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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR LEANDRO SOUSA BESSA O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA FORTALEZA 2019

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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR

LEANDRO SOUSA BESSA

O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA

POBREZA

FORTALEZA

2019

LEANDRO SOUSA BESSA

O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA

POBREZA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD), da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Constitucional. Área de Concentração: Direito Constitucional Público e Teoria Política. Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria D'Ávila Lopes.

FORTALEZA 2019

LEANDRO SOUSA BESSA

O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA

POBREZA Tese julgada e aprovada para obtenção do título de Doutor em Direito Constitucional, outorgado pela Universidade de Fortaleza. Área de Concentração: Direito Constitucional Público e Teoria Política.

Aprovada em: __/__/2019

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria D'Ávila Lopes

(Orientadora/Universidade de Fortaleza - UNIFOR)

______________________________________________ Prof. Dr. Martônio Mont'Alverne Barreto Lima

(Membro/Universidade de Fortaleza - UNIFOR)

______________________________________________ Prof. Dr. Newton de Menezes Albuquerque

(Membro/Universidade de Fortaleza - UNIFOR)

______________________________________________ Prof. Dr. Bruno Queiroz Oliveira

(Membro/Centro Universitário Christus - UNICHRISTUS)

______________________________________________ Profa. Dra. Cynara Monteiro Mariano

(Membro/Universidade Federal do Ceará - UFC)

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, professora Dra. Ana Maria D´Ávila Lopes, por todo o incentivo

para o ingresso no doutorado e pela solicitude, comprometimento e afinco com que

acompanhou o desenvolvimento de toda a pesquisa.

A meus pais, Bessa e Lucimeire, por todo o suporte emocional e intelectual, assim como

pela atenção quase ininterrupta, desde meus primeiros passos, na luta pela solidificação de

meus princípios éticos.

À minha filha Lis, por ser meu maior presente e por me desafiar todos os dias a ser uma

pessoa melhor, com sua natureza questionadora.

À minha esposa Lívia Lessa, que, além de ser minha fonte de inspiração constante, tão

bem representa para mim o paradigma de defensora pública, mesmo exercendo seu mister em

condições tão adversas.

A meus irmãos, Mário Bessa e Victor Bessa (in memorian), pelo companheirismo de

todas as formas demonstrado, mesmo que às vezes sem palavras.

A todos os meus tios, em especial, a Dayse Maria Bessa Rodrigues (in memorian) e

Francisco José Loyola Rodrigues, que cultivaram em mim o prazer pela leitura e a ampliação

de conhecimentos como alicerces indispensáveis para a construção de um mundo mais justo.

À Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará (ADPEC) e à Defensoria

Pública-Geral do Estado do Ceará, pelo apoio e incentivo dispensados, assim como pelo

custeio, por essa última, de todo o curso de Doutorado em Direito Constitucional da

Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Ao Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), pela compreensão quando da

necessidade de afastamento temporário para o desenvolvimento da tese.

À minha amiga Andréia Costa, pelo incentivo e apoio permanentes, pela mão sempre

estendida, mesmo quando os naturais contratempos esmaeciam minhas forças.

A todos que compõe o Centro de Justicia y Derechos Humanos, da Universidade

Nacional de Lanús (Argentina), especialmente à Profa. Dra. Victoria Kandel e Joaquín S.

Goméz, pelo acolhimento, sugestões e direcionamentos durante os três meses de pesquisa

resultante do Edital 22/2014 – Programa de Cooperação Internacional CAPES/MINCYT, com

a Universidad Nacional de Lanús.

“Quando você for convidado pra subir no adro Da fundação casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados [...] E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo Diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos [...] Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui.”

(Haiti, Caetano Veloso) “Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los ningunos, los ninguneros, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos los nadies, jodidos: Que no son, aunque sean. Que no hablan idiomas, sino dialectos. Que no practican religiones, sino supersticiones. Que no hacen arte, sino artesanía. Que no aplican cultura, sino folklore. Que no son seres humanos, sino recursos humanos. Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Que no tienen cara, sino brazos. Que no tienen nombre, sino número. Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local. Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los nada, los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.”

(Los nadie, Eduardo Galeano)

RESUMO

O fenômeno da criminalização da pobreza representa um pensar e um agir orientados por uma pretensa certeza, construída por um discurso eficiente, de que os “indesejáveis sociais” (pobres) são os responsáveis por todos os males, eleitos como inimigos preferenciais, na maioria das vezes de forma velada, mas muitas vezes expressamente. As reações estatais ao avanço da criminalidade, aplaudidas por amplos setores da sociedade, convertem-se em manifestações casuísticas de recrudescimento da repressão penal direcionadas seletivamente contra os pobres, em detrimento de políticas públicas aptas a atingir as causas do problema. Nesse contexto, o objetivo desta tese foi apresentar propostas de atuação da Defensoria Pública aptas a possibilitar uma resistência à criminalização da pobreza, com esteio na missão delineada para essa Instituição pelo legislador constituinte, para garantir o assessoramento jurídico às pessoas economicamente fragilizadas. Utilizou-se o método dedutivo, visto que, partindo-se de análises gerais sobre o fenômeno da pobreza e sua criminalização, bem como da estrutura e atribuições da Defensoria Pública brasileira, chegou-se à específica construção de um paradigma de atuação dessa Instituição para a resistência à criminalização da pobreza, valendo-se, para tanto, dos instrumentos normativos existentes. A pesquisa foi do tipo bibliográfica, por meio de consulta a livros, revistas científicas, jornais, sites etc., bem como documental, por meio da análise de documentos oficiais relacionados ao tema. A pesquisa resultou na construção de novos paradigmas de atuação da Defensoria na seara penal, com ênfase em cinco grandes eixos: 1) a atuação judicial clássica: como instância de proteção e defesa dos economicamente vulneráveis; 2) a educação em direitos como instrumento de empoderamento dos vulneráveis, servindo a Defensoria Pública de meio de difusão do conhecimento de direitos, possibilitando aos pobres o caminho adequado para o seu efetivo exercício; 3) a atuação transindividual, por meio da qual a Defensoria converte-se em instituição de proteção de direitos coletivos dos pobres; 4) atuação extrajudicial e suas múltiplas possibilidades; 5) a atuação perante os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos. Nesse sentido, buscou-se o delineamento de atuações da Defensoria Púbica que representem, na resistência à criminalização da pobreza, a concretização de seus objetivos de instituição defensora de direitos humanos, como expressão e instrumento do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Defensoria pública. Criminalização da pobreza. Seletividade penal.

ABSTRACT

The phenomenon of poverty’s criminalization represents a thinking and action guided by a presumed certainty, built by an eficiente discourse that the “social undesirables” (poor) are responsible for all evils, elected as preferential enemies, most often veiled but often expressly. State reactions to the advance of criminality, applauded by broad sectors of society, have become casuistic manifestations of criminal repression selectively directed against the poor, in detriment of public policies capable of reaching the causes of the problem. In this context, the purpose of the present thesis was to present proposals of action by the Public Defender Office, capable of providing a resistance to the criminalization of poverty, based on the mission outlined by the constituent legislator to ensure legal advice to economically weak people. The deductive method was used, based on general analyzes on the pheonomenon of poverty and its criminalization, as well as the structure and attributions of the Brazilian Public Defender Office, the specific construction of a paradigm of this Institution’s action to resist the criminalization of poverty, using, therefore, the existing normative instruments. The research was of the bibliographic type, through consultation of books, scientific journals, newspapers, websites, etc, and also documentary, through the analysis of oficial documents related to the theme. The research resulted in the construction of new paradigms for Public Defender actions in Penal area, with emphasis on five main axes: 1) The classic judicial action: as an instance of protection and defense of the economically vulnerable; 2) education in rights as an instrument for the empowerment of the vunlerable, serving the Public Defender Office to disseminate the knowledge of rights, making the poor the right way for them to exercise effectively; 3) the transindividual performance, through which the Public Defender Office becomes an institution for the protection of the collective rights of the poor; 4) extrajudicial performance and its multiple possibilities; 5) the performance of international human rights protection system. In this way, we sought to outline the activities of the Public Defender Office that represent, in resistance to the criminalization of poverty, the achievement of its objective as an institution that defends human rights, as an expression and instrument of the Democratic State of Law. Keywords: Public defender. Criminalization of poverty. Penal selectivity.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AIDEF Associação Interamericana de Defensores Públicos

ANADEF Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais

ANADEP Associação Nacional dos Defensores Públicos

Art. Artigo

BID Banco Interamericano para o Desenvolvimento

BPC Benefício de Prestação Continuada

CADH Convenção Americana sobre Direitos Humanos

CBMCE Corpo de Bombeiros Militar do Ceará

CEDH Convenção Europeia dos Direitos do Homem

CEJIL Centro Pela Justiça e o Direito Internacioal

CELS Centro de Estudos Legislativos e Sociais

CEPAL Comissão Econômica para América Latina e Caribe

CF Constituição Federal

CF/88 Constituição Federal de 1988

CGJ-PI Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Piauí

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CIOPAER Coordenadoria de Inteligência e Coordenadoria Integrada de Operações

Aéreas

CJI Comitê Jurídico Interamericano

CNJ Conselho Nacional de Justiça

CNPCP Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária

CONAMP Associação Nacional dos Membros do Ministério Público

CONDEGE Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais

COPOL Coordenadoria Integrada de Planejamento Operacional

CorteIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

CPP Código de Processo Penal

CTV Centro de Triagem de Viana

DEPEN Departamento Penitenciário Nacional

DEPEN/MJ Programa Defensoria sem Fronteiras, um acordo de cooperação técnica entre o

Departamento Penitenciário Nacional

DPU Defensoria Pública da União

DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos

EC Emenda Constitucional

EUA Estados Unidos da América

FAO Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura

GMF Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

LC Lei Complementar

LEP Lei de Execução Penal

LONDP Lei Orgânica da Defensoria Pública

NADEP Núcleo Especializado de Assistência e Defesa ao Preso

ODM Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

OEA Organização dos Estados Americanos

OIT Organização Internacional do Trabalho

OL Lei Orgânica

OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

PARLATINO Parlamento Latinoamericano e Caribenho

PBSM Programa Brasil sem Miséria

PC Polícia Civil

PCC Primeiro Comando da Capital

PIDCP Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PIDS Programa Interamericano para o Desenvolvimento Sustentável

PM Polícia Militar

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPC Paridade de Poder de Compra

RE Recurso Estraordinário

RIPS Rede Interamericana de Proteção Social

SEJUS Justiça e Direitos Humanos

SIDH Sistema Interamericano de Direitos Humanos

SNPCT Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

SSP Secretarias Estaduais de Segurança Pública

SSPDS Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social

STF Supremo Tribunal Federal

TAC Termos de Ajustamento de Conduta

TSE Tribunal Superior Eleitoral

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

USP Universidade de São Paulo

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................... 14

1 POBREZA: MARCO CONCEITUAL E EXPRESSÕES DE SUA

CRIMINALIZAÇÃO................................................................................................ 20

1.1 Pobreza: uma aproximação conceitual............................................................... 20

1.1.1 O tema pobreza no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) ...................... 27

1.1.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH): previsão e combate à

pobreza ....................................................................................................................... 32

1.1.3 A pobreza brasileira ................................................................................................... 38

1.2 Criminalização da pobreza: conceito e espécies ...................................................... 43

1.2.1 Criminalização primária da pobreza........................................................................... 47

1.2.2 Criminalização secundária ......................................................................................... 54

1.3 Manifestações da criminalização da pobreza no mundo atual ................................ 67

1.4 O papel dos mass media na criminalização da pobreza ......................................... 777

1.5 Criminalização da pobreza e incompatibilidade com o Estado Democrático de

Direito ........................................................................................................................ 87

2 SELETIVIDADE PENAL E SUAS MANIFESTAÇÕES NOBRASIL ................ 107

2.1 Seletividade penal ................................................................................................... 107

2.2 A seletividade penal na história brasileira ............................................................. 117

2.2.1 O período colonial .................................................................................................... 119

2.2.2 O período imperial.................................................................................................... 122

2.2.3 O período republicano .............................................................................................. 127

2.3 O cárcere como instituição destinada aos mais pobres.......................................... 142

2.4 Execuções extrajudiciais e tortura ....................................................................... 1633

2.4.1 Execuções extrajudiciais ........................................................................................... 164

2.4.2 Tortura ..................................................................................................................... 174

3 DEFENSORIA PÚBLICA: FUNÇÕES FUNDAMENTAIS ................................. 185

3.1 A Defensoria Pública brasileira .............................................................................. 185

3.1.1 A Defensoria Pública ontem e hoje ........................................................................... 186

3.1.2 A Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988 (CF/88): instituição

promotora do acesso à justiça e dos direitos fundamentais das pessoas em situação

de vulnerabilidade .................................................................................................... 197

3.1.3 A Lei Orgânica da Defensoria Pública (LONDP) ..................................................... 207

3.2 Atuação internacional da Defensoria Pública: a Defensoria Pública da União

(DPU) e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) ........................ 212

3.2.1 O SIDH: estrutura e funcionamento .......................................................................... 212

3.2.2 A atuação interamericana da Defensoria Pública: DPU e Associação

Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF) ..................................................... 219

4 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA Na RESISTÊNCIA À

CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E À SELETIVIDADE PENAL ................ 230

4.1 A atuação judicial clássica: a Defensoria Pública como instância de proteção e

defesa dos vulneráveis na esfera penal ................................................................... 233

4.2 A educação em direitos como instrumento de empoderamento dos vulneráveis.. 247

4.3 A atuação transindividual ...................................................................................... 258

4.4 A relevância da atuação extrajudicial .................................................................... 273

4.5 Defensoria Pública como porta de acesso aos sistemas internacionais de

direitos humanos ..................................................................................................... 287

CONCLUSÃO ......................................................................................................... 295

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 303

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 (CF/88), resultado de um compromisso entre as forças

sociais dominantes no período pós-ditadura militar, marca, em terras brasileiras, um momento

de ressignificação das constituições, com procedência em profundas alterações na forma de

interpretar e aplicar o Direito, reaproximando-o da moral e entronizando a dignidade da

pessoa humana como princípio fundamental, submetendo à sua observância toda a atividade

estatal. Esta constatação vale tanto para uma perspectiva negativa como positiva. Em outras

palavras, cabe aos órgãos estatais abster-se de interferir na esfera individual, bem como usar

de todo o seu aparato para evitar que terceiros, mesmo que no uso de sua liberdade, afrontem

a dignidade de qualquer pessoa.

A partir dessas premissas teóricas, portanto, posturas que confiram distinta dignidade

aos indivíduos, conforme sua classe social, tomando aqueles econômica e socialmente

vulneráveis por objetos e não sujeitos de direitos, desconsideram o valor dignidade humana,

na perspectiva kantiana de que o homem existe como um fim em si mesmo, não simplesmente

como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Por outro lado, segregar grupos

sociais, tratando-os como inimigos e apontando-os como responsáveis exclusivos pela

insegurança pública, somente contribui para o aprofundamento do problema.

Diante do clamor social no aguardo por respostas imediatas e eficazes à criminalidade,

as reações estatais convertem-se em manifestações casuísticas de recrudescimento da

repressão penal, aplaudidas por amplos setores da sociedade, em detrimento de políticas

públicas aptas a atingir as causas do problema. Assim, em vez de investimentos maciços em

educação, saúde, lazer, fortalecimento de vínculos familiares e geração de empregos, o Estado

brasileiro – movido pelo apelo público incensado pela mídia sensacionalista – prefere

aumentar a severidade das penas e alargar o campo de incidência do direito penal,

desconsiderando décadas de pesquisas criminológicas importantes e atacando princípios

basilares da moderna ciência penal, relacionados ao garantismo, ao qual são caras as ideias de

intervenção mínima, fragmentariedade e lesividade.

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A mais visível e trágica consequência dessa opção pela punição desmedida e

desproporcional é o surgimento de uma “cultura do encarceramento”, que contamina os

órgãos legislativos e jurisdicionais, em evidente confusão entre justiça e prisão. O que torna,

entretanto, a situação mais dramática é que essa postura repressiva tem um alvo muito claro: a

população pobre, conforme demonstram as sucessivas pesquisas desenvolvidas nessa seara e

das quais se ocuparão esse estudo.

Tal ação direcionada e seletiva é praticada, principalmente, pelo Estado que, em pelo

menos três momentos distintos, olvida direitos humanos: primeiro, ao deixar à margem da

sociedade a maioria da população, sem acesso aos bens e serviços públicos básicos; segundo,

ao direcionar maior rigor legislativo e jurisdicional a determinados crimes contra o patrimônio

e de uma das específicas modalidades de tráfico de drogas, em evidente opção de proteção aos

indivíduos detentores de bens; terceiro, pela opção por um encarceramento em massa

(geralmente da população marginalizada), em um sistema prisional absolutamente precário,

no qual a dignidade da pessoa humana é desconsiderada.

A opção pelo desenvolvimento de normas criminalizantes ou por um tratamento penal

mais severo de determinadas condutas ligadas à classe social desfavorecida é a primeira

demonstração da criminalização da pobreza (criminalização primária). Em seguida, o

tratamento conferido aos pobres pelos órgãos de segurança pública e do sistema de justiça,

resultante no exponencial encarceramento da pobreza representam a criminalização

secundária, compreendida como um tratamento de caráter repressivo direcionado a

determinadas camadas da população, apontadas como responsáveis pela insegurança pública,

a demonstrar como a pobreza pode de fato funcionar como causa de violação de direitos.

É urgente, portanto, a exposição daquelas em curso e elaboração de outras modalidades

de contraposição a tais posicionamentos estatais, com arrimo no fomento a uma nova cultura

de tratamento igualitário efetivo e não meramente formal e abstrato, lançando-se mão,

inclusive, das próprias instituições estatais desenhadas para impedir a ofensa ao Direito,

cumprindo-se, assim, a promessa de um Estado Democrático de Direito.

Resta identificar, portanto, no arcabouço constitucional brasileiro, qual a instituição

pensada para garantir às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica o efetivo acesso à

justiça, aqui entendido em sua perspectiva ampla de plenitude de fruição de direitos. Assim,

importante precisar o papel desempenhado pela Defensoria Pública, a mais nova das

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instituições jurídicas, estabelecendo inovadores caminhos de efetivação de suas múltiplas

funções de empoderamento dos pobres, a fim de garantir-lhes conhecimento e fruição dos

direitos formalmente assegurados a todos, tornando-os efetivamente conhecedores dos

direitos que precisam ser defendidos e não meros objetos passivos, cujas pretensões seriam

satisfeitas com a mera atenção institucional.

Essa é, destarte, a razão subjacente e o objetivo geral à consolidação desse estudo:

delinear o papel constitucional da Defensoria Pública, em um Estado fundado na ideia-força

da dignidade humana, na resistência à criminalização da pobreza, explorando as

potencialidades dessa jovem Instituição, alargando suas possibilidades para além da mera

atuação forense (igualmente importante), fazendo-a alcançar o status de difusora do discurso e

do conhecimento dos direitos humanos, entronizando-a como porta-voz dos vulneráveis,

tornando-os aptos ao exercício da cidadania, com vistas à consolidação do Estado

Democrático de Direito. A originalidade da pesquisa encontra-se ancorada na exploração das

atribuições da Defensoria Pública desenhadas pelo texto constitucional e pelas demais leis,

com o específico desiderato de construir um paradigma de funcionamento direcionado a uma

atitude de resistência à criminalização da pobreza, inserindo-se em uma perspectiva mais

ampla de dar cumprimento aos objetivos da República Federativa brasileira encartados no

artigo 3º da CF/88. Busca-se extrair, assim, dos já sedimentados comandos normativos,

formas de atuação inovadoras que representem o desnudamento das posturas estatais e de

particulares que representem tratamento discriminatório de determinadas parcelas da

população quando da criminalização de condutas, para ser possível, então, resistir ativamente.

Os estudos referentes à vulnerabilidade e mesmo à pobreza são muito numerosos e

envolvem vários campos do conhecimento, mormente a sociologia e a economia. No tocante à

criminalização da pobreza, os estudos criminológicos mais atuais têm desenvolvido razoável

bibliografia especializada. Da mesma forma, em razão de seu estado histórico recente e do

crescimento de suas atribuições por meio de uma série de alterações constitucionais, a

Defensoria Pública tem sido objeto de crescente produção científica. A pretensão que justifica

a relevância desse ensaio, contudo, é a sistematização desse conhecimento multidisciplinar

produzido, para estabelecer um novo alcance às atribuições da Defensoria Pública na

específica missão de resistência à criminalização da pobreza e seletividade penal. Por outro

lado, pessoalmente, o interesse na pesquisa do tema foi despertado pela diuturna labuta em

favor dos pobres na seara penal, com suporte na qual sobrou evidente o tratamento seletivo

conferido a essas pessoas em razão de sua classe social, tornando-as os alvos quase exclusivos

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do poder punitivo estatal e da manifestações criminalizantes dos mass media e de boa parte da

sociedade.

A resistência aqui proposta, advirta-se, afasta-se completamente de um comportamento

meramente passivo, de complacência com patamares mínimos de direitos, meramente

tolerados e cedidos de maneira pretensamente magnânima pelos detentores do poder. Reflete,

ao contrário, condutas de reivindicação das conquistas alcançadas por séculos de luta pela

afirmação de direitos, não se compadecendo com qualquer tipo de retrocesso, ao mesmo

tempo em que se propõem novas modalidades de alargar o significado, sempre inconcluso, da

dignidade humana, evitando-se agressões à sua essência e pugnando por ações proativas de

sua efetividade. Resistir, aqui, denota atitude contramajoritária, contrapoder, de oposição às

pulsões autoritárias e discriminatórias, que muitas vezes, inclusive, são dominantes, pela

incidência de fatores sociais e econômicos que delas se beneficiam. Há de se destacar, por

oportuno, que não serão advogadas ideias de fragilização ou minimização do Estado, mas de

sua reconfiguração, a fim de que, do seu interior (Defensoria Pública) surjam opções de

contenção de sua faceta penal, quando esta se mostrar desproporcionalmente direcionada

contra os pobres, já alijados pela fragilidade estatal no provimento de direitos sociais.

Desse modo, para o adequado desenvolvimento do trabalho sob relação, foi realizada

coleta de dados por meio de uma pesquisa bibliográfica, baseada, pois, na consulta a livros,

revistas científicas, jornais, websites etc., como também documental, na medida em que foram

revisados documentos oficiais relacionados à matéria. Após leitura, fichamento e organização,

esses indicadores foram criticamente analisados. Para tal, recorreu-se ao método dedutivo, ao

se começar de análises gerais sobre o fenômeno da pobreza e sua criminalização, bem como

da estrutura e atribuições da Defensoria Pública brasileira, para, então, se aportar à específica

elaboração de um paradigma de atuação da instituição sob escólio, na resistência à

criminalização da pobreza, valendo-se, para tanto, dos vigentes instrumentos normativos.

Atento a esse objetivo geral, o trabalho está estruturado em quatro capítulos. No

primeiro, apresentam-se, inicialmente, as diversas concepções da pobreza, preferindo-se, ante

as múltiplas possibilidades, os marcos definidores constantes dos consensos internacionais na

matéria no sistema global de direitos humanos (ONU1) e no sistema regional no qual se insere

o Brasil (SIDH2), para finalizar com os objetos definidores e características da pobreza no

1 Organização das Nações Unidas. 2 Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

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Brasil. Seguir-se-á a conceituação de criminalização da pobreza e suas espécies: primária,

representada pelas previsões legislativas, e secundária, resultante da atuação dos órgãos de

segurança pública e do sistema de justiça. Ainda no mesmo capítulo, são apontadas

manifestações da criminalização da pobreza atualmente em curso no mundo, com destaque

para as perspectivas estadunidense, francesa e de países da América Latina, a reforçar a ideia

de que não se trata de especificidades de apenas alguns países, mas característica peculiar ao

poder punitivo. No módulo seguinte, é desvelado o papel dos media na criminalização da

pobreza, analisando-se como esse importante pilar da democracia pode se converter,

irresponsavelmente, em poderoso instrumento de legitimação de condutas estatais punitivas

seletivas, além de estabelecer ou fomentar um consenso social em torno de atuações que

jamais seriam admitidas se praticadas contra pessoas das classes sociais privilegiadas (desde

exposição excessiva e desnecessária da imagem até torturas e execuções extrajudiciais). No

excerto final desse capítulo, analisa-se a compatibilidade do Estado Democrático de Direito e

seus elementos constitutivos, com destaque para a proteção da dignidade da pessoa humana,

com procederes de criminalização da pobreza e sua intrínseca característica discriminatória e

seletiva.

O capítulo segundo trata especificamente da seletividade penal, desde sua conceituação

e dos delineamentos que tomou na história da humanidade, verificando-se a sua incidência

como fenômeno próprio do poder punitivo estatal. Em seguida, são delineados os caminhos

que a seletividade penal adotou no Brasil, nos períodos colonial, imperial e republicano,

verificando-se que sempre existiram indesejáveis sociais, personificados pelos indivíduos

ocupantes das escalas mais inferiores do trato social, cuja humanidade quase sempre era até

mesmo questionada. Posteriormente, vem a análise da prisão como instituição destinada aos

mais pobres, mostrando-se suas contradições, deficiências essenciais e estruturais, além de

representar o locus onde são depositados, quase exclusivamente, aqueles que ocupam os

estratos mais vulneráveis da sociedade, na mais visível manifestação da seletividade penal.

Para finalizar o capítulo, realiza-se um estudo das mortes institucionais e crimes de tortura

direcionados às populações pauperizadas, como marca da desconsideração de sua

humanidade.

O capítulo terceiro, por sua vez, expõe a estrutura e as funções atuais da Defensoria

Pública brasileira, com esteio na previsão constitucional e nas recentes alterações legislativas,

que a conduziram ao estado de “expressão e instrumento do regime democrático” e instituição

responsável pela “promoção dos direitos humanos”, a par da originária característica de

19

função essencial à Justiça. Inicia-se por um escorço histórico que resulta em um comparativo

entre a Defensoria Pública ontem e hoje, restando a percepção do papel dessa instituição

como responsável pelo acesso à justiça e proteção dos direitos fundamentais dos pobres,

constante nas normas constitucionais e na Lei Orgânica específica. O último tópico tem o

condão de indicar a atuação internacional da Defensoria Pública, com destaque para a

Defensoria Pública da União (DPU) e suas funções perante a Associação Interamericana de

Defensores Públicos (AIDEF).

O último capítulo, por sua vez, tem por finalidade indicar parâmetros para uma atuação

efetiva da Defensoria Pública que a tornem um expediente importante de resistência à

criminalização da pobreza e à seletividade penal, valendo-se de sua estrutura, legislação e

pessoal para agir em cinco eixos, ligados à área criminal: 1 - atuação judicial clássica:

representada pela labuta diuturna perante os órgãos do sistema de justiça, utilizando-se de

estratégias de oposição à seletividade penal, principalmente sob o viés do encarceramento em

massa; 2 – da educação em direitos: como mecanismo de empoderamento dos pobres, a fim

de que identifiquem por si as situações de desrespeito aos direitos, especificamente

relacionadas com a criminalização de sua condição social; 3 - atuação transindividual:

superando, assim, as atuações meramente individuais, com vantagens do ponto de vista de

economia e efetividade; 4 - atuação extrajudicial: opção preferencial pela solução

extrajudicial dos conflitos por métodos alternativos (mediação, conciliação, arbitragem), a

partir das previsões legais nesse sentido e da proximidade dos defensores públicos dos

problemas das comunidades e dos movimentos sociais; orientação jurídica; atuação em

processos administrativos disciplinares; participação em conselhos; convocação de audiências

públicas; inspeções de locais de privação de liberdade; 5 - atuação perante os organismos

internacionais, em uma perspectiva de efetivação de um transconstitucionalismo e do controle

de convencionalidade.

Como contribuição à Ciência Jurídica, demanda-se a formulação de uma proposta

sistematizada de atuação institucional da Defensoria Pública direcionada ao cumprimento dos

objetivos da República Federativa do Brasil encartados na Constituição, maiormente os

relacionados à efetivação da dignidade da pessoa humana, à eliminação de todas as

modalidades de discriminação e à minimização das desigualdades sociais, representadas pela

resistência ativa à criminalização da pobreza e à seletividade penal.

1 POBREZA: MARCO CONCEITUAL E EXPRESSÕES DE SUA

CRIMINALIZAÇÃO

Quando se utiliza o termo “pobreza”, corre-se o risco de abordar o tema sem a devida

precisão. Assim, afigura-se importante, no primeiro momento, uma aproximação conceitual

que estabeleça em que termos a expressão será utilizada, a fim de empreender o objeto geral

da pesquisa. Com efeito, logo se estabelece uma aproximação conceitual, com suporte na

visão de doutrinadores, para posteriormente delinear como o tema é tratado no âmbito da

Organização das Nações Unidas (ONU), bem como nos organismos do Sistema

Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), para concluir com a análise da pobreza no

Brasil.

Na sequência, conceituam-se a criminalização primária e secundária da pobreza, com

suas manifestações no mundo atual e a atuação da mídia nessa perspectiva. Por fim, este

capítulo exprime uma análise da compatibilidade entre a criminalização da pobreza e o Estado

Democrático de Direito, sistematizando os principais pontos de dissenso cujo

desenvolvimento será devidamente realizado no segmento final da tese, por meio da atuação

específica da Defensoria Pública na resistência a essa conjunção de problemas.

1.1 Pobreza: uma aproximação conceitual

O conceito de pobreza denota grandes dificuldades, pois o fenômeno é objeto de vários

campos do conhecimento, além de sujeitar-se a uma série bem diversa de enfoques. Como

percebe Fernanda Costa, quando algumas pessoas falam sobre pobreza, referem-se à pobreza

de recursos, à privação de capacidades ou mesmo à exclusão social (COSTA, 2012, p. 152).

No âmbito internacional existe profundo e amplo debate sobre a sua definição, como medí-la

e enfrentá-la (CIDH, 2016a). Tal situação torna-se ainda mais complicada quando se

consideram as diferenças culturais entre os vários países e os parâmetros de definição do que

é uma situação de bem-estar.

21

A dificuldade, contudo, não afasta a existência de uma série de tentativas de

conceituação. O Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ao definir suas

“Questões substantivas para a aplicação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais: a pobreza e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais”, adota uma Declaração sobre a pobreza, definindo-a como

[...] una condición humana que se caracteriza por la privación continua o crónica de los recursos, la capacidad, las opciones, la seguridad y el poder necesarios para disfrutar de un nivel de vida adecuado y de otros derechos civiles, culturales, económicos, políticos y sociales. Aunque reconoce que no hay ninguna definición universalmente aceptada, el Comité apoya este concepto multidimensional de la pobreza, que refleja la naturaleza individual e interdependiente de todos los derechos humanos. (ONU, 2001).

O primeiro conceito ordinariamente manejado de pobreza é o que se limita ao aspecto

monetário, ou, como noticia o Informe Preliminar sobre Pobreza, Pobreza Extrema e Direitos

Humanos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), (2016a):

[…] se basan en la medición de la insuficiencia de los ingresos necesarios para adquirir una canasta básica de bienes y servicios mínimos para la subsistencia. En estos supuestos nos encontramos con un enfoque que se ha considerado como “monetario” de la pobreza (definiciones basadas en el ingreso o consumo), en el cual la misma sería concebida como la falta de ingreso o de poder adquisitivo mínimo para garantizar las necesidades básicas de subsistencia de las personas217. Es lo que comúnmente se ha denominado como “pobreza monetaria”.

Com amparo nesse critério, o Banco Mundial especifica, para seu trabalho com a

América Latina e Caribe, a noção de que a linha de pobreza extrema é de US$ 2.50 (dois

dólares e cinquenta centavos americanos) por dia e a linha de pobreza moderada de US$ 4

(quatro dólares americanos) por dia (CIDH, 2016a). Já o Banco Interamericano para o

Desenvolvimento (BID) adota o seguinte critério, em valores diários em dólares americanos:

a) “pobres extremos”, cuja renda é menor do que US$ 2,5;

b) “pobres moderados”, com uma renda de US$ 2,5 a US$ 4;

c) “classe vulnerável”, que recebe de US$ 4 a US$ 10;

d) “classe média”, com renda de US$ 10 e US$ 50;

e) “classe de alta renda”, maior que US$ 50 (CIDH, 2016a).

Para a ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO) “la línea de pobreza puede ser

definida como el valor monetario de una canasta básica de alimentos que satisfaga las

necesidades mínimas de “kilocalorías” necesarias para desarrollar una vida sana y activa”

(CIDH, 2016a). O Estado do Brasil considera como famílias que vivem em pobreza extrema

22

são aquelas cuja renda mensal é igual ou inferior a R$ 77,00 por pessoa (setenta e sete reais),

enquanto as famílias em pobreza aquelas com renda mensal de R$ 77,01 (setenta e sete reais e

um centavo) a R$ 154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) por pessoa (CIDH, 2016a).

Embora se reconheça a importância da definição de critérios objetivos para a definição

de pobreza, como instrumentos necessários para a fixação de políticas públicas destinadas à

sua erradicação, impende destacar, inicialmente, que o conceito de pobreza adotado neste

estudo é multidimensional, não se limitando ao estado de privação de renda, mas se parte da

concepção delineada por Amartya Sen, para quem “a pobreza deve ser vista como privação de

capacidades básicas, em vez de meramente como baixo nível de renda, que é o critério

tradicional de identificação da pobreza” (SEN, 2010, p. 120).

Como adverte Zygmunt Bauman, é necessário estender o tema da desigualdade para

além da área limitada da renda per capita, devendo ser ampliada até a atração fatal e recíproca

entre pobreza e vulnerabilidade social, corrupção, acumulação de perigos, assim como

humilhação e negação de dignidade, pois estes fatores moldam as atitudes responsáveis pela

integração ou desintegração de grupos (BAUMAN, 2013, p. 31).

Cuida-se da aproximação com o conceito de vulnerabilidade social, mostrado em

publicação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

(UNESCO), aludindo a várias modalidades de desvantagem social, como o resultado negativo

da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos agentes, sejam

eles pessoas ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas e culturais

provenientes do Estado, do mercado e da sociedade (ABRAMOVAY et al., 2002, p. 29).

Nesse contexto, ao estar privado de sua capacidade, quem padece pobreza está

igualmente abstido de sua liberdade para alcançar os níveis mínimos de subsistência, no plano

material ou cultural, pois não é livre para evitar a fome, a sede, a doença e o analfabetismo,

tampouco para receber informações de toda índole ou para difundir seu pensamento ou

participar do governo (NIKKEN, 2012, p. 405). Assim “as desigualdades de posses e acesso a

recursos provoca que as pessoas tenham distintas ou nulas oportunidades de ter uma vida

digna” (MORALES SÁNCHEZ, 2012, p. 334). Como percebem Amartya Sen e Bernardo

Kliksberg, frequentemente, “as mesmas pessoas que são pobres em termos de riqueza material

sofrem também de analfabetismo, trabalham duramente sob condições terríveis, não têm

poder político, não têm acesso a advogado e são vítimas de violência policial” (SEN;

23

KLIKSBERG, 2010, p. 37). Na mesma trilha seguem Walquíria Leão Rego e Alessandro

Pinzani, para quem a pobreza deve ser considerada não somente desde a perspectiva de falta

ou insuficiência de renda, mas também de aspectos que eles chamam de “éticos”, aludindo a

auto-respeito, capacidades e autonomização (REGO; PINZANI, 2014. p. 160).

Ademais, a desigualdade econômica limita a capacidade de realização de grande parte

da população e, como essa privação costuma transmitir-se às demais gerações, “frustra

projetos de vida de milhões de pessoas, além de reduzir as oportunidades presentes e futuras

de desenvolvimento das nações” (MORALES SÁNCHEZ, 2012, p. 334). Esse fator é

identificado igualmente por Amartya Sen e Bernardo Kliksberg, ao noticiarem que:

“conforme o país, de 72% a 96% das famílias em situação de pobreza e de pobreza extrema

provêm de domicílios cujos pais tiveram menos de nove anos de estudo, operando-se, assim,

um ciclo vicioso”. Por outro lado, a pobreza familiar força o trabalho em idade precoce,

deserção, repetência, pouco rendimento escolar, o que, como consequência, significa que os

jovens acumulam um capital educacional muito reduzido, não superior ao de seu círculo

familiar anterior, resultando que o mesmo ciclo continua nas famílias que se constituem

posteriormente (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 245). De fato, “o aspecto econômico ligado à

presença de uma renda regular permanece uma condição imprescindível para a saída da

miséria, inclusive nos seus aspectos éticos” (REGO; PINZANI, 2014, p. 160). Na opinião de

Bauman, a mistura explosiva de progressiva desigualdade social e volume crescente de

sofrimento humano causado pela condição de marginalidade converte-se no mais desastroso

dos problemas que a humanidade será forçada a enfrentar nesse século (BAUMAN, 2013, p.

16).

Percebe-se que pessoas imersas na pobreza, por não lograrem alcançar a condição de

sujeitos de direitos, submetem-se a um estado de minimização em dignidade humana, nos

termos da definição kantiana, relegados, dessa forma, à condição de objetos (KANT, 2007, p.

68). “A pobreza entranha privações originadas em dificuldades econômicas, mas não se

esgota nisso, pois se trata de uma condição sociocultural integral, que abarca, ou ao menos

afeta seriamente, a totalidade das dimensões da pessoa que a sofre” (NIKKEN, 2012, p. 405).

Raquel Sosa Elízaga enxerga tal situação como “la condición que agrega a la pobreza el

hecho de la imposibilidad de incorporarse con plenos derechos a la vida social, al ejercicio

de la ciudadanía” (SOSA ELÍZAGA, 2010, p. 261). “Ser excluído por estar relegado à

“subclasse” significa ser privado de todos os ornamentos e sinais socialmente produzidos e

24

aceitos que elevam a vida biológica à categoria de ser social e transforma rebanhos em

comunidades” (BAUMAN, 2013, p. 191).

Os pobres são lembrados, como importantes, somente em épocas eleitorais e, ainda

assim, para um exercício de cidadania instantâneo (inserir um número na urna eletrônica) e

muitas das vezes viciado pela troca de elementos de necessidade básica, cujo acesso é negado

nos demais períodos do ano. Conforme defende Sosa Elízaga (2010, p. 261):

Assim, ser excluído não significa somente ser pobre, mas não ser considerado na determinação dos assuntos públicos. Significa estar ausente da política que define o rumo de uma sociedade em uma época, em um território determinado e é, nessa direção, que a maior parte de estudos sobre a pobreza é, não só insuficiente, como perigosamente tendenciosos: desconsideram a condição humana, que significa pensamento, vontade, decisões, temores, hábitos, experiências, memoria.

Na mesma esteira, como adverte Morales Sánchez (2012, p. 338):

A pobreza é causa de violação dos direitos humanos, porque as pessoas que vivem em condições de pobreza estão em situações de vulnerabilidade, que as fazem ainda mais suscetíveis a violações de seus direitos. A pobreza é também efeito da violação de direitos humanos, porque ao negar, limitar ou menoscabar ao ser humano direitos como o trabalho, um salário adequado, saúde, educação, moradia digna, estar-se-á condenando-o à pobreza.

Nas palavras de Pedro Nikken, “a pobreza reduz a uma enteléquia a igualdade perante a

lei” (NIKKEN, 2012, p. 402). Tal constatação se reforça pelo próprio estigma que acompanha

as pessoas pobres, etiquetadas pelo lugar onde vivem e pelas carências que padecem, das

quais não são culpadas. Assim, como percebem Innamorato e Canavessi (2015, p. 12),

referindo-se à realidade argentina:

Las villas se han constituido en una configuración urbana depositaria de representaciones que suelen trasladarse a sus habitantes, con un claro acento estigmatizante. Además de padecer la carencia de servicios, el abandono Del Estado, la precariedad habitacional y muchos otros riesgos e incomodidades, ser “villero” hoy implica ser objeto de sospecha, ocupar un bajo lugar en la escala de prestigio social, ser discriminado.

A carência econômica determina, sem dúvida, o enquadramento da pessoa na condição

de necessitado ou vulnerável ante o ordenamento jurídico, o que ocorre em razão da

fragilidade existencial provocada pela ausência de recursos materiais e privação de direitos o

que, em algumas situações, atinge grupos sociais inteiros, no que diz respeito a bens sociais

básicos (FENSTERSEIFER, 2017, p. 32). Tal situação, por si, e independentemente de

encontrar-se somada com outro fator de vulnerabilidade, provoca marginalização social,

política e cultural da pessoa, porquanto que se vê impossibilitada de travar suas relações

25

sociais e jurídicas em condições de igualdade com as demais pessoas e com as instituições

públicas (FENSTERSEIFER, 2017, p. 32-33).

Os muito pobres, chamados por Bauman (2005, p. 55) de “pessoas supérfluas”, estão

em uma posição em que é impossível ganhar, pois se tentam alinhar-se com as modalidades

de vida tidas como adequadas, são acusadas de arrogância pecaminosa, desfaçatez de

reclamar prêmios imerecidos ou mesmo de intenções criminosas; caso queixem-se e recusem-

se a honrar os modos de vida dos ricos, isso representa a demonstração de que são um corpo

estranho, um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis, mostrando-se, pois,

inimigos jurados do correto modo de vida.

Beck (1998), ao descrever a sociedade de riscos, percebe que a distribuição destes é

muito desigual, conforme a classe social, pois os ricos (em recursos, poder e educação) podem

comprar a segurança e a liberdade no que diz respeito aos riscos. Segundo ele, “esta ‘lei’ de

repartição de riscos específicos das classes, e, portanto, a agudização dos contrastes mediante

a concentração de riscos nos pobres e débeis esteve em vigor durante muito tempo e segue

estando hoje para algumas dimensões centrais do risco” (BECK, 1998, p. 41). A

demonstração inequívoca dessa constatação é que os pobres normalmente estão muito mais

vulneráveis a doenças evitáveis, seja pelas péssimas condições sanitárias de suas habitações,

seja pelo restrito acesso à saúde em geral; bem como estão no epicentro da violência urbana,

sendo muito mais suscetíveis aos homicídios, que, no Brasil, por exemplo, concentram-se

quase que integralmente nas periferias, como será demonstrado em momento oportuno deste

estudo.

Como percebeu Bauman (2013, p. 12-15) em sua obra Danos colaterais, ocupar a base

da pirâmide da desigualdade e tornar-se vítima colateral de uma ação humana ou de um

desastre natural são situações equivalentes, como resultado da “invisibilidade” endêmica,

planejada e imposta aos “estranhos de dentro” – empobrecidos e miséraveis – marcados de

modo permanente pelo estigma da desimportância e da falta de mérito, e por isso

progressivamente criminalizados.

Também é de Beck (1998, p. 120) a percepção de um fenômeno que caracteriza a

pobreza: o fato de ameaçar de modo mais grave às mulheres, não tanto em virtude de

carências educativas ou de procedência, mas ao divórcio, “que se tem convertido em um fator

26

essencial que conduz (principalmente às mães com filhos), a relações de vida abaixo de um

mínimo existencial”.

No final da década de 70, conforme noticia Vicente (2006, p. 13-14), começou-se a

utilizar a dicção feminização da pobreza, para ressaltar o influxo particular e maior da

pobreza sobre a vida das mulheres em todos os países, por meio de investigações que

pretendiam evidenciar os diversos meios pelos quais a pobreza atinge as mulheres, restando

óbvio que tal fato, ademais, tem sido ignorado.

Morales Sánchez (2011, p. 89), no mesmo raciocínio, apresenta dados sobre a

feminização da pobreza, citando que as mulheres constituem 70% dos pobres do mundo,

ganham menos do que os homens, têm menor controle da propriedade e enfrentam maiores

níveis de vulnerabilidade física e violência, além de constituírem dois terços dos analfabetos

do mundo e 60% das deserções escolares serem femininas.

Nesse sentido, pode-se verificar que as mulheres encontram-se em situação ainda mais

desvantajosa no que diz respeito às privações de possibilidades básicas de vida, encarnando a

definição de vulnerabilidade que supera uma escassez meramente econômica, alcançando,

além desta, a falta de acesso a muitos dos direitos já reconhecidos em tratados internacionais e

na ordem interna da maioria dos países. Assim, diz-se que há uma feminização da pobreza

pelo acesso limitado à educação, pelas dificuldades de acesso à saúde, principalmente no

tocante às especificidades femininas nessa seara, limitações de acesso à propriedade e ao

emprego, isso sem falar na ínfima participação política e na intensa violência contra as

mulheres que, de maneira renitente, permanece em todo o mundo.

Além da desigualdade em relação às mulheres, há que se destacar, ainda, uma

preocupação justificável com a discriminação racial. Por ocasião do Dia Internacional pela

Eliminação da Discriminação Racial, em 21 de março de 2016, a CIDH manifestou

igualmente a sua preocupação com o estado de desigualdade estrutural que, na região,

enfrenta a população afrodescendente, bem como das mulheres, adolescentes e meninas, em

razão da persistência de normas e práticas institucionais que impedem o exercício pleno de

direitos econômicos, sociais e culturais e, na oportunidade (CIDH, 2017a).

Todavia, a CIDH destacou que as mulheres afrodescendentes encontram-se entre os

grupos sociais mais marginalizados da região e, como suas possibilidades de acesso a

educação, emprego e saúde são limitadas, enfrentam múltiplos obstáculos para aceder a

27

serviços necessários no âmbito da saúde sexual e reprodutiva. Por outro lado, a CIDH também

observou que muitas mulheres afrodescendentes desempenham tarefas domésticas, de baixa

remuneração e precárias condições laborais. Assim, em comparação com as demais, as

afrodescendentes estão sub-representadas nas instâncias de decisão e participação política e

veem-se afetadas de modo particular pelos conflitos armados e territoriais (CIDH, 2017a).

Tais preocupações da CIDH constaram em seu informe anual de 2016, especificamente no seu

no 96 (CIDH, 2017a).

Durante seu 157º período de sessões, a CIDH celebrou uma audiência sobre a situação

de mulheres afrodescendentes no Brasil, na qual as organizações solicitantes exprimiram

informações sobre a grave situação de violência estrutural contra mulheres afro-brasileiras

(CIDH, 2016 b). De acordo com os informes recebidos, “as mulheres afrodescendentes

constituíram o 66,7% do total de mulheres vítimas de assassinatos no Brasil em 2013”

(WAISELFISZ, 2015), o que revela uma representação desproporcional de mulheres negras

entre as vítimas de mortes violentas. Por outro lado, as estatísticas em matéria de saúde,

expressas no Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, indicam que as mulheres

afrodescendentes constituem a maioria das vítimas de mortalidade materna, constituindo mais

de 60% do total (BRASIL, 2015a, p. 30). Além disso, prevalecem distintas enfermidades em

maior quantidade nesse grupo de brasileiras (OMS, 2013, p. 41). Apesar da adoção da Lei

Maria da Penha (BRASIL, 2006), o número de agressões contra as mulheres

afrodescendentes não diminuiu e, na sua maioria, essas situações permanecem impunes

(CIDH, 2016 b).

Importante é conhecer, portanto, o modo como as organizações internacionais

conceituam e encaram o tema “pobreza” em seus mais diversos instrumentos, pelo fato de

representarem a melhor aproximação de um consenso universal (ou pelo menos da maior

parte dos países) sobre a temática.

1.1.1 O tema pobreza no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU)

A submissão de milhões de pessoas à condição de pobreza no mundo é preocupação

constante dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos. Como adverte

Monica Pinto, “la exclusión es hoy más que ayer un problema globalizado, que deja fuera de

las oportunidades de desarrollo a millones de personas, que ofende la dignidad de millones

de personas y que lesiona sensiblemente su libertad” (PINTO, 2012, p. 352). A ONU ocupa-

28

se do tema em vários de seus documentos, a exemplo do Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), aprovado em 16 de dezembro de 1966 e entrou

em vigor no Brasil em 6 de julho de 1992, pelo Decreto n. 591 (BRASIL, 1992).

Logo no Preâmbulo, o PIDESC reafirma o ideal do ser humano livre, liberto do temor e

da miséria (ONU, 1966). Em seu artigo (art.) 11, o PIDESC estabelece que: “Os Estados

Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando

para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim

como a uma melhoria continua de suas condições de vida” (ONU, 1966). Ademais, afinado

com a ideia de que a pobreza não representa tão somente a privação de recursos financeiros, o

PIDESC preocupa-se em fixar outros direitos direcionados à plena realização da dignidade

humana, tais como trabalho, lazer, assistência social, proteção à maternidade e à infância,

alimentação, saúde, educação e previdência social.

Na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (ONU, 1993), realizada em

1993, efetuou-se uma análise global do sistema internacional de direitos humanos e dos

mecanismos de proteção destes direitos, de modo a incentivar e assim promover o seu maior

respeito, de maneira justa e equilibrada, como consta no Preâmbulo na Declaração e Programa

de Ação de Viena, aprovada durante esse evento. Esse documento internacional, em três

momentos, ocupa-se especificamente da pobreza, para aludir que:

[...] 14 - A existência de uma pobreza extrema generalizada obsta ao gozo pleno e efetivo de Direitos Humanos; a sua imediata atenuação e eventual eliminação devem permanecer como uma das grandes prioridades da comunidade internacional. [...] 25. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos afirma que a pobreza extrema e a exclusão social constituem uma violação da dignidade humana e que são necessárias medidas urgentes para alcançar um melhor conhecimento sobre a pobreza extrema e as suas causas, incluindo aquelas relacionadas com o problema do desenvolvimento, com vista a promover os Direitos Humanos dos mais pobres, a pôr fim à pobreza extrema e à exclusão social e a promover o gozo dos frutos do progresso social. É essencial que os Estados estimulem a participação das pessoas mais pobres no processo decisório da comunidade em que vivem, bem como a promoção de Direitos Humanos e os esforços para combater a pobreza extrema. [...] 30. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos exprime também a sua consternação e condenação pelo fato de violações graves e sistemáticas de Direitos Humanos, bem como situações que constituem sérios obstáculos ao pleno gozo desses direitos, continuarem a ocorrer em diferentes partes do mundo. Tais violações e obstáculos incluem, além da tortura e das penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, as execuções sumárias e arbitrárias, os desaparecimentos, as detenções arbitrárias, todas as formas de racismo, discriminação racial e apartheid, a ocupação e o domínio por parte de potências estrangeiras, a xenofobia, a pobreza, a fome e outras negações dos direitos econômicos, sociais e culturais, a intolerância

29

religiosa, o terrorismo, a discriminação contra as mulheres e a inexistência do Estado de Direito. [...]

Em 1997, a Assembleia Geral da ONU, por meio de Resolução, no 51º Período de

Sessões, fixou o Primeiro Decênio do século XXI como o dedicado à Erradicação da Pobreza

(1997-2006) “[…]expresando su honda preocupación por el hecho de que en el mundo haya

más de 1.300 millones de personas, en su mayoría mujeres, que viven en la pobreza absoluta,

especialmente en los países en desarrollo, y de que esa cifra siga aumentando” (ONU, 1997);

além de demonstrar:

[…] su solidaridad con las personas de todos los países que viven en la pobreza y reafirma que la satisfacción de las necesidades humanas básicas es un elemento esencial de la erradicación de la pobreza y que esas necesidades están estrechamente relacionadas entre sí y abarcan la nutrición, la salud, el abastecimiento de agua y el saneamiento, la educación, el empleo, la vivienda y la participación en la vida cultural y social. (ONU, 1997).

Na mesma oportunidade,

[…] recomienda que, en el contexto de la actividad general de erradicación de la pobreza, se preste especial atención a la naturaleza multidimensional de la pobreza y a los marcos y políticas nacionales e internacionales que propicien su erradicación, que deberán proponer la integración social y económica de las personas que viven en la pobreza y la promoción y protección de los derechos humanos y las libertades fundamentales para todos, incluido el derecho al desarrollo. (ONU, 1997).

Os resultados das políticas implantadas no decênio foram extremamente tímidos, como

identifica o Parlamento Latinoamericano y Caribeño, em Declaração de sua Mesa Diretiva,

apontando que,

[...] a pesar de las recurrentes Asambleas y Conferencias internacionales, el Banco Mundial en sus Informes Anuales afirma que aproximadamente el 22.8% de la población mundial subsistía con menos de un dólar diario en el año 1996, cifra que en el 2001 se reduce al 21.1% y que en el año 2006 se ha estimado en 19%. Que en relación a América Latina estos porcentajes fueron de 19% en 1996; 18,1% en 2000 y de 14,7% en 2006, año en que finalizó el Decenio. (PARLATINO, 2007).

Por essa razão, a ONU editou a Resolução no 63/230, datada de 19 de dezembro de

2008, sobre o Segundo Decênio das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza (2008-

2017), com o tema “Pleno emprego e trabalho decente para todos” (ONU, 2008), cujo

objetivo

[…] es apoyar, de manera eficiente y coordinada, el seguimiento de la consecución de los objetivos de desarrollo convenidos internacionalmente relativos a la erradicación de la pobreza, incluidos los Objetivos de Desarrollo del Milenio. Se destaca la importancia de reforzar las tendencias positivas en la reducción de la pobreza en algunos países y ampliar esas tendencias en beneficio de la población

30

del mundo entero. La proclamación reconoce la importancia de movilizar los recursos financieros para el desarrollo a nivel nacional e internacional, y reconoce que el crecimiento económico sostenido, sustentado por una productividad creciente y un entorno favorable, incluida la inversión privada y la capacidad empresarial es fundamental para el aumento de los niveles de vida. (ONU, 2008).

O Conselho de Direitos Humanos da ONU, mediante Resolução de 18 de outubro de

2012, aprovou os Principios Rectores sobre la Extrema Pobreza, documento que oferece,

pela primeira vez, diretrizes normativas mundiais centradas especificamente nos direitos

humanos das pessoas que vivem na pobreza (ONU, 2012). O projeto final foi apresentado

pela relatora especial sobre a extrema pobreza e direitos humanos, Magdalena Sepúlveda

Carmona, contendo as seguintes definições:

La pobreza no es solo una cuestión económica; es un fenómeno multidimensional que comprende la falta tanto de ingresos como de las capacidades básicas para vivir con dignidad. El Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales declaró en 2001 que la pobreza es “una condición humana que se caracteriza por la privación continua o crónica de los recursos, la capacidad, las opciones, la seguridad y el poder necesarios para disfrutar de un nivel de vida adecuado y de otros derechos civiles, culturales, económicos, políticos y sociales” (E/C.12/2001/10, párr. 8). La extrema pobreza, a su vez, ha sido definida como “una combinación de escasez de ingresos, falta de desarrollo humano y exclusión social” (A/HRC/7/15, párr. 13), en que una falta prolongada de seguridad básica afecta a varios ámbitos de la existencia al mismo tiempo, comprometiendo gravemente las posibilidades de las personas de ejercer o recobrar sus derechos en un futuro previsible (véase E/CN.4/Sub.2/1996/13). (ONU, 2012).

Adotando o mesmo conceito, já apontado, de pobreza como causa e consequência de

violação de direitos humanos, o Conselho de Direitos Humanos da ONU, por meio do projeto

citado, remarca a ideia de que

[…] las personas que viven en la pobreza tropiezan con enormes obstáculos, de índole física, económica, cultural y social, para ejercer sus derechos. En consecuencia, sufren muchas privaciones que se relacionan entre sí y se refuerzan mutuamente – como las condiciones de trabajo peligrosas, la insalubridad de la vivienda, la falta de alimentos nutritivos, el acceso desigual a la justicia, la falta de poder político y el limitado acceso a la atención de salud–, que les impiden hacer realidad sus derechos y perpetúan su pobreza. Las personas sumidas en la extrema pobreza viven en un círculo vicioso de impotencia, estigmatización, discriminación, exclusión y privación material que se alimentan mutuamente. (ONU, 2012).

Ainda no âmbito da ONU, indispensável é conhecer o posicionamento da Comissão

Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), que, na publicação Desarrollo Social

Inclusivo: una nueva generación de Políticas para superar la Pobreza y Reducir la

Desigualdad en América Latina y el Caribe, publicada posteriormente à Conferencia

Regional sobre Desarrollo Social de América Latina y el Caribe, ocorrida em Lima, de 2 a 4

de noviembre de 2015, estabeleceu que

31

[…] la pobreza representa un nivel crítico de privación, que pone en entredicho la sobrevivencia, la dignidad y el goce efectivo de derechos de las personas que se encuentran en esa situación, dimensiones que no se limitan a la carencia de un ingreso monetario suficiente para satisfacer los requerimientos mínimos. (CEPAL, 2016).

Já o Informe sobre Desenvolvimento Humano 2000, do Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento (PNUD), exprime uma visão mais ampla de pobreza ao evidenciar a

noção de que:

El desarrollo humano se centra en la ampliación de las capacidades importantes para todos, capacidades tan básicas que su ausencia impide otras opciones. La pobreza humana se centra en la falta de esas capacidades, necesarias para vivir una vida larga, saludable y creativa, para mantenerse informados, para tener un nivel de vida decoroso, dignidad, respeto por uno mismo y por los demás. (ONU, 2000a, p. 73).

Em setembro de 2000, ao final de um decênio de conferências e reuniões de cúpula, a

ONU aprovou a Declaração do Milênio, comprometendo os países com uma nova aliança

mundial para reduzir os níveis de extrema pobreza e estabelecendo os Objetivos de

Desenvolvimento do Milênio (ODM), com metas a alcançar até o ano de 2015, fixando como

o primeiro eixo fundamental erradicar a pobreza extrema e a fome (ONU, 2000b). Ao final do

prazo estabelecido, a quantidade de pessoas que viviam em extrema pobreza foi reduzida pela

metade, caindo de 1,9 bilhão para 836 milhões. Nos países da América Latina, de 1990 a

2008, a porcentagem da população em situação de pobreza extrema caiu de 22.5% para

13.7%, o que se traduziu em uma diminuição do número de pessoas que vivem na pobreza

extrema de 93 milhões para 71 milhões, em 20 países latino-americanos (CIDH, 2016a).

Ante, porém, a persistência de índices inaceitáveis de pobreza, a ONU estabeleceu

novas metas agrupadas sob o nome de “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”,

e, em 1º de janeiro de 2016, se fixou como ponto de partida dos Objetivos de

Desenvolvimento Sustentável (ODS)3 a intensificação de esforços para pôr fim à pobreza em

todas as suas conformações, reduzindo as desigualdades, superando discriminações e

protegendo o meio ambiente (ONU, 2015).

A erradicação da pobreza e da fome mundiais são, respectivamente, os objetivos 1 e 2

da “Agenda 2030”, representando, ainda, os principais desafios da humanidade (ONU, 2015).

3 Os objetivos de Desenvolvimento Sustentável são de aplicação universal nos 15 anos após 2016 e têm como estratégia abordar os assuntos pendentes dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000), mas ampliando seu campo de aplicação às três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômica, social e ambiental (CIDH, 2016a).

32

Cada país, portanto, deve estabelecer uma agenda de trabalho própria para dar cumprimento

às metas fixadas.

Como aponta a CIDH, em seu Informe preliminar sobre pobreza, pobreza extrema y

derechos humanos en las Américas, o tema da pobreza está em outros tratados do sistema

universal, tais como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação

contra a mulher (ONU, 1983); a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1990a); a

Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial

(ONU, 1965); a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (ONU, 2007a);

Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e seus

Familiares (ONU, 1990b); a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos de Povos

Indígenas (ONU, 2007b) e o Convenio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

(CIDH, 2016a).

1.1.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH): previsão e

combate à pobreza

No SIDH, a preocupação com a pobreza também é uma constante, como não poderia ser

diferente em um continente marcado por profundas e históricas desigualdades sociais. De

acordo com a CEPAL, em 2015, na América Latina e Caribe, 175 milhões de pessoas

encontravam-se em estado de pobreza, sendo que 75 milhões delas, em situação de indigência

(ONU/CEPAL, 2015).

Já na Carta de Organização dos Estados Americanos (OEA), no art. 2, “g”, é possível

ler, como um de seus propósitos essenciais: “Erradicar a pobreza crítica, que constitui um

obstáculo ao pleno desenvolvimento democrático dos povos do Hemisfério” (OEA, 1948). De

igual modo, no art. 3, os Estados reafirmam alguns princípios, dentre os quais se encontra: “A

eliminação da pobreza crítica é parte essencial da promoção e consolidação da democracia

representativa e constitui responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos”

(OEA, 1948). Assim, também, no art. 34 está sedimentado que:

Os Estados membros convêm em que a igualdade de oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição equitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. (OEA, 1948).

Seguindo a mesma trilha, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH),

assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José,

33

Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 (OEA, 1969), em seu Preâmbulo reitera a ideia de que

só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas

condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais,

bem como dos seus direitos civis e políticos.

Em 2001, o tema passou a fazer parte da Carta Democrática Interamericana. Já em seus

considerandos, o documento reafirma que “la lucha contra la pobreza, especialmente la

eliminación de la pobreza crítica, es esencial para la promoción y consolidación de la

democracia y constituye una responsabilidad común y compartida de los Estados

americanos” (OEA, 2001). Após reforçar, no art. 11, que “La democracia y el desarrollo

económico y social son interdependientes y se refuerzan mutuamente” (OEA, 2001), a Carta

Democrática especifica, no art. 12, que

[…] la pobreza, el analfabetismo y los bajos niveles de desarrollo humano son factores que inciden negativamente en la consolidación de la democracia. Los Estados Miembros de la OEA se comprometen a adoptar y ejecutar todas las acciones necesarias para la creación de empleo productivo, la reducción de la pobreza y la erradicación de la pobreza extrema, teniendo en cuenta las diferentes realidades y condiciones económicas de los países del Hemisferio. Este compromiso común frente a los problemas del desarrollo y la pobreza también destaca la importancia de mantener los equilibrios macroeconómicos y el imperativo de fortalecer la cohesión social y la democracia. (OEA, 2001).

Outras reuniões, conferências, encontros de cúpula e planos de ação no Sistema

Interamericano com a temática em comento como foco principal, que podem ser citados serão as

seguintes.

1) O Plano de Ação de Santiago, de 1998, oriundo da Segunda Cúpula das Américas, no

qual os chefes de Estado reconheceram que a pobreza extrema e a discriminação continuam

afligindo as vidas de muitas famílias e impedindo sua contribuição potencial para o progresso

de nossas nações (OEA, 1998);

2) A Declaração de Margarita, de 2003, resultado da Reunião de Alto Nível sobre

Pobreza, Equidade e Inclusão Social, na Ilha de Margarita, Venezuela, que de maneira

inovadora estabelece:

[…] en el combate a la pobreza, la inequidad y la exclusión social, daremos prioridad a la eliminación del hambre, al acceso a una alimentación adecuada y agua potable, al acceso para todos a los servicios sociales básicos, con atención especial a la educación de calidad y la protección social de la salud; […]. (OEA, 2003).

34

3) A Declaração e Plano de Ação de Mar Del Plata, elaborada durante a Quarta Cúpula

das Américas, em Mar del Plata, Argentina, em 2005, quando os Estados fixaram que: “[…]

reafirmamos nuestro compromiso de combatir la pobreza, la desigualdad, el hambre y la

exclusión social para elevar las condiciones de vida de nuestros pueblos y reforzar la

gobernabilidad democrática em las Américas” (OEA, 2005);

4) A Carta Social das Américas, que em seu art. 3, sinaliza que os:

Estados Miembros, en su determinación y compromiso de combatir los graves problemas de la pobreza, la exclusión social y la inequidad y de enfrentar las causas que los generan y sus consecuencias, tienen la responsabilidad de crear las condiciones favorables para alcanzar el desarrollo con justicia social para sus pueblos y contribuir así a fortalecer la gobernabilidad democrática. (OEA, 2012).

Ademais, que os “Estados Miembros fortalecerán y promoverán las políticas y los

programas dirigidos al logro de sociedades que ofrezcan a todas las personas oportunidades

para beneficiarse del desarrollo sostenible con equidad e inclusión social” (OEA, 2012);

5) A Declaração de Assunção, para o 44º Período Ordinário de Sessões da Assembleia

Geral da OEA, em Assunção, Paraguai, de 3 a 5 de junho de 2014, na qual se considera que:

[…] aún persisten desafíos y retos en materia de pobreza y pobreza extrema, seguridad alimentaria y nutrición, discriminación, equidad, igualdad e inclusión social, educación inclusiva y de calidad, cobertura universal de salud, trabajo decente, digno y productivo y seguridad ciudadana. (OEA, 2014).

6) O Plano de Ação da Carta Social das Américas, oriunda da Assembleia Geral de

2015, da OEA, na Cidade de Washington (EUA4), que:

[...] reflete a decisão e o compromisso dos Estados membros referentes à erradicação da pobreza e da fome e o atendimento urgente dos graves problemas de exclusão social e desigualdade em todos os níveis, a fim de alcançar a equidade, a inclusão e a justiça social, reconhecendo que os Estados membros encontram-se em diversos níveis de progresso com relação às áreas propostas. (OEA, 2015).

Ademais, o Plano de Ação

[...] permanecerá vigente por um período de cinco anos contado a partir de sua aprovação. Esgotado esse prazo, a Assembleia Geral poderá determinar sua revisão e atualização, em conformidade com os propósitos e princípios constantes da Carta Social das Américas. (OEA, 2015).

7) A Declaração para a Promoção e Fortalecimento da Carta Social das Américas, de

junho de 2016, na qual se declarou o “[...] compromiso de promover y lograr progresivamente

la plena efectividad de los derechos económicos, sociales y culturales a través de las políticas 4 Estados Unidos da América.

35

y programas que se consideren más eficaces y adecuados” (CIDH, 2016 a), e também se fixou

a:

[…] necesidad de que los Estados Miembros renueven el compromiso con la implementación del Plan de Acción de la Carta Social de las Américas conforme a sus respectivas legislaciones internas, realidades nacionales, estrategias, planes y recursos disponibles y sostengan el diálogo para el intercambio de información sobre los avances, experiencias y lecciones aprendidas. (CIDH, 2016a).

8) A Declaração Fortalecimento Institucional para o Desenvolvimento Sustentável nas

Américas, na qual se reafirmaram a natureza, propósitos e princípios estabelecidos na Carta

da OEA e os compromissos adotados pelos Estados-membros na Agenda 2030 para o

Desenvolvimento Sustentável, assim como outros compromissos internacionais vinculados às

três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômico, social e ambiental (CIDH,

2016a). No referido documento declara-se:

Asumir el firme compromiso con la implementación de la Agenda 2030 en las Américas y con el logro de sus Objetivos y metas de Desarrollo Sostenible, los cuales son de carácter integrado e indivisible, así como reafirmar el compromiso con la erradicación del hambre; la pobreza, en todas sus formas y dimensiones, incluida la pobreza extrema; la lucha contra la desigualdad; la protección del medio ambiente; la gestión del riesgo de desastres y la lucha contra el cambio climático, entre otros. (CIDH, 2016a).

9) O Programa Interamericano para o Desenvolvimento Sustentável (PIDS), como parte

da quinta reunião ordinária celebrada de 1 a 3 de junho de 2016, em Washington DC, pela

Comissão Interamericana para o Desenvolvimento Sustentável, convertendo a OEA no

primeiro organismo regional do Sistema de Nações Unidas com um instrumento de política

institucional alinhado com a Agenda 2030 (CIDH, 2016a);

10) A Rede Interamericana de Proteção Social (RIPS), da Secretaria Geral da OEA, que

brinda seu espaço e meios para que os países da região compartam suas experiências e

conhecimentos em proteção social e políticas de desenvolvimento social para a erradicação da

pobreza.

Por sua vez, a CIDH, no exercício de sua função delineada no art. 41, “c”, da CADH de

preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas

funções, elaborou um Informe Preliminar sobre Pobreza, Pobreza Extrema y Derechos

Humanos en las Américas, em 2016. Nesse documento, a CIDH começou por estabelecer o

marco jurídico e a conceituação da pobreza e da pobreza extrema, com supedâneo no marco

normativo universal e interamericano vinculado à pobreza. Analisou, na sequência, o influxo

da pobreza no exercício de direitos por certas pessoas, grupos e coletividades historicamente

36

discriminados (mulheres, crianças e adolescentes, migrantes, pessoas privadas de liberdade,

pessoas com necessidades especiais, pessoas e grupos LGBTI). Por fim, o informe analisou os

desafios e temáticas prioritárias em relação às pessoas que vivem em situação de pobreza para

aceder à justiça e obter respostas efetivas aos seus reclamos, além de fixar conclusões e

estabelecer recomendações.

No citado Informe, a CIDH remarca a noção de que “la pobreza extrema constituye un

grave problema de derechos humanos por la intensidad en la afectación al goce y ejercicio

de derechos humanos” (CIDH, 2016a). Este configura um posicionamento afinado com a

ideia, já defendida nesta pesquisa, de que, conforme visto, entende a pobreza em si como uma

violação aos direitos humanos:

[…] para efectos del presente informe, la pobreza constituye un problema de derechos humanos que se traduce en obstáculos para el goce y ejercicio de los derechos humanos en condiciones de igualdad real por parte de las personas, grupos y colectividades que viven en dicha situación. Asimismo, en determinados supuestos, la pobreza podría implicar además violaciones de derechos humanos atribuibles a la responsabilidad internacional del Estado. (CIDH, 2016a).

Por meio de seus distintos mecanismos, a CIDH observa que os altos níveis de

discriminação estrutural e exclusão social, a que estão submetidos certos grupos em situação

de pobreza, tornam ilusória sua participação cidadã, seu acesso à justiça e fruição efetiva de

direitos. Nesse sentido, desde um enfoque de direitos humanos, a pobreza e a pobreza extrema

supõem afetações a ambas categorias de direitos, e sua superação, por fim, se relaciona com o

acesso e a satisfação de direitos humanos desde uma concepção ampla (CIDH, 2016a).

Por outro lado, importante é destacar o argumento de que um dos grandes desafios que

enfrentam as pessoas que vivem em situação de pobreza é a condição de invisibilidade à qual

se encontram submetidos, o que propicia a violação de seus direitos humanos (CIDH, 2016a).

Essa invisibilidade, como é à frente estudado amiúde, refere-se ao Estado Social, cujas

políticas públicas não chegam até os bolsões de pobreza das grandes cidades e aos rincões

mais distantes do interior e do litoral remoto do País. Essa invisibilidade não se verifica

quando se reporta ao Estado Penal, cujas atenções e ações voltam-se exatamente contra essa

parcela da população, rotineiramente taxada de perigosa e, por isso, constante alvo de

incapacitação seletiva5.

Esse Informe da CIDH representa

5 Dicção utilizada por Maurício Stegeman Dieter (DIETER, 2013).

37

[...] una primera oportunidad para que la CIDH y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos profundicen y desarrollen la temática desde el referido enfoque, analizando los efectos que tiene la pobreza en el goce y ejercicio de esos derechos. Asimismo, busca abrir puertas para desarrollar más el marco jurídico en que se genera la responsabilidad internacional de los Estados por la pobreza y la pobreza extrema. Es también una oportunidad para presentar a los Estados estándares claros en el marco de la normativa internacional de derechos humanos a fin de enfrentar los obstáculos que afectan el goce y ejercicio de derechos humanos en la que se encuentran más de 165 millones de personas en el hemisferio, de los cuales, alrededor de más de 69 millones viven en la pobreza extrema. (CIDH, 2016a).

Assim, em resumo, são eixos centrais do Informe: abordar a pobreza sob o enfoque de

direitos humanos, marcar os paradigmas interamericanos relativos ao tema, visibilizar grupos

historicamente vulneráveis, oferecer recomendações aos Estados (CIDH, 2016a).

No marco da definição de pobreza aqui adotado, o Informe plasma a ideação conforme

a qual:

En concreto, el sistema interamericano no sólo recoge una noción formal de igualdad, limitada a exigir criterios de distinción objetivos y razonables y, por lo tanto, a prohibir diferencias de trato irrazonables, caprichosas o arbitrarias, sino que avanza hacia un concepto de igualdad material o estructural que parte del reconocimiento de que ciertos sectores de la población requieren la adopción de medidas afirmativas de equiparación. Ello implica la necesidad de trato diferenciado cuando, debido a las circunstancias que afectan a un grupo desventajado, la igualdad de trato suponga suspender o limitar el acceso a un servicio, bien o el ejercicio de un derecho. (CIDH, 2016a).

Afasta-se, portanto, de uma noção de igualdade meramente formal para defender a

adoção de políticas de discriminação positiva (ações afirmativas), a fim de que situações de

desigualdade fática sejam de responsabilidade das políticas públicas estatais com vistas a uma

igualdade material, caracterizada pelo acesso equânime aos direitos, conforme previsto na

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), CADH, PIDESC e nas Constituições

dos Estados do continente.

Por outro lado, remarca o citado Informe que a CIDH sustenta, no referente à pobreza e

pobreza extrema, que, em virtude dos referidos princípios de não discriminação e igualdade

de oportunidades, os Estados devem assegurar “que las políticas que adopte no representen

una carga desproporcionada sobre los sectores marginados y más vulnerables de la

sociedad, en particular aquéllos que se encuentran en situación más desventajosa debido a la

pobreza” (CIDH, 2017 a).

Um recorte importante que não escapou à percepção da CIDH (2017 a) está no fato de

que a pobreza no continente americano tem uma cor, destacando, em seu Informe Anual de

2016, as disparidades étnico-raciais em matéria de gozo de direitos humanos de pessoas

38

afrodescendentes no Brasil, segundo os dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), (IBGE, 2014). A CIDH ressaltou em tal documento que tem

recebido informações sobre a persistência de enormes desigualdades entre afro-brasileiros e o

restante da população. Entre os 10% mais pobres da população brasileira, 75% são negros e

pardos, enquanto esse percentual é de 23,9% para pessoas brancas (IBGE, 2014). Ademais, a

CIDH destaca que continua havendo uma discrepância significativa entre a expectativa de

vida das populações brancas e negras no Brasil. No contexto de ações para resguardar a

segurança pública, a luta contra as drogas e, mais recentemente, durante etapas prévias aos

Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro (MENDES, 2016), cerca de 100 pessoas foram mortas

pela polícia no Estado do Rio, sendo em sua maioria homens jovens e negros (CIDH, 2017a),

como destacado pelo Informe Anual citado (CIDH, 2017a).

Por essa razão, a CIDH celebrou o fato de que a OEA e a Organização Panamericana de

Saúde haverem editado, em julho de 2016, o novo Plano de Ação do Decênio das e dos

Afrodescendentes nas Américas, uma iniciativa que busca fortalecer as políticas públicas para

assegurar os direitos e a participação plena e igualitária desta população na região até 2025. A

iniciativa objetiva “melhorar a saúde e bem estar dos mais de 150 milhões de

afrodescendentes que se estima vivem no Hemisfério Ocidental, e que tem piores condições

de saúde que outros grupos raciais como consequência das desigualdades, da pobreza e da

exclusão social, as quais estão estreitamente vinculadas com o racismo, a xenofobia e a

intolerância” (CIDH, 2017 a), de acordo com o Informe da CIDH de 2016.

Na trilha do que será desenvolvido nos capítulos seguintes, é importante antecipar o fato

de que políticas ou ações (públicas ou de particulares) que representam estigmatização ou

sinais de repressão desproporcional ou injusta sobre determinadas classes sociais estão em

desacordo em relação aos paradigmas traçados pela CIDH.

1.1.3 A pobreza brasileira

A realidade brasileira exprime-se historicamente vinculada a graves problemas de

desigualdade e exclusão sociais, que relegam enormes parcelas da população à condição de

vulnerabilidade. A sociedade brasileira é, para José Eduardo Faria “instável, iníqua,

contraditória e conflitiva, caracterizando-se por situações de miséria, indigência e pobreza que

negam o princípio da igualdade formal perante a lei, impedem o acesso de parcelas

significativas da população aos tribunais e comprometem a efetividade dos direitos

39

fundamentais” (FARIA, 2015). Os níveis de desigualdade da distribuição de renda no Brasil

proporcionam a abertura de um abismo econômico, social e político entre as classes,

contrastando uma minoria – que usufrui de altos padrões de consumo e de instrumentos de

reprodução das relações sociais – com uma esmagadora maioria de condenados a uma vida de

carências, sofrimento e sacrifício (REGO; PINZANI, 2014, p. 163).

Verifica-se, portanto, um abismo entre o arcabouço normativo e a realidade. Com efeito,

a Constituição de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana como um de seus princípios

fundamentais (art. 1 o, III) e, como objetivos fundamentais, no art. 3º, encontram-se: construir

uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (II);

erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III);

promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação (IV) (BRASIL, 1988), todos afinados com a busca da

igualdade, além de estabelecer extenso (e não exaustivo) rol de direitos sociais destinados à

promoção da igualdade material, no art. 6.

Por outro lado, o Texto Constitucional brasileiro orienta a ordem econômica a assegurar

a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, fundada, entre outros

princípios, na redução das desigualdades regionais e sociais (art. 3º, inciso VII da

Constituição) (BRASIL, 1988). Funda, ademais, uma ordem social que tem como base o

primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art. 196) (BRASIL,

1988), detalhando a estrutura e o modo de exercício dos direitos à seguridade social (saúde,

previdência e assistência social), educação, cultura, desporto, comunicação social, meio

ambiente, além de direitos da criança, adolescente, jovem e idoso.

Apesar de toda essa vanguardista normatização constitucional, reforçada por minuciosa

e vasta legislação infraconstitucional, nos vários níveis federativos, o Brasil convive com

alarmantes índices de pobreza. Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani chegam a

identificar, inclusive, uma “operação ideológica voltada à naturalização da pobreza do Brasil:

a ideia de que esta seja uma espécie de fenômeno natural imutável, contra o qual qualquer luta

é inútil” (REGO; PINZANI, 2014, p. 164).

No Brasil não há linha oficial de pobreza, sendo que alguns países têm uma ou mais

linhas oficiais, conforme lista a “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de

vida da população brasileira”, publicação do IBGE, de 2017 (IBGE, 2017). De acordo com o

40

IBGE, no Brasil, há diversas linhas (chamadas administrativas) utilizadas pelas políticas, tais

como linhas do Programa Brasil sem Miséria (PBSM) – R$ 85,00 (pobreza extrema) e R$

170,00 (pobreza) em seus valores de 2016 – e a linha do Benefício de Prestação Continuada

(BPC) – definida como o rendimento domiciliar per capita abaixo de ¼ de salário-mínimo.

Essas linhas podem ser definidas por lei (como o BPC na Lei no 8.742, de 07.12.1993,

atendendo ao princípio constitucional de as pessoas viverem e envelhecerem com dignidade)

ou por decisões administrativas (IBGE, 2017). Assim, de acordo com a linha do PBSM, 4,2%

da população brasileira vivem em pobreza extrema. Já no tocante à referência de rendimento

familiar abaixo de ¼ do salário, são 12,1% (IBGE, 2017). Recortes de pobreza mais altos

incluem a população com até meio salário-mínimo per capita, o que resulta em um total de

29,9% de brasileiros abaixo da linha.

Outra medida relevante é o recorte da linha de pobreza extrema internacional,

constituída com suporte nos 15 países mais pobres, estabelecida como indicador global e

calculada pelo Banco Mundial. Seu valor é atualmente de 1,90 dólar americano por dia de

renda ou consumo per capita em Paridade de Poder de Compra (PPC) revisada em 2011.

Mesmo se calculada com base nos países mais pobres, essa linha tem muita relevância no

conceito mundial, pois o relatório global de acompanhamento da Agenda 2030 estimou que

ainda havia 767 milhões de pessoas na pobreza extrema em 2013. Por ela, haveria um

percentual de 6,5% de brasileiros na pobreza (IBGE, 2017).

No plano internacional há, além da linha de pobreza extrema global, outras que se

constituem com procedência nas linhas nacionais e dão conta das diferenças de nível de

desenvolvimento dos países. Atualmente, para países de nível médio-alto de

desenvolvimento, como os da América Latina, o Banco Mundial usa a linha de 5,5 dólares por

dia PPC (revisão 2011). Calculada com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio

(PNAD) Contínua, a linha de 5,5 dólares por dia correspondia a R$ 387,07 em 2016 e incluía

25,4% da população brasileira na pobreza, tendo a maior incidência no Nordeste (43,5%) e a

menor no Sul (12,3%) (IBGE, 2017). Essa é considerada importante pelo IBGE porque

detalha o nível de vida da população brasileira, revelando desigualdades. Avaliar as

diferenças regionais é importante para apontar os lugares onde maiores e menores

contingentes de pessoas estão passando por dificuldades econômicas em virtude de não terem

acesso a recursos monetários (que permitem aceder a bens e serviços oferecidos para a

compra). Ao se avaliar essas desigualdades, as unidades da Federação e capitais das regiões

41

Norte e Nordeste despontam, com os maiores valores no Maranhão (52,4%), Amazonas

(49,2%) e Alagoas (47,4%) (IBGE, 2017).

Por outro lado, esse recorte é válido para desnudar, como o faz a publicação referida, o

fato de que a pobreza monetária atinge mais fortemente crianças e jovens (17,8 milhões de

crianças e adolescentes de zero a 14 anos, ou 42 em cada 100 crianças em 2016). Também há

elevada incidência em homens e mulheres pretos ou pardos, respectivamente, 33,3% e 34,3%,

contra cerca de 15,0% para homens e mulheres brancos. Outro recorte relevante é dos arranjos

domiciliares, no qual a pobreza medida pela linha de 5,5 dólares por dia mostra alta incidência

no arranjo de mulheres sem cônjuge com filho(s) até 14 anos (55,6%) e ainda maior nesse tipo

de arranjo formado por mulheres pretas ou pardas (64,0%), o que indica o acúmulo de

desvantagens para este grupo que merece atenção das políticas públicas (IBGE, 2017). Releva

destacar a Tabela 2.14 da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, que detalha a composição

do total de pobres, descrevendo que quase ¾ ou 72,9% eram pessoas de cor ou raça preta ou

parda, o que explicita a concentração de desvantagens (IBGE, 2017).

Impõe-se considerar, ainda, na esteira do que se mostra no estudo sob relação, um

conceito de pobreza que não se limita ao aspecto monetário, avaliando outras vulnerabilidades

que implicam limitação no exercício de direitos às pessoas que se encontram nessa situação.

Assim, a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE analisa a pobreza também como fenômeno

multidimensional, pensando, com amparo nos indicadores da PNAD Contínua, em um recorte

de pessoas sem acesso à educação, à proteção social, à moradia adequada, aos serviços de

saneamento básico e à comunicação (IBGE, 2017).

Uma análise com esse escopo complementa o exame da pobreza monetária e permite

observar a quantidade de pessoas sem acesso a essas dimensões (direitos), assim como a

intensidade dessas privações (IBGE, 2017). Para tal exercício, foram consideradas cinco

restrições de acesso: 1) À educação – crianças e adolescentes de 6 a 14 anos de idade que não

frequentavam escola, pessoas de 15 anos ou mais de idade analfabetas e pessoas de 16 anos

ou mais de idade que não possuíam ensino fundamental completo; 2) À proteção social –

foram consideradas carentes as pessoas que satisfaziam simultaneamente as duas condições a

seguir – residentes em domicílios onde não havia nenhum morador de 16 anos ou mais de

idade com trabalho formal ou aposentado/pensionista; domicílios com rendimento domiciliar

per capita inferior a ½ salário mínimo, e com nenhum membro recebendo rendimentos de

outras fontes, o que inclui programas sociais; 3) À moradia adequada – foram consideradas

42

carentes as pessoas residindo em domicílios sem banheiro ou sanitário de uso exclusivo do

domicílio, com paredes externas construídas predominantemente com materiais não duráveis,

com adensamento excessivo ou com ônus excessivo com aluguel; 4) Aos serviços de

saneamento básico – foram consideradas carentes as pessoas residentes em domicílios que

não tinham acesso simultâneo a três serviços de saneamento definidos por coleta direta ou

indireta de lixo, abastecimento de água por via de rede geral, esgotamento sanitário por rede

coletora ou pluvial; 5) À comunicação – foram consideradas carentes as pessoas residentes em

domicílios sem acesso à internet (IBGE, 2017).

Para o estudo da pobreza monetária (unidimensional), o IBGE identificou os pobres e os

agregou, quer dizer, somaram-se as pessoas abaixo da linha escolhida para se chegar à

proporção de pobres (IBGE, 2017). No caso da pobreza multidimensional, utilizou uma

pergunta de partida: em quantas dimensões é necessário haver privação para considerar a

pessoa como pobre multidimensional? No caso, adotou-se o recorte em ao menos uma

privação para identificar a pessoa na pobreza multidimensional, pois a orientação pelos

direitos humanos leva a escolher a abordagem que privilegie a irredutibilidade e o caráter

insubstituível dos direitos humanos (IBGE, 2017). Assim, os dados do referido estudo

mostram distintas incidências de restrição de acesso, do mesmo modo que 64,9% da

população brasileira tinham restrição em pelo menos uma das dimensões estudadas em 2016.

Tal incidência variava segundo os grupos populacionais, atingindo 80,0% das pessoas de 60

anos ou mais de idade, com seu ápice (81,3%) concernindo a mulheres pretas ou pardas sem

cônjuge com filhos pequenos no domicílio (IBGE, 2017b).

Para o total do país, as dimensões que mais contribuíam para a pobreza

multidimensional eram a restrição de acesso a saneamento básico (30,1%) e à comunicação

(25,5%), sendo que a primeira mostrou intensa variação regional, com maior papel nos

Estados do Norte e Nordeste, contribuindo em 48,2% no Amapá e 45,3% em Rondônia

(IBGE, 2017). Finalmente, descrevendo o papel das dimensões na pobreza multidimensional

por grupos, é possível destacar que os grupos etários são afetados de modo diferenciado pelas

restrições: a população idosa se mostrou, sobretudo, prejudicada na dimensão educação e

acesso à internet, enquanto crianças e adolescentes até 14 anos foram mais afetados pelo

acesso precário à comunicação e a serviços de saneamento básico (IBGE, 2017). Arranjos

monoparentais femininos com filhos até 14 anos mostram-se mais vulneráveis do que o total

da população nas dimensões de condições de moradia e de proteção social, sendo que esta

última contribui em 26,5% para a incidência ajustada de pobreza de mulheres pretas ou pardas

43

sem cônjuge com filhos pequenos, sendo então importante atenção ao acesso a trabalho

formal por esse grupo (IBGE, 2017).

Esses dados contribuem para a delineação de um panorama da pobreza no Brasil,

identificando-se privações que não se limitam à precariedade de renda, revelando, ainda,

renitente concentração na população feminina, bem como entre os negros e pardos. Assim, o

crescimento econômico experimentado pelo Brasil, posicionando-o entre as principais

economias do Planeta, não foi suficiente para amenizar o grave problema da pobreza,

caracterizada como estado de privação do exercício dos mais básicos direitos humanos.

Essa população, portanto, em relação à qual o rol de direitos assegurados na

Constituição não passa de mera promessa, é a mesma selecionada pelo sistema penal,

submetendo-se a constante e intensa criminalização, como será analisado detidamente nos

tópicos que seguem.

1.2 Criminalização da pobreza: conceito e espécies

A previsão de condutas em relação às quais o Estado ameaça responder com a

imposição de penas (cominação legal), somada à maneira como se dá a intervenção das

instituições na efetivação das citadas previsões, constitui o que se denomina criminalização.

Nessa perspectiva, pretende-se identificar em que situações o atuar estatal confere distinta

dignidade às pessoas, conforme sua classe social, tomando os socialmente vulneráveis por

objetos e não sujeitos de direitos, desconsiderando o valor dignidade humana, conforme já

aludido. Com efeito, segregar grupos sociais, tratando-os como inimigos e apontando-os

como responsáveis pela insegurança pública, somente contribui para o aprofundamento do

problema.

Como adverte Bauman (2003, p. 128), “nenhum dos contendores ganha em segurança

na guerra entre “nós” e “eles”; todos, porém, viram alvos fáceis para as forças globalizantes –

as únicas forças que se beneficiam com a suspensão da procura por uma humanidade comum

e com o controle conjunto sobre a condição humana”.

En nuestro presente, el sujeto excluído es portador de una peligrosidad que le confiere el lugar social del enemigo […] Y este enemigo en tanto integra um colectivo social, el de los excluidos, los que están o deben estar afuera, deben anclarse en un espacio social y territorial ajeno al espacio de nosotros, su circulación, su visibilidad se convierte en una amenaza en tanto seguros ofensores, seguros delincuentes, alimentando la “obsesión securitária”, con propuestas

44

políticas y de gestión de lo social fundadas en la incapacitación, neutralización y si es necesario la eliminación de ese “otros” amenazantes. (DAROQUI, 2009, p. 17).

Posturas dessa natureza devem ser evitadas pelo Estado e combatidas pelas pessoas ,

lançando mão, inclusive, das próprias instituições estatais desenhadas para impedir a ofensa

ao Direito, cumprindo-se, assim, a promessa de um Estado Democrático de Direito, que não

se compatibiliza com tratamento diferenciado sem uma razão lógica subjacente, que esteja

afinada com o valor motriz da dignidade da pessoa humana.

Como adverte Young (2002, p.71), “o sistema de justiça criminal seleciona

‘amostragens’ particulares cuja base não é aleatória, mas o próprio estereótipo”. Esse agir

direcionado ocorre, assim, desde o momento da cominação legal, quando são previstas

punições abstratas invariavelmente mais severas para os crimes atribuídos normalmente às

camadas mais pobres da população. Prossegue quando da atuação dos órgãos persecutórios e

jurisdicionais, quando se percebe uma atuação focada no recrudescimento da repressão sobre

os mais pobres, observado desde o modo de abordagem policial nas periferias, passando pelas

decisões judiciais seletivas, até o momento do cumprimento da pena em estabelecimentos

prisionais sobejamente precários.

Por fim, mas não menos importante, fundamental é o papel da mídia na elaboração e

reprodução de critérios seletivos injustificáveis quando da divulgação de eventos criminosos,

havendo notório comportamento diverso conforme esteja tratando de crimes praticados por

pobres ou dos chamados “crimes de colarinho branco”, cujo dano difuso é muito mais

significativo, mas não recebem a cobertura e a indignação manifestada pelos comentaristas

midiáticos.

O que se observa ao fim dessa combinação de eventos direcionados ao controle sobre a

população vulnerável é o fenômeno do encarceramento em massa. A população prisional

brasileira aumentou 400% nos últimos 20 anos e o Brasil já ocupa a 4ª posição entre as nações

com maior número de presos no mundo, representando a única dentre as quatro que mantêm o

ritmo crescente de encarceramento. Após seguidos crescimentos, o índice em território

brasileiro saltou de 287 presos por 100.000 habitantes, no ano de 2012, para 300 em 2014,

segundo o informe do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Nos Estados Unidos,

país conhecido pelo rígido controle da criminalidade com detenções, a taxa caiu de 758 para

707, em um período de sete anos. Na Rússia, os números despencaram de 609 para 467.

Enquanto isso, na China, na última década, há uma ligeira variação ano a ano de 122 a 124.

45

Os dados do DEPEN mostram que atualmente há 574.027 presos distribuídos em 317.733

vagas – quase duas vezes acima de sua lotação (BENITES, 2014). Se forem acrescidas as

pessoas sob regime de prisão domiciliar, chegava-se aos 715.592 privados de liberdade,

alçando o Brasil à condição de 3a. maior população prisional do Planeta, conforme dados de

junho de 2014, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), (2014). Com os dados consolidados

de 2016, quando se realizou o último censo penitenciário, o DEPEN informa que a população

prisional até junho desse ano era de 726.712 encarcerados, para 368.409 vagas, resultando em

uma taxa de ocupação de 197,4% e uma taxa de encarceramento de 352, seis para 100 mil

habitantes (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017).

Outros números ajudam a desenhar o problema, sob o enfoque apresentado. Como

noticia o jornal El Pais, a maioria da população prisional brasileira é negra ou parda (61,68%),

é analfabeta ou concluiu no máximo o primeiro grau (68%) e cometeu crimes não violentos,

como furto, tráfico de drogas e estelionato, entre outros (51%) (BENITES, 2014). Não há uma

predisposição atávica dessa parcela da população ao crime. O que ocorre é uma seletividade

estatal, desde a definição de quem serão os abordados pela polícia até o momento da decisão

judicial final, tornando a população prisional um aglomerado de pessoas das camadas sociais

desfavorecidas. Destaque-se o fato de que a observação não adentra o mérito da inocência ou

não dos alcançados pelo braço repressivo do Estado, mas que este está voltado a agir de modo

muito mais constante (quando não a única) contra a parcela mais vulnerável da população, o

que implica alcançar culpados e, muitas vezes, também inocentes.

Os elevados índices de criminalidade e o incensado desejo social por segurança pública,

cuja urgência é amplificada por setores da mídia, conduzem as políticas públicas por

caminhos absolutamente contrários à solução do problema. Opta-se pelo fortalecimento do

Estado penal, ao mesmo tempo em que se determina o encolhimento do Estado social,

condenando milhões de pessoas à pobreza e, consequentemente, à sua criminalização, em

muitas situações. Para Loic Wacquant, “à atrofia deliberada do Estado social corresponde a

hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida

direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro” (WACQUANT, 2001, p.

80). “O cordão sanitário atuarial separa o mundo dos perdedores do mundo dos vencedores,

numa tentativa de realizar o seguinte: tornar a vida mais tolerável para os vencedores e

transformar os perdedores em bodes expiatórios” (YOUNG, 2002, p. 42).

46

Quando o medo é ubíquo, a incerteza ganha as ruas e, para enfrentá-la, são elaboradas

estratégias de antropomorfização (para dar um rosto ao perigo) e espacialização (para

associar o medo a um território), estratégias relacionadas entre si (RODRÍGUEZ ALZUETA,

2014, p. 67). Todo o temor social concentra-se, então, na pobreza, encarada como causa do

delito e da violência social, enquanto os crimes de colarinho branco e de corrupção política,

demasiadamente abstratos e distantes, livres de estigmas sociais, não são referenciados como

produtores de medo (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 33).

As demandas por saúde, educação, emprego, moradia e outras promessas advindas com

o surgimento do Estado social são solenemente ignoradas. Doutra banda, o Estado penal,

agigantado, abate-se sobre uma só espécie de criminalidade, que em muitas situações é

resultante do abismo entre o que se defende como sinônimo de felicidade e a falta de

condições para alcançá-la por amplas parcelas da população. Com efeito, um enorme

contingente de indivíduos é privado de várias modalidades de liberdade, representando um

entrave sério ao desenvolvimento, na perspectiva adotada por Sem (2010, p. 10), para quem

“[...] o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as

escolhas e oportunidades das pessoas de exercer preponderantemente a sua condição de

agente”.

As políticas neoliberais mundo afora tentam, não só, diminuir o Estado, mas também

redesenhar os parâmetros da sociedade civil, excluindo as ordens mais baixas de sua órbita,

negando-lhes educação decente, serviços de saúde e direitos legais enquanto seus direitos

políticos são esvaziados e tornados inconsequentes; ao mesmo tempo, no campo da lei e da

ordem, as áreas que têm escolas pobres e serviços sociais precários também têm um

policiamento aleatório, que reage a grandes distúrbios, não é empregada da cidadania local, é

seu guarda (YOUNG, 2002, p. 84).

Conforme vaticina Batista (2013, p. 54), “o sistema penal está estruturalmente montado

para que não opere a legalidade processual e para exercer seu poder com o máximo de

arbitrariedade seletiva dirigida aos setores vulneráveis”. Bauman (2013, p. 10) identifica uma

“tendência, cada vez mais evidente, de reclassificar a pobreza, o mais extremo e problemático

sedimento da desigualdade social, como um problema de lei e ordem, exigindo assim medidas

em geral empregadas para enfrentar a delinquência e os atos criminosos”. Para Wacquant

(2001, p. 10) é estabelecida verdadeira ditadura sobre os pobres, quando se desenvolve o

Estado penal em resposta às desordens geradas pela desregulamentação da economia, pela

47

dessocialização do trabalho assalariado e pauperização relativa e absoluta de amplos

contingentes do proletariado urbano, ao mesmo tempo em que se aumentam os meios, a

amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário.

O problema não pode ser encarado exclusivamente desde práticas jurídicas e repressivas

próprias do Estado moderno, já que se trata de um sistema penal próprio de um mundo cada

vez mais alheio à realidade contemporânea. Se as práticas delitivas estão vinculadas ao

fracasso dos principais mecanismos integradores tradicionais, como o trabalho e a educação

formal, é evidente que a aplicação isolada de medidas jurídicas (principalmente penais) não

desconstituirá esse processo falido (INNAMORATO; CANAVESSI, 2015, p. 47). De acordo

com Miriam Abramovay, “o fomento da violência entre os jovens latino-americanos possui

íntima relação com as desigualdades e o não-acesso à riqueza e cidadania, ou seja, a exclusão

social. Combater o problema da crescente violência requer, pois, políticas públicas que

busquem superar a condição vulnerável desses jovens” (ABRAMOVAY et al., 2002, p. 66).

1.2.1 Criminalização primária da pobreza

Chama-se criminalização primária à atividade de estabelecer que condutas devem ser

alcançadas pela lei penal, as gradações punitivas de acordo com a gravidade, além do

tratamento processual penal diferenciado, assentado igualmente em uma escala valorativa

estabelecida a priori pelo legislador. Cabe, portanto, ao poder legiferante do Estado

estabelecer os critérios de criminalização que, de modo inicial (primário), incidirão sobre as

condutas.

Logicamente, se enxerga a seletividade no próprio ato de definir que condutas serão

criminalizadas e quais serão tratadas por outros ramos do Direito, ou simplesmente ignoradas

por pertencentes à seara exclusiva da moral, ou por serem indiferentes. O que mostram a

história e os exemplos colhidos na legislação brasileira, entretanto, é que os critérios de

seleção obedecem a lógicas de controle social reforçado sobre determinada camada da

população e de tratamento leniente com aquelas que gravitam em torno do poder econômico e

político.

A verificação das mais variadas configurações de criminalização de certas parcelas da

população desnuda como a pobreza pode de fato funcionar como causa de violação de

direitos. Consoante entende Mellim Filho (2010, p. 60), o controle das “classes perigosas”

nasce de mecanismos que perpassam toda a sociedade, “objetivando a reforma moral de parte

48

dos indivíduos não pelo que efetivamente fizeram, mas pelo que eventualmente possam

realizar”, muitas vezes com a “explícita seleção de pessoas feita por parte das leis penais, de

forma a demonstrar como se procede a valorização de fatos não pelo que, à primeira vista,

significam em si, mas porque, por trás deles, encontram-se determinadas pessoas que

necessitam ser punidas e controladas” (MELLIM FILHO, 2010, p. 60).

Na análise criminológica de Baratta (2002, p. 176),

A seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo de atenuantes e agravantes. As malhas do tipo penal são, em geral, mais sutis no caso dos delitos próprios das classes sociais mais baixas do que no caso dos delitos de “colarinho branco”. Estes delitos, também do ponto de vista da previsão abstrata, têm uma maior possibilidade de permanecerem impunes.

Como percebe Oscar Mellim Filho, em relação às condutas normalmente atribuídas aos

pobres (crimes patrimoniais), são utilizadas técnicas que costumam agravar as soluções

penais, deixando pouco espaço para soluções absolutórias ou de baixa punibilidade (MELLIM

FILHO, 2010, p. 25). “Já os crimes contra a ordem tributária, por exemplo, trazem, na própria

lei, vias alternativas e estratégicas de despenalização” (MELLIM FILHO, 2010, p. 25-26).

Tal “atenção” desproporcional do legislador brasileiro conducente à criminalização da

pobreza não se exprime somente nas normas atuais6. Já nas Ordenações Filipinas, que

regularam a vida na colônia brasileira por quase todo o período de domínio português (em

matéria civil até 1916), podia-se verificar no Título XXXVIII do Livro Quarto que,

Achando o homem casado sua mulher em adulterio, licitamente poderá malar assi a ella, como o adultero (7), salvo se o marido for peào, e o adultero Fidalgo, ou nosso Dezembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma, das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adullerio, não morrerá por isso mas será degradado para Africa com pregão na audiencia pelo tempo, que aos Julgadores bem parecer, segundo a pessoa, que matar, não passando de trez anos. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1870).

Isto é um escancarado tratamento discriminatório, na medida em que autorizava ao

marido vítima de adultério matar a sua mulher e igualmente o homem adúltero, salvo se o

marido for peão e o adúltero for fidalgo ou desembargador, ou “pessoa de maior qualidade”, o

que significa alguém de destacada posição social, quando então o homicídio não estaria

autorizado, sujeitando o eventual homicida nessas circunstâncias a ser degradado para a

África.

6 Uma análise mais detalhada da seletividade penal na história brasileira encontra-se no segmento 2.2 - A

seletividade penal na história brasileira.

49

Já no Código Criminal do Império, de 1830, era prevista a criminalização de vadios e

mendigos nos artigos 295 e 296. Assim, vadia era a pessoa sem “uma occupação honesta, e

util, de que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda suficiente”

(BRASIL, 1830), sujeita a pena de “prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias”. Já

para os mendigos, se estabelecia que

[...] andar mendigando: 1º Nos lugares, em que existem estabelecimentos publicos para os mendigos, ou havendo pessoa, que se offereça a sustental-os; 2º Quando os que mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos lugares não hajam os ditos estabelecimentos; 3º Quando fingirem chagas, ou outras enfermidades; 4º Quando mesmo invalidos mendigarem em reunião de quatro, ou mais, não sendo pai, e filhos, e não se incluindo tambem no numero dos quatro as mulheres, que acompanharem seus maridos, e os moços, que guiarem os cégos. Penas - de prisão simples, ou com trabalho, segundo o estado das forças do mendigo, por oito dias a um mez. (BRASIL, 1830).

Curioso é constatar que permanece vigente a Lei de Contravenções Penais - Decreto-lei

nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (BRASIL, 1941b) prevendo como ilícitos penais a

vadiagem, definida no art. 59 como “Entregar-se alguem habitualmente à ociosidade, sendo

válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou

prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena - prisão simples, de quinze dias

a três meses” (BRASIL, 1941 b). Interessante é que a aquisição superveniente de renda, que

assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena (parágrafo único). Já

a mendicância é descrita no art. 60 como: mendigar, por ociosidade ou cupidez: Pena – prisão

simples, de quinze dias a três meses. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se a

contravenção é praticada: de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento; mediante simulação

de moléstia ou deformidade; em companhia de alienado ou menor de dezoito anos (BRASIL,

1941b).

Já no que se refere ao início do período republicano, Fausto (2014, p. 169), em

detalhada pesquisa divulgada no livro que intitulou Crime e cotidiano expôs que:

Pelo menos em um ponto, o Código penal de 1890 revela a expressa preocupação repressiva com a infidelidade dos criados. Como já mencionei, define-se como roubo a subtração praticada por alguém à noite “com auxilio de algum doméstico que tenha sido subornado”. Por sua vez, o Tribunal do Júri agravava em certos casos, mas não invariavelmente, a pena aplicada a empregados domésticos, reconhecendo que haviam procedido com abuso de confiança- uma circunstância agravante do crime. Talvez pela hesitação dos jurados, o Código penal de 1940 foi mais explícito, a considerar circunstância agravante “prevalecer-se de relações domésticas”.

Verifica-se inequívoca demonstração de criminalização primária, pois a norma é feita

sob medida, com o desiderato explícito de alcançar situações específicas e criminalizar

50

pessoas que exercem seus misteres no âmbito doméstico, invariavelmente pertencentes às

classes mais pobres, em evidente superproteção da classe proprietária, estabelecendo-se um

plus de penalização aos empregados domésticos que se atrevessem a praticar crimes contra o

patrimônio, sendo esta exatamente a finalidade da norma.

Releva considerar o fato de que o art. 61, II, “f”, hoje vigente, mantém como

circunstância que sempre agrava a pena ter o agente praticado o crime prevalecendo-se de

relações domésticas. Obviamente que tal alínea ganhou reforço considerável por passar a

referir-se às situações de violência contra a mulher, após a sua nova redação fixada pela Lei

11.340/06 (BRASIL, 2006), a chamada Lei Maria da Penha. O resquício de criminalização da

pobreza, contudo, manteve-se inalterado, como visto.

Conforme leciona Fausto (2014, p. 29-30), isto não é um problema meramente técnico,

mas está ligado à discriminação social e às opções da política repressiva, principalmente no

que tange às das contravenções.

Certas condutas passíveis abstratamente de sanção só se tornam puníveis quando se referem aos pobres. Basta pensar na embriaguez, contravenção aplicável somente aos indivíduos ‘pouco respeitáveis’, pois os demais não são bêbados, mas pessoas ‘tocadas’ ou ‘um pouco altas’. (FAUSTO, 2014, p. 29-30).

A contravenção de embriaguez estava prevista no art. 396 do Código Penal de 1890.

A legislação penal atual, embora sob os influxos de uma Constituição pródiga na

previsão de direitos fundamentais, permanece recheada de manifestações de tratamento penal

mais severo com destinatários específicos, nos moldes já apontados. Assim, de acordo com a

configuração do Estado Democrático de Direito, esperava-se que a legislação penal refletisse

a proteção dos bens mais importantes, punindo mais severamente condutas que causassem

maiores danos. Verifica-se, entretanto, é que há indisfarçável influência das instâncias de

poder econômico e político na formulação dessas normas penais, resultando em claras

distorções de previsão, punição e tratamento penal, privilegiando a proteção de símbolos do

status quo, enquanto condutas muito mais lesivas permanecem acobertadas por uma

legislação aberta, branda e repleta de caminhos de impunidade.

Assim, a título exemplificativo (pois são inumeráveis as hipóteses de ocorrência), é

possível identificar na legislação penal e processual penal brasileiras:

51

a) a opção pela pena privativa de liberdade para os crimes com penas elevadas, a maior

parte constituindo infrações que, ademais, são na prática apuradas com afinco em

processos criminais (roubo, extorsão), enquanto crimes de estelionato, apropriação

indébita, contra o sistema financeiro nacional, de corrupção, com penas cominadas

bastante baixas, levam o juiz a aplicar penas, no máximo, no regime semiaberto,

além de possibilitarem a substituição por penas restritivas de direitos (MELLIM

FILHO, 2010, p. 68);

b) a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), que estabeleceu normas mais duras para

crimes selecionados pelo legislador, a partir de uma ação casuística em resposta ao

sequestro dos empresários Martinez, Abílio Diniz e Medina (MELLIM FILHO, p.

70). Não se questiona a necessidade ou mesmo a opção por determinados crimes

como hediondos, mas se quer demonstrar que os critérios de determinação dos

crimes respondem a necessidade de proteção preferencial das camadas favorecidas

da sociedade, como o casuísmo comprova;

c) a Lei nº 8.137/90, que trata dos crimes contra a ordem financeira e tributária, que

causam danos gravíssimos à sociedade, atingindo um número de vítimas

incalculável, mas que, como são normalmente praticados por pessoas abastadas,

possuem definição bastante imprecisa, facilitando sobremaneira as absolvições e,

quando, raramente há condenações, estas são em penas baixíssimas (por serem essas

as previstas) (MELLIM FILHO, p. 72). Além do mais, “preveem a necessidade de

prévio esgotamento da esfera administrativa para a instauração da ação penal, além

da possibilidade, em alguns casos, de não propositura da ação em caso de pagamento

ou parcelamento do tributo” (MELLIM FILHO, p. 72).

d) a previsão de prisão provisória em quartéis ou prisão especial para certos indivíduos,

no art. 295 do Código de Processo Penal (CPP)7. Esta é uma inequívoca

demonstração de que há um tratamento diferenciado em relação a determinadas

pessoas, não necessariamente em razão da proteção do cargo que ocupam, mas

7 “Art. 295 do Código de processo Penal determina que serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à

disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: I - os ministros de Estado; II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia; III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembleias Legislativas dos Estados; IV - os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito”; V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; VI - magistrados; VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; VIII - os ministros de confissão religiosa; IX - os ministros do Tribunal de Contas; X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função; XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”. (BRASIL, 1941a)

52

principalmente pelo status social que ostentam, impedindo que sejam submetidas às

mesmas condições de encarceramento do “populacho”. Esta previsão representa,

praticamente, uma admissão de que o cárcere é um local de tamanho desrespeito aos

direitos fundamentais que não representa um lugar a ser ocupado pelos

representantes de estratos sociais dominantes. O § 1o do dispositivo escancara essa

constatação ao prescrever que a prisão especial, prevista neste Código ou em outras

leis, consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum

(BRASIL, 1941a). O § 3o, por sua vez, ao estatuir que a cela especial poderá consistir

em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela

concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados

à existência humana (BRASIL, 1941a) espanta qualquer dúvida de imparcialidade

que ainda pudesse existir, reforçado pelo § 4o, de acordo com o qual o preso especial

não será transportado juntamente com o preso comum (BRASIL, 1941a).

No âmbito do sistema interamericano, a CIDH, em minudente informe sobre pobreza,

pobreza extrema e direitos humanos nas Américas (CIDH, 2016a), não deixou passar ao largo

as reiteradas práticas de criminalização primária dos mais pobres:

También la CIDH observa que la situación de exclusión, desventaja y discriminación en que viven las personas en situación de pobreza se podría ver agravada por normas y prácticas que restringen la realización de ciertos actos, conductas o actividades en espacios públicos por ser consideradas “indeseables” o contrarias al orden público, como sería el caso de actividades relacionadas a la mendicidad, dormir y deambular en las calles, entre otros. La sanción o criminalización de dichos actos y conductas, aunado a los obstáculos que las personas que viven en situación de pobreza a menudo enfrentan para acceder a la justicia en igualdad de condiciones, contribuye a acentuar su exclusión y estigmatización. La CIDH considera importante resaltar que la prohibición de la mendicidad y actividades relacionadas podrían representar una violación a los principios de igualdad y no discriminación. (CIDH, 2016a).

Essas propostas legislativas de controle do delito restaram aprofundadas pela lógica

neoliberal individualista e excludente, como percebe Daroqui (2009, p. 20):

[…] seguiendo la lógica general del tratamiento neoliberal de los problemas sociales (o el conflito social), se intenta explicar el fenômeno social delictivo mediante la responsabilización individual de los delincuentes. Esto implica claramente la desresponsabilización colectiva y así la única explicación del delito debe encontrarse en el delincuente.

O enfrentamento à insegurança, do ponto de vista legislativo, concentra-se nos efeitos

do fenômeno e converte-se em uma irrefreável escalada punitiva de previsão de condutas

delituosas e recrudescimento da legislação penal. Como percebeu Foucault (2007, p. 226),

53

[...] os castigos não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distinguí-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que visam não tanto tornar dóceis os que estão prontos as transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles.

Definida assim a situação, as práticas das agências de controle social, nas palavras de

Canavesio, Damone e Magistris, “tendem cada vez mais a eliminar aqueles sujeitos desviados,

perigosos, não integráveis, cujas vidas custam cada vez menos, enquanto mantêm uma

determinada ordem social, contribuindo à reprodução de uma linha divisória entre incluídos e

excluídos” (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 193). Percebe-se que

criminalizar a pobreza apenas agrava os problemas existentes, “gerando sociedades com

índices exacerbados de tensão interna, atuando como um multiplicador da pobreza” (SEN;

KLIKSBERG, 2010, p. 275).

É de se destacar, com Alessandro Baratta, a ideia de que a legislação penal dos Estados

modernos passou por importantes transformações (como consequência do pacto social da

Modernidade), incluindo no catálogo dos delitos condutas realizadas frequentemente por

poderosos, mas, como mostram a História e a Sociologia dos Sistemas Punitivos, os concretos

destinatários permaneceram sendo os mesmos de sempre, em evidente demonstração de que

os destinatários do controle penal seguem sendo, preferencialmente, determinados tipos de

autor, pertencentes aos grupos sociais estigmatizados (BARATTA, 2003, p. 23).

A criminalização secundária, a ser estudada no segmento posterior, materializa-se como

consequência das opções de criminalização primária e, ao mesmo tempo, em relação

simbiótica e de retroalimentação, resulta do direcionamento das políticas públicas e

legislativas de enfrentamento ao crime, por meio da canalização das energias estatais para o

controle das chamadas “classes perigosas”.

Didier Fassin percebe, com efeito, que “a economia moral do labor policial faz eco a um

conjunto de representações sociais do desvio que, no transcurso das últimas décadas, sofreram

profundas transformações” (FASSIN, 2016, p. 242). Para o Sociólogo francês, “não somente

se ampliou de maneira significativa o espectro do que se considera desvio (o que se traduziu

em uma penalização crescente dos comportamentos), como também esta extensão associa-se a

uma caracterização dos desviados em termos sociais, raciais e, por fim, morais” (FASSIN,

2016, p. 242). Os desviados, assim, seriam identificados anteriormente à importância de

54

controle do desvio. Aspectos relacionados à pobreza, etnia e origem, ou ligados a preferências

de minorias seriam os alvos das políticas de criminalização primária, mesmo que as condutas

praticadas sejam infinitamente menos lesivas à sociedade do que as exercitadas pelas classes

favorecidas.

1.2.2 Criminalização secundária

Após a criminalização primária realizada pelos órgãos estatais legislativos, o processo

secundário é feito pelas instituições incumbidas da aplicação das leis, a começar pela Polícia.

Essa instituição, em um contato inicial com as condutas humanas, não deixa nunca de

“interpretá-las a seu modo e realizar uma primeira seleção penal, revelando ações que, em

tese, estão contidas nas normas penais, e sobrevalorizando outras, a incluir a adoção de

mecanismos punitivos colocados claramente à margem da lei” (MELLIM FILHO, 2010, p.

26). Como percebem López e Pasin (2015, p. 267) “a Polícia é central no processo de

criminalização secundária porque – com práticas seletivas e arbitrárias – inicia o mecanismo

mediante o qual se descarrega – via sistema penal em seu conjunto – uma ação punitiva legal

concreta sobre uma pessoa específica”.

Importante é considerar que a criminalização secundária produzida pelas instituições

policiais não é uma característica da atualidade. Em estudo abrangendo o final do século XIX

e início do XX, Fausto (2014, p. 35) identificou nos inquéritos policiais o fato de que “a fala

do acusado é parcialmente liberada para servir a determinados fins”. Como observou o

historiador,

No inquérito policial, o objetivo maior – quando a intenção é acusatória – consiste em extrair a confissão; já em juízo, o réu só pode responder sobre o que lhe é perguntado e suas respostas, inclusive por recomendação do advogado, devem ajustar-se não à verdade, mas à versão da defesa. Uma armadilha espreita a fala do acusado; em princípio, tudo o que disser a seu favor não constituirá prova em seu benefício, mas o que disse em contrário poderá levar à condenação ou ao agravamento da pena. (FAUSTO, 2014, p. 35).

O inquérito policial exclusivamente para fins condenatórios era amplamente usado no

Direito brasileiro. Tal distorção exigiu manifestação expressa do Supremo Tribunal Federal

(STF), buscando pacificar jurisprudência no sentido de que tal prática afronta o caráter

acusatório do processo penal, não se admitindo mais a manutenção de resquícios inquisitivos

em seu funcionamento8. Apesar disso, é frequente encontrar juízes que se insurgem contra

8 PENAL E PROCESSO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO FUNDADA SOMENTE EM

ELEMENTOS INFORMATIVOS OBTIDOS NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL NÃO

55

esse entendimento, produzindo condenações que legitimam informações nascidas sem o crivo

do contraditório, no inquérito policial, sob o argumento de que o livre convencimento

motivado do julgador prevalece, além de conferir ao princípio da verdade real interpretação

distorcida, em evidente afronta à presunção do estado de inocência, encartado na Constituição

Federal (CF) como garantia fundamental (art. 5º, LV).

Apesar de advir da legislação processual penal a noção de que o papel da polícia é

meramente auxiliar do Judiciário e de que as peças produzidas no inquérito policial não se

prestam a ensejar juízos condenatórios, observa-se na prática profissional que os processos

judiciais, embora formados sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, são meras

reproduções do que foi colhido em sede policial. Não raro, os testemunhos colhidos são

somente dos policiais que realizaram a prisão, cuja versão dos fatos vai prevalecer sempre,

seja perante uma decantada “fé pública”, seja ante a costumeira consideração de parcialidade

(a favor do réu) dos testemunhos que a eles se contrapõem.

Fausto (2014, p. 146), em sua pesquisa identificou que

Os inquéritos policiais convertem-se, muitas vezes, em malhas de arrecadação da massa da delinquência, que classifica as pessoas a partir de critérios sobre o que é considerado “gente honesta”. Entre estes, a cor, o traje, o uso de expressões, o jeito de andar ou o modo de ser difícil de definir – “o ar de quem vive na malandragem”, como diz um investigador de polícia.

Estes estereótipos, na realidade, são compartilhados por muitos setores sociais, que

enxergam potenciais criminosos nas pessoas que destoam da figura do homem branco, bem

vestido e seguidor dos padrões culturais dominantes, este sim, antecipadamente, considerado

o “cidadão de bem”.

Tal conforma um inegável resquício da criminologia positivista, na qual, conforme

Cepeda et al. (2009, p. 111),

a força policial exerceu um programa fundamental, a partir de sua relação de proximidade com as denominadas classes perigosas, distinguindo, em primeira instância, aqueles portadores da “má vida” (jogadores, alcoólatras, prostitutas,

CORROBORADOS EM JUÍZO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. AÇÃO PENAL IMPROCEDENTE. 1. A presunção de inocência exige, para ser afastada, um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal. No sistema acusatório brasileiro, o ônus da prova é do Ministério Público, sendo imprescindíveis provas efetivas do alegado, produzidas sob o manto do contraditório e da ampla defesa, para a atribuição definitiva ao réu, de qualquer prática de conduta delitiva, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova. 2. Inexistência de provas produzidas pelo Ministério Público na instrução processual ou de confirmação em juízo de elemento seguro obtido na fase inquisitorial e apto a afastar dúvida razoável no tocante à culpabilidade do réu. 3. Improcedência da ação penal. (BRASIL. STF. 2018)

56

vagabundos, etc.) que ameaçavam a ordem moral, para então etiquetá-los como “delinquentes perigosos”, atentadores contra a ordem material e política. A partir deste “contato cotidiano de proximidade”, eixo central dos discursos auto-legitimantes da polícia até a atualidade, a polícia converteu-se em uma instituição necessária para capturar os sujeitos perigosos que então seriam estudados, classificados, enclausurados e, também, muitas vezes, eliminados.

No mesmo sentido é a observação de Jaqueline Sinhoretto, ao estudar etnografias da

Polícia Civil (PC) feitas no Brasil, concluindo que,

antes de se orientar pela legislação processual – que obriga a apurar e dar andamento a todas as comunicações de delitos -, a polícia mobiliza conhecimentos específicos informais que hierarquizam e permitem a seleção dos casos que serão investigados e levados ao conhecimento do judiciário e os que serão administrados por vias extralegais de conciliação ou punição, e aqueles cujo tratamento será evitado. (SINHORETTO, 2014, p. 406).

É indiscutível que a consolidação democrática observada no mundo (e especificamente

na América Latina) produziu consideráveis avanços na luta contra as diversas modalidades de

estigmatização e discriminação em bairros pobres, sendo possível identificar práticas policiais

comunitárias de inserção e convivência pacífica com essas populações vulneráveis. Por outro

lado, os instrumentos de monitoramento e denúncia de violações de direitos humanos foram

reforçados, principalmente após a internacionalização dos direitos humanos, verificada no

pós-Segunda Guerra Mundial. Ainda é possível identificar, entretanto, muitas práticas

antevistas como criminalização secundária da pobreza.

O Centro de Estudos Legislativos e Sociais (CELS) realizou pesquisa nesse sentido na

Cidade Autônoma de Buenos Aires de 2012 a 2014, registrando 7.458 detenções para

averiguação de identidade, de acordo com a Polícia Federal, das quais apenas 2% derivaram

em uma causa penal. Assim, “98% das pessoas detidas foram liberadas sem qualquer

acusação formal, ou seja, sem que se identificasse algum delito ou pedido formal de captura

ou prisão” (CELS, 2016, p. 16).

Na busca de identificar os critérios utilizados nessas detenções, além do fato forma de

agir policial, o CELS perguntou aos policiais por que paravam nas ruas a determinados

jovens. Como resposta eles recorreram a uma frase que sintetiza algo que creem ser um

expediente eficaz para reconhecer potenciais delinquentes com uma simples olhada: o “olfato

policial” (CELS, 2016, p. 22). De acordo com os agentes, é uma destreza que não se aprende

com instrução formal, mas por meio da experiência, permitindo-lhes identificar aquilo que

chamam “atitude suspeita”. O “olfato policial”, entretanto, “é uma noção que os policiais

usam para legitimar suas ações porque serve de aparente justificação para qualquer tipo de

57

intervenção, representando, na realidade, uma porta aberta para a arbitrariedade” (CELS,

2016, p. 22). Para Fassin (2016, p. 22), “os policiais que patrulham os bairros carentes não

estão cumprindo a lei, como eles mesmos descrevem a sua atividade, mas fazendo cumprir

uma ordem social caracterizada por uma iniquidade econômica crescente e uma expansão da

discriminação racial”.

Sinhoretto (2014, p. 406) considera que “o saber policial informado, baseado em visões

etiológicas do crime que aliam traços de racismo científico a teses ecológicas9, acredita poder

reconhecer os criminosos em seus sinais, hábitos, linguajar, vestimenta, locais de circulação”.

Assim, reunir-se com outros em uma esquina, estar na rua em determinados horários, usar determinadas roupas, praticar determinados esportes está proibido, de maneira arbitrária, em alguns bairros, pois as forças de segurança decidem proscrever certos costumes dos jovens, mesmo quando não são delitos ou contravenções (CELS, 2016, p. 28).

Nas palavras de López e Pasin (2015, p. 273),

Percebe-se uma massa normalizada de práticas e rotinas policiais sobre os territórios periféricos que inclui a orientação seletiva sobre os mais jovens, especialmente àqueles que são caracterizados como “próximos ao delito”, pelo uso de drogas, permanência no espaço público, circulação em horário noturno e as vestimentas utilizadas, que conformam o arquétipo do jovem pobre, urbano e marginal.

Ainda observando a realidade portenha, o CELS denuncia o fato de que “na rua ou em

suas casas, ainda que não saibam, os jovens são fotografados, e suas imagens são exibidas na

delegacia à vista de todos, além de arquivadas, sem qualquer ordem ou controle judicial”

(CELS, 2016, p. 49). Conforme entende o Centro de Estudos, “estas informações, colhidas

ilegalmente pelos efetivos policiais, a pretexto de investigação, podem ser utilizadas para

produzir provas falsas ou desviar investigações, ou simplesmente como material de ameaça ou

extorsão dos jovens” (CELS, 2016, p. 49). O mais grave é que tais práticas contam com a

conivência ou convalidação judicial. É muito grave, pois, além de ofensivo a múltiplos

direitos, que inocentes sejam submetidos a condenações por malícia ou imprudência das

agências do sistema penal (CELS, 2016, p. 52).

Conforme percebe Hirst (2009, p. 262), o comportamento da polícia nas favelas

[...] sigue una diretriz represiva de ‘invasión’ y ‘ocupación’ consistente en que la policía entra, cumple su objetivo y se retira. Esto estimula una actitude violenta de

9 Dois conceitos são básicos para a compreensão da teoria ecológica do crime: o conceito de “desorganização

social” e a identificação de “áreas de delinquência”, que obedecem a uma gradiente tendency. Assim, os índices mais preocupantes de criminalidade são encontrados naquelas áreas da cidade onde o nível de desorganização social é maior. (SHECAIRA, 2014, p. 150-151).

58

las facciones y suscita entre los habitantes de las favelas una sensación de abandono de parte del poder público.

Kessler (2009, p. 95) considera estar

[...] demonstrado, em diversos contextos, que a desconfiança em relação à polícia, à justiça e o temor ao delito estão fortemente correlacionados e que, a escala local, o sentimento de insegurança, o delito e a desconfiança à polícia se retroalimentam, pois a polícia tende a estigmatizar seus habitantes, ao que se acresce os fatos de violência institucional.

Na visão de Cepeda et al. (2009, p. 104), o agir policial responde a lógicas institucionais

estruturadas e estruturantes da doxa policial. Para elas, “essa lógica constitutiva excede o

recorte individual de seus atores, mas se reproduz em e através de suas ações” (CEPEDA et

al., 2009, p. 104). Tais estudiosas, portanto, repelem o discurso de que os excessos policiais

sejam oriundos de falhas individuais, de alguns maus policiais, que seriam apenas “manzanas

podridas” (CEPEDA et al., 2009). “No se trata de errores, ni excesos, sino de prácticas

sistemáticas, la manera que tiene la policia de relacionarse con determinados sectores de la

sociedade” (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 98). Fassin (2016, p. 52) concorda ao

defender o ponto de vista segundo o qual

[...] o comportamento dos policiais não advém de características psicológicas ou morais, mas em função de sua história pessoal, da formação que receberam, da supervisão que têm, das condições de trabalho a que se submetem, das missões dadas pelos governos, das representações do mundo social produzidas pela sociedade.

As mesmas autoras argentinas identificam “uma ênfase em fazer ingressar na instituição

pessoas que demonstrem um passado de respeito à tradição, honra, pátria e seus símbolos,

muito mais que a critérios concretos sobre um atuar eficiente que respeite os direitos das

pessoas” (CEPEDA et al., 2009, p. 130). A exaltação da honra e do patriotismo

(correspondendo a um modelo castrense), resulta em valores ritualizantes que pouco se

relacionam com a declaração de funções da polícia em um Estado de Direito (prevenir delitos,

auxiliar a justiça e prover a segurança das pessoas), relegadas a um segundo plano, em função

da primordialidade da obediência e da defesa institucional (CEPEDA et al., 2009, p. 130). Sen

e Kliksberg (2010, p. 296) aduzem a ideia de que “essa lógica policial provoca uma

agudização extrema da tensão entre a polícia e as camadas pobres da população, deteriorando-

as de forma inevitável, carregando em si uma ameaça muito maior, que é a tendência a

criminalizar a pobreza”.

A própria instituição policial vê-se em situação muito delicada, pois a opinião pública espera dela resultados “mágicos”, que ela não tem condições de obter, sendo, pois, acusada de ineficiência e responsabilizada integralmente por um

59

problema cujas causas não estão sob seu controle, já que não têm como influir nas razões estruturais que levam ao aumento da criminalidade. (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 296).

Destaque-se, ainda, o fato de que os policiais, quase todos também oriundos de camadas

mais pobres da população, são recrutados para uma guerra da qual não intentam efetivamente

participar e, no enfrentamento diário com criminosos reais e fabricados, morrem e matam

excessivamente, sem fazer retroceder em nada a criminalidade e a exclusão.

O Ministério Público, por sua vez, possui a atribuição de titular da ação penal em

praticamente todas as ações. Assim, após receber as peças inquisitivas oriundas da polícia

judiciária, decide se há indícios suficientes para apresentar a ação penal perante o Judiciário.

No Brasil, por exemplo, com base nos poderes conferidos pela Constituição de 1988, em seu

art. 127 (BRASIL, 1988), o Ministério Público, por ser o defensor da ordem jurídica e das

instituições democráticas, tem a oportunidade (e, ao mesmo tempo, a obrigação) de atuar

como instituição de contenção de eventuais pulsões criminalizantes da pobreza que observem

na atuação policial.

Ocorre que, muitas vezes, não é isso que ocorre. O Ministério Público, em muitas

oportunidades, apenas reproduz, acriticamente, os elementos colhidos na esfera policial.

Sobre a atuação dessa instituição na criminalização da pobreza, importante é a visão de um de

seus membros, Mellim Filho (2014) Procurador de Justiça de São Paulo, que identifica as

principais manifestações demonstrativas dessas práticas em pesquisa sobre a atuação de

membros da instituição na seara penal. Ele entende, por exemplo, que a atuação seletiva do

Ministério Público é, em certas oportunidades, alimentada pela própria instituição e seus

doutrinadores, que, de maneira genérica e retórica, inculcam nos promotores de justiça a

necessidade de estabelecer prioridades sobre o combate às “ações mais danosas à sociedade”,

abrindo a possibilidade, assim, para uma ação seletiva em relação a determinadas situações e

pessoas (MELLIM FILHO, 2010, p. 143).

Investidos na função de acusadores, muitos promotores criminais, não raro, se

desinteressam pela discussão acerca da utilidade e destinação final de seu trabalho,

principalmente no que concerne à função e às consequências da pena de prisão, a ser

destinada a grande parte das pessoas acusadas, pretensamente uma medida ressocializadora e

justa (MELLIM FILHO, 2010, p. 145). É um problema sério o fato de que muitos dos

profissionais dessa instituição não tenham conhecimento da realidade prisional, dos efeitos

deletérios produzidos pelo cárcere, que é o destino de uma postura eminentemente punitivista,

60

olvidando o fato de que o encarceramento pode representar um fator de aprofundamento do

conflito instaurado pelo crime. A crença, rotundamente desmentida pela realidade, de que o

cárcere é instrumento de ressocialização, pode conduzir muitas ações a uma tentativa de

inserção de pessoas no ambiente carcerário, com a pretensão de que saiam “recuperados”,

ensejando, ao revés, potenciais reincidentes10.

A análise dos discursos de acusação, contidos nos processos criminais, revela que a atuação dos promotores, em linhas gerais, parece sofrer forte influência de um forte senso comum, também alimentado pela mídia policial, que, de forma maniqueísta, divide claramente a sociedade entre pessoas de bem e criminosos, auxiliando, de forma recíproca, na formação de uma concepção penal, com categorias e princípios, que vai reforçar uma postura severa e excludente, no sentido de considerar fora da sociedade, dentre os infratores das leis, as pessoas selecionadas pelo sistema penal. (MELLIM FILHO, 2010, p. 145).

Representantes de uma instituição que tem o relevante papel de defensora dos interesse

coletivos e difusos, os promotores de justiça, quando assim agem, apenas reverberam os

equívocos que os meios de comunicação social cometem ao tratar seletivamente determinados

setores da sociedade11.

“A adoção exacerbada de uma postura acusatória pragmática, em nome de uma

sociedade punitiva, parece conduzir o promotor de justiça criminal, que passa a encarnar o

papel de acusador público em sua sagrada missão de defesa da sociedade” (MELLIM FILHO,

2010, p. 148), até mesmo flexibilizando o sistema da legalidade estrita e “dispondo-se,

inclusive, a uma utilização do direito penal como fórmula atípica de resposta irracional às

chamadas demandas da sociedade, envolta em clima de emotividade ou manipulação por parte

dos meios de comunicação de massa” (MELLIM FILHO, 2010, p. 148). Quando assim atuam,

os membros do Ministério Público se desvestem da sua atribuição de fiscais da lei, na medida

em que escolhem que leis defendem e fiscalizam (as que preveem crimes e penas) e quais

olvidam (as que trazem benefícios aos acusados e apenados).

Segue em sua pesquisa Mellim Filho (2010, p. 149), indicando que

promotores de justiça agem, na prática, como criadores de punibilidade, servindo-se muitas vezes da via processual e do arsenal de regras de prova que lhe proporciona o próprio sistema penal, buscando ainda, para as hipóteses selecionadas, o alargamento das fronteiras do direito penal, assim entendendo-se o exercício da pretensão punitiva no limite máximo estabelecido em lei e, em certos casos, interpretando até como criminalizáveis condutas que podem ser mais facilmente acomodadas nos dispositivos das leis civis.

10 Sobre os efeitos deletérios do cárcere sobre a pessoa e a desmistificação do discurso de ressocialização, ver

segmento 2.3 – O cárcere como instituição destinada aos mais pobres. 11 Sobre o tema, ver segmento 1.4 – O papel da mídia na criminalização da pobreza.

61

Como exemplos dessas atuações, levadas a efeito por alguns membros, é possível citar:

desconsideração de aspectos favoráveis ao indiciado no momento da propositura da ação

penal, a fim de inviabilizar benefícios processuais; definição de crimes mais graves do que os

indícios apontam, para tentar demonstrar o fato com o processo; aposição de qualificadoras ou

causas de aumento de pena, ao mesmo tempo em que são desconsideradas causas de

diminuição e atenuantes; pedidos de condenação com base exclusivamente em elementos do

inquérito; insistência em teses inconstitucionais que representem recrudescimento do

encarceramento, mesmo ante a declaração de inconstitucionalidade pelo STF; atuação como

acusadores, também no processo de execução penal, pugnando, muitas vezes, pelo

prolongamento do cárcere, quando são, na realidade, órgãos da execução penal, do mesmo

modo que juízes e defensores públicos.

Boaventura de Sousa Santos pugna pela democratização do Ministério Público, citando

como exemplo “a necessidade de abandonar a postura repressiva, adotada por alguns de seus

membros, no que toca à criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, muitas vezes

extrapolando as suas atribuições no controle da legalidade” (SANTOS, 2017, p. 47). Com

efeito, não pode o Ministério Público firmar qualquer compromisso com a punição a qualquer

custo, ainda que em desrespeito aos direitos fundamentais, sob pena de abandonar uma das

principais funções estabelecidas pelas constituições dos países democráticos, que esperam

dessa instituição uma atuação isenta e representante dos interesses de toda a sociedade e não

apenas de sua parcela dominante.

Já a atuação do Poder Judiciário, por seus membros (juízes e tribunais), vem na

sequência das filtragens criminológicas realizadas pelos organismos policiais e, em seguida,

pelo Ministério Público, no que se convencionou chamar de controle formal do crime

(MELLIM FILHO, 2010, p. 187). “A estes cabe, nos processos criminais, instaurados sobre

casos previamente selecionados pela Polícia e pelo Ministério Público, decidir pela

condenação ou absolvição das pessoas acusadas” (MELLIM FILHO, 2010, p. 187).

Assim, o Poder Judiciário, que deveria funcionar como última trincheira de proteção

dos direitos fundamentais, converte-se em mero instrumento de convalidação do trabalho

seletivo conduzido pelas instâncias policiais, já que as audiências judiciais são, muita vez,

meras repetições do que foi colhido no inquérito policial, realizado sem o crivo do

contraditório e da ampla defesa. Como adverte Mellim Filho (2010, p. 153),

62

a reconstrução dos fatos já pode ter como objetivo a confirmação de uma verdade anteriormente escolhida, restando ao processo a confirmação de uma forma penal que, em cada caso, satisfaça o operador do Direito em seus interesses, relativamente à solução do conflito e na realização dos valores que encarnam.

Há, assim, nas palavras de López e Pasin (2015, p. 283), um certo “’dejar hacer’ a la

agencia policial por parte de la administración de la justicia”. Para elas “la noción de cadena

punitiva retoma todo su sentido en este marco, apuntando justamente a la superposición de

prácticas y al entrelazamiento entre las agencias del sistema penal”. Como percebem

Canavesio, Damone e Magistris (2009, p. 155):

De un modo o de otro, ya sea mediante el encierro o la eliminación, el sistema penal concentra su poder sobre ciertos grupos considerados peligrosos, sobre aquellos designados y señalados desde la alteridade, siendo la agencia policial el primer eslabón del sistema penal que determina quienes serán expostos a la justicia.

Em muitas situações, quando já não se recordam dos fatos narrados na denúncia, os

policiais-testemunhas limitam-se a confirmar o que disseram na presença da autoridade

policial, instados a esse proceder pelo representante do Ministério Público, com a

complacente aceitação do Judiciário. Tal observação, oriunda da prática profissional no

Brasil, é comum à percepção de Canavesio et al. (2009). no processo penal argentino, ao

ponto de ocorrer “uma inversão da premissa de que a polícia funcione como força auxiliar

para a conclusão de que, na realidade, é o Poder Judiciário que habilita e auxilia as

manifestações das forças repressivas” (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p.

178).

O abuso no manejo de prisões preventivas, tendo por alvo pessoas pertencentes aos

mesmos grupos sociais é mais uma demonstração de atuação do Judiciário tendente à

criminalização secundária da pobreza, além da postura condescendente ou omissa quando

pessoas etiquetados como delinquentes são mortos em “enfrentamentos” (supostos ou reais)

com as forças policiais.

Por outro lado, em sua pesquisa com agentes do sistema judicial penal em Buenos Aires

(promotores de justiça e juízes), Canavesio et al. (2009, p. 172-173) percebem que “se

delineia e constrói uma imagem do acusado como sujeito carente de racionalidade,

produzindo no imaginário judicial a figura de um sujeito essencialmente culpável e

delinquente”. Em complemento à ideia, descrevem:

Observamos en los discursos de los operadores del sistema penal de los emergentes: en primer lugar, se ve la falta de racionalidad como característica atribuida a las acciones de quienes delinquen y por lo tanto transferidas a los delincuentes; como

63

consecuencia, lo que subyace es un dejo de indignación ante la presencia de un monstruo, de un tarado frente al cual no hay razón posible. El delincuente es un ente que no reacciona, que no entiende, la ley es demasiado para él y no hay razones para defender sus intereses. (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 171).

De semelhante modo, recorrendo-se à investigação histórica da atuação judicial, Fausto

(2014, p. 259) identifica o fato de que “a especificação do desfecho dos processos segundo a

cor dos acusados mostra como a absolvição e o arquivamento, tomados em conjunto,

constituem um resultado minoritário quando se trata de negros ou mulatos e majoritário

quando se trata de brancos”. Trazendo dados referentes ao desfecho dos processos segundo a

cor, de 1880 a 1924, aduz que “indivíduos brancos obtiveram 63,6% de absolvições ou

arquivamentos (27,3% e 36,3%, respectivamente), enquanto negros ou mulatos apenas 42,6%

(20,2% de absolvições e 22,4% de arquivamentos)” (FAUSTO, 2014, p. 259).

Certamente o maior índice de condenações de pessoas de cor não é ocasional. Estamos diante do produto de um tratamento discriminatório, a partir de um handcap social amplo sobre o qual incide um conjunto de circunstâncias. Ou seja, não se trata apenas do preconceito genérico contra o preto; o que se tem diante dos olhos, cabisbaixo diante da imponência da sala de sessões, é um ser inferior – preto e pobre – acusado de um delito com relação ao qual há má vontade dos julgadores leigos ou togados, defendido apenas formalmente por um advogado de circunstância. (FAUSTO, 2014, p. 259).

A explicação para tal consequência está em que os operadores judiciais constroem uma

imagem do delinquente com esteio em elementos mais grosseiros do senso comum,

assemelhando seu discurso ao manifestado pela mídia e tomando acriticamente as versões

policiais como verdades absolutas, produzindo, desta forma, um sujeito que será tratado como

inimigo, já que a ele são atribuídos periculosidade e irracionalidade, como elementos

constitutivos de sua essência (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 192).

“Os juízes executam suas práticas como guardiães da fronteira social entre o aceitável,

incluído, útil e o descartável, excedente, excluído, construindo, com seu discurso, esta

imagem do delinquente que está à margem e cada vez mais os invisibilizam” (CANAVESIO;

DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 193). Obviamente que, ao assim agirem, simplesmente

legitimam os preconceitos que já vêm estampados sob o formato de criminalização primária

(legislação), reforçando, ainda, a atuação criminalizante pelas exigências crescentes de

proteção da propriedade oriundas das classes dominantes, amplificadas pelos meios de

comunicação que, por outro lado, exigem atuações cada vez mais restritivas de direitos

fundamentais, sob o pretexto de proteção da ordem pública. Esta é uma atitude que não

representa novidade. Como mostra Fausto (2014, p. 57), analisando as prisões segundo a

64

natureza dos crimes de 1892 a 1916 no Brasil, deixando claro que não se trata de uma

característica específica apenas da Modernidade, os delitos contra a propriedade

representaram 54,6% do total para o período.

“Juízes e promotores formam, então, a tropa de elite que dá funcionamento aos

mecanismos de distinção, exclusão e eliminação, colaborando na construção de uma fronteira

e de limites cada vez mais rígidos entre os incluídos e aqueles que ameaçam porque sobram

ou, porque sobram, ameaçam” (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 193). Com

efeito, ao se verificar que o sistema de justiça concentra seus esforços, como demonstrado, na

persecução e repressão dos mesmos crimes (em regra, roubo, furto e tráfico de drogas),

selecionam exatamente os indivíduos que se voltam a essas práticas delitivas como

consequência da exclusão e das pressões sociais por consumo como sinônimo de felicidade. O

caminho da criminalidade, para boa parte da população, é o único que resta para se alcançar

alguma posição e reconhecimento social, assim como a maneira de participar da comunidade

de consumidores. Colhidos pelas malhas da Justiça Penal, quase que inteiramente voltada para

o combate aos crimes citados, entretanto, tais indivíduos acabam sendo os que vão lotar as

unidades prisionais12. Importante é advertir para a noção de que a exposição supra é uma das

modalidades explicativas da criminalidade contra a propriedade e não uma fundamentação

apta a excluir a culpabilidade ou punibilidade daqueles que a praticam.

Como adverte Santos (2017, p. 17), “os tribunais não foram feitos para julgar para cima,

mas para julgar os de baixo. As classes populares, durante muito tempo, só tiveram contato

com sistema judicial pela via repressiva, como seus utilizadores forçados. Raramente o

utilizaram como mobilizadores ativos”. Prossegue defendendo o argumento de que isso ocorre

porque o campo hegemônico “dos negócios e dos interesses econômicos reclama um

Judiciário eficiente, rápido, que dê segurança jurídica e garanta a salvaguarda dos direitos de

propriedade” (SANTOS, 2017, p. 20-21). Mais adiante, o Sociólogo português leciona que

“as reformas se centram, muito seletivamente, nos setores que melhor servem aos interesses

econômicos, deixando de fora todos os outros”, para exemplificar com a constatação de que

“a formação dos magistrados é orientada, fundamentalmente, para as necessidades da

economia” (SANTOS, 2017, p. 21).

12 Obviamente, não se pretende explicar toda a criminalidade com amparo exclusivamente na teoria da anomia,

que constitui a base da reflexão desse parágrafo, já que conforma um fenômeno complexo e multifacetado.

65

Ainda de acordo com Santos (2017, p. 55), operadores do sistema judicial brasileiro

estão impregnados pelo “senso comum da democracia racial de Gilberto Freyre” (SANTOS,

2017, p. 55). Assim, juízes “assumem nas suas sentenças o preconceito racial de se julgarem

sem preconceito racial”. “Impõe-se uma outra formação que mostre que a sociedade

brasileira, como qualquer outra sociedade envolvida historicamente no colonialismo, é uma

sociedade racista e que o racismo tem de ser reconhecido para ser abolido” (SANTOS, 2017,

p. 55).

Outro problema identificado é relacionado à própria estrutura judicial:

A organização judicial estruturada de forma piramidal controlada no vértice por um pequeno grupo de juízes de alto escalão, onde o prestígio e a influência social do juiz dependem de sua posição na hierarquia profissional, acaba perpetuando o ethos profissional dominante e fortalece o espírito corporativista o que, na prática contribui para um isolamento social do judiciário, fechando-o, enquanto a sociedade em que ele se assenta vai se diversificando e torna-se cada vez mais plural. (SANTOS, 2017, p. 66).

Essa configuração se estabelece muito em razão dos estratos sociais de onde provêm

juízes, promotores e defensores públicos. Referindo-se aos recrutamentos dos membros do

júri no início do século XX, Fausto (2014, p. 253) anota que o corpo de jurados, embora

composto em sua maioria de profissionais liberais, servidores públicos, norteava-se por

valores da classe dominante, importando dizer que “pessoas das classes populares eram

julgadas segundo valores e representações mentais pelo menos até certo ponto estranhos a

elas” (FAUSTO, 2014, p. 253); além de significar que o júri não tinha homogeneidade,

“sobretudo nos processos em que se veiculam imagens conflitantes dos envolvidos, de acordo

ou em contraste com as respectivas identidades sociais” (FAUSTO, 2014, p. 253). Em outras

palavras, o júri guiaria seu comportamento de acordo com a correta ou incorreta interpretação

dos papéis destinados a cada classe.

Essa constituição elitista das carreiras jurídicas permanece inalterada. No Brasil, o

acesso às melhores instituições de ensino superior jurídico está franqueado àqueles que

estabeleceram as suas bases em escolas particulares de acesso restrito aos egressos das classes

dominantes, ante a precariedade do ensino público fundamental e médio. Ademais, apesar da

ampliação considerável do número de instituições de ensino superior no País, estas são em

sua quase totalidade, privadas, o que perpetua a circunstância de limitação de acesso.

Outrossim, o acesso às instituições do sistema de justiça se dá por um processo ainda

mais elitista, por depender de concursos públicos que exigem cada vez mais habilidades de

66

memorização e reprodução de conteúdos, esquadrinhados por cursos preparatórios, de acesso

ainda mais reduzido às classes dominantes que, no rescaldo, acabam obtendo êxito nessa

corrida desigual rumo às chamadas carreiras jurídicas. Uma vez ocupando tais cargos

públicos, esses profissionais vão atuar de modo cada vez mais apartado das finalidades das

instituições que representam, canalizando suas energias e esforços não às necessidades

coletivas, mas para lutas corporativas de manutenção do status quo, por demandas

completamente alheias à realidade nacional, com o único desiderato de manter-se pertencente

e vinculado às classes mais abastadas, de onde são oriundos, em sua maioria.

O Estado defensor13 também confere a sua parcela de contribuição para a criminalização

da pobreza. Em países como o Brasil, no qual compete ao Estado promover assistência

jurídica integral e gratuita, o simples fato de existirem inúmeras comarcas sem defensores

públicos já representa um desequilíbrio na relação processual penal, o que impede o exercício

do contrapoder representado pela Defensoria Pública, quando as demais instituições se

manifestam seletivamente em relação aos pobres.

Ademais, mesmo em locais onde há defensores públicos, condutas desses profissionais

podem conduzir a resultados criminalizantes da pobreza. Nesse caso, os agentes estatais que

deveriam representar escudos contra o problema14, podem concorrer para o seu

aprofundamento. Assim, quando defensores públicos da área criminal não se utilizam de todo

o arcabouço normativo de prerrogativas institucionais em favor dos assistidos, deixando-os

desamparados ante o poder punitivo estatal, estão contribuindo para que este se abata de

forma desproporcional sobre os mais pobres, que têm na Defensoria Pública, nas mais das

vezes, o último refúgio contra injustiças e excessos.

Outro aspecto a considerar é o percentual de processados nas varas criminais e apenados

nas varas de execuções penais assistidos pela Defensoria Pública. Esse fator é um indicativo

indisfarçável de qual é o público-alvo do poder punitivo do Estado, já que quase todos os

processos são protagonizados por pessoas sem condições de arcar com honorários

advocatícios. Por outro lado, a demanda excessiva funciona como instrumento de

enfraquecimento da atuação dos defensores públicos. Submetidos à necessidade de conferir

atenção individualizada para a melhor defesa possível, muitos defensores públicos sucumbem

13 O capítulo 3 trata especificamente da Defensoria Pública Brasileira e a sua atuação como Estado Defensor no

âmbito do processo penal. 14 O capítulo 4 trata exatamente das diversas formas de atuação que a Defensoria Pública deve empalmar para o

enfrentamento à criminalização da pobreza.

67

à necessidade de cumprir prazos e, ao mesmo tempo, manejar todos os recursos possíveis na

defesa da liberdade, o que transforma o seu dia a dia em mera reprodução mecânica de peças

processuais, em que são uniformizadas pretensões que, em muitas circunstâncias, exigiam

uma intervenção especializada e individualizada.

A mesma crítica formulada às demais instituições do sistema de justiça penal cabe aos

defensores públicos, normalmente oriundos da elite, beneficiados pelo acesso a uma escola de

qualidade no Ensino Fundamental e Médio, além de acessarem as melhores instituições de

Ensino Superior e, por fim, os cursos preparatórios para concursos que, por sua vez, nada

aferem de comprometimento social ou com os direitos humanos. Assim, muitos desses

profissionais, incensados pela necessidade de manutenção do status social ostentado por seus

membros familiares e amigos (muitas vezes pertencentes a outras instituições do sistema de

justiça), confundem defesa de prerrogativas com acesso a demandas corporativas nada

republicanas, em vez de denunciar a existência delas como instrumentos de encastelamento.

Afastando-se, sobremaneira, de seu público-alvo, frequentando e pertencendo à alta

sociedade, muitos defensores públicos deixam de sentir as pulsões criminalizantes que

quotidianamente se abatem sobre a população pobre. Nessa esteira, passam a compartilhar os

mesmos preconceitos que guiam muitos dos profissionais das demais carreiras do sistema de

justiça penal, convertendo a sua atuação diuturna em uma mera reprodução de exigências

formais da legislação, que invariavelmente conduzem à condenação dos suspeitos de sempre,

às penas de sempre.

1.3 Manifestações da criminalização da pobreza no mundo atual

Embora seja possível identificar uma tendência acentuada em países periféricos, em

razão da pronunciada característica de serem sociedades extremamente desiguais, em que o

fenômeno da pobreza e sua criminalização se destacam, o tratamento criminalizante de

parcelas desfavorecidas pode ser observado em todas as partes do mundo, com variações

apenas de grau.

Existem autores, inclusive, que identificam exatamente na Europa o ponto de inflexão

na atitude social de criminalização dos pobres. Kessler (2009, p. 23) considera a Revolução

Francesa como tal ponto de inflexão, em sua obra El sentimiento de inseguridad:

68

La Revolución Francesa marcó un ponto de inflexión puesto que la preocupación comenzó a dirigirse a la potencial insurrección de los pobres y se convertió así en una de las formas de oposición entre proletariado y burguesia. En este movimiento el crimen se transformo en un argumento de la lucha moral y política que denuciaba un vício detrás de la pobreza y la miseria. Y, en efecto, la severidad frente a los crímenes ligados al pauperismo fue muy alta, como la testemonia la extrema dureza con que los juzgados de Francia, Inglaterra y outros países europeus castigaron todo tipo de violencias y robos contra la propriedade, incluso los más fútiles, durante parte del siglo XIX.

De fato, como já demonstrado neste capítulo, as estruturas punitivas, principalmente as

mais recentes (que encontram na prisão seu ápice), surgem como instrumento de controle da

massa pauperizada, servindo, em suas raízes e posteriormente, como instrumentos de suporte

à ordem capitalista. O cárcere, por exemplo, vale relembrar, nasceu direcionado ao controle

de indesejáveis sociais e como instrumento de inocuização dos papéis a serem

desempenhados pelos pobres na ordem capitalista nascente. Posteriormente, como defendem

Bauman (2003) e Di Giorgi (2013), nas passagens citadas há pouco, a prisão passou a

funcionar como depósito de “sobrantes”, a saber, aqueles que, pela condição extrema de

pobreza, se tornam descartáveis (matáveis ou aprisionáveis), pela completa ausência de

condições de participar da sociedade de consumo.

Como escreveu Galeano (2010, p. 31), “Em muitos países do mundo, a justiça social

tem sido reduzida à justiça penal. O Estado vela pela segurança pública: dos outros serviços,

já se encarregará o mercado; e da pobreza, gente pobre, regiões pobres, Deus se ocupará, se a

polícia não alcança”. Prossegue o escritor uruguaio: “Nas Américas, e também na Europa, a

polícia caça estereótipos, culpáveis do delito de ‘portación de cara’. Cada suspeito que não é

branco confirma a regra escrita, com tinta invisível, nas profundidades da consciência

coletiva: o crime é negro, ou marrom, ou pelo menos amarelo” (GALEANO, 2010, p. 45).

Compreendidas as raízes históricas das ações destinadas à criminalização da pobreza,

urge destacar algumas manifestações recentes de tais práticas em diversos países, a fim de

desvelar como iniciativas aparentemente neutras, justas e imparciais representam, na

realidade, novas roupagens de um tratamento seletivo e discriminatório em relação às mesmas

camadas da sociedade, os inimigos de sempre.

Inicia-se por um modelo que auferiu ampla repercussão, por ter sido adotado em uma

grande cidade do país mais rico e poderoso do mundo, os Estados Unidos da América, além

de ter produzido cópias em muitos Estados, por meio de réplicas acríticas e sem considerar

realidades completamente distintas. Refere-se à política que ficou conhecida como “tolerância

69

zero”, caracterizada por conferir às forças da ordem, nas palavras de Wacquant (2001, p. 25),

“um cheque em branco para prosseguir agressivamente a pequena delinquência e reprimir os

mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados”.

William Bratton, chefe de Polícia Municipal de Nova York no governo de Rudolph

Giulliani, no início dos anos de 1990, reorganizou o trabalho policial utilizando-se de três

meios: “aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das

responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de

resultados e um radar que permite uma ação quase instantânea da forças da ordem”

(WACQUANT, 2001, p. 26). Essa nova estratégia de atuação traduz-se em “uma aplicação

inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os

atentados aos costumes, simples ameaças e outros comportamentos anti-sociais associados

aos sem-teto” (WACQUANT, 2001, p. 26).

O componente de indisfarçável criminalização da pobreza é apontado por Wacquant

(2001, p. 26), que identifica como objetivo dessa política o de “refrear o medo das classes

médias e superiores por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos”.

Para Sen e Kliksberg (2010, p. 275), seu risco é o de resvalar para a “criminalização da

pobreza”, considerando “suspeitos” todos aqueles que denotarem sinais de pobreza ou de

pertencimento a minorias étnicas ou raciais, que se encontram afastadas ou excluídas da

sociedade, vítimas de sistemas econômico-sociais que não criam oportunidades concretas para

todos.

Como decorrência da política de tolerância zero, o delito caiu, enquanto, na mesma

proporção, aumentaram as denúncias de brutalidade policial, já que a repressão se

descarregou com sanha sobre os negros e outras minorias que somam a maioria da população

nova-iorquina, convertendo-se rapidamente em um modelo exemplar para as cidades latino-

americanas (GALEANO, 2010, p. 88).

Alessandro De Giorgi identifica, nos Estados Unidos, nos últimos 30 anos do século

XX, “uma mudança profunda tanto nas políticas sociais quanto nas penais, com um aumento

extraordinário do encarceramento, elevando a população carcerária ao mais alto número da

história contemporânea, fruto da substituição do Estado Social pelo Estado Penal” (DE

GIORGI, 2013, p. 52).

70

Ademais, o Criminólogo italiano traz à baila a teoria segundo a qual as baixas taxas de

desemprego estadunidense nos anos 1980/90 foram causadas “pelo incremento vertical do

encarceramento, que teria ocultado parte da população desempregada” e não pelas políticas de

flexibilização e liberalização do mercado de trabalho, porque “a gestão do desemprego e da

precariedade social parece ter passado do universo das políticas sociais para o da política

criminal” (DE GIORGI, 2013, p. 53). Levando-se em consideração apenas a população

afrodescendente, De Giorgi (2013, p. 52) demonstra que “o encarceramento em massa teria

reduzido em cerca de um terço as taxas de desemprego desse contingente populacional”.

Assim, demonstra-se que, para a parcela desfavorecida (por critérios raciais e econômicos,

muitas vezes imbricados), o Estado abandonou o papel assistencialista característico do

Welfare State para assumir uma atitude repressiva e encarceradora, que produziu o

encarceramento em massa, preferencialmente dessa parcela da população.

Ocorre que a manutenção dessa escalada de encarceramento tem a consequência de

produzir graves problemas para as futuras possibilidades de inserção no mercado de trabalho,

seja pela estigmatização, seja pela incapacitação pura e simples. Somando-se a esse fator os

elevadíssimos custos para o Estado (apesar do intenso processo de privatização dos cárceres),

chega-se à conclusão de que era impossível manter o ritmo de encarceramento das últimas

décadas do século XX. Por essas razões, no início do século XXI já se observa uma

orientação pelo desencarceramento nos EUA.

Tomado como exemplo no combate à criminalidade, os EUA, ao adotarem o discurso

da tolerância zero propagam, para o mundo, a ideia de que se constitui “um problema de

polícia, que se resolve com mão firme”, o que Sen e Kliksberg (2010, p. 265) consideram um

mito. De fato, tal política pode produzir efeitos desastrosos na América Latina, pois, se nos

EUA a população alcançada gravita à órbita de 13%, produzindo o conhecido encarceramento

em massa, imagine-se o que pode ocorrer em países onde a pobreza alcança mais de um terço

da população! (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 275). Nessas circunstâncias, a política de

tolerância zero representaria uma proposta que, por tratar com mão de ferro amplos setores da

população, ensejaria tensões sociais críticas e afetaria, em todas as suas dimensões, a coesão

social (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 275), isso sem falar nos custos econômicos e sociais

produzidos pelo encarceramento em massa.

Os resultados da política de tolerância zero, embora propalados como expressivos e

aufiram projeção mundial rapidamente, são idênticos aos obtidos pela cidade californiana de

71

San Diego, que seguiu o modelo antagônico da polícia comunitária (WACQUANT, 2001, p.

28). Além do mais, o orçamento nova-iorquino para a polícia foi incrementado em 40%,

atingindo o patamar de quatro vezes mais do que as verbas para hospitais públicos, enquanto,

em San Diego, aumentou seu efetivo policial em apenas 6%, com um número de detenções

diminuindo em 15%, enquanto em Nova York aconteceu um incremento em 24%, atingindo o

quantitativo de 314.292 pessoas presas em 1996 (WACQUANT, 2001, p. 28).

O modelo ianque de perseguição seletiva, além de espalhar-se pelo mundo, aprofundou-

se internamente, ao ponto de constar no Informe anual de 2016 da CIDH, o qual expressa

preocupação em virtude das deficiências na investigação de casos relacionados com

assassinatos de afrodescendentes pela polícia dos Estados Unidos, nos seguintes termos:

94. El 23 de agosto de 2016 la Comisión Interamericana expresó su profunda preocupación con respecto a los recientes hechos que marcan un patrón de impunidad frente a los asesinatos de afrodescendientes a manos de la policía en Estados Unidos. En este sentido, la Comisión condenó varios asesinatos de hombres y mujeres afroamericanas como consecuencia del uso excesivo de la fuerza letal por parte de agentes policiales, e instó a los gobiernos federal y estatal a avanzar en una investigación pronta, exhaustiva, independiente e imparcial que garantice el acceso a la justicia por parte de los familiares frente a estos hechos. La CIDH reiteró que la inefectividad de la respuesta estatal fomenta altos índices de impunidad, los cuales a su vez propician su repetición crónica, sumiendo a las víctimas y a sus familiares en la indefensión. (CIDH, 2017a).

Outro país que teve o estado de criminalização da pobreza estudada de maneira bastante

detalhada foi a França, especificamente no tocante à criminalização secundária. Didier Fassin

publicou a etnografia do agir policial nas periferias urbanas francesas, com o título A força da

ordem: uma etnografía do agir policial nas periferias urbanas. Tal obra resulta da participação

do autor, por 15 meses, da rotina de brigadas anticriminalidade nos subúrbios de Paris,

durante os quais pôde traçar um retrato detalhado da maneira de agir e de pensar desses

policiais. A primeira observação trazida é que o Governo francês estabelece objetivos

quantitativos inalcançáveis em termos de prisões mensais e taxas de resolução de casos, o que

impulsiona a polícia a adotar práticas adaptativas focalizadas em dois tipos de transgressões:

relacionadas ao uso de drogas (cujo alvo são jovens da periferia) e residência ilegal (foco nos

imigrantes) (FASSIN, 2016, p. 23). Essa produtividade “tem uma custo social significativo: a

trivialização da discriminação racial que, ainda que ilegal, é alentada pelo governo” (FASSIN,

2016, p. 23).

Percebeu ainda o Etnólogo francês policiais detendo adolescentes de minorias étnicas

em bairros carentes para revistá-los em busca de drogas, enquanto faziam “vista grossa” ante

72

os estudantes brancos de classe alta sob clara influência de drogas nas proximidades dos

centros universitários; assim também considerou desconcertante ver como os policiais

selecionavam os indivíduos no meio de multidões saindo do metrô de acordo com a cor de sua

pele e sua aparência física para submetê-los a controle de identidade (FASSIN, 2016, p. 23).

O caso francês é paradigmático dos dividendos políticos advindos, não só da repressão,

mas da sua espetaculização, “por meio da mediatização de impressionantes intervenções

policiais para prender alguns suspeitos em um complexo de habitações pobres, deportar

imigrantes sem documentos, ou expulsar romenos de algum acampamento ilegal” (FASSIN,

2016, p. 26). Os governos, de todos os matizes ideológicos, “estão dispostos a pagar um alto

preço ético por esses benefícios simbólicos e delegam à polícia o poder de exercer a força de

forma ilícita, em práticas ilegais que jamais seriam admitidas se consideradas em outro

contexto” (FASSIN, 2016, p. 26).

Observando a realidade francesa, Bauman (2005, p. 106), em Vidas desperdiçadas

identificou que o Estado francês, sob “os aplausos dos cidadãos que buscam

desesperadamente as raízes de sua inabilitante ansiedade, flexionou os músculos, embora

débeis e indolentes em todos os outros domínios – criminalizando as margens da população

que se mostravam frágeis e viviam de forma mais precária” ao mesmo tempo em que lançava

“espetaculares campanhas contra o crime centradas no refugo humano de origem estrangeira

depositado nos subúrbios das cidades francesas” (BAUMAN, 2005, p. 106).

A polícia suburbana francesa mantem, com esse modus operandi, “uma presença

constante, visível e frequentemente vivida como opressiva pelos residentes, em nome da

prevenção de uma delinquência que não costuma ser maior que em territórios vizinhos”

(FASSIN, 2016, p. 82).

Assim, as forças da ordem que intervêm nos subúrbios populares estão constituídas em sua maioria por homens brancos aos quais é confiada a missão de pacificar bairros descritos como uma “selva”, onde vive uma maioria de indivíduos de origem africana que são apresentados como “selvagens”, duas palavras a que se costuma recorrer os policiais para nomear os bairros populares e seus habitantes. (FASSIN, 2016, p. 82).

No tocante à atuação policial na “guerra às drogas”, o estudo etnográfico citado

constatou que a polícia focaliza mais a sua ação contra usuários do que traficantes, e a jovens

de bairros populares mais do que a jovens universitários, deixando claro que a lei serve menos

73

para aplicar o Direito do que para recordar a cada pessoa o seu lugar na ordem social

(FASSIN, 2016, p. 106). Assim, prossegue o Antropólogo e Sociólogo francês:

as patrulhas exercem uma forma de pressão sobre as populações consideradas ameaçadoras por sua simples presença, independentemente de qualquer perigo objetivo, a saber, os jovens de estamentos populares, que em geral pertencem a minorias. O que está em jogo, então, não é a ordem pública que deveria ser protegida, mas sim a ordem social que precisam manter. (FASSIN, 2016, p. 106).

Em sua atuação seletiva, a polícia francesa distingue “gente honesta” e bandidos com

base em uma presunção de culpabilidade, portada pelos residentes de complexos de vivendas

pobres, membros de minorias e jovens de setores populares, definidos “como suscetíveis de

cometer delitos ou serem cúmplices de um modo ativo ou passivo” (FASSIN, 2016, p. 141).

“Os policiais que patrulham esses bairros, portanto, têm direito a controlar sem discernimento

aos jovens que vivem ali, mas também a tutoriá-los e tratá-los com rudeza”, sendo possível,

em casos específicos de algum tipo de reação, “generalizar essas práticas ao conjunto de

habitantes durante operações punitivas que não perdoam nem adultos nem crianças”

(FASSIN, 2016, p. 141).

Importante é destacar que não se trata de um estudo isolado sobre o agir policial na

França. A primeira investigação francesa sobre o tema15, realizada pelo Justice Iniciative

(2009), demonstrou que, nas estações parisienses, mesmo quando estavam distintos grupos, os

negros e árabes tinham, respectivamente, de seis a oito vezes mais chances de ser controlados

que os brancos. Desde esse momento foi impossível recusar a noção de “controle por portação

de rosto” (FASSIN, 2016, p. 200).

A aparência ou a origem é o que separa uns de outros e que, por sua vez, une todos os semelhantes: atua-se como se todos os negros ou árabes compartissem as mesmas características culturais ou morais. Esta generalização, baseada tanto em preconceitos do meio profissional como em eventuais experiências anteriores no terreno, conduz a que os policiais não possam discernir, pois a identificação racial serve para eles como elemento necessário e suficiente para decidir que conduta adotar. (FASSIN, 2016, p. 201).

Na América Latina, a criminalização da pobreza ocorre de modo ainda mais acentuado.

De acordo com Innamorato e Canavessi (2015, p. 11), o Sistema Nacional de Información

Criminal, Dirección Nacional de Política criminal, do Ministerio de Justicia, Seguridad y

Derechos Humanos de Argentina, ao apresentar dados das pessoas que se encontram privadas

15 Fassin anota que a pesquisa foi financiada por uma instituição estadunidense, a fundação Open Society, criada

por George Soros (FASSIN, 2016, p. 311).

74

de sua liberdade, adverte que 35% correspondem a prisões por delitos contra a propriedade.

Innamorato e Canavessi (2015, p. 11) complementam, exprimindo que

Los datos acerca de inserción laboral y trayecto por el sistema educativo formal indican que gran parte de las personas privadas de su libertad presentan rasogs de desafiliación social: el 78% de la población relevada en el año 2007 no alcanzó a completar estudios secundarios y el 58% ni siquiera los inició. Por otra parte, el 77% no tenía un trabajo de tiempo completo y el 63% no tenía oficio ni profesión.

Nesse mesmo sentido, estudo empreendido pela Fundación Paz Ciudadana assinalou

que a maioria dos presos nos cárceres chilenos demonstravam, antes da prisão, elevados

níveis de desvantagem em matéria familiar, educação e saúde, além de pobres prospectos no

mercado laboral (PEILLARD, 2016). Em particular, o estudo constatou que os presos

externavam maiores índices de pobreza, de terem sido cuidados por terceiros (e não seus

pais), além de contar com familiares condenados, do que o resto da população. Por exemplo,

ao comparar os resultados obtidos no estudo com parâmetros da população geral, os

entrevistados registraram taxas mais altas de analfabetismo (7,3% versus 4,8%) e educação

escolar incompleta (86% versus 45,7%). As duas principais razões esgrimidas pelos

entrevistados para deixarem os estudos foram problemas familiares e a necessidade de

trabalhar (PEILLARD, 2016, p. 20).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) já condenou diversos Estados

do continente por práticas nas quais podem ser identificados componentes de criminalização

da pobreza e seletividade, nos moldes conceituados neste estudo, a saber: Servellón García y

otros vs. Honduras (CORTEIDH, 2006a); Rosendo Cantu y Otra vs. México (CORTEIDH,

2010); Gonzáles y Otras (Campo Algodonero) vs. México (CORTEIDH, 2009c); Uzcátegui y

otros vs. Venezuela (CORTEIDH, 2012c); Villagrán Morales y otros (“niños de la calle”) vs

Guatemala (CORTEIDH, 1999); Ximenes Lopes vs. Brasil (CORTEIDH, 2006b). Em todos

esses casos, a CorteIDH foi chamada a intervir ante a inércia dos Estados-parte em combater

citadas práticas, além de ter sido insuficiente todo o procedimento levado a efeito perante a

CIDH, que não encontrou alternativa senão denunciar os Estados perante a Corte, com a

condenação em todos eles.

No caso Servellón García y otros vs. Honduras (CORTEIDH, 2006a), os fatos

ocorreram em contexto de violência marcado pela vitimação de crianças e adolescentes em

situação de risco social por parte do Estado no início dos anos de 1990. Em 15 de setembro de

1995, a Força de Segurança Pública realizou um operativo policial nas imediações de um

estádio na cidade de Tegucigalpa, com o objetivo de evitar distúrbios durante os desfiles que

75

se realizariam para celebrar o Dia da Independência Nacional de Honduras. Os meninos

Marco Antonio Servellón García, Rony Alexis Betancourth Vásquez, e os adolescentes

Orlando Álvarez Ríos e Diomedes Obed García Sánchez foram detidos pela Força de

Segurança de Honduras. Os quatro foram agredidos e posteriormente assassinados. No dia 17

de setembro de 1995, seus cadáveres foram encontrados em distintos lugares de Tegucigalpa.

Apesar de que seus familiares interpuseram uma série de recursos para investigar e punir os

responsáveis, não se realizaram maiores diligências.

O caso Rosendo Cantu y Otra vs. México (CORTEIDH, 2010) produziu-se no contexto

de importante presença militar no Estado de Guerrero, dirigida a reprimir atividades ilegais

como a delinquência organizada. No Estado de Guerrero, grande porcentagem da população

pertence a comunidades indígenas, que conservam suas tradições e identidade cultural e

residem nos municípios de grande segregação e pobreza. Valentina Rosendo Cantú era uma

mulher indígena pertencente à comunidade indígena Me´phaa. No momento dos fatos, tinha

17 anos, estava casada com o senhor Fidel Bernardino Sierra e tinha uma filha. No dia 16 de

fevereiro de 2002, Valentina Rosendo Cantú encontrava-se em um riacho próximo à sua casa

e, enquanto se banhava, oito policiais militares acompanhados de um civil que levavam

detido, aproximaram-se dela e a rodearam. Dois deles a interrogaram, mostraram uma foto de

uma pessoa e uma lista de nomes, enquanto um deles apontava a sua arma. Ela informou que

não conhecia as pessoas sobre as quais a interrogavam. O militar que apontava a arma a

agrediu no estômago, fazendo-a cair no solo. Logo após, um dos militares a tomou pelo

cabelo enquanto insistia sobre a informação requerida. Finalmente arranharam seu rosto,

arrancaram a sua saia e roupas íntimas e a jogaram no solo, enquanto um deles a violentou

sexualmente, ao término de que o outro que também a interrogava procedeu da mesma

maneira. Tanto Valentina Rosendo Cantú como seu esposo interpuseram uma série

de recursos a fim de denunciar os fatos e solicitar que se realizassem as investigações

necessárias para identificar e punir os responsáveis. A investigação foi remetida à jurisdição

penal militar, que decidiu arquivar o caso.

No caso Gonzáles y Otras (Campo Algodonero) vs. México (CORTEIDH, 2009c), os

fatos ocorreram na cidade de Juárez, lugar onde se desenvolviam diversas modalidades de

delinquência organizada. Em 1993, houve um aumento de crimes contra mulheres

influenciado por uma cultura machista. Assim, Laura Berenice Ramos, estudante de 17 anos

de idade, desapareceu em 22 de setembro de 2001; Claudia Ivette Gonzáles, trabalhadora em

uma empresa maquiadora, de 20 anos de idade, desapareceu em 10 de outubro de 2001, e

76

Esmeralda Herrera Monreal, empregada doméstica de 15 anos de idade, despareceu em 29 de

outubro de 2001. Seus familiares apresentaram as denúncias, mas não se iniciaram maiores

investigações. As autoridades limitaram-se a elaborar os registros de desaparecimento, os

cartazes de busca e tomaram declarações, além de enviarem ofícios à Polícia Judicial. No dia

6 de novembro de 2001, foram encontrados os corpos dessas mulheres, os quais apresentavam

sinais de violência sexual. Concluiu-se que as três estiveram presas anteriormente. Apesar dos

recursos interpostos por seus membros familiares, não foram investigados nem punidos os

responsáveis até a necessária intervenção da CorteIDH.

O caso Uzcátegui y otros vs. Venezuela (CORTEIDH, 2012c) aconteceu em uma época

em que ocorriam execuções extrajudiciais e outros abusos por parte das forças policiais, em

particular, estaduais e municipais. Em 1 de janeiro de 2001, Néstor José Uzcátegui, estudante

de 21 anos de idade, recebeu dois disparos das forças policiais, que invadiram a sua casa. O

jovem foi trasladado a um hospital, onde morreu horas depois. Na mesma oportunidade, as

forças policiais detiveram e trasladaram Luis Enrique Uzcátegui y Carlos Eduardo Uzcátegui,

este de 17 anos de idade, até a sede do Comando das Forças Armadas Policiais do Estado

Falcón, onde foram tomadas declarações de Luis Enrique Uzcátegui e onde permaneceram até

o dia seguinte. Luis Enrique Uzcátegui e outros familiares foram sujeitos a ameaças e maus

tratos. Apesar dos recursos judiciais interpostos com relação aos fatos descritos, não

ocorreram investigações necessárias, nem foram investigados ou punidos os responsáveis.

Já no caso Villagrán Morales y otros (“niños de la calle”) vs Guatemala (CORTEIDH,

1999), os fatos contextualizam-se em uma época caracterizada por um padrão comum de

ações à margem da lei, perpetradas por agentes de segurança estatais contra meninos em

situação de rua. Esta prática incluía ameaças, detenções, tratamentos cruéis, desumanos ou

degradantes e homicídios como meio para combater a delinquência e a vadiagem juvenis. No

dia 15 de junho de 1990, na zona conhecida como Las Casetas, uma camioneta aproximou-se

de Henry Giovanni Contreras, de 18 anos de idade, Federico Clemente Figueroa Túnchez, de

20 anos, Julio Roberto Caal Sandoval, de 15 anos e Jovito Josué Juárez Cifuentes, de 17 anos.

Do veículo desceram homens armados, membros da polícia, que os obrigaram a subir. Após

detidos por umas horas, foram assassinados. Ademais, dia 25 de junho de 1990 foi

assassinado Anstraum Aman Villagrán Morales, mediante um disparo de arma de fogo, no

setor de “Las Casetas”. Não ocorreram investigações necessárias, nem foram investigados ou

punidos os responsáveis.

77

Conclui-se, portanto, que, nas últimas décadas, no plano internacional, verificou-se uma

evolução mais dura da repressão penal. A observação de Didier Fassin, nesse particular, foi

direcionada às forças de segurança, mas se aplicam perfeitamente à ação do Estado, com

ampla aceitação social e midiática. Para o Sociólogo francês, “essa versão dura impôs-se de

maneira quase sistemática como forma de governo de populações mais pauperizadas e

marginalizadas, em especial dos setores populares e das minorias étnicas” (FASSIN, 2016, p.

260).

O desenvolvimento de uma teoria securitária foi um elemento decisivo nesse processo, já que se baseia em um discurso que atiça o medo para justificar políticas mais repressivas, o aumento de efetivos policiais, o reforço de dispositivos punitivos, independentemente do agravamento objetivo da delinquência e criminalidade, e mesmo em contextos de diminuição objetiva da delinquência. A segregação territorial dos setores sociais mais modestos, em particular daqueles provenientes da imigração do terceiro mundo, facilitou muito essa transformação: por um lado ao permitir focalizar com precisão a ação da polícia em determinados bairros e, por outro, ao fazer dessa realidade algo invisível para a maioria. (FASSIN, 2016, p. 260).

A criminalização da pobreza, portanto, não é uma característica exclusiva de países

periféricos na geopolítica mundial, mas um fenômeno que se verifica mesmo nas principais

potências mundiais, que servem, inclusive, de criadores e exportadores de ideias de

recrudescimento do Estado Penal, utilizadas acriticamente por países mais pobres, com

resultados catastróficos, como demonstrado.

1.4 O papel dos mass media na criminalização da pobreza

Inicialmente, é importante destacar o fato de que os meios de comunicação

desempenham papel fundamental para a existência dos modernos Estados Democráticos de

Direito, que abrangem populações cada vez mais numerosas e diversificadas, em relação às

quais se espera a participação efetiva na formação da vontade estatal. Como já percebeu

Airton Cerqueira-Leite Seelaender, “democracia e plena visibilidade tendem a constituir, pois,

fenômenos indissociáveis” (SEELAENDER, 2006, p. 60).

O direito de livre expressão e de informação constituem elementos indispensáveis para conferir visibilidade às formas de exercício de poder em uma sociedade, possibilitando a sua fiscalização e controle mais adequados, além de assegurar uma participação mais ampla. Por outro lado, a visibilidade proporcionada pela proximidade com o poder pode concorrer para que as pessoas se tornem mais inclinadas e mais aptas a julgá-lo de modo racional. O hábito do juízo crítico tende, por sua vez, a levar à reivindicação de participar politicamente. (SEELAENDER, 2006, p. 60).

78

Os meios de comunicação, portanto, podem funcionar como poderosos instrumentos de

amplificação das diversas conformações de liberdade de expressão de uma sociedade,

garantindo um amplo debate de ideias apto a fundamentar decisões que alberguem a opinião e

interesses das maiorias, sem, contudo, representar ofensas aos direitos das minorias. Ademais,

posicionam-se como canais de denúncia de violações de direitos para a sua consequente

proteção, no marco das promessas estabelecidas nos textos constitucionais, servindo, pois,

como limitadores do poder. Ainda na perspectiva de proteção de minorias, Seelaender (2006,

p. 73) aduz que: “[...] aproximado subitamente, pela comunicação de massa, do mundo

outrora invisível das pessoas cujas decisões influenciam a vida coletiva, o homem comum

pode, em tese, pela primeira vez conhece-lo e vir a ter perspectivas, remotas ou não, de dele

participar”.

Malgrado sua decantada importância, entretanto, principalmente em sua função de

estabelecer consensos sociais, deturpações dos caminhos escolhidos pelos meios de

comunicação de massa podem conduzir a resultados opostos àqueles que os legitimam como

fundamentais para uma ordem democrática. Assim, quando destinados a funcionar como

instrumentos de reprodução de manifestações da criminalização da pobreza, os meios de

comunicação amplificam uma conduta discriminatória em relação a determinadas parcelas da

sociedade, em nítida função desmobilizadora da democracia.

Como marco de aprofundamento dessas condutas, Fausto (2014, p. 26) identifica a

última década do século XIX, quando o noticiário criminal ganhou destaque nos jornais

respeitáveis, como O Estado de São Paulo e o Correio Paulistano, pelo surgimento dos

primeiros repórteres especializados que não se limitam ao mero registro. “Eles introduzem a

crônica policial como uma peça caracterizada por certo estilo e competem às vezes com as

autoridades na apuração dos crimes misteriosos. A aparição da imprensa sensacionalista nos

anos de 1910 (A Capital e mesmo O Combate) vem radicalizar esses traços” (FAUSTO, 2014,

p. 26). O final do século XIX também é apontado como época em que os vespertinos

argentinos incorporam seções ou colunas policiais, estando alguns jornalistas, inclusive,

vinculados à instituição policial, como o então famoso José Alvarez (“Fray Mocho”),

comissário da Policia Federal Argentina desde 1886 (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 57).

Releva destacar que esse foi o período histórico do auge das teorias criminológicas da

Escola positivista, na esteira da obra de Cesare Lombroso, O Homem Delinquente, de 1876,

que descrevia as características físicas do criminoso nato (LOMBROSO, 2013), que

79

conquistou ampla aceitação no âmbito científico e despertou enorme interesse no meio social,

nomeadamente os leitores dos jornais da época. Tais fatores se propagaram e se perpetuaram,

apesar da cristalização de direitos fundamentais de igualdade, desde as primeiras décadas do

século XX, com o consequente fortalecimento de ideais de não discriminação, que lograram

se estabelecer nos textos constitucionais. Permanecem, até os dias atuais, atitudes nitidamente

seletivas de veiculação de notícias e de tratamento de pessoas acusadas de delitos, conforme a

classe social a que pertençam.

Daroqui (2009, p. 22-23), ao apreciar esse fenômeno na sociedade argentina, assevera:

Así es que los delictos econômicos producto de la articulación entre diferentes actores, tanto políticos, empresários, jueces, fiscales, policías, etc, dificilmente se encuentran desarrolados en la sección de policiales de cualquier diário del país, integran otras secciones como economía, sociedad e inclusive política. Y si por alguna azarocidad de la vida y de los malos acuerdos o retiro de respaldos necesarios, algunos de los participantes porta la desgracia inesperada de “quedar” imputaddo o inclusive procesado y, más dificilmente condenado, nunca en ninguno de estos tres estadíos procesales se lo denominará delincuente, mucho menos “caco”, “malviviente”, o “chacal”, entre tantas denominaciones que suelen reducir la cuestión de la autoría criminal em esos términos a aquellos que son individualizados y visibilizados a través de los discursos “construídos” desde la agencia policial, los médios de comunicación y la própria agencia judicial.

Resulta claro, na opinião de Ângela Daroqui, que esse recorte reconhece, em

importantes meios de comunicação, a formulação de um discurso que se alimenta e

retroalimenta daqueles produzidos pelas agências policial e judicial e que, ademais, registra

uma intensa ligação com o senso comum, propondo visualizar a criminalidade (essa específica

criminalidade) como o problema a resolver não só pelo Estado, mas também por parte dos que

são considerados cidadãos-potenciais vítimas (DAROQUI, 2009, p. 23). Complementa

Esteban Alzueta percebendo que a mídia cultiva atitudes e valores já arraigados na cultura,

reforçando, então, crenças ou condutas convencionais, encontrando eco na audiência,

precisamente, porque esta se identifica com as concepções de mundo postas em jogo

(RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 81).

Esse discurso seletivo, por outro lado, estabelece uma indústria da insegurança, como

prossegue analisando Daroqui (2009, p. 23), “que requer uma estreita vinculação dos

diferentes atores mencionados, “amparada” em uma construção discursiva que assimila,

iguala e identifica ao delito e em particular ao delito violento com a pobreza, quer dizer, com

os pobres”. Com a mesma lógica, locais de residência de pessoas pobres são igualmente

etiquetados como lugares de intensa criminalidade, conforme nota Kessler (2009, p. 13), para

quem:

80

La inseguridad ha pasado a ser un problema público nacional: cada lugar pode señalar sus “focos peligrosos”, amalgamando, de forma escandalosamente estigmatizadora en ciertos medios de comunicación, determinados asentamientos precarios con delincuencia.

Na imprensa argentina, por exemplo, Kessler (2009, p. 86) identifica o fato de que

quando se faz referência a villas miseria ou certos bairros, tratam-nos de modo quase explícito

como zonas de concentração de delinquentes. Formada dessa maneira a “opinião do público”,

resta constituído o lastro necessário para que se legitime uma atuação estatal

desproporcionalmente repressora contra pessoas dessas localidades, diuturnamente

convivendo com o fardo da suspeita constante.

Analisando o estado de crianças e adolescentes em situação de rua, Pojomovsky e

Gentile (2008, p. 66-67), em pesquisa de notícias em periódicos argentinos, perceberam as

maneiras “clássicas” de tratamento estigmatizado desta população particular: os “chicos de la

calle” são tratados como vítimas ou como delinquentes (e, portanto, vitimários). No que diz

respeito à maneira de atuar por parte dos mass media na veiculação de matérias em relação a

crianças e adolescentes, de nada adiantaram os avanços produzidos pela CF/88, que

abandonou a doutrina da situação irregular (fulcrada em uma ideia paternalista), para a adoção

do princípio da proteção integral, conferindo a essas pessoas a posição de titulares de direitos

fundamentais, gozando de prioridade absoluta nos programas públicos e privados.

Por outro lado, paradoxalmente, a imagem criada pelos meios de comunicação não

contrapõe as figuras (vítima/delinquente) como opostas, mas, pelo contrário, trata-as como

duas dimensões simultâneas do mesmo fenômeno: “[...] os ‘chicos de la calle’ aparecem

percebidos ao mesmo tempo e sem mediações como vítimas e como delinquentes,

enquadrando assim o problema no marco do discurso da ‘insegurança’ e da ‘violência

urbana’” (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 66-67). Prosperam as sociólogas argentinas a

sua análise para, mais adiante, concluir que

o resultado desta construção é a aparição de um ser definido exclusivamente pela negatividade, por aquilo que não é ou que não tem, uma figura social sem laços estáveis com a família, nem com a sociedade por meio da escola, um potencial perigo para a ordem pública e, deliberadamente, um futuro vitimário. (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 72).

Como consequência desse discurso estigmatizante, percebe-se que os media

naturalmente evoluíram para a conclusão pela própria supressão do atributo infância daqueles

que vivem em situação de rua, engrossando o discurso pela redução da maioridade penal.

Atribui-se às crianças em situação de rua uma pretensa maturidade, antecipadamente

81

alcançada pela necessidade de prover a própria subsistência na rua e que evolui naturalmente

para a criminalidade. Assim, essas crianças e adolescentes não deveriam merecer, segundo tal

discurso, o tratamento concedido a crianças e adolescentes em conflito com a lei, considerado

brando e ineficaz.

A maneira de apelação dos meios de comunicação ao Estado para a resolução dos

problemas das crianças e adolescentes em situação de rua, segundo Julkieta Pojomovsky e

María Gentile, traduz uma demanda implícita de correção normalizadora da situação dos

“meninos de rua”, ao concebê-la como desviada (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 73).

Quando os meios de comunicação destacam que essas crianças não participam da família e da

escola, que seriam os espaços destinados naturalmente a eles – demanda-se do Estado que

“arranque” as crianças da rua e os insira nos locais destinados à infância, como uma função

meramente corretiva e de “limpeza” (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 73). Mal

conseguem esconder a dificuldade de enxergar essas pessoas como sujeitos de direitos, cujo

rol, embora previsto normativamente, é amplamente negado. Tratando-os como meros objetos

de intervenção de um Estado paternalista, à moda da doutrina da situação irregular16, os meios

de comunicação apenas reforçam um discurso de higienização dos espaços públicos, pouco

importando o destino dos indesejáveis que, com sua incômoda presença, teimam em

estabelecer espaços de degradação e medo na cidade dos ditos “cidadãos de bem”.

Outra percepção que resulta clara nas representações midiáticas é que os meios de

comunicação são guiados por critérios que determinam a seleção de matérias: importância,

interesse, o produto em si, a adequação da peça ao meio, a imagem que o jornalista formulou

do público e a concorrência, buscando sempre o pitoresco, o inusitado, descartando o trivial

(MELO, 2014, p. 170). Como é possível observar, não são as situações rotineiras e recorrentes

que ocupam o noticiário, mas aquelas que carregam um elevado grau de potencialidade de

causar impacto. Assim, embora se esteja vivenciando um morticínio da população pobre e

negra nas periferias, tal fato não ganha o mesmo destaque na mídia do que, por exemplo, os 16 A doutrina da situação irregular era a adotada pelo Código de Menores brasileiro de 1979 e identifica-se com a

etapa tutelar do sistema da infância e da juventude, dotada de caráter meramente assistencialista, pois somente protegia os “menores” em situação irregular, ou seja, em conflito com a lei ou postos à margem da assistência familiar. Assim, as crianças e adolescentes eram vistos como meros objetos de intervenção jurídica (e não sujeitos de direitos). Inspirada na Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1990a), a Constituição brasileira adotou a doutrina da proteção integral, em seu artigo 227 (BRASIL, 1988), abrangendo todas as necessidades de um ser humano para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. São protegidos, assim, não somente as crianças e adolescentes enquadráveis na situação de desamparo, mas em qualquer situação jurídica, passando aqueles a ser titulares de direitos fundamentais oponíveis ao Estado, à família e à sociedade. Substitui-se, portanto, a etapa meramente tutelar para a afirmação de uma fase garantista do sistema da infância e da juventude, fundada nos princípios da prioridade absoluta e no melhor interesse da criança e do adolescente.

82

cruzamentos de ruas da cidade nos quais há maior risco de um veículo ser abordado por

assaltantes. A disparidade entre a gravidade dos fatos é gritante, mas o público buscado pelos

meios de comunicação sentirá maior influência e consequentemente estará mais inclinado a

“consumir” o último tipo de matéria citado.

A percepção apontada aufere relevo quando as vítimas de homicídio são delinquentes

(ou suspeitos, ou pessoas que preenchem o estereótipo), cujas vidas importam ainda menos

para o grande público, que, ao contrário, muitas vezes comemora tais acontecimentos. Em

detalhada pesquisa sobre a morte de “delinquentes” em enfrentamentos (reais ou forjados)

com a polícia, Calzado e Maggio (2009, p. 66) destacam que “na maior parte das vezes não se

cita a informação fornecida por testemunhas do fato, por familiares do “delinquente” ou pela

própria justiça, pois a informação se constrói com base na versão de uma das partes do

enfrentamento, a polícia”, em percentual que, na pesquisa, chegou a 74% dos casos de

exclusiva informação policial (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 67).

As pesquisadoras observam, ademais, que, “para reproduzir o discurso policial os meios

de comunicação não buscam confirmar as informações, mas quando estão no papel de

justificar a ação policial tais respaldos confirmatórios são buscados, em termos de diversidade

de fontes consultadas e citadas” (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 69). Como consequência,

obviamente, a matéria publicada plasma uma atuação escorreita por parte da polícia, obrigada

a reagir ante a ameaçadora atuação do delinquente, invariavelmente retratado como portador

de grande periculosidade. De efeito, a imprensa não ajuda a desvelar as recorrentes situações

de execuções extrajudicias, fantasiadas de enfrentamentos, que seriam facilmente verificadas

com uma simples checagem mais detalhada do caso concreto. Tal proceder midiático, ao

contrário, contribui para a invisibilização dessas mortes institucionais17 produzidas nos

setores sociais mais pobres, em números alarmantes, sem que haja a correspondente reação

por parte do Estado. Alijados da fruição da maioria dos direitos fundamentais e,

principalmente, sem acesso às instâncias estatais, mormente à Justiça, as famílias dessas

vítimas estão impotentes ante a normalização dessas mortes, estampada, nas mais das vezes,

em noticiários nos quais somente a versão oficial é oferecida à audiência.

Isso porque há “critérios de noticiabilidade” das mortes em confronto com a polícia que

são, para Calzado e Maggio (2009, p. 79-83), de acordo com a pesquisa das peças impressas 17 Dicção utilizada por Eugênio Zaffaroni para qualificar as mortes produzidas pelo aparelho repressivo do

estado na obra Muertes Anunciadas, sobre a qual este trabalho trata mais detidamente no capítulo imediatamente seguinte (ZAFFARONI, 2016).

83

nas páginas policiais e das entrevistas com dois grandes editores argentinos: 1) o

procedimento policial deve ser impactante em algum sentido (rasgos de espectacularidad); 2)

a singularidade, notoriedade ou fama do delinquente ou do policial; 3) quando ocorre a morte

de algum policial no confronto; 4) casos de “gatillo fácil”, ou seja, quando envolve pessoa

que comprovadamente não estava cometendo um delito e foi vítima da ação policial

excessiva, abusiva. Definitivamente, resta claro que a maior relevância em termos de

possibilidade de noticiamento é conferida “pelas características do fato e seu atrativo

comercial, assim como as lógicas internas dos meios de comunicação, e não o que acontece

com os delinquentes em situação de um suposto enfrentamento com a polícia” (CALZADO;

MAGGIO, 2009, p. 79).

“Assim, a morte de alguém etiquetado como delinquente não ingressa como notícia

importante nos jornais pesquisados se não estiver acompanhada de outras circunstâncias

relevantes para o meio gráfico” (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 84). Esta invisibilização é

produto da naturalização da morte de integrantes dos setores sociais excluídos em geral e que

foram exitosamente etiquetados como delinquentes (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 85-86).

A morte converte-se em um resultado lógico e também legítimo da insegurança, de um

contexto de medo, constituindo uma equação letal: em um contexto marcado por uma coativa

“insegurança”, a morte do delinquente é apenas uma consequência lógica. São mortes

silenciadas (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 87).

Calzado e Maggio (2009, p. 92) concluem na pesquisa que há uma escala hierárquica

entre as mortes provocadas pelo Estado e que tais mortes representam “maneiras pelas quais a

sociedade se expressa, sendo possível, então, por meio delas ler o sentido de uma época, os

fundamentos e dinâmicas de uma sociedade”. Para eles,

Os meios de comunicação fixam sua atenção exclusivamente nas características da pessoa morta para enquadrá-la entre as mortes “por erro” (“gatilho fácil”) ou aquelas consideradas “corretas” e deixam assim totalmente à sombra (policial) as circunstâncias do fato. Serão as características pessoais (e mais precisamente sociais) do sujeito que hierarquizam a morte em suas duas ordens contrapostas. (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 93).

Os parâmetros seletivos de veiculação também são percebidos diuturnamente. Como

denuncia Galeano (2010, p. 298), os pobres ocupam, ainda, quase sempre, o primeiro plano da

crônica policial:

Qualquer suspeito pobre pode ser impunemente filmado e fotografado e escrachado quando a polícia o detém, e assim a televisão e os diários ditam a sentença antes que

84

se abra o processo. Os meios de comunicação condenam de antemão, e sem apelação, aos pobres perigosos, como de antemão condenam os países perigosos.

Sob as visões complacentes da sociedade e do sistema de justiça, diversos direitos

fundamentais são vilipendiados por horas de programas policiais televisivos, invariavelmente

veiculados, no Brasil, no horário do almoço. Presunção do estado de inocência, imagem,

honra, intimidade são simplesmente ignorados pelos repórteres e âncoras de telejornais,

muitas vezes no próprio ambiente da delegacia de polícia, na presença de delegados e agentes

de polícia. Obviamente que, nesse formato de programa televisivo, somente são expostos os

“delinquentes” oriundos das camadas mais pobres da população, apodados imediatamente de

bandidos, vagabundos, culpados pelo próprio estereótipo, este repetido à exaustão, muitas

vezes jocosamente, por repórteres com pretensões de comediante. São programas que, assim,

angariam audiência estrondosa e continuam escancarando seletividade, sem serem

incomodados por nenhuma crítica, seja da própria sociedade, seja daqueles que deveriam

velar pela defesa da ordem jurídica e dos valores democráticos.

É conveniente se ter em conta o fato de que os meios de comunicação são movidos por

uma lógica comercial, aplicando-se a eles a mesma lógica estrutural que perpassa as demais

empresas da sociedade, com o objetivo de alcançar o lucro econômico (CALZADO;

MAGGIO, 2009, p. 74). Ademais, como percebe Eduardo Galeano “os meios dominantes de

comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos mãos, e como regra geral atuam

a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao uso mútuo e ao mútuo medo”

(GALEANO, 2010, p. 282). “A televisão aberta e a cabo, a indústria do cinema, a imprensa

massiva, as grandes editoras de livros e discos e as rádios de maior alcance também avançam,

com botas de sete léguas, até o monopólio” (GALEANO, 2010, p. 283-284). Mais adiante,

denuncia que “os empresários de televisão garantem tribuna aos políticos e estes retribuem o

favor outorgando-lhes impunidade: impunemente, os empresários podem dar-se ao luxo de

por um serviço público a serviço de seus interesses privados” (GALEANO, 2010, p. 306).

Em toda a América Latina, essa pródiga fonte de dinheiro e votos está em pouquíssimas mãos. No Uruguai, três famílias dispõem de toda a televisão privada, aberta e a cabo. Dois grandes grupos de multimídia ficam com a maior parte da televisão argentina. Também na Colômbia são dois os grupos que tem em suas mãos a televisão e os demais meios importantes de comunicação. A empresa Televisa, no México e a Rede Globo no Brasil, exercem monarquias apenas disfarçadas pela existência de outros reinos menores. (GALEANO, 2010, p. 308-309).

Comentando sobre a liberdade de imprensa, percebe Seelaender (2006, p. 63):

85

Fundada ideologicamente a partir das liberdades de opinião e expressão, mas esteada na prática bem mais na liberdade empresarial dos controladores dos meios de comunicação, a liberdade de imprensa tem legitimado, desde o século XIX, a consolidação de novos centros de poder social – na própria mídia, cada vez mais oligopolizada – e o uso de novos modos de exercício do poder – através da mídia.

No momento da venda de seu “produto”, as exigências do mercado são os guias dos

meios de comunicação para a definição das matérias que serão veiculadas e quais devem ser

silenciadas. Leitores demonstram preferências de consumo e estas devem ser satisfeitas, a fim

de que seja mantido o sustentáculo financeiro dos mass media.

Sobra, assim, estabelecido um ciclo perverso em que mídia e sociedade retroalimentam-

se na escalada de estigmatização e controle sociais dos pobres. Valendo-se de um preconceito

social que tem suas raízes fincadas no passado escravista, os meios de comunicação

reproduzem e reavivam um medo e prevenção do “outro”, invariavelmente oriundo das

camadas mais pobres da população. Conforme nota Fausto (2014, p. 67), “na consciência

coletiva, estão profundamente arraigadas as associações entre o negro e o ócio, a violência, a

permissividade sexual”. O pórtico das páginas dos jornais “é apenas um exemplo de como

isso se reflete na imprensa. Ser negro é um atributo negativo conferido pela natureza que só se

desfaz parcial e excepcionalmente pela demonstração de características positivas: o

devotamento ao trabalho, a fidelidade de algum branco protetor, a humildade etc.” (FAUSTO,

2014, p. 67).

Tal preconceito foi percebido por Gabriel Kessler, como resultado de várias pesquisas

que realizou para concluir que as pessoas eram normalmente abertas em temas ligados à

diversidade, “enquanto eram autoritários em temas referidos ao delito, por associarem-nos de

forma explícita com franjas de setores populares, em uma nova articulação entre demandas de

liberdade individual e de uma ordem pública com características autoritárias” (KESSLER,

2009, p. 101-102). Como conclui Galeano (2010, p. 33) “a injustiça, fonte do Direito que a

perpetua, é hoje mais injusta do que nunca, ao sul do mundo e ao norte também, mas tem

pouca ou nenhuma existência para os grandes meios de comunicação que fabricam a opinião

pública em escala universal”.

Outro ponto que não pode ser escamoteado é a relação comercial estabelecida entre os

meios de comunicação e as empresas ligadas ao mercado da segurança privada. Obviamente

que estas últimas se beneficiam do sentimento de insegurança incensado pelos media. O medo

do delito cria uma demanda natural por instrumentos de proteção da incolumidade física e do

patrimônio. Para não deixar qualquer dúvida sobre a existência dessa relação, antes invisível a

86

boa parte da população, os recados são cada vez mais explícitos. Os anunciantes publicitários

dos programas policiais mais sensacionalistas são exatamente grupos de segurança privada,

alarmes, blindagem de veículos, entre outros.

Assim, entre uma notícia de crime e outra – não raro com a exposição ultrajante de

vítimas e pretensos autores, ancorada em comentários de apresentadores sobre a falência do

Estado na garantia de segurança pública – são anunciadas as mais recentes e pretensamente

eficientes soluções em segurança privada. O recado, portanto, é inequívoco: a sociedade está

imersa em uma situação insustentável de insegurança, em relação à qual o Estado é impotente.

A solução, portanto, é buscar opções de segurança na iniciativa privada. Referindo-se à

sociedade argentina, Gabriel Kessler nota que, “En paralelo, el mercado de la seguridade, la

vigilância privada y el control eletrônico, entre otros servicios, há conocido un crecimiento

exponencial e diversificado” (KESSLER, 2009, p. 13).

Tão eficiente é esse discurso, e lucrativos seus efeitos, que as matérias de crimes não

mais se limitam às páginas policiais ou a programas especializados, com público reduzido.

Como percebe Kessler (2009, p. 78), o delito deixa de estar confinado aos diários populares

ou às páginas policiais para aparecer nas seções políticas e inclusive nas principais manchetes

dos meios de comunicação considerados mais importantes. Constitui-se, de tal modo, “a

sensação de que toda a sociedade estaria imersa em um estado de caos, de criminalidade

violenta, em verdadeiras “ondas de violência”, a partir da exposição, ampliação e distorção de

fatos isolados” (KESSLER, 2009, p. 79). Bem antes já havia percebido Massimo Pavarini que

“el delito ha salido de los restringidos espacios de la crónica negra y ha cubierto con

prepotencia las primeras paginas de los diarios. Es razonable pensar que la orquestrada

campaña de alarma social persiga el fin de utilizar politicamente nuevas formas de consenso

de masas” (PAVARINI, 2002, p. 23).

Essas podem ser explicações plausíveis para o fato de que, enquanto crimes de roubo

contra as classes mais favorecidas são expostos à exaustão nos media, o morticínio da

população jovem, negra e pobre das periferias é simplesmente invisibilizado18.

18 Ver capítulo 2 tese, no qual a temática é desenvolvida em detalhes, como consequência, também, da

seletividade penal e criminalização da pobreza

87

1.5 Criminalização da pobreza e incompatibilidade com o Estado

Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito constitui o terceiro formato estatal, cujo surgimento se

deu no final do século XVIII como Estado Liberal, substituindo o Estado Absoluto. Entre o

Estado Democrático de Direito e o Liberal, aflorou, no início do século XX, a segunda

modalidade de Estado de Direito, o Social, caracterizado pela adoção de direitos

prestacionais. Essas distintas configurações de Estados de Direito decorrem de uma grande

complexidade de fatores que determinam a mudança do modelo.

Assim, as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial evidenciaram a

necessidade de adotar outro estalão de Estado de Direito, capaz de acolher, no seu íntimo, a

internacionalização dos direitos humanos e o enfrentamento aos totalitarismos de toda ordem,

dando lugar ao Estado Democrático de Direito. Como ensina Peixoto (2008, p. 80), tal

modelo de Estado tem por principal missão “[...] conciliar os ideais de legalidade e

legitimidade, para fins de efetivação dos direitos e garantias até então conquistados”. Na

ingente tarefa de alcançar essa finalidade, “[...] faz-se necessária a conjugação harmônica de

fundamentos aparentemente distintos, como a segurança (legalidade) e a justiça

(legitimidade)” (PEIXOTO, 2008, p. 80). Nas palavras de Bobbio ((2004, p. 50), seu

conteúdo mínimo é

Garantia dos principais direitos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas ou tomadas com base no princípio da maioria e, de qualquer modo sempre após um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão de governo.

Destaca-se desse conceito a ideia de a missão fundamental do Estado Democrático de

Direito consistir em instaurar um regime democrático que realize a justiça social, pugnando

para que a lei não permaneça em uma esfera puramente formal, mas influa decisivamente na

realidade social, realizando, assim, os princípios da igualdade e da justiça (PEIXOTO, 2008,

p. 86). “A democracia dos modernos é o Estado no qual a luta contra o abuso do poder é

travada paralelamente em duas frentes – contra o poder que parte do alto em nome do poder

que vem de baixo, e contra o poder concentrado em nome do poder distribuído” (BOBBIO,

2004, p. 73).

Ademais, “[...] o Estado Democrático tem, pois, como principal fundamento o princípio

da soberania popular que requer a participação efetiva e operante do povo nas decisões

88

políticas do Estado, visando, assim, à realização do princípio democrático como garantia geral

dos direitos fundamentais da pessoa humana” (PEIXOTO, 2008, p. 85). Como adverte Bobbio

(2004, p. 40), referindo-se à democracia, deve-se buscar aumentar não somente o número dos

que têm direito de participar das decisões que lhes dizem respeito, mas também os espaços

nos quais podem exercer esses direitos.

Os paradigmas a serem adotados para a integral vigência de um Estado Democrático de

Direito não se limitam a formulações jurídicas internas, mas faz parte desse arcabouço o

sistema normativo internacional, com destaque para o sistema interamericano, que, em 11 de

setembro de 2001, proclamou a Carta Democrática Interamericana, em Lima, contando com a

assinatura dos 34 países componentes da OEA, constituindo um compromisso coletivo de

manutenção e fortalecimento da democracia nas Américas (OEA, 2001). Importante é

destacar, para os fins deste estudo, que a compreensão de democracia abraçada por esse

documento não se limita à de um formato de governo das maiorias, sob o viés eleitoral, mas a

enxerga como intrinsecamente ligada à proteção e à promoção de determinados valores,

dentre os quais estão, primordialmente, os direitos humanos.

Já em seu Preâmbulo é possível ler, entre outros considerandos, que

[...] a solidariedade e a cooperação dos Estados americanos requerem a sua organização política com base no exercício efetivo da democracia representativa e que o crescimento econômico e o desenvolvimento social baseados na justiça e na eqüidade e a democracia são interdependentes e se reforçam mutuamente; a luta contra a pobreza, especialmente a eliminação da pobreza crítica, é essencial para a promoção e consolidação da democracia e constitui uma responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos contêm os valores e princípios de liberdade, igualdade e justiça social que são intrínsecos à democracia; a promoção e proteção dos direitos humanos é condição fundamental para a existência de uma sociedade democrática e reconhecendo a importância que tem o contínuo desenvolvimento e fortalecimento do sistema interamericano de direitos humanos para a consolidação da democracia. (OEA, 2001).

Prossegue a Carta Interamericana estabelecendo em seu artigo terceiro que o respeito

aos direitos humanos e às liberdades fundamentais são elementos essenciais da democracia

representativa (OEA, 2001). Prospera, em seu artigo 12, afirmando que a pobreza, o

analfabetismo e os baixos níveis de desenvolvimento humano são fatores negativamente

incidentes na consolidação da democracia, e que os Estados-Membros da OEA se

comprometem a adotar e executar todas as ações necessárias para a criação de emprego

produtivo, a redução da pobreza e a erradicação da pobreza extrema, levando em conta as

distintas realidades e condições econômicas dos países do Hemisfério (OEA, 2011). Já o

89

artigo 14 proclama que “[...] os Estados acordam examinar periodicamente as ações adotadas

e executadas pela Organização destinadas a fomentar o diálogo, a cooperação para o

desenvolvimento integral e o combate à pobreza no Hemisfério, e tomar as medidas oportunas

para promover esses objetivos” (OEA, 2011).

O primeiro fator a ser analisado como dinamizador da criminalização da pobreza, em

evidente incompatibilidade em relação ao Estado Democrático de Direito, é o abismo cultural

entre as promessas de felicidade e as condições materiais para alcançá-la, no marco da teoria

criminológica da anomia. Esta, aqui aludida, procede “[...] do colapso da estrutura cultural,

especialmente de uma bifurcação aguda entre as normas e objetivos culturais e as capacidades

(socialmente estruturadas) dos membros do grupo de agirem de acordo com essas normas e

objetivos” (SHECAIRA, 2014 a, p. 200).

A juventude popular urbana vive enorme crise de expectativa, por interiorizar mais

intensamente as promessas e aspirações promovidas pelos media, escola e política, sem

aceder à mobilidade e ao consumo contidos neles, padecendo, então, de uma combinação

explosiva: maiores dificuldades para incorporar-se ao mercado laboral de acordo com seus

níveis educativos; submissão a um processo de educação e aculturação que introjetam o

potencial econômico da própria formação, desmentido quando entram com poucas

possibilidades no mercado de trabalho; maior acesso a informações e estímulos sobre novos e

variados bens e serviços aos quais não terão acesso e que se constituem em símbolos de

sucesso; uma clara observação de como os demais acedem a esses bens, em um processo

aparentemente meritocrático (HOPENHAYN, 2005, p. 48).

Há uma universalização cultural de preferências e opções de consumo que apenas

aparentemente são livres, já que, como lembra Galeano (2010, p. 284), metade de todo o

dinheiro que o Planeta gasta em publicidade é para a promoção de apenas dez grandes

conglomerados, que monopolizam a produção e a distribuição de tudo o que tenha relação

com a imagem, a palavra e a música. Como ensinou Bauman (2005, p. 22), os consumidores

falhos da sociedade de consumidores só têm uma certeza: “[...] excluídos do único jogo

disponível, não são mais jogadores – e portanto, não são mais necessários”, representam “uma

variedade de refugo humano”, “baixas colaterais, não intencionais e não planejadas do

progresso econômico” (BAUMAN, 2005, p.22); “tornaram-se supérfluos, imprestáveis,

desnecessários e indesejados, e suas reações, inadequadas ou ausentes, transmitem a censura

de uma profecia autorrealizada” (BAUMAN, 2005, p. 55). A “injustiça” mudou de sentido:

90

hoje significa ser deixado para trás no movimento universal em direção a uma vida cheia de

prazeres (BAUMAN, 2003, p. 76). A busca da felicidade e a esperança de sucesso tornaram-

se a motivação principal da participação do indivíduo na sociedade, transformando-se da mera

oportunidade que era, num dever e no supremo princípio ético (BAUMAN, 2003, p. 76).

Fausto (2014, p. 108) escreveu em 1984, em sua obra Crime e Cotidiano:

Brutais desigualdades existiram sempre no Brasil, mas a “escalada da violência” é coisa recente, vinculando-se a um modelo capitalista que não só radicalizou a desigualdade como converteu o consumismo em ideologia avassaladora dominante. Poder-se-ia mesmo sugerir, sobretudo no que diz respeito às camadas pobres, a correlação entre crescentes padrões de agressividade e a frustração resultante do bloqueio de canais participatórios no plano sóciopolítico, o que não quer dizer que a democracia seja uma panacéia para acabar com a criminalidade.

Há, ainda, um fator agregado por Kliksberg e Sem (2010, p. 241), referindo-se

especificamente à situação da América Latina, onde a exclusão social, ao lado da

desarticulação familiar, posicionam um setor da juventude em uma situação de “jovens

encurralados” que, ante a inexistência de respostas por parte das políticas públicas, podem se

achar atraídos por bandos de delinquentes juvenis, colocando-se disponíveis para

recrutamento, o que é ainda mais grave, pelas máfias do tráfico de drogas e do crime

organizado.

Importante é advertir, como feito em passagem transata deste estudo, que a teoria da

anomia, subjacente às reflexões de Galeano, Bauman, Fausto e Hopenhayn, não é a

explicação única (e muito menos justificativa exculpante) para toda a criminalidade, mas a

que esclarece boa parte daquela de cariz patrimonial que normalmente recebe maior atenção e

incidência do poder punitivo estatal, direcionado que está às camadas desfavorecidas da

sociedade. Explique-se, ainda, que não são somente os pobres que cometem crimes

patrimoniais, mas, como o estudo demonstra, são somente eles que merecem a preocupação

punitiva estatal, enquanto os estratos mais abastados praticam vários crimes de danos difusos

muito mais graves e permanecem impunes.

Cuellar (2012, p. 438) defende o argumento de que a realidade histórica mostra,

irrefutavelmente, que uma sociedade desigual e excludente é irreconciliável em relação a uma

de teor democrático, com a cidadania universal e a observância dos direitos humanos, só

sendo possível superar essa contradição com uma estrutura que permita a satisfação das

necessidades básicas de maneira universal, permanente e viável, na qual o acesso ao que é

comum e às condições para o desenvolvimento pessoal esteja assegurado pelas obrigações

91

estatais em direitos humanos. Na perspectiva de Pinto (2012, p. 369-370), superar a pobreza

supõe garantir mais e melhores direitos humanos, combater a corrupção e fomentar a

transparência das decisões e a prestação de contas dos funcionários públicos, incentivar a

democracia e seus mecanismos de adoção de decisões, reforçar o Estado de Direito e a

independência e imparcialidade do Poder Judicial.

Importa considerar, ainda, que a exclusão social opera por meio da estigmatização de

pessoas e lugares. Associar determinados territórios à insegurança implica vincular o medo

aos seus moradores, referenciados, então, como perigosos, identificáveis por compartilhar

estilos de vida, cortes de cabelo, trajes e maneiras, feitos à imagem e semelhança do medo,

arautos de uma profecia autocumprida (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 68). O estigma,

então, é componente do repertório penal oficial, seja para fins punitivos, seja para a proteção

do público, sendo, pois, duplamente útil, pois serve para punir o criminoso e alertar a

comunidade do risco que ele representa (GARLAND, 2008, p. 385). A estigmatização social

cria condições para práticas institucionais por meio das quais se criminaliza a pobreza, pois

esta não funcionaria sem consenso social (GARLAND, 2008, p. 117), como resta

demonstrado mais detalhadamente no segmento 2.1, que se ocupa de mostrar como tais

atitudes seletivas acompanham a história da humanidade. Kessler (2009, p. 250) defende o

argumento de que há distintas posições relativamente ao estigma: a indignação pura e simples

ou a constante tentativa de demonstrar a todo momento a condição de não culpados ou não

perigosos, ante a discriminação social e estreita vigilância sobre suas pessoas e locais de

residência.

Nos processos de estigmatização, fomentam-se as profecias que se cumprem por si

mesmas: tanto se repete que um grupo possui tal ou qual característica que finalmente os

indivíduos que pertencem a dito grupo assumem a etiqueta que sobre eles se põe - eles

encarnam o estereótipo (HOPENHAYN, 2005, p. 52). Serão desencaixados da estrutura social

desigual e somente são considerados como fatores produtores de risco, guiados pelo livre

arbítrio e sem direito de fazer valer as circunstâncias determinantes de que são objeto e não

podem controlar (ALZUETA, 2014, p. 111).

Há habitantes de bairros pobres, por outro lado, que enveredam pelo caminho das

estratégias de convivência com o estigma, adotando táticas argumentativas para contestar ou

fugir dos juízos criminalizantes que sobre eles se abatem. Os pais, por exemplo, orientam seus

filhos a evitar, em qualquer circunstância: transitar sem documento de identificação, portar

92

objetos sem a nota fiscal de compra correspondente, resistir ou questionar abordagens

policiais (qualquer que seja a sua modalidade e ocasião), retornar para casa após determinados

horários à noite. Condutas que jamais são ensinadas (porque, muito provavelmente, não serão

necessárias) aos filhos das classes médias e altas se convertem em estratégias de

sobrevivência e de fuga do aparelho repressivo estatal em bairros populares. Ensina-se aos

filhos, portanto, a não ser criminoso e a não parecer criminoso, sob o prisma dos estereótipos

sociais e estatais constituídos sobre os pobres.

A generalização da suspeita, outrossim, implica a continuidade de práticas sociais com

ações públicas de cariz estigmatizante e frequentemente violento, o que, no plano

microssocial, conduz a modos de prevenção em relação ao outro que, além da intenção

manifesta de quem se protege, produz uma evidente discriminação daqueles que são evitados

no contato social, promovendo, em um plano mais geral, ações públicas de controle sobre

territórios considerados perigosos (KESSLER, 2009, p. 269). Isso explica o apoio da

população a mecanismos de controle por parte das forças de segurança em bairros

considerados perigosos, pela instalação da suspeita constante, com o suposto intento de

diferenciar os justos dos perigosos, escondendo uma criminalização explícita da pobreza, que

seria politicamente mais contestada (KESSLER, 2009, p.269-270).

Desse modo, os novos níveis de medo e insegurança, aliados ao crescimento de uma

divisão social e cultural entre “nós” (inocentes, sofredores de classe média) e “eles”

(indesejados e perigosos, pobres), tornou a sociedade complacente com relação ao

fortalecimento de um poder estatal bem mais repressivo, no qual os criminosos não são

verdadeiramente cidadãos, detentores de direitos (GARLAND, 2008, p. 386). As tarefas de

prevenção certificam o estado de sítio vigente para determinados setores da população,

destinadas a segregar e compartimentar os grupos considerados produtores de risco,

implantando zonas urbanas com acessibilidade diferenciada, polarizando a sociedade,

fragmentando a cidade e encarregando a polícia de evitar o contato entre os dois modos de

vida (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 55).

Além disso, no extremo, produz-se o que Bauman (2003, p. 109) chama de

“guetificação”, que, segundo ele, é paralela e complementar à criminalização da pobreza, na

medida em que há uma troca constante de população entre os guetos e as penitenciárias, um

servindo como grande e crescente fonte para a outra. Guetos e prisões são dois tipos de

estratégia de “prender os indesejáveis ao chão”, de confinamento e imobilização (BAUMAN,

93

2003, p. 109). As prisões, então, são guetos com muros, e os guetos são prisões sem muros,

diferindo entre si principalmente no método pelo qual seus internos são mantidos no lugar e

impedidos de fugir, mas em ambos os casos imobilizados, com as rotas de fuga bloqueadas e

mantidos firmemente no lugar (BAUMAN, 2003, p. 109 - 110).

Consoante ocorre no ambiente prisional, a incidência das normas constitucionais sucede

esmaecidamente nos bairros aos quais se atribui a pecha de violentos ou perigosos. Direitos

fundamentais enunciados como sustentáculos do Estado Democrático de Direito, como

vedação à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes, inviolabilidade de domicílio,

proteção às liberdades de expressão, locomoção e reunião, presunção do estado de inocência,

são relativizados em proporções que jamais seriam admitidas em bairros nobres - ou mesmo

em relação a pessoas inseridas geográfica, mas não culturalmente, na periferia.

Desse modo, revistas pessoais e invasões domiciliares são realizadas aleatória e

arbitrariamente; a defesa de direitos é criminalizada, reuniões de pessoas são dissolvidas por

serem havidas como suspeitas, tudo transcorrendo de maneira tão repetida e irrefreada que se

torna natural para os habitantes, que, em certas oportunidades, até aplaudem as violações de

seus direitos, por não serem apresentados a outras modalidades de enfrentamento à

criminalidade, que também os vitima.

Uma das mais recentes manifestações dessas intervenções desproporcionais e

generalizantes da criminalização da pobreza são os mandados de busca e apreensão coletivos

realizados no Brasil, excrescências jurídicas criadas à mingua de previsão legal, nascentes da

coletivização de um instrumento de persecução essencialmente individual ou pelo menos

individualizável. Por meio desses instrumentos, concede-se autorização judicial para buscas

em todos os domicílios de um determinado bairro ou região, independentemente de

individualização de residências, que invariavelmente é feita apenas no local, pelos próprios

policiais da diligência.

Por esse caminho, busca-se conferir um aspecto de respeito à regra constitucional de

inviolabilidade do domicílio, prevista no art. 5º, XI como direito fundamental, excepcionada

pela entrada com mandado judicial, durante o dia, mas com total inobservância da regulação

legislativa da matéria. A disciplina do mandado de busca e apreensão encontra-se nos artigos

240 a 250 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). O art. 243 determina expressamente

que o mandado de busca deverá indicar, o mais precisamente possível, a casa onde será

94

realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca

pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem, além de

mencionar o motivo e os fins da diligência (BRASIL, 1941). Já o art. 245 prescreve que as

buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à

noite, e, antes de penetrarem a casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador,

ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta (BRASIL, 1941).

A simples leitura dos textos legais conduz à interpretação de que não são possíveis

mandados de busca e apreensão coletivos, visto que são instrumentos excepcionais de

flexibilização da regra da inviolabilidade do domicílio, somente podendo se verificar quando

houver fundadas suspeitas, sobre pessoas específicas, de envolvimento com delitos. Assinalar

uma área territorial para o ingresso em todas as residências é uma conduta que não consegue

disfarçar o caráter seletivo do poder punitivo sobre populações carentes, tratadas como

presumivelmente culpadas, em clara inversão do princípio constitucional da presunção do

estado de inocência.

Mais escancarada ainda se torna a seletividade quando o mandado de busca abrange

bairros com profunda desigualdade social, nos quais estão lado a lado casebres improvisados

e construções de luxo (em Fortaleza-CE, por exemplo). Nessas ocasiões, a “imunização da

riqueza” (outra face da “criminalização da pobreza”) aparece pela deliberada renúncia de

ingresso nas casas e condomínios das classes abastadas, mesmo que inseridas no perímetro

abrangido pela ordem de busca e apreensão coletiva, enquanto são invadidas e reviradas as

residências humildes dos suspeitos de sempre.

Referindo-se à ação da polícia francesa em ações semelhantes em bairros pobres,

Didier Fassin identifica dois fatores que se repetem nas ações policiais brasileiras: a

desproporção entre os meios utilizados e os resultados efetivos buscados ou alcançados, assim

como a exibição espetacular na mídia, que claramente buscam produzir um duplo efeito: por

um lado, aterrorizam os habitantes desses bairros, diante de quem é feita uma demonstração

de força ao colocá-los em situação equiparável ao estado de sítio, ainda que por algumas

horas; por outro lado, impressionam a população em geral que passa a entender que esse tipo

de expedição quase militar é necessária para restabelecer a autoridade do Estado nesses

territórios (FASSIN, 2016, p. 71). Não é o caso de envolver mais agentes, mas de fazê-lo da

maneira mais aparatosa para dar maior visibilidade e impacto. O uso ostensivo de armas, o

golpe de efeito que produz o “desembarque” e a utilização de camionetas, quadriciclos e

95

helicópteros não é uma consequência colateral, mas um efeito buscado. Por meio da

saturação, demanda-se atacar a insegurança subjetiva antes da insegurança objetiva. O

objetivo não é o delito, mas o medo do delito, ensejar golpes de efeito que catalizem a

angústia que produzem determinados conflitos (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 246).

Assim, a título de exemplo do contraste entre o vultoso aparato policial - montado com

nítidas finalidades de causar influxo – e os pífios resultados concretos dessas ações, leia-se a

matéria publicada pelo jornal Diário do Nordeste (Fortaleza-CE) no dia 21 de agosto de 2014:

A Operação Nômade III cumpriu um mandado de busca e apreensão coletivo nesta quinta-feira (21) na comunidade Lagoa Seca, no bairro Sapiranga, em Fortaleza. Na ação de combate ao crime, iniciada na madrugada e concluída por volta das 8h30, foram vistoriadas 320 casas, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Um proprietário de uma residência com uma rinha de galos, local onde ocorriam apostas ilegais relacionadas a brigas dos animais, foi preso e encaminhado à Divisão de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP). A operação também resultou na apreensão de uma submetralhadora artesanal e de uma pequena quantidade de drogas em outra casa do bairro. As forças policiais também encontraram na residência a identidade de um homem chamado Gabriel Costa de Araújo e estão à procura dele. A ação envolveu um total de 272 agentes, incluindo Polícia Civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer).

Resumindo: 272 agentes das forças de segurança, viaturas, helicópteros, invadiram 320

casas do bairro, aleatoriamente, e apreenderam: uma pessoa com galos de briga, outro com

uma arma artesanal, pequena quantidade de drogas em uma casa vazia e a cédula de

identidade de uma pessoa.

Isto não conforma situação isolada. O próprio sítio, da rede mundial de computadores,

usado pela Polícia Militar do Estado do Ceará, dá conta doutra operação semelhante, na

comunidade Pôr do Sol, Messejana, em Fortaleza-CE, no dia 24 de julho de 2014, que

envolveu 310 agentes da Coordenadoria Integrada de Planejamento Operacional (COPOL),

Coordenadoria de Inteligência e Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (CIOPAER)

da SSPDS, além de agentes da Polícia Militar (PM), Polícia Civil (PC) e Corpo de Bombeiros

Militar do Ceará (CBMCE), com a “vistoria” de 270 casas. Resultado: quatro pessoas detidas,

sendo duas flagradas (uma com algumas pedras de crack e uma balança de precisão e outra

com uma motocicleta roubada) e duas apreendidas por porte de drogas para uso, além de um

bar onde foram encontradas embalagens utilizadas na comercialização de drogas (POLÍCIA

MILITAR DO CEARÁ, 2019).

Obviamente, a formação de tão aparatosas operações possibilita a oportunidade perfeita

para quem estiver na posse de algo ilícito desvencilhar-se da condição de ser “flagranteado”, o

96

que reforça a certeza de que se trata de uma mera operação de interesse midiático, ao custo da

ofensa gritante de direitos fundamentais dos moradores de comunidades carentes.

Em razão de violações tão flagrantes, releva lembrar, como o faz Jaqueline Sinhoretto,

que o tratamento igualitário diante das leis a todos os indivíduos, independentemente de

estamento, classe, credo religioso ou convicção política, aliado à independência do Poder

Judiciário para julgar os excessos dos governantes, foram aspectos fundacionais da

democracia moderna, erigida na constituição da cidadania (SINHORETTO, 2014, p. 401). O

Judiciário, entretanto, afasta-se cada vez mais dessa função e passa a funcionar como se fosse

órgão de segurança pública. É nesse sentido que Valois identifica: “Quando o Judiciário passa

a pensar que uma de suas funções é o combate à criminalidade ele se afasta da posição de

garantidor de direitos e liberdades para agir como mais uma arma apontada para a população”

(VALOIS, 2014, p. 126). Com esse ita agendum, o Judiciário produz o sentimento de que a

independência judicial com relação às hierarquias sociais constitui mais um princípio formal

do que uma experiência concreta, o que reforça a necessidade de reafirmação das lutas das

quais depende, ainda hoje, o reconhecimento de grupos sociais desfavorecidos

(SINHORETO, 2014, p. 401).

Isso porque as agressões que padece o ser humano em razão da sua pobreza não são

acidentais, mas encontram raiz na maneira como está organizada a vida da comunidade

nacional, e mesmo internacional, nas quais uma grande massa que se revelou débil ou

vulnerável desemboca em condições de vida impróprias ao gênero humano (NIKKEN, 2012,

p. 413). Nós, a “maioria democrática”, nos consolamos com o fato de que todas essas

violações dos direitos humanos não se dirigem a “nós”, as pessoas decentes, e sim a “eles”,

tipos diferentes de seres humanos (“Cá entre nós, será que são mesmo humanos”?)

(BAUMAN, 2013, p. 30). Como mordazmente percebe Eduardo Galeano (2010, P 32), “[...] o

poder, que pratica a injustiça e vive dela, transpira violência por todos os poros”, dividindo a

sociedade em bons e maus e perseguindo, nos infernos suburbanos, os condenados de pele

escura, culpáveis por sua pobreza e com tendência hereditária ao crime. Forma-se, então, um

umbral de indeterminação entre democracia e autoritarismo nos Estados e nas sociedades,

produzidos pelo cárcere e pela luta contra o delito dos pobres (RODRÍGUEZ ALZUETA,

2014, p. 360).

Mais uma demonstração inequívoca é a análise dos orçamentos previstos e os recursos

humanos disponíveis para perseguir os delitos dos pobres, que é muito superior ao destinado a

97

visibilizar e combater os delitos dos poderosos; assim, não só há mais polícia, mais tribunais

penais e mais cárceres, como também todos esses movem-se por uma lógica punitiva que se

dispõe a castigar os que têm dificuldades sociais, sem que tal atitude seja seriamente

questionada (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 354). Nessa perspectiva, cabe a advertência

de Nikken (2012, p. 417): “[…] mientras tengamos victimas sin responsables, la violación

persistente, masiva e sistemática de los derechos humanos de los pobres seguirá en la

impunidad”.

Nesta análise não poderia faltar a observação de que o gozo e exercício dos direitos

humanos conforma-se com a eficácia do direito de ser diferente, deslegitimando-se, contudo,

toda diferença que tenha por objeto cercear ou de algum modo afetar ou impedir o gozo e

exercício de direitos humanos (PINTO, 2012, p. 353). Não se advoga, neste passo - seja tal

repisado - a formulação de uma exculpante baseada na pobreza, mas simplesmente que essa

diferença de nível socioeconômico não seja utilizada como fator de discrimen em favor de

uma política de combate ao crime que proteja somente os setores favorecidos da sociedade

(proteção da propriedade), à custa da criminalização, etiquetagem e encarceramento dos

pobres. Eo ipso, ainda que haja uma contraposição ou colisão de direitos fundamentais com

outros valores constitucionalmente protegidos, como a segurança pública, o produto da

atividade ponderativa deve sempre se aproximar da solução que implique a prevalência da

dignidade humana, na perspectiva kantiana já aludida no estudo, de considerar o indivíduo

sujeito e não objeto de direitos (KANT, 2007, p.68). Rodrigues (2001, p. 35) doutrina uma

síntese entre estes valores como exigência do moderno Estado:

No tempo presente, a síntese deve fazer eco do Estado contemporâneo, de direito, democrático e social. Um Estado em que a defesa intransigente da dignidade da pessoa não se opõe a uma legitimação utilitarista da intervenção punitiva estadual, pois os critérios de utilidade aparecem em relação dialéctica com as garantias formais e materiais que intervêm na autolimitação do Estado. A opção unilateral pela dimensão garantística ou pela preventiva é hoje, por estas razões, impossível.

A universalidade da cidadania, entendida aqui em sentido amplo, como condição de

acesso a direitos, é a condição preliminar de qualquer “política de reconhecimento”

significativa, no entendimento de Bauman (2003, p. 126), que acrescenta: “[...] a

universalidade da humanidade é o horizonte pelo qual qualquer política de reconhecimento

precisa orientar-se para ser significativa”. A democracia hoje em dia corre sério risco de ser

impunemente obliterada e contraditada por uma casta de magistrados ou por uma política

governamental que, ignorando os standards internacionais de direitos humanos, produz e/ou

98

legitima estados de exceção permanentes, porque continua despojando determinados setores

da sociedade de sua condição de humanidade (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 361).

A sociedade pós-moderna que, teoricamente, teria todas as condições para aprofundar as

conquistas democráticas por ser porosa, móvel, aberta, conforme defende Garland (2008, p.

348), na prática, confere causa a exercícios de controle do crime que buscam tornar a

sociedade menos aberta e também móvel, fixando identidades, imobilizando indivíduos,

estabelecendo quarentenas para setores da população, erguendo fronteiras e fechando acessos.

A “subclasse”, os “emigrados internos”, “estranhos de dentro”, embora estejam no interior da

sociedade, não são “da” sociedade, pois em nada contribuem para o seu desenvolvimento,

devendo ser, por isso, extirpados ou confinados, de maneira induzida ou planejada

(BAUMAN, 2013, p. 10).

A aguda e crônica experiência da insegurança é um efeito colateral da convicção de que,

com as capacidades adequadas e os esforços necessários, é possível obter uma segurança

completa, porém, quando percebemos que não iremos alcançá-la, atribuímos o fracasso a um

ato errado e premeditado, o que implica a presença de algum delinquente (BAUMAN, 2009,

p. 15). Os estranhos e delinquentes, portanto, seriam a encarnação da falta de proteção e,

assim, por extensão, da insegurança que assombra as vidas, mas que, de forma paradoxal e ao

mesmo tempo perversa, convertem-se em um conforto: “[...] os temores difusos e esparsos,

difíceis de apontar e nomear, ganham um alvo visível, sabemos onde estão os perigos e não

precisamos mais aceitar os golpes do destino placidamente. No fim, há algo que podemos

fazer”. (BAUMAN, 2003, p. 130). A tentativa de solução normalmente utilizada é assinalada

por Garland (2008, p. 60-61): basta aumentar os controles sociais, os situacionais,

autocontroles, cujas teorias informam o pensamento e a ação oficiais e são os temas

dominantes na criminologia contemporânea, enxergando a delinquência como problema não

de privação, mas de controle inadequado.

As teorias de controle citadas são problemáticas porque partem de uma visão obscura da

condição humana, ao preceituarem que os indivíduos são fortemente propensos ao egoísmo e

a condutas criminosas, a menos que sejam inibidos por controles robustos e eficazes, por isso

a nova criminologia insiste em intensificar o controle e reforçar a disciplina, em substituição a

uma criminologia que demandava mais em termos de bem-estar e assistência (GARLAND,

2008, p. 61). Esse controle, contudo, não tem como destinatários todos os indivíduos, mas é

direcionado a grupos pauperizados e suas condutas particulares, pois os ricos continuam a

99

desfrutar das liberdades pessoais e do individualismo moral proporcionado pelas mudanças

sociais do pós-guerra, à medida que a sociedade mergulhava mais na economia de mercado

(GARLAND, 2008, p. 217).

De acordo com Garland, o efeito combinado de políticas “neoliberais” e

“neoconservadoras” – da disciplina do mercado e de disciplina moral – constitui o de criar

uma situação na qual mais e mais controles são impostos aos pobres, enquanto cada vez

menos controles afetam as liberdades de mercado para o resto da população (GARLAND,

2008, p. 419). Nas democracias pós-modernas, a tentativa de criar ordem social por

intermédio de instrumentos penais é profundamente problemática, pois sedimenta uma divisão

entre aqueles grupos que podem viver em liberdade desregulamentada e aqueles que devem

ser pesadamente controlados (GARLAND, 2008, p. 426). Em outros termos, fica

restabelecida visão que pugna por “mais Estado” em determinadas áreas, principalmente no

que diz respeito à segurança pública, que recebe cada vez mais vultosos investimentos,

reforçando-se o controle sobre a população mais pobre; e “menos Estado” na área econômica

e social, em benefício da expansão do mercado.

Nessa realidade, as classes médias, por sua vez, passam a atacar o Estado do bem-estar,

por vê-lo cada vez menos como um sistema que funciona em seu benefício, encarado agora

como uma burocracia governamental onerosa e ineficiente, cuja função é redistribuir os

recursos da população trabalhadora para uma massa de beneficiários ociosos e irresponsáveis,

contribuindo, destarte, para um raciocínio no qual os setores médios são – na previdência,

como no crime – “vitimizados” pelos pobres e por um sistema que reproduz o problema que

deveria resolver (GARLAND, 2008, p. 419). David Garland (2008, p. 423) formula, então, a

pergunta fundamental: “Por que os governos adotam, tão rapidamente, soluções penais para

lidar com o comportamento de populações marginalizadas, em vez de cuidarem das fontes

sociais e econômicas de sua marginalização?”. As respostas são fornecidas pelo mesmo autor:

Porque soluções penais são imediatas, fáceis de serem implementadas e podem alegar que “funcionam” como instrumento punitivo ainda que fracassem todos os outros objetivos. Porque elas possuem poucos oponentes políticos e relativo baixo custo, assim como se harmonizam com o senso comum no que concerne às fontes da desordem social e à adequada distribuição de culpa. Porque ela se amparam em sistemas de regulação existentes, deixando intocados os arranjos sociais e econômicos fundamentais. Sobretudo, porque elas concentram o controle e a condenação nos grupos excluídos, deixando relativamente livre de regulação e censura o funcionamento dos mercados, das empresas e das classes sociais mais favorecidas. (GARLAND, 2008, p. 423).

100

O recrudescimento do controle e o encarceramento em massa de determinados grupos

continua atraente para os Estados que se apoiam nos movimentos de “lei e ordem”, mas

representam uma contradição com os ideais da democracia liberal, principalmente onde o

poder punitivo esteja concentrado em setores vulneráveis, constituindo, na realidade, um

Estado-apartheid, que tenta sustentar a ordem social por meio da exclusão (GARLAND,

2008, p. 429). Assim, a ênfase na punição e no policiamento reforça a marginalização social

endêmica, preferindo valer-se das pretensas certezas de uma solução hobbesiana mais

simplória, mais coercitiva, em vez de tratar o difícil problema da solidariedade social num

mundo diversificado e individualizado (GARLAND, 2008, p. 427). Isso porque tais líderes

são julgados pela severidade que manifestam na “corrida por segurança”, procurando superar

um ao outro nas promessas de tratar com austeridade os responsáveis pela insegurança –

autênticos ou supostos, mas que podem ser enfrentados e derrotados, ou pelo menos

conquistáveis (BAUMAN, 2013, p. 29). No extremo, é necessário atentar-se para a

advertência de Christie (1993, 25), para quem “[...] el mayor peligro del delito en las

sociedades modernas no es el delito en sí mismo, sino que la lucha contra este conduzca las

sociedades hacia el totalitarismo”.

Há de se adir, ainda, a noção de que os efeitos da criminalização e de sua face mais

visível, a prisão, reforçam, por meio da restrição de direitos políticos, o distanciamento entre

o tratamento dado a determinados setores da população e o funcionamento de um Estado

Democrático de Direito. No Brasil, a própria Constituição (BRASIL, 1988) estabelece a

suspensão dos direitos políticos enquanto durarem os efeitos da sentença penal condenatória

(art. 15, III, CF). Já no tocante aos presos provisórios, embora permaneçam na titularidade de

direitos políticos, protegidos pela presunção do estado de inocência, são privados de tais

direitos por obstáculos de natureza administrativa e burocrática.

Ainda que veiculada por norma constitucional, há que se questionar se a suspensão de

direitos políticos dos definitivamente condenados guarda harmonia com outras disposições

igualmente constitucionais, além de ser necessário analisar se contém pretensões efetivamente

democráticas. A seguir, são expressos os entendimentos doutrinários referentes a essa

temática que, como visto, são bastante díspares, com sua posterior sistematização e mostra do

posicionamento adotado nesta pesquisa.

Os defensores da privação utilizam o seguinte argumento, oferecido por Fialho (2011, p.

380-381):

101

O pano de fundo que dá substância à privação dos direitos políticos na hipótese de condenação criminal transitada em julgado é de inspiração ética e material, já que a norma visa a tutelar a ordem democrática sob o ponto de vista da indignidade e da responsabilidade penal do indivíduo que, submetido a um édito penal condenatório, sob o ponto de vista exógeno, não reuniria condições éticas mínimas para participar dos atos de gestão estatal e, igualmente, parte da noção de que, em função da privação da liberdade do indivíduo, a fruição deste direito encontra-se obstaculizado.

Para Conceição (2104, p. 189), o escopo dessa norma é afastar temporariamente da

participação das discussões e decisões mais importantes do País pessoas que tenham cometido

fatos desabonadores e que, por isso, são consideradas inaptas a participar das decisões mais

relevantes do Estado, ultrapassando, portanto, os exames de adequação e necessidade da

medida para os fins a que se propõe. Por outro lado, de acordo com o entendimento

jurisprudencial consolidado, que teve como origem o julgamento do Recurso Especial

Eleitoral nº 11.589/SP, em 1994, restou assentado que o preceito determinante da suspensão

de direitos políticos é de aplicação imediata e irrestrita, independentemente da infração penal

praticada, além de fixar a ideia de que tal supressão decorre de efeito automático da sentença,

sendo desnecessário, inclusive, menção expressa no texto decisório (BRASIL, 1994 b). O

Supremo Tribunal Federal também consolidou seu entendimento nesse sentido, tendo como

precedente o RE 179.502-6/SP, julgado em 31/05/1995, acrescentando, ainda, que não é o

recolhimento do condenado à prisão que justifica a suspensão de seus direitos políticos, mas o

juízo de reprovabilidade expresso na condenação (BRASIL, 1995)19.

Tal interpretação, contudo, é contraposta por entendimento doutrinário calcado em

decodificação sistemática da CF/88, cuja principal premissa é a de que a limitação da

abrangência da universalidade do sufrágio se traduz como fator de exclusão social (FIALHO,

2011, p. 377). Como já aludido em outro estudo, “[...] qualquer forma de exclusão da

participação política representa manifestação de exclusão social”. (BESSA, 2008, p. 229).

Assim, quidem, “[...] os indivíduos cerceados em seu direito de manifestar sua vontade para a

formação das leis, seja direta, ou indiretamente, acabam relegados a uma classe inferior de

cidadãos, inaptos a contribuir com a sua voz para ditar as regras que regerão suas vidas”

(BESSA, 2008, p. 229). Com essa conclusão concorda Antony Duff, ao identificar uma

19O entendimento foi reafirmado em 2011 no RE 577012 AgR / MG - MINAS GERAIS. EMENTA:

CONSTITUCIONAL. DIREITOS POLÍTICOS. SUSPENSÃO EM DECORRÊNCIA DE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO. ART. 15, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONSEQUÊNCIA QUE INDEPENDE DA NATUREZA DA SANÇÃO. RECURSO IMPROVIDO. I – A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não impede a suspensão dos direitos políticos. II – No julgamento do RE 179.502/SP, Rel. Min. Moreira Alves, firmou-se o entendimento no sentido de que não é o recolhimento do condenado à prisão que justifica a suspensão de seus direitos políticos, mas o juízo de reprovabilidade expresso na condenação. III – Agravo regimental improvido (BRASIL, 2010 c).

102

importância simbólica nesse contexto, pois, ao inabilitar-se o voto dos presos, mostra-se com

clareza que eles deixam de ser cidadãos (status cívico fica suspenso), enquanto estão na

prisão, porquanto desvestidos de um atributo que para a maioria das pessoas é definidora do

compromisso político dos cidadãos (DUFF, 2015, P. 63). Nas palavras de Alexander (2017, p.

39), referindo-se ao mesmo fenômeno nos Estados Unidos,

Se acorrentar os prisioneiros a uma vida de dívidas e autorizar discriminação contra eles em empregos, habitação, educação e benefícios públicos não for o suficiente para enviar a mensagem de que eles não são queridos nem sequer considerados cidadãos de pleno direito, retirar o direito a voto daqueles rotulados como criminosos certamente o é.

Assim, conforme já aludido, embora, na análise da proporcionalidade, a privação

automática de direitos políticos supere os exames de adequação e necessidade, esbarraria,

segundo essa posição, no exame de proporcionalidade em sentido estrito, quando se verificam

os efeitos deletérios que poderia causar em direitos fundamentais relevantes relacionados com

a participação política. Conforme defende Fialho (2011, p. 381), a tese de aplicação

automática e irrestrita precisa ser desconstituída, para dar lugar à exigência de que o

magistrado deixe expressamente registrado no dispositivo da sentença penal condenatória a

determinação de suspensão de direitos políticos do apenado, precedida de fundamentação e

justificação da pertinência e conveniência da medida. Isso porque “[...] toda desvantagem

imposta a um direito fundamental traz consigo o ônus de afirmação perante a ordem

constitucional, a partir de uma fundamentação racional” (CONCEIÇÃO, 2014, p. 170). Dessa

maneira, estaria o magistrado cumprindo as determinações constitucionais da fundamentação

das decisões judiciais, veiculado pelo art. 93, IX da CF/88 (BRASIL, 1988) e da

individualização da pena (art. 5º, XLVI) (BRASIL, 1988), na medida em que faria a

necessária distinção entre delitos dolosos e culposos, crimes de perigo concreto, abstrato e de

dano, comuns e hediondos, evitando que se atribua idêntico peso valorativo a todos, pela

aplicação da mesma consequência (FIALHO, 2011, p. 381).

Não se pode, de fato, esquecer de que a Constituição brasileira não faz qualquer

distinção quanto ao tipo de condenação para que seja determinada a suspensão dos direitos

políticos, que decorre automaticamente da sentença condenatória irrecorrível, como

pacificado nas cortes patriais. Tal ocorrência aumenta enormemente o número de pessoas

alcançadas pela privação de direitos políticos, convertendo-se, portanto, em muitas

oportunidades (como na aplicação de penas restritivas de direitos, por exemplo), uma punição

103

desproporcional que, embora acessória, resulta muito mais grave do que a própria pena do

delito, em muitos casos de potencialidade lesiva ínfima.

A privação de direitos políticos, ademais, contradiz a própria finalidade de

ressocialização da pena. Com efeito, se o objetivo maior da execução penal é garantir a

reintegração do condenado à sociedade, a privação de participação política representará um

obstáculo a tal intento.

Como esperar que um indivíduo, cerceado em seu direito de manifestação, sinta-se parte da sociedade cujas regras foram formadas sem a sua participação? Como considerar representado politicamente um indivíduo que não escolheu, por meio voto, aquelas pessoas que considera aptas a defender seus interesses nas casas legislativas e no Poder Executivo? (BESSA, 2008, p. 229).

No mesmo sentido é a doutrina de Vasconcelos (2005, p. 164):

O objetivo de reintegrar o preso na sociedade fundamenta a tese de que ele continua sendo membro da comunidade. A pena a que foi condenado decorre de uma transgressão à lei penal. Por este motivo é afastado, por tempo determinado da vida comunitária. Porém não perde todos os direitos de que se beneficia o cidadão.

Assim, os pobres, em sua vulnerabilidade, como são invariavelmente alcançados pelo

poder punitivo estatal, permanecem temporariamente sem voz no debate democrático, o que

tende a perpetuar a situação de abandono e desrespeito a direitos a que são submetidos,

principalmente quando em situação de encarceramento. A opinião majoritariamente

construída (ou fabricada), calcada em sentimentos e argumentos de “lei e ordem”, prevalece

na produção das normas e em sua aplicação, tendendo, portanto, a se perpetuar, na medida em

que alija a participação daqueles submetidos aos rigores dessa política.

Impende lembrar o sempre empalmado argumento da inaptidão para o voto das pessoas

encarceradas, obsoleto e autoritário fundamento que, durante séculos, impediu a participação

política de outras minorias, como mulheres, escravos e analfabetos. Como aludido em outra

oportunidade, sobre o assunto,

[...] a história da democracia demonstra uma evolução no sentido de ampliação da participação popular, rompendo velhos preconceitos ou interesses de classes e afastando a concepção sempre empunhada de que determinada parcela da população não teria condições de bem escolher seus representantes. (BESSA, 2008, p. 231).

Como ensina Bobbio (2004, p. 31), o progressivo alargamento do número de pessoas

com direito ao voto foi um indicativo, no século imediatamente passado, de um continuum de

democratização. Logo, a restrição apontada em relação aos presos, também por esse prisma,

representa uma minimização da democracia, pelo fato de restringir o número de pessoas aptas

104

a participar. Pretende-se demonstrar, contudo, é que, partindo da premissa de ser o sistema

seletivo e criminalizar a pobreza, como exaustivamente demonstrado, a privação de direitos

políticos atinge desproporcionalmente a população mais pobre, como natural consequência.

De outra parte, a inabilitação política, no caso brasileiro, avança ainda mais quando

alcança os presos provisórios, em relação aos quais não há qualquer restrição de natureza

normativa, mas que são impedidos de votar por pretextos meramente burocráticos e

administrativos (ligados ao domicílio eleitoral ou por dificuldades de logística nas unidades

prisionais, por exemplo), que se sobrepõem ao direito fundamental de participação. Assim,

deficiências da Justiça Eleitoral ou obstáculos meramente burocráticos inviabilizam o

exercício de direitos políticos de indivíduos em relação aos quais não há qualquer definição

de culpa, pois aguardam presos, muitas vezes por extensos períodos, o julgamento de seus

processos.

Partindo da premissa de que (como já demonstrado em várias passagens deste estudo) o

poder punitivo estatal se volta quase exclusivamente sobre a população mais pobre, ela está

sub-representada nas posições de poder e decisão, na proporção em que sobre-representada

nas malhas repressivas do Estado. Os influxos deletérios na soberania popular e,

consequentemente, no próprio funcionamento da democracia, destarte, são inegáveis. De

acordo com dados do DEPEN, encontram-se encarceradas 726.712 pessoas (BRASIL, 2017).

Não há dados oficiais de hoje do número de pessoas em cumprimento de penas alternativas,

mas sabe-se que em 2008 ultrapassou o número de pessoas presas (G1, 2008). Conclui-se,

então, que aproximadamente 1,5 milhão de pessoas encontram-se impedidas de participar do

processo de formação da vontade estatal, superando, apenas para ilustrar, o número de

eleitores de Roraima (com 331.489 eleitores em 2018), Amapá (com 512.110 eleitores em

2018) e Acre (com 547.680 eleitores em 2018) somados (BRASIL, 2019).

Considerando-se o fato de que o número de eleitores no Brasil aptos a votar nas eleições

de 2018 era de 147.302.357 (BRASIL, 2019), facilmente se deduz que o encarceramento e as

demais sanções penais, ao atingirem desproporcionalmente determinada parcela da população

(principalmente nos crimes de baixa e média potencialidade lesiva, como já aludido),

conduzem a uma crise de legitimidade e representatividade dos poderes estatais, já que essas

vozes não contribuem para o exercício do direito de sufrágio, redundando na fragilização de

sua principal característica, configurada na universalidade. Por outro lado, afasta-se o Estado

105

brasileiro do cumprimento do que estabelece a Carta Democrática Interamericana em seu art.

6:

A participação dos cidadãos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento é um direito e uma responsabilidade. É também uma condição necessária para o exercício pleno e efetivo da democracia. Promover e fomentar diversas formas de participação fortalece a democracia. (OEA, 2001).

Esta, sem dúvida, é uma conjunção de problemas bastante complexa que admite,

portanto, como visto, uma série de possibilidades, que podem ser assim sistematizadas: 1 –

suspensão automática e irrestrita de direitos políticos a todos os criminalmente condenados,

enquanto durar o cumprimento da pena (posição adotada pelo TSE e STF); 2 – proposta de

mudança constitucional para a exclusão pura e simples do art. 15, III da Constituição, a fim de

conferir sufrágio parcial aos condenados criminalmente (somente capacidade eleitoral ativa),

mas tornando-os inelegíveis (posição adotada por Vasconcelos, 2005, p. 163); 3 – necessidade

de interpretação sistemática da CF/88 com tendência a alargar o direito de sufrágio, de modo

que a suspensão de direitos políticos somente deva ocorrer precedida de fundamentação de

sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito perante o caso concreto; 4

– tão somente as condenações criminais decorrentes da prática de crimes dolosos e que

possibilitem a pena privativa de liberdade deveriam habilitar a suspensão de direitos políticos

(FIALHO, 2011, p. 388).

Neste experimento universitário de sentido estreito (tese de doutoramento), adota-se o

posicionamento de que o atual entendimento dos tribunais superiores cuida de maneira

uniforme de situações que, na prática, podem ser sobejamente diferentes, o que enseja

injustiças em muitos casos concretos relacionados a delitos de menor potencialidade lesiva.

Por outro lado, entende-se que a suspensão de direitos políticos pode ser solução adequada em

decorrência de pesadas violações da ordem social, representada por crimes graves, de modo

que deve ser mantida nessas situações. Por fim, defende-se a posição segundo a qual, em

qualquer caso, a suspensão de direitos políticos, pelo fato de representar a privação, ainda que

temporária, do status de cidadão, não pode ser efeito automático e necessário da condenação

criminal, devendo o magistrado, quando pretender impô-la, superar os onera de

fundamentação consistente, demonstrativa da proporcionalidade de sua incidência no caso

concreto. Advoga-se, com efeito, a alteração constitucional para deixar evidente em quais

crimes poderia incidir a suspensão de direitos políticos e, mesmo nesses eventos admissíveis,

exigir-se do magistrado a citada fundamentação. Reitere-se o fato de que a proposta somente

pode ser consolidada com uma emenda à Constituição que deixe claros os crimes nos quais

106

será aplicável a suspensão de direitos políticos (rol de crimes graves, excepcionais) e que,

ainda em relação a esses – até mesmo por exigência de fundamentação das decisões judiciais

e respeito à individualização da pena – o juiz deva demonstrar na sentença a razoabilidade, in

rebus, da privação dos direitos políticos. Eventuais equívocos judiciais poderiam ser

superados pela via recursal, mas se considera que a solução oferecida supera a atualmente

adotada pela Constituição e interpretada pelos tribunais pátrios, seja por maior garantia da

universalidade do direito de sufrágio, seja em efetivação da soberania popular, onde reside

todo o poder político.

Isso porque o impedimento de participação de tantas pessoas na definição dos rumos a

serem adotados em uma sociedade, automática e irrefletidamente, representa apenas mais uma

faceta de uma política totalmente direcionada a excluir ainda mais determinados setores da

sociedade, em evidente contradição relativamente aos ditames de um Estado Democrático de

Direito, que deveria buscar, ao contrário, ser mais inclusivo e justo, por meio da definição de

estratégias de participação social e controle das ações estatais.

2 SELETIVIDADE PENAL E SUAS MANIFESTAÇÕES

NOBRASIL

Analisadas as diversas concepções de pobreza e os principais aspectos de sua

criminalização, bem como a sua contradição com diversos valores albergados pelo Estado

Democrático de Direito, como analisado na seção imediatamente precedente, tem aqui

continuidade o estudo específico da seletividade penal, com destaque para a realidade

brasileira, iniciando-se por um necessário escorço histórico, para, então, se obedecer uma

sistematização de manifestações de seletividade penal e criminalização da pobreza em solo

pátrio. O fenômeno carcerário, que no Brasil adquire contornos dramáticos, merece, nesse

particular, uma observação mais atenta, pelo desastre humanitário que produz e por ser o mais

deplorável exemplo de um indisfarçável tratamento discriminatório.

Assim, no capítulo sob relatório, fixa-se o conceito de seletividade penal, com a

apresentação das suas diversas manifestações no decorrer da história, a demonstrar como o

poder punitivo realiza os seus maus desígnios, para, na sequência, investigar como tal

fenômeno é expresso em terras brasileiras, desde a época colonial até o período em decurso.

Na sequência, então, está o exame de aspectos específicos da seletividade penal estatal –

principalmente, da persecução criminal e do sistema de justiça – desvelando essa marcante

característica dos posicionamentos estatais no que diz respeito ao encarceramento preferencial

dos pobres, mortes institucionais, tortura e demais tratamentos negativamente marcantes, com

destaque para a situação brasileira.

2.1 Seletividade penal

As sociedades humanas, desde os primórdios de suas formações, conviveram com o

desvio das normas de conduta estabelecidas como consenso. Várias foram as modalidades de

resposta utilizadas, desde a vingança privada, com a exclusão do infrator do grupo social ou a

simples composição (autotutela), passando pela imposição de sanções representativas de uma

vingança divina, até o surgimento da vindita pública, caracterizada pelo surgimento do poder

108

de punir, normalmente atribuído a um ente específico, no caso, o Estado. Com efeito, nem

todas as infrações à ordem estabelecida eram efetivamente punidas e os critérios de definição

de quem seriam os alcançados pelo poder punitivo foram igualmente variáveis no decorrer do

tempo.

O que se verificou, portanto, ante a impossibilidade fática de punição de todos os

desvios, somada à falta de interesse pela punição daqueles que ocupavam ou gravitavam em

torno do poder, foi a seleção daqueles que seriam colhidos pela vingança pública, a fim de

reafirmar o poder punitivo, estabelecendo-se, exemplarmente, o controle social formal.

Apenas alguns membros do corpo social, facilmente identificáveis, seriam, então,

historicamente, sacrificados a pretexto da distribuição de “justiça”, como demonstrado nas

linhas que vêm.

Seletividade penal, portanto, pode ser entendida como a atitude de se direcionar o poder

punitivo contra grupos determinados e determináveis de modo desproporcional, ao mesmo

ponto em que não são destinados os mesmos esforços para prever e impor normas penais

sobre outros grupos, que igualmente ofendem a ordem jurídica estabelecida. Tal conforma

uma atitude que, de resto, não se restringe aos órgãos estatais, mas que se espraia por toda a

sociedade, com a atuação específica e contundente dos meios de comunicação social, mas

sempre com a mesma característica de tratamento desigual, conforme a pessoa que

protagonize a situação de conflito penal.

Assim, como define Sinhoretto (2014, p. 400-401), “[...] o problema formulado em

torno da seletividade penal é entender como e por que o Estado privilegia a perseguição de

certas condutas ou de certos grupos criminosos ou é tolerante com outras condutas e grupos

sociais”. Em outras palavras, da mesma autora:

Trata-se de pensar em como as instituições do sistema de justiça operam constrangimentos e seleções para certos atores sociais que movimentam suas habilidades e capitais na tentativa de lidar com filtros institucionais. Os mais bem afortunados são aqueles cujas demandas por justiça transitam facilmente pelas estruturas judiciais e suas infrações atraem pouca atenção da repressão penal. Os desfavorecidos são os que atraem a repressão penal aos seus modos de morar, trabalhar, comerciar, viver e encontram muitas dificuldades em administrar os conflitos de que são protagonistas por regras e procedimentos estatais. (SINHORETTO, 2014, p. 401).

Cuida-se, portanto, de estabelecer qual o percurso histórico trilhado pelo tratamento

seletivo, a fim de compreender as suas raízes e sua intrínseca relação com o poder. Alagia

(2013, p. 42) atribui ao filósofo francês Joseph de Maistre o mérito de descobrir os vínculos

109

entre pena pública e trato sacrificial. A imolação produtora de sangue para satisfazer a

vontade dos deuses recaía inicialmente sobre animais, mas logo passou a centrar-se em seres

humanos. Prossegue o Criminólogo da Universidade de Buenos Aires:

Se trata de una idea antigua y aceptada en el mundo enterro: el delito no pude ser expiado más que con la eficácia del sacrifício y la sangre del culpable. Ninguna nación ha dudado sobre la existencia de una virtud en el derramamento de sangre sacrificial, assegura el filósofo de la contrarrevolución. No obstante, talvez su mayor descubrimiento sea en orden a la selectividad en el uso de la violencia extrema que denomina “dogma de la reversalidad”. La destrucción de algo, de alguien o de un grupo vulnerable puede satisfacer y ocupar el lugar de los verdaderos culpables en la crisis del orden social. Una vida menos “preciosa” se ofrece y acepta por outra. (ALAGIA, 2013, p. 43).

Igualmente entende Zaffaroni (2007, p. 11, grifo do autor), para quem “[...] o poder

punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que

não correspondia à condição de pessoas, posto que os considerava apenas como entes

perigosos ou daninhos. Para Giorgi (2013, p. 36), “[...] a penalidade se inscreve num conjunto

de instituições jurídicas, políticas e sociais (o Direito, o Estado, a família), que se consolidam

historicamente em função da manutenção das relações de classe dominantes”. O grau de

periculosidade do inimigo – e, de igual modo, da necessidade de contenção – dependerá

sempre do juízo subjetivo do individualizador, que é exatamente quem exerce o poder

(ZAFFARONI, 2007, p. 25). Na aproximação procedida por Alagia (2013, p. 57), “[...] o

poder punitivo sobrevoa a população vulnerável para encontrar alimento que consumir”.

Selecionar determinadas pessoas com a finalidade sacrificial, portanto, se consolida

historicamente como característica ínsita às sociedades humanas, principalmente quando

exercem o poder de punir. Nas palavras de Alagia (2013, p. 515), “Encontrar em la

institucionalización del genocídio la matéria de que está hecho el castigo retributivo y toda

pena es uma verdadeira sorpresa, tanto más perturbadora cuando deja ver trazos de uma

violência sagrada”.

De fato, tal afirmação é facilmente comprovada na manifestação atroz mais próxima na

história e uma das mais estarrecedoras da experiência humana: o genocídio do povo judeu

pelos nazistas. Como lembrou o intelectual uruguaio Galeano (2010, p. 61) (há pouco tempo

noutra dimensão), “[...] o plano nazi de limpeza da raça ariana começou com a esterilização

dos enfermos hereditários e criminosos, e continuou, depois, com os judeus”. De fato, as

distâncias que parecem existir entre genocídio e pena pública tendem a desparecer quando se

110

considera que o “sagrado” do castigo está determinado pelo bem que dele se espera a

expensas de oferecer uma vítima sacrificial (ALAGIA, 2013, p. 54).

A hipótese de Alagia (2013, p. 15) é a seguinte: “[...] não é improvável que o trato

punitivo organizado seja herança da solução sacrificial do mundo selvagem e que o homem

civilizado converteu em modo de vida”. Para ele, há aproximadamente cinco mil anos

vivemos sob ameaça e padecimento punitivo com a crença de que “[...] alguém tem que sofrer

ou morrer para que a sociedade viva” (ALAGIA, 2013). Concorda Galeano (2010, p. 81) ao

sentenciar que “[...] a morte de cada malvivente surte efeitos farmacêuticos sobre os

benviventes. A palavra farmácia vem de phármakos, que era o nome que davam os gregos às

vítimas humanas dos sacrifícios oferendados aos deuses em tempos de crise”. Bauman (2013,

p. 198-199) complementa, aduzindo que

Precisamos de alguém para odiar porque precisamos de alguém para culpar por nossa abominável e insustentável condição, e pelas derrotas que sofremos ao tentar melhorá-la e torná-la mais segura. Precisamos dessa pessoa para descarregar (e assim, ao que se espera, aliviar) a devastadora percepção de nossa própria indignidade (...) Vamos insistir em que odiamos porque queremos ver o mundo livre do ódio.

Mesmo que, com o advento do Estado de Direito, após as revoluções burguesas do

século XVIII, tenha ocorrido uma minimização do Estado, não foi possível abandonar as

pulsões de Estado absoluto que se manifestam pela maneira como eram selecionados os

considerados perigosos e, portanto, alvos da ação persecutória do Estado. Em sua obra “O

inimigo no Direito Penal”, Zaffaroni (2007, p. 12) desenha uma tese segundo a qual

[...] o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é compatível com um modo de Estado absoluto e que, consequentemente, as concessões do penalismo têm sido, definitivamente, obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de Direito.

A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o

Direito lhe nega sua condição de pessoa. Essa característica, inserta no poder punitivo, é

contraditória em relação ao princípio da igualdade, mesmo em seu aspecto meramente formal,

que funda o Estado de Direito. Tratar diferenciadamente certas pessoas, punindo-as

preferencialmente e negando acesso aos direitos enunciados para todos, representa a

contradição essencial do Estado de Direito que, por um lado, ostenta a característica de que

todos estão submetidos ao Direito indistintamente e, de outra parte, seleciona sempre aqueles

pertencentes a um determinado grupo social. Importante é lembrar, com Bauman (2013, p.

111

79), a ideia de que “[...] o extermínio de judeus, ciganos ou homossexuais, para seus

perpetradores era uma ação de higiene (cristais de Zyklon B, originalmente produzidos como

veneno para vermes, eram espargidos através dos telhados da câmaras de gás por “agentes de

higiene”).

Zaffaroni (2007, p. 22) identifica no Direito Romano “[...] os eixos troncais que

haveriam de servir de suportes posteriores a todas as subclassificações do hostis levadas em

conta para o exercício diferencial do poder punitivo e racionalizadas pela doutrina penal”.

Para o Jurista argentino, estas categorias remontam a duas, originárias do Direito Romano:

a) hostis alienígena – núcleo que abarca todos os que incomodam o poder, os

insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros que, como estranhos, são

desconhecidos e, como todo desconhecido, inspiram desconfiança e, por conseguinte,

tornam-se suspeitos por serem potencialmente perigosos;

b) hostis judicatus – declarado hostis em função da autorictas do Senado, que era um

poder excepcional que, em situações excepcionais, declarava inimigo público o

indivíduo que ameaçava a segurança da República por meio de conspirações ou

traição (ZAFFARONI, 2007, p. 22-23).

Com origem na Roma, portanto, o conceito de inimigo ou hostis, sob as mais variadas

modalidades, explícita ou veladamente, “[...] atravessou toda a história do Direito ocidental e

penetrou na Modernidade, não apenas no pensamento de juristas como também no de alguns

de seus mais destacados filósofos e teóricos políticos, recebendo especiais e até festejadas

boas-vindas no direito penal” (ZAFFARONI, 2007, p. 24).

A Idade Média, por sua vez, foi marcada pela existência da Inquisição, cuja atuação

tinha por principal característica a perseguição de pessoas consideradas refratárias ao

pensamento único estabelecido pela Igreja Católica. Hereges e bruxas passaram a figurar

como os principais inimigos públicos da época, submetidos a simulacros de julgamento, nos

quais as provas de inocência eram praticamente impossíveis, e acusação, defesa e julgador

concentravam-se na mesma pessoa. O processo era apenas o instrumento que antecedia os

suplícios, espetáculos públicos por meio dos quais se pretendia distribuir temor ao restante da

população, valendo-se de técnicas que incluíam esquartejamento, cruxificção, empalamentos,

submissão à fogueira ou ao confinamento com feras, entre outras atrocidades. A eliminação

112

física era, portanto, o destino inexorável dos indesejáveis que caíam nas malhas punitivas

estatais.

Na transição ao capitalismo, nos séculos XIV e XV, “[...] o crescimento constante do

crime entre os setores do proletariado empobrecido, sobretudo nas grandes cidades, tornou

necessário às classes dirigentes buscar novos métodos que fariam a administração da pena

mais efetiva” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 31). De tal sorte, o sistema de penas

permaneceu imutável, mas se aprofundaram as diferenças na aplicação das leis, de acordo

com a classe social do condenado (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004). No entendimento de

Baratta (2003, p. 32), os grupos dominantes impuseram condições de desigualdade,

despojando, por exemplo, violentamente, populações inteiras da propriedade de seus corpos

(escravidão de africanos na América) e, por meio das leis e do poder institucional,

mantiveram as condições de dominação ao definir como “criminosos” os despossuídos

errantes, os escravos desobedientes ou ociosos, os subalternos indisciplinados.

Com o início da Idade Moderna e o surgimento do Estado absolutista, permaneceu bem

marcante a finalidade intimidatória, manifestada pelos suplícios como espetáculos punitivos.

A pena era executada em praça pública, espectadora das inúmeras arbitrariedades do

soberano, objetivando mostrar à sociedade as consequências da desobediência a ele. Foucault

(2007, p. 31), após conceituar o suplício como uma pena corporal, dolorosa, mais ou menos

atroz, considera que ele “[...] repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta

produção é regulada”. Assim,

O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas. (FOUCAULT, 2007, p. 31).

Os suplícios demonstravam o poder exercido sobre o corpo da pessoa, servindo para

expressar o domínio que o soberano exercia na sociedade, evidenciando a autoridade

monárquica sobre os súditos. O poder de punir era confundido com a força pessoal do

soberano. O Mestre de Poitiers conclui que o suplício representava exatamente “[...] um ritual

organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é

absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o

controle” (FOUCAULT, 2007, p. 32). Assim, arremata o Filósofo, com a ideia de que o

suplício não restabelece a justiça, mas reativa o poder. As páginas mais marcantes de um

espetáculo de suplício são as iniciais da obra mais famosa de Foucault, Vigiar e Punir. Neste

113

clássico está narrado com detalhes o espetáculo dantesco da execução da pena contra

Damiens, condenado em 1757 pelo crime de parricídio (FOUCAULT, 2007, p. 9-10).

No Brasil, a mais famosa execução de pena por intermédio do suplício foi a morte de

Tiradentes, o inconfidente mineiro que ousou sonhar com um Brasil independente. A

inacreditável gravura do corpo do revolucionário trespassado por finas lanças de madeira

ainda povoa o imaginário brasileiro e enche de horror os diálogos que se travam sobre o

famoso esquartejamento.

Batista (2003, p. 43) identifica o fato de que, a partir do século XV, a transição para o

capitalismo conduz a um direito penal orientado contra os setores populares e buscando ser

eficaz diante dos delitos contra a propriedade, em atenção aos interesses de uma burguesia

ascendente, aprofundando-se, ademais, as diferenças de execução das penas por classes,

porquanto os pobres, impossibilitados de sofrer penas pecuniárias, sentiam sobre seus corpos

o espetáculo do horror punitivo.

Pavarini (2014, p. 36) identificam na segunda metade do século XVI, na Inglaterra, a

substituição dos açoites, desterro e pena de morte por uma experiência que se mostraria

exemplar: o confinamento, no castelo de Bridewell, de vagabundos, ociosos, ladrões e autores

de delitos menores, com a finalidade de reformá-los por meio do trabalho obrigatório e

disciplina. Em apenas quatro anos tais casas de correção (doravante chamadas de bridewells)

passaram a ocupar todo o País, recolhendo uma população bem definida: filhos de pobres

(para educá-los para o trabalho), desempregados, além daqueles a quem foram destinados

originalmente esses locais, com a nítida finalidade de “[...] dobrar a resistência da força de

trabalho e fazê-la aceitar as condições que permitissem o máximo grau de extração da mais-

valia” (PAVARINI, 2014p. 36-38).

Rusche e Kirchheimer (2004, p. 43), de igual maneira, percebem, no final do século

XVI, uma mudança gradual e profunda nos métodos de punição, pois a possibilidade de

explorar o trabalho de prisioneiros passou a receber crescentemente mais atenção, uma vez

adotada a escravidão nas galés, deportação e servidão penal por meio de trabalhos forçados;

as duas primeiras por um certo tempo, a terceira como precursora hesitante de uma instituição

que permanece até o momento).

Como historia De Giorgi (2013, p. 26),

114

Com efeito, diante do espetáculo da mendicância, da pobreza e da dissolução moral oferecido pelos pobres na Europa entre os séculos XVII e XVIII, as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa, de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva, de recuperação, disciplinamento e normalização dos diferentes. É aqui que se inicia a era do “grande internamento”. Pobres, vagabundos, prostitutas, alcoólatras e criminosos de toda espécie não são mais dilacerados, colocados na roda, aniquilados simbolicamente através da destruição teatral dos seus corpos. De forma muito mais discreta, silenciosa e eficaz, eles são encerrados. Eles começam a ser internados porque se compreende que eles são passíveis de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar, transformar em sujeitos úteis, isto é, em força de trabalho.

Assim, premidos pela carência de mão de obra observada no século XVII, os países

europeus foram obrigados a rever as suas políticas em relação à pobreza, amadurecendo a

ideia de que os pobres em condições de trabalhar deveriam ser obrigados a fazê-lo, pois assim

seriam enfrentados a vagabundagem e o aumento dos salários, provocado pela escassez de

força de trabalho (DE GIORGI, 2013, p. 41). Essa nova filosofia inspira a criação das

primeiras instituições destinadas à reclusão dos pobres: Bridewell, na Inglaterra (como já

visto); Hôpital General, em França, e Zuchthaus e Spinhaus, na Holanda, que depois se

consolidaram como a principal modalidade de punição (DE GIORGI, 2013, p. 41-42).

Na primeira metade do século XVII, na Holanda, essa nova instituição (casa de

trabalho) atinge seu formato mais desenvolvido, respondendo a uma exigência conexa ao

desenvolvimento geral da sociedade capitalista, muito mais do que à genialidade de algum

grande reformador, como frequentemente a história jurídica tenta convencer (PAVARINI,

2014, p. 39).

Não escapou à percepção desses autores o papel precursor das casas de trabalho,

instalando-se como importante precedente do cárcere. Classificam-nas como o primeiro

exemplo de detenção laica sem a finalidade de custódia da história do cárcere, percebendo que

“[...] os traços que a caracterizam, no que diz respeito às classes a quem foi destinada, sua

função social e a organização interna já são, grosso modo, aquelas do clássico modelo

carcerário do século XIX” (PAVARINI, 2014, p. 39).

Até o século XIX, portanto, a instituição carcerária foi o instrumento para

disciplinamento e controle da massa pauperizada para reformá-la com a finalidade de

possibilitar o reforço da mão de obra para o capitalismo nascente e, posteriormente, para as

duas revoluções industriais verificadas. Cárcere e fábrica, portanto, como demonstram Dario

Melossi e Massimo Pavarini, imiscuem-se, na medida em que “[...] a primeira representa o

sistema de punição correspondente ao sistema de produção do qual a segunda é o expoente

115

máximo” (PAVARINI, 2014). “A história da pena deverá, por conseguinte, tornar-se uma

história econômica e social dos aparelhos repressivos que se constituem como aparelhos

reguladores das relações de classe” (DE GIORGI, 2013, p. 38).

De semelhante modo, historiando o surgimento das prisões, Rushe e Kirchheimer

(2004, p. 19) esquadrinham a relação citada em Punição e Estrutura Social, lecionando que

“[...] a pena como tal não existe; existem somente sistemas de punição concretos e práticas

penais específicas”. Assim, referindo-se especificamente ao cárcere, aduzem a ideia de que

“[...] de todas as motivações na nova ênfase ao encarceramento como método de punição, a

mais importante era o lucro, tanto no sentido restrito de fazer produtiva a própria instituição

quanto no sentido amplo de tornar todo o sistema penal parte do programa mercantilista do

Estado” (RUSHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 103).

Na passagem do século XIX para o XX, entretanto, os cárceres abandonaram suas

pretensões reformadoras para a produção capitalista (embora as legislações permaneçam

constando a “ressocialização” como objetivo), para se converterem em meros” [...] campos de

concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos

sociais” – como define Wacquant (2001, p. 11). De Giorgi (2013, p. 28), ao analisar as

tecnologias de controle do fim do século XIX e início do XX, identifica o segundo grande

internamento, que, consoante pensa, não cultiva nenhuma utopia de tipo disciplinar, “[...]

configurando-se como uma tentativa de definir um espaço de contenção, de traçar um

perímetro material ou imaterial em torno das populações que são “excedentes”, seja no plano

global ou na contextura metropolitana, em relação ao sistema de produção vigente”.

Alimenta-se, por outro lado, o que Christie (1993) denominou indústria de controle do

delito, preparada para enfrentar a distribuição desigual da riqueza e do acesso ao trabalho, por

promover lucros e trabalho ao mesmo tempo em que produz controle sobre os perturbadores

do processo social, encontrando-se tal indústria em situação privilegiada, pois não sofre de

escassez de matéria prima (a oferta de delito parece ser infinita), nem de demanda pelos

serviços ligados à segurança, além de possibilitar um ambiente limpo, ao extrair os

indesejáveis do sistema social.

Bauman (2009, p. 22), por sua vez, vaticina que a exclusão atual tem toda a aparência

de definitiva e não resultado de uma momentânea e remediável má sorte, o que torna escassas

as possibilidades de reverter a transformação dos excluídos de hoje em classes perigosas.

116

Com efeito, as novas classes perigosas são aquelas incapazes de reintegração, não

assimiláveis, são supérfluas e excluídas de modo permanente, pois suas oportunidades de

redenção tendem a desaparecer (BAUMAN, 2009, p. 22-23).

Nesse sentido, verifica-se que as

[...] transformações históricas da pena representam não o resultado do progresso da sociedade, mas, pelo contrário, a evolução das estratégias repressivas com as quais a população rica sempre impôs sua própria ordem social à população pobre, para evitar ameaças a esta ordem proveniente dos despossuídos. (DE GIORGI, 2013, p. 38).

Como lembra Galeano (2010, p. 96), “[...] José Hernández, o poeta, havia comparado a

lei com a faca, que jamais ofende a quem a maneja”. Para o Escritor uruguaio, “[...] os

discursos oficiais invocam a lei como se regesse a todos, e não somente os inferiores e que

não podem eludí-la. Os delinquentes pobres são os vilões do filme; os delinquentes ricos

escrevem o roteiro e dirigem os atores” (GALEANO, 2010, p. 96).

Na opinião de De Giorgi (2013, p. 36), o Direito Penal, em uma sociedade capitalista,

não pode ser disposto a serviço de um “interesse geral”, pois se torna necessariamente a

expressão de um poder de classe. Como, de maneira contundente, entende Foucault (2007, p.

240),

Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão: pobres, os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados; e os forçados, se fossem bem nascidos, tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça.

O controle do desvio conforma, pois, uma elaboração social por meio da qual as classes

dominantes preservam as bases materiais da sua dominação, uma vez que as instituições de

controle não tratam a criminalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em

seu conjunto; ao contrário, contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de

produção capitalista, por meio da reprodução de um imaginário social que legitima a ordem

em curso (DE GIORGI, 2013, p. 36).

Essa conclusão é reforçada pela criminalização primária da pobreza (ver subseção

1.2.1), por meio da qual há uma superproteção da propriedade, ante uma frágil proteção de

outros bens jurídicos titularizados pela coletividade. Por outro lado, é indiscutível que os

crimes de maior lesividade social, pela sua amplitude e capacidade de atingir direitos

coletivos e difusos (como aqueles contra o sistema financeiro nacional, a Administração

Pública e o meio ambiente, por exemplo), são alcançados muito raramente pelo sistema penal,

117

enquanto toda a estrutura repressiva estatal volta-se à persecução de ofensas à propriedade

(ver dados estatísticos brasileiros na subseção 2.2 desta tese).

A atual quadra histórica, por sua vez, produz o próprio instrumento de seletividade

penal, caracterizada por uma política criminal atuarial, definida por Dieter (2013, p. 20) como

“[...] o uso preferencial da lógica atuarial na fundamentação teórica e prática dos processos

de criminalização secundária para fins de controle de grupos sociais considerados de alto

risco ou perigosos mediante incapacitação seletiva de seus membros”. Dieter (2013, p. 238)

chama tal política criminal de “criminologia do fim da história”, atribuindo a ela a

característica de não ter constrangimento em admitir a sua orientação classista, racista,

xenófoba, sexista ou moralista. Fácil é perceber o seu perfil seletivo direcionado aos

vulneráveis ao serem listados os critérios mais frequentemente contabilizados para um perfil

de alto risco:

a) sub ou desemprego;

b) raça;

c) nacionalidade;

d) uso ou dependência de drogas ilícitas;

e) baixa escolaridade;

f) pouca idade;

g) relações familiares conflituosas;

h) comportamento sexual desviante (DIETER, 2013, p. 238).

Em relação às pessoas portadoras de uma ou mais dessas características, agrega-se um

fator de risco mais elevado, o que significa um incremento do controle social, seja pelas

demais pessoas, seja pelo Estado, com uma probabilidade muito maior de criminalização,

guiada, portanto, por uma lógica que pretende ser securitária, mas que mal consegue esconder

o seu caráter seletivo.

2.2 A seletividade penal na história brasileira

Como analisado no capítulo anterior, a seletividade é uma característica congênita ao

sistema penal, que se manifesta, em maior ou menor medida, em todas as nações. É inegável,

entretanto, também, que tal fenômeno admite contornos ainda mais dramáticos quando a

população perseguida preferencialmente pelas instituições de controle representa a maior

parte de uma sociedade. Assim, em países periféricos, nos quais a desigualdade social é

118

abissal e a pobreza funciona como poderosa causa e efeito de violação de direitos humanos, a

seletividade penal produz chagas muito mais profundas. É exatamente a situação brasileira.

A atual crise da segurança pública, que tem no sistema carcerário um dos seus mais

importantes motores, é igualmente produto dos posicionamentos estatais que historicamente

se direcionaram para a repressão pura e simples, tendo como alvo setores socialmente

vulneráveis. Consoante anota Fausto (2014, p. 50), a estigmatização de camadas sociais

destituídas é um dado que percorre a história brasileira desde o período colonial. No mesmo

sentido é a percepção de Roig (2013, p. 15), para quem os processos de cominação, aplicação

e execução das penas no Brasil refletem historicamente a incessante busca de ordem,

disciplina e segurança sociais, em detrimento dos direitos mínimos dos presos, conferindo-se

caráter inexpugnável ao cárcere, por meio do obscurecimento da realidade intramuros e da

elaboração de um complexo normativo peculiar, de cunho autoritário e nulificante.

A linea directrix dessa atitude repressiva e direcionada pode ser encontrado na

constatação de Ribeiro (2006, p. 21), para quem as elites dirigentes (lusitanas, luso-brasileiras

e finalmente brasileiras) “[...] viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do alçamento

das classe oprimidas”. Assim, a “[...] brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a

predisposição autoritária do poder central, que não admitem qualquer alteração da ordem

vigente”, são boas expressões desse pânico (RIBEIRO, 2006, p.21). O risco sempre ocorrente

de convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade explica a preocupação obsessiva

que tiveram as classes dominantes pela manutenção da ordem durante toda a história

brasileira (RIBEIRO, 2006, p.22).

Desde o período colonial até os dias atuais, a história do Brasil é uma sucessão de

tentativas reprimidas de efetivação da liberdade, contidas por via de retrocessos autoritários,

ilustrados pelas sazonais experiências ditatoriais na República, que sucederam um extenso

período de concentração de poderes de caráter absolutista no Império, que, por sua vez,

herdou mais de três séculos de submissão colonizadora. As experiências democráticas

brasileiras são de curtíssima duração e, ainda assim, caracterizadas por profundas

desigualdades sociais, que inviabilizam a efetividade dos direitos, nota essencial de uma

verdadeira democracia.

119

2.2.1 O período colonial

A história da desigualdade brasileira (e da consequente seletividade penal) inicia-se com

a opressão da população nativa, considerada pelos colonizadores como composta de seres

destituídos de humanidade e, portanto, sujeitos à escravização20. A Metrópole Portuguesa,

atribuindo-se a condição de “descobridora” das terras brasileiras, impôs seu domínio sobre

tudo o que nela se encontrava, especialmente as pessoas, que foram subjugadas aos interesses

comerciais metropolitanos. Como percebe Ribeiro (2006, p. 65), os índios, desapossados de

suas terras, escravizados, foram também despojados de suas almas, pela conversão que

invadiu e avassalou a sua consciência, fazendo-os enxergar a si mesmos como seres

inferiores.

No início do período colonial, portanto, a seletividade foi identificada com um

tratamento diferenciado conferido conforme o destinatário do controle social: opressivo e com

finalidade de escravização sobre a população nativa e posteriormente aos seus descendentes

(ainda que miscigenados) e leniente com os patrícios portugueses. Identifica-se, portanto, uma

“[...] elite de senhores da terra e de mandantes civis e militares, montados sobre a massa de

uma subumanidade oprimida, a que não se reconhece nenhum direito” (RIBEIRO, 2006, p.

65).

Outro fator que contribuiu sobremaneira para a situação, conforme Victor Nunes Leal,

decorre da imperfeita legislação portuguesa de distribuição de atribuições dos funcionários

encarregados da polícia e da justiça (LEAL, 1997, p. 213). Ocorria, então, uma “[...]

acumulação de poderes administrativos, judiciais e de polícia nas mãos das mesmas

autoridades, dispostas em ordem hierárquica, nem sempre rigorosa”, o que perdurou ainda por

muito tempo, até meados do século XIX. Assim, os detentores da força política concentravam

igualmente o poder de persecução penal e de julgamento pelos crimes cometidos, fazendo

abater-se sobre a população mais pobre toda a carga punitiva estatal, não havendo instâncias a

recorrer para a proteção de direitos. À maioria da população, portanto, somente restava a

20 “Aqueles índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também tão semelhantes,

seriam eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus, à sua imagem e semelhança? Caíram na impiedade. Teriam salvação? Ficou logo evidente que eles careciam, mesmo, é de um rigoroso banho de lixívia em suas almas sujas de tanta abominação, como a antropofagia de comer seus inimigos em banquetes selvagens, a ruindade com que eram manipulados pelo demônio através de seus feiticeiros; a luxúria com que se amavam com a naturalidade de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada de qualquer produção mercantil” (RIBEIRO, 2006, p. 52-53).

120

submissão ao apadrinhamento ou ao paternalismo do potentado local, jamais responsabilizado

pelos crimes que cometia.

Impende destacar, ainda, que, no período colonial (precisamente na segunda metade do

século XVI), iniciou-se a escravidão de negros trazidos da África, representando, na definição

de Carvalho (2004 p. 19-20), o fator mais negativo para a cidadania brasileira, por “[...] em

todas as classes, em todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade”, que era escravista

de alto a baixo. Não são conhecidos com exatidão os números de negros trazidos para o

Brasil, mas até 1822 calcula-se em mais de 3 milhões (CARVALHO, 2004, p. 19).

Aqui chegando, os negros africanos passaram a ser tratados como bens dos senhores da

época, que deles se utilizavam para a realização dos mais diversos serviços, desde o trabalho

forçado nas grandes fazendas até a satisfação da sua lascívia. Compunham o patrimônio da

elite da época, vendo negada a sua condição de humanidade; ocupavam o posto de alvos

preferenciais do controle social formal e informal daque tempo, sendo submetidos às atrozes

condições de vida, bem como às mais cruéis punições, que não raro chegavam à morte como

resposta a demonstrações mais veementes de inconformismo com a condição subumana a que

eram submetidos.

Ribeiro (2006, p. 272) lembra como é bem documentado o pavor provocado pelas

expressões de insurgência dos pretos e pardos, que poderiam descambar para convulsões

sociais sangrentas, além de conduzirem a debates ou mesmo redefinições da ordem vigente,

com grave perigo a duas questões fundamentais: a propriedade fundiária e a escravidão.

Receava-se que ocorresse algo parecido com o que sucedeu no Haiti, onde os escravos se

rebeleram, proclamaram a independência e expulsaram a população branca (CARVALHO,

2004, p. 27).

Conforme noticia Costa (2007, p. 295), o medo de insurreições apavorou a sociedade

durante todo o período da escravidão, gerando medidas severas, mobilização de tropas, prisão

e punição severa de suspeitos, reforço das medidas de segurança pela legislação, proibição de

ajuntamento de escravos em portas de vendas e proximidades de chafarizes, toque de recolher

de escravos e interdição de acesso destes a tavernas. Era uma preocupação que se assentava,

portanto, no medo da rebeldia dos escravos (RIBEIRO, 2006 p. 22). “Dada a coloração escura

das camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que

ameaçam eclodir com violência assustadora” (RIBEIRO, 2006, p. 22).

121

A rotina atroz dos negros escravos é uma crua manifestação de um tratamento penal

seletivo e somente aplicável a essas pessoas:

Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso. (RIBEIRO, 2006, p. 107-108).

Na época colonial surgiram os capitães-do-mato, que eram remunerados para a captura

de negros escravos fugidos e cuja profissão foi legalizada por um regimento em 1724,

chegando até a publicar nos jornais anúncios oferecendo seus serviços, em busca das vultosas

remunerações oferecidas pelos proprietários (COSTA, 2007, p. 297). Espelhava mais um

robusto indício da legitimação do poder privado para a imposição de castigo e aceitação da

crua persecução, fundadas no tratamento profundamente discriminatório e desigual, destinado

exclusivamente à parcela da população submetida ao flagelo da escravidão.

De fato, os escravos não possuíam o atributo da cidadania, encontrando-se destituídos

dos direitos civis mais básicos, como integridade física, liberdade e até mesmo a vida, haja

vista que a legislação da época os equiparava a animais, meras propriedades dos senhores

(CARVALHO, 2004, p. 21). Estes, por sua vez, absorviam parte das funções que deveriam

ser estatais, principalmente as judiciárias, que se tornavam simples instrumentos do poder

pessoal (CARVALHO, 2004). “O poder do governo terminava na porteira das grandes

fazendas”, não podendo, pois, ser considerado um poder verdadeiramente público que

pudesse ser a garantia de igualdade perante a lei ou de garantia dos direitos civis

(CARVALHO, 2004, p. 21-22).

Mesmo com a proibição do tráfico de escravos em 1831, este prosseguiu ainda por

muitas décadas, fundado na decantada inferioridade racial dos negros e no direito de

propriedade sobre eles, bem como no poder incontrastável das oligarquias, que detinham o

poder político e administrativo das localidades. Como anota Costa (2007, p. 284-285)

Quando algum potentado local era indiciado em processo de contrabando de escravo – o que era raro -, não se encontrava quem depusesse contra ele. Apesar de todas as evidências, era absolvido pelo júri. O zelo de uns poucos funcionários esbarrava na oposição das oligarquias. A justiça manejada por elas não chegava nem a ameaçar seus interesses. Na maioria das vezes, os membros da justiça estavam ligados por laços de família, amizade ou conveniência aos grupos locais dominantes. Mesmo quando isso não acontecia, não dispunham eles de independência para julgar.

122

A escravidão, de fato, foi uma instituição longeva, atravessando todo o período colonial

e somente declinando com os estertores da quadra imperial. Suas marcas na formação

brasileira são indeléveis, representando relevante fator para se compreender o fenômeno de

estigmatização e seletividade direcionado às classes mais depauperadas, ao qual se agrega

indisfarçável componente racial.

2.2.2 O período imperial

A seletividade penal, portanto, se manteve como uma marca também do Império

brasileiro. Os grandes senhores estavam acima da lei, principalmente porque as ditavam e,

ainda, quando a encontravam em evidente confronto com a sua letra, seguiam inalcançados

pelo poder punitivo estatal que, por outro lado, se abatia ferozmente sobre a grande massa de

escravos e homens livres sem posses, ambos os estratos completamente sujeitos ao jugo dos

senhores. Como identificou Costa (2007, p. 295),

A representação do crime e da culpabilidade era inconscientemente deformada pelos estereótipos vigentes. Via-se o escravo como culposo permanente. O senhor, aos olhos do júri, parecia sempre ter razão. Se a legislação era pouco eficaz na defesa do escravo, revelava-se atuante na defesa dos interesses senhoriais.

O passado escravista e a miscigenação de raças verificados em solo brasileiro

produziram, nas palavras de Ribeiro (2006, p. 163), “[...] uma classe dominante de caráter

consular-gerencial, socialmente irresponsável, frente a um povo-massa tratado como

escravaria, que produz o que não consome e só se exerce culturalmente como uma marginália,

fora da civilização letrada em que está imersa”. Forjou-se uma discriminação racial que, para

Costa (2007, p. 293), “[...] tinha como função manter instransponíveis as distâncias sociais

que separavam um mundo de privilégios e direitos de um mundo de obrigações e deveres”.

As atuais classes dominantes brasileiras guardam, em relação ao negro, a mesma atitude

de desprezo vil, enxergando nele (e no branco pobre) o sinônimo de preguiça, ignorância e

criminalidade inata e inelutável, tido consensualmente como culpado de suas desgraças,

decorrentes de sua raça e não como resultado da escravidão e da opressão (RIBEIRO, 2006, p.

204). Até hoje a população negra ocupa posição inferior em todos os indicadores de qualidade

de vida, sendo a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados,

os menores salários, os piores índices de ascensão social (CARVALHO, 2004, p. 52) e,

repise-se, os principais alvos do poder punitivo estatal. Toda essa situação é acobertada por

afirmações sobre “[...] a suavidade do sistema escravista no Brasil ou sobre a atitude

123

paternalista dos fazendeiros, os retratos do escravo fiel e do senhor benevolente, que

acabaram fixando-se na literatura e na história”, não passando de “[...] mitos forjados pela

sociedade escravista para defesa de um sistema que julgava imprescindível” (COSTA, 2007,

294).

O período colonial legou, portanto, um sistema penal privatístico e corporal, marcado

pelas punições públicas de senhores sobre seus escravos e pela subsistência das penas de

morte na forca, galés, desterro e degredo, bem como de trabalhos forçados, além de prisões

precariamente adptadas em ilhas, fortalezas, quartéis e navios, bem assim as prisões

eclesiásticas, em conventos (ROIG, 2013, p. 28-29). É possível perceber que os castigos

impostos a eles funcionam como modelos implantados nas prisões da República sob a forma

de sanções disciplinares e reverberam no tratamento atualmente conferido aos presos,

considerados seres de segunda categoria, cujos direitos são simplesmente desconsiderados.

A independência brasileira em relação à Metrópole Lusitana não representou uma

ruptura em relação às estruturas sociais de então. A mesma elite dominante permaneceu no

comando dos destinos do País, gravitando, então, à órbita de um reinado português

estabelecido no Brasil, pronto a submeter-se aos interesses da nova potência hegemônica da

época: a Inglaterra. “A principal característica política da independência brasileira foi a

negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura

mediadora o príncipe D. Pedro” (CARVALHO, 2004, p. 26). Como identifica Ribeiro (2006,

p. 230), o Estado continuou estruturado como “[...] uma máquina político-administrativa de

repressão, destinada a manter a antiga ordenação, operando nas mesmas linhas a serviço da

velha elite”. e “[...] muito poucas alterações afetam a vida da massa assalariada que

permanece atada às plantações e submetida ao mando imediato dos capatazes”

(RIBEIRO,2006, 276).

De igual modo, se posiciona Carvalho (2004, p. 18), para quem os portugueses legaram

um país dotado de unidade territorial, linguística, cultural e religiosa, mas com uma “[...]

analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um

Estado absolutista”, não havendo, pois cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira. A classe

desfavorecida, composta fundamentalmente de escravos, “brasilíndios”21 e negros forros,

prossegiu sendo sufocada por intervenções criminalizantes sobre suas intenções libertárias,

21 Expressão adotada por Darcy Ribeiro para identificar os brasileiros nascidos da miscigenação (muitas vezes

forçada) entre brancos e índias (2006).

124

duramente reprimidas pelo regime imperial, essencialmente centralizador politicamente,

escravocrata e socialmente excludente. Os escravos, nessa perspectiva, são identificados por

Ribeiro (2006, p. 252) como a “[...] única força oposta ao sistema que, exercendo uma ação

subversiva constante, exigia a reação permanente de um aparato repressivo”.

É de se destacar, ainda, na configuração da sociedade imperial brasileira, o poder do

senhor de engenho, principalmente na quadra histórica de predomínio da produção açucareira

que sustentou economicamente o regime, quando sua autoridade era superior à alcançada pela

própria nobreza no período colonial, não deixando condição alguma para reivindicações

contrárias à sua vontade (RIBEIRO, 2006, p. 258). Assim, “[...] no seu domínio, o senhor de

engenho era o amo e o pai, de cuja vontade e benevolência dependiam todos, já que nenhuma

autoridade política ou religiosa existia que não fosse influenciada por ele” (RIBEIRO, 2006,

p. 258).

Desse modo, mesmo suas condutas que configurassem crimes na legislação da época

eram simplesmente ignoradas quando tinham por alvo os vulneráveis. O poder punitivo do

Estado, portanto, quase sempre não representava limite à sua atuação, a não ser que esta fosse

antagônica a outro senhor de engenho ou à estrutura político-administrativa do Império. Por

outro lado, a sujeição dos mais débeis era tamanha que suas condutas restavam criminalizadas

independentemente de previsão legal, principalmente se eram escravos, quando o poder

punitivo poderia ser personificado e exercido (e muito frequentemente o era) pelo senhor de

engenho, com o beneplácito estatal.

Karasch (2000, p. 178) identifica situações nas quais algumas prisões recebiam escravos

encaminhados por seus donos em razão de faltas e que poderiam ser abandonados para o resto

de suas vidas, caso seus senhores nunca anunciassem a sua libertação e, por outro lado, o

governo não tinha como perdoá-los, pois não tinham sido condenados por nenhum crime,

permanecendo, pois, presos. Nesse momento histórico “[...] o poder público ainda se

reportava ao senhor para fins de graduação das punições” (ROIG, 2013, p. 32) e o Código

Criminal de 1830 estabelecia em seu art. 60:

Se o reo fôr escravo, e incorrer em pena que não seja capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e, depois de os sofrer, será entregue ao seu senhor, que se obrigará a traze-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar. O numero de açoutes será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta. (BRASIL, 1830).

125

Tal disposição legal representa uma das muitas manifestações de criminalização

primária que tinham por alvo específico os escravos, tratados, pois, na oportunidade, de

maneira subumana. Mesmo a parte final do dispositivo legal, que traz uma aparência de

tratamento humanitário, por limitar o número de chibatadas por dia a que poderia ser

submetido o escravo, tinha, na realidade, a pretensão de evitar a sua incapacitação para o

trabalho, o que representaria um grande prejuízo para o seu proprietário.

As agitações sociais da primeira metade do século XIX e o enorme temor de uma

insurreição escrava fizeram nascer “[...] um modelo penal policialesco e disciplinatório, capaz

de vigiar determinados segmentos da sociedade, de subjugar a população cativa e de reforçar

o regresso conservador” (ROIG, 2013, p. 36). Havia no Código Criminal de 1830, por

exemplo, a previsão do crime de insurreição, assim redigido: “Art. 113. Julgar-se-ha

commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por

meio da força. Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio;

e por quinze annos no minimo; - aos mais – açoutes” (BRASIL, 1830).

Para Ribeiro (2006, p. 262), “[...] a senhoralidade do patronato açucareiro lembra, em

muitos aspectos, a da aristocracia feudal, pelos poderes equivalentes que alcança sobre a

população que vivia em seus domínios, pelo exercício da judicatura e pela centralização

pessoal do mando”. “Nas fazendas, imperava a lei do coronel, criada por ele, executada por

ele” (CARVALHO, 2004, p. 56). A lei tornava-se, portanto, “[...] apenas instrumento de

castigo, arma contra os inimigos, algo a ser usado em benefício próprio” (CARVALHO,

2004, p. 57).

Os direitos civis simplesmente inexistiam para a população escrava e, para os que eram

livres, mas não ocupavam posição de mando, somente tinham efetividade quando se

coadunando com o poder privado. Vivia-se sob o pálio do coronelismo, retratado por Leal

(1997, p. 84), que assevera:

O Rei, muitas vezes, era ou se mostrava impotente para deter o mandonismo desses potentados, que dominavam câmaras e, por meio delas, todo o espaço territorial compreendido em sua jurisdição. A massa da população – composta em sua maioria de escravos e dos trabalhadores chamados livres, cuja situação era de inteira dependência da nobreza fundiária – também nada podia contra esse poderio provado, ante o qual se detinha, por vezes, a própria soberania da Coroa.

126

No “Brasil sertanejo”22, por sua vez, as pessoas do sertão eram obrigadas a conviver

com o poder despótico do seu patronato, temerosas de que qualquer atitude os tornasse

malvistos e desgarrados, sem patrão e senhor que os protegesse do arbítrio do policial, do juiz,

do cobrador de impostos, do agente de recrutamento militar, o que seria equivalente a “[...]

mergulhar na terra de ninguém, na condição dos fora-da-lei” (RIBEIRO, 2006, p. 316). Os

vulneráveis do sertão, portanto, viam-se “[...] ilhados no mar do latifúndio pastoril dominado

por donos todo-poderosos, únicos agentes do poder público”, submetidos a uma condição

paradoxal de ter como única saída “libertarem-se da opressão em que vivem, seja emigrando

para outras terras, seja caindo no banditismo” (RIBEIRO, 2006, p. 316)23.

A situação repete-se no “Brasil caipira”, no qual o Estado ingressa como “[...] agente da

camada proprietária e representa para ele, essencialmente, uma nova sujeição” (RIBEIRO,

2006, p. 349). Os pobres da região de São Paulo, então, igualmente precisavam situar-se sob a

proteção de um senhorio que tivesse voz perante o poder, para escapar de suas arbitrariedades,

sob pena de o sujeito ver-se “[...] desgarrado, sem um senhor poderoso que se interponha, se

necessário, entre ele e essa ordem impessoal, antipopular, todo-poderosa, que avança sobre o

seu mundo” (RIBEIRO, 2006, 349).

Isso porque todo o aparato da cidade colocava-se a serviço da concentração e proteção

da propriedade, por meio do suborno de juízes e recrutamento de forças policiais pelos

grileiros, com a finalidade de perseguir e desalojar famílias caipiras, consideradas invasoras

das terras nas quais sempre viveram, mas cuja exploração comercial tornou-se viável

(RIBEIRO, 2006, p. 163). Conforme se reporta Sadanha (2001, p. 142), “[...] gerações e mais

gerações de brasileiros se habituaram a conviver numa estrutura social em que se repetia e

mantinha o costume imemorial do domínio dos outros homens pela posse da terra”.

Quanto ao funcionamento das instituições, assevera Leal (1997, p. 224) que a

organização policial no Império foi deplorável e esteve sempre dominada pelo espírito

partidário, ao passo que a organização judiciária se encontrava carcomida pela corrupção da

22 Zona territorial demarcada por Darcy Ribeiro: “Para além da faixa nordestina das terras frescas e férteis do

massapé, com rica cobertura florestal, onde se implantaram os engenhos de açúcar, desdobram-se as terras de uma outra área. Começam pela orla descontínua ainda úmida do agreste e prosseguem com enormes extensões semi-áridas das caatingas. Mais além, penetrando já o Brasil Central, se elevam em planalto como campos cerrados que se estendem por milhares de léguas quadradas”. (RIBEIRO, 2006, p. 306).

23 Darcy Ribeiro, inclusive, explica o surgimento do cangaço a partir da “[...] revolta sertaneja contra as injustiças do mundo” (2006, p. 320). Obviamente, é um fenômeno bastante controverso, principalmente pela enorme ferocidade e crueldade de seus métodos. Exprime-se, entretanto, como saída dos sertanejos para as relações opressivas promovidas pelo Estado e pelos fazendeiros e senhores de engenho.

127

magistratura, em razão de suas vinculações políticas. Por esse pretexto, havia intensa

movimentação dos grandes proprietários para manter-se no controle das instituições públicas,

seja diretamente, seja por indicação dos seus servidores, o que se conseguia à custa da

manutenção de enormes “currais” eleitorais e fraudes, possibilitados pelo exercício de um

poder praticamente ilimitado.

Quanto ao complexo de normas disciplinares carcerárias do Império, estas são marcadas

pelo vigilantismo (panoptismo), pela distribuição de punições conforme a condição social do

apenado, pela notória discriminação entre presos escravos (cuja pena tinha caráter nitidamente

aflitivo, retributivo) e “comuns” (aos quais se aplicava o modelo ressocializante, voltado à

regeneração da pessoa), encarnando a contradição, pulsante à época, entre liberalismo e

escravidão (ROIG, 2013). No Regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro, de 1850,

em seu art. 36, por exemplo, constava absoluto impedimento de inflição de castigos corporais

aos presos que não fossem escravos, sendo igualmente vedada a imposição de ferros (ROIG,

2013, p. 64).

O final do período imperial (segunda metade do século XIX) caracteriza-se pelo

surgimento de grandes contingentes de homens negros, escravos e libertos, bem como de

imigrantes, nas cidades brasileiras, o que produzirá um mercado de trabalho, no futuro

período republicano, constituído sob o medo das massas negras e do movimento operário

internacional, possibilitando que o temor à insurreição seja mais sólido do que a própria

perspectiva de revoltas (BATISTA, 2003, p. 39). Assim são delineados os grupos sociais que

serão alvos do controle social na nascente República.

2.2.3 O período republicano

O advento da República, na visão de Saldanha (2001, p. 252), “[...] foi um processo

principalmente político: faltou-lhe dimensão social. E isto se observa tanto na fase da

propaganda, quanto na da instauração institucional”. Permaneceu o tratamento desigual

conferido às camadas desfavorecidas da sociedade, que continuaram sendo alvo do controle

social e da estigmatização. O governo agia, nas relações entre patrões e empregados, exempli

gratia, por intermédio da polícia, que não tinha uma atuação que pudesse ser chamada de

equilibrada, como deixaram claras as leis de expulsão de operários estrangeiros acusados de

anarquismo e agitação política (CARVALHO, 2004, p. 62-63). Conforme noticia Costa

(2007, p. 492), “[...] as condições de vida dos trabalhadores rurais continuaram as mesmas;

128

permaneceram o sistema de produção e o caráter colonial da economia, a dependência em

relação aos mercados e capitais estrangeiros”.

Roig (2013, p. 100), após identificar a superação do sistema escravista, que

imediatamente antecedeu a República, reproduz o rol de segmentos sociais que passam a ser

selecionados pelo sistema penal:

A Primeira República notabilizou-se pelo vigilantismo, pela repressão de movimentos anarquistas, comunistas e sindicalistas, pela coerção da vadiagem e da mendicância, pela regulação da condição jurídica dos estrangeiros, pela contenção dos ex-cativos e pelo recorrente apelo às medidas de ordem proscritiva e institucionalizante, tudo isso legitimado pelos discursos do positivismo criminológico e do higienismo social.

No mesmo sentido, prefaciando a obra de Batista (2003, p. 32), leciona Alessandro

Baratta, para quem a criminalização da pobreza no Brasil “[...] permaneceu como uma espécie

de compensação à perda de propriedade sobre os escravos e como uma forma de manutenção

da autoridade dos proprietários sobre os libertos e seus filhos”. Dessa maneira, punição,

tortura e destruição dos descendentes dos escravos prosseguem como a reafirmação simbólica

de um tipo de propriedade sobre eles, que permitiu as mesmas condutas em relação aos seus

ascendentes, enfatizando a sua diversidade e combatendo uma suposta tendência natural à

insubordinação (BARATTA, p. 32-33).

A abolição da escravatura, de efeito, não alterou as condições de vida da população

negra. De fato, resultou muito mais da inadequação da escravidão aos novos tempos do que de

um desejo de emancipação dos escravos, que foram deixados à própria sorte, sem qualquer

preocupação com a sua integração na sociedade de classes (COSTA, 2007, p. 343). “Suas

dificuldades de ajustamento às novas condições foram encaradas como prova de incapacidade

do negro e de sua inferioridade racial” (COSTA, 2007, p. 343). Ademais, “[...] o esquema de

vida a que estavam habituados dificultavam-lhes a adaptação ao trabalho livre”, promovendo

o desenvolvimento de “formas de comportamento típicas do marginalismo” (COSTA, 2007,

p. 343). Estavam lançadas as bases para a constituição de uma chaga que representa, como a

escravidão de antanho, “[...] o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade

democrática”: a desigualdade social (CARVALHO, 2004, p. 229).

Sobre a organização policial no período republicano, Leal (1997, p. 224-225) identifica

a manutenção da polícia partidária, cujas raízes são imperiais, em decorrência da adoção da

livre nomeação dos chefes de polícia, delegados e subdelegados, sendo utilizada como

129

instrumento habitual de ação política. “Durante a Primeira República, a organização policial

foi um dos mais sólidos sustentáculos do ‘coronelismo’ e, ainda hoje, em menores

proporções, continua a desempenhar essa missão” (LEAL, 1997, p. 226).

A polícia construía bancos de dados de criminosos habituais ou reincidentes para

possibilitar novas prisões e condenações, policializando, obviamente, de maneira mais intensa

os grupos sociais em situação precária: anarquistas, ex-excravos, trabalhadores ocasionais,

bêbados e prostitutas, atuando, ademais, de maneira mais detida em certos bairros (SOUZA,

2006, p. 67). Apresentando números do total de detenções realizadas no ano de 1889 em São

Paulo, Souza (2006, p. 69) conclui que três quartos dessas prisões se referiam a estratégias de

controle social, permitindo a construção de uma rede de vigilância sobre as pessoas que caíam

na malha da polícia. O trabalho policial representava, então, “[...] uma forma de justiça rápida

e desigual para grande parcela da população”, funcionando como “agenciadora dos estigmas

socialmente implantados” (SOUZA, 2006, p. 79-80).

A organização judiciária da Primeira República, por sua vez, favoreceu enormemente

“[...] os planos de dominação do situacionismo estadual, refletindo-se, diretamente, no

mecanismo ‘coronelista’” (LEAL, 1997, p. 229). Isso porque a Constituição, ao estabelecer as

garantias dos membros do Judiciário, apenas mencionou a Justiça Federal, possibilitando que

muitos estados, em interpretação restritiva, estabelecessem limitações aos direitos de seus

juízes (LEAL, 1997, p. 227), o que certamente comprometeu sobremaneira a sua

independência funcional. Os membros do Ministério Público, por sua vez, eram de livre

nomeação e exoneração, sendo utilizados, portanto, como “ferramentas” para a ação político-

partidária (LEAL, 1997, p. 229), obviamente sempre a favor dos interesses políticos e

econômicos dominantes, mormente ligados à persecução de crimes de caráter patrimonial e

contrários à ordem estabelecida.

Souza (2006, p. 60) identifica o fato de que a manutenção da ordem social republicana

no período de 1889 a 1930 ocorria em torno do combate, como objetos preferenciais da ação

da polícia, dos pequenos atos de insubordinação, como, por exemplo, andar à noite em lugares

ermos; parar no meio da rua, atrapalhando o trânsito de pedestres; atentados à moral, vida e

propriedade; cultos afro-brasileiros e sessões de curandeirismo; aliciamento de trabalhadores

para greves; vadiagem; atentado ao pudor; jogo do bicho; embriaguez e exploração da

prostituição. Por outro lado, demonstrativos da existência de um “[...] funil no sistema de

justiça criminal, identifica que o estelionato, o abuso de autoridade e o uso inadequado de

130

recursos públicos, embora tipificados, aparecem em pequeno número nas estatísticas

criminais do período” (SOUZA, 2006, p. 60).

O Código Penal de 1890, sob os influxos (embora tardios) do Iluminismo, buscou

romper com práticas punitivas do Império, consideradas arcaicas e degradantes, extirpando as

penas de morte, de galés, de açoites e perpétua, e estabelecendo para quase todos os delitos a

pena de prisão celular com trabalho obrigatório, em formato progressivo, mas continuava

decorrendo da rígida estratificação da sociedade brasileira, além de não afetar a verdadeira

essência do sistema penal, tendente a alcançar determinados segmentos sociais indesejados

(ROIG, 2013, p. 79-80).

O pensamento criminológico dominante na nascente República brasileira, do mesmo

modo, gravitava à órbita da poderosa influência do positivismo que, nessa área de

pensamento, era orientado pela obra de Cesare Lombroso, O Homem Delinquente, de 1876.

Salo de Carvalho atribui a Clóvis Bevilácqua o papel de introduzir a nova Ciência do Direito

no Brasil, com a obra Criminologia, de 1896, mas confere ao maranhense Raymundo Nina

Rodrigues o epíteto de principal divulgador da Escola Positiva no Brasil, sustentando a

necessidade de impor freios à miscigenação racial, temendo-se um processo de degeneração

social (CARVALHO, 2008, p. 63). A fim de verificar o caráter seletivo da análise, é

importante a transcrição de partes da obra do cearense Bevilácqua há pouco citada, mais

especificamente do capítulo intitulado “Confrontos ethnicos e históricos”, extraídas de edição

de 1983, que manteve a configuração original:

O que se póde affirmar é que o cruzamento das duas raças inferiores é mais productivo em seres inquinados pelo estigma da delituosidade do que a mestiçagem de qualquer dellas com a raça branca [...] vê-se que os descendentes mais directos dos europeus contribuíram com uma fraca parcella da criminalidade, si compararmo-la com a dos descendentes mais directos das tribos africanas e americanas [...] Quando o preto se combina com o branco (mulato), a inclinação criminosa baixa; mais, si há um retorno à fonte negra (cabra), se realça aquela inclinação [...] As conclusões que se podem tirar destas ponderações resumem-se no seguinte: as duas raças inferiores contribuem muito mais poderosamente para a criminalidade do que os aryanos. (BEVILÁQUA, 1983, p. 93-94).

A análise de Bevilácqua centrava-se sobre 232 pessoas envolvidas em processos

criminais da época que, como já demonstrado, continham em seus autos, invariavelmente, as

parcelas desfavorecidas da população. Ora, disso somente poderia resultar uma sobre-

representação de negros, índios e seus descendentes entre os considerados criminosos da

época. Não porque somente eles cometessem mais ilícitos, mas porque algumas das suas

condutas eram preconceituosamente criminalizadas pela legislação e o sistema judiciário,

131

ambos orientados para a manutenção dos privilégios e posição das classes dominantes. Por

outro lado, a investigação criminológica era baseada em critérios biológicos, sendo

desconhecido o viés crítico que posteriormente adquiriria a criminologia.

O médico Nina Rodrigues (2011, p. 76), cujo pensamento criminológico predominou

amplamante no período, deixa claras as suas pretensões eugênicas na sua principal obra As

raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, ao defender o argumento segundo o

qual,

Em tal país, o gérmen da criminalidade – fecundado pela tendência degenerativa do mestiçamento, pela impulsividade dominante das raças inferiores, ainda marcadas do estigma infamante da escravidão recentemente extinta, pela consciência geral, prestes a formar-se, da inconsistência das doutrinas penes fundadas no livre arbítrio –, semeado em solo tão fértil e cuidadosamente amanhado, há de por força vir a produzir o crime em vegetação luxuriante, tropical verdadeiramente (RODRIGUES, 2011, p. 76).

Referindo-se à fixação da idade de responsabilidade penal, ensinou que “[...] não há,

portanto, maior contrassenso do que pedir, em nome das nossas raças inferiores e da

inferioridade da nossa cultura mental, que nos códigos penais brasileiros se marque a

menoridade um prazo maior do que o aceito para as raças europeias” (RODRIGUES, 2011, p.

80). Defendeu ainda o ponto de vista conforme o qual o Brasil deveria ter pelo menos quatro

códigos penais distintos, pois as desigualdades de prevalência de determinadas raças no

território brasileiro impediam a vigência de legislação singular. Sobre o assunto verberou: “Se

em rigor o Pará e o Amazonas se podem reger pelo mesmo código penal, é intuitivo, no

entanto, que esse código não deve servir à Bahia e muito menos ao Rio Grande do Sul”

(RODRIGUES, 2011, p. 92).

Alvarez (2006, p. 141), diante do quadro apresentado, ensina que a Criminologia no

Brasil “[...] será vista pelas elites como um instrumento essencial para a viabilização dos

mecanismos de controle social necessários à contenção da criminalidade” e, na Primeira

República, [...] “não permanecerá apenas como como uma retórica cientificista sobre o crime,

mas influenciará de modo concreto aspectos das políticas criminais” (RODRIGUES, 2011, p.

142). De fato, como ensina Carvalho (2014, p. 136), a formulação do tipo ideal de criminoso

pelo positivismo criminológico foi o marco teórico de definição de metanormas que

direcionam a ação de policiais, promotores de justiça, juízes e agentes penitenciários, o que

explica como os estereótipos criminais não apenas modelam o agir desses profissionais, seja

132

no momento da persecução, seja no direcionamento do raciocínio judicial, quando da eleição

das inúmeras variáveis entre os extremos absolvição e condenação à pena máxima.

Do ponto de vista legislativo, é possível perceber na nascente República fortes traços de

criminalização primária. O Código Penal, estabelecido pelo Decreto 847 de 11 de outubro de

1890 (BRASIL, 1890), continha, por exemplo, o livro das contravenções penais, que dedicou

seu capítulo XII para tratar “Dos mendigos e ébrios”. Assim, o art. 391 prescrevia:

“Mendigar, tendo saúde e aptidão para trabalhar. Pena – de prizão cellular por 8 a 30 dias.”

(BRASIL, 1890). Já o 392 estabelecia: “Mendigar, sendo inhabil, para trabalhar, nos logares

onde existem hospicios e asylos para mendigos. Pena – de prizão celular por 5 a 15 dias”.

(BRASIL, 1890). A doutrina da época reforça o tom discriminatório da legislação, como se

verifica das palavras de um comentarista do Código Penal, Oscar de Macedo Soares, cuja

edição da obra, de 1910, foi publicada em fac-simile, em razão de seu valor histórico, pelo

Senado Federal em 2004:

Louis Paulian, no seu interessante livro Paris qui mendie, lês vraiset lês faux pauvres, mal et remede, demonstra que a mendicidade, em Paris como em todos os centros populosos, constitue uma profissão a que se entrega certa classe de gente da peor espécie. Elle mostra como o mendicidade (sic) profissional se prepara: a entrada na carreira pela aprendizagem, os primeiros passos do officio, a especializasão, o serviço activo e o sedentário. (SOARES, 2004, p. 761).

Por sua vez, O Capítulo XIII do Código Penal de 1890 ocupava-se dos “Vadios e

capoeiras” (BRASIL, 1890), estabelecendo em seu art. 399:

Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes. Pena – de prizão celular por 15 a 30 dias. (BRASIL, 1890).

Nesse caso, o “vadio, ou vagabundo”, conforme o §1º, era obrigado a assinar termo de

tomar ocupação dentro de 15 dias, a partir da data do cumprimento da pena (BRASIL, 1890).

Já o art. 400 estabelecia que: “Si o termo for quebrado, o que importará reincidência, o

infractor será recolhido por hum a tres annos a colônias penaes, que se fundarem em ilhas

marítimas, ou nas fronteiras do território nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os

presidios militares existentes” (BRASIL, 1890). Notória e reprovável aqui a crueldade da

sanção para o caso de a pessoa não obter ocupação lícita dentro do prazo fixado de 15 dias.

Tal exigência equivale a impor ao apenado submeter-se a qualquer tipo de ofício, o que

implica dizer: ocupar a posição a ele destinada pelo sistema capitalista, de mão de obra

133

similar à escrava. Assim, esses “indesejáveis sociais” que, em muitos casos, se negavam a

assumir tal papel, eram por isso inconvenientes à sociedade da época e, ao mesmo tempo,

representavam um estorvo à paisagem da cidade. Assim, a sua recalcitrância era punida com

uma segregação muito mais severa, em ilhas marítimas ou nas fronteiras nacionais, bem

distantes, portanto, dos olhos das demais pessoas, nomeadamente os pertencentes às classes

sociais prósperas. Comentando referidos dispositivos legais, Soares (2004, p.766), com as

lentes da época, ensina:

A vadiagem é, como diz Silva Ferrão, menos um facto criminoso em si mesmo do que um modo de existência social perigoso que o legislador quiz reprimir. E' mais um acto preparatorio ou de predisposição de- crime, que mesmo tentativa maléfica, porque o ser vadio não constitue nem começo de crime, ou habito de fazer mal. Mas a lei penal presume aqui a grande possibilidade e probabilidade dessa conseqüência, e seu caracter e fim é portanto eminentemente preventivo e correcional.

A legislação, refletindo o sentimento da época (embora ainda bem atuante hoje),

presumia que a pessoa sem ocupação lícita, sem condições de subsistência, estava predisposta

às práticas criminosas. Se resta alguma dúvida de que a norma se dirigia estritamente aos

pobres, Oscar de Macedo Soares trata de esclarecer ao doutrinar que “O parasitismo social ou

simples, como diz João Vieira, o parasitismo dos ricos, dos doentes, dos inaptos, dos

desoccupados sem culpa própria, não pode ser punido” (SOARES, 2004, p. 766). (Grifou-se).

O art. 401 do primeiro Código Penal da República, de acordo com Fausto (2014, p. 46),

constitui um claro exemplo de criminalização de um comportamento com o propósito de

reprimir uma camada social específica, discriminada pela cor. Consoante Fausto (2014, p. 46),

a preocupação com a “capoeiragem” está ligada a uma conjuntura histórica e, em particular, a

uma cidade – o Rio de Janeiro, no período imediatamente posterior à Abolição. De fato, o

citado decreto estabelece:

Fazer nas ruas e praças publicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecido pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena — de prizão cellular por dois a seis mezes. (BRASIL, 1890).

A reincidência aqui importa em uma pena de três anos de recolhimento a colônias

penais, que se fundaram em ilhas marítimas, ou nas fronteiras do Brasil, podendo para esse

fim serem aproveitados os presídios militares, nos termos do art. 403 do diploma legal em

comento (BRASIL, 1890). O novo tipo penal foi aplaudido pelos doutrinadores da época.

134

Soares (2004, p.776) assinalou que “[...] o novo Código andou bem avisado

constituindo a figura especial da capoeiragem em contravenção punível, ainda que dos

exercicios não resultem offensas physicas ou mortes”.

Avulta como importante nessa situação é o fato de que não há no Código Penal de 1890

qualquer outra previsão de figura delituosa referente à perturbação da ordem, restando apenas

a que se realize pelo exercício de capoeira, em manifesta atitude preconceituosa em relação a

práticas realizadas quase que exclusivamente por negros, recém-libertos da escravidão oficial,

mas ainda excluídos do exercício da cidadania e atados aos grilhões da pobreza. De igual

modo, a utilização das primeiras referências aos “vadios” e “vagabundos” direcionou-se à

massa excluída do novo mercado de trabalho (BATISTA, 2003, p. 59).

As informações referentes às pessoas presas na cidade de 1904 a 1916 mostram que

negros e mulatos eram presos em proporção mais de duas vezes superior à parcela que

representam na população, constituindo em média 28,5% do total de presos, enquanto

representavam em torno de 10% dos habitantes de São Paulo, no mesmo período (FAUSTO,

2014, p. 63-64).

Fausto (2014, p. 105) oferece um quadro de prisões de acordo com as profissões, no

período de 1907-1916 e constata o seguinte: jornaleiros urbanos: 32,1%; sem profissão: 31%;

artesãos, trabalhadores manuais autônomos: 14%; empregados domésticos: 8,9%;

comerciários: 3,6%. Posteriormente, o Historiador paulistano sublinha o fato de que presos e

indiciados são em larga medida gente pobre, fundado nas informações sugerentes de que,

“[...] na época e nos limites dos crimes estudados, a pobreza é mais acentuada entre os detidos

do que entre os responsabilizados criminalmente. Um dado a mais, a reforçar o significado

das prisões como instrumento de controle social da massa da população” (FAUSTO, 2014, p.

105).

Nota que “[...] o racismo de autoridades policiais está presente em transcrições de

depoimentos, nos relatórios de delegados, rompendo-se em certos casos critérios

classificatórios prévios” (FAUSTO, 2014, p. 67).

Percebe que

[...]a menção ‘cor’ não consta em regra das folhas de qualificação dos indiciados com indicações impressas (nome, idade, profissão etc.) e espaços em branco correspondentes, a serem preenchidos. Não obstante, o qualificativo “negro”,

135

“pardo” é às vezes introduzido a tinta, em letras bem nítidas, na margem das páginas. (FAUSTO, 2014, p. 67).

Com esse expediente, decerto, as autoridades responsáveis pelo andamento do processo

estariam permanentemente “avisadas” dessa característica do acusado que, embora devesse

ser indiferente para a apuração da culpa ou determinação da pena, era utilizada como

elemento relevante para tais definições. Assim, quando a tramitação burocrática, representada

pelo contato dos servidores públicos com o papel, fazia-os esquecer as ligações pessoais com

o réu, no qual poderiam visualizar a sua cor, a anotação nítida em local estratégico reacendia

na mente desses burocratas o estigma do indesejável social.

Ao analisar os processos da época, Fausto (2014, p. 31) identifica o fato de que

Pobreza e riqueza deixam por vezes nítidas pegadas distintivas. Em um extremo, a relativa uniformidade resultante da sucessão de declarações, que não é cortada pelas petições dos advogados; ou requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, em que os requerentes esclarecem que deixam de selar por falta de recursos. No outro, as transcrições dos diferentes atos processuais entremeados de petições de advogados, em papel de linho timbrado; os memoriais impressos, distribuídos aos desembargadores; a peça de defesa datilografada, que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestígio do próprio defensor.

Essa observação deixa clara a ausência de devido processo legal aos acusados pobres.

Como se não bastasse a estigmatização a que estavam submetidos, sendo alvos permanentes

da persecução estatal, não tinham condições de possuir uma defesa efetiva, capaz de

estabelecer o contraditório. Para eles sequer existia defesa formal, restringindo-se os atos

defensivos às súplicas muitas vezes redigidas por terceiros, em razão do comum

analfabetismo dos réus. O Estado não dispunha de uma instituição destinada à defesa dos

vulneráveis, que então, para terem alguma chance de fugir às malhas da justiça, mesmo

quando inocentes, precisavam submeter-se ao apadrinhamento dos detentores do poder, que

assim os submetiam à satisfação de suas vontades.

O documento de antecedentes, a ser juntado aos autos pelo acusado, tem a finalidade de

apresentar sua rede de relações (vizinhos, patrões, colegas, amigos), para então procurar

demonstrar a conformidade de sua vida com o modelo sociofamiliar, sua origem respeitável

etc (FAUSTO, 2014, p. 31). Sua eficácia dependia fundamentalmente de quem o emitia,

conforme “[...] a força de seu conteúdo verbal, os signos formais de que está revestido”.

(FAUSTO, 2014, p. 31).

Com efeito,

136

‘Papeluchos de favor’, escritos a mão, em papel ordinário, em que se enfileiram frágeis assinaturas anônimas, contrastam com documentos na solene expressão do termo, em papel timbrado, datilografado, contendo a assinatura de pessoas influentes ou representantes de grandes empresas. (FAUSTO, 2014, p. 31).

As decisões judiciais, portanto, guiavam-se rotineiramente muito menos pelos

elementos de prova colhidos do que pelas demonstrações de prestígio que o acusado

conseguisse amealhar em seu benefício. Ora, se o próprio cargo de juízes e promotores

dependia de indicações políticas, como já demonstrado, não era de se esperar que suas

decisões contrariassem os interesses ou os “pedidos” formulados pelos detentores do poder

econômico e/ou político. Se o acusado, enredado nas malhas da justiça, não conseguia dela se

desvencilhar pela demonstração de sua participação ou utilidade para o sistema clientelista

então em funcionamento, o juízo condenatório afigurava-se quase uma certeza.

A enorme defasagem entre o número de pessoas presas e o de processadas, em alguns

anos em que a comparação foi realizada, revela claramente a significação das prisões como

instrumento de controle social. Para ficar apenas em poucos exemplos, em 1893, foram presas

3.466 pessoas na Capital paulista, registrando-se a abertura de 329 inquéritos; em 1905, os

presos foram 11.036 e os processados 794; em 1907, 9.361 presos, abrindo-se 1.441

inquéritos (FAUSTO, 2014, p. 42)24. Isso mostra como era grande o número de prisões

arbitrárias, que sequer se transformavam em processos. Assim, mesmo com uma estrutura

judiciária completamente comprometida com os interesses dominantes, tais prisões eram tão

flagrantemente arbitrárias, que os fatos que as fundamentavam sequer denotavam condições

de serem conduzidos a um processo judicial.

A repressão penal na passagem do século XIX para o XX abandonou o viés

essencialmente corporal, admitindo o discurso regenerador, embora continuassem inalterados

os alvos do sistema penal (ROIG, 2013, p. 80). A prisão possuía, até então, nítidas funções de

dissuasão, neutralização e aflição, pois o empreendimento escravista supria qualquer

disfunção na oferta de mão de obra, mas, no alvorecer da República, o encarceramento passou

a incorporar o ideário da preparação para o trabalho, elevando-o à condição de elemento

reparador do indivíduo “aproveitável”, relegando-se a função neutralizadora para os

irrecuperáveis (ROIG, 2013, p. 80).

24 Esse dado serve para demonstrar a importância da garantia inserta no art. 5º, LXI da Constituição Federal de

1988 segundo o qual: “[...] ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. (BRASIL, 1988).

137

Uma situação bastante complicada no Brasil da Primeira República que, portanto,

merece destaque, era a dos imigrantes, principalmente os recém-chegados, que também

encarnavam estereótipos ligados à criminalização. Como percebe Fausto (2014, p. 177), eles

estavam em situação de vulnerabilidade quando acusados da prática de um delito, pois a sua

situação de desemprego e a ausência de residência fixa eram sempre ressaltadas pela polícia

como fortes indícios de responsabilidade criminal, por não terem laços na cidade que

pudessem vir em seu socorro, e os laços de além-mar eram distantes ou inconfessáveis quando

se trata de profissionais.

Assim, os imigrantes encontravam-se em situação de maior desamparo, pois ao

sentimento xenofóbico existente somava-se a suspeita constante pelas autoridades policiais,

mormente quando eles não tinham condições de se utilizarem do artifícios normalmente

utilizados pelas pessoas “bem relacionadas” para fugir das malhas da justiça, a saber, a

apresentação de boas referências, ainda que artificialmente constituídas, fornecidas por

pessoas de poder político ou econômico na sociedade.

Em 1930, ocorreu um importante rearranjo de forças políticas, representado pela

Revolução que levou Getúlio Vargas à Presidência da República, inaugurando um extenso

tempo, que durou até 1945 e que assumiu, principalmente em 1937, feição autoritária e

centralizadora. “A política de marginalização pura e simples realizada pelas velhas classes

dominantes não tinha mais condições de se sustentar” (FAUSTO, 1997, 140). Esclarece

Abrucio (2002, p. 42) que “Isto não quer dizer que as elites regionais tenham perdido seu

poder de influência na cena política e que o Estado nacional tenha se transformado em

organismo totalmente avesso às pressões das oligarquias”. O que realmente ocorreu, segundo

Fausto (1997, p. 22-23) na sua obra A Revolução de 1930, foi um rearranjo oligárquico,

pondo fim ao modelo vigente de 1889 a 1930, tendo como pressuposto um padrão autoritário

(entremeado apenas pelo intervalo 1934-1937), com amparo nas convicções de Getúlio, na

maioria de seus ministros e assessores, assim como na cúpula das Forças Armadas, cujo poder

cresceu significativamente.

Para Alvarez (2006, p. 144), o autoritarismo do Estado no pós-30 impulsionou o

discurso cientificista, autoritário e antiliberal da Criminologia e da Medicina Legal. As ideias

biodeterministas e seus desdobramentos podem ser encontradas no ordenamento jurídico

brasileiro, nas políticas de segurança pública e mesmo na prática jurídica e dos

138

administradores públicos, mesmo com o seu declínio no pós-Segunda Guerra Mundial

(ALVAREZ, 2006, p. 145-146).

A criminologia prosseguiu sendo um saber destinado ao poder, ou seja, um

conhecimento principalmente voltado ao estabelecimento de técnicas de identificação

criminal e outros mecanismos de controle social, derivando na estigmatização de setores da

população considerados como potencialmente perigosos (ALVAREZ, 2006, p. 147). Na

mesma trilha, vai a doutrina de Cristina Rauter, para quem “[...] a criminologia produziu uma

concepção de crime na qual este não mais se refere à infração da lei, mas a um fenômeno com

características quase naturais, produto de uma anormalidade social ou individual”. (2003, p.

69). Além do mais, “[...] o combate ao crime, ao tornar-se uma tarefa técnica, é

descaracterizado, em seu evidente compromisso com a manutenção das formas de dominação

vigentes na sociedade” (RAUTER, 2003, p. 69).

O período 1945-1964, por sua vez, é caracterizado por Abrucio (2002, p. 48) como “[...]

o início da democracia competitiva de massas no Brasil”, apesar de destacar que “o

republicanismo esteve ausente da base do sistema político” e “[...] as mudanças

socioeconômicas do período não foram acompanhadas de transformações institucionais”

(ABRUCIO, 2002, p. 56). Nos anos 1950, o Brasil passou a experimentar um intenso

processo de urbanização, com um aumento considerável das classes populares nas grandes

cidades, tornando ainda mais visíveis as desigualdades sociais que caracterizam a sociedade

brasileira. A imprensa, de igual modo, passou a dar mais destaque a situações de

criminalidade e violência urbanas.

Como adverte Rolim (2006, p. 184), o fato de determinados segmentos sociais estarem

sendo excluídos dos ganhos materiais ou permanecendo à margem desse movimento de

modernização da sociedade possibilitou um processo de apropriação, por parte do pensamento

social brasileiro, de teorias sobre a marginalidade social formuladas para a compreensão de

outras realidades sociais, como, verbi gratia, as teorias sobre a marginalidade social dos

Estados Unidos surgidas após os anos de 1920, com o intuito de produzir um diagnóstico

relativo à integração dos imigrantes no País. Essa interpretação da realidade social levava à

conclusão de que as classes populares no Brasil, por serem marcadas pela privação e pelo

desvio, não haviam introjetado a mentalidade dos tempos modernos e, portanto, de antemão,

eram lobrigadas como marginais, objeto de um diagnóstico acerca de sua conduta e

comportamento por parte das ideias jurídico-penais (ROLIM, 2006, p. 185).

139

Sob esse viés, o pensamento jurídico penal da época identificava um comportamento

antis-social e antijurídico dos negros, por exemplo, explicando-o como uma questão de

desajuste e de despreparo para com os aspectos da Modernidade, visto que carregavam

atitudes mentais ou tipos de personalidade de um regime que não se assentava na competição

na vida social, e isso redundou em um desajuste decorrente, pois, de heranças socioculturais e

não meramente raciais ou biológicas (ROLIM, 2006, p. 192). “Sendo assim, para os

operadores jurídicos os negros possuíam uma subalternidade ético-social que havia definido a

sua personalidade. Por terem esse padrão sociocultural, adotaram determinados princípios

morais, éticos e de caráter” (ROLIM, 2006, p. 194).

A consequência dessa maneira de interpretar a sociedade foi, mais uma vez, a

criminalização da pobreza, atribuindo-se à privação econômica a responsabilidade pela não

introjeção dos princípios ético-jurídicos dos novos tempos, o que desembocava em

recrudescimento da criminalidade. Por outro lado, defendia-se o argumento de que “[...] as

classes populares eram criminosas porque o ambiente de pobreza no qual viviam provocava

desajustes psicológicos e sociais” (ROLIM, 2006, p. 198). Não é de se estranhar, portanto,

que são mantidas as previsões dos ilícitos penais de mendicância, vadiagem, dedicação aos

jogos de azar na legislação punitiva dos anos 1940, com alvo e funções muito bem

determinados.

Thaís Battibugli, analisando a polícia paulista de 1946-1964, conclui que o sistema

policial se caracterizava pela corrupção e pela impunidade de suas ações criminosas, ainda

inadaptado à legalidade democrática e às novas exigências sociais, pautando sua atuação, em

algumas oportunidades, por ideias e ações condizentes com um Estado de Direito, mas, em

outros momentos, agindo como em períodos autoritários, em decorrência de não ser fixada a

tradição democrática e manutenção de uma dura tradição autoritária (BATTIBUGLI, 2006, p.

104).

As pretensões democráticas que timidamente buscavam ressurgir após o período

autoritário pós-45 foram novamente sepultadas com a tomada do poder pelos militares em

1964. Foi uma ditadura que se iniciou com a pretensão declarada de afastar o risco de uma

ditadura de esquerda e manifestando abertamente a necessidade de breve devolução do poder

aos civis, por meio de eleições. Iniciou-se, então, um processo de perseguição política que

desembocou no emprego da repressão como instrumento de manutenção do poder. Os

140

considerados “subversivos” passaram a ser selecionados como objeto do poder punitivo,

colocado a serviço da repressão de natureza política. Carvalho (2004, p. 160-161) esclarece:

O perigo comunista era a desculpa mais usada para justificar a repressão. Qualquer suspeita de envolvimento com o que fosse considerada atividade subversiva podia custar o emprego, os direitos políticos, quando não a liberdade, do suspeito. Como em geral acontece em tais circunstâncias, muitas vinganças pessoais foram executadas sob o pretexto de motivação política.

O aparato represivo da ditadura lançou mão da tortura, do assassinato, do sequestro e do

“desaparecimento” como instrumentos de perseguição, combinados com a formalidade de

alguns processos criminais colocados sob a competência da Justiça Militar, estabelecendo-se,

assim, a coexistência entre o tribunal e o porão, que constituíam os dois lados da mesma

lógica de repressão (MATTOS, 2006, p. 204). Carvalho (2004, p. 193) lista:

O habeas corpus foi suspenso para crimes políticos, deixando os cidadãos indefesos nas mãos de agentes de segurança. A privacidade do lar e o segredo da correspondência eram violados impunemente. Prisões eram feitas sem mandado judicial, os presos eram mantidos em isolamento e incomunicáveis, sem direito a defesa. Pior ainda: eram submetidos a torturas sistemáticas por métodos bárbaros que não raro levaram à morte da vítima. A liberdade de pensamento era cerceada pela censura prévia à mídia e às manifestações artísticas, e, nas universidades, pela aposentadoria e cassação de professores e pela proibição de atividades políticas estudantis.

O sistema penitenciário, após 1964, retomou com vigor a sua utilidade para os escopos

de repressão política, reforçando os ideários do regime então vigente, notadamente o

defensivismo social e o combate à periculosidade individual (ROIG, 2013, p. 125). As

polícias militares, encarregadas do policiamento ostensivo, foram colocadas sob o comando

do Exército e usadas para o combate às guerrilhas rurais e urbanas, tornando-se, então,

completamente inadequadas, pela filosofia e pelas táticas adotadas, não para proteger o

cidadão e respeitar seus direitos, mas para combater o inimigo, tornando-se, com efeito, um

ente a ser temido em vez de um aliado a ser respeitado (CARVALHO, 2004, p. 194).

Durante a ditadura militar, entretanto, se tornou muito mais rígida a política de

isolamento dos perigosos para a manutenção do regime, fazendo ressurgir o isolamento

absoluto como modalidade de castigo, que existiu desde os primeiros regulamentos

penitenciários do século XIX, atingindo seu ápice no Codigo Penal de 1890 (ROIG, 2013, p.

157). Batista (2003, p. 40) identifica, na transição da ditadura para a abertura democrática, a

modificação do inimigo interno do terrorista para o traficante, com a convergência de todo o

controle social para a elaboração do novo estereótipo, que se multiplicou nos bairros pobres,

na figura do jovem traficante. Esse período histórico coincide com o aprofundamento da

141

guerra às drogas, iniciada nos anos de 1970 pelo governo do Tio Sam, como estudado de

modo aprofundado no segmento 2.4 deste experimento acadêmico em sentido estreito.

Caindo a ditadura militar em meados dos anos 1980, iniciou-se o mais longo período

democrático vivenciado no Brasil, ainda em fase de amadurecimento, sob constantes ameaças

de retrocesso autoritário. A Constituição de 1988 exprime uma comprida listagem de direitos

fundamentais, autoaplicáveis, elevados à condição de cláusulas pétreas25, materializações do

principio fundamental da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que estabelece

como objetivos fundamentais da República constituir uma sociedade livre, justa e solidária;

garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as

desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,

raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras modalidades discriminatórias (BRASIL, 1988).

O caminho da consolidação da cidadania brasileira, contudo, permanece inconcluso,

conforme Carvalho (2004, p. 216), que, ao se referir à atual quadra histórica, menciona que a

população que pode contar com a proteção da lei é pequena, dividindo os cidadãos brasileiros

em classes: na primeira, estão os privilegiados, “doutores” “que estão acima da lei, que

sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social”,

mantendo vínculos importantes nos negócios, no governo e no Judiciário; na segunda estão

cidadãos submetidos aos rigores e benefícios das leis, que “[...] nem sempre têm a noção exata

de seus direitos, e quando a têm carecem dos meios necessários para os fazer valer, como o

acesso aos órgãos e autoridades competentes, e os recursos para custear demandas judiciais”

(CARVALHO, 2004, p. 216). Esse grupo está frequentemente “[...] à mercê da polícia e de

outros agentes da lei que definem na prática que diretos serão ou não respeitados”, pois para

eles os códigos existem, mas são aplicados de maneira parcial e incerta (CARVALHO, 2004,

p. 216). Já os cidadãos de terceira classe compõem a grande população marginal das grandes

cidades, quase sempre pardos ou negros, analfabetos ou com educação fundamental

incompleta, e que participam da comunidade política nacional apenas nominalmente, pois na

prática têm seus direitos sistematicamente desrespeitados pelos demais cidadãos, pelo

governo, pela polícia, merecendo atenção tão somente para a incidência do Código Penal

(CARVALHO, 2004, p. 216-217).

25 O art. 60, §4º da CF/88 (BRASIL, 1988) fala expressamente em direitos individuais, mas é majoritário na

doutrina o entendimento de que engloba todos os direitos fundamentais, dada a aindissociabilidade entre eles. Ver, por todos, SARLET. Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 13.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

142

Roig (2013, p. 15), no mesmo sentir de Carvalho, percebe a manutenção de determinado

estado de coisas, ao identificar o fato de que, desde os regulamentos penitenciários da

sociedade escravista brasileira do século XIX até a legislação atual, representada pela Lei de

Execução Penal (LEP), “[...] o sistema disciplinar imposto em nossas unidades prisionais

segue uma perspectiva utilitarista, subserviente aos escopos de controle social”. Por outro

lado, conclui que o aparato repressivo estatal brasileiro historicamente legitima a

arbitrariedade carcerária, contribuindo para a nulificação e aculturação da pessoa em nome de

uma pretensa ordem, constituindo a penitenciária como uma sociedade à parte, cuja

característica principal é a tentativa de criar e manutenir um grupamento humano submetido a

um regime de controle total, consistindo, pois, sob esse aspecto, em um regime totalitário

(ROIG, 2013, p. 174). Os métodos legais de controle e de punição disciplinar brasileiros à

extensão das diversas conjunturas históricas vividas pelo País, refletindo os valores reinantes

na sociedade, constituem parâmetro de aferição da essência antidemocrática do sistema

penitenciário (ROIG, 2013, p. 27).

Todo o percurso histórico analisado corrobora a conclusão de Koerner (2006, p. 13), em

cuja análise as instituições da justiça penal no Brasil são “[...] marcadas por estruturas

organizacionais complicadas e ineficientes, procedimentos e rotinas arcaicos, atos de

violência e arbitrariedade, cujas bases e efeitos têm evidentes relações com as diversas fases

da desigualdade, a socioeconômica, de poder e de status da nossa sociedade”. “Toda a

arquitertura legal e física do sistema penal na República brasileira é erigida para dar conta dos

novos excluídos da ordem republicana, sob o olhar lombrosiano e positivista” (BATISTA,

2003, p. 133). Como objeto da intervenção estatal, a serviço de uma minoria privilegiada,

vislumbram-se os pobres como destinatários preferenciais do controle social e do poder

punitivo estatal, encontrando no cárcere, na maioria das vezes, o resultado dessa ação seletiva

estatal, conforme será analisado no módulo sequente.

2.3 O cárcere como instituição destinada aos mais pobres

A pena privativa de liberdade, ideologicamente, teve sua utilização sistemática como

castigo atrelado à evolução de pretensões humanitárias, em substituição aos desumanos

suplícios que a antecederam. De todo modo, essa espécie punitiva enfrenta, desde muito

tempo, fortes críticas, exatamente por desconsiderar a humanidade daqueles que são

143

submetidos aos seus rigores. De fato, comparada aos suplícios26, certamente, a prisão pode

representar algo bem menos doloroso, mas ainda está bem distante de ser uma resposta digna

aos atos criminosos. Para alguns autores, como Christie (1993, p. 34), por exemplo,

representa, depois da morte, o exercício de poder mais severo que o Estado tem à sua

disposição, porque nada é tão extremo quanto as restrições, degradação e imposição de poder

característicos do cárcere. É, conforme Foucault (2007, p. 214), o “[...] local onde o poder de

punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um

campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a

sentença se inscrever entre os discursos do saber”.

Durante sua evolução, a pena de prisão foi apresentada com diversas finalidades, que

acabaram unificadas na tentativa de torná-la eficaz na prevenção e combate das condutas

criminosas. Garcia Ramírez (2003, p. 143), por exemplo, defende o argumento de que “[…]

las penas se proponen retribuir, intimidar, expiar, purificar, recuperar, contener o conciliar,

o bien, mejor todavía, todo de una vez”. Atualmente são apontadas quatro finalidades para a

pena de prisão: repressão ou retribuição; prevenção ou intimidação; ressocialização ou

reinserção social e incapacitação.

Ao se afirmar que a prisão é retributiva, significa que funciona como resposta do Estado

àquele que descumpre a ordem jurídica: a compensação da culpa do criminoso com a

imposição de um mal. Nesse particular, é considerada um fim em si mesma, não possuindo

outro desiderato a não ser funcionar como consequência jurídica da ação criminosa. Funda-se

na crença de que o homem, dotado de livre arbítrio, tem a capacidade de decidir entre o justo

e o injusto e, se decide por este, deve merecer a desaprovação da sociedade, expressa pelo

isolamento no cárcere. “A disposição de aplicar penas severas a criminosos condenados

compensa, magicamente, o fracasso em prover segurança para a população em geral”

(GARLAND, 2008, p. 283). Importantes pensadores foram ardorosos defensores do caráter

retributivo da pena, dentre os quais se destacam Kant, Hegel, Karl Binding, Welzel e

Maurach. Mesmo na antiga Ética cristã podem ser verificadas apologias ao caráter repressivo

da pena.

26 Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é

escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848. (FOUCAULT, 2007, p. 16-17).

144

Com o intuito de evitar a prática de novos delitos, afirma-se que a pena privativa de

liberdade pode ter também finalidade preventiva ou intimidatória (função preventiva). A lei

funciona como instrumento dissuasório, pelo qual o Estado procura intimidar o cidadão para

que esse não cometa infrações penais. Para Rodrigues (2001, p. 30-31), tal finalidade está

associada à secularização do Direito Penal, após a superação da legitimação teológica e

metafísica do jus puniendi, quando a pena perdeu, em grande parte, a sua função de cunho

retributivo, justificou-se, doravante, pela necessidade terrena de prevenir o cometimento de

outros crimes.

Esta ideia foi reforçada no século XVIII, com a lição de Beccaria (2006, p. 103), para

quem “[...] a certeza de um castigo moderado causará sempre maior impressão que o temor de

um mal terrível, ao qual está aliada a esperança da impunidade”. Acrescenta ainda o autor

italiano que “[...] as penas e o modo como são aplicadas devem ser escolhidos de forma que,

guardadas as proporções, causem uma impressão mais eficaz e durável na índole dos homens,

e menos torturante no corpo do réu” (BECCARIA, 2006, p. 59). Já para Foucault (2007, p.

18), é à alma que se dirige a punição. “À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder

um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”

(FOUCAULT, 2007, p. 18).

A função preventiva da pena divide-se em prevenção geral e especial, diferenciando-se

quanto ao destinatário da intimidação. De acordo com a primeira, a pena tem a finalidade de

intimidar toda a sociedade para evitar que ocorram crimes, atuando como coação psicológica

e tendo como principais defensores Bentham, Beccaria, Filangieri, Schopenhauer e Feuerbach

(BITENCOURT, 2004, p. 125). A prevenção especial, por seu turno, dirige-se ao delinquente

em particular, para evitar a reincidência no crime, resumindo-se em intimidação, correção e

“inocuização”.

A terceira finalidade declarada da pena de prisão é a reinserção social ou

ressocialização. A idéia da penalidade como “tratamento” povoava os anseios dos pensadores

do século XIX, como deixa entrever a afirmação de Hugo (2002, p. 188), no prefácio de 1832

à sua obra O Último dia de um condenado: “Veremos o crime como uma doença, e essa

doença terá seus médicos que substituirão seus juízes; seus hospitais que substituirão suas

galés. A liberdade e a saúde se parecerão”. Trata-se da perspectiva da pena como a “[...]

possibilidade de ‘cura’ do delinquente, secularmente encarado como objeto da execução

penal, a ser manipulado pelo cientificismo criminológico” (ROIG, 2013, p. 18-19). Na

145

perspectiva do enquadramento penal-previdenciário que predominou no mundo até os anos

1970, a reabilitação “[...] era o princípio hegemônico, o substrato intelectual e o valor

sistêmico que unia toda a estrutura e que fazia sentido para os operadores do sistema”

(GARLAND, 2008, p. 104).

Foucault (2007, p. 196) identifica o papel de transformar as pessoas como uma

obviedade, que se converte no papel da prisão, pois o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar,

ao transformar os indivíduos em seres dóceis, é reproduzir (ou mesmo acentuar) todos os

mecanismos ordinariamente encontrados no seio social. Obviamente, a perspectiva de

transformação aduzida por Foucault é sob a forma de crítica, confundindo-a com a

docilização dos corpos com uma finalidade de imposição do poder. Não é a mesma acepção

dos que defendem a possibilidade de ressocialização como algo positivo.

Garcia Ramírez (2003, p. 145), destacando a vasta sinonímia para o termo, aponta que

ressocialização, recuperação, reinserção, reeducação, reabilitação conformam uma densa

doutrina, obedecendo à crença, ainda que sujeita às mais severas críticas, em uma nova

oportunidade, que se conforma melhor com a ideia de perfectibilidade humana do que a

doutrina da eliminação, por ser esta carregada de desesperança. É nessa circunstância que a

LEP brasileira estabelece como uma de suas finalidades, em seu art. 1º, “[...] promover a

reinserção social do condenado” (BRASIL, 1984). Com vistas a atingir esta meta, dispõe que

os estabelecimentos prisionais devem ser dotados de estrutura suficiente para garantir aos

presos assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa – art. 11

(BRASIL, 1984).

Acerbas críticas são recorrentemente formuladas ao papel ressocializador da pena

privativa de liberdade, principalmente por questionamentos que continuam sem satisfatória

resposta: como socializar ou reinserir na sociedade, nos moldes desejados, quando a maioria

dos presos não se encontrava plenamente incluída? Como é possível ensinar alguém a viver

em sociedade estando preso, se as regras do cárcere são diversas? Como compatibilizar os fins

retributivo e regenerativo da pena?

Alguns autores chegam a negar a sua possibilidade, atacando por diversas perspecticas o

que chamam de “discurso ‘re’”. Rodrigues (2001, p. 52), por exemplo, aposta em uma “[...]

tentativa de não-dessocialização, no duplo sentido de não amputar o recluso dos direitos que

sua qualidade de cidadão lhe assegura e, a um só tempo, reduzir ao mínimo a marginalização

146

de fato que a reclusão implica”. Ocorre na realidade é que “[...] la cárcel certifica um estigma

y lo perpetua en el tempo, lo socializa. Lleva la cárcel más allá de la cárcel. La cárcel marca,

y cuando lo hace reproduce el encierro más allá del claustro que lo contuvo” (RODRÍGUEZ

ALZUETA, 2014, p. 297).

Sob outro viés, Espinosa (2004, p. 158-159) entende que o conceito de tratamento não

tem existência real, por consistir em um vazio que permite o uso de modelos de base religiosa,

militar ou pedagógica, ou ainda médica e psiquiátrica. Ela complementa, afirmando que a

ressocialização não passa de um mito que “[...] sob a aparência de amabilidade, preocupada

com o futuro do sujeito, com sua reabilitação e ressocialização, serve para dissimular a real

intenção de eliminar o condenado, quer uniformizando sua personalidade à do modelo social,

quer neutralizando-o ou destruindo-o aos poucos” (ESPINOSA, 2004, p. 158-159).

A normatização penitenciária contemporânea possibilita enorme discricionarismo

administrativo, ao ponto de a efetividade de direitos depender do alvedrio da autoridade

penitenciária e não dos comandos normativos, totalmente distantes da cadeia, e que se

convertem, na prática, em benesses ou regalias, conferidas conforme a impune e soberana

autoridade administrativa, reforçando, assim, os coniventes laços de submissão (ROIG, 2013,

p. 138).

Galeano (2010, p. 113) percebe a falácia do discurso de ressocialização, ao constatar

que “[…] a Justiça venda os olhos para não ver de onde provêm o que delinquiu, o que seria o

primeiro passo para a sua possível reabilitação. O cárcere modelo do fim de século não tem o

menor propósito de redenção e nem sequer de lição. A sociedade enjaula o perigo público e

joga fora a chave”. Conhecer a realidade social de onde provêm os presos seria muito mais

eficaz para buscar estratégias de inserção social do que simplesmente os amontoar em celas,

quando doravante são esquecidos. Fazer isso sob o pretexto de que se pretende fazê-los

conviver em um ambiente de respeito às normas é absolutamente contraditório.

Por último, Leal (1995, p. 20) inclui a incapacitação como uma das finalidades da pena

privativa de liberdade, por ser esta um meio de impedir que o condenado pratique novos

delitos no meio livre. Sob essa perspectiva, considerando-se o criminoso um perigo à

sociedade, deve-se segregá-lo para que não volte a produzir danos à sociedade. O papel

incapacitador da pena privativa de liberdade foi reforçado com o abandono do

previdenciarismo penal, momento identificado por Garland (2008) como o período pós-1970.

147

Como decorrência desse movimento, “[...] as atuais autoridades prisionais consideram que sua

tarefa principal é guardar com segurança os criminosos, e não pretendem mais levar a cabo

medidas reabilitadoras para a maioria dos internos” (GARLAND, 2008, p. 65).

Tão presente é essa finalidade da prisão que o romancista Dostoiévski (2006, p. 24), em

Recordações da casa dos mortos, entendia que os cárceres são “[...] locais voltados

exclusivamente para o castigo, garantindo, em termos teóricos, que o criminoso, encarcerado,

não cometa outros atentados à paz social”. “A prisão é usada atualmente como um tipo de

reservatório, uma zona de quarentena, na qual indivíduos supostamente perigosos são

segregados em nome da segurança pública” (GARLAND, 2008, p. 380).

Observa na prática, contudo, principalmente no Brasil, é que as promessas estabelecidas

legal e doutrinariamente para a prisão fracassam fragorosamente. Primeira constatação,

simples: é impossível ressocializar sem participação da sociedade. Não se olvida que a LEP

estabelece tal premissa em seu art. 4º (BRASIL, 1984), mas cerece de efetivação. Isso porque,

como ensina Graland (2008, p. 381), “[...] a fronteira entre a prisão e a comunidade é

fortemente patrulhada e cuidadosamente monitorada, para prevenir o risco de vazamento de

um lado para o outro”, de maneira que os que deixam o cárcere “[...] estão sujeitos a controle

mais rigoroso do que antes e frequentemente retornam à prisão por falharem em cumprir as

condições que continuam a restringir a sua liberdade” (GARLAND, 2008, p. 381).

Ademais, são as finalidades da prisão contraditórias entre si. Ali, impõe-se um modo de

vida e essa circunstância, por si, torna estéril qualquer pretensão de tratamento e converte em

retórica a chamada adaptação social do delinquente (NEUMAN, 1997, p. 35). Isso porque no

ambiente carcarério não é possível a vivência plural efetiva, já que são uniformizadas as

maneiras de pensar e agir, vedando-se quaisquer manifestações de individualidade, como a

religião, por exemplo. Rodrigues (2001, p. 8) comunga do mesmo sentimento, ao asseverar

que a ressocialização não pode se calcar “[...]em qualquer imposição coactiva de valores, a

dar cobertura a um modelo médico de tratamento ou à negação do direito à diferença”. Elege-

se um sistema de valores por demais fechado, impermeável às diferenças, e pune-se qualquer

manifestação de pluralidade. Chega-se ao extremo, por exemplo, de negar-se as

especificidades femininas, porquanto são minoria no ambiente carcerário. Em última análise,

a interiorização forçada de valores contraria flagrantemente a concepção de uma sociedade

democrática, baseada em uma pluralidade de modalidades de vida e de concepções.

148

A prisão cria o status de detento e, ao mesmo tempo, impõe ao indivíduo trabalho,

obediência e disciplina (elementos constitutivos desse status) como condições que devem ser

satisfeitas, a fim de que possa, no futuro, se livrar do cárcere, evocando a privação extrema

imposta ao preso como consequência óbvia e quase natural da recusa da disciplina do trabalho

(DE GIORGI, 2013, p. 46). O objetivo, coerentemente, é produzir um proletariado que

considere “[...] o salário como justa retribuição do próprio trabalho e a pena como justa

medida dos seus próprios crimes (DE GIORGI, 2013, p. 47). Não se reporta ao

estabelecimento de trabalho forçado, proibido pela Constituição brasileira (art. 5º, XLVII, c)

(BRASIL, 1988), mas à consequência jurídica para o ato de negar-se ao trabalho, que é

aplicar a sanção por falta grave, que representa como efeito o impedimento da

progressividade da pena e, portanto, seu prolongamento em regime fechado27.

Submetidos a um ambiente repressivo e sancionador, privados dos mais básicos direitos

humanos, não é razoável esperar que os presos retornem “ressocializados”, principalmente ao

convívio de uma sociedade que desde o início não os têm como participantes de seu corpo,

como já estudado. Tratados como anima vili, espera-se que se comportem como anima nobili.

Eis a contradição flagrante na qual está enredada a atual privação de liberdade no Brasil:

segregá-los, primeiro pelas grades, depois pelo estigma e esperar que se insiram na sociedade,

como pessoas trabalhadoras (sendo que ninguém os aceita como empregados).

A LEP adota um sistema legal repressivo, podendo-se constatar que metade dos deveres

impostos por ela (art. 39, I, II, IV, V e VI) exalta os valores da ordem, disciplina e submissão

dos presos, além de defluir do art. 50, VI, a noção de que o descumprimento dos deveres de

obediência ao servidor, de respeito a qualquer pessoa com quem deva se relacionar e de

execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas, representa falta de natureza grave

(ROIG, 2013, p. 139-140). Exige-se do preso, portanto, obediência cega a determinações e

ordens emanadas sem necessidade de justificação e cujo descumprimento conduz a uma série

de consequências, sendo a mais grave delas o prolongamento dos dias do cárcere. É de se

destacar o fato de que tais ordens sempre carregam a justificativa de manutenção da ordem e

da disciplina, mas que, na verdade, funcionam como instrumentos de imposição de

humilhação desnecessária, já que os mesmos objetivos poderiam ser alcançados por outros 27 De acordo com o artigo 39, V da LEP, constitui dever do condenado a execução do trabalho, das tarefas e das

ordens recebidas (BRASIL, 1984). Por outro lado, o artigo Art. 50, VI do mesmo diploma legal estatui que comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei (BRASIL, 1984). O bom comportamento carcerário constitui-se em requisito subjetivo para fazer jus aos principais direitos de antecipação da liberdade na execução da pena: progressão de regime, indulto, livramento condicional, ou mesmo para saídas temporárias.

149

caminhos. Exigências constantes de desnudamento e posterior permanência sob o sol por

várias horas, sentados, amontoados, com as mãos para trás das cabeças; ordens de voltar-se

contra a parede, enconstando a cabeça, em silêncio absoluto, quando da passagem de agentes

penitenciários ou outros servidores; determinação de horário inflexível para dormir, acordar,

alimentar-se, são algumas dessas ordens.

O art. 44 da LEP reforça o servilismo exigido por esse diploma legal, embora constando

uma aparência de legalidade, ao dispor que a disciplina consiste na colaboração com a ordem,

na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho

(ROIG, 2013, p. 140). O direito ao trabalho, nessa perspectiva, converte-se, na realidade, em

um dever, na medida em que se negar a exercê-lo configura falta grave (art. 50, VI da LEP).

De efeito, a vedação à aplicação de trabalhos forçados, estabelecida constitucionalmente

como direito fundamental, resta ofendida veladamente sob uma exigência do trabalho imposto

como condição para abreviar os dias de cárcere. Foucault (2007, p. 187) observa não ser de se

admirar que a prisão celular tenha se tornado o instrumento moderno da penalidade, em razão

de suas cronologias marcadas, trabalho obrigatório, instâncias de vigilância e notação, com

seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, parecendo-se,

pelo recurso a uma disciplina infinita, com as fábricas, escolas, quartéis e hospitais.

A prisão destitui da pessoa as concepções que até então possuía acerca de si mesma. Os

sinais de pertença à sociedade, acaso existentes, são anulados ou substituídos por aqueles que

regem o cárcere. O nome do preso é substituído pelo número do artigo do crime que cometeu

ou pelo apelido que passa a ostentar ao ser recrutado por alguma organização criminosa, ao

qual muitas vezes é obrigado a pertencer ao entrar na prisão, de acordo com o bairro da cidade

do qual é oriundo ou com a facção predominante naquela unidade prisional. Como percebeu

Goffman (2005, p. 24), “A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o

mundo externo assinala a primeira mutilação do eu”.

Essa “casa para mortos vivos”, como considerou Dostoievski (2006, p. 17), promove

intensa desculturalização, ou “prisonização”, conforme definido por Thompson (1991, p. 95-

96) como “[...] a assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos,

precipuamente, pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propensos a

melhoras. Adaptar-se à cadeia, destarte, significa, em regra, adquirir as qualificações e

atitudes do criminoso habitual”. Ilustrativa dessa prisionização é a passagem do romance O

Último dia de um condenado, de 1829, de Hugo (2002, p. 44), no qual, se referindo ao uso de

150

uma linguagem diferenciada no cárcere, descreve-a como “[...] uma língua ancorada na língua

geral como uma excrescência repulsiva, como uma verruga”. A adapatação ao mundo

carcerário, portanto, depende da submissão a estas regras e, mais do que isso, a inadaptação

significa, muito frequentemente, a morte do renitente. Este fenômeno é denominado

“destreinamento” por parte de Goffman (2005, p. 23).

O romancista Dostoievski (2006, p. 24) – que passara quatro anos de sua vida em uma

prisão com trabalhos forçados na Sibéria – em sua obra Recordações da Casa dos Mortos,

define:

Estou convencido de que o tão propalado regime de penitenciária oferece resultados falsos, decepcionantes, ilusórios. Esgota a capacidade humana, definha o espírito e, depois, apresenta aquele detento mumificado, como um modelo de regeneração. Na verdade, ao revoltar-se contra a sociedade, esse criminoso a rejeita abertamente, considerando-se absolutamente inocente. Ou então acredita que, como está cumprindo o castigo, já acertou suas contas com a sociedade.

Foucault (2007, p. 223) leciona que “[...] a prisão fabrica indiretamente delinquentes, ao

fazer cair na miséria a família do detento”. Godoi (2017, p. 192), na mesma linha

raciocinativa, noticia a opinião de especialistas no sentido de que a prisão atua no entorno

social do detento (“punição inivisível”), que compromete modalidades de subsistência, destrói

orçamentos familiares, promove a estigmatização de mulheres, crianças e comunidades, com

consequências objetivas e subjetivas bastante graves.

Os efeitos deletérios da prisão, portanto, não se abatem somente sobre os internos, mas

especialmente sobre seus componentes familiares, amigos e vizinhos, inicialmente sob o

formato de estigma, que se transmite como uma poderosa doença infectocontagiosa, causando

epidêmicas consequências que vão desde a discriminação nos relacionamentos sociais até o

tratamento hostil por parte dos agentes de segurança pública e penitenciária. Essa extensão

dos efeitos da prisão é chamada por Rodríguez Alzueta (2014, p. 290) de “socialização do

cárcere”, pois este tende a se desterritorializar, quando se projeta sobre os bairros marginais,

por intermédio de meios de controle, que, mesmo brandos, por serem seletivos,

discricionários e também regulares, promovem a confusão do bairro com a prisão.

Mesmo quando são aplicadas medidas opcionais ao cárcere, a elas normalmente estão

agregadas obrigações de permanência em domicílio ou no bairro, constituindo, assim,

verdadeiras “jaulas transparentes”, na medida em que paralisam os movimentos, estabilizam

os circuitos, circunscrevendo a vida cotidiana, formando uma continuidade entre a jaula de

151

ferro e a gaiola transparente, um cárcere virtual, com efeitos de encarceramento concretos

(RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 291). Há de se agregar, ainda, a ideia de que a

socialização do cárcere se verifica pelos efeitos negativos que ele produz sobre as pessoas

pertencentes aos círculos de relacionamento dos presos, visto que estas passam a carregar

igualmente o estigma, principalmente se precisam visitar os presos, pois recebem, na

oportunidade, um tratamento humilhante e vexatório que certifica uma condição de

subalternidade (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 292).

Para ilustrar, é suficiente a descrição de um processo de revista de visitantes feito por

Rafael (2017, p. 202-203), sociólogo que, como agente da Pastoral Carcerária, conheceu por

dentro as prisões paulistas:

Num cubículo, sozinhas ou em pequenos grupos, diante do olhar minucioso das agentes de segurança penitenciária, as visitantes devem se despir completamente, entregando peça por peça de roupa a ser revistada. Nuas, precisam se posicionar de costas, voltadas para a parede. Então, devem soltar, sacudir e erguer o cabelo, mostrar as solas dos pés e agachar uma, duas, três vezes. O movimento expõe vagina e ânus, enquanto as agentes observam se há indícios de objetos introduzidos. Quando há suspeita, mandam a visitante repetir o movimento, acocorar-se mais, fazer força, limpar algum corrimento, abrir mais com as mãos. Se permanecer a dúvida, podem chamar outras agentes para verificar. A visitantes suspeita, às vezes obesa, às vezes idosa, ter de ficar ali agachada enquanto as agentes lhe fazem perguntas e insinuações, discutem aspectos de seu corpo, não se contentam com o que veem. No limite, quando desistem de verificar por si mesmas, mandam a visitante se vestir, barram a sua entrada e comunicam o fato a seus superiores. Se a suspeita insiste em querer entrar, aqueles providenciam uma escolta que a conduzirá a um hospital, onde ela será submetida a um exame de raios X.

Esse procedimento brutal e de intensa degradação da dignidade repete-se,

invariavelmente, aos finais de semana nos estabelecimentos prisionais nos quais ainda

predomina a revista vexatória no Brasil para os visitantes dos presos, convertendo seres

humanos em objetos do ilimitado escrutínio de seus corpos, a partir de um sedimentado

processo de presunção de culpa. Rafael Godoi considera os visitantes, em sua esmagadora

maioria, mulheres, meio livres (porque podem simplesmente dar as costas e desistir da visita)

e meio presas (nuas e agachadas diante das agentes penitenciárias, sujeitando-se às suas

ordens – e às vezes caprichos – por mais vexatórios que sejam, para poderem adentrar);

confinadas em um cubículo que é o território limiar entre o dentro e o fora da prisão, um local

de passagem obrigatória no qual a condição de mulher (ser humano) fica em suspenso perante

o Estado (GODOI, 2017, p. 203-294).

O cárcere, da maneira como é utilizado, funciona, também, como poderoso elemento

criminógeno. Assim, com a declarada finalidade de combater o crime, o que ele faz na

152

verdade é gerá-lo, levando novamente, quase fatalmente, diante dos tribunais, aqueles que

nele estiveram confinados (FOUCAULT, 2007, p. 213). Ademais, capacita e treina ao aportar

capitais aos presos, inscrevendo-os em redes criminais e conferindo a eles fama e prestígio no

“mundo do crime”, muitas vezes pelo simples fato de terem frequentado esta ou aquela prisão

ou ala prisional (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 301).

A prisão fabrica delinquentes também em outro sentido, conforme Foucault (2007, p.

213), por introduzir “[...] no jogo da lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do

carrasco, a realidade incorpórea da delinquência que os liga uns aos outros e, há um século e

meio, os pega todos juntos na mesma armadilha”. O delinquente, aqui, não é o mero infrator,

por ser a sua vida (e não seu ato) que o caracteriza, por estar ligado ao seu delito por um feixe

de elementos complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento) e não apenas ao ato

criminoso (FOUCAULT, 2007, p. 211).

Essa fábrica de delitos e deliquentes, por outro lado, alimenta a expansão desenfreada

de um mercado de segurança28, ávido pelos lucros da comercialização de instrumentos de

combate ao medo, assim como sustenta o funcionamento de um aparato cada vez mais

importante em termos orçamentários, cujos custos com o sistema judicial e policial superam

os destinados a direitos sociais importantes, como saúde, previdência e educação. Como já

advertiu Bauman (2013, p. 160), observam-se no mundo inteiro esforços para aumentar o

volume de medo e fornecer os alvos sobre os quais se possa descarregar a ansiedade

resultante.

A prisão pode ser caracterizada, também, como uma espécie de tecnologia repressiva,

por impor um estado de privação absoluta que produz um sujeito totalmente dependente do

aparelho de poder que o subordina, funcionando também como um poderoso dispositivo

ideológico, por impor a submissão ao trabalho como caminho único para sair dessa condição

e, paradoxalmente, enseja privação ao mesmo tempo em que impõe as próprias engrenagens

disciplinares como remédio para essa condição (DE GIORGI, 2013, p. 46).

A pessoa, no cárcere, é submetida a um autêntico processo de aculturação, tornando-se

presa dócil e apta a cumprir, sem questionamentos, “[...] todas as determinações das

28 Como percebe Esteban Alzueta, “Por um lado, la privatización o administración de las cárceles, la

construcción de nuevos estabelecimentos de máxima seguridade, el equipamento de esos espacios con tecnologia de vanguardia, pero también las medidas alternativas a la prisión (arrestos domiciliários controlados com pulseras o brazaletes electrónicos o cámaras de vigilancia), fueron componiendo un mercado del castigo susceptible de ser contenido por determinadas empresas”. (2014, p. 304).

153

autoridades carcerárias, elevadas pelo sistema penitenciário à metafórica condição de

patriarcas onipotentes, que elegem o que é bom ou ruim para os apenados, se os mesmos

desejarem a ressocialização” (ROIG, 2013, p. 141). Na doutrina de Foucault (2007, p. 199), a

prisão exerce disciplina incessante e ininterrupta sobre a pessoa, conferindo sobre esta um

poder quase total, com seus mecanismos de repressão e castigo, no que ele chama de

disciplina despótica; seu modo de ação é a coação de uma educação total.

Existe, ainda, completa dissociação das normas em relação à prática, como exposto por

Neuman (1997, p. 44), por meio de elucidativa metáfora:

Este tipo de normas son como los faros de un coche que ilumina la ruta pero no lo maneja. Principios meramente formales porque la realidad lo transgrede todo. Por así decirlo, las normas y su sentido estrellan su cabeza contra las paredes de la prisión. Y aunque duela el desvio y la impunidad de ese desvio, es preciso señalar que la realidad deslegitima a la ley y la descalifica.

Consoante adverte Rivera Beiras (2005, p. 224), não há como se admitir a existência de

“[...] unos derechos para quienes viven en libertad y, otros, para quienes habitan como

internos en las instituciones penitenciarias”, pois assim estará nascendo, no seio de um

Estado que se pretende democrático, um grupo de cidadãos de segunda categoria, conforme

conclui o citado Professor da Universidade de Barcelona (2005, p. 224). Obviamente, com o

aprisionamento, é normal que haja a restrição de alguns direitos. Observa-se, entretanto, é que

muitos direitos que deveriam ser preservados, ainda em um contexto de prisão, são

simplesmente desconsiderados. Pessoas em relação às quais não são garantidas as mínimas

condições de salubridade, a quem se sonegam água, alimentação adequada, assistência à

saúde et reliqua, se convertem mesmo em subpessoas.

Com aberta e interessada influência dos mass media29, no entanto, se reforça na

sociedade a exigência de recrudescimento da repressão, tratada como remédio mas que,

rapidamente, se mostra como destruidor veneno, por favorecer o surgimento de grupos

criminosos arregimentadores da legião de presos descontentes, cada vez engrossada ante a

situação desumana a que são submetidos os encarcerados. Foi nessa ambiência de repressão e

abandono que surgiu o Primeiro Comando da Capital (PCC), com o inicial e declarado

objetivo de protestar por melhores condições carcerárias e que se converteu em poderosa

organização criminosa, com ramificações inclusive internacionais. Não causa surpresa que tal

tenha ocorrido, pois há muitas décadas já advertia Foucault (2007, p. 222) para a noção de que

29 Ver subseção 1.3.4 desta tese.

154

a prisão “[...] favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si,

hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras”.

Os problemas carcerários não são peculiaridades brasileiras, mas adquirem aqui

contornos alarmantes. Leal (2003, p. 29) vislumbra um sério hiato entre a realidade brasileira

e a de outros países, decorrente, em sua opinião, da ausência histórica, entre nós, de políticas

públicas federais e estaduais destinadas à melhoria das condições do sistema prisional, aliada

“[...] com o acumpliciamento autovitimizante da comunidade, alheia às condições do preso,

geralmente pobre, analfabeto ou semianalfabeto”. De fato, é uma constante nos países latino-

americanos a conjugação do subdesenvolvimento econômico com as ineficientes políticas de

segurança pública, sendo óbvio esperar, pois, efeitos idênticos. Nas palavras de Garcia

Ramírez (2003, p. 146),

En América Latina se han llevado con desmesura las cifras de la población penitenciaria. De 26 países examinados por el Instituto Latinoamericano de las Naciones Unidas para la Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente, prácticamente todos – es decir, 25 – mostraban sobrepoblación penitenciaria; de ellos, en 20 había niveles de sobrepoblación crítica por encima de 120 por ciento.

No Brasil, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, do

Departamento Penitenciário Nacional – INFOPEN (dados atualizados até junho de 2016) 30, a

população prisional brasileira atingiu os 726.712 presos, com uma taxa de ocupação de 197,

4%, o que representa um défice de 358.663 vagas (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017, p. 7).

Trata-se de um aumento de 707% em relação ao início dos anos de 1990 (MINISTÉRIO DA

JUSTIÇA, 2017, p. 9).

O Estado, ao promover esse perverso amontoamento de presos em celas, olvidar-lhes

sua condição de seres humanos e sua indissociável dignidade, na medida em que se abstém de

tratá-los como sujeitos de direitos para lançá-los na vala comum de objetos, fazendo incidir

toda a carga do poder e da repressão sobre o corpo e o espírito dos encarcerados (BESSA,

2007).

O persistente estado de violação sistemática de direitos fundamentais no sistema

carcerário brasileiro foi reconhecido pelo STF que, em arguição de descumprimento de

preceito fundamental – ADPF proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)31 –

30 Até a finalização dessa tese, em junho de 2019, esse tinha sido o último levantamento oficial do número de

presos no Brasil. 31 No caso, alegava-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de

coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos

155

concedeu medida cautelar (BRASIL, 2015 b). Conforme é possível ler no Informativo 798 do

STF, o Plenário anotou que

No sistema prisional brasileiro ocorreria violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas. Nesse contexto, diversos dispositivos constitucionais (artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º), normas internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP e a LC 79/1994, que criara o Funpen, teriam sido transgredidas. Em relação ao Funpen, os recursos estariam sendo contingenciados pela União, o que impediria a formulação de novas políticas públicas ou a melhoria das existentes e contribuiria para o agravamento do quadro. Destacou que a forte violação dos direitos fundamentais dos presos repercutiria além das respectivas situações subjetivas e produziria mais violência contra a própria sociedade. Os cárceres brasileiros, além de não servirem à ressocialização dos presos, fomentariam o aumento da criminalidade, pois transformariam pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública estaria nas altas taxas de reincidência. E o reincidente passaria a cometer crimes ainda mais graves. Consignou que a situação seria assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social. Registrou que a responsabilidade por essa situação não poderia ser atribuída a um único e exclusivo poder, mas aos três — Legislativo, Executivo e Judiciário —, e não só os da União, como também os dos Estados-Membros e do Distrito Federal. Ponderou que haveria problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Além disso, faltaria coordenação institucional. A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representaria falha estrutural a gerar tanto a ofensa reiterada dos direitos, quanto a perpetuação e o agravamento da situação. O Poder Judiciário também seria responsável, já que aproximadamente 41% dos presos estariam sob custódia provisória e pesquisas demonstrariam que, quando julgados, a maioria alcançaria a absolvição ou a condenação a penas alternativas. Ademais, a manutenção de elevado

fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades. Postulava-se o deferimento de liminar para que fosse determinado aos juízes e tribunais: a) que lançassem, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não se aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; c) que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; d) que estabelecessem, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e) que viessem a abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando reveladas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica em razão do quadro do sistema carcerário, preservando-se, assim, a proporcionalidade da sanção; e f) que se abatesse da pena o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica, de forma a compensar o ilícito estatal. Requeria-se, finalmente, que fosse determinado: g) ao CNJ que coordenasse mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no País, que envolvessem a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f”; e h) à União que liberasse as verbas do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. Foram deferidas as medidas contidas nas alíneas “a” e “h” (BRASIL, 2015b).

156

número de presos para além do tempo de pena fixado evidenciaria a inadequada assistência judiciária. A violação de direitos fundamentais alcançaria a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial e justificaria a atuação mais assertiva do STF. Assim, caberia à Corte o papel de retirar os demais poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados. A intervenção judicial seria reclamada ante a incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas. Todavia, não se autorizaria o STF a substituir-se ao Legislativo e ao Executivo na consecução de tarefas próprias. O Tribunal deveria superar bloqueios políticos e institucionais sem afastar esses poderes dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias. Deveria agir em diálogo com os outros poderes e com a sociedade. Não lhe incumbira, no entanto, definir o conteúdo próprio dessas políticas, os detalhes dos meios a serem empregados. Em vez de desprezar as capacidades institucionais dos outros poderes, deveria coordená-las, a fim de afastar o estado de inércia e deficiência estatal permanente. Não se trataria de substituição aos demais poderes, e sim de oferecimento de incentivos, parâmetros e objetivos indispensáveis à atuação de cada qual, deixando-lhes o estabelecimento das minúcias para se alcançar o equilíbrio entre respostas efetivas às violações de direitos e as limitações institucionais reveladas. O Tribunal, no que se refere às alíneas “a”, “c” e “d”, ponderou se tratar de pedidos que traduziriam mandamentos legais já impostos aos juízes. As medidas poderiam ser positivas como reforço ou incentivo, mas, no caso da alínea “a”, por exemplo, a inserção desse capítulo nas decisões representaria medida genérica e não necessariamente capaz de permitir a análise do caso concreto. Como resultado, aumentaria o número de reclamações dirigidas ao STF. Seria mais recomendável atuar na formação do magistrado, para reduzir a cultura do encarceramento. No tocante à cautelar de ofício proposta pelo Ministro Roberto Barroso, o Colegiado frisou que o Estado de São Paulo, apesar de conter o maior número de presos atualmente, não teria fornecido informações a respeito da situação carcerária na unidade federada. De toda forma, seria imprescindível um panorama nacional sobre o assunto, para que a Corte tivesse elementos para construir uma solução para o problema. (BRASIL 2015 b).

Em três decisões recentes, a CorteIDH manifestou-se sobre a específica situação de

graves violações de direitos humanos em cárceres brasileiros. Em 14 de março de 2018,

solicitou à República Federativa do Brasil que adotasse, de imediato, todas as medidas

necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade das pessoas privadas de liberdade

no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, localizado na cidade de São Luís, Estado do

Maranhão, bem como de qualquer pessoa que se encontrasse nas unidades desse

estabelecimento (CORTEIDH, 2018a). O mesmo ocorreu em 28 de novembro de 2018, em

relação ao Complexo Penitenciário de Curado, constituído por três unidades carcerárias:

Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (PJALLB), Presídio Marcelo Francisco de Araújo

(PAMFA) e Presídio Frei Damião de Bozzano (PFDB), no Estado de Pernambuco

(CORTEIDH, 2018b) e, em 13 de fevereiro de 2017, em relação ao Instituto Penal Plácido de

Sá Carvalho, bem como de qualquer pessoa que se encontre neste estabelecimento, localizado

no Complexo Penitenciário de Gericinó, na cidade do Rio de Janeiro (CORTEIDH, 2017c).

Sobre o problema na América, a CIDH, em seu Informe Anual de 2016, anota que são

constantes as informações a respeito do estado de superpopulação carcerária na região,

157

destacando como consequência o incremento dos níveis de violência, lembrando os sete

chamados que a CIDH realizou por seus comunicados de imprensa em 2016, nos quais

condenou fatos violentos nos Estados do Brasil, Guatemala, México e Venezuela, instando-os

a investigar e esclarecer as circunstâncias em que ocorreram, de modo a identificar e

sancionando os responsáveis (CIDH, 2017a).

A aceleração no ritmo de aprisionamento na América Latina, capitaneada pelo Brasil,

passou a ser definida por encarceramento em massa. Trata-se de uma política completamente

dissonante dos princípios e intenções dos reformistas liberais originais, por ser tributária de

políticas mais severas relacionadas à intimidação, ao abuso da prisão preventiva, a longas

penas de prisão, decorrentes de condenações expressivas, substituindo a preocupação com

penas mais justas, proporcionalidade e minimização da coerção penal (GARLAND, 2008, p.

155). Por outro lado, conforme o mesmo autor, o encarceramento atual

[…] serve, simultaneamente, como uma satisfação expressiva de sentimentos retributivos e como mecanismo instrumental para a administração de riscos e para o confinamento do perigo. Os setores populacionais efetivamente excluídos do mundo do trabalho, da previdência e da família – típicamente jovens do sexo masculino, pertencentes a minorias urbanas – estão cada vez mais atrás das grades, tendo sua exclusão económica e social efetivamente escamoteada por seu status criminal. A prisão reinventada da atualidade é uma solução pronta e acabada para um novo problema de exclusão social e económica. (GARLAND, 2008, p. 422).

Alexander (2017, p. 265) compara o atual sistema de encarceramento em massa com

uma gaiola com a porta trancada, visto que compõe um “[…] conjunto de arranjos estruturais

que bloqueiam um grupo racialmente distinto em uma posição política, social, e econômica

subordinada, criando efetivamente uma cidadania de segunda clase”. Nos EUA, “[...] surgiu,

na verdade, como um sistema de controle social racializado abrangente e bem disfarçado e

que funciona de maneira incrivelmente parecida com o Jim Crow32“ (ALEXANDER, 2017, p.

39), “[...] perpetuando e aprofundando padrões preexistentes de segregação e isolamento

racial, não apenas removendo pessoas não brancas da sociedade e pondo-as em prisões, mas

jogando-as de volta em guetos após a sua libertação” (ALEXANDER, 2017, p. 279), em um

“circuito fechado de marginalidade perpétua” (ALEXANDER, 2017, p. 280). Para se divisar a

magnitude desse fenômeno, vê-se que a população negra encarcerada nos EUA supera a da

Àfrica do Sul na época do apartheid, ao ponto de três em cada quatro negros jovens em

Washington podem ter a expectativa de passar algum tempo de sua vida na prisão (p. 42). Ao 32 São chamadas de Jim Crow as leis que oficializaram o sistema de segregação estadunidense de 1876 a 1965

nos Estados do Sul (ALEXANDER, 2017). Os do Norte, embora não tenham promulgado leis dessa natureza, promoveram igualmente a segregação racial, que também ocorreu no âmbito federal, podendo ser citados como exemplos as forças armadas (ALEXANDER, 2017).

158

contrário do que se poderia imaginar, o incremento do encarceramento não está ligado

genericamente ao desemprego, mas sim ao desemprego que atinge alguns estratos sociais

considerados perigosos à ordem constituída: minorias étnicas, imigrantes, jovens marginais

(DE GIORGI, 2013, p.51).

Um dos principais vetores desse encarceramento massivo é o abuso no manejo de

prisões cautelares, que se aplica quando há indicios de autoria e materialidade, aliadas à

necessidade de segregar a pessoa que represente um risco à “ordem pública”, ao regular

andamento do proceso ou à aplicação da lei penal, de acordo com as balizas legais brasileiras,

estabelecidas no CPP.

Conforma um instituto que deveria ter a nota da excepcionalidade, por flexibilizar um

direito fundamental importantíssimo: a presunção do estado de inocência; entretanto, dada a

sua utilização indiscriminada, ganhou ares de aplicação antecipada de pena, verificando-se

mesmo em situações nas quais a própria condenação final conduziria a medidas legais muito

mais brandas, representando, pois, poderoso instrumento de controle social sobre a população

marginalizada, que ainda hoje abarrota os cárceres enquanto aguardam julgamento. Tais

fatores indicam, como percebe Rodríguez Alzueta (2014, p. 276), que pouco interessa se um

real delinquente é alvo do encarceramento, do contrário, não se prenderia tanto

preventivamente, bastando, portanto, constatar superficialmente a etiqueta que o define como

uma pessoa que causa temor social, ou seja, basta que seja um “suspeito”.

Em seu informe anual de 2016, publicado no ano seguinte, a CIDH advertiu que um dos

principais problemas a respeito da superpopulação carcerária é causado pela utilização “geral

e excessiva da prisão preventiva”, já que os Estados continuam adotando políticas criminais

direcionadas a aumentar o encarceramento como solução para uma segurança cidadã; optando

por legislação que privilegia a aplicação da prisão preventiva e restringe o emprego de

medidas alternativas. Desse modo, confere inadequada defesa às pessoas em prisão

preventiva; submetendo-se à pressão dos mass media e da generali sententia para enfrentar a

insegurança pública por meio da privação da liberdade; omitindo-se em uma coordenação

interinstitucional entre os agentes do sistema de administração da justiça (CIDH, 2017a).

Por outro lado, a CIDH identificou o fato de que a falta de recursos econômicos

inviabiliza direitos de acesso à justiça da população privada de liberdade preventivamente, já

que algumas medidas processuais para a determinação da liberdade condicional ou vigiada

159

estão submetidas ao prévio pagamento de fianças, custas processuais ou de manutenção,

podendo-se supor, por conseguinte, discriminação a pessoas em situação de pobreza ou com

escassos recursos econômicos (CIDH 2016a). Esses são fatores, sem dúvida, que contribuem

para os altos índices de pessoas pobres privadas de liberdade. Como conclui Rodíguez

Alzueta, “[...] la prisión preventiva y el encarcelamiento en massa son dos estratégias que

responden a una urgencia: la contención de la pobreza y la regulación del delito”

(RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 278).

Além do gravíssimo estado de superpopulação carcerária, as prisões brasileiras são

dotadas de intensos problemas de salubridade. Sobre este assunto, Leal (2001, p. 58) detalha,

na obra Prisão: crepúsculo de uma era:

Prisões onde estão enclausuradas milhares de pessoas, sem nenhuma separação, em absurda ociosidade, carentes de assistência material, à saúde, jurídica, educacional e religiosa; prisões infectas, úmidas, por onde transitam livremente ratos e baratas, onde a falta de água e luz é rotineira; prisões onde vivem em celas coletivas improvisadas dezenas de presos, alguns seriamente enfermos, como tuberculosos, hansenianos e aidéticos; prisões onde quadrilhas controlam o tráfico interno da maconha e da cocaína e firmam as suas próprias leis; prisões onde vigora um código arbitrário de disciplina, com espancamentos freqüentes como método de obter confissões; prisões onde se conservam as surdas, isto é, celas de castigo, expressamente proibidas, onde os presos são recolhidos por tempo indefinido, sem as mínimas condições de aeração, insolação e condicionamento térmico; prisões onde os detentos promovem o massacre de colegas, a pretexto de chamarem atenção para suas reivindicações; prisões onde muitos aguardam julgamento durante anos, enquanto outros são mantidos por tempo superior ao constante na sentença ou, embora absolvidos, continuam presos por esquecimento do juiz; prisões onde, por alegada inexistência de local próprio para a triagem, os recém-ingressos – que deveriam se submeter a uma observação científica – são transferidos em celas de castigo, ao lado de presos extremamente perigosos.

Não há, contudo, nenhum indicativo de que os efeitos negativos dessa tendência

impositiva arrefeçam, principalmente, como reforça Karam (2005, p. 164), nesses tempos de

um significativo reforço do distorcido, dramático e demonizador discurso da repressão penal.

Embora seja possível identificar alguns esforços para estabelecer opções penais, a prisão tem

ainda curso como a principal resposta estatal aos conflitos penais. Guemureman (2015, p.

544) entende que

[...] a privação da liberdade não está em extinção, e sim gozando de boa saúde, alardeada como “santo remédio” contra a insegurança; como antídoto para barrar a periculosidade dos jovens; assimilada à melhor estratégia de neutralização da população socialmente vulnerável; tão inútil em seu afã de prevenir a reincidência como funcional a um sistema de exclusão social; via régia de vulneração de direitos, cuja existência remete aos constantes maus-tratos, restrições de toda ordem, falta de acesso à saúde, educação, recreação e a programas de rebilitação efetivos.

160

Daí surge o questionamento de Foucault (2007, p. 225): “O pretenso fracasso não faria

parte do funcionamento da prisão?” Ele mesmo responde: “Se a instituição-prisão resistiu

tanto tempo, e em tal imobilidade, se o princípio da detenção penal nunca foi seriamente

questionado, é sem dúvida porque esse sistema carcerário se enraizava em profundidade e

exercia funções precisas” (FOUCAULT, 2007, p. 226). Talvez seja necessário procurar o que

se esconde sob o cinismo de uma instituição que constantemente marca e persegue as pessoas

como delinquentes, mesmo depois que quitam sua pena como infratores (FOUCAULT, 2007,

p. 226).

No Informe Anual, a CIDH indicou a existência de uma Relatoria sobre os Direitos das

Pessoas Privadas de Liberdade, com incidência em todos os Estados-Membros da OEA, que

continua recebendo informações preocupantes acerca das graves violações de direitos

humanos, identificando o fato de que os principais desafios são: o uso excessivo da prisão

preventiva, os altos índices de superpopulação carcerária e as inadequadas condições de

detenção (CIDH, 2017a).

Por outro lado, a CIDH destina especial atenção à agudização do estado das pessoas

privadas de liberdade com escasos recursos financeiros (pobreza extrema), identificando que a

privação de direitos é mais ampla do que a experimentada pelo resto da população carcerária

(CIDH, 2016a). Isso porque, de acordo com o Informe preliminar sobre pobreza, pobreza

extrema y derechos humanos en las Américas, expressa maiores dificuldades para aceder a

serviços ou benefícios normalmente disponíveis, mas sujeitos ao pagamento exigido por

outros presos e até mesmo por autoridades penitenciárias (CIDH, 2016a).

A CIDH observa, ainda, que a situação de pobreza extrema de pessoas presas também

pode afetar negativamente a fruição do direito de visitas familiares quando transferidas para

centros de privação de liberdade distantes de seus núcleos familiares (CIDH, 2016a). O citado

informativo da CIDH denuncia a reiterada utilização dessa prática, especialmente na

Argentina e no Chile, onde 68,6% das pessoas entrevistadas pela CIDH declararam que a

prisão foi responsável pelo fim de uma relação familiar próxima, e em 48,8% dos casos em

razão da falta de dinheiro para os traslados até as prisões (CIDH, 2016a).

Impende destacar a situação da mulher encarcerada, que sofre dupla estigmatização,

visto que, imersa em uma cultura machista que lhe reserva os papéis de manutenção e guarda

161

de filhos, recebe mais severa reprovação social, bem como manifesta mais elevada penitência

interior, o que reverbera em seus entes familiares queridos (BESSA, 2017).

A CIDH, atenta a esse problema e aos papéis reservados pela sociedade à mulher,

destaca que o encarceramento feminino enseja severas consequências aos seus filhos e

àqueles que normalmente se encontram sob seus cuidados, tais como pessoas com

deficiências e idosos (CIDH, 2016a). Sobre esse ponto, a CIDH adverte para a noção de que

apenas 10%, aproximadamente, dos filhos daquelas que estão privadas de liberdade ficam

com os pais, enquanto que, quando o homem é preso, a maioria dos filhos continua sendo

cuidada pelas mães e, por essa razão, a ruptura de laços de proteção gerada pelo

encarceramento de mulheres possibilita situações de transmissão intergeneracional da

pobreza, marginalidade e abandono, que podem desembocar em envolvimento com

organizações criminosas ou mesmo a institucionalização (CIDH, 2016a)33.

O cárcere conforma, por outro lado, local de privação da liberdade de pessoas

pertencentes a uma raça. Com amparo na análise da amostra daquelas sobre as quais foi

possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, lobriga-se a informação de que 64% da

população prisional compõem-se de pessoas negras (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017, p.

32). Na população brasileira acima de 18 anos, em 2015, a parcela negra representa 53%,

indicando a sobre-representação deste grupo populacional no sistema prisional (MINISTÉRIO

DA JUSTIÇA, p. 32). Por fim, 75% da população prisional brasileira ainda não acessou o

ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental (MINISTÉRIO DA

JUSTIÇA, 2017, p. 34).

Ademais, em considerável indicativo de criminalização secundária da pobreza, com o

direcionamento da ação estatal mais intensamente contra determinados ilícitos penais34,

verifica-se que os crimes de tráfico correspondem a 28% das incidências criminais pelas quais

as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em junho de

2016 - enquanto os crimes de roubo somam 37% das incidências (MINISTÉRIO DA

JUSTIÇA, 2017, p. 43). No comparativo da distribuição entre homens e mulheres, no entanto,

se evidencia a maior frequência de crimes ligados ao tráfico de drogas entre as mulheres

33 Esse fato, inclusive, foi levado em consideração pelo STF para a decisão no HC Coletivo 143.641/SP,

conforme estudado em detalhes no segmento 4.3 do ensaio sob relação, impetrado em favor de mulheres presas preventivamente na condição de gestantes, puérperas ou mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.

34 Sobre o assunto, ver subseção 1.2.2 desta tese.

162

(enquanto, em relação aos homens, representam 26% dos registros, no concernente às

mulheres, atingem 62%) (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017, p. 43).

Como demonstrado noutras passagens deste estudo, a prisão é povoada por pessoas

pobres e, no Brasil, a situação tem números impressionantes. A sobre-representação de pobres

nas cadeias contrasta fortemente com a insignificante situação de pessoas abastadas

cumprindo pena presas. Nas palavras de Galeano (2010, p. 95),

Os presos são pobres, como é natural, porque só os pobres vão presos em países onde ninguém vai preso quando desaba uma ponte recém inaugurada, quando se quebra um banco ou quando se desmancha um edifício recém construído sem cimento. O mesmo sistema de poder que fabrica a pobreza é o que declara a guerra sem quartel aos desesperados que gera.

Como ensina Bauman (2005, p. 108), “[…] o refugo humano não pode mais ser

removido para depósitos de lixo distantes e fixado firmemente fora dos limites da vida

normal. Precisa, assim, ser lacrado em contêineres fechados com rigor. O sistema penal

fornece esses contêineres”. As prisões, que antes funcionavam como instituições

correicionais, são percebidas como mecanismos de exclusão e controle, pois o mais valioso da

instituição são seus muros e não o que ocorre dentro deles (GARLAND, 2008). “De forma

explícita, o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo

qualquer, mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado, sempre rejeitado” (BAUMAN,

2005, p. 108). “Se reciclar não é mais lucrativo, e suas chances (ao menos no ambiente atual)

não são mais realistas, a maneira certa de lidar com o lixo é acelerar a biodegradação e

decomposição, ao mesmo tempo isolando-o, do modo mais seguro possível, do hábitat

humano comum” (BAUMAN, 2005, p. 109).

Wacquant (2001, p. 11), detectando o problema, refere-se às prisões brasileiras como

“[...] campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial

dos dejetos sociais”, para mais adiante arrematar a ideia de que “[...] o cárcere só serve para

agravar a instabilidade e a pobreza das famílias cujos membros ele sequestra e para alimentar

a criminalidade pelo desprezo escandaloso da lei, pela cultura da desconfiança dos outros e da

recusa das autoridades que ele promove” (WACQUANT, 2001, p. 12). Como adverte Batista

(2003, p. 55), “[...] a prisão dos países periféricos é uma instituição de sequestro menor,

dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural. Em nossa região, o sistema

penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características

“disciplinadoras” dos países centrais”.

163

2.4 Execuções extrajudiciais e tortura

Consoante examinado em passagens anteriores deste estudo, a atitude de seletividade

penal adotada pelo Estado e estimulada pelos meios massivos de comunicação, que

estabelecem sólido consenso social, enseja, não somente, o encarceramento puro e simples de

determinados grupos vulneráveis (o que já seria, por si, trágico para a democracia35), mas

também contribui para o tratamento desumano a eles dispensado, que pode culminar (e, não

raro, chega ao clímax) na imposição de intensos sofrimentos (tortura) ou mesmo na execução

extrajudicial, consequências quase naturais da desumanização.

Assim, duas condutas que, na corrente quadra histórica, foram banidas das previsões

legislativas internacionais (e também da maioria dos Estados nacionais) e, mais do que isso,

constam como abomináveis nos discursos em todo o mundo, a eliminação física e a tortura

continuam sendo utilizadas amplamente pelos caminhos subterrâneos do exercício do poder

punitivo, em decorrência da função que cumprem, conforme será demonstrado nos segmentos

à frente. Noutro torneio de elocução, embora haja sedimentado consenso internacional

contrário a essas práticas (monitorado por organizações internacionais globais e regionais de

direitos humanos, que enseja, inclusive, posicionamentos estatais de negação), mortes

institucionais e torturas permanecem acontecendo impunemente, como frequentemente

denunciam órgãos de defesa de direitos humanos, fato comprobatório de que continuam

fazendo parte das rotinas estatais.

Nos módulos do trabalho, que vêm logo em seguida, se analisam, separadamente, as

situações de execuções extrajudiciais e a tortura, como consectários de posições estatais

seletivas, “legitimadas” por um discurso normalizante que permeia o tecido social e mantém

incólumes seus praticantes, na senda de uma guerra ao crime que, na realidade, é uma batalha

contra determinados tipos de criminosos, reais ou fabricados, mas pertecentes,

invariavelmente, à mesma camada social.

35 Sobre a contradição própria da criminalização da pobreza em relação ao Estado Democrático de Direito, ver

subseção 1.5 desta tese.

164

2.4.1 Execuções extrajudiciais

Mortes anunciadas foi a dicção utilizada por Zaffaroni (2016, p. 29-30)36 para

conceituar as mortes que, massiva (ocorrem com frequência extraordinariamente alta) e

normalizadamente (projetadas e recebidas publicamente sem maior alarme), são causadas pela

operatividade violenta do sistema penal, formando um quadro de dramaturgia fatal, como

resultado de papéis previamente definidos. São óbitos que contam com a aprovação de boa

parte dos discursos midiáticos, que as apontam como sinais de eficácia preventiva da polícia e

que, em vez de causarem alarme na população, constituem recursos para provocar

aquiescência ou consenso (ZAFFARONI, 2016, p. 29).

Por óbvio, a compreensão dessa insensibilidade por parte da sociedade passa pela

sedimentada invisibilização desses sacrificáveis. A lamentação e os protestos de componentes

familiares e amigos, por exemplo, mesmo quando conseguem romper os diques de uma

naturalização imposta, são desconsiderados pela imprensa, o Estado e a sociedade. Como

critica Rodríguez Alzueta, o direito de matar somente é visível para os familiares das vítimas,

pois, para o restante da sociedade, atemorizada, que acompanha os acontecimentos pelos

media, são mortes merecidas, a maneira rápida de repartir justiça (RODRÍGUEZ ALZUETA,

2014, p. 257). Nesse sentido é a lição de Bauman (2013, p. 78): “A negação da subjetividade

desqualifica os alvos selecionados como parceiros potenciais do diálogo; qualquer coisa que

possam dizer, assim como o que teriam dito se lhes dessem voz, é a priori declarado imaterial,

se é que se chega a ouví-los”.

Muito mais grave do que o silêncio social, em relação a esses trespasses, é a mudez

institucional. Muitos deles ocorrem em situações que há bem pouco tempo originavam os

famigerados “autos de resistência”, nos quais eram relatados fraudulentos enfrentamentos

com a polícia que resultaram na morte dos suspeitos. Como lembra Flauzina (2017 p. 15), em

prefácio à obra de Michelle Alexander, o histórico registro das execuções sumárias

perpetradas pelas polícias como autos de resistência era, até muito recentemente, confirmado

pelo imediato pedido de arquivamento do caso pelo Ministério Público e pela chancela

judicial. Nesse ciclo bem orquestrado, milhares de vidas foram ceifadas sem qualquer

investigação ou censura dos agentes que praticaram os homicídios, demonstrando-se como a

anuência do Judiciário é decisiva para a conformação da cultura punitiva de caráter racista,

36 O próprio autor confere a Nilo Batista o crédito pelo emprego dessa unidade de ideia, embora com um sentido

mais limitado, em Bogotá, em 1987 (ZAFFARONI, 2016, p. 29).

165

consolidando modos de operar tão brutais do sistema de justiça criminal (FLAUZINA, 2017,

p. 15). Zaffaroni adverte para a noção de que o fenômeno destrói a vida de um grupo humano

extenso, composto em sua quase totalidade por jovens de setores depauperados, constituindo

não uma guerra contra “bandos”, como se procura fazer crer, mas de um fenômeno de morte

massiva provocado por um formato de exercício de poder normalizado na sociedade

(ZAFFARONI, 2016, p. 46).

O historiador e cientista político camaronês Mbembe (2016, p. 146), nessa perspectiva,

introduz conceito aplicável a essa situação de extermínio, ao propor as noções de

necropolítica e necropoder para traduzir as várias maneiras pelas quais, na

contemporaneidade, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de

pessoas e da criação de “mundos de morte”, nos quais vastas populações são submetidas a

condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. Observa-se aí ter curso

uma política da morte, na qual estas são componentes inexoráveis e deliberados das ações

estatais.

Eduardo Galeano (2010, p. 81), por oportuno, considera que, “Em um mundo que

prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça nos

altares da segurança. Nas ruas das cidades celebram-se as cerimônias. Cada vez que cai um

delinquente alvejado, a sociedade sente alívio ante a enfermidade que a acossa”. No que diz

respeito à percepção pública, a crença dominante é a de que a vida urbana está eivada de

perigos; livrar as ruas dos ostensivos e ameaçadores estranhos como a mais urgente das

medidas destinadas a restaurar a segurança que falta aparece como verdade evidente por si

mesma, que não precisa de provas, tampouco admite discussões (BAUMAN, 2003, p. 131).

Aplica-se aqui o entendimento de Mbembe (2016, p. 23), para quem:

[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.

As mortes anunciadas são produzidas das mais variadas maneiras, merecendo,

portanto, uma taxionomia oferecida por Zaffaroni (2016, p. 30-33), que dá conta da gravidade

e extensão do problema. Assim, divide-as em mortes:

a) institucionais (causadas pelo aparato repressivo estatal no cumprimento de suas

obrigações);

166

b) extrainstitucionais (produzidas pelos integrantes das agências armadas, mas

sem relação com suas funções);

c) para-institucionais (cometidas por grupos de extermínio, “esquadrões da

morte”, “justiceiros”);

d) contrainstitucionais (vitimam os integrantes das agências armadas, em razão de

suas funções);

e) metainstitucionais (sucedem em decorrência da omissão estatal, como, verbi gratia,

presos vitimados por outros presos) (ZAFFARONI (2016, p. 30-33).

Na percepção de Alagia (2013, p. 59), as sociedades dividem, rotineiramente, a sua

população em não sacrificáveis e sacrificáveis, sendo estes os indivíduos cujas mortes não

causam nenhum agravo em parentes, tampouco em aliados. O sacrifício é uma violência sem

risco. No mesmo sentido é a lição de Agamben (2007, p. 146), para quem toda sociedade,

mesmo a mais moderna, fixa o limite além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante

e, como tal, pode ser impunemente eliminada. Essas execuções são aprovadas pela opinião

pública como parte integrante da reação social ao desvio e ao crime (ZAFFARONI, 2016, p.

42). Elabora-se, então, em toda sociedade, um discurso para que o medo etéreo de ser vítima

de um crime se concretize sobre determinadas pessoas, cujo tratamento não pode ser o mesmo

conferido aos demais cidadãos. Há de se nomear o medo para que ele efetivamente exista,

escolher uma cor, uma idade e um bairro; demonizá-lo como tática de imprimir um rosto a um

temor difuso, produzindo, paradoxalmente, um laço social, porque o temor é um meio de

constituir vínculos nas sociedades inseguras (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 43). No

mesmo sentido entende Bauman (2003, p. 105):

Dada a intensidade do medo, se não existissem estranhos eles teriam que ser inventados. E eles são inventados, ou construídos, diariamente: pela vigilância do bairro, pela tevê de circuito fechado, guardas armados até os dentes. A vigilância e as façanhas defensivas/agressivas que ela engendra criam seu próprio objeto. Graças a elas, o estranho é metamorfoseado em alienígena, e o alienígena, numa ameaça. As ansiedades esparsas e flutuantes ganham um núcleo sólido.

Os mortos pela polícia passam por um processo de etiquetamento e estigmatização:

somente aparecem como delinquentes e não “pessoas comuns”, que não distinguem entre o

bem e o mal, não havendo, então, razões para defender seus interesses (CALZADO;

MAGGIO, 2009, p. 89). “Desde una retórica perversamente trágica, el discurso policial

concede que con ellos nada podría hacerse en términos de rehabilitación ya que se los

diagnostoca como “irrecuperables” por lo cual la eliminación resulta una respuesta posible y

167

definitiva” (CEPEDA et al., 2009, p. 140). Mediante este etiquetamento, finaliza-se o

fenômeno de estigmatização que culmina com a intervenção selectiva do sistema penal feito

resultado de uma profecia autocumprida (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p.

171).

As vítimas letais da violência policial provêm, regularmente (não de modo casual), dos

grupos sociais mais vulneráveis, tanto em termos econômicos como na distribuição de

recursos sociais simbólicos – intelectuais e materiais – e para os quais o sistema de justiça é

inacessível (CEPEDA et al., 2009, p. 106). Na opinião de Pita (2010, p. 8), são pessoas

acostumadas a conviver com a arbitrariedade dos operativos massivos de controle policial e

que, em determinadas situações, não aceitam suportar, sem resistir, os maus-tratos e a

vigilância constante da polícia em seus bairros. Muitas mortes ocorrem, portanto, como

resultado do acirramento das relações estabelecidas entre policiais e jovens de bairros que

convivem em contínuo entrechoque, em razão do intenso e continuado controle pelas forças

de segurança nesses territórios, valendo-se, muitas vezes, de atitudes estigmatizantes e

violentas, como será visto em seção específica, vinda na sequência.

Como adverte o Centro de Estudios Legales e Sociales (CELS), da Argentina, um dos

fenômenos de violência institucional mais preocupantes em seu país é o que chamam de

“desaparecimento forçado”37 como método policial extremo para garantir a impunidade ou

evitar investigações sobre abusos e outras modalidadess de violência cotidiana da polícia

sobre os jovens pobres, figurando como o último degrau na cadeia de práticas violentas

(CELS, 2016, p. 74). Tais práticas são possibilitadas pelas amplas margens de autonomia

policial, pela degradação do ofício policial e pela ausência de controle sobre as forças que a

conduzem, além de um sistema de justiça que efetivamente investigue e aplique as sanções

devidas (CELS, 2016, p. 75). É uma combinação que, de fato, conduz a uma escala

ascendente de violência que culmina com a eliminação física: práticas violentas contra

vulneráveis, autonomia policial excessiva (arbitrariedade), ausência de controle sobre a ação

policial, condescendência social e do sistema de justiça. Rodríguez Alzueta (2014, p. 254),

por sua vez, sintetiza os fatores que sustentam incólumes os casos que chama de “gatillo

37 A denominação não é casual, mas decorre de evidente analogia às práticas da ditadura militar argentina, que

perseguia seus opositores e os fazia literalmente desaparecer, não raramente, por meio de uma prática bastante difundida nesse regime que eram os “voos da morte”, nos quais os presos políticos - após submetidos a intensas sessões de tortura, normalmente com a finalidade de delação, ou por simples castigo - eram atirados de aviões da Marinha argentina no mar ou no rio da Prata, ainda com vida, dopados, amarrados e amordaçados.

168

fácil”38: violência policial rotinizada e sistemática (regular, discricionária e seletiva), que se

sustenta no desgoverno e descontrole da polícia; a modorra e classismo do poder judicial; a

preguiça ética de uma sociedade com pânico moral; o espírito revanchista dos setores mais

conservadores da classe dirigente e das empresas de comunicação.

Segundo Zaffaroni (2016, p. 53), “[...] lo cierto es que la población latino-americana

está sufriendo los efectos de una construcción social de guerra permanente y como resultado

de esa construcción desarrolla comportamientos bélicos en el plano de la realidade”. Essa

maneira de agir é bastante regular e se nutre de um marco normativo ambíguo e alheio aos

princípios democráticos, revestindo-se de um denso entramado de representações, cultura

institucional, preconceitos e tradições que moldam o olhar sobre o delinquente, uma

carcacterização prefigurativa e um esquema que orienta a aplicação da força física e o uso de

armas, como também a naturalização da morte dos delinquentes como resultado de uma

equação elementarmente letal: se é delinquente, já está implícito que seja morto (abatido) e

isto nunca representa um homicídio em termos de tipificação legal, tampouco um assassinato

em matéria de representação social (CEPEDA et al., 2009, p. 137-138). Os delinquentes

enquadram-se, assim, na categoria dos “matáveis”, portadores de uma vida nua,

assemelhando-se à figura do homo sacer, na formulação doutrinária do Agamben (2007, p.

107): “[...] no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e

irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte como tal, sem que nenhum rito e nenhum

sacrifício possam resgatá-la”. Com efeito, “[...] o assassinato do homo sacer não constitui

homicídio” (AGAMBEN, 2007, p. 108).

As mortes anunciadas constituem, na realidade, uma mensagem dirigida aos outros

jovens dos bairros populares, bem como para membros familiares das vítimas, amigos e

eventuais testemunhas, que sofrem ameaças e distintas modalidades de intimidação (CELS,

2016, p. 75). E essas mensagens costumam surtir o efeito intimidatório pretendido, pois as

mortes figuram como resultado das práticas de violência que habitualmente não têm

consequências negativas para as carreiras de quem as desenvolve, pois na verdade

representam modos de reafirmar a autoridade policial nos territórios (CELS, 2016, p. 77). De

tal sorte, se não há controles (internos, externos, judiciais, políticos) nem se mostram sanções

38 “Gatillo fácil” é expressão amplamente usada na Argentina, principalmente pelos meios de comunicação, para

significar a ação, normalmente policial, de disparar armas de fogo de maneira inadvertida e abusiva, atingindo, nas mais das vezes, pessoas pobres.

169

oportunas e efetivas, as mortes montam uma trama que pode desembocar em meios de

garantir a impunidade e resultar nos piores extremos (CELS, 2016, p. 77).

Isso ocorre também porque, como denuncia Galeano (2010, p. 89), boa parte da

população aplaude, ostensivamente ou em segredo, os esquadrões da morte, que aplicam a

pena capital, ainda que a lei não a autorize, com a habitual participação ou cumplicidade das

polícias e militares. Como concluem Cepeda et al. (2009, p. 150), é preferível, em uma caçada

bélica:

[...] un tiro certero que una gran persecución, ya que la diferencia entre atrapar al delincuente vivo o muerto se desvanece como categoría diferencial. Y esto sólo es posible en el marco de un alto rédito social para los paladines de la restitución de la “seguridad”. Cueste lo que cueste.

Os executores de boa parte dessas mortes são pessoas com determinadas características

individuais que potencializam a sua prática, mas não se pode minimizar o reforço delas pelo

treinamento, potencialização interativa e introjeção de um discurso e de técnicas de

neutralização que normalmente singularizam as instituições policiais, contando, não

raramente, com o consentimento da cúpula, que contribui para a reprodução institucionalizada

da deterioração da personalidade e condicionamento de comportamentos homicidas

(ZAFFARONI, 2016, p. 157).

Nenhum país da região poderia institucionalizar a pena de morte com a extensão com

que são praticadas as mortes institucionais, porque isso seria inadmissível perante os

organismos judiciais regionais e internacionais, e os alvos habituais não poderiam ser

submetidos a penas de morte formais, pois os crimes de que são acusados não têm a pena

capital como consequência proporcional (ZAFFARONI, 2016, p. 174). São, normalmente,

acusados de roubos ou de tráfico de drogas, quase sempre, de pequeníssima monta. Eles são,

pois, vítimas de execuções sem processo, os mesmos que há dois séculos são perseguidos por

viverem uma “má vida”, convertendo-se, pela sua inadaptação ou marginalização, em

indesejáveis sociais (ZAFFARONI, 2016, p. 174).

O mais desolador é que não existem estratégias específicas, por parte das autoridades,

para abordar responsavelmente esse problema, uma vez que a prática generalizada de matar

nessas condições sequer é visualizada como um problema, conduzido muitas vezes como

resultado inevitável do enfrentamento à delinquência. Essa foi a percepção que o CELS

consolidou como resultado do mapeamento das políticas destinadas a trabalhar sobre estas

relações conflitivas na cidade de Buenos Aires e nas províncias de Buenos Aires, Chaco,

170

Mendoza e Santa Fé (2016, p. 81). Não é difícil perceber que a mesma conclusão aplica-se

facilmente à realidade dos estados e das grandes cidades brasileiras, cujos representantes

políticos costumam acompanhar a mesma senda de naturalização das mortes, por meio de um

silêncio conivente e, não raro, apoio explícito às ações policiais com resultado morte, sem

qualquer juízo crítico sobre a maneira de atuação - isso quando não agem diretamente, como,

ex. g., fez o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que, em maio de 2019, embarcou

em um helicóptero acompanhado de snipers para metralhar comunidades carentes, chegando-

se a atingir uma tenda religiosa, confundida com uma casamata do tráfico (O GLOBO, 2019).

Somente de uma maneira é possível visibilizar tais mortes e então, ainda que de modo

tímido, problematizar-se: quando se demonstra que o morto pela polícia era inocente

(CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 94). Não raro, os meios de propagação coletiva legitimam

as mortes anunciadas, quando não ostensivamente, ressaltando os antecedentes do falecido,

em velada maneira de reduzir as reações sociais que, por sua vez, somente aparecem se a

pessoa “não tinha passagem pela polícia”. No entendimento de Zaffaroni (2016, p. 161), “[...]

el comportamento de las agencias de comunicación social es extremadamente importante en

la dinámica de las muertes anunciadas, pues sin su concurso carecerían de toda

funcionalidade”. Os media conformam uma lógica perversa que, contrario sensu, significa

que, se há notícia de envolvimento anterior com prática delitivas, a morte surge como

consequência quase natural e, portanto, aceitável.

Os próprios entes familiares da vítima se apressam a verberar o “passado limpo” do seu

morto, como uma maneira de encontrar empatia e apoio sociais, que, de outro modo, não

viriam. Buscar o apoio midiático, portanto, é fundamental para legitimar a dor pela perda do

ser querido executado e até mesmo ter o direito de senti-la publicamente. Isso porque, se o

falecido tinha antecedentes criminais, o jeito como morreu já não importa, pois, para o

“tribunal das ruas”, a morte foi procurada, restando aos componentes familiares a dor privada,

envergonhada, indigna de ser sentida e a ela concedida publicidade, por homenagear uma vida

que sequer é digna de ser vivida e, menos ainda, reivindicada.

Além disso, como percebem Canavesio, Damone e Magistris (2009, p. 175) em sua

pesquisa, nos testemunhos de juízes e promotores de justiça sobre tais mortes, somente há

interesse em investigar a possibilidade de um homicídio em um enfrentamento, quando há

provas prévias (difíceis de desconsiderar), pois, do contrário, se limitam ao fato que foi o

presumido delito que deu origem ao enfrentamento. Assim, somente quando a versão policial

171

reluz absurda é que se põe em questão a morte do delinquente (CANAVESIO; DAMONE;

MAGISTRIS, 2009, p. 175). Em outras palavras, a ação estatal, que se presume deva ocorrer

desvestida de preconceitos e representações sociais acríticas, na realidade, obedece a mesma

lógica normalizadora das mortes, que somente é rompida ante evidências incontrastáveis

(quase nunca alcançáveis) de eliminação física de teor criminoso perpetrada pelas forças

estatais. Os órgãos estatais, então, sobram enredados em um estado de guerra, cujas

consequências para a própria existência e funcionamento da democracia são bastante funestas,

caso se atente para a advertência de Agamben (2004, p. 13):

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários politicos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema politico. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.

A inércia estatal brasileira no tocante ao enfrentamento à situação das mortes praticadas

por agentes estatais foi alvo de recente condenação por parte da CorteIDH, no Caso Favela

Nova Brasília x Brasil, sentenciada em 16 de fevereiro de 2017, no qual a CorteIDH declarou

a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação dos direitos às garantias judiciais de

independência e imparcialidade da investigação, devida diligência e prazo razoável, do direito

à proteção judicial, e do direito à integridade pessoal, com respeito às investigações de duas

incursões policiais na Favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, que resultaram em execuções

extrajudiciais de 26 pessoas pela Policía Civil no dia 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de

1995, listadas como “autos de resistência”, além de, no mesmo dia 18 de outubro de 1994,

três mulheres, duas delas adolescentes, terem sido vítimas de torturas e violência sexual por

parte de agentes policiais (CORTEIDH, 2017 b).

A CorteIDH considerou que investigações realizadas pela polícia civil do Rio de Janeiro

não cumpriram os mínimos padrões de devida diligência em casos de execuções extrajudiciais

e graves violações de direitos humanos que outros órgãos estatais tiveram a oportunidade de

retificar a investigação e não o fizeram (CORTEIDH, 2017 b). Ademais, é importante o

destaque concedido pela Corte de que, apesar da extrema gravidade dos fatos narrados, as

investigações realizadas se mantiveram tendenciosas em decorrência da concepção prévia de

que as vítimas haviam morrido em consequência das próprias ações, num contexto de

enfrentamento com a polícia (CORTEIDH, 2017 b). A CIDH, inclusive, ao submeter o caso à

CorteIDH, já havia identificado o fato de que a investigação dos eventos mencionados

172

demonstrou objetivo de estigmatizar e “revitimizar” as pessoas assassinadas, dando enfoque à

sua culpabilidade e não na verificação da legitimidade do uso da força (CORTEIDH, 2017b).

Dentre as reparações impostas pela CorteIDH, importa destacar algumas de caráter geral e

incidência mais abrangente impostas ao Estado brasileiro:

vii) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos do presente caso e sua posterior investigação, durante o qual deverão ser inauguradas duas placas em memória das vítimas da presente Sentença, na praça principal da Favela Nova Brasília; viii) publicar anualmente um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da polícia em todos os estados do país e com informação atualizada anualmente sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente que redunde na morte de um civil ou de um policial; ix) estabelecer os mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado, ou acusados; x) adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial; xi) implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro e a funcionários de atendimento de saúde; xii) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela polícia ou pelo Ministério Público; xiii) adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão “lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial” nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial. O conceito de “oposição” ou “resistência” à ação policial deverá ser abolido. (CORTEIDH, 2017b).

Apesar da condenação enfática pela CorteIDH, os números de mortos no Brasil em

enfrentamentos (supostos ou reais) prosseguiu em assustadora crescente, em particular, no Rio

de Janeiro, como mostram os números de pesquisa feita pelo Projeto Monitor da Violência,

que iniciou em 2015, de uma parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da

Universidade de São Paulo (USP), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Portal G139.

Em 2015 foram 3.330 pessoas mortas pela polícia (645 no RJ); em 2016 foram 4.222 e 925 no

RJ; em 2017, 5.225, sendo 1.127 no RJ; em 2018, policiais mataram 6.160 pessoas, sendo

1.534 no RJ (ESPECIAIS G1, 2019a). Em quatro anos, portanto, chega-se ao total de 18.937

pessoas, quantitativo correspondente à população de boa parte dos municípios brasileiros. É

possível perceber um aumento continuado nos mencionados anos, demonstrando que o

39 Os dados de 2015 e 2016 são dos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; os de 2017 e 2018 são

do G1 e obedecem o mesmo padrão metodológico

173

fenômeno não tende a arrefecer, superando em muito a quantidade de mortes em conflitos

armados ocorridos no mundo, recentemente.

O número de mortes produzido pelo aparato repressivo estatal conduz à absurda média

de uma morte a cada 85 minutos no ano de 2018. Considerando-se que o total de mortes

violentas no País chegou a 51.589 em 2018 (ESPECIAIS G1, 2019b), percebe-se que

praticamente 12% foram praticadas pelo Estado. Ademais, o crescimento de 2017 a 2018 vai

na contramão do índice de mortes violentas no Brasil, que experimentou uma queda de 13%

em 2017 e 2018 (G1, 2019). Não menos relevantes são os números de mortes de agentes da

segurança pública no Brasil, embora se verifique um nítido viés de queda. Em 2017 foram

374, enquanto em 2018 se registraram 307 (redução de 18%) (G1, 2019).

No que diz respeito às mortes ocorridas no interior de estabelecimentos prisionais ou de

internação de adolescentes em conflito com a lei, a invisibilização é ainda maior. Espaços

impermeáveis à inspeção pública por excelência, os cárceres convertem-se em locais perfeitos

para a eliminação física de indesejáveis, principalmente porque existe o álibi ideal de que tais

mortes ocorreriam, em sua maioria, por suicídio ou praticada por outros internos, em brigas de

facções. Uma vez estabelecidas previamente as explicações oficiais, acriticamente publicadas,

não há maior problematização ou investigação sobre as reais causas das mortes. Isso quando

não ocorre a pura e simples desconsideração da morte, quando o preso, o que não é raro, não

tem membros familiares ou amigos que o reclamem, além de se encontrarem fora do raio de

ação e atenção de entidades de direitos humanos e – o que é também muito grave - dos seus

defensores.

Registre-se, por oportuno, o fato de que o fenômeno das “mortes institucionais” não

deve ser analisado por meio de uma parcialização do discurso, no sentido de minimizar a

gravidade do igualmente alto número de passamentos de agentes das forças de segurança

(como já mostrando em números). Na opinião de Zaffaroni (2016, p. 129), tal proceder apenas

reforça o discurso bélico corrente na constituição social da realidade, significando, tão-

somente, uma inversão do objeto do discurso, que sempre continua sendo o falso discurso de

“guerra”, cuja nota refalsada é precisamente o fato de que não há uma guerra, pois ambos -

funcionários e não funcionários - são vítimas do sistema penal (um dos modi operandi de

exercício de poder) e que todos são alvos de violações ao direito humano à vida.

174

Importante é considerar, como o faz Zaffaroni (2016, p. 159), que a maior parte dos

policiais é recrutada dos mesmos setores humildes da população onde estão os mortos

institucionais e os criminalizados, devendo transitar e habitar as zonas de seus “inimigos” na

guerra fabricada, correndo semelhantemente os riscos a que estão sujeitos quaisquer

habitantes dessas zonas, com o agravante de ser vítima de homicídio, por vingança ou medo,

caso seja descoberta a sua condição de policial. De fato, policiais saem de suas casas

diuturnamente com a árdua e imprecisa missão imposta de combater inimigos públicos

constituídos e que, invariavelmente, pertencem à mesma classe social de onde provêm. Não

raramente, são obrigados a intervir em situações nas quais estão em evidente inferioridade de

armas, sem condições de avaliar adequadamente como agir, precisando decidir em frações de

segundos sobre o uso de equipamentos letais, em relação aos quais nem sempre foram

adequadamente treinados, além de sujeitos à execração em caso de erros graves. Expõem suas

vidas (e a de sua família do mesmo jeito), a maioria deles imbuída do sentimento de buscar a

paz social almejada, mas que, ao contrário, resta cada vez mais distante pelo discurso e

práticas permanentes de guerra, aos quais, muitas vezes, inconscientemente, aderem. São

condições que se combinam para incrementar o fenômeno das mortes anunciadas, dentre as

quais figuram, também, embora em menor proporção, as de agentes da segurança pública.

2.4.2 Tortura

Como historia o sociólogo Oliveira (2014, p. 462), a tortura acompanha a própria

experiência humana, abrangendo desde um antropoide atormentando um inimigo até negros

da África do Sul amarrando um pneu em chamas no pescoço de um delator, na época do

apartheid, ou as atrocidades do nazismo e do comunismo, e do anticomunismo na América

Latina. No Brasil, dada a persistência de uma estrutura social escravagista, como já aludido

em várias oportunidades neste estudo40, é fácil perceber a continuidade dos castigos físicos

aplicados pelos capitães-do-mato sobre os negros escravos insubordinados ou fugitivos e os

sofrimentos aplicados pelos policiais, ainda hoje, sem maiores consequências, sobre qualquer

marginal pobre, o que acentua a certeza de que a abolição da tortura em terras brasileiras é

apenas de fachada, ou somente válida para certos setores da sociedade, enquanto persiste em

relação às classes subalternas (OLIVEIRA, 2014, p. 466-467).

Os consensos internacionais definidores de tal prática tardaram muito a se estabelecer.

Apesar de, desde o século XVIII, com o pensamento iluminista, haver fortes argumentos 40 Ver, sobre o assunto, a subseção 2.2 desta tese: Seletividade penal no Brasil.

175

contra a tortura41, seu conceito somente foi delineado pela Assembleia Geral da ONU em

1984, funcionando, desde então, como verdadeiro guia a orientar as diversas ordens jurídicas

nacionais que, com a mesma veemência, condenam qualquer modalidade de tratamento

desumano ou degradante. Com efeito, define a ONU no art. 1º da Convenção contra a tortura

e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adotada pela Resolução nº

39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984:

Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa, com o fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões, de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido, de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou qualquer outra pessoa no exercício de função pública, ou por sua instigação, ou com seu consentimento e aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

No mesmo sentido opera a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura,

cujo art. 2 reza:

Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo. (OEA, 1985).

Hoje a tortura é absolutamente proibida no Direito Internacional, não havendo

possibilidade de sua utilização lícita em nenhuma circunstância, por ser uma negação dos

propósitos da Carta das Nações Unidas e uma violação à DUDH (FOLEY, 2013, p. 39).

Promulgada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, a DUDH reza: “[...] ninguém será

submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (ONU,

1948). De igual modo, dispõe o art. 7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

(PIDCP), segundo o qual “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou

tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa,

sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas” (ONU, 1966).

A CADH, em seu art. 5º, que trata do direito à integridade pessoal, exprime: 41 Ver, por todos, BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Silene Cardoso. São Paulo: Ícone, 2006.

176

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. (OEA, 1969).

Na ordem jurídica brasileira, o inciso III do art. 5º. da CF/88, buscando inspiração em

tais documentos internacionais, dispõe que “[...] ninguém será submetido a tortura nem a

tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988). Há norma ainda mais específica no

inciso XLIII do art. 5º, pretendendo dar tratamento austero aos praticantes desse delito,

equiparou-o a crime hediondo, localizando-o dentre os mais graves ilícitos, com a aplicação

de severo tratamento penal e processual penal42. Apesar de constituir uma norma que

necessitou de legislação infraconstitucional para uma melhor especificação, tal previsão já

mostra o posicionamento intransigente do legislador constituinte para com atos de tortura. A

lei ordinária disciplinadora deste dispositivo constitucional foi a de nº 8.072/90, de 25 de

julho de 1990, chamada de Lei dos Crimes Hediondos (BRASIL, 1990). Por meio desta,

ficaram vedados aos praticantes dos crimes nela elencados os benefícios de anistia, graça,

indulto, fiança, liberdade provisória43 e progressão de regime44 (BRASIL, 1990). Por outro

lado, as penas dos crimes nela indicados foram aumentadas. Posteriormente, em 07 de abril de

1997, foi editada lei específica para tipificação e repressão ao crime de tortura. Recebendo da

doutrina o nome de Lei de Tortura, a Lei nº 9.455/97 (BRASIL, 1997) estabeleceu as diversas

maneiras como pode se apresentar este abominável delito45.

Órgãos de monitoramento foram igualmente delineados com a finalidade específica de

prevenir, acompanhar e denunciar atos de tortura em todo o mundo, além de coordenar ações

em seu combate. Em junho de 2006, entrou em vigor o Protocolo Facultativo das Nações 42 Art. 5º, XLIII: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o

tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (BRASIL, 1988) (Grifoou-se).

43 A Lei nº 11.464, de 29 de março de 2007, modificando o regime da Lei de Crimes Hediondos, não mais veda a concessão de liberdade provisória para os praticantes destes delitos (BRASIL, 2007).

44 A Lei nº 11.464, de 29 de março de 2007, modificando o regime da Lei de Crimes Hediondos, não mais veda a concessão de progressão de regime, subordinando a concessão deste aos seguintes requisitos: cumprimento de dois quintos da pena, para criminosos primários, e três quintos da pena para criminosos reincidentes (BRASIL, 2007). Ver capítulo 1, subseção 1.2.1 (estrutura geral do sistema prisional brasileiro).

45 Para cada uma destas modalidades, a tortura recebe um epíteto: a) tortura-persecutória ou tortura prova (art. 1º, I, a - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa) (BRASIL, 1997); b) tortura-crime ou tortura-para-a-prática-de-crime (art. 1º, I, b - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa) (BRASIL, 1997) c) tortura-racismo ou tortura-discriminatória (art.1º, I, c - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental em razão de discriminação racial ou religiosa) (BRASIL, 1997); d) tortura-castigo (art. 1º, II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo) (BRASIL, 1997).

177

Unidas contra a Tortura e de outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes

(OPCAT), ratificado pelo Brasil em 2007 (ONU, 2006). Tal Protocolo cria o Subcomitê de

Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes

(SPT), bem como requer aos Estados a criação de mecanismos nacionais de prevenção, com a

finalidade de cooperação. Esses órgãos somam-se aos já existentes, como o Comitê de

Direitos Humanos, no âmbito global, e a CIDH e CorteIDH, na contextura regional.

Não é vã esta preocupação do legislador – tanto constituinte quanto infraconstitucional

– em dar tratamento específico à repressão à tortura, porquanto, infelizmente, ainda é uma

prática constante no Brasil a sua utilização como instrumento para a consecução dos mais

diversos fins, com destaque para a tortura persecutória e a tortura-castigo, normalmente

levadas a efeito contra as pessoas sob a custódia do Estado, seja em caráter provisório, seja

para cumprimento de pena privativa de liberdade46. De igual maneira, as previsões

constitucionais representam indiscutível reação ao regime autoritário anterior, que se utilizou

da tortura sistemáticamente para punir e perseguir opositores da ditadura militar instaurada.

Saliente-se, contudo, que o aparato repressivo imposto ao País em 1964, que se valia

amplamente da tortura, não foi uma invenção do regime militar, bastando, para comprovar

isso, ver os formatos utilizados, pelos senhores de escravos, como o “pau de arara”, por

exemplo (OLIVEIRA, 2014, p. 467-468)47.

A tortura continuou clandestinamente a fazer parte do trabalho policial e da rotina das

prisões, unidades de internação e manicômios, mesmo após a redemocratização, fazendo

vítimas preferenciais entre pessoas suspeitas de crimes, afrodescendentes, jovens moradores

das periferias de grandes cidades e presos (JESUS, 2010, p. 19). O mesmo ocorreu na

Argentina, como noticia Daniel Rafecas, onde, nos anos de 1980 e 1990, a tortura (e outras

práticas, como execuções e procedimentos policiais fraudados) manteve-se vigente como

mera continuação, em períodos democráticos, das mesmas técnicas que antes as agências

policiais utilizavam contra os perseguidos políticos e que passaram a ser dirigidas a outros

coletivos considerados desviados ou perigosos (RAFECAS, 2015, p. 111).

46 A Lei 9.455/97 estabelece também norma específica relacionada à repressão de crimes de tortura praticados

contra pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade. Assim dispõe o §1º do art. 1º deste diploma legal: “Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”. (BRASIL, 1997). Ademais, estabelece como causa de aumento de pena (de um sexto a um terço) o fato de ter sido o crime cometido por agente público (art. 1º, §4º, I) (BRASIL, 1997).

47 Ademais, já nas Ordenações Filipinas, que vigeram no Brasil de 1693 a 1830, constava a regulamentação do uso dos tormentos no artigo CXXXIII, do livro V.

178

O problema da maior vulnerabilidade dos pobres à violência, portanto, não é

peculiaridade brasileira e, por essa razão, foi objeto de cuidado da CIDH, que em 2016

elaborou informe sobre pobreza, pobreza extrema e direitos humanos nas Américas, deixando

assentado que:

Asimismo, la Comisión ha señalado que los adolescentes varones, que viven en situación de pobreza, pertenecientes a grupos tradicionalmente discriminados y excluidos, entre ellos los afrodescendientes y de otras minorías, están especialmente estigmatizados en estos contextos y son los que más padecen las circunstancias de la violencia y la inseguridad. (CIDH, 2016a).

No monitoramento realizado em 2016, especificamente no que se refere à situação dos

adolescentes em conflito com a lei, a Relatoria identificou a ausência de uma completa

adequação dos ordenamentos jurídicos e as práticas de todos os países da região, sem

exceção, aos patamares interamericanos e universais em matéria de justiça juvenil e às

recomendações da CIDH (CIDH, 2016a). A CIDH demonstrou específica preocupação com

as precárias condições de privação da liberdade e pelas situações de violência, tratos cruéis,

desumanos, degradantes e de tortura, dos quais teve conhecimento e que motivam

manifestações públicas de preocupação pela CIDH e a adoção de medidas cautelares,

especialmente em relação ao Brasil (CIDH, 2016a).48

São reiteradas as manifestações da ONU denunciando práticas de tortura e demais

tratamentos desumanos e degradantes, além de recomendações específicas em relatórios. Na

mais recente incursão, em novembro de 2016, o representante regional para América do Sul

do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo Incalcaterra,

afirmou que a impunidade em casos de tortura praticados por agentes públicos contra presos

se tornou regra – e não exceção – no sistema penitenciário brasileiro (ONU, 2017a).

Especialistas do Subcomitê sobre a Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas

Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT) das Nações Unidas visitaram 22 locais de detenção

no Rio de Janeiro, Manaus, Recife e Brasília de 19 e 30 de outubro de 2015, produzindo um

relatório que foi entregue às autoridades brasileiras em 25 de novembro de 2016, no qual

citaram frequente ocorrência de tortura e maus-tratos nas prisões, superlotação e controle das

48 CIDH, comunicado de prensa, CIDH condena hechos de violencia en centros de detención en Pernambuco,

Brasil, 23 de noviembre 2016. CIDH, medida cautelar No. 302-15, Asunto adolescentes privados de libertad en el Centro de Atención Socioeducativo del Adolescente (CASA), de 21 de julio 2016; CIDH, medida cautelar No. 60-15 Adolescentes privados de libertad en centros de atención socioeducativa de internación masculina en el estado Ceará, Brasil, de 31 de diciembre de 2015 la cual sigue vigente al 31 de diciembre de 2016. CIDH, comunicado de prensa al finalizar el 160 periodo extraordinario de sesiones, CIDH concluye el 160º Período de Sesiones, 19 diciembre 2016.

179

unidades penitenciárias por facções criminosas com a permissão tácita do Estado (ONU,

2017b).

Segundo o documento, que reitera muitos aspectos de outro relatório, de 2012,

recomenda-se que: as autoridades brasileiras redobrem seus esforços no combate aos maus-

tratos, implementando um sistema de investigação que combata a impunidade e promova a

ética no treinamento de funcionários das penitenciárias com ênfase em direitos humanos; a

implementação imediata de procedimentos internos para garantir investigações consistentes

de acusações de tortura e maus-tratos envolvendo forças policiais, medidas disciplinares

apropriadas ou processo criminal quando as investigações revelarem que tais atos foram

cometidos (ONU, 2017b). De acordo com o relatório, a tortura e os maus-tratos cometidos por

policiais não são detectados por funcionários do Instituto Médico Legal (IML), onde presos e

detidos são examinados para verificar sinais de tortura (exames realizados de maneira

superficial e ineficaz, e os presos não são questionados sobre a causa de seus ferimentos ou a

maneira com a qual são tratados pelos policiais que os prenderam), principalmente em razão

da falta de independência dos IMLs que, em muitos Estados, são subordinados às autoridades

administrativas da polícia ou a secretarias públicas de segurança (ONU, 2017 b).

A necessidade de intervenção de organismos internacionais de proteção dos direitos

humanos mostra que o Estado brasileiro continua mantendo na impunidade os casos de tortura

praticados por agentes públicos, a despeito do elevado número de denúncias formuladas

rotineiramente pelas entidades da sociedade civil, comprovadas pelos órgãos de

monitoramento nacionais e internacionais. Como identifica Maria Gorete de Jesus, os casos

de tortura não chegam ao conhecimento público e quase nunca são investigados, e, quando o

são, as conclusões dos órgãos de persecução tendem a declarar que a agressão não constitui

crime de tortura (principalmente quando atinge presos), exceto quando tais fatos são

acompanhados por entidades de direitos humanos, ou quando atingem segmentos sociais de

grande visibilidade (JESUS, 2010, p. 36).

Isso pode indicar que, “[...] no momento do julgamento não se problematiza o ato

criminoso da tortura contra um ser humano, mas se este humano é titular de um direito, se ele

é considerado um mebro da comunidade, de um mundo comum em que as pessoas são vistas

como iguais e como cidadãs” (JESUS, 2010, p. 52). O aparato repressivo estatal, tão pródigo

em abater-se ferozmente sobre os infratores da lei penal, o faz de modo bastante tímido

quando os réus são torturadores, principalmente se fazem parte desse aparato, voltando a

180

sanha persecutória, na realidade, contra aqueles que deveria proteger na oportunidade: aqueles

que são submetidos aos tormentos.

Como exemplo, menciona-se o Relatório Final da Campanha Nacional Permanente de

Combate à Tortura e à Impunidade, que apontou a resistência do Ministério Público em

receber as denúncias fornecidas pelas centrais de denúncias e dar prosseguimento às

investigações como sendo o principal obstáculo para o sucesso da campanha (CEJIL, 2004, p.

17). Tal relatório foi elaborado com a finalidade de verificar a implementação das

recomendações feitas pelo relator das Nações Unidas sobre Tortura, na época, sir Nigel

Rodley, que, em visita ao Brasil, identificou a prática “sistemática e generalizada” da tortura

em Brasilía e em cinco capitais de estados brasileiros (CEJIL, 2004, p. 7).

Há que se agregar ainda as graves dificuldades brasileiras no que concerne ao respeito à

memória e verdade em relação ao período ditatorial, que legou a impunidade dos torturadores

como mau exemplo para a sociedade, fruto não somente da Lei de Anistia de 1979, mas,

principalmente, também, das sistemáticas negativas da existência de tais práticas,

constituindo-se um discurso que sequer é seriamente problematizado, como ocorreu, por

exemplo, em vários países vizinhos da América do Sul. Essa atitude brasileira de “apagar” os

crimes cometidos pelo Estado como sustentáculos do regime militar, sufragada pelo STF ao

considerar constitucional a Lei de Anistia, mereceu condenação na CorteIDH, no caso Gomes

Lund vs Brasil49.

Mesmo na Argentina, que tem histórico recente de persecução e condenação de autores

de crimes de tortura durante o regime ditatorial, Rafecas (2015, p. 409) demonstrou, em densa

pesquisa, baseada em estatísticas e repertórios jurisprudenciais analisados sistemáticamente,

49 Entre as disposições da CorteIDH, é possível ler, entre os pontos resolutivos: 3. As disposições da Lei de

Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil; (...) 5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da 114 mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma (CORTEIDH, 2010b).

181

“[...] las dificultades que evidencia el Estado argentino cuando se trata de criminalizar este

tipo de comportamentos ilícitos cometidos por agentes estatales”.

No que diz respeito ao ambiente carcerário, este constitui território ainda mais sensível

no que diz respeito a aspectos relacionados a tortura e demais tratamentos desumanos ou

degradantes. Isso porque, como já estudado, historicamente, o cárcere foi utilizado como

destino preferencial daqueles que “merecem” ser supliciados, assim como se constitui no

ambiente perfeito, dada a sua invisibilidade, para que a insidiosidade característica dos

tormentos encontre seu ambiente mais propício para proliferar. Por essas razões, as normas de

direitos humanos e fundamentais preveem proteção específica (ainda que redundante) contra a

tortura e demais tratamentos desumanos ou degradantes que vitimam aqueles que estão

privados de liberdade. Assim, o PIDCP estabelece em seu art. 10 (1): “Toda pessoa privada de

sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa

humana”. (ONU, 1966). De igual modo, e sendo ainda mais específica, a CF/88 estatui em

seu art. 5º, XLIX: “[...] é assegurado aos presos o repeito à integridade física e moral” (sic).

(BRASIL, 1988). Sobra estabelecido, portanto, um acabouço normativo que deve ser seguido

de preocupações institucionais de atenção reforçada e especializada em relação à tortura no

cárcere.

Levando-se em consideração as condições dos estabelecimentos prisionais brasileiros,

mormente no tocante a superlotação, condições de salubridade e desrespeito aos mais básicos

direitos humanos, não há como escapar à constatação de que sua existência configura

indiscutível atentado à vedação constitucional do tratamento desumano ou degradante (art. 5º,

III, CF/88), entendido como aquele aviltante, humilhante, restritivo da dignidade humana50.

Assim, mesmo sem a específica análise da utilização da força ou de outros elementos para

causar intenso sofrimento físico e mental, o próprio sistema, da maneira como existe,

possibilita que a maioria dos presos brasileiros esteja em permanente condição de vítimas de

tortura. Assim, utilizando-se analogicamente da figura do “estado de coisas

inconstitucional”51, pode-se concluir que o sistema carcerário brasileiro constitui um “estado

de coisas torturante”, na medida em que, sistemática e generalizadamente, pela própria

maneira de apresentação, produz e normaliza tratamento desumano ou degradante e tortura.

50 Sobre as condições dos cárceres brasileiros e a decretação de um estado de coisas inconstitucional, ver

subseção 2.2 deste tratado. 51 O assunto é estudado específicamente no segmento 2.3 desta tese de doutoramento.

182

Centrando-se, contudo, na aplicação de tormentos físicos, cabe a pergunta: qual o grau

de legitimidade da prática de violências físicas contra presos comuns? É corrente afirmar-se

que é o caso de uma ação legítima, profundamente aceita na consciência social, ao ponto de se

manter intocada ao correr dos anos, na vigência de regimes relativamente democráticos ou

quando vigoram regimes autoritários (FAUSTO, 2014, p. 183). Some-se a isso o fato de que

há certa aceitação de tais práticas sob o pretexto de conter rebeliões e evitar fugas, quando a

força estatal costuma se abater de modo tão desmedido que, não raro, enseja tragédias como a

do massacre do Carandiru, conforme sobejou conhecida a execução de 111 presos pela PM de

São Paulo, em outubro de 1992.

Tais acontecimentos costumam repetir-se cotidianamente, o que é ainda mais paradoxal

em um país no qual há dezenas de instituições, cujas atribuições são, direta ou indiretamente,

ligadas à fiscalização dos cárceres. Para ficar somente nos previstos na LEP, conforme seu art.

61, são órgãos da execução penal: I - o Conselho Nacional de Política Criminal e

Penitenciária (CNPCP); II - o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho

Penitenciário; V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da

Comunidade; VIII - a Defensoria Pública (BRASIL, 1984). Todos, portanto, em maior ou

menor grau, fracassam rotundamente em sua missão de garantir a integridade física e também

moral de pessoas privadas de sua liberdade. Reforça-se, desse modo, uma das ideias

condutoras da tese ora sob relação: a dignidade humana de determinadas pessoas, de acordo

com a sua condição social, é simplesmente desconsiderada.

Na América Latina, conforme noticia Galeano (2010, p. 93), os “apremios ilegales”

aplicam-se, desde sempre, aos delinquentes comuns ou àqueles que tenham cara de

delinquente, consistindo, inclusive, em costume normalizado que a polícia arranque

confissões mediante métodos de tormento idênticos aos que as ditaduras militares aplicaram

aos presos políticos. No Brasil, “[...] boa parte da opinião pública convive pacificamente com

a ideia de que a polícia pode prender e bater em delinquentes. Por mais desconfortável que

seja admití-lo, isso integra o nosso senso comum” (OLIVEIRA, 2014, p. 467). É decantada,

ainda, a opinião sobre a sua efetividade para a obtenção de confissões e delações. Recorre-se

aos tormentos como método mais rápido e eficaz para se obter informações, de sorte que isso

é havido como metodologia natural por alguns agentes públicos e uma “técnica” investigativa

que supera as demais, visualizadas como ingênuas e frágeis. “A natureza imoral dos suplícios

desaparece aos olhos daqueles que os fazem funcionar, confundindo-se primeiro com razões

183

de Estado e depois com a qualidade do desempenho que dá às investigações” (GASPARI,

2002, p. 19-20).

Apesar do consenso social que legitima a tortura sobre determinados grupos sociais, sua

ignomínia é tão flagrante que, mesmo regimes abertamente autoritários, que desdenharam o

humanismo em relação a certos grupos de pessoas, não assumem publicamente a sua prática,

indicando que os torturadores são conscientes de que seus atos ultrapassam os limites do que

se considera admissível em uma “guerra civilizada” (OLIVEIRA, 2014, p. 468-469). Assim, a

tortura não consta como método explícito de combate ao crime, mas continua sendo utilizada

extralegal e clandestinamente, com apoio social, sob o argumento da necessidade decorrente

do aumento da criminalidade (JESUS, 2010, p. 18). A percepção de que a tortura é praticada

em defesa da sociedade, contudo, é falsa, conforme ensina Elio Gaspari (2002, p. 25), pois ela

não é instrumento da lei, mas do Estado, utilizada, em determinados momentos, contra certas

ameaças, para atingir objetivos específicos.

Pesquisas como a de Jesus (2010, p. 3352) mostram que a tortura não atinge a todos

igualitáriamente, por se basear em critérios cuja linha mestra é a distinção desde o

reconhecimento do outro como cidadão, explicando-se, assim, por que, historicamente,

sempre se abateu sobre escravos, estrangeiros, grupos raciais, étnicos e religiosos bem

definidos. A dor sobre os copos dos dominados é, por outro lado, “[...] concebida como forma

de controle, poder e ordem, além de ser considerada também uma forma de desenvolvimento

moral e social” (JESUS, 2010, p. 38).

Os defensores, por sua vez, buscam demonstrar que seus constituintes (réus de tortura)

são servidores públicos exemplares, merecedores de mais credibilidade do que a vítima, que,

por sua vez, não seria digna de confiança por possuir antecedentes criminais, por exemplo,

pondo em xeque sua versão e alegando situações de autolesão ou de lesões produzidas por

terceiros (JESUS, 2010, p. 116). Há, também, a se destacar a omissão que muitas vezes

acompanha a atuação de advogados e defensores públicos que, em sua atuação diuturna,

deparam situações com sensíveis indícios de tortura e não empregam todo o empenho

52 Mencionada pesquisa consisitiu na análise minuciosa de 57 processos criminais em tramitação em todas as

varas criminais do Fórum da Barra Funda, no Estado de São Paulo, pelo crime de tortura nos anos de 2000 a 2004, assim como os inquéritos que deram origem às ações penais. (JESUS, 2010, p. 92). Como resultado, identificou o fato de que, dos 181 agentes do Estado acusados pelo crime de tortura, 127 foram absolvidos, 21 tiveram o crime desclassificado para outro mais brando e apenas 33 foram condenados (apenas 18%). Quando os acusados eram civis (12), metade foi condenada por crime de tortura (IBIDEM, p. 98).

184

necessário para movimentar a máquina estatal no sentido de inculpar os responsáveis,

acompanhando a inércia do Ministério Público (pelas razões apontadas) e do Judiciário53.

Digna de nota, nos processos por crime de tortura, é a enorme dificuldade de se

encontrar testemunhas quando o crime é praticado pelos agentes do Estado. Há um enorme

receio de represálias, que se transforma em absoluto silêncio, quando os atos criminosos

ocorrem no interior de carceragens. Estando completamente à mercê dos torturadores,

eventuais testemunhas ou vítimas, muitas vezes sem a necessária assistência jurídica e certas

da impunidade de seus algozes, não possuem a necessária liberdade para depor, mormente

quando o inquérito é realizado na própria delegacia.

Ademais, mesmo quando o silêncio é rompido, suas versões dos fatos, malgrado ricas

em detalhes e provas, normalmente não são dignas de credibilidade perante o Judiciário, que

geralmente confere mais valor à palavra dos agentes estatais, como já aludido. “Não é mais o

crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima” (JESUS, 2010, p. 167). Como percebe

Conor Foley, os juízes brasileiros precisam ficar mais atentos às possibilidades de tortura,

pois os sucessivos relatórios da ONU demonstram que os magistrados, raramente, se

preocupam com o tratamento de detentos durante as investigações ou cumprimento de pena,

muito menos tomam providências para remediar tais situações (FOLEY, 2013, p. 94).

Destaque-se, ainda, a total ausência de responsabilização nos casos de omissão. Com

efeito, o art. 1º, §2º da Lei nº 9.455/1997 estabelece que aquele que se omite em face do crime

de tortura, quando tinha o dever de evitá-lo ou apurá-lo, incorre na pena de detenção de um a

quatro anos (BRASIL, 1997). Jesus (2010, p. 70), em sua pesquisa, não identificou nenhum

caso da citação de agentes penitenciários ou delegados como enquadrados no fato típico

apontado, em eventos nos quais há tortura de um preso por outro(s), no interior das

carceragens que estavam sob a sua vigilância. De fato, como já aludido, se, até mesmo, os

casos de ação criminosa têm como resultado, normalmente, a impunidade, com muito maior

frequência, continuam invisibilizadas as ocorrências nas quais se pratica o crime por omissão.

Nessas situações, é obrigação desses agentes públicos tomar todas as precauções para evitar

os atos de tortura e, uma vez verificados, empenhar esforços para a sua persecução criminal.

O resultado de todas essas situações, constituídas, toleradas ou inevitáveis, é apontado

por Jesus (2010, p. 81), que conclui de sua pesquisa que “[...] a punição de agentes do Estado 53 As modalidades de atuação que a Defensoria poderia assumir nessas situações são tratadas na subseção 4.1

desta tese.

185

pela prática de tortura é irrelevante, face ao pequeno número de condenações, no já reduzido

universo de casos que acabam chegando ao conhecimento dos órgãos encarregados de apurar

as agressões”. Resta, portanto, a perplexidade, ante a invisibilidade das torturas pelo consenso

social que em seu entorno se forma, com amparo no silêncio ou conivência midiáticos e

estatais, seja das instituições de persecução, seja das de defesa, que, por conveniência ou

fragilidade, confundem algozes e vítimas, protegendo aqueles e sobrecriminalizando estas.

3 DEFENSORIA PÚBLICA: FUNÇÕES FUNDAMENTAIS

3.1 A Defensoria Pública brasileira

A história constitucional brasileira é marcada por vários avanços e retrocessos

democráticos, principalmente, na previsão e efetivação de diretos. Da Carta Imperial

outorgada em 1824 à CF/88, cognominada de “Constituição Cidadã”, foram séculos de

aprofundamento das desigualdades e de uma persistente cultura de desrespeito às previsões

normativas. O legislador constituinte, então, premido por essas verdades históricas e por um

movimento crescente de oposição ao regime autoritário anterior, precisou dotar a atual Carta

de um extenso rol de direitos, escudados por garantias, cujo principal desafio era (e continua

sendo) fazer chegar a todos o exercício efetivo de direitos, principalmente valendo-se do

direito de acesso à justiça.

Obtendo status constitucional apenas em 1934, embora em uma acepção bastante

restrita ao ser identificada com o acesso ao Judiciário, a garantia fundamental de acesso à

justiça alcançou amplitude considerável em 1988, principalmente ao abranger o direito de

assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes, encartado como direito

fundamental no pródigo rol do art. 5o, além do estabelecimento de uma instituição

especialmente destinada à sua efetivação: a Defensoria Pública.

Essa instituição, cujos antecedentes remontam às atitudes assistencialistas de órgãos

criados pelos Estados com meras funções caritativas, colheu novos contornos com a CF/88,

inserida como instituição essencial à função jurisdicional do Estado e recebendo incremento

considerável em sua missão constitucional com amparo na atuação do poder constituinte

reformador, que atualiza a Constituição aos reclamos da sociedade.

Busca-se neste módulo, portanto, compreender as atuais feições da Defensoria Pública

brasileira, com suporte no conhecimento de seus antecedentes históricos, dos valores e

exigências sociais da época dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que a criou,

até a consolidação do arcabouço constitucional atual, oriundo de uma atuação ainda tímida do

186

legislador constituinte, mas ampliada consideravelmente pela intervenção do poder

constituinte reformador, ante as necessidades de enlarguecer o raio de ação institucional.

Ademais, são considerados a existência e o grau de efetividade da legislação

infraconstitucional relacionada e o público alvo da proteção da Defensoria Pública, com base

no reconhecimento das pessoas em situação de vulnerabilidade como titulares de direitos,

culminando com a verificação da atual posição dessa instituição como promotora da garantia

de acesso à justiça e dos demais direitos e garantias fundamentais.

3.1.1 A Defensoria Pública ontem e hoje

Para entender a opção brasileira pelo atual formato de acesso à justiça, é preciso

compreender quais as soluções práticas adotadas para os problemas relacionados a esse

acesso. Em estudo seminal, Cappelletti e Garth (1988, p. 35-46) lograram sistematizar três

modelos adotados pelos Estados, apontando suas vantagens e falhas:

1) sistema judicare;

2) sistema do advogado remunerado pelos cofres públicos;

3) modelos combinados.

No sistema judicare, a assistência judiciária representa um direito para todas as pessoas

que se enquadrem nos termos legais, que são, pois, assistidos por advogados particulares

pagos pelo Estado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 35). Tal sistema, apesar de ter

representado um grande avanço na amplitude do acesso à justiça, produz o inconveniente de

não atacar outros obstáculos encontrados pelos pobres (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.

38). De fato, por não possuírem uma atuação proativa, os advogados do sistema judicare não

costumam empreender orientação jurídica, nem promovem educação em direitos,

normalmente apenas aguardando que os hipossuficientes identifiquem as violações que estão

sofrendo e somente então busquem a assistência.

No modelo do advogado remunerado pelos cofres públicos, “os serviços devem ser

prestados por “escritórios de vizinhança”, atendidos por advogados pagos pelo governo e

encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe” (CAPPELLETTI;

GARTH, 1988, p. 40). Assim, esse modelo vai em direção aos pobres para ajudá-los na sua

reivindicação por direitos, criando uma categoria de advogados eficientes para atuar pelos

pobres, não se limitando a encaminhar as demandas individuais que são trazidas a eles (como

ocorre pelos advogados no judicare) (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 41).

187

Os modelos combinados buscam extrair o que há de melhor nos citados anteriormente,

além de minimizar as falhas de ambos. Cappelletti e Garth (1988, p. 43) apontam que a Suécia

e a Província de Quebec, no Canadá, como os primeiros a oferecer a escolha entre o

atendimento por advogados servidores públicos ou por causídicos particulares.

A evolução histórico-constitucional brasileira transitou por esses modelos de acesso à

justiça, até chegar ao formato atualmente vigente, inaugurado pela Constituição de 1988 e

ampliado pelo constituinte reformador, que contempla tanto o acesso ao Judiciário como as

demais dimensões do acesso à justiça, desde a tutela individual como a supraindividual.

Advirta-se, ademais, para a noção de que as constituições brasileiras anteriores à de

1988 não traziam preocupação com uma concepção ampla de acesso à justiça, limitando-se a

estabelecer o direito de acesso ao Judiciário e, assim mesmo, só desde 1934.

O acesso à justiça, com a configuração hoje verificada, somente se estabeleceu na

Constituição de 1988, abrangendo a função de proteção de todo o amplo espectro de direitos e

garantias nela estatuídos. Nas Constituições anteriores, o que há, quando muito, são

disposições de acesso ao Judiciário, como mostra a análise sequente.

A primeira Constituição Brasileira (1824), foi outorgada pelo imperador D. Pedro I e

previa uma separação de Poderes bastante peculiar, ressaltando-se a figura do Poder

Moderador, chave de toda a organização política, delegado privativamente ao Imperador,

como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente

velasse sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes

políticos, nos exatos termos do art. 98 da Carta Imperial. Como se percebe, conformava um

modelo de enorme concentração de poderes, no qual os direitos eram meras concessões da

“magnanimidade imperial” aos súditos. Assim, o acesso à justiça, como entendido hoje, ou

mesmo próximo dele, simplesmente inexistiu no Império brasileiro, porquanto fruto de um

processo histórico e político ainda não consolidado àquela altura da evolução do Brasil

(CARNEIRO, 2000, p. 36).

A segunda Constituição Brasileira e a primeira da história republicana, a de 1891, não

se reportou à assistência jurídica aos pobres, fazendo apenas alusão à plena defesa, que se

deveria realizar, em benefício do acusado, com “todos os recursos e meios essenciais a ela”,

no art. 72, §16 (GONÇALVES, 2007, p. 547).

188

Somente a terceira Constituição, a de 1934, estabeleceu o acesso dos necessitados ao

Judiciário como uma obrigação do Estado. Com efeito, em seu art. 113, nº 32, no capítulo

destinado aos direitos e garantias individuais, rezava que:

A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 32. A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.

De duração bastante curta, essa Constituição instaurou o Estado Social no Brasil, sob a

influência marcante da Constituição Alemã de 1919, uma das primeiras a reconhecer em seu

texto a necessidade de previsão de direitos sociais com vistas a minimizar as intensas

desigualdades fáticas produzidas e aprofundadas pela sociedade capitalista, até então fundada

exclusivamente em direitos de liberdade. O constitucionalismo da época primava por uma

atuação positiva do Estado, por meio de prestações jurídicas e materiais para a efetivação de

direitos sociais, afastando-se da concepção do Estado apenas absenteísta, típica da noção

meramente liberal.

A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, sob influxos do ditatorial Estado

Novo, inspirada na Constituição da Polônia e de nítida inspiração fascista, não estabelecia

qualquer direito relacionado ao acesso à justiça no diminuto rol do seu art. 122, então

destinado aos direitos e garantias individuais, muitos deles suspensos por decisão presidencial

e outros tantos sem qualquer efetividade sob o pálio de uma ditadura.

A Constituição de 1946, buscando restaurar o ambiente democrático após a deposição

de Vargas, estatuiu em seu art. 141, §35, que o Poder Público, na forma que a lei estabelecer,

concederá assistência judiciária aos necessitados. Tratava-se, como se percebe, de mera

norma programática que não logrou se estabelecer efetivamente, a não ser pelos então

existentes serviços de assistência judiciária pelos Estados-membros, compostos por

advogados remunerados pelo Erário e de nomeação livre pelos governantes da oportunidade.

De fato, não havendo previsão de instituição incumbida da prestação do serviço, prevaleceu o

entendimento de que era hipótese de competência concorrente entre os entes federativos,

tendo alguns Estados-membros, então, estabelecido órgãos oficiais específicos para prestar

assistência judiciária, enquanto outros apenas credenciaram advogados com tal finalidade

(GONÇALVES, 2008, p. 550).

189

A Constituição de 1967, apesar de surgida sob a égide da ditadura civil-militar

instaurada em 1964, estabeleceu em seu art. 150, §32, também de modo bastante lacônico,

que “[...] será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei”.

Permaneceram os serviços estaduais de assistência judiciária gratuita, com o

desenvolvimento, em alguns Estados-membros, de órgãos específicos com essa finalidade. O

que se verificava, contudo, era uma atuação nitidamente assistencialista dos serviços de

assistência judiciária, encarados como meros favores oferecidos pelos governantes aos pobres

e não propriamente como um direito apto a ser exigido.

As Constituições anteriores a 1988, como observado por Junkes (2006, p. 77), não

previam um organismo público instituído e estruturado com essa finalidade, até que surgiu a

Defensoria Pública com a promulgação da vigente Constituição54. A previsão dessa

instituição no Texto Constitucional, entretanto, não ocorreu de graciosamente, mas foi uma

imposição histórica e dos influxos dos reclamos sociais da época da sua elaboração,

subsequente a um período de duas décadas de inefetividade dos direitos fundamentais,

principalmente daquelas pessoas sem vinculações com as forças sociais dominantes.

Importante pesquisa elaborada por Leôncio Martins Rodrigues, intitulada Quem é quem

na constituinte: uma análise sócio-política dos partidos e deputados permite visualizar um

quadro aproximado das forças políticas dominantes na Assembleia Constituinte eleita em

1986. A obra, está dividida em duas partes: a primeira compreende a apresentação dos

resultados de uma pesquisa sobre as origens partidárias, formação profissional, perfil social e

orientações políticas dos deputados federais; a segunda parte abrange um perfil biográfico dos

deputados constituintes, efetuado com o auxílio das informações contidas nos questionários e

outras fontes (RODRIGUES, 1987).

Em conclusão, Leôncio Rodrigues afirma que “as facções de centro-esquerda

conquistaram mais da metade dos lugares, sendo as facções de direita formalmente

inexistentes” (RODRIGUES, 1987, p. 128). Por outro lado, apontou que 54 De fato, no Ceará, por exemplo, como noticia Carlos Augusto Andrade (2005, p. 87) sobre a assistência

judiciária cearense, por meio do Decreto nº 1.560, de 10 de maio de 1935, foi criado o órgão “Assistência Judiciária do Estado”, pelo então interventor do Estado, Coronel Felippe Moreira Lima. Este órgão era subordinado à “Secretaria dos Negócios do Interior e da Justiça”, com suas atribuições também regulamentadas pelas Leis: nº 213, de 1º de junho de 1948; nº 467, de 05 de janeiro de 1949 e nº 3.609, de 31 de maio de 1957. Esta última trouxe inovação estadual na nomenclatura dos cargos de “Advogados de Ofício”. A estrutura da “Assistência Judiciária do Estado” foi modificada para “Departamento de Assistência Judiciária aos Necessitados”, pelo Decreto nº 12.594, de 15 de dezembro de 1977, que, por sua vez, foi transformado pela Lei nº 10.704, de 13 de agosto de 1982, em “Coordenadoria-Geral de Assistência Judiciária do Estado”, a CAJE, integrante da então Secretaria do Interior e Justiça do Estado do Ceará.

190

a Constituição que nasceria sofreria importantes influências: a) ação de forças externas, desde movimentos sociais, “pressões de massa” da esquerda, lobbies variados, até a movimentação (ou ameaça de movimentação) de alguns Urutus; b) habilidade e experiência pessoal de alguns líderes de algumas facções; c) de centros formadores de opinião pública e de legitimação de valores, citando a CNBB, OAB e outras entidades associativas como dotadas de ampla legitimidade, representativas, ademais, de correntes de esquerda ou centro-esquerda. (RODRIGUES, 1987, p. 128).

Analisando-se o espectro político apresentado na pesquisa citada, de nítida oposição ao

regime autoritário anterior e com representatividade considerável dos setores menos

favorecidos da população, embora não se desconsidere o poderio econômico de entidades

conservadoras igualmente representadas, pode-se concluir que o ambiente na Assembleia

Constituinte era nitidamente favorável à previsão de direitos e também de garantias de sua

efetividade, pautas dos movimentos de esquerda e de centro-esquerda. Silva (2001, p. 30)

lembra que

o amplo espectro de movimentos sociais que haviam emergido no cenário político nos anos de 1970 e 1980, passando a interagir com partidos políticos, sindicatos ONGs e Igreja Católica, defendendo direitos humanos e sendo portadores de reivindicações por emprego, terra, habitação, saúde, transporte, educação, contribuíram para o debate em torno da necessidade de mudanças legislativas e institucionais que garantissem novos direitos individuais e coletivos, sobretudo para a população marginalizada e para as minorias.

Com efeito, Cardoso (2014, p. 37) acrescenta que a participação popular constituiu um

instrumento para que as desigualdades aflorassem como pontos prioritários e possíveis

soluções coletivas para a efetivação da Justiça, superando-se os entraves linguísticos e

operacionais vinculados ao exercício do Direito.

Barroso (1993, p. 70) recorda, por oportuno, que o Regimento Interno da Constituinte

oficializou, em seu art. 24, a possibilidade de apresentação de proposta ao Projeto de

Constituição subscrito por 30 mil ou mais eleitores brasileiros, em listas organizadas por, no

mínimo, três entidades associativas, legalmente constituídas e que efetivamente foram

apresentadas 122 emendas populares. O ambiente político era favorável às exigências por

maior participação popular, represadas pelas duas décadas de alijamento de exercício do

poder político pelo povo. O resultado dessa “euforia constituinte” saudável e inevitável após

tantos anos de exclusão da sociedade civil, no dizer de Barroso (2007, p. 225), levaram a uma

Carta que, mais do que analítica, é prolixa e corporativa.

Efetivamente, como identifica Silva (2001, p. 29),

191

A reconstrução das instituições democráticas do país nos anos de 1980 tem na elaboração de uma nova Constituição o seu principal momento. Durante a Assembleia Constituinte, em torno da qual se aglutinaram as diferentes forças políticas do país, demandas pelo reconhecimento de novos direitos e pela introdução de mecanismos de participação da sociedade civil nas decisões públicas foram defendidas pelas forças políticas, que fizeram oposição ao regime autoritário, e pela sociedade civil organizada.

Dessa combinação de fatores surgiu uma Constituição bastante pródiga na previsão de

direitos fundamentais. Luís Roberto Barroso anota que “a Carta de 1988 tem a virtude

suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira e ter contribuído decisivamente para

a consolidação do mais longo período de estabilidade política da história do país”

(BARROSO, 2007, p. 224-225). Conclui, ademais, que “[...] por vício e por virtude,

entretanto, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de interesses legítimos de

trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos,

reservas de mercado e privilégios corporativos” (BARROSO, 2007, p.225).

Por seu turno, defende Cardoso (2014, p. 35) o argumento seguinte:

A perspectiva de restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil se fez acompanhar de novos preceitos estruturantes, como a participação social e a valorização de mecanismos de exercício direto da vontade popular na administração pública. Pele primeira vez esses princípios se tornam eixos fundamentais de constituição das instituições públicas, como são os casos do artigo 1º, parágrafo único, e do artigo 37, §3o, I a III da CF.

Sadek (2014, p. 20) considera que:

a Constituição de 1988 é, sem dúvida, um marco na história dos direitos tanto individuais como coletivos e uma baliza no processo de assistência jurídica no país. Direitos individuais e supra-individuais foram reconhecidos e instituições foram arquitetadas para a salvaguarda desses direitos. O rol de direitos constitucionalizados é amplo, abrangendo direitos de primeira, de segunda e de terceira geração. Do ponto de vista dos direitos, o Brasil foi alçado a posição de destaque no concerto de nações democráticas. Em poucas palavras, a Constituição de 1988 formalizou a institucionalidade democrática, baseada em princípios de igualdade e de liberdade.

É forçoso reconhecer, entretanto, que a simples previsão constitucional não é suficiente

para corrigir séculos de exclusão social e baixíssima participação política. Um rol extenso de

direitos fundamentais, dentre os quais a indeclinabilidade da prestação jurisdicional,

significando um Poder Judiciário que não se furta a apreciar lesão ou ameaça ao Direito,

enseja, também, muitas frustrações, principalmente pela incapacidade estatal de efetivar as

promessas firmadas no texto constitucional. Ademais, com a Constituição de 1988 e a

consagração do princípio da dignidade humana como vértice axiológico de seu texto, entre os

princípios fundamentais, retoma-se a juridicidade das relações sociais, transformando o

192

sistema de justiça em um espaço a ser apropriado pela sociedade para a efetivação de direitos

previstos nas normas, mas constantemente negados na realidade cotidiana (RAMOS;

RIBEIRO, 2010, p. 55).

“Essa mudança impacta diretamente o sistema de justiça, uma vez que a ausência de

políticas sociais ou a execução precária destas passam a ser tema cada vez mais recorrente de

processos judiciais” (CARDOSO, 2014, p. 34-35). Por outro lado, a descoberta do Judiciário

como espaço de luta acontecia em um momento em que a esquerda brasileira e determinados

grupos de oposição ao regime militar começavam a valorizar a esfera institucional,

inaugurando práticas de intervenção e participação na administração pública.

A socióloga Soares (2009, p. 413) enxerga, ainda, que, com o processo de abertura

política do Brasil nos anos de 1980 e a ratificação de importantes tratados de direitos

humanos, surgiu a necessidade de uma instituição pública habilitada a promover medidas

judiciais e extrajudiciais, exigindo do Estado tanto a abstenção de atos violadores dos direitos

humanos, como também ações positivas voltadas para a promoção de políticas públicas

sustentáveis e inclusivas, afinadas com as crescentes reivindicações dos movimentos

populares.

Era esse o contexto sociopolítico que envolvia o País nos anos que precederam a feitura

da Constituição de 1988, possibilitando que o texto constitucional, “[...] diferentemente do

que ocorria anteriormente, e mesmo na maior parte dos países ocidentais, reservasse espaço

para a Defensoria Pública e determinasse para esta instituição um papel extremamente

relevante” (SADEK, 2014, p. 19).

O caminho, entretanto, na Assembleia Nacional Constituinte, para a inserção da

Defensoria Pública – de modo inédito em um texto constitucional brasileiro - como instituição

destinada ao acesso à justiça por parte dos vulneráveis, foi cercado de muitos percalços.

Conforme historia Martins (2012, p. 47), dentre as várias subcomissões, naquela destinada ao

Judiciário e ao Ministério Público inicia-se “o debate constituinte pela inserção de um órgão,

cuja função seria o acesso integral à justiça, tendo vários constituintes manifestado a

necessidade de criação de um órgão técnico especifico para a abertura do Judiciário aos

carentes de recursos” (MARTINS, 2012, p. 47). Recorde-se, como já mencionado, que ela já

existia no nível infraconstitucional, em várias unidades federativas do País, mas não tinha

logrado ser inserida em nenhum texto constitucional brasileiro.

193

Grupos conservadores de direita e centro-direita, muitos oriundos da antiga ARENA e a

voz do empresariado na Constituinte, aglutinando-se sob o epíteto de “Centrão”, realizaram

diversas manobras para modificar o modo de elaboração da Constituição que vinha sendo

levada a efeito a partir de comissões que, em sua maioria, eram compostas por representantes

da esquerda e centro-esquerda. Martins (2012, p. 49), com espeque na doutrina de José

Reinaldo Lima Lopes, relata que a exclusão da Defensoria Pública decorrente dos objetivos

daquele grupo foi contornada pela tentativa de reaproximação dos autores do projeto

sistematizado e as do “Centrão”, com vista à aprovação de texto-base desse, mas com

acréscimos de emendas daqueles (LOPES, 2008, p. 137).

Este entendimento e o fortalecimento do presidente da Assembleia, Ulisses Guimarães,

propiciaram ao Congresso Constitucional começar a escrever a Constituição. Portanto, a

manutenção da Defensoria Pública no texto constitucional decorreu de consensos entre as

propostas do “Centrão” e a modificação posterior da proposta de seu texto-base, chancelada

pelo relator, “[...] que se identificava com a essência da orientação política plasmada no

projeto de sistematização” (LOPES, 2008, p. 150), o que “[...] beneficiou a aprovação da

emenda da Defensoria Pública por mais da metade dos parlamentares, indicando uma

consensualidade na sua importância” (MARTINS, 2012, p. 49).

Assim, como percebeu Weis (2014, p. 153),

antes mesmo da Organização dos Estados Americanos ter fixado a noção de que os Estados devem desenvolver serviços públicos e gratuitos de assistência legal, o Brasil cuidou de estabelecer uma instituição pública com a finalidade de garantir o acesso à justiça dos mais vulneráveis, de certa maneira aprimorando o que fora estabelecido em Cartas anteriores.

A redação original do caput do artigo 134 da CF estabelecia: “A Defensoria Pública é

instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a

defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (BRASIL, 1988).

Ademais, o parágrafo único destinava à Lei Complementar (LC) o papel de organizar a DPU

e do Distrito Federal e dos Territórios e prescrevia normas gerais para sua organização nos

Estados, além de estabelecer as prerrogativas de inamovibilidade e vedando o exercício da

advocacia fora das atribuições institucionais.

Para José Augusto Garcia de Sousa, o texto constitucional que nasceu da ação do poder

constituinte originário conferiu ao legislador infraconstitucional e ao intérprete uma ampla

margem de manobra para constituir o perfil institucional mais adequado aos reclamos da

194

época, isso porque a Defensoria Pública constitucional está assentada em cláusulas bastante

abertas, como “essencial”, “necessitados”, assistência jurídica “integral” e “insuficiência de

recursos” (SOUSA, 2010, p. 168). O passar dos anos, contudo, apenas deixou inequívoca a

necessidade de alargar o raio de ação da Defensoria Pública, armando-a de instrumentos mais

adequados, mormente a configuração de sua autonomia, para poder efetivamente se aproximar

de sua missão constitucional: servir de porta de acesso à cidadania e à justiça.

Esse evoluir da história constitucional brasileira consolidou a opção pelo regime

democrático, sedimentado pelo exercício da Constituição de 1988 e pelo fortalecimento das

instituições. Essa combinação de fatores contribuiu para um incremento considerável de

acesso ao Judiciário. Sadek (2014, p. 25) oferece dados relevantes sobre o assunto: em 1990,

havia 5,1 milhões de processos na primeira instância; em 2011, eram 26 milhões. Em 2009,

eram 86,6 milhões de processos em tramitação; em 2011, eram 90 milhões. Em 2003, havia

um processo para cada 10,2 habitantes; em 2008, um para cada três habitantes e em 2011 era

um para cada dois.

Tal não traduz, ainda, uma democratização do acesso ao Judiciário, pois as demandas

concentram-se em poucos litigantes: Estado, bancos e empresas de telefonia. Tais fatores

demonstram uma gigantesca demanda de processos abarrotando a estrutura do Judiciário,

tendo quase sempre os mesmos protagonistas na lide, mas também desvelam uma

litigiosidade contida altíssima, composta por pessoas que, embora vilipendiadas em seus

direitos, não buscam o Poder Judiciário.

Como percebe Sadek (2014, p. 25), “o quadro é ainda agravado por indivíduos que

sequer conhecem seus direitos e nem chegam a demandar”. Somando a todo essa preocupante

situação, é possível acrescentar “que a falta de informação da população mais carente e sua

relativa inexperiência, diante das mais complexas relações jurídicas que vêm se

desenvolvendo na atualidade, acaba elevando ainda mais essa vulnerabilidade” (RÉ, 2014, p.

96).

Nessa perspectiva, percebeu-se a necessidade de fortalecimento e ampliação do raio de

ação da instituição pensada para garantir o acesso à justiça dos hipossuficientes. Como não foi

possível, à época da Constituinte, pelas razões já apontadas, estruturar a Defensoria Pública

com as mesmas prerrogativas, autonomia e poder institucional do Ministério Público, coube

ao poder constituinte reformador levar a efeito essa evolução.

195

A primeira intervenção reformadora no texto constitucional ocorreu na contextura da

Emenda Constitucional (EC) 45, de 2004 (EC nº 45/2004), conhecida como Reforma do

Judiciário55 (BRASIL, 2004). Na senda democratizante dessa reforma, o art. 134 da CF foi

acrescido de um parágrafo, numerado como §2o, por meio do qual se conferiu às defensoria

públicas estaduais autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta

orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e

subordinação ao disposto no art. 99, § 2º (BRASIL, 2004). A importância desse dispositivo

pode ser traduzida pela doutrina de Ramos e Ribeiro (2010, p. 39), para quem,

A assistência jurídica no Estado Democrático de Direito deve estar conectada à complexidade social que gera novas demandas que permeiam o direito contemporâneo. Esse é o caso, por exemplo, de demandas em que o próprio Estado é o principal “adversário” no âmbito judiciário, como o direito à saúde, à educação à previdência social, à assistência social, à moradia, parcela do direito do consumidor, entre outros ramos do direito. Em tais demandas fica evidenciada a necessidade de independência funcional e autonomia administrativa das Defensorias Públicas. Todo discurso sobre cidadania e justiça social deve ter como cerne a realização efetiva da assistência jurídica.

Apesar da importância da autonomia da Defensoria Pública, e da clareza do texto

constitucional, muitos Estados permaneceram vinculando-a ao Poder Executivo, sendo

necessária a intervenção do STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade,

para reafirmar a insubordinação dessa instituição às Secretarias de Estado56.

Estranhamente a EC 45/2004 não atribuiu autonomia à DPU e do Distrito Federal,

restando perdida nos meandros da tramitação da proposta de emenda que a ela deu origem.

Tal incongruência somente foi sanada quase nove anos depois, em 2013, com a inclusão do

55 Importante intervenção da Emenda Constitucional n. 45, a demonstrar seu caráter de democratização do Poder

Judiciário foi o estabelecimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário, bem como do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, de composição híbrida, por abranger membros de outras instituições e mesmo da sociedade civil, o que já havia sido proposto na Constituinte, mas que não logrou impor-se naquela quadra histórica. De fato, como noticia Magdaleno Barroso (1993, p. 360-361) a criação do CNJ foi proposta pela OAB para fiscalizar o desempenho do Poder Judiciário e do Ministério Público e rejeitada após receber forte oposição de todos os presidentes de Tribunais de Justiça dos Estados.

56 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. LEIS DELEGADAS N. 112 E 117, AMBAS DE 2007. Lei Delegada n. 112/2007, art. 26, inc. I, alínea “h”: Defensoria Pública de Minas Gerais órgão integrante do Poder Executivo mineiro. 2. Lei Delegada n. 117/2007, art. 10; expressão 'e a Defensoria Pública', instituição subordinada ao Governador do Estado de Minas Gerais, integrando a Secretaria de Estado de Defesa Social. 3. O art. 134, §2o, da Constituição da República, é norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata. 4. A Defensoria Pública dos Estados tem autonomia funcional e administrativa, incabível relação de subordinação a qualquer Secretaria de Estado. Precedente. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 3965, Rel. Min. Cármem Lúcia , Tribunal Pleno, julgado em 07/03/2012) (BRASIL, 2012). No mesmo sentido foram os julgamentos das ADIs 3.569PE(Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Tribunal Pleno, julgado em 2.4.2007) (BRASIL 2007), 4.056/MA (Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Tribunal Pleno, julgado em 26.5.2009) BRASIL, 2009).

196

§3o ao art. 134 (BRASIL, 2013), determinando que se aplica às Defensorias Públicas da

União e do Distrito Federal o disposto no §2o.

Somente em 2014, por meio da EC nº 80/2014, a Defensoria Pública foi dotada de

instrumentos mais adequados ao cumprimento de sua missão na defesa dos vulneráveis.

Como notam Ragazzi e Silva (2104, p. 201), houve uma verdadeira revolução no perfil

institucional da Defensoria Pública que, saindo da condição de mera prestadora de orientação

jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, para transformar-se em instituição de

expressão e instrumento do regime democrático, incumbindo-lhe, fundamentalmente, a

orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e

extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de modo integral e gratuito, aos

necessitados, consoante o art. 5o, LXXIV da CF.

Outro avanço produzido pela EC n. 80/2014 foi a previsão de simetria de tratamento

conferida aos membros do Judiciário, no que couber dos artigos 93 e 96, II da CF, com a

inclusão do §4o no art. 134 (BRASIL, 2014). Assim, a CF passou a reconhecer a essa

instituição essencial à função jurisdicional do Estado, bem como a seus membros, uma série

de prerrogativas que, de um lado, representam um reforço ao exercício da autonomia

institucional, e do outro arma os defensores públicos de instrumentos para o efetivo

desempenho de seus misteres.

Por fim, mas não menos importante, a EC nº 80/2014 estabeleceu, em seu art. 2º, que o

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passaria a vigorar acrescido do art. 98,

segundo o qual: “O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional

à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população” (BRASIL,

2014). Por outro lado, o § 1º do citado artigo reza que: “No prazo de 8 (oito) anos, a União, os

Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades

jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo” (BRASIL, 2014)e o § 2º estatui

que; “Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores

públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão

social e adensamento populacional” (BRASIL, 2014).

Essa norma é de importância vital para a efetivação do direito de acesso à justiça,

mormente dos mais pobres, ao estabelecer uma obrigação estatal, sujeita a cumprimento de

prazo, para capilarização da Defensoria Pública, fazendo-a chegar de fato àqueles que dela

197

necessitam para a proteção e promoção de seus direitos, produzindo, também, a

democratização do acesso ao Judiciário. “Por meio da abertura institucional das Defensorias

passa ser possível uma compreensão mais exata do quadro de exclusão da ordem jurídica que

precisa ser superado, do que precisa ser priorizado” (CARDOSO, 2014, p. 37). Desse modo,

“o dispositivo em questão estabelece um dever constitucional do Estado de ampliação

progressiva do serviço público de assistência jurídica prestado pela Defensoria Pública,

focando tal avanço institucional nas regiões com maior exclusão social” (FENSTERSEIFER,

2017, p. 101).

O fato é que a criação da Defensoria Pública no Brasil só pode ser realmente compreendida como um órgão público destinado à realização dos direitos humanos, e não só a oferecer profissionais destinados a substituir o advogado particular para a atuação em casos de litígios interindividuais de baixa complexidade e sem qualquer conteúdo político. (WEIS, 2014, p. 153-154).

Aliás, é indiscutível “a identidade existente entre o projeto constitucional pós-ditadura e

os objetivos fundamentais da Defensoria Pública. Nesse contexto, ela se apresenta como a

principal Instituição para a concretização desse nosso modelo humanista pós-moderno” (RÉ,

2014, p. 92). A previsão constitucional de hoje, portanto, carrega densa carga semântica

direcionada à promoção do acesso à justiça e dos direitos fundamentais da parcela mais

fragilizada da população. É desses aspectos, portanto, que o próximo segmento se ocupa.

3.1.2 A Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988 (CF/88):

instituição promotora do acesso à justiça e dos direitos fundamentais das

pessoas em situação de vulnerabilidade

A atual previsão constitucional da Defensoria Pública, como restou claro, amplia o rol

de atribuições relacionadas à assistência jurídica integral e gratuita e ao acesso à justiça,

tornando o atual modelo o mais abrangente da história constitucional brasileira e um dos mais

avançados do mundo na proteção dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Assim, o atual

texto constitucional estabelece, em seu art. 134, que

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (BRASIL, 2014).

198

A evolução normativa apresentada, culminando com o texto do art. 134 da CF, reveste-

se de maior importância no Brasil. De fato, em um país marcado por extremas desigualdades

econômicas, sociais e culturais, os preceitos relativos à igualdade e à inclusão poderiam soar

como pura abstração ou como componentes de uma carta de intenções. “A possibilidade real,

contudo, de transformação de mandamentos igualitários em realidade concreta encontra na

Defensoria Pública o motor mais importante na luta pela efetivação dos direitos e pela

prevalência da igualdade” (SADEK, 2014, p.20). No mesmo sentido entende Sousa (2010, p

185):

Além de ser a entidade que presta advocacia aos pobres, consolida-se para a Defensoria o papel de uma grande agência nacional de promoção da cidadania e dos direitos humanos, voltada para quem mais necessita de cidadania e direitos humanos. Desmancha-se de vez o exacerbado individualismo que sempre acompanhou os caminhos da instituição, passando a prevalecer a filosofia bem mais solidarista. Dessa forma, restaram positivadas inclinações que se mostravam irresistíveis, em função de fatores aqui mencionados, como a objetivação crescente dos institutos jurídicos e a pluralização do fenômeno da carência.

Como leciona Sadek (2014, p. 26),

a atuação da Defensoria Pública tem a possibilidade de romper com uma situação caracterizada por desigualdades cumulativas. Tal traço, definidor da realidade brasileira, retrata uma situação na qual a precariedade de renda implica precariedade em educação, saúde, habitação, ou seja, déficits em qualidade de vida. São desigualdades que se agregam, constituindo uma situação de exclusão. Nessa situação, sobra pouco espaço - se algum - para a vivência de direitos.

A situação é ainda mais grave quando os sujeitos de direitos são grupos historicamente

discriminados, aos quais está agregada a pobreza, conforme enxerga a CIDH (2016a):

La CIDH ha observado como las personas afrodescendientes, los pueblos indígenas y en particular las mujeres en situación de pobreza, frecuentemente encuentran barreras adicionales para acceder a la justicia, que combinadas con la falta de recursos económicos configuran una doble discriminación que les impide acceder a remedios judiciales efectivos contra la discriminación o las violaciones de los derechos humanos de que son víctimas. En ese sentido, la Comisión comparte lo indicado por la ex Relatora de Naciones Unidas para la Extrema Pobreza y los Derechos Humanos, al indicar que el acceso a la justicia es fundamental para hacer frente a las principales causas de la pobreza, la exclusión y la situación de vulnerabilidad. Se hace necesario facilitar un recurso sencillo, rápido, efectivo y económico en sede administrativa y judicial, de manera que se garantice la efectividad de los programas y prestaciones de los derechos sociales a las personas que viven en situación de pobreza.

Nessa mesma perspectiva, identifica-se relação visceral entre o regime constitucional de

proteção social e o papel delineado constitucionalmente para a Defensoria Pública,

verificando-se, subjacente à assistência jurídica prestada aos necessitados, o próprio princípio

da igualdade, pelo tratamento desigual a determinadas pessoas e grupos sociais, a fim de

199

afirmar (por meio de uma ação política afirmativa) a sua igualdade material no plano

comunitário (FENSTERSEIFER, 2017, p. 6).

A amplitude de atribuições conferida à Defensoria Pública permite que se constate,

legitimamente, que ela “[...] se constitui na porta de entrada para a inclusão. De seu

desempenho dependerá a ampliação e a generalização do exercício dos direitos, a liberdade, a

segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (SADEK, 2014, p. 20).

Assim, a Defensoria Pública sedimenta-se como um órgão estatal (e não governamental),

essencial à promoção da justiça, conectada estrutural e ideologicamente com as demandas

populares, para dar vazão às reivindicações dos segmentos da sociedade civil, que se

organizam em torno de carências comuns, em demandas de nítido cariz político (SOARES,

2009, p. 412).

Ré (2014, p. 95) aduz que:

Realmente, o modelo adotado no Brasil é público e institucionalizado, na medida em que refuta a política corporativista, demandista ou simplesmente judiciária de atendimento, mas opta por uma política preventiva e informativa de atuação, por meios jurídicos-sociais, dotada de métodos multidisciplinares e participativos de prevenção e de solução de conflitos, bem como de uma gestão democrática, com objetivos e metas dialeticamente definidas. De fato, o Brasil opta por um modelo de afirmação do direito de acesso à Justiça em benefício das chamadas “minorias” (não em termos de quantidade, mas de poder) com declarado foco no interesse público à efetiva e substancial igualdade.

Após a opção formal pelo Estado Democrático de Direito entre os países latino-

americanos, tornou-se comum a previsão, nas diversas constituições, de um extenso rol de

direitos fundamentais, decorrentes do princípio básico de respeito à dignidade da pessoa

humana. Ainda é possível observar, todavia, um grave défice de efetividade desses direitos, o

que torna muitas destas constituições meros repositórios de “boas intenções”, continentes de

belas peças retóricas, mas sem nenhuma correspondência no campo fático.

De fato, como denuncia Méndez (2000, p. 243), a exclusão de amplos setores do gozo

de seus benefícios – que representa a materialização de um dos maiores defeitos das

democracias latino-americanas contemporâneas – é decorrente da fraqueza das instituições

estatais para proteger as vítimas de comportamento abusivo, para garantir-lhes compensação e

criar um fórum para a resolução de seus conflitos. No continente americano, como reforça a

CIDH em seu Informe sobre pobreza, pobreza extrema e direitos humanos na América Latina:

Las personas que viven en situación de pobreza o pobreza extrema generalmente enfrentan mayores obstáculos para acceder a la justicia, así como a los medios que

200

le permitan la gestión efectiva para denunciar y exigir el cumplimiento de sus derechos. Las políticas que apuntan a garantizar servicios jurídicos a personas carentes de recursos actúan como mecanismos para compensar situaciones de desigualdad material que afectan la defensa eficaz de los propios intereses. (CIDH, 2016a).

Para que haja um reforço à efetivação desses direitos, é imprescindível que o Estado se

exprima como garante de sua observância, bem como se mostre como instância promotora da

aplicabilidade e proteção desses direitos. Assim, como medida de legitimidade do Estado, é

preciso que este respeite e efetive os direitos considerados fundamentais pela Constituição,

bem como aqueles tidos como essenciais a uma vida digna pela comunidade internacional

(direitos humanos).

É nesta perspectiva que se vislumbra inconteste a importância do acesso à justiça como

garantia dos direitos fundamentais. De fato, conforme menciona Canotilho (2003, p. 396), “as

garantias traduzem-se no direito de exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos,

como igualmente no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade”.

Somente dotando o arcabouço constitucional de garantias, o legislador constituinte

poderá facilitar a efetividade dos demais direitos fundamentais previstos na Constituição, que

quedarão como letra morta, caso inexistentes meios aptos de fazê-los valer. É nesse compasso

que doutrina Pastore (2004, p. 159): “Assim, como uma das armas mais importantes na busca

da efetivação de todos os direitos fundamentais está o acesso à justiça, e é nesse sentido que

os Estados têm buscado fornecer aos seus indivíduos mecanismos específicos para a sua

reivindicação e exercício”.

Da mesma maneira, não basta a mera previsão de que as pessoas de determinado Estado

tenham acesso à justiça. É preciso que este Estado conceda os instrumentos necessários para

que este acesso seja pleno e eficaz. Assim, a pessoa (independente de sua condição social,

econômica, de nacionalidade, ou qualquer outra) que tiver algum direito fundamental

desrespeitado deve ter a possibilidade concreta de acionar os poderes públicos para

reconstituir a lesão sofrida, com eficiência e celeridade. A previsão formal desacompanhada

de instituições fortes, capazes de concretizá-la, manter-se-á como mera figura retórica. Por

outro lado, se tal acesso não for universal e geral, não haverá verdadeiramente um direito, mas

um privilégio (MÉNDEZ, 2000, p. 248). Como reforço a esta constatação, eis o entendimento

de Cappelletti e Garth (1998, p. 11-12):

De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez

201

que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

Em uma acepção restrita, o acesso à justiça confunde-se com o acesso aos tribunais,

representando o direito a recorrer ao Judiciário para a solução das contendas jurídicas.

Segundo Pastore, esgota-se este conceito restrito na oportunidade de alguém participar, em

sua defesa própria, de um procedimento judicial (PASTORE, 2004, p. 161). Trata-se da

“garantia de acesso aos tribunais” (CANOTILHO, 2003, p. 491). Nessa perspectiva, possui

duas finalidades básicas: “Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo,

ele deve produzir resultados individual e socialmente justos” (CAPPELLETTI; GARTH,

1998, p. 8).

O acesso aos tribunais é importante porque, conforme ensina Sutil, “o Judiciário é um

fórum onde os argumentos de justiça, igualdade, discriminação e injustiça encontram um

lugar apropriado” (SUTIL, 2000, p. 296). Ademais, prossegue o Professor chileno, no

processo judicial os grupos poderosos não poderão simplesmente ignorar os argumentos dos

não privilegiados, pois ambos os lados estão obrigados a fundamentar suas razões em

princípios e normas comuns (SUTIL, 2000, p. 297). “O fórum judicial pode, assim, oferecer

uma voz aos não-privilegiados que não é ouvida no mercado ou na arena política” (SUTIL,

2000, p. 297).

No mesmo sentido é o entendimento sedimentado pela CIDH, em seu Informe sobre

pobreza, pobreza extrema e direitos humanos na América Latina, de 2016:

Es común que la desigual situación económica o social de los litigantes se refleje en una desigual posibilidad de defensa en juicio. Un primer aspecto en relación con los alcances del derecho a acceder a la justicia está dado por los obstáculos económicos o financieros en el acceso a los tribunales, y por el alcance de la obligación positiva del Estado de remover esos obstáculos para garantizar un efectivo derecho a ser oído por un tribunal563. En ese sentido, la obligación de proveer servicios de asistencia gratuita resulta un elemento fundamental para asegurar las debidas garantías procesales y la igualdad ante los tribunales de las personas que viven en situación de pobreza. (CIDH, 2016a).

Como já advertiu o jurista argentino Garro (2000, p. 307), “a amplitude do acesso à

justiça tem sido usada como importante indicador para medir o nível de consolidação de uma

democracia submetida ao controle dos cidadãos”. De fato, se os mais pobres têm as mesmas

possibilidades (“paridade de armas”) dos ricos de recorrer ao Judiciário para reparar lesões a

202

direitos, tem-se um indicativo de que o peso das vontades dos cidadãos equivale entre si e não

é auferido pelo poder econômico de cada um. Como observa Ré (2014, p. 90),

[...] as forças contra-hegemônicas ainda não possuem a organização e o respaldo necessários para a criação de uma resistência eficiente, o que certamente passa pelo acesso às Instituições Democráticas, em especial por aquela responsável pela prestação da assistência jurídica, a Defensoria Pública, com perfil aberto e objetivos emancipatórios bem definidos e sedimentados.

Avançando-se para uma conotação ampla, o acesso à justiça significa o direito às

condições de existência objetiva da justiça, representada pela possibilidade de participação no

processo político, econômico e social, aproximando-se, nesta concepção, da própria ideia de

cidadania. Aqui a acepção jurídica da dicção “acesso à justiça” engloba um largo conteúdo:

a) a compreensão do ingresso da pessoa em juízo;

b) enfoca o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais;

c) perspectiva mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado ao qual

compete não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico, mas, inclusive,

proporcionar a realização da justiça (PASTORE, 2004, p. 161).

Não se pode olvidar, contudo, como adverte Ré (2014, p. 94), que:

[...] o modelo de assistência jurídica está umbilicalmente ligado ao modelo de Estado e ao tipo de tutela jurisdicional preferido. Com efeito, Estados Liberais têm a tendência de adotar modelos privatistas e individualistas de assistência jurídica, além de prioridades tutelares ressarcitórias. Doutra banda, Estados Democráticos priorizam os modelos públicos de assistência jurídica, prestada e gerida por Entes Estatais, responsáveis pela oferta de soluções estruturais e de tutelas inibitórias às ameaças ou às megaviolações de direitos fundamentais, mormente dos direitos sociais e coletivos.

No sistema constitucional brasileiro, portanto, nos termos do art. 127, o Ministério

Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe

a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais

indisponíveis (BRASIL, 1988). A essa atribuição, portanto, soma-se a atuação da Defensoria

Pública em caráter metaindividual, sempre que o intuito seja proteger pessoas em situação de

vulnerabilidade econômica, como será mais bem demonstrado em subseção do capítulo 4.

Nessa senda, atendendo a essas perspectivas mais amplas de acesso à justiça, o

legislador constituinte brasileiro, como aludido alhures, resolveu delinear a instituição

Defensoria Pública, confiando-lhe o papel de efetivar a assistência jurídica integral e gratuita

aos necessitados. Assim estatuindo, a ordem constitucional brasileira, pelo menos

203

formalmente, entregou à população carente uma instituição destinada a servir de “porta de

acesso” ao Judiciário e, mais do que isso, funcionar como instrumento de efetivação da

cidadania. Nesse quadrante, exerce um papel constitucional essencial na tutela e promoção

dos direitos fundamentais (e humanos) de todas as dimensões de titularidade dos vulneráveis,

arrimando-se, inclusive, na perspectiva da integralidade, indivisibilidade e interdependência

de todas elas (FENSTERSEIFER, 2017, p. 7).

Posteriormente, pela ação do poder constituinte derivado e do legislador

infraconstitucional, a Defensoria consolidou-se normativamente como instituição promotora

do acesso à justiça e dos direitos fundamentais, restando, na atual quadra histórica, envidar

todos os esforços para a efetivação dos comandos normativos em prol das pessoas em

situação de vulnerabilidade. Conforme leciona Weis (2014, p. 157),

Em tal contexto, mostra-se evidente que a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”, incumbência da Defensoria Pública segundo previsão constitucional, coloca a instituição ao lado dos grupos sociais vulneráveis para os quais o Estado tem a obrigação jurídica de dotar todos os esforços possíveis, inclusive fazendo com que a Defensoria Pública interpele os administradores públicos ou mesmo ingresse com ações judiciais para o fim de ver realizados direitos de natureza coletiva ou difusa.

Como repisado, a Constituição estabelece a assistência jurídica integral e gratuita aos

necessitados. Como defende Fensterseifer (2017, p. 3):

a expressão necessitado carrega o significado de vulnerabilidade existencial dos indivíduos e grupos sociais atendidos pela Defensoria Pública, o que está, na absoluta maioria das vezes, diretamente associado à carência de recursos econômicos. Ou seja, num primeiro plano, são as pessoas pobres, individual ou coletivamente consideradas, as beneficiárias do serviço público prestado pela Defensoria Pública.

É de relevo, entretanto, evidenciar que o conceito doutrinário não se exaure na

hipossuficiência econômica. Como destacado na subseção 1.3 das Regras de Brasília sobre

Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade57, aprovadas no âmbito da XIV

Conferência Judicial Ibero-Americana em 2008,

Considera-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. (REGRAS DE BRASÍLIA, 2008).

57 Tais regras, embora não tenham força normativa ao ponto de impor um determinado conceito, constituem-se

em manifestação de um consenso, entre países participantes, sobre a formulação de um conceito que pode, inclusive, agregar-se ao Direito Internacional na condição de Direito consuetudinário.

204

Nessa perspectiva, a atuação da Defensoria Pública granjeia uma amplitude muito

maior, embora excepcional, para alcançar pessoas que denotam fragilidades não somente

econômicas, mas também de outras ordens, que inviabilizam o seu acesso a uma ordem

jurídica justa. Se o Estado, por intermédio da Defensoria, não direcionar esforços para

solucionar esses problemas, eles continuarão “[...] na sua invisibilidade, produzindo visíveis

injustiças” (ROCHA, 2013, p. 86), pois a ausência de recursos funciona como impeditivo para

a contração de um advogado ou, muitas vezes, de simplesmente conhecer seus direitos

(ROCHA, 2013, p. 86).

O conceito de necessitado (ou vulnerável), portanto, deve estar alinhado com o sistema jurídico contemporâneo que, rompendo com a tradição liberal-individualista caracterizada por conceber um sujeito de direito apenas “formal”, assimila as desigualdades fáticas que imperam no âmbito comunitário (no que toca ao exercício dos direitos) e destina especial proteção a determinados grupos sociais. (FENSTERSEIFER, 2017, p. 37).

Essa concepção amplificada é designada pela doutrina de necessitado em sentido amplo

ou em termos organizacionais, e foi abraçada pela legislação brasileira, notadamente no art.

4º, XI da LC 80/9458, com redação dada pela LC 132/2009 (BRASIL, 2009), que em rol

exemplificativo enumera pessoas ou grupos vulneráveis.

Tal concepção de vulnerável mostra-se evidente na seara penal. Como demonstrado, os

clientes preferenciais do sistema penal estatal são os necessitados na acepção econômica do

termo, mas já é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a ausência de

defesa no processo penal, mesmo da pessoa dotada de condições financeiras, deve ser

colmatada pela atuação do defensor público, ante a vulnerabilidade processual concreta da

pessoa sem assistência jurídica suficiente para exercer a sua defesa perante o Estado

persecutor, representado no processo pelo Ministério Público, que é, nas mais das vezes, o

promovente da ação penal.

Importante é esclarecer que essa maneira de atuação representa função atípica da

Defensoria Pública, somente realizada excepcionalmente, quando o réu no processo penal está

indefeso, a fim de que se assegure o devido processo legal (com seus corolários da ampla

defesa e do contraditório), respeitado o direito da pessoa de escolher advogado de sua

confiança. Há, nesse particular, “[...] uma vulnerabilidade jurídica da pessoa, que independe

58Art. 4º, XI: São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: exercer a defesa dos interesses

individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (BRASIL, 2009).

205

de incapacidade econômica, fundando-se na necessidade de se assegurar o exercício efetivo e

real do direito de defesa” (LIMA, 2015, p. 217).

Obviamente, a defesa da atuação da Defensoria Pública, na seara penal, em situações

nas quais não haja vulnerabilidade econômica, será submetida à respeitável crítica de que a

destinação de atenção e esforços para a defesa de ricos, eventualmente, enfraquece a

instituição em seu papel típico e primordial de defesa dos pobres. Os direitos da pessoa a

serem defendidos em um processo penal, entretanto, mostram-se de tão elevada importância

que não podem ficar à mercê da improvisação, que se constitui na nomeação de advogados ad

hoc ou dativos.

Assim pensou o legislador brasileiro na reforma do CPP no ano de 2011 ao estabelecer,

no art. 306, §1, que, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será

encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe

o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública (BRASIL, 2011). Resulta

claro que não há, na circunstância, qualquer apreciação sobre a condição econômica do réu.

Se, no caso concreto de prisão em flagrante, não há indicação de advogado pelo preso,

verifica-se evidente situação de vulnerabilidade jurídica, impondo-se a atuação imediata da

Defensoria Pública para a proteção dos direitos da pessoa presa.

No momento de submissão a um processo penal, não raro sob aprisionamento, ainda

que dotado de condições financeiras, o réu encontra-se, de fato, em situação de

vulnerabilidade perante o Estado persecutor. No exercício das funções persecutórias, perceba-

se, encontra-se um profissional estatal (delegado de polícia ou membro do Ministério

Público), cujo cargo não pode ser ocupado por mera indicação de quem quer que seja.

No mesmo sentido de atuação ampla da Defensoria Pública é a lição do equatoriano

Pazmiño Granizo (2008, p. 317):

El papel de la Defensa Penal Pública, en un modelo adversarial, es garantizar el acceso a la defensa de toda persona que ha sido acusada por el Estado. Es importante diferenciar de la tradicional “defensa de pobres”; en primer lugar el ciudadano tenga o no recursos, al estar en juego su libertad, tiene derecho a que se le otorgue el servicio de defensoría gratuita, aspecto que difiere de la tradicional visión.

É exatamente essa a interpretação do art. 8, 2, e) da CADH, (OEA, 1969), a qual estatui

como garantia mínima o “direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado

pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender a

206

ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei”. Como resta claro, a

CADH não exige a vulnerabilidade econômica do acusado para ter acesso à assistência

jurídica gratuita prestada pelo Estado, como o fazem, por exemplo, a Convenção Europeia de

Direitos Humanos59 e o PIDCP60.

Por seu turno, a CorteIDH já se pronunciou sobre o assunto no Caso Ruano Torres e

outros vs. El Salvador, ao estatuir, no § 155 da sentença, que:

Si bien la norma contempla diferentes alternativas para el diseño de los mecanismos que garanticen el derecho, cuando la persona que requiera asistencia jurídica no tenga recursos ésta deberá necesariamente ser provista por el Estado en forma gratuita. Pero en casos como el presente que se refieren a la materia penal en la cual se consagra que la defensa técnica es irrenunciable, debido a la entidad de los derechos involucrados y a la pretensión de asegurar tanto la igualdad de armas como el respeto irrestricto a la presunción de inocencia, la exigencia de contar con un abogado que ejerza la defensa técnica para afrontar adecuadamente el proceso implica que la defensa que proporcione el Estado no se limite únicamente a aquellos casos de falta de recursos. (CORTEIDH, 2015b).

Mais adiante, nos §§ 156 e 157, em síntese conclusiva do exposto, reforça a CorteIDH

(2015b):

La institución de la defensa pública, a través de la provisión de servicios públicos y gratuitos de asistencia jurídica permite, sin duda, compensar adecuadamente la desigualdad procesal en la que se encuentran las personas que se enfrentan al poder punitivo del Estado, así como la situación de vulnerabilidad de las personas privadas de libertad, y garantizarles un acceso efectivo a la justicia en términos igualitários. Sin embargo, la Corte ha considerado que nombrar a un defensor de oficio con el sólo objeto de cumplir con una formalidad procesal equivaldría a no contar con defensa técnica, por lo que es imperante que dicho defensor actúe de manera diligente con el fin de proteger las garantías procesales del acusado y evite así que sus derechos se vean lesionados221 y se quebrante la relación de confianza. A tal fin, es necesario que la institución de la defensa pública, como medio a través del cual el Estado garantiza el derecho irrenunciable de todo inculpado de delito de ser asistido por un defensor, sea dotada de garantías suficientes para su actuación eficiente y en igualdad de armas con el poder persecutorio. La Corte ha reconocido que para cumplir con este cometido el Estado debe adoptar todas las medidas adecuadas222. Entre ellas, contar con defensores idóneos y capacitados que puedan actuar con autonomía funcional.

59Art. 6º, 3, c: O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência

de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem. Disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em: 30 dez. 2017.

60Dec. N. 592 de 6 de julho de 1992. Art. 14, 3, d: 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 30 dez. 2017.

207

Não se olvide, por fim, do fato de que diversas condições de fragilidade não raro

coincidem, nascendo, assim, a figura do hipervulnerável, que pode ser definido como a pessoa

ou grupo social que, por sua peculiar condição existencial, expressa não apenas um fator de

vulnerabilidade (ser pobre, criança ou idoso, por exemplo), mas, também, um somatório de

dois ou mais fatores agravadores de sua vulnerabilidade, ensejando a necessidade de um

regime jurídico ainda mais reforçado na sua proteção, cabendo ao ordenamento jurídico e ao

próprio sistema de justiça ampliar os mecanismos destinados à sua proteção

(FENSTERSEIFER, 2017, p. 52).

3.1.3 A Lei Orgânica da Defensoria Pública (LONDP)

As previsões constitucionais relativas à Defensoria Pública, embora mais detalhadas

pelas emendas constitucionais que se seguiram, precisavam de regulamentação mais

pormenorizada, a fim de que os traços institucionais destinados ao cumprimento da missão

constitucional restassem mais específicos. Assim, e para conferir efetividade ao preceito

constitucional que inseriu a Defensoria Pública na nova ordem jurídica inaugurada em 1988,

foi editada a LC nº 80, de 12/01/1994 (BRASIL, 1994), robustecida pelas alterações da LC nº

132, de 2009 (BRASIL, 2009), cujo papel foi organizar a DPU, do Distrito Federal e dos

Territórios, e prescrever normas gerais para sua organização nos Estados, dando outras

providências, nos exatos termos do §1º do art. 134 da CF (BRASIL, 2004).

O legislador constituinte estabeleceu campo material reservado a lei complementar no

tocante à tarefa de organizar a DPU e traçar normas gerais para a organização das defensorias

públicas estaduais, diferentemente, por exemplo, da equivalente norma constitucional relativa

ao Ministério Público (art. 127, §2º da CF) (BRASIL, 1988), que atribui tal função à lei

ordinária. Essa peculiaridade confere imprescindível garantia de estabilidade à legislação

atinente à Defensoria Pública, por dotá-la de maior rigidez, impedindo alterações bruscas

oriundas de maiorias parlamentares ocasionais, além de colocá-la a salvo do decantado abuso

legiferante do Poder Executivo, impossibilitado de interferir pelo manejo de medidas

provisórias.

O advento da Lei Orgânica da Defensoria Pública (LONDP) contribuiu sobremaneira

para a consolidação institucional da mais recente das funções essenciais à justiça, orientando a

sua atuação descentralizada e prioritária nas regiões brasileiras cujos índices de exclusão

208

social e adensamento populacional são maiores, seguindo os ditames dos Diagnósticos da

Defensoria Pública no Brasil, produzidos pelo Ministério da Justiça61.

Dentre as mudanças ocorridas na Lei Orgânica pela LC 132/2009 (BRASIL, 2009),

destacam-se a ampliação das funções institucionais, a introdução de mecanismos de controle e

participação social na gestão das defensorias públicas (as ouvidorias), a criação de um rol

exemplificativo de direitos a serem exigidos pelos assistidos e a regulamentação da autonomia

garantida constitucionalmente às defensorias públicas estaduais pelas emendas constitucionais

já mencionadas.

O art. 1º limita-se a repetir a disposição constitucional constante no novo art. 134

(BRASIL, 2009). Já o art. 2º trata da abrangência da Defensoria Pública: da União, do Distrito

Federal e Territórios e dos Estados (BRASIL, 1994). O art. 3º-A da OL aduz serem princípios

institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional

(BRASIL, 2009), em idêntica disposição à contida no §4º do art. 134 da CF, após redação

conferida pela EC nº 45/2004 (BRASIL, 2004). Tais princípios visam a tornar a atuação da

Defensoria Pública isenta de influências estranhas ao pleno desenvolvimento processual,

podendo a instituição, inclusive, atuar contra o Poder Público (LANDIM, 2008, p. 102).

Decorre do princípio da unidadea ideia de que a instituição é concebida como única,

possuindo a mesma direção, constitucional e também legal, iguais fundamentos, idênticas

finalidades. Assim, a Defensoria Pública é um todo orgânico formado por idênticos aspectos

estruturais. Desse princípio decorre “a vedação de existirem instituições públicas

concorrentes, com a mesma base política e com chefias distintas, para o exercício das funções

cometidas a cada Defensoria Pública” (JUNKES, 2006, p. 90)62.

61O I Diagnóstico da Defensoria Pública, lançado em 2004, apresentou, pela primeira vez, dados consolidados

sobre a instituição. O II Diagnóstico, publicado dois anos depois, mostrou aspectos importantes sobre a sua estruturação, desde a Emenda Constitucional nº 45. O III Diagnóstico, elaborado em 2009, mostrou diversos avanços decorrentes da promulgação da Lei Complementar nº 132/09. O IV Diagnóstico foi feito no âmbito do projeto Fortalecimento do Acesso à Justiça no Brasil, parceria entre a Secretaria de Reforma do Judiciário, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores (ABC/MRE). O seu resultado apresenta, por um lado, progressos relacionados ao crescimento dos atendimentos realizados pela Defensoria, além de trazer informações relevantes sobre planejamento estratégico da carreira, infraestrutura e pessoal, universalização do acesso à justiça e questões sobre a percepção dos Defensores Públicos sobre a Defensoria e a população (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015).

62O Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento da ADI nº 3700/RN, pacificou a impossibilidade de atuação de outras instituições em campo de atuação exclusivo da Defensoria Pública: EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 8.742, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2005, DO ESTADO DO RIO GRANDE NORTE, QUE “DISPÕE SOBRE A

209

Obviamente, há uma dificuldade de se alcançar a citada unidade, decorrente das

diversas realidades regionais em um país tão imenso e no qual as unidades federadas gozam

de ampla autonomia. Como defende, entretanto, Amélia Rocha, a LONDP e a atuação

coordenada pelo Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) fortalecem

essa unidade nacional, ao mesmo tempo em que permitem “a adequação às peculiaridades

regionais em respeito ao pacto federativo, todos com base nos mesmos princípios, objetivos e

funções institucionais” (ROCHA, 2013, p. 111).

O princípio da indivisibilidade, decorrente da ideia de unidade, significa que “os

membros da Defensoria Pública podem ser substituídos uns pelos outros sem que haja

prejuízo ao exercício das funções do órgão” (LIMA, 2015, p. 89). Busca-se evitar, com esse

princípio, que o serviço público prestado pela instituição sobre interrompido por eventuais

impedimentos ou impossibilidades de algum de seus membros, havendo, pois, uma

preestabelecida ordem de substituições e delimitações de atuação63. Como distingue Amélia

Rocha, “enquanto o princípio da unidade garante o mesmo núcleo gestor, o da

indivisibilidade, que cada membro é a instituição; enquanto o primeiro tem uma maior

aplicabilidade político-administrativa, o segundo tem uma maior perspectiva técnico-

funcional” (ROCHA, 2013, p. 114).

CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE ADVOGADOS PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO, NO ÂMBITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO”. 1. A Defensoria Pública se revela como instrumento de democratização do acesso às instâncias judiciárias, de modo a efetivar o valor constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). 2. Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira. 3. A estruturação da Defensoria Pública em cargos de carreira, providos mediante concurso público de provas e títulos, opera como garantia da independência técnica da instituição, a se refletir na boa qualidade da assistência a que fazem jus os estratos mais economicamente débeis da coletividade. 4. Ação direta julgada procedente. (STF Plenário. ADI 3700/RN, Rel. Min. Carlos Brito, julgado em 15/10/2008).(BRASIL, 2008).

63Nessa toada, inclusive, a Primeira Turma do STF já decidiu pela desnecessidade, em caso concreto, de intimação pessoal do Defensor público atuante em processo, bastando a intimação da Chefa da instituição: Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. INEXISTÊNCIA DE ARGUMENTAÇÃO APTA A MODIFICÁ-LA. MANUTENÇÃO DA NEGATIVA DE SEGUIMENTO. DEFENSORIA PÚBLICA. INTIMAÇÃO PESSOAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão recorrida. 2. Por força da Lei Complementar 80/94, a intimação pessoal é prerrogativa da Defensoria Pública. Entretanto, não se exige seja a comunicação dirigida exatamente à pessoa do defensor que atua no processo, podendo encaminhar-se, quando necessário, à chefia da instituição, visto que, nos moldes das intimações do Ministério Público, o endereçamento administrativo não descaracteriza, por si, a pessoalidade do ato processual. Ademais, a instituição é regida pelos princípios da unidade e indivisibilidade, os quais autorizam aos seus membros substituir uns aos outros no exercício em determinado processo. Precedentes. 3. Agravo regimental desprovido. (STF Primeira Turma. HC 136060 AgR/AC, Rel Min. Luiz Fux, julgado em 18.10.2016).(BRASIL, 2016a)

210

No referente ao princípio da independência funcional, percebe-se sua interligação com a

atuação da Defensoria Pública, no papel que lhe atribuiu o legislador constituinte de 1988.

Com efeito, a tarefa da instituição deve ser livre de ingerências de qualquer ordem,

principalmente do poder estatal, não havendo qualquer hierarquia entre membros da

Defensoria e de quaisquer outros, independentemente do Poder ou instituição a que

pertençam. Seguindo as diretrizes deste princípio, o STF declarou, em sede de controle

concentrado, a inconstitucionalidade de lei estadual do Amapá que atribuía competência ao

Governador de Estado de nomear ocupantes de cargos administrativos na estrutura de

Defensoria Pública Estadual (Subdefensor Público-Geral, Ouvidor-Geral, Corregedor-Geral,

Defensor Público-Chefe etc)64.

64Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR Nº 86/2014 DO

ESTADO DO AMAPÁ. AÇÃO PROPOSTA PELA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP. ART. 103, IX, DA CRFB/88. LEGITIMIDADE ATIVA. PERTINÊNCIA TEMÁTICA CARACTERIZADA. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO QUANTO À IMPUGNAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS IMPUTADOS AO GOVERNADOR DO ESTADO. ATOS DE EFEITOS CONCRETOS E DESPROVIDOS DE CARÁTER NORMATIVO. AÇÃO CONHECIDA PARCIALMENTE. LEI DE ORGANIZAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA ESTADUAL. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE. ART. 24, XIII, DA CRFB/88. FIXAÇÃO DE NORMAS GERAIS PELA UNIÃO ECOMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS ESTADOS-MEMBROS. NECESSÁRIA E OBRIGATÓRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ESTADOS, DAS NORMAS GERAIS. IMPOSSIBILIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO DOS LIMITES FIXADOS PELA LEGISLAÇÃO FEDERAL. AUTONOMIA FUNCIONAL, ADMINISTRATIVA E ORÇAMENTÁRIA DAS DEFENSORIAS PÚBLICAS. INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL. ART. 134, E PARÁGRAFOS, DA CRFB/88. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO, POR LEI ESTADUAL, DA COMPETÊNCIA DE NOMEAR OCUPANTES DE CARGOS DA ESTRUTURA ADMINISTRATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA A GOVERNADOR DO ESTADO. DESCUMPRIMENTO À LEI COMPLEMENTAR Nº 80/1994. ART. 24, § 1º, DA CRFB/88. INICIATIVA DE LEI QUE FIXA OS SUBSÍDIOS DOS MEMBROS DA CARREIRA. DECORRÊNCIA DA AUTONOMIA ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LOCAL. APLICAÇÃO DE SANÇÕES. COMPATIBILIDADE COM O QUE DISPOSTO PELA LEI FEDERAL DE NORMAS GERAIS. AÇÃO DIRETA PARCIALMENTE CONHECIDA E JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa, bem como a prerrogativa de formulação de sua própria proposta orçamentária (art. 134, § 2º, da CRFB/88), por força da Constituição da República, após a Emenda Constitucional nº 45/2004. 2. A competência legislativa concorrente prevista no art. 24 da CRFB/88, no sentido da fixação de normas gerais pela União, limita a competência suplementar dos Estados-membros, os quais devem obrigatoriamente atender àqueles preceitos gerais. 3. Consectariamente, as leis estaduais que, no exercício da competência legislativa concorrente, disponham sobre as Defensorias Públicas estaduais devem atender às disposições já constantes das definições de regras gerais fixadas pela LC nº 80/94. 4. A lei estadual que atribui competência ao Governador de Estado de nomear ocupantes de cargos administrativos na estrutura de Defensoria Pública Estadual (Subdefensor Público-Geral, Ouvidor-Geral, Corregedor-Geral, Defensor Público-Chefe etc) viola a autonomia administrativa da Defensoria Púbica Estadual (art. 134 e parágrafos da CRFB/88), bem como as normas gerais estabelecidas pela União na Lei Complementar nº 80/1994 pelo exercício de competência legislativa concorrente (art. 24, XIII, e §§ 1º e 2º, da CRFB/88). 5. A autonomia financeira e orçamentária das Defensorias Públicas Estaduais e a expressa menção pelo art. 134, § 4º, ao art. 96, II, todos da CRFB/88, fundamentam constitucionalmente a iniciativa do Defensor-Público Geral dos Estados na proposição da lei que fixa os subsídios dos membros da carreira. 6. A ação direta de inconstitucionalidade apenas é admissível quando proposta contra lei ou ato normativo federal ou estadual, não sendo possível seu ajuizamento contra ato administrativo de efeito concreto e desprovido, portanto, de caráter normativo, generalidade e abstração, tal como o que nomeia individualmente defensores ad hoc. 7. A Associação Nacional de Defensores Públicos é

211

Importante é aduzir a ideia de que a independência funcional não significa que o

membro da defensoria está infenso a pressões de qualquer ordem, podendo conduzir a tática

da defesa de acordo com o seu próprio entendimento e estratégia, mas que tal princípio tem

por objetivo conferir ao defensor público o suporte necessário para suportar pressões

decorrentes da sua atuação na defesa dos vulneráveis (ROCHA, 2013, p. 117).

São objetivos da Defensoria Pública, conforme o art. 3-A da LONDP (incluído pela LC

nº 132/2009) (BRASIL, 2009): a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das

desigualdades sociais; a afirmação do Estado Democrático de Direito; a prevalência e

efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa

e do contraditório. Tais objetivos harmonizam-se com as funções institucionais definidas pelo

art. 4º. Da LC 80/94 (BRASIL, 2009). O fato destes dispositivos aparecerem antes da

descrição das funções institucionais oferece indicativo de que “estas incumbências recebem a

influência dos escopos projetados para a Defensoria Pública” (LIMA, 2015, p. 110). Como

defende Amélia Rocha, “[...] todas as atitudes da Defensoria e de seus membros devem ser

guiados para os objetivos institucionais, ter por base os seus princípios e manejados por suas

funções institucionais” (ROCHA, 2013, p. 123).

Já as funções institucionais da Defensoria Pública encontram-se elencadas no art. 4º, da

LC 80/1994, com as modificações introduzidas pela LC nº 132/2009 (BRASIL, 2009), em rol

exemplificativo, sendo possível a realização de outras que se harmonizem ao cumprimento

dos objetivos institucionais e às metas instituídas pela CF. Relativamente ao tema em estudo,

merecem destaque as funções65 de: orientação jurídica e educação em direitos (incisos I e III);

promoção da solução extrajudicial de solução de conflitos (incisos II, IV e §4º); acesso ao

Judiciário (incisos V, IX, X, XI, XV, XIX e XXI); proteção de direitos e interesses coletivos e

difusos (incisos VII, VIII, X, XI e XV); instituição defensora dos direitos dos vulneráveis

(incisos VII, VIII, XI, XIV, XVI, XVII, XVIII e XXII); atuação perante organismos

internacionais de direitos humanos (inciso VI); participação, quando tiver assento, dos

conselhos federais, estaduais e municipais afetos às funções institucionais da Defensoria

Pública (inciso XX).

parte legítima a provocar a fiscalização abstrata de constitucionalidade (art. 103, IX, da CRFB/88). Precedentes: ADPF 307-MC-Ref, rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 27/3/2014; ADI 4.270, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 28/9/2012; ADI 2.903, rel. min. Celso de Mello, DJe 19/09/2008. 8. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, nesta parte, julgada parcialmente procedente. (STF Plenário. ADI 5286/AP, Rel Min. Luiz Fux, julgado em 18.05.2016). (BRASIL, 2016b)

65Tais funções são especificadas no capítulo 4 desta tese.

212

Como percebe Amélia Rocha, essas funções institucionais têm o condão de explicitar e

sistematizar “as inúmeras e necessárias possibilidades de atuação da instituição”, como

“meios e caminhos possíveis e necessários para a concretização do acesso ao que é justo para

as pessoas em situação de vulnerabilidade” (ROCHA, 2013, p. 124).

A Defensoria Pública brasileira, assim, logrou se estabelecer normativamente com um

sólido arcabouço de previsões aptas a conferir-lhe condições de desempenhar as ingentes

tarefas que lhe foram atribuídas. Com efeito, a partir da sua inclusão normativa no texto

constitucional, passando pelo reforço representado pela atuação do poder constituinte

reformador e pelo legislador infraconstitucional, despontou como uma das principais

instituições de acesso à justiça do continente, servindo, inclusive, de modelo no SIDH.

3.2 Atuação internacional da Defensoria Pública: a Defensoria Pública da

União (DPU) e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)

Uma das importantes funções a serem desempenhadas pela Defensoria Pública, e que

sustém cada vez mais protagonismo, é a decorrente do inciso VI do art. 4º da LONDP

(BRASIL, 2009), referente à atuação perante os organismos internacionais de direitos

humanos. Por isso a necessidade de um estudo mais aprofundado dessa modalidade de

atuação, com base no conhecimento prévio da estrutura e funcionamento do SIDH (que é o

mais próximo da realidade brasileira), para uma posterior análise dos mecanismos utilizados

pela DPU e da AIDEF no efetivo acesso a esse peculiar sistema de proteção dos direitos

humanos no continente.

3.2.1 O SIDH: estrutura e funcionamento

A Segunda Guerra Mundial representou um momento histórico que ensejou profundas

transformações. As atrocidades cometidas em nome da lei, em evidente afronta à dignidade

humana, fizeram aflorar a necessidade de se constituir um arcabouço jurídico arrimado na

universalização e internacionalização dos direitos humanos. O documento basilar desse foi a

Carta da ONU, aprovada na Conferência de São Francisco, em junho de 1945 (ONU, 1945).

Desde então, foi estabelecido um sistema global de direitos humanos, em torno da ONU,

seguindo-se a DUDH, de 1948 (ONU, 1948), e diversos outros tratados que passaram a

compor o sistema internacional global de proteção dos direitos humanos.

213

Paralelamente, com a finalidade de reforçar o arcabouço internacional de proteção dos

direitos humanos, levando-se em consideração as especificidades regionais e a afinidade de

países de regiões determinadas, surgiram os sistemas regionais de proteção dos direitos

humanos, destacando-se o europeu, o africano e o interamericano.

Diversamente do sistema regional europeu que teve como fonte inspiradora a tríade

indissociável Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos, “o sistema regional

interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuadamente

autoritário” (PIOVESAN, 2015, p. 145). Assim, o SIDH foi criado pela OEA em 1948. O

primeiro documento a integrar o SIDH foi a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

Homem, proclamada em 1948 (OEA, 1948), que inclusive precedeu cronologicamente a

própria Declaração Universal.

O documento fundamental de proteção dos direitos humanos, entretanto, é a CADH, de

1969, também chamada de Pacto de San Jose da Costa Rica (OEA, 1969), que entrou em

vigor somente em 1978, após receber o número mínimo de 11 ratificações (MAZZUOLI,

2014, p.114). De acordo com o site da CIDH, atualmente são 23 os países que aderiram e

ratificaram a CADH (CIDH, s/d), com ausências relevantes, como EUA, Canadá e Venezuela,

esta última tendo denunciado o tratado em 2102 (OEA, s/d). Conforme informação do mesmo

site da CIDH, o Brasil aderiu à Convenção em 7 de setembro de 1992, depositou a carta de

adesão em 25 de setembro de 1992 (CIDH, s/d), promulgando-a por meio do Decreto n. 678,

de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992).

A CADH assegura um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto no Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966. Já os direitos sociais,

culturais e econômicos encontram-se previstos no Protocolo de San Salvador, adicionado à

CADH em 1988 e em vigor desde novembro de 199966. O Brasil ratificou o Protocolo em

1999, por meio do Decreto nº 3321, de 30 de dezembro de 1999 (BRASIL, 1999).

Relevante é destacar que o arcabouço normativo constante na CADH representa uma

proteção complementar à oferecida pelos Estados-partes, no exercício de sua soberania, por

66O art. 26 da CADH apenas enuncia que: Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no

âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados (OEA, 1969).

214

meio de seu Direito interno. Assim, aos Estados cabe a atribuição precípua de amparar e

proteger os direitos das pessoas sujeitas à sua jurisdição. Somente nos casos nos quais não há

ou essa proteção é deficiente, em descompasso relativamente às previsões da CADH, o SIDH

poderá ser acionado, a fim de assegurar determinado direito, com cujo cumprimento o Estado-

parte comprometeu-se ao aderir à CADH. É exatamente nessa perspectiva que se pensa, na

esteira do proposto por Flávia Piovesan67, em uma perspectiva garantista multinível de

proteção de direitos no âmbito interno e, de modo complementar, pelo SIDH (PIOVESAN,

2015).

Cumpre lembrar, por oportuno, que a CADH passou a ostentar o status de norma

supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, em virtude de decisão do STF68, que atribuiu

tal hierarquia aos tratados internacionais de direitos humanos não ratificados, seguindo o

procedimento estabelecido pelo §3º do art. 5º da CF, incluído pela EC 45/2004 (BRASIL,

2004).

Há que se destacar, entretanto, o entendimento doutrinário que considera que,

independentemente da entrada em vigor do §3º do art. 5º da CF, os tratados internacionais de

direitos humanos têm hierarquia constitucional, por força do §2º do art. 5º, que estabelece

cláusula materialmente aberta de direitos fundamentais. Nesse mesmo sentido posiciona-se

Piovesan (2013, p. 144), para quem os tratados ratificados anteriormente à EC 45/2004 são

material e formalmente constitucionais e, quanto aos posteriores, defende o argumento de que

o quorum que o § 3º do art. 5º estabelece serve tão somente para atribuir eficácia formal a

esses tratados e não a índole materialmente constitucional que eles já têm em virtude do §2 do

art. 5º da Constituição. Assim, conforme Piovesan (2013, p. 145), “com o advento do §3º do

art. 5º surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: a)

os materialmente constitucionais; b) os material e formalmente constitucionais”, para concluir

67Neste contexto, o SIDH gradativamente se empodera, mediante diálogos a permitir o fortalecimento dos

direitos humanos em um sistema multinível. É sob essa perspectiva multinível que emergem duas vertentes do diálogo jurisdicional, a compreender o diálogo com os sistemas nacionais (a abranger o controle de convencionalidade) e o diálogo com a sociedade civil (a emprestar ao SIDH crescente legitimação social). (PIOVESAN, 2015, p.154).

68De fato, no julgamento do RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, o STF, ao decidir sobre a possibilidade de prisão civil do depositário infiel em face da proibição contida na CADH, reconheceu o status de norma supralegal (embora ainda infraconstitucional), no ordenamento jurídico nacional, dos tratados internacionais de direitos humanos, em decisão assim ementada: “PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, §7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE n. 349.703 e dos Hcs n. 87.585 e n. 92.556. É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. (BRASIL, 2008a)

215

em seguida que “todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente

constitucionais, por força do §2º do art. 5º” (PIOVESAN, 2013, p. 145).

Disposição importante da CADH é a que estabelece a chamada “cláusula federal”, para

evitar que Estados aleguem questões internas relativas às competências de entes federativos

para o descumprimento de normas da Convenção e posterior responsabilização69.

Em reforço à efetividade das normas contidas na CADH, seu art. 29 estatui que

nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de:

a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o

exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em

maior medida do que a nela prevista;

b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser

reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de

Convenções em que seja parte um dos referidos Estados;

c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem

da forma democrática representativa de governo;

d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a DADH e outros atos internacionais

da mesma natureza (OEA, 1969).

O monitoramento da efetividade dos direitos enunciados na CADH é levado a efeito

pela CIDH e pela CorteIDH, nos moldes adiante estabelecidos.

A CIDH foi estabelecida na Carta da OEA, em 1948 (OEA, 1948), e, por essa razão, sua

competência alcança todos os Estados-partes da CADH e, ainda, todos os Estados-membros

da OEA, em relação aos direitos estabelecidos na DADH (PIOVESAN, 2013 p. 137). Sua

configuração atual, entretanto, somente foi possível com suporte no extenso rol de artigos da

CADH.

69Artigo 28. 1. Quando se tratar de um Estado-parte constituído como Estado federal, o governo nacional do

aludido Estado-parte cumprirá todas as disposições da presente Convenção, relacionadas com as matérias sobre as quais exerce competência legislativa e judicial. 2. No tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas pertinentes, em conformidade com sua Constituição e com suas leis, a fim de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento desta Convenção. 3. Quando dois ou mais Estados-partes decidirem constituir entre eles uma federação ou outro tipo de associação, diligenciarão no sentido de que o pacto comunitário respectivo contenha as disposições necessárias para que continuem sendo efetivas no novo Estado, assim organizado, as normas da presente Convenção(OEA, 1969).

216

A CIDH, que atualmente tem sede em Washington, está composta de sete membros,

pessoas de elevada autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos

(art. 34) (OEA, 1969), que são eleitas, a título pessoal, pela Assembleia Geral da OEA, com

base em uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados-membros (art. 36)

(OEA, 1969), não podendo fazer parte da CIDH mais de um nacional de um mesmo país (art.

37, 2) (OEA, 1969).

De acordo com o art. 41, a CIDH tem a função principal de promover a observância e a

defesa dos direitos humanos e, no exercício de seu mandato, tem as seguintes funções e

atribuições:

a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América;

b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar

conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos

humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como

disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos;

c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de

suas funções;

d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações

sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos;

e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da OEA, lhe formularem os

Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de

suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que lhes solicitarem;

f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade,

de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 desta Convenção;

g) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral da OEA (OEA, 1969).

O acesso à CIDH é amplo, pois, conforme o art. 44, qualquer pessoa ou grupo de

pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-

membros da OEA, pode apresentar à CIDH petições que contenham denúncias ou queixas de

violação da CADH por um Estado-parte, desde que cumpridos os requisitos de

admissibilidade encartados no seu art. 46 (OEA, 1969).

Detalhe importante é que somente a CIDH (que tomará parte em todos os casos

propostos perante a CorteIDH, conforme o art. 57 da CADH) (OEA, 1969) e os Estados-

217

partes podem submeter um caso à CorteIDH (art. 61) (OEA, 1969), não estando legitimados o

indivíduo, grupos de indivíduos ou organizações não governamentais (como acontece, por

exemplo, no acesso à Corte Europeia de Direitos Humanos, nos termos do art. 34 da

Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH70). Por essa razão, a doutrina considera

o papel da CIDH assemelhado ao desempenhado pelo Ministério Público no sistema de

justiça brasileiro, no tocante às ações penais de iniciativa pública incondicionada.

Já a CorteIDH tem sede atual em San José (Costa Rica), local de assinatura da CADH,

embora possa realizar reuniões no território de qualquer Estado-membro da OEA em que

considerar conveniente, pela maioria dos seus membros e mediante prévia aquiescência do

Estado respectivo (art. 58) (OEA, 1969). É composta de sete juízes, nacionais dos Estados-

membros da OEA, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de

reconhecida competência em matéria de direitos humanos.

A CorteIDH é competente para processar e julgar qualquer caso relativo à interpretação

e à aplicação das disposições da CADH, para apreciar consultas dos Estados relativas à

interpretação das normas do SIDH e para emitir pareceres a respeito da compatibilidade entre

leis internas e os tratados do SIDH, fazendo o que na doutrina se convencionou chamar de

“controle de convencionalidade das leis”.

De acordo com o site da CIDH, até dezembro de 2017, 20 países estavam submetidos à

jurisdição contenciosa da CorteIDH (CIDH, s/da). Mencionem-se, mais uma vez, importantes

ausências: EUA, Canadá e Venezuela. “A submissão à jurisdição de uma Corte internacional

não significa um enfraquecimento da soberania estatal, mas o fortalecimento de sua

democracia e da promoção dos direitos fundamentais elencados na sua constituição”

(LASCALA; FREITAS, 2012, p. 1040).

Ressalte-se que a CorteIDH não efetua uma interpretação estática dos direitos humanos

enunciados na CADH, mas, tal como a Corte Europeia, realiza interpretação dinâmica e

evolutiva, considerando o contexto temporal e as transformações sociais, o que permite a

expansão de direitos (PIOVESAN, 2013, p. 146).

70 Art. 34. O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou

grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem - se a não criar qualquer entrave ao exercício efectivo desse direito (CONSELHO DA EUROPA, 1950).

218

Streck e Saldanha (2013, p. 415) ressaltam a importância da jurisprudência da Corte

para a consolidação dos direitos humanos na América Latina, marcada por Estados

submetidos a governos autoritários que, no curso de décadas, “não só reforçaram as

consequências negativas do pós colonialismo e institucionalizaram a violência, quanto

cumpriram a agenda econômica neoliberal predeterminada” (STRECK; SALDANHA, 2013,

p. 415). Ademais, outra importante contribuição da CorteIDH para o direito internacional dos

direitos humanos tem sido a imposição bem-sucedida de reparações, não mais limitadas ao

pagamento de indenizações, mormente no tocante às alterações legislativas necessárias para

compatibilizar o direito interno à CADH. Valério Mazzuoli e Luiz Flávio Gomes citam como

exemplos de reparações distintas da mera indenização: obrigação de construção de posto

médico e escolar; obrigação de alterar o ordenamento jurídico interno; obrigação de investigar

e punir responsáveis pela violação; obrigação de tornar nulo processo judicial; construção de

monumentos em memória das vítimas de violações de direitos humanos (GOMES;

MAZZUOLI, 2010, p. 330).

A principal dificuldade que a CorteIDH vem enfrentando refere-se ao cumprimento das

condenações referentes às investigações efetivas dos fatos que originaram as violações, bem

como a identificação e sanção dos responsáveis. De fato, como preconiza Bobbio (1992, p.

25), a garantia dos direitos humanos no plano internacional só será implementada quando uma

“jurisdição internacional se impuser concretamente sobre as jurisdições nacionais, deixando

de operar dentro dos Estados, mas contra os Estados e na defesa do cidadão”. Em outro

estudo, “O Futuro da Democracia”, Bobbio retomou a ideia ao vaticinar que “o sistema ideal

de uma paz estável pode ser expresso com esta fórmula sintética: uma ordem democrática de

Estados democráticos” (BOBBIO, 2004, p. 13).

Piovesan (2013, p. 163-166), por sua vez, aponta alguns caminhos para o fortalecimento

da justiça internacional:

a) adoção de legislação interna, pelos Estados, relativa à implementação das decisões

internacionais em matéria de direitos humanos;

b) previsão de sanção ao Estado que, de forma reiterada e sistemática, descumprir as

decisões internacionais;

c) demanda por maior democratização do sistema, começando com o direito de acesso

direto do indivíduo à CorteIDH;

219

d) instituição de funcionamento permanente e da CIDH e da CorteIDH, com recursos

financeiros, técnicos e administrativos suficientes.

Enquanto tais medidas não sejam implementadas, porém, é possível valer-se da

simbiose entre a ordem constitucional interna e os organismos internacionais, potencializando

a proteção dos direitos humanos. De fato, como leciona Neves (2014, p. 207), o “modelo de

articulação” (“engagement model”) ou melhor, de entrelaçamento transversal entre ordens

jurídicas, é caminho mais adequado em matéria de direitos humanos, porque estas

apresentam-se aptas a reconstruírem-se permanentemente, por meio do aprendizado com as

experiências de ordens jurídicas interessadas concomitantemente na solução dos mesmos

problemas jurídicos constitucionais de direitos fundamentais ou direitos humanos.

Um dos objetivos desta tese, portanto, é investigar como a Defensoria Pública pode

funcionar como instituição catalisadora desse “modelo de articulação” entre ordens jurídicas,

resultando em um ambiente de maior conhecimento, promoção e proteção de direitos

humanos. Nessa perspectiva, indispensável é o conhecimento da atuação da DPU e da

AIDEF.

3.2.2 A atuação interamericana da Defensoria Pública: DPU e Associação

Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF)

A DPU encontra-se organizada pelos ditames da LC 80/94 que, em seu art. 14,

estabelece que tal instituição atuará nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, junto às

Justiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores e instâncias

administrativas da União (BRASIL, 1994). No âmbito da DPU, no que diz respeito à atuação

dos defensores públicos federais no âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos

humanos, destaca-se a previsão da Resolução n. 127, de 6 de abril de 2016, do Conselho

Superior, que cria a figura do Defensor Nacional de Direitos Humanos, designado pelo

Defensor Público-Geral Federal, dentre integrantes de lista sêxtupla elaborada pelo Conselho

Superior da DPU (DPU, 2016).

No art. 7º, I da citada Resolução (DPU, 2016), verifica-se que incumbe ao Defensor

Nacional de Direitos Humanos representar aos sistemas internacionais de proteção dos

direitos humanos, postulando perante seus órgãos. Assim, a DPU atribui a uma figura

específica a tarefa de acessar os diversos Comitês Internacionais do Sistema Geral de

220

Proteção dos Direitos Humanos, como, por exemplo, os previstos no PIDCP, no PIDESC e

seus respectivos protocolos adicionais facultativos ou mesmo nos comitês do sistema

internacional especial de proteção dos direitos humanos, como os previstos na “Convenção

para a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, na “Convenção para a

eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher”, na “Convenção

internacional contra a Tortura” entre outros. Ademais, avultará a importância do Defensor

Nacional de Direitos Humanos em sua atuação perante o SIDH, levando até a CIDH situações

de graves violações de direitos humanos ocorridas e verificadas na diuturna labuta dos

defensores públicos federais em seus órgãos de atuação.

A AIDEF, por sua vez, é uma associação de defensorias públicas entre cujos objetivos

principais se encontram: defender a plena vigência e eficácia dos direitos humanos,

estabelecer um sistema permanente de coordenação e cooperação interinstitucional das

Defensorias Públicas e Associações de Defensores Públicos das Américas e Caribe, defender

a independência e autonomia das Defensorias Públicas para assegurar o pleno exercício do

direito de defesa das pessoas (AIDEF, s/da).

A criação da AIDEF foi oficializada em 18 de outubro de 2003, na cidade do Rio de

Janeiro, durante o II Congresso Interamericano de Defensorias Públicas, quando foi assinada

a sua ata constitutiva. O Estatuto da AIDEF foi aprovado em 2009, em Montevideo e

devidamente registrado na Guatemala (país sede da Associação), no dia 4 de junho. A criação

da AIDEF foi motivada pela perspectiva dos seus países-membros perante a necessidade de

assegurar o funcionamento de um sistema estável de coordenação e cooperação

interinstitucional, a fim de fortalecer as Defensorias Públicas das Américas e Escritórios de

Assistência Jurídica do Caribe (DPU, s/d).

Cabe destacar que a AIDEF obteve avanços proeminentes quanto às metas estabelecidas

em seu plano de trabalho, dos quais se ressaltam a aprovação de duas resoluções inéditas da

OEA sobre a assistência jurídica gratuita e a assinatura de convênio com a CIDH e CorteIDH

para indicar defensores públicos interamericanos para atuação perante o SIDH (AIDEF, s/da).

O primeiro documento normativo da OEA, Resolução AG/RES. 2656 (XLI-O/11)

(OEA, 2011), reconhece a figura do Defensor Público Interamericano e respalda o trabalho da

AIDEF no fortalecimento das defensorias públicas nos Estados-membros. Importante é

destacar, ainda, que a citada Resolução, em seu nº 2, decide “apoiar o trabalho que vêm

221

desenvolvendo os defensores públicos oficiais dos Estados do Hemisfério, que constitui um

aspecto essencial para o fortalecimento do acesso à justiça e à consolidação da democracia”;

em seu nº 3 “afirmar a importância fundamental do serviço de assistência jurídica gratuita

para a promoção e a proteção do direito ao acesso à Justiça de todas as pessoas, em especial

daquelas que se encontram em situação especial de vulnerabilidade; no nº 4 “recomendar aos

Estados membros que já disponham do serviço de assistência jurídica gratuita que adotem

medidas que garantam que os defensores públicos oficiais gozem de independência e

autonomia funcional”; nº 5 “incentivar os Estados membros que ainda não disponham da

instituição da Defensoria Pública que considerem a possibilidade de cria-la em seus

ordenamentos jurídicos” (OEA, 2011).

Conforme anota Fensterseifer (2017, p. 164-165), a Resolução AG/RES. 2656 (XLI-

O/11), da OEA (OEA, 2011) “estabelece as premissas de um modelo público de assistência

jurídica aos necessitados, em sintonia com o modelo constitucional adotado pelo Brasil pela

CF/88” (FENSTERSEIFER, 2017, p. 164), sendo tal modelo sugerido a todos os Estados

Americanos, firmando, assim, a OEA “importante posição política a respeito do direito à

assistência jurídica, de titularidade dos necessitados e do correspondente dever dos Estados-

partes que a integram de efetivá-lo por meio de um sistema público” (FENSTERSEIFER,

2017, p. 165).

No dia 3 de agosto de 2016 a AIDEF aprovou os princípios e diretrizes sobre a

Defensoria Pública das Américas (AIDEF, 2016), que sistematizam os parâmetros em matéria

de Defensoria Pública que a Assembleia Geral da OEA tem desenvolvido nas resoluções

adotadas desde 2011, por provocação da AIDEF. No citado documento, se reconhece, entre

outros pontos, que o trabalho dos defensores públicos oficiais constitui um aspecto essencial

para o fortalecimento do acesso à justiça e a consolidação da democracia; a obrigação dos

Estados de eliminar os obstáculos que afetem ou limitem o acesso à Defensoria Pública, de

maneira que se assegurem o livre e pleno acesso à justiça e a importância que a Defensoria

Pública conte com independência, autonomia funcional, financeira e orçamentária. Cabe

destacar o fato de que tais princípios e diretrizes constituem um documento inédito para a

região, que consolida os princípios básicos de uma Defensoria Pública integral e autônoma,

ferramenta fundamental para a proteção dos direitos humanos de todas as pessoas, em

especial, daquelas mais vulneráveis (AIDEF, 2016).

222

No dia 13 de outubro de 2016, no marco do 89º Período Ordinário de Sessões, ocorrido

na cidade do Rio de Janeiro, de 3 a 14 de outubro, o Comitê Jurídico Interamericano (CJI) da

OEA adotou por unanimidade a Resolução CJI/RES. 226 (LXXXIX-O/16), mediante a qual

aprovou os princípios e diretrizes sobre a Defensoria Pública das Américas. Ademais o CJI

decidiu remeter o documento “ao Conselho Permanente da OEA com a recomendação de que

considere elevá-la à Assembleia Geral da Organização para a eventual aprovação de ditos

princípios”. Em sua Resolução AG/RES. 2908 (XLVII-O-17) de junho de 2017, a Assembleia

Geral tomou nota dos princípios e diretrizes e solicitou ao Departamento de Direito

Internacional que desse a ele a mais ampla difusão (AIDEF, s/da).

Assim, além do papel de fornecer defensores públicos interamericanos para atuação

perante o SIDH, percebe-se que a AIDEF exerce importante papel político, influenciando a

elaboração de documentos importantes que delimitam subidos parâmetros de acesso à justiça

por meio das defensorias públicas no Continente. Desse modo, os Estados que se colocam sob

a ingerência da OEA comprometem-se com um modelo público de assistência jurídica

bastante semelhante ao adotado no Brasil, com foco na defesa dos direitos humanos e,

principalmente, de grupos vulneráveis.

Fensterseifer (2017, p. 165) lembra que a figura do defensor interamericano foi criada

no LXXXV Período Ordinário de Sessões da CorteIDH, dos dias 16 a 28 de novembro de

2009, inserindo novos dispositivos em seu Regulamento. Nos termos do seu art. 2º, 11

(CORTEIDH, 2009) “a expressão ‘Defensor Interamericano’ significa a pessoa que a Corte

designe para assumir a representação legal de uma suposta vítima que não tenha designado

um defensor por si mesma”. Já o art. 37 passa a estatuir que “em casos de supostas vítimas

sem representação legal devidamente credenciada, o Tribunal poderá designar um Defensor

Interamericano de ofício que as represente durante a tramitação do caso”. Com efeito,

conforme exprime Rocha (2013, p. 36),

a AIDEF firmou com a Corte Interamericana de Direitos Humanos Acordo de Entendimento “para que nos casos em que figure vítima que careça de recursos econômicos e de representação legal perante a CorteIDH, a AIDEF seja acionada, por sua Coordenação geral, para designar Defensor Público apto a assumir a sua representação e defesa legal”.

A criação do defensor público interamericano surgiu da necessidade de reformar o papel

da CIDH perante a CorteIDH, outorgando maior protagonismo ao litígio entre os

representantes das vítimas ou presumidas vítimas e o Estado demandado, permitindo, assim,

223

que a CIDH exerça mais um papel de órgão do sistema interamericano, afiançando, desse

modo, o equilíbrio processual entre as partes, conforme é possível ler na Exposição de

Motivos da Reforma do Regulamento da CorteIDH (CORTEIDH, 2009a). De fato,

anteriormente a CIDH exercia posição dual perante a CorteIDH, sendo ao mesmo tempo a

representante das vítimas de violações de direitos humanos e um órgão do sistema

interamericano.

A figura do Defensor Interamericano é, sem dúvida, distinta daquela destinada ao

defensor público no âmbito constitucional, mas, ainda assim, há forte conexão entre ambas as

funções, bem como o movimento político verificado no âmbito da OEA de valorizar a figura

dos defensores públicos (FENSTERSEIFER, 2017, p. 165). Tal distinção verifica-se, por

exemplo, na forma de investidura, nas prerrogativas e amplitude de atuação, mas apresentam

similitude nas funções de defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Como noticia Rocha (2013, p. 37),

Os critérios de seleção dos defensores públicos interamericanos serão definidos internamente por cada país, de modo que cada um indique seus representantes à AIDEF. No caso brasileiro, foi divulgado edital conjunto ANADEP (Associação Nacional de Defensores Públicos) e CONDEGE (Conselho de Defensores Públicos Gerais) estabelecendo critérios objetivos para a seleção, priorizando a qualificação técnica e os conhecimentos teóricos e práticos sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Atualmente integram a AIDEF representantes de 18 países: Argentina, Bolivia, Brasil,

Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México,

Nicarágua, Panamá, Paraguai, Perú, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

Posteriormente foram incorporados Bahamas, Bolívia, Estados Unidos, Guatemala, Jamaica,

Panamá, Perú y Trinidad y Tobago (AIDEF, s/d). Os defensores públicos interamericanos,

hoje em número de 20, possuem atuação destacada perante a CIDH e a CorteIDH.

Assim, podem ser citados os seguintes casos, nos quais houve intervenção de defensores

públicos interamericanos na CorteIDH, em ordem cronológica, de acordo com o site da

AIDEF (AIDEF, s/db):

*Sebastián Claus Furlán y familia vs. Argentina (Caso Nº 12.539) – Primeiro caso da

CorteIDH em que houve a atuação da Defensoria, remetido em 15 de março de 2011 e com

sentença datada de 31 de agosto de 2012. Sebastián Furlan sofreu um acidente nas

224

dependências de um prédio do Exército argentino, que implicou uma série de consequências

físicas e mentais. A CorteIDH condenou o Estado argentino por:

a) violação do direito ao julgamento do processo em prazo razoável, especialmente por

conta do estado de vulnerabilidade acentuada da vítima;

b) violação do direito à proteção judicial e propriedade privada;

c) inefetividade do Estado em garantir o acesso à justiça e integridade pessoal de

Sebástian e seus familiares.

A CorteIDH entendeu que é dever do Estado incluir a pessoa com deficiência na

sociedade e adotar medidas positivas para eliminar as barreiras impostas pela sociedade

(CORTEIDH, 2012a).

*Oscar Alberto Mohamed vs. Argentina (Caso 11.618) – Remetido em 13 de abril de

2011 e com sentença datada de 23 de novembro de 2012. Mohamed foi condenado pelo delito

de homicídio culposo, por um tribunal que revogou uma decisão absolutória de primeira

instância. A Corte Interamericana decidiu que:

a) não há que se falar em novo processo quando a acusação interpõe o recurso de

apelação dentro do prazo legal, tendo em vista que o processo penal se desenvolve

em etapas, sendo a fase recursal uma delas;

b) o sistema processual penal argentino aplicado não garantiu um recurso ordinário

acessível e eficaz que permitisse um exame da sentença condenatória, nos termos do

art. 8.2.h da CADH;

c) o Estado adotasse as medidas necessárias para garantir a Mohamed o direito de

recorrer da sentença, bem como o pagamento de indenização (CORTEIDH, 2012b).

*Familia Pacheco Tineo vs. Bolivia (Caso No. 12.474) – Remetido em 21 de fevereiro

de 2012 e com sentença datada de 25 de novembro de 2013. Nesse caso atuou o defenor

brasileiro Roberto Tadeu Vaz Curvo. Refere-se à devolução da família Pacheco Tineo em

fevereiro de 2001 como consequência da denegação da solicitação de reconhecimento do

estatuto de refugiados na Bolívia e sua expulsão ao país de origem, sem qualquer

possibilidade de defesa. Esta solicitação foi resolvida desfavoravelmente em horas, de forma

sumária e em violação das garantias do devido processo. A CorteIDH declarou a

responsabilidade do Estado pela violação dos direitos e garantias judiciais, proteção judicial,

circulação e residência, integridade pessoal e direitos da criança, em prejuízo da Pacheco

225

Tineo. A condenação abrangeu a obrigatoriedade de ampla publicidade à sentença, obrigação

de capacitação aos funcionários da Direção Nacional de Migração e Comissão Nacional de

Refugiados e indenização às vítimas (CORTEIDH, 2013).

*Hugo Oscar Argüelles y otros vs. Argentina (Caso No. 12.167) – Remetido em 29 de

maio de 2012 e com sentença datada de 20 de novembro de 2014. Refere-se à violação ao

direito de liberdade e a um processo justo nos processos internos levados adiante contra

oficiais militares pelo delito de fraude militar, em cumprimento às disposições do Código de

Justiça militar argentino então vigente. A CIDH já há via concluído que foi violado o direito à

liberdade pessoal das vítimas ao mantê-las em prisão preventiva por um período excessivo e

que o Código de Justiça Militar incluía certas previsões que constituíam violação do direito a

um juízo justo e de acesso à justiça. Já a CorteIDH declarou o Estado argentino responsável

internacionalmente pela violação do direito à liberdade pessoal e da presunção de inocência,

do direito de ser assistido por um defensor letrado de sua eleição e da garantia judicial do

prazo razoável do processo (CORTEIDH, 2014).

*Canales Huapaya y otros vs. Perú (Caso No. 12.214) – Remetido em 5 de dezembro

de 2013 e com sentença datada de 24 de junho de 2015. Nesse caso atuou o defensor

brasileiro Antonio José Maffezoli. Refere-se à violação do direito às garantias judiciais e

proteção judicial em prejuízo de Carlos Alberto Canales Huapaya, José Castro Ballena e

María Gracia Barriga Oré, como consequencia da falta de resposta judicial adequada e efetiva

frente aos ceses na qualidade de funcionários permanentes do Congresso da República do

Perú. A CorteIDH determinou que o Estado peruano era responsável pela violação dos

direitos protegidos nos artigos 8.1 e 25.1 da CADH (garantias judiciais e proteção judicial),

em relação às obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento (CORTEIDH,

2015a).

*José Agapito Ruano Torres y familia vs. El Salvador (Caso No. 12.679) – Remetido

em 13 de fevereiro de 2014 e com sentença datada de 5 de outubro de 2015. José Agapito

Ruano Torres foi preso em sua casa, na madrugada de 17 de outubro de 2000, sendo

maltratado diante de sua família. Depois foi processado e condenado penalmente em violação

às garantias mínimas do processo. A CIDH concluiu pela ocorrência de tortura e condenação

com sérias dúvidas de autoria, em violação à presunção de inocência, além da deficiente

atuação da defensoria pública ter constituído uma violação do direito de defesa. Considerou

ainda que o Estado não garantiu recursos efetivos para investigar as torturas sofridas, para

226

proteger a vítima frente às violações ao devido processo, nem para revisar sua prisão. A

CorteIDH considerou El Salvador responsável pela violação ao direito à integridade pessoal,

pela tortura, pela violação do direito à liberdade pessoal, presunção de inocência, ao direito de

defesa e o de ser ouvido com as devidas garantias, ao direito à proteção judicial, assim como a

falta de garantias do direito à integridade pessoal com respeito à obrigação de investigar atos

de tortura. Importante destacar que a CorteIDH ressaltou que a Defensoria Pública, por meio

da provisão de serviços públicos e gratuitos de assistência jurídica permite, sem dúvida,

compensar adequadamente a desigualdade processual na qual se encontram as pessoas que

enfrentam o poder punitivo do Estado, assim como a situação de vulnerabilidade das pessoas

privadas de liberdade, bem como garantir-lhes um acesso efetivo à justiça em termos

igualitários (CORTEIDH, 2015b).

*Luis Williams Pollo Rivera vs. Perú (Caso No. 12.617) – Remetido em 8 de fevereiro

de 2015 e com sentença datada de 21 de outubro de 2016. Nesse caso atuou o defensor

brasileiro Carlos Eduardo Barros da Silva. Refere-se a uma série de violações aos direitos

humanos de Luis Pollo durante o tempo em que esteve sob a custódia do Estado, desde 4 de

novembro de 1992, pelo delito de terrorismo. A CIDH concluiu que a detenção foi ilegal e

arbitrária, por não cumprir com a obrigação de informar detalhadamente os motivos da prisão

e realiza-la sem controle judicial. A CorteIDH considerou que o Estado do Perú violou o

direito à liberdade e à integridade pessoal; o direito de ser julgado por um tribunal

competente, independente e imparcial; o direito à presunção de inocência e à defesa, a não

produzir prova contra si mesmo e à publicidade do processo; o princípio da legalidade. A

CorteIDH ordenou ao Estado: i) continuar e concluir, com a devida diligência e em prazo

razoável a investigação pelos atos de tortura sofridos por Pollo Rivera e, se for o caso,

processar e punir os responsáveis; i) publicar a Sentença da Corte Interamericana e pagar as

quantias fixadas na sentença por danos materiais e imateriais e reembolso de despesas

(CORTEIDH, 2016).

*Agustín Bladimiro Zegarra Marín vs. Perú (Caso No. 12.700) – Remetido em 22 de

agosto de 2014 e com sentença datada de 15 de fevereiro de 2017. Refere-se à violação ao

princípio da presunção de inocência e ao dever de motivação das decisões judiciais em

prejuízo de Augustín Bladimiro Zegarra Martín, que foi condenado em primeira instância em

8 de novembro de 1996. A CIDH considerou que existiu inversão do ônus da prova em

desfavor do apenado e que não foram assegurados os recursos judiciais efetivos, gerando

227

violação ao devido processo na sentença condenatória de primeira instância (CORTEIDH,

2017).

*Manfred Amhrein y otros vs. Costa Rica (Caso 12.820) – Remetido em 28 de

novembro de 2014 e com sentença ainda PENDENTE. O Sr. Amrhein e outras dezesseis

pessoas foram condenadas penalmente e não contaram com a possibilidade de apresentar

recursos nos termos do art. 8.2.h da CADH. De acordo com o direito processual penal da

Costa Rica na época, o recurso de cassação era orientado a impugnar unicamente questões de

direito. A CIDH entendeu violado o direito a um recurso que outorgue a possibilidade de uma

revisão integral da decisão condenatória. Assim, os Estados devem dispor dos meios

necessários para compatibilizar as particularidades de seu sistema processual penal com as

obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e, especialmente, com as garantias

mínimas do devido processo estabelecidas no art. 8 da CADH (CIDH, 2014).

*Johan Alexis Ortiz Hernández vs. Venezuela (Caso 12.270) – Remetido em 13 de maio

de 2015 e com sentença ainda PENDENTE. Refere-se ao falecimento de Johan Alexis Ortiz

Hernández, nas instalações da Escola de Guardas Nacionais de Cordero (ESGUARNAC) em

15 de fevereiro de 1998. A vítima tinha 19 anos e foi atingido por projéteis de metralhadora

em um exercício militar, de forma acidental, segundo a versão oficial. Os peticionários

entendem que foram vítimas de ocultação de informações, e denunciaram que as autoridades

investigativas tardaram de maneira negligente a exumação do cadáver. Alegaram, pois, que o

Estado era responsável pela violação aos direitos à vida (artículo 4), integridade pessoal (art.

5), garantias judiciais (art. 8) e proteção judicial (art. 25) da CADH, assim como a obrigação

genérica de respeitar e garantir os direitos protegidos no art. 1(1) do mesmo estatuto (CIDH,

2015).

*V.R.P. y V.P.C v. República de Nicarágua (Caso 12.590) – Remetido em 25 de agosto

de 2016 e com sentença ainda PENDENTE. Refere-se à violação sexual sofrida pela menina

V.R.P, que tinha 9 anos de idade e que afirmou que o responsável pela violação era seu pai. A

CIDH determinou que as violações sexuais cometidas por um ator não estatal constituíram

afetações aos direitos à integridade pessoal, a dignidade, vida privada e autonomia, igualdade

e não discriminação e a proteção especial da menina, em prejuízo de V.R.P. Também

determinou que o Estado da Nicarágua é responsável internacionalmente pelo

descumprimento do dever de garantir tais direitos, particularmente, do dever de investigar

com a devida diligência, em um prazo razoável e de acordo com a perspectiva de gênero e os

228

deveres estatais reforçados derivados da condição de menina da vítima. Considerou ademais

que V.R.P foi gravemente revitimizada com um impacto severo em sua integridade psíquica,

como de sua mãe e outros filhos desta. A CIDH entendeu que a absolvição do agente foi

resultado de um processo violador das obrigações internacionais do Estado e, por tanto, ao

tratar-se de uma grave violação de direitos humanos, recomendou a continuidade da

investigação a nível interno, entre outras medidas de reparação (CIDH, 2016b).

*Poblete Vilches y familiares vs. Chile (Caso 12.695) – Remetido em 27 de agosto de

2016 e com sentença PENDENTE. Nesse caso atuou o defensor brasileiro Rivana Barreto

Ricarte de Oliveira. Refere-se às ações e omissões que tiveram lugar entre 17 de janeiro e 7 de

fevereiro de 2001, datas nas quais Vinicio Antonio Poblete Vilches ingressou em duas

oportunidades no hospital público Sótero del Río, onde faleceu. A Comissão estabeleceu que

houve negligência médica no primeiro atendimento determinou a responsabilidade estatal pela

falta de provisão do tratamento intensivo que necessário na segunda internação. Finalmente,

considerou que as investigações a nível interno não foram realizadas com a devida diligência

e em um prazo razoável (CIDH, 2016c).

*Villaseñor y otros vs. Guatemala (Caso 11.388) – Remetido em 15 de março de 2017 e

com sentença ainda PENDENTE. Caso relaciona-se com uma sequencia de agressões,

ameaças, intimidações e hostilidades sofridos por uma juíza da Guatemala, María Eugenia

Villaseñor, que participou de processos judiciais entre 1991 e 2012, algum de impacto

nacional ou internacional. As denúncias não foram investigados devidamente pelo Estado a

fim de identificar as fontes de risco, erradicá-las e impor sanções. A impunidade dos fatos

denunciados é total. A CIDH considerou que a falta de proteção adequada e de investigação

diligente e efetiva dos fatos repercutiram nos trabalhos como juíza da senhora Villaseñor. A

CIDH concluiu que o Estado violou os artigos 5(1), 8(1) y 25(1) da CADH, en relação com o

art. 1(1) em prejuízo da senhora Villaseñor, e o art. 5(1) combinado com o art. 1(1) em

prejuízo de sua filha, seu irmão e sua irmã (CIDH, 2017).

No âmbito da CIDH, conforme informações do site institucional, podem ser registradas

participações dos defensores públicos interamericanos nos seguintes casos: 1- Esteban Juan

Martínez Pérez vs. Perú, com atuação do brasileiro Antonio José Maffezoli; 2 - Fernando

Rodríguez González vs. México; 3 - Víctor Manuel Boggiano Bruzzon vs. Bolivia; 4 - Gerson

Milusk de Carvalho vs. Brasil; 5 - Gerardo Cruz Pacheco vs. Estados Unidos de México; 6 -

Jorge Eduardo Olivares y otros vs. Perú; 7 - Carlos Andrés Galeso Morales c. Colombia, com

229

atuação da defensora pública brasileira Isabel Penido Campos de Machado; 8 - José Alejandro

Reséndiz Olvera c. México; 9 - Mario Merwan Chira Alvarado y otros c. Perú (CIDH, s/db).

4 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA RESISTÊNCIA

À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E À SELETIVIDADE

PENAL

Ante os decantados fenômenos da criminalização da pobreza e da seletividade penal,

exaustivamente estudados nos capítulos 1 e 2 desta tese, importante é sublinhar, no arcabouço

constitucional brasileiro, a instituição pensada para garantir aos vulneráveis o efetivo acesso à

justiça, aqui entendido como garantia da plenitude de usufruto de direitos, em uma

perspectiva específica de enfrentamento a esses dois graves problemas. Assim, urge a tarefa

de estabelecer o papel desempenhado pela Defensoria Pública, apresentando caminhos (e

construindo outros) de efetivação de suas múltiplas funções de empoderamento dos pobres, a

fim de garantir-lhes conhecimento e fruição dos direitos formalmente assegurados aos demais.

Essa é a razão condutora deste estudo: delinear o papel constitucional da Defensoria

Pública, em um Estado fundado na ideia-força da dignidade humana, no combate à

criminalização da pobreza, explorando as potencialidades dessa jovem instituição, alargando

suas possibilidades além da mera atuação forense (igualmente importante), fazendo-a alcançar

o status como difusora do discurso e do conhecimento dos direitos humanos, entronizando-a

como porta-voz dos pobres, tornando-os aptos ao exercício da cidadania, no sentido da

consolidação do Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, direcionam-se as ações

conforme doutrina Boaventura de Sousa Santos, deslocando-se a visão para a prática de

grupos e classes socialmente oprimidos que, lutando contra a opressão, a exclusão, a

discriminação, a destruição do meio ambiente, recorrem a distintos formatos de direito como

instrumento de oposição, devolvendo ao direito o seu caráter insurgente e emancipatório

(SANTOS, 2017, p. 7).

Em última análise, trata-se do primeiro passo rumo à escolha de que futuro se pretende

deixar para as gerações vindouras, na esteira do que preconiza Wacquant (2001, p. 13): uma

sociedade aberta e ecumênica, incentivada por um espírito de igualdade e de concórdia (pela

edificação, por mais lenta e difícil que seja, de um Estado social), ou um arquipélago de

231

ilhotas de opulência e de privilégios perdidas no seio de um oceano frio de miséria, medo e

desprezo pelo outro, a partir da escalada, sem freios nem limites, da réplica penal

(WAQUANT, 2001, p. 13).

É preciso incidir contra a lógica punitiva, por meio de uma mudança institucional

profunda, que situa as pessoas no centro das intervenções, garantindo seu protagonismo e sua

dignidade, constituindo a maneira distinta de se lidar com violências e conflitos, que deveria

perpassar todo o sistema de justiça criminal (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 28). Em seus

estudos sobre acesso à justiça, Sadek (2014, p. 26) complementa:

A atuação da defensoria pública tem a possibilidade de romper com uma situação caracterizada por desigualdades cumulativas. Tal traço, definidor da realidade brasileira, retrata uma situação na qual a precariedade de renda implica precariedade em educação, precariedade em saúde, precariedade em habitação, déficits em qualidade de vida. Isto é, desigualdades que se agregam constituindo uma situação de exclusão. Nessa situação, sobra pouco espaço - se algum - para a vivência de direitos.

Destarte, deve-se pugnar pelo estabelecimento, desde os paradigmas e objetivos

constitucionais, de uma proposta de atuação da Defensoria Pública que pretenda aproximar os

pobres da condição de protagonistas de sua história, capazes de identificar e,

organizadamente, se contraporem às manifestações ofensivas à sua dignidade humana pela

atuação discriminatória e criminalizadora, seja do Estado, seja de particulares. Segue-se na

esteira da percepção de Weis (2014, p. 147-148) que, se referindo a uma noção fixada pelo

SIDH, percebeu que o devido processo legal exige do Estado prestações positivas, na busca

de um efetivo direito de acesso à Justiça, de natureza prestacional própria da segunda

dimensão de direitos humanos, ultrapassando o original e restrito direito da pessoa de

constituir defensor para a defesa penal.

Concorda-se, então, com a doutrina de Fensterseifer (2017, p. 92), ao ensinar que

Um dos pontos mais importantes da atuação da Defensoria no cenário jurídico-político contemporâneo é atuar em duas frentes de combate à marginalização social. Ou seja, da mesma forma que lhe é permitido atuar no enfrentamento à repressão penal “elitizada” e, como diz Luigi Ferrajoli, direcionada aos “crimes de subsistência” – ao invés de voltada aos “crimes de poder”, com maior impacto social -, também lhe é autorizado atuar de forma preventiva nas causas que conformam tal realidade criminológica, ou seja, assegurando aos indivíduos e aos grupos sociais vulneráveis os bens sociais indispensáveis ao desfrute de uma vida digna e à conformação do sentimento de respeito e pertencimento a determinada comunidade político-estatal. Em outras palavras, estamos a falar da sua inclusão no pacto social de índole político-jurídica.

232

Para desincumbir-se de tão ingente tarefa, é fundamental a fixação de postulados,

princípios e diretrizes de atuação, a fim de que se confira um norte para a atuação defensória,

evitando condutas sem um foco definido, engolida pela rotina de elaboração mecânica de

peças processuais sem paradigmas de ação, o que resulta em uma atuação que perde em

qualidade. Por essa razão, o CONDEGE, em parceria com o DEPEN e o PNUD,

possibilitaram a publicação Princípios para a atuação da Defensoria Pública nas áreas

criminal e de execução penal, voltada à conformação de um modelo gestor para a atuação de

defensoras e defensores públicos nessa seara (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018), “[...]

considerando-se as visões político-criminais, a situação de encarceramento em massa e a

necessidade de efetivação de uma assistência judiciária integral e gratuita a todas as pessoas”

(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018), além de enfrentar o desafio de “[...] desenhar as

possibilidades institucionais de ampliação da estrutura da Defensoria, de modo a possibilitar

uma articulação mais justa e equilibrada entre os atores do sistema de justiça criminal”

(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018).

Os postulados apontados no estudo foram: I - Enfrentamento ao racismo, às

desigualdades, à seletividade e à violência do sistema de justiça criminal (com os seguintes

princípios: a. enfrentamento ao racismo do Sistema de Justiça Criminal; b. enfrentamento à

criminalização da pobreza e à desigualdade social; c. enfrentamento ao encarceramento em

massa de mulheres e à desigualdade de gênero; d. enfrentamento a todas as formas de

opressão identitárias e respeito à diversidade; e. defesa da liberdade das pessoas com

transtornos mentais e em conflito com a lei; f. prevenção e enfrentamento à tortura e outros

tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes; g. promoção da Liberdade e da

Prevenção; h. afirmação da atuação política da Defensoria Pública); II. Acesso integral e

interdisciplinar à Justiça (com os seguintes princípios: a. centralidade na pessoa e não no

processo; b. escuta qualificada; c. alteridade e sororidade); III. Centralidade, dignidade e

protagonismo das/dos usuárias/os do serviço (com os seguintes princípios: a. Acesso Integral

à Justiça b. Promoção de direitos e acesso a políticas públicas; c. Atuação com enfoque

restaurativo; d. Interdisciplinaridade; e. Promoção e educação em direitos; f. Atuação em

todas as esferas do sistema de Justiça; g. Atuação estratégica; h. Defesa investigativa e

individualizada; i. Efetividade na assistência jurídica); IV. Articulação e integração inter e

intrainstitucional (com os seguintes princípios a. Fortalecimento e profissionalização da

gestão institucional; b. Articulação dos atores internos na gestão e na atuação e com os demais

atores do Sistema de Justiça; c. Atuação em rede); e V. Gestão participativa e transparente

233

(com os seguintes princípios: a. Participação social; b. Transparência institucional)

(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018).

É nessa perspectiva e com esse espírito, portanto, que se defende, neste estudo, o

fortalecimento da atuação defensória em pelo menos cinco eixos, que se comunicam e

complementam, a serem explorados concretamente pela Defensoria Pública no enfrentamento

à criminalização da pobreza e à seletividade penal: 1) a atuação tutelar clássica na defesa

penal; 2) a educação em direitos como instrumento de empoderamento dos vulneráveis; 3) a

atuação transindividual, na proteção de direitos coletivos em sentido amplo; 4) a atuação

extrajudicial; 5) as possibilidades de recurso aos organismos internacionais de proteção dos

direitos humanos.

4.1 A atuação judicial clássica: a Defensoria Pública como instância de

proteção e defesa dos vulneráveis na esfera penal

No primeiro eixo proposto de atuação da Defensoria Pública, deve-se primar

necessariamente por uma atitude de denúncia à atual situação dos cárceres, seguindo-se a

advertência de Zaffaroni (2007, p. 187), para quem “[…] a melhor garantia de eficácia do

direito penal – até onde ela pode ser exigida – é o respeito aos direitos fundamentais”. Dessa

maneira, nos embates diuturnos na esfera penal, deve-se ter em mente essa sólida convicção

de que a prisão existencialmente está em total descompasso relativamente as suas finalidades,

produzindo exatamente o que promete combater e prevenir. Atacar as atuais condições da

prisão significa, então, firmar compromisso com a superação de um modelo que deveria

ensejar vergonha na sociedade, pela quantidade de recursos e esforços que exige (e ainda

assim é inócuo) e pela quantidade de dor desnecessária que produz.

O defensor público, para o integral e comprometido exercício de seu mister no

enfrentamento e contenção do poder punitivo, deve se aproximar do saber criminológico,

principalmente em sua perspectiva crítica, a fim de que assuma, como defendem Shimizu e

Strano (2014, p. 378), “[...] uma visão abrangente sobre o sistema criminal e sobre o contexto

político-econômico dentro do qual se dá a opção política pelo encarceramento em massa da

pobreza”, adquirindo, assim, “[...] um instrumento valioso para que possa entender onde sua

função está inserida, bem como para que se atribua um sentido maior à sua atuação”.

234

Há de se advertir sobre o fato de que a Constituição brasileira oferece opção pela

liberdade, elencando extenso rol de direitos e garantias fundamentais, secundado por uma

legislação das mais modernas na proteção às pessoas acusadas, condenadas e presas. Vive-se

um ambiente satisfatório de previsões normativas. O problema enfrentado é de efetividade, o

que exige uma atuação dos poderes públicos dirigida a uma perspectiva garantista, entendida

como uma técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos e que, por essa razão, é o

traço mais característico, estrutural e substancial da democracia: garantias, tanto liberais como

sociais, expressam direitos fundamentais da pessoa perante os poderes do Estado, os

interesses dos mais débeis em relação aos mais fortes, tutela das minorias marginalizadas

relativamente às maiorias integradas (STRECK; SALDANHA, 2013, p. 411). Em tempos de

reiterado e normalizado descumprimento das disposições constitucionais, potencializados na

seara penal, as tradicionais teorias abolicionistas e inovadoras de proteção transpostas à

legislação restam superadas por súplicas de que, pelo menos, seja-se legalista, garantista.

Ademais, vive-se uma crise do sistema de Justiça, ainda excludente, elitista,

burocratizado e obsoleto, cujos processos, de modo geral, não cumprem seu papel, apenas

servindo de legitimação de um sistema ineficiente, fundado em legalismos e formalismos

arcaicos que sustentam o status quo, marcado pelo “patrimonialismo” nas relações

obrigacionais e pelo “patriarcalismo” nas relações pessoais, tudo dentro de uma lógica rígida

e imóvel de poder (RÉ, 2014, p. 89). O sistema de Justiça, que se desenvolve em prédios

suntuosos, dentro dos quais as pessoas se comunicam em uma linguagem hermética e

ininteligível ao cidadão, impressa em processos, cujas regras de funcionamento não são

menos complexas e inacessíveis, mal conseguem disfarçar que sua existência está vinculada

ao afastamento dos menos favorecidos, aos quais resta a nítida sensação de que não são bem-

vindos. Se na área cível esse sentimento já é recorrente, com muito mais razão ocorre na

senda penal, onde uma pessoa, invariavelmente pobre, comparece (quase sempre,

coativamente) para enfrentar o poder punitivo estatal, muitas vezes parcamente assistido sob o

prisma jurídico, contando com a Providência Divina (para os que crêem) para não serem

injustiçados por um sistema, cuja seletividade é a marca característica. No mesmo sentido

entende Ripoll (2006, p. 56):

La injusticia básica consiste en que los pobres no pueden exigir los derechos que tienen según la ley, primero, porque los procedimientos de la justicia ordinaria no están a su alcance, por ser demasiados caros e dispendiosos; y segundo, porque la pretendida neutralidad del sistema mismo, favorece a los que tienen recursos al no dar un trato preferente a los que no los tienen.

235

A primeira ingente tarefa da Defensoria Pública, pois, passa pela necessidade, em sua

atuação processual diuturna, de cobrar e pugnar por técnicas judiciais adequadas para

assegurar efetividade aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais consagrados

por eles. Essa instituição, assim, não deve se render ao sistema posto/imposto, promovendo a

inclusão jurídica dos marginalizados pelo (e no) sistema, no sentido de concretizar os direitos

fundamentais e fazer da CF e dos tratados internacionais de direitos humanos um modelo não

tão utópico como a realidade tem indicado (RÉ, 2014, p. 91).

Em outros termos, como ensinam Lênio Streck e Jânia Saldanha, o sistema jurídico por

si não pode garantir absolutamente nada; as garantias não podem estar sustentadas apenas em

normas; nenhum direito fundamental pode sobreviver concretamente sem o apoio da luta pela

realização por parte de quem é seu titular e da solidariedade da força política e social

(STRECK; SALDANHA, 2013 p. 412). Na mesma esteira, Carvalho (2008, p. 102), muito

embora reconheça que o modelo garantista assume seu caráter ideal típico, afirma que este

“[...] não se contenta com a mera proposição descritiva isenta de respaldo no plano da

eficácia”. Por essa razão, continua o autor, “[...] a proposta garantista nega os mitos do

positivismo dogmático dedicados a uma visão meramente contemplativa de ordenamentos

jurídicos absolutamente incapazes de responder às demandas das sociedades contemporâneas

(complexas)” (CARVALHO, 2008, p.103).

A atuação tutelar do Estado a ser provocada pela Defensoria Pública afigura-se, então,

importante, principalmente, como leciona Julieta Ripoll, ante a exclusão fática de

determinados grupos populacionais dos serviços do Estado, particularmente de acesso à

justiça, já que a tutela requer um mínimo de recursos materiais e culturais, o que explica sua

baixa utilização pelos grupos mais vulneráveis (RIPOLL, 2006, p. 67). Mais necessária ainda

é essa atuação no processo penal e no de execução penal, nos quais a prisão representa fator

de incremento da vulnerabilidade e do abandono. Como percebeu Godoi (2017, p. 117), em

sua minuciosa pesquisa do sistema penitenciário paulista, “[...] o regime institucional de

processamento de pessoas no sistema penitenciário de São Paulo depende, em grande medida,

da agência dos presos, de seus familiares e/ou defensores, de modo que possa se desenrolar”.

A Defensoria Pública paulista, por sua vez, “[...] para contornar a desorganização e a

irracionalidade das varas e poder interferir em determinados processos de execução no

momento preciso, também dependem da provocação de familiares, agentes pastorais e presos”

(GODOI, 2017, p. 117).

236

Outrossim, como não se pode simplesmente adotar uma atitude abolicionista, pela

ausência de um sistema adequado de total substituição da prisão, que deve continuar existindo

como ultima ratio, além de serem necessárias soluções atuais para o fato concreto de que as

prisões existem (e não há nenhum sinal de que deixarão tão cedo de existir) e o flagrante

desrespeito de direitos que têm produzido, importante destacar a atuação defensória no

enfrentamento às situações de aprisionamento e, no limite, na promoção do respeito aos

direitos dos enredados nessas condições. Como demonstra a história da pena de prisão, sua

função sempre foi isolar, preferencialmente, pessoas que já se encontravam à margem da

sociedade71. Ademais, na prisão contemporânea, que, via de regra, abdicou de seus ideais

ressocializadores e incapacita um número cada vez maior de pessoas, o gerenciamento

meramente burocrático da população prisional assume renovada importância estratégica

(GODOI, 2017, p. 100). Esse regime de processamento pode ser pensado como uma

modalidade particular de governo a distância, que opera por meio de tecnologias de escrita,

em que a internação direta entre presos e agentes estatais é reduzida ao mínimo possível

(GODOI, 2017, p. 101). O defensor público, destarte, tem o dever de funcionar como esse

agente de aproximação e desburocratização, minimizando os efeitos despersonalizantes de

uma atuação que considera apenas o que está no papel (ou nas telas dos computadores),

continente do processo.

Assim, a redução da população prisional deve ser a maior prioridade da instituição. Nesse cenário, a atuação estratégica de consiste em uma intensa e qualificada atuação nas audiências de custódia, “porta de entrada” do sistema de justiça criminal; atuação diligente no processo penal, para a coleta adequada de provas, e em relação aos presos provisórios, por meio da atuação individual e coletiva que sirva de mecanismo para a conquista da liberdade provisória. (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 46).

É inafastável, portanto, a atuação da Defensoria Pública como meio de garantir o acesso

à justiça aos encarcerados. De fato, não há outra maneira de assegurar apoio jurídico a essas

pessoas que não têm condições de suportar os custos elevados da assistência jurídica

particular. Não é à toa que a Defensoria Pública passou a figurar expressamente como órgão

da execução penal, com a inclusão do inciso VIII no art. 60 da LEP pela Lei nº 12.313/2010

(BRASIL, 2010b). Nessa condição, tem-se admitido pela doutrina e jurisprudência pátrias, no

caso de verificação de desídia por parte de advogado particular eventualmente constituído,

inclusive, a atuação da Defensoria Pública no exercício de sua função de velar pela

regularidade da execução penal e na condição de defensora dos direitos humanos, devendo

71 Sobre o assunto, ver subseção 2.3 da tese.

237

tomar medidas para sanear a vulnerabilidade enfrentada pela pessoa (mormente se privada de

liberdade) que esteja sendo prejudicada em seus direitos (ROIG, 2018, p. 313).

Como doutrina Fensterseifer (2017, p. 90), a Defensoria Pública (na medida em que

expressa a ideia de “defesa pública”), nasce da busca de assegurar o exercício do direito de

defesa ante a persecução penal promovida pelo Estado, na busca por um alinhamento de

forças na relação vertical e desproporcional entre Estado e cidadão. Assim, se em regra o

criminoso está em situação de superioridade (de força, astúcia ou poder) sobre a vítima, o que

é mais visível nos casos de utilização da violência, quando se encontra diante do Estado para a

apuração de sua responsabilidade, apresenta-se em situação de vulnerabilidade, necessitando,

assim, de uma equalização de forças que confira ao sistema de justiça a legitimidade e a

racionalidade necessárias para a imposição das consequências proporcionais e suficientes pelo

ato criminoso. Advirta-se para a noção de que essa situação, quando titularizada por pessoas

com as condições financeiras satisfatórias, o que é bastante excepcional, como demonstrado,

pode ser amenizada pela atuação de um advogado contratado com essa finalidade.

A atuação desta importante instituição não poderá, portanto, ser apenas “cosmética”,

gerando mera aparência de prestação do serviço, sem, no entanto, efetivar as disposições

constitucionais e também legais impositivas do real acesso à justiça. Atento a essa

constatação, o legislador alterou a redação do art. 16 da LEP, fazendo inserir a imposição de

que as unidades da Federação tenham serviços de assistência jurídica integral e gratuita, pela

Defensoria Pública, dentro e fora dos estabelecimentos penais (art. 16, LEP), reforçando a

exigência no §5º do art. 83 da LEP, que trata especificamente das áreas e serviços

indispensáveis ao estabelecimento penal (BRASIL, 1984). Ademais, a Lei de Execução, com

as alterações produzidas pela Lei nº 12.313/2010, reza que as unidades da Federação deverão

prestar auxílio estrutural, pessoal e material à Defensoria Pública, com local apropriado nos

estabelecimentos penais destinado ao atendimento pelo defensor público (art. 16, §§1º e 2º,

LEP) (BRASIL, 2010 b).

A legislação brasileira, nesse particular, caminha paralelamente às recomendações da

CIDH, que, ao se referir às pessoas privadas de liberdade, estabeleceu em seu informe

preliminar sobre pobreza, pobreza extrema e direitos humanos na América Latina,

La CIDH recomienda a los Estados a adoptar las medidas necesarias para brindar asistencia legal pública a aquellas personas en privación de libertad preventiva o que cumplen condena y que están en situación de poder solicitar revisión de la privación de libertad o beneficios penitenciarios, a fin de evitar que por falta de

238

recursos económicos no accedan a los mecanismos de revisión o beneficios que la legislación aplicable establezca. (CIDH, 2016a).

Observa-se é que há um sério défice de efetividade, mercê do reduzido número de

defensores públicos no Brasil, o que torna descumprida a citada recomendação da CIDH. Para

tentar, emergencialmente, fazer face ao grave problema, o CONDEGE criou o Programa

Defensoria sem Fronteiras, um acordo de cooperação técnica entre o Departamento Penitenciário

Nacional (DEPEN/MJ), a DPU, o CONDEGE, a Associação Nacional dos Defensores Públicos

(ANADEP) e a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), a fim de

promover melhorias no sistema prisional e garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade

(ANADEP, 2019). O acordo baseia-se em quatro pilares: mobilização de defensores públicos

estaduais e federais para atuação em ações concentradas em unidades da Federação definidas em

planos de trabalho específicos; análise processual e adoção de medidas judiciais ou administrativas,

quando cabíveis, para tutela de direitos de pessoas presas em caráter definitivo ou provisório;

atendimento presencial de pessoas presas, colhendo demandas e prestando informações sobre a

situação processual e acerca de medidas adotadas para a tutela de seus direitos; e, por fim, a produção

de diagnóstico sobre o sistema de Justiça criminal e sistema prisional das unidades da Federação

atendidas pelo Projeto, com elaboração de recomendações voltadas à melhoria das práticas do Poder

Executivo, Defensoria Pública local e demais órgãos do sistema de Justiça (ANADEP, 2019).

O Projeto Defensoria sem Fronteiras é fundamental para atuações emergenciais em unidades da

federação onde a permanente crise do sistema penitenciário eclode em morticínio, fugas e rebeliões,

que é quando finalmente algumas atitudes são tomadas pelo Poder Público. São os momentos, por

exemplo, nos quais se percebe como é insuficiente o número de defensores públicos para dar vazão a

toda a demanda proporcionada pelo sistema penitenciário que, como visto, não se restringe à

protocolização de pedidos perante o Judiciário. Por agregar defensores de todo o Brasil, estaduais e

federais, o Defensoria sem Fronteiras é importante para o intercâmbio de ideias e boas práticas para

sua posterior réplica nas unidades federadas, além de funcionar como relevante instrumento para a

configuração de redes de defensores públicos, para permanente contato, o que amplia as possibilidades

de ação.

A assistência jurídica integral e gratuita, com toda a amplitude que lhe é peculiar,

conforme já explicitado, deverá estender-se, inclusive, aos sentenciados em liberdade,

egressos e seus familiares, sem recursos financeiros para constituir advogados, por meio de

Núcleos Especializados da Defensoria Pública, fora dos estabelecimentos penais, conforme a

letra do art. 16, §3º da LEP, alterado pela Lei nº 12.313/2010 (BRASIL, 2010 b). Esta,

239

inclusive, também é recomendação da CIDH (2016b), no já citado Informe: “Disponer de

servicios públicos o privadas a fin de proporcionar a las personas que estuvieron privadas de

la libertad, ayuda pospenitenciaria eficaz que permita contribuir en su reinserción social”.

Com a efetivação desses novos dispositivos legais, apenas positivou-se o que já era uma

realidade na execução penal: a entronização da Defensoria Pública no papel de protagonismo.

O defensor público poderá, no ambiente prisional, desempenhar suas funções tutelares

clássicas, ao requerer os direitos previstos: livramento condicional, progressão de regime,

indulto, comutação de pena, detração, remição e extinção de pena, trabalho externo, saídas

temporárias e todos os demais relacionados com o sistema progressivo da execução da pena.

Por outro lado, para aqueles que aguardam o julgamento presos, por força de alguma decisão

judicial cautelar, importante é o manejo de pedidos relacionados ao controle da legalidade e

necessidade do encarceramento provisório, que hoje é responsável por quase metade das

prisões no Brasil. É o defensor público, pois, que providenciará o acesso dos encarcerados ao

Judiciário para que usufruam de uma série de direitos subjetivos (impropriamente chamados

de benefícios), relacionados com o retorno à liberdade e à regular execução penal. Sua

atuação plena e independente é vital para a execução penal, mostrando-se inegavelmente

eficaz para a minimização dos riscos de rebeliões e motins, dos índices de superlotação

carcerária, corrupção e tortura, assim como para a maior celeridade e efetividade dos

processos judiciais de execução (ROIG, 2018, p. 314).

Como um meio de expressar as atribuições defensórias nesta seara, a Lei nº

12.313/2010 inseriu na LEP um capítulo específico intitulado “Da Defensoria Pública”,

inventariando um rol exemplificativo de incumbências, por meio das quais esta instituição

velará pela regular execução das sanções penais (art. 81-A e 81-B na LEP)72.

72 Art. 81-A. A Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no

processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva.

Art. 81-B. Incumbe, ainda, à Defensoria Pública: I - requerer: a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo; b) a aplicação aos casos julgados de lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado; c) a declaração de extinção da punibilidade; d) a unificação de penas; e) a detração e remição da pena; f) a instauração dos incidentes de excesso ou desvio de execução; g) a aplicação de medida de segurança e sua revogação, bem como a substituição da pena por medida de

segurança; h) a conversão de penas, a progressão nos regimes, a suspensão condicional da pena, o livramento condicional, a

comutação de pena e o indulto;

240

De fato, o grande objetivo é afastar a realidade atual daquela já denunciada por Fragoso,

Catão e Sussekind (1980, p. 98), que, nos anos de 1980, relataram:

A grande maioria da população carcerária não possui advogado particular e fica esquecida nos estabelecimentos penitenciários. Muitos poderiam obter livramento condicional, já que cumpriam os requisitos legais; outros poderiam ter o caso reexaminado através de revisão criminal, com grandes possibilidades de êxito; outros, ainda, foram condenados com base em processos que apresentavam vícios de diversas origens que poderiam ser nulificados por meio de habeas corpus. Em suma, se atendida de maneira conveniente, boa parte da população carcerária poderia estar em liberdade.

A observação de situações atentatórias ao princípio do devido processo legal deve ser

acompanhada da atuação eficiente e em tempo hábil, a fim de que não haja vilipêndio

indevido do direito à liberdade. Assim, a Defensoria Pública deve atuar para evitar que

situações de ilícito aprisionamento perdurem no tempo, causando lesões seriíssimas e

irreparáveis, tanto nas pessoas privadas de liberdade como nos componentes familiares destas

que, inevitavelmente, sofrem com a ausência de um de seus entes queridos. Como, com

acuidade, nota Puleio (2006, p. 184), a Defensoria Pública possui uma posição privilegiada

proporcionada pelo conhecimento exaustivo do funcionamento do sistema penal, o que

possibilita a percepção antecipada dos comportamentos limitativos de direitos que ele produz,

permitindo e incitando a tomada de decisões efetivas em função da proteção dos direitos em

jogo.

Assim, da labuta cotidiana nas varas judiciais de execução penal, é possível antever o

formato que assumem ordinariamente os posicionamentos de membros do Ministério Público

e do Judiciário, atuando-se, assim, estrategicamente, com o conhecimento antecipado e

preventivo, de modo a proteger e promover direitos. Por outro lado, a repetição diuturna de

procedimentos, fluxos e atendimentos habilita o defensor público a conhecer detalhadamente

os problemas que rotineiramente ocorrem na execução penal, que, por serem muitas vezes

inusitados e até inimagináveis em outros ramos do Direito, tornam a atuação peculiarmente i) a autorização de saídas temporárias; j) a internação, a desinternação e o restabelecimento da situação anterior; k) o cumprimento de pena ou medida de segurança em outra comarca; l) a remoção do condenado na hipótese prevista no § 1o do art. 86 desta Lei; II - requerer a emissão anual do atestado de pena a cumprir; III - interpor recursos de decisões proferidas pela autoridade judiciária ou administrativa durante a execução; IV - representar ao Juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de sindicância ou

procedimento administrativo em caso de violação das normas referentes à execução penal; V - visitar os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento, e requerer,

quando for o caso, a apuração de responsabilidade; VI - requerer à autoridade competente a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal. Parágrafo único. O órgão da Defensoria Pública visitará periodicamente os estabelecimentos penais, registrando

a sua presença em livro próprio.

241

difícil. Podem ser listadas, exemplificativamente: sentenças condenatórias que demoram anos

para serem executadas pela simples falta de encaminhamento da guia de recolhimento à vara

de execução; transferências de presos entre unidades prisionais de outras cidades (ou mesmo

para outros estados) sem o encaminhamento do processo de execução; falta de indicação nos

processos da existência de outros processos em andamento; manutenção indevida de

mandados de prisão em aberto, mesmo após decisões concessivas da liberdade; e execuções

de penas em total descompasso em relação ao estabelecido nas sentenças condenatórias.

Todas essas intercorrências, bastante rotineiras, dificultam sobremaneira algo que deveria ser

muito simples e claro, mas que se converte em um grande desafio: identificar a razão do

encarceramento no caso concreto. Somente a prática reiterada e avolumada possibilita a

rápida identificação do problema, bem como a adoção das medidas necessárias para a sua

correção.

A labuta defensória na execução penal é, no rescaldo, uma luta contra o tempo, sua

inexorabilidade e seus efeitos deletérios, principalmente quando vivido em um ambiente de

degradação e desesperança. Não ter como saber o que esperar nem quanto há de durar a

espera são fatores que intensificam bastante o sofrimento vivido no decorrer desse tempo

(GODOI, 2017, p. 99). Como explica Arantes (2012, p. 233), o cárcere vale-se do “esperar”

como uma modalidade de punir “[...] na exata medida que não se pune mais para corrigir um

desvio mas para agravar um estado indefinido de expiação e contenção”, em um sistema no

qual “[...] no limite se encarcera ‘para fazer mal’, ‘pune-se para punir’, numa indistinção

deliberada de meios e fins. Há que se destacar, ainda, na esteira da doutrina de Messuti

(2003), que o tempo no interior da prisão difere absurdamente daquele que se vive fora, de

modo que anos, meses e dias adquirem sentidos diversos quando suportados pela pessoa em

situação de aprisionamento, mormente em circunstância da generalizada ausência de

atividades laborativas e lúdicas, aliadas ao sofrimento natural da privação da liberdade. Os

influxos dessa diversidade de sentimentos quanto ao passar do tempo, ademais, não se

limitam ao interior das muralhas, mormente quando as ações policiais são concentradas em

áreas determinadas da cidade, provocando um contexto no qual “[...] a temporalidade interna

à prisão entra em continuidade com a externa” (GODOI, 2017, p. 127). Desse modo, conclui

o Sociólogo paulista:

O tempo não para de passar, tanto dentro quanto fora da muralhas. Não existe ruptura absoluta de vínculos: dentro se atualizam relações urdidas fora, enquanto fora se desdobram reações de dentro. Uma ampla circulação se estabelece entre determinados bairros e a prisão, tendo com um de seus efeitos a sincronização de

242

temporalidades – o compartilhamento de ritmos, parâmetros e marcos temporais. (GODOI, 2017, p. 127-128).

Imprescindível, portanto, a atuação do defensor público na verificação da legalidade e

da regularidade da execução da pena73. É este profissional que observará se a privação da

liberdade está ocorrendo de modo consentâneo aos ditames constitucionais e também legais,

denunciando situações abusivas e desviantes, assim como promovendo as ações judiciais de

responsabilização do Estado ou de seus agentes, como um meio de inibir os episódios de

desrespeito aos direitos fundamentais e, a um só tempo, promover a indenização por eventuais

danos morais e patrimoniais. Conforme Puleio (2006, p. 187), “[...] el defensor representa,

además, un controlador principal de las condiciones en que se ejecuta la detención – sea

cautelar o no – a partir de la relación fluida y de confianza con su asistido y su incidencia

funcional en las distintas etapas del proceso”. A Defensoria Pública há que velar pela

regularidade jurídica da execução penal (respeito às leis, à Constituição e aos tratados

internacionais), assim como pela regularidade ética, consistente na proteção dos apenados

contra a supressão de seu estado de sujeitos de direitos, ou que deles se utilizem como

instrumentos para alcançar objetivos políticos-criminais utilitaristas (ROIG, 2018, p. 310).

Portanto, os estabelecimentos prisionais precisam contar com profissionais

independentes, sem vinculações de qualquer ordem com a direção do estabelecimento

(maiormente empregatícias, como nos casos de terceirização ou privatização de presídios),

nem com os governantes, a fim de que possuam a isenção necessária para efetuar as denúncias

citadas e movimentar a máquina judicial com o fito de albergar os direitos fundamentais dos

encarcerados. Em apoio a essa constatação, Godoi (2017, p. 60), em sua pesquisa oriunda de

intensa observação do funcionamento das prisões paulistas, destaca as deficiências de atuação

de advogados contratados pela Administração Prisional para a prestação de assistência

jurídica aos presos:

Sua rotina de trabalho, no entanto, costuma centrar-se na verificação dos processos, na conferência de lapsos de progressão e no encaminhamento de pedidos de benefícios, num ritual burocrático de processamento de papeis. Não obstante o trabalho no interior da unidade, próximo ao preso e com o auxílio de outros funcionários, os serviços de assistência judiciária em execuções penais prestados por esses advogas estão longe de ser adequados: os processos ficam anos parados, os pedidos de progressão são, de igual modo, em demasia até, protocolares e geralmente tardam mais que os lapsos mínimos previstos em lei.

73 Esse é, inclusive, o comando constante no art. 81-A da LEP, incluído pela Lei 12.313/2010: “Art. 81-A. A

Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva” (BRASIL, 2010).

243

Neste particular, mostra-se inolvidável a necessidade de dotar a própria instituição

Defensoria Pública de um grau de autonomia que a livre de quaisquer empecilhos para o

desenvolvimento de suas atribuições, em especial, afastando-a de pressões indevidas de

setores do Estado contra os quais seja necessário fazer intervir o Poder Judicial para afastar

situações de abuso ou de negação de direitos fundamentais. No Brasil, desde a EC no 45, de

2004, a CF passou a assegurar, em seu art. 134, §2º, que a Defensoria Pública é dotada de

autonomia funcional e administrativa, assim como da iniciativa de sua proposta orçamentária

(BRASIL, 2004), o que reforçou o papel dessa instituição essencial à função jurisdicional do

Estado e aprimorou o acesso à cidadania dos mais carentes de recursos.

A resistência da Defensoria Pública ao encarceramento preferencial dos pobres, embora

seja mais proeminente na fase de execução penal, deve iniciar-se desde o primeiro contato do

indivíduo com o aparato repressivo estatal74. Logo, já no momento da prisão em flagrante,

mostra-se inexorável a intervenção da Defensoria Pública, a fim de denunciar os frequentes

excessos ou desvios do poder punitivo, que muitas vezes carrega ínsitas a seletividade e a

criminalização da pobreza. Configura um momento bastante sensível, pois, na esfera policial,

onde se inicia o processo inquisitorial, não vigem em sua inteireza a ampla defesa e o

contraditório, o que reflete seriamente na definição da responsabilidade quando do desenrolar

do processo judicial, o qual se limita, como já estudado, tão somente, a reproduzir o que já foi

constituído durante o inquérito policial. “La experiencia indica que es, precisamente, en este

momento, cuando por lo común se producen los excesos y apartamentos de lo debido”

(VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 210). Esta é uma fase na qual se percebe, de modo mais claro,

que, na prática, o indiciado é um mero objeto de investigação e não sujeito de direitos,

posicionando-se em total sujeição ao poder estatal.

Os manejos de pedidos de liberdade provisória (quando ausentes os requisitos da prisão

preventiva), relaxamento de prisão em flagrante e habeas corpus devem caminhar

paralelamente com apresentação de denúncias da realização de eventuais atos de tortura ou de

negação de direitos como de não autoincriminação (direito ao silêncio), contato com membros

familiares em virtude da prisão e identificação dos responsáveis por esta e interrogatório. Para

isso, o defensor público deve atuar desde o momento da lavratura da prisão em flagrante, mas

não simplesmente em função protocolar e passiva, mas funcionando como fiscal da 74 Não é sem razão, portanto, que o CPP estabelece em seu art. 306, § 1º, com a redação dada pela Lei

12.403/2011 que: “Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública” (BRASIL 2011 a).

244

regularidade da fase inquisitorial, evitando-se o seu desvirtuamento. Por essa razão, a LC no

80/94, com redação dada pela Lei no 132/2009, estatui como função institucional da

Defensoria Pública, em seu art. 4º, XIV – “[...] acompanhar inquérito policial, inclusive com a

comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não

constituir advogado” (BRASIL, 2009), bem como concede aos defensores públicos a

prerrogativa de “[...] examinar, em qualquer repartição pública, autos de flagrantes, inquéritos

e processos, assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar apontamentos”, nos art. 44,

VIII, 89, VIII e 128, VIII da mesma lei (BRASIL, 2009).

Ademais, o defensor público deve comparecer às audiências de custódia, primando para

que não se convertam em meros instrumentos de convolação da prisão em flagrante em

preventiva, sem a existência dos elementos legais necessários para tanto, ao mesmo tempo em

que devem constranger os demais órgãos do sistema de justiça a levarem a sério as frequentes

denúncias de tortura que nessa oportunidade são formuladas, muitas vezes com sinais visíveis,

evitando a perpetuação da invisibilidade dessa prática, que historicamente conta com a inércia

estatal em sua prevenção e combate, como demonstrado na subseção 2.5 desta tese75. Esta

conforma fase muito importante, na qual será possível: 1) a primeira conversa com o assistido

(muitas vezes inviabilizada quando de seu aprisionamento) para serem colhidos os primeiros

elementos necessários para a realização de uma defesa mais completa possível; 2) a

identificação e catalogação de eventual prática de tortura, para posterior monitoramento da

situação do preso em situação de permanência no cárcere, para evitar a ocorrência de

represálias em razão das denúncias formuladas.

Após recebida a denúncia pelo Ministério Público, iniciado o processo judicial, é, ainda,

importante a atuação do defensor público, velando pela observância do devido processo legal,

confrontando a acusação para que esta, caso se imponha, seja pela força da prova e pela

necessidade da pena e não de maneira automática e antecipadamente desejada, como acrítica

resposta aos temores sociais, reais ou fabricados, o que produz sentenças completamente

75 Como percebe Jesus (2010, 171-2) em sua pesquisa sobre a tortura, já citada nesta tese, a ampla divulgação

desses crimes nos meios de comunicação e o seu acompanhamento por entidades de direitos humanos, nacionais e internacionais, contribuem para que os processos sejam alvos de debate público, o que propicia o aumento da pressão relativamente ao julgamento, além de aumentar a proteção da vítima durante a tramitação do processo, pois, desse modo, ela pode estar mais prevenida quanto aos estigmas e preconceitos que poderia sofrer durante apuração e julgamento do crime. “A presença das entidades nas oitivas e nas audiências pode garantir que as vítimas não enfrentem sozinhas o processo, fato que contribui para que elas sustentem a denúncia sem medo de represálias” (JESUS, 2010, p. 172).

245

desconectadas da situação concreta, verdadeiros libelos contra perigos difusos e abstratos,

todos eles encarnados na figura do acusado. Como percebe Godoi (2017, p. 102),

É pela materialidade e pelo fluxo dos papéis que se condiciona o fluxo dos corpos e se assinala o destino de todos e de cada um. Nos gabinetes do sistema de justiça, os processos – não diretamente os presos – são avaliados, encaminhados e chancelados, e esse fluir impacta, conforma e individualiza a experiência que cada qual terá na prisão. O gabinete do juiz é como um “centro de comando” – de avaliação, cálculo e intervenção – a partir do qual é possível que um único agente, baseado num conjunto de documentos, decida sobre a vida e o destino de milhares de pessoas.

O defensor público, então, deve direcionar todos os seus esforços para impedir que a

concentração sobre as frias informações processuais, constantes nas telas dos computadores,

impeça que se enxerguem as pessoas envolvidas, a humanidade que as caracteriza e as

consequências que as decisões tomadas pelos agentes do sistema de justiça podem acarretar

nas vidas dos envolvidos no conflito penal. Estudar o processo para conhecer suas nuanças,

produzir provas, orientar o acusado para seu interrogatório, reforçar a luta pela liberdade,

questionar os excessos estatais, orientar acusados e componentes familiares destes são

algumas das principais atribuições do defensor público, na defesa criminal, que o tornam

igualmente um agente no enfrentamento à criminalização da pobreza, fugindo sempre de uma

atuação burocrática, de conformismo, na defesa dos interesses do assistido.

O defensor público não pode tergiversar na sua defesa ou renunciar às modalidades

processuais, porquanto existem para garantia do acusado, razão pela qual não é possível se

negociar sobre algo que não se titulariza. Por fim, não deve a sentença significar

necessariamente o termo final da atuação do defensor público, que deve externar a sua

irresignação por meio dos recursos cabíveis, a fim de que os tribunais superiores reexaminem

a matéria, na busca de uma aplicação adequada das normas, principalmente quando

veiculadoras de direitos fundamentais. É de se lembrar que, do mesmo modo que a acusação,

a defesa é uma proposta de decisão e, como esta, é uma investigação das circunstâncias de

fato e valoração de provas, além de ser igualmente uma exposição arrazoada e fundamentada

do direito aplicável às circunstâncias fáticas de cada caso (VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 145).

Como facilmente perceptível, a atuação na senda penal jamais será confortável,

tranquila ou capaz de gerar prestígio social ou aplausos públicos, mas será sempre alvo de

profundos preconceitos e submetida a severas críticas pela communis opinio, muitas vezes

inflada pela posição dos meios de propagação coletiva. O defensor público, como qualquer

defensor de direitos humanos nessa área, é estigmatizado de igual maneira como as pessoas

246

cujos direitos postula, muitas vezes sendo tratado como se criminoso fosse76. Por essa razão,

um grande desafio do defensor público, nesse particular, é manter incólumes sua

independência e a intransigência na defesa dos direitos fundamentais, alimentando

cotidianamente sua convicção do acerto dessa opção, para que não sucumba às pressões

cotidianas, muitas delas vindas de pessoas e familiares próximos, que não compreendem o

relevante serviço prestado em benefício do devido processo legal e da defesa da dignidade

humana77.

Ainda no tocante ao exercício das funções tutelares clássicas, destaque-se, ademais, que

a necessidade de assistência jurídica não se restringe ao viés do Direito Penal, pois a

população carcerária denota necessidades reprimidas de acesso à justiça, principalmente, nas

áreas do Direito de Família, do Consumidor, Sucessório, de Propriedade e Previdenciário.

Assim, a criminalização da pobreza produz outros efeitos deletérios, que permanecem

invisíveis porque o bem imediato que os encarcerados almejam é a liberdade, fato impediente

de que verbalizem (até por desconhecimento) outras necessidades também prementes, suas e

de seus partícipes familiares, muitas vezes situados em maior desamparo pela privação da

liberdade de um de seus membros. Para alcançar o sentido de ampla defesa, a Defensoria

Pública deve se articular melhor internamente, entre suas distintas áreas, de modo a garantir a

defesa integral e com centralidade nas pessoas, e não nos processos, com uma abordagem

interdisciplinar, para a redução da vulnerabilidade social dos usuários, o que influencia,

também, em sua vulnerabilidade penal (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 28). Necessário é

esclarecer que não se exige que o defensor público atue em outras áreas do conhecimento, já

que, quase sempre, não possui qualificação para tanto. A instituição é que deve ser aparelhada

com esses profissionais para possibilitar o atendimento interdisciplinar.

Nos estabelecimentos femininos, há necessidade, ademais, de uma estrutura de apoio

jurídico especializada. Efetivamente, a par do apoio jurídico relacionado à prisão, há uma

carência significativa no concerto do Direito de Família, principalmente concernente à

proteção dos filhos das mulheres encarceradas, em demandas que vão desde a pensão

76 “No cuesta comprender que si se parte, como históricamente ha ocurrido, de una concepción represiva que

privilegia la eficiencia de la averiguación, todo lo que implique trabas a la misma será considerado como un obstáculo molesto del que hay que desembarazarse lo antes posible”. (VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 124).

77 Importante ainda a advertência de Jorge Eduardo Vázquez Rossi (2006, p. 86-87), de que o direito de defesa e as garantias que o rodeiam são condições preestabelecidas pelo ordenamento constitucional para a realização válida do Direito Penal por meio do processo e que os diversos procedimentos que se estabeleçam devem implementar, com a necessária amplitude e operatividade, modos de efetivar a defesa, cuja ausência ou fragilidade desqualifica as decisões.

247

alimentícia, disputas por guarda, até a necessidade de acolhimento institucional. A estrutura

de apoio jurídico nos estabelecimentos prisionais femininos, portanto, não deve se restringir

ao acompanhamento dos processos criminais, sendo essencial que disponha de profissionais

especializados também nas demandas do Direito de Família, com atuação direta nas varas

especializadas nesta matéria.

Para que seja possível cumprir adequadamente todas essas atribuições, é necessário que

haja defensores públicos em número suficiente, principalmente abrangendo as comarcas dos

estados (salvo as das capitais, no Brasil, normalmente, as cidades maiores), o que ainda é uma

realidade bem distante, embora haja determinação constitucional por meio da Emenda no

80/2014 para que tal problema seja sanado no prazo de oito anos (BRASIL, 2014)78.

Ademais, urge que exista efetiva dedicação profissional no sentido de buscar incessantemente

o cumprimento de tantas e tão importantes atribuições, com a devida fiscalização dos órgãos

de controle da atuação funcional, para evitar eventuais atos de desídia, inconcebíveis ante as

ingentes tarefas exigíveis do defensor público nessa área. Por outro lado, é preciso que a

União e os estados-membros confiram condições estruturais, remuneratórias e de trabalho

suficientes a assegurar uma efetiva paridade de armas em relação ao Ministério Público, a fim

de equilibrar acusação e defesa no processo penal e viabilizar a proteção dos direitos

fundamentais assegurados igualmente na execução penal.

4.2 A educação em direitos como instrumento de empoderamento dos

vulneráveis

O segundo eixo proposto refere-se à educação em direitos como instrumento de

empoderamento dos vulneráveis para uma posição de resistência à sua injusta criminalização

e à seletividade penal. Inicialmente, cumpre destacar o papel desempenhado pela educação

para a consolidação da dignidade da pessoa humana e da formação da cidadania.

Reconhecendo a sua importância, a DUDH em seu art. 26 dispõe:

78Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 98: “Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo

serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. § 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos

em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo. § 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá,

prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.” (BRASIL, 2014).

248

I - Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. II – A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais [...]. (ONU, 1948).

Nos mesmos termos configura-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, que determina em seu art. 13, §1º:

Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. (ONU, 1966).

Já a Carta Democrática Interamericana verbera em seu art. 16:

A educação é chave para fortalecer as instituições democráticas, promover o desenvolvimento do potencial humano e o alívio da pobreza, e fomentar um maior entendimento entre os povos. Para alcançar essas metas, é essencial que uma educação de qualidade esteja ao alcance de todos, incluindo as meninas e as mulheres, os habitantes das zonas rurais e as minorias. (OEA, 2001).

Na CF/88, a educação encontra-se listada entre os direitos sociais, no art. 6º

(BRASIL, 1988), bem como mereceu seção à parte no Texto Constitucional, no título

destinado à ordem social (Seção I do Capítulo III do Título VIII), na qual está estatuído o

dever do Estado de garantir sua observância (BRASIL, 1988).

Os dispositivos citados complementam-se para estabelecer a tríplice finalidade da

educação, explícita na CF/88: o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo desta para a

cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Dessa maneira, o âmbito de

proteção desse direito fundamental é bem mais amplo do que a mera instrução. Sobre o

assunto, manifesta-se Piaget (1973, p. 40):

A educação como direito de todos, portanto, não se limita em assegurar a possibilidade da leitura, do escrito e do cálculo. A rigor, deve garantir a todos o pleno desenvolvimento de suas funções mentais e a aquisição dos conhecimentos, bem como dos valores morais que correspondem ao exercício dessas funções, até a adaptação à vida social atual.

O amplo campo de incidência delineado entroniza a educação como um dos pilares

do bom funcionamento do Estado, na medida em que a sua efetivação aproxima-se da

situação ideal da gestão por um povo dotado de conhecimentos de seus direitos e deveres.

249

O acesso à educação representa uma das modalidades de consolidação da democracia. De

fato, a igualdade de acesso ao conhecimento possibilita aos cidadãos participar de modo

mais consciente da formação da vontade estatal. Somente um povo educado para a

cidadania pode se desapegar das influências e artifícios dos detentores do poder. De

semelhante maneira, entende Gomes (2005, p. 93-94, grifo do autor):

A construção e vivência da democracia pressupõe a possibilidade de efetiva participação de todas as pessoas em prol dos valores que compõem o conteúdo do ideário democrático. Isso somente se torna possível se a educação estiver ao alcance de todos. Em tal regime assume-se que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição” (CF/88, art. 1º, parágrafo único). Isso pressupõe que o povo seja suficientemente esclarecido a respeito de seu papel político ativo, de sua capacidade para atuar seja por meio dos representantes que lhe compete eleger, seja diretamente, nos casos previstos no texto constitucional (CF/88, art. 14, I, II e III). Tal esclarecimento é fruto da educação.

Saliente-se, ainda, que o direito à educação, ao abrir espaço para o desenvolvimento

das potencialidades do ser humano, representa importante elemento de respeito ao

princípio fundamental da dignidade humana, encartado no art. 1º da CF/88 como um dos

fundamentos de Estado Democrático de Direito (BRASIL, 1988). A existência deste,

portanto, está condicionada à efetivação do direito fundamental à educação e sua extensão

a todas as pessoas, sem distinções de qualquer natureza.

No que diz respeito especificamente à educação em direitos humanos, lembre-se que

o período 1995-2004 foi proclamada pela ONU como a Década das Nações Unidas para a

Educação em Direitos Humanos. Na oportunidade, definiu-se educação em direitos

humanos como

[...] os esforços de formação, divulgação e informação destinados a construir uma cultura universal de direitos humanos através da difusão de conhecimentos e competências e da definição de atitudes, com vista: (a) ao reforço do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais; (b) ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e da sua inerente dignidade; (c) à promoção da compreensão, tolerância, igualdade de género e amizade entre todas as nações, povos indígenas e grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos; (d) a permitir a participação efectiva de todas as pessoas numa sociedade livre; (e) à promoção das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. (ONU, 1994).

A educação em direitos é fundamental, ainda, porque, como adverte Michel

Foucault, o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque a ele serve ou

aplicando-o porque é útil); poder e saber estão diretamente implicados e não há relação de

poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não

constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 2007, p. 27).

250

O legislador brasileiro não se furtou ao reconhecimento da importância da educação em

direitos humanos como um dos primeiros objetivos da Defensoria Pública, estabelecendo na

LONDP (LC no 80/94, com redação dada pela LC 132/2009) em seu art. 4º, III que compete a

essa instituição “[...] promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da

cidadania e do ordenamento jurídico” (BRASIL, 2009). Tal dimensão supera a simples

orientação jurídica, fundada no esclarecimento técnico de demandas individuais, em regra. A

educação em direitos pressupõe uma atuação voltada à preparação das pessoas para o

exercício de seus direitos, por meio de atitude proativa dos veiculadores do conhecimento

sobre os direitos.

De fato, um fator que dificulta muito a defesa de direitos de vulneráveis é que as

pessoas sem acesso ao conhecimento de seus direitos estão submetidas a um processo que

Paulo Freire chama de autodesvalia (FREIRE, 2014, p. 69), resultante da introjeção que

fazem da visão que os opressores têm deles e que, de tanto ouvirem que são incapazes,

enfermos, indolentes, que não podem saber, terminam por se convencer da própria

“incapacidade”, reconhecendo-se como aqueles que nada sabem, em contraposição ao

“doutor”, que tudo sabe e que por isso devem escutar (FREIRE, 2014, p. 69).

O primeiro passo para o enfrentamento do problema da criminalização da pobreza,

portanto, é a identificação de suas manifestações, mormente por aqueles que são os alvos

dessas práticas, submetidos a tratamento discriminatório em razão de sua vulnerabilidade. Isso

porque a falta de informação da população mais carente e sua relativa inexperiência, diante

das mais complexas relações jurídicas que vêm se desenvolvendo na atualidade, elevam ainda

mais essa vulnerabilidade (RÉ, 2014, p. 96). Como adverte Bauman (2005, p. 67), “[...] a

vulnerabilidade e a incerteza humanas são as principais razões de todo poder político. E todo

poder político deve cuidar da renovação regular de suas credenciais”. No mesmo sentido

entende Cuellar (2012, p. 437), para quem “[...] la educación es la que genera una cultura de

derechos humanos, y la que impulsa a la sociedad a organizarse para ejercer sus derechos,

participar en la elaboración de las políticas públicas, presionar a las instituciones estatales

para que cumplan con sus deberes y rindan cuentas sobre ello, y denunciar las violaciones”.

Há que se destacar, ainda, como o faz Duff (2015, p. 154), que o alheamento à

linguagem do Direito é variável de acordo com a classe social, existindo, assim, uma

comunidade cujos membros efetivamente falam a linguagem do Direito com a própria voz,

porque compartem os valores por ele encarnados, de modo que podem reconhecê-los como

251

seus (sentem-se em casa nas estruturas econômicas e políticas que o Direito protege); já os

não pertencentes a essa comunidade, aqueles em situação de desvantagem ante as estruturas

econômicas e políticas, não reconhecem como próprios os valores que o Direito proclama, e

na voz deste ouvem uma língua estranha. Desvelar essa flagrante injustiça é também papel do

defensor público em sua atuação cotidiana: fazer ver que a própria legitimidade do poder

punitivo do Estado pode estar seriamente comprometida caso este esteja calcado em um

discurso ininteligível para os destinatários preferenciais desse poder, porquanto assoma

evidente a iniquidade caso se abata com a mesma intensidade sobre os que falam a sua voz e

aqueles que sequer a compreendem.

De outra parte, ainda se partindo da premissa da necessidade de comunicação como

fator determinante do equânime funcionamento da Justiça, é importante discutir o abismo

entre as posições sociais ocupadas pelos agentes do sistema de justiça e as pessoas

normalmente enredadas em um processo penal. No Brasil, essa situação mostra-se ainda mais

grave, na medida em que juízes, promotores de justiça e defensores públicos compõem uma

verdadeira casta superior de servidores públicos, em relação aos quais se estendem privilégios

nem sempre republicanos79, que os fazem pertencer às classes sociais mais abastadas e

compartir visões de mundo e jeitos de expressá-las totalmente distintos daqueles vivenciados

pela clientela da justiça penal. Como identifica Baratta (2002, p. 177), referindo-se aos juízes,

mas com ideias que se aplicam a todos os citados agentes públicos, o insuficiente

conhecimento e capacidade de penetração no mundo do acusado é desfavorável aos mais

pobres, tanto pela ação dos estereótipos e preconceitos, como pela influência das chamadas

“teorias de todos os dias”, que tendem a ser aplicadas na reconstrução da verdade judicial.

Forma-se, destarte, verdadeira ideologia da punição do mais pobre, que permeia o sistema

punitivo estatal, desde a repetição de dogmas acadêmicos alienantes e dos preconceitos

decorrentes do abismo da desigualdade social (SHIMIZU; STRANO, 2014, p. 381).

Cabe ao defensor público, portanto, a responsabilidade de não se afastar da sua real

razão de existir: a população pobre cuja voz, por si, ordinariamente, não tem força suficiente

para ser considerada, precisando da renitente atuação defensória, nos foros de justiça, para

que o seu discurso seja levado em consideração, mesmo quando não veiculado com o dialeto

exigido pelo sistema de justiça. Mais do que isso, deve ser lembrança diária do defensor

público quais valores deve verdadeiramente defender, não se rendendo às benesses do poder, 79 Podem ser citados, só para ficar nos exemplos mais sensíveis, os diversos auxílios exclusivos e a quantidade

de férias remuneradas diferenciadas, que não se aplicam a outros servidores públicos.

252

na defesa daqueles cuja vida depende da contenção dos seus excessos, encarnando, assim, seu

inexorável papel de contra- poder. Conquanto seja proveniente dos mesmos estratos sociais,

possua semelhantes vícios acadêmicos e parecida dose de preconceitos, a missão dos

defensores públicos a favor dos vulneráveis deve aproximá-los da realidade, sofrimento e

sentimento de justiça peculiares aos processados criminalmente, assim como sedimentar a

percepção de elementos que denunciam a falsidade do discurso jurídico-penal (SHIMIZU;

STRANO, 2014, p. 381). “A tarefa de enxergar a punição sob o prisma do oprimido está

conectada, assim, com um processo de ‘desalienação’ e questionamento no que diz respeito à

própria existência do sistema punitivo, suas finalidades e seus meios” (SHIMIZU; STRANO,

2014, p. 382).

Como propostas de solução para o distanciamento verificado entre defensor público e as

demandas da população carente, urgem a radical alteração do modo de selecionar

profissionais, assim como o investimento relevante em capacitação continuada. Assim, os

concursos públicos devem buscar fugir do formato tradicional que privilegia a memorização

de respostas prontas para questões objetivas, assim como as disciplinas de intensivo cariz

dogmático, em detrimento da verificação da aptidão do candidato para a solução de questões

cotidianas que necessariamente vai deparar. Ademais, áreas do conhecimento que denotam

sólida formação humanística, como Filosofia, Sociologia, Criminologia, Ciências Sociais e

Direitos Humanos devem auferir maior ênfase no processo seletivo. Por outro lado, é

indispensável uma contínua e efetiva capacitação dos defensores públicos e demais

servidores, direcionada à constante reafirmação do papel constitucional da Defensoria Pública

e da responsabilidade de seus membros perante a sua razão de existir: os carentes de recursos,

o que envolve, inclusive, o necessário conhecimento de sua realidade nos locais onde estão

mais presentes: as comunidades, os cárceres, as escolas e hospitais públicos.

Outro aspecto que não pode fugir à compreensão é que contingentes populacionais

pauperizados, submetidos diuturnamente a ações muitas vezes truculentas de agentes do

Estado, consideram normais aqueles jeitos de atuar, representados por abordagens policiais

fundadas no estereótipo, invasões de domicílio fora das hipóteses constitucionais e tratamento

como suspeitos pelo simples pertencimento a determinada comunidade. Não raro, tais ações

sobejam aplaudidas pelos membros da comunidade, que as compreendem como as

unicamente possíveis para a garantia da segurança pública. Isto conforma o que Bauman

(2013, p. 46) chama de teoria da “falsa consciência”, que ocorre quando “[...] o ambiente

geral de uma sociedade capitalista impede que seus segmentos não privilegiados, carentes e

253

discriminados percebam a verdade sobre a sua própria condição, em particular as causas

dessa condição, e a possibilidade de escapar dessa miséria”; ou, nas palavras de Freire (2014,

p. 44), “[...] o seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra, contudo,

prejudicado pela 'imersão' em que se acham na realidade opressora”, o que representa uma

situação-limite de opressão na qual essas pessoas não têm condições de enxergar (ou apenas

de maneira distorcida) as ofensas aos seus direitos (FREIRE, 2014, p. 132).

Uma das mais flagrantes demonstrações do tratamento desigual normalizado é a

concessão de mandados judiciais de busca e apreensão coletivos, que movimentam centenas

de policiais com autorização para a invasão de todas as residências de uma determinada

comunidade, estabelecendo verdadeira presunção de culpa. Observa-se é que tais ações têm

invariavelmente como alvo residências carentes, estigmatizadas e etiquetadas em razão das

comunidades nas quais essas pessoas residem, jamais alcançando moradias de classe média ou

alta, imunes à suspeita generalizada que acomete somente as mesmas pessoas80.

Cabe ao defensor público, aqui, desvelar a diferença de tratamento levada a efeito pelo

Estado penal de acordo com a classe social que figura como alvo da investigação ou

abordagem. Importante é difundir o conhecimento dos direitos dos pobres, deixando claro que

a maneira de ação historicamente promovida nas comunidades carentes não é a única e muito

menos o melhor modo de levar segurança pública para essas localidades. Expressa uma

modalidade de “[...] educação para a ação, que visa contribuir para que as pessoas se sintam

cidadãs e, com isso, assumam-se como um ser social, responsável pela sociedade” (REIS,

2014, p. 729). Deve-se atuar na perspectiva de Paulo Freire, para constituir uma pedagogia

forjada com o oprimido e não para ele, na luta pela recuperação de sua humanidade, com

suporte na reflexão sobre a opressão e suas causas, de que resultará o engajamento para a luta

por libertação (FREIRE, 2014, p. 43).

Para que serve, pois, a educação em direitos humanos?

Existe um crescente consenso em torno da ideia de que a educação em direitos humanos e para os direitos humanos é essencial e pode contribuir para a redução das violações de direitos humanos, assim como para a construção de sociedades livres, justas e pacíficas. A educação em matéria de direitos humanos é também cada vez mais reconhecida como uma estratégia eficaz para prevenir os abusos de direitos humanos. (ONU, 1994).

80 O tema é objeto de tratamento mais detido no segmento 1.5 da tese.

254

E por que razão educar a população carente para os direitos humanos afigura-se tão

importante? Reis (2014, p. 737) também procura oferecer uma resposta:

Primeiro, porque os direitos e a justiça social surgem de baixo para cima, e não de cima para baixo. Segundo, porque como decorrência do primeiro – e esse é um diferencial da Defensoria, que diariamente convive com a pobreza e, por isso, gradativamente aprende a entender as principais necessidades da população, que é algo relevante para a própria interpretação do direito -, é no espírito de solidariedade e de vontade de mudança vistos na população carente que entendemos a importância de que ela possua o conhecimento mínimo de seus direitos.

Ademais, como percebe Nikken (2012, p. 402-403),

[…] el sistema judicial es culturalmente ajeno a los más pobres. Se trata de un sistema distante, que parece concebido para ser utilizado solamente por quienes disponen de medios de fortuna. Se trata de mecanismos socialmente distantes de los pobres. A esto se une la natural falta de comprensión del funcionamiento del sistema, con todos sus tecnicismos ininteligibles para los niveles culturales más bajos de la població

Assim, propõe-se que a educação em direitos deve ocorrer principalmente quando da

atuação tutelar clássica. Durante o andamento do processo, e não somente nesse momento,

portanto, compete ao defensor público, além de representar a defesa penal perante o poder

punitivo estatal (funcionando como escudo aos seus excessos), permanentemente traduzir ao

assistido, da maneira mais eficiente possível, a situação dos direitos e deveres envolvidos na

demanda. Pode-se, de certo modo, minimizar o sentimento de total alheamento que

normalmente acompanha quem se encontra enredado em um processo de natureza penal,

constituído de maneira hermética, como mais um instrumento de consolidação do poder sobre

a pessoa. Nesse sentido é a doutrina de Santos (2017, p. 46):

É preciso que os cidadãos se capacitem juridicamente, porque o direito, apesar de ser um bem que está na sabedoria do povo, é manejado e apresentado pelas profissões jurídicas através do controle de uma linguagem técnica ininteligível para o cidadão comum. Com a capacitação jurídica, o direito converte-se de um instrumento hegemônico de alienação das partes e despolitização dos conflitos a uma ferramenta contra-hegemônica apropriada de baixo pra cima como estratégia de luta.

Do contrário, se à ignorância do assistido quanto ao formato e à natureza do processo e

das consequências possíveis de seus atos somar-se uma atuação meramente protocolar do

defensor público, estarão postas as condições favoráveis para o exercício da criminalização

secundária da pobreza. Dadas essas circunstâncias, que não raramente se combinam nos

processos reais Brasil afora, consolida-se uma situação de total vulnerabilidade do leigo

quando posto diante do poder punitivo estatal, com suas insígnias e formalidades, criadas

também com a finalidade de facilitar o seu exercício. Antony Duff, seguindo a mesma ideia,

entende que o acusado deve compreender a linguagem do Direito a fim de desempenhar seu

255

papel em juízo, como uma condição de legitimidade do procedimento que o chama a

responder a uma demanda penal e, para isso, deve contar com tradutores dessa linguagem, não

somente do ponto de vista fático, mas também normativo (DUFF, 2015, p. 146).

De fato, sem a atuação de um profissional habilitado a compreender e comunicar a

linguagem ao acusado, o processo converte-se em um instrumento de imposição inexorável de

uma penalidade, sem capacidade de resistência, sobre uma pessoa para quem as normas

possibilitam que contradiga a acusação, mas que simplesmente não o pode fazer por sequer

compreender do que está sendo acusado e quais as consequências de cada uma de suas

atitudes perante o Judiciário. Como conclui Duff (2015, p. 148),

[...] si el acusado no tiene acceso a este tipo de comprensión, faltará una condición esencial de la responsabilidad penal en general, una precondición esencial de la responsabilidad penal como deber de responder: aquel no podrá entonces entender ni responder al cargo por el que se le imputa.

Por outro lado, como doutrina Valle (2006, p. 44), não se pode entender o direito à

igualdade em uma sociedade, se muitos de seus membros desconhecem que determinados

problemas cotidianos podem ser resolvidos com o acesso ao Judiciário, a um procedimento

administrativo ou uma mediação e, por outro lado, se as instituições decidem arbitrariamente

quem deve ou não aceder à Justiça. Nesse sentido, conclui: “[...] cualquier política estatal que

no prevea soluciones a las diferencias de información intersectorial resulta violatoria de ese

compromiso” (VALLE, 2006, p. 44).

Por meio dessa atuação, portanto, a Defensoria Pública está cumprindo seu papel de

assegurar a tais pessoas o exercício de seu status político-jurídico de cidadão, ou seja, de

membro ativo e participativo da comunidade política, de modo, inclusive, a que tais pessoas,

em determinadas circunstâncias, tenham condições de fazer valer e reivindicar os seus direitos

por conta própria (em face de outros particulares ou mesmo dos entes públicos),

independentemente de intervenção da Defensoria Pública ou do Poder Judiciário

(FENSTERSEIFER, 2017, p. 77).

Ademais, como decorrência do comando legal do citado art. 4º, III, da LONDP já

citada, cumpre à Defensoria Pública, por meio do seu quadro de defensores públicos e

servidores, promover palestras, cursos, impressão de cartilhas, elaboração de vídeos

institucionais, entre inúmeras outras medidas possíveis, no sentido de educar e informar a

população, especialmente os indivíduos e grupos sociais necessitados, a respeito dos seus

direitos e de questões envolvendo o exercício da cidadania (FENSTERSEIFER, 2017, p. 71).

256

Tal atuação contribui, em última instância, para a própria inserção político-comunitária das

pessoas e dos grupos sociais necessitados (FENSTERSEIFER, 201781). No concerto penal,

afigura-se ainda mais urgente a necessidade, dado o estado de privação de liberdade

experimentada por boa parte dos titulares dos direitos humanos a serem esclarecidos, para em

seguida serem exigidos e implementados. A normalização da sedimentada situação de

descalabro do sistema prisional precisa ser enfrentada por uma atuação esclarecedora da

existência de extenso rol de direitos diuturnamente vilipendiados, principalmente pelo Estado,

que seria o garante primordial de sua observância, com esteio nas promessas assumidas pelo

poder constituinte originário. A cotidiana reafirmação e difusão da existência do citado rol,

bem como a denúncia do seu reiterado desrespeito, constituem os primeiros passos para o seu

efetivo exercício.

No que diz respeito à criminalização secundária, urge que a Defensoria Pública se

afirme como instituição porta-voz de um discurso de reforma das instituições que promovem

atitudes tendentes a essa consequência deletéria, bem como problematizar os consensos

sociais que se formam nessa temática. É preciso conduzir a Defensoria Pública para uma

atitude de oposição ao debate proposto pelas instâncias de poder que “[...] parecem cada vez

mais deslumbradas com a ‘solução’ punitivista fácil e populista, vendo no encarceramento em

massa da pobreza uma resposta imediata para os conflitos sociais” (SHIMIZU; STRANO,

2014, p. 378).

Interessante, ainda, nessa temática, é a ideia proposta por Fensterseifer (2017, p. 77) de

que a educação em direitos (ou alfabetização jurídica) deve também ser compreendida como a

facilitação na comunicação entre defensores públicos (e demais servidores da instituição) com

os usuários do serviço público de assistência jurídica, com o propósito de romper barreiras de

comunicação que possam obstar a defesa e reivindicação de direitos dos indivíduos e grupos

sociais necessitados. Por ser a instituição que necessita estar em constante proteção e defesa

dos direitos e interesses dos pobres, a Defensoria Pública deve armar-se de todos os meios

possíveis de facilitar a sua acessibilidade, principalmente tendo-se em conta a ideia de que

muitos sequer sabem da sua existência e finalidades. Escapar de uma situação de imobilismo,

físico e comunicacional, chegando efetivamente até os necessitados, representa um grande

81 Não se olvida a noção de que o papel primordial de educação em direitos humanos é das instituições de

educação, principalmente de ensino superior, em relação às quais deve a Defensoria Pública, principalmente pela enorme demanda que já enfrenta, buscar convênios e outras modalidades de cooperação para atingir adequadamente seu público-alvo, evitando-se, assim, que a ocupação integral com a educação em direitos, que exige um envolvimento muito grande, inviabilize o exercício das demais atribuições defensórias.

257

desafio para a instituição, principalmente em decorrência do extenso rol de atribuições a ela

destinados pela CF/88 e pelas leis, pela enorme extensão territorial brasileira e pelo imenso

contingente populacional que figura como potencial usuário de seus serviços.

É superando esses obstáculos que a Defensoria Pública deve atuar, para amenizar o que

Boaventura de Sousa Santos chama de procura suprimida, titularizada por aqueles que têm

consciência de seus direitos, mas que se sentem totalmente impotentes para os reivindicar

quando são violados, pois se acham desalentados sempre que entram no sistema judicial, que

contatam com as autoridades, que os esmagam pela sua linguagem esotérica, pela sua

presença arrogante, pela sua maneira cerimonial de vestir, pelos seus edifícios esmagadores,

pelas suas labirínticas secretarias etc (SANTOS, 2017, p. 24). Assim, deve a Defensoria

Pública atuar para visibilizar essas demandas, inicialmente afastando, da sua estrutura e na sua

atuação diuturna, as barreiras que obstaculizam a ação das pessoas na busca pela efetivação de

seus direitos.

Deve-se ter em mente, contudo, a ideação de que a atuação defensória na educação em

direitos não pode partir de uma atitude paternalista, calcada na ideia de que aos membros da

instituição cabe um papel de introjetar o conhecimento em uma massa de ignorantes que

serviria apenas de receptáculo e reprodução acrítica das ideias postas (e impostas) em uma

relação vertical, de subordinação. Não se há de esperar resultados positivos de uma ação,

desrespeitando a visão particular de mundo que tenha o povo, porque isso, na verdade,

representa uma invasão cultural, ainda que feita com a melhor das intenções (FREIRE, 2014,

p. 119). A ação libertadora, na perspectiva de Paulo Freire, reconhece a dependência dos

oprimidos como ponto vulnerável e, por isso, deve tentar, pela reflexão e ação, transformá-la

em independência, mas não por meio da doação de uma liderança, ou libertação de uns feitas

por outros, pois a libertação dos oprimidos não é uma libertação de “coisas”, mas de pessoas

(FREIRE, 2014, p. 74). A educação em direitos pressupõe, assim, um comportamento de

escuta com a mesma intensidade do repasse de informações, principalmente para que se possa

diagnosticar as demandas reais da população vulnerável, mas também a fim de que o processo

ocorra como uma conversa entre iguais, em uma “relação dialógica permanente” (FREIRE,

2014, p. 77), da qual resultem ambas as partes engrandecidas da troca de experiências e

informações.

258

4.3 A atuação transindividual

A terceira perspectiva de atuação é a transindividual, quando a Defensoria se converte

em instituição de proteção de direitos coletivos em sentido amplo, almejando a concretização

da “segunda onda de acesso à justiça”, na classificação pensada por Cappelletti e Garth (1988,

p. 49), com expressiva vantagem sobre as repetitivas demandas individuais. De fato, a

assistência jurídica individual e orientada para os tribunais, embora capaz de corrigir

injustiças de casos individuais, não é apropriada para estabelecer uma justiça igual para os

pobres (GARRO, 2000, p. 315). Não que se deva substituir a atuação clássica, da qual se

tratou na seção imediatamente passada, mas reforçá-la pela ação de outros instrumentos que a

coadjuvarão na defesa dos direitos. Isto porque muitas das lesões a direitos atingem diversas

pessoas ao mesmo tempo e não são corrigíveis pela mera atuação individualizada; isso sem

que se reporte aos custos bem mais baixos de ações judiciais que englobem várias pessoas de

uma só vez, muitas demandas com praticamente idêntico fundamento. Como entende Ripoll,

mesmo que haja uma estratégia de oferecer serviços legais diretamente aos pobres, o máximo

que se pode conseguir é melhorar um pouco a sua situação, pois não se leva a sério a injustiça

básica, já que não se buscam transformações sistêmicas (RIPOLL, 2006, p. 57). No mesmo

sentido defende Valle (2006, P. 43):

[…] el derecho de acceso a la justicia debe ser capaz de proteger también a grupos históricamente desfavorecidos o ignorados por el sistema y a intereses colectivos o difusos. Es claro que este nivel de protección tiene vital importancia por razones que transcienden la satisfacción individual de quienes posee un conflicto y logra solucionarlo, a saber, porque puede irradiar sus efectos a la sociedad en general, contribuyendo de esta forma a morigerar las enormes desigualdades existentes.

A necessidade de atuação transindividual titularizada pela Defensoria Pública, contudo,

demorou a sedimentar, dependendo de aportes, inicialmente, da doutrina e jurisprudência

constitucionais brasileiras, para somente depois passar a fazer parte da legislação

constitucional. A redação original do art. 134 da CF era bastante singela no que diz respeito às

atribuições constitucionais da Defensoria Pública, como visto no capítulo 3 desta tese,

recebendo importante reforço com a EC n. 80, em 2014, quando foi estabelecido que lhe

incumbem a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os

graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de modo integral e gratuito,

aos necessitados (BRASIL, 2014). Incorporou-se, embora tardiamente, ao texto a necessidade

de superar uma atuação meramente individual.

259

Antes disso, contudo, a legislação infraconstitucional, seguindo orientação

jurisprudencial já consolidada, já alargava as possibilidades da Defensoria Pública sob esse

aspecto, representando um importante marco insertar essa instituição entre as que detêm

legitimidade para a propositura da ação civil pública, com a Lei no 11.448/07, com a redação

que deu à Lei no 7.347/85, em seu art. 5º, II (BRASIL, 2007 a). Como percebia Sousa (2008,

p.240), “[...] o silêncio legislativo quanto à legitimidade da Defensoria Pública reproduzia

sutilmente, no campo específico da legitimação processual, o secular desprezo que devotamos

às classes desfavorecidas”. Além de todo o atraso para o reconhecimento legislativo da citada

legitimidade, ainda houve resistências à sua implementação. Logo após a sua promulgação,

por exemplo, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP)

ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF alegando que, tendo sido criada

para atender, gratuitamente, cidadãos sem condições de se defender judicialmente, seria

impossível para a Defensoria Pública atuar na defesa de interesses coletivos, por meio de ação

civil pública (BRASIL, 2015c). Finalmente, contudo, o STF julgou improcedente a ação (ADI

3943/DF)82. Seguiu o STF a esteira do que entendia a doutrina majoritária, aqui representada

pela lição de Zufelato (2014, p. 312-313, grifo do autor):

Parece-nos que a Defensoria Pública não é somente mais um dos legitimados ativos a que a lei atribui a função de tutelar os interesses coletivos. A combinação da relevância social, política e econômica dos direitos de natureza coletiva, com a função constitucional imposta à Defensoria, e a característica de altos índices de exclusão social do país (alta vulnerabilidade), torna-a uma das mais importantes instituições na defesa desses direitos. Trata-se de verdadeira vocação constitucional para o processo coletivo.

Apesar de a atuação em processos coletivos ser uma atribuição tradicional do Ministério

Público, não há razão alguma para que seja exclusiva. A própria lei da ação civil pública, em

sua redação original, por exemplo, conferia legitimidade para a sua propositura pelo

Ministério Público, pela União, estados e municípios, autarquia, empresa pública, fundação,

sociedade de economia mista ou por associação constituída há pelo menos um ano, nos termos 82 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA

DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA. NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º, INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE (ADI 3943, Rel. Min. Cármem Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015) (BRASIL, 2015 c).

260

da lei civil (BRASIL, 1985). A Defensoria Pública, então, foi acrescentada como ente

legitimado em 2007, reforçando assim a proteção dos interesses coletivos, com foco para

aqueles nos quais se vislumbre a proteção de pessoas economicamente desfavorecidas. Não se

cuida, então, de confusão inadequada de atribuições institucionais, mas um reforço estatal

nesse terreno que, ademais, reconheceu legislativamente algo que já estava consolidado como

possível na doutrina e na jurisprudência.

Posteriormente, a LC no 132/2009 deu outra redação à LC no 80/94, passando o art. 4º,

inciso VII a inserir nas atribuições da Defensoria Pública “[...] promover ação civil pública e

todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos,

coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo

de pessoas hipossuficientes” (BRASIL, 2009), assim como o inciso X reza que cabe a essa

instituição “[...] promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados,

abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais,

sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva

tutela” (BRASIL, 2009). O Novo Código de Processo Civil, por sua vez, trouxe um título

específico para a Defensoria Pública (o que não constava no Código anterior), estabelecendo,

ademais, no art. 185, redação semelhante à da LODP no que diz respeito à possibilidade de

atuação na defesa de direitos coletivos (BRASIL, 2015d).

Atendo-se, portanto, ao contexto brasileiro atual, no qual os processos coletivos são

instrumentos de amplo acesso à justiça e de transformação social, não há como fugir à

conclusão de que a Defensoria Pública deve atuar como protagonista desse processo judicial

democrático (CARVALHO, 2014, p. 285). De fato, esse modelo de processo, de robusta

dimensão axiológica, demanda modalidades ampliadas de participação, com desiderato de

possibilitar que todos os aspectos que compõem a complexidade dos direitos com acentuada

conotação política sejam levados a juízo pelos agentes sociais ou entes públicos incumbidos

da defesa de tais direitos, de modo a caracterizar um contraditório realmente participativo,

apto a legitimar a atuação do poder jurisdicional (ZUFELATO, 2014, p. 306).

Assim, como ensina Carvalho (2014, p. 286), a opção político-legislativa, por meio de

normas processuais regentes da legitimidade nos processos coletivos, é pela entronização de

determinados órgãos e entidades como porta-vozes de um grupo de pessoas, na medida em

que a função do representante coletivo não é defender as próprias opiniões e interesses

individuais, mas efetivamente representar uma coletividade. Nesse particular, portanto,

261

desponta a Defensoria Pública como autêntica representante quando envolvidos interesses de

classes marginalizadas, em razão da proximidade e dos estreitos laços que a instituição

mantém com a parcela populacional mais carente, cujas necessidades e interesses devem

impulsionar os atos praticados pelos defensores públicos (CARVALHO, 2014).

Para isso, é indispensável que se estabeleça genuína vivência compartilhada entre

defensores públicos e populações mais pobres, a fim de que essas demandas sejam não

somente conhecidas, mas, também, efetivamente sentidas, no dia a dia, evitando-se a

elaboração de defesas de interesses coletivos imaginados e não reais, veiculados por ações

artificiais, meramente protocolares, que não representem radical defesa dos direitos violados

ou ameaçados. No que tange ao enfrentamento ao poder punitivo seletivo, portanto, a atuação

transindividual precisa ter em sua tessitura a marca inconfundível da presença constante dos

defensores públicos nas comunidades carentes, nos cárceres masculinos e femininos, nas

delegacias e seus xadrezes, nos estabelecimentos de internação de adolescentes. São esses os

ambientes diuturnos de resistência à criminalização da pobreza e é daí que têm de ser forjadas

as estratégias de contenção transindividual das ofensas. “A ação política junto aos oprimidos

tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles”

(FREIRE, 2014, p. 73).

Conforme sugere a ANADEP (2015), na publicação II Relatório Nacional de Atuações

Coletivas da Defensoria Pública, exige-se do defensor público

Atuação proativa de estar no local do conflito, de estar presente em espaços de articulação de defesa de direitos, interlocução com a sociedade civil, discussão do tema em audiências públicas, atuação multidisciplinar, mobilização com as pessoas envolvidas. Todas essas características estão intimamente relacionadas à atuação coletiva e que merecem atenção de modo a permitir maior êxito – e conferir a legitimidade social acerca da atuação institucional.

Importante é considerar, ademais, a necessidade de pertinência temática para a atuação

coletiva, representada pela proteção de pessoas vulneráveis entre os protegidos, a fim de que a

Defensoria Pública não seja utilizada para a proteção de grupos que, embora sejam titulares de

direitos coletivos, encontram-se em situação privilegiada na sociedade, podendo, por si,

prover as condições para um efetivo acesso à justiça. Isso não significa, entretanto, que a

atuação da Defensoria Pública esteja barrada pela simples existência, entre os titulares de

direitos, de alguns indivíduos que não ostentam o perfil de assistidos dessa instituição. Como

leciona Zufelato (2014, p. 314), “Exigir que a ação coletiva proposta pela Defensoria Pública

tutele exclusivamente hipossuficientes é algo absolutamente impossível, que esvaziaria de

262

sentido e função a atribuição de legitimidade ativa do órgão”. Assim, garantida estará a

pertinência temática autorizativa da legitimidade ativa defensória desde que a ação proteja

pelo menos um beneficiado vulnerável.

Na seara da execução penal, o legislador igualmente se preocupou em atribuir funções

metaindividuais aos defensores públicos. A Lei no 12.313/10 fez inserir, na LEP, dispositivos

reconhecedores destas atribuições. Primeiramente, o art. 81-A estatui que “A Defensoria

Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no

processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os

graus e instâncias, de forma individual e coletiva” (BRASIL, 2010b).

Já no rol do art. 81-B, os incisos II, IV, V e VI determinam ser incumbência da

Defensoria Pública, respectivamente: requerimento da emissão anual do atestado de pena a

cumprir; representar ao juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de

sindicância ou procedimento administrativo em caso de violação das normas referentes à

execução penal; visitar os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado

funcionamento, e requerer, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; requerer à

autoridade competente a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal (BRASIL,

2010 b). Como visto, em todas essas maneiras de atuar, o defensor público não estará

patrocinando direitos de um indivíduo determinado, mas de grupos de pessoas. Como aduz

Rodrigo Roig, a nova dimensão protetiva da vulnerabilidade do coletivo carcerário pela

Defensoria Pública decorre tanto de um novo paradigma ético da instituição, como também

do imperativo constitucional da humanidade penal, decorrente lógico da pessoa humana, o

que confere a essa proteção o caráter de humano, muito mais do que puramente normativo

(ROIG, 2018, p. 312).

Já é possível detectar, em vários estados brasileiros, por exemplo, a tramitação de ações

civis públicas promovidas pela Defensoria Pública para a interdição, desativação ou

demolição de estabelecimentos prisionais em razão das péssimas condições de salubridade e

segurança apresentadas, em prejuízo flagrante dos direitos fundamentais dos presos. Da

mesma maneira, outras ações de idêntica natureza podem ser propostas para obrigar o Estado,

por exemplo, a dotar o sistema prisional de estabelecimentos aptos para a recepção de

mulheres que se encontrem em regime semiaberto ou estejam sujeitas a medidas de

segurança; ou mesmo para impedir a aplicação de sanções coletivas, sem individualização de

condutas e culpas.

263

A missão constitucional da Defensoria Pública na proteção de direitos dos

hipossuficientes confere grande importância a essa instituição para atuação em demandas de

proteção de direitos coletivos normalmente olvidados. É o que ocorre indiscutivelmente em

relação aos direitos dos presos e seus familiares, cujos interesses, apesar de relevantes para a

ordem jurídica, mostram-se costumeiramente “invisíveis” ou mesmo incompreendidos aos

olhos da sociedade em geral e aos demais legitimados (SOUSA, 2014, p. 246). Ademais, a

priorização de um modelo individualista está superada, seja pela necessidade premente de

institucionalização de um modelo de assistência judiciária de índole coletiva, para

acompanhar, paralelamente, as demandas dos novos conflitos sociais, seja porque a conotação

de poder estatal desempenhado pelo processo traz novos desafios à ideia de vulnerabilidade

ou hipossuficiência daqueles que necessitam de tutela jurisdicional (ZUFELATO, 2014, p.

307).

Importante é destacar que a atuação individual na labuta diuturna de defesa dos

interesses das pessoas submetidas ao Estado Penal estimula a ação coletiva fundada na

observação de ofensas reiteradas a determinados direitos, evitando-se “ações civis públicas de

gabinete”, nas quais se busca adivinhar os anseios dos destinatários (SOUSA, 2014, p. 247).

Alguns exemplos de atuação da Defensoria Pública, citados por José Augusto Garcia de

Sousa, ilustram a importância de superar a atuação meramente individual e estabelecer

verdadeiros parâmetros de respeito a direitos: habeas corpus coletivo dirigido contra portaria

do Juízo da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru-SP, que criou “toque de recolher”

dirigido a crianças e adolescentes; habeas corpus coletivo contra detenção de moradores de

rua por vadiagem, em Franca-SP; habeas corpus coletivo contra revista invasiva em membros

familiares de detentos em Taubaté-SP; ação civil pública para fornecimento de alimentação

aos presos custodiados na delegacia de Pirambu-SE (SOUSA, 2014).

Necessário é oferecer, por oportuno, outros exemplos emblemáticos da atuação da

Defensoria Pública na imposição de limites ao poder punitivo estatal e que, no rescaldo,

representam marcos importantes no enfrentamento à criminalização da pobreza. O II

Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública, de 2015, contém nove das

muitas ações propostas, que serão analisadas a título ilustrativo (ANADEP, 2015):

1 - Ação civil pública para interdição do Centro de Triagem de Viana (CTV) (ES): a

Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo realizou inspeções no CTV (local destinado à

triagem dos presos ingressos no sistema prisional), onde se verificaram inúmeras

264

irregularidades e violações de direitos dos presos, principalmente a permanência por muito

mais tempo do que o previsto, com superlotação de 425%. A Secretaria de Justiça do Estado

do Espírito Santo foi procurada para que fosse firmado um termo de Ajustamento de Conduta.

Como não foi obtida uma composição extrajudicial, ajuizou-se a ação civil pública junto à

Vara de Fazenda Estadual e Municipal de Registros Públicos e Meio Ambiente (Processo nº

0005090-83.2013.8.08.0050), visando à interdição parcial do CTV, bem como várias medidas

para acabar com a superlotação e para garantir condições de estrutura e dignidade aos presos,

com decisão liminar procedente (ANADEP, 2015).

2 - Ação civil pública para garantir aos presos condições adequadas de higiene, limpeza,

alimentação (PA): Em visita de rotina ao Centro de Recuperação Regional de Paragominas, a

Defensoria Pública constatou inúmeras violações aos direitos humanos dos que estavam ali

custodiados, derivadas das condições indignas que atentavam contra a saúde dos presos, a

exemplo da falta de higiene e limpeza, falta de alimentação adequada, falta de equipe médica,

falta de local para visita íntima etc. Com isso, foram feitos vários questionamentos à direção

do Centro de Recuperação, mediante ofício emitido pela Defensoria Pública, cuja resposta

corroborou o que tinha se observado, não se tendo vislumbrado qualquer medida para sanar os

problemas, razão pela qual foi necessário o ajuizamento da Ação civil pública (ANADEP,

2015).

3 - Ação inominada de interdição do Presídio de Paragominas – Containers (PA): ação

inominada ajuizada em conjunto pela Defensoria Pública e Ministério Público do Estado do

Pará, objetivando a interdição parcial do Centro Regional de Recuperação de Paragominas,

bem como a desativação da ala denominada de “containers” e a proibição do ingresso de

internos vindos de outras comarcas, até o início da construção do novo centro de recuperação.

Além do ajuizamento da ação, a Defensoria Pública encaminhou à Comissão de Direitos

Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará, relatório contendo as principais

violações de direitos humanos nesse Presídio, que foi inspecionado por um representante da

Comissão. Em seguida, realizou-se audiência pública sobre a questão carcerária do Pará, na

qual a Defensoria Pública também apresentou o relato sobre a situação crítica existente. Em

decorrência de toda essa mobilização e das articulações realizadas por vários setores

institucionais e da sociedade civil, foi iniciada a construção do novo centro de recuperação de

Paragominas em 25 de junho de 2014 (ANADEP, 2015).

265

4 - Ação civil pública para garantir alimentação dos presos nos deslocamentos para

participarem de audiências (RJ): Proposta pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria

Pública do Estado do Rio de Janeiro, visando a garantir a alimentação dos presos que, ao se

deslocarem das unidades prisionais para os fóruns a fim de participarem de audiências,

ficavam por inúmeras horas sem qualquer alimentação, ou sem alimentação adequada. A

liminar foi indeferida sob o argumento de que “eventual liminar obrigando a melhora da

alimentação poderia viabilizar a contratação, por parte do estado, sem prévio processo

licitatório, o que é inaceitável no nosso ordenamento jurídico” (ANADEP, 2015). A relatora

do agravo de instrumento interposto pela Defensoria Pública deu provimento, na forma do art.

557, § 1º-A, do Código de Processo Civil Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,

fundamentando-se no princípio da dignidade humana, sendo obrigatório que o Estado garanta

a alimentação mínima aqueles que estão sob sua custódia (ANADEP, 2015).

5 - Ação civil pública objetivando a construção/ restauração do sistema de esgoto da

Casa Prisão Provisória de Palmas, e ressarcimento a título de dano moral coletivo (TO): teve

como objeto compelir o Estado do Tocantins a realizar a restauração do sistema de tratamento

de esgoto dessa prisão, que se encontrava com várias irregularidades, contaminando o solo, as

águas fluviais e o lençol freático, causando dano ambiental e à saúde pública de toda a

população da cidade. O Núcleo Especializado de Assistência e Defesa ao Preso (NADEP),

que instaurou um Procedimento Preparatório, realizou vistoria no local e buscou os órgãos de

defesa do meio ambiente para obter uma solução extrajudicial do problema. No entanto, não

houve avanços nessa composição. Além da restauração do sistema de tratamento de esgoto e

da retirada de todo o material depositado nas lagoas seriadas, foi requerido que o Estado se

abstivesse de fazer novas deposições bem como de receber mais presos, em razão da

superlotação. Considerando, todavia, o dano ambiental causado pela omissão estatal, que afeta

a sociedade e futuras gerações, foi postulada reparação pelo dano moral coletivo (ANADEP,

2015).

Todas essas cinco ações foram apenas tentativas para minimizar os efeitos deletérios

que o encarceramento produz no Brasil, conforme já amplamente estudado. A situação de

descaso e abandono nos casos concretos (desde a superpopulação carcerária até a falta de

alimentos) somente pôde ser enfrentada com a interposição da ação de natureza coletiva, para

que o Estado passasse a conferir a atenção devida. Em outros termos, flagrantes violações de

direitos foram promovidas apesar de todos os esforços extrajudiciais no sentido de solução

dos problemas. Não resta alternativa, assim, senão a movimentação do Estado-juiz para a

266

satisfação de demandas básicas como acesso a saneamento básico e alimentação. Releva

destacar o fato de que, em algumas dessas ações, o Judiciário, mesmo provocado, não adotou

imediatamente a decisão de proteger condizentemente os direitos humanos no caso concreto,

o que denota uma posição estatal de tratamento indiferente a pessoas privadas de liberdade,

desconsideradas em sua humanidade.

6 - Termo de cooperação técnica visando ao combate à tortura (PI). Com o objetivo de

combater e prevenir a prática de tortura contra presos no Estado do Piauí, foi firmado um

Termo de Cooperação Técnica por diversos órgãos e instituições, a exemplo da Corregedoria

Geral de Justiça do Estado do Piauí (CGJ-PI), Defensora Pública Geral do Estado do Piauí,

Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), a Procuradoria Geral

de Justiça e as Secretarias Estaduais de Segurança Pública (SSP) e de Justiça e Direitos

Humanos (SEJUS). Essa atuação de natureza extrajudicial permite a participação da

Defensoria Pública na formação e discussão de políticas públicas, o que garante, em última

análise, a defesa dos interesses das pessoas que estão em condição de maior vulnerabilidade

de forma coletiva e com ênfase preventiva (ANADEP, 2015).

O enfrentamento à tortura, como estudado na subseção 2.5 da tese, representa um dos

maiores desafios na defesa dos direitos humanos também na atualidade, seja pela sua

admissão por muitos países em determinadas circunstâncias, o que dificulta um consenso

internacional mais veemente em seu absoluto repúdio, seja porque continua sendo realizada

de maneira sub-reptícia como investigação e castigo pelos órgãos de segurança pública.

Assim, muitas vezes a atuação meramente individual de denúncia e promoção de

reponsabilidade de torturadores revela-se inócua, como estão a provar os baixíssimos índices

de processos e condenações por esses crimes. Resta, portanto, o recurso a ações de natureza

coletiva, nesse caso concreto representado pela chamada à responsabilidade dos órgãos de

segurança pública, bem como das instituições do sistema de justiça no enfrentamento a essa

prática que se configura em relevante manifestação da criminalização da pobreza, como já

estudado e demonstrado. Importante lembrar é que o inciso XVIII do art. 4º da LC no

80/1994, com redação dada pela LC no 132/2009, estabelece como função institucional da

Defensoria Pública a atuação “[...] na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas

de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência,

propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas” (BRASIL,

2009).

267

7 – Ação civil pública para impedir a revista vexatória nas unidades prisionais (RJ) –

proposta pelo Núcleo de Direitos Humanos, teve liminar indeferida em primeiro grau, mas o

Tribunal de Justiça reformou a decisão em sede de agravo de instrumento, determinando a

suspensão imediata da prática. Importante observar é que foi fundamental a mobilização dos

defensores, junto aos desembargadores, visando a sensibilizá-los para a relevância e a

legitimidade da causa, por meio da apresentação de dados do sistema prisional de São Paulo

que demonstravam a falta de efetividade da medida e a existência de recursos tecnológicos

que poderiam substituir essa revista tão invasiva e agressiva. Nesse sentido, “[...] em apenas

0,03% das visitas houve tentativa de ingresso de objetos proibidos. A pesquisa relata também

a inexistência de armas entre as apreensões e acrescenta terem sido encontrados quatro vezes

mais objetos proibidos no interior das unidades prisionais que com os visitantes”, diz o estudo

(ANADEP, 2015). Tais dados concretos foram objeto também de nota técnica que a

Defensoria Pública apresentou na Assembleia Legislativa para instruir o Projeto de Lei no

77/2015 sobre o fim da revista vexatória que, apesar de aprovado, foi vetado pelo governador.

Vale observar que a atuação da Defensoria Pública se deu transposta ao âmbito judicial,

acompanhando o processo legislativo e divulgando material em redes sociais no intuito de

demonstrar que a revista vexatória é inconstitucional por violar a intimidade e submeter os

membros familiares dos presos a tratamento desumano e degradante (ANADEP, 2015).

A realização de revistas vexatórias, como analisado na subseção 2.5 da tese, ocupa lugar

central entre os tratamentos estigmatizantes levados a efeito pelo Estado em relação a presos e

seus componentes familiares. São técnicas que, de tão degradantes, saltam aos olhos em sua

indignidade, mas que continuam sendo utilizadas amplamente no Brasil, sob os olhares

complacentes dos membros dos Três Poderes da República. Como demonstrado nessa ação,

os defensores públicos precisaram ingressar com ação judicial coletiva a fim de sanar tal

prática, que já deveria ter sido extirpada há muito tempo da realidade prisional, mercê da

evolução tecnológica experimentada, capaz de possibilitar outras modalidades de verificação

da condução de ilícitos nos corpos de presos e visitantes. Não foi suficiente essa ação, pois o

pedido de medida liminar foi indeferido, exigindo dos defensores públicos o esforço de

“sensibilizar” os desembargadores para a legitimidade da causa, o que evidencia o tratamento

indiferente que muitas vezes é dado a uma situação que deveria merecer pronta resposta

judicial pela sua simples veiculação. Não bastasse isso, o acompanhamento de processo

legislativo que resultou na proibição da revista vexatória, em atuação bastante proativa dos

defensores públicos, esbarrou no veto governamental, em mais uma mostra de

268

despreocupação relativa aos alvos de tratamentos humilhantes e degradantes, invariavelmente

pobres.

8 - Exposição de presos à mídia e direito de imagem (RJ): o Núcleo de Direitos

Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro propôs ação civil pública

visando a tutelar os direitos da personalidade, especialmente de presos provisórios, cujas

imagens são recorrentemente veiculadas na grande mídia sem qualquer restrição.

Fundamentou-se que “[...] tal exposição desvinculada de qualquer utilidade para a persecução

penal, processual ou pré-processual, é ato que contamina a imparcialidade do julgador e de

jurados, viola o princípio da presunção de inocência e, sobretudo, gera danos irreversíveis na

vida de pessoas que aguardam julgamento”. E o pedido foi no sentido de impedir a exibição

da imagem de tais presos pelos agentes estatais de segurança, sob pena de multa e

responsabilização (ANADEP, 2015).

A atuação da mídia e seu papel na criminalização da pobreza também foram enfrentados

nesse trabalho (subseção 1.4), ficando remarcado, igualmente, o seu tratamento seletivo na

divulgação de notícias de crimes. Assim, mais uma vez, foi necessária a busca da intervenção

judicial a fim de fazer cessar os espetáculos de exposição midiática indevida daqueles que

ocupam os estratos mais desfavorecidos da sociedade, conduta que normalmente não ocorre

com todos os criminosos apanhados pela polícia, não se verificando frequentemente quando

os suspeitos ou criminosos são ricos.

9 - Habeas corpus preventivo contra detenção de flanelinhas (RJ): a Defensoria Pública

do Estado do Rio de Janeiro, por meio do órgão de atuação junto ao Juizado Especial Adjunto

Criminal da cidade de Volta Redonda, passou a observar a existência de inúmeros termos cir-

cunstanciados relacionados à detenção de flanelinhas por agentes da PM e Guarda Municipal,

que os encaminhavam à delegacia em razão da suposta prática de contravenção de “[...]

exercício irregular da profissão de guardador de veículos” (ANADEP, 2015). Em cada

procedimento, a Defensoria Pública passou a requerer a não homologação da transação penal

em razão da atipicidade da conduta, bem como a impetrar habeas corpus para suspender os

procedimentos dos juizados (ANADEP, 2015). Tais medidas adotadas individualmente em

cada procedimento estavam sendo exitosas, entretanto, demandavam uma multiplicidade de

petições e habeas corpus idênticos. Em suma, a situação se repetia, reiterada e

constantemente, justificando uma atuação coletiva e preventiva, para evitar constrangimentos

a dezenas de trabalhadores que desempenhavam tal atividade nas cidades do interior do

269

Estado e para evitar o desperdício de recursos humanos e estruturais envolvidos na rotina do

sistema de Justiça. Foi impetrado habeas corpus coletivo (Processo nº 0035227-

28.2012.8.19.0066), obtendo-se a medida liminar, confirmada ao final por sentença. De efeito,

concederam-se salvo-condutos a todas as pessoas que se encontravam trabalhando, como

guardadores de veículos automotores nas “[...] ruas da cidade de Volta Redonda –

“flanelinhas” – garantindo-lhes o direito de ir, vir e permanecer a qualquer hora do dia, não

podendo ser removidos contra sua vontade, nem serem conduzidos a Delegacia de Polícia ou

serem autuados por exercício irregular da profissão, salvo em hipótese de flagrância por crime

ou por ordem judicial, sob pena de multa de R$ 1.000,00 (mil reais)”.

Nesse caso particular, foi necessário atuar coletivamente para barrar uma ação típica de

criminalização da pobreza, mediante a qual os órgãos de segurança pública estavam

perseguindo criminalmente condutas que sequer estavam tipificadas como crime pela

legislação, em indisfarçável ação de “higienização” de espaços públicos, destinada a afastar

indesejáveis sociais do convívio dos proprietários de veículos do Rio de Janeiro. As ações, na

realidade, não combatiam condutas propriamente ditas, mas pessoas, em inegável

manifestação de direito penal do autor. Nessa ação da Defensoria Pública, encontra-se um

nicho de atuação relevantíssimo para a perspectiva desta tese, na medida em que cumpre uma

finalidade importante, conforme defende Alzueta (2014, p. 197-198), que é colocar em crise

as rotinas policiais violentas afincadas na vida cotidiana da instituição, os modos de pensar,

sentir e atuar, todos autorizados pela demagogia punitiva, o descontrole judicial e a

intolerância social.

Ações coletivas dessa natureza, muito mais do que a importância de tornar plúrimos os

efeitos de decisões judiciais, que, do contrário, permaneceriam adstritos aos limites dos casos

individuais, representam instrumentos de enfrentamento à criminalização da pobreza por meio

da reafirmação de sua essencial iniquidade, na medida em que forçam o Estado-juiz a reiterar

expressamente o que as normas, principalmente constitucionais, dispõem: que as instituições

públicas (mesmo as de segurança pública) não se podem converter em instrumentos de

perseguição de pessoas em virtude de sua condição socioeconômica.

Perante tão amplo complexo de situações que pediram a intervenção da Defensoria

Pública, é importante considerar um argumento que aufere, paulatinamente, bastante força na

doutrina recente: a possibilidade de atuação da Defensoria Pública ad coajuvandum em

processos coletivos, como defendido por Zufelato (2014, p. 320):

270

Por tais razões, e especialmente pela relevância dada pela Constituição à Defensoria Pública na defesa dos necessitados, é indispensável potencializar os canais de participação da instituição no processo coletivo, admitindo a sua intervenção ad coajuvandum ao autor ou réu quando o interesse defendido for preponderantemente relacionado com a tutela de grupos vulneráveis, nos casos em que a instituição não figurar nos pólos processuais.

A atuação da Defensoria nos termos propostos se justifica, seja pela exigência de

fortalecimento dos canais de participação processual, seja pela complexidade e alta

conflituosidade que marcam as demandas coletivas, o que poderia gerar sub-representação

dos interesses dos pobres, o que torna importante a presença de representantes adequados –

mesmo que não sejam partes – para que defendam da maneira mais eficiente possível os

interesses do grupo, contribuindo, assim, para conferir maior legitimidade à decisão

jurisdicional (ZUFELATO, 2014, p. 320-321).

Uma emblemática atuação da Defensoria Pública atuando como amicus curiae foi no

HC coletivo 143.641/SP, impetrado inicialmente pelo Coletivo de Advogados em Direitos

Humanos, em favor de mulheres presas preventivamente que ostentem a condição de

gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome

das próprias crianças (BRASIL, 2018b). A Defensoria Pública do Estado do Ceará pleiteou

seu ingresso como custos vulnerabilis ou, subsidiariamente, como amicus curiae, enfatizando

ser órgão interveniente na execução penal para a defesa das pessoas presas, que formam um

grupo por demais vulnerável, e que sua atuação como guardiã dos vulneráveis tem por

fundamento o art. 134 da Constituição e o art. 4º, XI, da LC no 80/1994; afirmou que, caso

assim não se entendesse, devesse ser aceita para atuar como amicus curiae, na medida em que

o habeas corpus era de natureza coletiva; postulou, no mérito, a aplicação do princípio da

intranscendência e do princípio da primazia dos direitos da criança; defendeu o argumento de

que a leitura correta da Lei no 13.257/2016 é a de que não há necessidade de satisfazer-se

outras condições, salvo as expressas na própria lei, para a substituição da prisão preventiva

pela domiciliar (BRASIL, 2018b). O STF, após manifestação da Procuradoria Geral da

República, afirmou o cabimento do habeas corpus coletivo, com algumas premissas para seu

conhecimento, como a legitimação ativa: por analogia à legislação referente ao mandado de

injunção coletivo, decidiu ser da DPU, por tratar-se de ação cujos efeitos tinham abrangência

nacional (BRASIL, 2018b). Outras defensorias públicas estaduais e organizações da

sociedade civil ingressaram também no processo, que resultou na seguinte decisão, que será

transcrita, apesar de extensa, por ser uma marca histórica: a primeira a admitir o HC coletivo

no Brasil, ainda que esse instrumento não tenha previsão legal:

271

Ementa: HABEAS CORPUS COLETIVO. ADMISSIBILIDADE. DOUTRINA BRASILEIRA DO HABEAS CORPUS. MÁXIMA EFETIVIDADE DO WRIT. MÃES E GESTANTES PRESAS. RELAÇÕES SOCIAIS MASSIFICADAS E BUROCRATIZADAS. GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS. ACESSO À JUSTIÇA. FACILITAÇÃO. EMPREGO DE REMÉDIOS PROCESSUAIS ADEQUADOS. LEGITIMIDADE ATIVA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI 13.300/2016. MULHERES GRÁVIDAS OU COM CRIANÇAS SOB SUA GUARDA. PRISÕES PREVENTIVAS CUMPRIDAS EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. INADMISSIBILIDADE. PRIVAÇÃO DE CUIDADOS MÉDICOS PRÉ-NATAL E PÓS-PARTO. FALTA DE BERÇARIOS E CRECHES. ADPF 347 MC/DF. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. CULTURA DO ENCARCERAMENTO. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO. DETENÇÕES CAUTELARES DECRETADAS DE FORMA ABUSIVA E IRRAZOÁVEL. INCAPACIDADE DO ESTADO DE ASSEGURAR DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS ENCARCERADAS. OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO E DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. REGRAS DE BANGKOK. ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA. APLICAÇÃO À ESPÉCIE. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE OFÍCIO. I – Existência de relações sociais massificadas e burocratizadas, cujos problemas estão a exigir soluções a partir de remédios processuais coletivos, especialmente para coibir ou prevenir lesões a direitos de grupos vulneráveis. II – Conhecimento do writ coletivo homenageia nossa tradição jurídica de conferir a maior amplitude possível ao remédio heroico, conhecida como doutrina brasileira do habeas corpus. III – Entendimento que se amolda ao disposto no art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal - CPP, o qual outorga aos juízes e tribunais competência para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus, quando no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. IV – Compreensão que se harmoniza também com o previsto no art. 580 do CPP, que faculta a extensão da ordem a todos que se encontram na mesma situação processual. V - Tramitação de mais de 100 milhões de processos no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, a qual exige que o STF prestigie remédios processuais de natureza coletiva para emprestar a máxima eficácia ao mandamento constitucional da razoável duração do processo e ao princípio universal da efetividade da prestação jurisdicional VI - A legitimidade ativa do habeas corpus coletivo, a princípio, deve ser reservada àqueles listados no art. 12 da Lei 13.300/2016, por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo. VII – Comprovação nos autos de existência de situação estrutural em que mulheres grávidas e mães de crianças (entendido o vocábulo aqui em seu sentido legal, como a pessoa de até doze anos de idade incompletos, nos termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) estão, de fato, cumprindo prisão preventiva em situação degradante, privadas de cuidados médicos pré-natais e pós-parto, inexistindo, outrossim berçários e creches para seus filhos. VIII – “Cultura do encarceramento” que se evidencia pela exagerada e irrazoável imposição de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis, em decorrência de excessos na interpretação e aplicação da lei penal, bem assim da processual penal, mesmo diante da existência de outras soluções, de caráter humanitário, abrigadas no ordenamento jurídico vigente. IX – Quadro fático especialmente inquietante que se revela pela incapacidade de o Estado brasileiro garantir cuidados mínimos relativos à maternidade, até mesmo às mulheres que não estão em situação prisional, como comprova o “caso Alyne Pimentel”, julgado pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas. X – Tanto o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio nº 5 (melhorar a saúde materna) quanto o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas), ambos da

272

Organização das Nações Unidades, ao tutelarem a saúde reprodutiva das pessoas do gênero feminino, corroboram o pleito formulado na impetração. X – Incidência de amplo regramento internacional relativo a Direitos Humanos, em especial das Regras de Bangkok, segundo as quais deve ser priorizada solução judicial que facilite a utilização de alternativas penais ao encarceramento, principalmente para as hipóteses em que ainda não haja decisão condenatória transitada em julgado. XI – Cuidados com a mulher presa que se direcionam não só a ela, mas igualmente aos seus filhos, os quais sofrem injustamente as consequências da prisão, em flagrante contrariedade ao art. 227 da Constituição, cujo teor determina que se dê prioridade absoluta à concretização dos direitos destes. XII – Quadro descrito nos autos que exige o estrito cumprimento do Estatuto da Primeira Infância, em especial da nova redação por ele conferida ao art. 318, IV e V, do Código de Processo Penal. XIII – Acolhimento do writ que se impõe de modo a superar tanto a arbitrariedade judicial quanto a sistemática exclusão de direitos de grupos hipossuficientes, típica de sistemas jurídicos que não dispõem de soluções coletivas para problemas estruturais. XIV – Ordem concedida para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes. XV – Extensão da ordem de ofício a todas as demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições acima. (BRASIL, 2018b).

Atuação semelhante como amicus curiae é desempenhada pela DPU no HC Coletivo

154.118/RJ, em tramitação na 2ª. Turma do STF, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes,

interposto por Wadih Nemer Damous Filho e outros, com o fim de impedir a decretação de

medidas de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas em desfavor dos cidadãos brasileiros,

em especial aqueles moradores de comunidades carentes, negros, pobres e marginalizados

(BRASIL, 2018c). Como já expresso em outros momentos neste ensaio, a expedição e

cumprimento de mandados de busca e apreensão coletivos representam modalidades

escancaradas de criminalização da pobreza, na medida em que autorizam o ingresso nas

residências das pessoas de uma determinada área, indiscriminadamente, em verdadeira

presunção de culpa e ao arrepio da proteção constitucional à inviolabilidade do domicílio e,

nas vezes ocorridas, em indisfarçável seletividade, dado que os ingressos somente acontecem

nas casas de pessoas pobres83. Nesse sentido, é relevante o manejo de uma ação de natureza

coletiva, dadas as flagrantes dificuldades enfrentadas, às quais se acresce a importante

observação da DPU na petição mencionada:

83 Alguns casos concretos foram expressos na subseção 1.5 desta tese.

273

Todavia, além de todas as dificuldades que adviriam de tal medida, como distribuição para Juízos diferentes, número de feitos e dificuldades normais de acesso à Justiça, há ainda outro aspecto que enfraqueceria a demanda, se ela fosse veiculada na forma individual, qual seja, perder-se-ia a noção de que um grupo específico estaria a sofrer invasão indevida em seus direitos fundamentais em decorrência de sua condição econômica e social. Essa perspectiva é fundamental para o deslinde da questão submetida à apreciação da Corte. A impetração coletiva, no caso em exame, mostra que o mandado genérico volta-se contra os mais frágeis, os mais fracos, os mais pobres como um todo, em razão única dessa condição. (DPU, 2019).

Trata-se, portanto, de intervenção defensória com a expressa finalidade de deixar claro o

caráter seletivo dessas ações e o componente de criminalização da pobreza que inegavelmente

carregam, como um jeito de chamar a atenção do Judiciário para as sistemáticas violações de

direitos representadas pelos mandados de busca e apreensão coletivos.

Apesar da fundamental importância da atuação transindividual da Defensoria Pública,

muitas vezes indispensável para a tutela de determinados direitos, concorda-se com o

entendimento de Zufelato (2014, p. 330), para quem devem ser priorizadas as ações

extrajudiciais, no sentido de educação e conscientização de direitos, mesmo os de natureza

coletiva, a fim de que se afaste de uma atuação defensória meramente paternalista,

contribuindo, ao contrário, para o empoderamento dos grupos vulneráveis, pela transmissão

de autonomia e consciência de direitos.

Com amparo nessa conscientização, estudada na subseção 4.2 da tese, aliada a outros

meios extrajudiciais de solução de conflitos, evita-se o ajuizamento de novas ações judiciais

ao já abarrotado e ineficiente sistema de justiça, primando-se pela prevenção de conflitos ou

alcançando-se soluções muito mais efetivas e duradouras, por atingirem o âmago dos

eventuais litígios. É sobre isso que se ocupa o segmento que vem agora, trazendo o quarto

eixo de atuação defensória no enfrentamento à criminalização da pobreza.

4.4 A relevância da atuação extrajudicial

O quarto eixo pressupõe a vocação constitucional da Defensoria Pública à atuação

extrajudicial, garantindo o acesso à justiça em uma perspectiva ampla, não restrita ao acesso

ao Judiciário, opondo-se à criminalização da pobreza por meio de: solução extrajudicial dos

conflitos por métodos alternativos (mediação, conciliação, arbitragem), com base nas

previsões legais nesse sentido e da proximidade dos defensores públicos dos problemas das

comunidades e dos movimentos sociais; orientação jurídica; atuação em processos

274

administrativos disciplinares; participação em conselhos; convocação de audiências públicas;

inspeções de locais de privação de liberdade.

Inicialmente, importa lembrar que a CF/88 estabelece em seu art. 134, com a redação

dada pela EC no 80/2014, que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à

função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime

democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a

defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, integral

e gratuitamente, aos necessitados, conforme o inciso LXXIV do art. 5º da CF/88 (BRASIL,

2014).

Já o art. 4o, II da LC no 80/94, com redação dada pela LC no 132/2009 elenca, entre os

objetivos institucionais da Defensoria Pública (art. 4º): II promover, prioritariamente, a

solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de

interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e

administração de conflitos (BRASIL, 2009). A ordem jurídica brasileira, portanto, confere à

Defensoria Pública legitimidade para atuar em situações nas quais os conflitos ainda

apareçam em seu estádio embrionário, evitando que se convertam em situações muito mais

graves.

Ademais, partindo de uma necessária descentralização do atendimento e da inserção do

defensor público nos bairros, será possível a este profissional, que receberá toda a demanda de

conflitos de determinada comunidade, perceber quais são os mais recorrentes casos de

criminalização da pobreza e qual sua raiz comum, facilitando sobremaneira a sua

identificação e a resistência a eles. Por outro lado, sua presença constante representará

certamente um fator de contenção de práticas abusivas e ofensivas a direitos fundamentais,

mesmo aqueles que são imperceptíveis para os moradores das comunidades mais carentes, já

tão habituados com a contínua violação de direitos (desde individuais até sociais) que sequer

os visualizam84.

Com efeito, desde que a Defensoria Pública se converta, efetivamente, na porta de

acesso à justiça do carente, este passará a levar grande parte de seus problemas à análise do

defensor público, que construirá, com suporte no contato diuturno com as dificuldades

daquelas pessoas, uma espécie de “arquivo de conflitos”, no qual estarão inseridos tanto suas

84 Há referências mais detalhadas a esse assunto na seção 4.2.

275

causas como meios de solução. Situações de invasão ilícita de domicílio, tratamentos

estigmatizantes e até mesmo tortura e mortes institucionais podem ser levados imediatamente

ao conhecimento do defensor público, a fim de que sejam tomadas as providências de

contenção devidas.

Por outro lado, as pessoas pobres atendidas pelas defensorias públicas, em muitos casos,

por meio de uma escuta qualificada, podem expressar a necessidade de acesso a outra política

pública que pode ser viabilizada por uma rede de acolhimento interdisciplinar promovida pela

própria Defensoria Pública, como medida de promoção de acesso aos direitos (na concepção

de direitos humanos e da execução de políticas públicas) (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p.

48). “Atendendo à interdisciplinaridade, a Defensoria Pública deve atuar em rede, no sentido

da promoção de ações preventivas, em conjunto com outros órgãos públicos ou entidades

privadas, e ações repressivas, como é o caso do atendimento por equipe psicossocial”.

(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 48))85.

Outro fator importante decorrente dessa maneira de atuação é a confiança que este

profissional poderá angariar junto aos membros da comunidade, que passarão a ver nele um

agente de acesso aos direitos, na medida em que possibilita a sua defesa, possibilitando que as

previsões legais não sejam continuamente esquecidas. É nessa perspectiva que o Centro de

Estudios Legales e Sociales (2016, p. 82) manifesta-se, em relação à sociedade argentina:

Por otra parte, es cada vez más evidente que muchas manifestaciones del hostigamiento policial no son formas encapsuladas de abuso, sino que se integran en tramas de violencia más amplias, a las que retroalimentan. En lugar de ser un factor que contribuye a la seguridad y a la protección, esta violencia policial es un engranaje fundamental de una violencia social más amplia. Por esto la prevención de los abusos policiales hacia los jóvenes debe enmarcarse en políticas más generales de reducción de la violencia en estos barrios, a través de la presencia permanente de distintos recursos y agencias del Estado que excedan a las fuerzas de seguridad.

Há que se destacar, ainda, que esse contato direto do defensor público com a

comunidade torna muito mais fácil para o Estado inserir-se em determinadas localidades com

um histórico de abandono e que já criaram os próprios meios de solucionar seus problemas de

acesso aos bens que deveriam ser públicos e universais. Necessária, portanto, é uma

instituição que chegue a esses locais para ouvir as pessoas e funcionar como freios aos

85 Não se pretende aqui, advirta-se, que a Defensoria Pública substitua outras instituições na realização de

políticas públicas, como de educação, saúde, trabalho, mas sim que aquelas assistências que puderem ser prestadas, por serem afins com suas obrigações institucionais (alguns tipos de assistência social e psicológica), podem ser imediatamente fornecidas no próprio âmbito da Defensoria Pública e outras sejam realizadas pelas instituições competentes, após o devido encaminhamento.

276

excessos do poder estatal (e não para impor decisões criminalizantes). Obtendo sucesso nesta

empreitada, a Defensoria Pública funcionará como importante catalisador da inclusão social,

com efeitos benéficos e imediatos na amenização do problema da insegurança pública, no

qual está imbricada, registre-se, a complexa e grave situação prisional.

Ressalte-se, ainda, a importância da ação inclusiva da Ouvidoria externa, iniciativa

pioneira das defensorias públicas do Brasil entre as instituições do sistema de justiça (que

resistem ferozmente a qualquer tipo de controle externo) e que funcionam de modo bastante

eficaz para a aproximação dessa instituição com a sociedade. A Ouvidoria é formada por

pessoas de fora da instituição, oriundas dos movimentos sociais, responsáveis por captar as

demandas da sociedade civil referentes à atuação da Defensoria Pública e exigir efetividade

na proteção, promoção e defesa dos direitos. Para ilustrar as possibilidades de atuação da

Ouvidoria externa, tome-se como exemplo a existente no Estado do Ceará, uma das primeiras

do Brasil, instituída por LC Estadual no 91, de 20 de dezembro de 2010 (CEARÁ, 2010), que

alterou a LC nº 06, de 28 de abril de 1997 (CEARÁ, 1997), para incluir o art. 8º - A, com a

seguinte redação:

Art. 8º-A A Ouvidoria-Geral é órgão auxiliar da Defensoria Pública do Estado, de promoção da qualidade dos serviços prestados pela Instituição, contando com servidores da Defensoria Pública do Estado e com a estrutura definida pelo Conselho Superior após proposta do Ouvidor-Geral, competindo-lhe: I - receber e encaminhar ao Corregedor-Geral representação contra membros e servidores da Defensoria Pública do Estado, assegurada a defesa preliminar; II - propor aos órgãos de administração superior da Defensoria Pública do Estado medidas e ações que visem à consecução dos princípios institucionais e ao aperfeiçoamento dos serviços prestados; III - elaborar e divulgar relatório semestral de suas atividades, que conterá também as medidas propostas aos órgãos competentes e a descrição dos resultados obtidos; IV - participar, com direito a voz, do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado; V - promover atividades de intercâmbio com a sociedade civil; VI - estabelecer meios de comunicação direta entre a Defensoria Pública e a sociedade, para receber sugestões e reclamações, adotando as providências pertinentes e informando o resultado aos interessados; VII - contribuir para a disseminação das formas de participação popular no acompanhamento e na fiscalização da prestação dos serviços realizados pela Defensoria Pública; VIII - manter contato permanente com os vários órgãos da Defensoria Pública do Estado, estimulando-os a atuar em permanente sintonia com os direitos dos usuários; IX - coordenar a realização de pesquisas periódicas e produzir estatísticas referentes ao índice de satisfação dos usuários, divulgando os resultados. Parágrafo único. As representações podem ser apresentadas por qualquer pessoa, inclusive pelos próprios membros e servidores da Defensoria Pública do Estado, entidade ou órgão público. (CEARÁ, 2010).

Pelo rol de atribuições estabelecidas, é possível perceber o relevante papel que pode

desempenhar, independentemente, a Ouvidoria, funcionando como receptáculo de

277

informações sobre conduta indevida de servidores públicos (inclusive e principalmente,

defensores públicos), para encaminhamento aos órgãos de responsabilização; formulando

políticas públicas no âmbito da Administração Superior da Defensoria Pública; participando

na normatização interna da Defensoria Pública, por meio de seu assento no Conselho

Superior; promovendo o intercâmbio com a sociedade civil, como canal de comunicação entre

esta e a Defensoria Pública, pelo recebimento de sugestões e reclamações e seu

encaminhamento à Administração Superior ou às supervisões específicas; disseminando

maneiras de participação popular no acompanhamento e na fiscalização da prestação dos

serviços realizados pela Defensoria Pública; identificando os direitos dos usuários, para

encaminhamento aos setores competentes; coordenando a realização de pesquisas periódicas e

produção de estatísticas referentes ao índice de satisfação dos usuários, com posterior

divulgação os resultados. As ouvidorias externas, como instrumentos de participação e

controle social, constituem, indiscutivelmente, espaços de aproximação da Defensoria Pública

com os usuários de seu serviço, além de serem capazes de produzir maior transparência da

política pública.

Lembre-se, na temática em tela, que, com o alinhamento da perspectiva (eixo) de

atuação extrajudicial com a anterior (atuação transindividual), será possível buscar a solução

de muitas situações que representem criminalização da pobreza com amparo na realização de

Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), evitando-se a judicialização dos conflitos, com

suporte na mera “ameaça” de ajuizamento, em caso de descumprimento, de demandas de

natureza coletiva. Como exemplos podem ser citadas as instaurações de TACs para a solução

de problemas de superpopulação carcerária; regularização no fornecimento de água potável e

alimentação adequada a pessoas privadas de liberdade; adequação dos procedimentos de

revista para ingresso e permanência de visitantes nos cárceres; destinação de locais adequados

para que as mulheres encarceradas permaneçam com seus filhos durante o período de

amamentação; fornecimento adequado de assistências material, educacional, religiosa e à

saúde no ambiente prisional, dentre outras inúmeras possibilidades. Antes mesmo da

instauração de TACs, o simples encaminhamento de ofícios denunciando a situação de

desrespeito a direitos ou mesmo o contato verbal com as autoridades competentes é, muitas

vezes, suficiente para a resolução desses problemas. Para isso, contudo, o defensor público

precisa legitimar-se como porta-voz constante dessas demandas, deixando claro que o seu

compromisso é com o respeito às normas constitucionais e também legais e com a defesa

intransigente da dignidade humana.

278

Ainda no tocante às funções extrajudiciais, destaque-se a importante atuação dos

defensores públicos do sistema prisional na orientação jurídica dos que estão enredados em

um conflito criminal. Trata-se do cumprimento da primeira função institucional da Defensoria

Pública à qual compete, de acordo com o art. 4º, I da LODP, “[...] prestar orientação jurídica e

exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus”. (BRASIL, 2009). Como já aludido na

perspectiva da educação em direitos, a interpretação dos significados dos documentos e

manifestações existentes no processo, sua funcionalidade e efeitos, bem como do andamento

do processo de conhecimento (quando presos provisórios) ou da gama de benefícios a que faz

jus, são tão importantes quanto a própria atuação tutelar clássica. Em outras palavras, muitas

vezes a acessibilidade e o contínuo contato do defensor com seu assistido representam, para

este último, fatores que proporcionam muito maior segurança e tranquilidade do que a atuação

processual propriamente dita, em relação à qual muito pouco entende e menos ainda tem

condições de influir. Em muitas situações, atuações processuais tecnicamente impecáveis são

simplesmente minimizadas, na percepção dos assistidos, caso não venham acompanhadas de

sua comunicação adequada e, principalmente, da tradução de sua função e efeitos.

A orientação jurídica aufere ainda maior relevo em relação àquele privado de liberdade,

pois este, normalmente alijado de qualquer contato com o mundo exterior, vivencia uma

constante sensação de abandono. Assim, sua necessidade de informação sobre sua situação

processual e prisional ganha contornos dramáticos, porquanto o que está em jogo é a tradução

dos elementos que se confundem com os condicionantes e determinantes da própria privação

da liberdade. Um dos principais fatores de angústia do preso, portanto, é exatamente a

indefinição de seu estado prisional e processual. É fácil constatar nas inspeções que são feitas

nas unidades prisionais que, mesmo as mais degradantes condições de insalubridade e

privação de direitos básicos, são simplesmente ignoradas pelos presos ante sua angústia para

saber alguma informação sobre o seu processo. Por mais que se questione a eles sobre a

qualidade da água, da comida, eventuais atos de tortura, a sede pela liberdade suplanta tudo e

é, invariavelmente, o que vem à tona nas queixas dos presos e presas que respondem aos

questionamentos das comissões de inspeção. Relatos sobre excesso de prazo nas prisões

processuais, denúncias de falta de assistência jurídica, queixas de cumprimento de pena por

tempo superior à sentença ou do suficiente para progressão de regime são ouvidos de modo

muito mais constante do que a quantidade de presos nas celas, ou mesmo a qualidade ou

quantidade da comida que é servida.

279

Realmente, a privação de liberdade torna-se ainda mais penosa e chega a ser desumana,

quando acompanhada do total alheamento sobre os direitos de que o detento dispõe, bem

como das suas perspectivas concretas de deixar o cárcere. Ao defensor público, portanto, cabe

a tarefa de amenizar esta angústia com o atendimento individualizado dos presos, que,

sabedores de que contarão com o apoio jurídico quando necessário, passarão a cumprir sem

sobressaltos a pena que lhes foi imposta. Do contrário, a ausência de assistência jurídica faz

nascer no preso a ideia alternativa de recorrer a meios de autodefesa (FRAGOSO; CATÃO;

SUSSEKIND, 1980, p. 102). Rebeliões e motins, portanto, estão muito mais suscetíveis de

ocorrer se há total desconhecimento, por parte dos presos, das acusações que contra eles são

eventualmente formuladas e das projeções de manutenção da privação da liberdade.

Repise-se, então, nesse particular, a ideia de que o acompanhamento adequado dos

processos, com a veiculação de todas as petições corretas, no prazo ideal, embora sejam

atitudes esperadas do defensor público e imprescindíveis para a integral assistência jurídica ao

encarcerado, perdem enormemente sua importância, caso não sejam comunicadas aos seus

beneficiários, já que, para eles, em suas realidades de privação da liberdade, só existe de fato

o que chega ao seu conhecimento pelas palavras proferidas pelo defensor de seus direitos.

Outra atuação extrajudicial importante vem encartada no art. 4º, XXII da LC no 80/94,

incluído pela LC no 132/2009, segundo o qual compete à Defensoria Pública “[...] convocar

audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais”

(BRASIL, 2009). Por esse instrumento, o defensor público pode colher subsídios ou mesmo

informar à população a respeito de determinado procedimento administrativo em trâmite

perante a instituição, sendo tal medida salutar em sede de tutela coletiva, dada a gama de

interesses que podem ser afetados, bem como de modo a possibilitar a participação social na

elaboração das medidas extrajudiciais e judiciais adotadas pela Defensoria Pública

(FENSTERSEIFER, 2017, p. 72).

Assim agindo, a Defensoria democratiza suas ações, na medida em que as abre para

contribuições advindas dos próprios beneficiários, que podem ser muito enriquecedoras, ao

agregar informações que jamais seriam alcançadas senão por aqueles que vivenciam a

situação concreta. Um exemplo: a realização de audiência pública para discutir o tratamento

conferido pelo Estado a visitantes de pessoas privadas de liberdade pode trazer dados

concretos do que ocorre nesses momentos de visita que jamais poderiam ser visualizados pelo

defensor público, ainda que acompanhasse a entrada e permanência de visitantes no cárcere,

280

mormente porque as ofensas aos direitos, que ordinariamente ocorrem, dificilmente se

verificariam nessas condições.

As audiências públicas representam também oportunidades de construir ambientes para

amplo e democrático debate sobre determinados temas, possibilitando a participação de

quaisquer pessoas, para a formulação de consensos e a cobrança de políticas públicas. No que

tange ao objeto deste estudo, é importante a realização de audiências públicas para tratar, por

exemplo: da situação carcerária geral de determinada cidade ou Estado, ou de questões

contingenciais ligadas aos problemas carcerários; a atuação policial em bairros,

principalmente periféricos; alguma situação específica de chacina; denúncias gerais de atos de

tortura ou ações outras desumanas ou degradantes, principalmente em locais de privação de

liberdade; invasão ilícita de domicílios; deficiências de atuação da Defensoria Pública, dentre

outros.

Sob essa perspectiva, a Defensoria Pública desveste-se de uma condição de panaceia

para todos os problemas, abrindo-se para a participação popular, a fim de colher elementos

para o robustecimento de suas atuações institucionais, bem como para servir de veículo de

acesso a outras instituições que, no caso, sejam as competentes para a solução dos problemas

ventilados. A reiterada utilização desses instrumentos, por outro lado, confere legitimidade à

Defensoria Pública como porta-voz dos grupos vulneráveis, além de possibilitar a construção

de espaços que podem ser destinados, igualmente, à educação em direitos, nos moldes

estudados na subseção 4.2 desta tese.

Também na perspectiva de prevenir situações de conflito, importante é a possibilidade

de atuação da Defensoria Pública no sentido de fiscalização, controle e participação na gestão

de políticas públicas, cabendo à instituição, nos exatos termos do art. 4º, XX da LC no 80/94,

incluído pela LC no 132/2009, “[...] participar, quando tiver assento, dos conselhos federais,

estaduais e municipais afetos às suas funções institucionais, respeitadas as atribuições de seus

ramos” (BRASIL, 2009).

Na particular atuação no âmbito penal, a Defensoria Pública pode tomar parte no

CNPCP (de acordo com legislação federal específica, com base no comando do art. 63 da

LEP) (BRASIL, 1984), nos conselhos penitenciários estaduais (conforme legislação estadual

específica, desde o comando do art. 69, §1º da LEP (BRASIL, 1984) e conselhos da

comunidade (art. 80 da LEP, com redação dada pela Lei no 12.313/2010) (BRASIL, 2010),

281

todos eles órgãos da execução penal de acordo com a LEP, com importantes funções de

fiscalização do sistema penitenciário, além de formuladores das políticas públicas

relacionadas à área. Lembre-se, ainda, que a Defensoria Pública pode tomar assento no

Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), conforme art. 2º, §2º, V da

Lei no 12.847/2013 (BRASIL, 2013).

Ao participar de tais colegiados, a Defensoria Pública tem condições de influir no

controle e participação social da execução penal, de modo que esta se afaste do caráter

seletivo e discriminatório que tem sido a sua marca – tudo isso no cumprimento da função

delineada por Fensterseifer (2017, p. 30-31), para quem

A Defensoria Pública representa, portanto, esse “movimento” do estado, por força dos seus deveres de proteção estabelecidos pela Constituição, no sentido de criar, tanto em termos organizacionais quanto procedimentais, políticas públicas inclusivas e capazes de operacionalizar o próprio princípio da igualdade na sua dimensão material, designadamente naquilo que constitui um dos principais esteios do Estado de Direito: um direito a ter direitos fundamentais civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais efetivos.

A Defensoria Pública pode, portanto, representar um canal estatal que seja receptáculo

das demandas sociais externadas pelos movimentos organizados da sociedade civil. Isso

porque, como David Garland ressalta, no complexo e diversificado mundo da Pós-

Modernidade, o governo efetivo e também legítimo deve devolver poderes e compartilhar a

tarefa de controle social com organizações locais e comunidades, já que não se pode mais

confiar em um simples “saber do Estado”, em burocráticas agências estatais inertes e nas

soluções universais impostas de cima, devendo-se, em lugar disto, incrementar as capacidades

governamentais com as organizações e associações da sociedade civil, com o conhecimento e

os poderes locais que estas contêm (GARLAND, 2008). Tal proximidade com a sociedade

civil, ademais, cria canais de comunicação aptos a fornecer subsídios para o próprio exercício

do direito de defesa nos processos criminais e de execução penal.

Por outro lado, como identificam Carolina Ferreira e Rosier Custódio, é possível que,

ainda durante o exercício de atividades de escuta e atendimento, defensores públicos e demais

servidores identifiquem a existência de outros conflitos que não sejam necessariamente objeto

de processos de criminalização, devendo-se priorizar, nesses casos, que os conflitos sejam

resolvidos em esferas externas ao sistema penal, por programas de mediação ou justiça

restaurativa desenvolvidos por equipes interdisciplinares e capacitadas da própria Defensoria,

282

ou mesmo com o encaminhamento voluntário para organizações que façam parte da rede de

parceiros da instituição (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 43).

Ainda na perspectiva de atuação extrajudicial, o art. 4º, XIV da LC no 80/94 atribui à

Defensoria Pública o papel de “[...] acompanhar inquérito policial, inclusive com a

comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não

constituir advogado”, enquanto o inciso XVII do mesmo dispositivo trata da atuação “[...] nos

estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar

às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias

fundamentais”. Como ensina Tiago Fensterseifer, a atuação em foco possui intenso caráter

preventivo, pois a presença de defensores públicos em estabelecimentos prisionais, além de

facilitar a comunicação direta de violações a direitos dos presos e posterior adoção das

medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, inibe tais práticas. Essa atuação está conectada

com a obrigação estabelecida no art. 81-B, parágrafo único da LEP (BRASIL, 2010), de visita

periódica aos estabelecimentos penais, que será objeto de análise mais detida. Nesse

particular, desde que a presença seja de fato constante e efetiva, funcionará o defensor público

como garante dos direitos humanos em locais de privação de liberdade, papel que ultrapassa

em muito a função de meramente propor os pedidos necessários perante as varas criminais

(em relação aos presos provisórios) e as varas de execução penal (no caso de condenados),

para alcançar a fiscalização do cumprimento do extenso rol de direitos que não deixam de

existir com a privação da liberdade.

De igual modo, sucede no relacionamento com o âmbito administrativo de execução da

pena, na medida em que o defensor público, pela atuação permanente no cárcere, conhece

como poucos o funcionamento das regras desse sistema, completamente alheio, muitas vezes,

às previsões legislativas e ao conhecimento da sociedade. Assim, converte-se no guardião dos

direitos fundamentais dos encarcerados, identificando mais facilmente as situações de

violação e acionando o Judiciário (ou mesmo as autoridades administrativas superiores) para a

recomposição dos direitos eventualmente violados ou ameaçados seriamente de lesão. De

efeito, situações de tortura são mais facilmente identificadas; descumprimento de direitos

básicos, como acesso a água, por exemplo, pode ser denunciado; dificuldades individuais de

convivência em determinada cela podem ser sanadas. Esses são exemplos de intervenção do

defensor público por meio de sua atuação extrajudicial, mas que podem se converter na

necessidade de acesso ao Judiciário (combinação com atuação judicial clássica).

283

No âmbito administrativo, ainda, há que se destacar a importância de participação

efetiva dos defensores públicos nos processos disciplinares, que podem funcionar como

relevantes instrumentos de perpetuação do cárcere. Uma decisão desfavorável, nesse caso,

representa impeditivo à concessão de vários institutos. Tratando especificamente da realidade

das prisões paulistas, mas que é replicada em todo o Brasil, Rafael Godoi conclui que a

sindicância é o processo que mais perfeitamente realiza o que Foucault (2017, p. 108) chama

de “soberania punitiva” da administração penitenciária, uma vez que ela torna o Judiciário um

mero avalista do procedimento, escapando-lhe o poder de determinar a qualidade e a duração

efetiva do período de reclusão, os direitos adquiridos e os lapsos aquisitivos de benefícios

prisionais. Os processos de sindicância – operacionalizados, soberana e fundamentalmente,

pelos agentes da administração penitenciária – constituem o meio mais generalizado para

assinalar pessoas e grupos de risco entre a população prisional, aos quais as penas serão

invariavelmente ainda mais duras e longas (GODOI, 2017, p. 116).

Por isso a LEP estatui em seu art. 59, caput¸ que, “Praticada a falta disciplinar, deverá

ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito

de defesa” (BRASIL, 1984). O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já proferiu Súmula no

mesmo sentido:

Súmula 533 - Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado. (BRASIL, 2015e).

São nulos, portanto, quaisquer procedimentos disciplinares que ocorram sem a presença

e efetiva participação do defensor público, nos casos nos quais não houver advogado

constituído, ou se demonstrada a sua desídia, quando a atuação se dará como órgão da

execução penal, conforme já explicado.

O defensor público, aqui, deve impedir que os processos disciplinares se convertam em

instrumentos de reafirmação do poder da administração prisional sobre os internos, que

normalmente se manifesta pela aplicação de punições desproporcionais e desconectadas do

devido processo legal. Nesse particular, são comuns: imposição de sanções coletivas quando

não se identifica a autoria (por exemplo, punição de todos os habitantes de uma cela, pela

existência de um aparelho celular em seu interior), aplicação de punições sem qualquer

284

razoabilidade, realização do processo disciplinar com uma defesa meramente formal86,

desconsideração de circunstâncias atenuantes, entre outras violações graves.

Quanto à atuação na inspeção de estabelecimentos prisionais, a LEP estatui em seu art.

81-B, incluído pela Lei no 12.313/2010 que: “O órgão da Defensoria Pública visitará

periodicamente os estabelecimentos penais, registrando a sua presença em livro próprio”.

(BRASIL, 2010). A lei estabelece a necessidade de visitas periódicas, diferentemente da

exigência dirigida aos juízes (art. 66, VII, LEP), membros do Ministério Público (art. 68,

parágrafo único, LEP) e conselhos da comunidade (art. 81, I, LEP), em relação aos quais a

exigência é de que seja mensal (BRASIL, 1984) e, no caso do Conselho Penitenciário, para o

qual não há periodicidade estabelecida (art. 70, II, LEP (BRASIL, 1984). Entende-se,

portanto, da interpretação dos citados dispositivos legais, que a presença dos defensores

públicos nos estabelecimentos prisionais deve ser mais constante do que a dos demais órgãos

de execução penal, até mesmo pelas razões apontadas neste experimento acadêmico stricto

sensu. Além da visita com a finalidade de atendimento e orientação jurídica, assim como para

atuar como garante de direitos humanos, funções analisadas anteriormente neste ensaio,

destaque-se a visita com a finalidade de inspecionar as condições de funcionamento do local

de aprisionamento, em cumprimento ao que o inciso V do art. 81-B reza, entre as

incumbências defensórias, a de “[...] visitar os estabelecimentos penais, tomando providências

para o adequado funcionamento, e requerer, quando for o caso, a apuração de

responsabilidade” (BRASIL, 2010).

Com a finalidade de uniformizar os procedimentos e práticas defensórias nessa seara,

foi concebido o Protocolo de Atuação da Defensoria Pública nas Inspeções em

Estabelecimentos Penais (DEFENSORIA NO CÁRCERE, 2019 b), no âmbito do Projeto

Defensoria no Cárcere, iniciativa do Ministério da Justiça, por meio do DEPEN, Secretaria de

Reforma do Judiciário (SRJ) e CNPCP, da DPU, do CONDEGE, da ANADEF e da

ANADEP87. No citado documento, estão demarcados alguns pontos de relevo, analisados a

seguir.

86 Rafael Godoi, após identificar em sua pesquisa o fato de que os advogados da FUNAP que trabalham na

unidade pouco participavam das sindicâncias para a apuração de faltas dos internos, refere que muitos internos relatam que prestaram depoimentos ou compareceram a oitivas sem a assistência de um defensor e que tudo o que falaram, na verdade, não teve consequência prática nenhuma, bastando a acusação do agente penitenciário para a imputação de culpa e punição (GODOI, 2017, p. 107).

87 Como consta no sítio da internet: “O programa tem como objetivo a reafirmação do papel do defensor público como órgão da execução penal, enquanto garantidor do direito à ampla assistência jurídica, bem como de fiscal

285

As inspeções não excluem a atribuição do defensor público de, sempre que necessário,

se dirigir ao estabelecimento penal para a averiguação de irregularidades circunstanciais ou

quaisquer outros aspectos pertinentes, bem como não se confundem com a atribuição dos

defensores públicos atuantes na área criminal de visitarem os estabelecimentos prisionais (art.

1º, §4º). Sobeja estabelecida, aqui, uma competência concorrente entre os vários defensores

públicos atuantes na esfera criminal, sejam eles dos núcleos especializados, sejam das

defensorias criminais, para reforçar a presença constante nas unidades prisionais. Além disso,

fixa a ideia de que a inspeção não pode ser um momento isolado de presença nos

estabelecimentos, não excluindo outras incursões periódicas.

De acordo com o art. 2º, cada inspeção será realizada por, no mínimo, três defensores

públicos, devidamente identificados, eventualmente acompanhados de integrantes do quadro

funcional de apoio e entidades convidadas, utilizando-se do modelo de relatório de inspeção

unificado, oriundo do Acordo de Cooperação nº 17/2011, firmado pelo Ministério da Justiça,

Senado Federal, Câmara dos Deputados, CNJ, Conselho Nacional do Ministério Público e

CONDEGE, observadas as alterações posteriores, sem prejuízo de observações

complementares, segundo as especificidades de cada Estado-Membro. As inspeções serão

realizadas sem prévia comunicação à Direção do estabelecimento penal, utilizando-se

preferencialmente dos veículos oficiais da Defensoria Pública (inciso II), realizadas, sempre

que possível, fora dos dias de visita e dos horários de alimentação das pessoas presas (inciso

III), por defensores públicos que não atuem habitualmente no estabelecimento inspecionado,

preferencialmente (inciso IV), devendo ser acompanhadas por defensores públicos com

atuação específica em direitos humanos, onde houver (inciso V).

A Defensoria Pública deverá organizar ou estimular a participação dos defensores

públicos responsáveis pelas inspeções em cursos de capacitações específicos sobre o tema, de

acordo com o inciso VI. Conforme o inciso VII, antes das inspeções, a Coordenação do

Núcleo Especializado reunirá as informações disponíveis e também relevantes sobre as

unidades penais a serem inspecionadas, proporcionando o adequado preparo da incursão, o

que deve incluir informações sobre a segurança do local. No curso das inspeções, os

defensores públicos portarão câmera com funções fotográfica e filmadora, sendo que, na

de estabelecimentos de privação de liberdade. Assim, o Programa Defensoria no Cárcere busca fomentar, aprimorar e uniformizar a atuação da Defensoria Pública nos estabelecimentos prisionais em todo o país e instrumentalizar o defensor público com ferramentas necessárias ao desempenho de sua função institucional, concedendo-lhe apoio para contribuir de forma efetiva na transformação da realidade do cárcere no Brasil”. (DEFENSORIA NO CÁRCERE, 2019 a).

286

hipótese de qualquer embaraço no ingresso ao estabelecimento penal oposto por seus

servidores, os defensores públicos certificarão o incidente, solicitarão da Direção documento

formalizando a negativa e, em seguida, acionarão o Núcleo Especializado e a Chefia

Institucional para as providências cabíveis, remetendo a estes órgãos os documentos

mencionados (inciso VIII).

Conforme os ditames do art. 3º, VI, encerradas as diligências, no prazo de 15 dias úteis,

os defensores públicos componentes da equipe emitirão relatório circunstanciado conclusivo

das atividades, instruído com todas as informações do questionário e imagens captadas,

enviando-o para a Coordenação do Núcleo Especializado, onde houver. Este ficará

responsável por efetivar o monitoramento das providências requeridas aos órgãos externos,

oficiando-os periodicamente, em prazo nunca superior a um mês, enquanto não solucionada a

demanda.

Não é vã a preocupação em estabelecer minucioso esquadrinhamento do funcionamento

de uma inspeção. É necessário um plano bem desenhado para a incursão em um universo

completamente distinto daquele com o qual estão acostumados os agentes públicos do sistema

de justiça. O cárcere e suas regras próprias de funcionamento fogem completamente à

compreensão de pessoas leigas e mesmo àquelas que ocuparam bancos acadêmicos dos cursos

de Direito, principalmente porque estes não têm qualquer preocupação, em regra, com a

formação teórica ligada à execução penal e, muito menos, com a formação de profissionais

conhecedores da realidade prisional, um ambiente quase exclusivo de presos e agentes

penitenciários, que criam as próprias regras de convivência, baseadas em uma relação de

poder e sujeição, muitas vezes ao arrepio das disposições constitucionais e também legais.

Ingressar no cárcere com a finalidade de perceber a sua realidade é atividade excessivamente

complexa e desgastante, física e emocionalmente, exigindo preparação prévia e disposição.

Não deixa de ser, contudo, uma atividade revigorante para o defensor público, na

medida em que reafirma a certeza da seletividade penal e faz nascer ou reforça a consciência

da necessidade de seu imediato combate, valendo-se de todas as armas possíveis estabelecidas

pela legislação e ditames éticos. Vivenciar o cárcere funciona, ademais, como indispensável

lenitivo a eventuais crises de consciência que podem, sazonalmente, ecoar no ser humano

defensor público, bombardeado diuturnamente por um discurso de ódio e discriminação

direcionado às pessoas presas e seus defensores.

287

4.5 Defensoria Pública como porta de acesso aos sistemas internacionais de

direitos humanos

A quinta perspectiva de atuação da Defensoria Pública no enfrentamento à

criminalização da pobreza é o acesso aos sistemas internacionais de direitos humanos,

especialmente o Interamericano. Assim, esgotadas as possibilidades internas de proteção,

resta a provocação dos organismos internacionais convencionados, que têm por garantia o

respeito à dignidade humana, o que restou bastante fortalecido após a Segunda Guerra

Mundial e o desenvolvimento do Direito Internacional dos direitos humanos, resultante do

protagonismo da pessoa como sujeito de direitos na esfera internacional e certa flexibilização

da ideia de soberania estatal.

De fato, com suporte no desenvolvimento dos sistemas internacionais de direitos

humanos e seu progressivo reconhecimento pelas ordens jurídicas internas, é inafastável a

ideia de que as instituições conduzam suas atuações balizadas pelas convenções internacionais

e compreendam a maneira de acessar os órgãos de monitoramento do cumprimento dos

direitos, a fim de possibilitar a convivência dialógica entre o sistema interno e o supranacional

de defesa dos direitos humanos (LOPES; BESSA, 2018, p. 137).

Com efeito, como percebe Marcelo Neves, o Estado, embora seja um locus fundamental

e indispensável de solução de problemas constitucionais, é apenas um dos diversos lugares em

cooperação e concorrência na busca do tratamento desses problemas, porquanto a integração

sistêmica sempre cada vez maior da sociedade mundial levou à desterritorialização de

problemas-caso jurídico-constitucionais, que se emanciparam do Estado (NEVES, 2014, p.

211). Concorda Piovesan (2015, p. 155), referindo-se ao sistema regional, com a ideação de

que aos parâmetros constitucionais devem ser somados os de ordem convencional, “[...] na

composição de um trapézio jurídico aberto ao diálogo, aos empréstimos e à

interdisciplinaridade, a ressignificar o fenômeno jurídico sob a inspiração do human rights

approach”.

Ocupando-se de uma a análise geral do sistema global88, têm ressalto o PIDCP, (ONU,

1966a) e o PIDESC, (ONU, 1966b), ambos de 1966, que representam densificações e

especificações dos princípios estabelecidos pela DUDH (ONU, 1948). De fato, esse último

88 No que diz respeito à estrutura e funcionamento do sistema interamericano (regional), remete-se ao subseção

3.2.1 da tese.

288

documento, apesar de sua relevância histórica como marco na internacionalização dos direitos

humanos e sua posterior incorporação ao Direito Internacional consuetudinário, bem como a

reafirmação de seus princípios nos diversos tratados que o sucederam, surgiu como mera

resolução da ONU e, por essa razão, teve sempre questionado o seu caráter vinculante pela

doutrina tradicional. Somente com a vigência dos pactos citados, bem como de seus

protocolos facultativos (esses, sim, autênticos tratados internacionais), pôde-se efetivamente

acessar o sistema internacional para a proteção de direitos humanos.

O Brasil incorporou o PIDCP somente em 1992, submetendo-se, então, ao Comitê de

Direitos Humanos, estabelecido pelo art. 28 (ONU, 1966), que tem como principal função o

monitoramento do cumprimento das obrigações estabelecidas no PIDCP. O PIDCP,

entretanto, não traz a possibilidade de denúncia de pessoas diretamente ao Comitê, o que

somente foi possibilitado pelo Protocolo Facultativo ao PIDCP (ONU, 1966 c), incorporado

pelo Brasil no ano de 2009, que em seu art. 1º estatui que

Os Estados Partes no Pacto que se tornem partes no presente Protocolo reconhecem que o Comitê tem competência para receber e examinar comunicações provenientes de particulares sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, por esses Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. (OUN, 1966c).

Como percebe Flávia Piovesan, o Comitê não se atém a declarar que resta caracterizada

a violação, podendo determinar a obrigação de reparar ou adotar medidas necessárias para a

observância do Pacto, embora não esteja prevista sanção para o descumprimento, restando

apenas power of embarrassment (PIOVESAN, 2013, p. 246), o que, embora não seja a

situação ideal, reforça a efetividade dos direitos do PIDCP, minimizando o caráter

programático de suas normas. Destaque-se, ademais, o fato de que o Comitê de Direitos

Humanos já concluiu que as comunicações de violações de direitos humanos podem ser

encaminhadas por organizações ou terceiras pessoas, que representem aquele que sofreu a

violação (PIOVESAN, p. 244). Abertas estavam, portanto, as portas para a inclusão da

Defensoria Pública como instituição viabilizadora do acesso de pessoas que tivessem direitos

vilipendiados ao Comitê de Direitos Humanos da ONU.

Buscando conectar a possibilidade de acesso aos sistemas internacionais de direitos

humanos com a previsão legislativa interna de concretização, a LC no 80/ 1994, com a

redação dada pela LC no 132, de 2009, em seu art. 4º, VI, estatui que é função institucional da

Defensoria Pública, entre outras, representar os sistemas internacionais de proteção dos

direitos humanos, postulando perante seus órgãos (BRASIL, 2009). Essa previsão legislativa

289

ganha ainda maior relevo no Brasil, pois, como ressalta José Guevara, apesar do intenso

compromisso dos governos e das organizações internacionais para lutar com vistas a erradicar

a pobreza, isso não corresponde à elaboração de mecanismos internacionais que permitam às

vítimas da pobreza exigir o cumprimento de seus direitos violados, nem fincar

responsabilidades aos responsáveis de produzir as ofensas (GUEVARA, 2006, p. 220).

A primeira posição que os defensores públicos devem adotar no exercício dessa

perspectiva é passar a invocar maciçamente os documentos internacionais de direitos

humanos e da jurisprudência emanada dos órgãos internacionais de monitoramento

(especialmente da CIDH e da CorteIDH), fazendo referência às interpretações, decisões,

opiniões consultivas e informes emitidos, seja nas peças processuais, seja nas manifestações

jurídicas ordinárias cotidianas (LEITE, 2014, p. 578). Esse modus operandi, além de chamar a

atenção para direitos estatuídos como consenso no Continente, reforçando, assim, a

importância de sua efetividade, deriva do chamado controle de convencionalidade, ao

determinar que “[...] autoridades dos Estados que ratificaram a Convenção Americana de

Direitos Humanos de 1969, ou Pacto de São José da Costa Rica, devem deixar de aplicar

norma nacional se contrária a essa convenção ou à interpretação que a CorteIDH faz dela”

(LOPES; CHEHAB, 2016, p. 83).

Sendo assim, na atuação tutelar clássica de enfrentamento à criminalização da pobreza,

representa importante reforço argumentativo a demonstração de que o eventual direito

descumprido ocupa lugar de destaque no Direito Internacional, sendo, portanto, objeto de

monitoramento por órgãos internacionais, que podem vir a ser acessados, caso permaneça o

descumprimento pelo Estado brasileiro. Será possível contribuir, por outro lado, para o

desenvolvimento de uma prática jurisdicional que não seja ensimesmada, limitada aos

instrumentos legislativos nacionais, mas que segue os parâmetros dos compromissos

assumidos pelo País perante a comunidade internacional. Proporciona-se, assim, que os

defensores públicos nacionais sejam também internacionais (do ponto de vista global) e

interamericanos (no que concerne ao âmbito regional).

Alegações de excesso de prazo nas prisões processuais, evocações do devido processo

legal, da presunção do estado de inocência, exigências de publicidade e fundamentação de

decisões judiciais, por exemplo, podem ser empalmadas nas petições de defesa, valendo-se

sempre do recurso às normas internas, por óbvio, mas devidamente reforçadas pelas regras

internacionais que igualmente preveem tais direitos. Conferem-se às autoridades, com efeito,

290

mais instrumentos para fundamentar suas decisões de modo a torná-las adequadas aos

documentos internacionais de direitos humanos, representando para o Judiciário, ao mesmo

tempo, reforço à sua legitimidade e uma maneira de robustecer a sua resistência às pressões

criminalizantes e punitivas advindas de setores da sociedade, os mass media e até mesmo de

representantes de outros poderes da República.

A Defensoria Pública é chamada, portanto, a cumprir importante papel de efetivação do

chamado transconstitucionalismo que, na doutrina de Marcelo Neves, significa o

reconhecimento de que as diversas ordens jurídicas, por estarem entrelaçadas na solução de

um problema-caso constitucional, que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar

maneiras transversais de articulação para solucionar o problema, cada uma delas observando a

outra, para compreender seus limites e possibilidades de contribuir para solucioná-lo

(NEVES, 2014, p. 211).

Além da atuação judicial clássica baseada nos tratados interamericanos, a Defensoria

Pública pode funcionar como instituição difusora dessas convenções, principalmente, no

âmbito regional, a CADH, seja na atuação diuturna perante o sistema de justiça, seja por meio

da educação em direitos, outro papel importante a ser desempenhado e que consiste no

empoderamento de pessoas e comunidades, especialmente as mais carentes, esclarecendo

sobre a existência e a relevância dos tratados internacionais, além do estabelecimento

conjunto de estratégias de apresentação de casos aos organismos internacionais de direitos

humanos (LOPES. BESSA, 2018, p. 139-140). Essa possibilidade de atuação é muito

importante, principalmente porque, como noticia Flávia Piovesan, todos os casos submetidos

à Comissão foram fruto de uma articulação a reunir vítimas e organizações não

governamentais locais e internacionais, com intenso protagonismo na seleção de um caso

paradigmático, na litigância deste (aliando estratégias jurídicas e políticas) e na

implementação doméstica de eventuais ganhos internacionais (PIOVESAN, 2015, p. 158).

A Defensoria Pública, portanto, tem todas as credenciais para protagonizar essa atuação

hoje desempenhada quase exclusivamente por organizações não governamentais, na medida

em que pode se valer de sua estrutura institucional, que há de funcionar como suporte para a

capacitação de defensores públicos de núcleos de direitos humanos especializados, além da

natural proximidade desses profissionais com as comunidades mais carentes, onde,

certamente, são diuturnas as violações a direitos humanos, aptas a gerar a provocação do

sistema internacional de proteção dos direitos humanos (LOPES; BESSA, 2018, p.140).

291

Ainda que dessa provocação não resulte decisão favorável, a simples apreciação do caso por

uma Corte internacional de direitos humanos já representa relevante vitória, porque, como

percebe Silva (2010, p. 111), o ônus argumentativo para rejeitar suas decisões é enorme.

Impõe-se destacar, ainda, que, em razão da amplitude dos efeitos da decisão de um tribunal

internacional, são originadas duas consequências: vinculação direta e obrigatória para o país

condenado e vinculação relativa – erga omnes – para todos os membros do modelo, que não

participaram do processo (HITTERS, 2014, p. 360).

Destaque-se, ainda, o caráter pedagógico causado pela simples movimentação do

sistema internacional, por provocar nos Estados uma tentativa de correção de rumos, como

meio de evitar o desgaste e a má impressão internacionais, inevitavelmente causados pelo

descumprimento de direitos humanos, rebaixando o Estado na escala civilizatória mundial

(LOPES; BESSA, 2018, p. 141) – isso sem se reportar ao fato de que a apresentação de uma

denúncia a um sistema internacional de direitos humanos provoca, regressivamente, no país

de origem, uma movimentação dos órgãos e instituições envolvidos no caso, a fim de evitar

que a denúncia tenha seguimento e que esses órgãos e instituições sejam apontados como

violadores de direitos humanos (LEITE, 2014, p. 579-580).

Esse aspecto é especialmente relevante no que diz respeito às violações ocorridas no

sistema carcerário nacional, já que são ofensas que historicamente se repetem sem um

posicionamento estatal sistêmico e efetivo de solução, em virtude da proverbial invisibilidade

das pessoas encarceradas, que continuam tratadas na qualidade de objeto da intervenção

punitiva estatal e não como sujeitos de direitos. Quando algum caso de gritante violação

chega a organismos internacionais de direitos humanos, costuma haver um “despertar” do

Estado e mesmo dos meios comunicacionais para a adoção de providências, como a maneira

de evitar o prosseguimento do fenômeno em âmbito internacional e constrangimento que isso

pode causar ao país.

De semelhante modo, sucede no que diz respeito ao enfrentamento às mortes

institucionais e à prática de tortura em Território Nacional. Como visto, são violações

gravíssimas a direitos humanos que acontecem reiteradamente e, o que é mais grave,

normalizadas, o que torna praticamente impossível encontrar uma solução no âmbito interno,

já que as instituições parecem anestesiadas pela necessidade de enfrentamento ao crime e, sob

esse pretexto, admitem qualquer modalidade de ação com esse objetivo, mesmo que isso

represente a desconsideração absoluta de direitos fundamentais, como a vida e a liberdade. O

292

acesso aos organismos internacionais de proteção de direitos humanos, destarte, parece ser o

último recurso para romper a inércia estatal no enfrentamento ao morticínio que vitima quase

exclusivamente pessoas das classes pobres e também agentes de segurança, embora em muito

menor escala. O Estado brasileiro precisa ser confrontado pela comunidade internacional,

principalmente com base na provocação da Defensoria Pública, a fim de finalmente adotar

comportamentos de respeito aos direitos. É inadmissível a inércia institucional da Defensoria

Pública nesse particular, porquanto são exatamente os seus assistidos que estão sendo mortos,

presos, torturados, de maneira irrefreada, normalizada.

Como exemplo da utilização dessa perspectiva de atuação institucional, as defensorias

públicas da Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e Rio

Grande do Sul levaram, em 2018, denúncia à CIDH por:

a) práticas de tortura e de aumento indefinido de prazo para a internação provisória de

adolescentes e jovens;

b) iniciativas parlamentares para tentar reduzir a chamada maioridade penal de 18 para

16 anos, e para aumentar para até dez anos o tempo máximo de internação, frisando

que as alterações legislativas que tramitam no Congresso brasileiro representam um

grave retrocesso à garantia dos direitos de crianças e adolescentes, e demandam a

urgente atenção da CIDH sobre o risco desta pauta legislativa;

c) ausência de resposta estatal para as mortes e suicídios dentro dos centros de

internação de adolescentes em todo o Território Brasileiro, apresentando três casos

emblemáticos para atenção da Comissão, no Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul

(JUSTIÇA GLOBAL, 2018).

É fundamental, contudo, como adverte Flávia Piovesan, no que diz respeito ao sistema

regional, fortalecer a efetividade do sistema interamericano, no que se refere à supervisão das

decisões da Corte ou Comissão, pois, diversamente do sistema europeu, não há mecanismo

específico para essa tarefa, cabendo aos próprios órgãos o follow up das decisões que eles

próprios proferem (PIOVESAN, 2015, p. 159). Observa-se, nessa perspectiva, outra atuação

possível da Defensoria Pública: a fiscalização constante e o acompanhamento do

cumprimento das decisões dos órgãos do sistema interamericano, valendo-se, para isso, dos

mecanismos internos e mesmo acessando novamente o sistema interamericano, se necessário

(LOPES; BESSA, 2018, p. 142). Isso porque, como leciona Pellegrini (2011, p. 102), o

descumprimento de decisões da CorteIDH representa um “nuevo ilícito internacional”.

293

Outra função importante a ser desempenhada pela Defensoria Pública é a obrigação de

apoiar iniciativas de implementação da CADH, ainda que estas sejam alvo de resistências de

setores comprometidos com um Estado mais repressor (LOPES; BESSA, 2018, p.142). Como

exemplo dessa possibilidade, pode ser citada a previsão das audiências de custódia, projeto

idealizado pelo CNJ, que determina a obrigatoriedade de apresentação do preso, sem demora,

à autoridade judiciária, em cumprimento ao estatuído no art. 5.7 da CADH89. De fato, tal

iniciativa recebeu intensa resistência dos órgãos nacionais de persecução penal, merecendo no

Ceará, a título de exemplo, nota técnica pela sua inconstitucionalidade por parte do Ministério

Público Estadual (LOPES; BESSA, 2018). “Cabe à Defensoria Pública, portanto, o papel de

contrapor-se a esse discurso, funcionando como instância de pensamento e ação garantidora

da efetivação da CADH, seja valendo-se dos fóruns de discussão próprios, seja pela utilização

dos meios judiciais necessários” (LOPES; BESSA, 2018, p.142).

Por fim, urge destacar a possibilidade de participação da Defensoria Pública como

amicus curiae nos processos em trâmite na CorteIDH, pois a vítima ou organização

denunciante não tem acesso direto à CorteIDH (somente a CIDH e os Estados-partes podem

acessá-la), mas o regulamento da CorteIDH, em seu art. 44 (CORTEIDH, 2009d), prevê a

figura do amicus curiae, cabendo perfeitamente a atuação da Defensoria Pública nesse

particular (LOPES; BESSA, 2018, p.143). Como já analisado a respeito dessa modalidade de

participação da Defensoria Pública nos processos coletivos, (subseção 4.3) tal vai ocorrer,

normalmente, na função de custos vulnerabilis, como instituição destinada à proteção dos

interesses de pessoas em situação de vulnerabilidade. Por outro lado, vai ser possível à

Defensoria Pública levar à CorteIDH situações de violações de direitos humanos ocorridas no

interior do Estado e que eventualmente escapem ao conhecimento e análise da CorteIDH,

contribuindo, dessa maneira, para a consolidação de uma jurisprudência que considere a

maior parte possível dos aspectos de um determinado problema-caso. Isso porque a

participação defensória no processo trará mais informações relevantes, além de olhares

específicos para o seu deslinde, principalmente por configurar um instituto cuja função é lidar

cotidianamente com a população mais pobre, angariando, assim, importante conhecimento de

aspectos que podem fugir à análise dos organismos internacionais de direitos humanos nos

casos concretos.

89 Art. 7 Liberdade pessoal. 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença

de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (OEA, 1969).

294

Como já advertido em outro estudo mais específico, em coautoria com Ana Maria

D’Ávila Lopes, não se busca atribuir à Defensoria Pública o papel de redentora dos direitos

humanos e de panaceia para a superação dos obstáculos de funcionamento dos sistemas

internacionais de direitos humanos e, especificamente, o interamericano, na medida em que

suas deficiências estruturais ainda são gigantescas e as tarefas cotidianas no exercício das

funções corriqueiras já absorvem a maior parte da energia e atenções dos defensores públicos,

ainda muito poucos para tão ingentes desafios (LOPES; BESSA, 2018, p.145). A exploração

dessas potencialidades no âmbito do sistema internacional de direitos humanos, contudo, abre

novas perspectivas de promoção e proteção, principalmente daqueles direitos ligados a ações

que representem criminalização da pobreza.

Analisadas as possibilidades e, principalmente, os obstáculos para o enfrentamento à

criminalização da pobreza, resta a percepção de Shimizu e Strano (2014, p. 394) de que o

defensor público, ao transcender uma atuação meramente processual para funcionar como

tensionador da malha do poder, provavelmente, jamais alcançará o resultado efetivo e

acabado de sua resistência, compreendendo que sua luta cotidiana tem muito mais relação

com os meios do que com os resultados, entendendo, enfim, sem que isso importe em

resiliência, que sua luta é infinita. Por fim, tal compreensão não se confunde com uma atitude

conformista, principalmente porque é importante considerar todas as vitórias alcançadas nessa

resistência cotidiana, quando se possibilita que a liberdade, pontualmente, vença o

encarceramento, o retorno ao lar suplante uma vivência insalubre e degradante no cárcere, a

tranquilidade do lar subjugue a invasão violenta, a voz dos pobres seja ouvida em ambientes

antes a ela proibitivos, a compreensão chegue onde antes havia ignorância, ou os corpos

torturados possam simplesmente descansar pela cessação dos tormentos, quando, enfim, ainda

que por alguns momentos, seja possível ver humanidade onde antes só se divisava degradação

e preconceito. “Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na

esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero” (FREIRE, 2014, p. 114).

CONCLUSÃO

A pobreza e a desigualdade social há muito constituem razão de estudo em todo o

mundo, assim como seu combate passou a constar entre os objetivos dos organismos

internacionais de direitos humanos, principalmente da ONU que, sob sua tutela, desenvolveu

uma série de documentos com a finalidade de conceituar o fenômeno da pobreza, assim como

de assumir o compromisso de erradicá-la. Inicialmente, a pobreza foi conceituada com

amparo em critérios estritamente monetários, o que não deixa de ser importante para o

estabelecimento de fundamentos definidores de políticas públicas, mas, posteriormente, houve

uma evolução para um conceito multidimensional, não se limitando à situação de renda, mas

para abranger a privação de capacidades básicas, aproximando-se de uma ideia de

vulnerabilidade social. No mesmo sentido, e com igual preocupação, vieram os documentos

internacionais do SIDH, desde a fundadora Carta da OEA, que estabeleceu a erradicação da

pobreza crítica como um de seus propósitos essenciais, passando por diversos outros tratados,

determinantes da pobreza como privação de direitos básicos a uma vida digna.

A pobreza no Brasil assume contornos dramáticos, tanto pela sua extensão como pela

sua persistência histórica. Após ser submetido à colonização portuguesa e passar por um

processo de independência, mesmo que sob a égide da Família Real (que instituiu um império

ainda dependente de potências estrangeiras), o Brasil chegou finalmente ao período

republicano, no derradeiro quartel do século XIX, quase ao mesmo tempo em que

formalmente aboliu a escravidão, com um atraso que enodoa a sua História. Nesse percurso

de mais de 500 anos narrado pela Historiografia patrial, as marcas de patrimonialismo,

clientelismo e exploração dos desfavorecidos tornaram-se características das quais a

sociedade brasileira ainda não conseguiu se desvencilhar, incluindo o Brasil no rol dos países

mais desiguais, sendo possível vislumbrar a convivência, às vezes, no mesmo quilômetro

quadrado das grandes cidades, de pessoas com padrão de vida digno dos países mais

desenvolvidos ao lado daquelas com níveis de desenvolvimento humano semelhantes ao da

África subsaariana.

296

Atentos a esse crônico problema, os legisladores constituintes de 1988 estabeleceram,

(no inciso III do artigo 1o), a dignidade da pessoa humana como um dos princípios

fundamentais da República Federativa; e, como seus objetivos fundamentais, no artigo 3º,

estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento

nacional (II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

regionais (III); promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação (IV) (BRASIL, 1988), todos afinados com a busca

da igualdade, além de elencar extenso (e não exaustivo) rol de direitos sociais destinados à

promoção da igualdade material, no art. 6 o.

Apesar dessa profícua normativa constitucional, a pobreza continua sendo causa e efeito

de violação de vários direitos fundamentais, na medida em que vulnerabiliza e expõe os

pobres aos mais diversos formatos de desrespeito à sua dignidade humana. Uma dessas

modalidades de desrespeito é a criminalização da pobreza, que pode ser definida como a

previsão de condutas em relação às quais o Estado ameaça responder com a imposição de

penas (criminalização primária) e a maneira como estas são efetivadas (criminalização

secundária), tendo como alvo pessoas das classes economicamente menos favorecidas.

A criminalização primária ocorre no momento da produção legislativa, quando são

selecionadas pelo Parlamento as condutas criminalizadas, propostas as gradações punitivas de

acordo com a gravidade do crime, além da fixação, na lei, de um tratamento processual penal

diferenciado, arrimado igualmente em uma escala valorativa, estabelecida a priori pelo

legislador. A criminalização secundária, a seu turno, ocorre quando se possibilita a ação

desproporcional ou injusta do poder punitivo sobre os pobres, desde a intervenção das

instituições de segurança pública (polícias, fundamentalmente) e do sistema de justiça

(Ministério Público, Judiciário e Defensoria Pública), ou de sua omissão quando deveriam

agir na proteção dos direitos dessas pessoas.

A criminalização da pobreza não é uma peculiaridade brasileira, sendo possível

identificar suas manifestações em vários países, como nos Estados Unidos, onde vigorou, em

alguns estados federados, por exemplo, a política de tolerância zero, com nítido enfoque

punitivo seletivo, por direcionar-se às camadas pauperizadas das cidades; assim como ocorre

em França, com espeque numa ação policial de viés mais repressivo contra os imigrantes e

seus descendentes, por meio de um controle ferrenho nos bairros onde eles se concentram. Da

mesma maneira sucede em vários países da América Latina, o que pode ser constatado em

297

decisões da CorteIDH, que condenou diversos Estados por práticas nas quais podem ser

identificados componentes de criminalização da pobreza e seletividade, nos moldes

conceituados nesta tese.

Releva deixar firmado o fato de que a criminalização da pobreza não é uma atitude

exclusiva do Estado, até mesmo porque as ações estatais são reflexos de uma cultura

legitimada no seio da sociedade, com calço em um preconceito social que, como se

demonstrou, é histórico e arraigado, com práticas que remetem, no Brasil, ao passado

escravagista. A atuação dos meios de propagação coletiva é outro indicativo de atuação

criminalizante da pobreza estranha aos quadros estatais. Quando destinados a funcionar como

instrumentos de reprodução de manifestações da criminalização da pobreza, os media

amplificam uma conduta discriminatória em relação aos mais pobres, em nítida função

desmobilizadora da democracia. Por outro lado, a cotidiana campanha de recrudescimento do

Estado penal, veiculada pelos instrumentos de propagação maciça contra determinados tipos

de crime (principalmente os ligados à proteção da propriedade) mal conseguem esconder o

compromisso com os patrocinadores desses media, muitos deles representantes de produtos

ligados à segurança privada, alimentando, com efeito, uma “indústria de controle do crime”.

A pobreza, com sua criminalização, portanto, foi o tema de que se ocupou o capítulo

primeiro desta tese, resultando em um segmento de fecho, no qual ficou assentada a

contrariedade da criminalização da pobreza com o Estado Democrático de Direito. De fato,

dois dos principais sustentáculos desse tipo de Estado são exatamente a proteção à dignidade

humana e o tratamento igualitário de todos. Assim, quando há atitudes (estatais ou não) que

desconsideram a humanidade de determinadas parcelas da população, por meio de atitudes

seletivas, a um só tempo resultam ofensas à necessidade de igualdade (paridade de estimação

social das pessoas) e, em última análise, à própria dignidade humana.

O capítulo segundo cuidou da seletividade penal e suas manifestações no Brasil. Com

aporte nos fundamentos expressos, arrematou-se a ideia de que a seletividade penal significa a

opção pelo direcionamento do poder punitivo contra grupos determinados e determináveis de

maneira desproporcional, ao mesmo ponto em que não são destinados os mesmos esforços

para prever e impor normas penais sobre outros grupos, que igualmente ofendem a ordem

jurídica estabelecida. Assim, ante a impossibilidade fática de punição de todos os desvios,

somada à falta de interesse por imposição de castigo àqueles que ocupavam ou gravitavam em

298

torno do poder, selecionam-se os pobres a serem colhidos pela vingança pública, a fim de

reafirmar o poder punitivo, estabelecendo-se, de maneira exemplar, o controle social formal.

No Brasil, tal opção seletiva produz injúrias sociais muito mais profundas, já que a

população perseguida preferencialmente pelas instituições de controle representa a maior

parte da sociedade. Ademais, o percurso histórico desta Nação ajuda a explicar os

comportamentos seletivos atualmente adotados. O passado colonial brasileiro herdou um

tratamento discriminatório e criminalizante em relação aos índios, inicialmente, e aos negros

escravizados, posteriormente, inscrevendo um imaginário de criminalização de suas condutas

que se sedimentou historicamente. Durante o Império, o medo das insurreições negras

incensou a perseguição aos oriundos da África e aos seus descendentes, mesmo aqueles que

conseguiam se libertar do jugo da escravidão, associando-os aos problemas de segurança

pública verificados na época. O período republicano, inaugurado logo após o fim da

escravidão, não foi capaz de superar o tratamento discriminatório até então verificado e,

embora, em alguns momentos, tenha se direcionado contra setores médios da sociedade, por

pretextos políticos (como nos períodos ditatoriais), manteve o tratamento desigual conferido

às camadas desfavorecidas, que continuaram sendo alvo do controle social e da

estigmatização. A criminalização da pobreza na nascente República do Brasil continuou

ocorrendo a modo de compensação à perda de propriedade sobre os escravos e de manutenção

da autoridade das classes proprietárias sobre os libertos e seus descendentes.

Como consequência, os instrumentos de controle social passaram a direcionar-se aos

mais pobres. O cárcere é somente mais um deles. Uma observação simples nas prisões

brasileiras é suficiente para identificar a quem elas se destinam. A habitação quase exclusiva

de pobres é a face mais explícita do tratamento criminalizante que se confere à pobreza e

constitui a prova definitiva da seletividade penal. O discurso de ressocialização (inclusive

legislativo) é inócuo para esconder as péssimas condições às quais são submetidos os presos

brasileiros, em status quo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, pelo

fato de representar sistêmica e massiva situação de descumprimento de rol extenso de direitos,

principalmente encartados como fundamentais pela Constituição Federal, em evidente

desconsideração da humanidade dos encarcerados.

A seletividade penal adotada pelo Estado e estimulada pelos mass media, formadora de

sólido consenso social, igualmente contribui para um tratamento de pessoas pobres que pode

desaguar na imposição de intensos sofrimentos (tortura) ou mesmo na execução extrajudicial

299

ou desaparecimento forçado, consequências quase naturais dos processos de desumanização

ou invisibilização de que são objeto. Desse modo, duas condutas que, no presente momento

histórico, foram banidas das previsões legislativas internacionais (e também da maioria dos

Estados nacionais) e, mais do que isso, que constam como abomináveis nos discursos em todo

o mundo, a execução extrajudicial e a tortura prosperam amplamente, sendo empregadas

pelos caminhos subterrâneos do exercício do poder punitivo, em decorrência da função que

cumprem.

Depois de verificados os fenômenos da criminalização da pobreza e da seletividade

penal, eis a propositura do estudo ora relatado para o estabelecimento de seu objetivo

principal: a verificação do papel constitucional da Defensoria Pública na resistência contra

essas graves ofensas à dignidade humana. O capítulo terceiro, portanto, possibilitou se

concluir que essa instituição, consolidada na Constituição de 1988, representou a superação

de um mero assistencialismo que historicamente caracterizou a assessoria jurídica no Brasil,

sendo atualmente dotada de crescentes responsabilidades no papel de assistência jurídica

integral e gratuita daqueles que comprovam insuficiência de recursos. Ademais, a redação

original do artigo 134, que, de modo singelo (mas não menos importante), atribuía à

Defensoria Pública o papel de dar efetividade ao direito fundamental encartado no art. 5º,

LXXIV da Constituição Federal de 1988, foi substituída, com a EC no 80/2014, por outra que

ampliou seu papel constitucional e a consolidou como instituição permanente, essencial à

função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime

democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a

defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, integral

e gratuitamente, aos necessitados.

A atual previsão constitucional destinada à Defensoria Pública, dessa maneira, amplia o

rol de atribuições relacionadas à assistência jurídica integral e gratuita e ao acesso à justiça,

tornando o atual modelo o mais abrangente da história constitucional brasileira e um dos mais

avançados do mundo na proteção dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Supera-se, de

efeito, uma visão de acesso à justiça que se confunde com a chegada ao Judiciário, para

estabelecer uma nova perspectiva, mais ampla, de aportar à ordem jurídica justa. Na busca por

alcançar esse objetivo, a Defensoria Pública tem que ser dotada de condições materiais,

estruturais e humanas para atuar no desempenho de suas atribuições tutelares clássicas, cuja

importância deve ser sempre ressaltada, principalmente para o ser humano carente que

necessita do acesso imediato a um direito, mas acrescida de outras esferas de atuação, tais

300

como: extrajudicial, transindividual, na educação em direitos humanos e perante os órgãos

internacionais de proteção dos direitos humanos.

É exatamente nessa perspectiva que o capítulo quarto foi elaborado, para a constituição

de paradigmas específicos de atuação na resistência à criminalização da pobreza e à

seletividade penal. Por meio da atuação tutelar clássica, portanto, o defensor público exerce,

na seara penal, a maior parte de suas atribuições, funcionando como escudo contra a

criminalização da pobreza e seletividade penal desde o momento da prisão em flagrante,

passando pelo processo penal e culminando na execução da pena, velando pelos direitos

fundamentais dos desvalidos que forem alcançados pelo poder punitivo estatal,

principalmente pelos princípios do devido processo legal e da presunção do estado de

inocência e seus respectivos corolários.

Em segundo lugar na exposição, fixou-se a importância da educação em direitos como

instrumento de empoderamento dos vulneráveis para uma atitude de resistência à sua injusta

criminalização, que pressupõe uma atuação dirigida à preparação das pessoas para o exercício

de seus direitos, por meio de comportamentos proativos dos veiculadores do conhecimento

sobre estes. Inicia-se esse exercício pela identificação, difusão e denúncia de atuações estatais

e sociais de criminalização da pobreza, desvelando-a ante os olhos daqueles que

eventualmente sejam vítimas dela, uma vez que, em muitas oportunidades, eles nem sequer

têm essa consciência. De outra vertente, apenas vai ser possível uma educação em direitos

efetiva se o defensor público não se afastar da sua real razão de existir: a população pobre,

cuja voz necessita da continuada atuação defensorial, nos foros de justiça, a fim de que o seu

discurso seja levado em consideração, mesmo quando não proferido com o dialeto exigido

pelo sistema de justiça. Não se pode, ademais, partir de um comportamento paternalista,

tributário da falsa ideia de que aos defensores públicos cabe o papel de introjetar o

conhecimento em uma massa de ignorantes que serviria apenas de receptáculo e reprodução

acrítica das ideias postas (e impostas) em uma relação vertical de subordinação.

Conclui-se, ainda, sobre a importância da atuação transindividual, que, sem

desconsiderar a proteção individual, possui enormes vantagens de efetividade e economia, ao

chegar a um número considerável de pessoas. Com essa mentalidade, urge uma vivência

compartilhada entre defensores públicos e populações mais pobres, a fim de que essas

demandas sejam conhecidas e igualmente sentidas, no dia a dia. Na resistência aos excessos e

à seletividade do poder punitivo, portanto, a atuação transindividual deve emergir da atuação

301

constante dos defensores públicos nas comunidades carentes, nos cárceres masculinos e

femininos, nas delegacias e seus xadrezes, nos estabelecimentos de internação de

adolescentes.

Restou sedimentada, ainda, a relevância da atuação extrajudicial, encontrada na

preferência pela solução extrajudicial dos conflitos por métodos alternativos (mediação,

conciliação, arbitragem), arrimada em previsões legais e da proximidade dos defensores

públicos dos problemas das comunidades e dos movimentos sociais, bem como por meio de:

orientação jurídica; atuação em processos administrativos disciplinares; participação em

conselhos; convocação de audiências públicas; inspeções de locais de privação de liberdade.

Tudo isso pressupõe a inserção dos defensores públicos nas comunidades, por meio da

capilarização da instituição, possibilitando que o contato direto do defensor público com a

comunidade torne mais fácil para o Estado mourejar em determinadas localidades com um

histórico de abandono e que já criaram os próprios meios de solucionar seus problemas de

acesso aos bens, que deveriam ser públicos e universais. Do contato cotidiano com as

situações de criminalização da pobreza, será possível identificar meios de composição dos

conflitos que possam ser solucionados por essas vias. De outra parte, será possível, de modo

mais eficiente e célere, transmitir orientação jurídica para os destinatários dos serviços

defensoriais. Tal modo de proceder aufere alçada relevância no ambiente prisional, território

naturalmente impermeável às notícias do mundo extramuros, o que torna os encarcerados

pessoas anda mais ansiosas por informações, principalmente relacionadas com a sua situação

processual e ensanchas de retomar a liberdade.

Como última faceta específica de atuação, firmou-se no estudo a importância da

Defensoria Pública como porta de acesso aos sistemas internacionais de proteção dos direitos

humanos, principalmente o interamericano, como recurso último de resistência às situações de

desrespeito de direitos convencionados internacionalmente, em particular, quando

representem modos de criminalização da pobreza. Nessa perspectiva, os defensores públicos

precisam tornar rotineira, em suas peças processuais e manifestações cotidianas, a referência

aos documentos internacionais de direitos humanos (inclusive à jurisprudência), de molde a

inserir nas discussões jurídicas, processuais ou não, os parâmetros do Direito Internacional de

proteção aos direitos humanos. Por outro lado, devem atuar os defensores públicos como

instrumentos para difusão, monitoramento e chancela das disposições das convenções

302

internacionais de direitos humanos e das iniciativas de seus órgãos exteriores de execução,

primando pela efetivação do transconstitucionalismo90.

Para que os objetivos dessa ingente tarefa de resistir à criminalização da pobreza sejam

alcançados, é indispensável modificar as posições estatais nesse sentido, além de se firmar

real compromisso com o fortalecimento das defensorias públicas, de sorte que os recursos

destinados para o desempenho de suas funções institucionais sejam compatíveis com os

direcionados aos demais órgãos do sistema de justiça. Ademais, há que se exigir a adoção de

comportamentos pelos membros da Instituição que se coadunem com o cumprimento de seus

objetivos na defesa dos direitos das pessoas em situação de desvantagem social: proximidade,

empatia, escuta e ação proativa, de modo que jamais se afastem da sociedade, ancorados em

privilégios injustificáveis. É preciso, ainda, que a técnica de selecionar os defensores públicos

e demais servidores prime pelo conhecimento das soluções de circunstâncias cotidianas de

ofensa aos direitos dos necessitados, além da exigência de sólida formação humanística, em

preferência ao conhecimento de soluções de problemas formulados por bancas especializadas,

que somente concorrem para a formação de indústrias de concursos públicos, que abarrotam

os cargos do sistema de justiça daqueles com interesses meramente pessoais, sem qualquer

compromisso com o cumprimento dos propósitos institucionais.

Não se espera, ao final, que a Defensoria Pública seja a sacrossanta instituição cuja

missão é redimir as posturas estatais de todos os seus males. Suas deficiências e fragilidades,

que também são de seus membros, precisam ser constantemente denunciadas, combatidas e

minimizadas. É possível acreditar, entretanto, na possibilidade – que se espera reforçada por

este estudo - de conceber uma Defensoria Pública que desempenhe adequadamente seu papel

de resistência à criminalização da pobreza, mercê do ofício a si conferido pela Constituição

Federal e da atuação diuturna verificada em todo o Brasil por defensores públicos que, em

número muito inferior ao necessário, funciona como poderoso instrumento de inclusão social

e acesso efetivo à justa ordem jurídica.

90 O conceito é de Marcelo Neves e encontra-se no tópico 4.5 desta tese.

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