB foi muito presente e intensa, como podemos notar na maioria dos

depoimentos e em fontes de outra natureza. No próprio D. Medrado, vê-se como a questãoé reprimida e conta com forte carga de ressentimentos. De alguma forma, isso acabaria

detendo um forte peso na memória da FEB, mesmo que muitos não gostassem e que fosse

sentida como algo doloroso e humilhante. De qualquer forma, onde está escrito que temos

total autonomia quando o assunto é nossa memória? Lembramos tudo o que queremos?

Esquecemos o que nos faz sofrer? Creio que não.

vH. Medeiros (84 anos, I/1o RI) é o tipo de depoente difícil de ser encontrado,

sobretudo hoje em dia, entre os ex-combatentes: contestador, tratando ‘coisas sérias’ com

ironia, e desprezando certa militarização da memória da FEB, pode-se aprender e observar

coisas muito interessantes com a sua narrativa – que é bastante pessoal.

É raro vermos um depoimento como o seu principalmente depois de todas as

reviravoltas pelo qual passou desde o fim da guerra. Mesmo portando uma memória que,

71 RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha” Belo Horizonte: Ed. do autor, 2002.72 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

64

digamos, não faz parte do ‘campo hegemônico’, pela forma como narra certas coisas, dápara perceber as condições trágicas em que se deu a formação do Corpo Expedicionáriocomo um todo. Medeiros também foi parar na guerra a contragosto, estudou só até o

ginásio, pois para continuar nos estudos teria que ir para outra cidade, mas o pai não tinha

condições de mantê-lo. Coloca que, no início dos anos quarenta, seu pai o chamou no canto

e disse: “‘Seu pai não tem condições de tocar a família mais não... agora é você o cabeça da

família [que contava com a mãe e mais seis irmãs]”. Nessa época trabalhava nas Casas

Pernambucanas e, para conseguir algo melhor, tentou entrar para a Marinha Mercante, mas

não conseguiu devido ao estudo insuficiente. Pensou também em ir para o Exército,

enfatizando que hoje poderia estar bem como alguns colegas seus, mas nunca teve apreçopela disciplina e vida militares. Na época da criação da FEB já tinha o certificado de

reservista de 2o categoria, obtido em 1937 no tiro de guerra. No entanto, acabaria sendo

convocado para se apresentar no Rio de Janeiro – uma vez que morava em Barra do Piraí.“Foi interessante... a cadeia já começou na convocação, porque quando nós

fomos convocados, foi um punhado, não é? Aí marcamos tudo para viajarpara o Rio. Quar tel general lá na Praça da República no Rio... aí compramosa passagem e eu falei: ‘Eu não vou. Eu não vou comprar passagem... eunão!... estrada de fer ro não é do governo? E ele não está chamando a gente?Então ele que pague a passagem! Eu não vou pagar ...’(...) ‘Ah, então tambémnão vou pagar ...’...‘não pago...’(...)Quando chegamos na vila militar , tinha láum escol esperando a gente...uma patrulha...o sargento da patrulha viroupara a gente e: ‘Antes de chegar vocês já estão dando alteração.’ Eu falei:‘Não estamos dando alteração não sargento. O problema é o seguinte: nósfomos convocados, a estrada de fer ro é do governo, quem convocou foi ogoverno, então ele que paga a passagem, eu não pedi pra vir .’ (...) ‘Então estátudo preso, vamos para o quar tel.’ Fomos lá para o quar tel general, chegoulá [r iso], o oficial até r iu e falou: ‘No final você tem razão.’ Eu falei: “Ué,mas não está chamando, nós estamos aí ué! Ele que pague a passagem ué, foiele que chamou a gente, não pediu para vir .’”74 (os grifos indicam ênfase dodepoente)

73 Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002.74 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.

65

A convocação é algo traumático, como está atestado até aqui, mas, ao mesmo tempo,

muitos encontram dificuldades em assumi-la dessa forma, pois a memória oficial, pública,

percebe tal fato como algo “glorioso” e “heróico” – de modo que resta ao ex-combatente ou

o reconhecimento público ou a marginalização – caso insista na versão “subversiva” do

evento, ou subterrânea, com diria Pollak. É claro que essas opções não se apresentam dessa

forma aos sujeitos, mas é uma série de circunstâncias, valores, necessidades e escolhas que

os levam para um ou outro lado – quando não para um limbo intermediário. Dessa forma,

como mostra Thomson, no mito dos Anzac, dar sentido à convocação é sempre algo

complicado – e no caso do Brasil esse problema assume outras cores, já que aqui o

alistamento foi majoritariamente obrigatório e, no caso australiano – na Primeira Guerra – ,

o voluntariado consistiu na âncora de todo o processo. Em suma, em cada caso existem

certas polêmicas que dificultam a significação da convocação ou do voluntariado. E, tal

como no trabalho citado, é comum que a narrativa da convocação porte uma série de

pequenas contradições e hesitações, idas e voltas, pontos cegos, imprecisões e

esquecimentos que, por mais que se explore, não se tornam claros.

Isso aparece, em intensidades diferentes, na maioria das entrevistas, ou seja, a

trajetória da vida antes da guerra é contada de forma muito lacunar e resumida – apressada

até – enveredando-se rapidamente pela experiência da guerra. A maneira como se foi parar

no Exército também é apresentada de forma genérica e apressada. Para poucos as

justificativas da guerra fazem um sentido mais que superficial, até hoje – o que torna a

memória daqueles tempos um tanto constrangedora, pois foram momentos em que não se

tinha autonomia, e é difícil explicar isso para os outros e para si mesmos. Às vezes, é mais

fácil ‘esquecer’. É um constrangimento pelo fato de terem as expectativas da juventude

roubadas pela convocação e pela guerra, de modo que, seja ridicularizando o discurso

66

oficial, seja incorporando-o, os ex-combatentes teriam que lidar com essa realidade e se

estabelecerem como sujeitos. Portanto, portadores de memória e identidade.

Voltando ao ponto, é justamente tarefa do historiador perceber como se dão esses

processos, de modo que discutindo as formas de resistência à convocação e à disciplina

militar, ver-se-á como se forja mais um elemento das memórias individuais dos ex-

combatentes, e em que medida essas lembranças ainda permanecem, a despeito de uma

memória oficial que insiste em calar certos elementos.

Como se deu com Medeiros, os problemas relativos à convocação já apareciam desde

o início, seja em casos como esse do pagamento do transporte que, segundo ele, deveria ser

feito pelo governo, seja com a questão da transferência das famílias para onde iam os

convocados. Somando ao descrédito geral da FEB e do processo mobilizador do Estado

Novo como um todo, temos o quadro onde se daria a experiência e o choque da

convocação. Tudo isso, certamente, incentivaria todo tipo de coisa para que se escapasse do

Corpo Expedicionário.

Já em janeiro de 1944, um boletim de informações do Ministério da Guerra dizia que

“... a atmosfera em torno do Corpo Expedicionário Brasileiro continua (a ser) de franca

indiferença e derrotismo.”75. Essa situação permaneceria até o embarque das tropas a partir

de julho do mesmo ano e, quanto ao clima de derrotismo e ridículo, este perpassaria toda a

cobertura da guerra – piorando ainda mais quando do afrouxamento da censura estatal. O

Estado-Maior da FEB ainda teria outras oportunidades de assumir, de forma velada, as

condições duras pelas quais se dava a convocação, bem como a falta de interesse em fazer

parte da FEB:

67

“A inspeção de saúde era classificada como r igorosa, mas nas malhasaparentemente fina das rêdes, haviam se escoado inúmeros tubarões‘filhinhos de papai’, poderosos e bem amparados. A grande massa dosmobilizados ali estava porque não conseguira escapar , embora não se possadizer que fôra um recrutamento de ‘pau e corda’, como na guer ra doParaguai”76

Como fica claro na citação, não eram apenas os “filhinhos de papai” que fugiam da

convocação – e casos como esses são muito comuns nas entrevistas – mas eram eles que

conseguiam fugir apenas, pois, formas generalizadas de burlar a convocação não faltaram –cada um fazendo o que estava à sua altura. Quanto à violência do recrutamento, de fato, nãose deu através do “pau e corda”’, mas existiam outras formas de coerção tão perversas

quanto esta, como se está vendo. No entanto, há um aspecto que se mostra muito

interessante nos depoimentos que é o fato de que, definitivamente, muita gente queria

escapar da FEB e, simultaneamente, há a necessidade de valorizar tal experiência bem

como colocar que se desejava, ou no mínimo tolerava-se ir para a guerra. Qual é a

conseqüência disso? Uma ‘multidão’ de depoentes que conhecem ou conviveram com

dezenas de casos de fugas, deserções e coisas do gênero, mas que nunca pensavam em, eles

próprios, fazerem o mesmo.

É difícil para o historiador analisar e julgar cada caso individualmente – se é que éesse nosso papel –, do ponto de vista documental mesmo, torna-se complicado saber quem

está ‘mentindo’ ou falando a ‘verdade’. A despeito desses julgamentos, o importante é que

percebamos essas contradições e tensões existentes nos depoimentos e saibamos avaliá-las

como representativas da memória conturbada de indivíduos e de um grupo que, às duras

penas, tenta estabelecer uma identidade reconhecida e aceitável apesar dos inúmeros

75 Ministério da Guerra, Rio de Janeiro, Boletim de informações n.1, 29 de janeiro de 1944, OAA. Apud.McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.292.76 BRAYNER, Mal. Floriano de Lima. “A verdade sôbre a FEB – memórias de um chefe de Estado-Maior daFEB na campanha da Itália”, p.74.

68

percalços do passado e do presente. Existem, e existiram, muitos entraves aos ex-

combatentes para que expressem uma memória tranqüila de suas experiências, pois,

assumindo que não queriam ir à guerra, teriam de ir contra a memória oficial do Exército,

além de criarem sérios constrangimentos entre os colegas e a própria Associação.

No entanto, independente desse tipo de opressão da memória, passagens sobre

resistência à convocação – pelas formas mais contraditórias ou veladas que seja – pululam

nos depoimentos e em várias memórias escritas sobre a FEB. Tal fato atesta como foi

problemática não só a formação da FEB, mas também toda trajetória posterior à guerra em

que os ex-combatentes tiveram que lidar com memórias então vistas como ‘subversivas’,‘antinacionalistas’, ou que evidenciassem desrespeito à memória da FEB e ao ‘espíritopúblico’.

Numerosos casos tornaram-se típicos dos problemas que o governo e o Exército

enfrentavam para formar a FEB. Um pelotão do 6o RI, por exemplo, teve oito diferentes

comandantes durante o ano de 1944 – todos, menos um, conseguiram fugir à convocaçãoatravés de transferências com apoio de autoridades. Vários comandos de companhias, em

todo Corpo Expedicionário, passariam por rodízios como este. Mas engana-se quem supõeque essas fugas, ou tentativas de fugas, se reduzissem aos “filhinhos de papai” – como

prefeririam muitos.

O. Arruda, que como comandante de grupo, ficaria sabendo de uma série de casos e

tentativas visando driblar o recrutamento, coloca que era comum que inventassem doenças,

inserindo pasta de dente na uretra – para simular gonorréia –, ou passando uma pomada

específica nas costas para que o pulmão aparecesse com alterações nas radiografias. Cita

ainda casos de automutilação, falsificação de atestados, “manobras” via contatos, colocar

alho nas axilas para desenvolver febre, entre outras formas. Por sua vez, parece que quis

69

mesmo ir à guerra, pois já havia ficado chateado com o fato de ter sido excluído devido àbaixa estatura, e ainda narra uma situação onde teve a oportunidade de sair da FEB, com

ajuda de uma autoridade – cujo nome se negou a dizer – mas que recusou tal oferta.

Evidenciando, ainda, o descrédito que se tinha acerca da FEB:

Autoridade: “‘“... Você vai para a guer ra e vai morrer lá! ’ (...) ‘... O pau devassoura vai ser o seu fuzil... ’ (...) ‘... vocês não têm treinamento nenhum deguer ra, vocês vão morrer , todos. ’... O. Arruda: ‘Doutor , eu me admiro muitode o senhor , membro do governo, estar me falando uma coisa dessas; osenhor pode telefonar ou escrever para a minha mãe, falando que não vouatender ao pedido dela e que estou muito bem no Corpo Expedicionár io... ’77

Nas palavras de um outro depoente, M. Couto78, dois casos de resistência à convocaçãoassumem um significado interessante, ao falar de um colega que conseguiu dispensa

colocando pasta na uretra, Couto enfatiza: “ouvi falar” que ele teve uma infecção e quase

morreu; ao que outro amigo que mentiu sobre uma doença: “levou ferro”. Ou seja, é como

um castigo, bem merecido, para aqueles que sujariam a memória de um futuro passado que

assumiria outros significados que não daquelas circunstâncias. Na verdade, era preciso

muita coragem para tentar fugir da convocação – muitos não a teriam e, portanto, nãocontestariam tal medida. Dessa forma, anos depois, isso poderia ser reavaliado não como

falta, mas sim como um ato de coragem por participar da FEB – era a união do útil com o

agradável

Antes mesmo das tropas se concentrarem nas cidades sede, onde passariam por um

dos exames, ou no Rio de Janeiro – passando, então, por mais testes –, nas próprias cidades

de origem já era comum para os que tinham ‘mais condições’, procurar formas de fugir da

obrigação militar, conforme coloca A. Neto:

“Mas na FEB teve muita gente que foi convocada e não quis ir para aguer ra... mas eu não vou dizer nome de ninguém, até já morreram... mas

77 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.78 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

70

pagaram para não ir ... os pais r icos pagaram para não ir para a guer ra... emItanhandu tiveram vár ios...”(...)“Você sabe que aqui [No Rio] até que não houve tanto disso? Aqui a gente já

estava mais esclarecida, mais tudo... mas lá no inter ior isso é uma coisahor rorosa. Conheço funcionár ios da prefeitura de Itanhandu que nemreservistas eram... foram lá para aquelas fazendas dos parentes e sumiram...desapareceram [r iso]...”79

Quanto à relação que Neto estabelece entre certa cultura rural e a cultura urbana, é algo que

perpassa outros momentos da entrevista. Mas talvez ele tenha razão em um ponto, depois

que as tropas foram levadas para o Rio, de fato, diminuiriam casos como o que ele

descreveu – já que estavam distantes de suas famílias e conhecidos – o que não significa

que todos aceitassem tal situação – pois novas formas de escapar àquela situação, pelo

menos temporariamente, surgiriam. S. Ribeiro, do 9o BE, enfatizaria as fugas ainda quando

em Aquidauana e, posteriormente, no Rio de Janeiro:

“Inclusive, nessa época, lá no Mato Grosso fugia muita gente também... navéspera de embarcar ... antes de embarcar para o Rio, aí fugiu bem gente lá...uns mato-grossenses mesmo, de lá... não quiseram ir não... aí muita gentefugiu mais na véspera, não é?” Márcio: “No própr io Rio também, aconteceumuito isso?”. “Teve. No Rio teve gente que fugiu ainda depois de estardentro do navio... estavam no navio, nadaram e saíram... três... três aqui deDelfim Moreira... o navio depois se afastou lá na Guanabara e ficou longe,não é? E à noite fomos dormir , não é? Isso lá no fundo [do navio], lá parabaixo... aí eles pularam na água e nadaram pra longe... nós tínhamos muitotreinamento para nadar ... lá no r io em Aquidauana...”80

Interessante, ainda, é a forma como estes soldados apropriaram-se do conhecimento obtido

no próprio Exército.

No Rio de Janeiro surgiriam as famosas “tochas”, termo atribuído pelos febianos àsfugas sem autorização para visitar as famílias ou para andar pela cidade atrás de

‘aventuras’. O termo seria, ainda, usado para os passeios na Itália após o fim da guerra,

enquanto esperavam pela ordem de retorno – e, como será tratado mais a frente – consistiu

em elemento fundamental na definição da identidade do febiano – existiria até um

71

periódico chamado “A Tocha” . O termo “tocha”, ou “acender uma tocha”, acabaria caindo

no gosto do vocabulário dos ex-combatentes, que usam até hoje quando de uma viagem

junto com os colegas para os Encontros da Associação, ou quando das viagens para

quaisquer eventos comemorativos da FEB. As tochas, ainda no Rio de Janeiro, eram

voltadas para a visitação das famílias – grupos inteiros fugiam do quartel e só voltavam

após o fim de semana. O embarque da FEB foi muito demorado, além dos vários alarmes

falsos, o que deixava as tropas mais angustiadas e desejosas de ver, muito provavelmente

pela última vez, pensavam eles, seus entes queridos. Houve momentos em que essas tochas

foram até confundidas, por parte do comando, como deserções em massa81.

O esforço dos oficiais era no sentido de coibir as tochas, proibindo as visitas

familiares mesmo quando as tropas não estivessem com alguma tarefa ou treinamento

marcados, o que acabava gerando um círculo vicioso, pois os praças fugiam e voltavam no

sétimo dia, antes de serem considerados desertores, enchendo, depois, as cadeias do quartel.

Quando soltos, nova proibição por parte do comando, levando a novas fugas82. Aí, várias

estratégias eram usadas, sabe-se até de casos em que se fazia amizade com os maquinistas

dos trens que, em local marcado, diminuíam a velocidade para que os “tocheiros” pudessem

subir – dado que as estações eram vigiadas pela temida PE, a Polícia do Exército83. Houve

até a “questão dos bigodes”, quando um general que, sabendo da inexistência desse hábito

entre os americanos, decidiu proibir o uso do mesmo na FEB – já que o regulamento nãodizia nada sobre isso, tornou-se impossível ser penalizado por desrespeito a tal ordem de

79 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.80 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.81 ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.70-7182 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.83 Ibidem. p.90. & MAXIMIANO, César Campiani & GONÇALVES, José. “Irmãos de armas – um pelotãoda FEB na Segunda Guerra Mundial”, p.47-48.

72

modo que, então, “a oposição se revelou em tôda sua intensidade...”84, e o uso do bigode

generalizou-se. Toda essa rigidez disciplinar do Exército Brasileiro seria mudada na FEB –devido, sobretudo, à influência da doutrina americana e da experiência real de guerra,

questões que serão, ainda, trabalhadas detalhadamente.

Mesmo distantes de suas cidades natais, muitos ainda tentavam, a todo custo, fugir do

Corpo Expedicionário – a despeito da maioria, que já se encontrava resignada por não ver

mais como sair da situação. Dessa forma, entre os vários exames de saúde que foram feitos

antes do embarque para a Itália, erro foi cometido ao liberar a tropa, que ia freqüentar os

bordéis – alguns então, deliberadamente, mantinham relações com o intuito de contrair

alguma doença que os colocasse para fora da FEB85.

vApesar de todos esses impasses o Corpo Expedicionário estava em formação e

acabaria mesmo, contrariando o senso-comum, indo para a guerra – de modo que os

treinamentos começaram nas cidades-sedes dos regimentos, e, depois, no Rio de Janeiro,

local de reunião das unidades expedicionárias antes do embarque.

O Exército tinha sérias complicações de infra-estrutura àquela altura, e a mobilizaçãopara a guerra e a conseqüente criação da FEB, levando ao inchaço do sistema,

multiplicariam os seus problemas. As condições dos quartéis eram péssimas, a alimentaçãopobre e de baixíssima qualidade, a higiene era precária e as condições sanitárias em geral

tornaram-se alarmantes. O armamento brasileiro era antigo e antiquado, sendo de diversas

origens: alemão, francês, dinamarquês etc. De modo que os dois últimos escalões tiveram o

84 PIASON, José. “Nosso último dever na FEB” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimentode oficiais da reserva sobre a FEB”, p.79-112.85 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.34.

73

primeiro contato com o armamento a ser usado na guerra, o americano, apenas na Itália –inclusive, freqüentemente, ás vésperas do batismo de fogo.

Na memória dos veteranos o treinamento no Brasil é restrito a exercícios físicos

como marchas, corridas entre outros. Tais treinamentos visavam não apenas melhorar o

vigor físico dos soldados, mas, igualmente, preparar o espírito para o que vinha pela frente:

“Estávamos cansados daquela tortura. Exercícios penosos, sem finalidade; a crueldade dos

treinamentos parecia um preparo psicológico para aceitar a guerra.”86. No entanto, ainda

coloca Boanerges, mais do que aceitar a guerra, a idéia do treinamento era que fizesse com

que os soldados quisessem a guerra, pois concluíam que nada mais podia ser pior do que

aquilo. No 11, em São João Del Rei, ficaram conhecidas as “marchas da fome”, onde os

recrutas passavam três a quatro dias marchando sob sol e chuva com o mínimo de comida

ou quaisquer tipos de apoio.

No final das contas, esse teria sido uma das poucas jogadas inteligentes do comando

da FEB – já que isso acabava desenvolvendo o espírito de corpo entre as tropas, bem como

fazendo com que os soldados desejassem embarcar o mais rápido possível – onde teriam

um pouco de paz. Sobre as marchas, coloca W. Soler (82 anos, I/11oRI):

“Então nós saímos marchando de São João Del Rei e paramos... não melembro bem onde paramos... na beirada do r io Nazaré ou uma coisa assim...foram cinco dias e quatro noites sem cozinha... nós saímos para cá e acozinha saiu para lá... a cozinha só encontrou a tropa no quinto dia. Eutenho um colega que fez isso, ele é engenheiro, e fala assim: ‘W., o que foimais pesado para você: aquela marcha de Nazaré ou a guer ra?’. Eu falo quefoi aquela manobra... foram cinco dias e cinco noites fazendo repouso dequatro ou cinco horas e andando o resto... e chuva que Deus dava, não é?Metade desses cinco dias era de temporal...”87

Junto a tudo isso, os convocados sofriam com a rigidez disciplinar do Exército

Brasileiro – até então fundamentado na doutrina militar francesa, que estabelecia um forte

86 RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha”, 18p.

74

papel da hierarquia e que, por conseguinte, celebrava uma profunda diferença de tratamento

entre soldados e oficiais. Isso refletia, inclusive, nas condições de tratamento de cada

extrato: alimentação diferenciada, exigência de continências em quaisquer circunstâncias,

filas diferenciadas, cessão de lugares a oficiais em ambientes públicos e por aí vai – sem

contar as punições. Mais tarde, e esse é um dos poucos elementos que congrega todos os

veteranos, voltariam da guerra experimentados numa cultura militar muito mais flexível e

funcional – sob inspiração da escola americana – fundando a separação entre o velho

Exército de Caxias, que ficou aqui, e o novo Exército da FEB, que foi para a Itália,

trazendo uma nova concepção completamente reformulada de Forças Armadas88. De

qualquer forma, seja nos duros treinamentos, nas tochas, na difícil relação com os oficiais,

ou, em outros termos, o fato de se identificarem como elementos comuns de uma mesma

‘tragédia’ – como viam a convocação e a ida para a guerra na maioria das vezes –,soldados, suboficiais e baixo oficialato iam, aos poucos, criando os primeiros laços de

solidariedade que durariam por toda uma vida. Manuel Castells, ao discutir as tipologias de

identidades, o como e o porquê delas se configurarem de uma determinada forma,

estabelece, entre outras, a chamada “identidade de resistência”, que é“... cr iada por atores que se encontram em posições/condições desvalor izadase/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim,tr incheiras de resistência e sobrevivência com base em pr incípios diferentesdos que per meiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estesúltimos...”89

A identidade de resistência, desta forma, se caracterizaria principalmente pelo fato de

levar à formação de “comunas”, ou comunidades de resistência. Indivíduos que se

identificam por se encontrarem em uma situação opressiva comum, o que faz da união entre

87 Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002.

75

essas pessoas ou grupos, algo que os proteja ou pelo menos atenue os problemas pelos

quais passam. Mais tarde, já na Itália, com o fortalecimento dos laços e a realização dos

primeiros combates da FEB no front, cria-se entres os praças um sentimento de desprezo,

às vezes beirando o ódio, pelo alto oficialato, bem como, também, uma relação de ‘quase-

identificação’ e respeito para com o inimigo – tudo isso em decorrência de uma série de

fatores que ainda se verá nessa dissertação. Essas identidades, por sua vez, cultivam, entre

outras coisas, uma memória comum, mantendo, até hoje, elementos vivos que perpassam

por toda uma rede subterrânea – fora dos limites da memória oficial, bem como avessa ao

esquecimento público geral que há acerca da FEB. É interessante observarmos como esse

tipo de identidade de resistência, bem como a formação de laços de solidariedade que,

posteriormente, se transformariam numa sólida comuna de resistência, é comum entre

soldados em guerra.

O exemplo do trabalho de Thomson com os Anzac serviria, novamente, para

perceber-se isso num outro contexto. O suporte dos amigos de Fred Farrall – um dos

depoentes de Alistair – seria fundamental na transição de sua identidade de “ farm boy”para a de soldado. Além de terem dado esse apoio uns aos outros, forneceram-lhe

segurança, o que possibilitou a permanência de Fred num dos mais conturbados fronts da

Primeira Guerra Mundial: Galipolli. Essa sua ligação com os amigos contrastaria com o

significado nacionalista e de auto-sacrifício da lenda dos Anzac, já que na sua narrativa a

morte dos colegas – Fred perderia todos na guerra – não se liga àqueles valores, o que

geraria uma série de implicações negativas para ele após a volta para casa.

88 Cf.: ANDRADE, Goes de. “Espírito da FEB e espírito de ‘Caxias’”. In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti eoutros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.309-392.89 CASTELLS, Manuel. “O poder da identidade”, 24p.

76

Todos os exércitos que lutaram na Segunda Guerra sabiam da força e da importância

desse tipo de vínculo entre os soldados, de modo que incentivava, após o ingresso nas

Forças Armadas, a preservação dos grupos – mais ainda se estes vinham já estabelecidos do

meio civil. Entretanto, vimos que em razão das condições de formação da FEB, ou seja, as

infindáveis transferências e deserções, tal processo sempre estava sofrendo fortes abalos de

modo que, só na Itália, de fato, as ‘fratrias’ tornar-se-iam sólidas. M Couto, que fez o CPM

em Belo Horizonte, sendo incorporado no 12o RI e depois enviado ao 11 de São João Del

Rei, realizou todo esse percurso, bem como toda a guerra, com um grupo só – obviamente

com pequenas e médias alterações durante esse tempo – que formava todo 1o pelotão da 6o

cia. do II/11RI – cerca de 45 homens. Em sua memória, até hoje, os mais próximos sãolembrados com uma agilidade de como se encontrassem todos os dias.

vUma vez que o tema dessa dissertação é a memória da FEB, antes de discutir o

momento seguinte ao processo de convocação, ou seja, a guerra propriamente dita, é válido

abordar alguns pontos relativos ao processo de mobilização na perspectiva do Estado,

tentando perceber como ele dialogaria com os ex-combatentes anos mais tarde.

A mobilização da sociedade, o chamado a todas as classes e setores, bem como de

todos os esforços consistiu em iniciativa, ideologicamente e politicamente, afinada ao

projeto estadonovista – muito mais do que com os objetivos gerais da Segunda Guerra.

Nesse contexto, a FEB corresponderia em um dos pontos altos de uma tendência que já se

vinha conformando há pelo menos dez anos como uma das prioridades na política nacional,

como coloca E. Dutra:

“A construção de um sentimento de nacionalidade é fruto de iniciativasgovernamentais desde o início de 1936, as quais são incrementadas nosegundo semestre de 1937, par ticularmente em seu final, após o golpe de

77

novembro, numa clara indicação dos objetivos ideológicos e estratégicos dosseus protagonistas.”90

Nesse ínterim, adota-se o Exército como modelo de organização social e, num claro

movimento de militarização da sociedade91, o estado procura promover a monopolização da

autoridade, visando, com isso, englobar a sociedade, unificando-a e tratando-a como um

mero instrumento à disposição do Estado-Nação. Para isso, lança mão de uma série de

instrumentos, como a difusão do medo – sobretudo via anticomunismo –, o fortalecimento

e expansão dos aparelhos policiais e repressivos, o esforço propagandístico, as campanhas

de defesa civil passiva, as campanhas de recolhimento de metal etc. Há uma clara tentativa

em estabelecer um rígido projeto de ordenação dos corpos e do tempo, via militarização,

disciplina, obediência e união – sobretudo no espaço do trabalho92. Dessa forma, não seria a

guerra e o esforço mobilizatório espaços igualmente interessantes para a promoção dessas

políticas? Certamente que sim. Dessa forma, conclui Cytrynowicz:

“O envio da FEB foi, por tanto, mais uma necessidade interna a política dopaís, de for talecer a base de apoio do Estado Novo e das Forças Armadas –opor tunidade para reestruturar , reequipar e modernizar estas forças –, alémde projetar o país nas discussões do pós-guer ra, do que uma decisãoideológica ou política no plano internacional de luta contra a AlemanhaNazista, conforme colocada nos anos de 1942, 1943 ou 1944 e celebrada comohistór ia oficial do engajamento militar do país.”93

Sem esquecer, entretanto, que o envio da FEB contou com sérias resistências dentro do

próprio alto-escalão estadonovista. Sobretudo Dutra e Góes Monteiro, publicamente

conhecidos por suas simpatias pelo Eixo, em vários fizeram esforço visando a nãocooperação Brasil - Estado Unidos e o impedimento do envio de contingentes brasileiros

para lutar na guerra ao lado dos Aliados. No entanto, como diz a velha fórmula, teoria e

90 DUTRA, Eliana. “O Ardil Totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30”, p.185.91 Ibidem. p.236.92 Ibidem. p.336.

78

prática são coisas muito diferentes e, a despeito do forte caráter corporativista e fascistóide

do discurso estadonovista ser claramente perceptível, é fácil perceber, como já vimos atéaqui, os furos no processo de mobilização em decorrências das práticas de resistência

criadas. Embora só trato nesse texto da Força Expedicionária Brasileira, mas vale notificar

que essas práticas se apresentaram em numerosos setores e níveis da sociedade na época. Jáse referiu aqui à má imagem com que a FEB contava entre a sociedade – de modo que as

fugas, as condições do Exército, as ‘politicagens’ vistas por todos, a demora do embarque,

bem como a idéia dificilmente aceitável de que o Brasil mandaria suas mal ajambradas

tropas para lutar contra os ‘monstros nazistas’ na Europa, sabotava o mínimo de confiançaque se poderia ter – por dentro e por fora dos quartéis. Funcionava como um círculo

vicioso: quanto mais o Estado procurava levar a sério o discurso da guerra, mais

ridicularizado este era – levando ao aumento dos esforços governamentais e, por

conseguinte, à vontade dos convocados em escapar daquilo tudo, explicitando o

constrangimento da situação.

Para piorar a situação, a mídia oficial e/ou de grande circulação pisava e repisava nos

“méritos” da FEB, nas responsabilidades democráticas do Brasil, na nossa tradição militar,

entre outras amenidades – algo que contrastava radicalmente com o que as pessoas viam na

formação do Corpo Expedicionário94, conforme atesta essa carta, censurada, destinada ao

cabo Darcy Meirelles:

Coloca o censor: “Falta de confiança no valor e preparo do ExércitoBrasileiro”Então transcreve os trechos censurados: “Quer ido, tenho estado muitoapreensiva por saber que vocês já entrar (sic!) em luta c/ o inimigo,porquanto tenho absoluta cer teza de q. vocês não estão suficientemente

93 CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.34-35.94 Em McCANN Jr., Frank D. “A aliança...”, p.318., vários são os títulos de jornais citados, dentre eles: “OGlobo” , “A Notícia” , “Folha Carioca” , “Diário Carioca” e “O Jornal” .

79

preparados p. isso. Será uma loucura mandar cr ianças como vocês, q. aindasentem a falta da mamãe, p/ guer rear uns monstros como os nazistas. Não seio que acontecerá dessa idiotice. Nem posso imaginar uma maluquice tãogrande.”(...)Só há grande far tura e notícias animadoras na Hora do Brasil. Por essarazão, todas as noites ouço as novidades e a gente acaba por acreditar umpouco naquelas mentiras. Pelo menos dorme-se mais a vontade, c/ sonhosmenos pesados. É como se tomássemos uma dose de ópio.”95

Em suma, no final das contas, “Quem permaneceu na unidade foram os idealistas, os

voluntários [ambos minorias absolutas], os resignados ou simplesmente os que nãoconseguiram ser excluídos”96.

Mal sabiam os recém convocados a intricada situação que resultaria – a longo prazo –de todo esse emaranhado. Pois se o desdenho em relação à FEB era o que imperava naquele

momento, o contrário se daria após a volta para casa – por parte dos agora ex-combatentes.

Nota-se a formação de uma espécie de nó que dificultaria o estabelecimento de uma

memória aceitável e coerente; nesse momento, a memória teria de dar as suas reviravoltas,

fazendo ‘ligações’ aqui, ‘esquecimentos’ ali e ‘abafamentos’ acolá. Pois seria por demais

contraditório, para eles mesmos, para os que ficaram e, sobretudo, para o governo que

acabava de derrubar Vargas, tomar considerações positivas pelos febianos – então símbolos

do Estado Novo. E mais, dado que a FEB respondia mais às necessidades internas do

regime do que qualquer outra coisa, a questão da justificação da entrada do país na guerra éum ponto mal resolvido e, por conseguinte, empurrado às margens, entre os ex-combatentes

– não no caso da memória oficial, é claro.

Muitos ex-combatentes preferiram assumir o discurso do soldado apolítico, inclusive

aqueles que conseguiram permanecer nas fileiras do exército após a volta. N. Silva (81

95 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro - APERJ - fundo DPS.96 MAXIMIANO, César Campiani & Gonçalves, José. “Irmãos de armas – um pelotão da FEB na SegundaGuerra Mundial”, 37p.

80

anos, I/11oRI) é exemplo paradigmático desse caso. Quando perguntado sobre a pouca

participação do pessoal da ativa na FEB, coloca que foi necessária a convocação em virtude

da falta de efetivos e do perigo que o país correria em ficar desfalcado – sobre os testes de

seleção, afirmaria que: “... isso, a gente não tomava parte... era mais o treinamento...”97. Por

fim, respondendo questão sobre a aparente contradição de o Brasil ir lutar pela democracia

sem tê-la em seu próprio território, coloca que esse era um problema que não cabia ser

resolvido por “nós”.Já D. Medrado, que entrara para o Exército em 1942 para tirar o certificado, retido em

função da declaração de guerra, se envereda pelo argumento da pressão popular, o mais

comum e aceito não apenas entre os ex-combatentes, ao responder questão sobre o porquêdo país entrar na guerra:

“... quando eu fui para o exército ainda não existia nenhum indício do Brasiltomar par te no conflito... falava-se em guer ra e tal, mas não falava-se noBrasil em guer ra, não é? A guer ra só veio...nós par ticiparmos...o jovem, osoldado, o povo, só veio sentir a guer ra quando foram afundados os nossosnavios aí. Esse foi o pr incipal motivo, não é? Porque a gente não ouviafalar ...a gente era muito jovem...a gente não tinha muito acesso a essasnotícias, e não tinha também um grande interesse por isso. Depois é que agente foi tomando conhecimento dessas coisas e começamos a nos empolgar ,não é? E ver , inclusive, que nós estávamos caminhando para uma tomada deposição.”98

Segundo essa tese, Getúlio Vargas teria entrado na guerra em decorrência da pressãopopular. Uma variação da tese, que assume as simpatias do Estado Novo pelo Eixo, ainda

enfatiza que tal pressão levaria o país a se posicionar ao lado dos aliados, além da

declaração de guerra e do envolvimento militar. No entanto, sabe-se que as manifestações

realizadas no Brasil durante o ano de 1942, sob organização da UNE – União Nacional dos

Estudantes –, foram extremamente exageradas. Primeiro pela memória e segundo,

97 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003.98 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

81

sobretudo, pela mídia e pelo Estado, que ainda aproveitou os movimentos pró-democracia

para aumentar a base de apoio do governo, na medida em que este defendia, agora, a causa

aliada da democracia – ou seja, quem criticava o Estado Novo, passava a apoiá-lo sem ao

menos perceber99. É claro que a FEB poderia consistir, contrariamente, num elemento

esfacelador do corporativismo estadonovista, pois voltaria como uma tropa que lutou em

nome da democracia e não a possuía em seu próprio território – abrindo espaço para o

fortalecimento da oposição.

A tese da pressão popular em decorrência do afundamento dos navios em nossas

costas, no entanto, acabaria servindo como uma ótima justificativa para os ex-combatentes,

haja vista a falta de explicações e de sentido para aquilo tudo – mesmo assim, para muitos

deles, até hoje, pouco sentido fazem tais divagações100. Na maioria das vezes, sobretudo

naqueles que não possuem um envolvimento direto com as Associações, a justificação da

guerra em termos macropolíticos ou de movimentos sociais pouco convence – nem mesmo

a interação desta com as experiências pessoais são bem articuladas nos depoimentos.

A idéia das manifestações como causa da entrada do país na guerra aparece nas

entrevistas de forma descolada e desconfortável, como um bloco, ou algo que, sente-se, nãofaz parte daquele mundo. Outro argumento dessa natureza que também, vez ou outra,

surgia, se ligava à questão econômica, afirmando que a FEB teria ido a troca da CSN101 –Companhia Siderúrgica Nacional –, de fato, montada pelos americanos no âmbito das

negociações para o alinhamento do Brasil. Variavam, nesses casos, versões que, ora

enfatizavam a autonomia nacional que se conquistou à época com Getúlio, ora acusavam o

99 Cf.: CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”100 CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.323.101 Entrevista com O. Arruda, Belo Horizonte, novembro/2001.

82

governo de rendição ao imperialismo norte-americano – polêmicas ainda comuns,

igualmente, na historiografia sobre o assunto.

Em obra produzida logo após o fim da guerra, alguns oficiais da reserva fizeram uma

série de críticas à organização do processo mobilizador e da FEB como um todo, nãoficando de lado a questão das deficiências no treinamento dos soldados bem como da

“educação moral” e da justificação da guerra, então coloca Mario Amaral:

“A Educação Moral era uma instrução difícil de ser ministrada tendo emvista as razões que levaram o Brasil à guer ra e o moral do povo brasileiro.Era necessár io convencer o soldado que ia para a guer ra de que ia preservara integr idade da sua Pátr ia, contra um inimigo que ameaçava usurpá-la, quelutar ia, para vingar a mor te de homens mulheres e cr ianças inocente, emtorpedeamentos de navios brasileiros, a pouca distância dos nossos litorais.Mas, para que êsses motivos que, apesar de for tes tivessem os efeitos quedever iam ter tido, impunha-se que o governo fizesse o preparo da opiniãopública para a guer ra e nada fêz além de declarar publicamente quedeclarava guer ra ao Eixo, por ‘imposição do povo brasileiro’”102

Percebe-se nas entrelinhas em que medida a idéia da pressão popular foi forjada, e muito

mal forjada, na época do evento. A necessidade de argumentos grandiosos para justificar as

guerras é evidenciada de modo explícito e, seja mal ou bem feita, quase sempre, mais a

curto e nem tanto a longo prazo, se apresenta como algo avesso ao mundo e à realidade do

convocado.

Dessa forma, na época dos embates, como veremos a frente, tais pontos de vista eram

deliberadamente ignorados pelos soldados, que davam todo um significado particular

àquilo que estavam passando. Mais tarde, em função das pressões da memória oficial e da

necessidade de reconhecimento público de suas experiências, tais argumentos vão sendo

incorporados por muitos, não passando, entretanto, de algo marginal e até ‘artificial’ no

contexto da significação que fazem de suas guerras particulares. Mas voltando a enfatizar o

102 AMARAL, Mário. “A instrução da FEB” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti e outros. “Depoimento deoficiais da reserva sobre a FEB”, p.171-172.

83

que já se falou sobre a pluralidade de versões, vale lembrar que uns dão mais peso à versãooficial – portando narrativas mais impessoais –, ao que outros pouca confiança atribuem a

tais questões – prendendo-se mais as narrativas pessoais –, de modo que há, ainda, os que

desprezam ou ridicularizam tais preocupações, como faz S. Ribeiro: “Ah...não tinha papo

não...” ...[soldado] não sabe de nada [risos]...eram só os graudos lá...que fala lá entre eles e

ninguém fica sabendo...”103

Era comum que, na maioria das entrevistas, eu me sentia ridículo em fazer perguntas

sobre macropolítica – com o passar do tempo percebi que elas cabiam cada vez menos nos

roteiros, na verdade, de modo muito lacunar e superficial, ou seja, como eram as respostas.

Ao contrário, as entrevistas rendiam quando falávamos da guerra do soldado e da

experiência pessoal de cada um – mesmo entre os mais apegados à memória público-oficial

que, como ficou claro, valoriza aquele tipo de abordagem. Interessante, também, que as

questões relativas à política e justificação da guerra apareciam menos ainda quando

realizava entrevistas em grupo, o que gerava uma dinâmica curiosa entre eles: parece que

sozinhos comigo, um jovem historiador, teriam que passar uma imagem ‘aceitável’,gloriosa’ e ‘grandiloqüente’ da FEB, pois a experiência da guerra não poderia se resumir a

uma série de casos desconexos – diria a memória oficial vigilante. Mas quando se sentiam

mais confortáveis com a situação, voltavam às suas memórias pessoais, com os quais, como

se pode ver têm ótimo entrosamento além de fazer todo o sentido.

vContra tudo e todos o Corpo Expedicionário foi formado e antes do embarque teve

seu nome mudado, definitivamente, para Força Expedicionária Brasileira. Entretanto, se

103 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.

84

mudou o nome, em nada alterou o ânimo da mobilização e dos outros preparativos – como

prova uma piada que circulava nas vésperas do embarque dizendo que, com a modificaçãodo nome, o Brasil aproveitou para tirar o “Corpo” fora.

Nas lembranças dos ex-combatentes, os preparativos para o embarque e a viagem

para a Itália costumam aparecer de forma marcante, além de, a despeito da crise

generalizada de náusea, vir carregada por um olhar simpático. Estavam experimentando

muitas coisas novas como navegar, conhecer novas pessoas e lugares e pareciam mesmo

felizes, pois tiveram uma despedida festiva e, se não conseguiram sair da FEB, pelo menos

os tempos ingratos dos duros treinamentos físicos haviam terminado. Além de tudo isso,

durante a viagem para a Europa, teriam os primeiros contatos com a máquina e a doutrina

de guerra norte-americanas, que tanto influenciaria e marcaria a nova identidade que entãose formava.

Entrar no navio e partir para o desconhecido: esse evento, pode-se afirmar, consiste

num dos momentos em que, de fato, se vê algo novo nascendo entre aqueles que agora

faziam parte da então Força Expedicionária Brasileira. Era como se fosse o momento onde

a ‘ficha acabara de cair’ – muitos boatos circulavam, o embarque demorava e tudo levava a

crer que a guerra acabaria antes e tudo não passaria de mais um estardalhaço ou fogo de

palha ‘à brasileira’. A distância da guerra e de todo aquele discurso sobre ela era tãolongínquo que se tornava inconcebível a alguém se ver – não tendo a mínima noção do que

consistia um front da Segunda Guerra – lutando na Europa. Nesse contexto, a viagem jáconsistia em experiência traumática, mas recompensadora, para os febianos:

“... só a travessia do oceano já foi uma batalha... tensão à noite... navioescuro, silêncio... eu ia lá para baixo para fiscalizar a minha tur ma... cadatenente era responsável pelo pelotão... então a gente fazia... ficava lámesmo... lá em baixo... subsolo do navio... escuro, calor , gente vomitando...

85

foi muito... e quando a gente chegou lá na Europa já estava uma amizadeentre tenente, soldado, capitão, os majores, os coronéis... tudo isso...”104

Importante, também, foi essa viagem para o fortalecimento dos, até agora, frágeis

laços de solidariedade e camaradagem criados por ocasião dos passeios pelas ruas do Rio

de Janeiro, dos treinamentos conjuntos ou de uma fuga em grupo para visitar as famílias.

Dentro dos navios, a formação de uma nova comunidade era, agora, inexorável – pois havia

a delimitação física do navio, e a limitação da liberdade pela rígida rotina do navio e da

língua de sua tripulação, o que acabava não deixando muitas escolhas sobre o que fazer, a

não ser se conhecerem melhor. Eram combatentes rumo à guerra, começavam a imaginar o

que os esperava, a pensar na possibilidade real dos combates, nas possíveis perdas – surgia,

com isso, o amadurecimento como soldado junto da aceitação de uma situação que tinham,

agora, que encarar.

A formação dessa nova identidade, voltando a Castells, seguia o princípio básico das

chamadas “identidades de resistência”, que é a formação das chamadas comunas e, nesse

ínterim, não faltavam elementos com os quais os agora ex-combatentes pudessem

contrastar. No navio, bem como nas cerimônias de despedida, os soldados começavam a

perceber que a guerra deles seria muito diferente da guerra dos políticos, da mídia e das

altas patentes, até dos que ficavam, de modo que já era possível notar uma ponta de rejeiçãosobre aqueles que tentavam atribuir um sentido àquilo tudo que não condizia com o que

viviam e sentiam. Desse modo, frente a toda ridicularização de que a FEB foi alvo quando

da sua formação, bem como às tentativas desesperadas de fugir daquilo tudo, por eles

mesmos empreendidas, qualquer discurso patrioteiro naquela altura cheirava a mais

104 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.

86

deboche. W. Soler coloca que a despedida de Getúlio Vargas, que foi ao navio G. Meigs

vistoriar e confortar as tropas não deu bons resultados:

“... então o seguinte: era em beliches, e eu me lembro bem de quando nósentramos, está vendo? Que o navio já estava todo tomado... a tropa todaembarcada... então o Getúlio Vargas foi num dos pavimentos e fez umasaudação aos pracinhas... dizendo que par tissem com Deus e que osaguardava na volta com a vitór ia... e deixou uma mensagem lá que, empar te, pelo que eu senti, e pelo que os outros colegas falaram, uns gostaram,outros foram neutros, outros não gostaram e disseram que nem dever ia terido lá, está vendo?”105

Ainda nesse discurso, Getúlio Vargas diria algo que se fixou na memória dos ex-

combatentes – não naquele momento, é verdade, pois tudo que falou devia entrar por um

ouvido e sair pelo outro. Com os problemas da volta e da reincorporação, esse discurso

seria revisto, servindo apenas para mostrar como os soldados tinham razão em ignorá-lo no

ato de sua elocução, dado que era algo que além de impalpável, mostrar-se-ia,

posteriormente, mentiroso. Na ocasião, Vargas falaria da necessidade de vingar a morte de

brasileiros, do apoio popular à causa, da luta pela liberdade, da nossa tradição pacifista, mas

audaz contra os invasores e, por fim, o que ficaria marcado, das promessas de apoio na

volta – mas, como disse, nesse momento isso seria pouco notado, pois não sabiam o que os

aguardava após o retorno106.

Entre outras coisas, ficaria na lembrança dos ex-combatentes a organização no navio

americano, as filas, a funcionalidade, a boa qualidade – apesar de diferente – da

alimentação, as normas higiênicas e sanitárias, a fraca distinção entre oficiais e praças etc.,

coisas que, para um GI americano passariam desapercebidas. Quanto à influência da

doutrina americana, esse era apenas o começo de muito que ainda viria – como ainda serádiscutido a seguir. Da chegada na Itália, uma série de coisas também ficaria marcada, pois

105 Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002.106 Discurso de despedida do 1o Escalão da FEB, CPDOC – Arquivo Getúlio Vargas.

87

era a primeira vez que viam o poder destrutivo e desmoralizador de uma guerra moderna, e

como ela transformava tudo entre o céu e a terra, inclusive as pessoas. Os pracinhas nãoconheciam os ‘barbarismo’ da guerra, dado que “Oriundos, quase todos, de cidades pacatas

do interior do Brasil, de onde saíram atendendo à convocação para a guerra – uma guerra

distante de motivos e razões mais distantes ainda – sobre a qual tudo ignoravam uns e

pouco sabiam outros107. Desembarcando em Nápoles, teriam contato com a desolaçãotrazida pela miséria e pela escassez das mínimas condições de sobrevivência, a desnutrição,

a destruição completa das cidades, o desespero de adultos e crianças por restos de comida e

até pontas de cigarro. Isso afetaria profundamente os ex-combatentes de todos os países

que, em geral, ao conviverem com misérias como essas e outras, acabam assumindo um

forte discurso pacifista pelo resto de suas vidas, de modo que, no íntimo, o ex-combatente

W. Soler, ainda na Itália, assumiria um compromisso de respeito àquela situação dos que

viviam a guerra:

“Entramos em uns três lugares... então eu ouvi o choro daquela gente, amisér ia daquela gente, o abandono, a tr isteza, choro de dar nó na garganta...eu, então, num dia desses eles trouxeram vinho, custaram fazer o capitãotomar o vinho, porque ele não quer ia de jeito nenhum, até eu tomei e tal...nesse dia eu fiz uma promessa comigo mesmo, e cumpr i: que, emhomenagem a esses coitados, sofr imento, sem comida, sem assistência, semnada, eu não ir ia par ticipar de nenhuma festa de vitór ia no Brasil, nem noRio nem na minha ter ra...e não par ticipei... não desfilei no Rio e não fuirecepcionado na minha ter ra... nem uma homenagem na minha ter ra atéhoje...não fiz questão e nem faço... uma promessa que eu fiz, intimamente,vendo aqueles abandonados, eles chamavam de esfolati, não é? Aquelesabandonados, aqueles dester rados, aquela misér ia toda na Itália... aquilo metocou mesmo, sabe?”108

Por fim, vale dizer que a ida para a Itália consistiria num verdadeiro rito de passagem,

muito mais do que a convocação e o treinamento, até então quase sempre desprezados, mas

não por isso menos importante na conformação da nova identidade de combatente e depois

107 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.28.

88

ex-combatentes – a viagem estabeleceu as delimitações físicas dessa comunidade,

‘homogeneizou’ as experiências, fez deles ‘iguais’. A experiência de estarem a sós e longe

de casa ampliaria a auto-percepção da nacionalidade brasileira e de combatentes, já que

apenas longe de casa é que os soldados aproximavam-se e se viam como uma unidade,

como uma fratria, de fato109.

vI.3 A guerra

Outros dos estereótipos com que se acostumou ver as guerras se aplicam à idéia de

como é um front e/ou uma retaguarda. Geralmente o termo guerra nos traz à mente palavras

como destruição, morte, ignorância etc. o que, certamente, não condiz com a complexidade

e a multiplicidade de um evento como esse. Por estranho que possa parecer, deve-se

lembrar que a guerra é feita por homens, e não por armas, o que significa que, junto dos

soldados estão a sua cultura, os seus gostos, a sua subjetividade, qualidades e defeitos, as

vontades, sonhos e expectativas entre outros elementos que, dadas as circunstâncias, sãointeiramente reformulados, e não meramente destruídos ou silenciados. Em virtude de certa

imagem que os militares passam em geral, pensa-se que a guerra é como nos vídeo-games:

lutar – vencer – morrer – perder, mas as coisas não funcionam dessa forma – a despeito

disso tudo, dos objetivos da guerra e da destruição que ela traz, a vida continua. Enfim, por

mais bizarro que isso possa soar, ela faz parte da vida, ela também é vida – a guerra produz

cultura, valores, comportamentos, ou seja, ela forma homens – consistindo numa prática

humana como muitas outras.

108 Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002. E de fato, em todos os eventos, homenagens eaté no Encontro Nacional das Associações de que participei, Soler nunca esteve presente em nenhum deles.109 Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.43.

89

É na retaguarda onde isso pode ser mais bem visto, pois é onde nem todas as atenções

estão voltadas para a guerra propriamente dita, o que não quer dizer que tudo o que láocorra não tenha relação com a guerra como um todo: as batalhas funcionam como

catalisadoras de tudo o que ocorre ao seu redor. A simples existência dela, e a expectativa

em dela participar de alguma forma, leva soldados, populações inteiras, os que trabalham

na manutenção do front, o pessoal da reserva entre outros a se comportarem de uma

maneira que não a mesma de situações de paz. Em primeiro lugar, na maioria das vezes,

não se luta em casa, não se veste a roupa usual ou se usam as mesmas coisas, novidades

surgem, a possibilidade da morte ronda a todo o momento – o que leva ao afrouxamento da

moral –, bem como a expectativa da volta para o lar, vive-se a saudade, e as relações com

os amigos são muito mais profundas, a presença das mulheres é rara e, por fim, faz-se parte

de uma instituição extremamente complexa, que são os exércitos.

É Keegan quem faz interessante descrição do cotidiano de uma retaguarda do

Exército Inglês durante a Primeira Guerra, não muito diferente da Segunda, exceto por sua

maior mobilidade:

“Por detrás das linhas – os batalhões abandonavam as tr incheiras regular efreqüentemente, para ‘descanso’ – as aldeias ofereciam casas, palha, cerveja,pommes frites e campos para o futebol. Os camponeses trataram de exploraro filão e o exército e as igrejas construíram cantinas improvisadas, onde acerveja era mais barata e mais for te (...) Outros pequenos locais atraentestinham, entretanto, começado a fazer nome: clubes onde se fazia música (...)onde todos os visitantes misturavam-se, independente da posição hierárquica(...) A sua rede de estradas [da região onde estavam], desvios, cruzamentos (jámuito melhorada), encontrava-se impressa no mapa mental do exército, e osnomes das localidades, tinham sido já adaptados ao linguajar dossoldados...”110

Havia ainda os espetáculos e peças de teatro, os cinemas, o mercado negro e o tráfico de

bebidas bem como os bordéis de todos os preços e para todos os gostos. Deve-se lembrar

110 KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.197.

90

que numa guerra como essa milhões de pessoas estão em trânsito, vários idiomas e

costumes em contato. Verdadeiros ‘idiomas de guerra’ nasciam e morriam rapidamente –no caso da FEB criou-se uma mistura de português, italiano e inglês, e, casualmente, até o

alemão –, formando mesmo uma espécie de ‘cultura da guerra’, inspirada em elementos

próprios e bastantes articulada àquelas circunstâncias. Criavam-se termos próprios para as

armas, os inimigos, os civis, os perigos, as coisas do lar e etc., termos esses que, não raro,

variavam de pelotão para pelotão. Nesse contexto, os jornais produzidos entre as tropas

circulavam, anunciando causos, piadas com uma ironia peculiar, fatos do grupo em

questão, gozações e pequenos informes, reforçando e (re)produzindo a identidade desses

soldados.

Esses jornais de campanha são extremamente importantes para o entendimento da

formação e reprodução das identidades dos soldados. Caracterizam-se por uma narrativa

humorística – muitas vezes um humor negro e até tétrico, que constrange quem não estáacostumado à banalização da violência comum nas guerras – que está ligada diretamente àspráticas voltadas para a manutenção da saúde psíquica dos combatentes, consistindo num

interessante suporte de trânsito entre a cultura oral e escrita. Isso é fundamental numa

guerra, já que dessa forma os soldados não disporiam apenas de fontes externas forjando as

suas experiências, mas produziam também os seus próprios pontos de vista. Por outro lado,

deve-se ter em mente que esse processo nunca era completamente independente, estando

sempre em conflito com os regulamentos militares e com representações oriundas de outros

grupos: as cartas de casa, os jornais oficiais e a censura do comando. É comum, por

exemplo, ver textos patrioteiros e/ou valorizando virtudes guerreiras em meio a piadas,

charges e reclamações – idéias que vinham, muito provavelmente, diretamente do gabinete

de algum oficial S/2 (informação/inteligência) preocupado com o moral e a disciplina entre

91

as tropas. Isso atesta que a formação da identidade dos febianos estava sempre sendo

influenciada e em constante interação com o discurso oficial sobre a guerra111.

Em suma, vê-se que a linguagem, seja ela oral ou escrita, desempenharia – e ainda

desempenha entre eles – papel fundamental na configuração de suas identidades, como se

dá com qualquer outro grupo social. Durante a guerra, criariam novos valores, um

vocabulário – e até um ‘quase idioma’ – próprio, representações e até uma ética específica

que, conjuntamente, consistiam numa linguagem do combatente – esta, então, refletindo

toda uma ‘cultura da guerra’. Não só refletia, é verdade, pois essa linguagem tambémmoldava os novatos e quem estava à volta, bem como reforçava a identidade dos veteranos

– criando uma espécie de círculo de (re)produção cultural e identitária112. Exemplo

interessante pode ser notado no diário recém publicado do ex-combatente S. Boanerges, jácitado: nos primeiros meses pouca interação se vê com o mundo da guerra, mas conforme

vão ocorrendo as primeiras batalhas, são incorporados novos termos do cotidiano da guerra,

vê-se o entrosamento com os colegas, com a terminologia militar e o aparato técnico

daquele evento113.

Sabe-se que o treinamento da FEB foi muito escasso e deficitário, bem como que a

maioria dos que embarcou eram civis ou militares da reserva com o mínimo de experiência

do mundo militar – de qualquer forma, com a convivência junto dos outros exércitos na

Itália, e durante as primeiras investidas no front, os expedicionários acabariam

incorporando valores caros à formação militar. Não me refiro aqui às questões técnicas,

estas também importantes, mas de mais fácil resolução, mas sim à formação de um espírito

111 Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.45.112 BURKE, Peter. “A arte da conversação”, p.18-41.113 Cf.: RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha” Belo Horizonte: Ed. do autor, 2002.

92

militar que faça com que os soldados suportem uma guerra. A educação e formaçãomilitares visam um tratamento ‘dessensibilizado’ das batalhas, já que é um tema muito

emotivo, de modo que um tratamento ‘humano’ comprometeria a formação dos oficiais e

praças. Interessante paralelo pode ser visto na formação dos estudantes de medicina,

também levados a racionalizar a dor e a morte. A padronização, racionalização, as relações

pessoais hierárquicas, o formalismo, a expressão oral militar, a valorização da repetição, da

rotina etc., são elementos centrais na formação de um oficial. Certamente que consiste

numa formação que leva à desumanização e a despersonalização, mas que, caso contrário,

significaria o afogamento dos soldados nas ondas de medo e angústia em que consiste a

guerra114. Colocaria o então 3o sargento Sebastião Boanerges em seu diário no dia 20 de

março de 1945:

“O major amer icano, médico da enfermar ia, disse-me que terei alta amanhã.Sairei do hospital.Visitei algumas enfermar ias: vi muitíssimos sem pernas, sem braços e outrasmutilações hor r íveis, conseqüência da inconcebível guer ra. Todos, quasetodos, são brasileiros.Houve um show com ar tistas amer icanas.”115

Apesar de parecer cruel, essa banalização da morte e da violência possibilitava a

sustentação moral e psíquica dos soldados que, não raro, também a tratava com sarcasmo,

ironia e até desprezo:

O. Arruda: “... quem me passou o front, sujeito de Sete Lagoas, [inaudível]...morreu... falou assim: ‘Você abre o olho, porque o alemão está dandoataques a toda hora’... ‘Está cer to’... dali a pouco a gente se instalou... todahora vinha um mor teiro, tiro indireto... mas foi e foi e nós nosacostumamos... a gente se acostuma com tudo, inclusive com a mor te... passaa não ligar ...”Márcio: Vira banal...O. Arruda: Passa a não ligar , é a coisa mais simples que tem... chegou a pontode falarem assim: ‘Fulano morreu’... ’Ah, morreu? Foi tarde’...”116

114 KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.22.115 RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha”, p.62.116 Entrevista com O. Arruda, Belo Horizonte, agosto/2002.

93

E aqui já se envereda pelo sentido e significado dados à guerra pelos soldados e

suboficiais – que diferem em muito dos estereótipos atribuídos por outros grupos – o que

geraria conflitos não apenas durante a guerra, mas, sobretudo, entre as versões da memóriaa serem valorizadas no pós-guerra. Era justamente essa diferença de experimentação do

evento bélico que produziria as relações de camaradagem com os colegas, o

reconhecimento e uma quase identificação com o soldado do outro lado da terra de

ninguém ou o sentimento de ódio e desprezo pelos oficiais e pessoal da retaguarda que nãosabiam o que era estar num front. Esses últimos, na FEB, seriam apelidados de “sacos B”,em alusão aos dois sacos distribuídos aos soldados para guardarem seus objetos pessoais: o

saco A, onde eram guardadas as coisas mais importantes, ia para frente com os soldados, ao

passo que o saco B ficava nos depósitos da retaguarda. Até hoje, entre os ex-combatentes,

os termos são muito usados e, no âmbito da memória não oficial, as experiências de cada

um são valorizadas muito em função da posição ocupada no front ou na retaguarda –quanto mais próximo e maior o tempo de permanência na frente, mais respeitado é um ex-

combatente.

As variações nos níveis de experimentação da guerra são os principais elementos

congregadores e que, portanto, estão à testa da configuração da identidade dos variados

grupos que fazem a guerra. Desse modo, surgem os conflitos de versões que gerariam

tensões durante a guerra e nas memórias após a volta para casa:

“O comandante trava a sua batalha num ambiente razoavelmente estável – oambiente do seu quar tel-general, povoado de oficiais do estado-maior que,por razões de eficiência, devem manter uma calma racional; e ele visualizaos eventos e os par ticipantes na batalha, de novo por razões de eficiência, emtermos per feitamente abstratos (...) imensos blocos de seres humanos,intelectualmente imagináveis, que vão para aqui ou para ali, que cumprem(ou falham) o que ele ordena. Ao soldado não é concedida tal visão ordenadae organizada. A batalha, para ele, dá-se num ambiente físico e emocionalextremamente instável (...) repentinamente (...) pode não ver mais do que osolo sobre o qual se atirou a fim de se proteger e ficar deitado, imóvel, com a

94

cara colada no chão, durante (...) minutos ou horas; pode sentirsucessivamente abor recimento, exultação, pânico, raiva, tr isteza, confusão, emesmo essa sublime emoção a que chamamos coragem. E a sua percepçãocom os seus camaradas soldados flutuará da mesma forma.”117

Interessante colocar que, mais tarde, alguns ex-combatentes que lutaram junto à infantaria –sargentos e tenentes – e que por circunstâncias várias se aproximaram do que se

convencionou chamar memória oficial, contam uma narrativa de caráter mais impessoal e

ligada à visão do comando – como se manobrassem divisões num campo de batalha – do

que às suas experiências de pequena escala na FEB; os mesmo depoentes que, por sinal, se

dedicaram mais às questões de justificação da guerra bem como da macropolítica. Isso nãosignifica que esqueceram as suas experiências, mas demonstra qual o conceito que fazem

de uma memória que tem como alvo o meio público. Voltando, a lógica do vencer X perder

que é própria dos escalões de comando quase nunca se aplica aos praças e, geralmente, a

única identificação externa que o soldado tem durante a batalha é com os seus

companheiros mais próximos na unidade de combate – e não a nação, o regimento, ou o

general. Essa dinâmica de grupo é outro dos elementos centrais da cultura da guerra – ou de

uma cultura militar – e fundamentais à identidade dos soldados; e é daí que surge uma

disciplina específica dos tempos de guerra – mais frouxa, mais eficiente e aceita – que tanto

era prezada pelos comandos americano e inglês desde guerras anteriores – bem como pelos

ex-combatentes até hoje quando comparam o Exército da FEB e o de Caxias.

Em situações de perigo, os soldados não se viam como subordinados a uma

instituição, mas sim ao pequeno grupo a qual estão vinculados – seja por uma questão de

sobrevivência pessoal – pois a vida de cada um dependia do outro, seja por medo, ou

‘vergonha’, de cair no desprezo, ridículo ou na lista negra dos colegas. Nesse trecho do

117 KEEGAN. “A face da batalha”, p.39-40.

95

depoimento de M. Couto, fica claro de onde vem essa tão polêmica virtude da coragem de

que tanto se fala:

“Você tem que pedir muito a Deus... não é coragem, ter coragem é mais nahora... eu acredito mais na vergonha... todos nós temos vergonha... agora, oque manda é a vergonha... a coragem nossa pode ir embora, a vergonhafica... se cr iar vergonha, você vira homem... você vai passando e leva um tapano rosto, no meio de cinco ou dez pessoas conhecidas... vai sentar no chão ecomeçar a chorar? A não ser que você leve mais vinte, aí não dá, não é? Mas,se você pode reagir , simplesmente, a vergonha aí, põe você lá para frente...eu acho assim...”118

Vê-se que a relação entre o que se convencionou chamar de “coragem” é estritamente

ligada à dinâmica dos grupos – sobretudo no âmbito da cultura militar – onde ela não é,nada mais, do que a manifestação de várias formas de coerção, horizontal ou vertical, que

vão sendo interiorizada por cada combatente. Ou seja, “coragem” e “vergonha” não passam

de faces da mesma moeda. A relação que se criava entre os integrantes dos pelotões e

grupos de combate era tão forte que não é difícil ler ou ouvir casos de soldados feridos que

faziam de tudo para melhorar e voltar para o front junto dos colegas, ocorrendo até casos de

fugas de hospitais e enfermarias com vistas a encontrar os amigos – e isso de fato ocorreu

na Segunda Guerra, por mais ‘oficialesco’ que tais casos possam parecer. O que,

obviamente, não significa a negação do que, de fato, acontecia na maioria das vezes em

caso de ferimentos: uma alegria esfuziante por ver a possibilidade de voltar vivo para casa.

De qualquer forma, situações como a descrita por Leonércio Soares eram comuns – sobre

um soldado que pede baixa em função de início de tuberculose e, vendo os médicos

ocupados, sente-se humilhado:

“Avaliando a diferença de situação entre ele e o fer ido, exper imentou, maisuma vez, um cer to mal estar , incomodamente ali sentado, recor rendo aosmédicos sem nenhum fer imento à bala. Estava doente, sim, mas aqueladoença começava a envergonhá-lo, diminuindo-o, como uma simulação paraa fuga.”119

118 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.119 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.132.

96

Mas, de qualquer forma, ele não deixaria de ver na doença a esperança do fim da

guerra. Outro caso exemplar dessa relação de camaradagem se daria com o ex-combatente

J. Lopes (cozinheiro – I/11oRI), que trabalhava na cozinha de campanha de uma Cia. J.

Lopes recebeu uma promoção para cabo do Capitão da Cia., mas negou, pois, caso

contrário, o colega de cozinha que era o atual cabo teria que ir para o front, o que seria algo

ruim, já que o sujeito em questão não teve treinamento nem instrução alguma sobre

combate120. Outro caso é do ex-combatente N. Silva, afirma ter fugido do hospital se

escondendo num caminhão que distribuía pão e se apresentou na sua unidade, não queria ir

para o depósito de pessoal por causa dos companheiros e da cia. – coloca que já tinha a

vantagem de estar “ambientado e não queria perder os companheiros”121. Em meio ao

monstruoso evento em que consiste uma guerra moderna, a valorização e o apego aos

pequenos grupos aos quais se está vinculado é a única forma de sobrevivência possível e de

manutenção da saúde mental. Tropas se movimentando, manobras, estradas e pontes sendo

construídas, limpeza de terrenos, deslocamentos das divisões blindadas e das imensas peças

de artilharia, navios chegando com víveres e munição, substituição entre batalhões e

regimentos inteiros, a aviação sobrevoando as cabeças, comboios e mais comboios de

caminhões, a correria dos serviços de saúde, os sons ensurdecedores das artilharias, a

polícia militar tentando ordenar tudo, a dispersão da população civil, os horários de

alimentação das topas etc. Em suma, vê-se que no ‘caos burocrático’ da guerra moderna,

essa verdadeira indústria, manter o bom-senso era coisa das mais difíceis – tanto que,

depois da guerra, em todos os exércitos, surgiriam os milhões de soldados neuróticos como

resultado final.

120 Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

97

As condições a que foram submetidos os exércitos que lutaram na Península Itálica

fez com que, muitas vezes, a guerra se assemelhasse mais a um front de 1914-18 do que àsmóveis e dinâmicas linhas da Segunda Guerra Mundial. Em decorrência do terreno

acidentado, sobretudo nos Apeninos, e do rígido inverno daqueles anos de 1944 e 45, as

batalhas na Itália se caracterizaram pela proximidade das linhas, pelo pouco uso de

blindados e aviação e por freqüentes escaramuças em pequenas vilas rurais que, não raro,

acabavam em lutas corpo-a-corpo. Em geral as missões envolviam pequenas unidades – de

batalhões para baixo – o que acabava ajudando no fortalecimento dos laços de

camaradagem entre os que estavam próximos, já que as batalhas nesses termos faziam com

que a dependência entre os soldados aumentasse, bem como ficasse mais clara. Na verdade,

muito mais numerosas do que batalhas propriamente dita, eram as patrulhas que

procuravam fazer o reconhecimento da linha inimiga, bem como os chamados “golpes de

mão”, visando a captura de prisioneiros para posterior interrogatório. Não é difícil

encontrar ex-combatentes que fizeram dezenas e até centenas de patrulhas – muitas vezes

organizadas apenas com soldados voluntários e por meio do revezamento.

Tudo isso acabava reforçando a tendência dos pequenos grupos em direção ao ‘auto-

centramento’, afirmação proferida por um dos mais famosos correspondentes da Segunda

Guerra, o norte-americano Ernie Pyle122. Essa era uma forma de manter o moral, dar algum

sentido e um senso de identidade dentro do tumultuoso processo desagregador em que

consiste uma guerra, bem como reforçar laços de solidariedade a fim de melhor se preparar

para tudo isso.

121 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003.122 Cf.: SOUZA, Túlio. “Instantâneos de um tenente em campanha ” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti eoutros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.204 e 221.

98

Manter uma posição no front não é apenas ficar lá parado com as armas nas mãos, énecessário cavar os fox-holes, spider-holes e as trincheiras, suportar a tensão constante,

manter o comando informado, prever os ângulos de tiros e posicionar as armas de todos os

calibres, passar as coordenadas das alças de tiro da artilharia, se abrigar do frio – que nos

Apeninos, em 1944, bateu recordes históricos – se alimentar e proteger, construir

armadilhas, fazer patrulhas ofensivas de reconhecimento, entre outras missões vindas do

comando. Cotidiano que, como estamos vendo, ia construindo um sentido específico da

guerra entre as praças.

Nesse meio, tornava-se explícita a separação entre a guerra dos praças e a guerra das

altas patentes que, sobretudo no caso da FEB, onde foi muito comum uma série de

problemas no alto-escalão, pois existiram muitas contra-ordens devido a conflitos de

autoridade, bem como ‘cabeças batendo’ devido à falta de experiência. Exemplo

paradigmático se deu com o III Batalhão do 6o RI, quando ordenado a fazer longo

deslocamento a pé na Itália, para se posicionar na reserva dos I e II Batalhões que, por

terem missão definida ganharam transporte. No entanto, chegando lá não ficaram na

reserva, mas foram substituir tropas americanas do 334o RI, entrando em ação. Acontece

que, devido à longa marcha, estavam exaustos e com bolhas no pé, então coloca Souza: “...seja quem fôr o dono daquela decisão genial, as suas orelhas devem ter ardido naquele dia,

pois os comentários e pragas a êle dirigidos não podem ser postos em letra de fôrma.”123.

Havia também insistente preocupação do comando em manter o moral em alta, bem como

um espírito ofensivo entre as tropas, lançando mão, para tal, de condecorações e citações de

123 Ibidem. p. 207.

99

combate – hoje valorizada pela memória dos ex-combatentes, mas relegada a planos

inferiores durante a guerra:

“Até onde posso lembrar , o soldado do 6o RI [o autor lutou no referidoregimento, mas é algo extensível a todos os exércitos] não se preocupava comcitações, elogios, considerações e outras coisas assim. Durante tôda a viagemmar ítima e durante os pr imeiros meses de campanha aquêle assunto jamaisentrou nas nossas cogitações. A razão – assim me parece – é que o infanteestava, a pr incípio, muito interessando em conhecer os lugares novos a quechegava bem como os seus habitantes e, mais tarde, já em campanha, as suaspreocupações eram as seguintes, por ordem de impor tância, sobreviver , ter oque comer , encontrar um lugar seguro e sêco onde dormir , não impor tandose fôsse uma casa, uma estrebar ia, ou um monte de palha.”124

Quando não desprezada e convertida em alvo de críticas ao alto-escalão: “Na guerra não hácovardes nem heróis. Existem uns mais outros menos instruídos. Os heróis são feitos,

acidentalmente; depois os comandos se encarregam de empolgá-los, empurrando-os sempre

e cada vez mais para novas missões, até acabar com eles.”125.

Mais do que não se preocupar com as categorias que planavam nas cabeças do alto-

escalão, além das principais preocupações dos soldados no front – conforme a citação – era

nos momentos de folga que muitos dos combatentes procuravam esquecer todos os

problemas e tirar algum proveito da situação. É claro que esses momentos dificilmente sãoconsiderados pelos discursos oficiais – quando não silenciados –, o que explica a

dificuldade em se encontrar ex-combatentes que falem desses aspectos. No entanto, ora ou

outra, ouve-se passagens que, ao contrário do que se pensa, são muito freqüentes e comuns

em guerras. Dessa forma, acabei sendo surpreendido por um depoente que, creio eu, se

encontrava inquieto com tantas perguntas sobre a “guerra”:Márcio: E o que vocês conversavam sobre o front... o que esperavam dosalemães...?M. Couto: Eu não lembro de conversa não. Não me lembro nada disso, eume lembro que eu e um soldado de nome Reis, a gente estava a fim é depegar mulher ... [r isos]... que tinha guer ra nós não sabíamos, nós quer íamos é

124 Ibidem. p. 208.125 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.240.

100

saber de mulher ...ele não bebia e eu bebia...eu quer ia tomar um vinho, masnão tinha dinheiro, tinha que me virar e procurar ...também, mulher semdinheiro...dinheiro escasso, não é? E vinho... tinha que se virar ...masmulher ...”126

Depois de certo tempo no front, os praças ganhavam o direito de tirar alguns dias de

folga na retaguarda – que variavam de acordo com as condições de cada unidades. Era algo

muito apreciado, pois poderiam conhecer cidades e pessoas, bem como ter diversões das

quais, certamente, nunca teriam a oportunidade de desfrutar se não fossem combatentes:

“... teve um per íodo lá, não sei se foi fevereiro ou março de 1945... eu fiqueimeio estressado... a gente fica meio... ouvindo tiro e tal e a gente fica com umtipo de neurose que era... e esse comandante meu, Major Manuel Campos deAssunção, falou assim: “L. Junqueira (93 anos, Serviço de GuerraQuímica/11RI), vou te dar aí cinco dias para você ir para a retaguarda paravocê descansar um pouquinho.”(...)“... tinha muitos car ros circulando da frente para a retaguarda... aí fiquei nabeira da estrada... assim passou um car ro lá... (...)... nós estávamos no hotelde trânsito... (...)... isso ficava bem na retaguarda... não escutava tironenhum... então nosso hotel de trânsito era lá em Florença, que o italianochama de Firenze, não é? E lá tinha o hotel dos brasileiros, o hotel dosamer icanos, vár ios países tinham lá... nós fomos para o hotel brasileiro... equem dir igia lá o hotel eram oficiais brasileiros... (...)... Pr imeira coisa que agente via lá na sala era coisa assim: ‘Esqueça a guer ra, viva os dias...divir ta-se...esqueça que você está guer ra’... então naquele hotel tem de tudo,permitido fazer tudo: levar bebida para dentro do hotel, vinho, o pessoal saíae ia para os bares, enchiam a cara de... e iam dormir ... tudo valia, não é?’(...)... Acho que só não podia levar mulher lá para dentro...mas isso aí vocêar rumava lá fora...então tinha mesa de bilhar , tinha jogo de dama, jogo debaralho, tinha piano...o que o sujeito quisesse fazer ... desse na telha fazer ...aquele soldado mocorongo, acostumado no cabo de enxada, chegava lá,sentava no piano e ficava bum, bum, viu? Eu vi, por exemplo, um pretinho,não é? Que foi pegar no taco...e as bolas estava lá na mesa de bilhar , não é?fez isso assim e pá!... meteu o taco naquele pano verde... r asgou o pano deuma ponta à outra na mesa... me marcou esse fato, não é? Porque, coitado,nunca tinha visto aquilo...aquilo era bilhar , ele pegou e pá, r asgou... ele ficoutodo nervoso: ‘Nossa eu vou ter que pagar isso aqui?’ [r iso]... o sargentochegou e falou: ‘Não ô pracinha, não se preocupe não, daqui à pouco a gentemanda mudar isso aí. Trocar , viu?... divir ta-se à vontade... (...)... lembrandodaquelas músicas lá do Brasil... no hotel era isso... para esquecer da guer ra,estava escr ito lá: ‘Esqueça que você está na guer ra’... chegava na hora doalmoço e na hora do jantar ... tinha do bom e do melhor ... tomava vinho...então a gente passava bem, passava cinco ou seis dias que a gente ficava lá,mas que era bem tratado era, viu?...”127

126 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.127 Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.

101

Nessas ocasiões os combatentes procuravam aproveitar ao máximo, tanto que não era

raro ver soldados – de todos os exércitos – sendo presos pela polícia militar devido a

arruaças, bebedeiras, confusão com mulheres e em bares etc. No entanto, esse tema das

folgas, hoje já foi ‘filtrado’ pela memória, pois, como já se disse, durante uma guerra, hácerta flexibilização da moral, o que acaba levando as pessoas a se liberarem para as mais

variadas atividades – seja entre os soldados ou civis. Era muito comum as jovens

arrumarem ‘namorados de campanha’ – mesmo entre as sociedades mais conservadoras –, e

a própria prostituição era mais tolerada. Muitas dessas ‘estripulias’ de guerra, mais tarde,

seriam criticadas e condenadas pelos ex-combatentes, seja por concordarem com tal visãoretrospectiva, seja pelo fato de que, após a volta, era impossível trazer isso para um público

que não viveu a guerra em seu território.

No entanto, muito raramente, é possível ouvir nas entrevistas, de modo rápido e

geralmente velado, uma naturalização do sexo que, indiscutivelmente, era muito adiantada

para a época:

W. Soler: O cara, para ir numa trepada tinha que ir passar lá e pegar umacamisa de vênus...se trepasse, então, tinha que ir lá para fazer lavagem depermanganato...[r isos]...e eles botam seta para todos os lados...qualquercidade eles botavam a setinha lá, não é?G. Taitson (81 anos, I/11oRI):...quando você entrava na fila para pegarcomida, o último homem tinha que levar uma camisinha de vênus...é ou nãoé? Aquilo fazia par te da ... [r isos]”

Estas falas saíram de forma descontextualizada numa entrevista com dois ex-combatentes

que, sem que fosse perguntado algo em específico, conversaram rapidamente sobre isso

entre si. Ainda nesse momento falariam de outras ‘situações impossíveis’ para a memória

oficial, e raras nos depoimentos individuais:

G. Taitson: “Tocha! Era o seguinte: mesmo no front, se você tir ava três dias,quatro dias ou cinco dias de folga... ele tinha... mas se ele tivesse seis horas,dez horas de folga, eles faziam tocha... ar rumavam uma carona qualquer ,para um lugar qualquer e se mandavam... cada um se virava... umfiscalizava o outro, não ir ia saber não... chamavam-se as tochas. E tanto que

102

era o seguinte: tinha mais baixa de gente fer ida em acidente do que emcombate... [r isos]... tinha muito mais fer ido em acidente do que emcombate... quer dizer , proporcionalmente... lógico...W. Soler: ...louco de ver tanta granada caindo... tendo uma folguinha, punhaduas latas de ração [as scatolletas] no car ro e caía fora...” 128

No entanto, vale lembrar que, posteriormente, a tônica geral era a crítica à desmoralizaçãotrazida pela guerra: “Ah! Nossa senhora... mulher era fácil. A guerra traz a decadência da

moral... a fome é má conselheira... na Itália... cai muito a moral... muito (...) Elas gostavam

muito dos brasileiros...”129. Discurso muito presente, também, nas memórias escritas ou

obras de ex-combatentes sobre o tema – juntamente com a miséria que traz a guerra bem

como da sua estupidez. Todas essas atividades, no final das contas, acabavam fortalecendo

as relações entre os combatentes: as folgas, a dura manutenção do front e, sobretudo,

durante as batalhas e patrulhas noturnas, estas as maiores provas à união de um grupo,

estabeleciam os círculos de confiança como numa ‘família’ – termo, inclusive, muito

corrente para se descrever essa condição.

Apenas na Itália é que os pelotões ficariam com os contigentes completos e

estabilizados, de forma que, com o tempo, o formalismo da relação entre comandantes e

comandados e a rejeição iam se dissolvendo, sendo substituída pelo humor, pela

intimidade, pelo voluntarismo e pela flexibilização da hierarquia – até porque os mais

graduados preferiam tirar suas divisas das fardas em virtude dos snipers130. Devido ao frio

era comum que dormissem juntos, pois assim poderiam somar os cobertores, temas como

saudade de casa e as cartas acabam sendo objetos de debates – coletivizava-se a intimidade.

Nesse contexto, voltando à noção de identidade de resistência, tal como os empregados

128 Entrevista com W. Soler e G. Taitson, Belo Horizonte, fevereiro/2002.129 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.130 Snipers eram atiradores de elite sempre presentes no front. Visavam especialmente os suboficiais ouoficiais, a fim de desestruturar o comando e, por extensão, todo um grupo de combate do qual este eradependente.

103

sempre se queixam dos patrões – quase como um ritual –, o mesmo faziam os praças: “...também critiquei e ‘meti o pau’ (desculpem o calão) nos responsáveis mais altamente

colocados na hierarquia da FEB [faz críticas relativas ao frio, ao terreno e aos suprimentos]

(...) Não há dúvida, praticávamos a democracia.”. Ainda segundo Souza, isso era visto atécomo um fator de avaliação do estado de cada soldado, pois coloca que criticar os oficiais

não era sinônimo de indisciplina, mas funcionava como uma válvula de escape

“... para um amálgama de emoções – tédio, mêdo, saudades do lar e dafamília, incer teza total sobre a vida durante a hora ou o minuto seguintes,falta de car tas da família... [o serviço de correspondência – sagrado no ExércitoAmericano – contou com muitos percalços na FEB] (...) De qualquer maneira, osoldado não pode deixar de fazer cr íticas aos seus super iores. Se não fizesse,isso ser ia um sinal infalível de que o infante está muito infeliz ou doente.”131

Muitas das críticas recaíam sobre missões ou ordens ‘sem sentido’, dado que, no

front, não tinham uma visão geral da guerra. Isso não significa, é claro, que o comando

nunca errava – sobretudo nos Exércitos Aliados isso era muito comum dado que –diferentemente da Wehrmacht, que tinha uma doutrina mais flexível – o comando fazia

muitas interferências de ordem tática, ao invés de se preocupar unicamente com os

objetivos gerais e a logística, o que daria mais liberdade aos grupos de combate e aos

comandos próximos do front.

De qualquer forma, isso tem ligação com a percepção da guerra de um soldado –ainda hoje, entre os ex-combatentes que seguem uma linha de memória distante da visãooficial e grandiosa, se prendendo às experiências pessoais, é muito difícil para leigos

compreenderem a imagem de uma batalha. Citando a história que um ex-combatente fez da

primeira batalha do Somme, Keegan afirmou que “... as informações obtidas por

131 SOUZA, Túlio. “Instantâneos de um tenente em campanha ” In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti eoutros. “Depoimento...”, p.220.

104

Middlebrook provinham imediatamente, apenas dos oficiais subalternos e dos praças, cuja

visão era bastante restrita e que, coletivamente, pintam um caos quase indecifrável.”132.

Enfim, viu-se que, em função das duras condições as quais estavam submetidos, os

convocados foram se estabelecendo como um grupo unido, transformando-se em

combatentes e, depois, em febianos. Nessa altura, enfrentavam as maiores reviravoltas de

suas vidas – era a ‘experiência fundadora’ –, eventos esses que marcariam

irrevogavelmente suas identidades e permaneceria eternamente em suas memórias. No

entanto, se tudo que foi dito até aqui é aplicável à experiência da guerra em geral,

dediquemo-nos, agora, ao que consistiu em elementos específicos do caso brasileiro.

vA convivência entre os convocados para o Corpo Expedicionário solidificou os

primeiros elementos que faziam deles um grupo de ‘iguais’, aspecto indispensável ao

estabelecimento de uma identidade – qualquer que ela seja. Como já se viu, até aquele

momento pouca coisa os unia, a não ser o que, na maioria das vezes, une soldados de um

exército qualquer que vai a uma guerra: uma certa resistência – mais ou menos intensa – àconvocação e aos treinamentos e, em segundo lugar, o fato de, em questão de meses, serem

lançados num mundo completamente estranho às suas realidades e com poucas

justificativas dignas de consideração. Além do fato de, no caso dos exércitos modernos, a

maioria ser proveniente das classes médias e pobres da sociedade: os desempregados,

‘vagabundos’ e ‘malandros’, por exemplo, são os alvos preferenciais dos alistadores. A

partir desse quadro, é interessante notar como os combatentes – e os ex-combatentes hoje –iam aos poucos definindo o perfil do ‘febiano’, criando uma identidade, suas origens,

132 KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.243.

105

gostos, valores, sentimentos e, é claro, tudo isso em constante interação com outros

sujeitos. Dessa forma, seriam os periódicos de campanha elementos indispensáveis para o

historiador que pretende analisar tal processo – como já foi colocado anteriormente.

Um periódico de campanha, pelo menos os não oficiais, contava com uma infra-

estrutura e formato bastante tosco, era redigido em máquina de escrever, quando não à mão,

e algumas poucas cópias eram mimeografadas – de modo que os soldados o passassem de

mão em mão, para que o maior número possível pudesse lê-lo. Eram impresso em formato

A4 e contavam desde uma até quatro ou mais páginas. Encabeçavam a produção,

geralmente, tenentes, podendo ou não haver apoio de oficiais americanos – a colaboração,

com textos, informes etc., era bastante diversa, vindo sobretudo das bases.

Os redatores do jornal “O Chicote” , cujo primeiro número circulou em 18 de

fevereiro de 1945, tinham uma intenção clara em produzir tal periódico. Estreitamente

ligado à realidade e aos dilemas dos soldados em guerra, ao mesmo tempo em que

reproduzia muito da cultura e dos valores dos praças, procurava, igualmente, estabelecer

um quadro mais amplos de pertencimento. Ou seja, se o jornal procurava fornecer

entretenimento às tropas, discutindo temas como a saudade da noiva que ficou em casa,

contanto piadas e situações sobre integrantes dos pelotões e batalhões etc, aproveitava o

ensejo para discutir ali, nas mesmas páginas, fatores que, claramente, se ligavam àspreocupações com o moral da tropa, a justificação da guerra e a manutenção de um espíritocombativo. Devido ao caráter amador desses periódicos, é impossível saber a autoria de

cada um dos textos ou seções, mas, pelos menos aos olhos atuais, é possível perceber uma

montagem de elementos oriundos do mundo dos praças e outros que, certamente, contam

com o peso da mão da censura que, como se sabe, foi muito presente na FEB – seja no que

toca aos periódicos de campanha ou no caso das cartas enviadas e recebidas de casa.

106

Percebe-se uma tensão entre esse dois discursos, que – e isso varia de jornal para jornal –contam com intensidades diferentes em cada número. Vale lembrar que havia pelo menos

três tipos de periódicos na Força Expedicionária Brasileira: os “oficiais” – ligados a órgãos

do comando e filiados ao DIP –, os “oficiosos” – ligados a órgãos que não do comando,

dirigidos por suboficiais, mas com o consentimento das altas hierarquias – o caso de “O

Chicote” e, por fim, os “livres” – os mais artesanais, feitos, muitas vezes, à mão ou

mimeografados, tendo origem entre as tropas com a preocupação fundamental de criticar e

divertir os soldados – por sinal, os mais difíceis de serem encontrados hoje, não por acaso,

é claro133.

Os “oficiosos” eram maioria, pelo menos em número de títulos, mas não em tiragem

e circulação. Entretanto, contavam com mais consideração entre os soldados do que jornais

como o “Cruzeiro do Sul” ou “Globo Expedicionário” , que tratavam da realidade nacional

em termos enfadonhos ainda para os dias atuais. São, portanto, um dos campos mais ricos

para se perceber essa tensão sempre presente no estabelecimento das identidades.

Costuma-se dizer que a censura é burra, e muitas vezes isso é verdade, como

veremos, mas freqüentemente realizavam jogadas inteligentes para ligar o mundo dos

praças à realidade pretendida pelos comandos. O jornal “O Chicote” criaria um

personagem, “Calixto”, uma espécie de ‘tipo médio’ do febiano que, sem dúvida, condizia

com a realidade de muitos deles – sabiamente, a despeito do autoritarismo e dos desmandos

correntes quando da convocação, que seguia a lógica do castigo e da punição, o autor de

“Calixto” se apropriava dos dilemas dos combatentes brasileiros para depois dar um passo àfrente. Então diz o texto “Calixto”:

133 Cf.: NEVES. “A Força Expedicionária Brasileira; uma perspectiva histórica”, p.50-52.

107

“Um dia bateram à por ta da sua casinha humilde e lhe puseram nas mãosum envelope fechado. – Que será isto? – ficou ele pensando antes de abr ir –Quem poder ia ter enviado aquilo? (...) Havia, ali dentro, um papel escr ito;que eram letras não havia dúvida: restava, porém, saber o que diziam...Mais tarde, o filho do patrão, lendo o ‘biiete’, informou-o de que havia sidosor teado para o serviço do Exército...(...)A notícia caiu-lhe em casa como um raio. Ficaram todos ater rados. (...)Foram dias de ânsias aqueles que precederam a sua par tida para a Capital;dias angustiosos, que êle passava der reado, com uma vontade doida de fugir ,de fugir para qualquer lugar desconhecido, onde o Exército jamais pudesseencontrá-lo.(...)[já no Exército]... pouco a pouco, as dificuldades começaram a diminuir , e,um dia, descobr iu, alegremente, que já era capaz de distinguir a pernadireita da esquerda (...) Depois disso uma infinidade de coisas de outrascoisas ele aprendeu...E hoje...

...Hoje êsse nêgro Calixto é um grande soldado, um soldado de valor e demuita fibra. Um soldado que ainda não sabe ler muito bem, mas que, apesardisso, vem escrevendo, a bala e baioneta, admirável página de heroísmo,abnegação e, coragem. Gato Preto em campo de neve, esse negr inho, que tãoativamente vem, cooperando para a VITÓRIA que há de trazer aconfraternização do mundo de amanhã, tem em si o valor de um símbolo!...

Calixto: o Brasil acredita no seu esforço e na sua coragem! Mostre aosgermanos que o problema das raças é um problema apodrecido... L.F.M.”134

Como nos famosos sambas da época do Estado Novo que falam do malandro

‘regenerado’, que desceu o morro e arrumou trabalho, esse trecho coloca as coisas nos

mesmos termos – se inicialmente a rejeição à convocação era total, com o tempo Calixto ia

percebendo que só ganhou entrando no Exército, além de ter o reconhecimento da nação –apesar de não compreender muito bem o que isso significava. No entanto, é muito difícil

saber se, de fato, isso fazia algum sentido para o soldado que lutava no front ou estava de

passeio na retaguarda. Até que ponto ele se identificava com isso? Por outro lado, é certeza

que essa imagem do ‘convocado regenerado’, ou do ‘pobre coitado’ que conseguiu dar a

volta por cima é muito corrente nas memórias dos ex-combatentes, como já ficou claro em

citação anterior, já que, depois de ter ido à guerra, sobrava essa percepção das coisas,

apenas, que possibilitava o mínimo de reconhecimento das experiências individuais em

108

face da grandiloqüência da memória público-oficial. Lembrando que, pelo menos parte da

memória oficial, mais ligada às Associações e não às Forças Armadas, incorpora a questãoda origem humilde dos combatentes.

Em outros momentos, é possível ver certos exageros por parte dos oficiais S/2 da

FEB, preocupados demais, talvez, em função das correntes críticas que o oficialato norte-

americano fazia à combatividade e ofensividade dos brasileiros – sobretudo até fins de

fevereiro, quando o impasse do Monte Castello, pelo menos até o dia 21 e em pequenas

escaramuças até o dia 25, terminasse. Em texto veiculado, depois de algumas piadas na

página anterior e com mais delas nas posteriores, pelo jornal “O Chicote” em 25 de

fevereiro de 1945, pode-se ver a que ponto chegou-se na tentativa de elevar o moral das

tropas – nesse caso, foi reproduzida a extensa carta de uma “mãe brasileira” do ano de 1917

quando do rompimento das relações do Brasil com os países da Tríplice Aliança, e aqui

está um trecho dela, depois de muita patriotada:

“... Uma pátr ia honrada precisa de que a honra dos seus soldados sejainatacável, e antes eu quizera ver -te mor to do que manchares com uma açãoindigna, que tivesse de corar a tua farda de soldado. Ela deve revestir a tuahonra imaculada como o vestido de noiva de tua mãe, revestia a honra desua castidade. ...”135

Certamente essa carta foi escrita por uma mãe, se é que o foi de fato, que não tinha um filho

na guerra – a julgar pela linguagem, pode ter sido feita por alguma figurona esposa de

ministro, secretário ou até presidente da República. No periódico da LBA – a LegiãoBrasileira de Assistência – dirigida por D. Darcy Vargas, o que não faltam são textos e

cartas de mães postiças desse gênero. Fica-se a imaginar a reação de um soldado ao ler tal

carta, de fato chega a ser ofensivo, além de reforçar a sensação de que nada além dos seus

134 “O Chicote” , n.1, Stáfolli, Itália, 18/02/1945, p.4.135 “O Chicote” , n.2, s. l. , Itália, 25/02/1945, p.2-3.

109

colegas mais próximos compreenderiam pelo que estava passando. Disso, conclui-se que,

seja por concordância – quando os periódicos abordavam a guerra dos praças – seja por

negação – quando se lia o ridículo nesses jornais – os laços de camaradagem só se

reforçavam, e a identidade dos combatentes se solidificava, ao mesmo tempo em que se

fechava mais, o que é verdade, geraria problemas a longo prazo.

A despeito disso tudo, esse periódico em específico, “O Chicote” , apesar de

aprovado pelo comando, como ele mesmo faz questão de colocar, dava um espaçoconsiderável, ocasionalmente até maior, à experiência e à guerra dos praças, como se pode

ver em seções – que eram mais ou menos permanentes – como a “Caixa de

Correspondência”, que fazia brincadeiras e cômicas com vários soldados, sargentos e cabos

– nominalmente – como essa: “Sgt. Milton: Sentimos informá-lo de que êste jornal nãopode ser guarida a ‘lamentos amorosos’. Isto ficaria melhor entre você e ela. Não acha?”.Ou esta, sobre uma espécie de rito de passagem para se tornar, de fato, um

homem/combatente – e não estava falando do batismo de fogo:

“Reflexão de um bêbado(Verso predileto de um cer to Sgt. já muito ‘Chicoteado’)Quem passou pela Itália em branca nuvemE nunca em ‘far ra’ alguma se meteu,Quem nunca sentiu o gosto do bom vinhoQuem passou pela Itália e não bebeu,Foi ‘projeto de homem’ e não homem,Não foi ‘troço’ na vida como eu!”136

E ainda havia “achados e perdidos”, muito sarcástico, anúncios de venda de “muambas”,“Chicotadas às cegas” etc.. Novamente, contudo, a identidade dos combatentes ia se

forjando, sobretudo na perspectiva da resistência, seja contra os rigores do front, nos

momentos de diversão ou em contraposição ao discurso do comando. Na prática, as

estratégias e mecanismos de tais atitudes apareciam na recorrência ao alcoolismo e ao fumo

110

– para um soldado no front, por exemplo, quarenta cigarros por dia era o mínimo necessário–, na prostituição, nos jogos e brincadeiras – futebol e boxe –, na religião e na adoção de

uma atitude fatalista que se manifestava na linguagem tragicômica do front e, sobretudo, no

apoio dos companheiros. Juntos, elaboravam variadas formas para fugir de situações

perigosas ou de ordens suicidas vindas do alto comando, e, independente da nacionalidade

dos exércitos, práticas como essas são tão antigas quanto as guerras.

Leonércio Soares cita caso interessante sobre uma patrulha, realizada em abril de

1945, que, segundo os infantes, era muito arriscada, dada as intensas movimentações de

tropas alemãs na região em função dos preparativos para o que seria mais uma ofensiva de

primavera. Sabendo da periculosidade da missão, o sargento que comandava o grupo se

negou a nomear os que iriam junto dele na tal patrulha, se reservando aos voluntários que

não tardaram a aparecer. O cabo, preocupado com a situação, pensou na possibilidade de

enganar o comando, realizando uma patrulha só para constar nos registros – pois caso

contrário, uma negação seria vista como quebra de disciplina e descumprimento de uma

ordem – o que traria sérios problemas para o grupo. Então diz o cabo – que não poderia

fazer parte da patrulha, pois assumiria o comando do restante do grupo na ausência do

sargento:

“Pois bem: vocês irão somente até aí [se referindo a um local já bastanteconhecido por eles no front e que, portanto, não oferecia maiores perigos]. Nãoavancem mais e tratem de se abr igar e façam alguns disparos... é o quebasta. O alemão estará per to e vai responder com seus tiros e rajadas demetralhadoras, granadas de mor teiros e very-light... o diabo! A noite pegafogo e vocês não terão condições de prosseguir . Quem vai saber o que sepassou lá naqueles bar rocões escuros? Na volta você inventa a sua histór ia,conta bravatas que irá pressionar o comando: chocou-se com uma patrulhainimiga, trocaram tiros e eles foram der rotados, mas como a frente foialer tada, não houve outra solução que retornar . Não há como duvidar : os

136 “O Chicote” , n.3, s.l., Itália, 25/02/1945, p.3.

111

tiros foram ouvidos, as bombas explodiram e os very-lights iluminaram anoite. E você, com a sua patrulha, estava lá combatendo...”137

Comum também, seja como forma de fugir da convocação, ou mesmo das batalhas e do

próprio front, era a prática da automutilação – Keegan coloca que durante as fases mais

críticas das batalhas do Somme e Ypres, vários soldados atiravam nas próprias mãos a fim

de ficarem impossibilitados de seguir em frente138. No caso da resistência à convocação, o

ex-combatente O. Lopes, que já era sargento comandante de grupo de combate antes do

embarque, cita o caso de um dos seus comandados, Almeida, que, desejando fugir dos

treinamentos, cortou o próprio pé:“Chegou per to de mim, com uma cara: ‘Sargento, eu machuquei o pé e nãoposso fazer o treinamento’... ‘Não pode? Deixa eu ver ...isso aí? Tenhapaciência...’... ele se chamava Almeida...‘...tenha paciência Almeida, tenhajuízo... quer dizer que com isso aí você não pode? E lá na guer ra, como é quevai ser Almeida? Você vai dar um cagaço lá?’ Ele falou: ‘Olha sargento,para mostrar para o senhor que eu não sou o que o senhor estápensando...’... ele limpou o sangue do pé, calçou a bota e: ‘Lá na linha defrente, onde o senhor tirar o pé eu coloco o meu.’... “Olha Almeida... o quevocê está falando aí, está todo mundo de testemunha”. E de fato foi, todas aspatrulhas que eu fazia ele era o pr imeiro a se apresentar ... eu chamavatambém...”139

É claro que essas práticas de resistência eram uma arma de dois gumes, pois se

realizadas isoladamente, ou de modo que comprometesse, de alguma forma, a segurança e

as condições do grupo a qual se estava vinculado, facilmente um soldado poderia cair em

desgraça entre os seus companheiros o que, certamente, era a última coisa que desejava.

Nesse contexto, um soldado seria visto como covarde, podendo até mesmo perder o

respeito do grupo – caso sua ação criasse problemas com o alto comando ou deixasse o

superior direto em situação difícil. Por outro lado, se as formas de resistência ao

regulamento contribuíssem com os grupos, pelotões e cias., o sujeito em questão caía nas

137 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.264.138 KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.254.139 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.

112

graças dos colegas, mesmo se cumprisse uma função considerada menor, como se deu com

o cozinheiro J. Lopes, aquele que negou a promoção para cabo a fim de evitar que o colega

fosse para o front. Uma cozinha avançada de cia. era composta por três cozinheiros, trêsauxiliares, um cabo e um sargento – tudo isso de acordo com o regimento do exército norte-

americano, que também dava os cursos e prescrevia todas as normas de preparação e

distribuição dos alimentos. Uma das mais correntes reclamações dos febianos recaía sobre

o fato da comida americana ser adocicada e, de fato, os cozinheiros eram instruídos a

colocar açúcar até no feijão, pois assim teriam algo bastante calórico para enfrentar o rígido

inverno – no entanto, quando os fiscais das cozinhas “Viravam as costas, a gente começava

a botar sal (...) Eu não sei se foi bom ou se foi ruim, mas brasileiro gosta de sal, não é?Feijão com açúcar é gostoso, mas o pessoal não adaptava”140.

A despeito das tensões, até hoje presentes, entre os companheiros de front, há vários

temas que, independente da condição de cada um durante e depois da guerra, unificam os

sentimentos de identidade e de pertencimento quando o grupo é/era julgado por outros

sujeitos que não fazem parte daquela realidade. Como já foi dito, na configuração da

identidade dos febianos, não apenas eles, mas uma série de outros sujeitos fazia parte do

processo Nesse ínterim, vale citar caso muito interessante em que se vêem claramente as

disputas estabelecidas entre os combatentes e os grupos externos.

A LBA – Legião Brasileira de Assistência – era uma instituição presidida por D.

Darcy Vargas, criada durante o Estado Novo, e no período da guerra esteve completamente

afinada ao esforço de guerra e à mobilização da sociedade. Estava sempre fazendo

campanhas como as de atendimento às famílias dos expedicionários mais necessitados,

140 Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

113

visitas aos feridos já retornados, convocando “madrinhas de guerra” para que mantivessem

contato com combatentes, ou apoiando outras iniciativas como as campanhas de

recolhimento de metal. O “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” procurava

fazer uma ponte entre as realidades nacionais relativas à mobilização para a guerra e os que

combatiam na Europa . Com o tempo, foram criadas atividades de recolhimento de material

junto à população, depois remetido aos soldados, bem como se instituiu uma seção onde

parentes deixavam rápidas mensagens para os seus filhos e maridos no front. A LBA se

dizia apolítica, mas sempre estava criticando os adversários do regime que, com o

afrouxamento da censura, faziam fortes críticas ao governo. A LBA afirma que era absurda

a fragmentação da unidade nacional, uma vez que um contexto como aquele exigia a uniãoe abnegação de todos. Era comum, também, noticiar entrevistas e declarações do presidente

Getúlio Vargas sobre a FEB e a situação política nacional – chegou até a veicular

mensagem de Prestes aos expedicionários, falando da importância da unidade nacional

naquele momento, como forma de combater o nazi-fascismo. Davam-se notícias de várias

capitais e estados do país, curiosidades, piadas que valorizavam tipos nacionais como o

‘caipira’ e o ‘sertanejo’, dados sobre o potencial energético e geográfico do Brasil etc.

Apesar de todo esse esforço, a relação entre a LBA e os expedicionários não foi das

melhores – a partir da leitura do “Boletim...” podem-se notar as indisposições que se

estabeleceram. Vêem-se duas reações por parte dos expedicionários: ora o desinteresse por

certas iniciativas da instituição, ora o repúdio a iniciativas que exigiam uma boa

receptividade dos soldados. Então escreve Leonércio Soares:

“Em meados de dezembro, começaram a aparecer os pacotes depresentes da LBA. De início, ignorando-se o que neles se continham, eramrecebidos, alegremente. Algum tempo depois, nem aber tos eram: jogava-sefora do jeito que se recebia

Era comum encontrarem-se nesses pacotes de porcar ias:- pulôveres usados, catingando suor ;

114

- car teiras de cigar ros ordinár ios, aber tas, e consumida par te deles;- pedaços de chocolates mordidos; e- outras imundices mais

Esses infames e sórdidos presentes haviam sido obtidos através decampanhas deploráveis, pelas cidades brasileiras, nas quais moças, senhorase até cr ianças, pediam ajuda para o soldado que combatia na Itália. E osindivíduos abordados, muitas vezes assediados, entregavam o que tinham emmãos, mesmo que fossem os restos do que estavam comendo. Sobras ourestos que fossem, eram embrulhados, empacotados e mandados para oscampos de batalha, como presentes da LBA.

Só esses imundos e torpes pacotes lá chegavam. As coisas boas, preciosase úteis, que, efetivamente, foram arrecadadas nas campanhas, não. Nuncachegaram à Itália.”141

No entanto, ao contrário do que diz Leonércio em suas memórias, bem como muitas

das reclamações de ex-combatentes sobre as coisas enviadas por suas famílias – doces,

roupas e cigarros – que não chegavam a suas mãos, os presentes, de fato, iam para a Itália,

mas com um porém: a LBA abria todos esses pacotes – com coisas ‘ruins’ ou ‘boas’ – e,

juntamente com o material recolhido nas tais campanhas, fazia pacotes padronizados que,

no geral, eram tidos como de péssima qualidade. Além de tudo, violavam correspondência

particular – o que gerava a ira dos combatentes. As reclamações destes, contudo, não se

prendem ao período posterior à guerra, mas durante o próprio conflito, a ponto das críticas

serem tão incisivas que, em mais de uma oportunidade, foi necessária a intervenção do

editor do “Boletim...” , Lobivar Matos, pedindo mais “fineza” aos expedicionários:

“Soubemos pela leitura de uma nota estampada no jornal “... E A COBRAFUMOU” que os presente enviados pela L.B.A., por ocasião do Natal, nãoforam devidamente apreciados pelos nossos bravos expedicionár ios.Lamentável.

As legionár ias ficaram muito tr istes, justamente porque foi com car inho,esforço e amizade, que trabalharam durante seis dias para que vocêsrecebessem uma modesta, mas sincera lembrança do Brasil, na maior festacr istã da humanidade. Apesar de tudo, para mostrar que a intenção daL.B.A. continua ser a de colaborar com vocês, pedimos a fineza de nosmandar dizer o que deseja da instituição e das populações da retaguarda,uma vez que, entre as lembranças da L.B.A., a instituição encaminha a vocêsos presentes que o povo lhe confia.”142

141 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas da Força Expedicionária Brasileira”, p.140-141.142 “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.3, 15/03/1945, p.3.

115

No número posterior143 Lobivar voltaria a atacar o jornal “E a cobra fumou” , em

decorrências de mais críticas à LBA – que por sua vez veicularia em seu “Boletim...” cartas

de expedicionários agradecendo os presentes enviados pela instituição, numa tentativa de

isolar o periódico. Mas tal fato era batalha perdida, pois os periódicos de campanha se nãoeram ‘a expressão sincera’ dos febianos, estavam muito mais ligados à realidade pelo qual

passavam, ao contrário das patriotadas do “Boletim...” . Interessante que, no tocante aos

informes políticos da LBA, extremamente parciais, nenhuma polêmica foi aberta por parte

dos expedicionários, mas quando se tentou interferir na realidade destes, aí sim a guerra foi

declarada. Em outros termos, o contexto político pouco importava aos expedicionários,

tanto que a maior contenda com a LBA se deteve em algo imediatamente palpável para

eles: os presentes de baixa qualidade, a demora no envio das cartas e encomendas e a

péssima qualidade dos cigarros vindos do Brasil e distribuídos às tropas. O ex-combatente

N. Silva coloca que até a população italiana tinha “pavor” dos cigarros brasileiros: Iolanda

500, Miss Tigre e Libertine, sendo muito valorizados, por outro lado, os norte-americanos

Chesterfield, Luck Strike e Cammel144. Uma segunda polêmica ainda – menos fervorosa, éverdade – se deu entre a LBA e os expedicionários. A LBA incentivava “madrinhas de

guerra” a ‘adotar’ soldados, de modo que as primeiras ficavam responsáveis por enviar

cartas de modo a estabelecer um diálogo com os ‘bravos soldados distantes do lar’. No

entanto, como se deu com o caso das críticas aos presentes, diversas vezes foi necessáriochamar a atenção dos expedicionários no “Boletim...” para que não fossem “preguiçosos” e

143 “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.4, 31/03/1945, p.2. Bemcomo nos “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.8, 31/05/1945, p.2. e“Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.9, 15/06/1945, p.2. As críticas,posteriormente, não eram mais veiculadas apenas pelo “E a cobra fumou” , havendo cartas de combatentes,individualmente, criticando ao tais presentes – caberia às madrinhas responder as cartas tentando convence-los das boas intenções da Legião.

116

cumprissem com suas obrigações de afilhados: “... tanto as madrinhas como os afilhados

têm obrigações recíprocas. Não é justo, pois, que vocês deixem de responder às cartas das

madrinhas.”145. Algumas cartas eram impressas nos jornais e, até nessas, começaram a

aparecer mensagens do tipo: “... espero que não seja preguiçoso...”146 – ou seja, parece que,

de fato, tal iniciativa, vista, talvez, com desinteresse e como uma espécie de caridade

grotesca, não conseguiu ter a atenção dos que lutavam na Europa.

Numa outra frente, a LBA procurava fortalecer e dar ares de seriedade à situação pelo

qual o país passava, de modo que acaba evidenciando algo hoje silenciado pela memóriaoficial e que, até hoje, muitos ex-combatentes não gostam de recordar – já que atinge

pontos mal resolvidos e polêmicos. O boato de que a FEB estaria fazendo turismo na

Europa, ao contrário do que muitos acham, tem origem ainda quando da FEB na Itália – e

tinha ligação com a recusa da população em endossar as medidas mobilizatórias do

governo147. Desse modo, havia uma preocupação por parte do Estado Novo – e por

extensão da LBA – em abafar tal versão. Na coluna de Lobivar Matos no “Boletim...” de

15 de abril, está escrito:

“Correspondentes de guer ra de jornais brasileiros refer iram-se a informesprovenientes do Brasil, segundo os quais julgamos [trecho danificado nooriginal] que o pessoal da FEB está levando uma boa vida num esplendidopasseio. Deve haver engano. Engano ou incompreensão dos informantes. Éclaro que numa coletividade há elementos que sentem e há elementos quenada sentem. E em matér ia de solidar iedade humana, muito menos... Isso,porém, não quer dizer que o nosso povo não sabe avaliar em seus justostermos os sacr ifícios daqueles que saíram daqui para combater ,conscientemente, os soldados de Hitler .”148

144 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003.145 “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.5, 15/04/1945, p.2.146 Idem.147 Cf.: CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”.148 “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.5, 15/04/1945, p.2.

117

Em suma, vê-se que o projeto estadonovista estava indo por água abaixo, tendo o seu

discurso esvaziado e achincalhado por todos os lados. Dessa forma, sendo a FEB uma

extensão desse projeto, os expedicionários, que pessoalmente estavam desinteressados em

tais questões políticas, teriam de enfrentar a rejeição e o descaso por parte dos opositores de

Vargas, que fantasiavam em suas mentes uma possível tentativa de golpe por parte da ForçaExpedicionária Brasileira – tudo isso acabaria afetando suas trajetórias de vida

permanentemente. Por fim, foi nesse contexto conturbado, da ‘experiência fundadora’ que a

identidade dos combatentes ia se formando.

vA despeito da pluralidade de versões existentes, percebe-se que, ocasionalmente,

alguns elementos ganham significado universal, de modo que acabam ajudando na

congregação do grupo e na definição de uma memória da FEB. Tal fato se dá, mais uma

vez, quando da configuração de uma nova cultura militar entre os expedicionários – leia-se

praças e suboficiais –, por oposição a uma variante que, sobretudo em decorrência das

influências da doutrina norte-americana e da vivência da guerra, começou a ser vista como

antiquada, autoritária e ultrapassada. É nesse âmbito que nasceria, ainda na Itália, a

separação entre o tradicional ‘Exército de Caxias’ e o moderno ‘Exército da FEB’.No livro “Depoimentos de oficiais da reserva sobre a FEB” , cuja primeira edição

data de 1949, um dos autores coloca que na época da guerra os expedicionários jáestabeleciam a diferença entre o “novo exército” e o que ficara no país: as comparações se

faziam, sobretudo, no âmbito dos “costumes”, dos “métodos” e dos “princípios”. A imagem

de Caxias, então patrono do Exército Brasileiro, era vista com desdenho entre os

expedicionários, segundo Celso Castro

118

“A razão estar ia na exaltação extrema, quase mística, de que ele fora vítima,elevando-o à condição de modelo inatingível e inimitável. Com isso, osímbolo perdera a sua humanidade e, com ela, qualquer possibilidade deidentificação emocional com os soldados, seres falíveis e cheios de fraquezasdemasiado humanas. O resultado acabou sendo o oposto ao que se desejavaobter com a exaltação do patrono: ‘caxias’ passou a designar um indivíduoexageradamente r igoroso em disciplina – acepção que difundiu-se tambémentre os civis.”149

No entanto, estejam ou não corretos os autores do “Depoimentos...” , o fato é que a

sensação de rompimento com a rigidez disciplinar, bem como as mudanças nos

relacionamentos entre os praças e seus superiores imediatos, tomou posição central nas

recordações de qualquer ex-combatente. Durante as batalhas os soldados foram tomando

consciência da camaradagem e da condição de dependência que suboficiais e soldados

possuíam uns dos outros – de modo que se viam, agora, como amigos, valorizando a

personalidade do próximo e dando novos significados a termos como responsabilidade,

obrigação e voluntarismo, em lugar dos sentimentos até então monopolizadores naquele

momento: autoritarismo gratuito e intolerância.

Tais características eram provenientes do tradicional Exército Imperial que, segundo

F. McCann, não era composto por “soldados-cidadãos” dispostos nas diversas patentes,

mas sim por duas “castas”: o oficialato e as praças, “o conceito básico de dever era simples:

o superior dá ordens e o subordinado as cumpre. Não havia diálogo nem debate e dava-se

pouca atenção ao moral”150, vindo daí, talvez, o descaso em relação às várias situações que

vimos quando da época da formação do Corpo Expedicionário. Em lugar de certa

mentalidade de corte então reinante nas Forças Armadas, os expedicionários

experimentariam a disciplina pragmática e ‘democrática’ da guerra real, sem abusos de

hierarquia e voltada única e exclusivamente para o ‘fazer’ da guerra, e não como um

149 CASTRO, Celso. “A invenção do Exército”, p.34.150 McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.321.

119

modelo de organização social. Tais valores, que correspondem à doutrina do chamado

‘exército democrático’, chamariam a atenção dos febianos, a ponto de convencer muitos de

que deveriam ser aplicados ao país como um todo – como uma espécie de projeto nacional,

mas isso ainda será discutido no capítulo seguinte. Na verdade, já no Brasil era possível

notar diferenças gritantes nas relações dos soldados com os oficiais e suboficiais, como se

pode notar nas conversas com os ex-combatentes. Isso se dava em decorrência da entrada

em massa de oficiais do CPOR nas fileiras da FEB que, já que não tinham forte inserção no

mundo militar da época, eram sempre mais flexíveis e liberais se comparados aos seus

colegas da ativa.

É a partir dessa experiência que muitos ex-combatentes dão significado à palavra

‘democracia’ – questão que deve ser analisada com muito cuidado nos depoimentos. As

interpretações mais clássicas acerca do fim do Estado Novo, bem como certa memóriaoficial da época – inclusive nos meios militares – atribuem à FEB o fato do

restabelecimento da democracia no país, deixando de lado, muitas vezes, vários elementos

polêmicos sobre esse período. Na maioria das vezes, quando um ex-combatente se refere àdemocracia trazida pela FEB, ele está se referindo à ‘democratização’ das Forças Armadas,

definitivamente levada à frente com o triunfo da influência da doutrina norte-americana,

coroada pela criação da ESG – Escola Superior de Guerra – em 1948. Na verdade, trata-se

de níveis diferentes, mas que não exclui a existência de uma ‘ponte’ entre eles – sobretudo

num contexto pós-guerra onde tudo passou a se encaixar no termo ‘democracia’: do

anticomunismo das direitas até as concepções totalitárias do modelo soviético e da maioria

dos partidos comunistas mundo afora. De fato, vale salientar, o sentido do termo

‘democracia’, e de vários dos seus dependentes – como liberdade e igualdade, por exemplo

– são avaliados de formas variadas nos depoimentos: entre ex-combatentes de uma

120

linhagem mais ‘militaresca’ tende-se a estabelecer a tal ‘ponte’, mas muitos que se prendem

à versão civil da memória da FEB, tendem a permanecer no significado mais palpável do

termo, ou seja, democracia nesse caso seria a flexibilização disciplinar do ‘Exército da

FEB’. Por fim, de qualquer maneira, percebe-se que em muitos casos os níveis tendem a se

confundir e se inter-relacionarem:

“... Aqui existia muita disciplina (...) o soldado falava com o soldado maisantigo e tinha que pedir licença, o soldado que falava com o cabo tinha quefazer continência, o cabo para falar com o sargento tinha que fazercontinência e assim por diante... aquela disciplina r ígida de antigamente, nãoé? Agora, já lá na Itália, era um bloco coeso, amizade, sem marca. Todomundo é amigo, não tem esse negócio de tomar continência daqui, tomarcontinência de lá... todo mundo é amigo, todo mundo trabalha em prol dacomunidade... existia a disciplina, a disciplina sér ia e tudo, mas com inteiraliberdade... na Itália todo mundo era amigo, desde os oficiais até o simplessoldado... para você ver a mudança... porque lá havia a necessidade dacoesão, não é? Então, aquela disciplina r ígida que existia aqui nas ForçasArmadas, lá não inteirou... e uma vantagem, a Força Expedicionár iaBrasileira trouxe para o Brasil o sentimento de liberdade que plantou nasForças Armadas a democracia plena... plena liberdade... tem a disciplina,mas com plena liberdade... mudou completamente o sistema...”151

Essa mescla entre os níveis, na memória de alguns veteranos, caracteriza-se por uma certa

romantização do discurso e, freqüentemente, por um otimismo que beira a ingenuidade.

A doutrina norte-americana penetraria em praticamente todos os poros da FEB –sendo recebida de formas diferentes, é claro – uma vez que a FEB foi incluída num corpo

de exércitos americanos. Dessa forma, todos os detalhes burocráticos e práticos foram

reavaliados em novos termos: desde a alimentação, passando pela organização das

unidades, a distribuição de órgãos especiais, a doutrina de guerra, a organização do serviçode saúde etc., bem como todo comportamento na retaguarda seria fortemente influenciado

pelos norte-americanos – por exemplo, o simples fato dos oficiais norte-americanos

respeitarem a formação de filas únicas é até hoje lembrado pelos ex-combatentes. Tudo isso

impressionaria muito os expedicionários, que se vêem até então, recordando o tempo da

121

guerra, igualmente extasiados com a monumentalidade do esforço de guerra norte-

americano. Em praticamente todos os depoimentos, mesmo entre os que criticam de alguma

forma os EUA, existe um respeito e admiração pela potência norte-americana, seja na

forma como tratava os seus soldados, ou na disponibilidade excessiva de tudo o que uma

guerra como aquela podia exigir.

Chamava a atenção dos febianos as montanhas de materiais, alimentos, combustíveis,

blindados e automóveis de vários tipos e para diversos fins, munições, peças de artilharia –tudo novo – estacionados nas margens das rodovias prontos a serem usados. Ressaltam,

ainda, a logística impecável com que tudo isso era administrado – não deixando de

evidenciar o princípio básico que guiava tudo isso entre os americanos, segundo frase que

se tornou corrente na memória da FEB, tanto no suporte escrito: “Um homem só se

consegue em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas,

poupem-se os homens.”152; quanto no oral:

“Então nós víamos aquilo, nós mesmos notamos a diferença... aqui no Brasil,quando você ia fazer os exercícios de tiro, você tinha que recolher os estojose devolver ... lá, nós fomos fazer isso e o amer icano [dizia]: ‘No! No! No! Jogafora! Joga fora!’... o amer icano chegou a dizer : ‘Gasta-se o mater ial e poupeo homem. O homem leva dezessete anos para ser preparado, e o mater ial sefaz em questão de segundos.’”153

Com isso os expedicionários contrapunham o ‘fundo humanitário’ de um ‘exército

democrático’ aos desmandos, à miséria e ao descaso do ‘Exército de Caxias’ para com seus

combatentes. Por outro lado, não deixa de ser verdade que, ainda hoje, junto da admiraçãoque expressam pelos EUA – com exceções, é claro – vem uma sensação de pequenez e de

151 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003.152 ANDRADE, Góes de. “Espírito da FEB e espírito de ‘Caxias’. In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti eoutros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.321.153 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003.

122

dependência, e até certo complexo de inferioridade. Quanto a isso, muitos ex-combatentes

fazem questão de afirmar

“... que o Brasil não ficou devendo um tostão ao amer icano, apesar dele teroferecido tudo isso, o Brasil pagou até o último tostão, o último feijão que elecomeu, o último peru que ele comeu, o último tiro que ele deu, a última armaque ele usou... pagou tudo... pagou o hospital, pagou tudo... pagou o remédio,pagou tudo.”154

Outros como J.J. Silva (enfermeiro – 11oRI) preferem valorizar a experiência dos

febianos contrariando os norte-americanos, como forma de estabelecer algo que fosse

próprio do soldado brasileiro e que, ao mesmo tempo, diminuísse um pouco o papel dos

EUA na manutenção da FEB:

“... O brasileiro, vai, luta, pega de surpresa, ar r isca a vida... o amer icanonão... eu vi o 5o exército [americano]... Ih! Está muito cru para ser soldado,entendeu? Enquanto tiver um tijolo em pé ele não entra [criticando ocostume, comumente atribuído aos americanos, de martelar excessivamente umaposição com tiros de artilharia antes da entrada da infantaria]... é muitamalandragem... mas cor re muito dinheiro, não é? É o país do dólar ...”155

Nesse caso, o depoente contraria o famoso ditado sobre os homens e as máquinas,

desprezando tais princípios em prol de um ‘tipo’ do soldado brasileiro que valoriza a sua

coragem e desprendimento – ao contrário dos americanos, que se esconderiam atrás dos

seus dólares. Por fim, apesar das variações de caso para caso, é possível perceber o

estabelecimento de uma nova cultura militar, fundamental ao chamado novo ‘Exército da

FEB’. Se durante a formação do Corpo lutar numa guerra era coisa impensável e digna de

desprezo, com o tempo, e, sobretudo após a volta, certo ‘orgulho de soldado’ vai surgindo

e, junto dele, a solidificação da nova identidade de combatente e febiano. Mas outros

elementos ainda contribuiriam com esse processo, reforçando a polarização entre o discurso

e a memória oficiais e as experiências e recordações dos que estavam/estiveram no

154 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.155 Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.

123

front.Caso paradigmático desse processo pode ser notado na percepção que os diferentes

sujeitos faziam dos inimigos, ou seja, do Exército Alemão. Se os serviços de informação,

contra-informação e propaganda davam asas à imaginação, criando um quadro maniqueísta,

hediondo e desumano dos inimigos, a experiência dos expedicionários, em geral, passava a

centenas de quilômetros distantes desse turbilhão de embates entre raças e nações. Como jáfoi dito anteriormente, muitas vezes respeitava-se mais os inimigos do que os oficiais de

alto-escalão.

Alistair Thomson, analisando essa questão dos inimigos, faz análise interessante

acerca das experiências de outro de seus depoentes, Bill Langham, na Primeira Guerra

Mundial. Bill afirma que após seus primeiros contatos com prisioneiros alemães, teve seu

ponto de vista sobre a guerra completamente alterado – percebeu que tal como os Anzac,

eles não queriam lutar e se sentiam péssimos naquelas trincheiras. De fato, houve uma

identificação entre ele e seu ‘inimigo’, que passava por cima das nacionalidades de ambos

para recair sobre a tragédia humana que estava acontecendo e as injustiças pelos quais

passavam:

“Um encontro com alguns pr isioneiros alemães, que ele descreveu com baseem suas exper iências na Frente Ocidental, ‘meio que alterou minha atitudecomo um todo’. E fê-lo perceber que não dever íamos lutar contracolegas que não quer iam lutar ’. Na época, e em suas lembranças, ele culpouos manda-chuvas, sentados em suas confor táveis cadeiras de escr itór io emseu país de or igem, por enviar homens comuns para lutar a guer ra deles.”156

Os febianos também experimentariam mais essa ruptura de valores, de forma que

ainda hoje, longe das comemorações oficiais e das formalidades, os ex-combatentes

encaram honrosamente os alemães contra os quais lutaram. À pergunta: “Existia ódio

156 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.84. No original: “A meeting with some Germans prisioners,which he described in an account of his experiences on Western Fornt, ‘sort of altered my attitude altogether’.And made him realise that ‘we shouldn’t be fighting fellows that didnt´t want to fight’. At the time and in his

124

contra o inimigo?”, invariavelmente a resposta, se não era uma negativa peremptória, ia aos

poucos tentando mostrar que a experiência da guerra é muito diferente do que sugere o

senso-comum. S. Ribeiro, tal como Langham, insiste nos desmandos do alto-escalão,

colocando que não existia raiva pelos inimigos, primeiro porque eram soldados, e depois

porque foram “mandados” para a guerra, como eles157. No entanto, éW. Soler quem melhor

define como se vêem soldados que estão nos lados opostos de um front de batalha:

“Márcio: Até em relação ao ódio contra o inimigo, não existia? W. Soler:Não... eu acho o seguinte: o cara é inimigo enquanto atira, não é Taitson? Éigual ao boxeador que luta, não é? O que dá o punch, o que dá o nocaute...você não vê que ele vai e abraça depois? É o instinto humano... parece queenquanto ele está armado e combatendo é seu inimigo... no momento em queele se desarmou, não vou dizer que é amigo, mas não é mais inimigo não, nãoé?”158

É claro que existiam divergências entre os próprios soldados quanto à dispensa de um

tratamento ‘humano’ ao inimigo – na verdade, segundo os depoimentos, os poucos

momentos em que um ódio real contra o ‘alemão’ surgia era em decorrência de ferimentos

ou da morte de um companheiro de unidade. Aí sim, como diz G. Taitson (80 anos,

I/11oRI), o ‘sangue fervia’:“Márcio: E nas tropas brasileiras... você notou... qual era o sentimento emrelação ao alemão? Tinha aquela relação de ódio, mesmo...? G. Taitson:Olha, isso depende de cada um (...) eu tive colegas lá que foramestraçalhados por granada alemã... nesta hora o que se deseja é sair sozinho,ir lá e enforcar o alemão. Márcio: E no seu caso...? G. Taitson: Não, eu não...eu sou mais moderado [r iso] (...) o meu comandante... ele foi fer ido nopr imeiro dia que pisou no front... caiu uma granada, ele estava lá emGuanela, (...) e a granada caiu no oitão da casa e veio um estilhaço quear rancou um pedaço da perna... que eles chamam de tramela do joelho... (...)O ímpeto dele é ir lá... ele pegou a metralhadora e tentou subir sozinhoMonte Castello para vingar ...porque ele tinha perdido uma perna...sear rastando... nós tivemos que amarrar esse homem, senão ele ir ia mesmo.”159

remembering he blamed the ‘big nobs’, sitting in their confortable office chairs back home, for sendingordinary men to fight their war for them.”.157 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.158 Entrevista com W. Soler e G. Taitson, Belo Horizonte, fevereiro/2002.159 Entrevista com G. Taitson, Belo Horizonte, outubro/2001.

125

De qualquer modo, tais explosões de raiva surgiam, igualmente, quando colegas eram

feridos ou mortos em decorrência de uma ordem suicida vinda de um oficial de gabinete.

Esse caso, da relação dos soldados com os inimigos, pode ser tido como

paradigmático das reviravoltas e dos embates que circundam a configuração da memória –sobretudo ao analisá-lo no contexto das fontes orais. Como já se falou, os sujeitos, ao longo

do tempo, elaboram suas recordações de acordo com as circunstâncias e as necessidades de

auto-reconhecimento e aceitação pública de suas identidades – de modo que,

inevitavelmente, se dá uma sobreposição de camadas temporais e argumentos de diferentes

períodos, sujeitos e naturezas. Desse modo, voltando à questão da justificação da guerra na

sua relação com a necessidade de se criar um clima de medo e de ódio para com o inimigo,

em grande parte dos depoimentos, vê-se uma contradição que, aos olhos dos ex-

combatentes, surge imperceptível.

Quando perguntamos algo sobre os sentimentos nutridos pelos que estão do outro

lado do front, a resposta, em geral, se prende à ética do ‘lutadores de boxe’ – no entanto,

em outros momentos, quando preocupados em justificar o porquê da entrada do Brasil na

guerra, surge o desacordo. Para grande parte dos ex-combatentes foram os afundamentos

dos navios brasileiros pelos ‘sórdidos’ e ‘traiçoeiros’ alemães que levaram a população àsruas e, por extensão, o país à guerra. Frente a isso, percebe-se que o depoente não estálidando com uma memória que seja ‘sua’ – no sentido estrito. Na verdade, e é por aí que

eles respondem às necessidades de suas próprias existências como sujeitos, os ex-

combatentes se apropriariam de argumentos de outro nível que não aquele da experiência

palpável pelo qual passaram, já que a única justificativa, mesmo que frágil, para dar um

sentido mais amplo àquilo tudo é por meio da macropolítica e da fogueira de vaidades em

que consiste o ‘mundo’ das nações em guerra. Em suma, nota-se um contraponto

126

interessante nos depoimentos, em que ora sente-se um ‘ódio postiço’ pelos que feriram os

brios da nação, ora solidariedade pelo fato dos alemães estarem lá a contragosto – como se

deu com eles também.

Por outro lado, tais imbróglios da memória não têm apenas um sentido, realizando

também o caminho contrário, ou seja, é possível perceber o trânsito de elementos entre

níveis diversos o tempo todo, com constantes alterações de significado, é claro. Desse

modo, coloca L. Junqueira sobre a relação com os alemães:

“Olha... a guer ra foi uma guer ra até muito leal, sabe? Entre as tropasbrasileira e alemã. Não há dúvida que se estava lá para combater e vencer oadversár io, não é? Mas houve gestos lá de muita solidar iedade ao soldadoalemão... gestos até nobres. Por exemplo, houve um caso lá de três pracinhasbrasileiros, que ser iam os tais soldados desconhecidos, não é? Eles morreramassim mais próximos da ter ra do alemão, onde o alemão estava operando...se chama ter ra de ninguém... morreram ali... e os alemães, eles mesmoscavaram três sepulturas, sepultaram, cobr iram com ter ra, fizeram trêscruzes de madeira... (...) amarraram lá com qualquer coisa e botaram emcima da ter ra... pegaram as armas deles, o capacete e botaram em ciam dacruz... e numa tábua escreveram em alemão: “Hier starben dreibrasilianische helden”, em por tuguês: “Aqui jazem três heróis brasileiros”.Eles não botaram três soldados, mas sim três heróis... ”160

Tal caso se tornou famoso na FEB e, segundo muitos, serviu de prova definitiva do

valor combativo e da bravura do soldado brasileiro. No entanto, é difícil que para os

combatentes, alemães e brasileiros, envolvidos nos combates, essa passagem tenha adotado

tal significado. Intérpretes mais críticos colocam que tal passagem teria se dado como

decorrência de ordens irresponsáveis de um oficial superior – exigindo muito dos soldados

sob condições precárias. Isso teria levado os alemães a darem um enterro especial a

soldados que avançavam ‘sem dó’ sob fogo cerrado – pensando, certamente, que seguiam

as ordens do tal oficial. Depois dos impasses do Monte Castello – que levou os brasileiros a

quatro reveses que, juntamente com a cobertura da mídia da época, das críticas do comando

160 Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.

127

americano e posteriormente com o apoio do Exército, tornou-se um mito – as coisas

ficariam um pouco melhores, apesar do fato de Montese, a batalha que mais baixas impôs àFEB, ainda estava por vir. De qualquer forma, a essa altura, os expedicionários já tinham se

tornado ‘combatentes de verdade’, a fase mais dura de inverno passara e a ofensiva de

primavera estava sendo organizada. Com o tempo o comando também foi aprendendo um

pouco mais sobre a guerra moderna, melhorando suas relações com as tropas e com o

comando dos outros exércitos. A FEB ainda apreenderia, durante a fase final da ofensiva,

toda uma divisão de infantaria alemã, a 148o, numa das poucas vezes em que houve nesse

TO atividades envolvendo regimentos inteiros – motivo de grande orgulho entre os ex-

combatentes.

Por fim, a FEB permaneceria 239 dias contínuos em ação, sendo que apenas doze,

das 44 divisões aliadas que lutaram na Europa – excetuando os soviéticos –, permaneceram

mais tempo em atividade. Parece pouco, mas nesse curto espaço de tempo as vidas de

milhares de expedicionários foram drasticamente alteradas, pois a permanência, por pouco

menos de um ano num front da Segunda Guerra Mundial, era capaz de levar qualquer

pessoa à exaustão física e psicológica, caso não fosse morto ou ferido. Agora como tropa de

ocupação, os expedicionários aproveitariam o tempo para conhecer a Itália, e até países

vizinhos, por meio das suas ‘tochas’ – tudo isso enquanto não viesse a ordem para o

embarque. Nesse curto período de aventuras, os laços de camaradagem se transformariam

em sólidas amizades, o que levaria os expedicionários a um hesitado lamento de que algo

valoroso ficaria para trás:

“Os soldados começaram a galgar a rampa de embarque do navio-transpor te. Alguns dos homens viraram para trás, para apreciar umader radeira vista da Itália. Repentinamente foram arrebatados por umasensação que os deixou perplexos. Era estranho, mas parecia, desde aquelemomento, que sentiam saudade do país onde haviam combatido. A par tida

128

significava o fim da guer ra e o reencontro com a família, mas também orompimento da intensa amizade for jada no decor rer da luta.”161

vI.4 O ‘salto identitár io’

A guerra terminara e, com o fim das batalhas, a tendência do auto-centramento típica

entre soldados no front foi se dissolvendo – no entanto, não voltariam à mesma situação de

antes da guerra, de modo que aos poucos uma nova identidade surgiria, ligada a níveis

antes ignorados, valorizando aspectos antes inexistentes, enfrentando dramas até entãoinimagináveis.

Os expedicionários aguardavam o comando para o embarque na viagem de volta, que

desta vez não seria feita exclusivamente por navios norte-americanos – já que muitos

haviam sido requisitados para o realocamento de tropas no Pacífico, o que demandou,

também, o envio de navios brasileiros para realizar tal serviço. As tropas, depois de ordens

do V Exército, concentraram-se na cidade de Francolise, visando a preparação para o

embarque. O 1o escalão partiu no início de julho e chegou ao Rio de Janeiro no dia 18, e atésetembro todos os outros escalões, com o grosso das tropas, atracariam no Brasil. A bordo

do USS General M.C. Meigs, navio de transporte de tropas norte-americano, todo o 11RI

de São João Del Rei faria a sua viagem de volta. O G Meigs partiu de Nápoles no dia 4 de

setembro e chegou ao Rio no dia 19 do mesmo mês – durante esses 15 dias os

expedicionários foram entretidos pela tripulação e por oficiais da FEB. Juntos criaram o

periódico “A Tocha” – como se fazia tradicionalmente com qualquer tropa que fosse

transportada –, tal jornal, hoje, serve para nos mostrar como foram abordados e sentidos

alguns dos elementos característicos da identidade dos febianos, bem como visualizar os

161 MAXIMIANO, César Campiani & GONÇALVES, José. “Irmãos de armas...”, p.217.

129

contrastes que daí surgiria como conseqüência do choque com os que ficaram. Àquela

altura eram combatentes veteranos, portanto portadores de um orgulho que só essa

condição possibilita. A negação dos tempos da convocação, foi substituída pela vaidade de

um expedicionário que passou por muitas dificuldades: perdendo amigos em batalhas ou

sofrendo alguma mutilação, para não falar de todo impacto psicológico. Nesse contexto écomum surgir entre os combatentes um sentimento de superioridade moral, pois ele passou

por uma complicada provação enquanto todos continuavam com as suas vidas

normalmente. Com isso, os agora ex-combatentes, esperariam do ‘lar’ apenas compreensãoe acolhimento, mas tendo essas expectativas rompidas, sérios impasses surgiriam.

Antes, porém, de tratar desses impasses, vale pensar a forma como se estabeleceu a

ponte entre uma realidade e outra – nesse sentido a viagem de volta serve como uma

metáfora para a idéia do ‘salto identitário’, na medida em que o navio os levava, como no

caso da ida para a Itália, não de um local para outro apenas, mas de um mundo para outro.

Como as expectativas que criaram dos alemães na ida, que se mostrariam equivocadas,

como já se viu, as expectativas criadas sobre a volta para o idealizado ‘lar’ e a recepçãocontariam com o mesmo ‘erro’ – mas, por incrível que pareça, tal conflito se mostraria

muito mais traumático para os febianos do que a própria guerra, conforme se vê nas

palavras de um ex-combatente: “A verdadeira guerra dos brasileiros não foi na Itália, mas

aqui no Brasil...”162.

O “A Tocha” estava sempre celebrando a relação que se estabelecera entre as tropas

dos dois diferentes países, pois “Lutando ombro a cibro, brasileiros e americanos, fizeram

mais que derrotam (sic!) o inimigo comum; lançaram mais uma pedra no alicerce da

162 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

130

amizade entre os vós do Brasil e os Estado Unidos.”163. Falava-se também dos amigos

mortos que ficaram na Itália, chamando a atenção para que não fossem esquecidos. Esse

discurso colaborava na configuração de uma nova comunidade, que era formada pelos

países e ex-combatentes de todo mundo que lutaram contra o nazi-fascismo – certo é que

naquele momento tudo passava um pouco desapercebido, pois a ânsia em retornar para o lar

sobrepujava qualquer outra coisa. De qualquer forma, esse pequeno periódico estabelecia

uma ponte entre a realidade dos ex-combatentes e o contexto pelo qual passavam, alçando

as referências identitárias dos soldados para além dos seus círculos imediatos da época da

guerra. Era como se naquele momento um elo final viria consolidar, ampliando para outras

esferas, é certo, uma espécie de ‘consciência de grupo’ entre os ex-combatentes.

Convivendo com os americanos isso se tornava ainda mais forte, pois esses já tinham uma

tradição de comunidades de veteranos de guerra de larga atuação, tanto no que tange àmanutenção da memória das respectivas guerras ou no âmbito da política nacional e dos

direitos dos ex-combatentes. Sabe-se, por exemplo, que um dos processos que estiveram na

base da criação do Estado de Bem Estar Social foi a reincorporação de veteranos de guerra,

tanto na Inglaterra como na França e EUA.

Havia sempre colunas que tratavam da relação entre brasileiros e americanos, bem

como de datas importantes como a independência do Brasil, onde os americanos, não os

chefes de estado que só se conhecia de jornais e pelo rádio, mas os com que se cruzava nos

corredores do navio, faziam congratulações e votos de progresso – há ainda texto de autoria

brasileira criticando a “democracia” brasileira ao compará-la com a americana164. O jornal

também pregava a necessidade do aproveitamento da FEB na renovação de todo Exército

163 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 04/09/1945, p.1.

131

Nacional, plataforma defendida tanto pelo governo americano quanto pelos oficiais que

foram à guerra como soldados de Caxias e retornaram como soldados da FEB. Ou seja,

agora sim questões ‘macro’, não para todos, é claro, começavam a fazer algum sentido, pois

se pode ver pelo discurso de “A Tocha” a maneira inteligente e leve, ao contrário dos

periódicos oficiais de campanha, como se estabelecia uma ponte entre a realidade dos

soldados e discussões de âmbito nacional. Por outro lado, vale salientar que o momento

para isso era mais adequado, pois ser alvo de patriotadas ao mesmo tempo em que se é alvo

de tiros de artilharia chegava a ser no mínimo desinteressante, quando não ofensivo.

Periódicos como o “A Tocha” , vale lembrar, geraram incômodo em autoridades brasileiras

que estavam no navio ou que aguardavam a chegada das tropas no Rio de Janeiro165.

Junto de todas essas discussões, os editores do jornal, sobretudo tenentes americanos

que contavam com o apoio técnico de sargentos brasileiros – o que facilitava a aceitação do

periódico entre as tropas – faziam concursos de boxe, de fotos femininas, de damas e de

desenhos e pinturas. Os prêmios? Não poderiam ser mais típicos do mundo dos soldados,

na verdade uma espécie de moeda entre eles: 1o, 2o e 3o lugares ganhavam pacotes de

cigarros e sacos com utilidades. Havia também piadas e charadas, traduções de músicas

italianas que tinham caído no gosto da soldadesca, causos, informações sobre o

164 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 07/09/1945, p.1.165 “Depois dos primeiros números publicados, porém, o general Zenóbio da Costa ordenou que os seguintesdeveriam ser submetidos à censura prévia. O “Senta a Pua!” [periódico da FAB, também criado no navio]publicava seu segundo e derradeiro número, informando que, devido à existência de ‘sucursal do DIP’ nonavio, a publicação seria interrompida.” Como forma de burlar tal atitude, foi inventada uma música, muitocantada a bordo do navio, que ridicularizava Zenóbio - este, por sua vez, chegou a ameaçar com apreensãoquem cantasse a música. “As provocações ao general Zenóbio (...) de forma alguma sinalizam que estavachegando ao Brasil um exército de indisciplinados. Sugerem, isto sim, que estavam regressando homens quevivenciaram outra forma de vida militar. (...) Eram outros, estavam mudados. Suas concepções de autoridadee patriotismo mostravam diferenças em relação àquelas que professavam antes da guerra. Alguns desseshomens começavam a se mostrar impacientes com as ‘caxiagens’ de alguns superiores, pois viveram naguerra outras formas de hierarquia, como as da bravura, do exemplo e do bom senso.” FERRAZ. “A guerraque não acabou...”, p.140-141.

132

regulamento e a rotina do navio, achados e perdidos mais ou menos sérios, charges etc.

Crucial à identidade e solidificação dos laços entre os expedicionários era, como já foi dito,

desde a época da convocação, as tochas, tanto que levaria o “A Tocha” a publicar, em mais

de um número, o divertidíssimo “Regulamento do Tocheiro”, organizado “... por um

abalizado conhecedor do assunto...”166, cujo nome não foi identificado, e ainda colocam: “Épena que só agora que ‘a sopa acabou’, aparecesse uma autoridade para regulamentar a

matéria.”167. O ‘regulamento’ ensinava a conseguir informações, se esquivar da Polícia –essa eterna ‘inimiga’ dos soldados –, como conseguir carona, comida e dicas extras para as

“tochas internacionais” etc.

Nos últimos números de “A Tocha” , mais elementos característicos dos ex-

combatentes apareceriam. O periódico estava sempre enfatizando a necessidade de

valorização da experiência e da memória da guerra, cultivando a democracia e o papel

determinante que eles teriam nesse projeto. Tudo isso funcionava de forma a incutir no

febianos a noção tão cara hoje a eles que é a auto-percepção de que eram sujeitos da

história, numa época em que esse papel era visto como monopólio do Estado e de seus

líderes. E nesse ínterim já começava a despontar entre eles a idéia de que uma comunidade

como aquela deveria ter uma memória e uma identidade, sendo ambas produtos de

cuidadosos trabalhos de seleção.

Da experiência da guerra, até para que a imagem dos febianos fosse aceita como os

que trariam o progresso para o país, apenas algumas coisas deveriam ser trazidas para o

âmbito público, pois sabiam que a moralidade da guerra era mais frouxa, e que

determinadas coisas dificilmente seriam vistas com ares de naturalidade entre os civis que

166 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 09/09/1945, p.1. e 10/09/1945, p.1-2.

133

ficaram. Quanto a isso, o “A Tocha” de 15 de setembro de 1945 veicula uma engraçada

charge onde aparece, no primeiro quadro, uma cruenta cena de guerra com explosões,

blindados e bombardeio aéreo com a seguinte legenda: “O que êles contarão”; num

segundo quadro há dois expedicionários flertando com garotas italianas, e os dizeres abaixo

afirmam “O que eles não contarão...”168. No último número de “A Tocha” , há um histórico

de seis páginas sobre a guerra da FEB do ponto de vista do que se poderia chamar de

história militar clássica – num jornal que tinha apenas duas páginas por edição. No artigo

dá-se a justificação da guerra por meio da revolta popular ás ofensivas alemãs em nossas

águas territoriais. Estabelece as batalhas que consistiriam nos marcos da FEB: Monte

Castello, Montese, Castelnuovo e Sopressasso, Camaiore entre outras – numa guerra em

que batalhas de grande vulto foram exceções, mas que, caso contrário, não teriam o respeito

tanto do Exército quanto da população, que nutriam uma visão heróica e romântica da

guerra. A intenção do artigo era fornecer uma leitura específica da experiência da FEB,

pronta a ser divulgada após a chegada ao Brasil. O autor do artigo era o então tenente

Cássio Abranches Viotti, que mais tarde ficaria conhecido por suas crônicas e textos sobre

a guerra da FEB, Viotti ainda publicaria um livro, que chegou, inclusive, a ganhar prêmios

da Academia Mineira de Letras.

No adeus, os editores do jornal congratulam os homens que cumpriram com o seu

dever defendendo a democracia, esperando que os oficiais e praças tivessem orgulho e

contassem para os filhos, netos, amigos e parentes os acontecimentos passados e a

camaradagem que tiveram com os soldados americanos durante a guerra169. O clima era de

167 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 09/09/1945, p.1.168 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 15/09/1945, p.2.169 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 16/09/1945, p.7.

134

alegria, euforia, expectativas positivas e orgulho esfuziante, os expedicionários traziam

dentro de si um novo mundo, pois nada poderia ser pior do que acabaram de viver, e alémdo mais a ‘democracia’ reinante no Exército Americano seria difundida no Brasil.

Começaria aí o ‘segundo tempo da memória da FEB’, o tempo da “verdadeira guerra dos

brasileiros”.

135

Capítulo II

A VOLTA

136

II.1 De volta ao “Lar”“Nós compomos nossas memórias para dar sentido às nossas vidas passada e

presente”170; tal máxima, de autoria de Alistair Thomson, sintetiza muito bem a

importância e a função prática da memória social. Thomson ainda lembra que usamos as

linguagens e significados de nossa cultura para forjar nossas lembranças, de forma a nos

sentirmos bem com elas. Nesse contexto, surgiria um complexo terreno aberto àsnegociações e embates pelo sentido a ser atribuído ao passado e, por extensão, às disputas e

demandas do presente. Dessa forma, os indivíduos e grupos sociais organizariam suas

lembranças de modo a se sentirem seguros, bem atendidos em suas necessidades e

orgulhosos de suas experiências passadas e identidades. No âmbito da teoria tudo isso

parece ser muito funcional e não contar com maiores problemas, por outro lado, já se

tornaram lugar comum os estudos sobre a memória coletiva e individual, de forma que se

sabe quantas polêmicas, reviravoltas e pontos cegos esse tema comporta.

Apesar de usarmos categorias públicas na produção e conformação de nossas

memórias, não necessariamente estas são condizentes com os critérios e o sentido público

mais amplo – este percebido aqui seja no âmbito dos grupos sociais ou da sociedade como

um todo. Incoerências, elementos incompatíveis, lembranças não compreendidas ou

reconhecidas protelam-se nas memórias dos indivíduos, procurando outros tempos e

espaços, ou mesmo válvulas de escape momentâneas, para encontrarem articulações que

possibilitem às pessoas permanecerem em paz frente às suas experiências passadas e àssuas necessidades presentes171. Em suma, a partir dessas observações, pode-se perceber o

170 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.8. No original: “We compose our memories o make sense ofour past and present lives.”.171 Ibidem. p.9.

137

estabelecimento de relações tensas entre os indivíduos, grupos sociais, e as sociedades a

que pertencem, no que a memória consiste num dos principais capitais simbólicos a serem

duramente disputados – embate sem o qual as sociedades humanas não existiriam como

conhecemos, dado ser a identidade elemento central ao reconhecimento e até mesmo saúde

mental dos indivíduos.

Não seria diferente com os agora, depois da volta para casa, ex-combatentes da ForçaExpedicionária Brasileira. Como veremos nesse capítulo, abordando as memórias e os

embates pela identidade e por uma série de demandas dessas pessoas que voltavam da

guerra, entre outros grupos que entrariam no páreo, as reviravoltas e desencontros da

memória evidenciarão toda a dinâmica e complexidade de um processo que, apenas por um

descaso, pode parecer algo simples.

vComo já se viu, o estado de ânimo dos expedicionários que retornavam para o Brasil

era muito bom. Já sabendo da festa que os esperava e do reconhecimento certo das

dificuldades pelas quais haviam passado, os expedicionários tinham provado o pior de

todas as experiências, foram ao inferno e retornaram, o que os alçava a uma condição moral

superior e os colocava numa posição de, agora, apenas esperar pela boa recepção dos seus

conterrâneos, dispostos a promover o ‘descanso dos heróis’. No entanto, apesar de todas

essas expectativas, ainda na Itália os expedicionários já poderiam vê-las frustradas, nãofosse pelo fato de que estavam cegos à qualquer coisa que não tivesse a ver com a volta

para casa e o reencontro com os familiares e amigos – ou com o ‘lar’ que haviam idealizado

em suas mentes. Isso porque, de acordo com decreto do então ministro da guerra Eurico

Gaspar Dutra, a FEB era dissolvida ainda antes de ser embarcada para o retorno ao Brasil, o

que significava equipara-la a qualquer unidade do Exército Nacional de modo que, quando

138

aqui atracasse, já estivesse subordinada ao comando da 1o Região Militar, agilizando o

processo de desmobilização dos praças172.

A dissolução e a posterior desmobilização da FEB, a médio prazo, consistiriam em

sérios problemas para os expedicionários, sobretudo para os que não continuaram nas

fileiras do Exército após a volta para o Brasil, ou seja, a esmagadora maioria. Ainda hoje éunânime entre os ex-combatentes, inclusive entre os que permaneceram no Exército –solidários com o sofrimento dos seus pares civis – a condenação dessa apressada

dissolução. Todos os entrevistados, uns mais outros menos, avaliam tal atitude como algo

extremamente desrespeitoso, indigno e covarde para com os que acabavam de arriscar a

pele pelo país. Tal fato representa muito para a memória da FEB, haja visto que ele édotado do mesmo caráter dramático tanto nas narrativas de ex-combatentes voltados para a

memória institucional das Associações, quanto para os que cultivam uma visão mais

‘rebelde’ da questão, ou seja, consiste num forte elemento congregador da memórias desses

sujeitos. O. Lopes, ao ser questionado sobre essa questão, mostra como que a

desmobilização, na verdade,

“... foi uma desmoralização... o Governo Brasileiro e o comando do exércitonão quer iam ter muitas complicações depois da guer ra; emitiram lá nagráfica de Milão os diplomas de dispensa... lá mesmo preencheram eentregaram aos praças... quando desembarcamos aqui no Rio ninguémper tencia mais à FEB... porque não tinha mais a FEB. A desmobilização foifeita no navio...”173

A despeito de análises mais profundas acerca da conjuntura política do país naquele

contexto, o fato é que, tirando Vargas e o Partido Comunista, todas as forças políticas

172 Vale lembrar que dissolução e desmobilização são coisas diferentes que, na maioria das vezes, sãoconfundidas pelos próprios veteranos em suas memórias. A primeira consiste numa das etapas da segunda, demodo que a FEB deixaria de existir já na Itália, mas os expedicionários ainda se encontravam mobilizadospelo estado, ou seja, estavam à disposição deste, bem como sob as suas responsabilidades no que toca aoatendimento de todos direitos, como alimentação, vestuário, saúde etc.173 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.

139

desejavam reduzir ao máximo o impacto político que a volta da FEB proporcionaria, de

modo que a dissolução e desmobilização apressadas seriam uma forma satisfatória de

realizar tais objetivos174. Como já deve ter ficado claro, tais embates políticos pouco

sentido fazem para os ex-combatentes, mesmo sessenta anos depois do ocorrido, dado que

experimentaram esse processo no nível de suas realidade individuais que, quando muito,

extravasam o meio familiar e dos companheiros de guerra. Daí, talvez, viria a explicação do

porquê de sempre confundirem e/ou sobreporem os eventos da dissolução e da

desmobilização. Em suas narrativas, independente do termo que usam, tais fatos sempre

vêm vinculados aos problemas oriundos da volta dos expedicionários para a vida civil – ou

para o serviço da ativa do Exército para os que nele continuaram. Em suma, o que vale

enfatizar aqui é que, deixando sutilezas burocráticas de lado, as lembranças dos sujeitos se

organizam visando atribuir sentido a uma realidade que seja, para eles, o mais palpável e

inteligível possíveis – de modo que, nesse contexto, pouca importância guarda o fato de

usarem corretamente os termos dissolução ou desmobilização, mas sim como empregam

um ou outro, e qual o peso que isso comporta. Desse modo, se entre a dissolução da FEB na

Itália e o surgimento dos primeiros problemas referentes à reincorporação dos ex-

combatentes passaram-se meses ou mesmo um ano, hoje os febianos articulam

instantaneamente uma coisa a outra – aparecendo em poucos a vinculação das atitudes do

governo com questões políticas, e não sociais. Isso pode ser notado na forma como D.

Medrado responde a seguinte pergunta:

Márcio: “Bom Medrado, e o fim da guer ra? Que perspectiva que vocêstinham quando acabou a guer ra... depois que foi... que perspectiva que vocês

174 Para uma análise da conjuntura política brasileira às vésperas do fim do Estado Novo frente ao impacto dofim da Segunda Guerra e da volta da Força Expedicionária Brasileira, Cf.: FERRAZ, Francisco César Alves.“A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira (1945-2000)”.

140

tinham em relação à ditadura brasileira: ‘Pô a democracia ganhou e aditadura agora?’ O que vocês pensaram? O que você pensou?’ D. Medrado:Essa foi uma catástrofe... uma coisa desastrosa para os brasileiros... para opracinha. O pracinha sofreu a maior decepção da sua vida no término daguer ra... porque o pracinha quando foi para a guer ra, ele foi submetido atoda espécie de exame... o presidente da República foi se despedir de nós edisse, em seu discur so, que nada nos faltar ia: ‘No regresso nada vos faltará,nem a vocês nem às suas famílias... o Brasil está preparado para receber -vos’. A FEB foi desmobilizada... ainda na Itália... quando nós chegamos...quando a FEB chegou no Brasil ela estava desmobilizada. Hoje eu tenhoconsciência disso... que eles tiveram medo da FEB reunida...a FEB chegou,foi uma recepção pr imorosa do povo, não é? Foi uma coisa realmentefantástica... uma beleza de recepção. Mas ficou nisso...sujeito recebeu aqueledinheiro que estava lá e foi embora para sua casa, não é?”175

Quanto à recepção, de fato ela foi muito calorosa por parte da população, seja no Rio

de Janeiro onde a 1o DIE desembarcou, seja nas outras capitais e cidades do interior

conforme chegavam os ex-combatentes. O próprio historiador Roney Cytrynowicz, que

questiona duramente a idéia, até hoje hegemônica, de que a FEB e a decisão do país entrar

na guerra, bem como todo processo de mobilização do Estado Novo, contou com larga

adesão da sociedade, assume que a volta da FEB consistiu numa festa que chegou a levar

mais de um milhão de cariocas às ruas – voluntariamente176. As festas da volta marcaram

profundamente a memória dos ex-combatentes, tanto a oral quanto escrita – conforme

mostra Boris Schnaiderman em seu diário-ficção sobre a FEB:

“Era impossível desfilar em formação. A multidão cercava os soldados,abraçava-os, beijava-os, ar rancava-lhes os distintivos metálicos. (...) Ainfantar ia não conseguiu desfilar em formação. Os soldados eramcar regados nos braços, em meio a vivas, buzinas de automóveis tocando oscompassos marciais. Depois da infantar ia, entrou na avenida uma compr idacoluna motor izada. Os jipes e caminhões eram igualmente assaltados.Ficava-se com o braço dolor ido de tantos puxões.”177

L. Junqueira, que também escreveu um livro de memórias sobre a participação brasileira na

guerra, evidencia

“...que a recepção nossa foi calorosa...no meu livro eu falo dessarecepção...eu não me esqueço disso nunca, nunca na minha vida...eu já vou

175 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.176 Cf.: CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.351e seguintes.177 SCHNAIDERMAN, Boris. “Guerra em Surdina...”, p.210-211.

141

fazer noventa anos e isso eu continuo lembrando como se fosse hoje. Quandonós desembarcamos no Rio de Janeiro, foi uma recepção tão grande, tãocalorosa, que é difícil até acreditar nesse boatos [se refere aqui aos boatos deque a FEB só foi à Itália fazer turismo – ponto a ser discutido a seguir]. Asfábr icas que tinham lá no centro do Rio de Janeiro, aqueles navios ficaramno por to, todos com as sirenes aber tas. Os aviões nossos que não foram naguer ra, da FAB, na nossa chegada faziam aqueles vôos rasantes em cima dosnossos navios...nós chegamos no Rio, entramos na Baía de Guanabara, osaviões fazendo vôos rasantes assim, não é? Para homenagear .”178

Tais lembranças consistem em um dos poucos momentos em que tiveram suas

experiências reconhecidas por um público amplo, apesar do fato de que esse mesmo

público, momentos depois, já dirigiria contra os ex-combatentes a pecha de ‘criadores de

caso’, além de darem corda ao boato de que a FEB teria ido à guerra apenas a passeio. Éclaro que isso não passa despercebido entre os ex-combatentes, de forma que, quando

preferem não abordar diretamente a questão, por julgarem por demais dolorosa, vinculam

automaticamente a recepção festiva da FEB ao descaso e esquecimento reinantes meses

após a chegada ao Brasil – essa era apenas mais uma das tensões com os quais teriam que

lidar. Nas cidades do interior as festas de recepção também se fizeram presentes, aí os

expedicionários eram bem recebidos, convidados para eventos e jantares nas casas de

autoridades e conhecidos, parados nas ruas para falarem sobre a guerra e – como ficou

atestado – muitos foram agraciados com monumentos comemorativos erigidos em centenas

de municípios interior afora179. Por fim, tais festejos não continuariam por muito mais

tempo, a ansiedade pelo desembarque e pela chegada em casa passaria rapidamente, entãoteriam que voltar à vida ‘normal’: trabalho, família, o dia-a-dia. No entanto, as coisas nãose dariam dessa forma e, sem que esperassem, a maioria dos veteranos – militares ou civis

178 Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.179 Segundo Ana Maria Mauad, até 1960 cerca de 110 monumentos em homenagem aos ex-combatentes e/ouaos mortos da Segunda Guerra Mundial foram erigidos em cidades que enviaram soldados para a FEB. Cf.:MAUAD, Ana Maria & NUNES, Daniela Ferreira. “Discurso sobre a morte consumada: monumento aospracinhas”. In: KNAUSS, Paulo (org.). “Cidade Vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro”, p.73-92.

142

– veria um abismo se abrir entre a realidade deles e a situação daqueles que não foram àguerra. Transpor esse abismo era, agora, a nova missão dos ex-combatentes, missão que, se

foi realizada, não se concretizou de modo completo, bem como contou com muitas baixas

durante o caminho: era essa “a verdadeira guerra da FEB”.Na verdade, o ‘fosso’ entre a realidade dos que ficaram e dos que foram não era

coisa nova, lembre-se o leitor de que não só era bastante presente como existiam sujeitos do

‘outro lado’ que, a todo o momento, procuravam qualificar e justificar situações muito alémdo que vivenciavam – como já se observou tanto nos discursos oficiais quando da

convocação ou do período da campanha na Itália, tendo, sobretudo, os periódicos de

campanha como palco de tais contendas. De qualquer maneira, o impacto de duas

realidades tão diferentes ainda não tinha efeitos mais que marginais entre os combatentes,

pois pouca coisa, entre elas as cartas de casa, além de seus círculos imediatos de

convivência na guerra eram levadas a sério – de acordo com o que já foi falado sobre o

auto-centramento dos grupos na guerra. De qualquer forma, alguns combatentes mais

atentos já percebiam o que os esperava na volta para casa, tendo em mente a situaçãodeixada para trás após o embarque para a Europa e a situação pelo qual passavam em

contraste com os que ficaram no Brasil:

“No Rio, neste momento, devem ser 18 horas, fer iado, cinemas cheios e aCinelândia fervilhando de gente. Muitos daqueles que se reuniam emcomícios pedindo a entrada do Brasil na guer ra, nem sempre se lembrammais disso... Mas nós expedicionár ios, que abandonamos tudo para vir aquilutar , sofrer e quiçá morrer , é que lhes garantimos o direito de bater pernasou ir ao Metro, ao Plaza, ao Vitór ia ou ao São Luiz. E por incr ível quepareça eu sou um destes... otár io ou herói, só a histór ia dirá!”180

Durante a viagem de volta os expedicionários teriam muito tempo para refletir por

tudo que haviam passado bem como o que os esperava na volta. Certo é que não tinham em

143

mente, ainda, o surgimento do abismo entre eles e o restante da sociedade que ficou, mas

inconscientemente já percebiam isso, vindo à tona, vez ou outra, pela ridicularização dos

discursos vindos de fora do grupo, bem como por uma linguagem irônica, muitas vezes

ingênua por achar que o estranhamento entre a identidade dos que ficaram e dos que foram

não iria além de alguns contratempos, como fica atestado nessa piada veiculada no jornal

“A Tocha” :

“Telegrama:Dir igindo-se a uma estação de rádio, um pracinha dir igiu a seguintemensagem: Devo retornar ao Brasil no Gen. Meigs. Aguarde minha chegadacom chocolates e... E dias depois recebeu a resposta dizendo o seguinte: ‘Meufilho!... tão grande te fizeste p/ voltar como General?...” (Damasio)”181

As diferenças na percepção da guerra tornar-se-iam mais aparentes já durante o

desfile na Avenida Rio Branco. Os ex-combatentes, hoje, evidenciam que a idéia que a

população tinha do que era a vida num front de batalha passava anos luz da realidade que

haviam experimentado. M. Couto faz uma contraposição interessante em sua narrativa, ao

falar que a recepção no Rio “foi uma coisa espetacular”, mas logo depois afirma que “... o

tratamento foi muito bom na nossa chegada... eu não notei nada, não é? mesmo no

princípio, o pessoal parece que conhecia...[mas] não sabiam o que era uma guerra, nãoé?”182. Essas divergências ainda são evocadas por, praticamente, todos os ex-combatentes

que falaram ou escreveram algo sobre a volta da FEB para o Brasil, exemplo que se tornou

paradigmático foi o do já citado diário-ficção do professor da USP Boris Schnaiderman,

que participou da guerra na Itália, que ao referir-se ao desfile da chegada diz:

“As mocinhas da sacada de uma das casas puxam conversa.- Você matou muito alemão?

180 Trecho do diário do – atual – Major Ruy de O. Fonseca em 1o de janeiro de 1945. Apud. RIBEIRO,Patrícia da Silva. “As batalhas da memória: Uma história da memória do Ex-combatentes brasileiros”, p.200.181 “A Tocha” , USS Gen. Meigs, 09/09/1945, p.2.182 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

144

Como se matar gente fosse um espor te muito interessante.”183

(...)“O soldadinho magro e de bigode ralo, que é de um lugarejo bem distante,que não está acostumado à efusão car ioca, que passou meses transido de fr ioe de medo (...) fica tonto, deslocado, os olhos marejados. Há uma diferençaprofunda entre o conceito que ele tem de si e a imagem que dele fazem oshomens do povo. Afinal, o que foi que eu fiz? Estive em ter ra estranha,quando me diziam para atirar , atirei, quando me ordenavam recuar , obedecitambém, senti fr io, medo, solidão, e foi só. O homem sente-se pequeno emesquinho, e os compatr iotas fazem dele um herói, quase uma figura delenda.”184

Leonércio Soares também aborda essa questão da incompreensão da população civil sobre a

guerra, colocando que, ainda durante o desfile, era comum ouvir coisas como “‘Hei,

morenão, quantos alemães você matou na guerra? Você é daqueles que prefere matar àfaca?...’”185. A sensação de deslocamento era sem precedentes, e os expedicionários

começavam a perceber que o abismo era muito maior do que aquele contratempo do

“Telegrama” de o “A Tocha” . Dias após do desfile, ainda antes de serem licenciados, os

ex-combatentes procuravam não dar ouvidos a tudo isso, mas sim correr atrás do tempo

perdido, bem como satisfazer tudo que alimentavam em suas mentes desde que estavam na

Itália. Com o tempo iam se isolando, sentindo-se como corpos estranhos, apesar de serem

vistos como heróis e todos quererem falar com eles e tocá-los. O mundo desmoronava

completamente, e essas múltiplas rupturas e traumas dificultariam ainda mais o

estabelecimento de uma identidade e um senso de continuidade e coerência de si mesmos:

“A Segunda Guer ra você fica... pr imeiro você fica feliz de ter voltado vivo, eaí você fica um pouco desnor teado porque você quer aproveitar , depois vocêentra nos eixos... (...) Você vem esfuziante, alegre, porque escapou demorrer ...então tem um per íodo em que você desequilibra um pouco, e depoisque você volta ao natural...”186 (grifos meus)

Lembrando que esse “depois” variou de ex-combatente para ex-combatente, além de nem

sempre comportar um final feliz, como se deu com A. Neto que, de fato, se enquadra na

183SCHNAIDERMAN. “Guerra em Surdina”, p.208.184 Ibidem., p.210.

145

minoria dos febianos que contaram com uma reincorporação rápida, tranqüila e sem

maiores percalços.

Aos poucos, e em ritmos diferentes, o ‘fosso’ ia se revelando, foram percebendo que

a realidade que deixaram para trás só existia agora em suas memórias, de forma idealizada.

O mesmo se dava com os que ficaram, a idéia que faziam dos seus filhos ou dos

concidadãos que foram à guerra lutar pela liberdade – como insistia o discurso oficial – era

pulverizada na medida em que a presença dos ex-combatentes deixava de ser motivo de

festas para se converter em problemas, desencontros e impasses constrangedores. Em

outros termos, a partir do momento em que deixavam de estampar as capas dos jornais para

serem vistos nos cadernos policiais envolvidos em arruaças, brigas, denúncias ou dados

como mortos indigentes, como se pôde atestar numerosas vezes no correr das décadas de

quarenta e cinqüenta em vários jornais.

Outro fato que ganhou grande repercussão antes mesmo da volta dos soldados, e que

também consiste em elemento crucial para se entender a reincorporação dos ex-

combatentes e o esquecimento generalizado que há sobre a guerra do Brasil, é o que

podemos chamar de ‘mito do passeio’. De fato é um mito, mas nem por isso deixou de ser

extremamente influente em dois momentos diferentes: um deles, já abordado, seria a

desconsideração e ridicularização da FEB ainda quando esta estava na Itália, tendo, nesse

caso, íntima relação com a resistência de grande parte da população ao discurso e àsatitudes mobilizatórias do Estado Novo. Viu-se como o discurso oficial estadonovista

estava sempre procurando combater e controlar tais impasses. Num segundo momento, tal

mito contaria novamente com ampla repercussão entre a sociedade, sobretudo após ficarem

185 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.16.

146

claras as ‘chateações’ que a reincorporação dos ex-combatentes geraria. Para estes que,

ainda hoje, combatem inutilmente tal versão, o ‘mito do passeio’ consiste em forte

elemento denegridor de suas memórias – se em algum dia do passado muitos colaboraram

inconscientemente com a sua construção, tentando a todo custo evitar a convocação, todos

eles, depois, passaram a vítimas desses boatos.

Como já se viu anteriormente, era corrente a idéia de que a FEB estava fazendo

turismo na Europa, era difícil acreditar, até para os dias atuais, que o Brasil declarara guerra

contra a Alemanha Nazista, por vontade própria, e estava lutando lado a lado de tropas

vindas da potência norte-americana. Falava-se que os brasileiros não passavam de bucha de

canhão dos americanos, que os navios teriam sido afundados por navios dessa mesma

nação – boatos que marcam, ainda hoje, o pouco que se sabe sobre a FEB no senso-comum.

Pode-se, facilmente, elencar outras fontes da época, além do discurso oficial, que

evidenciam como o mito do passeio já existia desde o período da campanha: “Não somos

tropas de ocupação e nem estamos excursionando com a finalidade de conhecer e passear,

como julgam alguns no Brasil...”187.

O. Lopes, ainda antes de voltar para sua casa em Belo Horizonte, pegaria um taxi no

Rio de Janeiro para ir ao hotel onde seu pai o aguardava – no caminho, o taxista, que

reclamava muito do gasogênio o qual fora obrigado a usar em decorrência da escassez de

gasolina, teria dito: “‘Vocês vão lá para a guerra... isso aí é conversa de... gasta gasolina ládo jeito que gasta, e a gente aqui, passando essa porcaria aqui... ’”188 (os grifos indicam

ênfase do depoente). Correntemente, durante um depoimento, vários ex-combatentes se

186 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.187 RIBEIRO, Sebastião Boanerges. “Diário de Campanha”, p.61.188 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.

147

viam na necessidade de contestar versões que colocavam em risco, durante toda a sua vida

pós-guerra, o reconhecimento de suas experiência e de suas memórias – caso que se deu, de

forma espantosa, na narrativa de L. Junqueira. Primeiro sobre a entrada do Brasil na guerra

nega a validade de boatos que atribuíam aos americanos o torpedeamento dos navios

brasileiros, em seguida critica os boatos que existiam ainda durante a campanha,

lamentando que muitos ainda pensem assim e, por fim, valoriza o ‘tipo brasileiro’ em

contraposição às mentiras sobre a FEB:

“Mas não foi não... quem foi lá sabe que não foi passear não... e o soldadobrasileiro... olha, nós tivemos soldados lavradores, mocorongos, do mato, ládo Rio Grande do Sul... lavradores que só estavam acostumados a lidar complantação de uva, ou fazer vinho, tr igo e que se por taram muito bem...”189

Em seguida, visando diminuir a peso desses boatos, Junqueira os contrapõe diretamente àbela recepção que tiveram no Rio de Janeiro e que ele, pessoalmente, teve na sua cidade,

São Lourenço. No entanto, sessenta anos depois, ou mesmo meses após a volta, a noçãoreinante voltava a ser a do ‘mito do passeio’.

Para quem continuou no Exército, problemas dessa natureza também foram comuns.

Como já se viu, os soldados brasileiros começaram a ser mais bem tratados após a

incorporação da FEB ao V Exército Americano, de forma que isso contou para que

recebessem melhor alimentação, auxílio médico, equipamentos etc. Voltando ao Brasil, nãoera incomum que contassem com um aspecto e saúde melhores do que quando da ida, o que

também levava os que ficaram a pensar mal dos expedicionários: “‘Porra, você foi para lá e

voltou mais gordo, voltou melhor, pô, você só passeou lá...’ (...) [Fala, então, da boa

alimentação e das rações fornecidas pelos americanos] A crítica dos que não vão é sempre

189 Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.

148

pejorativa...”190. Outros procuram contestar o mito frente á narração de momentos difíceis

pelo qual passavam no front italiano, depois de fazer longa descrição sobre como

montavam bob traps – espécie de armadilha com granadas – em volta de suas posições, F.

Albino (11oRI) afirma: “E o elemento acha que a gente foi lá passear, não é? Mas vai ficar

naquele escuro, naquelas montanhas... a gente não tinha luz não tinha nada... (...) frio, neve,

gelo... porque a neve quando cai é igual paina, depois congela e vira gelo...”191. Questiona-

se o mito, também, realçando a sua dimensão desrespeitosa para com os companheiros que

não voltaram para o Brasil, segundo narra J. Vieira (80 anos, III/6oRI):

“... nós sabíamos que ir íamos para a guer ra... que não ir íamos lá parapassear ... como muita gente pensava que fosse... muita gente ainda hoje:‘Não, o Brasil foi lá passear ... que a guer ra estava acabando... ‘... peruada...se fosse passeio não havia morr ido quatrocentos e tantos... quase 500elementos nossos e quase 3000 fer idos em combate...”192

Apesar de todo esforço levado a cabo por parte dos ex-combatentes para contestar o

chamado ‘mito do passeio’, a verdade é que, sobretudo após a volta para o Brasil, uma

imagem pejorativa nunca deixou de ser a versão dominante com o qual a sociedade civil via

a FEB e os ex-combatentes. Nos “Depoimentos de oficiais da reserva sobre a FEB” , de

1949, já se pode ver como tais versões estão presentes – versões essas que acabavam

complicando tanto a luta pela obtenção dos direitos quanto a situação dos que ainda

prestavam serviço no Exército – que, pouco a pouco, eram enviados para servir em

unidades longínquas: “Na ida, muitos se alegraram de não ter ido, depois, o que volta, estáorgulhoso pelas provações pelo qual passou, e vai enfrentar a inveja do que não foi: ‘A

190 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.191 Entrevista com F. Albino, Juiz de Fora, dezembro/2004.192 Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001.

149

FEB foi a turismo!’”193. A animação da maioria dos ex-combatentes após a chegada no Rio

só acabava por reforçar os estereótipos

“As tropas recém chegadas da FEB desfrutam de ótima aparência, seja naforma física seja na vestimenta. Reforçando a empolgação, no momento dolicenciamento havia ainda o pagamento dos soldos devidos e do terço decampanha, o que fazia qualquer pracinha sentir -se no melhor dos mundos:vitor ioso, cober to de glór ias e bem abonado.”194

Freqüentavam festas e cassinos, procuravam por mulheres como se ainda estivessem

imersos naquela moralidade da guerra o que, certamente, acabaria gerando problemas como

brigas e críticas nos jornais – pois era estranho que os heróis nacionais se comportassem

dessa maneira: “Angústias e privações, aflições sem conta, desapareceriam num turbilhãofeito de embriaguez alcóolica e satisfação sexual”195. Os boatos e ironias só cresciam,

chegando a surgir versões dizendo que os expedicionários não teriam ido lutar na Itália, e

que os mortos enterrados no cemitério de Pistóia eram todos oriundos de acidentes com

jipes, quando iam fazer as tochas atrás de contato com os ‘inimigos’ da região: “prostitutas

italianas miseráveis”196.

Por fim, nesse primeiro momento pouca coisa pôde ser feita, o ressentimento que

muitos ex-combatentes nutrem em relação a esse período e ao descaso, hoje, foi sendo

adquirido nos anos vindouros, quando, já sofrendo os impactos da volta, perceberam o

significado daquela apressada dissolução e desmobilização da FEB. Se o discurso feito por

Getúlio Vargas na despedida dos escalões entrou por um ouvido e saiu por outro,

posteriormente ele se mostraria presente nas memórias de praticamente todos os veteranos,

193 ANDRADE, Góes de. “Espírito da FEB e espírito de ‘Caxias’”. In: ARRUDA, Demócrito Cavalcanti eoutros. “Depoimento de oficiais da reserva sobre a FEB”, p.378.194 FERRAZ. “A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força ExpedicionáriaBrasileira (1945-2000)”, p.158.195 SCHNAIDERMAN. “Guerra em Surdina”, p.215.196 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.162.

150

pois seria resgatado e visto como o símbolo máximo do descaso para com os que voltaram

da guerra. Afirmou Vargas na ocasião da despedida:

“Tranqüilizai-vos quanto ao futuro. Todas as providências foram tomadaspara que nada vos falte. Os vossos entes quer idos – esposas, mães, noivas,filhos – aguardarão confiantes o vosso retôrno e estarão amparados peloGoverno – pelo Brasil que cumpre lealmente o seu dever e ao lado depoderósos aliados irá ganhar , com o esforço e a intrepidez da sua juventude,lugar condigno na comunidade das nações civilizadas.”197

O ex-combatente J. Vieira afirma que o desmembramento precoce da FEB foi um “ato

violento”, pois na mobilização fizeram-se todos os exames de saúde, além de terem

prometido “mundos e fundos e depois...” só o que se viu foi a desastrosa reincorporação,

onde o febiano era visto não mais do que um “criador de caso”, sendo rejeitado nos

Hospitais do Exército e nas repartições públicas198. Outro ex-combatente, presidente da

Associação Regional da Bahia, explicitou essa condição em versos:

“A chegada ao Rio de Janeiro,Muita festa esperaram;Lembremo-nos dos companheiros,Que em Pistóia ficaram.Logo, a guer ra terminou,Foi falado em recompensas;O pracinha tudo imaginou,Menos as rápidas dispensas.Começou o sofr imento,Com a falta de readaptação;Promessas caíram no esquecimento,Imperando a ingratidão.Antes de ir para a guer raOnze inspeções teve que fazer ;Quando voltou à sua ter ra,Nenhuma antes da dispensa ocor rer .Entenda bem nossa gente,Depois com o gelo se envolver ;Para quem é de clima quente,A maldade não pode esquecer .(...)Os heróis estão esquecidos,Às vezes até humilhados;País com políticos falidos,

197 Discurso de despedida do 1o Escalão da FEB, CPDOC – Arquivo Getúlio Vargas.198 Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001.

151

Esquecem feitos passados.”199

As origens desses ressentimentos, portanto, podem ser encontradas no complicado

processo de reincorporação social dos ex-combatentes que, mais tarde, buscariam no

passado as causas de todo esse imbróglio – reavaliando experiências e passagens até entãoesquecidas ou classificadas como de pouca importância. Isso explicita, mais uma vez, o

caráter fluido e mutável do passado que, no decorrer do texto, tornar-se-á mais claro, na

medida em que forem apresentados variados casos de reincorporação. Essa variedade,

obviamente, acabava dando múltiplas cores às memórias da FEB – tornando ainda mais

complexa a sua história.

vII.2 A reintegração social dos ex-combatentes

O “Boletim da L.B.A. ...” de 31 de maio de 1945 anunciava aos febianos, que entãocumpriam a missão de tropa de ocupação, a criação da “Comissão Especial de Readaptaçãodos Incapazes”, que tinha como objetivo principal assistir às “vítimas da guerra”.Detalhava, ainda, a deliberação de que:

“... os fer idos, depois de convenientemente tratados, terão após a alta dadapelo HCE [o Hospital Central do Exército], examinada suas aptidões, caso porcaso, de modo que nenhum deles deixe de ser encaminhado a uma profissãoonde poderão sentir -se bem útil aos seus e à coletividade (...) As repar tiçõesdo govêrno deverão acolher a maior ia dos readaptados, possuindo aComissão, a faculdade de encaminhar à indústr ia ou a qualquer outraatividade pr ivada, aqueles que possam ser mais úteis aí.”200

Ao que parece, tal comissão teria sido criada em janeiro do mesmo ano pelo decreto-lei no

7.270, tendo a sua organização aprovada apenas em julho, ou seja, às vésperas do embarque

dos expedicionários em Nápoles. Vale lembrar que países como os Estado Unidos e

199 COSTA, Didier de Souza. “2o Guerra Mundial: desprezo – Ouve lá, oh! Zé! Deixa-me dizer-te umacoisa!”, p. 53-55. (O autor publicou a obra imprimindo apenas nas páginas ímpares).200 “Boletim da L.B.A. – especial para expedicionários” , Rio de Janeiro, ano I, n.8, 31/05/1945, p.1-2.

152

Inglaterra já vinham desenvolvendo projetos e criando uma estrutura de recepção anos

antes do retorno de seus combatentes para casa – sem esquecer que contavam, também,

com larga experiência adquirida em virtude do problemático processo de reincorporaçãodos veteranos da Primeira Guerra Mundial. Oficialmente, tal comissão foi nomeada como

CRIFA – Comissão de Readaptação dos Incapazes das Forças Armadas –, localizava-se no

Rio de Janeiro e esteve diretamente ligada à presidência da República201. Tal atitude, de

parte do governo federal, consistiu numa das poucas medidas oficiais voltadas para a

reincorporação dos ex-combatentes nessa primeira fase do retorno – e como veremos, seria

essa a tônica de grande parte dos governos dos anos e décadas vindouros.

Segundo Francisco Ferraz, que pesquisou a fundo o processo de reincorporação dos

ex-combatentes brasileiros, o que se sabe sobre a CRIFA é pouca coisa e, na maioria das

vezes, tudo que se acha sobre ela ou são críticas, ou são pessoas tentando defendê-la. De

qualquer forma, irrevogavelmente, sabe-se que a CRIFA consistiu num imenso fracasso,

pois, a despeito dos argumentos que tentam encontrar algo de virtuoso nessa instituição, o

fato é que pouquíssimos ex-combatentes a conheceram, já que se encontrava isolada na

Capital, inviabilizando qualquer contato ou conhecimento por parte da imensa maioria dos

ex-combatentes que residiam no interior do país. Além disso, freqüentemente a CRIFA era

acusada de envolvimento com práticas corruptas, tendo sua existência ameaçada em mais

de uma ocasião, até ser fechada nos anos setenta.

Por outro lado, longe do mundo palaciano, cada ex-combatente, no final das contas,

tinha que se virar por conta própria. Certo é, entretanto, que os mutilados e os que eram

dados por incapazes – com muito custo –, a despeito da demora, ganhariam uma pensão do

201 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.187.

153

governo. Mas no geral, a lógica da reincorporação seguiu o seguinte princípio: recebidos os

vencimentos, o Estado nada mais tinha com os ex-combatentes. Aparentemente estavam

saudáveis, e até para grande parte deles mesmos, num primeiro momento, isso poderia ter

passado por verdadeiro, no entanto, como já foi dito, apenas a médio prazo é que os

problemas começariam a surgir, justamente após baixar a poeira das festas de recepção e do

alvoroço pelo reencontro com suas famílias e vidas de antes da convocação.

O ex-combatente O. Lopes, que teve a perna duramente ferida, indo direto da Itáliapara hospital nos Estado Unidos, retornou ao Brasil separado do grosso da FEB, já com o

aparelho ortopédico que usaria por toda a vida. Morava em Belo Horizonte, e no primeiro

dia após a volta se viu envolvido num típico ‘choque’ entre os que foram e os que ficaram.

Primeiro o encontro com o seu pai:

“O homem me deixou lá no hospital... o meu pai não estava lá... fiquei ládentro do quar to... a minha perna inchava, ficava enorme, empapuçava... aípapai entrou no quar to, cumpr imentou assim meio... fr io... ele não sabiademonstrar sentimento, mas eu achei que ele estava fr io. Ele falou assim:‘Levanta e anda’... aí eu levantei usando a bengala... ele ficou fur ioso: ‘Poisé, a gente cr ia o filho, filho vai para a guer ra e volta aleijado’...eu me lembro,as lágr imas só pingavam assim...ele percebeu que tinha feito mal em falaressa bobagem...aí falou: ‘Vamos andar um pouco’...mas eu nãoesqueci...ficou marcado”202

Certamente, a família que ficou em casa alimentava outras expectativas do filho que

estava na guerra. Baseando-se nas cartas – censuradas – e nos discursos oficiais sobre a

FEB e a guerra, não eram raros que os pais esperassem pelo retorno de um herói. Ver o

filho nessas condições, sendo que o mesmo havia saído de casa sem nenhum problema, era

algo que gerava a ira e a incompreensão dos pais e, por extensão, a frustração dos que

202 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.

154

voltavam. Com O. Lopes, uma outra situação semelhante se daria, pois dias após a chegada

foi visitar a noiva que tinha deixado no Brasil:

“... a minha casa ficou cheia... todo dia havia gente querendo saber quantosque eu havia matado, como é que foi o fer imento, se o alemão era muitovalente, se morreram muitos brasileiros, foi uma coisa assim sabe? Em dezdias não estava agüentado mais ver ninguém... fui embora lá para o ter reiro(...) e fiquei escondido lá... quem batia na por ta e perguntasse por mim...dava vontade sair gr itando. Aí esteve um médico da família lá e me disseassim: ‘Ele tem que sair daqui rápido, senão vai ficar doido’... foi quando eusaí e fui lá para per to da minha noiva... lá em Dores de Campos... foi quandomelhorei um pouco... mas mesmo assim... quando eu fui lá, tive com ela umaconversa muito sér ia. Eu cheguei de bengala, não podia andar direito... todomundo me car regava para lá e para cá... o povo soube que eu ir ia chegar eficou todo aglomerado lá na por ta da casa da noiva... era o soldado quechegou quase mor to da guer ra e ir ia se encontrar coma noiva, ir ia beijar anoiva... ser ia uma cena de filme, sabe?”

Na conversa com a sua noiva, O. Lopes teria perguntado se aceitaria casar com um aleijado

e, no seu caso, teve sorte, pois a resposta foi positiva e até o dia em que realizei essa

entrevista tudo estava bem entre eles – de qualquer forma, o interessante nessa passagem éjustamente a imagem que se faz dos soldados que vão à guerra. Tal ‘cena’, descrita por ele

– e provavelmente esperada por todos que lá estavam –, poderia muito bem ter vindo

diretamente das telas de um filme hollywoodiano sobre a Segunda Guerra, dentre muitos

realizados àquela época, preocupado com a mobilização e o moral da sociedade. Apesar de

tudo, O. Lopes pode ser considerado como um ex-combatente que contou com uma

reincorporação relativamente tranqüila, pois, por mais trágico que isso possa parecer, o seu

ferimento lhe possibilitou uma pensão, o que significaria uma estabilidade financeira

mínima para se manter. Frente a isso, o que esperar daqueles que nem noiva e nem pensãoos aguardava na volta?

Indiscutivelmente, os que ficaram em pior situação foram os expedicionários que nãopermaneceram no Exército. Tal questão, nas fontes, sempre se mostrou confusa – ao que

parece, os expedicionários tiveram sim a chance de escolher se continuariam ou não como

155

militares, mas isso raramente aparece de forma clara nos depoimentos. Como já foi dito, o

processo de desmobilização foi tão rápido que, na época, grande parte dos expedicionários

mal tomou ciência de que poderiam pedir a permanência nas Forças Armadas, ou se

desligaram ansiosos para voltar para casa, não sabendo das conseqüências daquele ato

apressado:

“Antes de deslocarem-se para casa, porém, os expedicionár ios de or igemcivil tiveram de optar , entre pedir o reengajamento ou desmobilizar -se.Como a maior ia dos expedicionár ios era formada por praças do inter ior ,ansiosos por rever familiares e amigos, e esgotados pela vida de soldadonuma guer ra, poucos optaram pelo reengajamento. Alguns, inclusive, nãoaguardaram a expedição de seus documentos, e abandonaram os quar téis doRio de Janeiro, para fazer a ‘tocha’ definitiva.”203

A maioria dos entrevistados afirma que apenas expedicionários que ocupavam a patente de

tenente para cima – portanto oficiais – poderiam optar por ficar no Exército, e que ao resto

coube a desmobilização. Na verdade, os expedicionários, sobretudo quando da volta para o

Brasil, foram tratados como o gado que vai para o matadouro, ou seja, só há um caminho a

seguir, de modo que, se havia a opção de continuar como militar, muito pouco se soube

sobre isso, o que explica a indecisão e desinformação reinantes, até hoje, entre os ex-

combatentes no que toca a esse ponto. J. Lopes, que foi à guerra como cozinheiro, coloca

que: “Às vezes até podia conseguir, mas eu não olhei isso não (...) eu queria até participar

do Exército, mas todo mundo estava de baixa...”204. Dessa forma, se não é o

desconhecimento sobre a possibilidade do reengajamento, talvez seja certo constrangimento

que leve a maioria a negar a existência de tal possibilidade. Primeiro porque, hoje, para a

maioria deles, criticar a vida militar e o Exército é um contrasenso, e segundo, podem achar

que por causa de uma decisão apressada deles próprios, e não por um equívoco do Estado, éque passaram por todos esses problemas e impasses da reincorporação. Nesse contexto,

156

vale atentar para a complexidade da memória na sua íntima relação com a identidade dos

sujeitos, de forma que ‘recordar’ pode ser, também, algo doloroso e até perigoso para

grupos e indivíduos.

Algum tempo após a chegada ao Brasil, grande parte dos expedicionários se

encontrava psicologicamente arruinada, bem como os cerca de 3000 que ainda sofriam com

ferimentos das mais variadas naturezas. Décadas mais tarde, esse quadro foi amenizado

pelas memórias dos ex-combatentes, por razões óbvias, mas tal como se deu com a questãoda resistência à convocação, onde os entrevistados raramente pensavam em fazer algo desse

tipo, mas conheciam vários que o faziam, os problemas oriundos da reincorporação sãoconhecidos pela maioria deles – apesar de não se sentirem muito à vontade para relatar suas

experiências pessoais. Vale lembrar, também, que os ex-combatentes entrevistados são, de

certa forma, os sobreviventes da “verdadeira guerra da FEB”, pois no decorrer de 60 anos,

muitos morreriam, perderiam a faculdade de falar ou lembrar de suas experiências, se

calariam, isolariam ou ‘esqueceriam’ dos fatos. Esse quadro dos depoentes, não por acaso,

foi o mesmo encontrado por Alistair Thomson em sua pesquisa com os ANZAC:

“Os homens que entrevistei sobreviveram aos traumas emocionais da guer rae ao retorno à vida civil, mas todos têm histór ias vívidas sobre soldadosamigos que não tiveram tanta sor te, que ficaram loucos, tornaram-sebêbados abandonados ou se mataram”205.

Se durante a guerra uma parte dos expedicionários conseguiu permanecer distante dos

distúrbios psicológicos, certamente muitos deles acabariam encontrando problemas durante

o processo de reajuste e reincorporação à vida civil. O choque dos diferentes hábitos e

valores entre os ex-combatentes, suas famílias e as pessoas que os cercavam contribuiu

203 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.158.204 Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

157

fortemente para isso: se no Exército acostumaram-se a ter todos os meios necessários para a

sobrevivência fornecidos pelo Estado, na vida civil teriam que se virar para se alimentarem,

se vestirem e se cuidarem, lembrando que grande parte deles foi convocada quando estava

entrando no mundo do trabalho, ou se formando para o exercício futuro de algum ofício. Na

medida em que foram arrancados dessa realidade e acostumados à da guerra, era difícil para

eles retomarem as coisas num campo que ainda há pouco começavam apenas a criar as

primeiras raízes. Alguns ex-combatentes mais lúcidos, hoje compreendem esse choque da

volta, e explicam as razões que os levaram a gastar rapidamente todo o dinheiro recebido

após a desmobilização e tornarem-se pessoas sem referências a seguir, conforme narra D.

Medrado, da Associação de Belo Horizonte:

“Eu fui para a minha ter ra (...) é lógico que foi uma recepção muito boa,minha família, todos satisfeitos e. qual a família não recebeu o seu pracinhaassim, não é? Não fui só eu... todos nós fomos recepcionados pela família emuitos se controlaram... mas a grande maior ia estava com sede era depasseio, de alegr ia, e gastou esse dinheiro todo porque achou que opresidente da república tinha prometido que nada lhes faltar ia, não é?Quando ele sentiu em si (...) que era um cidadão comum como outroqualquer e tinha que trabalhar ... ele não sentiu aonde pisar , se sentiu fora dater ra, voltou à cidade grande para procurar apoio e não teve... nós tivemosque nos reunir , formar em associação e aqueles, como eu, que havia sidoreformado... continuei recebendo do Exército... que tinham uma situaçãofinanceira melhor , e que conseguiram alguma coisa, para ajudar essa genteque estava aí... ao léu da sor te....”206

Ainda nesse sentido, a própria adaptação durante a guerra, à doutrina militar norte-

americana, segundo alguns, contribuiria para esse ‘desenraizamento’ dos expedicionários

brasileiros após a volta para casa e no próprio processo de reincorporação. Já que, uma vez

sendo bem tratados, sobretudo no que toca à alimentação, cuidados médicos e até nos

momentos de folga e diversão, voltariam com uma nova percepção de quais eram as suas

205 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.109. No original: “The men I interviewed survived theemotional traumas of war and the return to civilian life, yet they all have vivid stories about soldier friendswho were not so lucky, who went crazy, became derelict drunk’s or killed themselves.”.206 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

158

necessidades básicas, bem como quais eram os seus direitos como soldados-cidadãos

mobilizados pela máquina do Estado207.

Outros problemas ainda surgiriam nesse contexto de desordem psicológica e social. A

dificuldade em conseguir um emprego estável, por exemplo, foi dilema que acompanhou

vários dos depoentes entrevistados: não se adaptavam à nova realidade, eram perseguidos, a

escassa legislação que obrigava as repartições públicas a aceitá-los era ignorada, sem contar

a proliferação dos boatos que viam os ex-combatentes como neuróticos loucos de guerra, o

que os tornava ainda mais ‘repelentes’ aos olhos da sociedade. Desse quadro para o

envolvimento em brigas e com o alcoolismo era apenas um passo, e a despeito disso tudo,

viam as portas do Exército fechadas seja quando procuravam os hospitais, ou ao entrarem

com ações visando conseguir a reforma. Para tal, deveriam ser considerados

“incapacitados” para o trabalho, o que raramente acontecia: “os pedidos de reforma dos

incapacitados encalhavam nas repartições militares ano após ano. Na maioria das vezes a

reforma era negada: consideravam-no capaz de prover sua própria subsistência.”208. Por

outro lado, quando conseguiam, eram igualmente estigmatizados, pois a pensão a que

tinham acesso era vulgarmente conhecida por “pensão de louco de guerra”209. Com o tempo

as coisas tornar-se-iam mais dramáticas, podendo-se atestar em jornais dos anos cinqüenta

notícias sobre suicídio de ex-combatentes o que, pelo menos momentaneamente, trazia de

207 Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001.208 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.338.209 A “pensão do louco de guerra” foi estabelecida pela lei no 2.579, de 23 de agosto de 1955, e correspondia agarantia de auxílio médico bem como a concessão de pensões a ex-combatentes que fossem consideradosincapazes de se manterem em função de doenças graves como “tuberculose ativa, alienação mental, neoplasiamaligna, cegueira, lepra, paralisia...”, tais direitos ficaram conhecidos também por “lei do pé na cova”. Cf.:FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.221.

159

volta à tona os problemas que tal parcela da população vinha sofrendo – de qualquer forma,

rapidamente tudo voltava ao esquecimento210.

Dessa forma, as coisas continuavam da mesma maneira, apesar do fato de, em

decorrência de uma série de leis que vinham sendo criadas, alguns ex-combatentes que

dispunham de conhecimento sobre elas bem como meios para fazer com que valessem,

conseguissem algo com que se amparar. S. Ribeiro, da cidade de Cristina, depois de

trabalhar na fazenda de um amigo alguns anos após a volta para o Brasil, se beneficiou de

uma lei que dava prioridade para ex-combatentes em concursos públicos, tornando-se,

então, oficial de justiça – trabalharia por 25 anos, até se aposentar de acordo com outra lei

que diminuía o tempo de serviço para a aposentadoria dos ex-combatentes. Por outro lado,

um colega, da mesma cidade, não conseguiu ser beneficiado e morreu na miséria: “Muita

gente virou andante... no começo foi uma calamidade, não é? Não tinha direito nenhum... e

foi sim... muita gente ficou louca, não é? (...) O Wilson até morreu na miséria... mas hoje a

viúva recebe... [Se referindo à pensão definitiva de 1988]”211.

Com H. Medeiros, as coisas também não se sairiam tão bem, de modo que éperceptível o período em que se encontrava perdido e sem referências: “O governo deu

baixa para os solados: ‘Agora vocês que se virem.’” – os valores que recebeu após a volta

não durariam quase nada, porque “Eu meti o pau nele”. Afirma ainda que não lhe foi dado

nenhum emprego, e que só no governo Juscelino é que conseguiu ir trabalhar nos Correios.

Antes disso trabalhava na Mannessmman, onde diz ter sido perseguido pelo seu superior

que era alemão e que, durante a ocupação francesa, teve cargo na prefeitura de Lion.

Quanto à opção de permanecer no Exército, não pensou na possibilidade, pois como já se

210 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.198.

160

viu, Medeiros foi um dos depoentes que mais aversão explicitou pela vida e valores

militares:

“Na época eu até poder ia ter ficado no Exército... apesar de eu não gostar doExército... nunca gostei desse negócio de se submeter à ordem... eu gosto deser um camarada livre... não gosto de... negócio de cabresto... eu nunca fui...negócio de cabresto não.”212

Por fim, é o General Raul de Cruz Lima Júnior que sintetiza bem o destino de grande

parte dos ex-combatentes que tiveram a má sorte de contarem com uma reincorporaçãoproblemática:

“A grande maior ia, no entanto, teve problemas ao reintegrar -se na vidada paz. As neuroses de guer ra tiveram as manifestações mais extravagantesem grau, maior ou menor naqueles organismos que sofreram, diretamente,os hor rores da guer ra. Com o passar do tempo, todavia, as marcas foramdesaparecendo e a vida se normalizando.

Uma pequena parcela foi para os hospitais neuropsiquiátr icos. Algunsficaram confinados permanentemente, morrendo e desaparecendo aospoucos. Ir recuperáveis, o seu destino foi o mais cruel.

Outros, após uma temporada em hospitais, foram devolvidos à vidacomum, porém, em estado precár io. O tratamento, incompleto, poucoadiantou. Voltaram para as ruas; ora empregados, ora desempregados;transformando-se em mulambos humanos, desmemor iados e perdidos,maltrapilhos, passando as noites ao relento e vivendo na mais negramisér ia.”213

vÉ certo que a maioria dos ex-combatentes contou com uma reincorporação atribulada,

e isso pode ser atestado nas narrativas de todos eles – inclusive entre os que não passaram

por tais problemas. Passagens tratando dos descasos do governo bem como do Exército –esse de forma mais velada, é verdade – pululam nas entrevistas com os ex-combatentes,

onde se vê também, pela maneira como articulam suas falas e argumentação, o caráter

sofrido, lento e angustiante de todo o processo. Passados cerca de sessenta anos, a memória

211 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.212 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.213 LIMA JÚNIOR, Gal. Raul da Cruz. “Quebra-Canela. A Engenharia brasileira na Campanha da Itália”2 ed.Rio de Janeiro: 1982, p.203.

161

arrefeceu um pouco os ânimos, como era de se esperar, de qualquer forma, ainda sãobastante visíveis as marcas dessas “batalhas”, pois sabemos que se todos esses problemas

não tivessem sido enfrentados, a memória dos ex-combatentes, de longe, seria muito

diferente do que vimos atestando até aqui. Mas como se sabe, a pluralidade é algo

característico na história da FEB, de forma que heterogêneas também são as maneiras como

cada ex-combatente se saiu no processo de reincorporação. Ex-combatentes como A. Neto

e L. Junqueira são exemplos paradigmáticos desses casos – para eles a guerra, hoje,

consistiu em experiência primorosa, apesar de todos os problemas oriundos da volta que, éverdade, não os acertou em cheio. Se em suas narrativas está explícita a crítica em relaçãoao descaso do Estado para com os expedicionários, é fato, também, que tais dificuldades

detêm um espaço marginal em suas memórias – e experiências – como fica atestado em

diversas passagens de Neto:

“... ir para lá foi uma aventura maravilhosa, porque me abr iu, clareou muitoa minha vida... depois eu terminei o curso de arquitetura e fui trabalhar noministér io da saúde como arquiteto. E aí começaram as vantagens da FEB,eu tinha que trabalhar 35 anos e só tr abalhei 25 anos... ganhei dez anos...aposentei mais cedo (...) Para mim foi muito bom... abr iu os hor izontes... euvi novos países, novas línguas... e me deu confiança...e eu vi a organizaçãodos exércitos amer icano e como ele é muito bem estruturado...”214

Poucos ex-combatentes analisam a guerra nessa chave, dizendo que a FEB foi

essencial em vários aspectos – não que a maioria deles despreze algo que marcou as suas

vidas para sempre, mas quase sempre há um ar de que expectativas foram roubadas e de

que a vida poderia ter sido diferente. Neto é um ex-combatente que não teve maiores

problemas em lidar com a experiência da guerra, tanto que ele se lembra dela por meio dos

lugares bonitos na Itália, como uma “aventura maravilhosa”, de como o transformou numa

pessoa cosmopolita e das vantagens da FEB – se referindo ás primeiras leis em prol dos

162

febianos que, certamente, pouquíssimos podiam desfrutar. De fato, a guerra não consistiu

em traumas na vida de A. Neto – inclusive no que toca às misérias que dela advém. Foi àguerra como tenente, depois que voltou para o Brasil, desligou-se do exército e pediu uma

reforma que demoraria a chegar, enquanto isso usou o dinheiro que ganhara na FEB –aquele que foi ‘mal gasto’ pelos ex-combatentes – para terminar a faculdade de arquitetura.

O que é específico desses ex-combatentes, também, é o entusiasmo pela memóriaoficial da FEB que contraria em muitos poucos pontos as suas versões – atendendo,

portanto, satisfatoriamente as suas demandas pessoais. Não é raro, em suas narrativas,

ouvirmos falar das homenagens oficiais, das altas patentes e dos regimentos ao invés dos

grupos e cias., e da guerra dos praças. Fazendo um paralelo com o trabalho de Alistair

Thomson, poderia dizer que a memória desses ex-combatentes se aproxima das lembranças

de outro de seus depoentes, Percy Bird, cuja reincorporação foi bastante tranqüila. Anos

depois, a memória da guerra não era um peso a ser suportado, apesar dos sofrimentos, dos

amigos mortos e mutilados e tudo mais – a experiência da guerra portava uma função de

entretenimento, bastante próxima do mito público e das patriotadas, bem como evitava

tratar de certos temas polêmicos e dolorosos por eles não ‘trabalhados’, falava-se destes,

mas de modo superficial e por pura obrigação, quando não por minha insistência215.

Sobretudo entre os oficiais que continuaram no Exército, pelo menos os que não se

envolveram com a formação das Associações, a despeito das perseguições e outras coisas

do gênero, a memória tende a se apresentar dessa forma: mais tranqüila e mais coerente,

sem ressentimentos – mas nem por isso é mais verdadeira ou mais falsa, ela simplesmente

é. Configurando-se dessa forma, ela exprime as desigualdades, as tensões entre os ex-

214 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.

163

combatentes e as instituições envolvidas e, se vista frente às memórias mais ‘sofridas’, em

que medida a memória oficial consiste/consistiu num apoio ou num incômodo para cada

um deles. Ou seja, em que medida certas práticas públicas reforçavam ou destoavam de

suas percepções pessoais sobre a guerra. Por outro lado, vale lembrar que apesar de todas as

divergências, certos elementos tendem a unificar os ex-combatentes em geral, como, por

exemplo, a degradação das populações submetidas à guerra – os chamados sfollati –, os

colegas feridos ou mortos, as falsas promessas do discurso de despedida de Vargas, a

rejeição ao ‘mito do passeio’, entre outros pontos – tudo isso, obviamente, em intensidades

e formatos diferentes.

Tais elementos acabavam por promover a congregação dos ex-combatentes em

associações, primeiro porque “os efeitos desestruturantes da experiência da guerra eram

responsáveis pela sensação de desligamento e distanciamento de uma identidade ‘passada’na qual não mais se reconheciam”, de forma que “O contato com os companheiros da FEB

amenizava a situação de exceção que vivenciavam.”216. Fora isso, havia ainda a questão da

ajuda mútua, pois, no final das contas, a maior parte da assistência era fornecida pela recémcriada AECB – a Associação dos Ex-Combatentes do Brasil – que cresceu rapidamente,

tendo numerosas filiais espalhadas pelo interior do país. Por fim, existia também a

necessidade de uma delimitação identitária, em virtude dos vários grupos que concorriam

com os ex-combatentes pela conquistas dos direitos e benefícios – sobretudo militares que

não haviam embarcado para a Itália, por razões várias, e que ansiavam pelos direitos que os

febianos vinham conquistando – pelo menos no âmbito da legislação.

215 Cf.: THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”. & Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.216 RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.178.

164

A legislação que trata dos benefícios e direitos dos ex-combatentes é extensa e, como

não poderia deixar de ser em se tratando de Brasil, foi, na mesma proporção, dada como

letra morta, vista com péssima vontade política e, na maioria das vezes, solenemente

ignorada ou usada de forma abusiva por alguns sujeitos217. Exemplo disso pode ser visto na

concessão de medalhas após a volta para o Brasil:

“Muitas medalhas foram concedidas a militares [que permaneceram no Brasil]e civis [considerados apoiadores do esforço de guerra] que pouco ou nadafizeram pela FEB, ou até mesmo àqueles cujos serviços foram prejudiciaisaos expedicionár ios, como, por exemplo, o fornecedor dos uniformes da FEB,cuja péssima qualidade obr igou os aliados amer icanos a vestir toda a divisãobrasileira com o mater ial proveniente da Intendência do V Exército. Poucospraças foram condecorados (...) quando voltaram ao Brasil, não entendiamque ocor rera uma injustiça, vendo tantos oficiais e civis condecorados e tãopoucos praças com as mesmas honrar ias. Muitos prefer iram acreditar queos praças não foram condecorados porque não mereceram, porque fizeram‘tur ismo’ ao invés de combater .”218

Ainda nesse sentido, era muito comum entre os militares ‘pegarem carona’ nos poucos

benefícios que eram concedidos aos que haviam lutado no TO da Itália e que tinham optado

por continuar no Exército. Dessa forma, quando uma lei era promulgada em favor dos

febianos, uma avalanche de reclamações surgia entre os militares que permaneceram no

país – só parando depois que os direitos eram estendidos aos oficiais que tivessem servido

no litoral brasileiro durante o conflito219. Tal fato marcou a memória e identidade dos ex-

combatentes até hoje, pois se há um ressentimento uníssono entre eles, é com relação aos

“praianos”, “praieiros” ou “patos d’água” que se aproveitaram dos benefícios dos outros

para se promoverem – a crítica a esses sujeitos e a desvalorização de suas atitudes são

217 Quanto à legislação feita em prol dos ex-combatentes, “... foram promulgadas 81 leis, 56 decretos-lei e 62decretos, no âmbito federal, e 89 leis no âmbito estadual, totalizando o impressionante número de 288diplomas legais. Dentro da ótica de que leis e decretos tudo resolvem, não faltam leis de amparo aos ex-combatentes, é a conclusão que se pode tirar. Mas é um ledo engano, pois faltou, na realidade, uma estruturaflexível e prática para amparar os ex-combatente necessitado, e para administrar e aplicar essa enxurrada deleis, regulamentos e portarias publicadas”. SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um soldado”, p.239.218 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.170.219 Ibidem. p.175.

165

onipresentes nos depoimentos. Mais tarde, já no governo Dutra, os benefícios seriam ainda

estendidos aos militares que serviram no interior do país – era a mutilação da identidade

dos febianos.

No que tange à legislação criada visando os que retornaram à vida civil, tais

despautérios também foram comuns – segundo o decreto-lei no 4.548 de agosto de 1942,

todos os convocados teriam o direito de ter os seus antigos empregos restituídos, bem como

pagos 50% de seus salários correspondentes ao período de serviço militar. Antes mesmo da

partida da FEB, no entanto, já se desrespeitava a lei, de modo que os empregadores

demitiam seus empregados e, muitos menos, os readmitiam após a volta. Outros grupos

específicos de ex-combatentes contaram com algum apoio, como por exemplo, os

estudantes, pois um decreto de 29 de setembro de 1945 lhes garantia a retomada e

continuidade dos estudos – com concessão de bolsas, se necessário220. Em períodos

eleitorais, era bastante comum os candidatos correrem às Associações buscando apoio para

suas chapas, prometiam empregos e vantagens para os ex-combatentes que, além de

freqüentemente não serem cumpridas, serviam para estigmatizar ainda mais esse grupo, na

medida em que começaram a ser vistos como uma casta de privilegiados. De qualquer

forma,

“A existências dessas e de outras leis não garantia, entretanto, a solução dosproblemas dos veteranos. O desconhecimento dos direitos expressos nessasleis (...) era grande. Muitos viviam no inter ior , nas zonas rurais, e ignoravamque tinham direito a tais benefícios (...) E mesmo os que sabiam de seusdireitos poucas garantias tinham de transformá-los em realidade, pois aburocracia e repar tições impunham-lhes muitos obstáculos.(...)Aos poucos deixam de ser percebidos como ‘heróis da pátr ia’, voltando a sercidadãos comuns, que disputavam os mesmos empregos e vantagens com osnão-expedicionár ios ”221

220 Ibidem. p.200.221 Ibidem. p.200-201.

166

Entre as décadas de cinqüenta e oitenta poucas alterações significativas foram levadas

a cabo para viabilizar o processo de reincorporação dos ex-combatentes – junto disso,

continuavam as ‘caronas’, o que dificultava ainda mais a luta por direitos, já que para os

cofres públicos, cada benefício teria de ser pago a um número muito grande de pessoas.

Apenas nos anos sessenta é que a política de pensões e aposentadorias começaria a andar,

abordando todos os ex-combatentes apenas na constituição de 1988 – de forma que, atéentão, cada febiano requerente deveria entrar com processo individual. Obviamente tudo

isso foi bastante dificultado pelas ‘leis da praia’ que, nada mais nada menos, elevaram o

número de ex-combatentes de 25.000 para pouco mais de 150.000. Tais leis, criadas em

1948 e 49 seriam atualizadas e ampliadas para mais alguns grupos militares e mesmo da

marinha mercante pela lei no 5.315 de 12 de dezembro de 1967222.

Obviamente que isso gerou uma série de problemas entre os ex-combatentes,

‘praianos’ ou não, as Associações, os militares e o Estado – como não poderia deixar de

ser. Nesse contexto, vê-se uma verdadeira guerra pela memória e pela identidade, na sua

íntima relação com a política. Milhares de militares correriam às AECBs – até entãocomposta por veteranos da Campanha da Itália – a fim de terem acesso aos direitos recémconquistados, depois de muita luta, pelos febianos. Estes conseguiram formalizar a

concessão de uma pensão de dois salários mínimos para ex-combatentes que não pudessem

se manter que, entretanto, não poderia ser acumulada com os proventos do INPS – o que

gerou muitos protestos. Igualmente, a pensão definitiva e extensível a todos os ex-

combatentes nos termos da lei no 5.315, a ‘segunda lei da praia’, conquistada com a

constituição de 1988 e proporcional ao vencimento de um segundo-tenente, não poderia ser

222 Ibidem. p.224.

167

acumulável com quaisquer outros rendimentos, o que também gerou protestos. Polêmicas

também surgiram quando se soube de numerosos militares que acumulavam vários

rendimentos e ainda os repassavam, após a morte, aos dependentes – militares esses que

não tinham ido à Itália e que, por conhecer os meandros burocráticos e legais, conseguiam

ter acesso a tais benefícios. Apenas em julho de 2000, o Superior Tribunal de Justiça vetou

a pensão dos dependentes de militares, sendo esta, agora, apenas direito dos ex-

combatentes que, de fato, participaram da Campanha italiana223.

Paralelamente a essas lutas pela reincorporação, os ex-combatentes e as AECBs iam

“enquadrando” suas memórias e definindo suas identidades – a conquista dos direitos

significavam combates, negociações, cisões e aproximações frente aos variados sujeitos

com os quais interagiam. Dessa forma, a todo o momento o passado era reavaliado à luz

das situações presentes, e a memória dos ex-combatentes, bem como a versão institucional,

dava as suas reviravoltas. É essa outra dimensão do segundo tempo da memória da FEB

que será analisada agora.

vII.3 Os ex-combatentes, as Associações e o Exér cito: entre resistência e negociação

Como na história, onde se vê a ocorrência de inúmeros eventos simultâneos no

decorrer do tempo, a memória também comporta essa dimensão de tempos e fatos

sobrepostos. São diferentes esferas de sentidos, espécie de níveis, de forma que cada

narrador articula-os de modos diferentes – atribuindo, dessa forma, periodizações, valores e

ênfases específicas às suas memórias. Geralmente, um dos níveis é tomado como

dominante no corpo do depoimento, o que ajuda a explicar a variação de pontos de vista

223 Ibidem. p.232.

168

entre sujeitos que abordem um mesmo período ou evento, bem como o estilo da narrativa

adotada: mais pessoal e palpável – “eu” –, ou mais impessoal e distante – “nós”, “eles” –isso, obviamente, está em íntima relação com as referências identitárias dos depoentes e,

por extensão, à configuração das memórias dos grupos e indivíduos. Em suma, uma espécie

de “eixo filosófico” é adotado na conformação das memórias. Tal como a história pode ser

marxista, liberal, cultural, anarquista etc., a memória, na forma materializada da narrativa,

pode também se organizar a partir de critérios e princípios que fazem sentido para o sujeito

que narra, estando o processo de rememoração, portanto, ligado a essa lógica224.

Segundo Alessandro Portelli, nós comportaríamos, mais ou menos, três níveis ou

“estratos”, entre os quais a memória ‘escolheria’ se fundamentar: o institucional, o coletivo

ou comunitário e o pessoal. Esses níveis não devem ser encarados ou procurados nas

narrativas de maneira completamente separada, já que não se apresentam assim – ao

contrário, as lembranças dos sujeitos e a maneira como aquelas são relatadas evidenciam o

entrelaçamento e a constante comunicação entre os diferentes níveis. Portelli lembra

também que

“A colocação de um evento em um nível não é intr ínseco ao própr io evento,mas à perspectiva do nar rador . Uma guer ra pode ser nar rada como aconseqüência inevitável do capitalismo imper ialista, como uma catástrofeque causou a destruição de uma cidade natal, ou como a exper iência pessoalde luta e tragédia da perda de parentes e amigos.”225

A título de exemplo, cita entrevista com um ordenança da Marinha que só lhe relatava

como conseguia enganar os oficiais para poder beber – enquanto isso uma guerra acontecia,

evento que só foi referido pelo tal depoente nos últimos cinco minutos da entrevista.

Passagens como estas são comuníssimas em depoimentos, e evidenciam a multiplicidade da

224 KHOURY, Yara Aun. “Muitas memórias, outras histórias: a cultura e o sujeito na história”, p.128-134.225 PORTELLI, Alessandro. “Os momentos da minha vida: funções do tempo na história oral”, p.307.

169

memória e da vivência da história. No âmbito dessa dissertação, ver-se-á como as

lembranças ora privilegiam um enfoque ora outro: o institucional, o militaresco, o pessoal,

o “subterrâneo” – lembrando que, tal como mostra Portelli, a ‘forma pura’ sempre

permanecerá nos textos teóricos, já que, na maior parte dos discursos, o que se percebe é a

mescla de várias tendências.

Agora, analisar-se-á o surgimento das AECBs e de que forma essas se apresentam na

configuração da(s) memória(s) da FEB. As Associações nasceram e portaram, durante a sua

existência, numerosas funções que variaram de acordo com as demandas dos ex-

combatentes, bem como as flutuações das várias esferas que as influenciaram: políticas,

culturais, sociais e econômicas. Após a volta para o Brasil, as Associações, até hoje,

consistiram em referência indispensável aos ex-combatentes – obviamente com

intensidades diferentes – de forma que, sem elas, dificilmente a comunidade dos febianos

permaneceria unida, sobretudo frente à dispersão daqueles pelo território nacional. Assim,

nesses sessenta anos de existência das Associações, vários objetivos foram estipulados –uma pequena parte atingida –, a luta pelos direitos teve o seu auge – e hoje se encontra

arrefecida –, mas ainda tais entidades continuam sendo o referencial de encontro dos ex-

combatentes e de suas famílias, bem como a instituição mais representativa dos febianos e

que, durante todo esse tempo, preocupou-se com a manutenção e (re)construção da

memória e a realização de comemorações.

Joaquim Xavier da Silveira, ex-combatente da FEB, diz em suas memórias que ainda

na Itália já se aventava a criação de uma associação que congregasse todos os

expedicionários brasileiros que participaram da guerra na Itália226. Tais associações já eram

226 SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um soldado”, p.247.

170

tradição em países como Estados Unidos, França e Inglaterra, sendo bastante provável que,

do contato entre os expedicionários brasileiros e os aliados, viesse essa iniciativa. Esse

caráter associativista típico dos círculos militares, seria mais uma das influências que

recairia sobre os expedicionários – junto disso, a distância de casa e as condições peculiares

a que foram submetidos ajudava na comunhão dos sentimentos e, por extensão, na

consolidação de uma identidade que, sendo vista como algo caro aos que estavam na

guerra, deveria ser mantida após a volta para casa. A idéia não morreu na Itália, ela cruzou

o Atlântico com os expedicionários, e já em outubro de 1945 se formava a primeira

Associação dos Ex-Combatentes do Brasil – com sede no prédio do Antigo Silogeu

Brasileiro, na Avenida Augusto Severo, n.4, no Rio de Janeiro. As intenções iniciais da

AECB já se voltavam para os impasses da reincorporação, haja vista a maneira descuidada

com que o Ministério da Guerra fez a desmobilização dos praças – preocupado unicamente

com questões políticas, e não com o bem-estar dos desmobilizados ou com o

aproveitamento do contingente recém-chegado para a atualização do Exército Nacional. Em

pouco tempo a Associação cresceria, seja em número de sócios, seja na quantidade de sedes

espalhadas pelo país – já no ano seguinte, 1946, várias AECBs foram criadas: em Belo

Horizonte, São Paulo, Paraná etc., depois, ainda se espalhariam por dezenas de cidades do

interior.

Inicialmente eram aceitos como sócios nas Associações apenas os expedicionários

que participaram da Campanha da Itália. Depois da realização do primeiro Congresso

Nacional das Associações em 1946, foram incluídos no primeiro estatuto, também deste

ano, os integrantes da Marinha de Guerra que tivessem participado de operações de

patrulhamento litorâneo durante o conflito, bem como da Marinha Mercante – esta, alvo

dos torpedeamentos por submarinos alemães. Com o tempo, e as chamadas “leis da praia”,

171

ampliou-se demasiadamente a definição de quem eram os ex-combatentes o que, a médio

prazo, levou as os febianos à condição de minorias nas suas próprias Associações. Ainda de

acordo com o primeiro estatuto, eram objetivos das AECBs:

“... promover a integração social entre os veteranos de guer ra, representarseus interesses coletivos com as autor idades, preservar e promover amemór ia dos feitos brasileiros na Segunda Guer ra Mundial, oferecer , dentrode suas possibilidades, assistência social e jur ídica àqueles companheiros emdificuldades e lutar pela valor ização da paz nas relações sociais nacionais einternacionais.”227

Ainda nessa primeira fase, as Associações dispunham de um caráter eminentemente civil,

não dispunham de nenhum tipo de “fidelidade regimental”228, ou seja, foram surgindo, em

sua maioria, não nas cidades-sedes dos Regimentos que compuseram a FEB – 1o, 6o e 11o

R.I. –, mas sim nas cidades de onde saíram os expedicionários. Apesar dessa dimensão civil

e destinada à luta pela assistência e apoio aos ex-combatentes, o estatuto proibia a adoçãode práticas políticas de cunho partidário. A AECB reformaria seu estatuto em diversas

ocasiões: 1954, 1960 e 1972, mas tais princípios impedindo a vinculação da Associaçãocom partidos políticos nunca seriam alteradas – e isso não tardaria em causar conflitos.

As AECBs se estruturaram de forma que todos os integrantes dispusessem de

igualdade de poderes e de condições de ocupar qualquer secretaria, dessa forma, os sócios

se organizavam em chapas que, se eleitas, converter-se-iam nas diretorias cujo período de

mandato era predefinido pelo estatuto. Assembléias Gerais poderiam ser convocadas em

situações especiais, seja para as eleições da diretoria, seja para discutir questões que

exigissem a opinião de uma parcela maior dos associados. Há ainda o órgão máximo das

AECBs, sediado na sede nacional no Rio de Janeiro e composto por delegados de todas as

Associações do país, que é o Conselho Nacional das AECBs – em cujas convenções se

227 Estatuto da AECB, 1946. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.244.

172

definiam as políticas a serem seguidas pelo menos até a troca de cadeiras, que se dava a

cada dois anos.

Nesses primeiros anos de existência da AECB, as diretorias eram compostas,

sobretudo, por praças e/ou oficiais subalternos da reserva que, vendo a situação em que se

encontravam seus colegas de trincheira, procuraram dar algum apoio. As primeiras

diretorias, sobretudo nas regionais de São Paulo e Rio de Janeiro, tinham em sua

composição vários ‘elementos comunistas’, o que geraria uma série de embates e disputas

que culminariam com a expulsão destes e a tomada das rédeas das Associações por

indivíduos ligados às Forças Armadas em 1949 – já sugerindo a ‘guinada’ política, dos

anos cinqüenta, que privilegiaria não a confrontação, mas a negociação e colaboração na

busca pelos direitos229. Ex-combatentes como Pedro Paulo Sampaio de Lacerda – futuro

candidato à vereança pelo PCB – o Partido Comunista do Brasil –, Salomão Malina – que

chegaria a vice-presidência da AECB/DF – então no Rio –, Jacob Gorender, entre outros

“Afeitos aos trabalhos de organização sindical e associativa (...) ocupavam posições nas

diretorias das seções e, posteriormente, no Conselho Nacional.”230. Com a legalização do

PCB em 1945, tornou-se impossível que as disputas de cunho político partidário ficassem

distantes das Associações e

“A par disso, a direção da Associação começou a tomar mediadas de caráterpolítico [leia-se “de esquerda”], par ticipando ostensivamente de algunsmovimentos político-par tidár ios da época, sobretudo os de nítida or ientaçãoesquerdista. Não era a intenção, nem os desejos dos que inicialmentelevaram a cabo a idéia de sua cr iação. Começou então a fase de não-comparecimento à sede da Associação.”231

228 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.243.229 A criação da AECB/SP partiu da iniciativa do ex-sargento Gervásio Gomes de Azevedo e dos soldadosAbrahão Abait, Raimundo Paschoal Barbosa, Dionísio de Vechi e Antônio Sá Rodrigues – sendo os trêsprimeiros ligados ao PCB. Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.256.230 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.257.231 SILVEIRA, Joaquim Xavier da. “A FEB por um soldado”, p.248.

173

Ainda nesse âmbito, vale lembrar que as Associações de Ex-combatentes francesas,

inglesas e norte-americanas, tanto da Primeira quanto da Segunda Guerras Mundiais, eram

extremamente atuantes e não hesitavam em opinar e criticar posições e/ou decisões da

política nacional dos seus respectivos países.

De fato, vê-se, desde o início desse processo em que os comunistas se envolviam com

as Associações, uma política de distanciamento, por parte dos associados, e outra de

embate para que os ‘vermelhos’ saíssem de lá, esta levada em frente pelas lideranças

conservadoras e por setores das Forças Armadas. Certo é que as causas de uns e de outros

na tomada de tal atitude não tinham proximidade de sentido, mas as práticas de ambos

acabavam por influenciar, de alguma forma, a política da Associação o que, no final das

contas, pesaria muito na vida de grande parte dos filiados – sobretudo em virtude da

importância crescente que as Associações foram tomando na vida desses indivíduos. Por

parte dos dirigentes e no âmbito dos embates de gabinete houve uma política deliberada de

afastamento das chapas e dos ex-combatentes com ‘tendências políticas’, e tais ações nãoficaram apenas às voltas da sede nacional das AECBs, mas acabou envolvendo tambémnumerosas de suas filiais pelo país. Em reunião no Clube Militar, sob presidência do

Coronel Humberto de Alencar Castelo Branco, também febiano, conjecturou-se a criaçãode outra Associação, mas a hipótese foi logo descartada, optando-se, ao invés disso, pela

criação de uma chapa única nas próximas eleições. A eleição se daria em outubro de 1947,

tudo estava já acertado para que esta ocorresse ‘tranqüilamente’ mas, como coloca Xavier,

que também parece ser avesso à ‘politização’ da AECB, no dia

“... Jacob Gorender , do Par tido Comunista, e ex-integrante da FEB, noRegimento Sampaio, junto com o própr io deputado Henr ique Oeste [tambémdo PCB], começou a trabalhar para outra chapa, tumultuando os trabalhos.A reunião foi agitada, com momentos desagradáveis, quando par te doplenár io, insuflada pelos ar ticuladores da outra chapa, vaiou oficiais quecomandaram a FEB (...) O ambiente ficou tenso, porque o grupo da ‘Chapa

174

Única’ foi apanhado inteiramente de surpresa, mas, apesar de tudo, ganhoupor estr ita margem de votos.”232

A presença de comunistas nas cabeças das AECBs do Rio e de São Paulo nãodemorou a incentivar o protesto das outras sedes regionais, inclusive das autoridades de

outros estados temerosas por um provável ‘contágio’ dos ex-combatentes ali residentes. Em

junho 1946, o Comitê Estadual do PCB em Minas Gerais recebeu carta de Luis Carlos

Prestes – do Rio – incentivando a fundação de filiais da AECB, pois via nesses

agrupamentos um grande potencial na mobilização de “amplos setores da população”.Desejava também a criação de redes entre os ex-combatentes – nas Associações – para

apoiar os carentes na busca por empregos e por uma melhor readaptação, e falava ainda na

organização de festas e na necessidade de propagandear as Associações233. Tal carta foi

endereçada a Jacinto Augusto de Carvalho do PCB/MG, que escreveu outra carta, em

termos semelhantes, para o Comitê Municipal do mesmo Partido, em Belo Horizonte234.

Cientes do envolvimento de comunistas com as iniciativas da AECB/DF, bem como na

própria sede – de forma mais tímida, é verdade –, alguns líderes da Associação de Belo

Horizonte demonstraram publicamente repúdio à intromissão político-partidária na sede

nacional, bem como a candidatura de um ex-combatente pelo PCB no Rio235. Por sua vez,

na AECB/PR, o “Diário Carioca” noticiava protesto contra a candidatura de Pedro Paulo

Sampaio de Lacerda pelo PCB, criticando o “caráter político” pelo qual a sede nacional

estava se encaminhando236. Essas movimentações eram divulgadas em vários jornais pelo

país, de forma que as iniciativas dos comunistas em meio as Associações de Ex-

combatentes, no Rio e São Paulo, acabavam por levar o estigma a todos, o que,

232 Ibidem. p.249.

175

instantaneamente, bloqueava e dificultava o já parco acesso dos ex-combatentes àsautoridades e empresários visando a conquista de direitos e benefícios.

Em julho de 1946, o “Estado de Minas” noticiava a negativa do chefe de polícia do

Rio ao requerimento da AECB para a arrecadação de fundos, aquele alegava que o

presidente da tal agremiação era “anti-social” e “anti-brasileiro”, e que não poderia separar

a pessoa jurídica da Associação da pessoa física de Pedro Paulo Sampaio de Lacerda237.

Obviamente que no Rio, também, tal notícia ganhou as páginas dos jornais, ao que a polícia

dos outros estados estavam atentas e coletavam esse material de modo a ter ciência sobre a

posição dos comunistas nas Associações de Ex-combatente, conforme prova outro recorte

de jornal dos arquivos do DOPS/MG: “O chefe de polícia diz que o Presidente [da

AEBC/DF] não pode merecer a confiança das autoridades”238. Enfim, já estávamos em

tempos de Guerra Fria, uma nova onda anticomunista surgia, e o já velho discurso da ‘caçaas bruxas’, mais uma vez, colocava as pretensões do governo, entre outros vários setores da

sociedade e grupos políticos, na dianteira.

A jornada anticomunista dentro das AECBs terminaria já em 1949 quando se

conseguiu afastar das direções e conselhos todos os indivíduos que tivessem alguma

ligação com o Partido Comunista. Dessa forma, pelo menos no âmbito dos dirigentes e do

posicionamento institucional, já no início dos anos cinqüenta, pode-se ver a reviravolta

233 Carta de Luis Carlos Prestes a Jacinto Augusto de Carvalho – Arquivo Público Mineiro – AcervoDOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.234 Carta de Jacinto Augusto de Carvalho ao Comitê Municipal do PCB/BH – Arquivo Público Mineiro(APM) – Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.235 “O Radical” , Rio de Janeiro, 19/11/1946, p.7. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.236 “Diário Carioca” , Rio de Janeiro, 19/11/1946. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.237 “Estado de Minas” , Belo Horizonte, 05/07/1946. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.238 “O Radical” , Rio de Janeiro, 09/07/1946, p.7. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.

176

ideológica das Associações, bem como a valorização do discurso anticomunista e da nãopolitização da AECB, em defesa da “democracia e da liberdade”:

“(...) Mas, o motivo de eu escrever essa pequena nota, e o de chamar aatenção aqui para os companheiros daqui e de todo o Brasil que não temos apraga que dificulta o bom funcionamento em grande par te das Seções dopaís: o comunismo! Não caros companheiros, nunca tivemos anter iormente,não teremos agora e nem nunca pretendemos ter idéias totalitár ias aqui!

Para felicidade dos ex-combatentes, as Seções de fora que lutavam comesse problema estão agora com direções seguras e temos a cer teza que essapraga foi exterminada para sempre.

Vamos ter sômente a ‘nossa camaradagem febiana’ que é a mais puraDEMOCRACIA! Essa praga de comunistas já nos prejudicou muito asobrevivência da Associação. Somo hoje 33 seções pelo Brasil afora[atualmente são 41] e temos um Conselho Nacional, também felizmente livre‘dêles’. Vamos cada vez nos unir mais e mostrar aos nossos patr ícios e aomundo que os ex-expedicionár ios brasileiros, os veteranos da II GrandeGuer ra, os ‘pracinhas’ que mostraram que ‘somos duro de roer ’, sãoDEMOCRATAS e renega tôda e qualquer forma de totalitar ismo! HGV”239

(todos os grifos são do autor)

Dessa forma, convertiam a luta da FEB contra o totalitarismo nazista, durante a guerra, na

luta contra “qualquer forma de totalitarismo”, na paz, procurando ‘exterminar’ esse novo

inimigo da segurança nacional: o comunismo infiltrado – e que, se se pensar de forma

pragmática – atrapalhava mesmo a existência da Associação. Desse modo, juntamente do

mito afirmando que a FEB trouxera a democracia da Itália, era fundada uma espécie de

tradição em que os febianos seriam os defensores das ‘liberdades democráticas’ – seja lá o

que isso significava naquele contexto. Era, enfim, o alinhamento definitivo com a política

governista da época e, mais tarde, com as próprias Forças Armadas, o que definiria em

larga escala os caminhos da memória institucional/oficial da FEB. Tal como se dá com a

memória dos ANZAC na Austrália, não, obviamente, com o mesmo peso, a guerra da FEB

foi usada como um dos elementos que compuseram o “baluarte” de toda política

conservadora de um período específico da segunda metade do século XX, que culminou

239 “A Cobra Fumando” , Belo Horizonte, março/1951, p.6. Hemeroteca Municipal de Belo Horizonte.

177

com o fatídico Golpe de 1964240. Pelo lado da grande parte dos desmobilizados, na verdade,

não eram as questões de cunho ideológico que os levava a se distanciar das associações ou

optar por não se tornarem sócios – apesar de se saber que cerca de 40% dos integrantes da

AECB/SP se associaram já entre os anos de 1946 e 1951241 –, mas sim questões mais

‘pragmáticas’ como a busca por assistência, distância das sedes ou mesmo a falta de

informação.

A despeito de intrigas políticas do mundo palaciano, a esmagadora maioria dos ex-

combatentes passava por situações dramáticas como as que já foram colocadas

anteriormente, de forma que, num primeiro momento, a corrida às Associações deveu-se ànecessidade de atendimento dos problemas básicos ou, à medida que as “leis da praia”foram ampliando o conceito de ex-combatente, de interessados em assistência jurídica para

a aquisição dos direitos até então reconhecidos242. A partir de entrevista concedida pelo ex-

combatente João Viana de Oliveira, Patrícia Ribeiro mostra como a candidatura de Pedro

240 Cf.: THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e asmemórias”, p.54-55.241 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.251.242 Sobre a corrida às Associações, entre os anos de 1946 e 1951, Francisco Ferraz coloca que: “Não épossível, pelos dados de que dispomos, saber se o entusiasmo inicial de formar uma agremiação social deveteranos deveu-se, neste momento, a uma vontade de manter a chama da fraternidade dos fox-holes ou à dese recorrer a um órgão de assistência social e encaminhamento de empregos a veteranos necessitados.”, p.251.Por outro lado, a partir de fontes qualitativas, creio ser possível afirmar que a preocupação primeira desses ex-combatentes, nessa fase, era estritamente assistencial – o que não significa que a “chama da fraternidade dosfox-holes” tenha apagado, esta permaneceria reservada na memória, para surgir numa outra oportunidade, jáquando do ‘terceiro tempo da memória da FEB’. Por meio de entrevistas, foi possível verificar que para váriosex-combatentes era difícil conciliar o trabalho com a participação nas atividades das Associações, tanto que apresença mais marcante, nessa fase, era de oficiais e praças da reserva ou ativa. bem como de ex-combatentesque, por algum meio, já haviam conquistado uma pensão. Por fim, de fato, é difícil averiguar, por meio demétodos quantitativos, o porquê da filiação em uma Associação desse tipo, não seria incomum constatar querecém filiados, não tendo as suas demandas atendidas, se dispersassem. Exemplo disso, pode ser visto noonipresente problema com a inadimplência que todas as sedes da AECB tinham, no que toca às contribuiçõesmensais dos filiados – o próprio Ferraz coloca que em 1948 a Associação do Paraná, que contava com 2688sócios, contava apenas 478 deles pagando periodicamente as mensalidades (p.259). Enfim, tais colocaçõesapontam para uma categórica diferença entre os métodos de cunho quantitativo, que visualizam o “o que”, eos qualitativos, que trazem à tona o “porquê”.

178

Paulo Sampaio de Lacerda, bem como a ‘politização’ das Associações, poderia ter ajudado

na dispersão dos associados – e os motivos não são, diretamente, ideológicos:

“(...) todo mundo ficou acreditando que a associação era um antro decomunista. Quando mandava uma car ta para conseguir um emprego para oex-combatente [prática comum adotada por Associações de todo o país], ele nãoera bem recebido. Não ganhava emprego. Não era bem quisto (...)”243

Ou seja, a partir disso, a primeira atitude a se tomar não seria outra senão o afastamento da

AECB, que seria revertida anos depois, apenas quando as ‘coisas já tivessem se acertado’ e

a saudade dos laços que uniam as ‘comunidades das trincheiras’ tivesse espaço e condições

de reassumir a primazia das suas lembranças – para muitos, por períodos tempo diferentes,

a FEB teria que ser ‘esquecida’. Caso contrário corriam o risco de se converterem em

estigmas ambulantes, de modo que a imagem que faziam de si mesmos não encontraria

nenhuma ressonância entre a sociedade, o que consistia tanto num impasse para a saúde

mental, quanto para a sobrevivência material244.

Apesar destes percalços entre as Associações, os comunistas e os outros ex-

combatentes, no final das contas, a maior parte da assistência, nesse primeiro momento,

pelo menos até as relações entre os ex-combatentes e as Forças Armadas mudarem de cor,

acabaria mesmo sendo fornecida pelas AECBs. Dessa forma, para grande parte dos ex-

combatentes, hoje, o que se mostra de forma mais consolidada é o período do ‘corre-corre’assistencial:

“... aqui em Belo Hor izonte eu presidi a Associação dos Ex-Combatentes...você precisava ver rapaz... o mundo de ex-combatente desempregado... aquantidade de viúvas na misér ia... r apaz, eu quase fiquei louco... tir avadinheiro do bolso, fazia listas e mais listas com os meus colegas, parasocor rer aqui... socor rer um enter ro, socor rer uma viúva doente, ar rumar

243 RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.186.244 Cf.: em THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, a dramática situação em que se viu o ex-combatenteFred Farrall, que teve todas as suas lembranças pessoais negadas pelo mito público dos ANZAC, e suasmisérias ignoradas pelo governo que alimentava tal versão dos fatos.

179

mater ial didático para os filhos da viúva... colega desempregado, ar rumarpassagem etc...”245

É claro que isso não significa que os embates ideológicos tenham sumido das lembranças,

mas sim que, seja pelo fato da ‘poeira ter baixado’, ou em virtude das polêmicas da

Ditadura Militar alguns perceberem esse tema como um tabu, atualmente são menos

consideradas. Para a maioria dos entrevistados, o descaso do governo e das próprias Forças

Armadas, bem como os momentos pelos quais passaram, acabou por sobrepujar os embates

ideológicos do passado – e isso mesmo entre as lideranças das Associações. Vale colocar,

entretanto, que isso diz respeito aos depoentes que adotaram como identidade central de

suas personalidades a personagem de ex-combatentes. Alguns dos depoentes entrevistados

por Francisco Ferraz, como Jacob Gorender e o General Plínio Pitaluga, por exemplo,

mantêm na linha de frente de suas recordações os embates políticos, as vitórias e derrotas

dos comunistas e por aí vai246. Ou seja, são memórias de homens públicos, cuja trajetóriana política foi muito além do embate pela direção das Associações. Eles possuem uma

percepção da realidade que privilegia pontos de vista menos localizados e/ou individuais,

em prol de níveis mais amplos, como a concorrência das nações e os embates de idéias

político-filosóficas. Enfim, o que está em questão, é a diferença dos caminhos e escolhas

feitas pela memória entre os vários ‘estratos’ existentes na realidade.

Em suma, é a partir das categorias mais palpáveis, de acordo com os julgamentos de

cada sujeito, que a memória se estrutura:

“Olha, isso aí é uma tragédia [a reincorporação dos ex-combatentes]... nós, queestávamos com a cabeça no lugar , nos congregamos e fundamos a... eu fizpar te do corpo redator da Associação dos Ex-combatentes de Minas Gerais...não tínhamos sede não. Reuníamos debaixo de árvores (...) Não tinha sede...tinha um livro de ata... nos reuníamos debaixo de árvore aqui na [Avenida]Afonso Pena... ver ificava quem estava precisando de ajuda, cada um dava

245 Entrevista com W. Soler, Belo Horizonte, fevereiro/2002.246 Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”.

180

um pouco de dinheiro, comprava alimentos para e ele e para a família,remédios, internava. O Exército? Não tomou par te. Depois é que começou asurgir , pela necessidade que... surgiram as entidades de saúde (...) asassociações tomavam conta do pessoal da cidade, os ex-combatentes queestavam aqui... a gente recolheu esses veteranos de guer ra, que de desgostocomeçou a beber , beber , beber ... r ecolhia na sar jeta...”247

Outro ex-combatente, que também se envolveu desde o início com a formação da

AECB/BH, e apoiou, segundo fontes de outra natureza averiguadas no arquivo do

DOPS/MG248, a luta contra os comunistas nas seções do Rio e de São Paulo, hoje parece ter

diminuído a importância de tais fatos valorizando, por outro lado, as péssimas situações a

que foram submetidos após a volta para casa:

“Belo Hor izonte foi uma das vítimas pr incipais, porque a tuberculose só eratratada, praticamente, em Belo Hor izonte, não é? Então... era um acúmulode companheiros que vieram de outros estados para tratar de tuberculoseaqui; sem dinheiro e sem recur sos, e que nós tivemos que tirar dois de um,dois de outro, dois de outro... constituirmos um fundo para poder ajudaressa gente e. então foi um sofr imento muito grande: muita gente se suicidou,muita gente morreu de neurose, muita gente se matou... nós tivemoscompanheiros aí que morreu em br iga, de faca na mão, sangrando, um caíamor to para lá, outro caia mor to para cá...”249

Durante a entrevista, falando sobre o surgimento e as funções cobertas pelas AECBs, as

contendas com os comunistas nem de longe foram abordadas. Por outro lado, um elemento

não deixaria de se mostrar claramente: a crescente aproximação entre os ex-combatentes e

o Exército, fruto tanto de uma política repressiva por parte desses às divergências internas

das Associações, quanto, apesar de tudo, de terem sido um dos únicos setores a lhes

fornecer algum tipo de apoio e não relegar suas experiências ao completo esquecimento.

vApesar do fato das muitas funções que a AECB cumpriu variar em intensidade e

prioridade no decorrer da sua história, pode-se afirmar que a imensa maioria dos ex-

247 Entrevista com O. Lopes, Belo Horizonte, agosto/2002.248 “O Radical” , Rio de Janeiro, 19/11/1946, p.7. APM, Acervo DOPS/MG – Pasta “Ex-combatentes”.249 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

181

combatentes tornaram-se sócios por um número determinado de razões. Durante todo esse

tempo as Associações nunca deixaram de ser um local de atividades heterogêneas:

representavam os ex-combatentes em questões políticas, faziam campanhas para melhorar a

vida dos seus associados – chegando até a proferir cursos técnicos ou de educação básica –,organizavam eventos, consistiam num local para encontros e conversas e entretenimento

em geral, conseguiam apoio médico e atuavam em atividades assistencialistas em geral.

As Associações serviam também como um espaço para a fuga da incompreensão civil

sobre a experiência da guerra e suas conseqüências. Lá, os ex-combatentes poderiam tratar

de seus assuntos sem autocensura, usar a ‘linguagem do front’, lembrar os colegas mortos,

as situações cômicas, as tochas etc. – enquanto isso, memórias e identidades estavam sendo

reformuladas a todo tempo. Mas como se deu esse processo no contexto da ‘guinada

ideológica’ da AECB? Quais foram as principais mudanças? Como já se viu, inicialmente

as Associações contavam com forte caráter civil, mesmo sendo dirigida por oficiais

militares subalternos – freqüentemente dos CPORs – ou soldados. Isso aconteceu porque,

num primeiro momento, tudo o que o Exército queria era distância dos ex-combatentes,

temendo algum tipo de envolvimento político destes com a derrocada do Estado Novo. Por

outro lado os dirigentes ligados ao PCB visavam transformar as demandas dos febianos

numa espécie de movimento social, de forma que seria por meio de passeatas, firmes

reivindicações e com largo número de pessoas que isso aconteceria. Objetivava-se, ainda, o

envolvimento das Associações com questões como a reforma agrária e as manifestações

pelo petróleo – temas que ficavam expressos nos periódicos da AECB/DF250. Mas foi um

evento ocorrido em 1947 que serve para evidenciar o caráter civil com que a AECB

250 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.267.

182

contava até então: foi o chamado “Desfile do Silêncio de 23 de junho”, no Rio de Janeiro.

Juntamente com uma série de organizações civis – estudantes, imprensa, políticos e

partidos etc. – cerca de 3.500 ex-combatentes, acrescidos, depois, de populares, saíram àsruas a fim de entregar um memorial251 à Câmara dos vereadores e dos deputados com uma

série de reclamações e demandas do grupo em questão:

“Às 13 horas do dia 23, já a sede da Associação se encontrava repleta depracinhas. Logo depois, o desfile começou, silenciosamente, dentro da maisper feita ordem, sem necessidade de vozes de comando. Abr iram amanifestação os emblemas, em grande formato, da “Cobra Fumando” e daAssociação de Ex-Combatentes, três grandes painéis apresentavam quadrospintados de maneira impressionante: uma cena de combate sobre a neve, ocemitér io de Pistóia, desolado e solene e o regresso tr iunfal da tropa. Emjipes e automóveis desfilaram os mutilados. A sér ie de faixas era iniciada porum dístico com estes dizeres: – ‘Sêde Bem vindos, Ir mãos quer idos – Isso foiquando regressamos...’. Logo depois, um car taz perguntava: – ‘E agora?’. Aresposta vinha mais adiante: – ‘Pracinhas Tuberculosos’, – ‘Pracinhasdormindo ao relento’, – ‘Pracinhas se suicidam’.”252

Suspendeu-se a sessão da Câmara dos vereadores, houve uma série de discursos de ex-

combatentes e da diretoria da AECB, políticos também aproveitaram a ocasião e o

memorial foi entregue. Nas semanas seguintes, algumas medidas foram tomadas, mas

alguns meses depois tudo já havia sido esquecido e a situação continuou da mesma

maneira. Em outras ocasiões, a AECB participou de comícios públicos que chegaram até a

acabar em quebra-quebra. Em fevereiro de 1948 uma nova chapa assumiu a direção da

Associação carioca; ela era composta por não comunistas e as estratégias adotadas até entãonão seriam mais consideradas. Criticou-se duramente o formato dado ao “Desfile do

Silêncio”, argumentado que se movimentou muita coisa, expuseram-se os ex-combatentes

mutilados ao ridículo e de maneira demagógica, para que os resultados obtidos não dessem

em nada. Nesse movimento, juntamente com a posterior militarização da AECB, “... os ex-

251 Os ‘memoriais’ eram documentos preparados pelas AECBs e destinado aos políticos e autoridades emgeral – neles estavam contidas as reclamações, demandas e requisições dos ex-combatentes.

183

combatentes das associações transitaram da mobilização contestadora das autoridades e

instituições para um padrão cerimonial conservador e eminentemente laudatório àsinstituições militares.”253.

A primeira atitude tomada pela nova chapa, como já se viu, foi procurar afastar os

comunistas dos cargos decisórios bem como dos quadros em geral – na verdade, a

declaração da temporada de ‘caça as bruxas’ envolvia círculos bem mais amplos. Com a

tomada da presidência do Clube Militar pelos ‘internacionalistas’ da ESG, os integrantes da

corrente ‘nacionalista’ começaram a ser perseguidos, entre eles os comunistas – civis ou

militares – datando dessa época, também, a perseguição aos ex-combatentes que

permaneceram nas linhas do Exército, mas que eram considerados, todos, nacionalistas e

afeitos à participação das massas na política – segundo prescrevia o modelo estadonovista.

Tais eventos apontam mais uma vez em que medida a FEB era vista como um apêndice do

Estado Novo o que não impediria, mais tarde, de que fosse vista, pelas próprias Forças

Armadas, como a paladina da ‘democracia’. Começava aí a formatação da memória oficial

da FEB que contou, de fato, com o apoio ou endosso de grande parte dos ex-combatentes –para muitos, era a única instituição que os respaldaria.

Nas primeiras fases dessa reviravolta, é possível ver os comportamentos e

manifestações as mais híbridas possíveis por parte dos indivíduos. Caso interessante érelatado por Leonércio Soares sobre um ex-combatente que, mesmo morando num barracãoabandonado e tendo que vender iscas de pesca para sobreviver, ainda conseguia arrumar

252 LEAL, José. “O outro lado da glória; III – A primeira decepção dos heróis”. “O Globo” Rio de Janeiro: 12setembro 1957, p.13. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.269.253 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.271.

184

tempo e ânimo para participar dos desfiles de 7 de setembro – quando, então, as AECBs

passaram a participar desses eventos oficiais:

“...Está per to, o grande dia! O mais bonito de todos. O nosso presidente daAssociação está pedindo prá todo mundo comparecer ; não é prá ninguémfaltar (...) Eu não perco um desfile de 7 de setembro! Hei Brasil, quer ido! Agente fica impor tante, fica grande. É festejado. O povo bate palmas, gr ita eaplaude quando os pracinhas passam. Beleza de dia! Tantas bandeir inhasbalançando na mão de todos. É linda a festa do grande dia!”254

Caso semelhante foi averiguado por Alistair Thomson entre alguns de seus depoentes ex-

combatentes dos ANZAC – ele mostra que não era incomum veteranos que, mesmo

discordando do mito oficial, e encontrando sérios problemas para a reincorporação,

participavam das paradas anuais do Anzac Day – e isso por mais de sessenta anos. Num

estágio mais avançado, fala de ex-combatentes que contavam casos, anedotas e

experiências que vinham dos mitos e das histórias oficiais, como se fossem passagens

experimentadas por eles próprios255 – é o chamado “vivido por tabela”, do qual fala Michel

Pollak256, elemento comum quando da convergência entre as memórias individual e

coletiva. Apesar disso, o processo de militarização da memória institucional tornara-se

inexorável, ao passo que as Associações começaram a copiar a própria estrutura e lógica

das Forças Armadas, elegendo para as diretorias e conselhos os ex-combatentes que fossem

das mais altas hierarquias257. É claro que nisso continha, também, uma dimensão prática;

quem melhor do que o alto oficialato para negociar com ele mesmo? Nesse contexto, o

discurso da AECB tornava-se mais contido, de modo que “Os Pronunciamentos públicos

dos dirigentes evitavam as considerações mais críticas, limitando-se a criticar

254 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.25.255 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.7-8.256 Cf.: POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”.257 FERRAZ, Francisco César Alves. “Os veteranos da FEB e a sociedade brasileira” In: CASTRO, Celso;IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (orgs.) “Nova História Militar Brasileira” Rio de Janeiro: EditoraFGV, 2004. p.384-385.

185

eventualmente o não-cumprimento da assistência legal aos ex-combatentes.”258. Essa seria a

tônicas das décadas posteriores.

Foi, entretanto, no correr dos anos cinqüenta e sessenta que tal tendência

‘militarizante’ se consolidaria – e um fato em especial pode ser interpretado como a

coroação de tais princípios, pelo menos no contexto da memória institucional: a construçãodo Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, em 1960, no Aterro do Flamengo,

Rio de Janeiro. Convertido em lei por decreto presidencial em 1952, o MMSGM foi

idealizado justamente no período em que se dava a guinada ideológica dentro das Forças

Armadas, que seria, a partir de então, encabeçada pelos ‘esguianos’. Segundo as pesquisas

de Ana Maria Mauad259, a construção do monumento passaria por três fases: 1952/55, do

decreto presidencial até o lançamento do edital público; 55/56, o processo de escolha do

projeto a ser executado; e 56/60, que corresponde no período da liberação dos créditos até a

conclusão da obra.

A comissão que dirigiu todo o processo era formada exclusivamente por militares e,

“De fato, o monumento, como foi proposto pela equipe ganhadora do concurso,

sintonizava-se plenamente com o projeto das Forças Armadas para a construção de um

lugar de memória da guerra, caracterizado por atributos de grandiosidade e

distanciamento.”260. A escolha do projeto vencedor ficou restrita aos círculos militares e aos

meios acadêmico e arquitetônico, paradoxalmente as Associações, ex-combatentes ou a

sociedade em nenhum momento foram consultados. O conceito adotado para a ereção da

obra tem estrita consonância com o modernismo proferido pelo Estado na época, valorizou-

258 Ibidem. 385p.259 Cf.: MAUAD, Ana Maria & NUNES, Daniela Ferreira. “Discurso sobre a morte consumada: monumentoaos pracinhas”.260 Ibidem. p.80.

186

se intensamente os caracteres militares e a glorificação da morte e da bravura como um ato

cívico – nesse meio, a origem civil da massa dos expedicionários já tinha sido ‘esquecido’.Era objetivo, ainda, do MMSGM, servir de túmulo aos restos mortais dos expedicionários

então enterrados no cemitério de Pistóia, na Itália – de forma que um dos mortos ficaria

com um túmulo em destaque na plataforma do monumento. Qual foi o expedicionárioselecionado para tal? Um dos não identificados. Era o túmulo do soldado desconhecido, de

forma que a história e o sofrimento privados sucumbissem à história nacional, pois “Osoldado desconhecido é o exemplo máximo [dessa idéia]: sem um nome, pode ser todos;

sem uma família, pertence à Pátria; sem um tempo, escreve a ‘História da Nação’.”261. Tal

monumento, ainda segundo a autora, guarda semelhanças com os monumentos europeus da

década de 1930 que eram, antes de tudo, a representação cívica da morte e do sacrifício –num contexto de ampla valorização de um discurso revanchista – pelo menos no lado

alemão.

Dentro do Museu, situado abaixo da plataforma onde descansa o soldado

desconhecido, encontra-se um painel que conta a história da participação brasileira na

guerra de forma pictórica. Da esquerda para a direita, a história é contada cronologicamente

por meio de etapas bem definidas – pelos projetistas, é claro:

“- um grupo de figuras, que erguem suas vozes contra o afundamento dosnavios brasileiros;

- cinco grupos de combatentes, simbolizando as cinco ações pr incipaisem Camaiore, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, Fornovo, queconcentraram o fogo das suas armas sobre o monstro destruidor – nazi-fascismo – ameaçador , apocalíptico;

- grupo e figura em homenagem às enfermeiras da FEB (...);- o regresso tr iunfal apoteótico e tr iunfal, quando os expedicionár ios são

recebidos pela família e pela mãe Pátr ia (...);

261 Ibidem. p.92.

187

- o retorno ao trabalho dos ex-combatentes que, em suas labutas diár ias,constróem o futuro da Pátr ia, velados por uma figura que simboliza aPaz, a Far tura e o Progresso; (...)”262

Apesar dos ex-combatentes afirmarem gostar do Monumento, percebe-se que poucos

compreendem os seus significados e, tal como ele se apresenta no espaço da cidade e para

os civis cariocas, se mostra também para os ex-combatentes: distante, impalpável,

esmagador. A última etapa do painel, aqui referida, diz respeito à reincorporação dos ex-

combatentes e, mesmo numa análise superficial, é incontestável a afirmação de que para

muitos tal trecho do painel deveria beirar a puro sarcasmo, de forma que uma minoria de

ex-combatentes procurou responder à ‘brincadeira de mau gosto’ nos mesmos termos: “Apátria engrandecida está levantado um monumento para guardar os ossos dos que estão em

Pistóia. Milhões gastos em flôres. Milhões em estátuas. Dizem que na placa de bronze

escreverão apenas: ‘– Êsses ao menos não chateiam mais’.”263. E de forma mais abrangente,

coloca Leonércio:

“Tudo que se refere aos veteranos da 2o Guerra Mundial, no Brasil,assume velada e maliciosamente uma significação depreciativa; sofredeturpações. A começar por essa denominação idiota, inventada paradesigná-los: ‘Pracinha’. Haverá tr atamento mais estúpido e cretino queesse?!

Um diminutivo infame, como se os veteranos de guer ra fossem unscoitadinhos:– É uma expressão car inhosa própr ia dos sentimentos do povo brasileiro!

– procurou argumentar uma ingênua e bondosa senhora do Tr ibunal deContas da União, em Brasília.

Manifestação car inhosa para os trouxas. É um diminutivo e, como tododiminutivo, estabelece uma situação de dependência e de infer ior idade dodesignado. É uma designação torpe e canalha que, alguém, mal intencionado,inventou e os simplór ios, sem se darem conta, aceitaram. A par tir daí odeboche vem prevalecendo até o ponto de considerá-los loucos de guer ra.

O própr io Monumento aos Mortos da 2o Guerra Mundial (...) assumeuma imagem depreciativa. Longe de ser o monumento que representar ia agrandeza e o arrojo do ato dos que tombaram, em campo de batalha, emnome da Pátr ia!”264

262 Guia de visita do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, p.9.263 NASSER, David. “Os vencidos da grande vitória”, p.346.264 SOARES, Leonércio. “Verdades e Vergonhas...”, p.347.

188

As cerimonias realizadas, ainda hoje, no MMSGM detêm igualmente forte caráter

militaresco: autoridades e alto oficialato das Forças Armadas em palanque acima do nível

dos ex-combatentes, desfiles marciais, revistas de tropas, entrega de medalhas e

condecorações, discursos patrióticos e tratando a guerra em termos grandiloqüentes aonde o

único sujeito é o “Soldado Brasileiro” e por aí vai. A divulgação dos eventos só permanece

no âmbito militar e familiar dos ex-combatentes, como se tudo aquilo não tivesse a ver com

a sociedade civil brasileira. O decreto presidencial no 3.645 de 15/10/1959, encerraria

qualquer possibilidade de se reverter os sentidos até então atribuídos ao Monumento – pois

ele o transferia para o patrimônio das Forças Armadas, ficando a sua administração e

cuidados sob sua responsabilidade265.

Outro aspecto que o painel no museu do MMSGM evidencia, são “as cinco ações

principais em Camaiore, Monte Castelo, Castelnuovo, Montese, Fornovo” – atitude, na

verdade, que já vinha sendo imposta pelo staff da FEB, pelo próprio discurso estadonovista

e pela imprensa da época. Como já se viu, a guerra no TO italiano se caracterizou por ações

de pequena e média escala, de forma que a maioria dos ex-combatentes participou da

guerra por meio de patrulhas, pequenas escaramuças e na manutenção do front, e nãolutando em ‘batalhas grandiosas’. Era uma tentativa da memória oficial em ditar a

experiência dos sujeitos, atrelando-a ao discurso patriótico e de integração e importância de

todos os estados da Nação – pois cada uma dessas vitórias era atribuída ao regimento de um

estado: Minas, Rio e São Paulo.

Muitos ex-combatentes, hoje, percebem a história da FEB nesses termos, o que nãosignifica que esqueceram de suas experiências pessoais, mas, questionados sobre a guerra,

265 MAUAD & NUNES. “Discurso sobre a morte consumada...”, p.81.

189

se põem a falar sobre generais, divisões e as grandes batalhas da FEB. De qualquer forma,

basta um pouco mais de intimidade, para que eles tratem da guerra que viveram, das

neuroses, das tochas, do medo, das infindáveis patrulhas, do vino e das signorinas etc. Ou

seja, se no âmbito público a memória oficial atende às suas demandas, porque, quer

queiram ou não, é uma forma de aceitação e reconhecimento que as Forças Armadas têmpara com eles, mas no âmbito da memória individual, sabem que suas experiências pessoais

extravasaram em muito o que os militares ‘lembram’. Questionado sobre o

‘regimentalismo’ que existe nas histórias sobre a FEB, M. Couto coloca:

“... é um caso que eu venho falando sempre. Márcio, eu acho uma boçalidadequem diz e quem escreveu tudo isso... o 11 RI ganhou Montese, 1o ganhouMonte Castello e o 6o Castelnuovo... a maior ignorância do mundo quem falaisso (...) Eu acho ignorância pelo seguinte: porque, quantos mineirosmorreram aqui? Quantos paulistas morreram aqui? Era o Brasil que estavalutando... no máximo, quando havia separação... quer dizer , dentro doestado de Minas, você mora numa cidade lá do inter ior e não sei o que...‘Não, quem ganhou foi fulano de tal... e cidade de tal ganhou... ‘... cidadenão, Minas Gerais ganhou... nós todos que estamos aqui (...). O elemento do6 o RI, conta garganta porque entrou no front pr imeiro...o 1o RI porqueganhou em Monte Castello... agora, onde é que eu estava? Quando o 1o

ganhou o Monte Castello? Eu estava aonde? Estava aqui ó, junto ao ladoaqui...bebendo água com o 6 o RI aqui, com o 1 o RI aqui ó...quando nósganhamos Montese, e o 11 entrou, onde é que estava o 6 o ? Estava aqui,conosco...o Sampaio estava aqui, conosco...agora, pelo menos eu tenho unscolegas, que falam que vem aqui em Belo Hor izonte por minhacausa...moram no Rio...vem desfilar aqui, e dizem que é por minhacausa...(...). Amizade...um é baiano e outro é car ioca...mas serviam no meupelotão...para que tem que haver separação?”266

Por aí, percebe-se como alguns pontos ganham destaque, enquanto outros são ‘esquecidos’ou reprimidos. Até hoje, a polêmica reincorporação dos ex-combatentes, por exemplo, ésolenemente ignorada nos eventos oficiais realizados nas unidades do Exército. Dessa

forma, em vista da variedade de rumos que os ex-combatentes tomaram após a volta,

alguns, como se viu, apenas ganharam em participar da FEB, é possível averiguar como

266 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

190

que algumas memória individuais ganham significado público e outras não. Deve-se atentar

para o fato de que os discursos oficiais não são, simplesmente, uma espécie de conspiraçãode cima para baixo – eles são difundidos pelo poder público, mas as pessoas não só podem

vir a acreditar em tais versões, como faz sentido junto às suas experiências, indo ao

encontro, também, de seus valores e opiniões políticas e pessoais, sem contar o fato de que

essa convergência possibilita um relativo ‘conforto’ em suas vidas, muitas vezes depois de

anos de sofrimento e amargura267.

O próprio caso da justificação da guerra, do qual já se falou anteriormente, é um

exemplo disso: os discursos que falavam da mobilização de imensas massas humanas

favoráveis à entrada do país na guerra, ganhou eco entre os ex-combatentes, haja vista a

falta de razões para explicar a maneira violenta e brusca como foram arrancados de suas

realidades quando da convocação, e tiveram as suas expectativas da juventude arrasadas

pela guerra.

A tendência militarizante da memória institucional da FEB continuou e, de maneira

geral, é essa a percepção que se faz dos ex-combatentes. Por outro lado, podemos afirmar

que mesmo a memória oficial não é única e homogênea, pois não seria errôneo afirmar que

existem duas versões dessa memória: a das Forças Armadas e a das Associações. A

primeira, de fato, é mais rígida, laudatória e impessoal; ao passo que a segunda, apesar de

em muitos pontos concordar com a primeira, bem como ser amistosa com as homenagens

por ela prestada, não deixa de, sempre que possível, longe das comemorações oficiais,

lembrar dos problemas da reincorporação, como se pode notar nas entrevistas com os

267 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.5

191

dirigentes da AECB – bem como do desprezo com que o Exército os tratou logo após a

volta para casa, aspecto abordado na maioria dos depoimentos. A título de exemplo:

“Hoje o exército é muito diferente do que foi há tr inta anos atrás... melhoroumuito (...) havia muito ciúmes... os que ficaram aqui desmoralizavam os quetinham ido, mesmo entre os militares entre si... havia aquela ciumeira,sempre desvalor izando: ‘Ah, vocês foram passear lá na Itália!’ Tinha muitodisso...”268

Em outro depoimento:

“Porque quando a gente estava voltando da guer ra... isso aí é bom vocêsaber ... quando chegamos no Brasil... as nossas insígnias eram de pano... dequem não foi à guer ra era de... as estrelas eram de metal... latão. As nossaseram emblemas de pano... então quando nós voltamos da guer ra, a maior iados militares que ficaram aqui, que não foram à guer ra... muitos porcovardia, que eu sei de uns quatro ou cinco que deram para trás antes de irpara a guer ra... ficaram doente... tomaram compr imido... enchiam três,quatro, cinco compr imidos de aspir ina... eu conheci, sujeito tomava aspir ina,a pressão subia, entendeu? Para não passar nos teste... conheci vár ios. Então,quando nós voltamos da guer ra, eles não gostavam da gente não...nós viemoscom o nome um pouco avantajado, quer dizer ... lógico, nós vencemos aguer ra... eu par ticipei, inclusive, da pr isão de 19.000 e tantos, quando vierammais 1.000 eu não vi, mas até 19.000 pr isioneiros alemães eu par ticipei aajudar a prendê-los, botar eles nos caminhões e no campo de concentração[se referindo ao campo de prisioneiros]”269

De qualquer forma, hoje, são poucos os ex-combatentes que não são simpáticos aos

militares em geral e que procuram, dentro do possível, estarem presentes nos eventos e

datas comemorativas. Caso interessante, entretanto, se vê com o ex-combatente W. Soler,

mesmo sendo um dos que mais elogiou as instituições militares durante a entrevista – “éum cerne a ser conservado”, “é o guardião do civismo e da Pátria” etc. –, evidenciou a

diferença entre a FEB e o Exército Nacional quando da guerra, falou muito de sua guerra

pessoal e, ainda, criou para si uma forma particular de lidar com suas memórias, rejeitando

268 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.269 Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.

192

a grandiloqüência da versão oficial: até hoje Soler não participa de quaisquer eventos das

Associações ou das Forças Armadas em respeito aos sfollati.

vNos anos sessenta uma crise surgiria dentro nas AECBs espalhadas por todo o país,

levando à cisão de grande parte delas. As “leis da praia” colocaram os ex-combatentes que

participaram da campanha da Itália em condição constrangedora dentro de suas próprias

agremiações: eram minoria e, acima de tudo, a grande quantidade de militares em situaçãojurídica semelhante às suas, dificultava ainda mais a conquista dos direitos. Isso porque a

conquista da pensão por esse último grupo, significaria a extensão desse direito para mais

de 100.000 ‘ex-combatentes. Seja materialmente ou simbolicamente, os ex-combatentes

febianos se sentiam, e muitos ainda se sentem, ridicularizados por tais medidas que

ampliavam o números de ex-combatentes – mas naquela época, em que dividiam as sedes

com os não-febianos e viviam ainda os problemas da reincorporação, uma guerra pela

memória e pela identidade foi declarada.

Em 1963 era criado, no Rio de Janeiro, o “Clube dos Veteranos da Campanha da

Itália” que passou, em 1969, a se chamar AVFEB, ou “Associação dos Veteranos da ForçaExpedicionária Brasileira” – a nova sede foi estabelecida na Rua as Marrecas, na Lapa, e

até hoje continua lá. Em numerosas cidades houve a separação. Em Belo Horizonte os

veteranos, como agora se denominavam os ex-combatentes que lutaram na Itália, passaram

por várias sedes e, atualmente, ainda têm problemas para a manutenção do prédio que foi

cedido pela prefeitura municipal. Em Juiz de Fora, Minas Gerais, a nova sede foi

construída, literalmente, pelos próprios veteranos que tinham condições de dar algum

material, procurar por doações, bem como tempo disponível para fazer o serviço de

pedreiros. Em cidades como São Paulo, Curitiba entre outras, as Associações não chegaram

193

a se cindir, mas tal fato se deu com a maioria das sedes. Em 1972 o nome seria mudado

para o definitivo ANVFEB – Associação Nacional dos Veteranos da Força ExpedicionáriaBrasileira. Em todas essas fases, apesar das mudanças de nome, um princípio foi levado àrisca: “praieiros” ou “patos d’água” não são aceitos como sócios. Hoje ainda é muito forte

certo ressentimento contra essa desvalorização da memória que se processou, e em

praticamente todos os depoimentos o assunto foi visto como uma injustiça e descaso:

“... já a Associação dos praianos... construíram a sede lá que é uma coisalouca...” (...) “fizeram lá e tem dormitór io até para os... (...) nós só oschamamos de patos d’água... ficaram só na água vigiando... ficaram nadandona praia (...) ‘Lá não tem nada o que falar , ué? Falar o que?... que ficaramtomando banho na praia, dormindo na cama...e nós lá na Europa.”270

Mas, mesmo assim, não deixa de afirmar que também freqüenta a AECB e que tem amigos

lá. Outros, como A. Neto, dizem que o simples fato da viagem já os diferencia dos ex-

combatentes, em virtude das possibilidades de ataque, da escuridão do navio, dos exercícios

e das crises de vômito etc. Houve até um veterano que, mesclando diferentes elementos e

outras polêmicas históricas, atribui a extensão dos direitos aos “praianos” a autoridades que

não tiveram ligação com esse processo – já adiantando o próximo assunto a ser discutido:

“Agora, quem foi à praia ganha igual a mim... isso é um absurdo... isso é umabsurdo. Depois cr iaram a Associação dos Ex-Combatentes... combateram oque? Nada! Entendeu? Por quê? Oficiais sujos, esses que não foram àguer ra, havia generais e coronéis no meio deles, ar ranjaram a lei para eles...na época foi o João Goular t... João Goular t tinha interesses junto à classemédia baixa, entendeu? Então deu direitos a eles. Mas que é um absurdo é?Que é um absurdo é? Quem foi à guer ra é quem foi à guer ra, pô!”271

O período em que se deu o racha das Associações, como se sabe, foi bastante

atribulado. Em 1964 viria o Golpe e, pelo menos institucionalmente, as Associações

apoiaram tais eventos272. De fato, agora com os militares no poder, os ex-combatentes viam

270 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.271 Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.272 Na AECB/SP, 64 sócios redigiram manifesto apoiando a “Revolução” – entre os autores, estavamEurípedes Simões de Paula – professor da USP – e vários veteranos que escreveram os “Depoimento de

194

a possibilidade de, enfim, terem as suas já históricas reivindicações atendidas. Quando

Castelo Branco assumiu a presidência, então, as Associações foram ao júbilo, pois era um

febiano que tomava o lugar mais alto do poder executivo no país – dessa vez, tinha tudo

para dar certo. Em discurso proferido durante o Dia da Vitória de 1964, Castelo Branco, jápresidente, falando para ex-combatentes em São Paulo, estabelecia uma ponte entre a

guerra da FEB e a Revolução de 1964:

“A vitór ia da FEB na Europa teve uma finalidade não só militar comotambém de ordem pública. Fomos lá com a missão de der rotar o nazismo, oexército alemão que se nos antepunha, levando em nossa ar rancada,juntamente com os aliados, também a vitór ia dos ideais que pontificavam nabandeira dos povos democráticos.(...) a Revolução processada no Brasil, a pouco, nada mais era e realmentenada mais é do que a continuação da luta pelos ideais de campanhaexpedicionár ia na Itália. Na verdade, o Brasil está combatendo a ideologiacomunista como a FEB soube combater a ideologia nazista nos campos debatalha. Na verdade, o povo brasileiro, ao se levantar em armas, procurourestabelecer a auto-determinação e o ambiente de liberdades fundamentaisque vinham sendo massacrados pelos comunistas infiltrados em todas aspar tes do Governo Brasileiro.(...) Não resta a menor dúvida, meus amigos, de que o orador deste jantar ,foi muito feliz ao dizer que o que houve foi a repetição, no inter ior do Brasil,de tudo quanto propugnávamos na campanha da Itália...”273

Por todo o período da Ditadura Militar, o discurso oficial das Associações convergiria com

a ideologia proferida pelo governo. Um periódico ligado à sede nacional da Associação, no

Rio de Janeiro, e de circulação nacional, tratava do cotidiano nos círculos militares

brasileiros, fazia a cobertura dos eventos comemorativos da “Revolução de 64”. E

transcrevia palestras e longos textos sobre a DSN – Doutrina de Segurança Nacional.

Obviamente que tudo isso influenciaria o “enquadramento” da própria memória da FEB, de

oficiais da reserva sobre a FEB”, em 1949, que fazia ode ao autoritário discurso desenvolvimentista típicodaquele período, e também ‘àquela democracia’ de que tanto se falava no contexto da Guerra Fria. Cf.:FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.316.273 CASTELO BRANCO, Humberto de Alencar. “Discursos: 1964” Brasília: Secretaria de Imprensa daPresidência da República, 1964. P.101-102. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.318-319.

195

forma que é muito elucidativo desse movimento um artigo da seção “A FEB, fatos e

números”, sobre os jornais de campanha da FEB, que diz o seguinte:

“O Serviço Especial da FEB editava dois jornais: ‘O Cruzeiro do Sul’ e maistarde o ‘Zé Car ioca’. Eram informativos e até bem razoáveis. Mas logosurgiram os espír itos de porco, jornais clandestinos que cor r iam por toda atropa sem que ‘ninguém’ soubesse onde eram editados. Eram constituídos deuma ou duas páginas mimeografadas e havia um por unidade. A tônica dosar tigos (anônimos, é claro) eram cr íticas à própr ia FEB, a alguns e mesmo àsituação política vigente no Brasil. Os de cima jamais conseguiramidentificar os autores dos ar tigos. Aliás, para evitar maiores atr itos, osjornais eram tolerados ou ignorados pelo comando. Um dos mais famososera o ‘E a cobra fumou’, do 1o bat. Do 6o R.I.. Não escondia a verdade eatacava a ditadura existente no Brasil...dizia que não era controlado peloDIP.”274

Sabe-se que havia, também, jornais de tendência comunista, o que alimentava ainda

mais argumentos nessa linha. Evidenciam ainda que os jornais estavam constantemente

mudando de nome, para continuar criticando a Ditadura Varguista e, por fim, afirma que

eles acabaram por contribuir com o restabelecimento da Democracia no país – regime de

governo esse que, muitos, agora, julgavam-se defensores pois, segundo eles próprios,

tinham-no trazido para o Brasil. Por outro lado, o discurso oficial da Associação nãodeixava de criticar a falta de atendimento aos ex-combatentes e o esquecimento

generalizado da guerra da FEB. No no 11 de “O Expedicionário: a voz dos que não ficaram

em Pistóia” de 1974, vê-se reclamações sobre essa questão, bem como acerca do descaso

após a volta, sendo vistos apenas como “problemas”, “ostracizados”, “deslocados” e

vivendo na “miséria”. “Deixaram de ser Ex-Combatentes e voltaram a constituir,

simplesmente, nos neuróticos, nos loucos, nos doentes, e naquela classe que só deseja uma

274 SEM AUTOR. “O Expedicionário: a voz dos que não ficaram em Pistóia”, ano II, n.16 – 1975.

196

vida privilegiada. Já ninguém se lembra das promessas da festa da vitória, do retorno

frenético, das palmas e nos gritos de vivam os heróis.”275.

Apesar de tudo, o fato é que a imagem da FEB ficou atrelada à Ditadura Militar,

como não poderia deixar de ser. Pelo lado das Forças Armadas, era interessante ter no

‘currículo’ a participação na Segunda Guerra Mundial, bem como ver ‘pacificado’ seu

relacionamento com os ex-combatentes. Pelo lado destes, já vinha de longe uma

identificação dos setores dirigentes de suas Associações pelo discurso do anticomunismo,

somando isso às esperanças pelo atendimento das demandas básicas, já históricas, o apoio

aos militares em 64 era, praticamente, algo natural. Na verdade, poucos ex-combatentes

estavam envolvidos, diretamente, seja com o próprio golpe – apenas ex-integrantes do alto-

oficialato de FEB – seja apoiando explicitamente tais eventos, de forma que passagens

como a do ex-combatente N. Cheab (81 anos, I/11o R.I.), são raras em depoimentos de

praças e suboficiais, falando da ligação da FEB com a “Revolução de 64”:“... é que muita gente da guer ra estava na revolução de 64. Inclusive euestava lá naquela época, não é? Nós, que estávamos nas Forças Armadas,aprovamos plenamente aquela questão da revolução de 64. Vimos que havianecessidade... porque as Forças Armadas é justamente para defender o povo,e o povo quer ia mudança, o povo exigia mudança. Então teve que havermudança...”

Vale colocar que, durante o governo militar o então tenente N. Cheab, que continuou no

Exército após a volta para o Brasil, foi professor do Colégio Estadual Central, em Belo

Horizonte, onde lecionava educação moral, cívica e organização social. A sua narrativa

sobre a experiência de guerra se dá, fundamentalmente, no âmbito dos grandes fatos,

falando pouco da sua realidade individual. Dessa forma, vê-se que a sua carreira de

professor, depois de reformado, marcou decisivamente a sua memória, como fica evidente

275 COSTA, Alkindar. “Silêncio – Os Ex-Combatentes estão morrendo” In: “O expedicionário”, ano I/ n.11 –

197

em vários momentos da entrevista. Por exemplo, neste, quando perguntado sobre o

treinamento da FEB:

“... A instrução era a normal do militar , preparando o militar para a defesado país em qualquer situação: defesa interna e externa. Então preparava opessoal para, em caso de necessidade, combater e defender o país, defenderas leis, as autor idades, defender a histór ia, defender as nossas tradições...”276

Mas, no geral, estabelecer uma comunhão estrita de interesses entre ‘a FEB’, ‘os ex-

combatentes’ e ‘o governo militar’, é incorrer em sério erro – na medida em que a

esmagadora maioria dos veteranos manteve-se alheia a tais questões de ordem

macropolítica, já que, em vista das dificuldades pelos quais passavam, nem tempo ou

condições tinham para se preocupar com isso:

“O alheiamento (sic!) da maior ia dos expedicionár ios com relação àscr ises políticas de 1945 se repetiu em 1964. Embora as lideranças dasassociações manifestassem apoio ao novo regime, não há registrodocumentado de massas de ex-combatentes marcando posição, favorável ounão, ao novo governo militar . No máximo, é possível ar rolar algumasmanifestações de esperança em uma atenção especial aos seus problemascotidianos, no governo do ex-expedicionár io Castelo Branco, por par te dealgumas lideranças da AECB. A atenção especial, porém, foi muito maisretór ica que efetiva.”277

Obviamente que essa posição assumida, ‘não assumida’, ou consentida, geraria resultados

negativos no futuro, quando do fim do Regime Militar. No entanto, esses impasses, entre

outros pontos, pertencem já a outro período: é o ‘terceiro tempo da memória da FEB’, que

será analisado no próximo capítulo.

1974. ” Transcrito de “A Voz da Cidade” de 09/10/1974.276 Entrevista com N. Cheab, Belo Horizonte, março/2002.277 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.325-326.

198

Capítulo III

ENCONTROS E DESENCONTROS DA MEMÓRIA

DA FEB

199

III.1 As heranças de 64

Com a reabertura política e a nova Constituição de 1988 muitas coisas mudaram para

os veteranos. Para a grande maioria significava a chegada de novos tempos, pois jápassavam dos sessenta anos e, enfim, tiveram sua situação regularizada com a conquista de

uma pensão extensível a todos os ex-combatentes – que, é verdade, viria tarde demais para

muitos. Dessa forma, para vários veteranos, apenas agora poderiam retomar as relações

com as Associações e com os antigos camaradas de guerra, pois, nesses ‘novos tempos’,teriam condições e motivação para isso.

À época do endosso oficial ao ‘Regime de 64’ e de uma relativa paz interna nas

Associações, conquistada definitivamente em 1950/51 com a expulsão dos comunistas e a

aproximação das Forças Armadas, se seguiria novo período turbulento. A afinidade das

Associações com a Ditadura Militar, ora vista como uma jogada pragmática para o

atendimento das demandas, ora como por afinidade político-ideológica, é certo, não sairia

de graça em tempos de redemocratização. Do movediço terreno da Ditadura, os veteranos

sairiam bastante sujos de lama, ou se não estivessem, teriam suas imagens manchadas pelo

personagem que os perseguia: o ‘veterano da FEB’. Mais uma vez, transformavam-se em

estigmas ambulantes: primeiro foi o ‘louco de guerra’, e agora o ‘servidor dos militares’.Como já se discutiu, atribuir a pecha de apoiadores da Ditadura à massa dos

veteranos é algo complicado. É certo que durante essa fase a maioria manteve-se distante e

alheia dessas questões, mas pode-se dizer: ‘Quem cala consente’. De qualquer forma, sãocondições diferentes – não se pode julgar, por exemplo, a população alemã pelos mesmos

crimes que foram cometidos pelos SS, apesar da primeira ter se calado frente ao que

acontecia. Da mesma forma, sabe-se hoje que a resistência à ditadura no Brasil se resumiu a

alguns setores mais ou menos isolados, e que o silêncio da sociedade consistiu a regra. Isso

200

não significa que suas faltas devam ser julgadas nos mesmos termos dos torturadores ou

dos líderes políticos que deram carta branca a estes, seria incorrer em grave equívoco

moral, substituindo o julgamento de uma parte pelo de todos.

Certo é que, se durante toda a trajetória dos que fizeram parte da FEB houve algo que

permaneceu imutável nas relações com a sociedade e os governos que passaram, seria a

falta de compreensão e de preparo para lidar com o complexo processo de reincorporaçãodos veteranos. No geral,

“Fora do plano familiar e da comunidade de veteranos, onde as referênciassobre a guer ra [quando existem] evocam heroísmo e glor ificam as vitór ias, aexper iência dos combatentes não ecoou de forma a fazer sentir e consolidaruma idéia bem fundamentada das preocupações que mais afligiam suasmemór ias.”278

Na verdade, como coloca Cytrynowicz, o próprio período em que a FEB estava na Itália, o

tratamento dado ao conflito, pela imprensa e pelo governo, como já se falou, era

fundamentado na ironia e no deboche não da FEB propriamente dita, mas do inimigo

alemão. Isso ajudou a fragilizar a já parca mobilização social para a guerra, pois não se

concentra os esforços e se faz respeitar a autoridade central através da difusão do riso, mas

sim do medo. É claro que esse clima acabaria por atribuir a FEB a condição de ridículo,

bem como aos que dela faziam parte – juntando a isso o ‘mito do passeio’, estaria completo

o imaginário que acompanhou o Brasil na guerra e os veteranos na reincorporação.

Tudo isso é verdade no que toca à imagem que a sociedade civil fez, e faz, da históriada FEB. Já no caso dos militares, muitas vezes, fez-se uso do outro extremo, ou seja, dos

discursos laudatórios, da glorificação da morte pela pátria, da luta contra os totalitarismos –primeiro o Nazismo, depois o Comunismo – e por aí vai. Enfim, o fato é que a memória dos

veteranos quase sempre esteve situada entre dois extremos – ora o de turistas, ora o de

201

apoiadores do regime de 64 – e, nessa posição, eles teriam que resistir ou negociar,

encontrar-se ou desencontrar-se de si próprios, satisfazer suas demandas. Enfim, a tomada

de uma posição, ou mesmo a indecisão, gerariam conseqüências no futuro, restando àmemória, com suas reviravoltas, ‘acertar as coisas’.

vDentre uma série de ‘incidentes’ ocorridos com as Associações e os veteranos após a

reabertura, ganhou certo destaque, pela projeção que alcançou, a publicação do livro “As

duas faces da glória”, do jornalista William Waack279, e a produção do filme “Rádio

Auriverde”280, do cineasta Silvio Back. Ambos tecem duras críticas a certa memória oficial

da FEB, que teria sido veiculada desde a volta desta para o Brasil.

William Waack escreveu o livro que, certamente, mais mexeu com os brios dos

veteranos da FEB. Em “As duas faces da glória”, o autor pretende colocar a história da FEB

em ‘pratos limpos’, pois, segundo ele próprio, tudo, ou quase tudo, que havia sido escrito

ou falado até agora a respeito da FEB estava equivocado – na medida em que não passava

de glorificação e/ou uma hipervalorização do Estado brasileiro, do Exército nacional e dos

veteranos de guerra. Para Waack, as façanhas militares perpetradas na Itália não tinham

nada de extraordinário ou heróico, o Brasil havia entrado forçosamente na guerra – a

mando dos EUA – contava com um Exército sem condições de participar de um conflito

como a Segunda Guerra, teve um desempenho nada além de burocrático e, nem sequer,

despertou a atenção dos inimigos que, quando muito, sabiam que o Brasil havia lhes

declarado estado de beligerância. William Waack lança mão, como sendo o maior trunfo de

278 MAXIMIANO, César Campiani. “Neve, fogo e montanhas...”, p.362-363.279 WAACK, William. “As Duas Faces da Glória”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.250.280 BACK, Silvio (dir.). “Rádio Auriverde: a FEB na Itália” Rio de Janeiro: Embrafilme, 35mm, preto ebranco, 70 min., 1982

202

seu livro, de uma documentação até então pouco trabalhada a respeito das atividades e das

condições da FEB durante o decorrer dos treinamentos, da guerra e do período de ocupaçãoapós o fim das hostilidades. São documentos norte-americanos que tratam do

comportamento e das relações com as tropas brasileiras, e também do próprio Exército

alemão, que pouco trata dos brasileiros. Waack lança mão, ainda, de depoimentos de alguns

veteranos da Wehrmacht e mesmo alguns febianos.

Tal como se mostra a memória dos veteranos, as respostas à tese de Waack foram

variadas. Do lado mais ‘oficialesco’, o que se vê é uma repulsa total – como fica evidente

nesse comentário de Lyra Tavares:

“O livro tem o propósito e opor -se à glor ificação da FEB, como fonte docivismo nacional, construindo e inovando versões capazes de cor roer suasraízes, pela força da repetição e da publicidade financiada, para atingir ,pr incipalmente naquele Teatro de Operações de ultramar , a representaçãomais fidedigna da alma do povo brasileiro.”281

A percepção de que os argumentos de Waack atingiam duramente as tradições do

Exército Brasileiro, são ainda mais claras em texto escrito por Elber de Mello Henriques,

que, pela crítica, vê o estabelecimento de um raciocínio que vincula a FEB a uma simples

extensão do Exército nacional: “Na década de 40 os inimigos das nossas tradições tentaram

comemorar o tricentenário das invasões holandesas. Na década de 70 os comunistas

resolveram contestar a versão brasileira da Guerra do Paraguai; agora resolveram atacar a

FEB.”282.

Sem discutir aqui a validade ou não dos argumentos levantados por Waack, fato é que

não se pode refutar integralmente as suas críticas – na verdade, creio eu, em termos de

281 TAVARES, Aurélio Lyra. “Jornal do Commercio” 18 mai 1985. Apud. FERRAZ. “A guerra que nãoacabou...”, p.354.282 HENRIQUES, Elber de Mello. “A FEB mal interpretada” Rio de Janeiro: Mimeo, agosto 1985, p.5.Arquivo Histórico do Exército/FEB, Seção B-14, pasta 03. Apud. FERRAZ. “A guerra que não acabou...”,p.355.

203

conteúdo, grande parte das análises são, no mínimo, bastante interessantes. O que se

poderia dizer do livro, é certa ingenuidade no trabalho com as fontes – abordadas,

correntemente, de forma descontextualizada – bem como certa preocupação em “vincular a

ida dos pracinhas a Monte Castelo aos projetos norte-americanos que culminaram no

movimento de março de 64...”283. Problema maior, ainda, foi a generalização feita a partir

do termo FEB: quem era a FEB? Que FEB é essa que se converteu nos ‘algozes de 64’? Se

foi a FEB um joguete dos EUA, quem eram os responsáveis por isso? Retomando a crítica

que Keegan faz aos pesquisadores e estudiosos da guerra, é justamente essa uma das

fraquezas do livro, ou seja, analisar a guerra da FEB apenas em seus aspectos “decisivos”.Os conflitos entre os comandos dos vários exércitos em ação, questões de âmbito

macropolítico e macroeconômico, o andamentos das batalhas e por aí vai. Nesse contexto,

os significados que os soldados, e hoje veteranos, dão à guerra, são colocados de lado. Foi

isso que levou o livro a ser tão mal visto entre os febianos.

Apesar de tudo, o livro levanta discussões interessantes, ao apresentar as tropas com

os quais a FEB combateu, as impressões norte-americanas etc. Mas independente disso, o

que interessa aqui é a repercussão do livro entre os veteranos. Em primeiro lugar, vê-se que,

definitivamente, para o bem ou para o mal, a imagem da FEB estava atrelada às Forças

Armadas, seja aos olhos dos não-veteranos ou mesmo para grande parte dos veteranos. Em

segundo, tudo isso evidencia a formação de uma sólida comunidade de memória que, em

vista do que já passaram até então, se mostra arredia a críticas que venham de fora. Isso

porque, conversando com veteranos, vê-se que muitas das questões que Waack levanta sãoendossadas por eles próprios: o despreparo das tropas, o fato do TO italiano consistir num

283 SCHNAIDERMAN, Boris. “Quantas faces tem a glória?” In: Folhetim (suplemento do jornal Folha de São

204

front secundário, os usos políticos da FEB – coisa que os desagrada até hoje284 – etc. No

entanto, citado o nome do autor que, além de boicotado nas bibliotecas das Associações, éconsiderado “persona non grata” nos círculos dos veteranos, a conversa muda de

orientação.

Entre os veteranos houve também aqueles que fizeram críticas menos pesadas ao

livro de William Waack, além de ter encontrado nele algumas virtudes, apesar de, mesmo

assim, não ser o que mais sobressai no artigo por ele escrito: “Quantas faces tem a glória”,de Boris Schnaiderman, veterano da FEB e professor aposentado da USP. No artigo vemos

o destaque: “O recente livro de William Waack vincula a ida dos pracinhas a Monte

Castelo aos projetos norte-americanos que culminaram no movimento de março de 1964 –uma tese intrigante, mas tratada com excessiva generalização, como aliás vários outros

tópicos”. Coloca que muitas das críticas são válidas, e que fez algo importante ao tratar de

arquivos que até então intocados. Mas despreza um tom por demais ideologizado do autor

do livro:

“Sente-se muito no livro a preocupação em defender uma tese: foram osnor te-amer icanos que forçaram a ida de nossas tropas à Itália e, narealidade, os seus projetos eram mais políticos que militares; estar iamcalculando a sujeição maior do Brasil, no futuro. Em mais de uma ocasiãopercebe-se a intenção de ligar a par ticipação na guer ra aos acontecimentosde 1964.”285

Schnaiderman ainda relativiza uma série de outras críticas – “generalizações” – que

Waack teria colocado em seu livro. Por exemplo, as forças alemãs na Itália não eram da

elite do Exército alemão, ou seja, não eram nenhuma SS, já que era formada por veteranos

Paulo), no 436, 2/6/1985, p. 4 .284 Keegan enfatiza que a lógica do “vencer” X “perder” não aparece na percepção que os soldados fazem desuas guerras – de modo que quando assim a presenciam em outros meios, quase sempre surge um sentimentode rejeição e ressentimento para com aquela expressão. Cf.: KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.47.285 SCHNAIDERMAN, Boris. Quantas faces tem a glória? In: Folhetim (suplemento do jornal Folha de SãoPaulo), no 436, 2/6/1985. p. 4 – 5.

205

de outros fronts e jovens com apenas seis semanas de treinamento, além de sofrer

constantemente com a falta de provisões e munição – “mas evidentemente seis semanas de

treinamento pela máquina de guerra alemã, com o grau de eficiência que ela havia atingido,

era algo com que a nossa tropa não podia nem sonhar”. Essa informações foram retiradas,

por Waack, provavelmente, do relatório de rendição do comandante da 232o entregue aos

aliados, o que nos leva a pensar que o que faltou, nesse caso, para não ser derrubado por

uma observação sagaz como a de Schnaiderman, foi apenas uma critica externa e uma

melhor contextualização da fonte em questão.

Para um discurso jornalístico, como é o caso, talvez o termo “seis semanas de

treinamento”, em contraposição ao “um ano”, por parte do Exército Brasileiro, tenha um

efeito discursivo melhor ao objetivo que ele se propõe segundo alguns veteranos: chocar,

polemizar e denegrir gratuitamente a FEB. No entanto, Schnaiderman sabe que o objetivo

do livro não é esse, ao tratar dos seus aspectos positivos, mas mesmo assim não deixa de

fazer várias críticas à fragilidade argumentativa do livro – devido às generalizações – e àinsistência em comprovar a referida tese. Por fim vale salientar que, se as críticas de Boris

se particularizam por serem mais atenuadas, devemos nos lembrar que ele faz parte de duas

instâncias que pesam bastante ao escrever sobre a guerra: por um lado é um “pracinha”,mas por outro, é um acadêmico.

O trauma que se verifica entre os veteranos a partir desse evento é tão grande que,

ainda hoje, qualquer pessoa que se dispõe a estudar a FEB é advertida nas Associações.

Patrícia Ribeiro, em sua pesquisa de campo, contou com tais percalços – recebida no

escritório da ANVFEB/RJ para explicar a sua pesquisa, informa que contou com algumas

resistências e afastamentos de veteranos, apesar de ter sido aprovada. O problema era que,

206

justamente na época em que foi à Associação, uma reportagem publicada pela revista

“Domingo do JB”, que contou com a ajuda de vários veteranos,

“desagradou a muitos associados, ocasionado alguns problemas para adireção da ANVFEB. Segundo o própr io coronel Sérgio [então presidentedaquela seção], a situação chegou a tal ponto, que os associados quepar ticiparam da repor tagem, sentiram-se na obr igação de se apresentarem aele para se retratarem. Por isso, ele estava interessado em saber qual era oteor e para que ser iam utilizadas minhas entrevistas”.286

Vê-se aí os embates entre as memórias individuais e a memória coletiva/institucional

pela definição do que deve ser público ou privado, lembrado ou ‘esquecido’ – num

movimento típico do processo de “enquadramento da memória”, que nunca cessa. Essa

separação é tão visível que, conversando por algumas horas com veteranos, facilmente vêmà tona os mesmos assuntos referidos na tal reportagem287 mas que, num evento oficial ou

numa exposição pública, são deixados de lado. Entrariam aí as discussões éticas, sobre o

que deve vir a público, o que deve permanecer em círculos menores ou no âmbito dos

indivíduos somente, sem esquecer do como vir a público – aspectos que recaem, sobretudo,

no discurso jornalístico de grande divulgação. Apesar de tudo, Patrícia diz que com o

tempo foi bem aceita na Associação e entre os veteranos.

Outros pesquisadores, também, presenciaram esse temor durante suas pesquisas de

campo. Foi o caso de Alfredo Oscar Salum, alertado da necessidade de não incorrer em

286 RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.98.287 “Na capa da revista veio a seguinte manchete: ‘Guerra, vinho e mulheres: as lembranças dos pracinhasbrasileiros dariam um filme de Spilberg”. A reportagem falou da guerra, mas enfatizou o seu lado pitoresco[leia-se hollywodiano]: as tochas, a beleza das italianas, os amores que os brasileiros deixaram lá, as festasetc. Muitos dos que participaram das entrevistas, e dentre eles estão todos aqueles que também entrevistei,negaram que tenham dado aquelas declarações da forma como foram publicadas. A imagem que a reportagemregistrou sobre a campanha da FEB desagradou a vários ex-combatentes que enviaram cartas para a direçãoda ANVFEB, também insatisfeita com o resultado da reportagem e registrando toda a sua indignação.”RIBEIRO, Patrícia da Silva. “As batalhas da memória...”, p.98. Se por um lado se vê a memória da FEB,perpetrada pelo Exército, como uma memória mutilada – versões como a que se lê nessa reportagem devemser vistas, igualmente, como uma mutilação das memórias individuais e dos grupos. Mais uma vez a históriada FEB era situada entre dois extremos – nesse meio, certamente, era o lado mais fraco que arcaria com asconseqüências: os veteranos e as Associações.

207

“erros” ao estudar a FEB288, e de Francisco Ferraz, questionado por veteranos que

desejavam saber se sua pesquisa era contra ou a favor da FEB289. Por fim, tais

considerações também foram presenciadas pelo autor dessa dissertação, ainda quando da

primeira visita à ANVFEB/BH. Quando solicitei permissão para ter acesso aos arquivos da

Associação, de modo a selecionar os veteranos que me interessariam para as entrevistas, a

resposta foi negativa. A resistência a essa liberação foi justificada por razões políticas.

Segundo esses veteranos, inclusive o presidente, a Associação teria atingido um grau digno

de estabilidade e viabilidade de qualidade de vida aos veteranos, enquanto que essas

informações poderiam cair em “mãos erradas” e prejudicar a ANVFEB. Segundo eles,

ainda, alguns entrevistados, que fossem por mim escolhidos, poderiam dizer coisas que

hoje não interessariam à FEB. Após a obstrução de meu acesso às informações dos

associados, seguiu-se uma série de críticas ao governo da época, sobretudo à pessoa de

Getúlio Vargas, bem como a respeito da recepção dos veteranos após o conflito – teriam

ouvido muitas promessas antes de partir para a Europa, mas a maioria delas não seria

cumprida. Foi nesse momento que me foram ditas duas frases que consistiram em pontos

cruciais para o entendimento da memória da FEB: “A FEB tem muitos inimigos”, a outra,

“A verdadeira guerra dos brasileiros não foi na Itália, mas aqui no Brasil.”. Mas como nos

casos anteriores, com o tempo, contei com aceitação de numerosos veteranos desta e de

outras Associações.

O segundo ‘incidente’ de grande vulto que se deu com os veteranos, foi a produçãodo filme/documentário “Rádio Auriverde”, de Silvio Back. Segundo o diretor, o filme foi

produzido com imagens que não passaram pelos órgãos de censura do Estado Novo, além

288 SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra”, p.12.

208

de uma série de imagens e sons inéditos de arquivos estrangeiros até então intocados. Com

isso, ele tencionava produzir um material crítico e que não fosse “ideologizado”. Segundo

Oscar Salum, “A idéia inspiradora do filme nascido em 1988, era implodir o último mito da

história do Brasil: a campanha da FEB na Itália.” – de acordo com afirmação de Back em

entrevista ao “ Jornal do Brasil” 290. No entanto, se muita coisa do livro de Waack pode ser

analisada, discutida e vista com seriedade, o filme de Silvio Back atingiu a condição de

uma péssima obra cinematográfica, pela forma autoritária, manipuladora e desrespeitosa

que assumiu.

“... o esforço por r idicular izar qualquer ato ou caracter ística da FEB fazdeste filme-documentár io uma das mais ideologizadas obras do cinemadocumental nacional. Desde o texto do roteiro até a edição das imagens esons, tudo foi feito e escolhido com um intuito bastante claro: a FEB e apar ticipação brasileira na Segunda Guer ra Mundial constituíram episódior idículo da histór ia nacional, decor reram do imper ialismo amer icano,somente podem ser explicadas por ele, e todos os que par ticiparam da FEBsucumbiram ao ‘espír ito da corporação’. (...) O cineasta afirma mostrarimagens que foram ‘escondidas’, ‘descar tadas por absoluta razão deEstado’, e espera, com isso, contr ibuir para ‘abr ir a cabeça das pessoas, nãopara fazê-las’.”291

O filme conta com montagens descontextualizadas e completamente tendenciosas, endossa

mitos como o de que o afundamento dos navios Brasileiros, em 1942, foi obra de

submarinos norte-americanos. Por fim, faz uma generalização que consiste em pecado

capital para qualquer pesquisador, artista ou pessoa que queira abrir cabeças. Ele nãodistinguiu os diferentes sujeitos que fizeram parte da FEB e suas respectivas

responsabilidades e inserções no processo: suboficialato e os praças convocados, por um

lado, e o alto oficialato que continuou na política institucional após o retorno. A FEB évista apenas como uma grande teoria conspiratória muito bem delimitada e homogênea. Na

289 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.358.290 SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra”, p.192.291 FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.360.

209

época do lançamento do filme a reação dos veteranos e Associações foi instantânea. Apesar

da circulação do filme ter sido bastante restrita, foram feitos piquetes e manifestações nas

portas dos cinemas de forma a impedir que as pessoas assistissem ao filme292.

Em suma, definitivamente, a imagem da FEB permaneceria ligada às instituições

militares; a posição das Associações antes, e, sobretudo durante, o Governo Militar deixou

heranças que constituiriam em impasses para os veteranos em geral – fossem esses adeptos,

opositores ou indiferentes em relação à Ditadura. Tal fato, a militarização dos veteranos, se

caracterizou numa particularidade do caso brasileiro. Os veteranos europeus, por exemplo,

sobretudo os ingleses, até hoje se vêem como “civis de uniforme” e não como militares.

Keegan, nesse sentido, dá um exemplo dos exércitos da I Guerra Mundial:

“...a batalha do Somme foi predominantemente de grupos de reservistastemporár ios, sobre os quais o Exército profissional impr imiratemporar iamente a sua identidade, mas que, com a paz, desaparecera damemór ia coletiva quase tão rapidamente como fora incutido...”293

No caso brasileiro essa separação existe, mas de modo muito menos perceptível. Isso

tem relação, obviamente, com a amplitude que a guerra tomou aqui e com as diferenças dos

processos de mobilização e reincorporação etc., pois, no caso da Europa, as guerras do

século XX extravasaram, em muito, as Forças Armadas e os objetivos políticos dos

Estados. No Brasil, como já se viu, a mobilização foi frágil e o esquecimento rápido294.

Nesse ‘caos identitário’, é tarefa do pesquisador ter sensibilidade e bom senso na

análise e no que toca à atribuição de responsabilidades aos agentes históricos, pois

“Quando o indivíduo constrói a sua identidade múltipla em foro íntimo e naesfera pr ivada, o grupo é somente assegurado de sua introdução nos espaços

292 Cf.: FERRAZ. “A guerra que não acabou...”, p.358-360.293 KEEGAN. “A Face da Batalha”, p.241-242.294 SOKOLOFF, Sally. “Soldiers or civilians? The impact of army service in World War Two on Birminghammen” The Journal of The Oral History Society, vol. 25, n.2, “War and Peace” Essex: University of Essex,autumn 1997.

210

públicos. O er ro comum é não dissociar esses momentos identitár ios e tratarem um mesmo movimento a identidade individual e a identidade grupal.”295

Dessa forma, quando os veteranos cultuam ou valorizam aspectos e/ou símbolos

ligados à nação, desfilam no 7 de setembro, comparecem a eventos militares etc. – têm suas

imagens, instantaneamente, vinculadas aos militares o que, no Brasil, significa um passo

para a identificação com os princípios de março de 64. Por fazerem parte de um grupo

minoritário, e a fim de se afirmarem e estabelecerem uma “identidade cultural”, os

veteranos são forçados – inconscientemente, é claro – a “cristalizarem”, ou ‘esquecerem’,suas opiniões e lembranças pessoais, de modo que fiquem ligados ao grupo e, por extensão,

à memória por este definida296. Apresentada essa possibilidade, resta ao sujeito duas

opções: tolher a sua individualidade e se ‘fundir’ ao grupo, ou permanecer na

marginalidade. Por outro lado, sabe-se que esse movimento é rígido assim apenas na teoria,

pois na verdade, seja entre os menos considerados nas Associações, ou mesmo entre os

veteranos ‘guardiões da memória’ do grupo, o fato é que, com um pouco de conversa e

sensibilidade, pode-se vislumbrar suas lembranças de “foro íntimo”, que nunca se apagam

completamente. Seriam elas ‘mais verdadeiras’? Certamente que não, apenas dizem

respeito a uma das dimensões que compõem a memória e a identidade dos sujeitos –aspecto presente, com intensidades variadas, em todos os depoentes.

vIII.2 Tempo de rememorar

Em geral a memória dos veteranos, já na casa dos 80 ou 90 anos, se mostrou clara e

vibrante – o que serviu para mostrar que os estereótipos existentes sobre a velhice estavam

295 KOUBI, Geneviéve. “Entre sentimentos e ressentimento: as incertezas de um direito das minorias” In:BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (orgs.). “Memória e (res)sentimento: indagações sobre umaquestão sensível” Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 537-538.

211

equivocados. Os depoimentos, e, portanto, a configuração da memória no momento das

entrevistas, são muito influenciados pela experiência social do idoso, ou seja, se ele se isola

ou é isolado, não compartilhando as lembranças, certamente isso tem conseqüências, que

reforçam a deterioração física e emocional. Mas, se por outro lado, ele participa de grupos,

e reuniões, como se dá no caso dos veteranos – integrantes de uma comunidade sólida e

fixa – as memórias variam em função, sobretudo, do contexto desses círculos.

A memória na velhice se particulariza, dentre outros aspectos, pela preocupação em

‘justificar’ toda uma vida que se passou – algo comum nessa fase da vida, quando nos

vemos em face de morte. Nesse meio, há a necessidade de dar um sentido à vida, deixar um

testamento ou mesmo colocar as coisas em ‘pratos limpos’. Muitas vezes, a motivação para

falar surge quando se sente que a história negligenciou algumas coisas que devem ser

contadas. Ressentimentos, aflições e angústias costumam vir à tona nessas ocasiões: a dor

pelo esquecimento, por exemplo, é muito presente entre os veteranos. Isso acontece porque,

geralmente, para os adultos, do passado só são trazidas lembranças que interessam ao

presente – de modo que, para os veteranos, pouca coisa da guerra ou da reincorporaçãointeressava em vista da situação pela qual passavam297. Atingida a velhice, essas ‘másrecordações’ começam a voltar – mas não sejamos ingênuos, a memória dos velhos tende a

ser madura e equilibrada, ao passo que se trazem seus ressentimentos ao presente, tambémsabem valorizar outros aspectos e daí tirar lições para o futuro: dimensão pedagógica

própria da memória. Mas esse equilíbrio é difícil de ser mantido, sobretudo num momento

de recordação – como uma entrevista – o que os deixa, em alguns casos, emocionados,

esfuziantes ou revoltados com algumas passagens de suas vidas.

296 Ibidem. p.539.

212

vComo já se viu, apenas décadas após a volta para casa foi possível, para grande parte

dos veteranos, reencontrar antigos colegas de trincheiras e participar do cotidiano das

Associações. Nesse movimento, as memórias individual e coletivo-institucional da FEB se

convergiriam mais ainda, de forma que, durante todo o período que permaneceram

afastados das lembranças da guerra, as Associações – juntamente com as Forças Armadas –não cessaram de, a todo momento, ‘trabalhar’ essa memória. De certa forma, as

Associações e as Forças Armadas serviram para manter a ‘chama acesa’, servindo de

anteparos à hibernação da memória da FEB. Essas instituições contariam com o respeito e

aprovação certos de grande parte dos veteranos que, ao resgatarem lembranças de anos

atrás, o faziam em função desse contexto. Dessa forma, não tardaram em surgir certos

estereótipos na memória da FEB, que definiam a identidade do veterano, seu

comportamento e valores, a versão de algumas passagens etc. – isso acontece porque

“Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendênciaem cr iar esquemas coerentes de nar ração e de interpretação dos fatos,verdadeiros ‘universos de discur so’, ‘universos de significado’, que dão aomater ial de base uma forma histór ica própr ia, uma versão consagrada dosacontecimentos. O ponto de vista do grupo constrói e procura fixar a suaimagem para a histór ia.”298

Dentre os vários estereótipos do febiano, um dos mais presentes diz respeito ao

caráter amistoso do soldado brasileiro. Aliás, tal mito não é monopólio dos veteranos

brasileiros, de modo que é muito comum encontrar fotografias ou cenas de filmes e

documentários que procuram dar uma imagem cordial e amigável das relações

estabelecidas entre militares e civis durante a guerra. Tais histórias afirmam até que as

mulheres italianas tinham maior atração por brasileiros do que por soldados de qualquer

297 BOSI, Ecléa. “Memória e sociedade, lembranças de velhos”, p.34.

213

outra nacionalidade. No caso da FEB, tais casos caíram como uma luva, pois são usados

para contrapor a gentileza e o jogo de cintura, ‘inatos’ ao brasileiro, à frieza dos norte-

americanos299:

O amer icano tinha um compor tamento diferente do brasileiro, o inglês tinhaum compor tamento diferente do brasileiro, o francês tinha umcompor tamento diferente do brasileiro, não é? O brasileiro era maisacessível, era mais humilde... o amer icano dizia o seguinte: ‘Olha, pr imeirovamos ganhar a guer ra...o pr imeiro objetivo é ganhar a guer ra. Nós nãopodemos estar cuidando do italiano, de família do italiano... nós temos queganhar a guer ra pr imeiro’. O brasileiro, apesar de saber que ganhar aguer ra era o objetivo pr incipal... mas ele dava uma atenção ao italiano, àfamília italiana... mas em compensação nós recebíamos o car inho dele...elesiam lá para os nossos acampamentos quando nós estávamos lá naretaguarda... e cantavam músicas bonitas para nós e faziam festas, não é?Ofereciam senhor inhas etc.etc...”300

Esse estereótipos não devem ser vistos como uma pura e simples manipulação da memóriaindividual pelos mitos oficiais. Na verdade, servem a variadas demandas dos veteranos,

como lidar com lembranças de sofrimento e desespero de uma população submetida àmiséria da guerra – como já se viu –, bem como transportar e transmitir suas memórias de

guerra para um contexto moral mais rígido, ou seja, para os que ficaram longe das batalhas.

Durante a guerra, contudo, essa certa simpatia e maleabilidade dos brasileiros significavam

outras coisas, conforme coloca um veterano entrevistado por Salum:

“Os brasileiros sempre foram tratados razoavelmente bem pela populaçãoitaliana [como acontecia com qualquer exército que por lá passasse e não atratasse como inimigos – como se deu em diversas localidades com os própriosalemães]. Os soldados mais afoitos chegavam até a ar rumar namoradas (...).Às vezes referem-se ao bom coração dos brasileiros, que distr ibuíamalimentos aos civis. Não duvido que tenham ocor r idos tais fatos, mas namaior ia das vezes, a intenção era outra. Os soldados se armavam de uns‘extras’, como cigar ros, chocolates, doces, etc., e iam para a cidade atrás deumas ‘senhor inhas’. A gente então, com um pouco de comida, conseguiaar rumar muita coisa.”301

298 Ibidem. p.27.299 Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001.300 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.301 Entrevista com Daniel Lacerda. Apud. SALUM, Alfredo Oscar. “Zé carioca vai à guerra”, p.98.

214

Outro de meus depoentes mostra que ‘coisas’ eram essas, bem com mostra a preocupaçãoda memória em desviar tais fatos da memória dos grupos e indivíduos:

“Como soldado eu vi coisa que nem pra você eu conto... nunca contei praninguém... eu presenciei gente nossa, com pr isioneiro alemão, entendeu? Eunão conto isso, porque eu vi... nenhum livro fala... porque o sujeito escreve,mas cer tas coisas que se passaram lá, ninguém escreve (...) Tem muitamentira... tem um caso de um [inaudível] da Cia.... tem uma coisa de que foifer ido em ação, mas ele não foi fer ido em ação... quem atirou nele foi umitaliano, porque o italiano encontrou ele com a mulher dele, entendeu?Então... tem cer tas coisas que... eu não sei, porque... nunca mais... como éque ele apareceu fer ido? Mas foi um par tisan (... )Eram os que ajudavam agente lá... o italiano atirou nele... pegou ele com a mulher dele...são as coisasque acontecem (...) tem gente que foi condecorado por ato de bravura e foioutro que fez... eu sei disso também, eu estava lá, eu estava presente... osujeito foi condecorado, foi tudo... mas eu estava presente... quem fez foioutro...”302

Obviamente que comportamentos como esses eram comuns em exércitos de todas as

nacionalidades – aliás, desde que existem as guerras na humanidade.

Outra variante de estereótipos bastante comuns entre os veteranos são os pequenos

casos, histórias e peculiaridades da FEB. Tais elementos são próprios das memórias

coletivas e aparecem em vários depoimentos, geralmente com pequenas alterações de

conteúdo ou ênfase, não deixando de simbolizar, entretanto, o caráter unificador que a

memória presta à identidade do grupo. Dentre vários casos, vale a pena citar dois bastante

interessantes. O primeiro diz respeito ao armamento utilizado pela FEB que, como se sabe,

era oriundo dos depósitos norte-americanos. Os modelos dos fuzis repassados aos

expedicionários brasileiros era o “Springfield 1903”, de operação manual e com carregador

para cinco tiros por cartucho. Já o Exército Americano usava um modelo mais recente, da

década de trinta, o “M-1 Garand”, de operação semi-automática a gás, capaz de ser

carregado com cartuchos de oito tiros. Sabendo disso, muitos expedicionários

ambicionavam por um Garand e, dessa forma, tentavam obtê-lo por meios extralegais. Tais

302 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.

215

casos são, geralmente, atribuídos à esperteza dos soldados brasileiros e são contados com

orgulho pelos depoentes. Mas as chamadas ‘requisições da meia-noite’, não eram sóapreciadas pelos brasileiros, de forma que era uma expressão “...de largo uso na Segunda

Guerra Mundial como referência ao roubo de equipamentos e viaturas de uma unidade por

outra. Por extensão, a expressão significa, em sentido mais lato, a aquisição de materiais

por canais extranormais.”303.

Outro caso, comum nas narrativas de depoentes e sempre presente nas memórias

escritas, trata da versatilidade do brasileiro simples e pobre que fez parte da FEB: segundo

essa história, os brasileiros teriam descoberto que colocando palha no interior das botas de

combate, a ocorrência de pé-de-trincheira, por ocasião do rígido inverno italiano, diminuíabastante. Tal descoberta, dessa forma, teria sido copiada pelos outros exércitos que lutavam

naquela região. Por fim, independente de se saber se essas histórias são factualmente

verdadeiras, elas mostram como a memória elenca e mesmo elabora histórias a fim de

destacar certos valores caros a um grupo. Vários outros casos ainda poderiam ser tratados

aqui, em comunidades sólidas e bastante apegadas ao passado bem como com uma

trajetória ‘movimentada’, é comum o surgimento desses ‘tipos’, histórias padrão, valores e

virtudes do grupo.

Vejamos, por exemplo, a questão do racismo. A FEB consistiu na única tropa

racialmente integrada que lutou no TO da Itália304, fato que, obviamente, não deixaria de

chamar a atenção dos expedicionários – e isso pode ainda ser notado ainda hoje quando os

veteranos se referem a 92o Divisão Búfalo norte-americana, que era composta apenas por

303 McCANN Jr., Frank D. “A aliança Brasil – Estados Unidos 1937 – 1945”, p.336.304 Segundo César Campiani Maximiano e Dennison de Oliveira, a FEB teria sido, provavelmente, a únicatropa racialmente integrada a lutar na Segunda Guerra Mundial. Cf.: MAXIMIANO, César Campiani &

216

negros, mas comandada por oficiais brancos. Como se sabe, depois da abolição da

escravidão, não existiu nas constituições brasileiras nenhuma discriminação oficial no que

toca ao relacionamento entre as ‘raças’ – o que, é óbvio, não significava que o racismo era

inexistente. Tal como se dava na sociedade em geral, um certo racismo velado se

reproduziu nas Forças Armadas e, de fato, para voltarmos ao tema aqui discutido, sabe-se

de vários episódios de racismo na FEB, bem como pude ouvir casos de preconceito racial

com alguns de meus depoentes. De qualquer forma, entretanto, e a própria condição em que

a FEB se viu frente aos outros Exércitos Aliados reforça isso, a questão da raça não surge

como algo importante para explicar os problemas e peculiaridades das tropas brasileiras na

Itália – a não ser, é claro, para endossar o mito, já conhecido por todos, da “democracia

racial” no Brasil. Nesse sentido, muitos veteranos, hoje, não deixam de se orgulhar quanto

a essa questão, afirmando que na FEB o racismo era inexistente. Interessante que alguns

colocam que, como se dava com vários outros conflitos e divergências, tais questões foram

suplantadas pelo espírito de corpo que se criou entre os expedicionários, bem como pelas

características da FEB em oposição ao Exército de Caxias que havia ficado para trás.

Mesmo para os poucos que assumem a existência do racismo na FEB, tais valores

mostram-se definitivos:

“... você ouve dizer : ‘Ah! Esse negócio de racismo não existe no Brasil”...temsim...existe o racismo como existia antigamente, como existia na FEB e comoexiste hoje ainda...se eu dizer que não existe, existe sim...tem aqueleselementos que se destacam...que esse não podem esconder mesmo...mashavia esse racismo. Eu vou lhe contar um caso aqui, que dificilmente eu faloisso para alguém...quando houve uma possibilidade de promover trêssegundos-sargentos a tenente, me indicaram...quando chegou lá no Estado-Maior : ‘Vem aqui, esse aqui não é aquele moreninho, escur inho...nós vamospromover ele?’...aí um capitão que me conhecia muito bem falou: ‘Olha, nósnão estamos discutindo cor não, estamos discutindo o valor do indivíduo...ovalor que ele têm’...por aí você vê que realmente existe, e existia, o racismo

OLIVEIRA, Dennison. “Raça e Forças Armadas: o caso da campanha da Itália” Estudos de História. Franca:v.8, n.1, 2001, p.155-182.

217

no Brasil...preconceito racial no Brasil. Daí que eles meteram o rabo entre aspernas, e eu fui aprovado...fui comissionado a tenente lá...mas houve essapassagem...e nem foi esse capitão que me falou depois, não...foi um outro quefalou: ‘Olha, fulano de tal te defendeu sobre esse aspecto...’” Márcio: “E vocêsabe de outras passagens?” J.Vieira: “Não, outras não...no pelotão não haviaisso, não é? Porque ali, o sujeito sendo branco ou preto, morre tudo domesmo jeito...”305

Outro veterano da FEB, também negro, limita ainda mais a possibilidade da existência de

racismo na FEB. Questionado sobre a presença do racismo na guerra responde:

“Não...não...A guer ra é um fator de união...é um fator permanente deunião...a gente termina se irmanando...nós hoje vivemos aqui comoirmãos...nós temos estima pelos companheiros como se fossem ir mãos. Agoranesse fim de semana nós fomos sepultar um companheiro...é uma coisafantástica o que nós sentimos...sábado, agora, nós sepultamos umcompanheiro muito amigo nosso aqui, não é? Então a gente...é como se fosseum irmão que estivesse perdendo...”306

Em suma, apesar dos indícios que provam a existência do racismo na FEB, a tese da

‘democracia racial’ é muito forte e consiste em sólido mito no âmbito da memória da FEB.

Não somente nas fontes orais casos de preconceito racial podem ser encontrados, mas

também na propaganda estadonovista acerca da FEB – cujos cartazes mostravam, mais

freqüentemente, homens brancos –, bem como em certo discurso eugenista próprio desse

regime. Ainda é digno de nota o pequeno número de oficiais negros, bem como as

tentativas de exclusão destes, por parte do General Zenóbio da Costa, das Guardas de

Honra da FEB e dos desfiles oficiais – histórias muito bem conhecidas por todos, mas

portadoras de uma importância bastante marginal nas memórias da FEB. Definitivamente,

esse estereótipo consiste em sólido elemento congregador da identidade dos febianos e,

mais uma vez, é interessante perceber como muitos tiveram que ‘esquecer’, reprimir ou

305 Entrevista com J. Vieira, Belo Horizonte, novembro/2001.306 Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte, outubro/2001.

218

adaptar experiências pessoais a fim de contarem com a aceitação pública de suas

memórias307.

Ainda no contexto dessa memória coletiva dos veteranos, várias outras definições sãoestabelecidas e hierarquias criadas – interessante, ainda, é como cada um dos sujeitos

interiorizam esses valores. Dessa forma, como observou Thomson em seu estudo sobre os

ANZAC, a fonte oral permitiu que se descobrisse que muitos veteranos não entraram em

combate e que, em detrimento das outras armas, a infantaria é privilegiada nas memórias –sobretudo quem sofreu ferimentos ou mutilações. Várias outras atividades subsidiárias,

fundamentais à manutenção do front são, na maior parte, colocadas em segundo plano.

Dessa forma, na FEB, os mais considerados são os chamados “sacos A”, que participaram

dos combates; depois os “sacos B”, pessoal do Depósito, cozinheiros, ocasionalmente a

própria artilharia, guerra química, serviços especiais da retaguarda etc.; por fim, ainda há os

“sacos C”, os “patos d’água”. O veterano J. Lopes, cozinheiro, coloca que não tem muito a

falar em decorrência da atividade que exerceu – apesar de saber bastante sobre a outra face

da guerra, pois o que não faltava nas cozinhas eram pessoas pedindo comida bem como o

onipresente contrabando de alimentos e coisas do gênero, sem contar certas formas de

resistência. Apesar de tudo isso afirma: “Sou saco B”308.

Certo é, entretanto, que nessas definições de hierarquias estabelecidas pelas

Associações, Forças Armadas e veteranos considerados ‘guardiões da memória da FEB’,uma série de conflitos e tensões surgiram e ainda surgem. O veterano M. Couto, em

depoimento, se mostrou irritado com colegas que insistem em passar uma visão geral da

307 MAXIMIANO, César Campiani & OLIVEIRA, Dennison. “Raça e Forças Armadas: o caso da campanhada Itália” Estudos de História. Franca: v.8, n.1, 2001, p.155-182.308 Entrevista com J. Lopes, Juiz de Fora, dezembro/2004.

219

guerra que, segundo ele, é uma visão deturpada da mesma. Ele criticou, em especial, um

livro escrito pelo veterano Cássio Abranches Viotti, considerado historiador oficial da FEB

que, já no jornal “A Tocha” , escreveu texto resumindo a guerra na Itália para servir de base

ao que os veteranos contariam em casa. Couto afirma que

“Ele esteve em todo lugar ... eu parei de ler o livro dele... ele me deu o livro, efalou comigo que o pr imeiro que ganhou o livro fui eu... ele foi meucomandante por quinze dias... ele conta uma histór ia desses quinze dias queeu fico revoltado... ele, comandando uma patrulha, e essa patrulha nãoexistiu, no lugar em que está citando não existiu... ‘chegando em uma casa,meus soldados ficaram receosos e eu estufei o peito e entrei na casa sozinho’(...) Está no livro... fechei o livro e não abr i mais (...) Agora, eu não vou falarcom ele... nós gostamos muito dele, nós o respeitamos muito... mas eu nãogostei dessa, por que eu estava na patrulha... eu estava na patrulha, e estapatrulha em que ele foi eu fui, não tinha casa, não teve nada (...) Eu parei deler o livro... porque, se eu não estivesse lá: ‘Pó, é valente pra daná essetenente, hein?’ (...) É uma mentira... ele, sozinho, não ir ia invadir casanenhuma não, ainda mais com alemão... ninguém...nem eu, nem você, nemnada (...) Esse trabalho seu que você está fazendo aí, é um trabalhomaravilhoso... chega amanhã ou depois, um aluno vai lá e localiza eles... ébonito. Agora, hoje... tem gente que não gosta que eu fale, porque eu ficonervoso e... eu não concordo com essas guer ras que os colegas estãopromovendo...”309

Durante a entrevista, Couto citou ainda outros colegas que “mentem muito”, outro que

critica demais a FEB e os veteranos – esse, classificado como “gagá”310.

Outro veterano já citado, até hoje bastante avesso aos valores e à vida militares,

despreza certa visão militarizante da FEB e não se vê como um militar – fato que procura

deixar sempre claro em seu depoimento. Ele possui dois históricos militares que resumem a

sua trajetória de antes, durante e até o seu desligamento do Exército quando da

desmobilização da FEB. Em um deles há todas as cadeias que pegou por indisciplina, no

outro, as prisões foram retiradas, para os casos em que for necessária a apresentação do

histórico para algo qualquer. Então ele afirma: “Nunca gostei da disciplina militar (...) eu

fiquei, foi o único que ficou... eu não fui promovido, foi por causa do mau

309 Entrevista com M. Couto, Belo Horizonte, outubro/2002.

220

comportamento... a gente não fala para os amigos, mas já peguei tanta cadeia...”311. Já outro

veterano, tratando do mesmo assunto, a saída do Exército, mostra-se apegado aos valores

militares, e afirma que é importante ter “boa conduta”, mas enfatiza, “... o que é coisa

rara.”312. Em suma, ambos reconhecem os valores priorizados pela memória hegemônica, e

lidam de formas diferentes com ela.

As instituições ligadas à memória da FEB, tais como as Associações e Forças

Armadas, como já vem sendo dito, mostram-se sempre presentes no que toca àspreocupações com a manutenção, difusão e “enquadramento” das lembranças e identidades

dos veteranos. Por meio das palavras de S. Ribeiro, por exemplo, pode-se ver como as

Associações são vigilantes quanto a essa questão – respondendo a uma pergunta sobre a

importância da Associação ele diz:

“É muito impor tante, não é? Porque a gente fica conhecido... senão ninguémsaber ia nada da Segunda Guer ra Mundial, não é? Nem na escola não falanada...inclusive a Associação pede para a gente usar sempre a ‘cobr inha’[Insígnia com o símbolo da FEB]...para chamar a atenção dessamocidade...que às vezes acham que a gente é médico, não é? Aí é que a gentefala o que é. É muito bom, não vamos deixar acabar , porque já estáacabando mesmo...a maior ia está morrendo tudo...nós estamos chegando nofim.”313

Pelo lado das Forças Armadas, as iniciativas envolvendo a memória da FEB têm se

tornado mais enfáticas com o tempo. Exemplo paradigmático disso é o ambicioso projeto

“História Oral do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial” concluído no ano de

2001. Composto por mais de duzentas entrevistas, e organizado em oito grandes tomos, tal

intento levou cerca de três anos para ser concluído, e conta com a colaboração de

numerosos veteranos das mais variadas patentes e regiões do país, indivíduos ligados às

310 Infelizmente não tive contato com o veterano citado, portanto não sei ao certo ao que remete oqualificativo “gagá”.311 Entrevista com H. Medeiros, Belo Horizonte, dezembro/2002.312 Entrevista com J.J. Silva, Juiz de Fora, dezembro/2004.

221

tarefas de patrulhamento do litoral, oficiais de outros exércitos aliados, alguns

representantes da FAB entre outros. Quanto aos objetivos,

“Dos pr incipais aspectos que ensejaram a realização desta impor tanteatividade, sem dúvida, um foi pr imacial – a possível utilização de grandenúmero de colaboradores, ainda não explorados, pelo muito que significampara o contexto histór ico da presença decisiva do Exército no evento emquestão. O Projeto tenciona, ainda, tornar mais conhecidos esses marcantesepisódios, a fim de que as próximas gerações possam dispor de fontesfidedignas para o estudo dos processos histór icos castrenses. Permitirá aformação de precioso acervo, aber to à consulta, ao estudo e à pesquisa...”314

Interessante lembrar que iniciativa semelhante – “Projeto Memória Militar” – já havia sido

iniciado três décadas atrás, mas que, por razões não detalhadas, acabou não sendo

concluído. Por sua vez, os idealizadores da HOESGM afirmam ter retomado tais propostas

de modo a concluí-las. Nessa primeira iniciativa durante a década de 1970,

“Implementado no Clube Militar , seu formato e concepção or iginaisapoiavam se nos relatos de vida e de car reira de ilustres membros da ForçaTer restre, cujas vivências situavam-se nos cenár ios de maior expressão esignificado da Histór ia do Exército. Conhecido como Projeto Memór iaMilitar , teve como gerente o Coronel de Engenhar ia e Estado-MaiorAsdrúbal Esteves, ele própr io veterano da Força Expedicionár ia Brasileira.Sua duração foi efêmera, mas os resultados, devidamente preservados peloInstituto de Geografia e Histór ia Militar , continuam a servir aos ideais maiselevados de seus promotores.”315 (grifos meus)

Por sua vez, o projeto recém finalizado, visando compartilhar das novas perspectivas

teórico-metodológicas da história, como evidenciam os organizadores, procurou dar novos

ares à história da FEB. Tal dimensão fica explícita na preocupação em discutir, mesmo que

brevemente, alguns aspectos ligados à metodologia da história oral e à concepção do

projeto, bem como na valorização das versões conflitantes típicas da memória, além de

elementos como as “emoções” e “vivências” da história. Tal abordagem, certamente, deve

ser vista como um avanço, mesmo que tarde, na percepção que as Forças Armadas têm de

‘seu’ passado. O projeto, apesar de contar com um formato de realização das entrevistas um

313 Entrevista com S. Ribeiro, Cristina, março/2005.

222

pouco rígido e às vezes tendencioso, em minha opinião, não deixou de dar uma autonomia

considerável aos depoentes que, em diversos momentos, não deixaram de fazer críticas àrecepção dos veteranos feita pelo Governo e pelo próprio Exército, bem como, sobretudo

entre os praças, falar da experiência de guerra das baixas patentes: fugas, mulheres,

‘tochas', autoritarismo, os boatos sobre turismo etc. Com isso, o projeto conseguiu colher

uma rica gama de depoimentos, que perpassa vários dos níveis priorizados por diferentes

sujeitos históricos.

No que toca ao complicado processo de reincorporação social dos veteranos, vê-se

que, pelo roteiro das perguntas feitas aos depoentes, em nenhum momento tais assuntos

foram abordados. O objetivo do projeto foi conceber um acervo sobre a guerra

propriamente dita, de forma que as críticas feitas, geralmente, surgiam no âmbito das

últimas perguntas: “Na sua opinião, quais as conseqüências para o exército da participaçãodo mesmo no conflito?” e “Quais as conseqüências na sua vida pessoal?” – ou seja, um

espaço de liberdade dado aos depoentes e que, na versão final, foi veiculado316.

Certo é, entretanto, que o momento em que tal projeto vem à tona não é, de forma

alguma, uma coincidência. Não tenho dados para mostrar porque a iniciativa de trinta anos

atrás não logrou êxito, mas, certamente, questões políticas estariam entre as explicações –Deve ser lembrado que, até então, os veteranos não contavam com a pensão definitiva que

veio só em 1988, bem como não eram bem quistos, como hoje, entre os militares da ativa.

Creio que um dos próprios veteranos entrevistados pelo projeto explica o porquê do fato de

um trabalho como esse ter vindo à tona apenas 55 anos após o término dos conflitos:

314 “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”, Tomo Um, p. 2.315 “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”, Tomo Oito, p. 1.

223

“Agora o ex-combatente está renascendo porque não faz mais sombra paraninguém, todo mundo está cr istalizado. O própr io convívio ficou melhorporque antes havia de um lado os abonados e do outro os demais, osmiseráveis. Era assim.”317

Em outros termos, fica claro que certas memórias, para vir a público e serem toleradas

pelos “sujeitos guardiões do passado”, dependem de condições históricas específicas – ou

seja, a partir do momento em que deixam de ser ‘perigosas’ para instituições e para

indivíduos. Para esses últimos tais imbróglios são ainda mais dramáticos, pois se podem

esperar anos, até mesmo décadas, para que nossas memórias encontrem alguma aceitação e

ressonância entre a sociedade e os poderes públicos. Nesse ínterim, desde a volta da FEB,

sabe-se que as coisas não de deram de forma tão harmônica, daí os impasses:

“Dentro da instituição militar , os oficiais que prefer iram per manecer noBrasil (...) temiam ser preter idos nas futuras promoções pelos oficiais epraças expedicionár ios, que podiam exibir exper iência em combate rela,condecorações e promoções conquistadas no front. A recepção dos militaresfebianos regulares nos quar téis foi fr ia e até mesmo hostil. Por seu turno, acúpula hierarquia militar brasileira contr ibui para as dificuldades dosmilitares febianos, destacando-os para guarnições distantes e nãodesenvolvendo nenhuma forma de aproveitar a exper iência de combatentes...”318

Em suma, tal projeto do Exército faz parte de uma iniciativa ainda mais ampla de

produção de acervos orais. Um outro trabalho, já concluído, trata da polêmica “Revoluçãode 64” e, certamente, aí há, igualmente, bastante roupa suja a ser lavada – resta saber atéonde as Forças Armadas estão dispostas a ir319. Quanto ao caso da FEB, apesar do Exército

ter dado esse passo digno de nota, no que toca às cerimônias e manifestações públicas,

ainda há muito a ser revisado – como veremos a seguir. De qualquer maneira, tais

iniciativas são bastante válidas e importantes, bem como exigem muito espaço e tempo

316 A versão final das entrevistas foi textualizada, o que levou à supressão das perguntas. Tive acesso a estas,por sua vez, junto a um dos meus entrevistados que participou como colaborador do tal projeto, e quegentilmente me cedeu uma cópia da primeira versão da entrevista que fez com os militares.317 “História Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial”, Tomo Sete, p. 16. Entrevista com o bacharelOudinot Willadino.

224

para serem analisadas. Deixo aqui apenas algumas impressões a fim de cobrir esse

importante evento no âmbito da história da memória da FEB e dos veteranos.

Para alguns, a memória público-oficial ajudou/ajuda na reconciliação com o passado

da guerra e da reincorporação, outros não têm a mesma sorte, restando o silêncio e a

marginalização – isso demonstra a importância de se construírem leituras plurais e

tolerantes do passado, que evitem um discurso homogeneizador em qualquer dimensão.

Trabalhando com depoimentos de perfis diferentes, é possível ver como a memória dos

veteranos se altera de acordo com as variações de sentido da memória coletiva definida

pelas Associações e Forças Armadas, bem como em que medida, a despeito da pressãoveiculada pelo mito, não se ‘esquecem’ de certos elementos centrais às suas identidades.

Exemplo disso pode ser notado na forma como os veteranos lidam com suas

memórias no espaço de suas casas. Visitando vários veteranos pude perceber como, em

alguns casos, tudo nos cômodos lembra a guerra: fotos, diplomas, certificados de

congressos, enfeites etc – ao passo que, em outras casas, dificilmente sabe-se que o

morador lutou na Segunda Guerra Mundial. De acordo com Thomson, “A presença e

proeminência físicas da memorabilia dos tempos da guerra indicou a continuidade do

significado emocional das memórias da mesma, bem como das identidades evocadas e

reiteradas por eles”320. Tudo isso, como não poderia deixar de ser, evidencia o que foi

priorizado no complexo jogo pela identidade. Mas é claro que, nesse jogo, as forças em

disputa e negociação não são iguais, o que torna o tão almejado equilíbrio difícil de ser

atingido.

318 FERRAZ, “Os veteranos da FEB e a sociedade brasileira”, p.375.319 Quanto a esse segundo trabalho, não obtive acesso.

225

Tais dinâmicas portam um caráter fundamentalmente político – disputas pelo passado

são equivalentes a disputas pelo poder – de modo que privilegiando uma ou outra versãodos fatos, ou, ainda pior, quando impera o esquecimento, como se dá no âmbito civil, e por

muito tempo no militar, no caso da FEB, os ressentimentos tendem a se exasperarem, o que

torna peculiar as lembranças e identidades de um dado grupo ou indivíduo. Uma das formas

mais comuns de ação política oriunda dos ressentimentos – vale lembrar aqui, também, o

caso dos “patos d’água” – e o fortalecimento da solidariedade grupal:

“Se somos vítimas de indivíduos que nos prejudicam e ferem nossasliberdades, exper imentamos e estimamos que estes indivíduos sejammalévolos, enquanto nós ser íamos os bons. As forças que me são hostis sãonefastas e perversas, enquanto eu própr io sou justo e inocente do mal que meé feito. Por tanto, os ressentimentos, os sentimentos compar tilhados dehostilidade, são um fator eminente de cumplicidade e solidar iedade nointer ior de um grupo, e suas expressões, as manifestações podem sergratificantes. O ódio recalcado e depois manifestado cr ia uma solidar iedadeefetiva que, extrapolando as r ivalidades internas, permite a reconstituição deuma coesão, de uma for te identificação de cada um com o seu grupo.”321

Por fim, é a partir das comemorações dos veteranos – a serem discutidas no próximo e

último tópico – que se poderá vislumbrar a dimensão prática deste, e de outros, elementos

característicos da memória da FEB.

vIII.3 Memór ia e comemoração

Em vista do que foi dito acima, vale perguntar: até que ponto o indivíduo é anulado

pela solidariedade grupal? E qual é o poder e a efetividade dos sujeitos ‘produtores’ de

320 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.186. No original: “The physical presence and prominence ofwartime memorabilia indicated the continuing emotional significance of memories of war, and of identitiesthey recalled and reafirmed.”321 ANSART, Pierre. “História e memória dos ressentimentos” In: BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia(orgs.). “Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível” Campinas: Editora da Unicamp,2001. p. 22.

226

elementos de convergência identitária e “enquadradores” dos discursos da memóriacoletiva? Fomos a campo responder.

Entre 05 e 09 de setembro de 2004, realizou-se em Belo Horizonte o XVI Encontro

Nacional dos Veteranos da FEB. Não por acaso essa data foi escolhida, o Encontro se daria

durante a semana do 7 de setembro e, dessa forma, o desfile do dia da Independência faria

parte das comemorações dos 59 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos

a freqüência dos Encontros vem crescendo, de bienal, passou a ser anual e, no ano de 2005,

foi realizado outro grande Encontro em comemoração aos sessenta anos do fim dos

conflitos.

Os Encontros ocorrem estritamente no âmbito militar, são organizados pelas

ANVFEBs, com apoio logístico e material das Forças Armadas – sobretudo do Exército –,e contam com a participação dos veteranos e seus familiares: esposas, viúvas, filhos, netos

etc. Na programação dos eventos, constavam: uma missa e um culto evangélico, almoços

diários em parques, clubes e unidades das Forças Armadas, visitas a locais turísticos, o

“Desfile Cívico Militar” do 7 de setembro, concerto musical com a Orquestra da Polícia

Militar de Minas Gerais, visita ao PAMA – Parque de Material da Aeronáutica de Lagoa

Santa –, homenagens junto ao monumento da FEB na Praça Afonso Arinos. No último dia,

formatura e entrega de medalhas no 12o Batalhão de Infantaria, a reunião dos presidentes

das regionais, da direção central e do conselho deliberativo e, por fim, o encerramento do

encontro com um jantar dançante no Clube Militar dos Oficiais de Belo Horizonte. Os

eventos são coordenados pelo Exército, bem como as homenagens, discursos e entrega de

medalhas são feitos por militares da ativa, no caso o General de Divisão Paulo César de

Castro, então comandante da 4o Região Militar.

227

Tais eventos cumprem uma função muito importante no âmbito da memória da FEB e

dos veteranos – apesar de não parecer, pois é realizado nos meios militares, restrito a estes

e, contando com uma cobertura mínima/burocrática da imprensa civil, nada, ou quase nada,

é acessível ao público em geral. Apesar dos veteranos sempre estarem reclamando da

questão do esquecimento, é intrigante o fato da organização dos Encontros ser tão fechada

– eu mesmo, como pesquisador, tive que explicar porque queria participar do Encontro e

dependi da boa vontade dos organizadores, por sorte, alguns dos depoentes que já havia

entrevistado. As cerimônias oficiais e homenagens portam um forte caráter formal e focado

nas autoridades presentes no Encontro322; nas tribunas de honra, os únicos veteranos são os

presidentes da ANVFEB/BH e da sede nacional. Os discursos fundam-se na sacralização da

nação, dos soldados sacrificados em prol da pátria etc. Apesar de tudo, na aparência, os

veteranos adotam trajes civis e não portam armas nos desfiles, ao contrário dos ex-

combatentes da AECB, que usam uniformes militares nessas ocasiões. Nesse contexto,

deve-se ficar atento para as funcionalidades políticas das festas, ou como diria Claude

Riviére, às “liturgias políticas”: legitimação, hierarquização, moralização e exaltação323.

“‘A cerimônia diferencia-se da festa’ [e ambas estão presentes nos Congressos], diz Jean-

Jacques Wunemburger, ‘porque não implica uma participação ativa de todos os membros

do grupo social. Ela supõe que o contato com o sagrado é regulado, limitado, na verdade

delegado a um certo número de eleitos’”324.

Os debates existentes sobre festas e comemorações são extensos, de forma que não éesse o momento para fazer longas exposições. De qualquer forma, tanto quanto extensos,

322 Durante a Ditadura Militar, nas datas comemorativas da FEB, como o Dia da Vitória, ou 8 de maio,compareciam várias autoridade políticas, dentre elas, freqüentemente, os próprios presidentes da República.323 RIVIÉRE, Claude. “As liturgias políticas”, p.11.324 Ibidem. p.13.

228

tais debates são complexos e tendem a estabelecer oposições que variam em função da

abordagem ou princípios teóricos adotados e dos fatos em estudo. Para uns a festa “sintetiza

a totalidade da vida da comunidade onde se realiza”, reproduzindo-a, portanto; outros

colocam que “a sociedade sai de si mesma, escapa á sua própria definição.”325. Dessa

forma, as análises ora afirmam que as festas consistem num momento de inversão, ora

reforçam os valores hegemônicos e ‘naturais’ de um dado grupo. Entre o endosso e a

ruptura com o cotidiano, na verdade, todas as festas não deixam de portar ambas as

características, pois: “Ela não pode ser o local da subversão e da livre expressão igualitária,

ou só consegue sê-lo de maneira fragmentada porque não é apenas um momento de

unificação coletiva, as diferenças sociais e econômicas nela se repetem”326.

Os sujeitos que participam desses eventos cumprem papéis variados. De acordo com

Todorov, pode-se separá-los, grosso modo, em dois grupos: as testemunhas e os

comemoradores. Quanto aos primeiros, “refiro-me ao indivíduo que convoca suas

lembranças para dar uma forma, para dar um sentido, à sua vida, e constituir uma

identidade (...) é o interesse do indivíduo que preside a construção...”327. Por sua vez, o

comemorador é guiado pelo interesse, criando imagens piedosas do passado com vista ao

atendimento de demandas presentes. O próprio Todorov, ainda, afirma que não é a

comemoração a melhor forma de fazer o passado viver no presente, apesar de inevitável,

até porque não é estranho que comemoradores e testemunhas se fundam nos mesmos

indivíduos.

325 GUIMARÃES, Dulce. “Festa da produção: identidade, memória e reprodução social”, p.181.326 Ibidem. p.183.327 TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.151.

229

De acordo com Dulce Guimarães, é de difícil aceitação a idéia de que, numa festa ou

comemoração, a sociedade fuja de si e torne-se inexplicável, de modo que as festas, dessa

forma, sugerem sim uma reprodução das relações cotidianas, o que não quer dizer que nãoexiste certo grau de descontinuidade nesses eventos – aspecto que vai variar, como se disse,

de festa para festa. Igualmente, falar em total inversão dos valores é forçar o argumento,

pois, geralmente, a própria organização das festas e comemorações é levada a cabo pelos

sujeitos que dominam a cena ou, no mínimo, sofre forte influência destes. Por extensão,

pensar-se-á as festas e comemorações aqui como momentos em que se reproduzem as

relações sociais e de poder do grupo que a promovem328, mas evidenciando que tais

momentos não contam com um caráter totalitário – de modo que, durante esses eventos, os

‘espaços de inversão ou contestação’, mesmo que temporários, são abertos. Isso nãosignifica que tais espaços visem à destruição do discurso hegemônico, na verdade, tais

mediações se explicam, já no caso da memória dos veteranos, pela necessidade de uma

complexa negociação entre as experiências pessoais/individuais e o imperativo da aceitaçãopública. Por fim, conclui-se que há ‘festas’ e ‘festas’, de modo que analisar cada caso

empiricamente, torna-se a maneira mais interessante de se propor uma interpretaçãoprecisa.

Por outro lado, o mais importante, no caso dos veteranos, é a dimensão agregacionista

e de renovação dos laços que os unem desde a época da convocação, das tochas e dos duros

momentos no front – bem como mostrar que, respaldados pelo Exército – essa ‘instituiçãoatemporal’ –, suas memórias e a guerra da FEB permanecerão sempre vivas. Essa

preocupação com o esquecimento é onipresente na fase da velhice e, sobretudo entre

328 GUIMARÃES, Dulce. “Festa da produção...”, p.184.

230

veteranos de guerra, existe uma perspectiva de que seus sofrimentos, da guerra e da volta,

não foram em vão – conforme se dá com os veteranos americanos no Memorial Day:

“Os veteranos sobreviventes das guer ras amer icanas são também honradosnos cor tejos que, par tindo do centro histór ico da cidade, dir igem-se paracemitér ios impecavelmente preparados para a circunstância. No cemitér io,diversas organizações promovem sua homenagem par ticular aos mor tosantes que se desenvolva um cer imonial com a comunidade inteira. Ao mesmotempo que lembra a histór ia da coletividade local, o r ito deixa cadaindivíduo diante de sua futura mor te e a faz esperar a mesma comemoraçãoem seu proveito, eliminando assim o medo de ser esquecido.”329

Tal evento dos veteranos americanos não é monopolizado pelas Forças Armadas, como é o

caso, também, dos festejos e comemorações do Anzac Day de meados dos anos noventa,

conforme averiguados por Thomson: “O Anzac Day é um dia em que se relembra os

colegas que não estão lá. Não é sobre glória, é sobre camaradagem.”330.

No caso da FEB, tal dimensão existe, mas divide espaço com outros elementos, pois

que os eventos são monopolizados pelos valores propagados pelas Forças Armadas. Tanto éassim que, em todos os eventos oficiais de que participei, em unidades do Exército, a

questão do processo de reincorporação e da volta dos veteranos sempre foi ‘esquecida’,apesar de, nas Associações, tais lembranças estarem sempre na pauta das discussões –como se atestou nas abordagens, dos pesquisadores da FEB, acima colocadas. Se num

primeiro nível estabelece-se uma situação de conflito e negociação entre veteranos e as

Associações, a própria memória coletiva/oficial se mostra fragmentada, a partir do ponto

em que tensões e negociações são, também, os princípios primordiais que regem a relaçãoentre a ANVFEB e as Forças Armadas.

Mas então onde estão os ‘espaços de inversão’? Vale lembrar que em um evento

numerosos encontros se dão, há os momentos ‘entre’ as programações, existe o ‘por trás’

329 RIVIÉRE, Claude. “As liturgias políticas”, p.117.

231

das cerimônias, sem contar os boicotes, ou seja, há também os que não comparecem por

motivos vários, bem como os que lá estão por motivos muito além do que os organizadores

imaginam. Caso já citado foi o do veterano W. Soler que, após a volta para o Brasil, nunca

participou de quaisquer comemorações e eventos em respeito ao sofrimento da populaçãoitaliana durante a guerra. Outro veterano, J. M. N., integrante da regional de Juiz de Fora,

reclamou da excessiva aceitação que o Exército tinha para com os praianos. Confidenciou

ainda que, durante um outro Encontro de veteranos em São João Del Rei, um general que,

segundo ele, acolhia demais os “patos d’água”, protagonizou todo o cerimonial: discursou,

entregou medalhas etc. J. M. N. revoltou-se porque o presidente da ANVFEB naquela

ocasião, de posto inferior ao tal general, nada fez, o que o levou a se retirar do quartel e nãoouvir mais nada daquele encontro. Esse veterano nutre considerável ressentimento pelos ex-

combatentes, sobretudo quando soube que, já nos anos 90, de praianos que obtiveram a

pensão antes dele.

Outros, ainda, não compactuam com o forte caráter militar das comemorações ou nãotêm ‘o veterano’ como o personagem central de suas identidades, e simplesmente ignoram

as comemorações – sem contar fatores como saúde, distância etc. Há ainda os que nunca

perdem tais Encontros por ser uma forma barata de viajar junto com os familiares, já que os

maiores gastos ficam às expensas das Forças Armadas.

Em suma, o fato é que se cada ‘festa’ é uma ‘festa’, dentro de uma mesma festa ainda

há várias festas – os sentidos que os indivíduos dão a um evento percorre caminhos que o

melhor planejador de eventos não pode, sequer, chegar próximo ou procurar controlar

completamente. Enquanto os discursos eram feitos e as medalhas entregues, vários

330 THOMSON, Alistair. “Anzac Memories”, p.202. No original: “Anzac Day is a day to remember your

232

veteranos se arrumavam esperando pela hora de desfilar, momento que mais gostavam, pois

eram aplaudidos pelo público, o que os fazia lembrar da chegada no Rio de Janeiro. Outros

‘reclamavam da vida’, reencontravam velhos amigos que moram longe e conheciam seus

filhos e netos, algumas enfermeiras veteranas conversavam logo ali ao lado, ocupando um

pequeno espaço no âmbito de uma memória essencialmente masculina. De repente, algo

chama toda a atenção, um veterano passava mal com o calor e teve que ser retirado de lá –muitos teriam pensado: ‘O fim está próximo’. Depois, mesmo com o hino nacional

tocando, uns continuavam a conversar com os colegas, mas a maioria parou em respeito

àquele símbolo máximo da nacionalidade. Em seguida, já no ônibus em direção a outro

evento: contavam piadas, falavam da convocação, dos medos da guerra, da volta, das

‘senhorinhas’, das dificuldades, das fofocas, dos praianos, do calor que estava naquele dia,

do passado, do futuro.

Por fim, durante um dos almoços no Clube Jaraguá em Belo Horizonte, quando todos

já se dispersavam de volta aos ônibus, e as autoridades – das Associações e militares da

ativa –, que dispuseram de um espaço separado, deixaram o microfone para trás, um

veterano, fugindo do protocolo, assumiu a palavra. Então começou a cantar algumas

músicas italianas da época da guerra e declamar poesias que falam da vida dos soldados,

aos poucos o salão voltava a encher e vários arrumaram pares para dançar. Enquanto isso o

tempo passava e o próximo evento – um passeio no Parque das Mangabeiras – atrasava, foi

preciso que os organizadores insistissem na necessidade de ir embora.

Mesmo sessenta anos depois do fim dos conflitos, a guerra do Exército da FEB ainda

se chocava com a guerra do Exército de ‘Caxias’.

mates who are not there. It’s not about glory, it’s about mateship.”

233

CONCLUSÃO

Roney Cytrynowicz em seu livro “Guerra sem Guerra” , título muito apropriado para

se pensar não só como o evento da Guerra repercutiu no Brasil, mas também a memória

desse evento, afirma que “A Segunda Guerra Mundial não é – até agora – um marco divisor

da história contemporânea do Brasil nem um marco periodizador importante na memóriacoletiva dos seus habitantes...”331, exceto para os veteranos, é claro. As causas disso sãonumerosas: o contingente que foi à Itália era relativamente pequeno, não existiu uma

mobilização real da população brasileira, na volta a FEB foi vista como inimiga política,

sendo alvo de um projeto deliberado de esquecimento e marginalização, há ainda o

complicado processo de reincorporação e a estigmatização dos veteranos e, por fim, a

‘guetificação’ junto às Forças Armadas – vista como a única forma de sobreviverem. Tal

movimento dá mostra de que continuará após o fim dos veteranos, pois, com o fim das

Associações, os únicos espaços que têm se prontificado a receber os acervos são unidades

das Forças Armadas. Essa será a coroação de um processo que vem de longe, que é a

militarização da memória da FEB. Como julgar isso? É bom ou ruim? É certo ou errado?

Não cabe ao historiador responder tal questão, mas sim trazer à tona tais percursos que a

memória faz – ficando ao critério de cada indivíduo as implicações que isso traz. Alguns

veteranos tendem a ver isso de forma negativa, pois seria reforçar a ‘guetificação’ da

memória da FEB. Mas ao mesmo tempo, por outro lado, sabem que essa é a única forma de

mantê-la “acesa”.Para os veteranos, a consciência do esquecimento é muito presente e, se existe outro

elemento perceptível em todos os depoimentos, seria esse. Em geral os veteranos gostam de

331 CYTRYNOWICZ, Roney “Guerra sem Guerra...”, p.287.

234

dar entrevistas, de trabalhos e de pesquisadores da FEB, pois vêem isso como uma forma

de manutenção de suas experiências – e isso, para a maioria do velhos, é uma verdade, pois

a perspectiva do esquecimento gera medos, angústias e humilhações. Tais sentimentos sãoa porta de entrada para o surgimento de uma memória carregada de ressentimentos, que

pode vir à tona de formas variadas. Interessante evidenciar que, entre os veteranos, existe

certo ressentimento em relação às Forças Armadas – identificado, hoje, pelas histórias que

falam da marginalização e da inveja de que foram alvos por parte de integrantes daquela

instituição quando da volta. Por outro lado, ao longo do tempo, muito desse ressentimento

arrefeceu-se, pois que foram sendo aceitos e incorporados à memória militar nacional,

como já se viu. Dessa forma, o maior ressentimento que se vê hoje recai sobre o

esquecimento generalizado existente sobre a FEB. Abundam exemplos disso nos

depoimentos: “Essas coisas aqui no Brasil... o brasileiro esquece tudo, não tem história, nãotem tradição, ele não tem nada... o brasileiro destrói tudo...”332; outros contam casos

bastante amargurados:

Mas ainda existe muita gente, e não é só gente humilde (...) pessoas formadasque continuam pensando que a gente foi à Itália passear (...) nós temosprofessores (...) que não sabem que o Brasil par ticipou da Segunda Guer ra(...) olha, você vai encontrar no meu livro (...) um desabafo. 7 de setembro de1994 (...) eu saí da minha casa, em traje civil, fiquei na avenida ali onde temo desfile de 7 de setembro...assisti ao desfile assim ô...o povo todo assistindo odesfile das escolas...e eu pensei comigo: ‘Bom, com cer teza tem algumaescola aí que vai trazer uma faixa: ‘Homenagem à Força Expedicionár iaBrasileira pelos seus cinqüenta anos de entrada em ação’ (...) Aí comecei aver as escolas passando...faixas assim: ‘Homenagem aos tetracampeões domundo’, ‘Homenagem aos campeões de basquete’, ‘Homenagem à famíliaimper ial’, ‘Homenagem aos campeões de tênis’, ‘Homenagem aoscampeões...’...vár ias faixas homenageando...e nada...‘Quem sabe mais nofinal assim vem’...Aí chegou a última faixa...passado o desfile, veio polícia, játinha passado o tiro de guer ra, já tinha passado a banda de música...aí atrásveio a polícia desfilando, e atrás vieram os cavaleiros, os cavalos troteandoali e uma pessoas puxando uns cães...quinze minutos efechou...[silêncio][emoção] (...) eu saí dali do meio do povo fui paracasa...tr iste, amargurado...não é porque não se lembraram de mim

332 Entrevista com A. Neto., Rio de Janeiro, dezembro/2004.

235

não...ninguém ia lembrar -se de mim, do expedicionár io L. Junqueira...não éisso que eu quer ia (...) eu quer ia que se lembrassem da FEB...uma faixinhapequenininha com ‘Homenagem à Força Expedicionár iaBrasileira...cinqüenta anos de entrada em ação’ (...) [tal fato o levou a escreverum livro] E sabe quem mais me comprou esse livro? Os própr ios ex-combatentes (...) é mais lido pelo ex-combatente do que pelo leigo... ”333

Algumas perguntas faziam com que se lembrassem desses pontos ‘mal resolvidos’, da

desigualdade de memória, dos medos do esquecimento, da humilhação, das lembranças

dolorosas e traumáticas etc.334 – e cada um deles lida de forma diferente com esse

passado/presente problemático: por meio do ódio, do ‘esquecimento’, das neuroses, do

desespero, da fuga, da valorização de certos discursos políticos, das ucronias335 etc. Esse

estado das coisas é extremamente crítico, para não dizer perigoso. O exemplo maior disso,

para ficar apenas entre veteranos de guerra – a despeito da larga diferença entre os casos

brasileiro e europeu –, foi a adesão em massa da ‘comunidade das trincheiras’ de 1914-18 a

333 Entrevista com L. Junqueira, São Lourenço, março/2005.334 THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória...”, p.68.335 Para Alessandro Portelli “ucronia” é um meio que a memória encontra para lidar com os inconformismosda história e da realidade, bem como se relacionar com as frustrações e desapontamentos de nossas vidas: ‘Oque teria acontecido se...’. Nas ucronias, são os temas da “oportunidade perdida” e “do caminho erradotomado pela história” que estão em questão, além das derrotas, versões perdidas e subterrâneas da história eos desejos reprimidos. Tal estratégia da memória é muito comum em contextos pós-guerras e, sobretudo, empessoas que vivenciaram de alguma forma os conflitos – militares ou civis –, pois aguarda-se o paraíso apóster passado pelo inferno, mas o que se encontra, no final das contas, é a realidade dos seres humanos. Entãocoloca um veterano, falando sobre as oportunidades trazidas pela FEB e que foram perdidas pelo Brasil:“... nós achamos que o pracinha, com toda modéstia, é o grande representante desse país...a grandeinstituição brasileira é a Força Expedicionár ia Brasileira...é a instituição mais nacional que já teve noBrasil...e nós temos muito orgulho disso...de sabermos que éramos humildes, que fomos à guer ra e quecumpr imos uma tarefa difícil com um resultado positivo...nós tínhamos apenas 15.000 homens na linhade frente, apreendemos vinte e tantos mil inimigos...isso quer dizer que cada brasileiro, em média,apreendeu um alemão e meio. Mas se nós levarmos em consideração que o pracinha tinha uma médiade altura de 1,65m, e o alemão de 1,80m...se nós considerarmos essa diferença, cada um prendeu doisalemães, não é isso? (...) E isso é uma demonstração da grande par ticipação da FEB, e do granderetorno que a FEB deu na Itália...mudou a figura do Brasil...a FEB mudou o Brasil, mudou o ExércitoNacional, mudou as Forças Armadas, mudou o aspecto de tudo, mudou a política...o que nós nãosoubemos foi aproveitar disso, nem aproveitar da situação sócio-econômica que o Brasil trouxe, e nemsocial, da posição que o Brasil colocou frente ao mundo com a sua par ticipação na guer ra...nãosoubemos aproveitar isso...o Brasil não soube aproveitar isso...nós podíamos ter par tido para par ticipardo pr imeiro mundo...mas a nossa política só deu para trás...” Entrevista com D. Medrado, Belo Horizonte,outubro/2001. Em última instância, a função do ucrônico é sustentar a esperança: “Se o passado serve parajustificar o presente, uma vida de luta deve ser vista como um sucesso para dar sentido de auto-estima eidentidade pessoal”. Em suma, é, sobretudo, por meio das fontes orais que podemos ter acesso a essas versões

236

uma das ideologias políticas que mais nutria ressentimentos em relação ao passado: o

Nazismo. Setores inteiros da população vinham sofrendo com o ‘esquecimento’ e o descaso

dos dirigentes políticos e pela ineficiência e vagareza da social-democracia do entreguerras

– externamente, vinham sendo penalizados desde 1918 pelo Tratado de Versalhes e por

uma política-econômica que parecia esquecer que existiam pessoas, sobretudo pessoas com

necessidades. Esse quadro, atualmente, não nos é muito estranho – e, entre os próprios

veteranos, as perspectivas sobre a política atual são estritamente pessimistas e

desesperançosas, aliás, como na maior parte do mundo ocidental hoje. Junto da banalizaçãoda violência, da pobreza, das desigualdades, dos abusos do poder, da corrupção, vem o

medo e, se hoje colocarmos na balança, veremos que o ‘o medo está vencendo a esperança’– como atesta um veterano avaliando a situação presente à luz do passado:

“... Revolução de 64 foi muito benéfica para o país. Porque a pessoa, naépoca, tinha liberdade... você podia sair qualquer hora do dia e da noiteporque não tinha assalto, não tinha trombadinha, não tinha assalto a banconão tinha nada... não tinha desemprego... a Revolução de 64 implantou aindústr ia no país... aquela questão do asfaltamento das estradas... arevolução trouxe muitas melhor ias para o país. Agora, hoje, infelizmente, osnossos políticos tratam a Revolução de 64 com verdadeiro desleixo... diz queo culpado dessa situação foi a Revolução de 64... ora, a Revolução de 64moralizou o país, foram os anos em que todo mundo trabalhava, você nãovia mendigo na rua, você não via essa questão, repito, assalto, trombadinha,seqüestro... não via nada disso... nesta gestão da democracia, os mauspolíticos estão avacalhando o país... tinha que acabar com esses mauspolíticos, mas o povo vota mal...”336

Lembrando que opiniões políticas desse tipo, não são encontradas apenas nos discursos

conservadores das direitas, mas, igualmente, nos blá blá blás revolucionários das esquerdas

autoritárias.

Por fim, vale colocar que o objetivo deste trabalho não foi, de modo algum, construir

uma “história piedosa” dos veteranos. Não era minha intenção ‘resgatar a memória’ da FEB

marginalizadas pela história e pela memória coletiva. PORTELLI, Alessandro. “Sonhos Ucrônicos. Memóriase possíveis mundos dos trabalhadores” Projeto História, São Paulo, 10, dez 1993, p.41-58.

237

do esquecimento, até porque não é essa a função da boa história e, creio eu, a memória nãoprecisa e não deve ser ‘resgatada’ como uma donzela em perigo. À pergunta: ‘É melhor

esquecer ou lembrar?’, concordo com Todorov quando responde que isso é relativo ao

contexto é às circunstâncias. Dessa forma, como humilde contribuição, ofereço uma análise

histórica crítica da memória de certo grupo, num momento em que isso parece ser

proveitoso. Os estudos sobre a memória devem existir não para sacralizá-la, mas para

elaborá-la, depurá-la, incentivar o debate, a reavaliação e a tolerância, ou seja, como um

instrumento para algo muito mais amplo e que foge aos domínios da história acadêmica, o

“Trabalho de memória”, tarefa política, por excelência, que a sociedade civil, e mais

ninguém, deve se ocupar e se mostrar responsável. Sem esquecer que o passado não deve

pesar como uma obrigação que impeça o desenvolvimento do presente e o surgimento das

expectativas futuras, conforme coloca Todorov:

“Romain Gary nunca desejou intimidar os seus contemporâneos com a idéiade um dever de memór ia generalizado. Ninguém conseguir ia lembrar -se detudo nem, aliás, esquecer tudo: as recordações dolorosas estão ali, emboraprefer íssemos separar -nos dela. E o que, conscientemente, decidimosconservar é aquilo que nos dá prazer : não há grande mér ito nisso. Contudo,o passado não deve ocultar o presente. ‘Tenho hor ror ao gênero antigocombatente para sempre. A vida é feita para recomeçar . Eu não me reúno,não comemoro, não reacendo’ [disse Gary]. Gary tampouco gosta de imagenspiedosas, ainda que sejam a dos grandes homens. (...) isso não implica emabsoluto que convenha remover o passado: ‘Está em mim e sou eu’.”337

336 Entrevista com N. Silva, Belo Horizonte, março/2003.337 TODOROV. “Memória do mal, tentação do bem...”, p.267.

238

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Rio de Janeiro/RJ.

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Belo Horizonte/MG.

239

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