Construção Social da Prática Odontológica

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125 Construção Social da Prática Odontológica* Karina Santana Cruz ** Maria Helena Santana Cruz *** Adalúcia Conceição Correia **** Narjara Oliveira Bezerra ***** Luciana Santos Bittencourt ****** O estudo reflete sobre o tema do trabalho e formação profis sional no marco do neoliberalismo, frente à dinâmica do mercado e de novas demandas de qualificação, focaliza a construção de trajetórias profissionais de trabalhadores da saúde, atribuindo especial destaque ao campo da Odontologia; também descreve aspectos dessa realidade complexa, por meio das percep- ções relatadas pelos próprios profissionais (grupo específico de pessoas) quanto à sua realidade de trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Formação Profissional; Trabalho; Saúde; Odon- tologia. * Pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPq/UFS em 2004-2005. ** Doutora e Mestra em Ortodontia-Ortopedia Facial (USP-Bauru). Profª de Ortodontia no Curso de Graduação em Odontologia da Universidade Federal de Sergipe e Profª do Curso de Especialização em Ortodontia- Ortopedia Facial da Associação Brasileira de Odontologia/SE. Departamento de Odontologia, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Endereço: Rua Professor Antônio Fagundes de Melo, 210. Praia 13 de Julho. Aracaju-SE – 49020-070; e-mail: [email protected] *** Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Sociologia da Universidade Federal de Sergipe, Coordenadora do NEPIMG – Núcleo de Estudos e Pesquisa Interdisciplinares Sobre a Mulher e Relações de Gênero. Endereço: Rua Prof. Antônio Fagundes de Melo, 210. Praia 13 de Julho. Aracaju-SE – 49020-070. e-mail: [email protected] **** Graduada em Odontologia – (DOD) e bolsista do Programa Institucional De Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC) – CNPq/UFS. Aracaju (SE); e-mail: [email protected] ***** Graduada em Odontologia (DOD) e bolsista do Programa Institucional De Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC) – CNPq/UFS; Aracaju (SE); e-mail: [email protected] ****** Graduanda em Serviço Social (DSS) e bolsista do Programa Institucional De Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC) – CNPq/UFS. Aracaju (SE); e-mail: [email protected] Resumo Revista da Fapese, v. 2, n. 1, p. 125-142, jan./jun. 2006

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Construção Social da Prática Odontológica*

Karina Santana Cruz**Maria Helena Santana Cruz***Adalúcia Conceição Correia****

Narjara Oliveira Bezerra*****

Luciana Santos Bittencourt******

O estudo reflete sobre o tema do trabalho e formação profis

sional no marco do neoliberalismo, frente à dinâmica do

mercado e de novas demandas de qualificação, focaliza a

construção de trajetórias profissionais de trabalhadores da saúde,

atribuindo especial destaque ao campo da Odontologia; também

descreve aspectos dessa realidade complexa, por meio das percep-

ções relatadas pelos próprios profissionais (grupo específico de

pessoas) quanto à sua realidade de trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Formação Profissional; Trabalho; Saúde; Odon-

tologia.

* Pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPq/UFS em 2004-2005.** Doutora e Mestra em Ortodontia-Ortopedia Facial (USP-Bauru). Profª

de Ortodontia no Curso de Graduação em Odontologia da UniversidadeFederal de Sergipe e Profª do Curso de Especialização em Ortodontia-Ortopedia Facial da Associação Brasileira de Odontologia/SE.Departamento de Odontologia, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde,Endereço: Rua Professor Antônio Fagundes de Melo, 210. Praia 13 deJulho. Aracaju-SE – 49020-070; e-mail: [email protected]

*** Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia,Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Sociologiada Universidade Federal de Sergipe, Coordenadora do NEPIMG – Núcleode Estudos e Pesquisa Interdisciplinares Sobre a Mulher e Relações deGênero. Endereço: Rua Prof. Antônio Fagundes de Melo, 210. Praia 13de Julho. Aracaju-SE – 49020-070. e-mail: [email protected]

**** Graduada em Odontologia – (DOD) e bolsista do Programa InstitucionalDe Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC) – CNPq/UFS. Aracaju (SE);e-mail: [email protected]

***** Graduada em Odontologia (DOD) e bolsista do Programa InstitucionalDe Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC) – CNPq/UFS; Aracaju (SE);e-mail: [email protected]

****** Graduanda em Serviço Social (DSS) e bolsista do Programa InstitucionalDe Bolsas De Iniciação Científica (PIBIC) – CNPq/UFS. Aracaju (SE);e-mail: [email protected]

Resum

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Karina S. Cruz; Maria Helena S. Cruz; Adalúcia C. Correia; Narjara O. Bezerra; Luciana S. Bittencourt

Introdução

A realização desta pesquisa foi motivada pela ên

fase dada às ações educativas relacionadas com

o campo da saúde, com destaque para a formação

profissional e as questões atuais do trabalho de den-

tista, trabalho interdisciplinar em equipe, temas re-

correntes para os pesquisadores da área de educa-

ção em saúde.

Deslindar a realidade do possível na formação de

profissionais de nível superior supõe o desafio da

experimentação, da avaliação, da pesquisa, de acom-

panhamento dos sucessos e dos limites de cada ex-

periência. A formação no ensino superior é concebi-

da como um lugar de memória, de resgate das iden-

tidades, da compreensão do presente incorporando

as dificuldades, as lutas e as conquistas do passado,

as representações na forma de imagens e de docu-

mentos, seus símbolos carregados de história e de

significados.

Foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa

(Minayo, 1993) com destaque para a história oral

considerada relevante para o afloramento das “me-

mórias subterrâneas” represadas pelas imposições

da ordem social. Diferentes fontes informam os re-

sultados deste estudo: bibliografias (literatura so-

bre os temas); fontes documentais (DAA/UFS; Con-

selho Regional de Odontologia (CRO); documentos

fornecidos pelo Colegiado e Departamento de Odon-

tologia (DOD), entrevistas (58) realizadas com pro-

fessores, profissionais egressos do curso de Odon-

tologia no período de 1993-2004 e dirigentes do

CRO. As estatísticas descobrem a existência de 1.982

dentistas em Sergipe, entre os quais 443 egressos

do curso da UFS, 134 (30,3%) homens e 309 (69,7%)

mulheres indicando que a profissão mostra-se atra-

ente para elas.

A educação no campo da saúde tem sido alvo de

debates e de propostas de reforma, visando adequá-

la tanto às demandas sociais de cada momento his-

tórico quanto aos avanços científicos e tecnológicos.

Nas últimas décadas, análises das crises e as pro-

postas de formação foram permeadas por distintosdiscursos pedagógicos, que desempenharam impor-tante papel na construção de novas percepções eações sobre a formação profissional, na orientação econstrução de projetos pedagógicos e da revisão depressupostos metodológicos no campo da Odonto-logia.

Os cursos de Odontologia da UFS a exemplo dosdemais cursos superiores iniciam uma série de ques-tionamentos em torno da duração, estruturacurricular, inserção de novas disciplinas, definiçãode linhas de pesquisa. A pretensão é obter uma es-trutura curricular mais definida, compatibilizando-se as diretrizes curriculares, linhas de pesquisa, dis-ciplinas ofertadas e um corpo docente qualificadoacademicamente (Veloso, 2002). Compreende-se queo discurso pedagógico constitui-se com base em fon-tes – paradigmas científicos e correntes filosóficas –variadas, tendo sempre em vista a obtenção de me-tas educacionais, definidas no interior de certas in-tenções políticas e concepções de sociedade, variá-veis de uma época para outra.

A perspectiva histórica vem orientando as refle-xões sobre a formação nos vários campos do saber.A reflexão sobre a formação profissional voltada pararecursos altamente qualificados no ensino superiordeve ser pensada integrada com uma formaçãopluralista, interdisciplinar, com a troca de experiên-cias de docência e serviços, com a teoria e a prática.O Conselho Federal de Educação determina o ensi-no das Ciências Sociais na graduação odontológica,por meio das disciplinas Psicologia, Sociologia eAntropologia. De acordo com a idéia manifestadaquando de sua implantação, entendeu-se que a for-mação das Ciências Sociais em Odontologia cumpreo importante papel de fornecer aos alunos um ins-trumental crítico necessário ao desempenho de suaprofissão e de problematizar o impacto negativo quea atual formação tecnicista vem acarretando à práti-ca odontológica.

O dentista, assim como os demais profissionais,inscreve-se na divisão social e técnica do trabalho e

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como os demais profissionais também é submetidoa novas formas de produção, gestão, consumo, con-trole de sua força de trabalho. Dele é exigido um perfilsócio-técnico “moderno”, contendo dimensões, pro-cedimentos “racionais” e profissionais, que passama orientar sua requalificação. No contexto sergipa-no, a oferta de emprego sólido que permita a essesprofissionais dedicar-se a uma atividade determina-da de tempo integral, contribui para uma prática fun-dada em atividades complementares, onde o dentis-ta possa oferecer livremente seus serviços, fixando otempo e o custo de seu trabalho desenvolvendo umarelação de autoridade que lhe permite organizar anatureza, porém, não as condições de demanda deseu trabalho. Esta relativa autonomia para iniciar eorganizar a atividade desenvolvida lhe confere a de-nominação de prática liberal (Oropeza, 1996).

O trabalho é compreendido como atividadeontológica, estruturante do ser social, como um va-lor intrínseco à vida humana e ao conhecimento queele proporciona na relação com a natureza e com osdemais; abrange não somente o aspecto de uma ati-vidade vital do homem, na dimensão produtiva, masinclui também a relação do homem com as outrasespécies e consigo mesmo, a relação homem-nature-za que se estabelece pela interação social conformeos pressupostos habermasianos (Habermas, 1984).Nesse aspecto, é o trabalho um princípio de cidada-nia, no sentido de participação legítima nos benefí-cios da riqueza social, que se distingue das formashistóricas e alienantes, de exploração do trabalha-dor, presentes na produção capitalista (Albornoz,1986).

Na contemporaneidade, o profissional, de ummodo geral, encontra-se diante de um novo espíritocientífico e de uma mudança substantiva no mun-do, no capitalismo, na morfologia e na cultura comalterações do espaço/tempo global, engendrando umanova comunicabilidade no trabalho. Na discussãodos novos modelos produtivos, é preciso levar emconta o problema do sujeito, da subjetividade e dasrelações intersubjetivas, que condicionam o sucessoda implantação dos novos paradigmas. Cresce a im-

portância da comunicação horizontal entre os traba-lhadores, introduzindo-se o paradigma comunicaci-onal.

A demanda por “novas competências” constituio novo e coloca-se no âmbito da transição do antigopara o novo paradigma. Hirata (1994), Cruz (2005),Zarifian (1990, 1991) e Zarifian e Veltez (1993), aotomarem como referência a relação entre trabalho ecomunicação, concebem a qualificação como capa-cidade de lidar com o imprevisto, isto é, de agir ereagir a situações imprevistas, com o reconhecimentodessa capacidade pela comunidade de produtores, oque caracteriza a “dimensão social da qualificação”.A discussão desvela a multidimensionalidade daconstrução social da qualificação, em virtude da cres-cente diversificação dos âmbitos econômico, cultu-ral, político e organizacional e revela que, em cadaâmbito, se dão diversas formas de constituição desujeitos (Cruz, 2005; 2002).

Os princípios da flexibilidade condicionam a uti-lização de novas habilidades também para o cirur-gião-dentista que, embora de modo diferente, é sub-metido a novas formas de consumo e controle daforça de trabalho, porque ele também participa dadivisão sócio-técnica do trabalho. Compreende-seque o conhecimento especializado, “know-how”,como qualquer outro recurso, de qualquer forma,esgotar-se-á um dia, ao contrário das competênciase habilidades comportamentais. Emerge a importân-cia das qualificações, em função da necessidade dese discutirem as qualificações formais (componen-tes organizados e explícitos) e as qualificações táci-tas (componentes implícitos e subjetivos do traba-lhador). O foco nas competências/habilidades sina-liza que elas podem ser usadas para qualquer fim.Disso decorrem algumas implicações também nocampo da Odontologia: a reestruturação do perfildesse profissional, dotado de maior nível intelectu-al, visto que o trabalho nos serviços (ligados às áreasde saúde, serviços especiais, educação e informação)exige uma visão mais completa da sociedade, umconhecimento mais complexo das atividades desen-volvidas.

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O binômio Formação/Qualificação profissionalestá fortemente inserido nesse contexto em virtudeda integração, no setor de serviços, de tecnologiaespecializada, como, por exemplo, o uso de compu-tadores. Paiva (1998) nos alerta que indo além domundo industrial, existem consensos sociais sobreo caráter geral e intelectual da formação exigida nomundo competitivo e moderno que emergiu com ofim da era keynesiana. Habilidades e qualificaçõescomo: elevada capacidade de abstração, de concen-tração e de exatidão ao lado da capacidade de co-municação verbal, oral e visual, são cada vez maisvalorizadas no mercado de trabalho. Para a autora,não é nada simples e cada vez se mostra maisdesafiante saber de fato qual a qualificação exigidaneste novo mundo pós-moderno, pois, ao mesmotempo, que se exige uma qualificação real, ou seja,formação de base sólida e de qualidade, exige-sevirtudes capazes de assegurar uma adaptabilidadeconstante como também um elevado patamar de re-sistência psíquica, que vai além dos muros do ensinoinstitucional e formal.

O setor de serviços caracteriza-se por grandepermeabilidade ao ingresso de novos trabalhado-res (Offe, 1989). Os trabalhadores do setor de servi-ços desempenham importantes funções na socie-dade (profissionais liberais como advogados, enge-nheiros, enfermeiros, assistentes sociais, médicose dentistas, entre outros), prestam serviços de ma-neira individual ou como empregados de institui-ções, vendem sua capacidade de trabalho pelo pre-ço que acham justo ou então se submetem à contra-tação por uma empresa que lhes paga um valor pre-viamente atribuído (Pires, 1998). A Odontologia sereproduz como um trabalho especializado para oatendimento às demandas, necessidades sociais ede consumo. O principal valor dos serviçosodontológicos é a qualidade do trabalho profissio-nal a ser desenvolvido, seja de forma individual ouem associação entre pequenos grupos de técnicosespecializados (ex: escritórios e as clínicas) e tam-bém com a criação de serviços especializados parao atendimento pessoal e a domicílio.

O cirurgião-dentista deve estar cotidianamenteinstrumentalizado com os conhecimentos necessá-rios à sua intervenção, de modo que possa respon-der às questões e demandas emergentes na socieda-de. Por exemplo, a interatividade do trabalho doodontólogo/professor e pesquisador, coloca-o frentea exigências de “novas qualificações tácitas, sociaisou informais” (Wood, 1984), novas linguagens, fer-ramentas e máquinas (Ropé e Tanguy, 1997). A pro-dução do conhecimento no trabalho integrado emequipes técnicas, em grupos, redes de pesquisa, co-loca novas demandas de qualificação. As novas com-petências do envolvimento, participação, coopera-ção, responsabilidade e motivação do trabalhado sãoconsideradas dimensões subjetivas humanas quecontribuem também para mudar os paradigmas nocampo da saúde/Odontologia neste início do tercei-ro milênio.

Verifica-se que ao dentista é exigido um tipo depreparação que vai além do mero manuseio de ferra-mentas, da visão da Odontologia como uma práticacientífica, ou ciência objetivada, ou cristalizada, oumesmo, que utiliza instrumentos tecnológicos que“nada possuem em comum com as aptidões do cor-po humano, que interfere nos fenômenos estudados,constrói o próprio objeto científico, destina-se a do-minar e transformar o mundo e não apenas a facili-tar a relação do homem com o mundo” (Chauí, 1999,p. 278). A forma de conhecimento decorrente domodelo tradicional de ciência implica na separa-ção/fragmentação e especialização/instrumentação,significando o monopólio de um saber, que excluia Odontologia (produção, organização e formas detrabalho) do que há nela de essencial, sua huma-nidade (o trabalho e as relações sociais) e suahistoricidade.

A formação acadêmica pelo modelo clássico deciência não apresentaria recurso suficiente para cons-trução e preparação do novo trabalhador orientadopor uma nova ética. Isso porque, juntamente com asqualificações técnicas específicas da profissão exi-ge-se também uma qualificação/formação geral. Com-

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preende-se como técnica e tecnologia, os saberes eas práticas que tomaram como objeto os dentes eeventualmente a boca1. Assim, o objeto da Odonto-logia não se restringe à boca, ou, de forma maissimplificada, aos arcos dentários, mas integra o ho-mem, seu produto e produtor.

Diferentemente da produção material, em que oprodutor e o consumidor não se encontram presen-tes no momento da produção, na produçãoodontológica a presença do consumidor é impres-cindível, sem a qual não se efetiva. O atoodontológico em si não se modificou, mas sim asmaneiras ou formas de fazê-lo e, inclusive, os co-nhecimentos e habilidades necessários do profissio-nal, ou seja, desenvolveram-se suas forças produti-vas, modificando o trabalho de artesanal para umtrabalho mecanizado e transformando-se as relaçõessociais de produção, reproduzindo, portanto, as re-lações capitalistas dominantes. Todas essas altera-ções inserem, paulatinamente, as atividadesodontológicas no circuito da acumulação e valoriza-ção do capital (Iyda, 1998, p. 133).

Não se deve esquecer que a flexibilização da for-mação nos níveis de graduação e pós-graduação ob-jetiva oferecer uma sólida formação já garantida nasbases atuais, para ampliar as oportunidades adicio-nais de estudo, para que os profissionais trabalhemem instituições diversificadas, aprofundem a capa-cidade investigativa, inclusive atribuam ao aprendi-zado em pesquisa, relevância semelhante à percebi-da por docentes no âmbito universitário.

1. Breve Histórico da Odontologia

Historicamente, as principais causas das doen-ças bucais eram atribuídas a influências divinas e acura se fazia por meios místicos. As pessoas procu-

ravam aliviar sua dor em templos religiosos atravésde receitas inovadoras que eram passadas para aposteridade de boca em boca e por meio de registrosrudimentares. A evolução da Ciência Odontológicase deu à medida que as civilizações se desenvolvi-am e ocorreu de maneira incerta e confusa. A Odon-tologia era praticada em diversas regiões do OrienteMédio e foi no Egito onde se encontrou, em 1873, omais antigo documento médico-odontológico escri-to, o “Papiro de Eberes”. Neste texto há citações so-bre o emprego de incensos, “mandrágora emeimendro” como solução analgésica, acredita-seque nessa época existiam alavancas em forma de péde cabra para extração de dentes. Outras civiliza-ções também se destacaram na Arte Dentária comoos mesopotâmios, etruscos, fenícios, chineses ehindus.

Há no Renascimento uma separação entre os pro-cedimentos “clínicos” próprios dos médicos, quepouco foram alteradas até o século XVIII, e os proce-dimentos “cirúrgicos” exercidos pelos cirurgiões eoutros “práticos”, que apresentarão um desenvolvi-mento significativo neste período. A evolução da ci-rurgia renascentista e as instituições hospitalaresconexas estiveram em íntima relação com os acon-tecimentos políticos e militares daquele período, asguerras e suas novas armas, agora também de fogo.O saber abstrato e contemplativo cedia lugar ao sa-ber operatório, dando à técnica, a sua plenitude,buscando encerrar assim o antagonismo entre o mé-todo, à experiência e conhecimento, permitindo,desse modo, que a intervenção manual não mais es-tigmatizasse a cirurgia, pelo contrário, permitindoque ela se tornasse científica (Nogueira, 1977).

Para os historiadores da Odontologia, esta se ini-cia como tal, no século XVIII, quando identificamPierre Fauchard como seu fundador (Ring, 1985).Cirurgião militar especializou-se como “cirurgião

1 A tecnologia integra um conjunto de conhecimentos que se aplicam a determinado ramo de atividade (ex: tecnologiamecânica, tecnologia elétrica, eletrônica)m enquanto a técnica abrange a parte material ou o conjunto de processosde uma arte ou habilidade para executar ações (ex: técnicas odontológicas, médicas, cirúrgicas, jurídicas etc).

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dentista” (termo cunhado por ele), publicando seulivro “O cirurgião dentista”; ou um “Tratado Sobre osDentes” em 1728, no qual aborda as diferentes técni-cas para tratamento de cáries, implantes e extrações,bem como para a prevenção e tratamento da doençaperiodontal. Com o seu prestígio, conseguiu dar desta-que à Odontologia como especialidade cirúrgica, bemcomo ampliar a distância entre essa prática e a dos“puxadores de dentes”. Contudo, apesar de um aumentono número de cirurgiões dentistas dedicados a estaespecialidade e a uma melhor técnica cirúrgica, nãohouve uma modificação significativa no conhecimen-to sobre os fatores determinantes das doenças, nemparece ter havido diminuição no desconforto e na dordos pacientes, ou melhoras estéticas importantes, mes-mo para aqueles com recursos. Embora desejáveis den-tes perfeitos e bom hálito se constituíam nas exceçõesque garantiam o costumeiro, conforme pode ser apre-endido pela iconografia da época (Novaes, 1998).

No Brasil, a Odontologia começou a ser pratica-da desde o século XVI, época de sua descoberta, porbarbeiros ou sangradores desinformados que reali-zavam extrações dentárias sem higiene e nenhumtipo de anestesia. As técnicas de “tirar dentes” erampassadas para as outras gerações sem nenhum tipode teoria. Para exercer a Odontologia na época colo-nial, era necessário que os barbeiros ou tira-dentespossuíssem uma licença especial conferida pelo “ci-rurgião-mor”. Quem não possuísse essa licença po-deria ser preso ou multado.

Ao passo que a Odontologia se desenvolvia mun-dialmente com o surgimento de novos instrumentais,de novas técnicas e de materiais, o Brasil se adaptavaàs novas mudanças e tornava cada vez mais rígida avigilância aos barbeiros. Ao mesmo tempo, surgiamprofissionais diplomados em Odontologia vindos deoutros países para exercer a profissão no Brasil, entreos quais, muitos deles alcançaram elevado conceitoprofissional no atendimento à nobreza (Uniodonto2004; Rosenthal, 2001; Valladares Neto, 2000).

No século XVIII, foi criada a Real Junta deProtomedicato, extinguindo-se os cargos de Físico-

Mor e Cirurgião-Mor. O Protomedicato era uma jun-ta médica composta por sete deputados, médicos ecirurgiões aprovados e com mandatos de três anosque passou então a emitir as Licenças e Cartas paraque se pudesse exercer a função de tira-dentes. Al-guns negros com habilidade manual adquiriam oaprendizado inicial com um profissional mais expe-riente, conquistando o direito de “tirar dentes” pormeio de uma concessão feita pelo governo para queestes pudessem atender a outros escravos e pessoascarentes (Rosenthal, 2001). No século XIX, houve acriação do “Plano de Exames da Real Junta doProtomedicato” que estabelecia que o candidato àprofissão de Dentista deveria prestar um exame paraavaliar seus conhecimentos de Anatomia, métodosoperatórios e terapêuticos.

A primeira carta de Dentista foi concedida ao fran-cês Eugênio Frederico Guertin, diplomado pela Fa-culdade de Medicina de Paris, que atingiu elevadoconceito no Brasil e mais tarde publicou “Avisos Ten-dentes à Conservação dos Dentes e sua Substitui-ção”, considerada primeira obra de Odontologia es-crita no Brasil. A partir daí, a vinda de Dentistas deoutros países se tornou freqüente; eles traziam con-sigo as novidades que surgiam na Odontologia mun-dial, além de novas idéias que posteriormente seri-am implantadas no Brasil (Paixão, 1998).

Em 1854, foram criados Exames para Dentistasatravés do Decreto nº 1387, que seriam aplicados emtodas as Faculdades de Medicina com o objetivo demelhorar o ensino e combater o charlatanismo. Es-ses exames compreendiam uma parte teórica sim-ples que englobava: Anatomia, Fisiologia, Patologia,anomalias dentárias, gengivais e alveolares, higienedos dentes, descrição e utilização de instrumentaise meios de confeccionar próteses; e uma parte práti-ca que consistia em extrair um dente de um cadáver.Em 1879, o artigo 24 do Decreto nº 7247 determina-va: “A cada uma das Faculdades de Medicina ficamanexos: uma Escola de Farmácia, um Curso de Obs-tetrícia e Ginecologia e um outro de CirurgiaDentária”. A Odontologia ainda era considerada pu-ramente artesanal. Nesse período, as mulheres con-

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quistaram o direito de se matricular nas Faculdadesbrasileiras, direito este que, até então, só era permi-tido aos homens (Rosenthal, 2001).

Através do Decreto nº 9311 de 25 de Outubro de1884, o governo imperial instituiu oficialmente oCurso de Odontologia nas Faculdades de Medicinada Bahia e Rio de Janeiro. A aprovação desse Decre-to se deveu à brilhante atuação do médico VicenteCândido Figueira Sabóia no desenvolvimento daOdontologia no Brasil. A partir da criação do cursosuperior de Odontologia, iniciou-se uma época degrande desenvolvimento didático e de organizaçãoda Odontologia moderna, sendo denominada Refor-ma Sabóia. Logo após a sua criação, o curso de Odon-tologia no Brasil seria realizado em três anos, masem 1891 e 1893 ocorreram duas reformas reduzindoo curso para dois anos. Em 1919, o presidenteEpitácio Pessoa promulgou um Decreto que trans-formou o curso oferecido pela Faculdade de Medici-na em Faculdade de Odontologia, com duração dequatro anos. A partir daí foram criadas outras Facul-dades no Estado de São Paulo e depois em MinasGerais e, concomitantemente, surgiram a ABO (As-sociação Brasileira de Odontologia) e a ABENO (As-sociação Brasileira de Ensino Odontológico).

Em fevereiro de 1926, foi fundada a Faculdade deOdontologia de Sergipe autorizada a funcionar porforça do artigo 31 da Lei 938, iniciando o processoacadêmico em abril do mesmo ano com vinte e doisalunos matriculados. Em novembro desse mesmoano, por considerar a manutenção do cursodispendiosa para o Estado, o Presidente do Estado,Ciro Franklin de Azevedo, decretou o encerramentodas atividades da Faculdade de Odontologia.

Alguns anos se passaram e foram surgindo novoscursos superiores em Sergipe. Esse processo gerouem um grupo de cirurgiões-dentistas sergipanos avontade de trazer de volta a Faculdade de Odontolo-gia no Estado. Este grupo, então, sob a liderança doPresidente Dr. Arício de Guimarães Fortes, elaborouos Estatutos que foram aprovados e publicados noDiário Oficial da União no dia 18 de junho de 1957.

Diante das dificuldades encontradas para conseguira sede e os recursos financeiros necessários ao fun-cionamento da Faculdade, houve vários desentendi-mentos entre os componentes da comunidadeodontológica e isso levou a uma pausa nos trabalhoscom esse fim. Em 28 de dezembro de 1966, o Gover-nador do Estado de Sergipe assinou a Lei nº 448,criando a Faculdade de Odontologia de Sergipe.

Em 1968 houve a inclusão do Curso de Odonto-logia na Universidade Federal de Sergipe e dois anosmais tarde este curso ofereceu dez vagas para o in-gresso de interessados. O Ministério da Educação eCultura (MEC) e o Conselho Federal de Educaçãoadmitem oficialmente a criação do Curso de Odon-tologia no dia 10 de novembro de 1970, ano de iní-cio de seu funcionamento na Faculdade de CiênciasMédicas da UFS (Paixão, 1998).

2. Processo Pedagógico do Curso deOdontologia da UFS

Os profissionais do curso de graduação da áreade saúde orientam-se para exercerem uma ação di-reta na sociedade. Por esse motivo, necessitam deuma maior reflexão sobre sua estrutura, seus objeti-vos, seu perfil profissional e seu compromisso coma sociedade. Grande parcela da população brasileirana atualidade, ainda apresenta condições precáriasde saúde oral apesar da formação de muitos profis-sionais em todo o Brasil. Assim, deve haver umareformulação no conceito de saúde e doença paraque a ciência progrida no sentido de trazer benefíci-os à população visando o homem como um ser bio-psico-cultural e político (DOD – Projeto do Curso deOdontologia – Guia Acadêmico).

No momento da sua fundação, o Curso de Odon-tologia teve o seu currículo aprovado pela Resolu-ção nº11/70 da UFS, apresentando duas fases: o ci-clo básico, constituído pelas disciplinas Anatomia,Histologia, Embriologia, Processos Patológicos Ge-rais, Fisiologia, Farmacologia, Parasitologia, Micro-biologia, Bioquímica, Biofísica e Genética e Educa-

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Karina S. Cruz; Maria Helena S. Cruz; Adalúcia C. Correia; Narjara O. Bezerra; Luciana S. Bittencourt

ção; e o ciclo profissionalizante constituído pelasdisciplinas Dentística Operatória, ClínicaOdontológica I, Clínica Odontológica II, Endodontia,Radiologia Dentária, Odontopediatria, MateriaisDentários, Prótese Dentária I, Prótese Dentária II,Ortodontia, Prótese Bucomaxilofacial, CirurgiaBucomaxilofacial, Exodontia, Odontologia Preven-tiva e Social, Odontologia Legal e Deontologia Mé-dica e Patologia Buco-Dentária.

A partir desse momento, o curso passou por duasalterações curriculares, uma através da Resolução nº22/79/CONEP, anexo 19 e outra pela Resolução nº09/85/CONEP. A primeira alteração ocorreu pela ne-cessidade de o curso se adequar à Lei das DiretrizesBases (LDB) do Ministério da Educação e pela mu-dança que ocorreu na administração universitáriacom a criação dos Centros, dentre os quais o Centrode Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS), compos-to, na época, pelos cursos de Medicina, Odontolo-gia, Enfermagem, Biologia e Educação Física. A ou-tra alteração ocorreu em 1985, em adequação à reso-lução nº 04 de 03 de setembro de 1982, do ConselhoFederal de Educação, que fixa o mínimo de conteú-do e duração dos Cursos de Odontologia, além danecessidade de adequação à realidade de ensino daUFS (Paixão, 1998).

Com base no currículo mínimo definido na reso-lução nº04/82/CFE, a ABENO apresentou ao MEC umdocumento intitulado “Padrão Médio de um Cursode Odontologia”, a partir daí todos os Cursos deOdontologia do país, públicos ou particulares, pas-saram a ser incluídos no Exame Nacional de Cursose passaram a receber visitas de membros da Comis-são de Especialistas de Ensino em Odontologia, ob-jetivando analisar os pedidos de autorização de fun-cionamento e reconhecimento de novos Cursos, alémde avaliar os já existentes. Ficou decidido que todasas disciplinas deveriam apresentar seus fundamen-tos articulados e que o currículo pleno traduziria operfil do profissional que se deseja graduar, atravésde seus objetivos, das ações a serem desenvolvidas afim de atender as necessidades da comunidade e omercado de trabalho.

As diretrizes curriculares orientaram o trabalhode professores do curso na reformulação do currícu-lo então vigente até chegar ao currículo atual. Nesseperíodo, houve mudança no espaço físico do curso,inclusive, na transferência do mesmo das dependên-cias do Hospital Cirurgia para instalações própriasconstruídas no complexo do “Campus da Saúde doHospital Universitário” (Paixão, 1998). Atualmente,são ofertadas 40 vagas anuais para o Curso de Odon-tologia e este tem a duração mínima de dez períodos(cinco anos) e a duração máxima de dezoito perío-dos (nove anos) distribuídos em 258 créditos obriga-tórios e 16 créditos optativos, totalizando 274 crédi-tos, podendo o aluno cursar o máximo de 34 crédi-tos por semestre (DAA; Resolução nº 57/02/CONEP).

O Curso de Odontologia com seus trinta e cincoanos de existência colabora com as oferta de diver-sos serviços de atendimento odontológico à comu-nidade por meio de prevenção e solução dos proble-mas de seus assistidos. É dever do Curso formar pro-fissionais com uma visão global capazes de aplicarprincípios biológicos, científicos e éticos, na preven-ção, recuperação e manutenção da saúde bucal dapopulação, por meio de ações preventivas e curati-vas, atuando nos diferentes níveis individuais oucoletivos nos serviços públicos e privados, consci-entes de suas responsabilidades como agentes trans-formadores da sociedade, garantindo-lhe a melhoriada qualidade de vida, a partir da promoção de saúdebucal (Paixão, 1998).

O acadêmico deve praticar ações preventivas ecurativas, multidisciplinares e multi-institucionaisdurante a graduação para que no futuro profissionalconheça e perceba a realidade sócio-econômica, cul-tural e política da população, objetivando a melhoriada qualidade de vida e o aumento da expectativa devida do indivíduo. O Curso de Odontologia tem comoobjetivos tornar os cirurgiões-dentistas capazes deexercer a clínica odontológica geral; capacitar o gra-duando a desenvolver uma filosofia preventiva; di-agnosticar os problemas buco-maxilo-faciaisprevalentes; elaborar e executar tratamentos compa-tíveis; desenvolver caráter ético, deontológico e le-

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gal relacionados à sua prática profissional; desen-volver ações em equipes multidisciplinares,multiprofissionais e multi-institucionais, enfatizan-do a promoção de saúde; planejar e administrarserviços de saúde comunitários; desenvolver umaformação humanística valorizando o homem en-quanto ser bio-psico-sócio-cultural-político no seucampo de ação; capacitar o aluno a atualizar-se nasações especializadas da Odontologia (DOD – Projetodo Curso de Odontologia; Resolução nº 57/02/CONEP).

3. Perfil do Profissional no Campo daOdontologia Ingressos na UFS

A Organização Mundial de Saúde (OMS) preco-niza uma relação ideal de cirurgiões-dentistas porhabitante de 1/1500. A relação média de cirurgiões-dentistas por habitante é de 1/1000. Isso implica que,no Brasil há mais cirurgiões-dentistas do que o ne-cessário havendo um inchaço no mercado de traba-lho e uma desvalorização da mão de obra. O Estadomais problemático nesse sentido é o de São Pauloque possui uma relação de 1/670 dentista por habi-tante. Sergipe também se encontra numa situaçãopreocupante, pois sua relação é de 1/982 (Rosenthal,2001). O excesso de cirurgiões-dentistas é visto compreocupação para aqueles que não estimulariam seusfilhos e as novas gerações a estudar Odontologia(Morgenstern, Feres e Petrelli, 2004). Numa perspec-tiva otimista, contudo, entende-se que a dinâmica

da sociedade sempre abre possibilidades para os pro-fissionais com elevada qualificação.

A análise do perfil dos ingressos no curso deOdontologia da UFS entre 1990-2004, descobre aexistência de 64,3% mulheres e 35,7% homens (res-postas a questionário para a inscrição no exame ves-tibular no período de 1990-2004).

Os egressos da UFS no período do estudo totali-zam 443 dentistas, entre os quais, (69,7%) mulheres e(30,3%) homens. A participação em órgãos de catego-ria com freqüência é reduzida ao dever de inscrição,isso porque 66,7% dos dentistas não participa dessesórgãos de representação e 5,7% participa pouco, en-quanto 27,3% participa ativamente. Assim, a classeOdontológica parece pouco interessada em exercerseus direitos e exercitar sua cidadania. Em outras pa-lavras, a capacidade de estabelecer relações entre aesfera do conhecimento e do social, importante parao exercício da cidadania, não parece ir além da rela-ção individual entre dentista e paciente com enfoqueprincipalmente na conduta profissional do dentista.

Em Sergipe existem 1.982 dentistas entre eles,1.629 cadastrados no CRO – Conselho Regional deOdontologia. Esse órgão não informa a universidadede origem dos inscritos, dos quais, 67% são mulhe-res e 33% são homens, aproximando-se dos resulta-dos quando do ingresso no curso, o que sinaliza umatendência à feminização (concentração de mulheresnessa profissão, conforme o Gráfico I ).

Profissionais Inscritos No CROFonte: CRO, em 20/12/2004

Gráfico 1 - Total de cirurgiões-dentistas por sexo

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O ano de 2004 curiosamente foi o que apresen-tou o mais elevado índice de inscritos no CRO(24,74%), seguindo-se os anos de 2001 (11,72%) e 1997(11,53%). Os dentistas concentram-se nas faixas etáriasde 31 a 40 anos, seguindo-se as faixas etárias de 20 a30 anos e a de 41 a 50 anos, sinalizando a predominân-cia de jovens profissionais, possivelmente decorrenteda ampliação das oportunidades de ingresso de alunosde classe média para o curso de Odontologia na redede ensino privada em Sergipe (UNIT).

Um grande contingente de ingressos (91,22%)realizou o ensino médio totalmente em escola parti-cular, comprovando o nível de renda e o status só-cio-econômico de suas famílias. Apenas 3,5% delesrealizou parte dos estudos em escolas privadas epúblicas, enquanto 5,26% cursou parte dos estudosem escola particular. A escolaridade de nível supe-rior dos pais (54,4%) e das mães (42,1%) dos alunosreflete, provavelmente, valores da classe social a qualpertencem. Segue-se um pequeno grupo que apenasconcluiu o ensino médio (apenas dois pais de egres-sos nunca freqüentaram a escola). Durante a forma-ção graduada, 89,5% dos ingressos não exercia ativi-dade remunerada e provavelmente não sofria pres-sões imediatas para a inserção no mercado de traba-lho e para ajudar no orçamento familiar. Assim, ohorário de funcionamento do curso no período diur-no, não pareceu afetar a rotina dos estudantes.

Em cada semestre do ano, ingressam no curso deOdontologia vinte alunos, não havendo, contudo,entre 1990 a 2004 o mesmo número de concluden-tes. Assim, as estatísticas sobre a freqüência total deformandos no período estudado são bastantediversificadas, devido ao atraso na conclusão docurso originada por diversos motivos.

Na idade em que prestaram o vestibular, prova-velmente o conhecimento sobre o significado e osdesafios da profissão era difuso. No momento doacesso ao curso, 94,7% eram solteiros, significandoo adiamento de projetos de constituição de famíliapara o final do processo de formação.

A escolha do curso apóia-se em alguns motivosexpressos como: domínio da habilidade manual(61,11%) considerada entre os candidatos e ingres-sos ao curso de Odontologia, como necessária parao exercício da prática profissional, expectativa deinvestimento e retorno financeiro na profissão(27,77%), influência de parentes (dentistas na fa-mília) e escolha por eliminação de interesses(11,12%).

Assim, o processo de escolha da carreira e pro-fissão ainda parece sofrer a influência de estereóti-pos de papéis adequados de acordo com o sex (Qua-dro 1).

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Entre os egressos, observa-se uma tendência àdivisão das especialidades de acordo com o sexo doprofissional, sugerindo que os estereótipos de papéisconstruídos historicamente, continuam a definir asescolhas de carreiras e profissões. Na sociedade, asrepresentações são construídas pelo imaginário so-cial. As mulheres concentram-se em algumas espe-cialidades: Dentística Restauradora, Endodontia,Odontopediatria e Periodontia (tais especialidadesrequerem destreza manual e minúcia na realizaçãodos procedimentos, além de muita paciência (no casode Odontopediatria), enquanto os homens escolhemoutras especialidades como: Cirurgia e TraumatologiaBucomaxilofacial, que requer atitudes rápidas e pre-cisas além de uma força física considerável. Nestaúltima especialidade, curiosamente, não foi registra-da a presença de mulheres em Sergipe.

Os maiores centros urbanos absorvem com mai-or freqüência os cirurgiões-dentistas, isso porque aampliação das demandas da população, a pressão

exercida sobre os governantes influencia no plane-jamento e na execução de políticas e serviços diver-sificados de saúde. A capital sergipana oferece asmaiores chances de inserção de dentistas ao merca-do de trabalho (91,78%). As cidades restantes (58)dividem no mercado de trabalho 8,22% dos cirurgi-ões-dentistas de Sergipe. Essa distribuição não éhomogênea, isso porque cidades como Itabaiana,Lagarto, Estância, Propriá e Itabaianinha são respon-sáveis pela inserção de 4,63% dentistas no mercadode trabalho. Os cirurgiões-dentistas (3,59%) restan-tes estão distribuídos entre 31 cidades como: Arauá,Brejo Grande, Carira, Laranjeiras. Nos municípiosde Pedrinhas, Ribeirópolis não se encontram ci-rurgiões-dentistas prestando serviços. A escassapresença de dentistas em vários municípios sergi-panos indica possibilidade de ampliação dessemercado de trabalho para esses profissionais, sen-do necessário que sejam implementadas políticas desaúde que possibilitem a inserção democrática viaconcursos.

Quadro 1 - Escolha das Especialidades de Acordo com o Sexo.

ESPECIALIDADE MASC FEM TOTAL

Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofaciais 16 0 16

Dentística Restauradora 2 31 33

Endodontia 11 29 40

Odontologia Legal 1 1 2

Odontologia em Saúde Coletiva 0 2 2

Odontopediatria 1 29 30

Ortodontia e Ortopedia Facial 12 8 20

Patologia Bucal 1 2 3

Periodontia 8 12 20

Prótese Bucomaxilofaciais 0 1 1

Prótese Dentária 12 14 26

Radiologia 6 6 12

Implantodontia 0 1 1

Estomatologia 0 2 2

Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial 3 1 4

Odontologia do Trabalho 2 0 2

Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais 1 2 3

Odontogeriatria 0 1 1

Ortopedia Funcional dos Maxilares 1 17 18

TOTAL 77 159 236

Fonte: CRO/SE em 29/07/2004

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4. A Construção de Experiências

A concepção de representação social de Jodelet(1989, p. 36) foi adotada por deter um amplo con-senso, por incluir a dimensão ideológica e permitiridentificar os elementos da cognição, os investimen-tos afetivos, os elementos axiológicos, ressaltando-se os elementos históricos identificados: “A repre-sentação social é uma forma de conhecimento soci-almente elaborada e partilhada, tendo uma visãoprática e concorrendo para a construção de uma re-alidade comum a um conjunto social”. Assim,estruturam-se imagens de que as atividades que ne-cessitam de precisão, agilidade manual e leveza,habilidades finas são próprias de mulheres, que ad-quirem as habilidades motoras pelo processo de so-cialização no âmbito doméstico da família via edu-cação informal.

Ao se estudar de forma empírica os procedimen-tos, as rotinas, as tarefas que compõem necessaria-mente o trabalho do dentista, não se pode deixar dequestionar quais os meios de trabalho que compõemos processos próprios desse profissional, mostrandoa fertilidade da apropriação dos instrumentos e arepresentação deles sobre sua formação.

O trabalho autônomo, para os respondentes, ocu-pa o maior espaço no mercado de trabalho, seguin-do-se outras formas de prestação de serviços (pla-nos odontológicos, postos de saúde e hospitais), de-tectando-se a problemática do declínio do status pro-fissional. Sobre os impactos das mudanças tecnoló-gicas no trabalho dos dentistas, as respostas foramunânimes em considerar que a tecnologia traz mui-tas vantagens, permitindo que o tratamento seja rea-lizado com maior rapidez, tornando o pós-operató-rio mais confortável para o paciente, reduzindo otempo do procedimento, favorecendo o aumento daprodutividade e dos rendimentos do profissional,possibilitando, ainda, ampliar o atendimento a ummaior número de pacientes e o nível de vida comqualidade. É importante reconhecer que as técnicase tecnologias odontológicas não se confundem coma profissão do odontólogo.

Embora exista concordância sobre a importânciada tecnologia para a Odontologia, os dentistas reco-nhecem a necessidade de atualização permanentepara acompanhar o surgimento de novidades nomercado e apontam o alto custo dos aparelhos mo-dernos como um dificultador: “A tecnologia influen-cia muito na qualidade do trabalho do Dentista, oúnico problema é o preço dos materiais e instrumen-tos muitas vezes inacessíveis”. As mudanças no pro-cesso de formação foram atribuídas a alguns aspec-tos: inclusão e desmembramento de disciplinas, re-dução de créditos optativos e aumento na duraçãodo curso.

Entre aqueles que vivenciaram mudançascurriculares na época da graduação, tais mudançasforam avaliadas positivamente, mesmo consideran-do que a formação recebida nesse nível ainda estálonge de fazer do curso de Odontologia um cursoperfeito: “(...) presenciei duas mudanças de currícu-lo. O curso era de quatro anos, depois passou a serde quatro anos e meio e agora é de cinco anos. Algu-mas disciplinas que eram únicas se dividiram, ou-tras deixaram de existir; ocorreram mudanças paramelhor mas o curso ainda está muito aquém do quedeveria ser”.

Os conteúdos disciplinares mais utilizados naprática profissional são relacionados com as disci-plinas: Dentística Restauradora, Periodontia eExodontia, Odontopediatria, Endodontia e Radiolo-gia, seguindo-se os conteúdos das disciplinas:Prótese, Diagnóstico, Patologia, Ortodontia, Odonto-logia Social e Preventiva, Farmacologia, Oclusão,Materiais Dentários, Anatomia, Escultura Dentária,Odontologia Legal e Psicologia. Existe o entendimen-to de que algumas melhorias poderiam serintroduzidas no curso de Odontologia por meio dainserção de novas disciplinas: Implantodonia,Odontogeriatria, Ortodontia e Cirurgia Urgência,Terapêutica, Administração, Marketing, Economia.Algumas respostas incidem sobre a ampliação dosalunos no acesso à pesquisa, iniciação científica,projetos de extensão, experiências de monitorias eestágios extra-curriculares: “É muito difícil a parti-

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cipação de alunos nessas experiências no curso deOdontologia. Elas são importantes para o crescimentoprofissional e oferecem noção do trabalho em equipe”.

Existe o consenso de que a mobilidade social emelhoria do processo de formação ocorrem ao mes-mo tempo em que o nível da educação superior bra-sileira não é, em geral, muito bom, e os ensinamentosobtidos nas escolas não são os mais adequados paraas exigências do mercado de trabalho. A educaçãopública escasseia, e os estudantes precisam pagarrelativamente caro para fazer seus cursos em insti-tuições de ensino privadas e de reputação nem sem-pre alta. São vários os fatores que influenciam naadaptação do indivíduo ao seu meio ambiente: sen-timentos, emoções, comportamentos, hábitos, famí-lia, emprego e outros fatores relacionados com seumodo de vida. Para alcançar uma abordagem maiscomplexa do processo de formação, inclusive, en-tende-se como necessário um redirecionamento daformação de profissionais de saúde, bem como dossistemas de atenção básica de saúde, buscando ca-minhos para que esta possa contar com:

A educação permanente por meio de diversoscursos é considerada indispensável, tanto para acom-panhar as modificações tecnológicas, quanto parasobreviver no mercado de trabalho competitivo, nãosó no campo da Odontologia, como também em to-dos os campos profissionais. Esse aspecto, mostra oempenho do dentista em manter-se em sintonia comas novas demandas postas pela sociedade: “A quali-ficação profissional é importantíssima para se man-ter no mercado, até porque a concorrência é muitogrande e só se estabelece quem estiver mais atuali-zado”.

Nessa linha de reflexão, são identificados novossaberes e habilidades necessárias ao desempenhoprofissional: “(...) O dentista deve ter familiaridadecom novas tecnologias, informática, conhecimentosde administração, contabilidade, economia, matemá-tica, finanças, marketing, além de habilidades psi-cológicas e relações públicas”. Existe consenso deque o dentista tem que ter uma idéia de administra-

ção, inicialmente para administrar o seu próprio con-sultório e saber lidar com o paciente: “Isso é muitofalho no currículo. Na minha época, a formação aca-dêmica não oferecia noção de tudo isso”. Não se deveesquecer que a valorização de novos saberes sociais,da qualificação social, das novas competências so-ciais possibilita o resgate do sujeito, o fortalecimen-to da cidadania, extensiva a todo o conjunto de seg-mentos de trabalhadores, na sua heterogeneidade(Leite, 1994).

A variante da educação informal considerada peloestudo – as qualificações tácitas – investigada atra-vés das representações dos dentistas sobre algumasde suas experiências diárias, constitui-se como umadas mais valiosas fontes de aquisição da qualifica-ção. Seja por meio da experiência de aprendizagemcom os colegas; seja pela reflexão coletiva em diver-sos cursos, seja através da significação atribuída àsexperiências cotidianas, o fato é que reconhecem evalorizam a aquisição da qualificação como um pro-cesso contínuo no cotidiano de trabalho. Ainformática oferece uma nova cartografia, um novomapa da realidade, um novo padrão de conhecimentocientífico. O acesso à informação científica e técni-ca, embasada em uma cultura geral ampla, difundi-da pela educação em seus diversos processos, fun-damenta a formação de sujeitos críticos, capazes deinterpretar as situações que vivenciam e de cons-truir ações de co-responsabilidade em um projetode desenvolvimento democrático voltado para a cons-trução da cidadania. Atualmente, o uso crescente dadigitalização direta de dados exige novos conheci-mentos, informações e qualificações para as ativida-des desenvolvidas por pesquisadores que utilizammetodologias informatizadas: quantitativas e quali-tativas.

O trabalho integrado em equipes técnicas, emgrupos e redes e as novas demandas de qualificaçãoemergem para os dentistas, para além dos conheci-mentos técnicos e exigem flexibilidade, capacidadee disponibilidade para esse trabalhador, de mobili-zar os diferentes saberes na resolução de problemase imprevistos com que se depara no trabalho e na

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vida. Desse modo, essas alterações inserem, paulatina-mente, as atividades odontológicas no circuito da acu-mulação e valorização do capital (Iyda, 1998, p. 133).

Levando em conta a importância das atividadesdesenvolvidas pelos profissionais que compõem asequipes de saúde, considerou-se pertinente conhe-cer como têm ocorrido a formação dos profissionaise também a integração e a articulação entre equipesresponsáveis pela interação entre a comunidade e oserviço de saúde. Para isso, procurou-se identificaras temáticas que promovem consenso e divergênciaentre os membros das equipes e a comunidade, alémdas formas de atuação e capacitação nesse contexto.As relações hierárquicas no trabalho integrado emequipes constituem-se como “uma relação saudável,pois alguém tem que liderar uma equipe de formaque haja uma interação entre as pessoas envolvidase isso só traz benefícios desde que o superior na hi-erarquia tenha uma formação voltada para a saúde”.Nesse caso, o sucesso nas relações de trabalho é sem-pre atribuído à integração entre os membros da equi-pe. É importante reforçar que coexistem, atualmen-te, várias possibilidades de organização das práticasem saúde.

5. Projetos e Expectativas Pessoais eProfissionais

A sociedade fomenta uma multiplicidade de mo-tivações produzindo a necessidade de formulação deprojetos, inclusive contraditórios ou conflitantes,fragmentando a memória e o sentido de identidadedo indivíduo, que depende, em parte, da organiza-ção desses fragmentos. O projeto, expresso atravésde conceitos, palavras, categorias, seria um instru-mento básico de organização de fragmentos e de ne-gociação da realidade com outros atores sociais, in-dividuais ou coletivos. Os custos financeiros e o afas-tamento da família, para os respondentes, constitu-em obstáculos para a concretização de projetos decarreira e requalificação:

“Tenho planos de fazer especialização em

cirurgia e trabalhar em hospital. Prefiro tra-

balhar em hospital a atuar em clínicas. Os

custos dos cursos dificultam, porque os sa-

lários são baixos, os ganhos escassos, in-

suficientes para o pagamento. Os melho-

res cursos sempre são realizados fora do

Estado, obrigando-nos a mudar de rotina e

onerando ainda mais pela necessidade de

se pagar a moradia”.

A este respeito, Velho (1988) articula memória eprojeto: a primeira dá uma visão retrospectiva, dopassado; o segundo permite uma visão prospectiva,projetando o futuro, ambos contribuindo para situaro indivíduo, suas motivações e o significado de suasações, dentro das conjunturas de vida, na sucessãodas etapas de sua trajetória. O projeto é uma “con-duta organizada para atingir finalidades específicas”,seja de um grupo social, um partido, ou outra cate-goria (Schutz, 1979). A possibilidade de conduçãode projetos depende da consciência e da valorizaçãode uma individualidade singular, baseada em umamemória capaz de dar consistência à biografia. É amemória que permite uma visão retrospectiva maisou menos organizada da trajetória, sendo o projeto aantecipação no futuro dessa trajetória ou biografia,na medida em que busca através do estabelecimen-to de objetivos, a organização dos meios através dosquais esses objetivos poderão ser atingidos. Em ou-tros termos, significa que a emancipação humana sefaz na totalidade das relações sociais onde a vida éproduzida.

A esse respeito, o historiador francês Pierre Nora(1984, p. 24) desenvolveu uma importante reflexãosobre “os lugares de memória” que são os arquivos,as bibliotecas, os dicionários, os museus, cemitériose coleções, assim como as comemorações, as festas,os monumentos, santuários, associações, testemu-nhos de um outro tempo, “sinais de reconhecimentoe de pertencimento a um grupo” em uma sociedadeonde se tende a perder os rituais, a dessacralizar as

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fidelidades particulares, onde se nivela por princí-pio e tende-se a reconhecer apenas indivíduos iguaise idênticos. Michel Pollack (1989) trata com propri-edade o tema da memória e do esquecimento na cons-trução da identidade dos grupos sociais. As “memó-rias subterrâneas” competem na consolidação de umahistória, de uma versão, do papel de um determina-do grupo social, na preservação ou no esquecimentode certos fatos e de seus significados. Pollack desta-ca o que ele chama de trabalho de “enquadramento”da memória, que reinterpreta continuamente o pas-sado em função dos embates travados no presente,em função da identidade dos grupos detentores dessamemória. Em um segundo texto, Pollak (1992) trata,especialmente, dos processos e dos atores que inter-vêm na formalização e consolidação da memória.

O projeto seria um meio de comunicação, expres-são, articulação de interesses, objetivos, sentimen-tos e aspirações, elaborado permanentemente, reor-ganizando a memória do indivíduo, dando-lhe no-vos sentidos e significados, o que repercute em suaidentidade. A idéia de que a memória é seletiva podeser explicada pela dinâmica dos projetos e da cons-trução de identidades, que mantêm o passado empermanente reconstrução. Com isso queremos dizerque a identidade que a universidade e seus profes-sores, gestores, funcionários e dentistas egressosconstrói, é um processo dinâmico, sujeito permanen-temente à reformulação relativa às novas vivências,às relações que estabelecem. De outra parte, esseprocesso está fortemente enraizado na cultura dotempo e do lugar onde os sujeitos sociais se insereme na história que se produziu a partir da realidadevivenciada, constituindo “um lugar de memória”.

6. Apreciações Conclusivas

A sociedade experimenta uma fase em que asmudanças, tanto no plano político, ideológico e cul-tural, quanto no plano técnico e científico exigemque se avaliem as práticas tradicionais de aquisiçãode conhecimentos e suas interações cotidianas, bemcomo seus modelos de políticas educativas – seja na

universidade, na escola, seja no trabalho, que dêemconta do enfrentamento posto na ordem do dia pe-las atuais transformações do trabalho.

Estamos assistindo o reordenamento social dasprofissões com profundas implicações salariais, destatus social e profissional e de qualificação, temembaralhado as cartas no que diz respeito ao possí-vel espectro profissional futuro. E este é um proces-so que ocorre junto com a complexificação, amplia-ção e sofisticação da formação. Não ocorre apenas odesaparecimento de setores qualificados e o surgi-mento de novos, com novas demandas; mas uma cla-ra desvalorização das profissões tradicionais em to-dos os níveis de qualificação. Trata-se de um pro-cesso amplo que, embora varie de acordo com con-dições diversas de mercado de trabalho, aspectosculturais de cada país, vem atravessando o mundodito “pós- moderno” e globalizado e está redefinindoa compreensão do papel de cada profissão.

A expansão do capitalismo global nas últimasdécadas e seus desdobramentos nos campos da edu-cação e saúde, particularmente no campo da Odon-tologia, constituem o principal foco deste estudo. Otema se faz presente nas investigações sobre os dife-rentes sentidos atribuídos à noção de ‘empregabili-dade’ e sua relação com a divisão internacional dotrabalho, sobre a mundialização da educação, comfoco no Brasil e sobre as relações objetividade-sub-jetividade no sistema capitalista de produção glo-bal. A empregabilidade prega que o trabalhador temque estar apto e aberto ao trabalho de forma plena etotal, esta recomendação (exigência) vem imprimin-do mudanças no processo de trabalho das mais vari-adas profissões como também no estilo de vida daspessoas. Nessa perspectiva, a proposta de competên-cia para empregabilidade se sustenta à tese que aqualificação intelectual é a principal fonte de com-petência do mundo moderno.

Pode-se hoje afirmar que um elevado patamar deeducação e de conhecimento real, passível de utili-zação crescente, é condição para o funcionamentoadequado das sociedades modernas contemporâne-

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as. Não se trata apenas de conhecimentos específi-cos, por mais que estes sejam importantes, princi-palmente em sociedades nas quais os serviços sãoespecialmente caros, a exemplo dos serviços no cam-po da Odontologia, e devem ser realizados por pro-fissionais com elevada competência.

Com base nos dados, observa-se que as fronteirasentre trabalho manual e intelectual e entre espaçoprofissional e doméstico tendem a se reduzidas. Mui-tos autores vêm se perguntando se, não estaríamosfrente, ao fim da tradicional divisão do trabalho namedida em que o trabalho intelectual acopla-se deforma cada vez mais visível com o trabalho manual.

Contudo, os modelos familiares e os atributos declasse/gênero (sexo, estado civil, número e idade dosfilhos), influenciam fortemente na construção dife-renciada da identidade pessoal e profissional dasdentistas e continuam a exercer forte poder de influ-ência e imitação quanto a opções de carreira, profis-são e requalificação. Para as dentistas, os atributosde gênero dificultam a construção de projetos decarreira, mas com força de vontade, planejamento euso de estratégias, é possível integrar seus papéisprivados/reprodutivos e públicos/produtivos, conci-liar os projetos de carreira e profissão. È possível afir-mar que os odontólogos formados na UFS são capa-zes de aplicar conhecimentos técnicos fundamen-

tais para a abordagem dos problemas, com uma cer-ta percepção ampliada da realidade, uma posturademocrática de respeito aos saberes dos outros pro-fissionais e oportunizadora de discussão.

Entre outros aspectos, esse estudo permitiu apon-tar o problema do não estabelecimento, a contento,de um sistema de referência e contra-referência queatenda às novas exigências de formação no campoda Odontologia, assim como às demandas do campoda saúde. Melhor dizendo, as representações dosrespondentes sobre a formação não se mostram ho-mogêneas. Além disso, é preciso reconhecer que acomplexidade das problemáticas do campo da saú-de não está apenas relacionada com esse campo, mastem interface com os campos político, econômico,cultural e social, com o sistema como todo. Isso in-dica a necessidade de se aprofundarem estudos parabuscar alternativas para redirecionar a formação vi-sando atender aos interesses dos dentistas e usuári-os dos serviços de saúde.

Nesse contexto, os desafios devem ser enfrenta-dos por todos que participam no processo educacio-nal, incluindo professores, alunos, profissionais emembros das comunidades a partir de perspectivasdistintas, e com resultados nem sempre satisfatóriosrelativamente às expectativas que existem sobre aeducação e o currículo, em particular.

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