“A Oresteia nos palcos modernos e Pier Paolo Pasolini”, in: D. F. Leâo, M. do Céu Fialho, M....

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A ORESTEIA

NOS PALCOS MODERNOS

E PIER PAOLO PASOLINI

ANTON BIERL

- CAPÍTULO 10 -

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A Oresteia de Ésquilo é, sem dúvida, uma das mais influentes obrasdramáticas alguma vez escritas; trata-se de um verdadeiro ponto axial daliteratura e teatro mundiais. Desde a sua primeira apresentação em palco,em 458 a.C., até aos nossos dias, tem vindo a produzir um poderosoefeito. No séc. XIX, em particular, tornou-se mesmo num texto centralpara a reflexão filosófica e cultural, sobre si atraindo um enorme caudal deinterpretações. Para os encenadores modernos, colocar em cena este ciclotrágico continua a representar um desafio quase irresistível1.

1. Panorama das interpretações modernas

A teoria evolucionista do progresso

Durante o período em que o pensamento evolucionista e a modernaideia de progresso ganham proeminência, a cadeia de acontecimentosretratados em cada uma das três tragédias é interpretada como a expressãodo progresso de um estádio menor de desenvolvimento para um nívelsuperior, e até mesmo como um ponto histórico culminante. Em conse-quência, a Oresteia torna-se rapidamente num texto-chave para as teoriasevolucionistas da civilização, durante o séc. XIX e inícios do séc. XX2.

As reflexões de Bachofen e de Engels influenciam todo o trabalho sub-sequente sobre a Oresteia, em especial na área da produção cénica. No seu1 Gostaria de exprimir o meu caloroso agradecimento aos coordenadores do volume, Maria do Céu Fialho,Maria de Fátima Silva e Delfim F. Leão, pelo gentil convite para colaborar com a Universidade de Coimbra.O texto agora apresentado é, nalgumas partes, uma tradução do meu estudo mais extenso relativo às ence-nações da Oresteia: Anton Bierl, L'Orestea di Eschilo sulla scena moderna. Concezioni teoriche e realiz-zazioni sceniche. Traduzione di Luca Zenobi, con una premessa di Massimo Fusillo, postfazione dell'autorealla nuova edizione italiana, Roma 2004, 55-68, 174-178; para a edição alemã original, vide Die Orestiedes Aischylos auf der modernen Bühne. Theoretische Konzeptionen und ihre szenische Realisierung,Stuttgart/Weimar 19992. Agradeço, cordialmente, a D. F. Leão o facto de ter vertido para português o pre-sente estudo.2 Segundo Wilfried Nippel, Griechen, Barbaren und »Wilde«. Alte Geschichte und Sozialanthropologie,Frankfurt a. M. 1990, 80, o pensamento evolucionista do séc. XIX baseava-se, antes de mais, no mode-lo da linguística moderna e das ciências naturais, em especial na geologia e na paleontologia, que postu-lam uma sequência de estádios que culminam na civilização moderna. O Darwinismo parece ter sido ajun-tado apenas numa segunda fase. Para mais informações relativas ao desenvolvimento da teoria do progres-so da civilização, vide ibidem, 56-78.

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famoso trabalho Das Mutterrecht (1861) (O Direito-Mãe), Johann JakobBachofen desenvolve uma teoria de estádios, na tradição da antropologiavitoriana, que traça o primitivo desenvolvimento humano desde uma fasetelúrica, matriarcal, até um estádio patriarcal muito mais evoluído. ParaBachofen, a Oresteia, e em particular o poderoso conflito na cena de jul-gamento das Euménides, abarca o texto central que documenta, no planomítico, esta transição histórica do matriarcado para o patriarcado3. Naobra A Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884),Friedrich Engels, amigo de Karl Marx e co-autor, critica a abordagem deBachofen como sendo a expressão do misticismo burguês. De acordo comEngels, a transição do matriarcado para o patriarcado pode ser melhorcaracterizada, a partir da teoria económica marxista, como o períodohistórico em que a propriedade colectiva é suplantada pelos direitos dapropriedade privada4. Esta concepção reúne ambos os impulsos darecepção futura, ou seja, a teoria política e feminista do matriarcado. Eassim nasceu um mito moderno.

Até aos finais da década de 60, as interpretações marcadamente políti-cas continuaram influentes. A linha dramática era vista segundo a perspec-tiva do pensamento evolucionista, sendo depois projectada dentro das teo-rias predominantes da história. Naturalmente, daí resultou a confirmaçãoda existência ou a busca de um sistema político considerado como o cul-minar do desenvolvimento humano. Desta forma, a Oresteia tornou-se nomito por excelência do moderno patriarcado, do autoritarismo germânicodo Kaiserreich, da ditadura Nazi, da moderna democracia ocidental,incluindo a constitucionalidade e, finalmente, até do estado marxista.3 Johann Jakob Bachofen, Das Mutterrecht. Eine Untersuchung über die Gynaikokratie der Alten Weltnach ihrer religiösen und rechtlichen Natur, Stuttgart 1861, Basel, 18972 (= Bachofens GesammelteWerke, vol. II/III, novamente editados por Karl Meuli, Basel 1948); versão inglesa Myth, Religion, andMother Right: Selected Writings of J. J. Bachofen (tradução feita por Ralph Manheim), Princeton 1992.Vide ainda Nippel, Griechen (nota 2), 102-105 e Beate Wagner-Hasel, "Rationalitätskritik undWeiblichkeitskonzeptionen. Anmerkungen zur Matriarchatsdiskussion in der Altertumswissenschaft," inMatriarchatstheorien der Altertumswissenschaft, Darmstadt 1992, 295-305 e 337-346.4 Friedrich Engels, Der Ursprung der Familie, des Privateigentums und des Staats. Im Anschluß an LewisH. Morgans Forschungen, Berlin 1884, 18924 = Karl Marx, Friedrich Engels, Gesamtausgabe [=MEGA], publicado pelo Institut für Geschichte der Arbeiterbewegung Berlin e pelo Instituto deMarxismo-Leninismo do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, primeira secção,Werke, Artikel, Entwürfe, vol. 29, Berlin 1990. Vide Nippel, Griechen (nota 2), 112-117 e Wagner-Hasel(nota 3), 339 n. 9. Engels considerava este trabalho como um legado de Karl Marx, que havia planea-do a abordagem, mas acabara por falecer em Março de 1883, antes de a obra ficar completa. O seucontributo contém longas citações de Morgan bem como notas que Engels completou depois ao longo devários meses. Para mais informações respeitantes à posição de Engels relativamente a Bachofen, vide oprefácio à quarta edição 1891 = MEGA 29, 1990, 135-137, e a crítica concreta ibidem, 137, 3-10[versão portuguesa de H. Chaves, Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e doEstado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan, 4a ed., Lisboa 1980].

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Mudança para uma leitura aberta e anti-assertiva

A prática dominante de buscar confirmações foi posta em questãosomente em finais dos anos 60. Neste grande ponto de viragem cultural, amensagem era entendida de forma conscientemente aberta ou então torna-va-se mesmo anti-assertiva. Esta tendência reflectia a crítica crescente aostatus quo. Ao mesmo tempo, deu-se nas humanidades uma mudança deparadigma em direcção à semiótica. O teatro, onde a interpretação criati-va do encenador teve sempre um papel central, começou a ser entendidocomo um texto cuja concretização compreendia o sentido de signos indi-viduais criados em relação com um contexto social. Desde Foucault, vemosum texto dentro da sua complexa formação discursiva como a sedimen-tação de sub- e intertextos. A ideologia torna-se, assim, na associação dotexto teatral com a prática discursiva e ideológica do encenador, ao nívelda produção cénica, bem como no efeito exercido sobre a audiência, aonível da recepção.

Novo impacto político e teatro pós-dramático

Depois de 1989, uma guerra repentina está de novo na agenda. Narealidade histórica do receptor moderno, a guerra de Tróia pode encontrarparalelo numa série de novos conflitos destrutivos. Tal como a dimensãopolítica da tragédia antiga, também o tratamento público da violência, ter-ror, vingança e luta pelo poder é particularmente notório na Oresteia.Desde 1994, há um aumento significativo de batalhas e de acções terro-ristas. Evoco somente a Chechénia, o Ruanda, o conflito nos Balcãs, osacontecimentos do 11 de Setembro e respectivas consequências, a guerrano Afeganistão e no Iraque, bem como os recentes ataques terroristas aMadrid e a Londres. Todos estes exemplos funcionam como estímulos reaisque intensificam o impacto emocional desta trilogia sobre o espectador.

Além disso, os temas relacionados com o poder e a violência na família,questões de género, sexualidade, conflitos de gerações e de clãs, a criaçãoda lei, da justiça e da democracia são tópicos fascinantes em que o origi-nal antigo vai ao encontro dos interesses modernos.

Para mais, o teatro actual centra-se em novas formas e modos perfor-mativos. Assim, nas reposições modernas, o coro e a dimensão ritual dodrama antigo voltam a ser despertados. Tudo isto segue a par com atendência do chamado teatro pós-dramático, um termo criado porHans-Thies Lehmann.

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Teatro pré- e pós-dramático

As tragédias de Ésquilo podem ser caracterizadas da seguinte forma:carecem de tudo aquilo a que estamos habituados na nossa forma de teatroverista e naturalista, ou seja, de uma trama desenvolvida e contínua, bemcomo de caracteres psicologicamente complexos. Ora os traços pré-dramá-ticos encontram, de alguma forma, a sua correspondência moderna noteatro pós-dramático5.

Vamos resumir então as características do teatro pós-dramático: éanti-aristotélico e não referencial-mimético. Assim, não procura imitaruma acção contínua e detalhada. Mais ainda, o suspense não aparece emprimeiro plano, pois a acção centra-se na peça teatral, na observação e naauto-reflexão. Não produz uma síntese clara, mas antes um espectáculosinestésico de quadros que se movimentam metonimicamente no espaço.Pode ser entendido como uma performance englobante que, tal como o ri-tual, é constituída por parataxe, pela falta de hierarquia, simultaneidade,sobredeterminação do significado, musicalidade, visualização, multimédiae corporalidade. A demonstração, a focalização da realidade e a oscilaçãoentre exemplos internos e externos desempenham um importante papel. Oespaço é aberto em relação ao público, o tempo é semelhante a uma dis-seminação por sequências oníricas. O acto do discurso é determinado pelasua própria execução, havendo muitas auto-referências metateatrais. Maisainda, podemos falar mesmo de uma estética de perturbação e deanti-verismo, sublinhada por uma inclinação pelas vozes a solo e por umapredilecção pelo coral6.

2. As Oresteias de Pasolini

Por ocasião do trigésimo aniversário da morte de Pasolini, é particular-mente interessante lançar um olhar mais atento à forma como a ocupaçãocom a Oresteia se tornou para ele numa experiência-chave. Com o seu tra-balho, deu um impulso decisivo para uma evolução do teatro moderno,afastando-se de uma leitura essencialmente teleológica em direcção a umaperspectiva mais aberta, menos assertiva e mais crítica. Em 1960, de acor-do com o modelo marxista, ele interpretou as três peças consecutivas comouma evolução do tribalismo para a democracia, enquanto etapa para umasociedade comunista sem classes. Mas por detrás deste sentido de progres-so abertamente evolucionista, ele desenvolveu uma nostalgia específica pelo

5 Vide Anton Bierl, Der Chor in der Alten Komödie. Ritual und Performativität, München/Leipzig 2001,13-14, 300-304, 373.6 Hans-Thies Lehmann, Postdramatisches Theater, Frankfurt a. M. 20012.

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passado arcaico, que via cada vez mais personificado nas Erínias. Além domais, constatamos que ainda hoje Pasolini desempenha um importantepapel na vida intelectual da Europa e continua a ter impacto na recepçãoitaliana actual desta trilogia. A ambivalência crescente de Pasolini encon-tra a sua nova expressão na produção de Elio De Capitani, na viragem domilénio. Em vez da tendência de Pasolini para assimilar Ésquilo a eventosactuais da sociedade, De Capitani sublinha a alteridade deste texto primor-dial dentro dos códigos alterados do teatro pós-dramático. Até certo ponto,Pasolini e a sua recepção podem funcionar como um case-study exemplarda história recente da representação da Oresteia.

A utopia de esquerda em Siracusa: Pasolini e a famosa produção do TPIem 1960

Cerca de 60 anos depois de Engels haver criado o seu mito moderno de umdesenvolvimento cultural progressivo, desde uma igualdade proto-comunista sobdirecção matriarcal até à sua supressão pelo patriarcado, que coincidiu com agénese do estado baseado na propriedade privada, o classicista George Thomsonpegou nestas teses, no seu livro de 1941 Aeschylus and Athens, e inscreveu-asnuma interpretação histórica marxista da Oresteia. Thomson lê toda a trilogia apartir da perspectiva do materialismo histórico como uma evolução de umaordem primitiva tribal, baseada no princípio da vendetta, simbolizado pelasErínias, até se chegar ao Estado democrático que incorpora a razão, a justiça, acivilização e o procedimento judicial para julgar casos de homicídio premedita-do, qualidades personificadas todas em Atena. Neste grande processo, o desen-volvimento histórico ocorre em dois estádios intermédios. O primeiro é o estádiomonárquico, aristocrático, representado por Agamémnon, e acaba com a suamorte violenta; o segundo corresponde ao estádio tirânico daí resultante, que seráderrubado quando Orestes assassina Clitemnestra e Egisto. Segundo Thomson,que segue a linha de raciocínio de Bachofen, o julgamento nas Euménides é umadramatização da luta entre dois conceitos de justiça. No decurso do confronto, aherança é transferida da linha feminina para a masculina. Ele interpreta aabsolvição de Orestes como um avanço no caminho da democracia. Aqui Apoloreflecte o estádio aristocrático intermédio, durante o qual o crime de sanguepoderia ser expiado de forma ritual7.7 George Thomson, Aeschylus and Athens. A Study in the Social Origins of Drama, London 19462,245-297, esp. 276-295. Ideias semelhantes podem encontrar-se também no comentário The Oresteiaof Aeschylus, I, ed. with introd., transl. and comm., no qual foi incluído o trabalho do falecido WalterG. Headlam, por George Thomson, Cambridge 1948, Amsterdam/Prague 19662, 45-46, 56. Paramais informação relativa a Thomson, vide Wagner-Hasel (nota 3), 320-321. Quanto à interpretaçãoque Thomson fez da Oresteia, vide apreciação crítica de Christian Meier, Die Entstehung des Politischenbei den Griechen, Frankfurt a. M. 1980, 160 n. 51 [versão inglesa de D. McLintock, The GreekDiscovery of Politics, Cambridge, MA/London, 1990, 257 n. 49].

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A abordagem marxista de Thomson tornou-se popular durante asdécadas de 50 e 60, ao longo do período do despertar social e político.Ainda assim, permaneceu como uma espécie de “bandeira vermelha” paraos seus colegas de área e foi, em muitos aspectos, justamente criticado8.

Antes de mais, gostaria de discutir a famosa produção lendária levadaà cena pelo INDA em Siracusa, a 19 de Maio de 1960, e encenada porVittorio Gassman e Luciano Lucignani. Trata-se de um bom exemplo deuma transposição consistente do modelo marxista para o palco9. Gassmane Lucignani haviam fundado o seu progressista Teatro Popolare Italiano(TPI) apenas um ano antes, seguindo o modelo do Théâtre Populaire deJean Vilar, em França. Trabalhando embora com orçamentos baixos,procuram trazer teatro sofisticado (que era acessível sobretudo à elite) atéuma audiência de massas mais alargada. Um teatro móvel, pensavam eles,deveria ter em vista dois objectivos: 1. as produções deveriam pautar-sepelo mais elevado nível cultural; 2. relacionado com este ponto, deveriamainda abrir um diálogo progressivo e democrático com o público, relativa-mente à situação corrente em Itália10.

A tradução para italiano de Thomson, em 1949, chegou demasiadotarde para a representação de 1948, que constitui a primeira grande pro-dução do INDA depois da Segunda Guerra Mundial11. Onze anos maistarde, ocorre em Itália uma situação socio-política mais favorável a umaadaptação da sua ideia de criar uma relação actual com a audiência apropósito do seu próprio país.

De repente, na Itália de 1960, dois mundos inconciliáveis, um antigo eoutro novo, enfrentam-se mutuamente. Como resultado de uma rápida revo-lução industrial, a disparidade entre o sul subdesenvolvido e reaccionário,

8 Vide, entre outras apreciações, as que foram feitas por W. F. J. Knight, JHS 62, 1942, 96-97; GilbertNorwood, CP 37, 1942, 437-441; Raffaele Cantarella, Aevum 24, 1950, 569-572; Albin Lesky,Gnomon 33, 1961, 19-26.9 A performance de Jean-Louis Barrault (1955) deve ter sido também muito influenciada por esta con-cepção. O 11º "Cahier" da Compagnie M. Renaud-J.-L. Barrault, Paris 1955, que documenta a pro-dução, contém excertos de Thomson bem como de François Mitterand, o futuro presidente, que,enquanto intelectual, começou por essa altura a desempenhar um papel determinante na esquerdademocrática. Vide referências em Umberto Albini, "Four Theatrical Interpretations of Oresteia,"International Meeting of Ancient Greek Drama, Delphi, April 8-12, 1984, Delphi, June 4-25, 1985(European Cultural Center of Delphi), Athens 1987, 102.10 Para mais informação relativa ao TPI e à concepção da produção da Oresteia, vide "Tavola rotonda.Il circo è pronto: Fuori i leoni!", Sipario 163, Novembro 1959, 4-9. Os encenadores tinham rejeitadouma abordagem clássica ou o estilo de produção estética que haviam sido norma em Siracusa e emtoda a Itália. Vide Arnaldo Frateili, "Un classico moderno", Sipario 170, Junho 1960, 22-23 e 70, bemcomo Luciano Lucignani (ed.), Vittorio Gassman. Intervista sul teatro, Roma/Bari 1982, 107 sqq.11 Eschilo e Atene, Torino 1949. Vide a recensão pouco favorável de Raffaele Cantarella, Aevum 24,1950, 569-572.

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que estava apegado ainda a muitas formas arcaicas, e o norte, onde aspontes da modernidade haviam sido franqueadas por novos métodos deprodução, tornou-se maior. A Sicília, onde uma mentalidade de vendettaainda é influente dentro da classe média alta, revelava-se um tribunal par-ticularmente apropriado para trazer estas mudanças e tensões para o palco.A Itália inteira se encarreirava agora para o teatro de Siracusa, um local querepresentava a antiga e em certos aspectos mesmo a rude Magna Grecia queainda continuava a existir, com o intuito de reflectir sobre os problemasactuais do país. Lucignani e Gassman revivem, assim, na essência, a anti-ga função da tragédia ateniense. Tal como na Atenas do tempo de Ésquilo,a Oresteia torna-se novamente no veículo que permitirá aos antigos seremintegrados numa nova estrutura estatal englobante.

Esta concepção adoptada pelos encenadores iria produzir repercussão aum outro nível também. O povo estava pronto para seguir o partido comu-nista na busca do socialismo democrático. Os Comunistas, que senorteavam por um padrão democrático independente de Moscovo, haviamdesempenhado um papel dianteiro no país desde a resistência.

O cenógrafo alemão Teo Otto auxilia o encenador a pôr em palco a inter-pretação de Thomson, que é muito influenciada pela etnologia comparativa.Oito postes amovíveis, que medem entre 9 e 11 metros de altura, foram colo-cados ao alto num palco moderno e com um cenário simples. Estes postesestavam decorados com motivos sacrificiais. Máscaras de bronze gigantescascom serpentes enroladas à volta, que simbolizavam as Erínias dominantes,pendiam dos postes. Durante o decurso da peça, todos os elementos que re-presentavam uma sociedade primeva, totémica, encontravam-se recobertospela sombra, que sublinhava o curso da evolução humana até ao presente.O carácter atávico do tribalismo primitivo no Agamémnon é reforçado aindamais no início com uma coreografia extática de um ballet vodu. Um dosbailarinos crioulos caça um bode ao som de tambores da selva. Esta caçabáquica alude a um antigo sacrifício de um bode, que, tal como algumasteorias sustentam, poderia ter constituído a origem da tragédia grega. Coma sua comitiva de mortos e feridos, Agamémnon é retratado, desde o início,como um herói derrotado que está mais perto da morte que da vida. Deacordo com a concepção do encenador, o drama centra-se muito menos nasua morte do que na vingança sobre Clitemnestra e Egisto. Seguindo a inter-pretação de Thomson, a derrota da tirania em palco é acompanhada poruma rebelião maciça, que pressagia o governo de uma população politica-mente madura, como objectivo do desenvolvimento socio-político apresenta-do nas Euménides. Tudo, na última peça, está direccionado para esse fim.Na leitura marxista, o papel proeminente desempenhado pelos deusesolímpicos neste processo histórico teria de ser enfraquecido. A integração de

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velhos poderes dentro da nova ordem da pólis não pode ser vista como umaimposição de Atena, mas antes como o resultado de uma decisão tomadapelas massas. Por esta razão, duas máscaras de Atena e Apolo em metal,com três metros de altura, foram colocadas no palco. O texto dos deuses éinterpretado por actores vestidos com roupas do dia-a-dia. Ao mesmotempo, Otto orienta os degraus do Areópago em direcção à audiência,atribuindo-lhe desta forma um papel simbólico e activo no processodemocrático de tomar decisões.

As Erínias, que se transformaram em benfeitoras da cidade, são depoisconduzidas numa procissão para o local subterrâneo do seu culto. Destamaneira, o antigo é “preservado” com sucesso no mundo da nova ordem.Por último, o final transforma-se, inesperadamente, num ruidoso festivaldas massas selvagens, durante o qual as danças vodu do início da trilogiafazem a sua derradeira aparição extática. Neste desfecho notavelmenteoptimista, mais reminiscente dos finais da comédia de Aristófanes, o povodeitou por terra todas as peias entrepostas à celebração da auto-determi-nação democrática. A animação dionisíaca alastra a toda a audiência. NaItália contemporânea da representação, as Euménides tornavam-se naexpressão da esperança revolucionária num futuro verdadeiramentedemocrático e socialmente mais justo.

Este recém-criado e a-histórico círculo que leva do vodu ao vodu foiamplamente criticado em alguns meios. Para as sensibilidades conservado-ras, que procuram uma reconciliação, no sentido de um nacionalismo ele-vado, esta produção corrompia o final esplêndido e festivo de Ésquilo,transformando-o numa “festança de aldeia”. Acima de tudo, colocava-se aquestão sobre o papel possível que estes elementos bárbaros encontrariamnuma sociedade onde o racionalismo esclarecido havia finalmente triunfa-do no longo processo civilizacional12. O encenador pretenderia, presumivel-mente, passar a ideia de um paraíso comunista sem classes. A enérgicainterpretação do encenador, baseada no materialismo histórico, aponta nadirecção de uma classe média matriarcal, partidária de um proto-comunis-mo à maneira de Engels, que é projectada no Agamémnon e alcançada numestádio superior de desenvolvimento13. A dança vodu, imagem primordialda dança coral, torna-se assim numa metáfora teatral que descreve a teoriado regresso a uma forma de vida comunitária. Além disso, serve também

12 Vide Ettore Paratore, "Considerazione in anteprima", Dioniso 34, 1960, 78-91, esp. 88-90, onde oestudioso estende os seus sentimentos desorientados a toda a audiência. Na minha opinião, ele avançaa sugestão injustificada de que poderá haver uma ligação com os eventos da Segunda Guerra Mundial,durante a qual a barbárie irrompeu subitamente no seio de uma sociedade esclarecida. 13 Vide também Mario Untersteiner, "Il mondo di Eschilo", Dioniso 34, 1960, 10-37; Galvano dellaVolpe, "Marxismo e critica letteraria", Il contemporaneo 3, Marzo 23, 1960, 22.

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como apelo a uma audiência para que veja no festival a realização do sonhode uma Itália comunista neste momento axial da história.

Certamente que muitas questões políticas ficam por resolver dentrodesta concepção. Por exemplo, fica por esclarecer se a intervenção de Atenaserve os interesses da democracia burguesa ou antes o estádio superior dosocialismo. Uma vez mais, dentro do contexto italiano, esta transformaçãoda democracia burguesa ocidental deveria ser vista como um dado jáadquirido ou então como o desejo de um futuro melhor. A análise acimaavançada relativa ao ballet vodu falaria a favor da segunda hipótese. Emqualquer dos casos, como vimos, a sociedade italiana estava nessemomento a experimentar um ponto de viragem dramático semelhante ouum afastamento radical do fascismo em direcção à democracia parlamen-tar e de uma produção agrária para uma outra industrial, com todos osinerentes sintomas socio-culturais.

A leitura aberta da produção e do texto

Esta famosa representação de 1960 demonstra como a sua mensagemé susceptível de uma multiplicidade de interpretações políticas.Naturalmente que isto era também verdade para a primeira produção deÉsquilo14. Ao ver o festival de aldeões, os camponeses, em particular nosubdesenvolvido Mezzogiorno, podem deixar o teatro de Siracusa e dizerque iriam inevitavelmente recuperar a sua posição anterior na sociedade,apesar do desenvolvimento moderno. Por outro lado, o cidadão esclareci-do pode identificar-se com o compromisso que é atingido e ver a perfor-mance como uma afirmação da transformação em curso na direcção deuma sociedade industrial e racional. Para mais, os simpatizantes daesquerda moderada vão para casa satisfeitos por interpretarem os eventosdas Euménides como prenúncio de um compromesso storico. Este últimoideal torna-se num dos mais importantes objectivos da esquerda modera-da ao longo da década seguinte, em particular sob a liderança de EnricoBerlinguer. O Partido Comunista de Itália procura uma aliança com osDemocratas Cristãos conservadores a fim de conduzirem a sociedade ita-liana em direcção a uma nacionalidade mais democrática e socialmentejusta. Finalmente, os Marxistas podem encontrar também motivos de

14 Vide também Albert Schlögl, "Das »Ende der Geschichte«, nur nicht die Kriegsgeschichte",TheaterZeitSchrift 33/34, 1994, 125-143, onde ele compara a tese de Francis Fukuyama de que ahistória chegou ao fim através da queda do comunismo com a usual interpretação harmoniosa daOresteia. Em ambos os casos ele enfatiza o componente marcial negativo. As construções históricasbaseadas na evolução cortaram em ambos os sentidos, ainda segundo ele.

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apreço na trilogia, dado que lhes seria possível imaginar que o final dapeça franqueava uma sociedade sem classes numa nova Itália socialista.

O envolvimento criativo de Pasolini com o texto aberto

Pier Paolo Pasolini, nessa altura um jovem e progressista poeta italiano,é encarregado por Gassman e Lucignani de escrever uma nova traduçãopara a sua produção15. Ele mostra uma grande simpatia pelas Erínias, opoder do velho sistema que saiu derrotado no processo histórico. A suarelação com o Partido Comunista italiano é, nesta altura, já bastanteambivalente. Durante estes anos, ele torna-se particularmente cautelosoem relação à confiança desenfreada deles no progresso. Desde a sua juven-tude, fora sempre muito aberto à religião, ao mito e aos ritos quase bár-baros dos camponeses simples, que, com o aumento repentino da indus-trialização, estavam agora relegados para um estatuto de subproletariadonos centros industriais. Pasolini sente, como o prefácio à sua traduçãodeixa claro, que estes estratos arcaicos estavam a ser cilindrados pelodesenvolvimento, e daí que os identifique com as Erínias. Além disso, eletransfere as categorias psíquicas do “irracional” e do “racional” para arelação oposta entre “velho” e “novo”. Desta forma, recuando a Freud,reforça a perspectiva de que os resquícios arcaicos e irracionais de uma

15 Para a história por detrás da tradução, vide Luciano Lucignani, "Quel suo incontro con la scena", LaRepubblica, Novembro 11, 1977, 11. De acordo com as declarações da sua prima e executora testa-menteira, Graziella Chiarcossi, Pasolini sentiu uma ligação com o espírito do mundo antigo desde ajuventude. Em meados da década de 40, debruçou-se sobre variados textos latinos e gregos. Alémdisso, escreveu a sua tesi di laurea sobre Pascoli, que adaptou muito material antigo à literatura lati-na. Vide Jutta Linder, Pasolini als Dramatiker, Frankfurt a. M./Bern 1981, 30. Puristas filológicos davelha escola consideraram que a tradução de Pasolini levantava objecções. A apropriação católico-cristãde conceitos gregos nucleares revelava-se particularmente incómoda. Zeus era traduzido por “Deus”,templo por “igreja”. Termos como “pecado”, “tabernáculo”, “hossana” e “redenção” encontram-sefrequentemente no texto. No seu prefácio (Eschilo, Orestiade [Quaderni del Teatro popolare Italiano2], Torino 1960, 1-2) Pasolini procura justificar as suas opções. Em consequência da falta de tempo,teve de basear-se na tradução francesa de Paul Mazon (Eschyle, II, text établit et traduit par PaulMazon, Paris 1949) e na versão italiana de Mario Untersteiner (Eschilo: le tragedie, a cura di MarioUntersteiner, Milano 1947). Se bem que Pasolini não fosse um filólogo clássico, os especialistas da áreasaíram imediatamente a terreiro em busca de inexactidões filológicas e erros de interpretação. VideEnzo Degani, "Eschilo, Orestiade, traduzione di Pier Paolo Pasolini", Rivista di Filologia e di IstruzioneClassica 39, 1961, 187-193, que acusou Pasolini de nunca ter olhado para o texto grego. A tese deDegani foi recentemente repudiada por Nadia Fagioli, "L'Orestiade di Pasolini", Resine. Quaderni Liguridi Cultura N.S. 3, 1980, 9-18. Não há dúvida de que Pasolini foi bem sucedido ao criar uma versãoartisticamente sofisticada para o teatro. Ele actualizou a linguagem de Ésquilo, que as audiências mo-dernas consideravam distante, sem sacrificar o seu carácter poético. O poeta valeu-se do seu própriorepertório lírico, que havia desenvolvido em dois volumes de poesia, Le ceneri di Gramsci (1957) eL'usignolo della chiesa cattolica (1958) (vide Eschilo, Orestiade, 2).

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sociedade não podem ser eliminados só porque virão representar umaameaça à própria existência da nova ordem. Por esta razão, é necessáriouma espécie de racionalismo (que nas Euménides é identificado com Atena)para transformar estas forças destrutivas do Id, as Erínias, em elementospositivos, isto é, nas Euménides, que podem servir como força portadorade vida e base instintiva de um sistema racional mais elevado16.

Duas afirmações um pouco posteriores tornam ainda mais claro oquanto as Euménides se tornaram num texto-chave para Pasolini. De acor-do com o próprio Pasolini, a Itália de 1960 encontra-se ainda num perío-do de obscuridade arcaica. A intervenção de Atena na forma do seu calcu-lus Minervae (por outras palavras, a revolução, tal como Pasolini a imagi-na) não teve ainda lugar. Pasolini faz então derivar o procedimento para arevolução iminente em Itália a partir do passo das Euménides em que Atenatenta usar a peitho e o charme para transformar os derrotados, que deforças ameaçadoras passavam a entidades benéficas. A revolução em Itáliadeveria fazer a mesma operação. Em vez de reprovar as forças arcaicas,irracionais, dentro do novo estado, como reaccionárias e mesmofora-da-lei, deveria antes usar a sua potencial energia. A ameaça que elaseventualmente representem só poderia ser debelada através das potencia-lidades do discurso racional. Os Comunistas russos haviam cometido umgrave erro depois da Revolução de Outubro. Num país com tão profundasraízes religiosas, ele tinham considerado demoníaco tudo o que fosse irra-cional. O Partido Comunista italiano estava, de acordo com ele, em riscode cometer o mesmo erro, que devia ser evitado a tudo o custo, para quea nova ordem pudesse fazer as pazes com as forças irracionais e ser bemsucedida17.

A posição de Pasolini sobre o valor fundamental das forças arcaicasencontra também expressão no ballet vodu na parte final das Euménides.A dança selvagem é prova de que o povo libertado, longe de negar as ori-gens da nova ordem racional, na realidade alimenta a sua vitalidade a par-tir destas fontes primitivas.

Depois da sua colaboração na produção de 1960, Pasolini continua atrabalhar com as ideias nucleares da Oresteia. Estes esforços tornam evi-dentes as tensões interiores inerentes à ideia marxista de um retorno cícli-co a um proto- ou Ur-comunismo. Nos modelos utópicos comunistas,semelhantes aos que se encontram na antiga comédia ática, as projecções

16 Vide Eschilo, Orestiade (nota 15), 3.17 Vide as respostas de Pasolini às cartas dos leitores, reunidas sob o título "Dialoghi con Pasolini" in VieNuove, ano XV, no. 28, Julho 9, 1960 ("Pasternak e la irrazionalità") e ano XVI, no. 18, Maio 6, 1961("Lotta al fariseismo che è dappertutto"), reimpresso in Pier Paolo Pasolini, I dialoghi, prefazione diGian Carlo Ferretti, a cura di Giovanni Falaschi, Roma 1992, 17-19 e 117-120.

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idealizadas do futuro e do passado resultam numa fusão assinalável: pordetrás do paraíso ‘eu-tópico’ oculta-se o rosto contorcido de uma primiti-va ‘dys-topia’. Em períodos de mutação social, os mitos utópicostornam-se populares. Dependendo da inclinação individual, as pessoasgravitam ora à volta do elemento progressivo ora do reaccionário.Enquanto o encenador procura enfatizar os elementos progressistas, cen-trando a atenção num futuro melhor, Pasolini, mais tarde, exprime o seudesapontamento crescente com o Partido Comunista italiano ao olhar paratrás, de forma crescente, e idealizar o arcaico, o passado e o primitivo.Esta orientação acaba aliás por ser característica do seu trabalho18.

O coro exótico de bailarinos negros torna-se num catalisador do inte-resse crescente por África e pelo terceiro mundo em geral. Pasolini usa oscostumes arcaicos e os ritos religiosos de povos “primitivos” como umaalternativa nostálgica a uma Europa neo-capitalista corrompida pelo con-sumismo. Em seguida, relaciona os problemas causados aí pela revoluçãoindustrial com a situação contemporânea em Itália.

No mesmo ano em que a sua tradução é levada à cena, viaja para Índiana companhia de Elsa Morante e Alberto Moravia. Compara então os ritossacrificiais que aí observou com os ritos gregos que havia encontrado aolongo do trabalho com a Oresteia19.

A par da identificação crescente com o arcaico, ele cedo começa a vera integração das Erínias dentro da pólis racional apenas como um simplesmovimento táctico, mesmo como uma fraude perpetrada por Atena.Pasolini torna-se, desta forma, no primeiro proponente de uma produçãoideologicamente crítica e não-assertiva. Já não pode aceitar o happy end-ing da encenação das Euménides em Siracusa. É por isso que, na suaimaginação criativa, as Erínias de Pasolini, que no final do texto esquilianohaviam sido “relegadas” para o local de culto subterrâneo na qualidade deespíritos benevolentes, devem despertar agora com toda a sua raiva e ódio.Esta ideia torna-se no tema da sua peça Pilade, de 1966, a que ele iriamais tarde chamar a “quarta parte da trilogia”20.

Nesta peça, Orestes regressa a Argos a partir de Atenas. Enquanto fielentusiasta do culto de Atena e da racionalidade ateniense, ele pretendeatrair os camponeses da sua terra, que estão agarrados ainda ao mitoarcaico, à nova ideologia do racionalismo esclarecido, ajudando-os a que-18 Para mais informação sobre a importância do arcaico em Pasolini, vide Fabien S. Gerard, "Temiarcaici nel teatro di Pasolini", Teatro Contemporaneo 3, no. 7, Junho/Setembro 1984, 1-29.19 Vide Pier Paolo Pasolini, "Frammenti degli antichi riti greci a Ciòpati", in L'odore dell'India, Milano1962, 31-38, reimpresso in Romanzi e racconti 1946-1961, Milano 1998, 1209-1219. Depois de1960, ele fez também repetidas referências a África; a sua primeira viagem ao Quénia ocorreu imedi-atamente a seguir ao seu regresso da Índia, em Janeiro de 1961.20 Pier Paolo Pasolini, "Bestia da stile", in Teatro, Milano 2001, 822.

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brar as grilhetas do passado. A própria irmã, Electra, se atravessa no seucaminho; ela continua a crer, com todo o coração, na velha ordem míti-ca. É ela quem pede ajuda às Erínias, a fim de conduzir a cidade de voltaao passado. Pílades, através de quem o poeta se exprime, e como ele apoiaos valores antigos, fica entre ambos. Pasolini, tal como Pílades,identifica-se a si mesmo como sendo o “poder do passado”, ao qualinteiramente se devota. Por isso Pílades afirma:

A maior atracção para qualquer um de nósÉ o passado, pois é a única coisaQue conhecemos e verdadeiramente amamos;Tanto assim é, que o confundimos com a vida.O facto é que ansiamos pelo ventre da nossa mãe21.

Orestes é, como sempre, o político que, de acordo com as exigências dahistória, exerce o poder. Pílades e Pasolini, por outro lado, são intelectosauto-divididos que existem a grande distância dos eventos históricos22.

O amor de Pasolini pelo arcaico em África a par do seu contínuo envolvi-mento com a Oresteia levam Pasolini a rodar o seu pouco conhecido filmeAppunti per una Orestiade africana, em 1969. Os antigos ritos tribais atávi-cos marcam um contraste com as modernas, e inumanas, metrópolesafricanas, nas quais a velha ordem desapareceu por completo em apenasalguns anos. Kampala, a capital do Uganda, e o horrível bloco de cimentoda universidade de Dar es Salaam, na Tanzânia, ocupam o lugar de Atenase do templo de Apolo em Delfos23. Pasolini sentiu-se particularmente atraí-21 Pier Paolo Pasolini, "Pilade", in Teatro, Milano 2001, 389. Excerto traduzido por D. F. Leão.22 Para mais informação sobre Pilade, vide Enrico Groppali, L'ossessione e il fantasma. Il teatro di Pasolinie Moravia, Venezia 1979, 63-80, e Guido Santato, Pier Paolo Pasolini, L'opera, Vicenza 1980, 269-274.Pilade foi publicado em 1967 in Nuovi Argomenti N.S., 7/8 Julho/Dezembro 1967, 13-128. De facto,Pilade foi representado a 29 de Agosto de 1969, no teatro grego ao ar livre de Taormina, pela CompagniaSiciliana del Teatro, sob a direcção de Giovanni Cutrufelli. Para mais dados sobre Pilade e a sua maisrecente produção às mãos de Luca Ronconi, em 1993, vide Massimo Fusillo, "Pier Paolo Pasolini, LucaRonconi und die griechische Tragödie. Eine Neuinszenierung von Pilade," in Anton Bierl e Peter vonMöllendorff (eds. juntamente com Sabine Vogt), Orchestra. Drama–Mythos–Bühne, Stuttgart/Leipzig1994, 239-247. Para mais elementos sobre a relação de Pasolini com a tragédia grega, vide MassimoFusillo, La Grecia secondo Pasolini. Mito e cinema, Firenze 1996.23 De acordo com alguns críticos, este filme quase desconhecido é o maior trabalho de Pasolini. Vide AntonioCosta, no prefácio ao guião, Pier Paolo Pasolini. Appunti per un'Orestiade africana, Copparo 1983, 13; WalterSiti, "Il sole vero e il sole della pellicola, o sull'es-pressionismo di Pasolini", Rivista di Letteratura italiana 7,1989, 129; Maurizio Viano, A Certain Realism. Making Use of Pasolini's Film Theory and Practice, Berkeley1993, capítulo 19. Pasolini tinha de facto escrito um guião em 1968 para um projecto chamado "Appunti perun poema sul terzo mondo," que deveria explorar em cinco episódios os problemas do terceiro mundo naÍndia, África Negra, Arábia, África do Sul e nos guetos negros dos Estados Unidos. Apenas o episódio sobreÁfrica foi completado. Informação de fundo particularmente interessante pode encontrar-se nas notas dePasolini, Corpi e luoghi, que foram editadas por Michele Mancini e Giuseppe Perrella, Pier Paolo Pasolini:Corpi e luoghi, prefácio de Paolo Volponi, Roma 1981, 3-59; para o terceiro mundo, vide esp. 35-59.

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do pelos povos de África. Em sua opinião, eles representavam o maior con-traste com a cultura branca dos Europeus; o seu mundo era ainda arcaico,agrário, feudal, mítico e pré-industrial. As normas de vida ritualistas einveteradas faziam-lhe recordar o sul de Itália, onde, até há pouco tempo,os conflitos entre gerações e a revolta contra os pais eram ainda completa-mente desconhecidos. A vida nas sociedades tribais situava-se numa radi-cal oposição à vida levada numa grande cidade industrial24. A nostalgia ide-alizada do “antigo” derrotado que não mais pode ser recuperado serve-lheuma vez mais como contra-modelo utópico para a realidade italiana25; nofinal, as Erínias acabam por levar vantagem sobre Atena.

Com Pasolini, o problema suscitado por uma qualquer interpretaçãounilateral ou pela apropriação da mensagem em favor dos próprios inte-resses torna-se muito claro. Na sua reactualização da trilogia há tambémuma reactualização dos conflitos e tensões internas que são inerentes aotexto de Ésquilo. Poderia parecer que Pasolini toma primeiro consciênciadas contradições ligadas ao texto como resultado do seu trabalho sobre aOresteia, que ele baseou numa leitura marxista. Quanto mais unilateral éuma leitura, tanto mais lhe parece a ele que quererá significar precisa-mente o contrário.

A leitura marxista ortodoxa de Thomson, que serviu de base à perfor-mance de 1960, e a reelaboração posterior que Pasolini fez da Oresteia,através de Pilade, e que foi vista por “verdadeiros” marxistas como sendoreaccionária, têm ambas em comum uma visão utópica. Para as duas, oideal de uma sociedade sem classes a ser atingido no futuro e ocontra-modelo de um retorno à condição primitiva reflectem a ideia de umparaíso harmonioso sem contradições. Ambas estas projecções servemcomo uma válvula de escape em relação à realidade que se tornou entre-tanto insuportável; do ponto de vista destas abordagens ideológicas, já nãoparecemos capazes de lidar com a contradição real entre estruturas emo-cionais tradicionais e as exigências que são colocadas repentinamente ànossa humanidade.

24 Ibidem 45 sqq.25 Mesmo Roma, onde Pasolini tinha vivido desde os anos 50, lhe fazia evocar condições do terceiromundo. «Roma é uma cidade pré-industrial: as pessoas vivem como se estivessem em África, noCairo, em Algiers ou em Bombaim ….»; vide "Voci del set", uma transcrição completa do programa datelevisão francesa "Cinéastes de notre temps", dedicado a Pasolini e obtido por Jean-André Fischi[1966] in Corpi e luoghi (nota 23) 68. O amor de Pasolini pelos povos intactos, pré-industriais, espe-cialmente nas borgate (subúrbios) de Roma, determinou os seus interesses literários mesmo antes de1960. Os seus livros Ragazzi di vita (1955) e Una vita violenta (1959), nos quais a variedade socialdo proletariado de Roma encontrou expressão literária, são disso um bom exemplo, tal como o seufilme Accatone (1961).

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Esta ambivalência fundamental tanto no texto de Ésquilo como nasinterpretações utópicas ajuda a compreender por que motivo, além de ou-tras razões, a Oresteia não foi representada nunca na RDA, apesar de todasas conexões possíveis que o Marxismo encontrou no texto26. Talvez o go-verno receasse uma inversão na recepção do público, semelhante à dePasolini, e que poderia ir contra as intenções oficiais do Partido SocialistaUnido (SED). Aparentemente, a ideia de uma integração harmoniosa doantigo no moderno seria uma proposta demasiado arriscada em regimestotalitários, para poder funcionar como um mito de referência do seupróprio poder27. Talvez o SED receasse ainda mais que a mensagem fosseinterpretada ao contrário por dissidentes28.

3. Quarenta anos depois: Pasolini e o Progetto Orestiadi de Elio DeCapitani

Cerca de vinte e cinco anos após a trágica morte de Pasolini em Romae quase quarenta depois da famosa produção em Siracusa, Elio DeCapitani teve a ideia de ocupar-se novamente da Oresteia. Infelizmente, oProgetto Orestiadi, embora muito interessante, ficou por terminar. Em1999 e 2000, as Coéforas e as Euménides foram levadas ao palco pelogrupo «Teatridithalia», em Milão e noutras cidades. Devido a razões práti-cas, nunca se chegou a produzir o Agamémnon29. De Capitani envolve-senum intenso estudo e num trabalho em formação. Começa com as partesmenos problemáticas da trilogia. A reflexão de De Capitani sobre a Oresteiaestá centrada em dois autores, Ésquilo e Pasolini. Significativamente e emmemória do filme de Pasolini Appunti per un'Orestiade africana (1969),De Capitani denomina o seu projecto como Appunti per un'Orestiade ita-liana. A partir deste título, podemos facilmente deduzir as referências cine-

26 Vide Christoph Trilse, Antike und Theater heute. Betrachtungen über Mythologie und Realismus,Tradition und Gegenwart, Funktion und Methode, Stücke und Inszenierungen, Berlin (DDR) 19792,153, 289.27 A interpretação marxista busca uma saída para o dilema ao sustentar que a introdução da demo-cracia representa um importante passo intermédio que, ainda assim, deixa muitas contradições porresolver; o fim da história pode ocorrer apenas com a introdução do Comunismo. Desta forma, a pro-dução de Stein, em 1980, foi apreciada estritamente a partir deste ponto de vista da interpretaçãomarxista. Vide Peter Ullrich, "Mythos und Gegenwart. Die Orestie des Aischylos in der WestberlinerSchaubühne", Theater der Zeit 8, 1981, 55-57.28 William M. Calder III, "The Anti-Periklean Intent of Aeschylus' Eumenides", in Ernst Günther Schmidt(ed.), Aischylos und Pindar. Studien zu Werk und Nachwirkung (Schriften zur Geschichte und Kulturder Antike 19), Berlin (DDR) 1981, 220-223, apresenta uma argumentação habilidosa relativamenteàs contradições em Ésquilo, num ensaio publicado na RDA.29 Vide Martina Treu, "Coefore. Appunti per un'Orestiade italiana di Eschilo secondo Pasolini", StudiItaliani di Filologia Classica, terza serie, 18/1, 119-131.

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matográficas e o seu contexto italiano. Em consequência, a tradução dePasolini de 1960 serve de guião para a performance. Por esse motivo, DeCapitani volta a ler a trilogia em termos antropológicos, como uma tran-sição do matriarcado para o patriarcado. Embora em 1960 esta leiturahouvesse sido vertida numa teleologia marxista, a questão do fim torna-seagora no envolvimento em problemas actuais de género, situados numasociedade ainda patriarcal, em que a mulher ou é uma virgem santa ouuma prostituta. Acima de tudo, neste projecto, a santa mãe dominantetorna-se também num ser terrível. O caminho para o progresso resulta narepressão de mulheres e de escravos. A produção lida novamente com aposição da mulher em Itália e com o papel do terceiro mundo. Acabámosde ver de que forma Pasolini procurou criar uma síntese entre a novaracionalidade e a antiga irracionalidade, uma harmonia entre ideiasopostas, e de que forma a sua simpatia sofreu uma alteração em favor dospoderes arcaicos das Erínias, que ele tinha visto reprimidas na sua novaconstrução da ordem30.

Tal como em muitas produções modernas, também aqui o envolvimen-to do coro se torna central. Ainda assim, enquanto com a sua actualizaçãoda tradução Pasolini pretendia focar mais o texto no horizonte dos espec-tadores, De Capitani segue na direcção contrária e, ao proceder destaforma, ele deixa patente a fenda paradoxal no conceito de Pasolini. Pasolinihavia exteriorizado o elemento arcaico/bárbaro através do grupo de dançavodu, enquanto De Capitani procura integrar este elemento dentro dopróprio coro. Ele baseia o seu trabalho prático de encenação na famosacompositora e musicóloga Giovanna Marini. Com esta antiga colaborado-ra de Peter Brooks, ele colocara em cena, já em 1995, a obra I Turcs talFriul de Pasolini. No campo da tragédia antiga, ela tornara-se conhecidacom o impressionante coro de Troianas, que atingiu um grande sucesso soba direcção de Thierry Salmon, em Gibellina (1988). Marini havia deixadoos passos do coro propositadamente no grego original31. Já em 1996 elatinha composto a música para uma Oresteia, que foi levada a cena porFranz Marjinen no Royal Flemish Theatre, em Bruxelas.

De Capitani e Marini sentiram que o italiano de Pasolini soava demasiadoracional, abstracto e elevado, particularmente nas odes corais. De acordo comambos, o tom da linguagem estava afastado em demasia da sonoridadeesquiliana. Por conseguinte, Marini misturou grego com italiano ou substi-tuiu-o inteiramente pelo grego nos passos onde a tradução fazia lembrar exe-

30 Vide Fusillo, Grecia (nota 22), 181-242 ("L'Orestea: utopia di una sintesi").31 Floriana Gavazzi, "'Le Troiane' di Euripide nella versione di Thierry Salmon: un esempio di analisisimbolica del testo spettacolare", in Annamaria Cascetta (ed.), Sulle orme dell'antico, Milano 1991,221-261.

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cessivamente um estilo renascentista demasiado dependente do logos e nãoconseguia transmitir o poder emotivo do original. Isto acontece, respectiva-mente, no párodo (22 sqq.) e no terceiro estásimo (935 sqq.) das Coéforas.Em especial nas Euménides, há muitos exemplos em que o coro usa o grego,porque se tornou evidente que a tradução de Pasolini simplesmente não fun-cionava e também não podia ser emendada. Além disso, Martini tenta com-pensar esta impressão de uma transposição inapropriada da linguagem deÉsquilo com a sua composição musical. Assim, o coro torna-se no núcleoemocional da peça, através do carácter patético do canto e da dança. Acimade tudo, os coreutas cantam em conjunto: servindo-se de improvisações, umavoz, uma tonalidade transvaza para a outra. Nesta entoação musical congéni-ta, as harmonias gregas, isto é a lídia e a dórica, aparecem misturadas commodos tradicionais populares de origem oriental e mediterrânea.

A dimensão musical e coral é restaurada através do contributo da musi-cologia histórica e pelo uso de analogias etnológicas. Mas em contraste como espectáculo étnico de Ariane Mnouchkine em Les Atrides (1990-1993),não se inscreve na tradição do Extremo Oriente, mas antes no substratopopular do Mediterrâneo. No sul da Itália, especialmente na Lucânia,Calábria e Apúlia, estas culturas rurais ainda sobrevivem e, ao menos emrelação aos costumes, mostram uma grande similitude com a Grécia antigaem muitos aspectos. Ernesto de Martino (1908-1965) registou e analisouetnologicamente estes ritos numa trilogia publicada entre 1958 e 196132.Pasolini e outros intelectuais foram muito influenciados por estes estudos.

No seu projecto, que está enraizado na etnografia histórica, De Capitanisegue temas e motivos de Pasolini que haviam permanecido de alguma formaobscurecidos pela grande ênfase colocada no lado do progresso num conceitode harmonia. Juntamente com o envolvimento do coro, os aspectos do ritu-alismo e da representatividade vêm ao de cima. Grande parte das Coéforasé constituída por lamentações e ritos fúnebres. Também a este nível DeCapitani pôde recorrer a paradigmas do sul de Itália e do Mediterrâneo, estu-dados por De Martino33. O impacto do lamento tem vindo a ser reforçadopela pesquisa recente relativa à tragédia ática34. Assim, ao fazer-se acompa-nhar, no acto de enunciar palavras, pelo gesto e pela música, o coro repre-

32 Ernesto de Martino, Morte e pianto rituale nel mondo antico. Dal lamento pagano al pianto diMaria, Torino 1958, 19752; Sud e magia, Milano 1959, 19966; La terra del rimorso. Contributo auna storia religiosa del Sud, Milano 1961, 19763; quanto à vida e obra de De Martino, vide VittorioLanternari, Dizionario biografico degli Italiani, ed. Enciclopedia Giovanni Treccani, ed. por AlbertoM. Ghisalberti, vol. 38, Roma 1990, 584-588.33 Vide De Martino, Morte e pianto (nota 32).34 E.g. Charles Segal, "Female Mourning and Dionysiac Lament in Euripides' Bacchae", in Bierl e vonMöllendorff, Orchestra (nota 22), 239-247; para uma perspectiva geral, vide Margaret Alexiou, RitualLament in Greek Tradition, Cambridge 1974, Lanham 20022.

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senta uma acção que pode ser comparada a um ritual35. Com os coros mara-vilhosos e congénitos de Marini, em contraste com a performance de 1960,os espectadores experimentam o enorme pathos bem como a violência domundo mágico e ritual, de que as mulheres se servem para levar Orestes aexecutar o feito mais terrível de todos: o assassínio da própria mãe.

Tal como os restantes encenadores modernos, as Euménides constituempara De Capitani o maior desafio. Ele situa-se dentro da linguagem actualdo teatro moderno e já antes experimentou a mistura pós-dramática dosmedia, ao integrar instalações video e composições musicais modernas emcooperação com Francesco Frongia e Renato Rinaldi. Por conseguinte, DeCapitani procurou primeiro transmitir o terror das Erínias com sons e ima-gens de espectáculos em video. Apresentou um primeiro estudo nesta linhaem Urbisaglia e Falerone. De início, estava convencido de que não pode-ria ser dado às Erínias um discurso normal, como acontece nos coros deÉsquilo. Portanto, pensava encontrar um trilho adequado através de umaprojecção multimédia coral e associativa. Mas no decurso do trabalhoabandona este conceito e passa a usar critérios psicológicos de interpre-tação. De acordo com a sua convicção, as Erínias já não estão situadas noexterior, mas antes no interior da cabeça de Orestes, o matricida. Elas dis-põem dos instrumentos de racionalidade, mas possuem também a corpo-ralidade de uma obsessão. Desta forma, De Capitani regressa subitamentea um espectáculo puramente teatral. Esta solução ocorreu-lhe muito natu-ralmente durante os ensaios. Todos começavam com uma cama de hospi-tal, que conhecemos já a partir das Euménides (1972/1973) de LucaRonconi ou das famosas Bacantes (1974) de Klaus Michael Grüber. Oindivíduo psicologicamente enfermo tenta ganhar a salvação de Apolo, aomesmo tempo que umas Erínias de pesadelo, enquanto exemplo materia-lizado da culpa, o prendem.

4. Conclusões

Este fascinante trabalho teatral de De Capitani torna uma vez mais claraa actualidade que subjaz na detecção do arcaico, intuída por Pasolini, eque tão importante é para todo o discurso pós-dramático do teatro. Rituale performance são os traços pré-dramáticos da Oresteia que se tornamessenciais nas mais recentes produções da tragédia antiga, particularmentenesta trilogia. Recordo apenas a mise en scène de Romeo Castellucci, em1995, e o projecto MassakerMykene em Viena por Claudia Bosse e JosefSzeiler, em 1999/2000. O intenso envolvimento de Pasolini com este

35 Vide Bierl, Chor (nota 5), esp. 70-76.

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texto-chave da civilização ocidental tornou evidente a ambivalência funda-mental da tragédia e reflecte as modernas “dialécticas do esclarecimento”,enfatizadas por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer36. A visão domundo optimista de encontrar um paralelo entre a situação actual do iní-cio dos anos 60 e o texto antigo fica despedaçada pela consciência de sehaver perdido os valores antigos e tradicionais. Para o palco moderno, istosignifica que a perspectiva de assimilar o antigo através da antiguidade ésubstituída pela perspectiva de ver o antigo como “estrangeiro mais próxi-mo” (“das nächste Fremde”)37. Ao focar o evento teatral segundo umaestética quotidiana moderna, chegamos a uma perspectiva de distancia-mento que procura mediar a antiguidade através de paralelos etnográficos,reforçando em particular a dança, a música, o elemento coral e o ritualis-mo específico.

36 Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, Amsterdam 1947, Frankfurt a. M.200415 [tradução inglesa de John Cumming, Dialectic of Enlightenment, London 1979].37 Uvo Hölscher, "Selbstgespräch", in Die Chance des Unbehagens. Zur Situation der klassischenStudien, Göttingen 1965, 53-86, esp. 81.

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