2003 mest pucrs ELZA ELISABETH MARAN QUEIROZ DA SILVA

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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PENSANDO AS FRONTEIRAS E AS IDENTIDADES NA OBRA DE ERICO VERISSIMO: O CONTINENTE (1949) ELZA ELISABETH MARAN QUEIROZ DA SILVA PORTO ALEGRE, RS - 2003

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

PENSANDO AS FRONTEIRAS E AS IDENTIDADES NA OBRA DE ERICO VERISSIMO: O CONTINENTE (1949)

ELZA ELISABETH MARAN QUEIROZ DA SILVA

PORTO ALEGRE, RS - 2003

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ELZA ELISABETH MARAN QUEIROZ DA SILVA

PENSANDO AS FRONTEIRAS E AS IDENTIDADES NA OBRA DE

ERICO VERISSIMO: O CONTINENTE (1949)

Porto Alegre, RS – 2003

ELZA ELISABETH MARAN QUEIROZ DA SILVA

PENSANDO AS FRONTEIRAS E AS IDENTIDADES NA OBRA DE ERICO VERISSIMO: O CONTINENTE (1949)

Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em História Ibero-Americana do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, para a obtenção do título de Mestre em História, área de concentração: História das Sociedades Ibero-Americanas e Brasileira.

Orientador: Prof. Dr. Charles Monteiro

Porto Alegre, RS - 2003

"... a função do escritor está cheia de pesadas tarefas. Por definição, não pode

servir hoje aos que fazem história; precisa servir àqueles que estão submetidos a ela".

Albert Camus

vi

AGRADECIMENTOS

É chegada a hora de agradecer. Esse é um dos momentos mais significativos, mas

também um dos mais difíceis. Há muito o que dizer, mas as palavras nunca conseguirão

expressar a realidade de nossos sentimentos.

Confrontamo-nos, ao longo da elaboração deste trabalho, com o impacto ante

muitas fronteiras e foi somente graças ao incentivo da família, dos amigos, dos professores,

que elas foram transpostas. Assim, agradecemos:

A Deus, sem o qual não conseguiríamos ultrapassar as fronteiras e integrarmo-

nos ao todo.

À minha família pelo apoio e pelo encorajamento demonstrados a cada dia.

Ao Professor Dr. Charles Monteiro, meu orientador, para quem todas as palavras

de agradecimento serão sempre insuficientes.

Aos Professores Drs. Arno Alvarez Kern, Braz Augusto Aquino Brancato e René

Ernaine Gertz, sempre prontos a nos escutar e nos auxiliar a encontrar soluções e a cruzar

fronteiras.

Ao Corpo Docente do Pós-Graduação em História, cujas experiências, aulas

ministradas e conversas informais nos incentivaram nas constantes buscas, para além do

mero senso comum.

À Ana Letícia Fauri, que prontamente nos assessorou no Arquivo Literário Erico

Verissimo - ALEV.

vii

À Carla Helena Carvalho Pereira, secretária do Pós-Graduação em História da

PUCRS, alma iluminada desse departamento, sempre disponível e sorridente a sanar tantas

dúvidas.

Às amigas Maritza Maffei da Silva e Ana Rita Ferreira. Quantas leituras e quantas

opiniões importantes!

Ao Sergio e a Vivian Terra Peixoto. Exemplo dos que sabem ultrapassar

fronteiras.

A Deborah Labandeira. “To be and ever to be”.

A vocês todos o nosso muito obrigado.

SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................. vi

ABSTRACT ......................................................................................................... vii

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 01

CAPÍTULO I: A SINTONIA ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA................. 1.1 Da Relação História e Literatura.......................... ................................................1.2 Romance Histórico ......................................................................................... 1.3 Do Contexto Literário e Historiográfico.........................................................

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CAPÍTULO II: DA FRONTEIRA ÉTNICO-CULTURAL À BUSCA DA IDENTIDADE SUL-RIO-GRANDENSE ............................................................ 2.1. Dos Sujeitos: identidades e fronteiras............................................................. 2.2. Os Espaços: a casa, o sobrado, a fronteira..................................................... 2.3. Os Tempos das Narrativas: do liame necessário entre Histórica e Literatura

83 84 119 149

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 174

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 18

ix

RESUMO Autora: Elza Elisabeth Maran Queiroz da Silva

Orientador: Prof. Dr. Charles Monteiro

A base desta dissertação trata das fronteiras étnico-culturais e das identidades do

Rio Grande do Sul, a partir da obra O Continente, do escritor cruz-altense Erico Verissimo,

publicada em 1949, e parte integrante da trilogia de O Tempo e o Vento, que é composto

também por O Retrato e o Arquipélago. Portanto, a idéia norteadora é analisarmos O

Continente, a partir do entendimento de vários autores, incluindo-se também o nosso

estudo, captando suas nuances como romance histórico, reunindo História e Literatura,

num mesmo contexto. Contemplamos, também, a questão das identidades e fronteiras sul-

rio-grandenses, enfocando as duas matrizes de sua formação: a lusa e a platina, as quais

nos permitem o entendimento do eu e do outro, em sua caracterização de fronteiras,

destacando a relevância das principais personagens criadas por Erico, bem como a relação

que o autor estabelece com a História do Rio Grande do Sul. Como é um trabalho de cunho

histórico, tratamos ainda do espaço e do tempo. O espaço, entendido como o lugar onde o

homem está - seja a sua casa ou qualquer outro local. O tempo, embora seja matéria-prima

da História, não será visto somente como linear e cronológico, mas também como um

tempo cíclico-mítico, amplamente enfocado em A Fonte e em Ana Terra, dois subcapítulos

de O Continente, e também um tempo de guerra e paz.

Palavras-chaves: literatura, história, fronteira, identidade, espaço, tempo.

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ABSTRACT

Author: Elza Elisabeth Maran Queiroz da Silva

Guide: Prof. Dr. Charles Monteiro

The base of this dissertation deals with the ethnic-cultural frontiers and the

identities of Rio Grande do Sul, starting from the book The Continent, by the writer Erico

Verissimo, which was published en 1949 and it is part of the triology The Times and Wind,

which is also composed by The Portrait and The Arquipelago. Therefore, the leading idea is

to analyze The Continent, starting with the comprehension of several authors and also

including our study, captivating its nuances as a historical romance gathering History and

Literature in the same context. We also contemplate the identy questions and the sul-rio-

grandense frontiers, focusing two origins of its formation: the Portuguese and the platina,

which allow us the importance of the main characters created by Erico, and the relation

which the author establishes with the History of Rio Grande do Sul. As it a historic work, it

is also treated the space and the time. The space as the place where is the man – his house

or any other place. The time although it belongs to History, it won’t be seen as linear and

chronological, but also as cyclical – mythic time, widely focused in The Fountain and in

Ana Terra, two subchapters of The Continent and also a war and peace time.

Keywords: literature, history, frontier, identity, space, time.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Por ocasião das comemorações dos cinqüenta anos de O Tempo e o Vento, do

escritor cruz-altense Erico Verissimo, publicou-se a obra "O Tempo e o Vento: 50 Anos",

organizado por Robson Pereira Gonçalves, a qual é composta por artigos de historiadores e

literatos. O contato com essa obra despertou-nos um sonho antigo, o de trabalhar História e

Literatura num mesmo contexto.

Inclinamo-nos ou talvez tenhamos invadido um território que não é o nosso de

formação acadêmica - a Literatura. Audaciosamente comprometemo-nos a discutir

basicamente a temática das fronteiras e identidades do Rio Grande de São Pedro, e todos

poderão dizer que isso sim é assunto corrente em nosso academicismo - a História. Nosso

desafio em querer abordar as questões, tomando como cenário os volumes I e II de O

Continente.

Imiscuirmo-nos num campo de literatos, estudantes de literatura e de todo bom

gaúcho, orgulhoso de já ter lido alguma obra de Erico Verissimo, é por deveras pretensão,

uma vez que não somos nem cruz-altense e nem gaúcha. Mas justificamo-nos, pois

morando há tantos anos na terra natal de Erico, aprendemos a conviver com personagens,

histórias, fatos, filmes, debates que, de alguma maneira, nos familiarizaram com o escritor.

Deixemos tranqüilos os experts em Erico Verissimo. Não viemos com o propósito

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de discutir a literatura, mas simples e tão somente tomar emprestada parte da obra O

Tempo e o Vento, para enfocarmos o período histórico das décadas de 1930 -1940, à luz da

História e da Literatura.

Essa dissertação se insere nos domínios do que se chama história cultural,

abrangendo dois tempos significativos: as décadas de 30-40, especialmente o ano de 1949

quando Erico Verissimo publica O Continente - primeira parte de O Tempo e o Vento - e o

século XIX, a partir de 1745 quando o escritor elabora a estória de seu romance. São dois

momentos, em nossa ótica, que se intercalam, pois ao contar a história do Rio Grande do

Sul, a partir do universo da família Terra, que com o tempo une-se ao ramo Cambará,

Erico transporta, de certo modo, as discussões históricas que se processavam na Porto

Alegre de sua época para o âmbito de seu romance.

Elaborar uma dissertação de mestrado implica em que o autor estabeleça o campo

do saber no qual a pesquisa se insere, que é a investigação em seu aspecto formal. Dirigida,

em princípio, ao mundo acadêmico ela requer metodologia e técnicas específicas1, a busca

de fontes e interpretações e a discussão feita a partir dos teóricos que se debruçam sobre a

temática a ser trabalhada.

O tema por nós escolhido surgiu, primeiramente, de um desejo de trabalhar História

e Literatura, dois campos do conhecimento cuja interrelação julgamos possível.

Escolhemos como proposta literária O Tempo e o Vento do escritor cruz-altense Erico

Verissimo e, após várias leituras decidimos pelo recorte da primeira parte da trilogia, que

são os volumes I e II, intitulada O Continente, edição 1999, nosso documento básico.

A discussão que propomos nesse estudo, embora num primeiro momento possa ser

1 Cf. MONTEIRO, Charles. História, Literatura e Memória do Espaço Urbano na Ficção de Moacir Scliar. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. 24, n. 1, p. 182, jun. 1998.

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entendida apenas como um debate entre a História e a Literatura, na realidade é um trabalho

que aponta para um questionamento contemporâneo, pois não se detém no século XIX, mas

traz, pelo viés historiográfico atual, como os trabalhos de Ieda Gutfreind2 e Marlene

Medaglia Almeida3, entre outros, a problemática de fronteiras, as matrizes lusa e platina de

formação étnico-cultural da sociedade sul-rio-grandense.

Examinar a questão de fronteiras, num mundo globalizado como o nosso, retoma

determinados enfrentamentos com a economia, com a política, com o patrimônio histórico-

cultural e até com o turismo, os quais afetam as regiões limítrofes como é o caso dos sul-

rio-grandeses e os sul-platinos.

Considerando-se a retomada de algumas dessas questões e sua constante

permanência, inserimos também a identidade e a alteridade, temas eminentemente atuais, e,

ao buscarmos essa discussão a partir de O Continente podemos perceber essas

preocupações no início do século XX, sendo debatidas no Instituto Histórico e Geográfico

do Rio Grande do Sul, nos círculos literários, nos cafés, bares, livrarias, lugares que a

intelectualidade porto-alegrense freqüentava e onde se oportunizavam essas discussões.

Entre esses intelectuais estava Erico Verisimo, ao lado de outros literatos e também

historiadores, principalmente no período 1930-40.

Dividimos nosso trabalho em dois capítulos, cada um deles subdivido em três

partes. O primeiro subcapítulo diz respeito à "Sintonia entre História e Literatura", que

entendemos compatíveis. São dois campos do conhecimento, por vezes, distintos, mas que

2 GUTFREIND, Ideda. A historiografia rio-Grandense. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 1992. 3 ALMEIDA, Marlene Medaglia. Introdução ao estudo da historiografia sul-rio-grandense: inovações e recorrências do discurso oficial (1920-1935). Porto Alegre, 1983. Dissertação (Mestrado em Sociologia); Curso de Pós-Graduação em Antropologia, Ciência Política e Sociologia, UFRGS.

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podem perfeitamente mesclarem-se, como no caso de O Continente, onde Erico Verissimo

narra a saga da família Terra - Cambará vinculada à história da formação do Continente de

São Pedro.

Queremos demonstrar, em primeiro lugar, a relação que existe entre uma disciplina

de cunho científico, que é a História, comprometida com a veracidade e a plausabilidade

dos fatos, situando-os no tempo cronológico e linear e a relação que em muitos casos pode

haver com a literatura, entendida como uma disciplina de cunho basicamente estético, uma

vez que também voltada para a ficção, para o imaginável, para as narrativas em geral, os

quais compartilham com a História.Nesse subcapítulo uaremos os nomes de Ieda Gutfreind,

Marlene Medaglia Almeida, Sandra pesavento, Charles Monteiro, Walter Mignolo, Érico

Verissimo e Heloisa jochins Reichel, cujas informações validam a nossa idéia de

compatibilizar História com literatura.

Arno Alvarez Kern, Maria da Glória Bordini, Regina Zilberman, Flávio Loureiro

Chaves e o próprio Erico Veríssimo, nos darão suporte, quer histórico, quer literário, para

que possamos explicar nossas cosniderações a respeito de ser O Continente um romance de

fundo histórico.

Em "O Contexto Literário e Historiográfico" queremos mostrar o que se

processava na literatura e na historiografia sul-rio-grandense, não apenas em 1949, quando

é publicado O Continente, mas durante as décadas de 1930 e 1940.

Observaremos, nesse terceiro subcapítulo, que a situação econômica do Rio Grande

do Sul e do Brasil, eminentemente agro-pastoril, é suplantada por uma estrutura industrial

que vai ganhando espaço, tanto na cena historiográfica quanto na literária. Chamamos a

atenção também para o giro criativo que se opera na literatura do período, onde Erico

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Verissimo será um marco, ao inaugurar uma outra maneira de escrever, voltando-se para o

romance de cunho urbano. A partir dessa premissa, Erico inscreve-se como um escritor

engajado ao seu tempo, preocupado com as questões do cotidiano que fervilhavam nas

décadas de 1930 e 1940. Para a feitura desse subcapítulo apoiaremos-nos em Flora

Sussekind, Ieda Gutfreind, Arno Alvarez Kern, Ligia Chiappini, Cherles Monteiro,

Elisabeth Wenhauses Rochadel Torresini, José Hildebrando Dacanal, Daniel Fresnot, Erico

Verissimo, Regina Zilberman, Maria da Gloria Bordini.

No segundo capítulo de nossa dissertação, pretendemos demonstrar a questão da

"Fronteira Étnico - Cultural e a Busca da Identidade Sul-Rio-grandense". Para tanto

achamos oportuno verificar quem são “Os sujeitos: identidade e fronteiras” pois vem ao

encontro em que a historiografia do Rio Grande do Sul, estava discutindo as matrizes de

formação de sua sociedade e era um momento significativo à obra de Erico, que apropriou-

se dessa temática, inserindo-a em sua obra.

Ao tratarmos de "Os Sujeitos: Identidades e Fronteiras", primeiro subcapítulo

dessa parte, a procura pela identidade do homem sul-rio-grandense esbarra na fronteira

étnico-cultural. Considerando que o estado territorializa-se numa área limítrofe rio-platina,

é comum a convivência entre gaúchos e gauchos. Ccomum sim, mas nem sempre pacífica o

que levou, em última instância, a uma visão do eu e do outro.

Como se estabelecem essas fronteiras, na América, até que ponto elas são

discutidas, na Europa, por espanhóis e portugueses, e até onde elas se impõem sobre

brasileiros e castelhanos é também um dos objetivos desse estudo.

Por isso consideramos significativo observarmos o que se passava no mundo real,

quando da publicação de O Tempo e o Vento, e como o autor retrata essa situação, pela fala

das personagens, para alguns autores ele privilegiou a vertente lusa e, para outros ele a usou

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para questionar essa tese, para polemizar sobre a existência inegável dos espanhóis nas

fronteiras de O Continente e sua conseqüente influência cultural.

Apoiaremos-nos em Gaston Bachelard, Lígia Chiappini, Flávio Aguiar, Regina

Zilberman, Maria da Glória Bordini, Luiz Amrobin, Erico Verissimo, Carlos Reverbel,

além de outros autores quando nos referirmos aos espaços.

O segundo subcapítulo de que nos ocupamos trata dos "Espaços: a Casa, o Sobrado,

a Fronteira". Trataremos da casa e do sobrado fundidos numa mesma construção, mas com

conotações diferentes, como refere o próprio Erico.

Ao nos referirmos ao espaço, no âmbito histórico, enfocamos o estado-nação, pois a

relação entre o romance de Erico e os fatos históricos permitem-nos ressaltarmos essa

temática, e quando consideramos que o estado-nação", é um ser ao mesmo tempo social,

político, cultural, ideológico, mítico, religioso"4, entendemos que essas características todas

aparecem no romance de Erico, que também abrange o contexto histórico, quer o momento

da escrita do romance, quer o da época enfocada no mesmo.

Considerar a fronteira numa conotação de espaço é trabalharmos com a "fronteira

aberta' e com a "fronteira em movimento". Tratar da fronteira em movimento significa dizer

que, em função dos acordos firmados entre Portugal e Espanha, a região fronteiriça na

América do Sul sofria constantes alterações geográficas. Tratar da fronteira aberta nos dá a

idéia de uma zona não demarcada e que, portanto, estava à mercê da conquista, tanto de

gaúchos quanto de platinos. E é um momento em que não poderemos nos furtar em referir

também a questão de limites, embora ela apareça de forma subreptícia, por não ser o

4 MORIN, Edgar. Reflexões sobre a fronteira. In: CASTELO, Iara R. (org.) Fronteira na América Latina: espaços em transformação. Porto Alegre: EdUFRGS, 1997, apud GOLIN, Tau. A fronteira. PortoA legre: L&PM, 2002.

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objetivo dessa dissertação.

Trabalhar com o espaço é identificar a grande propriedade que, no século XIX,

conferia aos latifundiários a respeitabilidade política e econômica. No romance e em Erico

essa situação se aplica tanto à família Amaral, fundadora de Santa Fé, quanto à família

Terra-Cambará, que gradativamente foi conquistado o seu espaço.

Nossa última temática tratou de "Os Tempos das Narrativas, Histórica e Literária".

É impossível desenvolvermos um trabalho de cunho histórico sem nos referirmos à base de

sua estrutura, que é o tempo. Cronológico, linear, evolutivo esses são os tempos

significativos para o ofício de historiador que o distinguem da narrativa literária. Esta, com

toda a liberdade que a arte lhe oportuniza, pode tratar de um tempo mítico, cíclico,

oscilando entre os tempos da narrativa histórica e os da narrativa literária.

Nosso suporte teórico contará com autores como Paul Veyne, Charles Monteiro,

Regina Zilberman, Flávio Loureiro Chaves, Luiz Marobin e Erico Verissimo, que nos

remetem aos tempos históricos e literários.

Trabalhamos primeiramente com o tempo mítico-cíclico, situado no início do

romance de Erico, notadamente em A Fonte e Ana Terra. Esse é o tempo que traz a idéia

de que sempre as coisas voltam ao mesmo ponto, é pois um tempo em que predomina o

fatalismo das coisas. Nos demasi capítulos do romance o sobrenatural, da sina, do

fatalismo, dará lugar ao tempo histórico – presente ou passado – onde as coisas têm uma

época e um lugar determinado. Inicia-se, então, uma nova fase para essa personagem que

conduzirá toda a sua família. Em termos históricos queremos demonstrar a dinamicidade

que irá se processando com as mudanças sócio-políticas e econômicas na sociedade sul-

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rio-grandense e brasileira, pois a característica do tempo histórico é sua precisão. Há uma

data certa: dia, mês, ano ou século, o que nos permite situarmos os aconteciemntos dentro

de um contexto histórico.

Erico, portanto, insere em seu romance duas temporalidades: a de quando ele

escreve a obra - na sua época, diante da sua realidade - e a de quando ele conta a história do

Rio Grande do Sul, através de O Tempo e o Vento.

Finalmente a terceira categoria que destacaremos é o que denominamos de tempo de

guerra e tempo de paz, que também serão vistos simultaneamente. Esses tempos não ficarão

restritos às guerras propriamente ditas, às lutas de fronteiras, aos acordos de paz. Tentamos

mostrar, ao longo da dissertação, e não apenas quando falamos especificamente desses

tempos, que guerra e paz evidenciam também conflitos internos.

Muitos outros autores aparecem em nossa dissertação. Os que aqui estamos

destacados foram os que mais presentificam o nosso trabalho.

Não podemos tratar de O Tempo e o Vento, mesmo usando apenas O Continente,

sem falarmos no vento, um dos signos que marcam essa obra de Erico. O vento é fato

presente na vida das personagens do romance e ele determina momentos muito especiais,

especialmente para Ana Terra. Vamos verificar que o título que Erico escolhe para sua obra

é primoroso, pois ambos, tempo e vento, ao mesmo “tempo” que parecem estar juntos,

funcionam, na realidade, com antítese um do outro, pois o vento é permanência, no sentido

de que de onde ele soprar sua presença será sempre notada, enquanto o tempo é passageiro,

embora deixe suas marcas.

Entendemos que a Literatura estabelece uma interface com a

História. Assim, o que pretendemos foi expor de forma simples,

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porém reflexiva, nosso entendimento sobre o processo histórico dos

anos 1930 e 1940 que se vivencia uma crise geral no Rio Grande do

Sul e no país e como a sociedade se projeta nesse tempo e no

contexto literário, numa intermediação em que a dramaticidade, o

enfrentamento entre suas personagens, os óbices históricos, se

sucedem numa progressão discursiva, que nos provoca interrogações

que não ficam dirimidas num mero questionamento linear.

CAPÍTULO 1

A SINTONIA ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA

A idéia que nos moveu a trabalhar a temática desse capítulo foi examinar as

relações que se interpõem entre a Literatura e a História, dois campos do conhecimento

que, sob nossa ótica, convivem numa fronteira. Essa é a nossa proposta: examinar a

representação da Fronteira na História e na Literatura, através do romance O Continente,

de Erico Verissimo.

O Tempo e o Vento é tido pela crítica literária como a obra máxima de Erico, e

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O Continente, produzido em 1949, é o primeiro livro dessa obra, formada ainda por O

Retrato e O Arquipélago, compreendendo no todo, uma narrativa sobre duzentos anos de

lutas, desde a formação do Rio Grande do Sul até a Segunda Guerra Mundial (1745-1945).

O romance de Erico evoca a narrativa e as personagens numa longa duração5. É,

5 Sobre a longa duração ver os seguintes autores. BRAUDEL, Fernand. The Mediterranean and the Mediterranean World en the Age of Philip II, trad. De S. Reynolds. 2. ed., Londres, 1972 - 3, 2. v. apud BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, s/d, p. 12. "Nessa obra o autor "rejeita a história dos acontecimentos (histoire événementielle). (...) Para ele o que realmente importa são as mudanças econômicas e sociais de longo prazo (la longue durée) e as mudanças geo-históricas de muito longo prazo. LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins, 1995. P. 45/46. "A mais fecunda das perspectivas definidas pelos pioneiros da história nova foi a longa duração. A história caminha mais ou menos depressa, porém as forças profundas da história só atuam e se deixam apreender no tempo longo". (...) A história de curto prazo é incapaz de apreender e explicar as permanências e as mudanças. (...) Portanto, é preciso estudar o que muda lentamente e o que se chama, desde há alguns decênios, de estruturas". "A teoria fecunda da longa duração propiciou a aproximação entre a história e (...) a antropologia. (...) Daí a necessidade de desenvolver os métodos de uma história a partir de textos até então desprezados - textos literários ou de arquivos, que atestam humildes realidades cotidianas -, os "etnotextos". BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa: Presença, 1986, p. 14. "A palavra estrutura (...) domina os problemas da longa duração. [ Os observadores do social entendem por estrutura uma organização, uma coerência, relações suficientemente fixas entre realidades e massas sociais]. (...) Para nós historiadores, uma estrutura é, indubitavelmente, um agrupamento, uma arquitetura; mais ainda, uma realidade que o tempo demora imerso a desgastar e a transportar. Certas estruturas são dotadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história, entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer. Outras, pelo contrário, desintegram-se mais rapidamente. Mas todas elas constituem, ao mesmo tempo, apoios e obstáculos, apresentam-se como limites (envolventes, no sentido matemático) dos quais o homem e as suas experiências não se podem emancipar. Entre os diferentes tempos da história, a longa duração apresentou-se, pois, como um personagem embaraçoso, complexo, freqüentemente inédito. (...) Para o historiador, aceitá-la equivale a prestar-se a uma mudança de estilo, de atitude, a uma inversão de pensamento, a uma nova concepção do social. Equivale a familiarizar-se com um tempo que se tornou mais lento, por vezes, até quase o limite da mobilidade. (Idem. p. 17) Para o historiador tudo começa e tudo acaba pelo tempo: um tempo matemático e demiurgo sobre o qual seria demasiado fácil ironizar; um tempo que parece exterior aos homens, "exógeno", diriam os economistas, que os impele, que os domina e arranca aos seus tempos particulares de diversas cores: o tempo imperioso do mundo". (Idem. p. 34) Se a história está obrigada, por natureza, a prestar uma atenção privilegiada à duração, a todos os movimentos em que esta se pode decompor, a longa duração parece-nos, neste leque, a linha mais útil para uma observação e uma reflexão comuns às ciências sociais. (Idem p. 37)

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portanto, um longo tempo que o autor desenvolve nos seis volumes que compõem a trilogia

de O Tempo e o Vento, da qual nos fixamos em O Continente.

Para Chaves O Tempo e o Vento faz parte "da maturidade do escritor" e, nesse

primeiro volume, conforme nos ensina esse autor, é...

(...) onde se traça a história do Brasil meridional desde a era colonial, no século XVIII, até à queda do Estado Novo, em 1946. (...) aborda sobretudo as origens da antiga Província de São Pedro, sintetizando-as nas criaturas de ficção que adquirem impressionante força mítica. Na imensa galeria dessas personagens que se distribuem entre seres puramente imaginários e tipos historicamente reais, avultam as figuras de Ana Terra e do Capitão Rodrigo, os dois pólos das grandes forças humanas que movimentam a ação de O Continente. (1996, p. 16-17)

Ana Terra e Rodrigo Cambará são duas personagens ímpares no romance. Embora

ocupem temporalidades diferentes, persistem durante toda a obra, desde seu aparecimento

até sua morte, através, primeiro, da atuação de ambos e, depois, pela lembrança de seus

descendentes. Sobre as personagens, que são os sujeitos deste trabalho, elaboramos um

capítulo específico.

É através da atuação das personagens, vinculadas aos

acontecimentos históricos que Erico Verissimo traça sua narrativa.

Observando, pois, a maneira como o autor promove o encontro da

literatura com a História, expressa em seu romance, é que

entendemos que as fronteiras entre ambas incursionam lado-a-lado,

ora se aproximando, ora se distanciando.

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1.1 Da Relação História e Literatura

Nossa proposta, retratada neste subcapítulo, é mostrar o que Erico Verissimo, um

literato, produziu entre a obra que desejava elaborar e a historiografia vigente no Rio

Grande do Sul nos anos 1930 - 1940. Nosso alvo é compreender as semelhanças e as

distinções entre História e literatura. Em momento algum pretendemos privilegiar as

diferenças ou similitudes entre esses dois campos de estudo, mas sim "entender que as

diferenças e as semelhanças são construídas a partir dos pressupostos que fundam e dos

objetivos que guiam, tanto a produção discursiva quanto sua análise" (Mignolo apud

CHIAPPINI e AGUIAR, 1993, p. 115-16).

Rama, referindo-se às origens da História, assim escreve:

Es frecuente olvidar que la Historia surge del tronco secular de la epopeya, al igual que la novela. Podríamos decir que surge cuando se produce la crónica en que se objetiva el dato inserto en la epopeya. Crece y se supera, elevándose a su destino, cuando ofrece un cuadro verdadero del pasado humano, facilitando un esqueleto o filosofía que representa - de acuerdo com las palabras de W. Diltey - uma autognosis del hombre. (1975, p. 13)

História e literatura6, são campos ou áreas do conhecimento que ora se aproximam,

ora se afastam. Embora esse autor afirma que a História tem uma relação intrínseca com a

novela, com a epopéia, o que nos leva a entendê-la como narrativa, não podemos esquecer

que a História se enquadra no campo das ciências e, como tal, não pode ser fantasiosa, tem

6 SANTOS, V. Silva dos. Apontamentos de literatura gaúcha. Porto Alegre: Sagra, 1990. O autor explica que (...) a história registra fatos que não se repetem, ao passo que na Literatura, a comunicação se expressa na cadeia significante dos símbolos escritos que pode não só ser revisitada, mas até modificada pelas reações do leitor, ainda que a materialidade de sua expressão se conserve sempre a mesma. WEINHARDT, M. O Tempo e o Vento: um diálogo entre ficção e história. In GONÇALVES, R. P. O Tempo e o Vento - 50 Anos. Santa Maria, RS: UFSM; Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 98. A autora explica que: O conceito de História predominante quando da publicação da trilogia de Erico Verissimo - estudo dos fatos registrados pela crônica histórica e de figuras de destaques a eles relacionados, preferencialmente num sentido de exemplaridade e de

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que respeitar o rigor científico e comprovar o que afirma.

A História assim como a literatura pode falar de um mesmo assunto. Entretanto, a

História tem o compromisso com a veracidade7 e a plausabilidade das

interpretações dos fatos, ou pelo menos o dever de chegar o mais próximo possível dela.

Além disso, o discurso histórico tem uma forma própria de se conduzir. A literatura

pertence ao campo das artes e, por mais realista que seja, pode usar uma linguagem aberta,

sem se comprometer com o significado referencial dos termos; pode usar de suas metáforas,

suas prosopopéias, tornando mais elegante a forma de escrever de seus autores. Há,

portanto, normas8 específicas para cada uma.

De acordo com Rama (1975, p. 12), o divórcio entre a História e a literatura é fruto

de nossa contemporaneidade. O autor assim afirma "(...) en la época contemporánea el afán

crítico y científico extrae a la Historia de la Literatura, la convierte en una ciencia, y la

entiende desvinculada totalmente de lo bello y naturalmente de la novela".

Para o autor acima referido, enquanto o poeta segue uma rima e uma métrica para

expressar sua arte, o historiador usa métodos e técnicas específicos de sua ciência para

reforço do heroísmo nacional (...) permitia localizar os momentos e as personagens históricas de que se apropriou a escrita ficcional, ou antes, que constituíam o cenário do enredo. 7 Convenção de veracidade. A linguagem é empregaa segundo a convenção de veracidade V, quando todo membro M, de uma comunidade lingüística Cm, ao desempenhar uma ação lingüística Al, espera que os outros membros de Cm, envolvidos em Al, reajam de acordo a V e aceite: primeiro, que o falante se compromete com o "dito" pelo discurso e que assume a instância de enunciação que o sustenta (por isso, o falante pode mentir ou estar exposto à desconfiança do ouvinte); e, segundo, que o enunciante espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação "extensional" com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o falante fica exposto ao erro). Mignolo apud CHIAPPPINI e AGUIAR (1993, p. 123) op. cit. 8 Normas historiográficas e literárias. A linguagem é empregada de acordo com as normas historiográficas (NH), ou literárias (NL), sempre que todo membro de uma comunidade especializada (científica ou artística) CmE, ao realizar uma ação lingüística, espere que os outros membros de CmE, assim como também todo membro da comunidade lingüística Cm que conhece a língua e as normas, reaja de acordo com NL ou a NH e aceite: que o escritor ou historiador opera dentro do contexto x de historiografia, ou y de literatura, ou se opõe a eles de uma maneira que é incompreensível, porque, ao opor-se, invoca-as. MIGNOLO, Walter. Lógica das Diferenças e Política das Semelhanças da Literatura que parece História ou Antropologia, e Vice-Versa, p. 124. In: CHIAPPINI, Lígia e AGUIAR, Flávio Wolf de. Literatura e História na América Latina: .Seminário Internacional, 9 a 13 de setembro de 1991. São Paulo: EdUSP, 1993.

24

desenvolver seu pensamento e fazer-se entender,9 respondendo à comprovação que se faz

necessária quando afirma a existência de um fato, seja ele econômico, político, religiosos,

cultural, etc., que afetava toda a sociedade.

Mignolo apud CHIAPPINI e AGUIAR, (1993, p. 125), considera no caso da

História os "enunciados constitutivos de entidades existentes", porque pressupõe-se a

questão da veracidade que já citamos. O exemplo de Bento Gonçalves pode ser apontado

como uma entidade migrante "pois muda de um mundo onde o reconhecemos como

entidade existente para um mundo ficcional", como podemos observar neste exemplo,

citado por Erico (1999, v. 1, p. 181-2), através de um diálogo entre o Cap. Rodrigo e

Juvenal, irmão de Bibiana:

- Falava-se muito na cavalaria de Bento Gonçalves da Silva e de Bento Manoel Ribeiro... Uma noite montei a cavalo, logrei a sentinela e me fui...

- Me juntei com a cavalaria dos dois Bentos. Aquilo é que é gente, amigo. Barbaridade! Que cavaleiros! Levamos a castelhanada a grito e a ponta de lança até a fronteira. Depois tivemos umas escaramuças mais, até que veio a paz.

Juvenal ergueu-se e Rodrigo fez o mesmo. - Vosmecê já viu peixe fora d'água? Pois aqui está um. Na paz me

sinto meio sem jeito. - Quer dizer que vosmecê recém saiu da guerra. - Ainda trago nas ventas cheiro de pólvora e sangue.

Podemos observar também um outro ponto, a partir desse mesmo exemplo. A combinação

que Erico proporciona, ao reunir personagens ficcionais e históricas,

9 ARISTÓTELES. Poética, ed. bilingüe de la Universidad Autónoma de México, 1945, IX, p. 14, apud RAMA, Carlos M. La Historia Y La Novela. Madrid: Tecnos, 1975, p. 12. (...) la conocida afirmación de Aristóteles, contenida en la Poética, cuando expresara: "En efecto, no está la diferencia entre poeta e historiador, en que uno escriba com métrica y el outro sin ella, que posible fuera poner a Heródoto en métrica, y com métrica e sin ella, no por eso dejaría de ser istoria. Empero diferíanse en que una dice las cosas tal como pasaron y el outro cual ojalá hubiera pasado".

25

como se ambas realmente tivessem convivido, porque existentes, quer no

romance, quer na História.

Quanto à literatura, a ficção10 de que o literato pode valer-se para criar torna-a, por

vezes, mais atraente, pois, enquanto ela trata de um fato, de um período histórico e dentro

da temática histórica escolhida, o literato tem total liberdade para recriar o que quiser sobre

o mesmo tema. É o que Mignolo apud Woods In CHIAPPINI e AGUIAR (1993, p. 125)

classifica como "enunciados ficcionalizados de entidades existentes" e "enunciados

constitutivos de entidades não - existentes". Ou seja, no primeiro caso, são entidades que

podem emigrar da vida real para dentro do texto ficcional, como no exemplo histórico já

citado; no segundo caso elas podem sere concebidas especificamente para aquele texto,

como é o caso de quaisquer das personagens imaginadas por Erico Verissimo.

Weinhardt in GONÇALVES referindo-se à história e à ficção, assim se posiciona:

Quanto à importância da história, a maneira de ler a realidade que lhe é própria depende de

instrumental de sua exclusiva competência. A ficção, que eventualmente até pode ser usada pela

história como documento, neste caso oferecendo subsídios a propósito do tempo em que é

produzida e não do tempo ficcional, não é substitutivo para o ensaio histórico, embora parceira

de diálogo.

(...) O texto literário, se submetido aos atuais recursos da teoria histórica abre seu leque para a cultura e, em movimento simultâneo, reconhece as regras de funcionamento de processos discursivos e sua força de revelação e de mascaramento, está apontando também para um outro modo de ler o texto ficcional que encena o histórico. A consciência do roman fleuve gaúcho revelada por diferentes tipos de abordagens históricas é mais um modo possível de aduzir razões para a força de verdade de seu universo ficcional. (2000, p. 100),

10 Convenção de ficcionalidade. A linguagem é empregada conforme a convenção de ficcionalidade F, quando todo membro M, de uma comunidade lingüística Cm, ao desempenhar uma ação lingüística Al, espera que os outros membros de Cm, envolvidos em Al, reajam de acordo com F e aceitem: primeiro, que o falante não se compromete com a verdade do "dito" pelo discurso (por isso o falante não está exposto à mentira); e, segundo, não espera que seu discurso seja interpretado mediante uma relação "extensional" com os objetos, entidades e acontecimentos dos quais fala (por isso, o enunciante não está exposto ao erro). Mignolo apud CHIAPPINI e AGUIAR (1993, p. 123), op. cit.

26

A fala da autora vem reforçar o entendimento de que a História e a literatura,

produtos da cultura de uma sociedade, podem atuar juntas, em campos paralelos

distinguindo-se história de ficção11 sem haver choques entre elas, mas pelo contrário

usando uma e outra na confecção de seus textos literários e na explicação mais

entusiasmante dos fatos históricos.

Embora a História apresente-se como uma narrativa, ela implica viéses, acréscimos

ou rupturas. Na obra de Erico, quando se trata da fronteira geográfica, vê-se claramente que

a narrativa relativiza a fronteira externa, ao falar da guerra entre os gaúchos do Rio Grande

e os gauchos da região platina, ou seja, entre os sul-riograndenses e os outros da fronteira.

No sentido de fronteira interna, o termo tem a conotação de peso político, pois ao longo do

texto romanceado vamos nos deparar com as barreiras que separam os Terra-Cambará dos

Amaral, enquanto posição social e confronto político, na ficcional cidade de Santa Fé. É

uma disputa ambivalente, constante e que se propaga pela obra, nos descendentes dessas

famílias-personagens . Correspondente à história política do Rio Grande do Sul que opôs

chimangos e maragatos.

Bastos e Cunha in GONÇALVES enfatizam que,

ao se apropriar da Literatura, o historiador produz sempre uma nova leitura, que constrói uma outra leitura do passado. Dessa forma, aquilo que acabamos de chamar de passado é sempre uma elaboração tanto do historiador como do escritor. (2000. p. 183)

11 Não entendemos ficção como sinônimo de literatura. Em nosso texto ela aparece a partir do entendimento de que o romance de Erico é também ficcional. Respaldamos nossa idéia em Mignolo In. CHIAPPINI e AGUIAR (1993, p. 123) que assim afirma. "quando falamos em literatura e historiografia, empregamos a linguagem (tanto em função de enunciantes como de ouvintes ou leitores) de acordo com certas normas determinadas pela comunidade literária ou historiográfica. É um erro, portanto, pensar que literatura e ficção são sinônimos".

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Para nós, o sentido de apropriação12 da Literatura, serve, para o historiador, como

fonte para os seus escritos. É o que estamos fazendo nesta dissertação, ou seja, estamos

aliando um fato histórico, que é a questão das fronteiras, especialmente as fronteiras étnico-

culturais, e a questão da identidade sul-rio-grandense, a partir de uma obra literária, neste

caso O Continente.

Assim, os fatos referenciados pela História e/ou pela literatura servem para

presentificar as questões suscitadas por esses acontecimentos, tornando-os mais

compreensíveis.

Conforme afirma Monteiro (1998, p. 182), "O método histórico, a crítica documental

desenvolvida ao longo do século XIX, viria a estabelecer a História no

campo das ciências e afastá-la da literatura, considerada pertencente à

esfera da arte".

A separação que começa a ser feita entre História e literatura, a partir do século

XIX, será cada vez mais intensificada, na época contemporânea, por conta de classificar-se

a História como ciência e a Literatura como arte. Entendida como ciência, a História terá

métodos próprios, como nos informa a fala do autor acima citado, que a distinguem da arte

literária.

Segundo Monteiro

(...) a historiografia brasileira percorreu um longo caminho das crônicas das conquistas, dos sermões e poemas religiosos (...) até a

12 Alinhamos nosso entendimento a Chartier para quem "a noção de apropriação é útil: porque permite pensar as diferenças na divisão, porque postula a invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção. Uma sociologia retrospectiva, que durante muito tempo fez da distribuição desigual dos objetos o critério primeiro da hierarquia cultural, deve ser substituída por uma outra abordagem, que centre sua atenção nos empregos diferenciados, nos usos contrastantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas idéias. CHARTIER, Roger. História Cultural, p. 136 apud Bastos e Cunha. Olhai o que o Tempo não Levou: A Literatura de Erico Verissimo. IN GONÇALVES, R. P. O Tempo e o Vento: 50 Anos. Santa Maria, RS: UFSM; Bauru, SP:EDUSC, 2000,p. 183.

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constituição de acervos documentais e a criação de Institutos Históricos e Geográficos do Império (1998, p. 183).

O que se depreende da fala do autor é que até a criação dos órgãos dedicados

especificamente para tratar, com rigor científico, dos assuntos históricos,

a História fundamentava-se no que, empiricamente, era tratado por

qualquer pessoa que se dedicasse a eles, o que nem sempre tinha um

cunho de imparcialidade e de veracidade. Foi somente com a criação dos

Institutos Históricos e Geográficos, espalhados pelas principais províncias

do Império, que a historiografia passa a ter respaldo científico. Monteiro

nos assevera.

A partir daí, um dos objetivos da produção historiográfica e literária seria o de pensar a formação da sociedade e da cultura brasileira (Nação), muitas vezes legitimando o projeto de um Estado nacional centralizado e seu aparato de representação burocrático e cultural. (1998, p. 183)

A criação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul representou a

possibilidade de se estudar História com o rigor científico que ela

necessitava, através, muitas vezes, de debates acalorados como foi a

discussão que se processou a respeito da identidade do homem sul-rio-

grandense ser exclusivamente lusitana ou ter mesclas platinas. Esse foi

um debate que se propalou por muitos anos pelos historiadores divididos

entre essas duas vertentes, desde o início do século XX, especialmente

durante a década de 1920.

Gutfreind salienta que

A instalação solene do IHGRS ocorreu no salão nobre da

29

Intendência Municipal, quando foi eleita a primeira diretoria. Seu presidente foi Florêncio de Abreu e Silva, e o orador oficial, Souza Docca. Na solenidade, estavam presentes as autoridades mais representativas do estado, como João Pinto da Silva, secretário do presidente do Estado e seu representante, o comandante da 3ª Região Militar e seu ajudande-de-ordens, o Intendente Municipal, o Secretário do Interior, o comandante da Brigada Militar, representantes da assembléia de deputados, entre eles Getúlio Vargas, conselheiros municipais, diretores da Faculdade de Medicina, da Escola de Engenharia, da escola Médico-cirúrgica e o arcebispo metropolitano. (1992, p. 24)

Essa informação de Gutfreind demonstra que o IHGRS contava não somente com a

simpatia dos poderes constituídos, mas também com a de uma elite sócio-cultural e

religiosa do estado. A importância do IHGRS reside não apenas no fato de ser o local onde

se guarda a memória histórica do estado, mastambém no de ser o espaço para a pesquisa

histórica e para as discussões. Além disso, o IHGRS imprimiu sua marca quando do

esforço político do Rio Grande do Sul para ser reconhecido perante a União, considerando-

se que "era preciso escrever a História do Rio Grande do Sul para apresentá-lo aos demais

estados”13.

Almeida, falando a respeito do IHGRS, esclarece que o mesmo estabeleceu como objetivo

... "promover estudos e investigações que se relacionem com a História, Geografia, Arqueologia, Etnografia, Paleontologia do Brasil e especialmente do Rio Grande do Sul, e bem assim cultivar o 'folklore' rio-grandense e a língua dos indígenas que habitaram e ainda habitam este estado" (Art 1º), e definiu como sua incumbência: " a) coligir, classificar e conservar documentos, livros, cartas geográficas e todos os objetos que se relacionem com aqueles estudos, constituindo tudo isso o Arquivo, a Biblioteca e o Museu; b) publicar a Revista do Instituto Histórico e Geográfco do Rio Grande do Sul que será trimestral e terá no mínimo 150 páginas" (Art. 2º, 1983, p. 149),

13 GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 1992, p. 25.

30

Observa-se, assim, que desde o início do século XX, no Rio Grande do Sul, o

grande expoente da história do estado era o IHGRS, que "chamou" para si a

responsabilidade de preservar a memória histórica sul-rio-grandense. E como salienta

Monteiro:

É necessário compreender as origens sociais e os vínculos políticos dos membros do Instituto Histórico e Geográfico (IHGRS), bem como os meios de difusão do conhecimento nele produzido, pois foi o IHGRS que ocupou o lugar central da cena historiográfica até a década de 1970, ao congregar produtores de historiografia e apresentar-se como guardião da memória local - embora a crônica e o romance também tenham sido lugares importantes de elaboração da memória das experiências urbanas, completando ou contrapondo-se a produção historiográfica. (2000, p. 54).

Deve-se enfatizar a importância do que o IHGRS representou e representa na

condição de preservador da memória do estado e do prestígio que o mesmo sempre

conquistou junto às autoridades constituídas, as quais, de alguma maneira, respaldaram o

trabalho ali desenvolvido. Uma das grandes discussões que ocuparam, por longos anos,

seus membros foi a questão das matrizes lusa e platina na formação da sociedade sul-rio-

grandense.

Gutfreind define matriz como

(...) um tipo de discurso com características comuns encontradas em um conjunto de obras históricas, cujos conceitos adquirem significados ocultos, conforme a conjuntura que se desenvolve e, por isso mesmo mantém uma vitalidade sempre eficaz. Essas matrizes representam a busca da identidade político-cultural do território sul-rio-grandense. (1992, p. 11)

Sendo "um tipo de discurso", como salienta a autora, obviamente tanto a matriz

platina quanto à lusitana vão tentar provar sua existência na formação histórica sul-rio-

31

grandense. Se os defensores da matriz lusitana minimizam as aproximações com a região

fronteiriça do Prata, rechaçando, pois, essa influência no Rio Grande do Sul, os da matriz

platina, ao contrário, primam por defender a destacar as relações dessa região com o estado.

O IHGRS é o principal lugar de difusão da historiografia sul-rio-grandene, mas não

o único. Tão importante quanto esse órgão foram também "a Academia Rio-Grandense de

Letras, além dos não-acadêmicos: as Editoras (Globo), os jornais (Correio do Povo e Diário

de Notícias) e ainda os cafés, bares, restaurantes do centro de Porto Alegre"14, onde a

intelectualidade porto-alegrense reunia-se periodicamente. Percebe-se, desse modo, o

diálogo que o historiador pode manter com inúmeros grupos sociais: os letrados da

academia, as elites intelectuais, o público em geral, o homem simples que, mesmo iletrado,

possui uma sabedoria própria, e são essas trocas que enriquecem a escrita da história e

permitem sua realimentação constantemente.

A historiografia, ou seja, a produção histórica, é o lugar social de onde falam e

como falam os seus especialistas, os quais se dedicam a interpretar os "sintomas" de uma

sociedade, em constante mutação, bem como os de suas práticas culturais, através de seus

escritos.

Assim, ao interpretarmos a questão das matrizes formadoras das gentes do Rio Grande do

Sul, o fazemos a partir da ótica dos defensores quer da matriz lusa, quer

da platina. Ou seja, será a partir do entendimento desses intelectuais que

compunham o IHGRS, que fazemos nossa análise.

Gutfreind enfatiza que

A primeira característica que se observa nos textos dos historiadores

14 Cf. MONTEIRO, Charles. Porto Alegre e suas Escritas: História e Memória (1940 e 1972). São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em História) PUC-SP, p. 54.

32

gaúchos contemporâneos, a partir de 1920, quer seguidores da matriz platina ou da lusa, (...) é o destaque dado ao aspecto geográfico, enfatizando a situação de fronteira vivida pelo estado sulino. (1992, p. 21)

Nosso trabalho não se detém especificamente sobre as fronteiras geográficas, mas,

ao abordaremos a questão étnico-cultural, que é um de nossos focos de análise, num estado

que faz fronteira com países platinos, é impossível não mencionarmos a geografia da

região.

Para Gutfreind

O peso da fronteira é bastante significativo na história do Rio Grande do Sul. Mas não como algo estático, ao contrário, centrando a análise na situação de fronteira do Rio Grande do Sul, o estudo mostra justamente o oposto, o dinamismo e a pluralidade das influências culturais (1992, p. 22),

Essa fala da autora reforça o nosso entendimento de que, uma vez que a capitania, a

província, o estado - considerando-se os vários períodos históricos - mantiveram e mantêm

parte do território numa região que faz divisa com outros países, no Rio Grande do Sul não

temos hoje uma fronteira excludente, mas um espaço que, de alguma maneira influencia e é

influenciado pela cultura vigente em ambos os lados da linha que a divide.

A partir do que dizem os autores aqui trabalhados, podemos afirmar que, ao

historiador, cabe o rigor da "verdade", enquanto ao literato são-lhe permitidas licenças

poéticas. "O narrador de uma obra literária tem toda a licença para criar um efeito de

verdade garantindo o seu reconhecimento por parte do sujeito" (Bastos e Cunha apud

GONÇALVES, 2000, p. 182). Assim, embora possa haver a imbricação de discursos entre

a literatura e a História, em função de um mesmo assunto, os campos de atuação de uma e

outra distanciam-se devido ao rigor do tempo, do comprometimento com a realidade, que à

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História é fundamental, é obrigatório, não o sendo para a literatura.15 É aí que se radica o

espaço da diferença..

É Hartog, apud BOUTIER & JULIA (1998, p. 193), que assim se posiciona: "a

história singulariza-se pela relação específica que mantém com a verdade, pois ela tem de

fato, a pretensão de remeter a um passado que realmente existiu". É uma pretensão, pois o

historiador jamais poderá presenciar os fatos tais como aconteceram. O que ocorre com

ele são as pesquisas, usando os mais variados materiais e métodos, na tentativa de escrever

sobre o que aconteceu.

Monteiro argumenta que

Tanto a História quanto a literatura são construídas a partir de um lugar social de onde se narra (classe, etnia, sexo, instituição, métier) e se tematiza a realidade, porém a forma e os compromissos que permeiam esse "dizer" do real é que são próprios a cada uma delas. A partir de Foucault, é mais importante compreender "como" as narrativas e os discursos funcionam do que propriamente "o que" dizem. (1998, p. 183)

No caso de O Continente, o lugar social é a fronteira étnico-cultural que ora opõe,

ora não, brasileiros a castelhanos. A forma de Erico narrar as suas histórias é o

envolvimento que ele faz entre a História e a literatura, mesclando fatos reais com os da

ficção transformando, a sua obra em romance histórico.

Leite explica ainda que,

São também uma interferência visível da enunciação na organização do enunciado os flash-back, ou a narrativa em ziguezague, que retrocede ao passado de cada personagem histórica

15 RAMA, Carlos M. Op. cit. "La autoexigencia de la verdad a que se someten en sus obras los grandes historiadores grecorromanos, algunos cronistas del medioevo, ciertos autores renacentistas y los tratadistas de los tiempos modernos va afirmando la existencia de la Historia.

34

que aparece (e ao de seus antepassados), para explicar sua vida até o presente do relato. (1997, p. 80)

Erico Verissimo vale-se da narrativa em ziguezague, toda a vez que transporta as

personagens de seu romance, através de suas lembranças, do tempo presente ao tempo

passado. E o autor utiliza esse recurso literário, não apenas para contar o que deseja, mas

também, em muitas passagens, para narrar fatos históricos. Entre as passagens de O

Continente, a esse respeito, podemos citar

(...) um dia Pedro Terra necessitara de recursos para plantar uma lavoura de linho e trigo (...) e por isso fora obrigado a pedir dinheiro emprestado a Aguinaldo Silva, dando-lhe como garantia sua casa e o terreno de esquina, cujo valor era três vezes maior que o do empréstimo. Numa sucessão de safras infelizes (...) e como, vencido o prazo da hipoteca, Pedro não tivesse dinheiro para resgatá-la Aguinaldo não quisesse dar-lhe a menor prorrogação, as propriedades dos Terras passaram inteiras para as mãos do avô de Luzia. (...) Bibiana lembrava-se de que o único comentário que o pai fizera (...) resumia-se em poucas palavras: "Ainda bem que a Arminda está morta". (ERICO, 1999, v. 2, p. 367)

Através desse exemplo, queremos demonstrar o que nos diz a teoria, ou seja, a

narrativa vai e volta no tempo, é uma relação pendular que se estabelece entre a razão

histórica e a ficção do Rio Grande do Sul. A narrativa pendular é tratada por Pesavento,

cujo exemplo, enfocado pela autora, expressa essa obviedade:

A narrativa pendular que relativiza o mundo dos significados prossegue através da exposição das diversas lógicas de percepção diante de um acontecimento. Tome-se o caso da guerra, sempre presente na obra e na reflexão das personagens que por ela se vêem afetados. Se para Licurgo, na defesa dramática do Sobrado durante a Revolução de 1893, ela se justifica pelo ódio ancestral aos Amaral, reforçado pela radicalização político-partidária entre "maragatos e pica-paus", para Maria Valéria, os federalistas eram tão bons e tão valentes como os republicanos. "É a mesma gente, só

35

com idéias diferentes".(1995, p. 4)

A autora utiliza as personagens masculinas, considerando que, como está expresso

no código patriarcal16, guerra é coisa de homem macho, para mostrar o significado que a

mesma tem para essas personagens, citadas em diferentes momentos históricos, mas não

deixa de apresentar a opinião feminina, representada, no exemplo acima, pela fala de

Maria Valéria. A autora nos mostra que a maneira de perceber os acontecimentos é

diferente para o homem e para a mulher. No caso da guerra, enquanto para os homens

existe um sentido de vingança, como no exemplo citado, para as mulheres - representadas

aqui, pela fala de Maria Valéria, acima - a análise é racional.

O código patriarcal, apontado por Erico, vai usar as seguintes características:

requerer sesmarias, o que indica claramente o alargamento de fronteiras para o oeste, isto é,

para as terras hispano-americanas; possuir gado, cavalos, ou seja, uma vez vencida a

primeira etapa, a da conquista de terras, faz-se necessário, agora, formar a estância e o

estancieiro, o qual representará a elite política, apoiada pelo governo; estabelecer uma

família, o que acentuará a respeitabilidade desse estancieiro ao mesmo tempo que

impulsionará o povoamento do futuro estado.

As "lógicas de percepção", que anteriormente vimos em Pesavento, podem ser

exemplificadas através da fala da personagem Fandango, que assim se expressa:

Curgo vive dizendo que os maragatos são bandidos. Mas qual! Todo mundo sabe que há gente boa e gente ruim dos dois lados. Ele se lembra do Boi Preto, onde a Divisão do Norte pegou

16 Para compreendermos essa linha de raciocínio, valemo-nos do que nos diz YOUNG, a respeito dos códigos patriarcais e matriarcais, para quem "através deste processo se demonstra a maneira como o autor estabelece uma correspondência entre patriarcal/matriarcal e História "oficial"/História "extra-oficial". YOUNG, Theodore Robert. O Questionamento da História em O Tempo e o Vento de Erico Verissimo. Tese (Doutorado em Filosofia). S/L. 1993, p. 26-38. Departament of Romance Languages and Literatures. Harvard University.

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duzentos federalistas dormindo num acampamento e liquidou todos a arma branca. E o caso do Gumercindo Saraiva? Foi enterrado num dia pelos companheiros e desenterrado no outro pelos inimigos. Contam até que um chefe republicano gritou: "Quero as orelhas do bandido!" - e passou-lhes a faca. Uma sangueira braba, uma perda horrível de vidas, de dinheiro e de tempo! E no entanto o mundo tem tanta coisa gostosa! Mulher bonita, cavalo bom, baile, churrasco, mate amargo... Laranja madura, melancia fresca, uma guampa de leite gordo ainda quente dos úberes da vaca... Uma boa prosa perto do fogo... Uma pescaria, uma caçada, uma sesta debaixo dum umbu... Tanta coisa! (ERICO, 1999, vol. 2, p. 661)

A reflexão de Fandango, que não é uma das personagens principais do romance, não

somente explicita que os excessos foram cometidos de ambos os lados, como também

demonstra a necessidade de superar as divisões e conflitos do passado naquele contexto

histórico. É uma análise que a personagem faz, demonstrando a impropriedade da guerra.

É interessante observar que as personagens femininas e masculinas não se opõem

diretamente, elas estão numa relação pendular que vai de um pólo a outro e, de certa forma,

se complementam. Se, por exemplo, os homens vão à guerra, é porque há o esteio das

mulheres que garantem a possibilidade do seu retorno para o lugar "seguro", que é o lar.

Pesavento laboriosamente passa-nos a idéia dessas representatividades, masculina e

feminina, assim se expressando:

Se a mulher é sobretudo espera e ligação à terra, cumprindo assim o seu destino, a aparente

mobilidade do homem, envolvido com a guerra, relativiza a questão da liberdade e da própria

mudança. A guerra é também um elemento que permanece e que, ciclicamente, representa o

eterno retorno do mesmo, do qual o homem é como que escravo, cumprindo ele também a sua

sina. Mesmo que participasse da luta por puro gosto, como o inquieto capitão Rodrigo, ou por

trágica compulsão para cumprir um destino, como seu filho Bolívar, a guerra-movimento é algo

que não se opõe à terra-estabilidade, mas com ela se complementa. (1995, p. 8)

Metaforicamente podemos entender a guerra-movimento numa relação direta com o

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homem, enquanto a terra-estabilidade é a representatividade do feminino. As guerras

sempre foram entendidas como coisas de homem e, no Rio Grande do Sul, mais do que

isso, como coisas de "macho". A belicosidade imposta nas lutas pela fixação de fronteiras,

os dez anos do mais famoso movimento revolucionário rio-grandense - a Revolução

Farroupilha - enalteceram o gaúcho como homem de muita ação e muita coragem.

Atributos como valentia, heroísmo, destemor passaram a ser sinônimos do homem do Rio

Grande.

Analisamos algumas expressões, usadas por Pesavento, no

exemplo acima, que nos chamaram a atenção, como por exemplo

quando a autora diz "a aparente mobilidade do homem", significa

que, de alguma maneira esse homem está "preso" à "terra-

estabilidade", o que certamente lhe garante a segurança de ter para

onde voltar. A autora afirma também que essa situação descrita

acima "relativiza a questão da liberdade e da própria mudança", ou

seja, se o fato dos homens guerrearem constantemente tem a

conotação de homem livre e agente de mudanças, isso é muito

relativo pois a mudança está condicionada às liberdades em geral e

estas só existem de fato, quando há o reconhecimento por parte de

toda a sociedade, que comunga dos mesmos ideais.

Finalmente, a autora ressalta que "a guerra (...), ciclicamente, representa o eterno

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retorno..., do qual o homem é como que escravo, cumprindo também ele a sua sina". O que

a autora afirma é que envolvido por gosto, ou para cumprir um destino, familiar ou

ideológico, o homem, partícipe da guerra, sempre volta ao seu lugar de origem.

A complementariedade que podemos observar entre homem/mulher,

movimento/estabilidade, imobilidade feminina/mobilidade masculina, paz/guerra são

algumas das situações pendulares de que a autora fala e que se tornam visíveis nas

construções do autor de O Tempo e o Vento, ao longo de toda a sua obra.

O romance de Erico é pleno dessas memórias que oscilam entre História e ficção

como demonstram estes dois exemplos extraídos de O Continente (1999, v. 1., p. 193 e

311):

Pedro sentia ainda no corpo o vestígio das guerras em que tomara parte. Depois de 1811 ficara sofrendo de reumatismo e duma dor nos rins, tudo isso como conseqüência de dormir em banhados, de tomar chuva, e de carregar muito peso.

(...) Ao pensar na Corte, Pedro pensou em "governo". Para ele governo era uma palavra que significava algo de temível e ao mesmo tempo de odioso. Era o governo que cobrava os impostos, que recrutava os homens para a guerra, que requisitava gado, mantimentos e às vezes até dinheiro e que nunca mais se lembrava de pagar tais requisições... Era o governo que fazia as leis - leis que sempre vinham em prejuízo do trabalhador, do agricultor, do pequeno proprietário. Antigamente, quem dizia governo dizia Portugal, e a gente tinha uma certa má vontade para com tudo quanto fosse português, começando por antipatizar com o jeito de falar dos "galegos". Mas que se passava agora que o país havia proclamado sua independência e possuía o seu imperador? Não tinha mudado nada, nem podia mudar. No fim de contas D. Pedro I era também português. Vivia cercado de políticos e oficiais "galegos". Ali mesmo na Província já se dizia que nas tropas quem mandava eram os oficiais portugueses; murmurava-se que eles estavam conspirando para fazer o Brasil voltar de novo ao domínio de Portugal.

Tudo isso demonstra a relação pendular de que falamos; em ambos os exemplos

39

temos uma situação ficcional, mesclada com a presença da História.

Esses são dois dos muitos exemplos que podemos extrairda obra do autor, e que

justapõem História e literatura, ou se preferirmos, que se confundem, pois não se consegue

sentir onde finda a ficção e onde inicia a história real e vice-versa. No segundo exemplo, é

através do pensamento da personagem Pedro Terra que o autor nos dá mostras do cunho

histórico do romance, quando, através das reflexões sobre o governo brasileiro, sobre o

período em que o Brasil foi colônia de Portugal, a personagem conclui que a independência

pouco ou nada significara, uma vez que D. Pedro I era também português. Ou seja, de certa

maneira, continuávamos atrelados à Metrópole. Pedro Terra é uma personagem da ficção,

mas os fatos históricos elencados por ela traduzem o momento histórico. Não é um

pensamento, ou uma opinião, ou uma certeza de toda a sociedade brasileira da época, mas

são inegavelmente fatos históricos.

Além disso, quando o autor, pela fala da personagem, questiona o fato de o Brasil

continuar atrelado a Portugal entendemos que é a discussão das matrizes de formação

étnico-culturais lusa e platina que Erico já está discutindo, ainda que na época em que ele

escreveu a obra a vertente lusitana se encontrasse em relevo.

Reichel in GONÇALVES afirma que

À época em que Erico Veríssimo escreveu sua obra, a vertente lusitana se apresentava com grande força e projeção, inserida que estava em uma conjuntura que se caracterizava por um intenso nacionalismo. O período do governo Vargas possibilitou grande projeção e acesso ou intimidade com o poder aos intelectuais da vertente lusitana. Aurélio Porto, ao ser nomeado, em 1932, para atuar junto à direção do arquivo Nacional, foi um dos principais responsáveis pelo fortalecimento da historiografia lusitana e engajamento dos círculos literários na campanha de, definitivamente, integrar a origem lusitana no imaginário da sociedade sul-rio-grandense. Concluindo, podemos afirmar que foi lendo as obras de historiadores da vertente lusitana, seus contemporâneos e muitas

40

vezes colegas de ofício que com ele compunham uma confraria, que Erico Veríssimo foi construindo as representações que nos apresenta em sua obra. (2000, p. 214, 15 e 16)

Esse é o discurso da lusitanidade, apontado por Reichel, que na década de 1930

apresentava-se com grande impacto no Rio Grande do Sul. Esse discurso, que privilegia a

matriz lusitana, segundo Gutfreind17 "minimiza as aproximações do Rio Grande do Sul com

a área platina e, conseqüentemente, defende a inquestionável supremacia da cultura lusitana

na região".

O texto de Reichel chama a atenção, pois, ao colocar a questão do eu e do outro, no

processo de busca de identidade do povo sul-rio-grandense, determina a fronteira que

divide os espaços de representação desse eu e desse outro.

Apesar do que nos diz Reichel, entendemos que a disputa de terras, entre espanhóis

e portugueses, as fronteiras que foram traçadas e retraçadas, a presença dos indígenas que

foram movimentados ora para os Sete Povos das Missões, ora para a Colônia do

Sacramento, tudo isso favoreceu para que o amplo contato entre os seres humanos

oportunizasse a miscigenação, tanto étnica quanto cultural.

Assim compreendemos que há uma sintonia entre a História e a literatura, a partir da

maneira como o autor relaciona o material histórico para lançá-lo dentro

de sua narrativa literária.

Podemos, assim, observar que há uma relação dúplice entre o romancista (narrador) e o

leitor. São as palavras de Baumgarten apud ALVES & TORRES (1993, p.

94) que nos levam a entender que a "leitura ficcionaliza a História na

17 GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: EdUniversidade/UFRGS, 1992, p. 11.

41

mesma proporção que historiciza a Ficção, uma vez que a voz narrativa,

tanto num caso como noutro, situa o mundo das obras." Essas obras, que

tanto podem ser históricas quanto literárias, têm a propriedade de

interpenetrarem-se, ocupando, às vezes, o lugar uma da outra sem ferir os

campos de atuação específicos de cada uma.

Bastos e Cunha in GONÇALVES explicam claramente essa situação, assim se

expressando.

A Literatura não é um mero documento para a História. É uma prática simbólica que coloca em cena determinados acontecimentos históricos, como a organização e as convenções de representação de um certo tempo. É também um dispositivo educativo e pedagógico que permite entrever os espaços discursivos de um tempo, as representações sociais forjadas em cada época, o imaginário de atores sociais - reais e ficcionais. Historicizar a obra literária significa, para o historiador, inseri-la no movimento da sociedade, investigá-la em suas redes de interlocução social e desvendá-la como constrói ou representa sua relação com a sociedade e a cultura. (2000, p. 181)

Toda vez que o historiador lança mão de uma obra literária e a introduz em seus

escritos, em suas análises, ele percorre um outro caminho. Não se restringe a sua

competência de historiador, mas vale-se do que diz a literatura inserindo-a no contexto

sócio-cultural.

São essas questões que aproximam a história da literatura, inter-relacionando-as,

que situam O Tempo e o Vento não apenas como um romance de ficção, fruto da

imaginação de seu autor, mas polemizam uma discussão de ser o mesmo romance

histórico.

1.2 O Romance Histórico

42

Considerar O Tempo e o Vento e não apenas O Continente como romance

histórico18 foi objeto de grandes discussões entre os estudiosos da literatura e da História,

até que se chegasse a uma conclusão a esse respeito. Nós alinhamos nosso entendimento

aos teóricos que situam a obra de Erico Verissimo como romance de fundo histórico. É o

que tentaremos mostrar em nossas considerações.

Não podemos desconsiderar que, durante os anos 1940, período em que Erico

escreve A fonte, era fervoroso o debate no Rio Grande do Sul sobre as Missões Jesuíticas,

entre os historiadores.

Para Kern,

O texto reflete também a riqueza e a multiplicidade da memória popular sobre as missões e seus

heróis. Erico aproveita essas discussões sobre a lusitanidade do Rio Grande do Sul, ou sua

aproximação étnico-cultural com o Prata e coloca parágrafos históricos na boca de suas

personagens. Esse fato reflete igualmente os acertos e os enganos das interpretações dos

historiadores de sua época. (1995, p. 17)

A explicação de Kern deixa transparecer que Erico tanto valeu-se da discussão sobre a

lusitanidade do Rio Grande do Sul, quanto de sua aproximação com a

região platina, enriquecendo sua obra com esses debates, que se

processavam, entre outros lugares, no Instituto Histórico e Geográfico do

Rio Grande do Sul.

Erico não apenas insere os fatos históricos, mas dialoga com eles através de suas

personagens. Vê-se, também, a preocupação do autor com as questões

históricas nos interlúdios que se fazem presentes no início de alguns

capítulos, como no exemplo abaixo.

18 MORAES (1959, p. 219) explica que "O romance de fundo histórico oferece múltiplas insídias. Uma delas é violar, por uma retroação da nossa mentalidade, a psicologia da época.". Ou seja, tentamos encontrar, reportando-nos a épocas passadas, observando o que dizem as personagens, qual era o comportamento da sociedade sul-riograndense que obviamente refletiu-se na narrativa de Erico.

43

Depois da Guerra dos Farrapos D. Picucha não falou mais nas proezas de Carlos Magno e seus doze cavaleiros. Esqueceu Rolando por Bento Gonçalves Olivério por Antônio Neto Reinaldo por Davi Canabarro Florismaldo por Lima e Silva. (1999, v. 1 p. 311)

Nesse exemplo, entendemos que Erico, ao relacionar D. Picucha Terra Fagundes,

personagem de sua ficção e as personagens históricas, trazidas por ele para dentro do

romance, buscou na historiografia subsídios para o desenvolvimento de seu romance.

Zilberman trata da questão do romance de fundo histórico, vista no Brasil, considerando

que

No Brasil, o gênero também acordou as sensibilidades e privilegiou dois temas: a formação étnica (em Iracema, por exemplo) e a conquista do território (caso de As minas de prata). Seu apogeu, ao contrário da Europa, não coincidiu com a autonomia política, resultante a separação de Portugal, mas a relativa anacronia justifica-se: cabia antes "criar" o romance brasileiro, passando pelo sentimentalismo de Joaquim Manuel de Macedo, nos anos 40 do século passado, para depois então expandir as suas formas, trabalho que Alencar executou até seus limites, entre 1855 e 1875. (1998, p. 73)

Não vamos nos ater às obras citadas por Regina Zilberman, por não ser esse o foco

de nosso trabalho. Entretanto, a afirmação da autora, acerca do tema de tais romances,

deslocou-nos a atenção para o que é tratado por Erico, a esse respeito. Assim, em nossa

ótica, o autor vale-se de ambos os temas ao compor O Tempo e o Vento. Trata da "formação

étnica" quando mescla espanhóis, portugueses e indígenas. É o caso, por exemplo, do

relacionamento entre as personagens Ana Terra e Pedro Missioneiro. Trata da "conquista

do território" toda a vez que narra uma guerra, envolvendo castelhanos e brasileiros,

movimentando as fronteiras geográficas e, portanto, interferindo na fronteira étnico-

cultural.

44

Santos in GONÇALVES reportando-se a Erico e ao romance

histórico, assim se pronuncia:

Erico Verissimo, nas primeiras obras lançadas nos anos 30, demonstra uma preferência pela História como matéria de representação. O exame da produção atesta que a abordagem de fundo histórico pode ser detectada no conjunto da obra ficcional de Verissimo, e que, além disso, se intensifica com a passagem do tempo. (...) O procedimento consiste em selecionar um episódio histórico, dentro do qual são inseridas as personagens e situações ficionais e em torno do qual gira a trama romanesca, num processo integrativo que produz imbricações entre micros e macros seqüências de significados. (2000, p. 106 - 107),

Entre os fatos históricos citados, Erico usa a Revolução Federalista de 1893, para

demonstrar o caráter histórico da primeira fase de seu romance,

integrando a guerra civil, fato real da História do Rio Grande do Sul à

história - enredo que é por ele desenvolvido. Não se trata aqui da

descrição histórica da dita revolução, concluída em 1895, mas sim dos

reflexos que a mesma exerceu sobre a cidade fictícia de Santa Fé e seus

habitantes. A narrativa nucleariza desde as questões políticas, até as

inquietações e resmungos dos que habitam o Sobrado.

E por que a escolha da Revolução Federalista e não de outro movimento igualmente

importante na história sul-rio-grandense? Nossa opinião alinha-se ao que explica Santos in

GONÇALVES

(...) Na história do Rio Grande do Sul esse é um conflito essencial, pois significa a passagem da antiga

ordem institucional, arranjada com os acordos imperiais que puseram fim à revolução

farroupilha, à ordem republicana, assentada no ideal positivista de Júlio de Castilhos.

Registrado na história como um embate de contornos bárbaros, com

45

fartos registros de degolas, humilhações e massacres, aos quais não escaparam velhos, mulheres e crianças, a revolução de 93 tornou a envolver inocentes nas contendas da elite rio-grandense. Na oportunidade, o confronto foi entre os federalistas, chamados maragatos, simpáticos ao parlamentarismo monárquico e chefiados por Gaspar Silveira Martins e os republicanos, ditos pica-paus ou chimangos, que eram republicanos e obedeciam à chefia de Júlio de Castilhos. (2000, p. 109).

Não é a descrição pormenorizada da revolução que Erico nos

mostra, embora dê pinceladas a respeito da mesma.São as falas das

personagens, os seus questionamentos sobre o que esse movimento

provoca nos seres humanos que se constata na narrativa. A

revolução é o grande pano de fundo que leva todos a pensarem em si

mesmos, na sua condição humana e na dos seus entes queridos e no

porquê de uma guerra civil.

Exemplo podemos encontrar na fala de Florêncio Terra,

quando, em meio ao cerco do Sobrado, assim se expressa:

- Olhe, Licurgo, vassuncê tem só quarenta anos. Eu tenho quase

sessenta e cinco. Já vi outras guerras. Tudo isso passa. A revolução termina, os federalistas e os republicanos ficam alguns meses ou anos um pouco estranhos, mas o tempo tem muita força. Um dia se encontram, fazem as pazes, esquecem tudo. Mas a vida de uma mulher ou duma criança é coisa muito mais importante que qualquer ódio político. (ERICO, 1999, vol 1, p. 15),

As reflexões sobre o movimento de 1893 transportam as personagens a

46

retrocederem à época do povoamento do Rio Grande do Sul, à Colônia do Sacramento e aos

Sete Povos das Missões e à própria Revolução Farroupilha. Ou seja, conforme explica

Santos in GONÇALVES:

O arranjo ficcional que Verissimo procede em relação a esse evento histórico, logo na abertura de O Tempo e o Vento, garante a visão da história que se alarga pelos demais volumes da trilogia. Em primeiro lugar, o procedimento distingue-se por garantir a expressão de vários aspectos em relação ao mesmo objeto retratado. Em segundo lugar, por força da disposição do material, fica preservada a prevalência de uma lógica de caráter ficcional contra a linearidade mais próxima da lógica do discurso histórico. Por fim, a forma pela qual se realiza a integração entre os fatos da realidade contingente e o universo diegético permite que os fatos da História sejam recuperados do congelamento do passado para a multiplicidade viva do presente. (2000, p. 109-10)

As imbricações que Erico introduz em O Continente, mesclando a literatura com

fatos históricos, acabam por suscitar, entre os críticos, a discussão de ser O Tempo e o

Vento romance histórico ou não. Esse entendimento depende da definição usada para esse

gênero de romance, como já tratamos na página 36 através do entendimento de Zilberman.

Xavier veementemente afirma:

O tempo e o vento não pode ser considerado um romance histórico, no sentido exato do termo porque é através dos conflitos pessoais de cada personagem que a situação histórica vem à tona. Assim, o painel histórico sul-rio-grandense vai sendo delineado a partir da vivência concreta de homens e mulheres que pertencem às famílias-eixo: Terra-Cambará. O romance estrutura-se com base nas situações vivenciadas por todos aqueles que povoam a narrativa e, assim, a história do Estado serve de pano de fundo aos acontecimentos apresentados. (199 , p. 77),

Contrapomos nosso pensamento ao da autora, pois ao nosso ver são exatamente as

situações vivenciadas por todos os que habitam a cidade fictícia de Santa Fé, seus

47

questionamentos, seus conflitos internos que demonstram a riqueza da obra. Erico, ao usar

todas essas questões pessoais faz com que "a situação histórica venha à tona", como atesta

autora. É essa mescla entre os fatos históricos que ocorreram no Rio Grande do Sul, como a

Revolução Farroupilha de 1835, ou a Revolução Federalista de 1893, trazidos para dentro

do romance, que Erico se propôs a escrever, que transformam sua obra em "romance

histórico", pois não é apenas uma ficção que Erico escreveu; ele usou a história para,

através dela, oportunizar as discussões políticas, sociais, econômicas, étnicas, culturais, que

suas personagens travam umas com as outras.

Chaves é taxativo ao afirmar que O Tempo e o Vento é romance histórico e, para

tanto, destaca o critério de Lukács, na obra "A Novela Histórica", a respeito da

problematização da história:

Lukácks demonstrou de maneira cabal que, na maioria dos grandes romances históricos, as personagens historicamente reais são secundárias e, via de regra, desempenham uma função secundária na ação propriamente dita. O que define o caráter histórico da obra não é, pois, a distribuição entre figuras decalcadas num modelo real e as puramente imaginárias, mas a intenção de problematizar a História, tornando-a um tema ou, pelo menos, uma preocupação explícita do narrador. (1981, p. 75)

É exatamente o que observamos em Erico: há uma intenção de "problematizar a

História" quando suas personagens discutem os momentos políticos, econômicos, sociais

que estão a ocorrer não apenas em Santa Fé, mas também no Rio Grande do Sul e no Brasil.

O autor demonstra essa preocupação quando induz suas personagens a discutirem essas

questões.

48

É o próprio Erico que, em entrevista ao Jornal Opinião, em 1973,19 sendo inquirido

a respeito de ser a "História a matéria básica da sua ficção em (...) O Tempo e o Vento e

Incidente em Antares", assim responde:

Ninguém pode fugir à História ... e lá se foi o primeiro lugar comum. Clara ou oculta, essa "senhora" está presente em todos os meus romances. Sempre a considerei importante. Não só ela, mas também esse cavalheiro, mais misterioso ainda, sem o qual ela não poderia existir: o Tempo. Como é possível desenvolver, fazer viver um personagem, um grupo social, fora do Tempo e da História? Como se poderia contar uma fábula num vácuo temporal e espacial? Claro, com artifícios de linguagem, com refinamento de técnica, é possível dar ao leitor a impressão de que o romance não tem quando nem onde. Acho que qualquer autor tem o direito de escrever o que entende, o que sabe, esquivando-se do que lhe pode confundir o espírito. O importante é que o livro seja bom. É preciso não esquecer que História não é sinônimo perfeito de Política ou que a política não pode ou deve ser sempre partidária. No meu caso particular, tenho sido naturalmente levado em minhas ficções para problemas políticos que vivi, em geral, como espectador. Graças aos meios de comunicação modernos, hoje em dia os acontecimentos nos chegam de todos os quadrantes do mundo com mais rapidez e força.

Como o autor que afirma que a história está presente em "todos" os seus romances,

não tem uma preocupação com essa ciência? É o próprio autor que afirma a importância

dos acontecimentos históricos em sua vida, como determinantes para usá-los em suas

ficções. Erico não apenas vê os fatos acontecendo; ao presenciá-los guarda-os na memória e

utiliza-os quando se fazem oportunos. Isso tudo não dá a O Tempo e o Vento o caráter de

romance histórico?

Percebe-se, também, nesta fala do autor, a importância por ele atribuída ao tempo e

também ao espaço. O tempo em Erico é tão significativo que o próprio título de sua obra

19 Esta entrevista está reproduzida na obra de BORDINI, Maria da Glória. A liberdade de escrever: entrevista sobre literatura e política. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS/EdPUCRS, Prefeitura Municipal de Porto

49

relaciona o binômio tempo e vento. E,ao tratar de um romance de fundo histórico, o tempo

é precioso, por conta de ser a matéria-prima da história. Para retratar os acontecimentos, ele

é fundamental para relacionar ficção e história.

Zilberman,detendo-se a respeito do romance histórico, mas também do mito e da

história contidos em O Continente, explica que Erico, nesse momento, situa não só essa

obra, como também Incidente em Antares e O Prisioneiro.

(...) numa zona de transição, quando os lugares sociais estão sendo trocados. A escolha lhe permite examinar os dois lados da questão, tomando partido daqueles que representam a mudança, sem, todavia, mostrar-se moralista em relação ao ultrapassado. E porque apresenta ao leitor a transformação e o aparecimento do novo, confere inegável natureza histórica às narrativas, renovando sensivelmente um dos gêneros a que se dedicou, o chamado "romance histórico".(1998,p. 73)

Um exemplo claro que podemos apontar é a posição social ocupada no romance de Erico

pelos Carés - gente sem nenhuma importância aparentemente - mas que

segundo LENHARDT & PESAVENTO:

Representam o ângulo popular da formação social do Rio Grande do Sul e que, assim como têm papel periférico na luta pelo poder, ocupam um lugar até certo ponto marginal no topo do romance. Porém, em Ismália Caré (...), os dois trajetos - o dos Cambarás, agora na posição de comando, e o dos Carés, sempre na condição de dominados - se encontram corporificando a confluência de dois segmentos sociais que fizeram a história regional. (1998, p. 141-42)

Verifica-se, com essa situação, que a história social do Rio Grande do Sul também

se apresenta numa condição de disputa política pelo poder, aqui representado pelos Terra-

Cambará e, talvez, num afã de suplantar o próprio sentimento de inferioridade perante os

demais estados da Federação, quando se exemplifica com a posição que os Carés ocupam

no romance, mas, com certeza, podemos afirmar que a sociedade sul-rio-grandense formou-

Alegre, 1973.

50

se não apenas por aqueles que forjaram sua posição social nas lutas políticas e nas guerras,

mas também por aqueles que, subservientes, supriram, com seu trabalho, o

desenvolvimento do estado.

Em Chaves (1990, p. 9) encontramos, a respeito da caracterização da fronteira que

se interpõe entre literatura e História, que.:"A fronteira, aqui, não se separa; antes,

determina o ponto de convergência onde podemos observar a unidade da obra literária".

O termo fronteira que, reiteradamente, observamos sendo examinado em vários

trabalhos acadêmicos, tem para nós significado especial, pois, ao aliarmos a literatura e a

História, a partir de O Continente, que classificamos como romance histórico, temos clara a

identificação entre esses dois campos do conhecimento. Se é histórico e é, ao mesmo tempo

romance, a fronteira aqui os une, pois permite a discussão de questões sociais, políticas,

econômicas da realidade brasileira, a partir da ótica e das discussões travadas pelas

personagens criadas por Erico Verissimo.

Esse é o ponto nevrálgico que queremos demonstrar: a unidade que reúne esses dois

campos do conhecimento, os quis, muitas vezes, se complementam. É o caso de O

Continente.

Chaves defende que a obra é romance histórico, afirmando:

O romance é manifestamente histórico e, na medida em que sua ação se aproxima dos dias atuais,

inscreve a crítica ao Estado Novo como preocupação itinerante.

Assim, O Tempo e o Vento abandona pouco a pouco o sentido épico inicial para concluir numa análise

da classe-média brasileira. O modelo adotado abriga o debate ideológico, a discussão política, a

exposição direta, misturando tanto as personagens historicamente reais como as puramente

fictícias. Sem prejuízo da força mítica de figuras como Pedro Missioneiro, Ana Terra ou

Rodrigo Cambará, o romance formula um processo, o processo da História brasileira

contemporânea. Daí resulta a crise de consciência que, na falência da ideologia liberal,

identifica a falência da própria legitimidade do Estado.

O romance ofereceu pois à literatura a dimensão de sua historicidade. Trata-se de momentos privilegiados em que a ficção assume a consciência política da sociedade. (...) História e literatura reuniram-se no mesmo processo de sondagem e revelação da realidade brasileira. (1990, p. 26)

51

Parece-nos clara a intenção de Erico ao aliar a História à

Literatura e elaborar seu romance. A preocupação do autor não está

em tão somente contar a história do Rio Grande do Sul de forma

ficcional, mas sim levar os leitores a pensarem as questões históricas

e suas repercussões na sociedade.

A visão histórica transmitida no romance permite-nos observar desde as querelas

políticas que se travavam na época da escrita do romance até a discussão de ser o Rio

Grande do Sul um estado puramente luso ou com mesclas de castelhanidade, matrizes que

serviram de discussões acirradas, na época em que Erico redigiu a obra.

Essas discussões sobre ser o Rio Grande do Sul de matriz exclusivamente

portuguesa fervilhavam no meio intelectual da época, mas por outro lado também vamos

encontrar na historiografia sul-rio-grandense, estudiosos que incluíam, em seus debates, a

influência do Prata na formação social sul-riograndense.

Erico incorpora-se a essa última corrente. Exemplo disso podemos encontrar em

vários momentos de A Fonte. Entre eles destacamos:

Alonzo ouvira contar a história dum bandeirante vicentista que, tendo encontrado nos campos duma vacaria uma cruz de pedra na qual se lia - "Viva El-Rei de Castela, senhor destas campanhas"- deitou-a por terra e ergueu ao lado dela um marco de madeira no qual escreveu - "Viva o muito alto e poderoso Rei de Portugal, D. João V, senhor destes desertos". Os vicentistas enchiam aquelas paragens com o tropel de seus cavalos, os tiros de seus bacamartes e seus gritos de guerra. Mas quando voltavam para São Vicente, levando suas presas e achados, o que deixavam para trás era sempre o deserto - o imenso deserto verde do Continente. (...) Depois de visitar a padaria, a casa dos teares, a olaria e o moinho,

52

Alonzo foi ao Cabildo, onde o corregedor - um índio imponente que ostentava o uniforme amarelo e encarnado dos soldados espanhóis - discutia com membros do Conselho problemas de administração judiciária. Quando escrevia a parentes e amigos da Espanha, Alonzo nunca deixava de elogiar a organização das reduções, que, à maneira das povoações espanholas, era governada por um Cabildo, para o qual os índios escolhiam em eleições anuais o corregedor - a autoridade máxima - os regedores, os alcaides, o aguazil-mor, um procurador e um secretário. Contava-lhes também como os indígenas aprendiam, através de lições práticas e vivas, que o indivíduo pouco ou nada vale fora da coletividade a que pertence. (ERICO, 1999, vol 1, p. 22, 31e 32).

É exatamente em A Fonte que podemos constatar a presença não só de portugueses

e espanhóis, mas de indígenas, os quais, sob as ordens dos padres espanhóis, seguem a

mesma administração de Espanha. O léxico histórico usado pelo escritor como cabildo,

corregedor, alcaide são indícios muito fortes da presença espanhola nas terras do hoje Rio

Grande do Sul. Afinal, não se pode esquecer que os Sete Povos das Missões estavam sob a

jurisdição espanhola, o que lhes confere toda a estrutura administrativa nos moldes de

Espanha.

O romance de Erico é todo pontuado por acontecimentos históricos que se

interpõem na obra, dando-lhe, portanto, o caráter de romance histórico, que já assinalamos,

familiarizando-nos com a questão étnica platina na formação da identidade cultural do

Estado.

No capítulo A Fonte, embora haja todo um envoltório mítico em torno da figura de

Pedro Missioneiro, historicamente desenrola-se a Guerra Missioneira, quando os

portugueses ocupam a região. De acordo com Bordini, in NUNES:

A matéria histórica de A fonte (...), é a destruição das Missões jesuíticas espanholas junto aos Guaranis

pelas tropas encarregadas de fazerem valer o Tratado de Madri, de 1750. Os termos desse

53

acordo entregavam à Espanha a Colônia do Sacramento e a Portugal os Sete Povos das Missões,

para pôr fim à disputa de fronteiras que se prolongava entre os dois países e originaram a

chamada guerra guaranítica, que durou até 1756 e que, segundo a História oficial, foi instigada

pelos jesuítas para manterem o território por eles civilizado e as riquezas dele provenientes nas

mãos da Santa Sé. (1990, p. 6 - 7)

A autora não só esclarece o fundamento do sentido histórico de A fonte, como o

reforça e também nos faz entender a característica de romance histórico quando afirma:

Erico Verissimo, defrontando-se com esse discurso histórico sobre a derrota das Missões, decide utilizar o tema da civilização jesuítico-guarani como motor de todo seu romance, o qual tem em mira revisar o processo de formação e desenvolvimento da sociedade rio-grandense. As Missões, portanto, passam a funcionar, na estruturação da trilogia, como narrativa de fundação, que origina um universo social, o dos latifúndios rurais sul-rio-grandenses desde seu florescimento até sua resistência à modernização industrial. (...). Na versão oficial, o que encontra é apenas o mito da superioridade dos brancos, a desconfiança ideológica quanto às intenções dos jesuítas de cristianizar os povos indígenas para salvá-los do genocídio e integrá-los ao mundo ocidental, o menosprezo às realizações culturais dos guaranis e ao estilo de vida comunizada que adotaram sob o influxo da doutrina cristã e, o mais grave de tudo, a descrença em que essas realizações foram tidas pelos historiadores, que as rotularam freqüentemente de legendárias.

Percebemos, ao longo de nossas leituras, que os estudiosos em Erico Verissimo são

unânimes em relatar a preocupação do autor no que tange à história, seja no momento da

escrita da obra, seja quanto dos fatos do passado, seja quanto à formação da sociedade sul-

rio-grandense, arraigada às tradições.

É com A Fonte que Erico Verissimo inicia e encaminha o seu romance. A palavra

“fonte” tem a conotação de origem, vertente, o que não significa necessariamente ser o

início de coisas boas, claras, puras ou imaculadas, mas é por onde tudo tem um começo, na

obra de Erico. O próprio título do capítulo não é uma casualidade, é a matriz da narrativa na

54

ação de iniciar seus escritos.

Verissimo20 apud Kern (1995, p. 18) assim se refere à A Fonte.

Se O Tempo e o Vento é um romance-rio, 'A Fonte' é a sua vertente, e não apenas porque é ali que

começa a história. As vertentes são ao mesmo tempo coisas límpidas e sombrias, símbolos do

novo e do puro e ao mesmo tempo dos ciclos antigos da água e da terra. A história emerge do

mito como a água brota da terra, como a criança sai do ventre, e tudo que é novo já nasce com

um passado obscuro, com uma passagem pelas entranhas do mundo.

Esse autor traduz claramente o significado de A Fonte para o resto do romance;

esse capítulo é a raiz de onde surgem todos os demais. É como se A Fonte fosse o brotar de

toda a história do Rio Grande do Sul, a partir do povoamento inicial que ocorre com os

índios missioneiros, os jesuítas, os portugueses e os espanhóis. Ou seja, podemos visualizar

claramente, nesse capítulo, três situações: de um lado uma terra indígena sendo aos poucos

devassada, de outro a disputa pela conquista luso-espanhola da América e, a partir dessas

duas questões, a fusão dessas etnias que darão origem à formação de um mundo novo.

Embora Erico não descreva pormenorizadamente os acontecimentos históricos, não

defina expressamente sua posição em relação às matrizes étnico-culturais do Rio Grande do

Sul, até por que esses não são os objetivos de seu intento, ele não os ignora; ao contrário

usa-os para dar a fundamentação histórica que enriquece o romance. E assim ele procede

em cada um dos capítulos de O Continente.

A chegada do Capitão Rodrigo Cambará a Santa Fé, por exemplo, descrita no

capítulo Um Certo Capitão Rodrigo, apresenta um gaúcho destemido, participante das

Guerras Cisplatinas. Ficcionalmente vemos o relacionamento de Rodrigo com Bibiana, o

20 VERISSIMO, Luiz Fernando. A Fonte: vertente de O Tempo e o Vento. apud Kern, Arno Alvarez. A Fonte: Memória e História das Missões Jesuítico-Guarani. In: NUNES, Luiz Arthur et. al. Programa da peça A Fonte. Porto Alegre: PPH, s.d., p. 5. Atas do Seminário Internacional Erico Verissimo: 90 Anos.

55

nascimento dos filhos e a morte do Capitão. Historicamente, o capítulo apresenta a

imigração de alemães que chegam a Santa Fé, e trata também da Guerra dos Farrapos, em

1835.

A questão com os castelhanos continua, no capítulo A Teiniaguá, abrangendo a

guerra contra Rosas e demais conflitos com os países do Prata. Junto com esses

acontecimentos históricos, ficcionalmente o capítulo trata do casamento de Bolívar

Cambará - filho de Bibiana e Rodrigo Cambará - com Luzia Silva, o nascimento de seu

filho Licurgo Cambará, as crises do casamento de Luzia e Bolívar e a morte deste. Em meio

a tudo isso continua, como disputa política, o conflito entre os Cambará e os Amaral.

No capítulo intitulado A Guerra, Erico trata da Guerra do Paraguai, que alcança

Santa Fé através de seus filhos, os quais engrossam as fileiras militares. Em função disso -

afinal a guerra já está no seu sexto ano - Santa Fé começa a entrar em decadência. Erico se

refere à situação da cidade ao descrever:

As obras da igreja nova, iniciadas em 1863, foram interrompidas por falta de dinheiro e de braços. Os homens válidos da vila estavam em terras o Paraguai - em cima dela lutando ou debaixo dela apodrecendo. Os campos do município achavam-se quase despovoados: o governo fizera pouco negócio. O correio chegava com irregularidade, quando chegava. As residências conservavam suas janelas quase sempre fechadas, e as que ficavam desabitadas dentro em pouco se transformavam em ruínas. Durante todos aqueles anos poucas vezes se ouviu o som de gaita ou canto em Santa Fé; nem houve ali fandango, quermesse, cavalhadas ou outra festa qualquer. Ninguém tinha vontade de se divertir nem ânimo para cantar, dançar ou brincar, sabendo que parentes e amigos estavam na guerra. E por mais que se dissesse que Solano Lopes estava perdido, nenhuma esperança havia de paz próxima. (1999, vol. II, p. 477)

O enredo do capítulo vai tratar também dos atritos entre

Bibiana e Luzia, da doença desta e da permanência de Licurgo em

56

Santa Fé, que se tornará o chefe político da cidade. Um dos

exemplos mais claros advém de uma conversa entre o dr. Winter e

Florêncio Terra, depois que este volta da guerra. Em meio à

consulta, o médico conta-lhe sobre o estado de saúde de Luzia, que é

precário. Florêncio pergunta-lhe:

- Vosmecê falou franco? Disse que ela tinha vida pra pouco tempo?

- Disse. Uma mulher como Luzia tem mais coragem que muito homem que conheço.

(...) - Tia Bibiana também sabe de tudo? - Sabe (...) - Como é que elas vivem naquela casa, doutor? - Odiando-se. (...) - O que mantém aquelas duas mulheres juntas na mesma casa é a

esperança que uma tem de que a outra morra primeiro. - Não acredito, doutor, vosmecê me desculpe, mas não acredito. - Por quê? - Tia Bibiana não é capaz duma coisa dessas.

(...) - Sua tia é capaz de muito mais coisa do que vosmecê imagina.

Ela odeia a nora com a mesma força com que amava o filho. (ERICO, 1999, vol II, p. 487)

Bibiana, conforme nos descreve outra personagem, o Dr. Winter, é uma mulher resoluta,

uma mulher de decisões firmes, que não recua diante das possibilidades

de concretização de seus propósitos.

Numa outra passagem desse capítulo, Erico assim expõe o desejo de Bibiana de

recuperar o Sobrado:

57

Estava resolvido, ia tomar o Sobrado, não de assalto, com tiros, como o Capitão Rodrigo (...). Era

mulher, tinha paciência, estava acostumada a esperar (...). Um dia Aguinaldo morre, Bolívar

fica dono de tudo, eu volto para as minhas árvores (...) vou ajudar a criar meus netos. (1999, v.

2 p. 368 )

Nos dois exemplos, podemos notar claramente o "maquiavelismo" de Bibiana em

conseguir o seu intento, sem se preocupar com o preço que terão, ela e Bolívar, que pagar.

Ela tem o dom da espera, quando se trata de atingir um objetivo. Como podemos observar,

o enredo do capítulo é um duelo constante entre Bibiana e Luzia - a Teiniaguá-, pincelado

pela presença do Dr. Winter, que dá o tom esclarecedor do mesmo, bem como a de outras

personagens como José Fandango que, na sua simplicidade, vai demonstrando as diferenças

entre a modernidade que se aproxima e a tradição, que aos poucos se modifica.

Podemos distinguir, no desenrolar de cada capítulo de O Continente, que Erico não

desvincula os acontecimentos históricos da linha ficcional apontada por ele. Por isso

engajamo-nos aos autores que consideram O tempo e o Vento, e por via de conseqüência O

Continente, como romance de fundo histórico. É quando podemos notar os conflitos entre

nações, bem trabalhado na questão da disputa de fronteiras ou entre grupos sociais diversos,

ou dentro da própria família. E o objeto principal, nesse momento, é sempre a disputa pela

terra. A terra enquanto limite territorial, é a terra enquanto restauração do que um dia

pertenceu aos Terra, simbolizado agora, pela edificação do Sobrado.

Silva, apud INDURSKY faz a seguinte afirmação a respeito de romance histórico

ligando-o a O Tempo e o Vento:

Em "O tempo e o vento", a perspectiva histórica adotada pelo narrador é séria, a ponto de a primeira parte da trilogia se aproximar de uma narrativa mítica de fundação do Rio Grande do Sul. A História é tratada criticamente, mas fora do plano do discurso; é através dos episódios ficcionalizados, vividos pelas personagens,

58

em confronto com a História oficial e seus vultos, considerados modelares, que se estabelece a crítica. A prova disso está em três atitudes do narrador: 1) a constância da 3ª pessoa gramatical, como a mostrar sua opção por um discurso científico, ou o mais próximo ele, a respeito das situações; 2) o ponto de vista sério, apesar de crítico, quando faz a apresentação de qualquer fato histórico; 3) a ausência de comentários e a escassez de adjetivos nas descrições, ligadas ao discurso científico. (2000, p. 568)

O autor demonstra a seriedade com que Erico Verissimo distingue a perspectiva

histórica que imprime ao seu romance, explanando as atitudes de Erico ao tratar de

questões históricas.

A relação inter-proximal que visualizamos entre a História e a literatura, na

narrativa de Erico, traduz o diálogo de inclusão entre os dois campos do conhecimento,

mostrando, assim, o entrecruzamento que pode haver entre eles, enriquecendo-se, o texto

literário com as abordagens históricas, e o texto histórico com as elocubrações que a

literatura pode fornecer.

Das muitas leituras feitas podemos deduzir a ligação que há entre História e

Literatura. E, como afirma Weinhardt in GONÇALVES

(...) a importância da história, a maneira de ler a realidade que lhe é própria depende de instrumental

de sua exclusiva competência. A ficção, que eventualmente até pode ser usada pela história

como documento, neste caso oferecendo subsídios a propósito do tempo em que é produzida e

não do tempo ficcional.

A questão do eu e do outro, não é substitutivo para o ensaio histórico, embora parceira de diálogo. (...) O texto literário, se submetido aos atuais recursos da teoria histórica, pode ganhar novo rendimento ficcional. Quando a teoria histórica abre seu leque para a cultura e, em movimento simultâneo, reconhece seu caráter de discurso de processos discursivos e sua força de revelação e de mascaramento, está apontando também para um outro modo de ler o texto ficcional que encena o histórico. A consciência do "roman fleuve" gaúcho revelada por diferentes tipos de abordagens históricas é mais um modo possível de aduzir razões para a força de verdade de seu universo ficcional. (2000, p. 100)

59

Ao cotejarmos a história do Rio Grande do Sul com a ficção de O Continente,

encontramos um paralelo significativo que Erico traça entre as duas histórias. A história do

Rio Grande do Sul é desenvolvida desde o início da colonização até o apogeu do

castilhismo, quando seus adeptos sagram-se vitoriosos na Revolução Federalista de 1893-

95.

Ficcionalmente encontramos em O Continente, a história da família Terra, que se

desenvolve, desde sua chegada ao Continente de São Pedro até a união do Capitão Rodrigo

Cambará com Bibiana Terra, dando origem à família Terra-Cambará e seu futuro domínio

político sobre a cidade fictícia de Santa Fé.

Conduzindo a ficção e a história em campos paralelos, Erico demonstra, através da

saga dos Terra-Cambará, e de sua concorrente política, a família Amaral, das gentes

simples como os Carés, dos letrados como o Dr. Winter e os padres Alonzo, Antônio, Lara

e Otero e dos maquiavélicos Aguinaldo e Luzia Silva, a formação, as lutas e o

desenvolvimento do estado do Rio Grande do Sul. Todas as questões ficcionais enfocadas

por Erico têm uma correspondência na História, seja através dos acontecimentos, seja

através da citação das personagens reais, seja pela fala e argumentação das personagens

fictícias.

Ler um texto narrativo que se reporta à História permite duas grandes possibilidades

intelectuais. Uma, participar da proposta do autor, ao acompanhar passo-a-passo sua

narrativa, outra a de enriquecer-se com as questões históricas das quais o autor lança mão

para fundamentar o seu texto, quando esse tem um fundo histórico como é o caso de O

Tempo e o Vento.

Tratamos, neste subcapítulo, do romance histórico, o que nos permitiu, ao fazermos

essa análise, não só notar a relação muito próxima entre a História e a literatura, mas

60

também verificar que os contextos historiográfico e literário, em que se insere O

Continente, igualmente interagem, por conta da efervescência que se processava na

Literatura e na História nas décadas de 1930/40.

1.3 Do Contexto Literário e Historiográfico

Trabalhar com a mais importante obra de Erico Verissimo, O Tempo e o Vento -

ainda que usando somente a primeira parte da trilogia - O Continente - implica revisitar os

contextos literário e historiográfico aos quais o autor estava inserido nas décadas de 1930 e

1940.

Historicamente o Brasil sentia os reflexos da Primeira Guerra Mundial (1914-18) que, se

por um lado marcou o fim de grandes impérios coloniais, por outro

inaugurou o imperialismo econômico sob a batuta de novos países.

Dacanal21 assim se refere ao contexto histórico em que surge o romance de 30,

considerando que

A grande guerra interimperialista de 1914 marcara o início do fim do colonialismo clássico europeu

(...). No Brasil, uma das principais nações de um continente semicolonizado, a velha ordem dos

mundos urbanos da costa e de sua imediações, organizados como complementos dos impérios

europeus, agonizava. O antigo sistema econômico exportador de matérias-primas alimentícias e

importador de manufaturados esgotara suas possibilidades.

Conforme se depreende das palavras do autor, era um novo momento para o Brasil e

também para o Rio Grande do Sul, que necessitava sair do exclusivo sistema

21 DACANAL, JoséHildebrando. O Romance de 30 e os Primórdios do Capitalismo Industrial. In. Correio do Povo - Caderno de Sábado, 22/11/1980, p. 15.

61

agroexportador, resultado do colonialismo clássico, e ingressar no modelo moderno de

industrialização. É ainda Dacanal22 que assim se expressa:

O país estava pronto para o grande salto (...). Uma estrutura mais complexa, própria dos subsistemas

periféricos da nova fase da era industrial/capitalista, o substituiria. No sul, a Armour marcava o

fim das charqueadas e no norte as modernas usinas eliminavam o engenho. As zonas industriais

e as cidades cresciam e suas imediações passavam a produzir alimentos para abastecer estes

grandes aglomerados humanos. O café, elemento-chave da velha ordem econômico-política,

perdia importância.

Esssas situações são analisadas não apenas pelos historiadores que não se furtam em

discutir a situação sócio-político-econômica do país, mas também pelos escritores da

geração de 30, que as incluem em suas obras.

As mudanças estruturais na marcha da economia foram historicamente muito

significativas para a sociedade brasileira da época, que toma novos rumos, passando a

industrializar-se. Socialmente temos a presença da classe média urbana que se destaca

também no cenário político nacional, enquanto as oligarquias começam a perder seu poder

econômico-político, por conta dessa nova classe social que apóia os grupos, figuras e

movimentos que propunham "um liberalismo autêntico, capaz de levar à prática as normas

da Constituição e as leis do país, transformando a República oligárquica em República

liberal. Isso significava, entre outras coisas, eleições limpas e respeito aos direitos

individuais"23.

Essa crise na estrutura sócio-econômica, apontando para a modernização da

economia, que passa a ser industrial e comercial, oportuniza a ascensão desses novos

22 DACANAL, J. H. op. cit., p. 15 23 FAUSTO, Bóris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Ed.Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 171.

62

grupos sociais, alguns dos quais formados por descendentes dos imigrantes e que vai

colocar em xeque a agricultura e a pecuária frente à indústria e também vai questionar o

poder das elites tradicionais vinculadas à pecuária, à zona da campanha, frente às elites

urbanas em ascensão, ligadas aos novos setores econômicos.

Assim, os anos 1930-40 são um marco na transição econômica. Observa-se uma

certa ruptura, uma mudança na sociedade, na economia e na política. A história também

sofre transformações na ambivalência de conservadorismo/transformação. Em termos de

manutenção vamos observar a tentativa de fixar um passado elaborado de forma a valorizar

a elite guerreira, que luta nas fronteiras contra os espanhóis, correndo em paralelo com a

matriz lusitana. Ou seja, é uma maneira de tentar voltar ao passado num mundo que está se

transformando. Por outro lado vamos ter um ponto de vista crítico, a partir do que a

literatura chamou de Modernismo, mas que tem a ver com o regionalismo crítico dessa

tradição, das elites tradicionais regionais24.

Esboçando um paralelo com o nordeste brasileiro, nas pessoas de Graciliano Ramos

Neto e Guimarães Rosa, entre outros, o que se nota é uma crítica exatamente sobre a

grande propriedade. A lavoura açucareira, como a usina de cana-de-açúcar vão mudar os

hábitos sociais, como provocando o êxodo rural, gerando um problema social. No Rio

Grande do Sul, a crítica far-se-á sobre a grande propriedade e suas conseqüências sociais

que excluem os menos favorecidos.

Assim, a literatura é um outro viés por onde vai se questionar essa mudança e Erico

Verissimo insere-se aí, pensando essa trajetória num largo prazo, só que nessa trajetória ele

24 SARAIVA, G. Manual do Tradicionalismo. Porto Alegre: Sulina, 1986 apud COSTA, Rogério Haesbaert da. Latifúndio e Identidade Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 81. "Tradição, (...) é o campo das culturas gauchescas. Tradicionalismo, a técnica da criação, semeadura, desenvolvimento e proteção de suas riquezas naturais, através de núcleos que se intitulam Centros de Tradições Gaúchas".p.175-176.

63

traça um painel dialético: como mudança e como permanência. Como mudança porque

passam-se gerações e a modernuidade se impõe, mas como permanência porque o

mandonismo, o latifúndio de alguma forma permanecem ao lado dessas transformações.

O lugar de onde Erico fala é a capital do Estado, Porto Alegre, e o tempo são as

décadas de 1930/40. O Continente só fica pronto em 1949 e é uma situação sui generis a

que se processa no Rio Grande do Sul. Temos um gaúcho na Presidência da República,

Getúlio Vargas. Portanto, o estado sulista passa a ter uma expressividade política de

primeira ordem. No bojo dessa questão vem também a discussão sobre as matrizes de

formação étnico-culturais do estado, para as quais destinamos um subcapítulo.

Love25 apud CHAVES explica que no Brasil

A industrialização impulsionou a migração interestadual, as comunicações e sobretudo a procura de mercados internos em vez dos situados além-Atlântico. As rivalidades regionais abriram caminho para outras divisões, especialmente entre a moderna civilização industrial e urbana, de um lado, e o modo de vida rural e tradicional de outro. O desenvolvimento de uma força de trabalho urbana alfabetizada e a sua resposta aos apelos populistas diminuíram a importância do coronelismo e provocaram uma transformação parcial do processo político. (1981, p. 15)

Obviamente toda essa transformação que ocorria no país, a

partir da década de 1930, não passaria despercebida pelos

historiadores e pelos literatos. São mudanças que estão se

processando na sociedade como um todo e que se refletem na

estrutura histórica do país. Os literatos, por sua vez, especialmente

25 LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 263.

64

aqueles voltados às questões sociais, como era o caso de Erico

Verissimo, também servem-se do momento, para questionar o que se

passa na sociedade e inseri-lo em suas obras.

Erico Verissimo será de marco na ruptura da literatura sul-rio-grandense a partir de uma

maneira diferente de escrever. Se até então os autores gaúchos

debruçavam-se sobre o que se chama romance regionalista, privilegiando,

pois, o estancieiro, os peões, a lida campeira, e enaltecendo o gaúcho,

com Erico essa situação se modifica e ele faz a sua literatura totalmente

voltada para o urbano.

O ideário gaúcho de bravo, guerreiro, macho que, em princípio, pode representar a imagem

que os gaúchos fazem de si mesmos, na realidade não é uma construção

do imaginário popular. Essa idealização é patrocinada pela literatura,

sobretudo pelo Romantismo, que elabora essa figura do gaúcho, no final

do século XIX, exatamente quando ele desaparece como tipo social,

passando a ser um mero tipo literário. Essa construção literária é diferente

do gaúcho real, que é nas décadas de 1930/1940 um desterritorializado,

por conta das modificações econômicas que se operam no Rio Grande do

Sul.

Na verdade, quando Erico caracteriza o gaúcho como tipo valente, destemido,

heróico, lutador, ele está desconstruindo essa mitologia do gaúcho "monarca das

coxilhas"26, ele o está enxertando numa outra dimensão, tanto no âmbito de uma saga

26 (...) no fim do século XIX, com o povoamento do território, a subdivisão dos campos, a intensificação da exploração rural, a imigração européia em larga escala, o homem do campo não podia ter conservado a feição que o caracterizou

65

familiar, quanto num contexto de modernização, que se aplica a sua literatura urbana.

Fresnot explica que

A literatura eminentemente urbana de Erico Verissimo começa a erguer um novo marco que vai, insensivelmente, passo a passo tornar-se um ponto de referência... O Cavalo é substituído pelo jipe, a vida social pelas atividades urbanas e industriais, novas classes sociais surgem deslocando o peão da estância e criando nova linguagem; nova problemática, diversificando os ingredientes do drama cotidiano. (1977, p. 80 - 81)

Afinal os tempos são outros, é num outro lugar - Porto Alegre,

a capital - onde as coisas acontecem, em relação ao restante do Rio

Grande do Sul. É para lá que Erico desejava ir e efetivamente ele

vai, com o propósito de tornar-se escritor.

Para Zilberman,

o romance de 30 e a obra ficcional de Erico Verissimo despojam a literatura regional da carga promocional do gaúcho. A partir daí, a narrativa não poderia deixar de ser crítica, de modo que, voltada à exploração da história da ocupação do território, incorporou estes dois procedimentos: a pesquisa do passado e a postura interrogativa quanto ao processo de formação racial e, sobretudo social. (1980, p. 92-3)

O romance produzido na década de 1930 teve importância

capital no sentido de os autores assumirem uma posição crítica

quanto às questões situadas por Zilberman quais sejam: a discussão

sobre quem é e o que é ser gaúcho, desmitificando a questão da

primitivamente. Mudou, entretanto na pele do “monarca das coxilhas”. REVERBEL, Carlos. O gaúcho: aspectos de sua

66

heroicidade; as questões raciais que, ao segregarem uns porque são

negros, outros porque são estrangeiros levam, em última instância, à

análise dos problemas sociais que advêm no bojo dessas discussões.

A geração dos escritores de 30, entre os quais Erico Verissimo foi

figura eminente, conforme nos informa Chaves (1981, p. 13)

"empreendeu o reconhecimento do espaço social brasileiro por via

da documentação, da incorporação de tipos característicos, da

aceitação das palavras regionais e, não raro, da denúncia política" e

abriu, inegavelmente, um novo capítulo na literatura brasileira e sul-

rio-grandense.

Antônio Cândido apud SUSSEKIND relata que

Erico vai querer compreender melhor a "razão histórica" da violência e ferocidade do caudilhismo, a violência que tem seu lado positivo como seu lado negativo. Para entender como e porque vai escrever O Tempo e o Vento, refazendo a história do Rio Grande. Positiva do lado dos pioneiros que "conquistam e defendem a terra", negativa do lado dos "coronelões que a desfrutam e oprimem" bem como dos "doutores e negocistas que saem deles para levar a sua marca à política do Estado e da Nação”. (1995, p. 328),

Explorando essa compreensão, Erico vai deixar de lado toda a tradição campeira

dos estancieiros, que são os "latifundiários ricos e poderosos", "donos do poder", "donos até

da vida das pessoas", são os "caudilhos". De outro lado aparecem os menos favorecidos, os

formação no Rio Grande e no Rio da Prata. Porto Alegre: L&PM, 1996. p.87.

67

miseráveis, e os que têm alguma posse e desejam melhorar de vida, aspirando chegar a ter

um espaço só seu, uma vida só sua. Entre ambos aparece a questão da identidade sendo

esmiuçada pelo autor.

Em um determinado momento a identidade vai transitar na luta contra o outro, que é

o castelhano, enaltecendo o português, que existe, nesse momento, como um elo comum

entre todos os estados na constituição de um Estado Nacional Brasileiro. É quando o

gaúcho quer se integrar como brasileiro. Está explícita, assim, a discussão das matrizes

lusitana e platina na formação da sociedade sul-riograndense.

Biasoli apud QUEVEDO, chama-nos a atenção para a época - 1949 -em que foi

publicado o romance de Erico.

É importante que tenhamos claro a ata da publicação dessa obra ficcional, pois ela veio à luz num momento da vida cultural rio-grandense muito específico: quando se delineava uma reação contrária àqueles intelectuais que não admitiam a experiência dos jesuítas espanhóis - os 7 Povos Missioneiors - como integrante da história do Rio Grande do Sul. Entre os que se opunham a esta visão excessivamente lusitana da história do Rio Grande, encontravam-se Manoelito de Ornellas e os integrantes do Grupo Quieto, por exemplo. (1999, p. 148)

Para esse autor,

Erico Verissimo, ao escrever "A Fonte" integrou-se nessa oposição difusa, que clamava por uma aceitação do fato de que nossas raízes históricas têm muito a ver com a cultura platina, com a cultura espanhola na América, com as experiências dos jesuítas missioneiros, por exemplo. Ao dar o título "A Fonte" ao capítulo do seu romance ambientado nas Missões, ele estava claramente afrontando esses intelectuais, polemizando com eles. Isto, em certo sentido, me parece que marca algumas das características que ele enfatizou ao descrever o universo das reduções. (1999, p. 148-49),

Nesse capítulo, Erico dá-nos a entender que é da fonte que tudo surge, é onde tudo

68

começa; a fonte é vida que nasce, que cresce, que se desenvolve, que toma formas as mais

diversas. Nessa diversidade está a presença de portugueses e espanhóis; estão os sete Povos

das Missões e também a Colônia do Sacramento; está a disputa entre Portugal e Espanha

por territórios além Atlântico; está, enfim, o famoso Tratado de Madri. Tudo isso é

relacionado por Erico, nesse capítulo e o é também pela história "oficial" e, como tal, é

impossível não reconhecermos a presença étnica e a influência cultural dos espanhóis na

formação da sociedade sul- riograndense.

É todo o contexto sócio-cultural da época que Erico argumenta no seu romance e o

fato de conviver tão amiúde com intelectuais que defendiam enfaticamente a matriz lusa de

formação étnica do Rio Grande do Sul, talvez tenha levado o escritor a considerar que a

simples presença dos castelhanos, vizinhos portanto, não era tão simples assim.

Para nós, o autor usa ambas as situações e as aplica nos vários momentos de seu

romance, como por exemplo, quando o próprio Capitão Rodrigo pronuncia a sua tão

conhecida frase "Buenas e me espalho, nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de

talho" (1999, v.1,p. 171). O termo buenas é um vocábulo castelhano e o capitão é uma

personagem que, nas suas andanças guerreiras, luta ao lado dos portugueses. São

expressões como essas que demonstram a relação extremamente próxima das questões

étnico-culturais, entre as duas matrizes.

É na discussão do que vem a ser matriz, já explicada na página 13, que entendemos

a construção de uma identidade político-cultural de que os intelectuais gaúchos careciam

para possibilitar uma identificação para o seu território, enquanto fundamento de

representatividade para o restante o país.

Gutfreind refere-se à matriz platina, explicando que a ela...

filiam-se os historiadores que enfatizam algum tipo de relação ou de influência

69

da região do Prata na formação histórica sul-rio-grandense e comumente defendem que a área das Missões Orientais, com os aldeamentos jesuíticos do século XVII, componha a história do Rio Grande do Sul. A outra, a matriz lusitana, minimiza as aproximações do Rio Grande do Sul com a área platina e, conseqüentemente, defende a inquestionável supremacia da cultura lusitana na região. (1992, p. 11)

A busca da "identidade política cultural" que Gutfreind ressalta, sinaliza também

para uma identificação regional que deseja uma representação no cenário nacional.

Outros estudos mais recentes afirmam que se no Rio Grande do Sul, a presença lusa

foi predominante, entretanto a presença espanhola não deixou de fazer parte das heranças

étnicas e culturais sul-riograndenses, bem como a indígena.

Kern dá o tom explicativo para essa questão, ao afirmar:

Hoje sabemos que a região platina, na qual estamos inseridos desde nossas origens, foi povoada por diversas etnias que ao longo dos séculos aqui se estabeleceram. Inicialmente organizou-se o espaço: a natureza preparara desde muito o palco e o cenário, nas colinas e planícies dos vales cobertos de florestas dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai. (1995, p. 19)

De posse dessas informações, analisando o que nos diz a historiografia, a teoria e a

literatura, não se pode afirmar que a formação da sociedade sul-riograndense seja

exclusivamente portuguesa. Entretanto a construção desse lusitanismo, como registra o

trabalho de Ieda Gutfreind (A Historiografia Sul-Rio-Grandense) é, exatamente a tentativa

dos gaúchos de se fazerem pertencentes a esse concerto nacional. Essa identidade é, em

princípio, contra o outro, mas é também uma identidade que busca a interação no nacional,

como forma também de desvincular-se do contexto dos anos 30/40 que entendia o Sul do

Brasil como produto de colonização alemã e italiana. Não faz parte de nosso trabalho essa

discussão, mas tal era o contexto da época.

Os anos 1930 - 1940 são períodos em que há uma intensa propaganda nacionalista

interna no Brasil. É a oportunidade de vencer as oligarquias locais, e isso também vem

70

representado na literatura urbana de Erico como no exemplo abaixo

- Tomamos o casarão de assalto. O capitão foi dos primeiro a pular a janela (...). - Uma bala no peito...

O padre mirava-o, estupidificado, pensando em Bibiana. - E os Amarais? - O Cel. Ricardo morreu peleando. O filho fugiu O padre sacudia devagarinho a cabeça, como que recusando aceitar aquela desgraça. - Eu queria que vosmecê fosse dar a notícia à mulher do capitão - pediu o oficial. (1999, v. 1, p. 306),

Podemos perceber, nesse exemplo, que Erico vale-se da história e do momento

presente, usando esses recursos nos seus escritos, discutindo o poder de mando, das elites

regionais cosnstituídas.

Chiappini esclarece que Erico vai posicionar,

em cheque o poder tradicional e a tradição regionalista da literatura gaúcha sem a ingenuidade de lhe

opor uma alternativa positiva pela tematização eufórica da vida urbana, mas cada vez mais

vendo verso e reverso, perdas e ganhos, vantagens e desvantagens de ambos, do ponto de vista

do ideal de uma sociedade menos injusta, com mentos pobreza e mais liberdade para todos.

(1995, p. 328)

A dedicação de Erico para com a literatura urbana vem ao encontro de seu caráter

humanista, preocupado com as questões da urbe que, em última instância, vai colocar

também em xeque a liberdade para todos os indivíduos, indistintamente, e, da mesma forma

uma igualdade social, que não privilegiasse uns em detrimento de outros.

Bordini apud GONÇALVES, falando acerca das incursões de Erico pela história,

destaca

Sua aventura pela História sulina, portanto, que se iniciava com O Continente, vinha precedida do descrédito no legado regionalista, tanto brasileiro quanto local, que dourara um passado (e por vezes um presente) de guerras bárbaras e de opressão no campo, e na

71

desconfiança na História oficial do Estado, que, ao gosto da época, dedicava-se a erigir heróis a partir de caudilhos sanguinários e nem, sempre esclarecidos. Entretanto, Erico também provinha do interior, de uma região politicamente conturbada e de economia agrária, testemunhara ainda muito jovem os desmandos dos próceres de Cruz Alta e conhecera inúmeras figuras que transitavam entre o campo e sua cidade, tratara de suas doenças e feridas e ouvira seus dramas primeiro do dispensário de seu pai e depois ao balcão da Farmácia Central. (2000, p. 52-3)

A explicação de Bordini permite-nos compreender mais claramente que Erico

sentia-se comprometido com os acontecimentos que orbitavam a sua volta, ou seja, "Erico

estava pronto para entregar-se à temática histórica que seu compromisso ético com a época

e o povo lhe exigia".27

Ao conviver com os "próceres" de Cruz Alta, enquanto vivia

em sua terra natal, e circular entre o campo e a cidade, Erico teve a

oportunidade de poder comparar a ambos e tudo isso de alguma

maneira, serviu-lhe de "laboratório" no momento em que ele redigia

sua obra.

Essa preocupação de Erico Verissimo com a realidade na qual ele estava engajado,

que Zilberman nos permite compreender melhor, é apontada também por Antonio

Chiarello28, através de uma fala de Erico.

Perguntaram-me se sou um escritor engajado. Resposta: “Sou, mas não com nenhuma facção ou partido político e sim com o Homem, com a Vida". E já havia dito, alguns anos antes: "Sou um homem de paz. Detesto as guerras, as ditaduras e os ditadores. Com

27 BORDINI, Maria da Glória. O Continente: Um Romance em Formação? Pós-Colonialismo e Identidade Política. In. GONÇALVES, R. P. O Tempo e o Vento - 50 Anos. Santa Maria, RS: UFSM; Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 52-3. 28 Jornal Correio do Povo. Porto Alegre: 1980, p. 9.

72

o devido respeito a Erasmo, direi que sou um humanista”.

A transcrição de Chiarello revela-nos o humanismo inerente a Erico, o que fez do

escritor não apenas o "contador de histórias", como ele mesmo se autodenominava, mas um

homem de sua época, preocupado com o que via e ouvia nas ruas e nos locais significativos

de Porto Alegre, por onde andava.

A elaboração de O Continente - primeira parte da trilogia de O Tempo e o Vento -

vai de 1935 a 1948. É um período difícil para o escritor que luta pela sobrevivência. É

compreensível, portanto, que embora a concepção do romance tenha ocorrido em 1935 só

em 1947, após a restauração da democracia no Brasil, o livro tenha efetivamente ficado

pronto. Era, certamente, uma época difícil para alguém como Erico, um humanista liberal,

obrigado a conviver com a ditadura que se impusera no Brasil.

Em 1937 vige no país o regime político do Estado Novo. Economicamente o Brasil

passa a se industrializar cada vez mais, os direitos trabalhistas29 são o grande mote do

governo de Vargas, que ganha em popularidade. Em contrapartida a repressão é imensa.

Bordini in GONÇALVES (2000, p. 56) esclarece que, “ao despertar da Segunda

Guerra Mundial haviam proliferado os movimentos pró-Eixo e consolidara-se o partido

comunista. Um intelectual liberal como Erico Verissimo se sentia cercado por todos os

lados.

Para um humanista liberal como Erico, a situação era extremamente controvertida.

Se por um lado ele era criticado pelos socialistas que o acusavam de liberal, por outro ele

sofria com a dureza do Estado Novo. Assim compreende-se, a partir da explicação de

29 FAUSTO, B. Op. cit. "A política trabalhista de Vargas (...) teve por objetivos principais reprimir os esforços organizatórios da classe trabalhadora urbana fora do controle do Estado e atraí-la para o apoio difuso do governo".

73

Bordini30 a espera para a publicação da obra.

(...) embora a idéia da obra possa ter lhe ocorrido em 1935 e retornado em 1939, com roteirizaçòes de que se conhecem as de 1941 e de 1943, como Erico diz no esboço de uma entrevista, foi em 1947 que de fato começou a escrever o romance, tendo em mente realizá-lo como "uma longa sinfonia dividida nos clássicos movimentos e possivelmente com grandes massas corais" (ALEV 01i0047-?, p.iii).

Ser um humanista e também um liberal não era tarefa fácil para ninguém, num país que era

governado por um ditador, mas que ao mesmo tempo tinha a simpatia da

massa trabalhadora, normalmente carente de toda e qualquer informação.

Para um escritor, como Erico, atento às questões sociais, certamente a

carga de preocupações era enorme, e os olhares do poder estavam

voltados para ele.

Chaves refere-se da seguinte maneira ao humanismo de Erico:

A atitude humanista de Erico Verissimo, que implica obviamente um determinado conceito sobre a função da literatura (...), deve ser compreendida portanto à luz desse reconhecimento crítico da realidade que vem a ser, em última instância, o fator causal de muitas das atitudes individuais das suas personagens. (1981, p. 49)

Essas personagens como veremos no capítulo 2.1, dedicado

especialmente a elas, parecem muitas vezes saídas da vida real para

a ficção, tamanhas são as discussões que se processam entre elas,

30 Essa explicação de Bordini encontra-se também, e mais detalhada, em CriaçãoLiteráriária em Erico Veríssimo. Porto Alegre: LP&M, 1995, pp. 125-129.

74

acerca dos fatos sociais, históricos, políticos, econômicos do dia-a-

dia e que afetam de alguma maneira toda a sociedade.

Chaves relata ainda que

É através da trajetória das personagens eleitas que a classe média urbana - transformada em núcleo da indagação social - obtém a verdadeira voz de sua consciência, no romance de Erico Verissimo, estabelecendo pela primeira vez a sua problematização histórica, quer nas denúncias das injustiças do presente, quer na interrogação a cerca do passado. (1981, p. 49)

Entendemos que as confabulações que acontecem entre as

personagens são uma das maneiras de Erico expor seus pensamentos

sobre essas questões que interferem na sociedade como um todo.

A década de 1930 foi significativa tanto para o Brasil quanto para o Rio Grande do

Sul; não só a esfera política federal abraça o gaúcho Getúlio Vargas para dirigir a Nação,

como na economia o estado se destaca no setor industrial e Porto Alegre, a sua principal

cidade, torna-se "o principal centro industrial do estado (...) e uma capital com uma

prestigiada vida cultural".31

Embora o país se industrializasse, isso não significa dizer que a zona da campanha

desapareceu e o latifúndio perdeu sua importância econômica e política,

especialmente na fronteira, pois como explica Costa (1988, p. 81),

A força do Estado brasileiro nos anos 30 e sua aliança aos interesses da ascendente burguesia industrial não desestruturaram, contudo, a "solidez da dominação oligárquica local que exigia e facilitava que as mudanças fossem promovidas de 'cima para baixo', condição esta, sim, indispensável: qualquer mudança devia ser contida nos limites da manutenção da estrutura de propriedade da terra"

31 TORRESINI, Elisabeth W. R. Editora Globo: Uma Aventura Editorial nos Anos 30 e 40. São Paulo: EDUSP: Com-Art, Porto Alegre: EdUFRGS, 1999, p. 43.

75

(Martins, apud SILVEIRA, 1984, p. 27).

Será justamente na região da fronteira que o latifúndio vai prevalecer, o que implica

questionarmos as identidades que foram construídas a partir das grandes extensões de

terras, originárias das sesmarias quando da formação do território do Rio Grande do Sul.

Costa salienta que:

Enquanto dominante, a velha oligarquia rural não necessitava "afirmar sua diferença" pelo acirramento da sua identidade cultural. Entretanto, a partir do momento em que a sociedade era incorporada aos novos padrões da modernização e do "progresso" capitalista, os elementos representativos de uma "cultura regional" específica vinham à tona, considerados como antagônicos a este processo e, portanto, conservadores, ultrapassados. (1988, p. 80)

Assim, repensar essas identidades diante da industrialização que se apresentava, é

pôr em xeque a própria construção das identidades e o poder das elites regionais, às quais

obviamente vão resistir à perda da hegemonia política e econômica.

O final dos anos 1930-40 é uma época de metamorfoses, é um período de críticas de toda a

ordem; não podemos esquecer que vige no Brasil, a partir de 1937, o

Estado Novo, regime que derruba a democracia e implanta a ditadura.

Erico, por seu turno, vai se colocar nesse viés crítico que a literatura da

época já vinha denunciando.

É nesse mundo que Erico Verissimo vai entrar, por opção e por necessidade. "O

ponto obrigatório de encontro dos intelectuais porto-alegrenses é o Café Colombo"32, do

qual Erico Verissimo era um dos muitos freqüentadores, por onde circulava, "todo cidadão

de destaque social (...) para ver os seus pares e ser visto"33.

32 TORRESINI, Elisabeth W. R. Op. cit. p., 45. 33 MONTEIRO, Charles. Porto Alegre e suas Escritas: História e Memória (1940 e 1072). Tese (Doutorado em História) PUC-SP. São Paulo, 2000, p. 42.

76

Conforme o que nos diz Monteiro:

Entre os mais assíduos freqüentadores estavam "Augusto Meyer, Moysés Vellinho, Viana Moog, Theodomiro Tostes, Athos Damasceno Ferreira, Darci Azambuja, Vargas Neto, João Santana, Paulo Corrêa Lopes, Carlos Dante Moraes, Dionélio Machado, Reynaldo Moura, Pedro Wayne, Pedro Vergara, Ernani Fornari, Dante Laytano, Raul Bopp, Mário Quintana (...) e Paulo de Gouvêa. (...) Augusto Meyer, Theodomiro Tostes e João Santana eram as figuras centrais do grupo. (2000, p. 40)

Podemos observar que há uma plêiade de intelectuais voltados às letras, além de

músicos, advogados, médicos, engenheiros, entre outros, bem como políticos de renome

que também freqüentavam o Café Colombo, e "(...) entre as figuras de destaque da política

nacional e local (...) estavam Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha (ambos antes de 1930) e

Loureiro da Silva".34

Essa "miscigenação" cultural, com certeza, não deixou Erico Verissimo alheio aos

diálogos que ocorriam entre eles, contribuindo, de alguma maneira, no momentio da

elaboração de seu romance.

O Café Colombo torna-se, dessa maneira, não apenas um estabelecimento

comercial, mas um lugar diferenciado por onde circulava a mais alta intelectualidade porto-

alegrense.

Também as livrarias foram cenários que abrigaram esses intelectuais. Monteiro

(2000, p. 44-5) cita a "Livraria Universal, localizada na Rua da Praia" (...) a "Livraria

Americana, situada bem em frente ao Café Colombo" (...) e ainda a "Selbach e a Livraria de

João Mayer Filho (...)". Porém, foi a Livraria do Globo que marcou toda uma geração de

intelectuais entre as décadas de 1930 e 1940 e entre seus expoentes estava Erico Verissimo.

Torresini destaca um fato significativo:

77

Toda a cidade tem seus bares, cinemas, livrarias, casas de comércio. Tem, ainda, a gente que se movimenta nesses e noutros espaços consagrados em busca de lazer, sobrevivência e satisfação de infinitos anseios. Tem também seus intelectuais, que são orgânicos a ela como são os bares, os cinemas, as livrarias. Os intelectuais, pensam a cidade e refletem de uma forma diferente do resto da população, porque acabam transformando-a em memória. Através deles a cidade ganha história e torna-se livro, quadro, cinema, teatro, música. (1999, p. 50)

São os intelectuais, sejam escritores, cronistas, jornalistas,

músicos, enfim..., os responsáveis pela preservação da memória da

cidade, da região, do país. É através deles que os fatos mais simples

como os mais complexos ficam, de alguma maneira, registrados nos

anais da história.

Em Porto Alegre não era diferente. E são nesses lugares, especialmente nos bares e

cafés onde a política, a economia, as questões sociais eram discutidas mais amiúde, que os

intelectuais se encontravam quase que obrigatória e diariamente.

Diante de tantas inovações que despontavam na Porto Alegre dos anos 30, surge a

Editora Globo, na qual Erico Verissimo ingressará como funcionário. Esse estabelecimento

terá uma importância capital para Erico. Achamos oportuno descrever, sucintamente, como

ela surge.

Em 1883 é fundada a Livraria do Globo35, por Laudelino Pinheiro de Barcellos,

localizada na Rua da Praia - onde está situada até hoje. A trajetória percorrida é longa,

34 MONTEIRO, Charles. Op. cit., p. 41. 35 A respeito da criação e desenvolvimento da Livraria e Editora Globo ver: BERTASO, J. O . A Globo da Rua da Praia. São Paulo: Globo, 1993; TORRESINI, E. R. Editora Globo: Uma Aventura Editorial nos Anos 30 e 40. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 1999, pp. 55-106. MONTEIRO, C. Porto Alegre e suas Escritas: História e Memória (1940 e 1972). Doutorado em História. São Paulo: PUC-SP, 2000, pp 45-48. VERISSIMO, E. Breve Crônica duma Editora da Província. In. GONÇALVES, R. O Tempo e o Vento: 50 Anos. Santa Maria, RS: UFSM; Bauru, SP: EDUSC, 2000, pp. 287-318.

78

assim como seu crescimento, e a livraria passa a fabricar livros, tornando-se, portanto,

também uma tipografia. É significativo relatarmos o ingresso de um menino de apenas 12

anos, chamado José Bertaso que atua, primeiramente, como funcionário de serviços gerais,

tornando-se, com o tempo, sócio e em 1919 proprietário.

O desenvolvimento da Livraria é grande, e em 1929, José Bertaso cria a Revista do

Globo, cuja direção coube a Mansueto Bernardi e João Pinto da Silva. Em 1948,

transformara-se na Editora Globo.

O fato para o qual queremos chamar a atenção é que em 1930, com a vitória da

Revolução, Mansueto Bernardi é convidado por Getúlio Vargas para assumir a direção da

Casa da Moeda, no Rio de Janeiro. É nesse momento que Erico Verissimo entra em cena,

sendo contratado para dirigir a Revista do Globo e Henrique Bertaso , filho de José Bertaso,

iria em breve assumir a direção da seção Editora. As circustâncias em que Erico assume a

nova função é descrita pelo próprio escritor, como momento "decisivo para sua carreira" e,

conforme registro em Um Certo Henrique Bertaso, fato ocorreu através de um encontro

entre Erico e Mansueto que assim lhe disse:

- Vamos publicar no próximo número o seu conto "Chico", com a sua ilustração - anunciou-me o autor de Terra Convalescente. Olhou-me por um instante e depois murmurou: - Você escreve, traduz, desenha ... Seria portanto ideal para trabalhar em nosso quinzenário, no futuro.

- Por que "no futuro"? - perguntei - se estou precisando do emprego agora?

Mansueto permaneceu pensativo por um instante. - Quanto pretende ganhar? Arrisquei: - Um conto de réis. Era um salário apreciável para a época. O poeta coçou o queixo indeciso. - É uma pena. Não temos verba para tanto. Mas qual seria o

ordenado mínimo que você aceitaria pra começar?

79

- Seiscentos - respondi sem pestanejar. - Pois está contratado. Pode começar no dia primeiro de janeiro.

Ah! Você entende de "cozinha" de revista? - Claro! - menti. Nunca havia entrado numa tipografia de

verdade. Jamais vira um linotipo. Não tinha idéia de como se armava uma página ou como se fazia um clichê. O importante, porém, era que tinha conseguido emprego.

Foi assim que entrei para a Família Globo. (1997, p. 20-21).

Mas Erico é, sobretudo um escritor. Entretanto, a profissão de escritor ainda,

como hoje, não havia se organizado no Brasil, o que significa que não havia como

sobreviver dessa função. Assim, a par de escrever seus livros, Erico Verissimo trabalha na

Revista do Globo e faz traduções de livros em vários idiomas36.

Torresini falando a propósito das traduções que se faziam no Brasil, destaca que:

A tradução de obras é um importante campo de trabalho para os autores nacionais. Depois de 1930, traduzir torna-se uma das ocupações de autores conhecidos como Monteiro Lobato, Sérgio Buarque de Holanda, Erico Verissimo, Sérgio Milliet, Mário Quintana, entre tantos outros grandes escritores, que são facilmente reconhecidos pela importância e qualidade dos trabalhos que traduzem. (1999, p. 77),

Traduzir era não apenas um outro tipo de trabalho, mas também uma maneira de os

tradutores tornarem-se mais conhecidos.

Gradativamente Erico Verissimo vai ganhando espaço e prestígio junto à Editora Globo e

vai se familiarizando cada vez mais com a intelectualidade porto-

alegrense, entre eles, como nos declara Torresini:

Augusto Meyer, Theodomiro Tostes, João Santana, Paulo Correia Lopes, Ernani Fornari, Reynaldo Moura, Paulo de Gouvêa, Guerreiro Chaves, Sotero Cosme, José Rasgado Filho, Fernando Corona, Telmo Vergara, Athos Damasceno Ferreira. Conhece também Darcy Azambuja, Moysés Vellinho, Carlos Dante de

36 "Na Revista, Erico fazia de tudo: era redator, revisor, selecionador de matéria, tradutor. E também encaixava seus próprios trabalhos". (Jornal Correio do Povo - Caderno de Sábado. 29/11/1980 - Antônio Chiarello, p. 8).

80

Moraes, apesar de estes não fazerem "vida noturna boêmia".(1999, p. 69)

Desses intelectuais, alguns eram historiadores e faziam parte do Instituto Histórico

e Geográfico do Rio Grande do Sul, como Moysés Vellinho, com quem Erico Verissimo

tinha conhecimento. Vellinho foi o maior representante da matriz lusitana da historiografia

sul-rio-grandense, no que tange à defesa da tese de que o Rio Grande do Sul tinha origem,

exclusivamente, portuguesa. Para ele, eram as "condições histórico-políticas que faziam o

Rio Grande do Sul brasileiro, daí por que não ser uma opção mas uma vocação histórica37.

Portanto, refutava toda e qualquer aproximação do estado com a área platina.”

Gutfreind salienta que.

Em "O Rio Grande e o Prata: contrastes", Vellinho extravasou o conteúdo ideológico que lhe servia de guia e de estudo. A história do Rio Grande do Sul teria ocorrido diferentemente dos processos argentino e uruguaio. Invocando desde o elemento humano que povoara cada uma das áreas, distintos entre si, retomava a ação civilizadora das estâncias e dos acampamentos militares, fenômenos do Rio Grande do Sul já defendidos pelos historiadores da corrente lusa que lhe antecederam. (1992, pp. 97, 98)

Vários foram os trabalhos de Vellinho sobre a história sul-rio-grandense, todos, ou

enaltecendo o gaúcho, descendente fiel de portugueses, ou referindo-se à fronteira do

estado, ou defendendo apaixonadamente a matriz lusa. Em 1956, por exemplo, Vellinho

escreveu "O Gaúcho Rio-grandense e o Gaúcho Platino", repetindo explanações anteriores.

Conforme nos informa Padoin apud QUEVEDO,

Moysés Vellinho, ao tratar das origens do homem do Rio Grande do Sul, do gaúcho, representa a matriz lusa da historiografia sulina. Afirma que o gaúcho do Rio Grande do Sul diferenciava-se do gaúcho platino pela melhor índole, pois este último, devido ao

37 Cf. GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre. Ed. Universidade/UFRGS, 1992, p. 78.

81

acentuado processo de mestiçagem entre o espanhol e o índio, proporcionou um gaúcho platino violento, denominado por ele de "essa peste de gente". Assim, Vellinho explica a diferença do resultado da mestiçagem no Rio Grande do Sul: ... não foi suficiente para corromper-lhe a vocação de disciplina social firmada em sua ascendência luso-brasileira. O elemento indígena que nos sobrou de sua desagregação e de suas evasões era escasso e, além de tudo, apagado e dispersivo. O mestiço do branco com nativas, foi sem dúvida, bastante encontradiço na comunidade campeira, mas em tempo algum pesou na concorrência com o padrão dominante.38 (1999, p. 371).

Parece-nos que a idéia de Moysés Vellinho está muito ligada à questão da

nacionalidade brasileira e inserir o Rio Grande do Sul nessa questão era fundamental para

respaldar a matriz lusitana como a única na formação social do Estado. Ora, sendo o Brasil

um país de colonização portuguesa, portanto com idioma português e também usos e

costumes e, tendo as terras do Rio Grande do Sul sido conquistadas palmo-a-palmo, urgia

que se incorporasse o estado à vertente lusitana, talvez como forma de intensificar essa

questão nacional.

No que tange à fronteira, conforme explica Gutfreind:

Vellinho identificava dois tipos de fronteira. Uma delas denominava interna, a que fora vivida pela Argentina, através da oposição entre a população do campo e a da cidade. A outra fronteira, externa, relacionava-se com as extensas faixas de terreno do Rio Grande do Sul que delimitavam com a área platina. Esse raciocínio levava à identificação, no primeiro caso, de um inimigo no interior do país (o caso argentino), enquanto que, no segundo, o Rio Grande do Sul, os espanhóis e, posteriormente, os platinos eram vistos como invasores e inimigos. (1992, p. 100)

Ao identificar esses dois tipos de fronteiras, Vellinho

sofisticava, de certa maneira sua tese, pois na realidade essa

82

discussão enfatizava seu entendimento sobre a exclusividade da

matriz lusitana no Rio Grande do Sul.

Poderíamos aprofundar mais a discussão sobre a obra de Vellinho, embora

entendamos que a matéria em questão já tenha sido superada pela historiografia gaúcha,

que comprovou a importância tanto da matriz lusa como da platina na formação étnico-

cultural da sociedade gaúcha.

Outros nomes de destaque na historiografia sul-rio-grandense também defenderam a

matriz lusitana, entre o quais Aurélio Porto, Souza Docca e Othelo Rosa. Aurélio Porto foi

o lançador da tese do exclusivismo luso na formação do Rio Grande o Sul. Sua produção

historiográfica, "representou o lançamento do processo de construção do discurso histórico

que criava uma identidade lusitana para o Rio Grande do Sul e insistia na existência de

sentimentos brasileiros no estado"39.

Emílio Fernandes de Souza Docca foi também membro do IHGRS, sendo o orador

oficial, na sessão inaugural do mesmo, em 1921. Nesse discurso, conforme nos informa

Gutfreind, Docca

(...) nomeava os temas que deveriam ser estudados, enfatizando ser "inominável absurdo" fazer apenas história rio-grandense, pois "sabem todos que a história do Rio Grande do Sul está estreitamente vinculada aos principais fatos da história do Brasil e da civilização". As Bandeiras, os bandeirantes, a Companhia de Jesus, a "vida do povo heróico e generoso que veio das províncias portuguesas" eram assuntos que deveriam ser pesquisados. (1992, p. 56)

O discurso de Souza Docca demonstrou seu vínculo com a matriz lusitana, ao

enaltecer "o povo heróico e generoso que veio das províncias portuguesas".

38 VELLINHO, Moysés. A formação histórica do gaúcho. In: Rio Grande do Sul: Terra e Povo. Porto Alegre: Globo, 1969. pp. 51-63; 60-61. 39 Cf. GUTFREIND, Ieda. Op. cit. p. 37.

83

Outro defensor da historiografia lusitana rio-grandense foi Othelo Rosa, que também fazia

parte do IHGRS. Assim como os demais, não aceitava a influência platina

no Rio Grande do Sul e para reforçar sua tese enfatizava que o gaúcho

rio-grandense

(...) tinha uma pequena percentagem de sangue indígena, não era nômade, possuía em alto grau o espírito de nacionalidade e era apegado à ordem, à disciplina e à estabilidade. Já o gaúcho platino era visto com uma percentagem elevada de sangue indígena, sendo nômade, possuindo um espírito localista, daí ter advindo o caudilhismo, a anarquia e a ausência de uma "alma nacional".

Percebemos, claramente, a defesa desse autor do lusitanismo e, de certo modo,

compreende-se sua tese se considerarmos a necessidade premente que o Rio Grande do Sul

tinha de ser reconhecido como um dos estados importantes da nação brasileira, e não como

um apêndice do Brasil, situado numa linha limítrofe, que não lhe configuraria a

nacionalidade.

Ao conviver com esses historiadores, bem como com os defensores da matriz

platina, como é o caso de Manoelito de Ornellas, Erico Verissimo vai obtendo aprendizado,

fazendo parte do que se convencionou chamar no Brasil de romancistas de 30. Martins40

apud CHAVES relata que,

(...) cronologicamente Erico Verissimo precede a todos os romancistas de 30 que fizeram romance urbano no rastro da literatura de interesse social. Correto, pois o juízo de Wilson Martins: "Pertencendo, em perspectivas modernistas, à geração consolidadora, ele é um dos escritores fundamentais do movimento, por haver feito, fora de São Paulo, o que nenhum dos revolucionários de 22 conseguiu fazer: o romance urbano moderno. (1981, p. 17)

O primeiro romance de Erico Verissimo, de cunho urbano, é Fantoches, mas a

84

consagração do escritor virá muito mais tarde com O Tempo e o Vento, onde o autor

consegue, através da descrição de uma família, seus percalços, suas lutas, seus sofrimentos,

suas vitórias e suas alegrias, expor a história do Rio Grande do Sul, considerando a

formação da história sul-rio-grandense com o apogeu da estância e seu declínio com o

advento da industrialização. "A aristocracia, contudo, não morreu, apenas transformou-se

(...) tratou de manter seu apogeu hegemônico naquilo em que era imbatível: a possibilidade

de acesso aos bens da cultura e da educação formal" (Brasil apud GONZAGA &

FISCHER, 1993, p. 138).

Após estudarem na Europa, os filhos dos homens de posses voltavam de lá plenos

de novos conhecimentos e novos valores. A idéia que era veiculada é a de que esses jovens

foram responsáveis por todas as benesses ocorridas no Brasil, por terem adquirido um

nível cultural que os fazia donos de um "patrimônio incorruptível" e, por isso, "capaz de

guindá-los às culminâncias dos postos políticos, o que os fazia, no mínimo diferentes dos

homens vulgares, cujos únicos bens (...) provinham da posse de terras" (BRASIL, op. cit. p.

138).

Assim, tendo a política como uma das grandes saídas para a nova situação que se

apresentava, como bem lembra Brasil apud GONZAGA & FISCHER,

"o nobre tornava-se filósofo (...). A governança do Estado lhes foi deferida como uma conseqüência indiscutível de seu saber". Mas eles não esqueceram e não perderam suas raízes pois "agora era filósofo, mas acrescentava-se a essa condição o seu passado ilustre, de inúmeros serviços prestados ao Estado, passado onde as marcas da selvageria e dos desmandos sofreram uma operação cosmética através, principalmente da literatura. A tradição, dessa forma, serviu de apoio à glorificação das estirpes nobres do pago. (1993, p. 138).

40 MARTINS, Wilson. Modernismo. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 294

85

A explicação do autor acima não deixa dúvidas a respeito da nova maneira de

exercer o poder de mando das classes tradicionais do Rio Grande do Sul. Se a estância não

comportava mais, unicamente, a idéia de supremacia econômica e política, a elevação, no

nível cultural, era por outro lado uma riqueza que jamais alguém poderia tirar. Assim, uma

vez letrado, o nobre gaúcho continuava influenciando os destinos "dos pagos".

E quem é o nobre gaúcho? Brasil apud GONZAGA & FISCHER assim o define:

(...) é, antes de mais nada, o homem português, branco, católico e proprietário, o que desde logo exclui uma legião de párias de outras procedências, credos e fortunas; em segundo lugar, não veio para cá para "assentar família", mas para combater por seu rei e sua lei, recebendo em troca a sesmaria (...): poderia ter grande prole, mas esta prole nada mais era que uma conseqüência de seu poderio e uma demonstração pública de sua virilidade. (1993, p. 137)

Ou seja, essa explicação de Brasil, reforça o que de há muito sempre se fez no

Brasil: a aliança com a religião católica, a herança portuguesa e a posse e propriedade de

terras, que davam a esse homem "branco" o "direito" de se colocar acima dos demais.

Quando, com o passar dos anos, as propriedades perdem sua importância econômica,

buscam outra alternativa: o aprimoramento da cultura.

Reforçando as palavras de Brasil, encontramos em Flávio Loureiro Chaves, na obra Erico

Verissimo: realismo e sociedade, um paralelo entre a história do Rio

Grande do Sul e o romance produzido na década de 1940, que esse autor

assim explica:

O que é o romance de 1949 senão a história do homem vista através da história do Rio Grande, e a história do Rio Grande vista através da história duma família, cuja união é, aí, sinônimo de permanência da vida e cuja corrupção decreta a falência da totalidade dos valores, só restando então ao último descendente da estirpe empreender a sua recuperação através da escritura dum ... romance? (1981, p. 65-6)

86

Nesse comentário de Flávio Loureiro Chaves, podemos inserir toda a compreensão

da história de O Continente, que é publicado em 1949 e que conta através da saga da

família Terra-Cambará e sua arqui-inimiga, a família Amaral, a história do Rio Grande do

Sul, além, é claro, a disputa constante das fronteiras com os castelhanos.

Suro salienta que,

Refletindo sobre a história brasileira de 1930 a 1948, Verissimo chega à conclusão em O tempo e o vento de que a história é cíclica e não unilinear e que tudo volta. O que voltou durante essa época histórica foi a democracia, para ser logo substituída pela ditadura. De 1930 a 1934, houve ditadura. De 1934 a 1937, democracia, voltando a ditadura de 1937 a 1945, quando, com a derrubada de Vargas pelo Exército, voltou, mais uma vez, a democracia. Essa alternância cíclica entre democracia e ditadura na vida política brasileira de 1930 a 1945 é o elemento histórico-social que faz com que Erico Verissimo tenha uma teoria cíclica da história que se reflete imanentemente em O tempo e o vento na concepção cíclica da trama. (1985, p. 151)

Talvez o motivo de Erico considerar o tempo histórico como cíclico esteja no fato

que de 1930 a 1945 houve essa "alternância entre a democracia e a ditadura", de que nos

fala o autor acima, o que talvez tenha levado o escritor a desacreditar ou a não confiar nas

intenções democráticas dos políticos. Uma fala sua ilustra o que acabamos de dizer.

"Prestes junto com o homem cuja Polícia Política entregara sua mulher aos carrascos

nazistas? Inacreditável !"41

Mais uma vez podemos constatar que Erico não é apenas um

homem de "letras", mas sim um cidadão do mundo, vivenciando o

que está acontecendo e emitindo opiniões a respeito.

41 SURO, Joaquín Rodríguez. Érico Veríssimo: história e literatura. Porto Alegre: Luzzatto, 1985, p. 150.

87

Embora a História apresente-se como uma narrativa, ela implica viéses, acréscimos

ou rupturas. A história não apenas relata os fatos, ela os analisa, observando o tempo em

que ocorreram, os motivos e o lugar onde se passaram e as implicações que tiveram na

sociedade. Na obra de Verissimo, quando se trata da fronteira geográfica vê-se claramente

que a narrativa relativiza a fronteira externa, ao falar da guerra entre os gaúchos do Rio

Grande e os da região do Prata, ou seja, entre rio-grandenses e os outros da fronteira. No

sentido de fronteira interna, o termo tem a conotação de peso político, pois ao longo do

romance vamos nos deparar com as barreiras que separam os Terra-Cambará dos Amaral,

enquanto posição social e confronto político. É uma disputa ambivalente, constante e que se

propaga pela obra, nos descendentes dessas famílias-personagens. É a história política do

Rio Grande do Sul que opôs chimangos e maragatos. É também a tentativa de permanência

da estrutura econômica baseada na pecuária e na agricultura e a ruptura que se presencia

com a industrialização.

Em termos de identidade, nos anos 1940, o que se observa é uma tentativa muito grande de

se revitalizar as tradições sul-rio-grandenses, a partir dos Centros de

Tradições Gaúchas (CTGs) e do movimento tradicionalista.

Costa esclarece que:

As bases do movimento, contudo, devem ser atribuídas primeiro a uma retomada, pelas classes médias em descenso, de valores capazes de impor uma identidade, para o que a cultura regionalista, ainda relativamente arraigada, constituía sem dúvida um caminho apropriado. Todavia, mais tarde o próprio aparelho estatal, segundo Oliven sob pressão do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho), criou o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore e instituiu um Galpão Crioulo em pleno Palácio Piratini, sede do governo estadual, comemorando oficialmente o Dia do Gaúcho e a Semana Farroupilha. (1988, p. 82)

88

Podemos identificar da fala desse autor que essa foi uma das maneiras

conservadoras encontradas, por uma parcela da sociedade gaúcha, para, numa volta ao

passado, resgatar essas tradições, diante das modificações que se operavam no Rio Grande

do Sul, através da nova estrutura econômica, industrial e comercial.

Por outro lado, como explica Oliven (1984, p. 58) apud COSTA (1988, p. 82),

O Tradicionalismo é visto como uma ideologia destinada a manter a massa rural e as camadas

populares que migram para as cidades em estado de submissão enfatizando a harmonia social,

o bem coletivo, a cooperação com o Estado, o respeito às leis e o espírito cívico.

O tradicionalismo, de acordo com Oliven, impõe uma fronteira, e o autor deixa

muito claro que houve essa intenção velada, além do aspecto cultural, na manutenção do

tradicionalismo. Ou seja, subjugar os não pertencentes à classe dominante, usando para isso

o discurso da igualdade entre patrão e peão, que também se propaga na estância, mas que

sabemos não existir de fato.

São também referências, na obra de Erico, as fronteiras simbólicas que aparecem

quando o autor trata de binômios que são opostos, mas que se respaldam um em relação ao

outro, tais como:

- Vida x Morte.42 Sem entrar no mérito da discussão filosófica e religiosa sobre

esses assuntos, Erico os enfoca quando, por exemplo, trata, respectivamente, do

"nascimento" de Pedro Terra e da "morte" de Pedro Missioneiro, seu pai. É uma situação

ambígua que, embora não oponha pai e filho, não permite, ao mesmo tempo, que eles se

conheçam, não oportuniza o encontro da família

- Reacionário x Revolucionário43. Essa é uma situação bem presente na obra de

Erico, pois está implícita não somente em O Continente, mas percorre todo O Tempo e o

Vento. Podemos exemplificar com a permanência do mando dos Amaral, os fundadores de

42 VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento: O Continente. São Paulo: Globo, 1999, vol 1. p. 107-8-11

89

Santa Fé, e a chegada do Capitão Rodrigo Cambará, que provoca uma revolução ao

desestabilizar a situação ditada e estabelecida, de há muito, no povoado.

- Homem x Mulher. Esse também é um binômio presente em todos os capítulos da

obra de Erico, e é uma situação de muita diferença entre os gêneros masculino e feminino,

sendo que aos homens é configurado o espaço público, o das decisões, do trânsito do poder,

das ruas e suas oportunidades; às mulheres é segregado o espaço privado da casa, a

manutenção dos costumes, da religião e da família. A fronteira que podemos perceber aqui

são as opiniões diferentes, por exemplo em relação à guerra vista pelas mulheres, se é que

elas detinham a liberdade de opinar, e pelos homens, sob óticas completamente diferentes.

Almeida in GONÇALVES (2000, p. 79) situa assim a questão, percebida em O

Tempo e o Vento: “a contraposição do território feminino versus o território masculino,

dentro de O Tempo e o Vento implica a representação cindida do corpo feminino através

das personagens analisadas, as dignas mães de família e as indignas amásias.” Ambas,

porém, não só presentes nesse contexto, mas com papéis determinados e cumprindo uma

função que lhes é atribuída.

- Destino x Liberdade. As mulheres têm por destino a reclusão do lar, como o lugar

sagrado de preservação da família, já os homens têm por opção a liberdade de correr

mundo. Ao compor essa dualidade, o autor reafirma o entendimento da sociedade da época,

transportada para o interior de O Continente. Ou seja, destino e libreddae estão situados em

campos opostos, no sentido de que o primeiro, na concepção fatalista, impõe o lugar da

mulher, enquanto a segunda é reconhecida como inerente ao gênero masculino.

Novamente Almeida in GONÇALVES nos esclarece a situação

A casa e o mundo doméstico são por excelência o território das 43 VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 231

90

esposas e das mães, reduto familiar onde se dá o cuidado com a manutenção da sobrevivência, território privado para onde os homens sempre retornam. Ali as mulheres têm seus filhos e esperam que eles cresçam. Alimentá-los, vesti-los, educá-los, criá-los, socializá-los, enfim, é tarefa das mães num território rigidamente demarcado pelas leis sociais e culturais: o espaço da intimidade, do dentro do mundo, do interior e a subjetividade, o espaço da casa. (2000, p. 79)

A afirmação de Almeida não apenas sintetiza a compreensão de como a sociedade

impunha essa norma de comportamento, mas vai além pois demosntra que, apesar dos

lugares destinados aos homens e às mulheres, a situação é de complementariedade e, mas

do que isso, de necessidade um do outro.

- Guerra x Paz44. Os homens provocam a guerra, envolvem-se com ela, fazem dela

uma de suas atribuições, é como se ela lhes fosse inata; a paz é encontrada no repouso do

guerreiro, quando do regresso ao lar.

Cada um desses elementos não funciona sem o outro, seu correspondente. Há,

pois, uma complementariedade ou uma opositividade entre eles, mas um depende

necessariamente da existência do outro e, nas conseqüências das atitudes que envolvem

seus participantes, podemos ver a formação ou não de fronteiras.

Esses binômios, cujo funcionamento está associado à formação de fronteiras, sobre

os quais se poderia tecer um tratado individual para cada um, subrepticiamente aparecem

em nosso texto, pois, na obra em estudo, são essas as simbologias que estabelecem o

diálogo entre as personagens que chegam a parecer reais quanto à História, e ficcionais

porque frutos da literatura; é o estabelecimento do diálogo entre a literatura e a História que

Erico traça com maestria a ponto de confundir-se com a própria história do Rio Grande do

Sul.

44 VERISSIMO, Erico. Op. cit. p. 518

91

Há toda uma simbologia na existência de fronteira cultural, que existe no imaginário

dos que habitam ambos os lados da fronteira, por conta de uma questão de nacionalismo:

ser brasileiro e ser castelhano - uruguaio ou argentino. Há, em tese, um respeito aos

costumes, às leis, quando transpomos a fronteira geográfica, mas isso não significa que as

aproximações, as influências e até as admirações pelo diferente não povoem nosso ser,

nossa imaginação.

Quanto às personagens imaginadas por Erico, é notável e transparente a distância

que há entre as personagens femininas e as masculinas, quanto aos papéis que representam

na sociedade ficcionalizada por Erico. Enquanto as mulheres habitam o espaço interno da

casa, o oikós, expressão grega que significa o espaço da família, os homens usufruem os

espaços externos, da política, das lutas, das ruas, dos cabarés. O contraponto que o autor

traça entre ambas é ambivalente.

Ao mesmo tempo em que ele parece colocar a mulher reclusa ao domínio do lar, as

entrelinhas são primorosas, pois são Ana Terra, Bibiana, Maria Valéria,

entre outras, as responsáveis pela garantia do equilíbrio do lar e por

sustentar e dar continuidade à estrutura social. São, em realidade, as

personagens femininas que representam a força que não deixa

desmantelar a família; são elas que representam a firmeza de caráter que

passam aos descendentes. Elas são a memória do passado, por isso o

instinto de preservação; são elas, enfim, os grandes exemplos que o autor

transmite.

Louro elucida a questão dizendo:

O que importa resgatar aqui, nos parece, é que a manutenção do cotidiano é uma tarefa difícil e essa dependeu fundamentalmente das mulheres, no Rio Grande. Quando as coisas se complicam e os

92

homens se preparam para partir, uma das mulheres vai para a cozinha preparar um tacho de pessegada. O que talvez simbolize o comportamento de pés plantados no chão, um realismo que também é, ao mesmo tempo, um modo de fugir do medo de perder seus homens na luta. (1987, p. 23)

São elas, portanto, que ficam na guarda da casa e da família enquanto seus homens,

maridos, filhos, irmãos estão a correr mundo, em meio a uma guerra, ou a uma aventura

qualquer.

Bibiana Terra, por exemplo, apesar de todo amor e toda paixão por Rodrigo

Cambará, é de um caráter tão forte quanto sua avó Ana Terra, o símbolo, o mito,

o exemplo que percorre todo o romance. Acreditamos que não é por acaso o sobrenome

Terra, adotado por Erico. Terra significa o elemento de conservação e a continuidade das

raízes familiares e, por decorrência, serão essas mulheres que proporcionarão a estabilidade

e a ordem. Dessa forma, podemos ver claramente a relação entre a História e a literatura e

entendemos que é a apropriação que os historiadores fazem da literatura e os literatos

fazem de temas históricos que enriquecem seus escritos.

Não vamos extrapolar a caracterização das personagens pois

dedicamos o subcapítulo 2.1 para falar a esse respeito. As

considerações que aqui foram feitas vêm apenas para oferecer ao

leitor a idéia dos lugares ocupados por essas personagens, no

romance de Erico, o qual de certa forma, reflete a idéia da

sociedade da época, a respeito dos papéis destinados aos homens e

às mulheres.

93

Um dos questionamentos bem enfocados na obra de Erico é a questão lusitanidade

X platinidade, que já evocamos neste capítulo e que ocupou por tanto tempo os debates

entre os historiadores do Rio Grande do Sul.

Erico, em particular, ao conviver com as discussões sobre essas questões é

extremamente original, pois consegue contemplá-las em sua obra, sem se posicionar

especificamente sobre cada uma - pois esse não é o objetivo do romance – incluindo, pois,

as duas matrizes na estruturação de O Continente.

A historiografia regional nos esclarece sobre a pertença lusa ou espanhola do Rio

Grande do Sul. Sobre essa questão é Kühn quem constata:

A historiografia regional sobre o período da Dominação Espanhola (1763-1776) construiu uma representação idealizada do contexto demográfico existente durante os anos de ocupação castelhana no atual Rio Grande do Sul, procurando configurar uma situação de fronteira excludente no Rio Grande de São Pedro. Esta representação da história rio-grandense procurou constituir uma exclusão total das populações indígenas e espanholas no Continente do Rio Grande, também presente nas representações construídas pela historiografia de matriz lusitana acerca das Missões Jesuíticas ou sobre as relações luso-brasileiras com o Prata. Assim procurou excluir qualquer possibilidade de influência hispânica ou mesmo autóctone na formação rio-grandense, construindo um Rio Grande exclusivamente lusitano. (1999, p. 91-2)

Autores como Aurélio Porto, Emilio Fernandes de Souza Docca, Othelo Rosa,

Carlos Reverbel e Moysés Vellinho foram grandes defensores da corrente lusitana, como

vimos neste capítulo, assim como Manoelito de Ornellas, que já salientamos na página 74.

A importância desse autor reside no fato de ter contrariado os defensores da matriz lusitana,

centralizando sua tese na não divisão de "fronteiras político-administrativas da área platina,

destacando a unidade do Pampa e do gaúcho rio-grandense da fronteira, do Uruguai e da

Argentina, que apresentavam hábitos comuns, tradições, inclusive a música e a língua

94

semelhantes"45.

Como podemos perceber, Manoelito de Ornellas tematiza a presença platina na

sociedade gaúcha. Talvez a amizade, o convívio entre Erico e Ornellas, desde os tempos de

mocidade em Cruz Alta, o que certamente proporcionou-lhes inúmeras discussões, sejam

um ponto a ser analisado em futuros estudos, a respieto das informações que Erico possa ter

usado ao escrver o O Continenete.

Coube à História a discussão das matrizes de formação da sociedade gaúcha e, em

nosso entender, há uma mescla muito forte já na formação do povo português. Isso tudo

vem confirmar, pelo menos, a dualidade de matrizes formadoras dos sul-riograndenses: a

matriz lusitana e a matriz platina. Nosso entendimento alinha-se ao que diz Gutfreind:

A matriz lusitana foi desmistificada pelo próprio processo histórico, naturalmente fluindo construindo a história sul-rio-grandense. Seus representantes excluíram o período missioneiro da história gaúcha, no entanto, um monumento a Sepé foi erigido na área missioneira, nomes de padres jesuítas foram dados a escolas e outras instituições, não se restringindo apenas nesta área, peregrinações religiosas ainda são feitas a Caaró, nas Missões, onde padres jesuítas foram massacrados pelos indígenas. (1992, p. 146)

São pesquisas como essa que desmistificam as crenças que o imaginário popular

assimila e propaga. Podemos constatar, hoje, passados mais de trezentos anos da fundação

das Missões Jesuíticas, que a História desvelou a ineficácia do discurso lusitano. Rechaçar

o outro por que vive além da nossa fronteira, ou à sua margem, é questionar as identidades -

a deles, mas também a nossa - porque na medida em que falamos no outro, nós nos

referenciamos em relação a ele e aí sim podemos estabelecer diferenças, pois é na

substância do alter que nos constituímos como eu.

45 Cf GUTFREIND, I. Op. cit., p. 132.

95

O que desejávamos esboçar é que, através de uma obra ficcional que não rejeita os

fatos históricos, podemos estudar inclusive a história do Rio Grande do Sul, não apenas

abordando os seus heróis - como propunha a corrente positivista - mas principalmente

integrando-a a um contexto sócio-político, econômico, étnico e cultural.

CAPÍTULO II

DA FRONTEIRA ÉTNICO - CULTURAL À BUSCA DA IDENTIDADE

96

SUL - RIO -GRANDENSE

Neste capítulo, propomo-nos discutir a identidade sul-rio-grandense através da

questão do eu e do outro, considerando o que nos dizem vários autores entre eles Philippe

Poutignat & Jocelyne Streiff-Fenart, Fredrick Barth, as considerações que Erico Verisssimo

faz em seu romance, referindo-se à presença de lusos e espanhóis, bem como as explicações

de outros estudiosos que debatem essas questões.

A questão do eu e do outro pode nos conectar à questão do nós e eles. Como a

base de nosso estudo é a pendência entre as fronteiras nas quais os seres humanos

esbarram, desejamos saber até que ponto as fronteiras étnico-culturais46 distanciam ou

46 BARTH, Fredrik. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In. POUTIGNAT, Philippe & STREIFF-FENRT, Jocelyne. Teorias da Etniciade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 187. O autor afirma que "todo raciocínio antropológico baseia-se na premissa de que a variação cultural é descontínua: que haveria agregações humanas que, em essência, compartilham uma cultura comum e diferenças interligadas que distinguiriam cada uma dessas culturas, tomadas separadamente de todas as outras. Já que a "cultura" é apenas um meio para descrever o comportamento humano, seguir-se-ia que há grupos humanos, isto é, unidades étnicas que correspondem a cada cultura.FLORES, Moacyr. Dicionário de História do Brasil. Porto Alegre: EdPUCRS, 1996, p. 167. "Cultura é o conjunto de conhecimentos e comportamentos (técnica, economia, rituais religiosos e sociais) que caracterizam uma determinada sociedade humana. Não existe homem sem cultura: a idéia de homem no estado de natureza corresponde a uma hipótese filosófica. A palavra cultura, em muitas obras etnológicas, é entendia como sinônimo de etnia, de sociedade ou de civilização, mas foram numerosos os autores que se esforçaram por dar uma definição precisa ao termo.Sobre etnia podemos explicar através dos seguintes autores: BARTH, Fredrick. Op. cit. p. 141. " a etnicidade é uma forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciados". Ou ainda " estudo dos processos variáveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e são identificados pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles, estabelecidas a partir de traços culturais que se supõe derivados de uma origem comum e realçados nas interações raciais".FLORES, Moacyr. Op. cit., p. 199. "Do grego ethnos: povo, nação. Grupo de indivíduos que pertencem à mesma cultura (mesma língua, mesmos costumes, etc...) e que se reconhecem como tal. Diz-se também "grupo étnico". Esta noção que deveria ser fundamental

97

aproximam as pessoas, bem como explorar essa questão a partir do que podemos pesquisar

sobre a formação histórica do Rio Grande do Sul.

Nesse sentido, trabalharemos com os sujeitos, entendidos como os responsáveis pela

permanência ou pelas mudanças das coisas, enfocaremos o espaço, lugar onde esses

sujeitos vivem e manipulam as situações do cotidiano e, finalmente, focalizaremos o tempo

como objeto primordial da História e requisito da memória das personagens.

2.1. Dos Sujetos: identidades e fronteiras

A história da formação e do povoamento do Rio Grande do Sul suscitou, por longo

tempo, discussões acerca de ser, o atual estado, fruto de uma lusitanidade que não se

mesclou com outros povos, indígenas e espanhóis, por exemplo, e uma corrente que

procurou constatar e entender a existência de uma miscigenação étnico-cultural.

De acordo com Xavier:

A presença da figura do castelhano em várias manifestações da literatura sul-rio-grandense é fato que desperta interesse na investigação de sua permanência e transformação nesse sistema literário (...). A História Oficial e a História Literária do Rio Grande do Sul, (...) apontam uma possibilidade de resposta, por ter vivido o Estado sulino (...) o freqüente litígio de posse de suas terras pelas duas Coroas Ibéricas: Portugal e Espanha. (1993, p. 1)

No decorrer das leituras de O Continente, observamos Erico Veríssimo às voltas

com portugueses, espanhóis, índios missioneiros e, especialmente em A Fonte, início de O

Tempo e o Vento, é perceptível a fórmula, desdobrada pelo autor, do eu e do outro ou do

nós e eles, toda vez em que ele dispõe os castelhanos como os outros da fronteira. Esses

em Etnologia é de fato objeto de definições diferentes (quanto ao número e à escolha dos elementos que a caracterizam)

98

outros são os invasores e, como tal, inimigos das gentes do Continente de São Pedro, nesse

momento representada pela família Terra. Erico assim relata:

Combinaram tudo. Antônio sairia para se entender com os castelhanos enquanto os outros ficariam dentro de casa, preparados para tudo. Se os bandidos quisessem apenas saquear a estância, respeitando a vida das pessoas, ainda estaria tudo bem. Era só apear e começar a pilhagem... A gritaria continuava. Mãos fortes agarraram Ana Terra no ar, e puseram-na de pé. A mulher abriu os olhos: cresceram para ela faces tostadas, barbudas, lavadas em suor. (1999, v. 1. p. 120 - 21)

A expressão “Mira que guapa!” (Olha, que bonita!) nos produz a sensação de

desejo estampada nos olhos, nas palavras e nas mãos que profanam Ana Terra. Ou seja, é

uma representação do invasor ao apossar-se do que não lhe pertence. Reforça-se a idéia de

personae non gratas nas terras do Continente; é também uma maneira de dizer que com os

qualificativos de bandido, invasor, inimigo eles jamais poderiam integrar-se à formação

do homem do Rio Grande. A metáfora que se estabelece com a desonra que os espanhóis

provocam na personagem Ana Terra tem o significado de invasão às terras gaúchas, ameaça

à propriedade e conseqüentemente ao poder de uma nova elite que, aos poucos, vai se

formando, tomando por base personagens como o Capitão Rodrigo

Erico, embora não sendo historiador, soube traduzir os acontecimentos para traçar

um perfil que representasse o homem gaúcho, na pujança da construção de um estado e na

respeitabilidade que precisava ter perante as demais unidades federadas. Ora, não seria

unicamente um tipo qualquer, embora eles estejam representados entre os Carés, cafuzos,

mulatos, que personificaria o gaúcho,47 o qual, na extensão de guerras, lutas de fronteiras

conforme os autores. 47 Cf. CHAVES, Flávio Loureiro. Matéria e Invenção: ensaios de literatura. Porto Alegre: EdUFRGS, 1994, p. 52. O vocábulo gaúcho nem sempre possuíra um sentido heróico. No período colonial, o habitante da província era o guasca ou gaudério e tais termos designavam os aventureiros errantes que, ao lado de contrabandista fira-da-lei, povoaram a chamada "terra de ninguém", uma fronteira móvel e indistinta ao sabor dos conflitos internacionais travados no extremo

99

"fez" do Rio Grande do Sul um dos mais prósperos estados do Brasil.

O próprio Erico, ao se referir ao Capitão Rodrigo, disse. "Existe na mitologia oral

gaúcha uma imagem que é uma espécie de súmula de todos os heróis da sua história e do

seu folclore: o macho, o bravo guerreiro, o mulherengo, o homem generoso, impulsivo e

livre, principalmente livre" (CHAVES, 1996, p. 17).

Segundo a tradição popular a figura do Capitão Rodrigo Cambará é o protótipo do

gaúcho - o homem sul-rio-grandense na extensão da palavra. Se fôssemos buscar as origens

da personagem veríamos que ela descende de um tal Chico Rodrigues, que, em suas

andanças pelo mundo, complica-se com as autoridades e, sem muito pensar, muda o

sobrenome Rodrigues para Cambará. De Rodrigues deriva-se o nome Rodrigo e Cambará

nada mais é do que o nome de uma árvore, mas uma árvore forte.

No primeiro interlúdio da obra de Erico (1999, v. 1 p. 62), encontramos a descrição

que o próprio Chico Rodrigues faz de si mesmo: “Me chamo Francisco Nunes Rodrigues,

mais conhecido por Chico Rodrigues. Venho do planalto de Curitiba. Meus pais? Se tive,

perdi. Onde nasci não me lembro. Mas dês que me conheço por gente, ando vagando

mundo.”

Chico Rodrigues não tem passado, nem rumo certo, sua vida é o presente e o que

pode aproveitar dele. Essa personagem será o primeiro modelo que Erico se utilizará para

definir o código dos patriarcas de O Tempo e o Vento, já tratado na página 29.

Fazendo um paralelo com a história do Rio Grande do Sul, assim como Chico

sul. Em fins do séc. 18, mantida ainda a conotação pejorativa, esses homens são denominados gauxos. Apenas no século 19, ao completar a organização da estância como empresa visando o lucro, ocorre uma alteração profunda no significado do termo. Aparece então a palavra gaúcho para substantivar o peão, cujas tarefas primordiais são pastoris, mas podem vir a ser militares sempre que a propriedade e o território estejam ameaçados.

100

Rodrigues e depois o Capitão Rodrigo, aparecem na narração de Erico e, aos poucos, vão se

estabelecendo, mudando de vida, também a história do estado muda, tomando outras

conformações que se faziam necessárias. Chico Rodrigues, num dado momento de sua vida

assim exclama: "Resolvi mudar de vida, requerer sesmarias, fazer casa, parar quieto, ser um

senhor estancieiro, ter mulher, gado, cavalos e filhos, todos com a minha marca" (Erico,

1999, v. 1, p. 66).

Como as coisas se processam não é o que se pode chamar de orgulho. Chico

Rodrigues é um errante, mas quando decide mudar de vida o faz com certeza: rouba a filha

de um imigrante açoriano - e aí podemos vislumbrar a vertente lusitana já sendo enfocada -

e muda seu próprio nome, certamente para não ser reconhecido. Sobre seu descendente

direto, o Capitão Rodrigo, Erico assim descreve a personagem:

Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabe de onde, com chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido. - Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho! (1999, v. 1.,p. 171)

Essa é a descrição do autor que deseja representar pela indumentária, pelo porte

altivo, pelo olhar, um tipo diferente que chega a Santa Fé. Mas são as falas do próprio

personagem que, expressando-se sempre com orgulho, nos dão a sensação de um olhar

acima de seu interlocutor. Rodrigo Cambará é o gaúcho destemido, sem moradia fixa por

muito tempo, sem preconceitos e sem censura para seus atos. Sua vida é a guerra, seja qual

101

for e por que - afinal ele é um soldado e isso é o que sabe fazer de melhor - é subir no

lombo de um cavalo e cavalgar por outras paragens, pois "Cambará macho, não morre na

cama"48. Essa frase sintetiza a idéia de valentia, disseminada pelo imaginário popular, de

que dispõe todo gaúcho, pelo simples fato de haver nascido no Rio Grande. Rodrigo é

irriquieto, franco, e a monogamia não é o seu forte. Entretanto, é também leal, e a palavra

empenhada vale por uma assinatura; é, portanto, confiável porém desconfiado,

principalmente quando se trata de política.

Erico assim demarca o sentimento do personagem:

Escuta o que vou le dizer, amigo. Nesta província a gente só pode ter como certo uma coisa: mais cedo ou mais tarde rebenta uma guerra ou uma revolução. - Atirou ambos os braços para o lado, num gesto de despreocupação. - Que é que adianta plantar, criar, trabalhar como burro de carga? O direito mesmo era a nossa gente nunca tirar o fardamento do corpo, nem a espada da cinta. Trabalhar fardado, deitar fardado, comer fardado, dormir com as chinocas fardado... O castelhano está aí mesmo. Hoje é Montevidéo. Amanhã, Buenos Aires. E nós aqui no Continente sempre acabamos entrando na dança. (1999, vol. 1.,p. 179)

Erico reúne todas essas impressões, que a literatura alimentou, acerca da virilidade

do homem sul-rio-grandense, e as condensa no protótipo do Capitão Rodrigo Cambará.

Apesar dessa caracterização que Erico traça para o Capitão Rodrigo, não é do autor a idéia

de que a personagem representa o "monarca das coxilhas" ou o "centauro dos pampas", ou

o "centauro das coxilhas". Essas expressões fazem parte de um momento da história do Rio

Grande do Sul em que se desejava demonstrar que este era um Estado de homens valentes e

destemidos.

Marobin, referindo-se ao momento da chegada do Capitão Rodrigo a Santa Fé,

destaca:

O Capitão Rodrigo entra em Santa Fé com a postura de um monarca

48 VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento: O Continente. 1999. Tomo I, p. 203.

102

das coxilhas, como grande personagem no vasto palco que abrangia todos os espaços da pequena cidade dos pampas (...). Mas Érico Veríssimo não endossa a idéia do mito gaúcho, centauro das coxilhas. (1997, p. 97),

Temos, assim, a clareza de duas situações: uma, a existência do "monarca das

coxilhas", fruto da construção de uma imagem pelas elites tradicionais do Rio Grande do

Sul, ligadas à pecuária, que estava em crise, e outra, a confirmação de que essa idéia não é

de Erico Verissimo, à qual, portanto, ele não se associa para definir e destacar sua

personagem.

Quem é esse homem que chega a Santa Fé, vindo ninguém sabe de onde, com

rompantes de valentia e heroísmo? Ele tambémé, nesse momento, o outro, o forasteiro e,

por isso visto com um misto de desconfiança e curiosidade pela gente simples da cidade.

Mas ele vai se estabelecer e criar raízes e esse vai ser o modelo usado por Erico, ao traçar o

perfil do gaúcho.

Marobin ressalta que

O Capitão Rodrigo apresenta fortes componentes elaborados pelo subconsciente coletivo. Havia muito tempo que era a imagem que se fazia do gaúcho autêntico, nas lutas de fronteira, nas estâncias de criação de gado, nos rodeios, nas rodas de chimarrão, nos fandangos e nos galpões. Érico Veríssimo viu, pessoalmente, tipos como o Capitão Rodrigo em sua mocidade. Esses tipos de gaúchos fortes, valentes, livres, honrados eram tidos, havidos e aceitos como tais. (1997, p. 99)

Essa familiaridade que Marobin destaca de Erico com homens possuidores dessas

qualidades e que povoaram a memória coletiva sul-rio-grandense é, talvez, o maior fator

que o escritor usou para criar uma personagem tão peculiar como Rodrigo Cambará.

Mas o Capitão Rodrigo não é apenas a imagem veiculada pela memória popular.

Aliás, isto não é exposto claramente na obra de Erico. Essas são conclusões que os experts

103

na obra do autor buscaram em seus estudos, a respeito dessa personagem. Erico não declara

que suas personagens são representações de valentia, fortaleza, heroísmo, moral... Essas e

outras características são visualizadas pelos que se debruçam sobre a obra do autor e que

endossam a nossa pesquisa.

Embora o Capitão Rodrigo seja entendido como o representante do gaúcho, Erico

enfoca também o seu arqui-rival Bento Amaral, bem como seu pai, o Cel. Ricardo Amaral,

o "senhor" de Santa Fé, quando da chegada de Rodrigo.

Os Amaral - Ricardo, o patriarca e Bento, o filho - também não

escapam a esse protótipo. Se o capitão Rodrigo reitera a imposição

de sua marca - na mulher, nos filhos, no gado, nos cavalos e no rival

Bento Amaral, o Cel. Ricardo como político, é mais ladino ao fazer

quase as mesmas afirmações, como no exemplo a seguir em que ele

dialoga com o capitão.

- Conheço um homem até pela maneira como ele anda vestido. Esse seu lenço vermelho é sinal de

fanfarronice.

- Coronel, vosmecê está enganado. (...)

- Meu avô costumava dizer que homem também se doma, como cavalo. - Nem todos. - Pois le pego pela palavra. Se vosmecê é potro que não se doma, muito bem, é porque não pode viver no meio de tropilha mansa. Seu lugar é no campo. Neste potreiro de Santa Fé, moço, só há cavalo manso. Chegam xucro mas eu domo e boto-lhes a minha marca. (O Continente, 1999, v. 1., p. 209-10).

As palavras do "comandante" de Santa Fé são, ao mesmo tempo, um aviso para que

104

o capitão Rodrigo se submeta às suas ordens, como fazem todos os moradores de Santa Fé.

Rodrigo Cambará e Ricardo Amaral são, na realidade, duas personalidades fortes, que não

se dobram por nada, e comungam valores muito semelhantes como é o caso da honra, uma

das qualidades cultuadas pela classe dominante que se reproduz ou é aceita pelas camadas

populares. É interessante à elite dominante que os demais respeitem a terra alheia, o filho

alheio, a mulher alheia; é, portanto, toda uma construção ideológica que essa elite impõe

sobre todos.

O exemplo extraído de Erico pode tornar mais claro nosso entendimento:

Por aqueles dias de fins de março o Pe. Lara procurou Rodrigo e contou-lhe que o Cel. Amaral o

chamara para "tratar do assunto".

-Que assunto? -O duelo.

(...) -Me pediu que falasse com vosmecê e lhe dissesse que ele não aprova o que o filho fez. (...) Estava furioso. Chegou a dizer: "Nunca nenhum Amaral fez isso. Foi uma traição indigna dum homem de bem e de coragem." (1999, vol. 1, p. 245)

A qualidade "honra" não é requisito especial das personagens de Erico, nem de uns

e outros gaúchos, mas de “todos”, independentemente da posição social que ocupem no

romance e na vida real. Valentia, honra, impetuosidade é a imagem construída pela elite

tradicional, ligada à terra e à agropecuária, e que passou para o imaginário popular.

Rodrigo Cambará na obra de Erico, simboliza "o vento, conota deslocamento,

irrequietude, e, às vezes, irresponsabilidade" (MAROBIN, 1997, p. 107). Ele é a

personagem-síntese das qualidades do homem do Rio Grande, reproduzidas por Erico

Verissimo.

Ao simbolizar o "vento"49, Rodrigo Cambará confirma a descrição do homem sem

fronteiras. O vento ocupa todos os espaços, não tem lugar certo, não tem parada fixa. O

49 MAROBIN, Luiz. A Literatura no Rio Grande do Sul: aspectos temáticos e estéticos. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985. "O vento é o anunciador simbólico do perpassar sucessivo dos acontecimentos históricos. Visualiza a história da terra, das coisas e dos homens. De modo especial conota o homem que se desloca para os campos de lutas das fronteiras".

105

vento leva e traz pessoas, coisas, incertezas. O vento é um vaivém constante, às vezes com

lentidão, às vezes em fúria.

Assim como o vento, cujos espaços são incertos, também o Capitão Rodrigo não

tem parada; sua vida é um constante ir e vir. As fronteiras para essa personagem são

totalmente transponíveis, quer as geográficas, quer as culturais. Rodrigo não encontra

obstáculos para os seus intentos, para a sua vontade, para os seus desejos.

A respeito da origem étnica do gaúcho, Reverbel oferece sua contribuição,

explicando:

O gaúcho primitivo teve origem étnica na mestiçagem entre espanhóis, portugueses e índios. A contribuição indígena, nessa mescla, era mais acentuada no tipo platino. Entre as heranças portuguesas e espanholas, recebeu o cavalo e a faca, utensílio da maior importância. Servia de arma e era o único instrumento de trabalho no abate do gado e na preparação da courama. E como sua alimentação era quase exclusivamente a carne assada, bastava-lhe a faca para poder devorá-la, nos primeiros tempos sem sal. Do índio ficou com as boleadeiras, o poncho, o mate e a "vincha", esta usada principalmente no pampa rio-platense, incorporaram à sua linguagem elementos indígenas e, em menor escala, negros, mesclando-os ao português e ao espanhol, com arcadismos de ambos os idiomas e mútuas interpretações e influências. (1996, p. 84)

Entendemos que a visão que se faz do gaúcho integra o imaginário social coletivo

que transporta a representação do gaúcho como sinônimo de todos os homens sul-rio-

grandenses. O imaginário social 50 é um mecanismo eficiente e eficaz naquilo que se quer

(re)produzir, colaborando para o exercício do poder e da autoridade constituída, que, por

isso, se torna legítima.

No Rio Grande do Sul, o imaginário social do gaúcho oportunizou a criação de

identidades, baseadas no poder local atribuído aos senhores de terras, bem como uma

identidade regional que se mantém ainda hoje. É Padoin apud QUEVEDO que nos respalda

50 PESAVENTO, Sandra J. A Invenção da Sociedade Gaúcha. Ensaio FEE, Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística, v. 14, n. 2, 1993. pp. 383-396. "(...) elaboração em cada sociedade, de um sistema de idéias-imagens de representação coletiva. A isso dá-se o nome de imaginário social, através do qual as sociedades definem a sua identidade e atribuem sentido e significado às práticas sociais. O imaginário é sempre representação, ou seja, é a tradução, em imagens e discursos daquilo a que se chama de real".

106

a fala ao explicar que o gaúcho:

(...) É transformado em figura heróica, símbolo regional, porém com destacáveis características patrióticas nacionais. Essa imagem foi construída especialmente a partir do Partenon Literário, do Partido Republicano Rio Grandense (PRR) de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul e pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). A produção da elite intelectual do Rio Grande do Sul a partir de uma cultura popular e da campanha colaborou na construção da identidade regional; identidade assim vinculada a um espaço geográfico, a um passado histórico próximo, a ideais republicanos e à narrativa literária. Ou seja, a identidade regional do Rio Grande do Sul foi resultante da produção da elite intelectual comprometida, que buscou na sociedade latifundiária-pecuarista-militarizada-caudilhista o elemento que unificaria o que hoje conhecemos como cultura rio-grandense ou cultura gaúcha. Assim, buscou-se no gaúcho, figura pertencente à cultura popular, a representação do que seria a cultura oficial de um Estado, que sente-se uma nação gaúcha. Construção testemunhada e sedimentada pela historiografia e literatura. (1999, p. 375)

O gaúcho é tratado pelo imaginário popular como o herói destemido que luta por

tudo aquilo em que acredita, seja uma boa peleja como a Revolução de 1893 ou a

Revolução Farroupilha, seja pelos valores morais e familiares que a ele são muito caros e

de valor inestimável. Mas essa é uma imagem cultuada principalmente pela literatura

gaúcha. Por esses motivos podemos nos valer das palavras de Zilberman para

compreendermos que

(...) o gaúcho é um indivíduo inserido numa ordem social, que defende, ao incorporar suas idéias e lutar por elas até a morte. Mas, ao mesmo tempo, integra-se a uma ordem natural, na medida em que tem afinidades com o espaço - o pampa, a Campanha - e que são os animais, sobretudo o cavalo, seus maiores companheiros. A fraternidade entre os homens de classes diferentes e a continuidade entre o indivíduo e o cenário físico asseguram a índole globalizante do mundo regional. A sua auto-suficiência resume-se no fato de que abrange tudo o que é necessário à sobrevivência e felicidade do ser humano, de modo que não apenas conforma um cosmos, como expele tudo o que lhe é estranho. (1980, p. 36)

Erico Verissimo valeu-se do povo gaúcho para estruturar a idéia de que "o homem

deve ser, antes de tudo livre, honesto e honrado. É esse gaúcho que serviu de fonte de

inspiração da elaboração de O Continente" (MAROBIN, 1992, p. 54).

107

A familiaridade que Erico mantinha com os historiadores e intelectuais das décadas

de 1930-1940 certamente influenciou de alguma maneira, a interpretação do que o escritor

via e ouvia, para a tessitura de sua personagem Rodrigo Cambará. "No contexto rio-

grandense, o Capitão Rodrigo sempre aparecerá como imagem arquetípica de homem

valente. Na intuição de Érico Veríssimo, apenas isto: homem honrado e livre" (MAROBIN,

1997, p. 101).

As personagens femininas que escolhemos para enfocar são: Ana Terra, Bibiana

Terra Cambará, Maria Valéria Terra e Luzia Silva Cambará. As três primeiras personagens

contemplam, cada uma a sua maneira, mas todas com o mesmo objetivo, a estrutura de

preservação da família. Elas são o que poderíamos chamar de esteio da família, de alicerce

que suporta toda a carga de violência, paixão, moral, na defesa da estrutura familiar. Luzia

será aquela que vem para subverter a ordem das coisas na família Terra-Cambará, e em

Santa Fé, como veremos adiante.

Chaves ao se referir a essas personagens, considera que

Enquanto os guerreiros e caudilhos se destróem na coxilha, a continuidade da existência fica assegurada pelas personalidades verdadeiramente fortes das mulheres que defendem o Sobrado e escutam o passar do vento na longa espera de que a paz se restabeleça. Todas elas (...) derivam de uma só raiz que está localizada na personalidade de Ana Terra - inicialmente presença física, mais tarde memória viva daquele universo mítico de natureza tão cerrada que, uma vez rompido na arremetida da civilização, já não pode ser recomposto nem restaurado. (1981, p. 76)

Essas dramatis personae também representam uma fronteira. A fronteira que não

deixa a ordem das coisas ser subvertida, apenas por que seus homens estão fora, pois elas

são as responsáveis pela seqüência da vida, pela manutenção da casa e do lar.

Um ponto nos chamou a atenção: a única personagem feminina de Erico Verissimo,

108

que percorre todo o romance carregando o sobrenome é Ana Terra que, em nossa ótica,

recebe um destaque que não é atribuído às demais personagens. "Ana Terra representa

raízes profundas na terra, no povo, nas tradições, no inconsciente coletivo. Mas é antes de

tudo, uma criação literária, sem esquecermos as circunstâncias gaúchas" (MAROBIN,

1997, p. 102). Ou seja, não podemos querer encontrar Ana Terra em alguma mulher que

conheçamos. Ela é uma personagem-síntese, mas é produto da ficção e, assim como o

Capitão Rodrigo é o protótipo do homem sul-rio-grandense, Ana Terra representa a

imagem da mulher gaúcha, ancestral digna, corajosa, que redige seu destino e sua história.

Erico Verissimo, de acordo com o que nos informa CHAVES (1994, p. 58),

indagado a respeito de Ana Terra disse: "Eu penso nela como uma espécie de sinônimo de

mãe, ventre, raiz, verticalidade (em oposição à horizontalidade nômade dos homens),

permanência, paciência, espera, perseverança, coragem moral..." É possível percebermos a

ligação de Ana Terra, a representante do gênero feminino, com a terra, a qual pressupõe a

segurança. Quando se fala em "terra", no romance de Erico, o que se percebe é a imposição

da grande propriedade que representa, nesse momento, por conta de uma estrutura político-

econômica, a força e o poder instituídos pela classe dominante.

Essas qualidades reveladas pela personagem Ana Terra perpassam todo o

romance. Ela é, sem dúvida, das personagens femininas, a que mais significados tem; é a

imagem de mulher-forte, o suficiente para resolver o que for preciso, sem necessariamente

depender dos homens.

A personagem Ana Terra, embora tenha tido seus encontros com Pedro Missioneiro,

resultando na concepção de Pedro Terra, nela "são apenas insinuadas as características de

imagem primordial feminina" (MAROBIN, 1997, p. 105).

Uma passagem de Erico ilustra essa questão.

109

Pedro nunca pudera descobrir a razão por que a mãe tinha tanta malquerença pelos homens em geral. Às vezes fugia deles como diabo da cruz. Era com freqüência que falava, com má vontade e repugnância, em "cheiro de homem". Não gostava que Pedro fumasse perto dela; dizia que isso era falta de respeito, mas o filho sabia que havia uma razão mais poderosa: sarro de cigarro era "cheiro de homem". (1999, v. 1., p. 187)

Ana Terra, nesse sentido, se anula. Só amou um homem, o

índio Pedro Missioneiro, mas foi violada por muitos. Assim como a

terra do Continente de São Pedro era cobiçada por portugueses,

espanhóis, castelhanos e brasileiros, e disputada por todos, assim

podemos visualizar Ana Terra, como a representante dessa terra, até

a presença dos castelhanos.

O que se destaca mesmo na personagem é a força com que ela conduz sua vida e a

de sua família, desde sua saída do que restou do rancho, após o ataque castelhano, até a sua

chegada e estabelecimento nas terras de Santa Fé. Erico aponta-nos com um exemplo.

Pela madrugada Ana acordou e ouviu o choro da cunhada. Aproximou-se dela e tocou-lhe o ombro com a ponta dos dedos. - Não há de ser nada, Eulália...

(...) - Que vai ser de nós agora? - choramingou Eulália. - Vamos embora daqui. - Mas para onde? - Para qualquer lugar. O mundo é grande. (1999, v. 1., p. 126-27)

Ana Terra, como se pode observar, transcende o mundo feminino. Ela fala por si e

pelos outros membros de sua família. Afinal, é ela quem tem que resolver tudo sozinha,

diante da fragilidade da cunhada, ela é a porta-voz autorizada na resolução do destino de

toda a família

110

Bibiana Terra Cambará é a segunda personagem importante

retratada por Erico Veríssimo, que assim a descreve:

Bibiana, já no físico, exibe a marca dos Terras: "tinha um rosto redondo, olhar oblíquo e uma boca carnuda em que o lábio inferior era mais espesso que o superior. Havia em seus olhos, bem como na sua voz, qualquer coisa de noturno e aveludado". Presa do seu irrequieto companheiro, que se assenhoreou da sua alma com um único olhar atrevido, sofre em silêncio, com resignação fatalista, as suas infidelidades e turbulências.

(...) Há, porém, na sua calma e aparente frieza, uma tenacidade que se diria telúrica. Para conquistar o Sobrado para o filho e após a morte deste, conservá-lo para o neto, a sua alma indevassável deixará entrever sede de domínio, astúcia implacável, dureza e crueldade. (1999, v. 1., p 185-86)

Pela descrição de Erico, Bibiana é uma moça bonita. Personalidade forte, rende-se,

apesar disso, aos encantos de Rodrigo Cambará por quem se apaixona e se sacrifica,

aceitando as atitudes aventureiras e conquistadoras do marido.

O leitor desavisado, concluiria que Bibiana é uma personagem frágil. Mas ela é

como sua avó Ana, tenaz e objetiva principalmente quando os seus interesses estão em

jogo.

Bibiana tinha crescido à sombra de Ana Terra, com a qual aprendera a fiar, a bordar, a fazer pão e

doces, e principalmente a avaliar as pessoas. Depois que Ana Terra morrera, Pedro às vezes

tinha a impressão de que ela continuava a falar pela boca da neta. Bibiana repetia frases da avó.

Quando à noite ventava e eles estavam dentro de casa em silêncio, esperando a hora de irem

para a cama, a moça de repente murmurava: "Noite de vento, noite dos mortos.(1999, v.1, p.

186-187)

Se Ana Terra é a personagem que representa a força feminina,

que não se dobra diante de nenhum obstáculo, que não se curva

frente à imposição dos homens, Bibiana é a representante das

111

virtudes do lar e, na ausência do Capitão Rodrigo, é ela quem decide

tudo. Ao mesmo tempo ela é a contínua espera de que Rodrigo volte

sempre para ela. Por isso "Bibiana simboliza o tempo" (MAROBIN,

1997, p. 107), a espera, o espaço dedicado ao repouso do guerreiro.

Embora em planos temporais diferentes, a figura de Ana Terra permeia o O Tempo e

o Vento. Podemos vê-lo nas recordações da personagem, retratadas por Erico:

- Meu pai e meu irmão foram enterrados no alto duma Coxilla. - Mostrou-lhe as mãos murchas. - Eu mesmo enterrei os dois com estas mãos que a terra um dia há de comer... (1999, v. 1, p. 184-85).

Podemos encontrá-la também através das representações simbólicas: a tesoura e a

roca herdadas por ela herdadas:

Passaram-se meses e um dia, quando ela viu que o ventre de Eulália começava a crescer, pensou logo na sua tesoura.

(...) A roca ali estava, velha e triste, e Ana Terra sentia-se mais abandonada que nunca, pois agora nem o fantasma da mãe vinha fazer-lhe companhia (1999, p. 144).

Outra representaçào é a vela de Maria Valéria "a iluminar não só os desvãos do

Sobrado, mas os do caráter dos homens de Licurgo" (Bordini, apud GONÇALVES, 2000,

p. 61), e o punhal de Pedro Missioneiro.

Essas recordações são preciosas para Bibiana, que se espelha em Ana Terra para

tomar certas decisões, como por exemplo na firmeza com que conduzirá a família após a

morte do capitão Rodrigo.

Numa retrospectiva de Erico temos clara a personalidade de Bibiana:

Quando o dia de finados chegou, Bibiana foi pela manhã ao cemitério com os dois filhos. Estava toda de preto e agora, passado

112

o desespero dos primeiros tempos, sentia uma grande tranqüilidade (...). Mentalmente Bibiana conversava com Rodrigo, dizia-lhe coisas. Seus olhos estavam secos. Às vezes parecia que ela toda estava seca por dentro, incapaz de qualquer sentimento. No entanto a vida continuava, e a guerra também. A Câmara Municipal de Santa Fé tinha aderido à Revolução (...).Diziam que os imperiais tinham de novo tomado Porto Alegre. Bibiana não sabia nem queria saber se aquilo era verdade ou não. Não entendia bem aquela guerra. Uns diziam que os Farrapos queriam separar a Província do resto do Brasil. Outros afirmavam que eles estavam brigando porque amavam a liberdade e porque tinham sido espezinhados pela Corte. Só duma coisa ela tinha certeza: Rodrigo estava morto e rei nenhum, santo nenhum, deus nenhum podia fazê-lo ressuscitar. Outra verdade poderosa era a de que ela tinha dois filhos e havia de criá-los direito, nem que tivesse de suar sangue e comer sopa de pedra. O pai a convidava a voltar para casa. Mas ela queria ficar onde estava. Era o seu lar, o lugar onde tinha sido feliz com o marido. (1999., vol. 1, p. 308-09)

Compreendem-se os traços com que Erico delineia a

personalidade de Bibiana como a representante do esteio do lar.

Bibiana é a figura forte que preserva a todo o custo o que é seu: sua

casa, seu lar, sua família. A morte do Capitão Rodrigo não a tornou

frágil, ao contrário, será ela que conduzirá, à sua maneira, os

destinos da família Terra-Cambará.

Bibiana e Ana Terra quase que se fundem em uma mesma mulher-personagem,

guardadas as distâncias temporais. Ana situa-se no início da saga da família Terra quando

da formação de O Continente; é toda a representatividade de uma força interna que a faz

imensamente maior que os homens - pai e irmãos - de sua família. Pedro Terra é o seu

filho, mas é a neta Bibiana - duas vezes Ana - que dá continuidade ao vigor dos Terra.

As personagens de Bibiana e Ana Terra apresentam várias semelhanças na

113

narrativa: Ana amou Pedro Missioneiro, enfrentou os homens da família e criou sozinha o

filho e, em certa medida enfrentou o bando armado, que atacou sua morada e violentou-a.

Depois disso, partiu, com o que restou da família, em busca de um bom lugar para viver.

Bibiana é, em certa medida, uma revolucionária em sua época quando, ao se

apaixonar pelo desconhecido capitão Rodrigo, desafia o estabelecido e luta por esse amor,

sofre com ele e por ele, mas luta. Cria uma situação de animosidade entre os Terra e os

Amaral, já que Bento Amaral, o herdeiro mais rico e mais importante de Santa Fé, havia

deitado os olhos sobre ela.

Moraes chama-nos a atenção para um ponto de alta significância. O autor assim se

expressa.

Nada (...) é tão sugestivo como o contraste entre Rodrigo e Bibiana, duas poderosas criações do romance, que se unem pelo amor, impelidos não por afinidades eletivas, mas pela fatalidade irresistível dos seus pólos contrários.

(...)

O Capitão Rodrigo, veterano da Cisplatina, homem alvo e louro, é todo instinto e impulso. Nele, o desejo sexual se confunde com a sensação de fome. Másculo até o exagero, peleador por gosto, mas de coração generoso, ama com paixão a vida, o prazer, a mulher, o jogo, a bravata. Ao lado disto, incréu, irreverente, instável, andarengo, aventureiro... (1959, p. 222-23)

O contraste de que fala o autor são o entendimento da vida, as questões morais e

psicológicas, os objetivos, as fatalidades que cercam essas duas personagens, tão

contrastantes e tão próximas, ao mesmo tempo.

Maria Valéria, a personagem que vagueia pelo Sobrado quase como uma sombra é,

na realidade, a personagem mais sensata em determinado ponto do romance. Ela é uma

espécie de consciência e sua figura e modo de ser contrariam a ordem pré-estabelecida

pelos homens. Ela representa a moral feminina, inerente às mulheres gaúchas, de acordo

com a imaginário popular, que vem ao encontro da representação das elites que perpetuam

a dominação da mulher e das classes desfavorecidas.

114

Almeida in GONÇALVES assim descreve a personagem:

Esta figura feia, seca, sem a graça feminina de Alice, sua irmã, virgem e solteirona, traz sua força num corpo que, ao não cumprir com a prescrição patriarcal às mulheres, não se divide. É a Dinda, a Madrinha, a que cuida e protege, sem ser mãe; sombra, matriarca sem descendência, que na estranha configuração de seu perfil vem perguntar sobre o feminino: é vulto, fantasma, sombra. (...) é guardiã da memória das mulheres; (...) não se enquadra na caracterização do corpo feminino dividido. (...) Uma sombra, um vulto, um fantasma. Uma vela acesa e a descoberta de um conhecimento ainda não revelado. O saber das mulheres e seus silêncios. (2000, p. 81)

Ao invés de sombra, como a princípio pode parecer, o que, portanto, caracterizaria a

inexpressividade de Maria Valéria, ela , no entanto, é a luz que faz com que as coisas no

Sobrado perdurem. A personagem pode ser vista como a antípoda do gênero feminino, já

que ela não se casa, mas tem uma casa para administrar; não tem filhos, mas cuida dos

sobrinhos; e, finalmente, não tem os atributos femininos das demais personagens, mas tem

uma força e uma moral irreparáveis.

Erico emite uma fala de Maria Valéria, conversando com Licurgo, seu cunhado,

demonstrando a personalidade dessa personagem.

- Ter filhos é que é negócio de mulher, eu sei - continua Maria Valéria. - Criar filhos é negócio de mulher. Cuidar da casa é negócio de mulher. Sofrer calada é negócio de mulher. Pois fique sabendo que esta revolução também é negócio de mulher. Nós também estamos defendendo o Sobrado. Alguma de nós já se queixou? Alguma já lhe disse que passa o dia com dor no estômago, como quem comeu pedra, e pedra salgada? Alguma já lhe pediu pra entregar o Sobrado? Não. Não pediu. Elas também estão na guerra. - Está bem, prima. Está bem. Mas tudo é uma questão de horas. Os federalistas estão perdidos. Amanhã a cidade pode amanhecer livre. - E a Alice pode amanhecer morta. Ela ou o filho. Ou os dois. - Ou todos nós - diz Licurgo com voz apertada de rancor. - Ou todos nós - repete Maria Valéria. (1999, v. 1, p. 11)

115

Essa personagem, que tantas vezes foi esquecida no romance como uma mulher de

somenos importância é, em nossa ótica, a consciência moral que não deixa o microcosmo

do Sobrado perecer. Ela é a luz que ilumina quando tudo está prestes a perecer. Ela é, sem

dúvida, a que está em constante alerta, protegendo a tudo e a todos.

Em duas outras passagens do romance (Erico, 1999, v. 1, pp. 15, e 324),

encontramos Maria Valéria sempre atenta a tudo o que está acontecendo. É ela quem deve

dar força ao cunhado, sitiado, como todos os demais, no Sobrado; atender a irmã,

praticamente moribunda, tomar conta dos sobrinhos, crianças ainda, que são os

descendentes dos Terra-Cambará, herdeiros do Sobrado e do Angico e da política de Santa

Fé.

Maria Valéria acende uma vela nos tições e com ela atravessa a sala de jantar na direção da despensa. A chama ilumina-lhe o rosto descarnado e severo, um rosto anguloso e sem idade, mas de grandes olhos escuros e lustrosos. Tem de caminhar com cuidado pra não pisar nos homens que dormem no chão, agarrados às suas armas. Suas narinas inflam: cheiro de homem. Suor antigo, sarro de cigarro, couro curtido. Um cheiro quente, azedo, penetrante, repulsivo. - Vou mandar a Laurinda defumar esta sala...

(...) A lamparina arde junto da cama de Alice, que dorme um sono desinquieto de febre. E Licurgo, que há pouco se deitou vestido ao lado da mulher, dorme também. Sentada numa cadeira junto ao lavatório, Maria Valéria está de vigília, encolhida sob o xale, os braços cruzados a apertar a boca do estômago. O frio a deixa como que anestesiada, incapaz de sentir o que quer que seja: tristeza, compaixão ou esperança. O que a mantém de pé a ajudar sua gente é ainda um sentimento de dever que lhe vem principalmente do hábito. D. Bibiana tem razão: as mulheres no Rio Grande são direitas e cumprem suas obrigações por puro cacoete, e cacoete hereditário...

Maria Valéria pode ser vista como a personagem feminina menos glamourosa,

menos passional, já que não se casa, não tem filhos, não tem os atributos das demais

personagens. Por outro lado, e entendemos que aí justamente reside sua expressividade, é

ela que, de certa maneira, toma o lugar de Bibiana e que um dia já fora de Ana Terra, como

116

guardiã e esteio da família. A personagem interpõe uma fronteira, afinal ela é Maria Valéria

Terra, a figura silenciosa, quase invisível, mas que se apresenta de ponta-a-ponta no texto

de Erico, questionando as certezas e exercitando as dúvidas e, agora, de certa maneira, a

nova "Senhora do Sobrado".

São essas personagens que, de certo modo, garantem que os homens se envolvam

nas guerras, lutas, aventuras e que demonstrem todo um lado varonil, destemido, corajoso,

macho, hospitaleiro. Na realidade isso é o estereótipo do gaúcho, considerando-se que não

se pode caracterizar um tipo e elegê-lo como representante do gaúcho do litoral, dos

pampas, da serra, da capital ou das cidades do interior pois têm, cada qual, as suas

peculiaridades.

Se Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria compõem o tripé feminino de sustentação da

família Terra-Cambará e tudo o que ela representa em termos de moral e conduta ilibadas,

Luzia Silva - a Teiniaguá é a personagem que vem para, de certa maneira, corromper essa

estrutura.

Luzia Silva é a moça que vem de fora do Continente. Bonita, rica e com maneiras

bem diferentes dos habitantes de Santa Fé, ela encarna a imagem da Teiniaguá51. "Nela

convergem, de um lado a plasticidade da forma sedutora de mulher-diabo e, de outro, os

inquietantes mistérios do além, do mal e da fraqueza humana" (MAROBIN, 1997, p. 117).

Essa personagem vai, aos poucos, desestabilizar a ordem imposta à cidade por seus

próceres, apresentando-se como a mulher dissimulada que conquista e seduz, e é

alimentada pela maldade e pela vingança.

Ao desestabilizar a ordem, ditada pela moral dos santa-fezenses, Luzia estabelece

117

uma fronteira cultural entre ela e os habitantes da cidade, pois tudo nela é diferente. Nas

crendices do povoado de Santa Fé, Luzia lembra a Teiniaguá.

Marobin documenta que:

Em O Continente, Érico Veríssimo não questiona a realidade da Teiniaguá. Ela apenas estabelece um referencial e um ponto de partida literários. Os horizontes da Teiniaguá, ora se alargam para lá das planícies e coxilhas dos pampas, ora se estreitam, se afunilam em mergulhos no subconsciente do povo. Nessa atmosfera a Teiniaguá fixou-se no subconsciente coletivo a partir da cultura dos índios guaranis das Missões dos Sete Povos à beira do rio Uruguai. (1997, p. 124)

A personagem Luzia age, no romance, de forma coerente com sua maneira de ser.

Ela é bonita e sedutora e nesse sentido, para a cultura popular, ela teria parte com o diabo.

Assim compreende-se que Luzia age como a Teiniaguá, usando todos os seus atributos

femininos para atingir seus objetivos, seus caprichos.

Marobin (1997, p. 126) disserta que a Teiniaguá, em O Continente aparece em duas

versões: a versão tradicional e a versão criada por Erico. Para caracterizar a imagem

tradicional, Erico assim se expressa, destacando as características físicas de Luzia, através

da personagem do Dr. Winter que se impressiona com os olhos da moça

... Eram grandes e esverdeados... Ou seriam cinzentos? Era difícil chegar a uma definição, pois lhe parecia que eles mudavam de cor de acordo com os dias ou com as horas. Possuíam uma fixidez e um lustro de vidro e pareciam completamente vazios de emoção. Winter descobrira que Luzia fitava as pessoas com a mesma indiferença com que olhava para as coisas: não fazia nenhuma distinção entre o noivo, uma mesa ou um bule. Pobre Bolívar! Winter achava absurdo que duas pessoas tão desiguais estivessem para casar, morar na mesma casa, dormir na mesma cama e juntar-se para produzir outros seres humanos. Bolívar mal sabia ler e assinar o nome: era um homem rude. (...) quanto ao rapaz era

51 Teiniaguá. Cf. NEUMANN, Erich. The Great Mother - An analysis of the archetype. London: Routledge, 1955. Apud MAROBIN, Luiz Imagens Arquetípicas em O Continente, de Erico Veríssimo. Porto Alegre:EdUNISINOS, 1997. Traça o perfil da mulher que é, ao mesmo tempo, mãe dominadora, cruel, sedutora, misteriosa, feminina, primordial.

118

natural que estivesse fascinado por ela. Winter sabia o quanto era difícil desviar os olhos de seu rosto. (1999, vol. 2., p. 352-53)

A partir dessas características marcantes na fisionomia de Luzia, Erico traça o

perfil da personagem, que se mostra frio e insensível.

Luzia abriu o leque e começou a abanar-se serenamente. -Vosmecê não acha, doutor - perguntou ela - que ser bom ou ser mal é uma questão de mais ou menos coragem? -Hein? - fez o médico, perplexo, a coçar o queixo com dedos frenéticos. - Quer dizer então que bondade é sinônimo de covardia? -E o senhor acha que não é? Nunca pensou que ser bom é a coisa mais fácil do mundo? E que qualquer pobre-diabo pode se dar o luxo de ser bom? O Dr. Winter ergueu ambos os braços e depois deixou-os cair, batendo com força nas coxas com as palmas das mãos. (...) Mas o diabo - pensava - era que de certa maneira misteriosa Luzia parecia Ter alguma razão. Era preciso uma pessoa Ter muita coragem para dar expressão a todos os seus desejos e sentimentos maus. Sim, ser bom era fácil. A teiniaguá não se deixava apanhar facilmente. (1999, v. 1, p. 379-80

Luzia é uma personagem que Erico faz questão de mostrar falando, gesticulando,

fitando as pessoas, e temos que considerar que, em momento algum ela nos parece

hipócrita. Entre seus objetivos, Luzia agride as pessoas simples de Santa Fé, as quais não

estão preparadas para ouvir as suas idéias e expressões que não correspondiam à maneira

como os santa-fezenses viam o mundo.

Marobin destaca ainda um outro ponto significativo:

A imagem arquetípica da personagem Luzia-Teiniaguá insere-se na galeria das grandes criações literárias do Rio Grande do Sul. A imagem mítica tem a sua base no subconsciente coletivo do povo gaúcho. Partiu de resíduos históricos das Missões Guaranis. No romance acentua a exuberante plástica das formas femininas. Espalha maldade através do feitiço dos olhos verdes de réptil traiçoeiro. Essa é a versão popular, herança das Missões dos Guaranis. (1999, p. 129-30)

São tipos como Luzia, também existentes no imaginário sul-rio-grandense, que

questionam constantemente a ordem préestabelecida pelos homens, o que para a maioria

119

das mulheres é passível de aceitação. Embora comparada à Teiniaguá, entendemos que sua

presença tem importância vital na condução do romance, pois é quando o autor, Erico

Verissimo, pode mostrar que o inconformismo com a ordem aparente é resultado de que no

Rio Grande do Sul as mulheres pensam, questionam e enfrentam a realidade.

Vemos essa personagem não apenas como a "mulher-diabo", bruxa ou quaisquer

outros atributos negativos, mas como aquela que pode trazer as mudanças necessárias para

a sociedade. Em termos de Rio Grande do Sul, suas atitudes em não se calar diante do que

vê e ouve, em bater de frente com Bibiana, em enfrentar os costumes e a moral de Santa Fé,

são exemplos de que nesse estado as coisas nunca foram pacíficas; é um estado que se

forjou na luta pela conquista do seu espaço, extrapolando sua própria territorialidade,

movimentando as fronteiras para além do continente e estabelecendo suas marcas. É um

estado que se fez presença também no cenário brasileiro.

No romance de Erico, a fronteira é ponto vital para a identidade do Rio Grande do

Sul, pois até certo ponto ela divide os territórios do eu e do outro, ou, se preferirmos do

nosso e do deles. Em uma passagem de O Continente encontramos esta representação:

Depois daquela noite, a geada de cinco invernos branqueou os telhados da missão; e as pedras avermelhadas de sua catedral fulgiram ao sol de cinco verões mais ou menos tranqüilos. Foram aqueles os tempos de maior prosperidade dos Sete Povos. Conquanto no Continente do Rio Grande de São Pedro espanhóis e portugueses vivessem em contínuas lutas por questões de limites, houve paz nas reduções. (1999, v. 1, p. 37)

É estudando a corrente historiográfica que defende a formação étnica lusa para o

Rio Grande do Sul, que compreendemos o que se chama fronteira excludente, eliminando-

se, assim, a miscigenação espanhola e indígena no Rio Grande do Sul. Entretanto, não

podemos esquecer que o Rio Grande do Sul não nasceu lusitano. Reportando-nos a 1498,

na demarcação do Tratado de Tordesilhas, e observando o mapa do Brasil, da época,

120

verificaremos claramente que as terras que compõem hoje o estado gaúcho seriam

espanholas. O Rio Grande do Sul foi, portanto, um território que, aos poucos, foi

conquistado pelos portugueses, nas constantes lutas de fronteiras, que alteraram

sensivelmente os limites entre as terras portuguesas e espanholas, na América do Sul.

Com isso, configurou-se dizer, que nos treze anos de dominação espanhola, não

houve influência dessas matrizes étnico-culturais na formação do povo sul-rio-grandense,

bem como desconsiderou-se a presença indígena – ainda que Erico apresente o índio Pedro

Missioneiro à Ana Terra – que aqui já estava quando da chegada do branco europeu.

Entendemos que a união dos termos “fronteira excludente” refere-se ao aspecto

étnico-cultural. Mas quando Erico une a descendente portuguesa Ana Terra com o índio

guarani, Pedro Missioneiro, a obra aponta para a miscigenação. Entretanto,

significativamente, o fruto dessa união jamais adotaria o nome do pai.

Na ótica de Biasoli apud Quevedo (1999, p. 155), Pedro Missioneiro "é aquele,

dentro da narrativa romanesca de O tempo e o vento, que vai perpetuar a herança

missioneiro - espanhola entre os colonizadores lusitanos".

Mesmo adotando traços culturais de um outro grupo, seja pela via da conquista

armada, seja pela via dos casamentos, por exemplo, uma das maneiras de manter a

identidade é reforçar os traços étnicos do grupo e aí sim, manter uma fronteira geográfica

que delimite os territórios do eu e do outro.

As transformações culturais, pelas quais passam os grupos sociais, não significam o

desaparecimento de uma etnia, pelo contrário, às vezes, segundo os autores, as

transformações culturais a que os grupos são obrigados a se submeter permitem o reforço

das suas tradições étnicas.

De acordo com Barth apud POUTIGNAT & STREIFF-FENART (1998, p. 157)

121

"(...) uma redução das diferenças culturais entre os grupos étnicos não põe necessariamente

em causa a pertinência do limite que os separa".

Da fala desses estudiosos podemos extrair que etnicidade e cultura são vocábulos

distintos, embora possam "caminhar" juntos, o que não significa que um suplante o outro.

O que pode haver é a coexistência entre ambos, que nem sempre foi pacífica como ocorreu

com a conquista das Missões, mas que nem por isso descaracterizou por completo a questão

étnico-cultural dos povos indígenas, dessa região.

Poutignat & Streiff-Fenart( 1998, p. 157) são categóricos ao afirmar que "a

cooperação dos membros para a manutenção das fronteiras é uma condição necessária da

etnicidade, ela pode constituir em certos casos o critério essencial do membership"52. Essa

frase resume a intenção de se preservar as fronteiras étnico-culturais, para a mantência do

próprio grupo social do qual se faz parte, seja ele religioso, econômico, político, no sentido

de não ser permitida a entrada de elementos estranhos ao grupo, pois:

A manutenção das fronteiras baseia-se no reconhecimento e na validação das distinções étnicas no decurso das interações sociais. Como acentua Barth, a pressão exercida no interior de um grupo para a manutenção ativa da fronteira é máxima nas situações políticas em que a violência e a insegurança dominam as relações interétnicas. (1998, p. 157)

Poutignat & Streiff-Fenart (1998, p. 158) afirmam ainda que "as fronteiras étnicas

são manipuláveis pelos atores". Mas quem são eles? Os atores são todas as pessoas que

estão vinculadas aos grupos étnicos, portanto são todos os indivíduos pertencentes a esse ou

àquele grupo social, invariavelmente. Em nosso trabalho são todas as personagens que

aparecem na obra de Erico,embora tenhamos nos detido apenas em algumas que dizem

122

respeito mais diretamente à nossa pesquisa.

Como as fronteiras podem ser manipuláveis? Elas são manipuláveis em função das

diversas categorias às quais podem pertencer as pessoas, podendo situarem-se em vários

lugares, não deixando, ao mesmo tempo, de fazerem parte de um grupo étnico definido.

Essa manipulação de que falam os autores acima, exercida pelos membros dos

grupos étnicos, depende dos interesses do momento, e baseia-se nas relações de força entre

os membros desses grupos étnicos. Os outros assim se expressam:

De modo geral, importa reconhecer que, qualquer que seja o grupo considerado, a questão de saber o que significa ser membro do grupo nunca se torna objeto de consenso, e que as definições de pertença estão sempre sujeitas à contestação e à redefinição por parte de segmentos diferentes do grupo (1998, p. 159).

Há um entrechoque de forças muito intensas que determinam quem pode e quem

não pode fazer parte da comunidade, o que irá gerar ou não a interação, enfraquecendo as

fronteiras étnico-culturais, ou a exclusão social, reforçando essas mesmas fronteiras.

Transportando a teoria para o nosso estudo é exatamente isso que se passa em O

Continente. Primeiro há a disputa, entre gaúchos e castelhanos, pela posse da maior

quantidade de terras que estão na fronteira, depois há uma disputa constante entre os Terra-

Cambará e os Amaral pelo poder político em Santa Fé. E isso também é presença na

história do Rio Grande do Sul e do Brasil.

Portanto, nas questões de fronteiras, sejam elas geográficas, étnicas, culturais,

políticas, acabamos por nos deparar com uma situação muito íntima, que é a questão do eu

e do outro, ou do nós e eles, e entendemos que é uma questão inerente à condição de

fronteira.

Poutignat & Streiff-Fenart (1998, p. 158) explicam, ainda, que as fronteiras étnicas "

52 Membership, neste caso refere-se aos "membros de um grupo, cultura e de uma sociedade". FRANCO,

123

(...) se estendem ou se contraem em função da escala de inclusividade na qual se situam e

da pertinência, localmente situada, de estabelecer uma distinção Nós/Eles".

Voltando ao nosso ponto de partida, fazendo sempre o contraponto entre a teoria, a

História e a literatura, observamos que Erico retrata a questão do eu e do outro, toda a vez

que expõe em sua obra castelhanos e brasileiros em lados opostos das fronteiras, mas

também índios e brancos, mulheres e homens, maragatos e picapaus. Essa situação pode ser

observada no que nos revela o autor, quando do ataque dos castelhanos ao rancho dos

Terra:

(...) Ana viu uma cara de beiços carnudos, com dentes grandes e amarelados que (...) se colaram brutalmente aos seus (...). Um suor gelado escorria-lhe pela testa, entrava-lhe nos olhos, fazendo-os arder e aumentando a confusão do que via: o pai e o irmão ensangüentados, caídos no chão, e aqueles bandidos que gritavam, entravam no rancho, quebravam móveis, arrastavam a arca, remexiam nas roupas, derrubavam a pontapés e golpes de facão as paredes que ainda estavam de pé. (...) Começaram a sacudi-la e a perguntar: - Donde está la plata? - La plata... la plata... la plata.. Ana estava estonteada (...) sentiu contra as costas, as nádegas, as coxas, o corpo duro dum homem (...) ao mesmo tempo que mãos lhe rasgavam o vestido. - La plata... la plata... E Ana começou a andar à roda, de braço em braço, de homem em homem, de boca em boca. - Bamos, date prisa, hombre.

Tombaram-na, e mãos fortes (...) imobilizaram-na contra o solo. Capitán! Usted primero! (...) Ana já não resistia mais. Por fim perdeu os sentidos. (1999, v. 1 p. 121-22)

Os castelhanos, nesse momento, são retratados como os outros da fronteira, como os

inimigos, como os bandidos, como os invasores não só das terras d'O Continente, mas

também da vida de seus habitantes.

O entendimento do eu e do outro é desenvolvido por Reichel apud GONÇALVES

quando a autora considera que:

Álvaro. Dicionário Inglês-Português/ Português-Inglês. São Paulo: Globo, s/d.

124

(...) a formação e a delimitação de fronteira, como linha que divide o território do eu e do outro (...) é fundamental para a identificação e reconhecimento daqueles que estão dentro do continente como integrantes da sua coletividade e aqueles que a ele não pertencem, como os diferentes. Através de uma linha imaginária que vai sendo traçada, o sentimento de pertença e o de alteridade vão sendo construídos. Nesse sentido, é evidente o papel do outro que Erico Verissimo atribui aos castelhanos e, para que as diferenças sejam rapidamente assimiladas pelo leitor, a representação dos mesmos como bandidos e invasores. (2000, p. 209)

A idéia apresentada por Reichel reforça o entendimento dos castelhanos como os

inimigos dos habitantes do Continente, pois transparece a situação de pertença dos que

estão inseridos nesse território, como perfeitamente identificados e reconhecidos como os

integrantes de uma mesma coletividade, em oposição aos estrangeiros, ou seja, os outros da

fronteira, aqueles que habitam qualquer lugar para além do Continente. Por isso é

impossível sua inclusão a uma mesma coletividade. Mas isso tudo não significa que a

presença espanhola não seja uma das matrizes de formação das gentes do Rio Grande,

como veremos mais adiante, em nossa pesquisa.

Partindo do que nos informa Bazcko (1986, p. 309), a respeito de coletividade, é

que alinhamos nosso entendimento: “Uma coletividade designa sua identidade, elabora uma

certa representação de si, estabelece a distribuição de papéis e das posições sociais, exprime

e impõe crenças comuns, e constrói uma espécie de convivência.”

Da análise de Bazcko podemos compreender que, se há uma correspondência direta

entre identidade e coletividade, não há, realmente, como inserir os castelhanos na condição

de pertença da mesma coletividade dos habitantes do Continente. Eles são os diferentes em

tudo: no linguajar, no comportamento, nas atitudes... Eles são os estranhos, os forasteiros.

Nesse momento, eles são o inimigo, argumento que reforça a tese da matriz lusitana.

Percebemos, porém, que há um jogo de luz e sombra entre o que desejam os

125

defensores da corrente lusa e o que de fato, a história vai, aos poucos, registrando e

provando, derrubando as teses da exclusividade "racial" portuguesa no Rio Grande do Sul.

Preponderam também os préconceitos sociais vigentes na sociedade da época, em

que o autor escreve a obra mas que sutilmente ele transporta para o século XVIII:

diferenças de classe social, postura social, política, racial diante do mundo. O exemplo é

claro, quando Erico estabelece o diálogo da personagem D. Henriqueta com seu marido

Maneco Terra, pais de Ana Terra.

Um dia D. Henriqueta sugeriu timidamente ao marido que levasse o neto ao Rio Pardo para que o vigário o batizasse. Maneco pulou, furioso: _ No Rio Pardo? Estás louca. Pra todo mundo querer saber quem é o pai da criança? Estás louca. Pra arrastarem meu nome no barro? Estás louca varrida. _ Então o inocente vai ficar pagão? _ O melhor mesmo era ele ter nascido morto - retrucou o velho. (1999, v. 1. p 111 - 12)

O filho de Ana Terra carregará para sempre o nome do pai - Pedro - mas um único

sobrenome - Terra.

É significativo observar como Erico introduz o índio Pedro Missioneiro no seio da

família Terra. Aquele, que sob a ótica dos "civilizados", deveria representar o lado bárbaro

e selvagem do ser humano é justamente o contrário. É quem possui sensibilidade: ele toca

flauta, ele conta histórias, ele traz, enfim, uma cultura diferente aos embrutecidos Terra,

para quem a vida era trabalhar da manhã à noite. Lazer? Sim, para Horácio e Antônio que,

vez por outra, dirigiam-se a Rio Pardo comercializar o produto de seu trabalho e

obviamente divertir-se, namorar. E Ana? Fica na fazenda, mas a presença do índio vai

126

despertar-lhe sentimentos diferentes, desejos que ela não experimentara até então.53

Todavia, essa relação não pode aparecer, numa época em que a vertente lusa é

considerada a matriz de formação do povo rio-grandense. Erico dá um jeito, e os irmãos

Terra, para salvar a honra da irmã ou vingar a sua desonra, matam o índio. Parece-nos

muito clara que a morte dessa personagem é providencial no sentido de esconder não

somente o preconceito sobre Ana, que se torna mãe-solteira, mas denunciar a erradicação

de uma origem que alguns historiadores da época relutavam em discutir, que é a matriz

platina de formação do povo rio-grandense, bem como a presença indígena.

Com o assassinato de Pedro Missioneiro extirpa-se um corpo exterior ao seio de

uma família, para a qual aparentemente ele não faz falta. É pois a exibição da rejeição

social de tudo o que ela – a sociedade da época, aqui representada pela família Terra –

menos deseja: a mistura, o convívio com aquela gente estranha às coisas do Rio Grande,

pois a diferença não é bem-vinda nessa sociedade que incorporou, num primeiro momento,

para si, totalmente a descendência portuguesa.

A assassínio de Pedro Missioneiro é não apenas a morte do corpo vivo de um

homem. É mais do que isso, o índio é aniquilado como etnia; sua passagem pelo romence

cumpre uma função: a de demonstrar que na formação étnica sul-rio-grandense também a

matriz indígena é contributiva. Porém, Pedro Terra, que é quem carrega toda a carga étnica

dessa ascendência, transmite, à filha Bibiana, muito mais a influência dos valores de sua

mãe Ana Terra – portanto, a ligação com o mundo barnco português – do que com o pai

Pedro Missioneiro. É dessa forma que o grupo étnico é redefinido, a fim de manter sua

53 VERISSIMO, Erico. O Continente. São Paulo: Globo, 1999.

127

identidade.

No período descrito por Erico em A Fonte a imagem dos castelhanos é associada à

idéia de destruição e morte. E assim é possível compreender-se também a questão do nós e

eles, enfocada por Heloísa Reichel, que já citamos várias vezes. Nós, os habitantes do

Continente, gente com brios e valores, eles, os intrusos, sem virtudes e com vícios.

Zilberman explica, sobre essa questão:

Por isso, o vilão por excelência é o homem que vem de outro espaço - o homem da cidade ou da Corte, o imigrante ou castelhano. A diferença geográfica reflete-se em traços biológicos; daí a oposição entre o físico deficiente do estrangeiro e a beleza externa do rio-grandense: sua tez morena, olhos escuros, a altura e a elasticidade, todos estes dados transformam-se numa metonímia da personalidade e dos valores do indivíduo pertencente ao meio pampeano. (1980, p. 37)

No romance de Erico a escolha do inimigo, no início da saga, recai sobre os

castelhanos, porque a história do Rio Grande do Sul avizinha-se, desde sempre, com a

história platina, o que não significa dizer que essa idéia se perpetue, como na fala de Maria

Valéria “É a mesma gente, só com idéias diferentes”( Erico, 1999, v.1, p. 11)

Biasoli in QUEVEDO (1999, p. 148) é veemente ao afirmar que "Erico Verissimo

ao escrever A Fonte (...) clamava por uma aceitação do fato de que as nossas raízes

históricas têm muito a ver com a cultura platina", até porque, embora em sua obra Erico

tenha, em várias oportunidades, situado os castelhanos como “os outros da fronteira”, há

uma documentação paroquial que registra o cruzamento entre portugueses, espanhóis,

brasileiros, castelhanos, notadamente pela via de casamentos. Conforme o que nos explica

Kühn:

128

Os registros de batismos entre 1760 e 1761 corroboram os argumentos favoráveis a uma coexistência luso-espanhola, indicando a existência de pelo menos nove espanhóis integrados à freguesia (quatro santafesinos, dois paraguaios, um buenairense, um indicado como sendo das “Índias de Espanha” e um espanhol metropolitano). Estes indivíduos, todos homens, integram-se à nascente sociedade rio-grandina preferencialmente pela via dos casamentos com mulheres açorianas. (1999, p. 93).

Essa reflexão implica em diferenciarmos as matrizes étnico - culturais,

contemplando espanhóis e indígenas e não somente portugueses. Sobre esse assunto

Queiroz da Silva (2001, p. 38) diz que "uma série de informações se interpõem, pois

estamos lidando com situações que envolvem o ser humano e suas circunstâncias, o homem

e o seu entorno, a sua bagagem cultural, a qual ele vem adquirindo ao longo de uma vida

inteira de convivências". Portanto, há um registro que o ser humano faz de tudo o que lhe

passa aos olhos, e ele seleciona as prioridades.

A convivência de que nos fala a autora traduz a idéia de troca e assimilação de

informações, de usos, de costumes, de linguajares e até mesmo o modo de refletir sobre

determinadas questões.

Hechter apud POUTIGNAT & STREIFF-FENART (1998, p. 156), teorizando sobre

a etnicidade, propõe "o estudo da transformação das práticas culturais", pois "um grupo

pode adotar os traços culturais de um outro, como a língua e a religião e, contudo,

continuar a ser percebido e a perceber-se como distintivo". Essas afirmativas explicam que

etnicamente um grupo, um indivíduo pode conceber-se como sendo, em nosso estudo,

português ou espanhol, mas não podemos compreender que o convívio entre ambos não

lhes cause uma aproximação cultural.

Temos que considerar também que, mesmo adotando traços culturais de um outro

grupo, seja pela via da imposição, através da conquista bélica, seja pela via dos casamentos,

129

como já dissemos, uma das maneiras de manter a identidade é reforçar os traços étnicos do

grupo.

Para Poutignat & Streiff-Fenart (1998, p. 154) "as fronteiras entre os grupos

étnicos são mais ou menos estáveis", pois, "no decorrer do tempo as fronteiras étnicas

podem manter-se, reforçar-se, apagar-se ou desaparecer. Elas podem tornar-se mais

flexíveis ou mais rígidas". Isso especialmente num território imenso, cujas fronteiras não

estavam definitivamente delimitadas, como era o caso do Brasil.

Dessa informação podemos extrair que há proximidade nas relações sociais, no

momento em que se observa que as influências são mútuas, o que gera transformações em

maior ou menor grau.

Se por um lado as fronteiras geográficas impõem limites, o mesmo não acontece

com as fronteiras étnicas, pois no dizer de Poutignat & Streiff-Fenart (1998, p. 154) "elas

nunca são oclusivas, e sim mais ou menos permeáveis". Essa permeabilidade, em nossa

ótica, aproxima os membros das fronteiras, seja por amizade, ou por necessidade

econômica, ou por interesses financeiros ou até para não criar um isolamento humano.

Essa idéia reforça a imagem dos castelhanos como inimigos dos habitantes do

continente, que Erico explora no romance

Mas se aqueles renegados não quisessem respeitar nem as pessoas, o remédio era resisitr e morrer como homem, de arma na mão.

(...) Uma voz rouca perguntou: - Donde están los otros? - Dentro de casa. - Que salgan! Bamos! - Vosmecê pode me dizer ... - começou Antônio. - Perro súcio! (1999, v. 1, p. 121).

Esse exemplo deixa transparecer a situação de pertença dos que estão inseridos no

continente, como perfeitamente identificados e reconhecidos como os integrantes de uma

130

mesma coletividade, em oposição aos estrangeiros, ou sejam os outros da fronteira, aqueles

que habitam qualquer lugar para além do Continente. Isso tudo não significa, entretanto,

que a presença espanhola não seja uma das matrizes de formação da sociedade rio-

grandense.

A concepção do eu e do outro é vista por Poutignat & Streiff-Fenart (1998, p. 158)

também como uma situação de nós/eles presentes na fronteira, quando afirmam que as

fronteiras étnicas "se estendem ou se contraem em função da escala de inclusividade na

qual se situam e da pertinência, localmente situada, de estabelecer uma distinção nós/eles.

Um exemplo pinçado da obra Ana Terra54, de Erico Verissimo, valida a afirmação

dos dois autores anteriormente referidos. O autor assim se pronuncia.

Baseado em acontecimentos históricos que antecederam a tomada das Missões, o autor constrói uma comunidade (o nós) em que todos são de origem portuguesa ou, pelo menos, estão sob a guarda e a tutela do responsável pela defesa do território e representante legal do governo luso. Exemplo encontramos na cena em que Ricardo Amaral relata ter sido recebido em audiência pelo governador. O espanhol mais uma vez aparece como o inimigo, o outro. Diz: General, preciso que o governo me conceda mais sesmarias para as bandas do poente. Vossa mercê precisa saber que meus campos ficam a dois passos do território inimigo. Mais cedo ou mais tarde os castelhanos nos atacam de novo... (2000, p. 211)

Esse exemplo nos expõe duas situações. A primeira, quando a personagem solicita a

concessão de mais sesmarias, pois isso significa avançar para o oeste, para as terras

castelhanas, numa tentativa de rechaçá-los cada vez mais para longe. A segunda reforça a

crença de serem os espanhóis os inimigos , os outros e, portanto, não formadores das gentes

do Rio Grande. Quando a mesma autora diz "todos são de origem portuguesa ou, pelo

54 VERISSIMO, Erico. Ana Terra. Porto Alegre: Globo, 1977.

131

menos, estão sob a guarda e a tutela do responsável pela defesa do território e representante

legal do governo luso", ela clarifica a situação de "todos" serem de descendência lusa. Essa

é a forma como as elites legitimavam a sua posse da terra e garantiam a grande

propriedade. Mas quando afirma "ou pelo menos (...) a guarda e a tutela do (...)

representante legal do governo luso" isso diz claramente que nem todos eram portugueses.

Alguns, ou muitos podiam ser de outras nacionalidades, inclusive a espanhola/castelhana.

As fronteiras móveis, cuja manipulação era feita na Europa, entre Espanha e

Portugal, visando os seus interesses na América Latina, ao invés de distanciarem

castelhanos e brasileiros, ao invés de nos excluírem acabaram, ao longo do tempo,

aproximando-os pelas mais diversas maneiras.

Quanto a Erico, é perceptível que há momentos de sua obra em que ele trata os

castelhanos como os outros da fronteira, isso é pertinente, uma vez que a visão do narrador

é a do Continente de São Pedro em direção a outras paragens. É uma obra de ficção, mas

que se vale da História para tecer as tramas da mesma e, no momento da escrita da obra a

corrente lusa apresentava-se como hegemônica no cenário sócio-cultural do estado.

Erico Verissimo, ao relacionar a história do Rio Grande do Sul ao seu romance,

oportunizou uma discussão, pela ótica e pela fala de seus personagens, a respeito das

questões sócio-históricas do Estado, discutidas na busca pela sua própria identidade no

cenário nacional, na defesa da fronteira geográfica contra os platinos, tematizada em duas

situações: na questão do eu e do outro e na defesa da terra como pressuposto básico para a

supremacia da classe dominante, que não apenas ocupa um espaço definido, mas determina

os que dele podem ou não fazer parte.

2.2. Os Espaços: a casa, o sobrado, a fronteira

132

"(...) a casa não vive somente do dia-a-dia, no curso

de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se

interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos".

BACHELARD, Gaston.

Desvincular o espaço do tempo: eis uma tarefa impossível. Todo espaço e tudo o que

está no espaço gira em torno do tempo e todo o tempo marca um momento, uma situação a

qual só existe porque está inserida num determinado lugar, seja ele a casa, a fronteira, pois

espaço e tempo não se separam.

Ao falarmos de espaços, queremos situar que trataremos das fronteiras, da casa, do

Sobrado e da grande propriedade, no contexto do romance O Continente de Erico

Verissimo e na visão de suas personagens.

Nosso enfoque inicia-se no século XVIII e tem uma data fixa, 1745. A partir daí

vamos ter um sem número de guerras, marchas e contramarchas, que poderão nos fazer

enxergar a movimentação das fronteiras que ora limitavam portugueses e espanhóis ou

quem sabe brasileiros e castelhanos, ora aproximavam-nos.

Nossa dissertação não versa diretamente sobre as fronteiras geográficas como já

afirmamos. Contudo, elas aparecerão em maior ou menor grau. Nesse sentido,

periodicamente estaremos esbarrando nesse conceito, porquanto ele serve para elucidar

algumas perguntas, entre elas a questão do Estado-Nação.

O Estado-Nação na concepção de Edgar Morin apud GOLIN é

um ser ao mesmo tempo social, político, cultural, ideológico, mítico, religioso. É uma sociedade vivendo num determinado território, e organizada. É uma entidade política dotada de um Estado e de leis próprias. É, culturalmente, uma comunidade de destinos comportando a sua memória e os seus costumes particulares. É um sistema ideológico de racionalização autocêntrica. É um ser mítico de substância simultaneamente

133

maternal e paternal: a Mãe-Pátria. É finalmente, como viu Toynbee, uma religião de tipo especial, onde, de maneira quase durkheimiana, o estado-nação se autodeifica. Todos estes constituintes são não só complementares, mas recursivamente associados, cada um deles produzindo os outros que, por sua vez, o produzem. (2002, p. 66)

A idéia de nação55 traz, ao senso comum, a idéia de uma sociedade politicamente

organizada, com os mesmos usos, costumes, religião, história, enfim com a mesma cultura

como sinônimo de todas as expressões que o ser humano pode dispor e mostrar, num

território comum.

Ao procedermos essas afirmações, extrapolamos a idéia de que a nação é

simplesmente o povo, pois acabamos concluindo que se ela, a nação, pressupõe todos esses

requisitos, ela é então politicamente organizada. E se ela pode ser assim classificada,

estamos tratando do Estado-nação.

Ruben Oliven apud GOLIN (2002, p. 66) explica que "assim como o Estado-nação

procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas, ele também se empenha em

demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o que não faz parte da nação".

Transportando a explicação do autor para O Continente, podemos perceber

claramente a não-pertença dos castelhanos na formação étnico-cultural do Rio Grande do

Sul, uma vez que se luta por demarcar as fronteiras geográficas. Há, portanto, uma

integração indissociável quando falamos em Estado-nação e quando tratamos das questões

étnico-culturais.

55 "O estabelecimento do Estado como entidade responsável pelo funcionamento da sociedade corresponde ao enfraquecimento do poder e influência da família que abre mão da faculdade de arbitrar sobre os problemas tanto internos - domésticos - como externos ao alcance de sua órbita de atuação". Explicação de Zilberman, R. Saga Familiar e História Política. In. GONÇALVES, R. P. O Tempo e o Vento: 50 Anos. Santa Maria, RS: UFSM; Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 38.

134

Não há como separar um termo do outro. Se num primeiro momento, queremos

demonstrar a formação identitária do Rio Grande do Sul, é, num outro momento, desejamos

tecer considerações sobre o que vem a ser estado-nação, podemos fazê-lo paras fins

didáticos, mas invariavelmente a questão vai mesclar-se, pois estamos falando do

estabelecimento de um estado que só existe se tiver a presença de grupos sociais, de leis, de

uma cultura, uma religião, e um idioma comuns, em um território delimitado.

Marcel Mauss faz algumas comparações a respeito de nação - conceito advindo com

a modernidade histórica - e clã - noção primitiva de agrupamentos humanos, mas que, ao

compará-los, vamos encontrar inúmeras semelhanças. O autor assim se reporta à nação,

dizendo que a mesma.

é homogênea como um clã primitivo e supostamente composta por cidadãos iguais. Ela tem a bandeira como símbolo, como o clã tinha o seu totem; ela tem seu culto a Pátria, como o clã tinha o de seus ancestrais animais-deuses. Como uma tribo primitiva, a nação tem o seu dialeto elevado à dignidade de uma língua, como um direito interno oposto a um direito internacional. [...] O totemismo seria em última análise um modelo de o clã cultuar a si mesmo, ou seja, a maneira externa e visível do culto da sociedade por seus membros que nesta fase primitiva não conseguiriam representar o caráter sagrado e complexo de sua sociedade por outro meio que não seja o emblema, o símbolo e signo. Assim, o totem, o símbolo que representa o clã, seria hipostasiado e tornar-se-ia associado à segurança, ao bem-estar e à continuidade do clã. apud GOLIN (2002, p. 67)

A nação é, portanto, uma ficção à qual os homens se agregam para se defenderem,

para se desenvolverem, e para darem continuidade e perpetuação a sua espécie. Não

importa o regime, o sistema ou a forma de governo; o fato é que a invenção da teoria da

nacionalidade deu certo e expandiu-se pelo mundo e toda a vez que saímos fora do nosso

espaço territorial vemos aflorar, com grande intensidade, o nosso sentimento de

135

nacionalismo.

No que se refere ao Brasil como um todo, e ao Rio Grande do Sul, em particular,

temos a considerar que não se encontra em nosso país a fórmula européia do Estado-nação,

como nos assevera Golin:

No estudo sobre a construção do Estado-nação brasileiro, não se percebe o elemento positivo das nações européias, aquela idéia subversiva, conforme escrevera Lord Acton (...). Em parâmetros modernos europeus, para o Brasil, é duvidosa a idéia de "nacionalismo" no período imperial, quando o Estado-nação foi consolidado, especialmente a partir da década de 1850, na qual se encontra inserido o Tratado de Limites com o Uruguai e a definição conclusiva da fronteira sulina. Em um país escravocrata, a construção do Estado-nação viabilizava-se, predominantemente, pela esfera política ambientada no estamento burocrático. Na equação liderança carismática mais povo, representativa na formação do Estado-nação, não se registra a presença significativa do segundo elemento. (2002, p. 68).

Temos a considerar, da fala de Golin, que a subversão de que o autor nos fala era

mudar radicalmente o status quo estabelecido o que seria praticamente impossível num país

que até 1822 fora colônia e, uma vez independente, transformou-se em Império, sob o

comando de um rei português. Além disso, no Brasil não havia o glamour do Primeiro,

Segundo e Terceiro Estados, como na França. Aqui, as lideranças chamavam-se

caudilhos56, e estavam todos atrelados ao Poder. Quanto à "presença do povo" fica clara a

56 COSTA PORTO. Pinheiro Machado e seu tempo. Tentativa de interpretação. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. O autor explica que o caudilhismo " traduz fenômeno cem por cento sul-americano, em cujos quadros atua como uma constante; mas o que subjaz nas franjas é uma coisa universal, sintetizando o ponto de convergência de inclinações também universais. Historicamente nada tem de exclusivismo, de marca de fábrica do novo continente, pois exprime a preeminência fatal do homem forte, impondo-se sob a pressão da necessidade de disciplinar os aglomerados humanos, onde não chegam os freios da ordem pública, através do Estado".FELIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e Cooptação Política. Porto Alegre:Ed.Universidade/UFRGS, 1996, p. 46. Para esta autora caudilho/caudilhismo é "um tipo de dominação específica, emergindo de situações históricas próprias de enfraquecimento ou ausência de um poder central". FLORES, Moacyr. Dicionário de História do Brasil. Porto Alegre: EdPUCRS, 1996, pp. 123-24. "Na região platina os caudilhos eram chefes políticos que assumiam o governo pela força e às vezes pelo voto, exercendo-o ditatorialmente. Quando na oposição, comandavam forças revolucionárias para depor o governo. No Brasil o termo é empregado pejorativamente, no sentido de que o político pretende se apossar do governo por um golpe de força para instalar um governo autoritário.

136

sua não participação, considerando a questão da escravidão por um lado, que não fazia

desses homens cidadãos, e, por outro a presença de uma pequena minoria atrelada ao Poder,

os senhores "respeitáveis", e ainda aqueles que, embora livres, eram dependentes diretos

dos caudilhos.

A outra situação com respeito ao estado-nação, no que tange ao Rio Grande do Sul,

é explicada por Golin da seguinte maneira.

Os traços constitutivos da região sulina surgiram antes de o Brasil se transformar em Estado-nação. Estrategicamente situada no Prata, teve função predominantemente na consolidação territorial do próprio país.

(...) Dessa forma, a fronteira é o espaço histórico de uma explicação sobre a formação da sociedade sulina e de sua identidade, a representação de um lugar de alteridades em relação ao "castelhano" e, contraditoriamente, à nação brasileira. (2002, s/p contracapa do livro)

Essa explicação de Golin reforça a nossa compreensão quando tratamos da questão

da busca pela identidade do Rio Grande do Sul, bem como a questão das alteridades que

relacionava, aproximando ou não, gauchos e gaúchos, mas que, com certeza distanciavam o

estado das demais unidades da Federação. Era, dessa forma, mais uma luta que o Rio

Grande do Sul precisava travar; a de tornar-se português, por força de fazer parte desse país

de colonização lusa, mas ter o mesmo respeito que os demais.

As disputas de terras com os castelhanos, que deram a conformação atual do Rio

Grande do Sul, as contradições da região sulina com o restante do país e a necessidade de

engajamento e respeitabilidade desse Estado à Federação são fatores a serem considerados

quando se fala em estado-nação. Enquanto o Brasil lutava para tornar-se um Estado-nação,

na acepção do termo, o Rio Grande do Sul disputava terras e rechaçava os platinos, na

tentativa de incorporar-se ao Estado do Brasil.

137

Moysés Vellinho, o último grande defensor da lusitanidade sul-rio-grandense como

única e certa teve, com certeza, todo o respaldo da historiografia da época, que

desconsiderou o espaço fronteiriço do Rio Grande do Sul com os países platinos, voltando-

se excessivamente à uma origem portuguesa. Olhando-se pela ótica de Vellinho, a fronteira

passa a representar a divisão, a separação, e a agrupar os que estão do outro lado como os

diferentes. Ora, se assim o são, não podem fazer parte das origens do gaúcho e, por

conseguinte, do homem brasileiro!

Contrapondo-se a Moysés Vellinho encontramos em Manoelito de Ornellas,

Alfredo Varela, Rubens Dornelles, João Pinto da Silva e outros, a defesa da vertente

platina, também presente na constituição da sociedade sul-rio-grandense, reunindo,

portanto, portugueses e espanhóis, num mesmo espaço geográfico, o que nos permite ver

que, para esses autores, não há como desvincular a história do Rio Grande do Sul da

história platina, em função de uma mesma origem étnica. Ornellas (1969, p. 50), que

considerou a origem portuguesa e espanhola como descendente de uma mesma origem

árabe, certamente pela influência dos quinhentos anos de dominação desse povo na

Península Ibérica, assim define essa relação: “(...) nasce do ventre fácil da índia com o pai

peninsular, dono das tradições, que vinha a América fosse espanhol ou português, trazendo

a indumentária, o cavalo e os meios de vida que o avô oriental lhe ensinara por quase um

milênio de ascendência direta.”

Observamos que, para esse autor, as origens étnicas e culturais do gaúcho não se

desvinculam da origem espanhola, considerando-se o que já se disse antes a respeito da

pertença de Portugal à Espanha. Claro que havia divergências entre os gaúchos do lado de

cá e os gauchos do lado de lá da fronteira geográfica, que divide os territórios. Padoin apud

138

QUEVEDO assim respalda essa visão histórica:

(...) o espaço fronteiriço platino, até a primeira metade do século XIX, caracterizou-se por esta unidade social cotidiana, contendo divergências localistas movidas por interesses econômicos e políticos, e que foram, muitas vezes, estimuladas e provocadas pelo interesse das Coroas portuguesa e espanhola. Como também foi condição e elemento utilizado pela elite local e regional criando uma representação de poder que muito influenciou as relações entre o Rio Grande do Sul e o governo central brasileiro. Representação que possuiu duas perspectivas: o da própria elite local e regional e a do outro. A própria divulgação que os rio-grandenses fizeram de sua imagem colaborou na visão construída sobre o Rio Grande do Sul. No Rio Grande do Sul, no século XIX, com o aumento de proprietários de terras e, com isso, o afazendamento de chefes de "bandos guerreiros", começou a se fortalecer as relações caudilhescas de mando. Uma estrutura social patriarcal, onde o "chefe guerreiro ou proprietário" era também o "chefe de parentela", estruturando-se assim, o poder local, representado na figura do estancieiro-caudilho, que lutava também por seus interesses. (1999, p. 373)

Considerando-se, pois, a movimentação econômica que se sabe sempre ter existido

nas fronteiras, fica muito difícil abstrairmos a não-miscigenação que se processa nas

regiões fronteiriças, seja apenas no linguajar que se mescla, seja também na própria questão

étnica.

Kühn observa que:

Sem desconsiderar a importância do povoamento e ocupação luso-brasileira da região sulina, aponta-se para os variados influxos demográficos de um território fronteiriço. Através do levantamento dos registros paroquiais do período 1747-1780 das principais freguesias sul-rio-grandenses, sugere-se um novo quadro de referência, onde o espaço fronteiriço colonial procura ser compreendido enquanto "fronteira em movimento", com intensa circulação de homens, mercadorias, dentro de um contexto demográfico extremamente heterogêneo. Pretende-se demonstrar, assim, as especificidades da formação do espaço e da sociedade colonial nas regiões de fronteira aberta, com limites políticos ainda não definidos. (1999, p. 92)

Se a historiografia considera a existência de fronteira em movimento, é porque as

fronteiras mudavam de tempos em tempos, quer por disputas locais, no território

139

americano, quer por força de decisões tomadas na Europa, entre portugueses e espanhóis,

os quais não apenas debatiam a questão, como mudavam seus marcos fronteiriços a cada

nova discussão. Com essa movimentação, decidida na Europa, para ser aplicada na

América, parece-nos muito natural que a circulação humana por essas áreas fosse bastante

intensa. E se assim o era só vem a confirmar a influência cultural platina no Rio Grande do

Sul.

Quando essa mesma historiografia aponta para os termos "fronteira aberta", torna-se

claro que "a formação do espaço e da sociedade colonial" estava ainda por ser fixada e isso

possibilitava a disputa por essa área, entre platinos e gaúchos.

É bastante clara a explicação do autor, o que se ajusta à nossa idéia de fronteira,

enquanto limite territorial, o qual, em tese, impõe ao indivíduo normas, regras, leis, pois, de

ambos os lados, esse ir e vir esbarra no marco delimitador. Por outro lado, é praticamente

impossível dissociar a fronteira geográfica da fronteira étnico-cultural, pois estamos

lidando com o ser humano e suas circunstâncias, a sua bagagem cultural, a qual ele adquire

ao longo de uma vida de convivências, influenciando e sendo influenciado pelos seus

circundantes.

Reverbel, um dos defensores da matriz platina, presente na formação étnico-cultural

do Rio Grande do Sul, assim se refere:

Enquanto "terra de ninguém", não passando de enorme criatório bagual de gado chimarrão, boa parte do território rio-grandense correu o risco de tornar-se platina. Sua posição geográficas, seus rudimentos econômicos e suas tendências culturais a inclinavam naquele sentido. Isso deixou de acontecer, como observa Guilhermino César, "porque um fato econômico transcendente viria alterar o quadro político e social do Brasil: a descoberta do ouro no rio Tripuí, em Minas Gerais, ao findar o século XVIII".(1996, p. 77-8),

Quando o autor diz "boa parte do território rio-grandense correu o risco de tornar-se

140

platina" e ele explica as condições desse favorecimento, isto nos esclarece a respeito da

matriz dual na formação sul-rio-grandense, assim como nos informa também sobre a

situação econômica do Rio Grande do Sul, reforçado pelo que diz Guilhermino César, "um

fato econômico transcendente viria alterar o quadro político e social do Brasil: a descoberta

do ouro em Minas Gerais". Parece-nos que, não fosse o fato de termos uma economia

subsidiária que sustentasse o "novo Potosí" e o Rio Grande do Sul, ou pelo menos boa parte

dele, não seria português, dado ao desinteresse demonstrado pela metrópole, por tantos

anos.

Félix reforça a tese dos autores acima citados, e também a a no que tange ao

processo de formação do Rio Grande do Sul, quando destaca que:

A região permaneceu longo tempo inexplorada, nos séculos XVI e XVII por não apresentar interesses econômicos para Portugal. A ocupação se fez, basicamente, no século XVIII, movida por duas ordens de interesses: econômicos, ligados ao tropeirismo, por parte de paulistas e lagunenses, e de defesa da fronteira, por parte de Portugal. Nesse século, o quadro passou a se alterar, em função da ocupação de alguns pontos da vasta região dos Pampas. Nessa fase eram os interesses portugueses que dirigiam e orientavam as tropeadas. Abriu-se o caminho do sul quando, a partir de 1725, os lagunenses desceram para os campos do sul, fixando-se nos campos de Viamão, e os paulistas dirigiram-se aos campos de Vacaria, interessados na indústria pastoril e no comércio de gado. No transcurso do século XVIII, o Rio Grande do Sul iniciava sua integração nacional através dos interesses, principalmente paulistas, de apresamento do gado, da mesma forma que também os jesuítas retornavam ao Rio Grande do Sul, fundando os Sete Povos das Missões e passando a transportar rebanhos para a zona da serra. (1996, p. 36)

O tropeiro será um dos grandes responsáveis pela abertura de novos caminhos por

onde levavam tropas de gado do sul do país para serem vendidos nas feiras de Sorocaba,

em São Paulo.

141

A Coroa portuguesa, objetivando a ocupação do Rio Grande, distribuiu, em meados

do século XVIII, sesmarias57 aos tropeiros que manifestavam intenção de se fixar à terra e

aos militares58 que se licenciavam do serviço militar, definindo assim a posse da terra e do

gado e a guarda das terras para Portugal

Reverbel assim se refere à presença dos sesmeiros:

Encastelado em sua sesmaria, como senhor feudal, o estancieiro tornou-se caudilho e instrumento da ocupação lusitana da antiga "terra de ninguém". As terras que lhe eram concedidas seriam a garantia de sua fidelidade à coroa portuguesa. O paradigma da classe se chamava Rafael Pinto Bandeira, descendente de lagunistas e tido como o primeiro caudilho rio-grandense. (1996, p. 90-1-2)

A dificuldade em demarcar os limites entre Portugal e Espanha, nas terras do sul da

América, levou à necessidade do reforço militar na região. Para isso a Coroa portuguesa

recorreu aos estancieiros que, com suas forças irregulares, passaram a engajar-se na defesa

da terra. Isso obrigou a Coroa a conceder autoridade aos senhores de terra no Rio Grande

do Sul, ao mesmo tempo que distribuía sesmarias na bacia do Jacuí, aumentando a

ocupação do interior.

Barroso apud GÜNTER (1992, p. 42) teoriza que a concessão de sesmarias teve

importância vital para que o território do Rio Grande do Sul se tornasse, aos poucos,

português. A autora afirma que “Não fosse o processo de legitimação de "arranchamentos"

ou a doação de terras através dos títulos de concessão de sesmarias seria muito provável

que o oeste sulino se conservasse sob o domínio espanhol, conforme determinava o Tratado

de Santo Ildefonso.”

57 PESAVENTO, Sandra J. História do Rio Grande do Sul Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 15. Sesmarias eram terras devolutas, medindo em regra 3 léguas por 1 légua (cerca de 300 hectares) 58 Foi, no entender de Reverbel, o período de "maior número de concessões, (...) distribuindo-se entre os oficiais e soldados que davam baixa do serviço ou se mantinham em armas. (REVERBEL, opus cit., 1996, p. 92)

142

De certa maneira, no Rio Grande dessa época, as forças irregulares pesaram mais

que as enviadas pelo Reino, onde todo homem válido era um soldado em potencial.

É significativo, pois, o intento dos portugueses: garantir um território, que ainda não

era seu. Para que isso se efetivasse, a garantia residia numa questão estratégica, pois, sendo

as sesmarias grandes extensões de terra e, pertencentes a um só dono, a idéia era a defesa

dessas terras, pelos sesmeiros, que em última análise as estavam defendendo para Portugal,

uma vez que o Brasil era sua colônia. Continuando, a autora explica ainda que:

Enquanto os espanhóis promovendo uma ocupação dispersiva se preocupavam em fundar grandes cidades, os portugueses, ao conceder grandes extensões de terras, promoviam um povoamento extensivo, de maior domínio estratégico. Assim, as terras foram sendo povoadas na direção sudoeste. Nessa área em disputa, palco de muitas lutas fronteiriças, a classe de estancieiros-soldados que se formou pelo privilégio de ocupar os campos lentamente ganhos do "inimigo", ao resguardar o controle, o domínio da área lusitana. Eis a singularidade dessa política: a Coroa ao legalizar a posse transferia ao proprietário o ônus da manutenção da terra, garantindo e resguardando automaticamente os seus domínios no extremo-sul brasileiro. Nesse contexto, a estância se constituía, pois, numa verdadeira fortaleza. Sem dúvida consistiu esta uma estratégia exitosa que conseguiu empurrar a fronteira até o rio Uruguai. (1992, p. 4 )

A política de sesmarias foi, sem dúvida, a garantidora da posse portuguesa às terras

que não eram suas, pois ao fazer a doação de grandes extensões territoriais, tinha, em

contrapartida, não só "gente sua", ocupando o local, mas, o que é muito significativo,

defendendo-o dos castelhanos.

Essas disputas de terras, decididas na Europa, interferem sensivelmente na

configuração geográfica do Rio Grande do Sul que, ora tem sua fronteira aquém, ora além

das reduções jesuíticas orientais.

Como explica Gutfreind:

Os contornos geográficos do Rio Grande do Sul atual sofreram modificações através de sua história. No período das lutas entre Portugal e Espanha pelas terras ao sul do continente, ora espaços foram anexados, ora perdidos por um dos

143

Impérios, em detrimento do outro. Exemplifica-se com a fundação de núcleos de povoamento, como a Colônia do Sacramento, em 1680, dilatando o domínio português ao rio da Prata e, conseqüentemente, uma maior extensão de terras passa a compor o extremo sul; a conquista e permanência espanhola, no século XVIII, em áreas de povoamento luso, de 1763 a 1776, uma vez mais locomoveu as fronteiras; a anexação da extensa área das Missões, a noroeste, em 1801, criou novos contornos para as terras do extremo sul, e o Rio Grande do Sul, em suas feições atuais, é dessa época. (1992, p. 21)

Não há como ignorarmos a presença, a interferência, a influência entre espanhóis,

portugueses, indígenas nas terras e na cultura rio-grandense, uma vez que esses povos,

devido às modificações fronteiriças, impregnavam com suas culturas e seus conhecimentos,

as terras que iam habitando.

A questão do Rio Grande do Sul pertencer aos lusos ou aos espanhóis é uma questão

de base política entre Portugal e Espanha pela disputa de terras no continente sul-

americano, que se reflete nas questões étnico-culturais. A assinatura e/ou o

desmantelamento de tratados: Madrid, Santo Ildefonso, El Pardo, promove uma

movimentação fronteiriça que logicamente vai se refletir nas questões culturais e étnicas.

É a partir das disputas territoriais que entendemos que as fronteiras geográficas do

Rio Grande do Sul não foram durante muito tempo bem definidas, ou seja, eram fronteiras

móveis. Essa mobilidade fronteiriça, em algum momento, começa a interferir na fronteira

étnico-cultural que, ora aproximava, ora distanciava as pessoas.

A primeira fronteira que se observa em O Continente é a relação que se estabelece

entre o campo e a cidade e, por conseguinte, a ambivalência entre a sociedade agropastoril

patriarcal patenteada pela estância e a sociedade citadina burguesa, que vai se formando, ao

longo do tempo, no romance.

Chiappini apud HOMENAGEM A ERICO VERISSIMO, assim explica a respeito

de O Tempo e o Vento, o que pode ser aplicado a O Continente.

Em O Tempo e o Vento, as cenas ambientadas em Santa Fé terão sempre como

144

pondo de referência o campo de um lado e a cidade de outro, a sociedade rural patriarcal, sob o signo da estância e a sociedade burguesa, sob o signo da cidade. O contraponto permanente fará com que não se tenha aí uma oposição simplista que atribua à cidade as luzes e ao campo a gnorância e a barbárie ou, inversamente, a este a pureza e a fartura; àquela a corrupção e a miséria. (1995, p. 323)

Desse modo, vamos verificar, no desenrolar da história rio-grandense as

modificações que se impõem por força de uma sociedade em mutação. Assim, com o

advento da industrialização, a estância começa a perder prestígio econômico e financeiro,

com a saída de braços, que trabalhavam na lavoura e na criação de gado, os quais se

dirigem às cidades onde está a "garantia" de um salário fixo mensal, onde se vislumbra o

futuro e, com isso a estância perde também sua importância política, paulatinamente.

Conforme explica Zilberman:

(...) do andarilho Rodrigo Cambará chega-se aos poderosos chefes políticos no final do século 19, encabeçados por Licurgo Cambará. Trata-se, por isso, de um processo de tomada de poder, matéria que conforma O Continente, e sua perda, devido às transformações sociais sofridas e à desagregação da própria dinastia Cambará. A história do Continente sulino confunde-se com a trajetória dos donos do poder, revelando que o percurso político do Estado sempre atendeu aos interesses da camada proprietária, protagonizada pela família em questão. E que seu deslocamento em relação aos eixos decisórios se deveu à decadência desta mesma classe, já que depositou seu destino nas mãos dela por muito tempo. (1980, p. 85)

É quando podemos aferir que a política é a grande saída encontrada por Erico, para

dar uma nova conformação e atuação aos Amaral e aos Terra-Cambará. Como ensina

Fresnot (1977, p. 27): “A força dos Amarais ou dos Cambarás está na posse da terra que

lhes permite explorar a maioria, aqueles que quase ou nada possuem. Quantos Carés para

um Cambará haverá em Santa Fé, São Paulo, Pernambuco...?”

Como já dissemos previamente na página 75, a posse da terra é também a garantia

da "respeitabilidade política" tanto dos Amaral como dos Terra-Cambará. É a política da

imposição, quer pelo dinheiro, quer pelo poder político, quer pela força policial. Aos Carés,

145

e outros tantos, resta a resignação de obedecer a um ou a outro. Entretanto, apesar da

condição social, econômica e política, todos eles são os representantes da sociedade

gaúcha. E como nada é eterno, encontramos uma passagem ilustrativa em Erico, que

começa a delinear os novos rumos de Santa Fé:

No princípio dum novo verão chegou um mensageiro com a notícia de que o Cel Ricardo tinha sido morto num combate e que os filhos estariam de volta a Santa Fé dentro de três meses, com os soldados que tinham "sobrado" da guerra. Na estância de Santa Fé houve choro durante três dias e três noites. As mulheres nos ranchos estavam ansiosas, queriam saber quantos haviam sobrevivido dos quarenta e tantos que tinham partido, fazia mais dum ano. O mensageiro entortou a cabeça, revirou os olhos e respondeu, depois de alguma reflexão: - Sobraram uns vinte... - E como visse consternação no rosto das mulheres, fez uma concessão otimista -... ou vinte e cinco. E se foi, assobiando uma música de gaita que aprendera nos acampamentos da Banda Oriental. - Mas Pedro está vivo - disse Ana Terra para si mesma. - Uma coisa dentro de mim me diz que meu filho não morreu. -Tomou a mão da futura nora e arrastou-a para o rancho, dizendo: _ Temos de arrumar a casa pra esperar o noivo. (1999, v. 1, p. 144)

A família Amaral será, por muito tempo, a senhora absoluta de Santa Fé, povoado

fundado por Ricardo Amaral, que o legará a seus descendentes, até que com a mudança de

situação política essa mesma força passará às mãos dos Terra - Cambará.

Como afirma Souza in GONÇALVES.

No romance de Erico Verissimo, o espaço físico de Santa Fé, atravessa o tempo, enfrenta o vento e participa do contexto da ficção, não apenas como cenário, de forma passiva, mas também como uma personagem, cujo papel é nortear ou orientar o percurso do tempo, de todas as outras personagens. Tanto os espaços urbanos como os arquitetônicos representam papéis significativos, haja visto o papel do Sobrado, o casarão dos "Amarais", a Igreja ou a Intendência, além evidentemente da praça com sua figueira, ou das zonas do Barro Preto e Purgatório, para citar apenas alguns. Eles fazem parte do passado e do futuro. (2000, p. 232).

O espaço tem uma significância muito forte na obra de Erico. Já nos referimos aos

espaços da casa, destinados à mulher, que é propriamente o espaço do lar. Esse é o lugar

destinado às dignas senhoras, mães de família, esposas devotadas e filhas obedientes. O

outro espaço, o externo, pressupõe a rua, por onde não só podem como devem circular os

homens. Esse é o espaço do cidadão, do homem do dia-a-dia, é o espaço que conota

146

liberdade.

É interessante observar que, embora haja, em tese, uma delimitação dos espaços

feminino e masculino, na realidade não há uma fronteira que os separe, pois as mulheres

não são impedidas de saírem às ruas; o que se impõe é que elas não participem das

discussões públicas. Quanto aos homens, entram e saem de suas casas com a mesma

liberdade que lhes é peculiar.

Existe, no romance de Erico, um número significativo de personagens. Entretanto,

todos giram em torno de três grandes famílias: os Amarais, os Terras e os Cambarás. Os

caractéres de cada uma não se esgotam em função da morte de seus representantes

principais, ao contrário, se presentificam nos seus descendentes.

Moraes assim os descreve:

Eis os Amarais, fundadores de Santa Fé, caudilhos prepotentes, em que o mandonismo estreito se associa à astúcia rude e à cupidez. Nos Terras, há a reserva, a esquivança e o fatalismo do índio ancestral, assim como lealdade, ardor contido e uma calma e tenacidade frias. Os Cambarás, de sangue ardente, índole aberta e franca, são impetuosos, explosivos, passionais. (1959, p. 222)

Na obra de Erico, nossa representante lusa abastada é a grande família de Ricardo

Amaral - estancieiro, chefe militar e político. Na história dessa época, podemos citar

"Bento Gonçalves da Silva" (...) misto de estancieiro - guerreiro - estadista" (Brasil, 1993,

p. 137 apud GONZAGA & FISCHER).

As personagens de O Continente, envolvidas de uma maneira ou outra com a

formação do Rio Grande do Sul e sua necessidade de crescimento e desenvolvimento

constituíram seus laços não apenas entre si, oportunizando o crescimento de Santa Fé, mas

principalmente com a terra, representante de força, riqueza e poder.

A obra de Erico é toda permeada de fatos históricos. O período entre 1777 e 1811,

usado pelo autor é, no entender de Reichel in GONÇALVES:

147

... fundamental para a delimitação do atual território do Rio Grande do Sul, pois, além de seu início ser marcado, como refere Erico, pela expulsão dos espanhóis das terras do continente, ele corresponde ao momento da expansão portuguesa para o oeste e para o sul da linha de Tordesilhas. Corresponde, assim, a um momento de construção de novas fronteiras, quando o território se estendeu até o rio Uruguai, através da anexação da área missioneira e, no sul, foram ocupadas as terras que correspondiam aos campos neutrais. (2000, p. 210)

Essa movimentação lusa, para além do que dispunha o Tratado de Tordesilhas,

parece-nos fundamental no que tange à idéia de mobilidade fronteiriça - aqui

especificamente tratada em O Continente - no que se refere a portugueses e espanhóis, pela

disputa de terras do Novo Mundo. É a transposição da linha demarcatória que, pouco-a-

pouco, vai tomando espaço e ganhando forma para configurar-se no que é, hoje, o Rio

Grande do Sul.

A terra aqui é não apenas o chão onde se planta e se colhe, onde se criam os

animais. Ela é também a casa, é a defesa da fronteira, é a conquista de novos espaços.

"Precisamos de gente. Um dia inda hei de mandar uma petição ao governo pra fundar um

povoado aqui"59. Essas foram as palavras do Coronel Ricardo Amaral para Ana Terra

quando ela chegava a Santa Fé. Percebe-se, dessa frase, não apenas o desejo do Coronel em

fazer crescer o povoado, mas também o de Ana em esquecer o passado, ao dirigir-se para

uma terra estranha, como se depreende dessa passagem de Erico, em que Ricardo Amaral

conversa com Ana Terra:

- Onde está o marido de vosmecê? Ana não teve a menor hesitação. - Morreu numa dessas guerras. (1999, v. 1, p. 137)

Há muitas maneiras de se compreender a terra. A visão do Cel. Amaral é a do

148

estancieiro, rico proprietário, político poderoso. Mas a terra é mais do que essa visão

individualista da personagem. Ela representa "a imagem arquetípica da 'grande mãe'"60. É,

pois, a imagem de ventre, útero. É também a segurança, pois é onde são "plantadas" as

raízes que, fecundadas, darão continuidade às famílias. Não é por acaso, que terra se torna

substantivo próprio na obra de Erico.

A terra demarca um espaço, portanto estabelece uma fronteira que às vezes é

intransponível, outras vezes não, às vezes é móvel, outras vezes não, às vezes aproxima os

homens, outra vezes os distancia. E disso pode advir a guerra, a disputa, a "peleia", a

conquista. Ela é também o espaço onde se pode construir: uma família, uma morada - que

em nosso estudo simboliza-se pela casa e pelo Sobrado, pois "todo o espaço realmente

habitado traz a essência da noção de casa"61. A terra determina o espaço dos que a possuem

e portanto, são os "senhores", gente importante e influente na política, e o espaço dos que

nada têm e, portanto, aficam jados do poder.

Quando falamos em casa, em nossa dissertação, sinalizamos para a existência de

rancho, casa de campo e de cidade, galpão "porque a casa é o nosso canto do mundo (...) é

o nosso universo"62. Deixamos o Sobrado à parte, embora também seja uma das

representações de casa, propositadamente, pois entendemos que a importância que Erico

destaca a ele confere-lhe uma descrição mais pormenorizada e um significado especial.

O rancho é uma construção rude "feita de barro, muito comum nos campos do Rio

Grande do Sul, principalmente à beira dos banhados e restingas (...) a porta era de couro".

59 VERISSIMO, Erico. O Continente. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 137. 60 MAROBIN, Luiz. Imagens arquetípicas em O Continente, de Erico Verissimo. São Leopoldo: EdUNISINOS, 1997, pp. 37-8 e 43. O autor explica que Arquétipo vem de "arché typos", cunhado primeiro, modelo original"(...). Significa (...) modelo exemplar, padrão, tipo primordial, modelo do seu criador, modelo original (...) paradigma.” 61 BACHELAR, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 25. 62 BACHELAR, Gaston. Op. cit., p. 24.

149

(MAROBIN, 1997, p. 76). Essa é uma descrição que demonstra não só a simplicidade da

construção em si, mas também a de seus habitantes. Erico retrata o rancho de Ana Terra,

comparativamente, à descrição. "O rancho não era grande. Constava de uma só peça

quadrada com repartições de pano grosseiro... Ali fazia as refeições e fiava nas noites frias"

(ERICO, 1999, v. 1, p. 87). A finalidade do rancho, embora humilde é cumprida, ou seja,

abrigar os seus ocupantes, do rigor do vento Minuano.

O galpão é muito simples também: "quatro paredes, um telhado e uma porta. Às

vezes apresenta-se com um dos lados abertos. No galpão dormem os peões ou camponeses,

onde fazem seu fogo de chão para tomar mate ou churrasquear (...)"(MAROBIN, 1997, p.

77). O galpão é uma das construções mais tradicionais nas estâncias do Rio Grande do Sul,

localizando-se nos fundos do quintal É o lugar onde "nas horas de folga, reúnem-se peões,

estancieiros, viajantes, empregados das estâncias, para horas de lazer, para contar 'causos'"

(MAROBIN, 1997, p. 78).

A casa de campo é igualmente simples, rústica e o que a separa das demais

construções é que nela "vive a família de maneira estável e organizada". (MAROBIN,

1997, p. 79). Essa família, de que o autor fala, é a do estancieiro.

A casa de cidade que tomamos por base é a da personagem Pedro Terra. Erico assim

a descreve

ficava numa esquina da praça, perto da capela, com frente para o poente. Baixa, de portas e duas janelas, tinha alicerces de pedra, parede de tijolos e era coberta de telhas. Os tijolos haviam sido feitos por Pedro em sua olaria (...). Não era muito grande. Tinha uma sala de jantar, que eles chamavam varanda (...), dois quartos de dormir, uma cozinha e uma despensa, que era também o lugar onde ficava o bacião em que a família tomava seu banho semanal (...). A cozinha, que era a peça que o dono da casa preferia, por ser a mais quente no inverno e a que mais o fazia lembrar outros tempos - chão de terra batida, cheiro de picumã, crepitar de fogo, chiado da chaleira - ficava bem nos fundos da casa, com uma janela para o quintal onde havia laranjeiras, pessegueiros, cinamomos, um marmeleiro-da-índia, e o poço. (1999, v. 1, p. 191)

150

A casa era pequena, sim, pobre igualmente, mas com uma finalidade especial:

estruturada em termos arquitetônicos e com o mínimo de conforto para abrigar sua família.

A casa de Pedro Terra tem uma significância notável. Ela não é apenas um abrigo, ela é

algo presente na vida familiar. Essa é a casa que, com o tempo, dará origem ao Sobrado.

A casa de Pedro Terra, embora simples, já nos acena com uma certa importância: a

de estar localizada na praça. Nesse momento ela é apenas a casa de uma família para quem

só restou essa moradia. Com o passar dos anos, porém, dando ensejo à edificação do

Sobrado e retornando essa casa às mãos da família Terra, o que podemos constatar é o

óbvio: o Sobrado ocupa um lugar de destaque - a praça da cidade de Santa Fé. Quem nele

reside são pessoas que, com o tempo, adquiriram prestígio social e político; é o poder de

uma elite aliado à riqueza que passou a possuir.

Para a personagem Pedro Terra, a casa tem um valor inestimável e isso é "passado"

aos descendentes, por exemplo quando Bibiana retoma essa "terra" transformada em

Sobrado, muitos anos depois, casando seu filho Licurgo com Luzia Silva, então dona do

Sobrado.

Ao iniciar O Sobrado, Erico faz dele toda uma descrição arquitetônica, mas também

retrata as características físicas e psicológicas de suas personagens, suas angústias, seus

medos, suas alegrias, a vida do dia-a-dia, as guerras, os acontecimentos sociais. E o grande

acontecimento histórico que é a Revolução Federalista (1893 - 1895), a qual mistura-se ao

cerco do Sobrado e à vitória dos Cambará sobre os Amaral, ou seja, a vitória republicana e

castilhista.

Bordini tece considerações sobre o Sobrado, embasada na idéia que o próprio Erico

fez do mesmo. A autora assim se reporta:

Quando analisa a criação dessa obra a "posteriori", Erico afirma que, dos

151

primeiros episódios de "O Continente", "O Sobrado" significou o mesmo que a criação de uma personagem, símbolo uterino de aconchego, tradição e fortaleza, talvez uma recriação idealizada do lar paterno perdido, embora não se parecesse com o casarão de Franklin Verissimo. (1995, p. 133)

A comparação que Erico faz entre casa e Sobrado são visíveis no diálogo do Padre

Antônio com o Padre Alonzo quando este, atormentado por pesadelos antigos, deseja se

confessar. O autor personifica essas duas construções, comparando-as com os sentimentos

humanos. Erico, através do pároco, assim se pronuncia:

Nossa mente, Alonzo, é como uma grande e misteriosa casa, cheia de corredores, alçapões, portas falsas, quartos secretos de todo o tamanho, uns bem, outros mal-iluminados. No fundo desse casarão existe um cubículo, o mais secreto de todos, onde estão fechados nossos pensamentos mais íntimos, nossos mais tenebrosos segredos, nossas lembranças mais temidas. (1999, v. 1, p. 26),

A casa, aqui, é o legado, a herança de uma família que tem coisas para guardar bem

escondidas, ou seja, partes de um passado que não deve vir à tona.

É uma relação interessante que Erico faz ao comparar "casa" com feminino e

"sobrado"63 com masculino. A casa nos traz a idéia de aconchego, de proteção, de colo

materno. Erico reúne dois arquétipos e ambos acabam simbolizando a mesma coisa: as

personagens femininas são muito fortes, como já dissemos no subcapítulo 2.1., têm os "pés

plantados no chão", proporcionam o equilíbrio da vida, representam a terra e, como tal, são

as mantenedoras das raízes familiares/sociais. A casa é a fortaleza, é a que resguarda e

abriga a todos os seus habitantes. É, portanto, como a mãe sempre pronta a proteger todos

os seus filhos.

Bachelard lança um olhar esclarecedor sobre a compreensão que,

A casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o

63 Os significados ocultos de casa e sobrado foram estudados por Jean Chevalier e Bachelard. "A casa significa o ser interior, seus andares, seu porão e sótão simbolizam diversos estados da alma. O porão corresponde ao inconsciente, o sótão à elevação espiritual. A casa é, também, um símbolo feminino, com o sentido de refúgio, de mãe, de proteção, de seio materno". (Dicionário de Símbolos, p. 197) In. MAROBIN, Luiz. As Fontes Regionais e Universais de Inspiração em "O Continente". Verso e Reverso: Ano Vi, N. 11, jul./dez., 1992, p. 47 - 64.

152

devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. (1996, p. 26)

O "sobrado" é a representação masculina, é a fortaleza com toda uma descrição

física: suas portas e janelas, o porão, o sótão, a escada, quartos, salas. Entretanto, aquele

que deveria abrigar seguramente toda a família é "atormentado" por inimigos naturais

como o Minuano, a noite gelada, os ratos, o teto que estala e os inimigos políticos, cujo

objetivo primordial é "tomar" de assalto, o símbolo da imposição que ele representa. A casa

familiar vai se transformando, ao longo da estória, em fortaleza de guerra.

Marobin descreve a casa e o sobrado em suas representações feminina e masculina,

assim teorizando:

Érico Veríssimo, em O Continente, colhe inspiração na face externa e na face oculta do sobrado, da casa, da querência, dos pagos, da moradia, do galpão. A obsessão do sobrado é tanta que ocupa seis longos capítulos de O Continente. A casa é fonte externa e interna de inspiração. Essa necessidade de proteção, de casa paterna e materna, de abrigo do corpo e da alma, acompanha Érico Veríssimo como inseparável sombra. O sobrado é casa-abrigo, matriz de origem, ponto de partida e ponto de chegada. Lá se nasce e lá se morre. A inspiração no sobrado, na casa, na querência, nos pagos, colhe imagens, temas e todo um leque de vivências. (1992, p. 50)

O sobrado e a casa apresentam duas faces: uma externa, que esconde a face oculta,

simbólica, e uma interna, que acolhe a família. O porão e o sótão são duas representações

muito significativas que o autor usa, ao lançar a idéia de que há vida no sobrado, e há nessa

vida coisas a esconder e coisas a mostrar.

Bachelard argumenta que:

Logicamente, é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas; e quando a casa se complica um pouco, quando ela tem um porão, um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida, em nossos devaneios

153

(1996, p. 27-8).

Assim entendemos que o sótão representa a relação espiritual - talvez por estar no

ponto mais elevado da moradia, enquanto o porão representa o oculto, aquilo que não pode,

ou não deve, ser mostrado a todos, são os segredos os quais devem ser guardados, como a

confissão do Pe. Alonzo ao Pe. Antônio, descrita por Erico:

- Aos dezoito anos fui amante de uma mulher casada (...) - Essa mulher era o centro de minha vida, padre (...). Ela costumava dizer-me

que o marido a maltratava, que batia nela (...). - Um dia resolvi matá-lo... (1999, v. 1, p. 25)

É uma mesma situação: a ficçõo representada acima, pela conversa dos dois

párocos, é reforçada aqui, pela explicação de Bachelard, que analisa:

A verticalidade é proporcionada pela polaridade do porão e do sótão. As marcas dessa polaridade são tão profundas que, de certo modo, abrem dois eixos muito diferentes para uma fenomenologia da imaginação. Com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade do teto à irracionalidade do porão. O teto revela imediatamente sua razão de ser: cobre o homem que teme a chuva e o sol. (...) No porão também encontraremos utilidades, sem dúvida. Enumerando suas comodidades, nós o racionalizamos. Mas ele é a princípio o ser absoluto da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas. (1996, p. 36-7)

Se, por um lado, identificamos casa e sobrado como gêneros feminino e masculino,

respectivamente, por outro estabelecemos uma relação única entre os dois, pois, no

momento em que se transpõem as portas do sobrado e entra-se casa-a-dentro, encontra-se a

outra face do sobrado.

Na obra ora em estudo, casa e sobrado têm uma dimensão dúplice, ao mesmo tempo

que se fundem numa única construção física. A barreira e o mistério que o Sobrado impõe

estacionam na porta de entrada do mesmo. Transposta a porta, rompe-se a ilusão impositiva

que a construção estabelece e entra-se na casa, onde há vida, aconchego, riso, choro,

154

mágoa, lamentações, vitórias, perdas, esclarecimentos e também segredos.

A casa pode ser vista como um ser concentrado, exerce uma força sobre os seus

moradores, confirmando ser um centro de proteção. Bachelard (1996, p. 48) fala-nos no

sonho da cabana, escrito por Henri Bachelin, para quem se "encontra na própria casa o

devaneio da cabana. Tudo o que ele tem a fazer é (...) escutar, no silêncio do serão, a lareira

que crepita enquanto o vento frio sitia a casa, para saber que no centro desta, sob o círculo

da luz da lâmpada, ele mora numa casa circular, na cabana primitiva".

Há, na casa de que nos fala Bachelard (1996, p. 62), assim como no romance de

Erico, uma "comunhão dinâmica entre o homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre a

casa e o universo, estamos longe de qualquer referência a simples formas geométricas. A

casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico".

Comparando o que nos diz Bachelard com a descrição que é feita do Sobrado é que

podemos entender extensão de casa e Sobradona obra de Erico:

O forasteiro que chega à nossa vila há de por certo quedar-se surpreso e boquiaberto diante duma maravilha arquitetônica que rivaliza com as melhores construções que vimos no Rio Pardo, em Porto Alegre e até na Corte (...), que o senhor Aguinaldo Silva (...) mandou recentemente erguer na Praça da Matriz, num terreno de esquina (...). Dotada de dois andares e duma pequena água-furtada, destacam-se em sua fachada branca os caixilhos azuis de suas janelas de guilhotina, (...) sendo que a do centro, mais larga e mais alta que as outras, está guarnecida duma sacada de ferro (...), por baixo desta sacada, no andar térreo, fica alta porta de madeira de lei, tendo de cada lado três janelas idênticas às de cima. Ao lado esquerdo, do sobrado, (...) vemos imponente portão de ferro forjado (...). O terreno a que este portão dá acesso, está todo fechado por um muro alto e espesso que (...) aperta a casa como uma tenaz (...). Não devemos esquecer outro encanto , qual seja o seu vasto quintal todo cheio de árvores de sombra e frutíferas, como laranjeiras, pessegueiros, guabirobeiras, lindos pés de primaveras, cinamomos, magnólias e um esplêndido e altaneiro marmeleiro-da-índia. (1999, v. 2, p. 330).

Essa descrição do Sobrado nos dá idéia de sua imponência, de poder, riqueza e

prestígio social da família; traz também a imagem da casa simples que fora antes a morada

de Pedro Terra, ao referir-se às árvores que foram plantadas e cultivadas pelos antigos

155

moradores.

É a terra , em última análise, que vai dar a conformação econômica e política ao

Rio Grande do Sul, através dos latifúndios, que subjugam o homem à terra, e seus grandes

proprietários, que se apresentam ora como caudilhos, ora como intendentes, mantendo o

status quo. Ou, como diz Zilberman (1998, p. 76), é o "diagnóstico de uma camada social,

que confunde a si mesma com uma nacionalidade para universalizar suas prerrogativas".

Essas prerrogativas prefiguram uma fronteira entre a classe social mantenedora do

poder, nesse momento vinculada à agropecuária, e os desfavorecidos, representados pelos

Carés, que vivem numa situação de completa submissão. Configura-se, assim, uma

identidade de classe que separa, que segrega os que não têm posses, e que disputa palmo-a-

palmo a hegemonia política de Santa Fé que, em última análise representa as disputas

políticas do Rio Grande do Sul com os outros estados do Brasil.

"A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de

estabilidade"64. Nessa observação podemos entender que dentro de casa há a idéia de

proteção, pois a compreendemos como o nosso abrigo, o nosso refúgio. De uma certa

maneira, a casa delimita o espaço do outro, ela traça uma fronteira que só permite a entrada

dos convidados.

Existe uma frase de um poema em prosa de Henri Michaux citado por Bachelard

(1996, p. 220) que diz: "O espaço, mas você não o pode conceber, esse horrível interior-

exterior que é o verdadeiro espaço"65. Ao transportarmos essa frase para o estudo do espaço

da casa e do Sobrado, tratados por Erico Verissimo, vamos voltar ao nosso ponto inicial em

que o interior está voltado às interpretações, às conotações de abrigo que a casa

64 BACHELARD, G. Op. cit. p. 36 65 MICHAUX, Henri. Nouvelles de l'étranger. Paris: Mercure de France, 1952.p. 91.

156

proporciona aos seus moradores quando ultrapassam suas entradas e penetram casa-a-

dentro.

Quanto ao exterior, podemos vê-lo sob dois prismas: um como a imagem que o

Sobrado provoca, aos leitores de O Continente, ao ser encarado como fortaleza, como

símbolo do poder, o qual desperta o desejo de possuí-lo aos inimigos das gentes do

Sobrado. Buscamos em Erico o seguinte exemplo:

O Sobrado ali estava na luz indecisa da alvorada, pesado como uma fortaleza e ao mesmo tempo com o jeito dum grande animal adormecido. Fora recentemente caiado de novo, os caixilhos das janelas pintados dum azul anil, os azulejos polidos; e nas grades do portão a tinta estava ainda fresca. Pombas que tinham fugido da torre da igreja, assustadas pelo badalar do sino, estavam agora pousadas no telhado do casarão dos Cambarás. Apesar de tudo, o monstro continuava a dormir. Num dado momento, porém, como uma pálpebra que se ergue, revelando o brilho duma pupila, abriu-se o postigo duma das janelas do andar superior, deixando aberto na fachada um quadrilátero luminoso onde se recostou o vulto dum homem alto e espadaúdo, metido num camisolão. (1999, v. 2, p. 565)

Interior e exterior não chegam, em nossa ótica, a produzir fronteiras. São apenas

binômios, que não se colocam em oposição, mas servem para analisarmos as dimensões de

um e de outro, considerando os respectivos espaços que ocupam e envolvendo as

personagens na obra de Erico.

O outro ângulo que podemos ver é tomar a palavra exterior em toda a sua extensão -

o que está fora, lá fora, do outro lado das portas do Sobrado, o que também pode ser visto

como uma atração para os que estão dentro da casa/Sobrado. Ou ainda, como já dissemos

no capítulo I, o exterior determina, em O Continente, o espaço masculino.

Marobin destaca que.

Em "O Continente, o espaço tem como balizas as estâncias, o campo, Santa Fé, Porto Alegre, Rio Pardo, Santo Ângelo, Cruz Alta, Pelotas, Taquara, Rio Grande, São Miguel, São Leopoldo e Viamão.

(...) No espaço aberto, sem fronteiras, sem estradas, sem cercas de arame farpado caldeia-se a consciência viva da liberdade, da altivez, da hospitalidade, a tendência para o mando e poder de liderança. (19985, p. 171)

157

Entretanto, quando se considera o outro - o castelhano - como inimigo, aí temos um

limite geográfico. "Um dia essa castelhanada ainda nos paga. Deixa estar..."66, dizia o Cel.

Ricardo Amaral a Ana Terra. Culturalmente, porém, continuaremos a nos servir das ditas

fronteiras pois, nesse caso, ao invés delas dividirem os povos, elas os unem e aí sim

podemos falar em liberdade, hospitalidade, porque ambos os interesses são requisitos

positivos para os dois lados da fronteira.

A família Amaral será por muito tempo a senhora absoluta de Santa Fé, povoado

fundado por Ricardo Amaral que o legará aos seus descendentes, até que com a mudança de

situação política, essa mesma força passará às mãos dos Terra - Cambará.

Numa passagem de O Continente encontramos a personagem Chico Amaral, agora

o Senhor de Santa Fé, após a morte de seu pai Ricardo Amaral, sendo recebido pelo

comandante do Continente, Silva Gama. O encontro dessa personagem com o Governador é

significativo para os rumos de Santa Fé. Erico assim descreve:

(...) O Governador concedera-lhe as três léguas de sesmarias que ele requerera e, quando ele lhe contara de seus projetos de fundar um povoado, Silva Gama lhe dissera: "Faça uma petição ao comandante das missões. Eu vou recomendar-lhe que a despache favoravelmente". Foi assim que um dia, alguns meses depois, o novo senhor de Santa Fé chegou a cavalo e, bem como fazia o pai, postou-se debaixo da figueira, chamou os moradores dos ranchos e contou-lhes que o administrador da redução de São João lhe mandara um ofício concedendo o terreno necessário para a edificação do povoado. Chico Amaral leu em voz alta: "... ordeno a Vmcê, que faça medir com brevidade meia légua de terreno no lugar em que pretendem formar a povoação, contendo desde o ponto em que desejam ter a capela, um quarto de légua na direção de cada rumo cardeal, em rumos direitos de Sul a Norte, e de Leste a Oeste."

(...) Houve um ponto para o qual o Maj. Amaral chamou a atenção dos presentes, lendo-o duas vezes com ênfase: "Ninguém poderá ocupar mais terreno que aquele que lhe é destinado, salvo o caso de compra a outrem que já possuir título legítimo." (1999, v. i1 p. 147)

66 VERISSIMO, Erico. O Continente. São Paulo: Globo, 1999, v. 1., p. 137.

158

Quando da leitura de O Tempo e o Vento deparamo-nos com duzentos anos de lutas,

revoluções, guerras, resistências e movimentação de fronteiras. A narrativa, a fala e a saga

de suas personagens recompõem a história sul-riograndense e retratam o gaúcho nas suas

tradições, nos seus usos e costumes, no seu caráter destemido e conquistador, bem como as

mazelas que nem o "tempo, nem o vento" conseguem obscurecer.

Não podemos esquecer que o estado faz parte da região fronteiriça com os países do

Prata, o que significa dizer que ser gaúcho é também incorporar essa cultura limítrofe.

Assim, como enfatiza Padoin apud QUEVEDO,

(...) quando os estrangeiros tentam localizar o Rio Grande do Sul e/ou a cultura gaúcha, prevalece a visão de classificá-la como uma cultura regional que pertence ao âmbito da cultura brasileira ou ainda é vista e identificada principalmente com a cultura argentina e uruguaia. Assim, o olhar "do outro" fez refletir sobre a relevância de destacar o espaço fronteiriço platino, no qual o Rio Grande do Sul inseriu-se, no estudo da cultura gaúcha e/ ou identidade regional. (1999, p. 376).

Nosso entendimento, a respeito das palavras da autora, leva-nos mais uma vez, a

questionar as matrizes de formação do homem sul-rio-grandense, pois entendemos que,

sendo o Rio Grande do Sul não apenas uma região que faz limites diretos com os estados

platinos, mas que, no passado, foi extremamente disputado por lusos e espanhóis, esses

fatores ao invés de distanciarem os "gaúchos" de seus vizinhos, aproximaram-nos,

sobretudo no que se refere à formação cultural.

Reverbel afirma que.

O território do antigo Continente começou a ser povoado com gente que veio para ficar. Os espaços foram sendo ocupados, chegando-se a um ponto em que não havia mais lugar para o gaúcho na sua feição primitiva, marcada pelo nomadismo e recortada nas lonjuras dos horizontes sem fim. (1996, p. 85)

É, portanto, um estado que se forjou primeiramente português, por força de uma

conquista, para depois tornar-se brasileiro, por força de uma vontade própria, tomando

feições políticas quando a monarquia portuguesa cedeu lugar à república brasileira.

159

Erico dimensiona, via literatura, o que a historiografia propaga, e o faz em vários

momentos de sua obra: o deslocamento da família Terra, de São Paulo para as terras do

Continente, habitando a estância; a saída de Ana Terra com o que restou de sua família,

após o ataque dos castelhanos, para as terras de Santa Fé; o crescimento econômico-

financeiro da família Terra-Cambará e sua disputa e vitória política sobre a família Amaral,

até então os senhores de Santa Fé.

Por meio dessas personagens literárias, que metaforizam a história do Rio Grande

do Sul, constata-se a presença de uma família portuguesa, saída de São Paulo, em direção

ao sul do Brasil. Não tem esse fato, a conotação de desbravar? O estabelecimento de Ana

Terra em Santa Fé não representa a idéia de fixação do homem/mulher à terra? E,

finalmente, o crescimento econômico, financeiro e político dos Terra-Cambará sobre a

força instituída, representada pela família Amaral, não é a luta constante de um estado que

se mostrou e se impôs como tal, ao restante da Federação? A resposta a essas indagações

explicita o nexo, o binômio, os liames que interligam literatura e História, e as deixam

muitasv vezes num mesmo tempo.

2.3 Os Tempos das Narrativas: do liame necessário entre História e Literatura

"O tempo passou. Dizem que tempo é remédio para

tudo. O tempo faz a gente esquecer. Há pessoas que

esquecem depressa. Outras apenas fingem que não se

160

lembram mais.".

Erico Verissimo.

Nada é mais histórico do que falar em tempo. Ou, dito de outra forma, não podemos

falar em História sem nos referirmos ao tempo. O tempo passado, longínquo, que nos traz

recordações, ou nos permite ler o que os historiadores produziram; o tempo presente,

"testemunha" de nossa contemporaneidade; o tempo futuro, o incerto, aquele que jamais

poderemos saber, apenas buscar nos indícios, assertivas ou não, para as conseqüências de

nossos atos.

Sob o olhar de Chronos, o tempo "anda" mais ou menos celeremente, nas muitas

sociedades e seres que compõem o Universo. Pode ser representado pelo relógio, pela

ampulheta, pelo calendário, pelas fases da lua, etc.

Como rememora Monteiro:

Para o historiador, o tempo é uma categoria básica de trabalho, não só no sentido de situar os acontecimentos e processos sociais num tempo cronológico, linear, constante, uniforme e irreversível dos calendários, mas no de compreender e problematizar a própria percepção do tempo como uma construção social. Assim, a forma como um grupo ou uma sociedade percebe a passagem do tempo, as mudanças das formas socioculturais no presente em relação aos elementos recebidos da tradição e as expectativas do futuro também constituem-se em objetos de estudo para o historiador. (2000, p. 123)

Podemos deduzir dessa afirmativa que o tempo é a matéria-prima com a qual a

História trabalha. Cronológico, linear, evolutivo, esses são os tempos importantes para o

ofício de historiador e que se distinguem do tempo da narrativa literária. Para esta, o tempo

pode ser mítico, cíclico, interior não tendo, necessariamente, que ser preciso: é o tempo do

"Era uma vez..." e o leitor não estará preocupado em clarificar quando é efetivamente essa

"uma vez".

161

Não estamos estabelecendo, aqui, uma fronteira que separa o tempo da narrativa

histórica, do tempo da narrativa literária. Estamos apenas apontando a liberdade que o

escritor-narrador tem, também diante da mensuração do tempo. Estamos também tentando

estabelecer que há momentos, há situações, há acontecimentos em que ambas - História e

literatura - podem ser trabalhadas sob o mesmo prisma. Uma passagem de Erico

exemplifica nosso entendimento:

Às vezes a Coroa se apossava das colheitas, prometia pagar mas acabava não pagando. Por outro lado, as sementes escasseavam e o governo nada fazia para ajudar o agricultor. As lavouras começavam a ficar abandonadas. (...) E assim, aos poucos, o trigo tinha ido águas abaixo. A coisa começara lá por 1815, no ano em que apareceu a ferrugem. Pedro lembrava-se bem pois fora na época em que, triste e estropiado, ele voltara da Banda Oriental. Viera depois a pavorosa seca de 1820. Daí por diante as lavouras tinham começado a mermar, a mermar até se acabarem. Só se salvou quem tinha criação. E a salvação dele, Pedro, havia sido a olaria. Os Amarais exigiram a devolução as terras, pois ele não pudera cumprir o prometido no seu compromisso de compra. E assim ficara apenas com a olaria e a casa do povoado. (1999, v.1, p. 196)

Esse exemplo que extraímos de O Continente reflete nossa fala. O autor situa um

fato histórico e econômico, o aparecimento da ferrugem em 1815, e a seca de 1820, como

fatores prejudiciais à personagem ficcional que é Pedro Terra, que diante das dívidas ficará

apenas com a olaria, para sua subsistência e da família e a casa do povoado - Santa Fé - que

no futuro se transformaria no Sobrado, conforme já revelado no subcapítulo 2.2.

Assim, entendemos que há também pontos de aproximação entre a História e a

literatura. É Veyne (1982, p. 11)67 quem nos afiança a fala ao dizer que o historiador "faz

com que um século caiba numa página, pois ele simplifica, seleciona e organiza o tempo,

aproximando-se de alguma maneira da ficção". Ou seja, podemos afirmar, com certeza, os

vínculos que unem História e literatura, guardadas as devidas especificidades de cada uma,

que as distribuem em campos diferentes do conhecimento, os quais de forma alguma são

162

opostos. 68

Falando a respeito do tempo e do historiador, encontramos uma fala de Nunes apud

Riedel que assim registra.

A distância temporal interferente alerta-nos sobre o equívoco do conceito de representação nesse domínio. Aplicá-lo seria pressupor que o historiador reconstrói uma realidade original dada. Ora, entre o historiador e a realidade não mais existente, que deixa de ser, a relação, nem de completo distanciamento nem, de coincidência, só pode ser analógica, de caráter metafórico, o que é compatível com o plano configurativo da narrativa. (1988, p. 33)

A exposição de Nunes dá-nos a entender que, quando o historiador recria o passado,

ele não o vivenciou de fato e, portanto, de posse de documentos, livros, revistas, jornais,

boletins, fotografias, depoimentos, entre outros, ele poderá analisar e relatar os fatos

encontrados. O narrador, por sua vez, traz de novo, ao presente, o mundo próprio da obra,

pelo efeito da leitura. A marcação que se faz do tempo tem, em História, a firmeza da

afirmativa de que um fato histórico ocorreu. Em Literatura, pode situar qualquer fato que o

escritor esteja desenvolvendo.

Essa questão da temporalidade alerta que "o tempo da enunciação no texto da

História corresponde ao tempo da escrita no romance, enquanto o tempo do enunciado diz

respeito ao chamado tempo da aventura na narrativa de cunho ficcional" (Baumgarten, apud

NEVES & TORRES, 199 p. 91).

Uma diferença básica, em nível temporal, entre História e literatura é que enquanto

esta tem a liberdade de trabalhar com o tempo ficcional, articulando passado e presente,

67 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: UnB, 1982, p. 11. 68 TOYNBEE, A. J. Un estudio de la historia. Buenos Aires: Emecé, 1951, tomo I apud RAMA, Carlos M. La Historia Y La Novela. Madrid. Tecnos, 1975, p. 13. "La Historia como el drama y como la novela - dice Toynbee - es hija de la mitología. Esta es una forma particular de comprensión y de expresión donde - lo mismo que en los cuentos de hadas que gustan los niños, y en los sueños de los adulto mundanos, la línea de demarcación entre lo real y la imaginación no há sido trazada. Se há dicho, por ejemplo, de La Ilíada,

163

num en passant, o mesmo já não acontece na História, presa que é do tempo cronológico e

suas explicações para os acontecimentos daquele momento. Assim, as vinculações entre

literatura e História, que podem ocorrer no plano narrativo, nem sempre se aproximam,

quando se trata do plano temporal.

Conforme nos aponta Baumgarten:

O tempo ficcional não sofre qualquer espécie de limitação, a não ser a da própria estrutura da narrativa que o articula. Sendo assim, as anacronias interrompem e invertem o tempo cronológico, deslocando presente, passado e futuro, podendo mesmo fazer com que a sucessão temporal contraia-se num momento único, acrônico e intemporal. Esse tipo de experiência com o tempo próprio do discurso ficcional não ocorre no plano da História, que deve ater-se ao tempo cronológico. (1993 p. 92-93)

É o que podemos observar quando Erico, ao mesmo tempo em que está narrando

um fato do presente, oportuniza que suas personagens se reportem ao passado, sem que isso

interfira na seqüência do ordenamento do seu pensamento de narrador. Assim, narrador e

personagem trabalham em consonância temporal, porque a ficção possibilita essa

pendularidade.

Por outro ladonada impede que ao historiador que narre a história com anacronia,

pois narrar não equivale a acontecer.

O romance de Erico cobre duzentos anos de história do Rio Grande do Sul, através

das narrativas ficcional e histórica. O autor, em nossa ótica, trabalha com duas

temporalidades: a de quando ele produz a obra - 1949, portanto em meados do século XX e

a da narrativa, que ele se propôs a escrever, focalizando-a a partir de 1745, meados do

século XVIII. O que está ocorrendo, no tempo da narrativa, no mundo e no sul do Brasil em

particular? É necessário compreender a importância que a ciência histórica passa a ter no

que aquel que emprenda su lectura como un relato histórico, allí encontrará la ficción y en revancha, que aquel que la lea

164

século XX. Se até então confundia-se História com narração, com Filosofia, com novela, o

século XX é o momento em que a História realmente se estrutura e se impõe como ciência.

Rama traz à memória que:

El siglo XX aumenta la importancia de la Historia. Por ser uma época en crisis suscitó su resurgimiento como ciencia, y todo lo contrario a las "edades consuetudinarias, lentas y pesadas" de que habla Croce, nuestro siglo "no concibe outro conocimiento que el conocimiento histórico, es una época que no se admite que pueda comprenderse y explicarse a sí misma si no es, a través y en función de su pasado, de su historia. (1975, p. 32)

No século XX é quando, podemos deduzir, a História passa a ter uma distinção

própria em relação aos outros campos do conhecimento. Embora a História necessite de

outras ciências69 para compor suas conclusões é, entretanto, ela a ciência que se preocupa

não apenas em relatar os fatos, passados ou presentes, mas principalmente em analisá-los

como efeitos sobre uma sociedade, uma civilização.

No tempo do texto, enfocado no romance, o mundo está envolto com a Revolução

Industrial, Teorias Raciais, Neocolonialismo. O Brasil, ao mesmo tempo que enfrenta as

guerras de fronteiras no sul, é ainda colônia de Portugal e, portanto, luta contra os

castelhanos. No tempo real, o país sentia ainda os reflexos das decisões políticas oriundas

da Segunda Guerra Mundial.

O que buscamos é, portanto, entender que há uma coexistência entre o que o autor

escreve e o momento em que ele o faz, passando essa compreensão para o leitor. Assim,

embora a primeira parte de O Tempo e o Vento tenha ficado pronta em 1949, podemos

como una leyenda, allí encuentra la historia". 69 RAMA, Carlos M. Opus cit.. Huizinga, en el trabajo que venimos utilizando, nos dice: "La Historia es la ciencia más dependiente de todas. Precisa más que outra ninguna de continuos auxilios y apoyos, para formar sus nociones, para fijar sus normas, para llenar sus fondos. Todas las ciencias hermanas son, a su vez, ciencia auxiliar al entendimiento histórico... Débese ello a que de todas las ciencias es la que se acerca más a la vida, porque sus preguntas y sus respuestas son las de la vida misma para el individuo y para la sociedad; porque los conocimientos que uno posee de la vida

165

observar que, de alguma maneira, Erico engajou-se nessa luta, como nos afirma Bordini

(1995, p. 57), garantindo que o romance insere-se "nas hostes dos combatentes pela

identidade nacional".

Erico teria empregado duas categorias em sua obra: tempo e espaço para situar o

momento de formação do Rio Grande de São Pedro em O Continente. O tempo é

preciso 1745 - 1945, para compor todos os duzentos anos que envolvem O Tempo e o

Vento: O vento, na obra de Erico determina as lembranças das personagens, a constância, a

repetição, sem necessariamente a precisão temporal; o tempo marca a passagem e, por

vezes, a destruição. O romance é pleno de exemplos, como na fala das personagens Ana

Terra e Bibiana, "Noite de vento, noite dos mortos". O vento provoca mudanças que podem

trazer sorte ou azar, produzir rupturas ou transformações. O tempo é uma incógnita. O

espaço é o Continente de São Pedro, cenário onde se desenrola toda a trama do romance,

pincelado pelos acontecimentos históricos.

Bordini (1991, p. 270) explica que "... o tempo para Erico é quase sempre a

sucessão de eventos concretos, cuja datação pode ser fixada". Podemos perceber isso

claramente nos muitos exemplos que Erico nos mostra em seu romance como, por exemplo,

quando ele situa as guerras de 1800, 1811, 1816, 1825.

O tempo na obra de Erico é um fator muito significativo, tanto que segundo nos

sugere Bordini, o autor pesquisou junto a dois filósofos, Kant e Bergson, as informações de

que necessitava. A respeito de Kant, Bordini esclarece que Erico

(...) colhe a idéia de que o tempo é mais geral do que o espaço, porque se aplica ao mundo interno das

impressões, em ações e idéias, que não admitem ordenação espacial. Destaca a noção de que o

personal o colectiva, pasan en una transición imperceptible a ser Historia. En esta relación indestructible com la vida, reside para la Historia su debilidad y su fuerza".

166

tempo é significativo para o homem porque não se separa do conceito do eu, já que a vida

orgânica só pode ser descrita em referência a sua história e a um estado futuro. (1991, p. 271)

Observamos a idéia de Kant manifestada claramente no romance de Erico, toda vez

que as personagens se referem ao tempo como uma lembrança, boa ou má, em que a

presença delas se faz significativa. "Sempre que me acontece alguma coisa importante, está

ventando"70, dizia Ana Terra.

Bordini (1991, p. 272) explicita que, de Bergson, Erico “(...) anota a concepção de

que o tempo é transição entre passado e futuro, em que o homem descobre a si mesmo na

memória, não de modo intermitente ou fragmentário, tateando cegamente no golfo da

mente, mas permitindo-se um momento de puro relaxamento” (cf ALEV 04 - 00 60 -1969).

Erico tranlada a passagem do tempo passado ao tempo presente, porque manipula o

tempo da memória, das lembranças guardadas na memória, das quais a qualquer momento

ele pode lançar mão sem o comprometimento que cabe ao historiador, de um tempo linear,

cronológico, evolutivo. É, portanto, um tempo cíclico já que nele vê-se a reversibilidade

dos acontecimentos.

Elegemos, em nosso estudo, algumas categorias de tempo que julgamos

significativas na obra em que estamos trabalhando. Iniciaremos pelo que chamamos tempo

cíclico-mítico da obra de Erico Verissimo, que aponta em A Fonte o início da saga da

família Terra-Cambará. O autor nos permite entender que é da fonte que tudo surge, é onde

tudo começa; a fonte é vida que nasce, que se desenvolve, que toma formas as mais

diversas.

Numa passagem de Mircea Eliade em Lo sagrado y lo profano, a autora assim se

70 VERISSIMO, Erico. Ana Terra. In. O Continente. São Paulo: Globo, 1999, p. 73.

167

expressa, acerca do tempo, afirmando que numa situação mítica, o tempo.

é sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota, é um tempo circular, reversível e recuperável, como uma espécie de eterno presente cifrado nas manifestações do mundo natural. Este mundo, por sua vez, é um espaço cósmico, suficiente à própria existência e, assim, se opõe ao "caos", o espaço desconhecido que está além das suas fronteiras. (1981, p. 74)

É como se o tempo não provocasse mudanças, por conta de uma circularidade que

só o tempo mítico pode oferecer. Nesse tempo ninguém envelhece, as coisas não terminam,

a existência é eterna pois o tempo pode ser recuperado a qualquer instante.

É, pois, o tempo circular, que nos traz a idéia de volta ao mesmo ponto, como

podemos observar nessa passagem de Erico:

(...) na estância onde Ana vivia com os pais e os dois irmãos, ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário nem relógio. Eles guardavam de memória os dias da semana; viam as horas passar pela posição do sol; calculavam a passagem dos meses pelas fases da lua; e era o cheiro do ar, o aspecto das árvores e a temperatura que lhes diziam das estações do ano. (1999, v. 1, p. 73)

Vamos observar que o tempo apontado por Erico é contado pelas personagens numa

relação direta com o passar das gerações, unidas pelos laços familiares mais íntimos e que

têm uma herança comum, um "tronco" original comum "que lhe fornece a identidade"

(Zilberman, apud GONÇALVES, 2000, p. 48). Aqui todos se reconhecem e se identificam

como parte integrante da mesma família.

Esse tempo está baseado "na natureza, que faz com que se repitam basicamente os

mesmos processos históricos de geração em geração"71, o que configura o caráter cíclico do

tempo.

O tempo representado é o tempo mítico, aquele que não traz transformações,

71 Cf. SURO, Joaquín Rodríguez. Érico Veríssimo: história e literatura. Porto Alegre: Luzzatto, 1985, p. 49.

168

mantendo as coisas no seu exato lugar. É também a idéia de um espaço igualmente arcaico.

É, portanto, um mundo fechado, como se observa, circular, voltado para o centro de si

mesmo, onde os papéis de cada um já estão traçados, e as normas, que lhes são próprias,

determinam o modus vivendi de seus membros. Não há mudança, pois os dias transcorrem

um após o outro, sem novidades; há uma espera de que as coisas aconteçam como devem

ser, como está escrito, determinado por uma força maior que a vontade humana. Há uma

repetição constante, dia após dia, dos mesmos afazeres domésticos, das mesmas leis, que

são imutáveis, da mesma vida.

Zilberman explica que:

A repetição é própria à estrutura do mito e impede a evolução dos eventos. Sempre se retorna ao momento original da fundação conferindo às transformações ocorridas a condição de mera aparência. É importante também a significação desses fatos reiterados: em todos eles, há a morte do pai após a geração do herdeiro, num processo análogo aos rituais do campo. Nestes, a cada nova semeadura, há um combate (simbólico) entre os deuses protetores, em que o vencedor, jovem e saudável, garante a riqueza e a fertilidade do ano agrícola. (1998, p. 74)

Nesse sentido há a representação do novo, da renovação que se sobrepõe ao que é

velho, desgastado e que, numa metalidade mítica72, conduz à morte para garantir a

fertilidade, a vida, que se dá com a juventude, mas que, por outro lado, não ignora e sim

mantem suas raízes, às quais, de certa maneira, impõem a repetição.

No romance de Erico, como destaca Zilberman, apud CHAVES (1981, p. 188),

O fato de que o filho repete o pai assegura a permanência do fantástico, proveniente de Pedro Missioneiro, em meio ao real. Além disso, a morte do pai, imediata ao nascimento do filho, reflete um procedimento que tem suas origens nos rituais do culto da terra, onde o deus nascente dá suas forças às novas semeaduras, uma vez que o anterior desgastou-se até a colheita.

72 Cf. ZILBERMAN, Regina. Do Mito ao Romance: tipologia da ficção brasileira contemporânea. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço Brindes, 1977, p. 186.

169

É um tempo, como se observa, cíclico, é sempre a volta ao ponto de origem. A

repetição se processa de duas maneiras, as quais fundem-se numa mesma finalidade: o

renovar constante das gerações que se sucedem e a renovação da terra através de novas

semeaduras e novas colheitas. A circularidade do tempo aqui dá mostras da relação família

e terra, ou família e propriedade da terra. Ou seja, manter a família, unida e forte, sob as

crenças que são passadas de geração a geração, é também manter a preservação da terra,

intacta, produzindo sempre. A relação intrínseca que se pode notar entre terra e família é o

mote que conduz a narrativa de Erico.

Ao tratar do mito,73 Zilberman justifica que:

(...) o mito, sendo a primeira manifestação criadora do homem e a fonte comum da religião e da arte, torna-se o instrumento de uma determinada classe, a que detém o poder sobre os meios agrários de produção. Inicialmente um instrumento de acesso ao real, vem a ser assim um fator de dominação, extremamento útil porque é a linguagem comum ao senhor e ao servo, num regime econômico dependente da ligação com a terra, isto é, numa situação em que o indivíduo jamais se libertou de seus laços com o ambiente circundante. (1977, p. 186)

Deter o poder sobre os meio de produção, num tempo em que a economia é

eminentemente agropastoril, reflete, no romance de Erico a ligação da terra à situação

mítica que serve ao propósito da classe dominante, a qual deseja manter seu status quo.

Manter as raízes com a terra é também manter uma massa trabalhadora que não discute as

ordens do patrão, e é também manter o mito que se forjou de que há uma democracia plena

que funciona na estância, onde patrão e peão são colocados num mesmo patamar.

Assim, quando Erico narra a conquista do Rio Grande do Sul, ele não o faz

exclusivamente, como registra Zilberman

através de episódios bélicos exemplares, mas por meio de um ritual que coloca a terra como intermediária entre o homem e seu filho (veja-se então os sobrenomes

73 Cf. EILADE, Micea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 11. Sobre a definição de mito a autora explica que: "o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecmento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio". (...) É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": (...) Os mitos descrevem as diversas e, algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrentural") no Mundo.

170

que assumem as personagens da família condutora da história, os Terra Cambará). O procedimento é coerente e verossímil, pois implantou-se no Rio Grande do Sul uma civilização vinculada à agricultura e à pecuária, de modo que uma manifestação deve aparecer mediada pelo recurso que assegura a sobrevivência econômica da grande propriedade rural. (1998, p. 75)

Terra e Cambará, transformados em substantivos próprios são

termos que nos trasmitem uma relação direta e forte com a terra,

conforme as análises e os exemplos acima. A terra, por si só, explica

o caráter de perenidade, de perpetuação da família, da estância, dos

valores morais, qualidades que são apontadas ao longo do romance

de Erico quando ele se refere à família Terra. Para enriquecer essas

qualidades, acresce-se o uso do nome Cambará, que provém de uma

árvore forte, resistente. Unem-se os dois termos, transformados em

nomes de famílias e o resultado é uma linhagem de dura cepa, onde

ao mesmo tempo em que se preservam os valores morais, também se

enaltece a coragem. São quesitos próprios de uma origem mítica,

imaginária, que precisa de heróis.

Erico refere-se ao tempo cíclico-mítico de muitas maneiras. Entre elas citamos:

Não havia datas. Esse era um característico das gentes daquele lugar: ninguém sabia muito bem do tempo. Os únicos calendários que existiam no povoado eram o da casa dos Amarais e o do vigário, o Pe. Lara. Os outros moradores de Santa Fé continuavam a marcar a passagem do ano pelas fases da lua e pelas estações. E quando queriam lembrar-se de um fato, raramente mencionavam o ano ou o mês em que ele se tinha passado, mas ligavam-no a um acontecimento marcante na vida da comunidade. (1999, v. 1, p. 184)

Observa-se, por esse exemplo, a relação que há com os fenômenos naturais: fases da

lua, estações do ano, o que bem caracteriza a repetição das coisas, o que é próprio do tempo

171

cíclico-mítico, ou seja, se as coisas sempre foram de um jeito, por que mudar? Os santa-

fezenses, por exemplo, não viam essa necessidade. O calendário, restrito ao vigário e à

família Amaral, não é fundamental para a seqüência da vida dessa comunidade, que vive

um dia após o outro, sem grandes expectativas.

Percebemos a importância que Erico atribui ao tempo histórico; mas notamos

também que ele o considera também cíclico. Talvez esse fato deva-se à alternância entre a

democracia e a ditadura, no Brasil, que Erico vivenciara entre 1930 e 1945, como já

afirmamos na página 63.

As repetições que o tempo cíclico impõe não se restringem aos fenômenos da

natureza, apontados acima. A hereditariedade também é um fator onde podemos notar as

repetições que se projetam nos descendentes, como aparece numa citação do Eclesiastes I,

4,5,6, que figura na epígrafe de O Continente.

Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos.

O exemplo acima não demonstra apenas as repetições que se operam com a

hereditariedade dos Terra-Cambará, mas reforça também, como já dissemos, a

permanência dos fenômenos naturais: terra, sol, vento que são categorias exploradas no

tempo cíclico-mítico, porque denotam a ligação dos homens com esses fenômenos.

Num tempo em que se crê no sobrenatural, há a crença de que para cada atitude

ruim, nociva que o ser humano comete, existe uma cobrança; mais cedo ou mais tarde, esse

homem responderá pelos seus atos. É uma outra nuance do tempo cíclico-mítico: a "sina", o

fatalismo, que podemos identificar nas rememorações de Pedro Terra:

172

Havia sempre o perigo das guerras; e os castelhanos não estavam muito longe de Santa Fé (...). Mais cedo ou mais tarde haveria outra invasão e era um risco muito grande ter mulher moça em casa num lugar abandonado como aquele. (...) Aquela era a sina dos habitantes da Província de São Pedro. Pagavam muito caro por viverem tão perto da fronteira castelhana. Diziam que no Rio de Janeiro a vida era diferente, mais fácil, mais agradável, mais confortável. (ERICO, 1999, v. 1, pp. 192-93)

É a idéia de que há sempre um pagamento para todas as escolhas que constitui em

vida, ou todo ato transgressor e isso é determinado pelo tempo, característica que se

observa no tempo mítico.

O tempo cíclico-mítico caracteriza uma história fechada, onde os papéis de cada

sujeito/personagem já estão previamente delineados. É uma história que se subordina aos

movimentos da natureza, às crendices, à obediência ao pai, ao marido, ao senhor, a

aceitação pacífica, fatalista dos acontecimentos, sem portanto a discussão que leve à

compreensão racional dos fatos.

Uma outra categoria que observamos na obra de Erico é o tempo passado e o

tempo presente. Trabalharemos com eles ao mesmo tempo, considerando a relação

intrínseca que se opera, no romance, toda vez que as personagens, em suas lembranças,

mais remotas ou mais recentes, se reportam ao passado.

Numa passagem de O Continente (1999, v. 2, p. 477), observamos como Erico

demonstra o passado:

Naquele dezembro - o sexto dezembro da Guerra - já não havia em Santa Fé família que não chorasse um morto. Desde o início da campanha a vila fornecera ao exército nacional seis corpos de voluntários. Os que não morriam ou desertavam, voltavam feridos ou mutilados, e em seus rostos os outros podiam ler todo o horror da guerra. As mulheres já não tiravam mais o luto do corpo: viviam a rezar, a fazer promessas e a acender velas em seus oratórios. (1999, v. 2, p. 477)

173

Nessa citação há uma data estabelecida, o que nos leva a crer que um fato

realmente se realizou nesse tempo. Observa-se que há uma afirmativa do que o autor

propõe. O tempo passado não traz boas lembranças, o que é reiterado pelas personagens

que desejam esquecer essa época. "O passado abriga para todos experiências amargas. Está

povoado de guerras, violência, opressão, injustiças, frustrações, amargura"74.

Identificamos, no tempo passado, duas situações antagônicas. De um lado as

personagens desejam romper com esse passado longínquo que tantos dissabores lhes

trouxe: as guerras, as mortes, as perdas em geral, como foi o caso da perda da casa de Pedro

Terra para Aguinaldo Silva - que originou o Sobrado - mas que, mesmo retornando à

família Terra-Cambará, através do casamento de Bolívar Cambará com Luzia Silva,

submete Bibiana a pagar um preço alto demais. Atingir o objetivo não lhe traz muita

satisfação, mas um gosto amargo de conquista. Por outro lado segue-se a idéia de

permanência, cujo representante maior, na obra de Erico, é o vento. Schüler apud CHAVES

(1981, p. 164) avalia que. “Um dos elementos de permanência é o vento. Na sua função

simbólica, forma antítese com o tempo. Enquanto passa o tempo, permanece o vento. O

vento se une às experiências das personagens. No seu periódico soprar evoca o passado.”

A permanência de que nos fala Schüler é retratada, por Erico Verissimo, em várias

passagens de O Continente como na conhecida frase da personagem Ana Terra, "Sempre

que me acontece alguma coisa importante, está ventando"75. Vamos constatar que o vento é

presença constante na vida dessa personagem, que faz uma relação entre os principais

acontecimentos que marcam sua vida pela passagem do vento. "Um dia de vento marcara a

74 "Cf. Schüler, Donaldo. O tempo em "O Continente". In. CHAVES, F. L. (org.). O Contador de Histórias: 40 Anos de Via Literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981, p. 161. 75 VERISSIMO, Erico. O Continente. São Paulo: Globo, 1999, p. 73

174

mudança radical de sua vida. Num dia de vento encontrara Pedro Missioneiro. Num dia de

vento, Pedro Terra, filho de Ana, parte para a guerra" (SCHÜLER, op. cit. p. 164). Na sua

função simbólica, o vento forma a antítese com o tempo, pois enquanto passa o tempo,

permance o vento. A permanência que o vento representa, se dá enquanto marco na vida

das personagens, do qual Ana Terra é uma representante; o periódico soprar do vento

rememora as lembranças, as experiências, as ausências, as perdas.

Uma outra forma de representar o tempo cíclico-mítico é através dos objetos como a

roca, a tesoura e o punhal, elementos que percorrem o romance de Erico. Sobre essas

representações, apontamos em Erico (1999, vol 1., p. 144): “(...). Olhava para a roca e

lembrava-se dos tempos lá na estância, quando a alma de sua mãe vinha fiar na calada da

noite. A roca ali estava, velha e triste, e Ana Terra sentia-se mais abandonada que nunca,

pois agora nem o fantasma da mãe vinha fazer-lhe companhia.”

A roca é um dos muitos signos que Erico se utiliza para dar sustentação à sua

história. Ela, a roca, representa a memória do que passou. Na tessitura dos panos, que vão

sendo manualmente produzidos por D. Arminda, depois por Ana Terra e posteriormente por

Bibiana, vão sendo repassadas as lembranças de outros tempos. A roca, ao girar,

produzindo seus tecidos representa o tempo cíclico, traz lembranças numa relação de

circularidade que reconduz ao presente, as lembranças do passado. É também a

representação da história que, no romance, é transmitida de uma geração a outra,

simbolizada nesses objetos, que são tão caros a essa família e que têm a conotação de

instinto de preservação da vida, da história, das lembranças.

A roca, como a tesoura são simbologias femininas, são legadas de geração a

geração, como se depreende do exemplo seguinte:

175

No momento em que cravara a última cruz, Ana teve uma dúvida que a deixou apreensiva. Só agora lhe ocorria que não tinha escutado o coração dum dos escravos. (...) Ela estava tão cansada, tão tonta e confusa que nem tivera a idéia de verificar se o pobre do negro estava morto ou não. Tinham empurrado o corpo para dentro da cova e atirado terra em cima... Ana olhava sombria para as sepulturas. Fosse como fosse, agora era tarde demais. "Deus me perdoe" - murmurou ela. E não se preocupou mais com aquilo, pois tinha muitas outras coisas em que pensar. (...) Começou a catar em meio dos destroços do rancho as coisas que os castelhanos haviam deixado intactas: a roca, o crucifixo, a tesoura grande de podar - que servira para cortar o umbigo de Pedrinho e de Rosa, - algumas roupas e dois pratos de pedra. Amontoou tudo isso e mais o cofre em cima dum cobertor e fez uma trouxa. (ERICO, 1999, v. 1, p. 126)

Ao tomar essas atitudes e seguir em frente, abandonando o rancho, Ana Terra rompe

um ciclo de sua vida e inaugura um outro, completamente novo. É um novo tempo, é a

esperança de uma nova vida. Ela chegará ao povoado de Santa Fé com o filho, a cunhada e

a sobrinha, como fugitivas do ataque castelhano, mas ninguém jamais saberá o que

realmente aconteceu. São os segredos da alma que não interessam a todos, são questões de

foro íntimo. São os sótãos ou os alçapões da vida de cada um!

Quanto ao punhal, que pertencera a Pedro Missioneiro, e que antes fora do padre

Alonzo, faz parte das heranças masculinas, como se pode extrair da conversa entre Ana

Terra e seu filho Pedro:

Um dia surpreendeu o menino a brincar com o punhal de prata. - Posso ficar com esta faca, mãe? Ela sorriu e sacudiu a cabeça afirmativamente. E Pedro dali por diante começou a riscar com a ponta do punhal os troncos das árvores, fazendo desenhos que surpreendiam a mãe. (ERICO 1999, v. 1, p. 119).

O punhal representa a simbologia de ser um objeto masculino E, no desenrolar de O

176

Continente, constata-se que ele passa sempre para um descendente homem. Schüler apud

CHAVES (1981, p. 166) infere que

Juvenal Terra, um de seus sucessivos donos, limpa com ele despreocupadamente as unhas, sem lhe dar consideração. O Capitão Rodrigo, vendo a arma, observa que é um bonito punhal. Juvenal olha o presente do avô, como se o visse pela primeira vez.

Através dessa observação de Schüler podemos compreender que, para as

personagens da obra de Erico, embora o punhal tenha toda essa representatividade

masculina, assim como a tesoura representa o lado feminino, e apesar dele estar há tantos

anos no seio da família Terra, ele não caracteriza um elo de ligação que lhes desperte

emoções do passado.

As personagens fazem do tempo o veículo de suas lembranças e vamos encontrar

em Bibiana Terra Cambará o símbolo do tempo. Ela é a "imagem arquetípica de esteio do

lar, das virtudes da casa, da família" e "na ausência do Capitão Rodrigo, tudo providencia,

tudo suporta" (MAROBIN, 1997, p. 106-7).

Bibiana é a espera eterna da volta do marido. Ela vê o tempo passar dia-a-dia, mas

mantém-se "firme" numa espera constante.

Porém, o tempo em O Continente é marcado na sua maior parte por

"acontecimentos funestos: praga de gafanhotos, invernos rigorosos, peste"76.

Schüler (1981, p. 164, op. cit.) explica que o romance de Erico "move-se entre dois

pólos, entre o que permanece e o que é destruído". Um dos elementos de permanência,

como já dissemos, é o vento que, assim como o tempo, tem uma importância capital na

obra de Erico, a ponto de misturar-se à vida das personagens, entre elas Ana Terra. Em

nossa ótica entendemos que a não limitação do tempo percorre o romance de Erico de ponta

177

a ponta, resgatando nas suas personagens lembranças as mais diversas e marcando, dessa

forma, sua inexorabilidade, rompida apenas pela presença da Teiniaguá, que se apresenta

em muitos momentos do romance e que, por isso, resiste ao tempo.

Quando Erico vale-se da história, inserindo-a em sua narrativa, ele é preciso quanto ao

tempo cronológico. “Em princípios de 1833, Santa Fé foi sacudida por

uma grande novidade: a chegada de duas carroças conduzindo duas

famílias de imigrantes alemães, as primeiras pessoas dessa raça a pisarem

o solo daquele povoado.”

Assim, podemos observar, mais uma vez, que a arte e a ciência não mantêm

fronteiras intransponíveis; são apenas quesitos próprios de cada uma, mas que não

impedem que o literário e o erudito se entrelacem, a não ser o tempo ficcional e o real para

as coisas da arte e as da ciência, respectivamente.

Às vezes o tempo é implacável, colocando em cheque e em choque determinadas

pessoas, como podemos perceber nessa situação extraída da obra de Erico, através da

conversa das personagens Florêncio e o Dr. Winter.

- Mas como é que duas pessoas que se odeiam assim podem viver

debaixo do mesmo teto? - Estão jogando uma carreira. - Como? - Sim, uma carreira (...). A raia de chegada é a morte. Só que

nessa carreira quem chegar primeiro perde.. - Perde? - O Sobrado e o menino

(...)

- Mas eu não compreendo então por que ela continua no Sobrado. - Muito simples. Se ela deixa o Sobrado, perde o neto. Pense

76 Schüller, Donaldo. O Tempo em "O Continente". In. CHAVES, Flávio Loureiro (org.) O Contador de Histórias. In. 40 Anos de Vida Literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1981.

178

bem, Florêncio. Se Luzia morrer, o problema se resolve. D. Bibiana fica com o menino e com o Sobrado e pode assim governar os dois como bem entender. Florêncio sacudia a cabeça com obstinação.

- Vosmecê está enganado. Tia Bibiana é uma mulher de bom coração.

- D. Bibiana é uma mulher prática. Aguinaldo Silva tomou a terra do pai dela por meio duma hipoteca. Ela recuperou a terra por meio dum casamento. (1999, v. 2, p. 487)

O tempo aqui tudo devora, representa a destruição, a ruína até a morte. Mas é

também um tempo cíclico sobre o qual outras gerações de Terra e de Cambará ocuparão o

Sobrado, o espaço deixado pelos ancestrais. E é também um demonstrativo de que esperar,

como fez Bibiana, é uma qualidade única das mulheres de O Continente.

O tempo, assim como o vento, não têm fronteiras, não delimitam espaços, não

escolhem por onde vão soprar, não determinam a quem vão assombrar ou alegrar, mas

deixam marcas. Tempo e vento, na obra de Erico, "caminham" pari passu.

A simbologia do vento é tratada como a recordação do passado, um período que, na

grande maioria das vezes, as personagens não gostariam de recordar. Mas, como interpreta

Schüler apud CHAVES (1981, p. 165), "o sopro do vento atravessa o romance de ponta a

ponta (...). O vento não preserva os sentimentos que se prendem a ele. Sopra indiferente a

tudo". Afinal, o vento, aqui, é uma simbologia de que ele sempre retorna ao mesmo ponto,

apesar das mudanças que se operam nos lugares e na vida das pessoas.

Em O Continente, o tempo presente e o tempo passado muitas vezes estão juntos,

por força das lembranças das personagens, o que significa dizer que esse recurso, usado por

Erico, determina a pendularidade de que tratamos no subcapítulo 1.1.

O tempo de O Continente tem um período específico: vai de 1745 a 1895. São cento

e cinqüenta anos que mostram as gerações se sucedendo, as mudanças ocorrendo mas sem

179

esquecer a tradição. Durante esse tempo são tecidas as teias da trama do romance - é o

vento, o qual passa pelas personagens num sentido oscilatório, numa estrutura pendular,

pois assim como se trata do que ocorre no tempo presente do romance, também os retornos

ao passado são constantes, através das lembranças das personagens.

Toda a vez que uma das personagens de O Continente se reporta às suas

lembranças, ela está, ao mesmo tempo, vivenciando o tempo presente e o tempo passado.

Erico elucida a questão:

Foi no ano de 1811. Contava-se que na Banda Oriental havia barulho, porque os platinos queriam se ver livres da Espanha. Quem é que ia entender aquela confusão? Diziam também que D. Diogo de Souza, comandante das forças portuguesas na Capitania do Rio Grande, estava acampado em Bagé com seus exércitos. Tudo indicava que estava preparando a invasão. (1999, v. 1, p. 151)

O tempo presente é pontual, é exato. Sabe-se quando ele ocorre, ainda que, muitas

vezes, a personagem se reporte ao passado, como no exemplo acima.

Uma terceira categoria que pode ser trabalhada é o que denominamos tempo de

guerra e paz. Na história do Rio Grande do Sul há uma alternância constante entre guerra e

paz e, como Erico narra a história do estado, através de seu romance, o enfoque que é dado

a essas situações é constante. Um exemplo de Erico demonstra a relação entre os tempos

de guerra e paz:

Foi naquele quente e abafado dezembro de 1869 que chegaram de volta a Santa Fé alguns voluntários que a guerra deixara inválidos. Entre eles estava Florêncio Terra, que recebera um balaço no joelho. Desceu da carroça apoiado em muletas. Estava tão barbudo, tão magro e sujo, que a própria mulher não o reconheceu no primeiro momento.

(...) Caminharam para casa, parando aqui e ali quando conhecidos vinham cumprimentar Florêncio. Queriam saber (...) como ia a guerra; quando vinha a paz; se era verdade que Solano Lopez estava morto... (1999, v. 2, p. 479)

Como se depreende da citação de Erico, guerra e paz são tempos que convivem

amiudemente, na história do Rio Grande do Sul. Há um tempo de paz, onde há

180

prosperidade e os santa-fezenses "levam" a vida. Mas há também os tempos de guerras, que

são muitos, e que desestruturam toda a vida do estado, representado, no romance, pelos

acontecimentos do povoado de Santa Fé. Logo no início de O Continente constatamos a

invasão que os castelhanos desferem sobre o rancho de Ana Terra. É uma luta desigual,

devido à superioridade humana e bélica dos castelhanos.

É uma luta desigual também por que viola o corpo de Ana Terra, numa simbologia

de terra arrasada. "A violação de Ana Terra pelos castelhanos é simbólica, pois é como se

eles tivessem violado a terra. Esse elemento exterior rompe com o mundo mítico dos Terra

e Ana, Pedrinho e os demais sobreviventes ao massacre tiveram de ir rumo à cidade".77

Essa situação, que obriga Ana Terra a emigrar com o que restou de sua família, para

Santa Fé, que tratamos no subcapítulo 2.1, representa também que a paz existente nas

"reduções jesuíticas, foi quebrantada pela violência da guerra, assim como o mundo idílico

dos Terra foi destruído pelo assassinato de Pedro e pela posterior matança dos Terra pelos

castelhanos.”78 Reforça-se, aqui, o entendimento de que no tempo mitológico há sempre um

pagamento pelos erros cometidos.

O deslocamento de Ana Terra para um outro lugar enseja uma mudança das mais

significativas. Não só a vida da personagem toma outros rumos, como a idéia de tempo

mítico-circular apaga-se e inicia-se um novo tempo, um tempo em que os elementos

histórico -sociais, como a guerra e a violência estruturam a trama do romance.

Ao tratarmos de tempo de guerra e tempo de paz queremos clarificar que eles não

se atêm somente à luta armada e aos acordos de paz que são firmados entre os participantes.

77 Cf. SURO, J. R. Op. cit. , p. 166 78 Cf. SURO, J. R. Op. it. P. 163.

181

Há também um constante conflito interno, de cunho pessoal, nas personagens

verissimianas. As lutas interiores, os medos, os segredos que cada personagem guarda

dentro de si correspondem a um conflito interior que também precisa ser vencido, para dar

continuidade à vida. Essa, em nossa ótica, simboliza a vitória do bem sobre o mal - produto

do tempo ciclico-mítico - a vitória da alegria sobre a tristeza. Guerra e paz são dois pólos

em que o ser humano se debate constantemente, seja nas questões de foro íntimo, seja numa

amplitude social.

É através desses tempos que vemos a obra de Erico toda permeada pelos

acontecimentos que marcaram a história do Rio Grande do Sul. Há uma mudança

significativa, nesse novo tempo, representado pela figura de Ana Terra que, ao deparar-se

com os horrores da guerra, e as decisões que precisa tomar, abandona a fatalidade e passa a

encarar a vida de forma realista. Ou seja, a sina de que falamos quando abordamos o tempo

mítico-cíclico, vai, aos poucos, perdendo sua significância, para dar lugar à "teoria

providencialista" (SURO, p. 167).

Embora nosso trabalho se restrinja a O Continente, ao analisarmos o tempo cíclico-

mítico dessa parte do romance, não podemos deixar de considerar que ele, o tempo, assim

se apresenta, baseado nas últimas palavras da trilogia de O Tempo e o Vento as quais são as

mesmas do início. "Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilizavam sobre a cidade

de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado"(O

CONTINENTE, 1999, v. 1, p. 1)

Essa maneira de Erico conduzir seu romance, iniciando e terminando com a mesma

frase, caracteriza, em nossa ótica, a repetição que se processa a cada nova geração de Terra

e de Cambará, que se sucedem na trama.

Mas, ao analisarmos os muitos momentos históricos, que Erico não se furta em

182

narrar em sua obra, observamos a preocupação do autor com a veracidade dos fatos,

buscados junto a membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, com

os quais ele mantinha boas relações de amizade, conforme analisamos no subcapítulo 1.3.

Percebemos que o tempo mítico, que reduz a vida das pessoas ao isolamento e ao

fatalismo, convive, ao longo do romance com o tempo histórico, que determina a sucessão

e que portanto suplantará aquele, modificando a paisagem da cidade e a vida das pessoas.

Santa Fé deixará de ser um simples povoado, transformando-se em cidade. A família

Amaral "cederá" gradativamente seu poder político aos Terra-Cambará.

Historicamente observamos que as mudanças estruturais que ocorrem no mundo

real dão suporte à escrita do romance de Erico. Quando, por exemplo, os latifúndios

perdem espaço para a indústria transformação, que se opera no Brasil a partir da década de

1930, esta transformação também atinge Santa Fé, que se moderniza. Quando a alternância

política percorre a cena política brasileira, ela também se presentifica em O Continente

através das divergências entre os Amaral e os Terra-Cambará, opondo, no mundo real,

simpatizantes dos monarquistas e dos republicanos, respectivamente.

A marcha do tempo conduzirá as mudanças; afinal são duzentos anos da história do

Rio Grande do Sul, que dão o suporte para a história de O Tempo e o Vento, narrada com a

maestria de Erico Verissimo que localiza primeiramente a história do estado, num tempo

mítico, especialmente quando trata da questão das Missões Jesuíticas, de Pedro Missioneiro

e de toda a crença nos fatos sobrenaturais, que se opera no início de O Continente.

Posteriormente, com a saída de Ana Terra de sua estância, rumo a Santa Fé, o que

se observa é a destruição desse tempo mítico, cíclico, circular e o início do tempo histórico

que presentifica o passado junto ao presente. É uma mudança que se opera não apenas no

romance, cujas personagens vão tendo uma outra compreensão do mundo, mas uma

183

transformação na história do Rio Grande do Sul, que se envolve, constantemente, nas lutas

de fronteiras contra os castelhanos e nas guerras internas para se integrar junto aos demais

estados da Federação Brasileira.

Nessa mudança radical do entendimento do tempo, registramos também um tempo

de paz e um tempo de guerra, presenças muito fortes e que se alternam não apenas no

desenrolar do romance de Erico, mas fatos presentes na própria história rio-grandense.

Entre os movimentos destacamos as Guerras das Missões (ainda no século XVIII), a

Campanha da Cisplatina, em 1811, a Revolução Farroupilha de 1835, a Revolução

Federalista de 1893, todos ensejando tempos difíceis para o estado, mas também tempos de

glória, onde finalmente o Rio Grande do Sul se impôs como um estado pertencente à nação

brasileira.

184

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao procedermos ao balanço final de nossa pesquisa, constatamos que, embora tenha

sido um trajeto árduo e difícil, foi também como uma emblemática volta ao lar, às leituras

já feitas na adolescência, e as quais regressamos na maturidade. Embora ao findarmos a

dissertação, permanece ainda uma sensação de que mais poderia ter sido feito. Mas foi

também um trabalho que nos trouxe muito prazer em gestá-lo, e nos saciou uma vontade

antiga: a de trabalhar com literatura e História, que, em nossa ótica, são dois campos do

conhecimento que respondem muito bem, e de forma muito agradável, à aproximação de

temas complexos.

É o caso da temática por nós escolhida. Entendemos que ao analisarmos a questão

das fronteiras e das identidades do Rio Grande do Sul, a partir de O Continente,

conseguimos mostrar que não há uma fronteira intransponível entre essas duas áreas do

conhecimento, mas sim uma aproximação entre elas.

Deparamo-nos com algumas dificuldades como as interpretações e questionamentos

que são feitos sobre o autor e de sua obra, como por exemplo a discussão a respeito de ser o

O Tempo e o Vento e também O Continente, um romance de fundo histórico, discussão que

já aparece em nosso primeiro capítulo. Outra dificuldade referiu-se à fortuna crítica de

Erico Verissimo, que é bastante extensa, e como nossa área de formação não é a literatura e

o nosso tempo era exíguo, selecionamos algumas obras, significativas claro, tanto no

cenário historiográfico quanto no literário.

Essa dissertação pretendeu contribuir para a reflexão acerca da questão das

fronteiras étnico-culturais especificamente, e a busca pela identidade sul-rio-grandense.

185

Para tanto buscamos compreender também o que se processava no Brasil e no Rio Grande

do Sul, nas décadas de 1930 e 1940, tanto política, social, cultural como economicamente

para compreendermos o porquê dessa obra só ter sido publicada após a ditadura do Estado

Novo, que Getúlio Vargas instalara no Brasil, em 1937 e que perdurou até 1945, com o

término da Segunda Guerra Mundial.

Pretendemos, com essas análises, observar as questões entre a literatura e a História,

contemplando o que dizia a intelectualidade literária a respeito do romance de Erico e os

representantes do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS), órgão

criado com a finalidade de estudar, debater e esclarecer questões de cunho histórico.

Trabalhando em dois contextos, o historiográfico e o literário, tivemos a pretensão

de inferir que esses dois campos do conhecimento, respectivamente, um tratado com o rigor

científico que a disciplina exige, e o outro com a liberdade que a arte lhe possibilita, não

estabelecem entre si uma fronteira, mas sim um campo de aproximação, especialmente

quando se trata de romance histórico, como é essa obra de Erico Verissimo e que, ao

mesmo tempo, mescla o caráter ficcional, tanto de personagens como da própria cidade de

Santa Fé, palco do desenrolar das venturas e desventuras de seus sujeitos, com a situação

real que acontecia no Brasil e no Rio Grande do Sul.

Entendemos que a produção historiográfica que era discutida nas décadas de 1930-

1940, no Rio Grande do Sul, notadamente em Porto Alegre, e a produção literária que Erico

orquestrava no mesmo período, foram encontros extremamente felizes e complementares,

guardadas, pois enriqueceram a literatura, que pode "chamar" os fatos históricos para

dentro de um romance. É aí que entendemos que O Tempo e o Vento, como um todo e O

Continente, em particular, é romance histórico, oportunizando, na mesma medida à história,

valer-se da literatura para discutir as questões de fronteiras e identidades do Rio Grande do

186

Sul, tomando por base o romance de Erico, bem como os lugares, os tempos, os contextos

literário e historiográfico, que cercam a relação entre a História e a literatura.

Ao adentrarmos na questão das matrizes de formação da sociedade sul-rio-

grandense, outro de nossos enfoques, e que em última instância redunda na questão das

identidades, tanto a lusa como a platina, tivemos a oportunidade de discustir também a

questão do eu e do outro, numa zona limítrofe que são as divisas territoriais entre o Brasil,

e a região platina, mas que oportunizam o nosso ponto de enfoque, as fronteiras étnico-

culturais.

O castelhano era visto como o outro da fronteira através do olhar do gaúcho

estabelecido no Continente de São Pedro, situação que se propala num período em que o

Rio Grande do Sul desejava ser reconhecido como brasileiro. Daí o porquê de manter-se,

por tanto tempo, a idéia de que a matriz de formação étnico-cultural da sociedade sul-rio-

grandense foi, exclusivamente, a matriz lusa. Felizmente a história é dinâmica e essa

temática foi totalmente superada.

Uamos em nossa pesquisa, não apenas historiadores e literatos – que deram o suporte

teórico-metodológico para esta dissertação – mas também autores da Antropologia.

Quermeos esclarecer que esse fato deve-se à discussão que propusemos, qual seja a das

fronteiras étnico-culturais. Achamos relevantes buscar subsídios nessa área do

conhecimento para embasar nosoos entendeimento sobre essas questões.

Nosso trabalho não teve por objetivo ensejar um debate a respeito das fronteiras

geográficas do Rio Grande do Sul. Entretanto, para tratarmos das fronteiras étnico-

culturais, veio à tona, forçosamente, a localização geográfica do estado e as implicações

que a movimentação no âmbito das fronteiras causava para os habitantes de ambos os lados

187

da mesma, o que, em última instância, vai gerar a inter-relação cultural nesses povos.

Nossa penúltima discussão referiu-se à questão do espaço, cenário imprescindível

quando se discutem questões históricas, pois há que se ter um lugar definido para explicar

onde e como os fatos ocorrem, onde e de que maneira os sujeitos vivem, onde planejam

suas batalhas, onde discutem seus termos de paz. Mas o espaço, em nossa dissertação,

representou também a terra.

A terra, em O Continente, exibe a estrutura social, o poder econômico e político da

classe dominante de Santa Fé. Ou seja, a ficção se reveste do que ocorria no Brasil e no Rio

Grande do Sul, no século XIX e ainda nos começos do século XX. Por outro lado, a perda

da supremacia política dos Amaral para os Terra representa, na história, a queda dos ideais

monárquicos que são vencidos pelos republicanos. Com isso, a mudança de uma estrutura

política e de mando, ficcionalmente, em Santa Fé, historicamente, no Brasil.

O enfrentamento econômico, retratado pelo latifúndio e seus grandes proprietários,

é um dos grandes motes do romance de Erico. Contudo, ao ser suplantado pela

industrialização, que cresce no Brasil a passos largos, a partir das décadas de 1930-40, ele

vai, aos poucos, se desconfigurando. Entretanto, valendo-se da historiografia, Erico deixa

claro que essa "aristocracia" gaúcha não morreu, apenas delegou, aos seus descendentes,

culturalmente letrados, sua continuidade no poder.

Em nossa pesquisa, o espaço forneceu-nos o mote para a discussão sobre a

representatividade da casa e do Sobrado - construção amplamente destacada na obra de

Erico Verissimo, ocupando sete capítulos de O Continente. É uma edificação que não se

resume apenas a uma mera construção arquitetônica, mas reproduz o marco familiar,

político e o lugar que ao mesmo tempo em que representa a força e o poder dos Terra-

Cambará, é também o lar, o lugar onde seus moradores podem sempre se abrigar, se

188

refugia, se proteger.

A análise procedida sobre esses espaços permitiu-nos compreender a relação que

Erico fez da casa com a noção de feminino, com o materno que em seu seio aconchega e

em seu útero abriga seus filhos, que os protege das tempestades – as reais e as imaginárias

- que lhes confere segurança. Embora sendo a mesma construção, o Sobrado - apesar de

bonito, passa-nos a imagem de frieza, de imponência, de austeridade, fatores que a imageria

popular da época em que se passa a obra de Erico, consagrou como a idéia de masculino.

Transpondo-se as portas do Sobrado penetra-se na casa, onde podemos encontrar o riso, o

choro, as disputas e a compreensão, a aparente fragilidade das mulheres, guardiãs da casa e

do Sobrado, e a força dos homens.

Nosso último segmento referiu-se ao tempo, matéria-prima exemplar da História

que, aliada ao vento, representa dois signos desdobrados por Erico em seu romance e que

estão presentes no título da obra O Tempo e o Vento, com toda sua pujança e destaque.

Abordamos três categorias de tempo, que julgamos serem as mais presentes na obra

de Erico e através das quais pudemos discutir a história junto com a literatura. Ao

levantarmos a questão do tempo cíclico-mítico, encontramo-lo, como já dissemos, no início

da obra do autor, nos capítulos A Fonte e Ana Terra, coerentemente com a idéia de

formação de um mundo em que o sobrenatural é muito presente; as explicações quando não

têm uma logicidade apelam para o fantasmagórico, para as lendas, para as crenças que são

passadas de uma geração a outra, para o fatalismo, onde se espera que as coisas aconteçam

mas pouco ou nada se busca para modificá-las. Há todo um envoltório mítico que cerca as

personagens e suas vidas.

Os tempos passado e presente que estabelecemos numa relação dialética aparece na

obra de Erico quando se rompe o ciclo do tempo mítico. A morte de Pedro Missioneiro,

189

causará a morte e a destruição da metade da família Terra, simbolizando o castigo que é

outra nuance do tempo mítico. Nesse momento, sem outra alternativa e com o medo de que

os castelhanos lhes ataquem outra vez, a personagem Ana Terra toma uma resolução: partir

em busca de novas paragens. É assim que chega, junto com a cunhada Eulália, o filho

Pedro Terra e a sobrinha Rosa, ao povoado de Santa Fé.

Em Santa Fé visualizamos as transformações que somente o tempo histórico,

representado pelo presente e pelo passado, rememorado pelas personagens verissimianas,

pode apresentar. Gradativamente o povoado se transforma em cidade, uma nova classe

social ali se instala. e os rumos econômicos se modificam. A estância, gradativamente passa

a dividir sua supremacia econômico-política com a indústria, mas não vai deixar de ter sua

representatividade junto ao mandonismo local. Em certa medida essa situação ocorria não

apenas no Rio Grande do Sul, mas também em todo o Brasil.

E há uma terceira categoria que denominamos tempo de guerra e paz, que não tratou

exclusivamente da luta armada. Referimo-nos a ela desde o início de nosso trabalho,

quando do equacionamento das fronteiras, que opunham brasileiros a castelhanos, para que

pudéssemos chegar a discutir as fronteiras étnico-culturais, sobre as quais também versou

esta dissertação. Em essência há todo o envolviemnto da história do Rio Grande do Sul e do

Brasil, traduzida nas ocorrências que envolvem a cidade fictícia de Santa Fé e seus

moradores. Ou seja, é a maneira de Erico “contar” essas histórias reais através da saga da

família Etrra-Cambará, desde a gênese até a vitória das forças republicanas, nas mãos de

Licurgo Terra Cambará, após o cerco do Sobrado, desferido pelas forças manarquistas

apoaidas, em Santa Fé, pela família Amaral.

O tempo de guerra e paz, a que nos referimos, também evidenciou as lutas interiores

que cada personagem travou consigo mesmo, seus fantasmas, seus medos, suas disputas

190

com outras personagens - como foi o caso de Bibiana Terra Cambará e Luzia Silva

Cambará, ao discutirem desde a educação de Licurgo, neto e filho respectivamente, até a

posse das terras do Angico e o Sobrado. Mas também tratamos da paz interior,

constantemente buscada. Esse tempo de guerra e paz interior pode ser encontrado também

no subcapítulo 2.1., destinado especificamente a tratar das personagens ficcionalizadas por

Erico Verissimo, que são as enriquecedoras do romance, são as protagonistas que dão vida

à obra e que transportam o leitor para os cantos mais obscuros da alma humana, assim

como o colocam diante dos acontecimentos históricos mais importantes, que fizeram do

Rio Grande do Sul um dos mais prósperos estados do Brasil.

Erico Verissimo, o "contador de histórias", nos motiva e nos provoca uma íntima

investigação: a dos desvãos da alma humana que, como em O Tempo e o Vento, e na

simbologia da tesoura e do punhal, revelam que a condição humana, em sua diversidade e

em sua multiplicidade, permite combinar a criação literária e as circunstâncias históricas,

como um cruzamento harmonioso entre ficção e realidade, entre literatura e História.

191

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