A paisagem como cultural material e construção social
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VII RAM - UFRGS, Porto Alegre, Brasil, 2007 - GT 45 Estéticas indígenas americanas. Coordenação: Sergio Baptista da Silva (UFRGS, Brasil) e Guillermo Wilde (UBA, Argentina)
Terra, territorialidade e bem estar Guarani.
A paisagem como cultural material e construção social.
Vanderlise Machado Barão
NUPArq/UFRGS, RS, Brasil.
A arqueologia, buscando compreender as sociedades do passado, há muito se
baseia nas informações da etnografia, junto às sociedades do presente e as ações
humanas dentro dessas sociedades, a fim de fazer analogias com as ações do passado.
No entanto, o que se tem visto nas novas abordagens arqueológicas, além do fato de que
há bastante tempo o arqueólogo tem ido à campo fazer suas próprias análises
etnográficas, e não só utilizado as pesquisas etnográficas feitas pelos etnógrafos, que
iam a campo com sua própria problemática, é que este arqueólogo tem procurado
compreender não só as técnicas manufatureiras ou processos econômicos e culturais do
passado dessas sociedades, ligadas a ações diretas destes homens e mulheres sobre os
objetos que encontramos no registro arqueológico, mas tem feito tentativas de se
aperceber do mundo simbólico desses povos.
E para isso temos nos aproximado cada vez mais das práticas e conceitos da
antropologia, bem como de outras ciências sociais, no intuito de melhor compreender as
lógicas que regem as culturas humanas naquilo que não é palpável, não é material no
sentido bruto, mas faz parte do imaginário, do que é transformado pelo simbólico e não
apenas na ação direta de lascar uma pedra para fazê-la cortante.
Quando falamos em sítios arqueológicos logo nos vêm a mente àqueles lugares
cheios de cerâmicas quebradas, lascas de pedras, restos de fogueiras, que se encontram
na natureza, numa paisagem que geralmente classificamos como um abrigo ou uma
estrutura, de acordo com os vestígios deixados pelos seus antigos ocupantes. Muitas
vezes esses vestígios se encontram numa lavoura atualmente, compondo uma nova
paisagem, num contexto bem diferente do que viveu a sociedade que os produziu.
E nós, cientistas, classificamos tudo isso de acordo com nossas premissas,
nossos conceitos e indicamos que isso é patrimônio. O objeto deixado na lavoura é
patrimônio de quem?
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O sítio arqueológico tem limitações dadas pelo arqueólogo, que em geral se
orienta pela distribuição dos objetos no espaço. Mas, e onde não há objetos? Esse
homem do passado não andou, não interagiu, não delimitou lugares, da mesma maneira
que hoje fazemos? Essa paisagem não foi manejada, como hoje manejamos?
Com certeza sim, mas dificilmente nos apegamos muito à essas questões,
tamanho é o nosso fascínio sobre os objetos. Estes, nós podemos recolher, catalogar,
limpar, guardar em nossos laboratórios, como se nos pertencessem por todo o sempre.
Mas, e o lugar onde estavam os objetos? Como recolher, lavar e guardar?
Não há como, então o abolimos como objeto da cultura material e só o
classificamos como o contexto, meio difuso, onde se desenvolveu uma ação antrópica.
Por muito tempo se fez, e se faz ainda, arqueologia dessa maneira: pensando
apenas o objeto, suas técnicas de fabricação, usos, etc., sem incorporar, contudo o
espaço, a natureza, a paisagem como algo construído pelos grupos humanos, tanto
quanto um pote de cerâmica.
Mas, para se obter essa dimensão tem-se que se abster do nosso conceito de
sítio, e pensarmos no lugar como cultura e espaço de construção social. Esse lugar onde
estão os vestígios materiais e suas adjacências podem ter sido sim um objeto da cultura
material de uma sociedade que não está mais ali, mas que vive em outros lugares e
aponta as direções do seu significado. E esse mesmo lugar, faz hoje parte da cultura
material de outra sociedade, como a lavoura do colono, que se sobrepôs a uma antiga
aldeia ou roça Guarani, por exemplo, ou a casa construída sob um antigo cemitério
indígena, que não deixa de ser de outra forma uma interpretação do espaço manejado, já
que o colono que suplantou o Guarani naquele lugar, também o transforma a sua
maneira para dele fazer uma parte da sua cultura e dessa forma incorpora o que
chamamos de vestígios arqueológicos ao seu mundo simbólico, diferenciando da forma
como o Guarani vê o lugar.
Então as pessoas fabricam “lugares” como fabricam potes de cerâmica, ou facas
de pedra, ou potes de plástico e enxadas.
Como é visível em nossa sociedade mesmo, há uma finalidade social para a
criação de uma roça e de uma lavoura, assim como a escolha do lugar onde se construirá
a casa e se fará um jardim, que não é apenas funcional ou tem apelo econômico. São
feitas escolhas relacionadas ao modo de vida, à cultura a que se pertence, à
religiosidade, enfim, vários fatores simbólicos estão aí envolvidos.
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Basta observar as pessoas e seus valores, aquilo que classificam como
importante em seu mundo cultural. Os lugares são objetos humanos, nós construímos
isso, uma paisagem passa a ser uma paisagem quando lhe designamos tal categoria,
então esse lugar passa a ter significado para nós.
Conforme Cornelius Castoriadis (1986),
A sociedade deve definir sua ‘identidade’; sua articulação; o mundo, suas relações com ele e com os objetos que contém; suas necessidades e seus desejos. Sem a ‘resposta’ a essas ‘perguntas’; sem essas ‘definições’ não existe mundo humano, nem sociedade e nem cultura – porque tudo permaneceria caos indiferenciado. (p. 177)
E isso se dá com todas as sociedades humanas, o que muda são os valores
culturais, o que categorizamos como patrimônio, que vai ser diferente para cada cultura.
Nós chamamos patrimônio na linguagem ocidental, e assim acrescentamos nomes e
designações sociais à natureza que passa a ser uma paisagem, um lugar, e outros povos
o fazem dentro da sua lógica de mundo, da mesma maneira, só que dando diferentes
significados e usos para este seu patrimônio.
...tanto a antropologia quanto a arqueologia, sob esta perspectiva, buscam entender como as pessoas dão significado às coisas, como ordenam seus mundos. As afirmações que ambas sustentam, mediadas por pessoas ou por objetos, em nenhum momento representam a verdade sobre as sociedades estudadas, são apenas – no dizer de Thomas & Tilley (1993:321) – “uma forma de ver e pensar sobre elas” (CABRAL, 2005).
Quando se faz um trabalho etnográfico junto aos Guarani do litoral, que é um
dos motivos desse estudo, se percebe a riqueza de elementos salientados por eles,
relativos ao espaço que ocupam na mata, e até aqueles que não ocupam fisicamente,
mas que se mantém muito vivo na memória coletiva do grupo. E esses lugares são
nominados, tem personalidade, fazem parte da cultura como coisas palpáveis e
importantes mesmo para o bom funcionamento do espaço social, construído e
vivenciado pelos Guarani.
O manuseio desses espaços, dessa paisagem, é uma marca Guarani, pois assim
transformam os lugares da natureza em terra de mbyá – mbya retã. O que adentra o
funcionamento dessa sociedade, em diálogos ricos sobre a importância do território e de
elementos naturais, que são o verdadeiro “patrimônio” Guarani. Percebe-se que a
construção desses “lugares”, dessa terra sonhada dos Guarani, tanto físico como
imaginário, ela é freqüente e recorrente para afirmar a identidade desse povo com o
território que ocupam, ou que almejam ocupar, e isso está intrinsecamente ligado ao
bem estar dessa gente.
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O fator identidade também é uma problemática para o arqueólogo, já que é
difícil associar tal categoria aos objetos que encontramos na natureza. Porém, se
pensarmos que temos situações análogas no presente, não precisamos saber o nome do
grupo em questão, mas sabemos que se trata de uma sociedade, que tinha sim sua
identidade que agora está apagada pelo tempo, mas podemos ligar esse passado ao
presente de outros povos próximos. Sabemos que os Guarani pré – coloniais, não são e
nem teriam que ser, os mesmos Guarani que hoje vivem próximos de nós, mas sabemos
que aqueles são seus antepassados, e que como as identidades são dinâmicas, os
Guarani que vivem em 2007 pertencem a este tempo, aqueles de antes de Cabral,
pertencem aquele tempo. Nenhum problema em se observar um grupo moderno, para se
pensar no passado, pois esse passado pertence a eles, o que vemos são vestígios da
história dos Guarani de 2007.
Manuela Carneiro da Cunha (1987), nos aponta que a identidade étnica muitas
vezes passa a ser reforçada a partir de infortúnios, ou seja, as diásporas de populações
ou as tentativas de aculturação ou catequização de grupos culturais distintos como as
que foram implantadas no processo de conquista do continente americano, geram um
fortalecimento da identidade étnica como forma de resistência ao elemento dominador,
de forma que essa identidade se manifesta como um ato político, gerando organizações
eficientes de resistência e conquista de espaços. Da mesma forma Philippe Poutignat e
Jocelyne Streiff-Fenart (1998), vêem a etnicidade como um produto da desigualdade
social e do desenvolvimento capitalista, como uma estratégia de reivindicação de
recursos ou como uma forma de resistência organizada ao processo de modernização. E
este processo leva as etnias a estarem sempre em transformação, criando uma dinâmica
interna no grupo, que se reorganiza continuamente a fim de manter uma unidade política
e ideológica diante da sociedade a que se contrapõem.
Por isso a identidade étnica dos Guarani pode ser vista como algo moderno,
claro que cada povo se identifica e se auto - classifica diante de outros em qualquer
tempo, mas essa definição é algo do nosso tempo e da nossa cultura.
Mas, para falarmos do manejo que estas populações fazem no seu território é
preciso entender sua identificação como grupo humano, para assim tentar compreender
como os Guarani percebem o seu território e como eles se apropriam do espaço
geográfico e das paisagens ao redor transformando-as em Mbyá retã– terra de Guarani.
Tem sido necessário percorrer esses espaços junto aos índios e deles receber
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informações a respeito de sua compreensão sobre a paisagem e a natureza. Para isso se
têm feito entrevistas gravadas, fotografias e longos diálogos com membros dessa etnia,
bem como buscado em publicações anteriores e registros documentais informações a
respeito da relação que esses grupos indígenas tem com as áreas de conservação
ambiental.
A natureza a partir do momento em que é manipulada por alguém, ou imaginada
deixa de ser “natural”, para ser cultural, ela passa a ser significada e isso muda toda a
lógica do espaço, muda o pensamento sobre um território e o transforma em lugar, em
terra de alguém. Para os Guarani a mata atlântica significa ainda o que resta da “Mbya
retã” e nela é projetada todo um imaginário sócio – cultural que transforma essas
paisagens ou territórios em lugar de Guarani e de seus mitos, seus espíritos, seus
sonhos.
Nessas andanças junto ao grupo, pela mata, pude perceber também, como a mão
humana é freqüente na expansão de espécies da flora e fauna dentro da mata atlântica.
Já existem vários pesquisadores se debruçando sobre essa temática da
etnoconservação, em função de terem percebido que o manejo ambiental é algo humano
e não existem naturezas intocadas, mas sim frutos de uma interação entre homem e
meio ambiente como um todo. Pode-se perceber pelas palavras de Antonio Carlos
Diegues,
que a biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural e do cultural, mas é a cultura como conhecimento que permite que as populações tradicionais possam entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la e, freqüentemente, enriquecê-la, como se viu anteriormente. (DIEGUES, 2000: 32).
Estas práticas de manuseio da mata não foram apenas contadas para mim, mas
pude ver isto acontecendo naturalmente, pois são coisas corriqueiras, não são
previamente pensadas para serem feitas. Quando se anda no meio de um mato com os
Guarani - onde eu não percebo, mas há caminhos previamente estabelecidos por eles -
aqui e ali eles vão colhendo uma planta para remédio, ou para outros fins. Identificam a
situação de alguma muda que já haviam manejado por ali, ou que nasceu sozinha, e eles
estão cuidando, pois há todo um cuidado com as espécies que estão se desenvolvendo
na mata. Os lugares têm nomes próprios, onde combinam de encontrar-se ou indicam
para mim, explicando esses lugares e sua importância. Também há a coleta de mudas
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para serem transplantadas para mais perto da casa, ou para serem enviadas como
presentes a sua parentela, em visita, ou que vão visitar.
Os índios estão recuperando muitas áreas, que estavam esgotadas por causa do
cultivo do eucalipto, com o replantio de nativas. Isso, pode ser percebido, inclusive
numa aldeia em Imaruí – SC, onde o lugar está se renovando em função da presença dos
Guarani nela (Fig. 01). Antes pertencia a uma madeireira e a terra estava praticamente
destruída pelo plantio continuado de eucaliptos, e desde que os Guarani implantaram
uma aldeia naquele lugar, que foi comprado para eles através de uma medida
compensatória por causa da implantação do GASBOL, a área já tem uma outra cara,
com espécies nativas da mata atlântica crescendo e se desenvolvendo, formando assim
uma nova paisagem, com jeitinho de Guarani.
E essas espécies são trazidas, muitas vezes, de longe para o território. Visitas de
parentes, que vêm de outros estados e até de outros países, sempre são formas de que
algumas espécies sejam remanejadas. As trocas de sementes de milho, mudas de fumo e
outras espécies cultiváveis são recorrentes, mas há também a busca de espécies da flora
nativa da mata atlântica, que são recolhidas nos lugares onde se encontram pra repovoar
os lugares de onde foram retiradas.
Gustavo Politis (1996: 43), chama a atenção para as práticas exercidas pelos
Nukak, da Colômbia, dentro da mata amazônica, onde o grupo processa o ambiente em
que vive. Mesmo tendo acesso a materiais modernos, como o metal, ainda preferem o
uso de muitos artigos fabricados com as plantas tradicionais, como cabos de machado,
que embora com lâmina de ferro, mantém o cabo sendo feito de uma árvore que tem
relações simbólicas para o grupo, assim como muitos dos objetos de sua cultura
material, como cestos, lanças, zarabatanas, recipientes para armazenar alimentos, vem
da mata, bem como os próprios alimentos, que são obtidos em incursões de caça e
coleta.
O manejo do ambiente faz com que este se renove, numa interação entre o grupo
que o utiliza e as práticas sustentáveis. Para isso deve haver um conhecimento profundo
desse espaço e dessa paisagem, para que ambos, sociedade humana e meio ambiente, se
sustentem. Porém os grupos tradicionais, que há muito desenvolveram técnicas de auto -
sustentação e um conhecimento profundo do meio ambiente onde vivem, sabem
interagir perfeitamente neste ambiente, as distorções se dão exatamente quando essa
harmonia é quebrada por fatores externos ao da sociedade em questão, pois
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la territorialidad és una propiedad de las poblaciones humanas y ha sido definida como el sistema de conductas que controlan y mantenien el uso más o menos específico de una área determinada. (POLITIS & CARDENAS, 1996: 33).
Os Guarani do litoral também são antigos detentores desse território, e sabem
manejá-lo perfeitamente, e da mesma forma que os Nukak, embora tenham acesso a
utensílios modernos, como panelas de alumínio, potes plásticos, eletrônicos e outras
bugigangas, conservam um apreço muito grande na confecção de vários utensílios
tradicionais, como cestaria, os cachimbos de barro – Petynguá - adornos, etc., e por esse
motivo a coleta de matéria prima para produzir esses objetos é retirada da mata. Assim
como a alimentação também vem em grande parte dela (Fig. 02).
Esse é um tema bastante recorrente, pois a caça de animais em áreas de
conservação ambiental é proibida, já que estes animais correm risco de extinguir-se
devido á predação indiscriminada. Porém, para um Guarani, a caça faz parte da vida, e
comer determinadas carnes é importante para a boa alimentação e o bem viver, bem
como a extração de recursos silvestres, como o mel, que deveria vir da mata e não ser
fabricado nas caixas de abelhas que muitas aldeias receberam de órgãos públicos. A
alimentação para um Guarani tem a ver com a construção do corpo e aí vemos uma
perspectiva indígena em questão, pois eles afirmam que nossa comida faz mal pra eles.
O certo seria poderem comer “comida de Guarani”, que vem a ser uma comida não
industrializada, mas coletada na mata e colhida em suas roças, juntamente com carnes
de caça e peixe. No entanto as práticas de caça e coleta vem sendo cada vez mais
impedidas pelos gestores públicos, que não permitem mais que os indígenas interajam
dessa forma dentro das áreas onde vivem (Fig. 03), já que a maioria delas são áreas de
conservação ambiental ou terras particulares, no caso daqueles que estão fora das T.Is.
Esse nativo relativo, conforme nos refere Viveiros de Castro (2002), tem as suas
preferências, os seus diagnósticos sobre saúde e bem estar, assim como higiene e moral,
e não está totalmente de acordo com as práticas ocidentais que lhes aplicamos, já que
estas lhes são apresentadas através de uma legislação que tem suas próprias
prerrogativas e categorias para disciplinar a sociedade. E isso causa crises, traumas
dentro da sociedade indígena, que se vê “apertada”, como costumam dizer os Guarani.
Essas situações acabam criando todo um imaginário sobre o território e a
identidade social do grupo. Eles apelam para um discurso onde nos façam entender suas
necessidades, suas amarguras com este mundo em que estão vivenciando tais ações e
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acabam nos representando o mundo ideal, que deveria fazer parte da vivência dos
Guarani, mas que é sabido que não está assim, então eles dizem que estão “doentes”.
Castoriadis (1986) comenta esse tipo de questão dizendo,
que sentido existe em dizer que suas formações imaginárias só adquirem importância, só representam um papel porque fatores ‘reais’ – a repressão das pulsões, um traumatismo – já haviam criado um conflito? O imaginário age sobre um terreno onde existe repressão das pulsões e a partir de um ou vários traumas: mas esta repressão das pulsões está sempre presente, e o que constitui um trauma? Afora casos extremos, um acontecimento só é traumático porque é ‘vivido como tal’ pelo individuo, e esta frase quer dizer no caso presente: porque o individuo lhe imputa uma significação dada, que não é a sua significação ‘canônica’, ou de qualquer maneira, não se impõe fatalmente como tal. (P.163).
Esse mundo imaginado existe de fato, porque é assim que ele se compõe no
mundo Guarani, e as tentativas de reconstrução desse imaginário a gente pode ver em
casos como o de Imaruí, onde se tenta recompor a terra de Guarani para ali bem viver.
Essa necessidade de ter um lugar ideal escolhido pelo grupo social, fica evidente
quando se vai procurar entender a forma de deslocamentos exercidas pelos Guarani.
Porque eles não ficam nas reservas estipuladas pelo governo ou estão devidamente
inseridos nas povoações das cidades ou nas povoações coloniais no interior, já que são
agricultores, e quais os critérios que buscam para as demarcações de terras atualmente?
Segundo Flávia Melo (2001),
A terra em que se mora, a aldeia, a tekoá não pode, portanto, ser qualquer terra. A terra Guarani, que foi habitada, segundo os mitos, pelos “antigos avós’ (que deixam sinais de sua ocupação que podem ser reconhecidos hoje pelos Guarani, como os topônimos, os vestígios de cerâmica, as ruínas de construções em pedra, marcas de antigos cemitérios, etc.) é uma terra com características especificas. Ela deve propiciar a realização do nhanderekó, o “jeito de ser” Guarani, em todos os seus aspectos., sejam materiais ou morais. Esta tekoá é formada por três espaços físicos indissociáveis: a aldeia propriamente dita, onde estão as casas, a roça e a mata (MELIÁ, 1990: 36-7). A aldeia é o espaço onde estabelecem-se as relações sociais próprias dos Guarani, que são regidas por um conjunto de normas morais e de conduta, a roça é onde “da mão se faz os alimentos”, é o local que circunda a aldeia, no qual trabalha-se e planta-se as culturas ensinadas pelos deuses civilizadores, e a mata, o espaço mítico de interação com a natureza, habitada por entidades mágicas, e de onde se tira as plantas curativas (...), faz-se o manejo das árvores cósmicas e tira-se os produtos indispensáveis à dieta tradicional dos Guarani, aquela que foi prescrita pelos deuses, como a caça, a pesca, a extração do mel, do pindó, etc. (MELO, 2001: 10)
Há o que eles chamam “lugar para criar família”, que é uma terra cultivável, com
mata e águas limpas. Por isso, quando conseguem um “lugar” vão logo transformando a
paisagem em mbyá retã, plantando espécies que são importantes para eles e fazendo
clareiras para roças com seus milhos coloridos.
É claro que os indígenas de hoje são modernos. Não podemos esperar que se
tivessem mantido intactos, iguais aos seus antepassados, mas a lógica da tekoá, do lugar
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pra roça, da beleza da mata para a saúde do Guarani, se mantém, mesmo que somente
no discurso do indígena.
Durante um trabalho de campo, em 2006, realizados em função de uma obra de
engenharia que se implantava em áreas indígenas residentes em Palhoça – SC, pude
observar André Benites, Guarani Mbyá morador na beira da BR 101, na localidade da
Cambirela, que é cacique de seu pequeno grupo familiar, desenhar no chão para nos
mostrar o que é a tekoá que ele sonha: com uma área de mata nativa, uma roça grande
na entrada da aldeia, as casas dos mais jovens próximas à escola, posto de saúde e afins;
as casas dos mais velhos na área mais retirada e protegida pela mata, onde deve ser
erguida a opÿ – casa de reza. E esse lugar deve ter um rio, um curso d’água de
preferência no meio, porque “a água é como as veias, onde corre o sangue, deve estar
dentro da terra, não por fora” (Fig. 04).
Claro que essa terra sonhada, nem sempre condiz com as áreas que ocupam,
porque as terras que são designadas para índios atualmente são áreas íngremes,
pedregosas, que não servem para o cultivo e necessitam recuperação ambiental, em
muitos casos.
Há situações, como no caso da Cambirela, de encontrarmos vestígios
arqueológicos nas proximidades das aldeias, mas estes não são os principais fatores da
escolha atual do lugar, mas é claro que sua identificação nos faz pensar no que é e no
que era a definição de ”lugar” ideal para as sociedades atuais e antigas, e de qualquer
forma, a existência de vestígios dos “avós”, como eles costumam se referir a essas
evidências de antigas ocupações, são referências importantes para a definição do lugar
ideal, que se somam a outras evidências menos perceptíveis para nós arqueólogos, mas
totalmente palpáveis para eles Guarani.
E como lidar com essa noção de patrimônio indígena, já que a nossa muitas
vezes diverge da deles? E aí temos um impasse, principalmente quando se trata de áreas
de conservação ambiental.
Segundo Gonçalves (2003),
É possível transitar de uma a outra cultura com a categoria patrimônio, desde que possamos perceber as diversas dimensões semânticas que ela assume e não naturalizemos as nossas representações a seu respeito. Em contextos sociais e culturais não – modernos, ela coincide com categorias mágicas, tais como o mana e outras, e define-se de modo amplo, com fronteiras imprecisas e com o poder especial de estender-se e propagar-se continuadamente. (GONÇALVES, 2003:23).
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Os Guarani associam a boa saúde da terra à sua própria saúde. A utilização de
várias espécies vegetais como remédios e como ervas para os rituais religiosos é
recorrente e necessita da mata, porque nem todas as espécies são cultiváveis perto da
casa, por diferentes motivos: pode ser tabu ou porque realmente não se dão bem no
ambiente do terreno aberto do pátio, ou junto das roças. Então o território de domínio
envolve a mata e seu manejo é necessário e auto - sustentável, porque não há interesse
dos índios na sua destruição, muito pelo contrario.
A noção de que patrimônio se confunde com propriedade, que os bens materiais,
inclusive as paisagens que compõem o mundo Guarani, são objetos, que não podem ser
separados de seus donos. A terra e o Guarani são a mesma coisa, assim como para
outros grupos humanos que possuem um tipo de sociedade ligado ao território, ao
manuseio da natureza, são estas as sociedades tradicionais, como nos indica a trabalho
de Gonçalves (2003:23 – 4) e os estudos de Marcel Mauss, sobre a dádiva entre grupos
de diferentes lugares, que possuem práticas bastante próximas com relação aos usos e
trocas de objetos e bens, que possuem uma personalidade própria, mas que esta não está
desvinculada de seu dono e de seu lugar no meio físico de onde veio.
Compreende-se logicamente, nesse sistema de idéias, que seja preciso retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substancia, pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma, a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não simplesmente porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da pessoa, não apenas moralmente, mas fisicamente e espiritualmente, essa essência, esse alimento, esses bens, móveis ou imóveis, essas mulheres ou esses descendentes, esses ritos ou essas comunhões, tem poder mágico e religioso sobre nós. (MAUSS, 2003: 200).
Voltamos aqui aos pedidos dos parentes e os presentes feitos pelos anfitriões aos
visitantes, bem como o contrário, que quase sempre giram em torno de espécies
vegetais. Essas práticas podem ser vistas como tradicionais entre esses povos, e nossa
imaginação nos leva a pensar que no passado tais práticas também devam ter sido
corriqueiras. Portanto, os ecossistemas diversificados devem muito à ação antrópica, já
que o homem faz parte da natureza, assim como os demais animais. E essas ações fazem
também parte da reciprocidade do grupo, dar representa status, receber, significa dever,
aliança (MAUSS, 2003). Então quando esta aliança se dá dentro do grande grupo
Guarani, através dos presentes dados e recebidos, além de fazer o manejo do ambiente,
que é seu patrimônio no sentido amplo, pertencente ao grande grupo Guarani, também
se fixam os deveres junto a este patrimônio ou a esta propriedade territorial.
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E essas práticas são retroativas já que os deveres de retribuição fixam os
alicerces da rotatividade dos presentes, fazendo com que o grupo fique unido em torno
desse território, dessas paisagens e de sua conservação para as gerações futuras,
preservando as espécies como bens que devem passar de pai pra filho, já que foram
passadas dos deuses para os Guarani.
Tentar entender o que significa a natureza “sonhada” dos Guarani do litoral
meridional do Brasil – RS e SC - e como é feito o manejo dessa paisagem pelos
indígenas, como é entendido a conservação do meio ambiente por essas comunidades
que ali criam suas aldeias e apontam como necessária a preservação da mata e da beleza
desta, para o bom desenvolvimento de seu modo de ser e da sua saúde física, tem sido
um exercício para a prática arqueológica, já que as sociedades Guarani do passado
possuíam também suas prerrogativas sobre o mundo que habitavam, e deixaram legados
nas populações do presente. Para isso é preciso pensar o que significa natureza, espaço
natural e espaço cultural, dentro do âmbito da territorialidade dos grupos indígenas e da
sociedade ocidental, para assim estabelecer uma ponte para a compreensão do que é
patrimônio na concepção indígena do ambiente que este ocupa, e como tratar esse
patrimônio despido da nossa concepção de conservação patrimonial, para uma ação
mais conscienciosa e colaborativa junto aos grupos indígenas que ocupam áreas de
conservação ambiental.
Essa proposta visa salientar o que é patrimônio para esses povos e como sua
identidade está ligada á territorialidade, buscando uma maneira de lidar com a
preservação ambiental cuidando também do patrimônio cultural que representam as
culturas indígenas nesses ambientes.
Novamente parafraseando Castoriadis (1986),
A sociedade não é nem coisa, nem sujeito, nem idéia – e tampouco coleção ou sistema de sujeitos, de coisas e idéias. Esta constatação facilmente parece banal para aqueles que facilmente se esquecem de perguntar como e porque pode-se então falar de uma sociedade e desta sociedade. Porque na linguagem estabelecida e na lógica que ela traz ‘um’ e ‘isto’ só se aplicam ao que sabemos designar, e nós só sabemos designar coisas, sujeitos, conceitos e suas coleções ou reuniões, relações, atributos, estados, etc. Mas a unidade de uma sociedade, como sua ecceidade – o fato de ser esta sociedade e não outra qualquer – só podem ser analisados em relações entre sujeitos mediatizados por coisas, já que toda relação entre sujeitos é relação social entre sujeitos sociais, toda relação com coisa é relação social com objetos sociais, e os sujeitos, coisas e relações só são aqui o que são e tais como são, porque são assim instituídos pela sociedade considerada (ou por uma sociedade em geral).(p. 213).
Aqui podemos pensar que sendo os Guarani uma sociedade, com seus atributos
próprios, sua problemática e sim sua construção social das coisas que fazem e
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produzem, volto a minha problemática de arqueóloga: como pensar nessa sociedade do
passado, que deveria ter muito menos influências governamentais do que a de agora,
mas que tinha já estas suas prerrogativas junto ao ambiente que ocupam. Quando vejo
como estes Guarani, ou os Nukak, ou outro grupo qualquer, produz seu habitat,
personalizando-o de tal forma que este se adapte a sua filosofia de vida, e da mesma
maneira se adaptando a ele, de forma harmônica, percebo que os objetos são meras
ilustrações, e que precisamos ousar, mas pensar arqueologia de forma mais ampla.
Além disso, somos os detentores do discurso, então há também nas nossas
pesquisas a nossa “paisagem”, pois fazemos algo a partir do nosso olhar sobre este
outro. Tanto que, indo à campo com os Guarani me vi em outro mundo, percebendo
coisas que não havia pensado até então para os sítios arqueológicos que conhecia. E isso
me fez refletir sobre nosso trabalho, mas colocou-me uma questão: Como dar a
abrangência necessária para tais pesquisas?
Isso talvez seja ainda artigo de muito exercício, mas colocar-me na posição de
expectadora na pesquisa já pode ser um bom começo, bem como levar em conta esses
outros mundos que cercam a vida de outras sociedades que não a minha.
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ANEXOS:
14
Fig. 01. Aldeia Guarai Cachoeira dos Inacios, Imaruí –
SC. Área em recuperação ambiental, com plantações de
árvores nativas e bananeiras próximas a casa.
Fig. 02 Mulher Mbyá de Misiones, Argentina,
trabalhando artesanato dentro da casa. Detalhe para os
utensílios domésticos sobre a mesa
Fig. 03 Mbyá da Aldeia de Itapuã. Mulher cozinhando
frango, pois a caça foi proibida para esta comunidade que
se encontra à margem do Parque Estadual de Itapuã.
Fig. 04 Esquema da aldeia sonhada de André Benites,
Cambirela, Palhoça – SC.