A Era do(s) Jazz - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo IV

53
1 Da Belle Époque à Era dos Jazz “Após a Primeira Guerra Mundial, cristalizaram-se, a partir da América do Norte, dois elementos fundamentais no crescente setor de lazer dos países do mundo ocidental: o cinema e os salões de dança animados por jazz bands. Esta nova expressão disseminou-se de tal forma que a década de 20 foi, por obra do escritor Scott Fitzgerald, chamada de Era do Jazz”. Zuza Homem de Mello, em Música nas Veias: Memórias e Ensaios (2007, Editora 34) Era 1900 e, em determinado momento daquele ano, o quase menino Octavio Dutra acabava de dar os últimos retoques em sua primeira composição, singelamente intitulada Valsa Nº 1. Uma valsa brasileira, gaúcha, porto-alegrense. Sem que ele pudesse imaginar, nesse exato instante estava sendo parido o século XX na música de sua cidade. (Ok, ok, a gente sabe: o século XX começa em 1901, mas não dava pra perder essa licença poética e, sim, o sem-graça mandou lembranças.) * * * O Rio Grande de São Pedro adentrava a nova centúria com 1.149.070 habitantes. Um décimo era de estrangeiros em busca de uma vida melhor neste que era o terceiro poder político e econômico da Federação, perdendo apenas para Rio e São Paulo. Os três estados reuniam 60% das indústrias e metade do minúsculo eleitorado nacional – só votava quem sabia ler e escrever (de cada 10 gaúchos, sete não sabia). Porto Alegre, então a sexta cidade brasileira em população, tinha 73.274 habitantes – a primeira era o Rio de Janeiro, depois vinham São Paulo, Salvador, Recife e Belém do Pará. No dia 24 de outubro de 1903 morria uma das maiores figuras – para o bem e para o mal – que a política do Estado já pariu: Júlio de Castilhos. Tinha 43 anos e um câncer na garganta. Obsessivo apóstolo do positivista Augusto Comte, Júlio foi o grande patriarca de uma tradição que se sedimentava desde 1898, com seu discípulo Borges de Medeiros. Como presidentes do Estado pelo PRR, Partido Republicano

Transcript of A Era do(s) Jazz - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo IV

1

Da Belle Époque à Era dos Jazz

“Após a Primeira Guerra Mundial, cristalizaram-se, a partir da

América do Norte, dois elementos fundamentais no crescente setor de lazer dos países do mundo ocidental: o cinema e os salões de dança animados

por jazz bands. Esta nova expressão disseminou-se de tal forma que a década de 20 foi, por obra do escritor Scott Fitzgerald, chamada de Era do

Jazz”. Zuza Homem de Mello, em Música nas Veias: Memórias e Ensaios (2007, Editora

34)

Era 1900 e, em determinado momento daquele ano, o quase menino Octavio Dutra acabava de dar os últimos retoques em sua primeira composição, singelamente intitulada Valsa Nº 1. Uma valsa brasileira, gaúcha, porto-alegrense. Sem que ele pudesse imaginar, nesse exato instante estava sendo parido o século XX na música de sua cidade. (Ok, ok, a gente sabe: o século XX começa em 1901, mas não dava pra perder essa licença poética e, sim, o sem-graça mandou lembranças.)

* * *

O Rio Grande de São Pedro adentrava a nova centúria com 1.149.070 habitantes. Um décimo era de estrangeiros em busca de uma vida melhor neste que era o terceiro poder político e econômico da Federação, perdendo apenas para Rio e São Paulo. Os três estados reuniam 60% das indústrias e metade do minúsculo eleitorado nacional – só votava quem sabia ler e escrever (de cada 10 gaúchos, sete não sabia). Porto Alegre, então a sexta cidade brasileira em população, tinha 73.274 habitantes – a primeira era o Rio de Janeiro, depois vinham São Paulo, Salvador, Recife e Belém do Pará.

No dia 24 de outubro de 1903 morria uma das maiores figuras – para o bem e para o mal – que a política do Estado já pariu: Júlio de Castilhos. Tinha 43 anos e um câncer na garganta. Obsessivo apóstolo do positivista Augusto Comte, Júlio foi o grande patriarca de uma tradição que se sedimentava desde 1898, com seu discípulo Borges de Medeiros. Como presidentes do Estado pelo PRR, Partido Republicano

2

Riograndense, os dois exerceriam seu absolutismo quase imperial por 37 anos – com uma mistura bizarra de lisura administrativa e fé cega, que justificava perseguir, matar e cometer as mais variadas barbaridades. Durante sua vigência, pelo menos dez mil cidadãos tiveram de emigrar para países ou estados vizinhos pra salvar a pele. Afinal, o lema de Castilhos era: para os correligionários, tudo; para os adversários, a lei – na prática, aos opositores não restava nem ao menos esta última opção.

Julio de Castilhos: Família, Pátria e Humanidade.

3

Borges de Medeiros e os bigodes da austeridade.

* * *

As bandas de música eram as grandes atrações dos coretos de

todas as praças dignas desse nome, encarregando-se da maior parte da trilha sonora pré-rádio e pré-disco. Radamés Gnattali, nascido no bairro do Bom Fim em 1904, lembrava, 70 anos depois:

Naquele tempo, em Porto Alegre, eu não ouvia música, só tocava. Tocava Villa-Lobos, Nazareth, meu pai comprava tudo [em partituras, claro]. Ouvir, mesmo, só muito tempo depois, com 24, 25 anos, quando já tinha vitrola.

Ver a banda tocar nos finais de semana era programa obrigatório. E tentar fazer o mesmo nas noites de dias úteis, idem. Tentar ver, né?, porque a iluminação era totalmente precária. Mas a bem da verdade, a vida noturna das ruas começava a se incrementar desde o final do Oitocentos, graças à maravilha dos postes elétricos – ainda poucos, mas já espantando poetas, conservadores e meliantes, todos achando aquilo um abuso de claridade.

Em 1900 e pouco, Alberto e Roberto Eggers (este último: Porto Alegre, 18/12/1899 – Porto Alegre, 14/5/1983) são os primeiros de uma longa lista de meninos-prodígio que vão abrilhantar esse começo

4

de século na capital: Alberto na flauta e Roberto ao piano. O segundo vai ser um respeitado maestro, para quem não faltará trabalho até o final dos anos 1960. Já Alberto se dedicará mais à composição de valsas como Almerinda – hit local de 1907 – e Corazón Que Sufre – editada em Buenos Aires.

Um tango argentino de... Roberto Eggers.

Alguns bairros fervilhavam especialmente, graças à mistura de

diferentes culturas, diferentes imigrações. O resultado foi eternizado em poucos registros, como o de um álbum de composições do descendente de italianos (talvez italiano de nascença) F. Perrone. Os Perrone eram moradores do Bom Fim, como os Gnattali – o já citado Radamés, Aída Gnattali e mais uma penca de grandes músicos sobre os quais você vai ler daqui a alguns capítulos.

Perrone não ficou imune à convivência entre italianos, negros e judeus, que, tanto quanto se possa imaginar, se frequentavam na Santa Paz da Concordância. Bandolinista, deixou um álbum impresso com dezenas de composições para o instrumento. Algumas, como a tarantela Caprichosa, refletindo claramente a (con)fusão entre ritmos italianos e escalas e sotaques da música klezmer dos judeus que moravam ali em volta, num crossover de fazer inveja aos anos 1990.

5

O início sistematizado da imigração judaica para o Rio Grande do Sul se dá em 1904, com a vinda do primeiro grupo que iria se estabelecer em Santa Maria, na colônia Philipson – imigrados através da Jewish Colonization Association. A entidade, fundada pelo Barão Maurício de Hirsch, fora criada para viabilizar colônias agrícolas judaicas na Argentina e no Rio Grande do Sul. Quem vinha para este lado do Atlântico, na sua maioria tinha sofrido perseguições de toda espécie em seus países de origem. Em 1909, compram a fazenda Quatro Irmãos, em Passo Fundo, que é dividida em lotes entre gente vinda da Argentina e da Bessarábia. Daí já dá pra sentir a pororoca cultural. Em 1927, mais famílias: desta vez da Lituânia e da Polônia, na maioria judeus de cultura askenazim. São esses que vão acabar ficando pela capital, estabelecendo-se como comerciantes e, com crediário, revolucionando o comércio local.

Outro nome dessa cena é o compositor Francisco de Leonardo Truda, autor de belezinhas como o schottisch Violetas – composto na década de 1910 e fiel retrato da Belle Époque porto-alegrense. Truda também era o editor do jornal musical O Guarany (não confundir com o outro Guarany, editado também na capital 30 anos antes). Leonardo foi figura de alguma expressão e, em 1923, presidiria o Centro Musical Porto-Alegrense, que contava com uma orquestra de 60 figuras.

Quanto ao Guarany, conservou-se apenas seu número seis, e em péssimo estado. Data de 10 de maio de 1906 e tem como principal destaque a partitura de uma bela valsa chamada Souvenir, que não faria feio a Nino Rota, mas foi composta por um conterrâneo seu, o italiano radicado em Porto Alegre A. Ímola. A pequena biografia que acompanha a partitura dá conta de que Ímola era trompista da Orquestra do Teatro Scala de Milão e que, antes de chegar à cidade, passou pelas melhores sinfônicas da Argentina. A conclusão do texto é um primor:

Infelizmente dava-se o distincto músico ao uso do álcool, que o arrastou a um quarto da Santa Casa de Misericórdia onde morreu, há poucos annos.

Mais um esquecido é J. Bicudo, autor do maxixe Berimbau Não É Gaita, composto em 1922 ou 23. Título, aliás, que hoje é uma expressão popular – até Renato Borghetti tem um disco chamado Pensa Que Berimbau é Gaita? Resta saber se à época a frase já existia, ou se ela popularizou-se em função dessa pequena joia instrumental.

6

Um que não nasceu, mas passou muitos anos em Porto Alegre, é o carioca (de 03/09/1899) Augusto Vasseur. Começou a estudar música na capital gaúcha, aos oito anos de idade. Aos 13, já estava no Instituto de Belas-Artes. Aos 15, estreou como compositor num chote chamado Morena. Na adolescência, voltou ao Rio, diplomou-se com medalha de ouro no Instituto Nacional de Música e se veio a se tornar um dos mais destacados pianistas e violinistas dos anos 1920. Até sua morte, no Rio de Janeiro, em oito de dezembro de 1969, alternaria seu desempenho entre o violino erudito – chegou a ser spalla da orquestra do Teatro Municipal – e o piano popular, com direito a composição de marchinhas, foxes e sambas carnavalescos.

Olha a turma: Ary Barroso e Augusto Vasseur, lado a lado. Sentado, Luiz Peixoto.

* * *

Empolgado com toda essa movimentação, o empresário

Marcelino Herrera inaugura, na rua da Praia, o Odeon Variedades. Seria o primeiro café-cantante da cidade, nos melhores moldes parisienses e cariocas. Uma novidade palpitante…

…que não dura dois meses (e no Rio já faziam sucesso há meio século, gerando o subproduto chamado chope berrante, que explodiria na década de 1900, e seria, a gênese da cultura do boteco com mesas na rua – muito em função da cervejaria Brahma, que já dava as mesinhas e cadeiras em troca da exclusividade da venda de seus produtos

7

alcoólicos, que só a partir daí foram substituindo o vinho no gosto popular).

A literatura porto-alegrense também fervia, com a geração de Eduardo Guimaraens (autor do clássico local A Divina Quimera, de 1916), Felippe d’Oliveira, Alceu Wamosy, Álvaro Moreyra e Marcelo Gama. Todos com os pés fincados no simbolismo, ainda que com pitadas de niilismo e até de sua variante mais, digamos assim…, gótica: o penumbrismo. Logo começará a aparecer outra geração de respeito, que terá seus pontos altos no pelotense Simões Lopes Neto, Alcides Maya, Augusto Meyer e o Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Alguns dos mais velhos, como Maya, Moreyra e Gama, convivendo diariamente com uma gurizada que daria muito o que falar (Dyonélio Machado e Eduardo Guimaraens, entre outros) nos “pontos de encontro” obrigatórios dos letrados: ou a Praça da Harmonia, no comecinho da rua da Praia (não por acaso, apelidada então de “Praça dos Poetas”), ou a Praça da Caridade, diante da Santa Casa. Enquanto isso, as possibilidades de formação para um aspirante a musicista nascido na capital multiplicavam-se. No mesmo 1908 em que a Carris substitui os burros que puxavam os bondes pela revolucionária tração elétrica, inaugura-se o Conservatório de Música do Instituto Livre de Belas Artes. O popular Belas-Artes, futuro Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tem no seu primeiro time de professores nomes de peso da música erudita local como Murilo Furtado, e seu diretor seria Araújo Vianna. Vai ser ali que, ao longo de todo o século e adentrando o milênio seguinte, virão a se formar muitos dos melhores músicos do Estado. Eruditos e populares.

(Já não era sem tempo o caso dos bondes. Como conta Achylles Porto Alegre, nos últimos anos da tração animal, só um santo podia andar de bonde sem perder a paciência. Em compensação o primeiro automóvel da cidade chega em 1906.).

Esquina da Rua da Praia com a Senhor dos Passos, na virada do século

8

Rua da Praia, cerca de 1900. Foto do lendário Calegari

No mundo lá fora, dia 23 de outubro de 1906, Santos Dumont

decola do Campo de Bagatelle, em Paris, a bordo de seu 14-Bis. Estava inventada a aviação. Apenas dezenove anos depois, 1927, a VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense – seria a primeira empresa aérea brasileira e uma das primeiras do mundo. Seu voo inaugural, em três de fevereiro, criou a linha Porto Alegre-Rio Grande. Logo, com apoio do presidente da província, Getúlio Vargas, que isentou a empresa de impostos por 15 anos, seus hidroaviões (sim, eram hidroaviões) sedimentariam a rota Porto Alegre-Pelotas-Rio Grande como uma das primeiras do planeta.

No ano seguinte ao feito de Santos Dumont, em cinco de março de 1907, Lee D. Forrest faz, em Nova York, a primeira transmissão experimental de um programa de rádio. Doze meses depois, em 16 de março de 1908, era inaugurada em San Diego, Califórnia, a primeira emissora do planeta. Em sete de setembro de 1922, na Exposição do Centenário da Independência, no Rio, aconteceria a primeira transmissão radiofônica nacional. Dois anos depois, 1924, nascia a Rádio Sociedade Rio-Grandense, de Rio Grande (principal cidade portuária gaúcha, 317 km ao sul de Porto Alegre), seguida pela Rádio Pelotense (de Pelotas, cidade ao lado).

Finalmente, em 1927, é inaugurada a primeira emissora da Capital: a Rádio Sociedade Gaúcha (desse novo mundo falaremos nos

9

capítulos seguintes). Porto Alegre era uma cidade em ebulição, com a segunda maior frota de automóveis do Brasil: três mil, perdendo só pra São Paulo.

Mas como as pessoas ouviam rádio? Ora, muita gente correu para comprar seus aparelhos logo que se começou a falar no assunto. Muitos, na verdade, é exagero. Nesse primeiro momento, poucos. Depois é que a novidade foi se popularizando. Afinal, não tinha havido um Savério Leonetti para fazer uma fábrica local de receptores bons e baratos.

* * *

Desde o final do século XIX o Carnaval mudava rapidamente.

Agora havia desfiles de grupos mascarados das mais variadas classes sociais, acompanhados por orquestrinhas ou estudantinas com as mais improváveis formações instrumentais. O Club dos Pierrots, por exemplo, era descrito no Correio do Povo de 24 de fevereiro de 1903 como um conjunto seleto formado por sete violões, um violão espanhol, duas flautas, três violinos, uma bandurra e um cavaquinho. Carnavalizando polcas, valsas, marchas, dobrados, mazurkas, havaneiras, schottischs e até seleções de óperas.

Achou a formação curiosa? Então que tal a Orquestra Mista de um grupo anônimo registrado pelo mesmo Correio do Povo três anos antes? Concertina, ocarina, trombone e instrumentos de papelão.

Ocarinas da época

10

Concertina

O jornal do governo, A Federação, neste mesmo carnaval de

1900, descreve no detalhe outra dessas formações populares e nunca muito bem organizadas:

E lá se foi o bando onde figuravam dominós de metim de cores

desbotadas, os tradicionais macacos de barba de pau, alguns tipos com casaco virado do avesso e pedaços de pelego nos rostos; tudo isso ao ruído de uma canglorosa corneta, um bombo com a pele frouxa, uma caixa de rufo no mesmo estado, pandeiros, violas, violões, chocalhos, etc.

Um, talvez o mais abastado do grupo, trajava calça e jaqueta de Zuavo, feitas de belbutina e já muito rafadas; completava-lhe a toillete um chapéu de papelão ‘a Directorilo’. A ‘riqueza’ do vestuário conferiu-lhe a honra de levar a bandeira: um pedaço de morim com letreiro ilegível, escrito com pó de sapatos.

E lá se foram eles, todos muito suados, muito ruidosos, muito sujos e sobre tudo… sem nenhum espírito.

Mas, como se disse, mudou rápido. Logo essa folia espontânea ficaria tão elitizada que culminou com a volta das sociedades carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos, em 1906. 20 de fevereiro de 1912, no mesmo A Federação:

Em outros grandes centros as festas de carnaval são a consagração das hetairas da flor do vício. Em nossa capital, porém, os festejos carnavalescos têm um certo cunho familiar, todo provinciano e todo nosso, que fazem o encontro não só do povo, mas também de grande número de forasteiros.

11

Assim devia ser um carnaval que agradasse A Federação: as classes altas dançando nos bailes e desfilando em carros alegóricos pelas ruas centrais. O povaréu assistindo, jogando confete e serpentina, e brincando com lança-perfumes. E assim era: neste 1912, 30 mil pessoas comemoraram deste jeito a festa, na Rua da Praia. Animação total ao som de valsas, polcas, tangos e schottischs! Nesse formato foram até 1928, quando houve o último desfile com carros alegóricos.

Mas também havia os blocos. Desde os rivais Chorando na Esquina e Chorando no Meio da Quadra até o refinado Leopoldina Juvenil. Além, claro, da turma (já então) animada da Cidade Baixa. Uma comunidade de bairro – negra em sua maioria – que pulava e dançava sem divisões.

No meio disso tudo, dois nomes disputavam as atenções durante o reinado de Momo e seus meses precedentes: Octavio Dutra e Pedro de Barros. Sobre Octavio tivemos todo o capítulo anterior. Já Pedro era compositor, tocava muito bem violão e venceu a espantosa cifra de dezessete carnavais no início do século, sempre à frente do bloco Os Tesouras (donde saiu o nome do jogador Tesourinha, que hoje batiza o ginásio municipal de Porto Alegre). Décadas mais tarde, o filho de Pedro, Hemetério, seria o fundador de uma das principais Escolas de Samba do Rio Grande do Sul: a Bambas da Orgia.

Octavio Dutra

12

Mas o ano de 1914 seria o último para as grandes sociedades carnavalescas: a I Guerra encerraria imediatamente toda a Belle Époque, e elas iriam junto.

Carnaval… futebol! Já estavam em atividade o Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense (fundado em 15 de setembro de 1903 por uma turma de descendentes alemães) e o Sport Club Internacional (de 4 de abril de 1909, ideia de três irmãos paulistas).

* * *

A década de 1910 assistiu ao boom das revistas musicais em Porto Alegre. Elas surgiram na virada do século e prosseguiriam até os anos 1930 – quando chegaram a elencos de mais de três dezenas de músicos e atores. Uma esquecidíssima paixão gaúcha.

Um dos poucos nomes dessa cena que se quedou registrado é o de Eduardo Fernandes Martins. Mais conhecido como Edu Martins, o cara se dividia entre o trabalho como trombonista do Theatro Colyseu e a regência dos 31 músicos da Banda do Décimo Regimento de Infantaria do Exército.

A partir dos anos 1910, fez nome como compositor de habaneras e dobrados militares, de títulos como Tenente Coronel Francelino ou Capitão Herculano. Músicas registradas em disco tanto para a Casa A Electrica quanto para a carioca Odeon – ali interpretadas pela Banda da Casa Edison. Além, é claro, dos lendários e efêmeros Discos Rio-grandense. Nesses, das 102 gravações, 23 eram da sua banda, e 17 das músicas registradas saíram de sua pena – só perdeu pra Octavio Dutra.

Por volta de 1918, Edu ainda escreveu com o jornalista Pery Borges a revista A Flor do Pampa. A peça musicada seria levada à cena pela Companhia de Sainetes e Variedades, anunciada como a primeira vez em que se pensou um musical com temática regional gaúcha. A abertura já nasceu clássica: A Canção do Gaúcho. Só que os autores brigaram às vésperas da estreia, e proibiram a execução da partitura. Três anos mais tarde, Pery reescreveu todo o libreto. Agora mais para opereta do que para revista, A Flor do Pampa estreou em 1921, numa montagem da Companhia Zaparolli, no Theatro Guarany. A música era a original de Edu, exceto por uma canção: justamente a Canção do Gaúcho, para a qual agora havia outra letra, escrita pelo poeta (e coronel) Faria Corrêa. Foi essa que emplacou, gravada por Francisco

13

Pezzi para a Odeon em 1928 sob o título de Canto de Gaúcho e lembrada até hoje, mais conhecida pelo seu primeiro verso:

Gaúcho eu sou, nasci feliz Nessa terra formosa onde estou, Sob o céu do meu lindo País. Vim lá de fora, Sou laçador. Só não pude laçar até agora O meu amor. Gaúcho forte, À querência voltarei: Do potreiro dos teus olhos Nunca mais me apartarei.

* * *

O mapa de melhoramentos da Porto Alegre de 1914

Em 1910, Porto Alegre já tinha 130.227 habitantes – quase o

dobro da população de apenas 10 anos antes. E 16% eram estrangeiros, na sua maior parte portugueses, italianos e alemães. A taxa de alfabetização era alta para a época: 60%. Alfabetizados que podiam optar entre sete jornais diários (sete!) e, para divertir-se, bailes, saraus, piqueniques e cinemas. Poucos anos depois se comemoraria a tal “remodelação do espaço urbano”. Inspirada na que o prefeito Pereira

14

Passos havia feito no Rio de Janeiro, ela consistiria basicamente na remoção dos pobres do Centro para áreas mais periféricas. Começada pelo intendente e engenheiro militar Otávio Rocha (de 1924 a 1928), pegaria fogo a partir da década seguinte, com Alberto Bins na prefeitura (1928 a 1937) – por trás de uma medida alardeadamente higienista, mal se disfarçava o preconceito. O processo ainda mal iniciara, mas o sentimento já estava ali, só não sabia ao certo a via do seu desafogo. Jornal O Independente, de 20 de março de 1910:

Vagabundos e meretrizes estão pedindo um freio: o Acre está despovoado; ali faltam mulheres; meretrizes descaradas para lá, onde talvez se corrijam. Matto Grosso precisa de homens; vagabundos exportados!

Quem vem bem a calhar com essa vontade de renovar e “limpar” o centro de Porto Alegre é o arquiteto alemão Theodor Wiederspahn. Tão inseparável hoje da cara da cidade que é tratado na intimidade como Theo, o cara assinou nada menos que os prédios do Hotel Majestic (hoje Casa de Cultura Mário Quintana), da Cervejaria Bopp (Shopping Total), dos Correios e Telégrafos (Memorial do Rio Grande do Sul), da Secretaria da Fazenda, do Edifício Ely (Tumelero), da Faculdade de Medicina e por aí vamos. Nasceu em Wiesbaden em 1878, chegou na cidade aos 30 anos, e morreu amargurado em 1952, depois de, a partir da Segunda Guerra Mundial, ser perseguido pelo simples fato de ser alemão.

A Casa Mariante foi a primeira a publicar partituras de compositores locais. Entre 1919 e 1927, trabalhou adoidado, imprimindo em São Paulo. Já pela parte do registro fonográfico, vivia-se a já citada utopia da Casa A Electrica e seus Discos Gaúcho. Efervescência, portanto.

Voltando aos cinemas, o primeiro prédio adaptado exclusivamente para projeção de imagens em movimento é o Recreio Ideal, na praça Senador Florêncio, inaugurado dia 20 de maio de 1908 e equipado com um cinematógrafo Pathé. A partir do final da década de 1910 ele passa a completar o programa dos filmes com shows dos melhores músicos da cidade. Isso, além dos instrumentistas que acompanhavam com música as projeções, e sem contar com as orquestrinhas que tocavam nos saguões, entre um programa e outro. Graças ao cinema, trabalho para músicos era o que não faltava na Porto

15

Alegre dos primeiros anos do século XX. Nem em lugar nenhum do Brasil.

E a cidade estava tomada pela febre cinematográfica. Achylles Porto Alegre, sobre o cinema (lembre: mudo), em 1920:

(…) a “arte do silencio” é hoje a “cachaça” de toda a gente, e a

loucura do bello sexo. O cinema pode dizer-se acabou de matar a “vida em família”,

que há muito tempo já vinha perdendo o seu encanto e desapparecendo.

Isso, em 1920! E segue: À hora em que escrevo, muitos lares estão desertos, porque as

salas dos cinemas estão replectas.

Também, pudera: olha a turma que ali ganhava a vida. No Cine Colombo, Radamés Gnattali, os irmãos Júlio e Sotero Cosme, Júlio Grau, etc. Já no Avenida, o pianista da casa era o futuro compositor erudito Armando Albuquerque – que inclusive, anos mais tarde, comporia uma peça em homenagem aos projetores usados: Pathé-Baby.

16

A Pathé Baby

(E não só se passavam fitas na cidade. Havia já quem as fizesse:

em 1909 o alemão Eduardo Hirtz, que havia vindo para o Brasil ainda criança e comandava uma rede de cinemas na capital e interior, filmara O ranchinho do sertão, primeira ficção cinematográfica local.)

O som só chegaria às telas em 1927, e, mesmo assim, primeiro nos Estados Unidos. No Brasil, a novidade só seria conhecida dois anos depois e, em Porto Alegre, na virada de 1930, quando estreia na cidade O cantor de jazz, com Al Jolson. Era o filme sonoro, falado e cantado. Os pianeiros das salas de cinema perderiam seus empregos quase instantaneamente. As orquestrinhas de saguão ainda duraram mais um pouco, mas também partiriam sem deixar vestígios. Restavam apenas os shows curtos, em frente à tela, entre um film e outro. Foi um momento de desemprego em massa de músicos que só se repetiria com a chegada do videotape, trinta anos mais tarde.

Inacreditáveis 30 mil instrumentistas teriam perdido seu trabalho, no Brasil. Em grande parte, pianistas, que haviam desenvolvido por décadas a altamente específica arte de sonorizar um filme que, não raro, nunca haviam visto até o momento da exibição. Raríssimas produções europeias ou americanas encomendavam uma trilha e enviavam as partituras junto com o rolo do filme. A imensa maioria deixava a interpretação musical das cenas a cargo dos músicos das salas. Que eram ajudados por álbuns de partituras divididas por “clima”: amor, tensão, medo, etc. Mas que de nada serviriam se o pobre

17

músico não pudesse ver o filme antes e escolher o que iria tocar. Muitas vezes não era possível. Não é difícil imaginar quão específica foi-se tornando esta arte.

Pra completar os divertimentos sadios da classe média e da burguesia, havia ainda os footings nas praças, os corsos de automóveis, as tardes nos cafés. E as noites nos theatros, cassinos e cabarés – nestes últimos, claro, mulheres, só a trabalho.

Pra fechar, confirmando seu pioneirismo telefônico, em 1922, a primeira central telefônica automática do Brasil é instalada… Em Porto Alegre. Era a terceira do mundo, antecedida apenas pelas de Chicago e Nova York.

* * *

Voltemos um tantinho a Armando Albuquerque (Porto Alegre,

26/6/1901 – 16/3/1986). Recém-formado em violino e harmonia pelo Instituto de Belas Artes, o moço causava estranheza por suas composições eruditas personalíssimas. Mas, paralelo à sua obra como compositor, tocaria piano e contrabaixo em grupos de música popular – tanto em Porto Alegre quanto no Rio de Janeiro, onde passaria uns tempos. Voltaria à cidade na primeira metade dos anos de 1930, para enfrentar até o jazz de um cabaré da rua Voluntários da Pátria, o Dancing Royal. No final da década de 1940, ainda faz uns bicos pra Rádio Difusora, mas logo se dedicaria basicamente a compor música de câmara e dar aulas. Em toda sua carreira escreveu apenas uma peça popular, um choro chamado justamente Não Deu Pra Gostar (quase certamente da década de 1920), cujo título possivelmente explica o fato de ter sido a única experiência sua na área…

* * *

É nos anos 1910 que retorna à cidade o porto-alegrense Arthur

Elsner. Cego desde o nascimento, em 24 de junho de 1899, Arthur tinha ido para o Rio de Janeiro aos oito anos de idade, estudar no Instituto Benjamin Constant. Lá, se alfabetizaria em letras escritas e partituras e se especializaria em piano, tudo pelo sistema Braile. Quando se formou, tinha pouco mais de 15 anos mas era uma das estrelas da banda da escola, tocando piano e acordeom.

A estes instrumentos, somaria, em 1923, uma curiosidade importada por ele em primeira mão. Era o drums, estranha engenhoca

18

inventada pelas jazz-bands americanas, e que soava como o último grito no mundo da música popular. Nenhum gaúcho – e pouquíssimos brasileiros – tinha visto um negócio daqueles antes.

O primeiro exemplar havia aportado em terras brasileiras apenas quatro anos antes, tocado pelos americanos da Harry Kosarin Jazz Band, que fizeram uma turnê por Rio e São Paulo para apresentar o novo ritmo do jazz para as embasbacadas plateias nacionais. O tal drums não tinha só drums (tambores), mas também um barulhento amontoado de pratos, ferragens, blocos de madeira e até sinos de vaca!

O curioso é que, a partir do momento em que é incorporado à música brasileira, poderia ter se chamado, sei lá, drumis – afinal, saxophone virou saxofone, trumpet virou trompete e por aí vai. Mas o drums teria nomes nacionais totalmente diferentes do que lhe deram seus inventores. Duas variantes, ambas elucidativas do conceito inicial que sua sonoridade causou nos nativos: a primeira, que não pegou, foi pancadaria (parecido com o nome que ganhou em alemão: schlagzeug, coisa de bater). A segunda foi bateria. Que, pra quem nunca se deu conta, é o coletivo de… panelas.

Era esse coletivo de panelas que Arthur importou da Áustria. Quebrava o maior galho: em vez de, como se fazia até então, ter um cara pra tocar a caixa, um para o bumbo e outro para os pratos, se colocavam os três instrumentos nas mãos (e pés) do mesmo sujeito. Era o primeiro 3 em 1 da história da música.

As primeiras baterias

19

Em Porto Alegre a consagração da novidade se dá no mesmo

1923 em que Arthur importa seu exemplar (há quem fale em 1924). Foi nessa data que a cidade assistiu pela primeira vez uma banda de jazz: a Gordon Stretton Jazz Band. O grupo, liderado por um músico negro nascido em Liverpool, na Inglaterra, estava em turnê pelo País, acompanhando a vedette francesa Mistinguetti. E lá brilhava, com destaque, ela: a bateria! Uma novidade e tanto.

Voltando a Elsner: ao longo da década de 1920, seu hobby seria inventar instrumentos. Cego, os desenhava minuciosamente e passava o projeto para um marceneiro amigo seu, que os construía. Muitos eram dados a tocar por um outro menino-prodígio, chamado Namur Barcellos – que, anos mais tarde, teria o disputado posto de harpista da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Eram coisinhas como um violino de lata, um violoncelo com o corpo feito de caixa de charutos, uma bengala que virava viola, garrafofones, violinos com cornetas, chapéus com sinos e por aí vai. Instrumentos que foram guardados com amor e cuidado por Namur durante toda a sua longa vida e hoje não se sabe onde foram parar. Arthur também comporia muita música – tanto erudita quanto popular –, mas quase tudo se perdeu. O que não foi por água abaixo na

20

enchente de 1941, virou fumaça quando incendiaram a Rádio Farroupilha, em protesto contra o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954.

Mas o que mais se escreveu sobre Elsner é sobre seu talento como um dos (multi-)instrumentistas mais solicitados de seu tempo. Tocou com os maiores músicos e as melhores orquestras da cidade. Num ano podia ser pianista de uma típica de tango, no outro atacar de acordeonista e percussionista da Jazz-Band de Paulo Coelho e, logo ali, gaiteiro (acordeonista) de algum regional ou pianista solista de programas na Rádio Gaúcha ou na Farroupilha. Isso quando não fazia tudo ao mesmo tempo.

Sua cegueira nunca o impediu de andar sozinho pela cidade, subindo e descendo dos bondes na parada certa, e sem jamais macular seus impecáveis ternos de linho branco. Já bem entrado na terceira idade, assumiu o cargo de diretor da Banda Municipal de Porto Alegre. Mais tarde ainda, chegaria a ser percussionista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a OSPA. Só não pergunte como é que ele se entendia com o maestro…

Provavelmente graças ao seu lendário ouvido, que lhe permitia hábitos curiosos e feitos que viraram lenda.

Por exemplo: para contra-atacar a canalhada que, aproveitando-se de sua cegueira, roubava sua cerveja enquanto ele tocava nos cabarés. O meliante só não contava com um detalhe: sempre que largava uma garrafa pela metade, Arthur estalava o dedo contra o gargalo e conferia o tom da nota emitida. Na volta, repetia o processo. Se ele tinha largado a garrafa em lá, e ela agora se encontrava em fá, é porque algum esperto havia tomado uma terça maior do seu precioso líquido…

(Outra história que ficou famosa foi sua tentativa de identificar um carro que o atropelara pelo tom da buzina. Não deu, claro. Mas aumentou a lenda.)

E não se pode fechar o assunto “Arthur” sem lembrar que foi também um pioneiro na publicidade. Nos anos de 1950, montou um estúdio caseiro com um gravador que só ele sabia operar. E ali gravava jingles e comerciais de rádio.

Arthur Elsner, figurinha tão carimbada da boemia porto-alegrense que recebeu de presente até um poema de outro boêmio notório, Mario Quintana:

Um dia, um ceguinho de nascença…

21

– pois bem, para ser mais explícito e para conservar por mais algum tempo a sua passageira imagem neste mundo – um dia numa daquelas nossas conversas de bar, o sanfonista Artur (sic) Elsner me confessou:

“Bem sei que, para vocês, eu, teoricamente, estou nas trevas.” Teoricamente?! – pensei, num comovido espanto Talvez no mesmo silencioso espanto com que os anjos escutam as palavras que digo dentro da minha treva iluminada.

* * * Se no final dos anos 1910 quem volta de estudar música no

Instituto (para cegos) Benjamin Constant é o nosso já citado Arthur Elsner, uma década depois acontece o mesmo com outro grande músico: o violonista Levino Albano da Conceição. Tem quem garanta que ele nasceu em Caçapava (RS), mas a maior parte dos pesquisadores afirma que ele veio ao mundo em Cuiabá, Mato Grosso. Também não há consenso quanto ao ano: 1895 ou 1896. O dia é mais fácil: 12. Já o mês varia: outubro ou novembro. É, amigo: dureza essa vida de pesquisador!

Enquanto Elsner era cego de nascença, Levino perdera a visão aos sete anos. Mas aos nove (há quem diga aos 12), em Cuiabá, já era conhecido como um craque do violão – e grande improvisador! Mais um da longa série de meninos-prodígio deste capítulo. Que geração! Aos 22, não se sabe como nem por quê, estava morando em Porto Alegre. E é na capital gaúcha que vai estrear oficialmente num palco, com um concerto no Theatro São Pedro, em 1918. Logo em seguida, está no Rio de Janeiro, no Benjamin Constant. Lá, se especializa em violão com o renomado professor Joaquim dos Santos e logo está dando aula de música a seus colegas.

Volta a Porto Alegre e passa alguns anos no estado, deixando a comunidade musical boquiaberta. Tocava na capital e no interior, fazendo imenso sucesso entre plateias cheias de músicos. Que estavam lá para ver de perto suas interpretações muito pessoais de páginas eruditas adaptadas, como A Cavalaria Rusticana, ou os dificílimos tanguinhos e choros que compunha. Peças que, já pelo título, avisavam o que vinha pela frente: Marciano no Choro, Não Combina, Não Salta José ou Há Quem Resista? Como quase todos os grandes músicos de sua geração, logo entrou para a turma de Octavio Dutra.

22

Nos anos 1930, era um dos maiores nomes do instrumento no país, figurinha carimbada na revista carioca O Violão, chamado de O Rei do Violão pela imprensa e destaque do Dicionario de Guitarristas, editado em 1935 em Buenos Aires por Domingo Prat. Diz ali:

Es considerado como uno de los más grandes solistas de su patria, alcanzando su nombre una notoriedad en verdad muy grande.

Como Octavio Dutra, também fez nome como maestro-ensaiador de alguns dos melhores grupos carnavalescos de então, como o Bloco dos Tigres (os dois chegam a assinar em parceria uma série de sucessos momescos, como Victoria). E aí, em 1939 – há quem fale em 1933 – muda-se novamente para o Rio. Dali, viaja pelos principais palcos do Brasil, sempre achando um tempo para fundar escolas de música para cegos (com apoio do Instituto Benjamin Constant) e dar aulas para futuros virtuoses. Como Dilermando Reis, que começou sua carreira, ainda garoto, acompanhando o mestre.

Para lembrar o amor que sempre teve à terra que primeiro o reconheceu à grande (e talvez o tenha parido), compôs peças como Canção Gaúcha ou Saudades do Rio Grande. No fim da vida, foi morar em Cuiabá. Onde, segundo alguns, morreu em algum ponto dos anos de 1950. Mas outros afirmam – apostaria nessa – que sua morte foi em Niterói, no Rio, dia 19 de fevereiro de 1955.

* * *

Na literatura, a Porto Alegre pré-Revolução de 30 está imersa nas

vanguardas modernistas, com nomes como Tyrteu Rocha Vianna, Ernani Fornari, Athos Damasceno e Augusto Meyer – todos fazendo boa poesia sobre temas urbanos e regionais.

Na política, com uma única ausência entre 1908 e 1913, o que temos é Borges de Medeiros. Governando o estado como um imperador por 24 anos – desde 1897 “vencera” cinco eleições (algumas inclusive sem adversários). Por ele passaram nada menos que onze presidentes da república! Afinal, rezava pela cartilha de Augusto Comte, que garantia que “toda escolha dos superiores pelos inferiores é profundamente anárquica”.

O pessoal até que tentou derrubá-lo, na sangrenta Revolução de 23, liderada por um Assis Brasil furibundo por perder mais uma eleição fraudada. Foram 324 dias de muita correria e poucos (mas sangrentos)

23

combates. Mas não tinha como: contra as metralhadoras dos legalistas, os revolucionários iam com cargas de lanceiros, a mesma estratégia usada um século antes, na Revolução Farroupilha. Dá pra se dizer que acabava ali, cruamente, a Belle Époque nos perdidos suis do Brasil. Porto Alegre tinha então pouco mais de 205 mil habitantes: quase o dobro de dez anos antes.

Cinco anos depois, em 1928, o mesmo Getúlio Vargas que havia coordenado a fraude da eleição de 1922 como presidente da Comissão de Constituição e Poderes da Assembleia dos Representantes começa sua irresistível ascensão política justamente conciliando os até então inconciliáveis chimangos e maragatos.

E ainda nessa década, entre 1924 e 1927, um líder tenentista gaúcho, extremamente carismático, parte de Santo Ângelo e percorre 25 mil quilômetros de Brasis à frente da sua coluna de milhares de homens. Queriam derrubar o governo de Artur Bernardes. Acabaram dispersos, na Bolívia. E o tal líder, de nome Luís Carlos Prestes, começaria ali sua lenda. Ainda pintando o cenário desses anos de 1920, há que se falar dos cafés e confeitarias com música ao vivo, então popularíssimos.

Porto Alegre tinha mais de trinta, cada um com sua orquestrinha E sua típica de tango ou ambos. Cenário brilhantemente retratado in loco pelo cronista Achylles Porto Alegre, em 1920:

O “café” moderno é o ponto de reunião dos intellectuais, dos

jornalistas, dos artistas e dos políticos. Ahi, entre uma fumaça e um gole de café, se combinam os mais arrojados planos litterarios, artísticos e administrativos. Ahi se concebem num relance, deante da chavena ou do calice inspirador, o poema, o romance, o artigo de fundo, a chronica, o quadro, a eleição do presidente da Republica ou a organisação de um ministerio. Ahi se planejam revoluções e deposições de governo. Ahi se guinda o indivíduo ao Capitolio ou se o arremessa da Rocha Tarpea. Ahi, o escriptor naturalista ou realista vai estudar, surpreender e apanhar os typos vivos de seus contos, de suas novellas e romances. (…) É, por assim dizer, o “pivot” da vida contemporanea.

* * *

Já que se falou nas orquestras típicas…

24

O Rio Grande do Sul ouvia muito tango. Muito. Nas cidades da fronteira com a Argentina e o Uruguai, então, não tinha nem graça. O processo se intensificaria nos anos de 1930, com as rádios El Mundo e Belgrano, argentinas e tangueiras, sendo tão ou mais escutadas nessas cidades do que as emissoras brasileiras. O futuro sambista Túlio Piva, por exemplo, morador da fronteiriça Santiago do Boqueirão, só ouvia essas rádios. Radamés Gnattali lembrava claramente da década de 1920 na sua cidade:

Em Porto Alegre, só se tocava tango argentino. O samba estava

restrito ao Rio.

Ainda haveria outros surtos tangueiros nas décadas seguintes, mas esse primeiro foi talvez o mais importante. Ribombou no sul com força de trovoada, mas soou em todo o país: A Media Luz e La Cumparsita estavam entre as músicas mais tocadas no Brasil de 1927. No ano seguinte, emplacam da mesma forma Caminito, Che Papusa, Mano a Mano e Esta Noche me Emborracho, sucessos de Carlos Gardel. No mesmo ano, também, se torna muito popular um dos primeiros tangos argentinos brasileiros (sic), composto em espanhol por Raul Roulien: Adiós Mis Farras. O primeiro havia sido escrito 10 anos antes, por Ernesto Nazareth: Nove de Julho.

Nenhum gênero internacional suplantava a popularidade do ritmo argentino no Brasil desse momento. Até na Bahia – Jorge Amado que o diga – se tocava e dançava o ritmo portenho. Octavio Dutra – sempre ele – chegou a escrever arranjos para tangos de Gardel, para serem tocados com seu regional. E compôs também mais de um tango argentino (lembra, né? nessa época ainda havia, forte, o tango brasileiro, que já era bem diferente).

O surto era tão generalizado que, por toda a década de 1920, as grandes atrações dos cabarés gaúchos eram típicas de tango, e não a música brasileira, cubana ou americana tocada por orquestras, jazz-bands ou seja-lá-o-que-for. Sim: muitas casas noturnas, confeitarias e cafés tinham duas bandas contratadas, e uma delas era só para tocar tangos e milongas (a outra tocava todas as outras músicas).

E até se dançavam maxixes, mas não pegava bem. Mesmo que já em 1898 o Correio do Povo registrasse o gênero tocado com cavaquinhos, violões e pandeiros, ainda era “música de negros”, e suas coreografias só eram permitidas a eles. As exceções eram o Carnaval ou os puteiros de todos os níveis. Tá lá no jornal A Federação, em 1906:

25

O maxixe é tudo que há de mais puro brasileiro. É a nossa dansa

popular. Está bem claro que não é dansado nos salões da melhor roda social; não é uma dansa distincta. Mas é sempre dansada nos cafés-concertos, sociedades de rapazes e em todas as festas populares.

Para que se tenha uma ideia da segregação que sofriam no estado

os ritmos negros cariocas – então já popularíssimos no resto do país -, é demonstrativo o exemplo, mais uma vez, de Octavio Dutra. O principal compositor dos primeiros 30 anos da música de Porto Alegre compôs (que se saiba) 482 músicas. Destas, míseras 16 eram sambas e outras duas, sambas-canções. Um retrato do contexto muito peculiar em que viviam os gaúchos, desde então se sentindo diferentes do resto do seu próprio país. Maxixes, lundus e, logo depois, os primeiros sambas, eram coisa de negros e pronto. Quem comprava discos não comprava esses discos. Muitos deles, as fábricas nem mandavam para as lojas do sul.

Mais um dado para defender a tese: nas pioneiras gravações dos Discos Rio-grandenses, em 1913, as 102 músicas registradas em Porto Alegre são 16 polcas, 15 valsas, 14 schottischs, 11 modinhas, 11 dobrados e nenhum samba ou maxixe. Enquanto isso, depois de conquistarem os cabarés e dancings, as típicas de tango permaneceriam em alta pelos 50 anos seguintes.

Por mais de meio século, umas épocas mais, outras menos, todo mundo em Porto Alegre sabia ao menos os passos básicos do tango. Como prova definitiva de que desde a década de 1910 o ritmo já era incorporadamente gaúcho, há uma notícia publicada no Correio do Povo, em 1914. Nela, um jornalista não identificado fala com curiosidade e espanto sobre a polêmica que o excesso de voluptuosidade nas coreografias do ritmo estava despertando na Europa. O texto se espantava justamente com o choque dos europeus perante algo que para os leitores gaúchos já era tão corriqueiro. E dançado até no carnaval.

Se o samba custou a emplacar – e o maxixe só o faria no final da década de 1920 – a avassaladora febre nordestina que se espalhou pelo Brasil nos primeiros anos do século XX pegou forte na gauchada. O micróbio da tal enfermidade se chamava Turunas Pernambucanos, grupo que havia descido do Recife para encantar o público gaúcho em 1924.

26

Turunas Pernambucanos (Foto: domínio público)

Na onda, até Octavio Dutra escreveu uma canção sertaneja –

chamada justamente… Sertaneja, sucesso no carnaval. E não foi só: aproveitou a passagem dos Turunas para compor umas coisinhas em parceria com o saxofonista Ratinho, uma das estrelas do grupo (o qual tinha também o violonista Jararaca, com quem Ratinho formaria depois a dupla Jararaca & Ratinho). Mas não é espantoso que os chorões daqui se deixassem influenciar pelos pernambucanos. Afinal, no Rio, três anos depois, um novo grupo nos mesmos moldes, os Turunas da Mauriceia, motivaria o surgimento de discípulos como o Bando de Tangarás – que reunia, entre outros, Noel Rosa, Almirante e João de Barro.

27

Turunas da Mauriceia (Foto: domínio público)

E o curioso é que eles já eram produto da influência dos citados

Turunas Pernambucanos. Que, por sua vez, tinham nascido totalmente influenciados por um grupo… carioca! Os Oito Batutas, de Donga e Pixinguinha, que haviam passado por Pernambuco em 1922. Oito Batutas que, por sua vez, fora criado por inspiração no Grupo de Caxangá, liderado pelo violonista pernambucano João Pernambuco. Isso é que é globalização…

* * *

Foi na década de 1910 que começaram a aparecer no Brasil os primeiros ritmos americanos. Era a primeira entrada em massa da cultura norte-americana, que, a partir daí, a cada 30 anos alguns apocalípticos acreditam que vai dizimar nossa nacionalidade frágil. Para o amigo ter uma ideia da velocidade dessa primeira invasão, entre 1903 e 1914 foram gravados no Brasil apenas sete discos com música estadunidense. Nos 12 anos seguintes, entre 1915 e 1927, esse número sobe nada menos que 2.500%: 182 gravações! Dados do José Ramos Tinhorão, claro.

28

Os ritmos mais populares eram o one-step e o charleston, logo seguidos pelo fox-trot e o ragtime. Depois os esquecidos shimmy, black-bottom e cake-walk. Todos, já nos anos de 1920, constando no repertório de qualquer encontro dançante que se prezasse. Era a primeira vez que, como diria muito depois Caetano Veloso, os americanos (referindo-se aos estadunidenses) se tornavam responsáveis por grande parte da alegria do mundo. Era uma febre de ritmos leves e eufóricos, que comemoravam o pós-Guerra sem nem sonhar com a Crise de 29.

Como observa Humberto Franceschi em A Casa Edison e Seu Tempo:

O pós-guerra trouxe outras formas de superação da crise com o

aparecimento de modismos culturais. Observou-se um novo vigor no mercado. Os anos 20 produziram dinâmica acelerada nos processos de divulgação. Foi a época dos ritmos das Américas que, desde o tango argentino ao ragtime e ao fox-trot, invadiram a Europa e, de lá, partiram para o resto do mundo. (…) Toda a década de 20 foi povoada pelas jazz-bands sob forte influência de ritmos estrangeiros, particularmente norte-americanos.

A primeira grande mudança foi na formação instrumental dos grupos de música popular. O gênero jazz não tinha dados as caras, mas a palavra “jazz” se tornaria rapidamente o substantivo que designaria um conjunto de instrumentistas formado por sopros e uma cozinha rítmica composta por bateria, banjo, violão e/ou piano, contrabaixo ou tuba.

Em Porto Alegre, não levaria nem cinco anos pra coisa pegar fogo e os “jazz” reinarem absolutos, soterrando os formatos até então consagrados de banda ou regional. Eram as estrelas dos bailes e das festas. Nada era mais chique do que montar uma bandinha e chamá-la de … jazz.

Tocavam de tudo: todos esses ritmos americanos aí de cima, maxixes, polcas, schottischs, habaneras. Na verdade, só não rolava era… jazz.

* * *

Tudo começara no mesmo 1923 em que Louis Armstrong gravava

seu primeiro disco com a King Oliver´s Jazz Band, e apenas cinco anos

29

depois da primeira gravação de jazz da história, da Original Dixieland Jass (sic) Band. A invasão começa quando o flautista Albino Rosa reúne uma turma de amigos músicos pra fundar um regional. O próprio termo regional, registre-se, era novidade, criado por grupos que tocavam também choro, mas estavam mergulhados na citada febre nordestina – daí o nome: regional. Inspirado no sucesso carnavalesco “Espia Só”, de (adivinhem?) Octavio Dutra, Albino batiza seu sexteto de Regional Espia Só. Além dele, tocando flauta, tinha Binga no violão, Veridiano Farias no violino, Severiano Severo de Souza no ganzá e Herald Alves na caixa. Pra completar o time, um cara que tocava cavaquinho, banjo e uma espécie de bandolim-criado-a-Toddy chamado bandola. O nome do rapaz era Marino dos Santos. Guardem esse nome.

Espia Só, em 1928. (Fonte: VEDANA, Hardy. Jazz em Porto Alegre. Porto Alegre: L&PM, 1987)

Albino costumava trocar uma ideia com os marinheiros que,

como ele, frequentavam as casas mais suspeitas dos arredores do cais do porto. Os caras navegavam pelos mares do mundo, portanto sempre tinham novidades. Como, por exemplo, a mudança acontecida com os

30

Oito Batutas: a banda liderada por Pixinguinha nascera grupo de música nordestina, depois virara regional de choro e samba e agora era… jazz-band. A mudança acontecera em sua estada na Europa, no começo de 1922: eles agora tinham dois saxofones, trombone, trompete (ou, como se dizia então, pistão), banjo, piano, bateria e dois percussionistas.

Formação original d'Os Oito Batutas, quando tocava música nordestina e, em

seguida, viraria regional de choro e samba

E então, em 1923 (Desconhecido. Acervo Dedoc-Nova Cultural)

31

Na sua esteira, pipocavam no Rio de Janeiro grupos como a pioneira Jazz Band Brasil-América (que leva a expressão jazz-band pela primeira vez a um disco, com o fox-trot “Vênus”). À qual se segue a Brazilian Jazz e a Jazz-Band Beira-Mar Cassino – em ambas, tocava o já citado Augusto Vasseur. Enquanto isso, o Espia Só seguia regional, defendendo uns cobres em serestas e ensaios de sociedades carnavalescas.

Só que, em setembro de 1927, Pixinguinha em carne e osso – e acompanhado de seus batutas! – é a grande estrela da inauguração da Companhia Cervejaria Continental, o mesmo prédio que era antes Cervejaria Bopp e viraria Brahma 20 anos depois. O grupo, versão jazz-band, estava então no auge da popularidade, tocando sambas, maxixes, choros e algumas resistentes emboladas de seus tempos sertanejos. Os shows na Continental eram a culminância de uma excursão que percorria o sul do país. E além de tocar no belíssimo prédio – uma das obras primas do arquiteto alemão Theo Wiederspahn, monumento que, 75 anos depois, se transformaria no Shopping Total –, fizeram mais 20 apresentações na Parque de Exposições do Menino Deus.

Pixinguinha e grupo em Porto Alegre (Foto: domínio público)

Muito mais do que havia acontecido com os Turunas

Pernambucanos meia década antes, a estada gaúcha dos Batutas foi

32

decisiva pros rumos que a música da cidade iria tomar nos anos seguintes. Também pudera: não pouparam esforços em se enturmar: tomavam todas com o pessoal, e Pixinguinha em pessoa, o sujeito que definiu para sempre o que seria o choro, o compositor mais importante do país, encomendou músicas para Octavio Dutra! Sabe lá o que é isso?

Como se não bastasse, passou longas tardes na Confeitaria Central, tentando convencer o pianista da casa, Paulo Coelho, a ir embora com ele pro Rio. Pra culminar, numa janta oferecida pelo Regional Espia Só, piraram definitivamente o cabeção da turma, enchendo os caras de ideias sobre jazz bands. Albino, que só sabia daquele som por ouvir contar, pirou. Afinal, era seu ídolo Pixinguinha – em pessoa – que o aconselhava a mudar o nome do grupo, tirando o regional e adotando o jazz.

Evidentemente, também precisariam trocar a instrumentação e o repertório.

Isso era o de menos.

* * *

Em clima de empolgação total, Albino compra de uma só vez dois saxes altos, um sax soprano e uma bateria. De quebra, seguindo mais um conselho de seu novo amigo Pixinguinha, pede pra amigos marinheiros trazerem do Rio alguns arranjos escritos para essa formação. Mais um golaço: nessa época nenhum desses grupos tocava música arranjada. O lance era cada um por si e Deus que não se metesse (tanto que as edições de músicas em partitura não tinham nem ao menos os acordes do acompanhamento: era a melodia, a eventual letra e só). Arranjos escritos de música popular eram coisa de bandas, militares ou não, como as que gravavam suas polcas e valsas nos Discos Gaúcho, na década anterior.

E é lá que se tem os primeiros registros de saxofones na cidade: já em 1913, pelo menos dois quartetos usavam o instrumento: o Grupo Faceiro e o Grupo Sulferino (sax, flauta, cavaquinho e violão). Severino Hernandez também se sabe que tocou no Theatro Apollo dia 28 de junho de 1926 a polca-choro “A Defeza do Fantoche” (sic), de Octavio Dutra. E já haviam passado pela cidade, no Cine-Theatro Coliseu (esquina das hoje Voluntários da Pátria e Pinto Bandeira, centro de Porto Alegre), tanto o saxofonista Euclides Sena, O Príncipe Negro, como os já citados Turunas Pernambucanos, que tinham o lendário

33

Ratinho no sax soprano. A bateria, como se viu, não era novidade absoluta por causa de Arthur Elsner e da Gordon Stretton Jazz Band. Mas mesmo assim, não se tem registro de Arthur tocando bateria, e a Gordon Stretton só estava passando por aqui.

Cine-Theatro Coliseu, em 1910

Portanto, o importante nisso é que, mais do que bateria e

saxofone, o que o agora equipadíssimo Albino iria mostrar aos porto-alegrenses era a primeira banda com baterista e vários saxofonistas gaúchos! Tocando juntos!

E não é só. Sempre curioso, ele também compra uma outra novidade espetacular. Um aparelho insólito, que captava o som, mandava pra um outro negócio ligado na corrente elétrica e esse, por sua vez, reenviava o som para uma caixa preta que aumentava incrivelmente o volume. Tudo ligado por fios. Já pensou??! O troço se chamava microfone, e era o último grito nos Estados Unidos, onde tinha começado a ser comercializado há apenas um ano. Invenção graças à qual outras duas novidades logo se popularizariam: o rádio e as gravações elétricas. Que começam nos Estados Unidos em 1925 e chegam ao Brasil dois anos depois.

34

Microfones de 1927

Neste mesmo ano de 1927 era inaugurada a Rádio Sociedade Gaúcha. Viabilizada, como todas as rádios, graças ao tal microfone. E os estúdios brasileiros também sofreriam uma revolução, em parte por causa dele: no lugar dos precários cones de metal até então utilizados para a gravação mecânica, agora o lance era com os microfones, com imensa melhora no resultado sonoro, expandindo a capacidade de registro mecânica, que era de 168Hz a 2.000Hz, para 120Hz a 5.000Hz (o ouvido humano: 20Hz a 20.000Hz).

A invenção seria a alegria de muitos cantores – e o despeito de outros tantos. Afinal, até então, crooner que se prezasse tinha de conseguir se fazer ouvir no gogó. Ou, no máximo, com o auxílio de deselegantes megafones de lata, pra não ser soterrado pelo som da banda ou orquestra. Agora isso tudo era coisa do passado! O grupo de Albino tinha bateria, saxofones e microfone! Um regional incrementado!

Só que não era mais um regional. Seu nome mudara para Jazz Espia Só

Jazz Espia Só

35

Cantando ao megafone, que logo seria substituído pelo microfone, Alcides Gonçalves, em 1929 – na Royal Jazz Band. (Foto: autor desconhecido)

A ampliação de freguesia foi imediata. Com a formação de regional, seguiriam tocando em ensaios de sociedades carnavalescas e nas serenatas, que logo começariam a rarear – afinal, começou a ser necessário plantar olheiros nas esquinas pra avisar quando chegasse a polícia, porque o delegado Henrique de Freitas Lima decidiu mandar prender os boêmios seresteiros. Maldição: em seus tempos áureos, o regional Espia Só chegou a tocar quatro serenatas por semana. Já como jazz band, as novas possibilidades eram infinitas: bailes e festas nas casas dos ricos e – espanto! – até na Sociedade Germânia, mesmo sendo uma banda 100% negra. Acabou que não davam conta dos convites, vindos da capital e do interior.

Agenda lotada: sábados, feriados e soirées domingueiras. Eram agora 10 músicos, liderados por Albino Rosa na flauta e sax alto e Marino dos Santos nos saxes alto e soprano. Marino já era um instrumentista raro: são poucos os saxofonistas que, antes dos anos de 1960, se dedicaram ao ingrato soprano da família. Mesmo no jazz, e nos Estados Unidos, não eram muitos. Sidney Bechet, eventuais momentos de Johnny Hodges e pouco mais. Aqui no Brasil, além de

36

Marino, havia, conhecidos nacionalmente, Ratinho e Luiz Americano. Já o Severo foi promovidíssimo: do ganzá pra tuba. Herald Alves também, de uma mísera caixa pra uma bateria completa.

Além disso, contrataram um trompetista chamado João Luís, o trombonista Oswaldino Peixoto, Armindo Alves (provavelmente irmão de Herald) pro banjo, e Luiz Camaleão Alves (outro irmão?), que fazia vocais e ainda segurava as pontas no ritmo, com pandeiro, afoxé e ganzá… De quebra, um cantor: Leopoldo Carvalho, o popular “Marreca”. Pra fechar, atacando de curinga entre banjo, contrabaixo, violão e violino, outra futura estrela do saxofone porto-alegrense: Paulino “Mô Nego” Mathias. Mais um nome pra guardar. Paulino e Marino viriam a ser os maiores saxofonistas gaúchos entre os anos 1930 e 50, famosos e respeitados.

Albino ainda completa as novidades mandando trazer um exemplar do rei dos saxes: o portentoso sax tenor. Hoje os naipes são parlamentaristas, mas, na época, Marino, que já tocava o alto e soprano, ficou doido. Queria de qualquer jeito ter a honra de ser o primeiro tenorista do Estado. Imagina: aquele era o saxofone que o Pixinguinha tocava!!! Mas a coisa não ia sair barato. Afinal, tinha mais gente de olho no bicho.

Até decidir quem o tocaria, Albino trancou o dito-cujo num armário. O que ele não imaginava é que toda noite Paulino Mathias roubava a chave, pegava o sax e o levava pra casa, pra estudar. Quando, 15 dias depois, o chefe avisou que ia fazer um teste pra ver quem estrearia a novidade, o resultado foi um variado festival de guinchos. O troço tava empatado, com todos em segundo lugar, quando Paulino pediu licença. Será que ele podia tentar? Assombro total: o cara não tocava nenhum sax até então. E tirava um som melhor até que Marino e Albino! Foi aclamação: esse nasceu pra tocar sax tenor…

Voltando aos bailes, a sistemática era a seguinte, bastante rígida e minuciosamente disciplinada: fosse quem fosse a atração, tocava uma música… e parava. Aí o pessoal aplaudia. Os músicos então bebiam uma coisinha e tocavam mais umas três ou quatro. Nova pausa. Novos aplausos. Então, mais uma descansadinha pra molhar o bico. Tocavam outras três. Nova parada. Comiam uma coisinha, que ninguém é de ferro, rebatiam com uma dosezinha pro santo e atacavam de novo. E assim a noite ia esquentando, aos trancos e barrancos.

No meio da semana ainda havia festivais benemerentes, promovidos pelas moçoilas e rapazes da alta sociedade, em cinemas e bailantes. E os membros do Espia Só seguiam se destacando na

37

enxurrada de grupos que vinham em sua cola, tanto pela música quanto pela elegância: vestidos com impecáveis smokings ou, conforme a situação, casacos azul-marinho com botões de madrepérola, gravata borboleta, calças creme de boca meio-sino e uma chinfra sensacional: um imenso lenço creme caindo do bolso do paletó até quase a cintura.

Famosos, doutores em champanhota e acontecendo no Café Society, o grupo vai indo bem até que, em 1928, acontece a primeira baixa. E logo de sua maior estrela: Marino dos Santos. Mas seguiram bem arrumados e felizes até 1932, quando cometem um erro clássico: cair na conversa furada de empresário. Um sujeito os contrata para uma excursão nacional, prometendo mundos e fundos… e desaparece no comecinho da tour, ainda em Santa Catarina.

Era o fim da primeira jazz band gaúcha. (Na verdade, parte do grupo já havia desertado, ao não topar a

aventura. Pra compensar, agregaram duas cantoras iniciantes e um sapateador cubano (?!?). Conseguem se virar um tempo como o Trio Espia Só, que seguiria, capengueando, Brasil acima: Paulino de volta ao violão, Albino na flauta e o tal sapateador cubano, que teve de virar cantor na marra. Vão pra Santos, tocam em puteiros do porto, passam uns tempos contratados por uma rádio paulista, tentam o Rio, não conseguem nada, embarcam pra Belém do Pará. Lá, ficam uns tempos, e voltam para Porto Alegre, com o rabo entre as pernas.)

A partir daí, vários dos ex-integrantes do Espia Só montariam seus próprios conjuntos. Albino é que nunca mais teria ânimo pra encarar uma liderança e seguiria como um modesto saxofonista tocando pelos dancings e boates da cidade até o final dos anos de 1960, quando se aposenta. Morre, bem velhinho, em 1982.

* * *

Hardy Vedana

38

O livro Jazz em Porto Alegre, de Hardy Vedana (L&PM)

Orquestra Rojabá com Alcides Gonçalves de crooner

Depois do Jazz Espia Só, a porteira estava aberta. A Royal Jazz

Band foi a segunda formação do gênero em Porto Alegre. O principal pesquisador dessa cena, Hardy Vedana (Erechim, 13/6/1928, Porto Alegre, 15/6/2009), autor de Jazz em Porto Alegre (L&PM), afirma que a Royal teria sido fundada em 1924. Só que o mesmo Vedana, no mesmo livro, garante que o Espia Só foi o primeiro a mudar de regional para jazz, em… 1927. Aí, você decide. De qualquer forma, a Royal Jazz Band teria uma vida muito mais longa que sua predecessora: só encerraria as atividades em 1968, depois de 44 anos de carreira.

39

Também seria a pioneira em abrasileirar o nome, já que desde o final dos anos 1930 atendia pela simpaticíssima alcunha de Orquestra Rojabá (RO-yal JA-az BA-nd, pegou?). Fundada pelo baterista Alvino Beroldt e pelo pianista e arranjador Helmut Grünewald, o grupo sempre teve Helmut à frente, marcando de cima, com seu punho forjado em puro aço alemão.

Entre o final dos anos 1920 e meados dos 30 muitos

outros jazz pintaram no pedaço. O Jazz Real, de 1927, era um septeto com trompete, trombone,

três saxes, piano, bateria e uma geringonça chamada violinofone, um bizarro violino equipado com cornetas, parecido com o inventado por Arthur Elsner, tentativa internacional da época para aumentar o som do instrumento antes de haver a amplificação elétrica (mesma ideia que levava os cantores ao megafone de lata). Era tocado por um dos líderes do grupo, Armando Leão – que acumulava também a função de cantor. O outro chefe era Sady Sá, que atacava de sax alto e flauta. Eram a atração do Café A Barrosa.

A Guarany Jazz-Band também é de 1927. Durou menos de um ano, e não mereceria registro não fosse por dois fatos: foi nela que

40

começou sua carreira o trompetista Ernani Oliveira, quando ainda tocava violino. E em suas hostes havia um bandoneon todo espetado de cornetas – tipo o violinofone -, tocado pelo Espíndola. Era o pessoal se virando para se fazer ouvir.

Ernani Oliveira nascera dia 24 de novembro de 1908, em Viamão,

10 km a leste de Porto Alegre. Logo que o Guarany Jazz-Band encerrou sua carreira, ele fundou a Orquestra Ernani Oliveira. O ano era 1929. Ao longo da sua vida, depois do violino inicial, ele aprenderia tuba, bombardino e trombone, acabando no trompete (nesse meio-tempo, pra não se entediar, ainda pegou o bandoneon). Seria o grande trompetista dessa geração, brilhando a partir do momento em que, nos anos 1930, entrou para o Jazz-Band de Paulo Coelho.

Do grupo de Paulo só sairia em 1938, quando estavam todos na Argentina e ele teve um forte ataque de saudade (dizem que da mãe), voltando pra casa antes que todo mundo. Volta a ser destaque em 1946, fundando o que quase certamente foi o primeiro grupo profissional porto-alegrense criado para efetivamente tocar… jazz. Curiosamente, não tinha “jazz” no nome. Eram Os Malucos do Ritmo.

41

Um octeto com misturando negros e brancos, com ele no trompete, Breno Baldo no sax alto, mais um clarinetista, um trombonista, Antoninho Gonçalves na guitarra elétrica (sim, em 1946!), Swing no piano, um contrabaixista e o mítico Natalício na bateria. Tocavam o que na época se chamava de jazz hot e eram contratados da Rádio Difusora.

Se em 2020 o número de jazzófilos porto-alegrenses não é exatamente uma loucura, em 1946 então, nem falar! Mas os caras eram bons, e aí em 1948 foram gentilmente convidados pela direção da emissora a manter seu emprego aumentando o grupo. A proposta era de que eles se tornassem a orquestra da rádio: maior, sim, mas principalmente mais comportada. Ernani topa e, dois anos depois, recebe com honras o saxofonista Marino dos Santos, que voltava de uma longa temporada fora do estado. Juntos, rebatizam o grupo de 15 músicos como Orquestra de Ernani & Marino, com nomes que fariam história como o guitarrista Raul Lima – que tocou até morrer, aos 91 anos, em 2015 -, o pianista Suingue e o Natalício na bateria. Seria a formação mais prestigiada de seu tempo.

Tanto que a Rádio Gaúcha comprou seu passe e, pouco depois, são eleitos a Melhor Orquestra do Ano de 1952. Fazem uma exitosa excursão a Montevidéu e seguem até 1956, quando os dois líderes brigam e Marino vai novamente embora da cidade. Ernani segue sozinho com o grupo até 1968, quando morre, dia 2 de dezembro.

Orquestra Ernani & Marino em 1941

43

Ernani nos anos 1950

Outra formação curiosa dessa turma é a Jazz Band Tupinambá.

Surgida em 1930, o pessoal se considerava os reis da cocada preta – melhor: The Kings of Black Coconut Candy. Foram provavelmente o primeiro grupo porto-alegrense a criar seus próprios arranjos e faziam disso um mistério sagrado: trocavam constantemente o local dos ensaios e, maravilha!, chegaram a desenvolver um dialeto próprio de gírias pra evitar que espiões roubassem tais arranjos. Além disso, tocar vários instrumentos era especialidade da casa.

O diretor Guisado respondia por trombone, banjo e bandoneon. Carlos Gomes Ferreira, que depois iria para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, encarava sax alto, clarinete, piano, violão, violino, flauta e banjo. E o arranjador era nosso conhecido Veridiano Farias, ex-violinista do Regional Espia Só, que agora tocava trombone.

Também de 1930 é o Jazz Cruzeiro, fundado pela família Corrêa: o contrabaixista Flávio Corrêa, seu irmão baterista Oscar Corrêa e a mulher deste, a cantora Horacina Corrêa, que teria longa carreira. A semente do grupo fora a Orquestra Cruzeiro, criada em 1922 como uma

44

revolucionária mistura de regional e orquestra de câmara: um cantor, flauta, dois violinos, violoncelo, contrabaixo, três violões, bandolim, um sujeito tocando caixa e outro no bumbo-e-prato. O porto-alegrense Flávio, nascido em 4 de fevereiro de 1900, por volta dos anos de 1920 e até o final dos 1950 era considerado “O” contrabaixista de Porto Alegre. E é nesse grupo que estreia como cantor o Johnson, ao lado do acordeom do então jovem gaiteiro catarinense Pedro Raymundo. De ambos se falará mais em outros capítulos (sobre Johnson, no de Lupicínio; sobre Pedro, no do Regionalismo).

Orquestra Cruzeiro

Até a ascensão da Jazz-Band de Paulo Coelho, o Jazz

Cruzeiro (com quase todos seus membros negros) seria considerado o melhor da cidade – mais até que o Espia Só. Era tão reputada que até Ernani Oliveira quis tocar com eles, ao mesmo tempo em que liderava sua própria orquestra. E não é à toa que foi o grupo de Paulo a suplantá-los. Afinal, foi do Jazz Cruzeiro que Coelho recrutou quatro de seus principais músicos: Ernani, Flávio, Oscar e Horacina.

45

Pra fechar, não dá pra deixar de fora o Jazz Carris. Fundada em

1934, com 13 figuras (dois banjos!), a orquestrinha fazia parte da política de entretenimento dos funcionários da firma de transporte criada na década de 1880 – Carris que segue em atividade até hoje, há tempos como empresa pública. Nestes anos, era da iniciativa privada, e tinha, além do seu jazz, seu próprio cine-teatro.

46

Pela banda passariam os já citados Pedro Raymundo, Marino dos Santos e Breno Baldo, mais uma seleção de outros craques. Todos contratados como funcionários da empresa e tendo de trabalhar também em alguma atividade não-musical: motorneiros, cobradores, fiscais…

* * *

A partir dos anos 1940 os jazz sumiriam lentamente de cena,

suplantados pelos novos formatos das big-bands e das orquestras, mas não sem antes ver nascer e florescer o Jazz Futurista, o Jazz Baby, o Jazz Pampeiro – do 3º Batalhão da Brigada Militar –, Jazz Indiano, Jazz Venezianos, Jazz Rio….

O imenso poder de fogo das big-bands substituiria, inflando, as formações por vezes quase aleatórias dos jazz, em favor do novo conceito americano da divisão em naipes: três ou mais trompetes, três ou mais trombones, três a cinco saxofones, mais uma cozinha rítmica de piano, contrabaixo, bateria e guitarra (com o Rio Grande do Sul permitindo-se a licença poética de incluir violino e bandoneon para um set de tangos e milongas).

* * *

Não encerremos este capítulo sobre os “jazz” de Porto Alegre sem

seguir as histórias de Marino e Paulino, dois instrumentistas negros, basicamente saxofonistas, e tão importantes quanto esquecidos na história da música da cidade.

O porto-alegrense Marino dos Santos nasceu no bairro Mont´Serrat dia 26 de abril de 1908. E, como seus já citados contemporâneos Paulo Coelho, Radamés Gnattali, Dante Santoro e Lupicínio Rodrigues, aos 15 anos já era um músico de respeito. O que se botava no leite dessas crianças é um mistério perdido.

47

(Reprodução: VEDANA, Hardy. Jazz em Porto Alegre. Porto Alegre: L&PM, 1987)

48

Com seis, tocava cavaquinho nos saraus familiares. Aos nove, começou a estudar violão, e já se apresentava em público cantando e tocando. Aos 12 – em 1920 – é admitido na orquestrinha do irmão, que tinha flauta, três violinos, violoncelo, dois violões e ele no cavaquinho e na bandola. O repertório variava: para os bailes na Colônia Africana, maxixes, quadrilhas e tanguinhos. Para as plateias de brancos, valsas e pot-pourris de operetas. Como isso soava ou era arranjado, não se sabe, afinal ninguém ali lia ou escrevia música.

Já era um nome relativamente conhecido quando, em 1923, Albino Rosa o chama para o regional Espia Só. E aí entram duas versões para a descoberta de Marino como saxofonista. Mais uma vez, ambas contadas pelo mesmo pesquisador, e no mesmo livro: de Hardy Vedana, Jazz em Porto Alegre.

A versão A é que já se contou aqui (na coluna anterior): Albino adquiriu um lote de instrumentos, incluindo saxofones, e equipou o pessoal.

Já a versão B é Hollywood puro: Marino sonhava em comprar um instrumento caro e ainda raro como aquele. Achar, até tinha achado. Estava lá, na vitrine da loja de música do Valcareggi (que segue firme até hoje, no mesmo endereço, na rua João Alfredo, bairro Cidade Baixa). Mas cadê dinheiro? Pois a mágica solução vem por obra e graça de um anjo de guarda de nome Oswaldo Vergara (Jaguarão, fronteira com o Uruguai, 1883 – Porto Alegre, 1973, professor, advogado e político de grande presença na cena gaúcha em seu tempo), o doutor para quem, nas horas ocupadas, Marino trabalhava como… motorista.

Foi no exercício de sua função que, um belo dia, ele desviou-se da rota do doutor para passar, por acaso, na frente da loja. Parou o carro e, num ímpeto, lascou:

– O senhor tem que comprar aquele instrumento pra mim!

Deu certo. O doutor abriu a carteira e lhe presenteou com os 200 mil réis

necessários. Em cinco minutos Marino era o feliz proprietário de um saxofone, indo levar seu patrão para uma audiência no fórum. E não foi só. O filho do doutor tocava piano, e foi com o “Dr. Jr.” no acompanhamento que Marino começou a aprender, totalmente autodidata, o novo instrumento. Mal tocava as primeiras notas quando enfrentou o primeiro baile. Instrumento na mão, muita cara de pau e

49

uma certa capacidade de improvisação foram as armas usadas pra enfrentar, no Jazz Espia Só, seu vasto repertório de… cinco músicas.

Qual das duas versões é a exata? Vai saber…

Paulino nos anos 1950 (Foto: autor desconhecido)

Voltando a Paulino “Mô Nêgo” Mathias: esse tinha nascido em

Santo Antônio da Patrulha (73 km a leste de Porto Alegre), dia 10 de janeiro de 1910. Mais um que, aos 15 anos, já era profissional. Tocava bandolim no grupo Os Boêmios – cujo violonista e cantor era Zé Bernardes, da futura dupla regionalista/caipira Oswaldinho & Zé Bernardes. Os Boêmios, contradizendo o nome, eram então um dos

50

conjuntos musicais mais requisitados para animar… piqueniques! (Sempre lembrando que não havia caixinhas portáteis com bluetooth, nem rádio, e gramofones não eram nem portáteis nem baratos; portanto a melhor opção para se ouvir música num piquenique era contratar uma banda.)

Da trajetória de Marino e Paulino no Espia Só, já se falou. Sigamos pois, daí. Marino sai do grupo em 1928 pra tocar com Paulo Coelho na

Confeitaria Central. E foi meio no susto: estava lá ele tocando um baile na Colônia Africana quando vê entrar porta adentro um branco: o já então famoso Paulo. Quase tão jovem quanto Marino (tinha míseros 18 anos, contra os 20 do saxofonista), Coelho era uma estrela na cidade, e vinha fazer um convite irrecusável: queria que Marino fosse o principal solista do jazz que ele estava montando para tocar na confeitaria. Marino hesitou, hesitou, e não topou:

Eu tinha até vergonha de conversar com ele. Me sentia inferiorizado em virtude de ele tocar nas melhores casas do centro da cidade, e eu, na periferia.

Não disse pro Paulo, mas também sabia que não lia música suficientemente bem pra enfrentar um aluno de Guilherme Fontainha no Conservatório de Música de Porto Alegre. Mas ficaram de se falar.

A solução encontrada foi a mais óbvia: Marino deu uma intensiva de estudos em leitura musical e, quando achou que dava pra encarar, procurou Paulo. Assumiu o posto na hora. A partir dali, se Porto Alegre teve seu Duke Ellington, e ele foi Paulo, Marino foi seu Johnny Hodges:

Eu era uma pedra bruta que fui (sic) lapidada por Paulo. Feliz daquele que foi acompanhado pelo melhor pianista da América Latina, sem favor nenhum.

O único intervalo na parceria foi quando, em 1930, empolgado com a Revolução, Marino se alista nas forças getulistas (não que eu quisesse ser militar, mas sabe como é o entusiasmo cívico! Ainda mais sendo gaúcho, e naqueles dias!). Foi parar em Passo Fundo, norte do Rio Grande do Sul. Lá, fez exame de música e, sempre modestíssimo, se surpreendeu quando foi aprovado na parte teórica. Dali, se mandou para o Rio de Janeiro com o Sétimo Batalhão de Combate. Fez um novo

51

concurso, passou em terceiro lugar, e ganhou o posto de terceiro-sargento-músico.

E aí, pombas, estava no Rio de Janeiro de 1930, sendo um bom músico. É evidente que passou a fugir do quartel para, com seu sax soprano, fazer uma pós-graduação em choro, ministrada nos piores botecos do Mangue. Quando se sentiu diplomado honoris causa, voltou pra Porto Alegre, deu baixa, e reassumiu seu posto com Paulo Coelho, embarcando com ele para uma gloriosa estada de um ano em Buenos Aires.

A partir de então, Marino também vai também fazendo alguma fama como compositor. É seu um choro que ficou clássico nas rodas locais, Saxofonista Triste, além da polca com o bárbaro título de Jair Furando e a polca-valsa Silvinha – prova definitiva de que a época era mesmo de fusões: que diabos é uma polca-valsa?!?

Popularidade e trabalho não faltavam. Em meados dos anos 1930, além de brilhar na orquestra de Paulo, também integra o Jazz Carris. E, como todos ali tinham de trabalhar não só como músico, virou motorneiro. Ou quase: Como eu tocava e compunha razoavelmente bem, o diretor da Carris seguidamente me dispensava do serviço de motorneiro. Daí a facilidade de tocar em três lugares (na rádio e nos cafés – com Paulo –, e na Carris).

Claro que também pode ter pesado o fato do motorneiro Marino ter entrado com tudo em cima de outro bonde, pelo simples fato de que pegou na firma às cinco da manhã, virado de um baile terminado às quatro. Que horas ele dormiu? Dirigindo o bonde, claro.

Quando Paulo Coelho morreu, ainda jovem, Marino já tinha saído do jazz-band e formado seus próprios conjuntos. Um deles era um quarteto com o lendário pianista Swing, para tocar na Boate Marabá. O outro era a Marino e Sua Orquestra, com 10 figuras, arranjada pelo mesmo Swing e contratada da Rádio Difusora. Essa era um time de responsa: entre outros, o velho parceiro Paulino Mathias no sax tenor, guitarra e contrabaixo, o futuro Maestro Macedinho no sax alto e Horacina Corrêa no vocal.

Sua moral é tanta que, em 1941, quando é feito o primeiro concurso de jazz bands de Porto Alegre, a matéria da Folha da Tarde intitulada Qual será o melhor jazz da cidade? coloca como grande questão a dúvida:

Marino. Ele aceitará ou não? “It’s the question”! Por enquanto, o

popular saxofonista nada decidiu.

52

E segue:

Em Marino, indiscutivelmente, reside uma boa parcela do interêsse que despertará a contenda.

A popularidade da Orquestra logo os leva a São Paulo, contratados pela Rádio Cultura. Tocam algum tempo por lá, mas o que faz sucesso mesmo é um quinteto paralelo, com Marino no clarinete, Swing no piano, Paulino no contrabaixo, mais trompete e bateria. Tanto que, quando acaba o primeiro contrato, os músicos, sintomaticamente gaúchos, decidem voltar pra casa. Só ele fica.

Trabalha com grandes orquestras paulistas, como a de Sylvio Mazzuca, e só volta a Porto Alegre em 1948, novamente por um bom motivo. Fundar a melhor big-band surgida desde a Jazz-Band de Paulo Coelho: a Orquestra Ernani & Marino. O grupo, que além dos dois (Ernani Oliveira, trompete) tinha também como estrela o baterista Natalício, faz muito sucesso até 1954, quando Marino vai embora de novo. Desta vez para o Rio, direto para a orquestra da TV Tupi.

Enquanto isso tudo acontecia, Paulino Mathias fazia seu nome nos melhores cabarés da época: o Dancing Royal, o Dancing Oriente (ambos nos anos de 1930 e 40) e o Castelo Rosado (nos 1950). Ao mesmo tempo, iluminava as transmissões da Rádio Gaúcha, para a qual fora contratado já em 1934: era um grande improvisador, coisa rara nestes tempos. E, apesar de ter se estabelecido como saxofonista e clarinetista, seguia tocando – e bem – bandolim, violino e violão.

Em 1960, Marino volta pela última vez a Porto Alegre, e novamente pra tocar na melhor big-band de então. Que, desta vez, é a Orquestra de Karl Faust, da Rádio Gaúcha – onde permanece até que, no final dos anos de 1960, o alemão Faust volta para sua terra natal, a rádio perde seu público para a TV, as Big Bands perdem trabalho para as bandas de guitarra e os conjuntos melódicos e Marino e Paulinho passam a viver o périplo de toda sua geração de instrumentistas, passando da mais alta glória para empregos crescentemente indignos, em boates e inferninhos cada vez mais decadentes. Até o momento em que nem isso mais havia.

Paulino morre em Porto Alegre, em 1977, completamente esquecido. Tão ou mais que Marino, que se vai três anos depois, morando modestamente numa casinha na Vila Nova (zona rural no extremo sul de Porto Alegre).

53

Na Porto Alegre de 1980, ninguém queria saber de velhos saxofonistas de tempos idos.