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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR
LEANDRO SOUSA BESSA
O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA
FORTALEZA
2019
LEANDRO SOUSA BESSA
O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD), da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito Constitucional. Área de Concentração: Direito Constitucional Público e Teoria Política. Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria D'Ávila Lopes.
FORTALEZA 2019
LEANDRO SOUSA BESSA
O PAPEL CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
BRASILEIRA NA RESISTÊNCIA À CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA Tese julgada e aprovada para obtenção do título de Doutor em Direito Constitucional, outorgado pela Universidade de Fortaleza. Área de Concentração: Direito Constitucional Público e Teoria Política.
Aprovada em: __/__/2019
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria D'Ávila Lopes
(Orientadora/Universidade de Fortaleza - UNIFOR)
______________________________________________ Prof. Dr. Martônio Mont'Alverne Barreto Lima
(Membro/Universidade de Fortaleza - UNIFOR)
______________________________________________ Prof. Dr. Newton de Menezes Albuquerque
(Membro/Universidade de Fortaleza - UNIFOR)
______________________________________________ Prof. Dr. Bruno Queiroz Oliveira
(Membro/Centro Universitário Christus - UNICHRISTUS)
______________________________________________ Profa. Dra. Cynara Monteiro Mariano
(Membro/Universidade Federal do Ceará - UFC)
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, professora Dra. Ana Maria D´Ávila Lopes, por todo o incentivo
para o ingresso no doutorado e pela solicitude, comprometimento e afinco com que
acompanhou o desenvolvimento de toda a pesquisa.
A meus pais, Bessa e Lucimeire, por todo o suporte emocional e intelectual, assim como
pela atenção quase ininterrupta, desde meus primeiros passos, na luta pela solidificação de
meus princípios éticos.
À minha filha Lis, por ser meu maior presente e por me desafiar todos os dias a ser uma
pessoa melhor, com sua natureza questionadora.
À minha esposa Lívia Lessa, que, além de ser minha fonte de inspiração constante, tão
bem representa para mim o paradigma de defensora pública, mesmo exercendo seu mister em
condições tão adversas.
A meus irmãos, Mário Bessa e Victor Bessa (in memorian), pelo companheirismo de
todas as formas demonstrado, mesmo que às vezes sem palavras.
A todos os meus tios, em especial, a Dayse Maria Bessa Rodrigues (in memorian) e
Francisco José Loyola Rodrigues, que cultivaram em mim o prazer pela leitura e a ampliação
de conhecimentos como alicerces indispensáveis para a construção de um mundo mais justo.
À Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará (ADPEC) e à Defensoria
Pública-Geral do Estado do Ceará, pelo apoio e incentivo dispensados, assim como pelo
custeio, por essa última, de todo o curso de Doutorado em Direito Constitucional da
Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Ao Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), pela compreensão quando da
necessidade de afastamento temporário para o desenvolvimento da tese.
À minha amiga Andréia Costa, pelo incentivo e apoio permanentes, pela mão sempre
estendida, mesmo quando os naturais contratempos esmaeciam minhas forças.
A todos que compõe o Centro de Justicia y Derechos Humanos, da Universidade
Nacional de Lanús (Argentina), especialmente à Profa. Dra. Victoria Kandel e Joaquín S.
Goméz, pelo acolhimento, sugestões e direcionamentos durante os três meses de pesquisa
resultante do Edital 22/2014 – Programa de Cooperação Internacional CAPES/MINCYT, com
a Universidad Nacional de Lanús.
“Quando você for convidado pra subir no adro Da fundação casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados [...] E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo Diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos [...] Pense no Haiti, reze pelo Haiti O Haiti é aqui O Haiti não é aqui.”
(Haiti, Caetano Veloso) “Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los ningunos, los ninguneros, corriendo la liebre, muriendo la vida, jodidos los nadies, jodidos: Que no son, aunque sean. Que no hablan idiomas, sino dialectos. Que no practican religiones, sino supersticiones. Que no hacen arte, sino artesanía. Que no aplican cultura, sino folklore. Que no son seres humanos, sino recursos humanos. Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Que no tienen cara, sino brazos. Que no tienen nombre, sino número. Que no figuran en la historia universal, sino en la crónica roja de la prensa local. Los nadies: los hijos de nadie, los dueños de nada. Los nadies: los nada, los nadies, que cuestan menos que la bala que los mata.”
(Los nadie, Eduardo Galeano)
RESUMO
O fenômeno da criminalização da pobreza representa um pensar e um agir orientados por uma pretensa certeza, construída por um discurso eficiente, de que os “indesejáveis sociais” (pobres) são os responsáveis por todos os males, eleitos como inimigos preferenciais, na maioria das vezes de forma velada, mas muitas vezes expressamente. As reações estatais ao avanço da criminalidade, aplaudidas por amplos setores da sociedade, convertem-se em manifestações casuísticas de recrudescimento da repressão penal direcionadas seletivamente contra os pobres, em detrimento de políticas públicas aptas a atingir as causas do problema. Nesse contexto, o objetivo desta tese foi apresentar propostas de atuação da Defensoria Pública aptas a possibilitar uma resistência à criminalização da pobreza, com esteio na missão delineada para essa Instituição pelo legislador constituinte, para garantir o assessoramento jurídico às pessoas economicamente fragilizadas. Utilizou-se o método dedutivo, visto que, partindo-se de análises gerais sobre o fenômeno da pobreza e sua criminalização, bem como da estrutura e atribuições da Defensoria Pública brasileira, chegou-se à específica construção de um paradigma de atuação dessa Instituição para a resistência à criminalização da pobreza, valendo-se, para tanto, dos instrumentos normativos existentes. A pesquisa foi do tipo bibliográfica, por meio de consulta a livros, revistas científicas, jornais, sites etc., bem como documental, por meio da análise de documentos oficiais relacionados ao tema. A pesquisa resultou na construção de novos paradigmas de atuação da Defensoria na seara penal, com ênfase em cinco grandes eixos: 1) a atuação judicial clássica: como instância de proteção e defesa dos economicamente vulneráveis; 2) a educação em direitos como instrumento de empoderamento dos vulneráveis, servindo a Defensoria Pública de meio de difusão do conhecimento de direitos, possibilitando aos pobres o caminho adequado para o seu efetivo exercício; 3) a atuação transindividual, por meio da qual a Defensoria converte-se em instituição de proteção de direitos coletivos dos pobres; 4) atuação extrajudicial e suas múltiplas possibilidades; 5) a atuação perante os sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos. Nesse sentido, buscou-se o delineamento de atuações da Defensoria Púbica que representem, na resistência à criminalização da pobreza, a concretização de seus objetivos de instituição defensora de direitos humanos, como expressão e instrumento do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Defensoria pública. Criminalização da pobreza. Seletividade penal.
ABSTRACT
The phenomenon of poverty’s criminalization represents a thinking and action guided by a presumed certainty, built by an eficiente discourse that the “social undesirables” (poor) are responsible for all evils, elected as preferential enemies, most often veiled but often expressly. State reactions to the advance of criminality, applauded by broad sectors of society, have become casuistic manifestations of criminal repression selectively directed against the poor, in detriment of public policies capable of reaching the causes of the problem. In this context, the purpose of the present thesis was to present proposals of action by the Public Defender Office, capable of providing a resistance to the criminalization of poverty, based on the mission outlined by the constituent legislator to ensure legal advice to economically weak people. The deductive method was used, based on general analyzes on the pheonomenon of poverty and its criminalization, as well as the structure and attributions of the Brazilian Public Defender Office, the specific construction of a paradigm of this Institution’s action to resist the criminalization of poverty, using, therefore, the existing normative instruments. The research was of the bibliographic type, through consultation of books, scientific journals, newspapers, websites, etc, and also documentary, through the analysis of oficial documents related to the theme. The research resulted in the construction of new paradigms for Public Defender actions in Penal area, with emphasis on five main axes: 1) The classic judicial action: as an instance of protection and defense of the economically vulnerable; 2) education in rights as an instrument for the empowerment of the vunlerable, serving the Public Defender Office to disseminate the knowledge of rights, making the poor the right way for them to exercise effectively; 3) the transindividual performance, through which the Public Defender Office becomes an institution for the protection of the collective rights of the poor; 4) extrajudicial performance and its multiple possibilities; 5) the performance of international human rights protection system. In this way, we sought to outline the activities of the Public Defender Office that represent, in resistance to the criminalization of poverty, the achievement of its objective as an institution that defends human rights, as an expression and instrument of the Democratic State of Law. Keywords: Public defender. Criminalization of poverty. Penal selectivity.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIDEF Associação Interamericana de Defensores Públicos
ANADEF Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais
ANADEP Associação Nacional dos Defensores Públicos
Art. Artigo
BID Banco Interamericano para o Desenvolvimento
BPC Benefício de Prestação Continuada
CADH Convenção Americana sobre Direitos Humanos
CBMCE Corpo de Bombeiros Militar do Ceará
CEDH Convenção Europeia dos Direitos do Homem
CEJIL Centro Pela Justiça e o Direito Internacioal
CELS Centro de Estudos Legislativos e Sociais
CEPAL Comissão Econômica para América Latina e Caribe
CF Constituição Federal
CF/88 Constituição Federal de 1988
CGJ-PI Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Piauí
CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CIOPAER Coordenadoria de Inteligência e Coordenadoria Integrada de Operações
Aéreas
CJI Comitê Jurídico Interamericano
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CNPCP Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
CONAMP Associação Nacional dos Membros do Ministério Público
CONDEGE Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais
COPOL Coordenadoria Integrada de Planejamento Operacional
CorteIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos
CPP Código de Processo Penal
CTV Centro de Triagem de Viana
DEPEN Departamento Penitenciário Nacional
DEPEN/MJ Programa Defensoria sem Fronteiras, um acordo de cooperação técnica entre o
Departamento Penitenciário Nacional
DPU Defensoria Pública da União
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos
EC Emenda Constitucional
EUA Estados Unidos da América
FAO Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
GMF Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
LC Lei Complementar
LEP Lei de Execução Penal
LONDP Lei Orgânica da Defensoria Pública
NADEP Núcleo Especializado de Assistência e Defesa ao Preso
ODM Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
ODS Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
OEA Organização dos Estados Americanos
OIT Organização Internacional do Trabalho
OL Lei Orgânica
OMS Organização Mundial da Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
PARLATINO Parlamento Latinoamericano e Caribenho
PBSM Programa Brasil sem Miséria
PC Polícia Civil
PCC Primeiro Comando da Capital
PIDCP Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PIDS Programa Interamericano para o Desenvolvimento Sustentável
PM Polícia Militar
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPC Paridade de Poder de Compra
RE Recurso Estraordinário
RIPS Rede Interamericana de Proteção Social
SEJUS Justiça e Direitos Humanos
SIDH Sistema Interamericano de Direitos Humanos
SNPCT Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
SSP Secretarias Estaduais de Segurança Pública
SSPDS Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social
STF Supremo Tribunal Federal
TAC Termos de Ajustamento de Conduta
TSE Tribunal Superior Eleitoral
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 14
1 POBREZA: MARCO CONCEITUAL E EXPRESSÕES DE SUA
CRIMINALIZAÇÃO................................................................................................ 20
1.1 Pobreza: uma aproximação conceitual............................................................... 20
1.1.1 O tema pobreza no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) ...................... 27
1.1.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH): previsão e combate à
pobreza ....................................................................................................................... 32
1.1.3 A pobreza brasileira ................................................................................................... 38
1.2 Criminalização da pobreza: conceito e espécies ...................................................... 43
1.2.1 Criminalização primária da pobreza........................................................................... 47
1.2.2 Criminalização secundária ......................................................................................... 54
1.3 Manifestações da criminalização da pobreza no mundo atual ................................ 67
1.4 O papel dos mass media na criminalização da pobreza ......................................... 777
1.5 Criminalização da pobreza e incompatibilidade com o Estado Democrático de
Direito ........................................................................................................................ 87
2 SELETIVIDADE PENAL E SUAS MANIFESTAÇÕES NOBRASIL ................ 107
2.1 Seletividade penal ................................................................................................... 107
2.2 A seletividade penal na história brasileira ............................................................. 117
2.2.1 O período colonial .................................................................................................... 119
2.2.2 O período imperial.................................................................................................... 122
2.2.3 O período republicano .............................................................................................. 127
2.3 O cárcere como instituição destinada aos mais pobres.......................................... 142
2.4 Execuções extrajudiciais e tortura ....................................................................... 1633
2.4.1 Execuções extrajudiciais ........................................................................................... 164
2.4.2 Tortura ..................................................................................................................... 174
3 DEFENSORIA PÚBLICA: FUNÇÕES FUNDAMENTAIS ................................. 185
3.1 A Defensoria Pública brasileira .............................................................................. 185
3.1.1 A Defensoria Pública ontem e hoje ........................................................................... 186
3.1.2 A Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988 (CF/88): instituição
promotora do acesso à justiça e dos direitos fundamentais das pessoas em situação
de vulnerabilidade .................................................................................................... 197
3.1.3 A Lei Orgânica da Defensoria Pública (LONDP) ..................................................... 207
3.2 Atuação internacional da Defensoria Pública: a Defensoria Pública da União
(DPU) e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) ........................ 212
3.2.1 O SIDH: estrutura e funcionamento .......................................................................... 212
3.2.2 A atuação interamericana da Defensoria Pública: DPU e Associação
Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF) ..................................................... 219
4 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA Na RESISTÊNCIA À
CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E À SELETIVIDADE PENAL ................ 230
4.1 A atuação judicial clássica: a Defensoria Pública como instância de proteção e
defesa dos vulneráveis na esfera penal ................................................................... 233
4.2 A educação em direitos como instrumento de empoderamento dos vulneráveis.. 247
4.3 A atuação transindividual ...................................................................................... 258
4.4 A relevância da atuação extrajudicial .................................................................... 273
4.5 Defensoria Pública como porta de acesso aos sistemas internacionais de
direitos humanos ..................................................................................................... 287
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 295
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 303
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 (CF/88), resultado de um compromisso entre as forças
sociais dominantes no período pós-ditadura militar, marca, em terras brasileiras, um momento
de ressignificação das constituições, com procedência em profundas alterações na forma de
interpretar e aplicar o Direito, reaproximando-o da moral e entronizando a dignidade da
pessoa humana como princípio fundamental, submetendo à sua observância toda a atividade
estatal. Esta constatação vale tanto para uma perspectiva negativa como positiva. Em outras
palavras, cabe aos órgãos estatais abster-se de interferir na esfera individual, bem como usar
de todo o seu aparato para evitar que terceiros, mesmo que no uso de sua liberdade, afrontem
a dignidade de qualquer pessoa.
A partir dessas premissas teóricas, portanto, posturas que confiram distinta dignidade
aos indivíduos, conforme sua classe social, tomando aqueles econômica e socialmente
vulneráveis por objetos e não sujeitos de direitos, desconsideram o valor dignidade humana,
na perspectiva kantiana de que o homem existe como um fim em si mesmo, não simplesmente
como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Por outro lado, segregar grupos
sociais, tratando-os como inimigos e apontando-os como responsáveis exclusivos pela
insegurança pública, somente contribui para o aprofundamento do problema.
Diante do clamor social no aguardo por respostas imediatas e eficazes à criminalidade,
as reações estatais convertem-se em manifestações casuísticas de recrudescimento da
repressão penal, aplaudidas por amplos setores da sociedade, em detrimento de políticas
públicas aptas a atingir as causas do problema. Assim, em vez de investimentos maciços em
educação, saúde, lazer, fortalecimento de vínculos familiares e geração de empregos, o Estado
brasileiro – movido pelo apelo público incensado pela mídia sensacionalista – prefere
aumentar a severidade das penas e alargar o campo de incidência do direito penal,
desconsiderando décadas de pesquisas criminológicas importantes e atacando princípios
basilares da moderna ciência penal, relacionados ao garantismo, ao qual são caras as ideias de
intervenção mínima, fragmentariedade e lesividade.
15
A mais visível e trágica consequência dessa opção pela punição desmedida e
desproporcional é o surgimento de uma “cultura do encarceramento”, que contamina os
órgãos legislativos e jurisdicionais, em evidente confusão entre justiça e prisão. O que torna,
entretanto, a situação mais dramática é que essa postura repressiva tem um alvo muito claro: a
população pobre, conforme demonstram as sucessivas pesquisas desenvolvidas nessa seara e
das quais se ocuparão esse estudo.
Tal ação direcionada e seletiva é praticada, principalmente, pelo Estado que, em pelo
menos três momentos distintos, olvida direitos humanos: primeiro, ao deixar à margem da
sociedade a maioria da população, sem acesso aos bens e serviços públicos básicos; segundo,
ao direcionar maior rigor legislativo e jurisdicional a determinados crimes contra o patrimônio
e de uma das específicas modalidades de tráfico de drogas, em evidente opção de proteção aos
indivíduos detentores de bens; terceiro, pela opção por um encarceramento em massa
(geralmente da população marginalizada), em um sistema prisional absolutamente precário,
no qual a dignidade da pessoa humana é desconsiderada.
A opção pelo desenvolvimento de normas criminalizantes ou por um tratamento penal
mais severo de determinadas condutas ligadas à classe social desfavorecida é a primeira
demonstração da criminalização da pobreza (criminalização primária). Em seguida, o
tratamento conferido aos pobres pelos órgãos de segurança pública e do sistema de justiça,
resultante no exponencial encarceramento da pobreza representam a criminalização
secundária, compreendida como um tratamento de caráter repressivo direcionado a
determinadas camadas da população, apontadas como responsáveis pela insegurança pública,
a demonstrar como a pobreza pode de fato funcionar como causa de violação de direitos.
É urgente, portanto, a exposição daquelas em curso e elaboração de outras modalidades
de contraposição a tais posicionamentos estatais, com arrimo no fomento a uma nova cultura
de tratamento igualitário efetivo e não meramente formal e abstrato, lançando-se mão,
inclusive, das próprias instituições estatais desenhadas para impedir a ofensa ao Direito,
cumprindo-se, assim, a promessa de um Estado Democrático de Direito.
Resta identificar, portanto, no arcabouço constitucional brasileiro, qual a instituição
pensada para garantir às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica o efetivo acesso à
justiça, aqui entendido em sua perspectiva ampla de plenitude de fruição de direitos. Assim,
importante precisar o papel desempenhado pela Defensoria Pública, a mais nova das
16
instituições jurídicas, estabelecendo inovadores caminhos de efetivação de suas múltiplas
funções de empoderamento dos pobres, a fim de garantir-lhes conhecimento e fruição dos
direitos formalmente assegurados a todos, tornando-os efetivamente conhecedores dos
direitos que precisam ser defendidos e não meros objetos passivos, cujas pretensões seriam
satisfeitas com a mera atenção institucional.
Essa é, destarte, a razão subjacente e o objetivo geral à consolidação desse estudo:
delinear o papel constitucional da Defensoria Pública, em um Estado fundado na ideia-força
da dignidade humana, na resistência à criminalização da pobreza, explorando as
potencialidades dessa jovem Instituição, alargando suas possibilidades para além da mera
atuação forense (igualmente importante), fazendo-a alcançar o status de difusora do discurso e
do conhecimento dos direitos humanos, entronizando-a como porta-voz dos vulneráveis,
tornando-os aptos ao exercício da cidadania, com vistas à consolidação do Estado
Democrático de Direito. A originalidade da pesquisa encontra-se ancorada na exploração das
atribuições da Defensoria Pública desenhadas pelo texto constitucional e pelas demais leis,
com o específico desiderato de construir um paradigma de funcionamento direcionado a uma
atitude de resistência à criminalização da pobreza, inserindo-se em uma perspectiva mais
ampla de dar cumprimento aos objetivos da República Federativa brasileira encartados no
artigo 3º da CF/88. Busca-se extrair, assim, dos já sedimentados comandos normativos,
formas de atuação inovadoras que representem o desnudamento das posturas estatais e de
particulares que representem tratamento discriminatório de determinadas parcelas da
população quando da criminalização de condutas, para ser possível, então, resistir ativamente.
Os estudos referentes à vulnerabilidade e mesmo à pobreza são muito numerosos e
envolvem vários campos do conhecimento, mormente a sociologia e a economia. No tocante à
criminalização da pobreza, os estudos criminológicos mais atuais têm desenvolvido razoável
bibliografia especializada. Da mesma forma, em razão de seu estado histórico recente e do
crescimento de suas atribuições por meio de uma série de alterações constitucionais, a
Defensoria Pública tem sido objeto de crescente produção científica. A pretensão que justifica
a relevância desse ensaio, contudo, é a sistematização desse conhecimento multidisciplinar
produzido, para estabelecer um novo alcance às atribuições da Defensoria Pública na
específica missão de resistência à criminalização da pobreza e seletividade penal. Por outro
lado, pessoalmente, o interesse na pesquisa do tema foi despertado pela diuturna labuta em
favor dos pobres na seara penal, com suporte na qual sobrou evidente o tratamento seletivo
conferido a essas pessoas em razão de sua classe social, tornando-as os alvos quase exclusivos
17
do poder punitivo estatal e da manifestações criminalizantes dos mass media e de boa parte da
sociedade.
A resistência aqui proposta, advirta-se, afasta-se completamente de um comportamento
meramente passivo, de complacência com patamares mínimos de direitos, meramente
tolerados e cedidos de maneira pretensamente magnânima pelos detentores do poder. Reflete,
ao contrário, condutas de reivindicação das conquistas alcançadas por séculos de luta pela
afirmação de direitos, não se compadecendo com qualquer tipo de retrocesso, ao mesmo
tempo em que se propõem novas modalidades de alargar o significado, sempre inconcluso, da
dignidade humana, evitando-se agressões à sua essência e pugnando por ações proativas de
sua efetividade. Resistir, aqui, denota atitude contramajoritária, contrapoder, de oposição às
pulsões autoritárias e discriminatórias, que muitas vezes, inclusive, são dominantes, pela
incidência de fatores sociais e econômicos que delas se beneficiam. Há de se destacar, por
oportuno, que não serão advogadas ideias de fragilização ou minimização do Estado, mas de
sua reconfiguração, a fim de que, do seu interior (Defensoria Pública) surjam opções de
contenção de sua faceta penal, quando esta se mostrar desproporcionalmente direcionada
contra os pobres, já alijados pela fragilidade estatal no provimento de direitos sociais.
Desse modo, para o adequado desenvolvimento do trabalho sob relação, foi realizada
coleta de dados por meio de uma pesquisa bibliográfica, baseada, pois, na consulta a livros,
revistas científicas, jornais, websites etc., como também documental, na medida em que foram
revisados documentos oficiais relacionados à matéria. Após leitura, fichamento e organização,
esses indicadores foram criticamente analisados. Para tal, recorreu-se ao método dedutivo, ao
se começar de análises gerais sobre o fenômeno da pobreza e sua criminalização, bem como
da estrutura e atribuições da Defensoria Pública brasileira, para, então, se aportar à específica
elaboração de um paradigma de atuação da instituição sob escólio, na resistência à
criminalização da pobreza, valendo-se, para tanto, dos vigentes instrumentos normativos.
Atento a esse objetivo geral, o trabalho está estruturado em quatro capítulos. No
primeiro, apresentam-se, inicialmente, as diversas concepções da pobreza, preferindo-se, ante
as múltiplas possibilidades, os marcos definidores constantes dos consensos internacionais na
matéria no sistema global de direitos humanos (ONU1) e no sistema regional no qual se insere
o Brasil (SIDH2), para finalizar com os objetos definidores e características da pobreza no
1 Organização das Nações Unidas. 2 Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
18
Brasil. Seguir-se-á a conceituação de criminalização da pobreza e suas espécies: primária,
representada pelas previsões legislativas, e secundária, resultante da atuação dos órgãos de
segurança pública e do sistema de justiça. Ainda no mesmo capítulo, são apontadas
manifestações da criminalização da pobreza atualmente em curso no mundo, com destaque
para as perspectivas estadunidense, francesa e de países da América Latina, a reforçar a ideia
de que não se trata de especificidades de apenas alguns países, mas característica peculiar ao
poder punitivo. No módulo seguinte, é desvelado o papel dos media na criminalização da
pobreza, analisando-se como esse importante pilar da democracia pode se converter,
irresponsavelmente, em poderoso instrumento de legitimação de condutas estatais punitivas
seletivas, além de estabelecer ou fomentar um consenso social em torno de atuações que
jamais seriam admitidas se praticadas contra pessoas das classes sociais privilegiadas (desde
exposição excessiva e desnecessária da imagem até torturas e execuções extrajudiciais). No
excerto final desse capítulo, analisa-se a compatibilidade do Estado Democrático de Direito e
seus elementos constitutivos, com destaque para a proteção da dignidade da pessoa humana,
com procederes de criminalização da pobreza e sua intrínseca característica discriminatória e
seletiva.
O capítulo segundo trata especificamente da seletividade penal, desde sua conceituação
e dos delineamentos que tomou na história da humanidade, verificando-se a sua incidência
como fenômeno próprio do poder punitivo estatal. Em seguida, são delineados os caminhos
que a seletividade penal adotou no Brasil, nos períodos colonial, imperial e republicano,
verificando-se que sempre existiram indesejáveis sociais, personificados pelos indivíduos
ocupantes das escalas mais inferiores do trato social, cuja humanidade quase sempre era até
mesmo questionada. Posteriormente, vem a análise da prisão como instituição destinada aos
mais pobres, mostrando-se suas contradições, deficiências essenciais e estruturais, além de
representar o locus onde são depositados, quase exclusivamente, aqueles que ocupam os
estratos mais vulneráveis da sociedade, na mais visível manifestação da seletividade penal.
Para finalizar o capítulo, realiza-se um estudo das mortes institucionais e crimes de tortura
direcionados às populações pauperizadas, como marca da desconsideração de sua
humanidade.
O capítulo terceiro, por sua vez, expõe a estrutura e as funções atuais da Defensoria
Pública brasileira, com esteio na previsão constitucional e nas recentes alterações legislativas,
que a conduziram ao estado de “expressão e instrumento do regime democrático” e instituição
responsável pela “promoção dos direitos humanos”, a par da originária característica de
19
função essencial à Justiça. Inicia-se por um escorço histórico que resulta em um comparativo
entre a Defensoria Pública ontem e hoje, restando a percepção do papel dessa instituição
como responsável pelo acesso à justiça e proteção dos direitos fundamentais dos pobres,
constante nas normas constitucionais e na Lei Orgânica específica. O último tópico tem o
condão de indicar a atuação internacional da Defensoria Pública, com destaque para a
Defensoria Pública da União (DPU) e suas funções perante a Associação Interamericana de
Defensores Públicos (AIDEF).
O último capítulo, por sua vez, tem por finalidade indicar parâmetros para uma atuação
efetiva da Defensoria Pública que a tornem um expediente importante de resistência à
criminalização da pobreza e à seletividade penal, valendo-se de sua estrutura, legislação e
pessoal para agir em cinco eixos, ligados à área criminal: 1 - atuação judicial clássica:
representada pela labuta diuturna perante os órgãos do sistema de justiça, utilizando-se de
estratégias de oposição à seletividade penal, principalmente sob o viés do encarceramento em
massa; 2 – da educação em direitos: como mecanismo de empoderamento dos pobres, a fim
de que identifiquem por si as situações de desrespeito aos direitos, especificamente
relacionadas com a criminalização de sua condição social; 3 - atuação transindividual:
superando, assim, as atuações meramente individuais, com vantagens do ponto de vista de
economia e efetividade; 4 - atuação extrajudicial: opção preferencial pela solução
extrajudicial dos conflitos por métodos alternativos (mediação, conciliação, arbitragem), a
partir das previsões legais nesse sentido e da proximidade dos defensores públicos dos
problemas das comunidades e dos movimentos sociais; orientação jurídica; atuação em
processos administrativos disciplinares; participação em conselhos; convocação de audiências
públicas; inspeções de locais de privação de liberdade; 5 - atuação perante os organismos
internacionais, em uma perspectiva de efetivação de um transconstitucionalismo e do controle
de convencionalidade.
Como contribuição à Ciência Jurídica, demanda-se a formulação de uma proposta
sistematizada de atuação institucional da Defensoria Pública direcionada ao cumprimento dos
objetivos da República Federativa do Brasil encartados na Constituição, maiormente os
relacionados à efetivação da dignidade da pessoa humana, à eliminação de todas as
modalidades de discriminação e à minimização das desigualdades sociais, representadas pela
resistência ativa à criminalização da pobreza e à seletividade penal.
1 POBREZA: MARCO CONCEITUAL E EXPRESSÕES DE SUA
CRIMINALIZAÇÃO
Quando se utiliza o termo “pobreza”, corre-se o risco de abordar o tema sem a devida
precisão. Assim, afigura-se importante, no primeiro momento, uma aproximação conceitual
que estabeleça em que termos a expressão será utilizada, a fim de empreender o objeto geral
da pesquisa. Com efeito, logo se estabelece uma aproximação conceitual, com suporte na
visão de doutrinadores, para posteriormente delinear como o tema é tratado no âmbito da
Organização das Nações Unidas (ONU), bem como nos organismos do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), para concluir com a análise da pobreza no
Brasil.
Na sequência, conceituam-se a criminalização primária e secundária da pobreza, com
suas manifestações no mundo atual e a atuação da mídia nessa perspectiva. Por fim, este
capítulo exprime uma análise da compatibilidade entre a criminalização da pobreza e o Estado
Democrático de Direito, sistematizando os principais pontos de dissenso cujo
desenvolvimento será devidamente realizado no segmento final da tese, por meio da atuação
específica da Defensoria Pública na resistência a essa conjunção de problemas.
1.1 Pobreza: uma aproximação conceitual
O conceito de pobreza denota grandes dificuldades, pois o fenômeno é objeto de vários
campos do conhecimento, além de sujeitar-se a uma série bem diversa de enfoques. Como
percebe Fernanda Costa, quando algumas pessoas falam sobre pobreza, referem-se à pobreza
de recursos, à privação de capacidades ou mesmo à exclusão social (COSTA, 2012, p. 152).
No âmbito internacional existe profundo e amplo debate sobre a sua definição, como medí-la
e enfrentá-la (CIDH, 2016a). Tal situação torna-se ainda mais complicada quando se
consideram as diferenças culturais entre os vários países e os parâmetros de definição do que
é uma situação de bem-estar.
21
A dificuldade, contudo, não afasta a existência de uma série de tentativas de
conceituação. O Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ao definir suas
“Questões substantivas para a aplicação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais: a pobreza e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais”, adota uma Declaração sobre a pobreza, definindo-a como
[...] una condición humana que se caracteriza por la privación continua o crónica de los recursos, la capacidad, las opciones, la seguridad y el poder necesarios para disfrutar de un nivel de vida adecuado y de otros derechos civiles, culturales, económicos, políticos y sociales. Aunque reconoce que no hay ninguna definición universalmente aceptada, el Comité apoya este concepto multidimensional de la pobreza, que refleja la naturaleza individual e interdependiente de todos los derechos humanos. (ONU, 2001).
O primeiro conceito ordinariamente manejado de pobreza é o que se limita ao aspecto
monetário, ou, como noticia o Informe Preliminar sobre Pobreza, Pobreza Extrema e Direitos
Humanos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), (2016a):
[…] se basan en la medición de la insuficiencia de los ingresos necesarios para adquirir una canasta básica de bienes y servicios mínimos para la subsistencia. En estos supuestos nos encontramos con un enfoque que se ha considerado como “monetario” de la pobreza (definiciones basadas en el ingreso o consumo), en el cual la misma sería concebida como la falta de ingreso o de poder adquisitivo mínimo para garantizar las necesidades básicas de subsistencia de las personas217. Es lo que comúnmente se ha denominado como “pobreza monetaria”.
Com amparo nesse critério, o Banco Mundial especifica, para seu trabalho com a
América Latina e Caribe, a noção de que a linha de pobreza extrema é de US$ 2.50 (dois
dólares e cinquenta centavos americanos) por dia e a linha de pobreza moderada de US$ 4
(quatro dólares americanos) por dia (CIDH, 2016a). Já o Banco Interamericano para o
Desenvolvimento (BID) adota o seguinte critério, em valores diários em dólares americanos:
a) “pobres extremos”, cuja renda é menor do que US$ 2,5;
b) “pobres moderados”, com uma renda de US$ 2,5 a US$ 4;
c) “classe vulnerável”, que recebe de US$ 4 a US$ 10;
d) “classe média”, com renda de US$ 10 e US$ 50;
e) “classe de alta renda”, maior que US$ 50 (CIDH, 2016a).
Para a ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO) “la línea de pobreza puede ser
definida como el valor monetario de una canasta básica de alimentos que satisfaga las
necesidades mínimas de “kilocalorías” necesarias para desarrollar una vida sana y activa”
(CIDH, 2016a). O Estado do Brasil considera como famílias que vivem em pobreza extrema
22
são aquelas cuja renda mensal é igual ou inferior a R$ 77,00 por pessoa (setenta e sete reais),
enquanto as famílias em pobreza aquelas com renda mensal de R$ 77,01 (setenta e sete reais e
um centavo) a R$ 154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) por pessoa (CIDH, 2016a).
Embora se reconheça a importância da definição de critérios objetivos para a definição
de pobreza, como instrumentos necessários para a fixação de políticas públicas destinadas à
sua erradicação, impende destacar, inicialmente, que o conceito de pobreza adotado neste
estudo é multidimensional, não se limitando ao estado de privação de renda, mas se parte da
concepção delineada por Amartya Sen, para quem “a pobreza deve ser vista como privação de
capacidades básicas, em vez de meramente como baixo nível de renda, que é o critério
tradicional de identificação da pobreza” (SEN, 2010, p. 120).
Como adverte Zygmunt Bauman, é necessário estender o tema da desigualdade para
além da área limitada da renda per capita, devendo ser ampliada até a atração fatal e recíproca
entre pobreza e vulnerabilidade social, corrupção, acumulação de perigos, assim como
humilhação e negação de dignidade, pois estes fatores moldam as atitudes responsáveis pela
integração ou desintegração de grupos (BAUMAN, 2013, p. 31).
Cuida-se da aproximação com o conceito de vulnerabilidade social, mostrado em
publicação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), aludindo a várias modalidades de desvantagem social, como o resultado negativo
da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos agentes, sejam
eles pessoas ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas e culturais
provenientes do Estado, do mercado e da sociedade (ABRAMOVAY et al., 2002, p. 29).
Nesse contexto, ao estar privado de sua capacidade, quem padece pobreza está
igualmente abstido de sua liberdade para alcançar os níveis mínimos de subsistência, no plano
material ou cultural, pois não é livre para evitar a fome, a sede, a doença e o analfabetismo,
tampouco para receber informações de toda índole ou para difundir seu pensamento ou
participar do governo (NIKKEN, 2012, p. 405). Assim “as desigualdades de posses e acesso a
recursos provoca que as pessoas tenham distintas ou nulas oportunidades de ter uma vida
digna” (MORALES SÁNCHEZ, 2012, p. 334). Como percebem Amartya Sen e Bernardo
Kliksberg, frequentemente, “as mesmas pessoas que são pobres em termos de riqueza material
sofrem também de analfabetismo, trabalham duramente sob condições terríveis, não têm
poder político, não têm acesso a advogado e são vítimas de violência policial” (SEN;
23
KLIKSBERG, 2010, p. 37). Na mesma trilha seguem Walquíria Leão Rego e Alessandro
Pinzani, para quem a pobreza deve ser considerada não somente desde a perspectiva de falta
ou insuficiência de renda, mas também de aspectos que eles chamam de “éticos”, aludindo a
auto-respeito, capacidades e autonomização (REGO; PINZANI, 2014. p. 160).
Ademais, a desigualdade econômica limita a capacidade de realização de grande parte
da população e, como essa privação costuma transmitir-se às demais gerações, “frustra
projetos de vida de milhões de pessoas, além de reduzir as oportunidades presentes e futuras
de desenvolvimento das nações” (MORALES SÁNCHEZ, 2012, p. 334). Esse fator é
identificado igualmente por Amartya Sen e Bernardo Kliksberg, ao noticiarem que:
“conforme o país, de 72% a 96% das famílias em situação de pobreza e de pobreza extrema
provêm de domicílios cujos pais tiveram menos de nove anos de estudo, operando-se, assim,
um ciclo vicioso”. Por outro lado, a pobreza familiar força o trabalho em idade precoce,
deserção, repetência, pouco rendimento escolar, o que, como consequência, significa que os
jovens acumulam um capital educacional muito reduzido, não superior ao de seu círculo
familiar anterior, resultando que o mesmo ciclo continua nas famílias que se constituem
posteriormente (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 245). De fato, “o aspecto econômico ligado à
presença de uma renda regular permanece uma condição imprescindível para a saída da
miséria, inclusive nos seus aspectos éticos” (REGO; PINZANI, 2014, p. 160). Na opinião de
Bauman, a mistura explosiva de progressiva desigualdade social e volume crescente de
sofrimento humano causado pela condição de marginalidade converte-se no mais desastroso
dos problemas que a humanidade será forçada a enfrentar nesse século (BAUMAN, 2013, p.
16).
Percebe-se que pessoas imersas na pobreza, por não lograrem alcançar a condição de
sujeitos de direitos, submetem-se a um estado de minimização em dignidade humana, nos
termos da definição kantiana, relegados, dessa forma, à condição de objetos (KANT, 2007, p.
68). “A pobreza entranha privações originadas em dificuldades econômicas, mas não se
esgota nisso, pois se trata de uma condição sociocultural integral, que abarca, ou ao menos
afeta seriamente, a totalidade das dimensões da pessoa que a sofre” (NIKKEN, 2012, p. 405).
Raquel Sosa Elízaga enxerga tal situação como “la condición que agrega a la pobreza el
hecho de la imposibilidad de incorporarse con plenos derechos a la vida social, al ejercicio
de la ciudadanía” (SOSA ELÍZAGA, 2010, p. 261). “Ser excluído por estar relegado à
“subclasse” significa ser privado de todos os ornamentos e sinais socialmente produzidos e
24
aceitos que elevam a vida biológica à categoria de ser social e transforma rebanhos em
comunidades” (BAUMAN, 2013, p. 191).
Os pobres são lembrados, como importantes, somente em épocas eleitorais e, ainda
assim, para um exercício de cidadania instantâneo (inserir um número na urna eletrônica) e
muitas das vezes viciado pela troca de elementos de necessidade básica, cujo acesso é negado
nos demais períodos do ano. Conforme defende Sosa Elízaga (2010, p. 261):
Assim, ser excluído não significa somente ser pobre, mas não ser considerado na determinação dos assuntos públicos. Significa estar ausente da política que define o rumo de uma sociedade em uma época, em um território determinado e é, nessa direção, que a maior parte de estudos sobre a pobreza é, não só insuficiente, como perigosamente tendenciosos: desconsideram a condição humana, que significa pensamento, vontade, decisões, temores, hábitos, experiências, memoria.
Na mesma esteira, como adverte Morales Sánchez (2012, p. 338):
A pobreza é causa de violação dos direitos humanos, porque as pessoas que vivem em condições de pobreza estão em situações de vulnerabilidade, que as fazem ainda mais suscetíveis a violações de seus direitos. A pobreza é também efeito da violação de direitos humanos, porque ao negar, limitar ou menoscabar ao ser humano direitos como o trabalho, um salário adequado, saúde, educação, moradia digna, estar-se-á condenando-o à pobreza.
Nas palavras de Pedro Nikken, “a pobreza reduz a uma enteléquia a igualdade perante a
lei” (NIKKEN, 2012, p. 402). Tal constatação se reforça pelo próprio estigma que acompanha
as pessoas pobres, etiquetadas pelo lugar onde vivem e pelas carências que padecem, das
quais não são culpadas. Assim, como percebem Innamorato e Canavessi (2015, p. 12),
referindo-se à realidade argentina:
Las villas se han constituido en una configuración urbana depositaria de representaciones que suelen trasladarse a sus habitantes, con un claro acento estigmatizante. Además de padecer la carencia de servicios, el abandono Del Estado, la precariedad habitacional y muchos otros riesgos e incomodidades, ser “villero” hoy implica ser objeto de sospecha, ocupar un bajo lugar en la escala de prestigio social, ser discriminado.
A carência econômica determina, sem dúvida, o enquadramento da pessoa na condição
de necessitado ou vulnerável ante o ordenamento jurídico, o que ocorre em razão da
fragilidade existencial provocada pela ausência de recursos materiais e privação de direitos o
que, em algumas situações, atinge grupos sociais inteiros, no que diz respeito a bens sociais
básicos (FENSTERSEIFER, 2017, p. 32). Tal situação, por si, e independentemente de
encontrar-se somada com outro fator de vulnerabilidade, provoca marginalização social,
política e cultural da pessoa, porquanto que se vê impossibilitada de travar suas relações
25
sociais e jurídicas em condições de igualdade com as demais pessoas e com as instituições
públicas (FENSTERSEIFER, 2017, p. 32-33).
Os muito pobres, chamados por Bauman (2005, p. 55) de “pessoas supérfluas”, estão
em uma posição em que é impossível ganhar, pois se tentam alinhar-se com as modalidades
de vida tidas como adequadas, são acusadas de arrogância pecaminosa, desfaçatez de
reclamar prêmios imerecidos ou mesmo de intenções criminosas; caso queixem-se e recusem-
se a honrar os modos de vida dos ricos, isso representa a demonstração de que são um corpo
estranho, um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis, mostrando-se, pois,
inimigos jurados do correto modo de vida.
Beck (1998), ao descrever a sociedade de riscos, percebe que a distribuição destes é
muito desigual, conforme a classe social, pois os ricos (em recursos, poder e educação) podem
comprar a segurança e a liberdade no que diz respeito aos riscos. Segundo ele, “esta ‘lei’ de
repartição de riscos específicos das classes, e, portanto, a agudização dos contrastes mediante
a concentração de riscos nos pobres e débeis esteve em vigor durante muito tempo e segue
estando hoje para algumas dimensões centrais do risco” (BECK, 1998, p. 41). A
demonstração inequívoca dessa constatação é que os pobres normalmente estão muito mais
vulneráveis a doenças evitáveis, seja pelas péssimas condições sanitárias de suas habitações,
seja pelo restrito acesso à saúde em geral; bem como estão no epicentro da violência urbana,
sendo muito mais suscetíveis aos homicídios, que, no Brasil, por exemplo, concentram-se
quase que integralmente nas periferias, como será demonstrado em momento oportuno deste
estudo.
Como percebeu Bauman (2013, p. 12-15) em sua obra Danos colaterais, ocupar a base
da pirâmide da desigualdade e tornar-se vítima colateral de uma ação humana ou de um
desastre natural são situações equivalentes, como resultado da “invisibilidade” endêmica,
planejada e imposta aos “estranhos de dentro” – empobrecidos e miséraveis – marcados de
modo permanente pelo estigma da desimportância e da falta de mérito, e por isso
progressivamente criminalizados.
Também é de Beck (1998, p. 120) a percepção de um fenômeno que caracteriza a
pobreza: o fato de ameaçar de modo mais grave às mulheres, não tanto em virtude de
carências educativas ou de procedência, mas ao divórcio, “que se tem convertido em um fator
26
essencial que conduz (principalmente às mães com filhos), a relações de vida abaixo de um
mínimo existencial”.
No final da década de 70, conforme noticia Vicente (2006, p. 13-14), começou-se a
utilizar a dicção feminização da pobreza, para ressaltar o influxo particular e maior da
pobreza sobre a vida das mulheres em todos os países, por meio de investigações que
pretendiam evidenciar os diversos meios pelos quais a pobreza atinge as mulheres, restando
óbvio que tal fato, ademais, tem sido ignorado.
Morales Sánchez (2011, p. 89), no mesmo raciocínio, apresenta dados sobre a
feminização da pobreza, citando que as mulheres constituem 70% dos pobres do mundo,
ganham menos do que os homens, têm menor controle da propriedade e enfrentam maiores
níveis de vulnerabilidade física e violência, além de constituírem dois terços dos analfabetos
do mundo e 60% das deserções escolares serem femininas.
Nesse sentido, pode-se verificar que as mulheres encontram-se em situação ainda mais
desvantajosa no que diz respeito às privações de possibilidades básicas de vida, encarnando a
definição de vulnerabilidade que supera uma escassez meramente econômica, alcançando,
além desta, a falta de acesso a muitos dos direitos já reconhecidos em tratados internacionais e
na ordem interna da maioria dos países. Assim, diz-se que há uma feminização da pobreza
pelo acesso limitado à educação, pelas dificuldades de acesso à saúde, principalmente no
tocante às especificidades femininas nessa seara, limitações de acesso à propriedade e ao
emprego, isso sem falar na ínfima participação política e na intensa violência contra as
mulheres que, de maneira renitente, permanece em todo o mundo.
Além da desigualdade em relação às mulheres, há que se destacar, ainda, uma
preocupação justificável com a discriminação racial. Por ocasião do Dia Internacional pela
Eliminação da Discriminação Racial, em 21 de março de 2016, a CIDH manifestou
igualmente a sua preocupação com o estado de desigualdade estrutural que, na região,
enfrenta a população afrodescendente, bem como das mulheres, adolescentes e meninas, em
razão da persistência de normas e práticas institucionais que impedem o exercício pleno de
direitos econômicos, sociais e culturais e, na oportunidade (CIDH, 2017a).
Todavia, a CIDH destacou que as mulheres afrodescendentes encontram-se entre os
grupos sociais mais marginalizados da região e, como suas possibilidades de acesso a
educação, emprego e saúde são limitadas, enfrentam múltiplos obstáculos para aceder a
27
serviços necessários no âmbito da saúde sexual e reprodutiva. Por outro lado, a CIDH também
observou que muitas mulheres afrodescendentes desempenham tarefas domésticas, de baixa
remuneração e precárias condições laborais. Assim, em comparação com as demais, as
afrodescendentes estão sub-representadas nas instâncias de decisão e participação política e
veem-se afetadas de modo particular pelos conflitos armados e territoriais (CIDH, 2017a).
Tais preocupações da CIDH constaram em seu informe anual de 2016, especificamente no seu
no 96 (CIDH, 2017a).
Durante seu 157º período de sessões, a CIDH celebrou uma audiência sobre a situação
de mulheres afrodescendentes no Brasil, na qual as organizações solicitantes exprimiram
informações sobre a grave situação de violência estrutural contra mulheres afro-brasileiras
(CIDH, 2016 b). De acordo com os informes recebidos, “as mulheres afrodescendentes
constituíram o 66,7% do total de mulheres vítimas de assassinatos no Brasil em 2013”
(WAISELFISZ, 2015), o que revela uma representação desproporcional de mulheres negras
entre as vítimas de mortes violentas. Por outro lado, as estatísticas em matéria de saúde,
expressas no Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, indicam que as mulheres
afrodescendentes constituem a maioria das vítimas de mortalidade materna, constituindo mais
de 60% do total (BRASIL, 2015a, p. 30). Além disso, prevalecem distintas enfermidades em
maior quantidade nesse grupo de brasileiras (OMS, 2013, p. 41). Apesar da adoção da Lei
Maria da Penha (BRASIL, 2006), o número de agressões contra as mulheres
afrodescendentes não diminuiu e, na sua maioria, essas situações permanecem impunes
(CIDH, 2016 b).
Importante é conhecer, portanto, o modo como as organizações internacionais
conceituam e encaram o tema “pobreza” em seus mais diversos instrumentos, pelo fato de
representarem a melhor aproximação de um consenso universal (ou pelo menos da maior
parte dos países) sobre a temática.
1.1.1 O tema pobreza no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU)
A submissão de milhões de pessoas à condição de pobreza no mundo é preocupação
constante dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos. Como adverte
Monica Pinto, “la exclusión es hoy más que ayer un problema globalizado, que deja fuera de
las oportunidades de desarrollo a millones de personas, que ofende la dignidad de millones
de personas y que lesiona sensiblemente su libertad” (PINTO, 2012, p. 352). A ONU ocupa-
28
se do tema em vários de seus documentos, a exemplo do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), aprovado em 16 de dezembro de 1966 e entrou
em vigor no Brasil em 6 de julho de 1992, pelo Decreto n. 591 (BRASIL, 1992).
Logo no Preâmbulo, o PIDESC reafirma o ideal do ser humano livre, liberto do temor e
da miséria (ONU, 1966). Em seu artigo (art.) 11, o PIDESC estabelece que: “Os Estados
Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando
para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim
como a uma melhoria continua de suas condições de vida” (ONU, 1966). Ademais, afinado
com a ideia de que a pobreza não representa tão somente a privação de recursos financeiros, o
PIDESC preocupa-se em fixar outros direitos direcionados à plena realização da dignidade
humana, tais como trabalho, lazer, assistência social, proteção à maternidade e à infância,
alimentação, saúde, educação e previdência social.
Na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (ONU, 1993), realizada em
1993, efetuou-se uma análise global do sistema internacional de direitos humanos e dos
mecanismos de proteção destes direitos, de modo a incentivar e assim promover o seu maior
respeito, de maneira justa e equilibrada, como consta no Preâmbulo na Declaração e Programa
de Ação de Viena, aprovada durante esse evento. Esse documento internacional, em três
momentos, ocupa-se especificamente da pobreza, para aludir que:
[...] 14 - A existência de uma pobreza extrema generalizada obsta ao gozo pleno e efetivo de Direitos Humanos; a sua imediata atenuação e eventual eliminação devem permanecer como uma das grandes prioridades da comunidade internacional. [...] 25. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos afirma que a pobreza extrema e a exclusão social constituem uma violação da dignidade humana e que são necessárias medidas urgentes para alcançar um melhor conhecimento sobre a pobreza extrema e as suas causas, incluindo aquelas relacionadas com o problema do desenvolvimento, com vista a promover os Direitos Humanos dos mais pobres, a pôr fim à pobreza extrema e à exclusão social e a promover o gozo dos frutos do progresso social. É essencial que os Estados estimulem a participação das pessoas mais pobres no processo decisório da comunidade em que vivem, bem como a promoção de Direitos Humanos e os esforços para combater a pobreza extrema. [...] 30. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos exprime também a sua consternação e condenação pelo fato de violações graves e sistemáticas de Direitos Humanos, bem como situações que constituem sérios obstáculos ao pleno gozo desses direitos, continuarem a ocorrer em diferentes partes do mundo. Tais violações e obstáculos incluem, além da tortura e das penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, as execuções sumárias e arbitrárias, os desaparecimentos, as detenções arbitrárias, todas as formas de racismo, discriminação racial e apartheid, a ocupação e o domínio por parte de potências estrangeiras, a xenofobia, a pobreza, a fome e outras negações dos direitos econômicos, sociais e culturais, a intolerância
29
religiosa, o terrorismo, a discriminação contra as mulheres e a inexistência do Estado de Direito. [...]
Em 1997, a Assembleia Geral da ONU, por meio de Resolução, no 51º Período de
Sessões, fixou o Primeiro Decênio do século XXI como o dedicado à Erradicação da Pobreza
(1997-2006) “[…]expresando su honda preocupación por el hecho de que en el mundo haya
más de 1.300 millones de personas, en su mayoría mujeres, que viven en la pobreza absoluta,
especialmente en los países en desarrollo, y de que esa cifra siga aumentando” (ONU, 1997);
além de demonstrar:
[…] su solidaridad con las personas de todos los países que viven en la pobreza y reafirma que la satisfacción de las necesidades humanas básicas es un elemento esencial de la erradicación de la pobreza y que esas necesidades están estrechamente relacionadas entre sí y abarcan la nutrición, la salud, el abastecimiento de agua y el saneamiento, la educación, el empleo, la vivienda y la participación en la vida cultural y social. (ONU, 1997).
Na mesma oportunidade,
[…] recomienda que, en el contexto de la actividad general de erradicación de la pobreza, se preste especial atención a la naturaleza multidimensional de la pobreza y a los marcos y políticas nacionales e internacionales que propicien su erradicación, que deberán proponer la integración social y económica de las personas que viven en la pobreza y la promoción y protección de los derechos humanos y las libertades fundamentales para todos, incluido el derecho al desarrollo. (ONU, 1997).
Os resultados das políticas implantadas no decênio foram extremamente tímidos, como
identifica o Parlamento Latinoamericano y Caribeño, em Declaração de sua Mesa Diretiva,
apontando que,
[...] a pesar de las recurrentes Asambleas y Conferencias internacionales, el Banco Mundial en sus Informes Anuales afirma que aproximadamente el 22.8% de la población mundial subsistía con menos de un dólar diario en el año 1996, cifra que en el 2001 se reduce al 21.1% y que en el año 2006 se ha estimado en 19%. Que en relación a América Latina estos porcentajes fueron de 19% en 1996; 18,1% en 2000 y de 14,7% en 2006, año en que finalizó el Decenio. (PARLATINO, 2007).
Por essa razão, a ONU editou a Resolução no 63/230, datada de 19 de dezembro de
2008, sobre o Segundo Decênio das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza (2008-
2017), com o tema “Pleno emprego e trabalho decente para todos” (ONU, 2008), cujo
objetivo
[…] es apoyar, de manera eficiente y coordinada, el seguimiento de la consecución de los objetivos de desarrollo convenidos internacionalmente relativos a la erradicación de la pobreza, incluidos los Objetivos de Desarrollo del Milenio. Se destaca la importancia de reforzar las tendencias positivas en la reducción de la pobreza en algunos países y ampliar esas tendencias en beneficio de la población
30
del mundo entero. La proclamación reconoce la importancia de movilizar los recursos financieros para el desarrollo a nivel nacional e internacional, y reconoce que el crecimiento económico sostenido, sustentado por una productividad creciente y un entorno favorable, incluida la inversión privada y la capacidad empresarial es fundamental para el aumento de los niveles de vida. (ONU, 2008).
O Conselho de Direitos Humanos da ONU, mediante Resolução de 18 de outubro de
2012, aprovou os Principios Rectores sobre la Extrema Pobreza, documento que oferece,
pela primeira vez, diretrizes normativas mundiais centradas especificamente nos direitos
humanos das pessoas que vivem na pobreza (ONU, 2012). O projeto final foi apresentado
pela relatora especial sobre a extrema pobreza e direitos humanos, Magdalena Sepúlveda
Carmona, contendo as seguintes definições:
La pobreza no es solo una cuestión económica; es un fenómeno multidimensional que comprende la falta tanto de ingresos como de las capacidades básicas para vivir con dignidad. El Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales declaró en 2001 que la pobreza es “una condición humana que se caracteriza por la privación continua o crónica de los recursos, la capacidad, las opciones, la seguridad y el poder necesarios para disfrutar de un nivel de vida adecuado y de otros derechos civiles, culturales, económicos, políticos y sociales” (E/C.12/2001/10, párr. 8). La extrema pobreza, a su vez, ha sido definida como “una combinación de escasez de ingresos, falta de desarrollo humano y exclusión social” (A/HRC/7/15, párr. 13), en que una falta prolongada de seguridad básica afecta a varios ámbitos de la existencia al mismo tiempo, comprometiendo gravemente las posibilidades de las personas de ejercer o recobrar sus derechos en un futuro previsible (véase E/CN.4/Sub.2/1996/13). (ONU, 2012).
Adotando o mesmo conceito, já apontado, de pobreza como causa e consequência de
violação de direitos humanos, o Conselho de Direitos Humanos da ONU, por meio do projeto
citado, remarca a ideia de que
[…] las personas que viven en la pobreza tropiezan con enormes obstáculos, de índole física, económica, cultural y social, para ejercer sus derechos. En consecuencia, sufren muchas privaciones que se relacionan entre sí y se refuerzan mutuamente – como las condiciones de trabajo peligrosas, la insalubridad de la vivienda, la falta de alimentos nutritivos, el acceso desigual a la justicia, la falta de poder político y el limitado acceso a la atención de salud–, que les impiden hacer realidad sus derechos y perpetúan su pobreza. Las personas sumidas en la extrema pobreza viven en un círculo vicioso de impotencia, estigmatización, discriminación, exclusión y privación material que se alimentan mutuamente. (ONU, 2012).
Ainda no âmbito da ONU, indispensável é conhecer o posicionamento da Comissão
Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), que, na publicação Desarrollo Social
Inclusivo: una nueva generación de Políticas para superar la Pobreza y Reducir la
Desigualdad en América Latina y el Caribe, publicada posteriormente à Conferencia
Regional sobre Desarrollo Social de América Latina y el Caribe, ocorrida em Lima, de 2 a 4
de noviembre de 2015, estabeleceu que
31
[…] la pobreza representa un nivel crítico de privación, que pone en entredicho la sobrevivencia, la dignidad y el goce efectivo de derechos de las personas que se encuentran en esa situación, dimensiones que no se limitan a la carencia de un ingreso monetario suficiente para satisfacer los requerimientos mínimos. (CEPAL, 2016).
Já o Informe sobre Desenvolvimento Humano 2000, do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), exprime uma visão mais ampla de pobreza ao evidenciar a
noção de que:
El desarrollo humano se centra en la ampliación de las capacidades importantes para todos, capacidades tan básicas que su ausencia impide otras opciones. La pobreza humana se centra en la falta de esas capacidades, necesarias para vivir una vida larga, saludable y creativa, para mantenerse informados, para tener un nivel de vida decoroso, dignidad, respeto por uno mismo y por los demás. (ONU, 2000a, p. 73).
Em setembro de 2000, ao final de um decênio de conferências e reuniões de cúpula, a
ONU aprovou a Declaração do Milênio, comprometendo os países com uma nova aliança
mundial para reduzir os níveis de extrema pobreza e estabelecendo os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM), com metas a alcançar até o ano de 2015, fixando como
o primeiro eixo fundamental erradicar a pobreza extrema e a fome (ONU, 2000b). Ao final do
prazo estabelecido, a quantidade de pessoas que viviam em extrema pobreza foi reduzida pela
metade, caindo de 1,9 bilhão para 836 milhões. Nos países da América Latina, de 1990 a
2008, a porcentagem da população em situação de pobreza extrema caiu de 22.5% para
13.7%, o que se traduziu em uma diminuição do número de pessoas que vivem na pobreza
extrema de 93 milhões para 71 milhões, em 20 países latino-americanos (CIDH, 2016a).
Ante, porém, a persistência de índices inaceitáveis de pobreza, a ONU estabeleceu
novas metas agrupadas sob o nome de “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”,
e, em 1º de janeiro de 2016, se fixou como ponto de partida dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS)3 a intensificação de esforços para pôr fim à pobreza em
todas as suas conformações, reduzindo as desigualdades, superando discriminações e
protegendo o meio ambiente (ONU, 2015).
A erradicação da pobreza e da fome mundiais são, respectivamente, os objetivos 1 e 2
da “Agenda 2030”, representando, ainda, os principais desafios da humanidade (ONU, 2015).
3 Os objetivos de Desenvolvimento Sustentável são de aplicação universal nos 15 anos após 2016 e têm como estratégia abordar os assuntos pendentes dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000), mas ampliando seu campo de aplicação às três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômica, social e ambiental (CIDH, 2016a).
32
Cada país, portanto, deve estabelecer uma agenda de trabalho própria para dar cumprimento
às metas fixadas.
Como aponta a CIDH, em seu Informe preliminar sobre pobreza, pobreza extrema y
derechos humanos en las Américas, o tema da pobreza está em outros tratados do sistema
universal, tais como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a mulher (ONU, 1983); a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1990a); a
Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial
(ONU, 1965); a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (ONU, 2007a);
Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e seus
Familiares (ONU, 1990b); a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos de Povos
Indígenas (ONU, 2007b) e o Convenio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
(CIDH, 2016a).
1.1.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH): previsão e
combate à pobreza
No SIDH, a preocupação com a pobreza também é uma constante, como não poderia ser
diferente em um continente marcado por profundas e históricas desigualdades sociais. De
acordo com a CEPAL, em 2015, na América Latina e Caribe, 175 milhões de pessoas
encontravam-se em estado de pobreza, sendo que 75 milhões delas, em situação de indigência
(ONU/CEPAL, 2015).
Já na Carta de Organização dos Estados Americanos (OEA), no art. 2, “g”, é possível
ler, como um de seus propósitos essenciais: “Erradicar a pobreza crítica, que constitui um
obstáculo ao pleno desenvolvimento democrático dos povos do Hemisfério” (OEA, 1948). De
igual modo, no art. 3, os Estados reafirmam alguns princípios, dentre os quais se encontra: “A
eliminação da pobreza crítica é parte essencial da promoção e consolidação da democracia
representativa e constitui responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos”
(OEA, 1948). Assim, também, no art. 34 está sedimentado que:
Os Estados membros convêm em que a igualdade de oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição equitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. (OEA, 1948).
Seguindo a mesma trilha, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH),
assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José,
33
Costa Rica, em 22 de novembro de 1969 (OEA, 1969), em seu Preâmbulo reitera a ideia de que
só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas
condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais,
bem como dos seus direitos civis e políticos.
Em 2001, o tema passou a fazer parte da Carta Democrática Interamericana. Já em seus
considerandos, o documento reafirma que “la lucha contra la pobreza, especialmente la
eliminación de la pobreza crítica, es esencial para la promoción y consolidación de la
democracia y constituye una responsabilidad común y compartida de los Estados
americanos” (OEA, 2001). Após reforçar, no art. 11, que “La democracia y el desarrollo
económico y social son interdependientes y se refuerzan mutuamente” (OEA, 2001), a Carta
Democrática especifica, no art. 12, que
[…] la pobreza, el analfabetismo y los bajos niveles de desarrollo humano son factores que inciden negativamente en la consolidación de la democracia. Los Estados Miembros de la OEA se comprometen a adoptar y ejecutar todas las acciones necesarias para la creación de empleo productivo, la reducción de la pobreza y la erradicación de la pobreza extrema, teniendo en cuenta las diferentes realidades y condiciones económicas de los países del Hemisferio. Este compromiso común frente a los problemas del desarrollo y la pobreza también destaca la importancia de mantener los equilibrios macroeconómicos y el imperativo de fortalecer la cohesión social y la democracia. (OEA, 2001).
Outras reuniões, conferências, encontros de cúpula e planos de ação no Sistema
Interamericano com a temática em comento como foco principal, que podem ser citados serão as
seguintes.
1) O Plano de Ação de Santiago, de 1998, oriundo da Segunda Cúpula das Américas, no
qual os chefes de Estado reconheceram que a pobreza extrema e a discriminação continuam
afligindo as vidas de muitas famílias e impedindo sua contribuição potencial para o progresso
de nossas nações (OEA, 1998);
2) A Declaração de Margarita, de 2003, resultado da Reunião de Alto Nível sobre
Pobreza, Equidade e Inclusão Social, na Ilha de Margarita, Venezuela, que de maneira
inovadora estabelece:
[…] en el combate a la pobreza, la inequidad y la exclusión social, daremos prioridad a la eliminación del hambre, al acceso a una alimentación adecuada y agua potable, al acceso para todos a los servicios sociales básicos, con atención especial a la educación de calidad y la protección social de la salud; […]. (OEA, 2003).
34
3) A Declaração e Plano de Ação de Mar Del Plata, elaborada durante a Quarta Cúpula
das Américas, em Mar del Plata, Argentina, em 2005, quando os Estados fixaram que: “[…]
reafirmamos nuestro compromiso de combatir la pobreza, la desigualdad, el hambre y la
exclusión social para elevar las condiciones de vida de nuestros pueblos y reforzar la
gobernabilidad democrática em las Américas” (OEA, 2005);
4) A Carta Social das Américas, que em seu art. 3, sinaliza que os:
Estados Miembros, en su determinación y compromiso de combatir los graves problemas de la pobreza, la exclusión social y la inequidad y de enfrentar las causas que los generan y sus consecuencias, tienen la responsabilidad de crear las condiciones favorables para alcanzar el desarrollo con justicia social para sus pueblos y contribuir así a fortalecer la gobernabilidad democrática. (OEA, 2012).
Ademais, que os “Estados Miembros fortalecerán y promoverán las políticas y los
programas dirigidos al logro de sociedades que ofrezcan a todas las personas oportunidades
para beneficiarse del desarrollo sostenible con equidad e inclusión social” (OEA, 2012);
5) A Declaração de Assunção, para o 44º Período Ordinário de Sessões da Assembleia
Geral da OEA, em Assunção, Paraguai, de 3 a 5 de junho de 2014, na qual se considera que:
[…] aún persisten desafíos y retos en materia de pobreza y pobreza extrema, seguridad alimentaria y nutrición, discriminación, equidad, igualdad e inclusión social, educación inclusiva y de calidad, cobertura universal de salud, trabajo decente, digno y productivo y seguridad ciudadana. (OEA, 2014).
6) O Plano de Ação da Carta Social das Américas, oriunda da Assembleia Geral de
2015, da OEA, na Cidade de Washington (EUA4), que:
[...] reflete a decisão e o compromisso dos Estados membros referentes à erradicação da pobreza e da fome e o atendimento urgente dos graves problemas de exclusão social e desigualdade em todos os níveis, a fim de alcançar a equidade, a inclusão e a justiça social, reconhecendo que os Estados membros encontram-se em diversos níveis de progresso com relação às áreas propostas. (OEA, 2015).
Ademais, o Plano de Ação
[...] permanecerá vigente por um período de cinco anos contado a partir de sua aprovação. Esgotado esse prazo, a Assembleia Geral poderá determinar sua revisão e atualização, em conformidade com os propósitos e princípios constantes da Carta Social das Américas. (OEA, 2015).
7) A Declaração para a Promoção e Fortalecimento da Carta Social das Américas, de
junho de 2016, na qual se declarou o “[...] compromiso de promover y lograr progresivamente
la plena efectividad de los derechos económicos, sociales y culturales a través de las políticas 4 Estados Unidos da América.
35
y programas que se consideren más eficaces y adecuados” (CIDH, 2016 a), e também se fixou
a:
[…] necesidad de que los Estados Miembros renueven el compromiso con la implementación del Plan de Acción de la Carta Social de las Américas conforme a sus respectivas legislaciones internas, realidades nacionales, estrategias, planes y recursos disponibles y sostengan el diálogo para el intercambio de información sobre los avances, experiencias y lecciones aprendidas. (CIDH, 2016a).
8) A Declaração Fortalecimento Institucional para o Desenvolvimento Sustentável nas
Américas, na qual se reafirmaram a natureza, propósitos e princípios estabelecidos na Carta
da OEA e os compromissos adotados pelos Estados-membros na Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável, assim como outros compromissos internacionais vinculados às
três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômico, social e ambiental (CIDH,
2016a). No referido documento declara-se:
Asumir el firme compromiso con la implementación de la Agenda 2030 en las Américas y con el logro de sus Objetivos y metas de Desarrollo Sostenible, los cuales son de carácter integrado e indivisible, así como reafirmar el compromiso con la erradicación del hambre; la pobreza, en todas sus formas y dimensiones, incluida la pobreza extrema; la lucha contra la desigualdad; la protección del medio ambiente; la gestión del riesgo de desastres y la lucha contra el cambio climático, entre otros. (CIDH, 2016a).
9) O Programa Interamericano para o Desenvolvimento Sustentável (PIDS), como parte
da quinta reunião ordinária celebrada de 1 a 3 de junho de 2016, em Washington DC, pela
Comissão Interamericana para o Desenvolvimento Sustentável, convertendo a OEA no
primeiro organismo regional do Sistema de Nações Unidas com um instrumento de política
institucional alinhado com a Agenda 2030 (CIDH, 2016a);
10) A Rede Interamericana de Proteção Social (RIPS), da Secretaria Geral da OEA, que
brinda seu espaço e meios para que os países da região compartam suas experiências e
conhecimentos em proteção social e políticas de desenvolvimento social para a erradicação da
pobreza.
Por sua vez, a CIDH, no exercício de sua função delineada no art. 41, “c”, da CADH de
preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas
funções, elaborou um Informe Preliminar sobre Pobreza, Pobreza Extrema y Derechos
Humanos en las Américas, em 2016. Nesse documento, a CIDH começou por estabelecer o
marco jurídico e a conceituação da pobreza e da pobreza extrema, com supedâneo no marco
normativo universal e interamericano vinculado à pobreza. Analisou, na sequência, o influxo
da pobreza no exercício de direitos por certas pessoas, grupos e coletividades historicamente
36
discriminados (mulheres, crianças e adolescentes, migrantes, pessoas privadas de liberdade,
pessoas com necessidades especiais, pessoas e grupos LGBTI). Por fim, o informe analisou os
desafios e temáticas prioritárias em relação às pessoas que vivem em situação de pobreza para
aceder à justiça e obter respostas efetivas aos seus reclamos, além de fixar conclusões e
estabelecer recomendações.
No citado Informe, a CIDH remarca a noção de que “la pobreza extrema constituye un
grave problema de derechos humanos por la intensidad en la afectación al goce y ejercicio
de derechos humanos” (CIDH, 2016a). Este configura um posicionamento afinado com a
ideia, já defendida nesta pesquisa, de que, conforme visto, entende a pobreza em si como uma
violação aos direitos humanos:
[…] para efectos del presente informe, la pobreza constituye un problema de derechos humanos que se traduce en obstáculos para el goce y ejercicio de los derechos humanos en condiciones de igualdad real por parte de las personas, grupos y colectividades que viven en dicha situación. Asimismo, en determinados supuestos, la pobreza podría implicar además violaciones de derechos humanos atribuibles a la responsabilidad internacional del Estado. (CIDH, 2016a).
Por meio de seus distintos mecanismos, a CIDH observa que os altos níveis de
discriminação estrutural e exclusão social, a que estão submetidos certos grupos em situação
de pobreza, tornam ilusória sua participação cidadã, seu acesso à justiça e fruição efetiva de
direitos. Nesse sentido, desde um enfoque de direitos humanos, a pobreza e a pobreza extrema
supõem afetações a ambas categorias de direitos, e sua superação, por fim, se relaciona com o
acesso e a satisfação de direitos humanos desde uma concepção ampla (CIDH, 2016a).
Por outro lado, importante é destacar o argumento de que um dos grandes desafios que
enfrentam as pessoas que vivem em situação de pobreza é a condição de invisibilidade à qual
se encontram submetidos, o que propicia a violação de seus direitos humanos (CIDH, 2016a).
Essa invisibilidade, como é à frente estudado amiúde, refere-se ao Estado Social, cujas
políticas públicas não chegam até os bolsões de pobreza das grandes cidades e aos rincões
mais distantes do interior e do litoral remoto do País. Essa invisibilidade não se verifica
quando se reporta ao Estado Penal, cujas atenções e ações voltam-se exatamente contra essa
parcela da população, rotineiramente taxada de perigosa e, por isso, constante alvo de
incapacitação seletiva5.
Esse Informe da CIDH representa
5 Dicção utilizada por Maurício Stegeman Dieter (DIETER, 2013).
37
[...] una primera oportunidad para que la CIDH y el Sistema Interamericano de Derechos Humanos profundicen y desarrollen la temática desde el referido enfoque, analizando los efectos que tiene la pobreza en el goce y ejercicio de esos derechos. Asimismo, busca abrir puertas para desarrollar más el marco jurídico en que se genera la responsabilidad internacional de los Estados por la pobreza y la pobreza extrema. Es también una oportunidad para presentar a los Estados estándares claros en el marco de la normativa internacional de derechos humanos a fin de enfrentar los obstáculos que afectan el goce y ejercicio de derechos humanos en la que se encuentran más de 165 millones de personas en el hemisferio, de los cuales, alrededor de más de 69 millones viven en la pobreza extrema. (CIDH, 2016a).
Assim, em resumo, são eixos centrais do Informe: abordar a pobreza sob o enfoque de
direitos humanos, marcar os paradigmas interamericanos relativos ao tema, visibilizar grupos
historicamente vulneráveis, oferecer recomendações aos Estados (CIDH, 2016a).
No marco da definição de pobreza aqui adotado, o Informe plasma a ideação conforme
a qual:
En concreto, el sistema interamericano no sólo recoge una noción formal de igualdad, limitada a exigir criterios de distinción objetivos y razonables y, por lo tanto, a prohibir diferencias de trato irrazonables, caprichosas o arbitrarias, sino que avanza hacia un concepto de igualdad material o estructural que parte del reconocimiento de que ciertos sectores de la población requieren la adopción de medidas afirmativas de equiparación. Ello implica la necesidad de trato diferenciado cuando, debido a las circunstancias que afectan a un grupo desventajado, la igualdad de trato suponga suspender o limitar el acceso a un servicio, bien o el ejercicio de un derecho. (CIDH, 2016a).
Afasta-se, portanto, de uma noção de igualdade meramente formal para defender a
adoção de políticas de discriminação positiva (ações afirmativas), a fim de que situações de
desigualdade fática sejam de responsabilidade das políticas públicas estatais com vistas a uma
igualdade material, caracterizada pelo acesso equânime aos direitos, conforme previsto na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), CADH, PIDESC e nas Constituições
dos Estados do continente.
Por outro lado, remarca o citado Informe que a CIDH sustenta, no referente à pobreza e
pobreza extrema, que, em virtude dos referidos princípios de não discriminação e igualdade
de oportunidades, os Estados devem assegurar “que las políticas que adopte no representen
una carga desproporcionada sobre los sectores marginados y más vulnerables de la
sociedad, en particular aquéllos que se encuentran en situación más desventajosa debido a la
pobreza” (CIDH, 2017 a).
Um recorte importante que não escapou à percepção da CIDH (2017 a) está no fato de
que a pobreza no continente americano tem uma cor, destacando, em seu Informe Anual de
2016, as disparidades étnico-raciais em matéria de gozo de direitos humanos de pessoas
38
afrodescendentes no Brasil, segundo os dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), (IBGE, 2014). A CIDH ressaltou em tal documento que tem
recebido informações sobre a persistência de enormes desigualdades entre afro-brasileiros e o
restante da população. Entre os 10% mais pobres da população brasileira, 75% são negros e
pardos, enquanto esse percentual é de 23,9% para pessoas brancas (IBGE, 2014). Ademais, a
CIDH destaca que continua havendo uma discrepância significativa entre a expectativa de
vida das populações brancas e negras no Brasil. No contexto de ações para resguardar a
segurança pública, a luta contra as drogas e, mais recentemente, durante etapas prévias aos
Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro (MENDES, 2016), cerca de 100 pessoas foram mortas
pela polícia no Estado do Rio, sendo em sua maioria homens jovens e negros (CIDH, 2017a),
como destacado pelo Informe Anual citado (CIDH, 2017a).
Por essa razão, a CIDH celebrou o fato de que a OEA e a Organização Panamericana de
Saúde haverem editado, em julho de 2016, o novo Plano de Ação do Decênio das e dos
Afrodescendentes nas Américas, uma iniciativa que busca fortalecer as políticas públicas para
assegurar os direitos e a participação plena e igualitária desta população na região até 2025. A
iniciativa objetiva “melhorar a saúde e bem estar dos mais de 150 milhões de
afrodescendentes que se estima vivem no Hemisfério Ocidental, e que tem piores condições
de saúde que outros grupos raciais como consequência das desigualdades, da pobreza e da
exclusão social, as quais estão estreitamente vinculadas com o racismo, a xenofobia e a
intolerância” (CIDH, 2017 a), de acordo com o Informe da CIDH de 2016.
Na trilha do que será desenvolvido nos capítulos seguintes, é importante antecipar o fato
de que políticas ou ações (públicas ou de particulares) que representam estigmatização ou
sinais de repressão desproporcional ou injusta sobre determinadas classes sociais estão em
desacordo em relação aos paradigmas traçados pela CIDH.
1.1.3 A pobreza brasileira
A realidade brasileira exprime-se historicamente vinculada a graves problemas de
desigualdade e exclusão sociais, que relegam enormes parcelas da população à condição de
vulnerabilidade. A sociedade brasileira é, para José Eduardo Faria “instável, iníqua,
contraditória e conflitiva, caracterizando-se por situações de miséria, indigência e pobreza que
negam o princípio da igualdade formal perante a lei, impedem o acesso de parcelas
significativas da população aos tribunais e comprometem a efetividade dos direitos
39
fundamentais” (FARIA, 2015). Os níveis de desigualdade da distribuição de renda no Brasil
proporcionam a abertura de um abismo econômico, social e político entre as classes,
contrastando uma minoria – que usufrui de altos padrões de consumo e de instrumentos de
reprodução das relações sociais – com uma esmagadora maioria de condenados a uma vida de
carências, sofrimento e sacrifício (REGO; PINZANI, 2014, p. 163).
Verifica-se, portanto, um abismo entre o arcabouço normativo e a realidade. Com efeito,
a Constituição de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana como um de seus princípios
fundamentais (art. 1 o, III) e, como objetivos fundamentais, no art. 3º, encontram-se: construir
uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento nacional (II);
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III);
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (IV) (BRASIL, 1988), todos afinados com a busca da
igualdade, além de estabelecer extenso (e não exaustivo) rol de direitos sociais destinados à
promoção da igualdade material, no art. 6.
Por outro lado, o Texto Constitucional brasileiro orienta a ordem econômica a assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, fundada, entre outros
princípios, na redução das desigualdades regionais e sociais (art. 3º, inciso VII da
Constituição) (BRASIL, 1988). Funda, ademais, uma ordem social que tem como base o
primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (art. 196) (BRASIL,
1988), detalhando a estrutura e o modo de exercício dos direitos à seguridade social (saúde,
previdência e assistência social), educação, cultura, desporto, comunicação social, meio
ambiente, além de direitos da criança, adolescente, jovem e idoso.
Apesar de toda essa vanguardista normatização constitucional, reforçada por minuciosa
e vasta legislação infraconstitucional, nos vários níveis federativos, o Brasil convive com
alarmantes índices de pobreza. Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani chegam a
identificar, inclusive, uma “operação ideológica voltada à naturalização da pobreza do Brasil:
a ideia de que esta seja uma espécie de fenômeno natural imutável, contra o qual qualquer luta
é inútil” (REGO; PINZANI, 2014, p. 164).
No Brasil não há linha oficial de pobreza, sendo que alguns países têm uma ou mais
linhas oficiais, conforme lista a “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de
vida da população brasileira”, publicação do IBGE, de 2017 (IBGE, 2017). De acordo com o
40
IBGE, no Brasil, há diversas linhas (chamadas administrativas) utilizadas pelas políticas, tais
como linhas do Programa Brasil sem Miséria (PBSM) – R$ 85,00 (pobreza extrema) e R$
170,00 (pobreza) em seus valores de 2016 – e a linha do Benefício de Prestação Continuada
(BPC) – definida como o rendimento domiciliar per capita abaixo de ¼ de salário-mínimo.
Essas linhas podem ser definidas por lei (como o BPC na Lei no 8.742, de 07.12.1993,
atendendo ao princípio constitucional de as pessoas viverem e envelhecerem com dignidade)
ou por decisões administrativas (IBGE, 2017). Assim, de acordo com a linha do PBSM, 4,2%
da população brasileira vivem em pobreza extrema. Já no tocante à referência de rendimento
familiar abaixo de ¼ do salário, são 12,1% (IBGE, 2017). Recortes de pobreza mais altos
incluem a população com até meio salário-mínimo per capita, o que resulta em um total de
29,9% de brasileiros abaixo da linha.
Outra medida relevante é o recorte da linha de pobreza extrema internacional,
constituída com suporte nos 15 países mais pobres, estabelecida como indicador global e
calculada pelo Banco Mundial. Seu valor é atualmente de 1,90 dólar americano por dia de
renda ou consumo per capita em Paridade de Poder de Compra (PPC) revisada em 2011.
Mesmo se calculada com base nos países mais pobres, essa linha tem muita relevância no
conceito mundial, pois o relatório global de acompanhamento da Agenda 2030 estimou que
ainda havia 767 milhões de pessoas na pobreza extrema em 2013. Por ela, haveria um
percentual de 6,5% de brasileiros na pobreza (IBGE, 2017).
No plano internacional há, além da linha de pobreza extrema global, outras que se
constituem com procedência nas linhas nacionais e dão conta das diferenças de nível de
desenvolvimento dos países. Atualmente, para países de nível médio-alto de
desenvolvimento, como os da América Latina, o Banco Mundial usa a linha de 5,5 dólares por
dia PPC (revisão 2011). Calculada com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
(PNAD) Contínua, a linha de 5,5 dólares por dia correspondia a R$ 387,07 em 2016 e incluía
25,4% da população brasileira na pobreza, tendo a maior incidência no Nordeste (43,5%) e a
menor no Sul (12,3%) (IBGE, 2017). Essa é considerada importante pelo IBGE porque
detalha o nível de vida da população brasileira, revelando desigualdades. Avaliar as
diferenças regionais é importante para apontar os lugares onde maiores e menores
contingentes de pessoas estão passando por dificuldades econômicas em virtude de não terem
acesso a recursos monetários (que permitem aceder a bens e serviços oferecidos para a
compra). Ao se avaliar essas desigualdades, as unidades da Federação e capitais das regiões
41
Norte e Nordeste despontam, com os maiores valores no Maranhão (52,4%), Amazonas
(49,2%) e Alagoas (47,4%) (IBGE, 2017).
Por outro lado, esse recorte é válido para desnudar, como o faz a publicação referida, o
fato de que a pobreza monetária atinge mais fortemente crianças e jovens (17,8 milhões de
crianças e adolescentes de zero a 14 anos, ou 42 em cada 100 crianças em 2016). Também há
elevada incidência em homens e mulheres pretos ou pardos, respectivamente, 33,3% e 34,3%,
contra cerca de 15,0% para homens e mulheres brancos. Outro recorte relevante é dos arranjos
domiciliares, no qual a pobreza medida pela linha de 5,5 dólares por dia mostra alta incidência
no arranjo de mulheres sem cônjuge com filho(s) até 14 anos (55,6%) e ainda maior nesse tipo
de arranjo formado por mulheres pretas ou pardas (64,0%), o que indica o acúmulo de
desvantagens para este grupo que merece atenção das políticas públicas (IBGE, 2017). Releva
destacar a Tabela 2.14 da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, que detalha a composição
do total de pobres, descrevendo que quase ¾ ou 72,9% eram pessoas de cor ou raça preta ou
parda, o que explicita a concentração de desvantagens (IBGE, 2017).
Impõe-se considerar, ainda, na esteira do que se mostra no estudo sob relação, um
conceito de pobreza que não se limita ao aspecto monetário, avaliando outras vulnerabilidades
que implicam limitação no exercício de direitos às pessoas que se encontram nessa situação.
Assim, a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE analisa a pobreza também como fenômeno
multidimensional, pensando, com amparo nos indicadores da PNAD Contínua, em um recorte
de pessoas sem acesso à educação, à proteção social, à moradia adequada, aos serviços de
saneamento básico e à comunicação (IBGE, 2017).
Uma análise com esse escopo complementa o exame da pobreza monetária e permite
observar a quantidade de pessoas sem acesso a essas dimensões (direitos), assim como a
intensidade dessas privações (IBGE, 2017). Para tal exercício, foram consideradas cinco
restrições de acesso: 1) À educação – crianças e adolescentes de 6 a 14 anos de idade que não
frequentavam escola, pessoas de 15 anos ou mais de idade analfabetas e pessoas de 16 anos
ou mais de idade que não possuíam ensino fundamental completo; 2) À proteção social –
foram consideradas carentes as pessoas que satisfaziam simultaneamente as duas condições a
seguir – residentes em domicílios onde não havia nenhum morador de 16 anos ou mais de
idade com trabalho formal ou aposentado/pensionista; domicílios com rendimento domiciliar
per capita inferior a ½ salário mínimo, e com nenhum membro recebendo rendimentos de
outras fontes, o que inclui programas sociais; 3) À moradia adequada – foram consideradas
42
carentes as pessoas residindo em domicílios sem banheiro ou sanitário de uso exclusivo do
domicílio, com paredes externas construídas predominantemente com materiais não duráveis,
com adensamento excessivo ou com ônus excessivo com aluguel; 4) Aos serviços de
saneamento básico – foram consideradas carentes as pessoas residentes em domicílios que
não tinham acesso simultâneo a três serviços de saneamento definidos por coleta direta ou
indireta de lixo, abastecimento de água por via de rede geral, esgotamento sanitário por rede
coletora ou pluvial; 5) À comunicação – foram consideradas carentes as pessoas residentes em
domicílios sem acesso à internet (IBGE, 2017).
Para o estudo da pobreza monetária (unidimensional), o IBGE identificou os pobres e os
agregou, quer dizer, somaram-se as pessoas abaixo da linha escolhida para se chegar à
proporção de pobres (IBGE, 2017). No caso da pobreza multidimensional, utilizou uma
pergunta de partida: em quantas dimensões é necessário haver privação para considerar a
pessoa como pobre multidimensional? No caso, adotou-se o recorte em ao menos uma
privação para identificar a pessoa na pobreza multidimensional, pois a orientação pelos
direitos humanos leva a escolher a abordagem que privilegie a irredutibilidade e o caráter
insubstituível dos direitos humanos (IBGE, 2017). Assim, os dados do referido estudo
mostram distintas incidências de restrição de acesso, do mesmo modo que 64,9% da
população brasileira tinham restrição em pelo menos uma das dimensões estudadas em 2016.
Tal incidência variava segundo os grupos populacionais, atingindo 80,0% das pessoas de 60
anos ou mais de idade, com seu ápice (81,3%) concernindo a mulheres pretas ou pardas sem
cônjuge com filhos pequenos no domicílio (IBGE, 2017b).
Para o total do país, as dimensões que mais contribuíam para a pobreza
multidimensional eram a restrição de acesso a saneamento básico (30,1%) e à comunicação
(25,5%), sendo que a primeira mostrou intensa variação regional, com maior papel nos
Estados do Norte e Nordeste, contribuindo em 48,2% no Amapá e 45,3% em Rondônia
(IBGE, 2017). Finalmente, descrevendo o papel das dimensões na pobreza multidimensional
por grupos, é possível destacar que os grupos etários são afetados de modo diferenciado pelas
restrições: a população idosa se mostrou, sobretudo, prejudicada na dimensão educação e
acesso à internet, enquanto crianças e adolescentes até 14 anos foram mais afetados pelo
acesso precário à comunicação e a serviços de saneamento básico (IBGE, 2017). Arranjos
monoparentais femininos com filhos até 14 anos mostram-se mais vulneráveis do que o total
da população nas dimensões de condições de moradia e de proteção social, sendo que esta
última contribui em 26,5% para a incidência ajustada de pobreza de mulheres pretas ou pardas
43
sem cônjuge com filhos pequenos, sendo então importante atenção ao acesso a trabalho
formal por esse grupo (IBGE, 2017).
Esses dados contribuem para a delineação de um panorama da pobreza no Brasil,
identificando-se privações que não se limitam à precariedade de renda, revelando, ainda,
renitente concentração na população feminina, bem como entre os negros e pardos. Assim, o
crescimento econômico experimentado pelo Brasil, posicionando-o entre as principais
economias do Planeta, não foi suficiente para amenizar o grave problema da pobreza,
caracterizada como estado de privação do exercício dos mais básicos direitos humanos.
Essa população, portanto, em relação à qual o rol de direitos assegurados na
Constituição não passa de mera promessa, é a mesma selecionada pelo sistema penal,
submetendo-se a constante e intensa criminalização, como será analisado detidamente nos
tópicos que seguem.
1.2 Criminalização da pobreza: conceito e espécies
A previsão de condutas em relação às quais o Estado ameaça responder com a
imposição de penas (cominação legal), somada à maneira como se dá a intervenção das
instituições na efetivação das citadas previsões, constitui o que se denomina criminalização.
Nessa perspectiva, pretende-se identificar em que situações o atuar estatal confere distinta
dignidade às pessoas, conforme sua classe social, tomando os socialmente vulneráveis por
objetos e não sujeitos de direitos, desconsiderando o valor dignidade humana, conforme já
aludido. Com efeito, segregar grupos sociais, tratando-os como inimigos e apontando-os
como responsáveis pela insegurança pública, somente contribui para o aprofundamento do
problema.
Como adverte Bauman (2003, p. 128), “nenhum dos contendores ganha em segurança
na guerra entre “nós” e “eles”; todos, porém, viram alvos fáceis para as forças globalizantes –
as únicas forças que se beneficiam com a suspensão da procura por uma humanidade comum
e com o controle conjunto sobre a condição humana”.
En nuestro presente, el sujeto excluído es portador de una peligrosidad que le confiere el lugar social del enemigo […] Y este enemigo en tanto integra um colectivo social, el de los excluidos, los que están o deben estar afuera, deben anclarse en un espacio social y territorial ajeno al espacio de nosotros, su circulación, su visibilidad se convierte en una amenaza en tanto seguros ofensores, seguros delincuentes, alimentando la “obsesión securitária”, con propuestas
44
políticas y de gestión de lo social fundadas en la incapacitación, neutralización y si es necesario la eliminación de ese “otros” amenazantes. (DAROQUI, 2009, p. 17).
Posturas dessa natureza devem ser evitadas pelo Estado e combatidas pelas pessoas ,
lançando mão, inclusive, das próprias instituições estatais desenhadas para impedir a ofensa
ao Direito, cumprindo-se, assim, a promessa de um Estado Democrático de Direito, que não
se compatibiliza com tratamento diferenciado sem uma razão lógica subjacente, que esteja
afinada com o valor motriz da dignidade da pessoa humana.
Como adverte Young (2002, p.71), “o sistema de justiça criminal seleciona
‘amostragens’ particulares cuja base não é aleatória, mas o próprio estereótipo”. Esse agir
direcionado ocorre, assim, desde o momento da cominação legal, quando são previstas
punições abstratas invariavelmente mais severas para os crimes atribuídos normalmente às
camadas mais pobres da população. Prossegue quando da atuação dos órgãos persecutórios e
jurisdicionais, quando se percebe uma atuação focada no recrudescimento da repressão sobre
os mais pobres, observado desde o modo de abordagem policial nas periferias, passando pelas
decisões judiciais seletivas, até o momento do cumprimento da pena em estabelecimentos
prisionais sobejamente precários.
Por fim, mas não menos importante, fundamental é o papel da mídia na elaboração e
reprodução de critérios seletivos injustificáveis quando da divulgação de eventos criminosos,
havendo notório comportamento diverso conforme esteja tratando de crimes praticados por
pobres ou dos chamados “crimes de colarinho branco”, cujo dano difuso é muito mais
significativo, mas não recebem a cobertura e a indignação manifestada pelos comentaristas
midiáticos.
O que se observa ao fim dessa combinação de eventos direcionados ao controle sobre a
população vulnerável é o fenômeno do encarceramento em massa. A população prisional
brasileira aumentou 400% nos últimos 20 anos e o Brasil já ocupa a 4ª posição entre as nações
com maior número de presos no mundo, representando a única dentre as quatro que mantêm o
ritmo crescente de encarceramento. Após seguidos crescimentos, o índice em território
brasileiro saltou de 287 presos por 100.000 habitantes, no ano de 2012, para 300 em 2014,
segundo o informe do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Nos Estados Unidos,
país conhecido pelo rígido controle da criminalidade com detenções, a taxa caiu de 758 para
707, em um período de sete anos. Na Rússia, os números despencaram de 609 para 467.
Enquanto isso, na China, na última década, há uma ligeira variação ano a ano de 122 a 124.
45
Os dados do DEPEN mostram que atualmente há 574.027 presos distribuídos em 317.733
vagas – quase duas vezes acima de sua lotação (BENITES, 2014). Se forem acrescidas as
pessoas sob regime de prisão domiciliar, chegava-se aos 715.592 privados de liberdade,
alçando o Brasil à condição de 3a. maior população prisional do Planeta, conforme dados de
junho de 2014, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), (2014). Com os dados consolidados
de 2016, quando se realizou o último censo penitenciário, o DEPEN informa que a população
prisional até junho desse ano era de 726.712 encarcerados, para 368.409 vagas, resultando em
uma taxa de ocupação de 197,4% e uma taxa de encarceramento de 352, seis para 100 mil
habitantes (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017).
Outros números ajudam a desenhar o problema, sob o enfoque apresentado. Como
noticia o jornal El Pais, a maioria da população prisional brasileira é negra ou parda (61,68%),
é analfabeta ou concluiu no máximo o primeiro grau (68%) e cometeu crimes não violentos,
como furto, tráfico de drogas e estelionato, entre outros (51%) (BENITES, 2014). Não há uma
predisposição atávica dessa parcela da população ao crime. O que ocorre é uma seletividade
estatal, desde a definição de quem serão os abordados pela polícia até o momento da decisão
judicial final, tornando a população prisional um aglomerado de pessoas das camadas sociais
desfavorecidas. Destaque-se o fato de que a observação não adentra o mérito da inocência ou
não dos alcançados pelo braço repressivo do Estado, mas que este está voltado a agir de modo
muito mais constante (quando não a única) contra a parcela mais vulnerável da população, o
que implica alcançar culpados e, muitas vezes, também inocentes.
Os elevados índices de criminalidade e o incensado desejo social por segurança pública,
cuja urgência é amplificada por setores da mídia, conduzem as políticas públicas por
caminhos absolutamente contrários à solução do problema. Opta-se pelo fortalecimento do
Estado penal, ao mesmo tempo em que se determina o encolhimento do Estado social,
condenando milhões de pessoas à pobreza e, consequentemente, à sua criminalização, em
muitas situações. Para Loic Wacquant, “à atrofia deliberada do Estado social corresponde a
hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida
direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro” (WACQUANT, 2001, p.
80). “O cordão sanitário atuarial separa o mundo dos perdedores do mundo dos vencedores,
numa tentativa de realizar o seguinte: tornar a vida mais tolerável para os vencedores e
transformar os perdedores em bodes expiatórios” (YOUNG, 2002, p. 42).
46
Quando o medo é ubíquo, a incerteza ganha as ruas e, para enfrentá-la, são elaboradas
estratégias de antropomorfização (para dar um rosto ao perigo) e espacialização (para
associar o medo a um território), estratégias relacionadas entre si (RODRÍGUEZ ALZUETA,
2014, p. 67). Todo o temor social concentra-se, então, na pobreza, encarada como causa do
delito e da violência social, enquanto os crimes de colarinho branco e de corrupção política,
demasiadamente abstratos e distantes, livres de estigmas sociais, não são referenciados como
produtores de medo (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 33).
As demandas por saúde, educação, emprego, moradia e outras promessas advindas com
o surgimento do Estado social são solenemente ignoradas. Doutra banda, o Estado penal,
agigantado, abate-se sobre uma só espécie de criminalidade, que em muitas situações é
resultante do abismo entre o que se defende como sinônimo de felicidade e a falta de
condições para alcançá-la por amplas parcelas da população. Com efeito, um enorme
contingente de indivíduos é privado de várias modalidades de liberdade, representando um
entrave sério ao desenvolvimento, na perspectiva adotada por Sem (2010, p. 10), para quem
“[...] o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as
escolhas e oportunidades das pessoas de exercer preponderantemente a sua condição de
agente”.
As políticas neoliberais mundo afora tentam, não só, diminuir o Estado, mas também
redesenhar os parâmetros da sociedade civil, excluindo as ordens mais baixas de sua órbita,
negando-lhes educação decente, serviços de saúde e direitos legais enquanto seus direitos
políticos são esvaziados e tornados inconsequentes; ao mesmo tempo, no campo da lei e da
ordem, as áreas que têm escolas pobres e serviços sociais precários também têm um
policiamento aleatório, que reage a grandes distúrbios, não é empregada da cidadania local, é
seu guarda (YOUNG, 2002, p. 84).
Conforme vaticina Batista (2013, p. 54), “o sistema penal está estruturalmente montado
para que não opere a legalidade processual e para exercer seu poder com o máximo de
arbitrariedade seletiva dirigida aos setores vulneráveis”. Bauman (2013, p. 10) identifica uma
“tendência, cada vez mais evidente, de reclassificar a pobreza, o mais extremo e problemático
sedimento da desigualdade social, como um problema de lei e ordem, exigindo assim medidas
em geral empregadas para enfrentar a delinquência e os atos criminosos”. Para Wacquant
(2001, p. 10) é estabelecida verdadeira ditadura sobre os pobres, quando se desenvolve o
Estado penal em resposta às desordens geradas pela desregulamentação da economia, pela
47
dessocialização do trabalho assalariado e pauperização relativa e absoluta de amplos
contingentes do proletariado urbano, ao mesmo tempo em que se aumentam os meios, a
amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário.
O problema não pode ser encarado exclusivamente desde práticas jurídicas e repressivas
próprias do Estado moderno, já que se trata de um sistema penal próprio de um mundo cada
vez mais alheio à realidade contemporânea. Se as práticas delitivas estão vinculadas ao
fracasso dos principais mecanismos integradores tradicionais, como o trabalho e a educação
formal, é evidente que a aplicação isolada de medidas jurídicas (principalmente penais) não
desconstituirá esse processo falido (INNAMORATO; CANAVESSI, 2015, p. 47). De acordo
com Miriam Abramovay, “o fomento da violência entre os jovens latino-americanos possui
íntima relação com as desigualdades e o não-acesso à riqueza e cidadania, ou seja, a exclusão
social. Combater o problema da crescente violência requer, pois, políticas públicas que
busquem superar a condição vulnerável desses jovens” (ABRAMOVAY et al., 2002, p. 66).
1.2.1 Criminalização primária da pobreza
Chama-se criminalização primária à atividade de estabelecer que condutas devem ser
alcançadas pela lei penal, as gradações punitivas de acordo com a gravidade, além do
tratamento processual penal diferenciado, assentado igualmente em uma escala valorativa
estabelecida a priori pelo legislador. Cabe, portanto, ao poder legiferante do Estado
estabelecer os critérios de criminalização que, de modo inicial (primário), incidirão sobre as
condutas.
Logicamente, se enxerga a seletividade no próprio ato de definir que condutas serão
criminalizadas e quais serão tratadas por outros ramos do Direito, ou simplesmente ignoradas
por pertencentes à seara exclusiva da moral, ou por serem indiferentes. O que mostram a
história e os exemplos colhidos na legislação brasileira, entretanto, é que os critérios de
seleção obedecem a lógicas de controle social reforçado sobre determinada camada da
população e de tratamento leniente com aquelas que gravitam em torno do poder econômico e
político.
A verificação das mais variadas configurações de criminalização de certas parcelas da
população desnuda como a pobreza pode de fato funcionar como causa de violação de
direitos. Consoante entende Mellim Filho (2010, p. 60), o controle das “classes perigosas”
nasce de mecanismos que perpassam toda a sociedade, “objetivando a reforma moral de parte
48
dos indivíduos não pelo que efetivamente fizeram, mas pelo que eventualmente possam
realizar”, muitas vezes com a “explícita seleção de pessoas feita por parte das leis penais, de
forma a demonstrar como se procede a valorização de fatos não pelo que, à primeira vista,
significam em si, mas porque, por trás deles, encontram-se determinadas pessoas que
necessitam ser punidas e controladas” (MELLIM FILHO, 2010, p. 60).
Na análise criminológica de Baratta (2002, p. 176),
A seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam com o mecanismo de atenuantes e agravantes. As malhas do tipo penal são, em geral, mais sutis no caso dos delitos próprios das classes sociais mais baixas do que no caso dos delitos de “colarinho branco”. Estes delitos, também do ponto de vista da previsão abstrata, têm uma maior possibilidade de permanecerem impunes.
Como percebe Oscar Mellim Filho, em relação às condutas normalmente atribuídas aos
pobres (crimes patrimoniais), são utilizadas técnicas que costumam agravar as soluções
penais, deixando pouco espaço para soluções absolutórias ou de baixa punibilidade (MELLIM
FILHO, 2010, p. 25). “Já os crimes contra a ordem tributária, por exemplo, trazem, na própria
lei, vias alternativas e estratégicas de despenalização” (MELLIM FILHO, 2010, p. 25-26).
Tal “atenção” desproporcional do legislador brasileiro conducente à criminalização da
pobreza não se exprime somente nas normas atuais6. Já nas Ordenações Filipinas, que
regularam a vida na colônia brasileira por quase todo o período de domínio português (em
matéria civil até 1916), podia-se verificar no Título XXXVIII do Livro Quarto que,
Achando o homem casado sua mulher em adulterio, licitamente poderá malar assi a ella, como o adultero (7), salvo se o marido for peào, e o adultero Fidalgo, ou nosso Dezembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma, das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adullerio, não morrerá por isso mas será degradado para Africa com pregão na audiencia pelo tempo, que aos Julgadores bem parecer, segundo a pessoa, que matar, não passando de trez anos. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1870).
Isto é um escancarado tratamento discriminatório, na medida em que autorizava ao
marido vítima de adultério matar a sua mulher e igualmente o homem adúltero, salvo se o
marido for peão e o adúltero for fidalgo ou desembargador, ou “pessoa de maior qualidade”, o
que significa alguém de destacada posição social, quando então o homicídio não estaria
autorizado, sujeitando o eventual homicida nessas circunstâncias a ser degradado para a
África.
6 Uma análise mais detalhada da seletividade penal na história brasileira encontra-se no segmento 2.2 - A
seletividade penal na história brasileira.
49
Já no Código Criminal do Império, de 1830, era prevista a criminalização de vadios e
mendigos nos artigos 295 e 296. Assim, vadia era a pessoa sem “uma occupação honesta, e
util, de que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda suficiente”
(BRASIL, 1830), sujeita a pena de “prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias”. Já
para os mendigos, se estabelecia que
[...] andar mendigando: 1º Nos lugares, em que existem estabelecimentos publicos para os mendigos, ou havendo pessoa, que se offereça a sustental-os; 2º Quando os que mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos lugares não hajam os ditos estabelecimentos; 3º Quando fingirem chagas, ou outras enfermidades; 4º Quando mesmo invalidos mendigarem em reunião de quatro, ou mais, não sendo pai, e filhos, e não se incluindo tambem no numero dos quatro as mulheres, que acompanharem seus maridos, e os moços, que guiarem os cégos. Penas - de prisão simples, ou com trabalho, segundo o estado das forças do mendigo, por oito dias a um mez. (BRASIL, 1830).
Curioso é constatar que permanece vigente a Lei de Contravenções Penais - Decreto-lei
nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (BRASIL, 1941b) prevendo como ilícitos penais a
vadiagem, definida no art. 59 como “Entregar-se alguem habitualmente à ociosidade, sendo
válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou
prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena - prisão simples, de quinze dias
a três meses” (BRASIL, 1941 b). Interessante é que a aquisição superveniente de renda, que
assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena (parágrafo único). Já
a mendicância é descrita no art. 60 como: mendigar, por ociosidade ou cupidez: Pena – prisão
simples, de quinze dias a três meses. A pena é aumentada de um sexto a um terço, se a
contravenção é praticada: de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento; mediante simulação
de moléstia ou deformidade; em companhia de alienado ou menor de dezoito anos (BRASIL,
1941b).
Já no que se refere ao início do período republicano, Fausto (2014, p. 169), em
detalhada pesquisa divulgada no livro que intitulou Crime e cotidiano expôs que:
Pelo menos em um ponto, o Código penal de 1890 revela a expressa preocupação repressiva com a infidelidade dos criados. Como já mencionei, define-se como roubo a subtração praticada por alguém à noite “com auxilio de algum doméstico que tenha sido subornado”. Por sua vez, o Tribunal do Júri agravava em certos casos, mas não invariavelmente, a pena aplicada a empregados domésticos, reconhecendo que haviam procedido com abuso de confiança- uma circunstância agravante do crime. Talvez pela hesitação dos jurados, o Código penal de 1940 foi mais explícito, a considerar circunstância agravante “prevalecer-se de relações domésticas”.
Verifica-se inequívoca demonstração de criminalização primária, pois a norma é feita
sob medida, com o desiderato explícito de alcançar situações específicas e criminalizar
50
pessoas que exercem seus misteres no âmbito doméstico, invariavelmente pertencentes às
classes mais pobres, em evidente superproteção da classe proprietária, estabelecendo-se um
plus de penalização aos empregados domésticos que se atrevessem a praticar crimes contra o
patrimônio, sendo esta exatamente a finalidade da norma.
Releva considerar o fato de que o art. 61, II, “f”, hoje vigente, mantém como
circunstância que sempre agrava a pena ter o agente praticado o crime prevalecendo-se de
relações domésticas. Obviamente que tal alínea ganhou reforço considerável por passar a
referir-se às situações de violência contra a mulher, após a sua nova redação fixada pela Lei
11.340/06 (BRASIL, 2006), a chamada Lei Maria da Penha. O resquício de criminalização da
pobreza, contudo, manteve-se inalterado, como visto.
Conforme leciona Fausto (2014, p. 29-30), isto não é um problema meramente técnico,
mas está ligado à discriminação social e às opções da política repressiva, principalmente no
que tange às das contravenções.
Certas condutas passíveis abstratamente de sanção só se tornam puníveis quando se referem aos pobres. Basta pensar na embriaguez, contravenção aplicável somente aos indivíduos ‘pouco respeitáveis’, pois os demais não são bêbados, mas pessoas ‘tocadas’ ou ‘um pouco altas’. (FAUSTO, 2014, p. 29-30).
A contravenção de embriaguez estava prevista no art. 396 do Código Penal de 1890.
A legislação penal atual, embora sob os influxos de uma Constituição pródiga na
previsão de direitos fundamentais, permanece recheada de manifestações de tratamento penal
mais severo com destinatários específicos, nos moldes já apontados. Assim, de acordo com a
configuração do Estado Democrático de Direito, esperava-se que a legislação penal refletisse
a proteção dos bens mais importantes, punindo mais severamente condutas que causassem
maiores danos. Verifica-se, entretanto, é que há indisfarçável influência das instâncias de
poder econômico e político na formulação dessas normas penais, resultando em claras
distorções de previsão, punição e tratamento penal, privilegiando a proteção de símbolos do
status quo, enquanto condutas muito mais lesivas permanecem acobertadas por uma
legislação aberta, branda e repleta de caminhos de impunidade.
Assim, a título exemplificativo (pois são inumeráveis as hipóteses de ocorrência), é
possível identificar na legislação penal e processual penal brasileiras:
51
a) a opção pela pena privativa de liberdade para os crimes com penas elevadas, a maior
parte constituindo infrações que, ademais, são na prática apuradas com afinco em
processos criminais (roubo, extorsão), enquanto crimes de estelionato, apropriação
indébita, contra o sistema financeiro nacional, de corrupção, com penas cominadas
bastante baixas, levam o juiz a aplicar penas, no máximo, no regime semiaberto,
além de possibilitarem a substituição por penas restritivas de direitos (MELLIM
FILHO, 2010, p. 68);
b) a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), que estabeleceu normas mais duras para
crimes selecionados pelo legislador, a partir de uma ação casuística em resposta ao
sequestro dos empresários Martinez, Abílio Diniz e Medina (MELLIM FILHO, p.
70). Não se questiona a necessidade ou mesmo a opção por determinados crimes
como hediondos, mas se quer demonstrar que os critérios de determinação dos
crimes respondem a necessidade de proteção preferencial das camadas favorecidas
da sociedade, como o casuísmo comprova;
c) a Lei nº 8.137/90, que trata dos crimes contra a ordem financeira e tributária, que
causam danos gravíssimos à sociedade, atingindo um número de vítimas
incalculável, mas que, como são normalmente praticados por pessoas abastadas,
possuem definição bastante imprecisa, facilitando sobremaneira as absolvições e,
quando, raramente há condenações, estas são em penas baixíssimas (por serem essas
as previstas) (MELLIM FILHO, p. 72). Além do mais, “preveem a necessidade de
prévio esgotamento da esfera administrativa para a instauração da ação penal, além
da possibilidade, em alguns casos, de não propositura da ação em caso de pagamento
ou parcelamento do tributo” (MELLIM FILHO, p. 72).
d) a previsão de prisão provisória em quartéis ou prisão especial para certos indivíduos,
no art. 295 do Código de Processo Penal (CPP)7. Esta é uma inequívoca
demonstração de que há um tratamento diferenciado em relação a determinadas
pessoas, não necessariamente em razão da proteção do cargo que ocupam, mas
7 “Art. 295 do Código de processo Penal determina que serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à
disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: I - os ministros de Estado; II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia; III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembleias Legislativas dos Estados; IV - os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito”; V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; VI - magistrados; VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; VIII - os ministros de confissão religiosa; IX - os ministros do Tribunal de Contas; X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função; XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”. (BRASIL, 1941a)
52
principalmente pelo status social que ostentam, impedindo que sejam submetidas às
mesmas condições de encarceramento do “populacho”. Esta previsão representa,
praticamente, uma admissão de que o cárcere é um local de tamanho desrespeito aos
direitos fundamentais que não representa um lugar a ser ocupado pelos
representantes de estratos sociais dominantes. O § 1o do dispositivo escancara essa
constatação ao prescrever que a prisão especial, prevista neste Código ou em outras
leis, consiste exclusivamente no recolhimento em local distinto da prisão comum
(BRASIL, 1941a). O § 3o, por sua vez, ao estatuir que a cela especial poderá consistir
em alojamento coletivo, atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela
concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequados
à existência humana (BRASIL, 1941a) espanta qualquer dúvida de imparcialidade
que ainda pudesse existir, reforçado pelo § 4o, de acordo com o qual o preso especial
não será transportado juntamente com o preso comum (BRASIL, 1941a).
No âmbito do sistema interamericano, a CIDH, em minudente informe sobre pobreza,
pobreza extrema e direitos humanos nas Américas (CIDH, 2016a), não deixou passar ao largo
as reiteradas práticas de criminalização primária dos mais pobres:
También la CIDH observa que la situación de exclusión, desventaja y discriminación en que viven las personas en situación de pobreza se podría ver agravada por normas y prácticas que restringen la realización de ciertos actos, conductas o actividades en espacios públicos por ser consideradas “indeseables” o contrarias al orden público, como sería el caso de actividades relacionadas a la mendicidad, dormir y deambular en las calles, entre otros. La sanción o criminalización de dichos actos y conductas, aunado a los obstáculos que las personas que viven en situación de pobreza a menudo enfrentan para acceder a la justicia en igualdad de condiciones, contribuye a acentuar su exclusión y estigmatización. La CIDH considera importante resaltar que la prohibición de la mendicidad y actividades relacionadas podrían representar una violación a los principios de igualdad y no discriminación. (CIDH, 2016a).
Essas propostas legislativas de controle do delito restaram aprofundadas pela lógica
neoliberal individualista e excludente, como percebe Daroqui (2009, p. 20):
[…] seguiendo la lógica general del tratamiento neoliberal de los problemas sociales (o el conflito social), se intenta explicar el fenômeno social delictivo mediante la responsabilización individual de los delincuentes. Esto implica claramente la desresponsabilización colectiva y así la única explicación del delito debe encontrarse en el delincuente.
O enfrentamento à insegurança, do ponto de vista legislativo, concentra-se nos efeitos
do fenômeno e converte-se em uma irrefreável escalada punitiva de previsão de condutas
delituosas e recrudescimento da legislação penal. Como percebeu Foucault (2007, p. 226),
53
[...] os castigos não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distinguí-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que visam não tanto tornar dóceis os que estão prontos as transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles.
Definida assim a situação, as práticas das agências de controle social, nas palavras de
Canavesio, Damone e Magistris, “tendem cada vez mais a eliminar aqueles sujeitos desviados,
perigosos, não integráveis, cujas vidas custam cada vez menos, enquanto mantêm uma
determinada ordem social, contribuindo à reprodução de uma linha divisória entre incluídos e
excluídos” (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 193). Percebe-se que
criminalizar a pobreza apenas agrava os problemas existentes, “gerando sociedades com
índices exacerbados de tensão interna, atuando como um multiplicador da pobreza” (SEN;
KLIKSBERG, 2010, p. 275).
É de se destacar, com Alessandro Baratta, a ideia de que a legislação penal dos Estados
modernos passou por importantes transformações (como consequência do pacto social da
Modernidade), incluindo no catálogo dos delitos condutas realizadas frequentemente por
poderosos, mas, como mostram a História e a Sociologia dos Sistemas Punitivos, os concretos
destinatários permaneceram sendo os mesmos de sempre, em evidente demonstração de que
os destinatários do controle penal seguem sendo, preferencialmente, determinados tipos de
autor, pertencentes aos grupos sociais estigmatizados (BARATTA, 2003, p. 23).
A criminalização secundária, a ser estudada no segmento posterior, materializa-se como
consequência das opções de criminalização primária e, ao mesmo tempo, em relação
simbiótica e de retroalimentação, resulta do direcionamento das políticas públicas e
legislativas de enfrentamento ao crime, por meio da canalização das energias estatais para o
controle das chamadas “classes perigosas”.
Didier Fassin percebe, com efeito, que “a economia moral do labor policial faz eco a um
conjunto de representações sociais do desvio que, no transcurso das últimas décadas, sofreram
profundas transformações” (FASSIN, 2016, p. 242). Para o Sociólogo francês, “não somente
se ampliou de maneira significativa o espectro do que se considera desvio (o que se traduziu
em uma penalização crescente dos comportamentos), como também esta extensão associa-se a
uma caracterização dos desviados em termos sociais, raciais e, por fim, morais” (FASSIN,
2016, p. 242). Os desviados, assim, seriam identificados anteriormente à importância de
54
controle do desvio. Aspectos relacionados à pobreza, etnia e origem, ou ligados a preferências
de minorias seriam os alvos das políticas de criminalização primária, mesmo que as condutas
praticadas sejam infinitamente menos lesivas à sociedade do que as exercitadas pelas classes
favorecidas.
1.2.2 Criminalização secundária
Após a criminalização primária realizada pelos órgãos estatais legislativos, o processo
secundário é feito pelas instituições incumbidas da aplicação das leis, a começar pela Polícia.
Essa instituição, em um contato inicial com as condutas humanas, não deixa nunca de
“interpretá-las a seu modo e realizar uma primeira seleção penal, revelando ações que, em
tese, estão contidas nas normas penais, e sobrevalorizando outras, a incluir a adoção de
mecanismos punitivos colocados claramente à margem da lei” (MELLIM FILHO, 2010, p.
26). Como percebem López e Pasin (2015, p. 267) “a Polícia é central no processo de
criminalização secundária porque – com práticas seletivas e arbitrárias – inicia o mecanismo
mediante o qual se descarrega – via sistema penal em seu conjunto – uma ação punitiva legal
concreta sobre uma pessoa específica”.
Importante é considerar que a criminalização secundária produzida pelas instituições
policiais não é uma característica da atualidade. Em estudo abrangendo o final do século XIX
e início do XX, Fausto (2014, p. 35) identificou nos inquéritos policiais o fato de que “a fala
do acusado é parcialmente liberada para servir a determinados fins”. Como observou o
historiador,
No inquérito policial, o objetivo maior – quando a intenção é acusatória – consiste em extrair a confissão; já em juízo, o réu só pode responder sobre o que lhe é perguntado e suas respostas, inclusive por recomendação do advogado, devem ajustar-se não à verdade, mas à versão da defesa. Uma armadilha espreita a fala do acusado; em princípio, tudo o que disser a seu favor não constituirá prova em seu benefício, mas o que disse em contrário poderá levar à condenação ou ao agravamento da pena. (FAUSTO, 2014, p. 35).
O inquérito policial exclusivamente para fins condenatórios era amplamente usado no
Direito brasileiro. Tal distorção exigiu manifestação expressa do Supremo Tribunal Federal
(STF), buscando pacificar jurisprudência no sentido de que tal prática afronta o caráter
acusatório do processo penal, não se admitindo mais a manutenção de resquícios inquisitivos
em seu funcionamento8. Apesar disso, é frequente encontrar juízes que se insurgem contra
8 PENAL E PROCESSO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO FUNDADA SOMENTE EM
ELEMENTOS INFORMATIVOS OBTIDOS NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL NÃO
55
esse entendimento, produzindo condenações que legitimam informações nascidas sem o crivo
do contraditório, no inquérito policial, sob o argumento de que o livre convencimento
motivado do julgador prevalece, além de conferir ao princípio da verdade real interpretação
distorcida, em evidente afronta à presunção do estado de inocência, encartado na Constituição
Federal (CF) como garantia fundamental (art. 5º, LV).
Apesar de advir da legislação processual penal a noção de que o papel da polícia é
meramente auxiliar do Judiciário e de que as peças produzidas no inquérito policial não se
prestam a ensejar juízos condenatórios, observa-se na prática profissional que os processos
judiciais, embora formados sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, são meras
reproduções do que foi colhido em sede policial. Não raro, os testemunhos colhidos são
somente dos policiais que realizaram a prisão, cuja versão dos fatos vai prevalecer sempre,
seja perante uma decantada “fé pública”, seja ante a costumeira consideração de parcialidade
(a favor do réu) dos testemunhos que a eles se contrapõem.
Fausto (2014, p. 146), em sua pesquisa identificou que
Os inquéritos policiais convertem-se, muitas vezes, em malhas de arrecadação da massa da delinquência, que classifica as pessoas a partir de critérios sobre o que é considerado “gente honesta”. Entre estes, a cor, o traje, o uso de expressões, o jeito de andar ou o modo de ser difícil de definir – “o ar de quem vive na malandragem”, como diz um investigador de polícia.
Estes estereótipos, na realidade, são compartilhados por muitos setores sociais, que
enxergam potenciais criminosos nas pessoas que destoam da figura do homem branco, bem
vestido e seguidor dos padrões culturais dominantes, este sim, antecipadamente, considerado
o “cidadão de bem”.
Tal conforma um inegável resquício da criminologia positivista, na qual, conforme
Cepeda et al. (2009, p. 111),
a força policial exerceu um programa fundamental, a partir de sua relação de proximidade com as denominadas classes perigosas, distinguindo, em primeira instância, aqueles portadores da “má vida” (jogadores, alcoólatras, prostitutas,
CORROBORADOS EM JUÍZO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. AÇÃO PENAL IMPROCEDENTE. 1. A presunção de inocência exige, para ser afastada, um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal. No sistema acusatório brasileiro, o ônus da prova é do Ministério Público, sendo imprescindíveis provas efetivas do alegado, produzidas sob o manto do contraditório e da ampla defesa, para a atribuição definitiva ao réu, de qualquer prática de conduta delitiva, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova. 2. Inexistência de provas produzidas pelo Ministério Público na instrução processual ou de confirmação em juízo de elemento seguro obtido na fase inquisitorial e apto a afastar dúvida razoável no tocante à culpabilidade do réu. 3. Improcedência da ação penal. (BRASIL. STF. 2018)
56
vagabundos, etc.) que ameaçavam a ordem moral, para então etiquetá-los como “delinquentes perigosos”, atentadores contra a ordem material e política. A partir deste “contato cotidiano de proximidade”, eixo central dos discursos auto-legitimantes da polícia até a atualidade, a polícia converteu-se em uma instituição necessária para capturar os sujeitos perigosos que então seriam estudados, classificados, enclausurados e, também, muitas vezes, eliminados.
No mesmo sentido é a observação de Jaqueline Sinhoretto, ao estudar etnografias da
Polícia Civil (PC) feitas no Brasil, concluindo que,
antes de se orientar pela legislação processual – que obriga a apurar e dar andamento a todas as comunicações de delitos -, a polícia mobiliza conhecimentos específicos informais que hierarquizam e permitem a seleção dos casos que serão investigados e levados ao conhecimento do judiciário e os que serão administrados por vias extralegais de conciliação ou punição, e aqueles cujo tratamento será evitado. (SINHORETTO, 2014, p. 406).
É indiscutível que a consolidação democrática observada no mundo (e especificamente
na América Latina) produziu consideráveis avanços na luta contra as diversas modalidades de
estigmatização e discriminação em bairros pobres, sendo possível identificar práticas policiais
comunitárias de inserção e convivência pacífica com essas populações vulneráveis. Por outro
lado, os instrumentos de monitoramento e denúncia de violações de direitos humanos foram
reforçados, principalmente após a internacionalização dos direitos humanos, verificada no
pós-Segunda Guerra Mundial. Ainda é possível identificar, entretanto, muitas práticas
antevistas como criminalização secundária da pobreza.
O Centro de Estudos Legislativos e Sociais (CELS) realizou pesquisa nesse sentido na
Cidade Autônoma de Buenos Aires de 2012 a 2014, registrando 7.458 detenções para
averiguação de identidade, de acordo com a Polícia Federal, das quais apenas 2% derivaram
em uma causa penal. Assim, “98% das pessoas detidas foram liberadas sem qualquer
acusação formal, ou seja, sem que se identificasse algum delito ou pedido formal de captura
ou prisão” (CELS, 2016, p. 16).
Na busca de identificar os critérios utilizados nessas detenções, além do fato forma de
agir policial, o CELS perguntou aos policiais por que paravam nas ruas a determinados
jovens. Como resposta eles recorreram a uma frase que sintetiza algo que creem ser um
expediente eficaz para reconhecer potenciais delinquentes com uma simples olhada: o “olfato
policial” (CELS, 2016, p. 22). De acordo com os agentes, é uma destreza que não se aprende
com instrução formal, mas por meio da experiência, permitindo-lhes identificar aquilo que
chamam “atitude suspeita”. O “olfato policial”, entretanto, “é uma noção que os policiais
usam para legitimar suas ações porque serve de aparente justificação para qualquer tipo de
57
intervenção, representando, na realidade, uma porta aberta para a arbitrariedade” (CELS,
2016, p. 22). Para Fassin (2016, p. 22), “os policiais que patrulham os bairros carentes não
estão cumprindo a lei, como eles mesmos descrevem a sua atividade, mas fazendo cumprir
uma ordem social caracterizada por uma iniquidade econômica crescente e uma expansão da
discriminação racial”.
Sinhoretto (2014, p. 406) considera que “o saber policial informado, baseado em visões
etiológicas do crime que aliam traços de racismo científico a teses ecológicas9, acredita poder
reconhecer os criminosos em seus sinais, hábitos, linguajar, vestimenta, locais de circulação”.
Assim, reunir-se com outros em uma esquina, estar na rua em determinados horários, usar determinadas roupas, praticar determinados esportes está proibido, de maneira arbitrária, em alguns bairros, pois as forças de segurança decidem proscrever certos costumes dos jovens, mesmo quando não são delitos ou contravenções (CELS, 2016, p. 28).
Nas palavras de López e Pasin (2015, p. 273),
Percebe-se uma massa normalizada de práticas e rotinas policiais sobre os territórios periféricos que inclui a orientação seletiva sobre os mais jovens, especialmente àqueles que são caracterizados como “próximos ao delito”, pelo uso de drogas, permanência no espaço público, circulação em horário noturno e as vestimentas utilizadas, que conformam o arquétipo do jovem pobre, urbano e marginal.
Ainda observando a realidade portenha, o CELS denuncia o fato de que “na rua ou em
suas casas, ainda que não saibam, os jovens são fotografados, e suas imagens são exibidas na
delegacia à vista de todos, além de arquivadas, sem qualquer ordem ou controle judicial”
(CELS, 2016, p. 49). Conforme entende o Centro de Estudos, “estas informações, colhidas
ilegalmente pelos efetivos policiais, a pretexto de investigação, podem ser utilizadas para
produzir provas falsas ou desviar investigações, ou simplesmente como material de ameaça ou
extorsão dos jovens” (CELS, 2016, p. 49). O mais grave é que tais práticas contam com a
conivência ou convalidação judicial. É muito grave, pois, além de ofensivo a múltiplos
direitos, que inocentes sejam submetidos a condenações por malícia ou imprudência das
agências do sistema penal (CELS, 2016, p. 52).
Conforme percebe Hirst (2009, p. 262), o comportamento da polícia nas favelas
[...] sigue una diretriz represiva de ‘invasión’ y ‘ocupación’ consistente en que la policía entra, cumple su objetivo y se retira. Esto estimula una actitude violenta de
9 Dois conceitos são básicos para a compreensão da teoria ecológica do crime: o conceito de “desorganização
social” e a identificação de “áreas de delinquência”, que obedecem a uma gradiente tendency. Assim, os índices mais preocupantes de criminalidade são encontrados naquelas áreas da cidade onde o nível de desorganização social é maior. (SHECAIRA, 2014, p. 150-151).
58
las facciones y suscita entre los habitantes de las favelas una sensación de abandono de parte del poder público.
Kessler (2009, p. 95) considera estar
[...] demonstrado, em diversos contextos, que a desconfiança em relação à polícia, à justiça e o temor ao delito estão fortemente correlacionados e que, a escala local, o sentimento de insegurança, o delito e a desconfiança à polícia se retroalimentam, pois a polícia tende a estigmatizar seus habitantes, ao que se acresce os fatos de violência institucional.
Na visão de Cepeda et al. (2009, p. 104), o agir policial responde a lógicas institucionais
estruturadas e estruturantes da doxa policial. Para elas, “essa lógica constitutiva excede o
recorte individual de seus atores, mas se reproduz em e através de suas ações” (CEPEDA et
al., 2009, p. 104). Tais estudiosas, portanto, repelem o discurso de que os excessos policiais
sejam oriundos de falhas individuais, de alguns maus policiais, que seriam apenas “manzanas
podridas” (CEPEDA et al., 2009). “No se trata de errores, ni excesos, sino de prácticas
sistemáticas, la manera que tiene la policia de relacionarse con determinados sectores de la
sociedade” (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 98). Fassin (2016, p. 52) concorda ao
defender o ponto de vista segundo o qual
[...] o comportamento dos policiais não advém de características psicológicas ou morais, mas em função de sua história pessoal, da formação que receberam, da supervisão que têm, das condições de trabalho a que se submetem, das missões dadas pelos governos, das representações do mundo social produzidas pela sociedade.
As mesmas autoras argentinas identificam “uma ênfase em fazer ingressar na instituição
pessoas que demonstrem um passado de respeito à tradição, honra, pátria e seus símbolos,
muito mais que a critérios concretos sobre um atuar eficiente que respeite os direitos das
pessoas” (CEPEDA et al., 2009, p. 130). A exaltação da honra e do patriotismo
(correspondendo a um modelo castrense), resulta em valores ritualizantes que pouco se
relacionam com a declaração de funções da polícia em um Estado de Direito (prevenir delitos,
auxiliar a justiça e prover a segurança das pessoas), relegadas a um segundo plano, em função
da primordialidade da obediência e da defesa institucional (CEPEDA et al., 2009, p. 130). Sen
e Kliksberg (2010, p. 296) aduzem a ideia de que “essa lógica policial provoca uma
agudização extrema da tensão entre a polícia e as camadas pobres da população, deteriorando-
as de forma inevitável, carregando em si uma ameaça muito maior, que é a tendência a
criminalizar a pobreza”.
A própria instituição policial vê-se em situação muito delicada, pois a opinião pública espera dela resultados “mágicos”, que ela não tem condições de obter, sendo, pois, acusada de ineficiência e responsabilizada integralmente por um
59
problema cujas causas não estão sob seu controle, já que não têm como influir nas razões estruturais que levam ao aumento da criminalidade. (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 296).
Destaque-se, ainda, o fato de que os policiais, quase todos também oriundos de camadas
mais pobres da população, são recrutados para uma guerra da qual não intentam efetivamente
participar e, no enfrentamento diário com criminosos reais e fabricados, morrem e matam
excessivamente, sem fazer retroceder em nada a criminalidade e a exclusão.
O Ministério Público, por sua vez, possui a atribuição de titular da ação penal em
praticamente todas as ações. Assim, após receber as peças inquisitivas oriundas da polícia
judiciária, decide se há indícios suficientes para apresentar a ação penal perante o Judiciário.
No Brasil, por exemplo, com base nos poderes conferidos pela Constituição de 1988, em seu
art. 127 (BRASIL, 1988), o Ministério Público, por ser o defensor da ordem jurídica e das
instituições democráticas, tem a oportunidade (e, ao mesmo tempo, a obrigação) de atuar
como instituição de contenção de eventuais pulsões criminalizantes da pobreza que observem
na atuação policial.
Ocorre que, muitas vezes, não é isso que ocorre. O Ministério Público, em muitas
oportunidades, apenas reproduz, acriticamente, os elementos colhidos na esfera policial.
Sobre a atuação dessa instituição na criminalização da pobreza, importante é a visão de um de
seus membros, Mellim Filho (2014) Procurador de Justiça de São Paulo, que identifica as
principais manifestações demonstrativas dessas práticas em pesquisa sobre a atuação de
membros da instituição na seara penal. Ele entende, por exemplo, que a atuação seletiva do
Ministério Público é, em certas oportunidades, alimentada pela própria instituição e seus
doutrinadores, que, de maneira genérica e retórica, inculcam nos promotores de justiça a
necessidade de estabelecer prioridades sobre o combate às “ações mais danosas à sociedade”,
abrindo a possibilidade, assim, para uma ação seletiva em relação a determinadas situações e
pessoas (MELLIM FILHO, 2010, p. 143).
Investidos na função de acusadores, muitos promotores criminais, não raro, se
desinteressam pela discussão acerca da utilidade e destinação final de seu trabalho,
principalmente no que concerne à função e às consequências da pena de prisão, a ser
destinada a grande parte das pessoas acusadas, pretensamente uma medida ressocializadora e
justa (MELLIM FILHO, 2010, p. 145). É um problema sério o fato de que muitos dos
profissionais dessa instituição não tenham conhecimento da realidade prisional, dos efeitos
deletérios produzidos pelo cárcere, que é o destino de uma postura eminentemente punitivista,
60
olvidando o fato de que o encarceramento pode representar um fator de aprofundamento do
conflito instaurado pelo crime. A crença, rotundamente desmentida pela realidade, de que o
cárcere é instrumento de ressocialização, pode conduzir muitas ações a uma tentativa de
inserção de pessoas no ambiente carcerário, com a pretensão de que saiam “recuperados”,
ensejando, ao revés, potenciais reincidentes10.
A análise dos discursos de acusação, contidos nos processos criminais, revela que a atuação dos promotores, em linhas gerais, parece sofrer forte influência de um forte senso comum, também alimentado pela mídia policial, que, de forma maniqueísta, divide claramente a sociedade entre pessoas de bem e criminosos, auxiliando, de forma recíproca, na formação de uma concepção penal, com categorias e princípios, que vai reforçar uma postura severa e excludente, no sentido de considerar fora da sociedade, dentre os infratores das leis, as pessoas selecionadas pelo sistema penal. (MELLIM FILHO, 2010, p. 145).
Representantes de uma instituição que tem o relevante papel de defensora dos interesse
coletivos e difusos, os promotores de justiça, quando assim agem, apenas reverberam os
equívocos que os meios de comunicação social cometem ao tratar seletivamente determinados
setores da sociedade11.
“A adoção exacerbada de uma postura acusatória pragmática, em nome de uma
sociedade punitiva, parece conduzir o promotor de justiça criminal, que passa a encarnar o
papel de acusador público em sua sagrada missão de defesa da sociedade” (MELLIM FILHO,
2010, p. 148), até mesmo flexibilizando o sistema da legalidade estrita e “dispondo-se,
inclusive, a uma utilização do direito penal como fórmula atípica de resposta irracional às
chamadas demandas da sociedade, envolta em clima de emotividade ou manipulação por parte
dos meios de comunicação de massa” (MELLIM FILHO, 2010, p. 148). Quando assim atuam,
os membros do Ministério Público se desvestem da sua atribuição de fiscais da lei, na medida
em que escolhem que leis defendem e fiscalizam (as que preveem crimes e penas) e quais
olvidam (as que trazem benefícios aos acusados e apenados).
Segue em sua pesquisa Mellim Filho (2010, p. 149), indicando que
promotores de justiça agem, na prática, como criadores de punibilidade, servindo-se muitas vezes da via processual e do arsenal de regras de prova que lhe proporciona o próprio sistema penal, buscando ainda, para as hipóteses selecionadas, o alargamento das fronteiras do direito penal, assim entendendo-se o exercício da pretensão punitiva no limite máximo estabelecido em lei e, em certos casos, interpretando até como criminalizáveis condutas que podem ser mais facilmente acomodadas nos dispositivos das leis civis.
10 Sobre os efeitos deletérios do cárcere sobre a pessoa e a desmistificação do discurso de ressocialização, ver
segmento 2.3 – O cárcere como instituição destinada aos mais pobres. 11 Sobre o tema, ver segmento 1.4 – O papel da mídia na criminalização da pobreza.
61
Como exemplos dessas atuações, levadas a efeito por alguns membros, é possível citar:
desconsideração de aspectos favoráveis ao indiciado no momento da propositura da ação
penal, a fim de inviabilizar benefícios processuais; definição de crimes mais graves do que os
indícios apontam, para tentar demonstrar o fato com o processo; aposição de qualificadoras ou
causas de aumento de pena, ao mesmo tempo em que são desconsideradas causas de
diminuição e atenuantes; pedidos de condenação com base exclusivamente em elementos do
inquérito; insistência em teses inconstitucionais que representem recrudescimento do
encarceramento, mesmo ante a declaração de inconstitucionalidade pelo STF; atuação como
acusadores, também no processo de execução penal, pugnando, muitas vezes, pelo
prolongamento do cárcere, quando são, na realidade, órgãos da execução penal, do mesmo
modo que juízes e defensores públicos.
Boaventura de Sousa Santos pugna pela democratização do Ministério Público, citando
como exemplo “a necessidade de abandonar a postura repressiva, adotada por alguns de seus
membros, no que toca à criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, muitas vezes
extrapolando as suas atribuições no controle da legalidade” (SANTOS, 2017, p. 47). Com
efeito, não pode o Ministério Público firmar qualquer compromisso com a punição a qualquer
custo, ainda que em desrespeito aos direitos fundamentais, sob pena de abandonar uma das
principais funções estabelecidas pelas constituições dos países democráticos, que esperam
dessa instituição uma atuação isenta e representante dos interesses de toda a sociedade e não
apenas de sua parcela dominante.
Já a atuação do Poder Judiciário, por seus membros (juízes e tribunais), vem na
sequência das filtragens criminológicas realizadas pelos organismos policiais e, em seguida,
pelo Ministério Público, no que se convencionou chamar de controle formal do crime
(MELLIM FILHO, 2010, p. 187). “A estes cabe, nos processos criminais, instaurados sobre
casos previamente selecionados pela Polícia e pelo Ministério Público, decidir pela
condenação ou absolvição das pessoas acusadas” (MELLIM FILHO, 2010, p. 187).
Assim, o Poder Judiciário, que deveria funcionar como última trincheira de proteção
dos direitos fundamentais, converte-se em mero instrumento de convalidação do trabalho
seletivo conduzido pelas instâncias policiais, já que as audiências judiciais são, muita vez,
meras repetições do que foi colhido no inquérito policial, realizado sem o crivo do
contraditório e da ampla defesa. Como adverte Mellim Filho (2010, p. 153),
62
a reconstrução dos fatos já pode ter como objetivo a confirmação de uma verdade anteriormente escolhida, restando ao processo a confirmação de uma forma penal que, em cada caso, satisfaça o operador do Direito em seus interesses, relativamente à solução do conflito e na realização dos valores que encarnam.
Há, assim, nas palavras de López e Pasin (2015, p. 283), um certo “’dejar hacer’ a la
agencia policial por parte de la administración de la justicia”. Para elas “la noción de cadena
punitiva retoma todo su sentido en este marco, apuntando justamente a la superposición de
prácticas y al entrelazamiento entre las agencias del sistema penal”. Como percebem
Canavesio, Damone e Magistris (2009, p. 155):
De un modo o de otro, ya sea mediante el encierro o la eliminación, el sistema penal concentra su poder sobre ciertos grupos considerados peligrosos, sobre aquellos designados y señalados desde la alteridade, siendo la agencia policial el primer eslabón del sistema penal que determina quienes serán expostos a la justicia.
Em muitas situações, quando já não se recordam dos fatos narrados na denúncia, os
policiais-testemunhas limitam-se a confirmar o que disseram na presença da autoridade
policial, instados a esse proceder pelo representante do Ministério Público, com a
complacente aceitação do Judiciário. Tal observação, oriunda da prática profissional no
Brasil, é comum à percepção de Canavesio et al. (2009). no processo penal argentino, ao
ponto de ocorrer “uma inversão da premissa de que a polícia funcione como força auxiliar
para a conclusão de que, na realidade, é o Poder Judiciário que habilita e auxilia as
manifestações das forças repressivas” (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p.
178).
O abuso no manejo de prisões preventivas, tendo por alvo pessoas pertencentes aos
mesmos grupos sociais é mais uma demonstração de atuação do Judiciário tendente à
criminalização secundária da pobreza, além da postura condescendente ou omissa quando
pessoas etiquetados como delinquentes são mortos em “enfrentamentos” (supostos ou reais)
com as forças policiais.
Por outro lado, em sua pesquisa com agentes do sistema judicial penal em Buenos Aires
(promotores de justiça e juízes), Canavesio et al. (2009, p. 172-173) percebem que “se
delineia e constrói uma imagem do acusado como sujeito carente de racionalidade,
produzindo no imaginário judicial a figura de um sujeito essencialmente culpável e
delinquente”. Em complemento à ideia, descrevem:
Observamos en los discursos de los operadores del sistema penal de los emergentes: en primer lugar, se ve la falta de racionalidad como característica atribuida a las acciones de quienes delinquen y por lo tanto transferidas a los delincuentes; como
63
consecuencia, lo que subyace es un dejo de indignación ante la presencia de un monstruo, de un tarado frente al cual no hay razón posible. El delincuente es un ente que no reacciona, que no entiende, la ley es demasiado para él y no hay razones para defender sus intereses. (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 171).
De semelhante modo, recorrendo-se à investigação histórica da atuação judicial, Fausto
(2014, p. 259) identifica o fato de que “a especificação do desfecho dos processos segundo a
cor dos acusados mostra como a absolvição e o arquivamento, tomados em conjunto,
constituem um resultado minoritário quando se trata de negros ou mulatos e majoritário
quando se trata de brancos”. Trazendo dados referentes ao desfecho dos processos segundo a
cor, de 1880 a 1924, aduz que “indivíduos brancos obtiveram 63,6% de absolvições ou
arquivamentos (27,3% e 36,3%, respectivamente), enquanto negros ou mulatos apenas 42,6%
(20,2% de absolvições e 22,4% de arquivamentos)” (FAUSTO, 2014, p. 259).
Certamente o maior índice de condenações de pessoas de cor não é ocasional. Estamos diante do produto de um tratamento discriminatório, a partir de um handcap social amplo sobre o qual incide um conjunto de circunstâncias. Ou seja, não se trata apenas do preconceito genérico contra o preto; o que se tem diante dos olhos, cabisbaixo diante da imponência da sala de sessões, é um ser inferior – preto e pobre – acusado de um delito com relação ao qual há má vontade dos julgadores leigos ou togados, defendido apenas formalmente por um advogado de circunstância. (FAUSTO, 2014, p. 259).
A explicação para tal consequência está em que os operadores judiciais constroem uma
imagem do delinquente com esteio em elementos mais grosseiros do senso comum,
assemelhando seu discurso ao manifestado pela mídia e tomando acriticamente as versões
policiais como verdades absolutas, produzindo, desta forma, um sujeito que será tratado como
inimigo, já que a ele são atribuídos periculosidade e irracionalidade, como elementos
constitutivos de sua essência (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 192).
“Os juízes executam suas práticas como guardiães da fronteira social entre o aceitável,
incluído, útil e o descartável, excedente, excluído, construindo, com seu discurso, esta
imagem do delinquente que está à margem e cada vez mais os invisibilizam” (CANAVESIO;
DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 193). Obviamente que, ao assim agirem, simplesmente
legitimam os preconceitos que já vêm estampados sob o formato de criminalização primária
(legislação), reforçando, ainda, a atuação criminalizante pelas exigências crescentes de
proteção da propriedade oriundas das classes dominantes, amplificadas pelos meios de
comunicação que, por outro lado, exigem atuações cada vez mais restritivas de direitos
fundamentais, sob o pretexto de proteção da ordem pública. Esta é uma atitude que não
representa novidade. Como mostra Fausto (2014, p. 57), analisando as prisões segundo a
64
natureza dos crimes de 1892 a 1916 no Brasil, deixando claro que não se trata de uma
característica específica apenas da Modernidade, os delitos contra a propriedade
representaram 54,6% do total para o período.
“Juízes e promotores formam, então, a tropa de elite que dá funcionamento aos
mecanismos de distinção, exclusão e eliminação, colaborando na construção de uma fronteira
e de limites cada vez mais rígidos entre os incluídos e aqueles que ameaçam porque sobram
ou, porque sobram, ameaçam” (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p. 193). Com
efeito, ao se verificar que o sistema de justiça concentra seus esforços, como demonstrado, na
persecução e repressão dos mesmos crimes (em regra, roubo, furto e tráfico de drogas),
selecionam exatamente os indivíduos que se voltam a essas práticas delitivas como
consequência da exclusão e das pressões sociais por consumo como sinônimo de felicidade. O
caminho da criminalidade, para boa parte da população, é o único que resta para se alcançar
alguma posição e reconhecimento social, assim como a maneira de participar da comunidade
de consumidores. Colhidos pelas malhas da Justiça Penal, quase que inteiramente voltada para
o combate aos crimes citados, entretanto, tais indivíduos acabam sendo os que vão lotar as
unidades prisionais12. Importante é advertir para a noção de que a exposição supra é uma das
modalidades explicativas da criminalidade contra a propriedade e não uma fundamentação
apta a excluir a culpabilidade ou punibilidade daqueles que a praticam.
Como adverte Santos (2017, p. 17), “os tribunais não foram feitos para julgar para cima,
mas para julgar os de baixo. As classes populares, durante muito tempo, só tiveram contato
com sistema judicial pela via repressiva, como seus utilizadores forçados. Raramente o
utilizaram como mobilizadores ativos”. Prossegue defendendo o argumento de que isso ocorre
porque o campo hegemônico “dos negócios e dos interesses econômicos reclama um
Judiciário eficiente, rápido, que dê segurança jurídica e garanta a salvaguarda dos direitos de
propriedade” (SANTOS, 2017, p. 20-21). Mais adiante, o Sociólogo português leciona que
“as reformas se centram, muito seletivamente, nos setores que melhor servem aos interesses
econômicos, deixando de fora todos os outros”, para exemplificar com a constatação de que
“a formação dos magistrados é orientada, fundamentalmente, para as necessidades da
economia” (SANTOS, 2017, p. 21).
12 Obviamente, não se pretende explicar toda a criminalidade com amparo exclusivamente na teoria da anomia,
que constitui a base da reflexão desse parágrafo, já que conforma um fenômeno complexo e multifacetado.
65
Ainda de acordo com Santos (2017, p. 55), operadores do sistema judicial brasileiro
estão impregnados pelo “senso comum da democracia racial de Gilberto Freyre” (SANTOS,
2017, p. 55). Assim, juízes “assumem nas suas sentenças o preconceito racial de se julgarem
sem preconceito racial”. “Impõe-se uma outra formação que mostre que a sociedade
brasileira, como qualquer outra sociedade envolvida historicamente no colonialismo, é uma
sociedade racista e que o racismo tem de ser reconhecido para ser abolido” (SANTOS, 2017,
p. 55).
Outro problema identificado é relacionado à própria estrutura judicial:
A organização judicial estruturada de forma piramidal controlada no vértice por um pequeno grupo de juízes de alto escalão, onde o prestígio e a influência social do juiz dependem de sua posição na hierarquia profissional, acaba perpetuando o ethos profissional dominante e fortalece o espírito corporativista o que, na prática contribui para um isolamento social do judiciário, fechando-o, enquanto a sociedade em que ele se assenta vai se diversificando e torna-se cada vez mais plural. (SANTOS, 2017, p. 66).
Essa configuração se estabelece muito em razão dos estratos sociais de onde provêm
juízes, promotores e defensores públicos. Referindo-se aos recrutamentos dos membros do
júri no início do século XX, Fausto (2014, p. 253) anota que o corpo de jurados, embora
composto em sua maioria de profissionais liberais, servidores públicos, norteava-se por
valores da classe dominante, importando dizer que “pessoas das classes populares eram
julgadas segundo valores e representações mentais pelo menos até certo ponto estranhos a
elas” (FAUSTO, 2014, p. 253); além de significar que o júri não tinha homogeneidade,
“sobretudo nos processos em que se veiculam imagens conflitantes dos envolvidos, de acordo
ou em contraste com as respectivas identidades sociais” (FAUSTO, 2014, p. 253). Em outras
palavras, o júri guiaria seu comportamento de acordo com a correta ou incorreta interpretação
dos papéis destinados a cada classe.
Essa constituição elitista das carreiras jurídicas permanece inalterada. No Brasil, o
acesso às melhores instituições de ensino superior jurídico está franqueado àqueles que
estabeleceram as suas bases em escolas particulares de acesso restrito aos egressos das classes
dominantes, ante a precariedade do ensino público fundamental e médio. Ademais, apesar da
ampliação considerável do número de instituições de ensino superior no País, estas são em
sua quase totalidade, privadas, o que perpetua a circunstância de limitação de acesso.
Outrossim, o acesso às instituições do sistema de justiça se dá por um processo ainda
mais elitista, por depender de concursos públicos que exigem cada vez mais habilidades de
66
memorização e reprodução de conteúdos, esquadrinhados por cursos preparatórios, de acesso
ainda mais reduzido às classes dominantes que, no rescaldo, acabam obtendo êxito nessa
corrida desigual rumo às chamadas carreiras jurídicas. Uma vez ocupando tais cargos
públicos, esses profissionais vão atuar de modo cada vez mais apartado das finalidades das
instituições que representam, canalizando suas energias e esforços não às necessidades
coletivas, mas para lutas corporativas de manutenção do status quo, por demandas
completamente alheias à realidade nacional, com o único desiderato de manter-se pertencente
e vinculado às classes mais abastadas, de onde são oriundos, em sua maioria.
O Estado defensor13 também confere a sua parcela de contribuição para a criminalização
da pobreza. Em países como o Brasil, no qual compete ao Estado promover assistência
jurídica integral e gratuita, o simples fato de existirem inúmeras comarcas sem defensores
públicos já representa um desequilíbrio na relação processual penal, o que impede o exercício
do contrapoder representado pela Defensoria Pública, quando as demais instituições se
manifestam seletivamente em relação aos pobres.
Ademais, mesmo em locais onde há defensores públicos, condutas desses profissionais
podem conduzir a resultados criminalizantes da pobreza. Nesse caso, os agentes estatais que
deveriam representar escudos contra o problema14, podem concorrer para o seu
aprofundamento. Assim, quando defensores públicos da área criminal não se utilizam de todo
o arcabouço normativo de prerrogativas institucionais em favor dos assistidos, deixando-os
desamparados ante o poder punitivo estatal, estão contribuindo para que este se abata de
forma desproporcional sobre os mais pobres, que têm na Defensoria Pública, nas mais das
vezes, o último refúgio contra injustiças e excessos.
Outro aspecto a considerar é o percentual de processados nas varas criminais e apenados
nas varas de execuções penais assistidos pela Defensoria Pública. Esse fator é um indicativo
indisfarçável de qual é o público-alvo do poder punitivo do Estado, já que quase todos os
processos são protagonizados por pessoas sem condições de arcar com honorários
advocatícios. Por outro lado, a demanda excessiva funciona como instrumento de
enfraquecimento da atuação dos defensores públicos. Submetidos à necessidade de conferir
atenção individualizada para a melhor defesa possível, muitos defensores públicos sucumbem
13 O capítulo 3 trata especificamente da Defensoria Pública Brasileira e a sua atuação como Estado Defensor no
âmbito do processo penal. 14 O capítulo 4 trata exatamente das diversas formas de atuação que a Defensoria Pública deve empalmar para o
enfrentamento à criminalização da pobreza.
67
à necessidade de cumprir prazos e, ao mesmo tempo, manejar todos os recursos possíveis na
defesa da liberdade, o que transforma o seu dia a dia em mera reprodução mecânica de peças
processuais, em que são uniformizadas pretensões que, em muitas circunstâncias, exigiam
uma intervenção especializada e individualizada.
A mesma crítica formulada às demais instituições do sistema de justiça penal cabe aos
defensores públicos, normalmente oriundos da elite, beneficiados pelo acesso a uma escola de
qualidade no Ensino Fundamental e Médio, além de acessarem as melhores instituições de
Ensino Superior e, por fim, os cursos preparatórios para concursos que, por sua vez, nada
aferem de comprometimento social ou com os direitos humanos. Assim, muitos desses
profissionais, incensados pela necessidade de manutenção do status social ostentado por seus
membros familiares e amigos (muitas vezes pertencentes a outras instituições do sistema de
justiça), confundem defesa de prerrogativas com acesso a demandas corporativas nada
republicanas, em vez de denunciar a existência delas como instrumentos de encastelamento.
Afastando-se, sobremaneira, de seu público-alvo, frequentando e pertencendo à alta
sociedade, muitos defensores públicos deixam de sentir as pulsões criminalizantes que
quotidianamente se abatem sobre a população pobre. Nessa esteira, passam a compartilhar os
mesmos preconceitos que guiam muitos dos profissionais das demais carreiras do sistema de
justiça penal, convertendo a sua atuação diuturna em uma mera reprodução de exigências
formais da legislação, que invariavelmente conduzem à condenação dos suspeitos de sempre,
às penas de sempre.
1.3 Manifestações da criminalização da pobreza no mundo atual
Embora seja possível identificar uma tendência acentuada em países periféricos, em
razão da pronunciada característica de serem sociedades extremamente desiguais, em que o
fenômeno da pobreza e sua criminalização se destacam, o tratamento criminalizante de
parcelas desfavorecidas pode ser observado em todas as partes do mundo, com variações
apenas de grau.
Existem autores, inclusive, que identificam exatamente na Europa o ponto de inflexão
na atitude social de criminalização dos pobres. Kessler (2009, p. 23) considera a Revolução
Francesa como tal ponto de inflexão, em sua obra El sentimiento de inseguridad:
68
La Revolución Francesa marcó un ponto de inflexión puesto que la preocupación comenzó a dirigirse a la potencial insurrección de los pobres y se convertió así en una de las formas de oposición entre proletariado y burguesia. En este movimiento el crimen se transformo en un argumento de la lucha moral y política que denuciaba un vício detrás de la pobreza y la miseria. Y, en efecto, la severidad frente a los crímenes ligados al pauperismo fue muy alta, como la testemonia la extrema dureza con que los juzgados de Francia, Inglaterra y outros países europeus castigaron todo tipo de violencias y robos contra la propriedade, incluso los más fútiles, durante parte del siglo XIX.
De fato, como já demonstrado neste capítulo, as estruturas punitivas, principalmente as
mais recentes (que encontram na prisão seu ápice), surgem como instrumento de controle da
massa pauperizada, servindo, em suas raízes e posteriormente, como instrumentos de suporte
à ordem capitalista. O cárcere, por exemplo, vale relembrar, nasceu direcionado ao controle
de indesejáveis sociais e como instrumento de inocuização dos papéis a serem
desempenhados pelos pobres na ordem capitalista nascente. Posteriormente, como defendem
Bauman (2003) e Di Giorgi (2013), nas passagens citadas há pouco, a prisão passou a
funcionar como depósito de “sobrantes”, a saber, aqueles que, pela condição extrema de
pobreza, se tornam descartáveis (matáveis ou aprisionáveis), pela completa ausência de
condições de participar da sociedade de consumo.
Como escreveu Galeano (2010, p. 31), “Em muitos países do mundo, a justiça social
tem sido reduzida à justiça penal. O Estado vela pela segurança pública: dos outros serviços,
já se encarregará o mercado; e da pobreza, gente pobre, regiões pobres, Deus se ocupará, se a
polícia não alcança”. Prossegue o escritor uruguaio: “Nas Américas, e também na Europa, a
polícia caça estereótipos, culpáveis do delito de ‘portación de cara’. Cada suspeito que não é
branco confirma a regra escrita, com tinta invisível, nas profundidades da consciência
coletiva: o crime é negro, ou marrom, ou pelo menos amarelo” (GALEANO, 2010, p. 45).
Compreendidas as raízes históricas das ações destinadas à criminalização da pobreza,
urge destacar algumas manifestações recentes de tais práticas em diversos países, a fim de
desvelar como iniciativas aparentemente neutras, justas e imparciais representam, na
realidade, novas roupagens de um tratamento seletivo e discriminatório em relação às mesmas
camadas da sociedade, os inimigos de sempre.
Inicia-se por um modelo que auferiu ampla repercussão, por ter sido adotado em uma
grande cidade do país mais rico e poderoso do mundo, os Estados Unidos da América, além
de ter produzido cópias em muitos Estados, por meio de réplicas acríticas e sem considerar
realidades completamente distintas. Refere-se à política que ficou conhecida como “tolerância
69
zero”, caracterizada por conferir às forças da ordem, nas palavras de Wacquant (2001, p. 25),
“um cheque em branco para prosseguir agressivamente a pequena delinquência e reprimir os
mendigos e os sem-teto nos bairros deserdados”.
William Bratton, chefe de Polícia Municipal de Nova York no governo de Rudolph
Giulliani, no início dos anos de 1990, reorganizou o trabalho policial utilizando-se de três
meios: “aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das
responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de
resultados e um radar que permite uma ação quase instantânea da forças da ordem”
(WACQUANT, 2001, p. 26). Essa nova estratégia de atuação traduz-se em “uma aplicação
inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os
atentados aos costumes, simples ameaças e outros comportamentos anti-sociais associados
aos sem-teto” (WACQUANT, 2001, p. 26).
O componente de indisfarçável criminalização da pobreza é apontado por Wacquant
(2001, p. 26), que identifica como objetivo dessa política o de “refrear o medo das classes
médias e superiores por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos”.
Para Sen e Kliksberg (2010, p. 275), seu risco é o de resvalar para a “criminalização da
pobreza”, considerando “suspeitos” todos aqueles que denotarem sinais de pobreza ou de
pertencimento a minorias étnicas ou raciais, que se encontram afastadas ou excluídas da
sociedade, vítimas de sistemas econômico-sociais que não criam oportunidades concretas para
todos.
Como decorrência da política de tolerância zero, o delito caiu, enquanto, na mesma
proporção, aumentaram as denúncias de brutalidade policial, já que a repressão se
descarregou com sanha sobre os negros e outras minorias que somam a maioria da população
nova-iorquina, convertendo-se rapidamente em um modelo exemplar para as cidades latino-
americanas (GALEANO, 2010, p. 88).
Alessandro De Giorgi identifica, nos Estados Unidos, nos últimos 30 anos do século
XX, “uma mudança profunda tanto nas políticas sociais quanto nas penais, com um aumento
extraordinário do encarceramento, elevando a população carcerária ao mais alto número da
história contemporânea, fruto da substituição do Estado Social pelo Estado Penal” (DE
GIORGI, 2013, p. 52).
70
Ademais, o Criminólogo italiano traz à baila a teoria segundo a qual as baixas taxas de
desemprego estadunidense nos anos 1980/90 foram causadas “pelo incremento vertical do
encarceramento, que teria ocultado parte da população desempregada” e não pelas políticas de
flexibilização e liberalização do mercado de trabalho, porque “a gestão do desemprego e da
precariedade social parece ter passado do universo das políticas sociais para o da política
criminal” (DE GIORGI, 2013, p. 53). Levando-se em consideração apenas a população
afrodescendente, De Giorgi (2013, p. 52) demonstra que “o encarceramento em massa teria
reduzido em cerca de um terço as taxas de desemprego desse contingente populacional”.
Assim, demonstra-se que, para a parcela desfavorecida (por critérios raciais e econômicos,
muitas vezes imbricados), o Estado abandonou o papel assistencialista característico do
Welfare State para assumir uma atitude repressiva e encarceradora, que produziu o
encarceramento em massa, preferencialmente dessa parcela da população.
Ocorre que a manutenção dessa escalada de encarceramento tem a consequência de
produzir graves problemas para as futuras possibilidades de inserção no mercado de trabalho,
seja pela estigmatização, seja pela incapacitação pura e simples. Somando-se a esse fator os
elevadíssimos custos para o Estado (apesar do intenso processo de privatização dos cárceres),
chega-se à conclusão de que era impossível manter o ritmo de encarceramento das últimas
décadas do século XX. Por essas razões, no início do século XXI já se observa uma
orientação pelo desencarceramento nos EUA.
Tomado como exemplo no combate à criminalidade, os EUA, ao adotarem o discurso
da tolerância zero propagam, para o mundo, a ideia de que se constitui “um problema de
polícia, que se resolve com mão firme”, o que Sen e Kliksberg (2010, p. 265) consideram um
mito. De fato, tal política pode produzir efeitos desastrosos na América Latina, pois, se nos
EUA a população alcançada gravita à órbita de 13%, produzindo o conhecido encarceramento
em massa, imagine-se o que pode ocorrer em países onde a pobreza alcança mais de um terço
da população! (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 275). Nessas circunstâncias, a política de
tolerância zero representaria uma proposta que, por tratar com mão de ferro amplos setores da
população, ensejaria tensões sociais críticas e afetaria, em todas as suas dimensões, a coesão
social (SEN; KLIKSBERG, 2010, p. 275), isso sem falar nos custos econômicos e sociais
produzidos pelo encarceramento em massa.
Os resultados da política de tolerância zero, embora propalados como expressivos e
aufiram projeção mundial rapidamente, são idênticos aos obtidos pela cidade californiana de
71
San Diego, que seguiu o modelo antagônico da polícia comunitária (WACQUANT, 2001, p.
28). Além do mais, o orçamento nova-iorquino para a polícia foi incrementado em 40%,
atingindo o patamar de quatro vezes mais do que as verbas para hospitais públicos, enquanto,
em San Diego, aumentou seu efetivo policial em apenas 6%, com um número de detenções
diminuindo em 15%, enquanto em Nova York aconteceu um incremento em 24%, atingindo o
quantitativo de 314.292 pessoas presas em 1996 (WACQUANT, 2001, p. 28).
O modelo ianque de perseguição seletiva, além de espalhar-se pelo mundo, aprofundou-
se internamente, ao ponto de constar no Informe anual de 2016 da CIDH, o qual expressa
preocupação em virtude das deficiências na investigação de casos relacionados com
assassinatos de afrodescendentes pela polícia dos Estados Unidos, nos seguintes termos:
94. El 23 de agosto de 2016 la Comisión Interamericana expresó su profunda preocupación con respecto a los recientes hechos que marcan un patrón de impunidad frente a los asesinatos de afrodescendientes a manos de la policía en Estados Unidos. En este sentido, la Comisión condenó varios asesinatos de hombres y mujeres afroamericanas como consecuencia del uso excesivo de la fuerza letal por parte de agentes policiales, e instó a los gobiernos federal y estatal a avanzar en una investigación pronta, exhaustiva, independiente e imparcial que garantice el acceso a la justicia por parte de los familiares frente a estos hechos. La CIDH reiteró que la inefectividad de la respuesta estatal fomenta altos índices de impunidad, los cuales a su vez propician su repetición crónica, sumiendo a las víctimas y a sus familiares en la indefensión. (CIDH, 2017a).
Outro país que teve o estado de criminalização da pobreza estudada de maneira bastante
detalhada foi a França, especificamente no tocante à criminalização secundária. Didier Fassin
publicou a etnografia do agir policial nas periferias urbanas francesas, com o título A força da
ordem: uma etnografía do agir policial nas periferias urbanas. Tal obra resulta da participação
do autor, por 15 meses, da rotina de brigadas anticriminalidade nos subúrbios de Paris,
durante os quais pôde traçar um retrato detalhado da maneira de agir e de pensar desses
policiais. A primeira observação trazida é que o Governo francês estabelece objetivos
quantitativos inalcançáveis em termos de prisões mensais e taxas de resolução de casos, o que
impulsiona a polícia a adotar práticas adaptativas focalizadas em dois tipos de transgressões:
relacionadas ao uso de drogas (cujo alvo são jovens da periferia) e residência ilegal (foco nos
imigrantes) (FASSIN, 2016, p. 23). Essa produtividade “tem uma custo social significativo: a
trivialização da discriminação racial que, ainda que ilegal, é alentada pelo governo” (FASSIN,
2016, p. 23).
Percebeu ainda o Etnólogo francês policiais detendo adolescentes de minorias étnicas
em bairros carentes para revistá-los em busca de drogas, enquanto faziam “vista grossa” ante
72
os estudantes brancos de classe alta sob clara influência de drogas nas proximidades dos
centros universitários; assim também considerou desconcertante ver como os policiais
selecionavam os indivíduos no meio de multidões saindo do metrô de acordo com a cor de sua
pele e sua aparência física para submetê-los a controle de identidade (FASSIN, 2016, p. 23).
O caso francês é paradigmático dos dividendos políticos advindos, não só da repressão,
mas da sua espetaculização, “por meio da mediatização de impressionantes intervenções
policiais para prender alguns suspeitos em um complexo de habitações pobres, deportar
imigrantes sem documentos, ou expulsar romenos de algum acampamento ilegal” (FASSIN,
2016, p. 26). Os governos, de todos os matizes ideológicos, “estão dispostos a pagar um alto
preço ético por esses benefícios simbólicos e delegam à polícia o poder de exercer a força de
forma ilícita, em práticas ilegais que jamais seriam admitidas se consideradas em outro
contexto” (FASSIN, 2016, p. 26).
Observando a realidade francesa, Bauman (2005, p. 106), em Vidas desperdiçadas
identificou que o Estado francês, sob “os aplausos dos cidadãos que buscam
desesperadamente as raízes de sua inabilitante ansiedade, flexionou os músculos, embora
débeis e indolentes em todos os outros domínios – criminalizando as margens da população
que se mostravam frágeis e viviam de forma mais precária” ao mesmo tempo em que lançava
“espetaculares campanhas contra o crime centradas no refugo humano de origem estrangeira
depositado nos subúrbios das cidades francesas” (BAUMAN, 2005, p. 106).
A polícia suburbana francesa mantem, com esse modus operandi, “uma presença
constante, visível e frequentemente vivida como opressiva pelos residentes, em nome da
prevenção de uma delinquência que não costuma ser maior que em territórios vizinhos”
(FASSIN, 2016, p. 82).
Assim, as forças da ordem que intervêm nos subúrbios populares estão constituídas em sua maioria por homens brancos aos quais é confiada a missão de pacificar bairros descritos como uma “selva”, onde vive uma maioria de indivíduos de origem africana que são apresentados como “selvagens”, duas palavras a que se costuma recorrer os policiais para nomear os bairros populares e seus habitantes. (FASSIN, 2016, p. 82).
No tocante à atuação policial na “guerra às drogas”, o estudo etnográfico citado
constatou que a polícia focaliza mais a sua ação contra usuários do que traficantes, e a jovens
de bairros populares mais do que a jovens universitários, deixando claro que a lei serve menos
73
para aplicar o Direito do que para recordar a cada pessoa o seu lugar na ordem social
(FASSIN, 2016, p. 106). Assim, prossegue o Antropólogo e Sociólogo francês:
as patrulhas exercem uma forma de pressão sobre as populações consideradas ameaçadoras por sua simples presença, independentemente de qualquer perigo objetivo, a saber, os jovens de estamentos populares, que em geral pertencem a minorias. O que está em jogo, então, não é a ordem pública que deveria ser protegida, mas sim a ordem social que precisam manter. (FASSIN, 2016, p. 106).
Em sua atuação seletiva, a polícia francesa distingue “gente honesta” e bandidos com
base em uma presunção de culpabilidade, portada pelos residentes de complexos de vivendas
pobres, membros de minorias e jovens de setores populares, definidos “como suscetíveis de
cometer delitos ou serem cúmplices de um modo ativo ou passivo” (FASSIN, 2016, p. 141).
“Os policiais que patrulham esses bairros, portanto, têm direito a controlar sem discernimento
aos jovens que vivem ali, mas também a tutoriá-los e tratá-los com rudeza”, sendo possível,
em casos específicos de algum tipo de reação, “generalizar essas práticas ao conjunto de
habitantes durante operações punitivas que não perdoam nem adultos nem crianças”
(FASSIN, 2016, p. 141).
Importante é destacar que não se trata de um estudo isolado sobre o agir policial na
França. A primeira investigação francesa sobre o tema15, realizada pelo Justice Iniciative
(2009), demonstrou que, nas estações parisienses, mesmo quando estavam distintos grupos, os
negros e árabes tinham, respectivamente, de seis a oito vezes mais chances de ser controlados
que os brancos. Desde esse momento foi impossível recusar a noção de “controle por portação
de rosto” (FASSIN, 2016, p. 200).
A aparência ou a origem é o que separa uns de outros e que, por sua vez, une todos os semelhantes: atua-se como se todos os negros ou árabes compartissem as mesmas características culturais ou morais. Esta generalização, baseada tanto em preconceitos do meio profissional como em eventuais experiências anteriores no terreno, conduz a que os policiais não possam discernir, pois a identificação racial serve para eles como elemento necessário e suficiente para decidir que conduta adotar. (FASSIN, 2016, p. 201).
Na América Latina, a criminalização da pobreza ocorre de modo ainda mais acentuado.
De acordo com Innamorato e Canavessi (2015, p. 11), o Sistema Nacional de Información
Criminal, Dirección Nacional de Política criminal, do Ministerio de Justicia, Seguridad y
Derechos Humanos de Argentina, ao apresentar dados das pessoas que se encontram privadas
15 Fassin anota que a pesquisa foi financiada por uma instituição estadunidense, a fundação Open Society, criada
por George Soros (FASSIN, 2016, p. 311).
74
de sua liberdade, adverte que 35% correspondem a prisões por delitos contra a propriedade.
Innamorato e Canavessi (2015, p. 11) complementam, exprimindo que
Los datos acerca de inserción laboral y trayecto por el sistema educativo formal indican que gran parte de las personas privadas de su libertad presentan rasogs de desafiliación social: el 78% de la población relevada en el año 2007 no alcanzó a completar estudios secundarios y el 58% ni siquiera los inició. Por otra parte, el 77% no tenía un trabajo de tiempo completo y el 63% no tenía oficio ni profesión.
Nesse mesmo sentido, estudo empreendido pela Fundación Paz Ciudadana assinalou
que a maioria dos presos nos cárceres chilenos demonstravam, antes da prisão, elevados
níveis de desvantagem em matéria familiar, educação e saúde, além de pobres prospectos no
mercado laboral (PEILLARD, 2016). Em particular, o estudo constatou que os presos
externavam maiores índices de pobreza, de terem sido cuidados por terceiros (e não seus
pais), além de contar com familiares condenados, do que o resto da população. Por exemplo,
ao comparar os resultados obtidos no estudo com parâmetros da população geral, os
entrevistados registraram taxas mais altas de analfabetismo (7,3% versus 4,8%) e educação
escolar incompleta (86% versus 45,7%). As duas principais razões esgrimidas pelos
entrevistados para deixarem os estudos foram problemas familiares e a necessidade de
trabalhar (PEILLARD, 2016, p. 20).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) já condenou diversos Estados
do continente por práticas nas quais podem ser identificados componentes de criminalização
da pobreza e seletividade, nos moldes conceituados neste estudo, a saber: Servellón García y
otros vs. Honduras (CORTEIDH, 2006a); Rosendo Cantu y Otra vs. México (CORTEIDH,
2010); Gonzáles y Otras (Campo Algodonero) vs. México (CORTEIDH, 2009c); Uzcátegui y
otros vs. Venezuela (CORTEIDH, 2012c); Villagrán Morales y otros (“niños de la calle”) vs
Guatemala (CORTEIDH, 1999); Ximenes Lopes vs. Brasil (CORTEIDH, 2006b). Em todos
esses casos, a CorteIDH foi chamada a intervir ante a inércia dos Estados-parte em combater
citadas práticas, além de ter sido insuficiente todo o procedimento levado a efeito perante a
CIDH, que não encontrou alternativa senão denunciar os Estados perante a Corte, com a
condenação em todos eles.
No caso Servellón García y otros vs. Honduras (CORTEIDH, 2006a), os fatos
ocorreram em contexto de violência marcado pela vitimação de crianças e adolescentes em
situação de risco social por parte do Estado no início dos anos de 1990. Em 15 de setembro de
1995, a Força de Segurança Pública realizou um operativo policial nas imediações de um
estádio na cidade de Tegucigalpa, com o objetivo de evitar distúrbios durante os desfiles que
75
se realizariam para celebrar o Dia da Independência Nacional de Honduras. Os meninos
Marco Antonio Servellón García, Rony Alexis Betancourth Vásquez, e os adolescentes
Orlando Álvarez Ríos e Diomedes Obed García Sánchez foram detidos pela Força de
Segurança de Honduras. Os quatro foram agredidos e posteriormente assassinados. No dia 17
de setembro de 1995, seus cadáveres foram encontrados em distintos lugares de Tegucigalpa.
Apesar de que seus familiares interpuseram uma série de recursos para investigar e punir os
responsáveis, não se realizaram maiores diligências.
O caso Rosendo Cantu y Otra vs. México (CORTEIDH, 2010) produziu-se no contexto
de importante presença militar no Estado de Guerrero, dirigida a reprimir atividades ilegais
como a delinquência organizada. No Estado de Guerrero, grande porcentagem da população
pertence a comunidades indígenas, que conservam suas tradições e identidade cultural e
residem nos municípios de grande segregação e pobreza. Valentina Rosendo Cantú era uma
mulher indígena pertencente à comunidade indígena Me´phaa. No momento dos fatos, tinha
17 anos, estava casada com o senhor Fidel Bernardino Sierra e tinha uma filha. No dia 16 de
fevereiro de 2002, Valentina Rosendo Cantú encontrava-se em um riacho próximo à sua casa
e, enquanto se banhava, oito policiais militares acompanhados de um civil que levavam
detido, aproximaram-se dela e a rodearam. Dois deles a interrogaram, mostraram uma foto de
uma pessoa e uma lista de nomes, enquanto um deles apontava a sua arma. Ela informou que
não conhecia as pessoas sobre as quais a interrogavam. O militar que apontava a arma a
agrediu no estômago, fazendo-a cair no solo. Logo após, um dos militares a tomou pelo
cabelo enquanto insistia sobre a informação requerida. Finalmente arranharam seu rosto,
arrancaram a sua saia e roupas íntimas e a jogaram no solo, enquanto um deles a violentou
sexualmente, ao término de que o outro que também a interrogava procedeu da mesma
maneira. Tanto Valentina Rosendo Cantú como seu esposo interpuseram uma série
de recursos a fim de denunciar os fatos e solicitar que se realizassem as investigações
necessárias para identificar e punir os responsáveis. A investigação foi remetida à jurisdição
penal militar, que decidiu arquivar o caso.
No caso Gonzáles y Otras (Campo Algodonero) vs. México (CORTEIDH, 2009c), os
fatos ocorreram na cidade de Juárez, lugar onde se desenvolviam diversas modalidades de
delinquência organizada. Em 1993, houve um aumento de crimes contra mulheres
influenciado por uma cultura machista. Assim, Laura Berenice Ramos, estudante de 17 anos
de idade, desapareceu em 22 de setembro de 2001; Claudia Ivette Gonzáles, trabalhadora em
uma empresa maquiadora, de 20 anos de idade, desapareceu em 10 de outubro de 2001, e
76
Esmeralda Herrera Monreal, empregada doméstica de 15 anos de idade, despareceu em 29 de
outubro de 2001. Seus familiares apresentaram as denúncias, mas não se iniciaram maiores
investigações. As autoridades limitaram-se a elaborar os registros de desaparecimento, os
cartazes de busca e tomaram declarações, além de enviarem ofícios à Polícia Judicial. No dia
6 de novembro de 2001, foram encontrados os corpos dessas mulheres, os quais apresentavam
sinais de violência sexual. Concluiu-se que as três estiveram presas anteriormente. Apesar dos
recursos interpostos por seus membros familiares, não foram investigados nem punidos os
responsáveis até a necessária intervenção da CorteIDH.
O caso Uzcátegui y otros vs. Venezuela (CORTEIDH, 2012c) aconteceu em uma época
em que ocorriam execuções extrajudiciais e outros abusos por parte das forças policiais, em
particular, estaduais e municipais. Em 1 de janeiro de 2001, Néstor José Uzcátegui, estudante
de 21 anos de idade, recebeu dois disparos das forças policiais, que invadiram a sua casa. O
jovem foi trasladado a um hospital, onde morreu horas depois. Na mesma oportunidade, as
forças policiais detiveram e trasladaram Luis Enrique Uzcátegui y Carlos Eduardo Uzcátegui,
este de 17 anos de idade, até a sede do Comando das Forças Armadas Policiais do Estado
Falcón, onde foram tomadas declarações de Luis Enrique Uzcátegui e onde permaneceram até
o dia seguinte. Luis Enrique Uzcátegui e outros familiares foram sujeitos a ameaças e maus
tratos. Apesar dos recursos judiciais interpostos com relação aos fatos descritos, não
ocorreram investigações necessárias, nem foram investigados ou punidos os responsáveis.
Já no caso Villagrán Morales y otros (“niños de la calle”) vs Guatemala (CORTEIDH,
1999), os fatos contextualizam-se em uma época caracterizada por um padrão comum de
ações à margem da lei, perpetradas por agentes de segurança estatais contra meninos em
situação de rua. Esta prática incluía ameaças, detenções, tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes e homicídios como meio para combater a delinquência e a vadiagem juvenis. No
dia 15 de junho de 1990, na zona conhecida como Las Casetas, uma camioneta aproximou-se
de Henry Giovanni Contreras, de 18 anos de idade, Federico Clemente Figueroa Túnchez, de
20 anos, Julio Roberto Caal Sandoval, de 15 anos e Jovito Josué Juárez Cifuentes, de 17 anos.
Do veículo desceram homens armados, membros da polícia, que os obrigaram a subir. Após
detidos por umas horas, foram assassinados. Ademais, dia 25 de junho de 1990 foi
assassinado Anstraum Aman Villagrán Morales, mediante um disparo de arma de fogo, no
setor de “Las Casetas”. Não ocorreram investigações necessárias, nem foram investigados ou
punidos os responsáveis.
77
Conclui-se, portanto, que, nas últimas décadas, no plano internacional, verificou-se uma
evolução mais dura da repressão penal. A observação de Didier Fassin, nesse particular, foi
direcionada às forças de segurança, mas se aplicam perfeitamente à ação do Estado, com
ampla aceitação social e midiática. Para o Sociólogo francês, “essa versão dura impôs-se de
maneira quase sistemática como forma de governo de populações mais pauperizadas e
marginalizadas, em especial dos setores populares e das minorias étnicas” (FASSIN, 2016, p.
260).
O desenvolvimento de uma teoria securitária foi um elemento decisivo nesse processo, já que se baseia em um discurso que atiça o medo para justificar políticas mais repressivas, o aumento de efetivos policiais, o reforço de dispositivos punitivos, independentemente do agravamento objetivo da delinquência e criminalidade, e mesmo em contextos de diminuição objetiva da delinquência. A segregação territorial dos setores sociais mais modestos, em particular daqueles provenientes da imigração do terceiro mundo, facilitou muito essa transformação: por um lado ao permitir focalizar com precisão a ação da polícia em determinados bairros e, por outro, ao fazer dessa realidade algo invisível para a maioria. (FASSIN, 2016, p. 260).
A criminalização da pobreza, portanto, não é uma característica exclusiva de países
periféricos na geopolítica mundial, mas um fenômeno que se verifica mesmo nas principais
potências mundiais, que servem, inclusive, de criadores e exportadores de ideias de
recrudescimento do Estado Penal, utilizadas acriticamente por países mais pobres, com
resultados catastróficos, como demonstrado.
1.4 O papel dos mass media na criminalização da pobreza
Inicialmente, é importante destacar o fato de que os meios de comunicação
desempenham papel fundamental para a existência dos modernos Estados Democráticos de
Direito, que abrangem populações cada vez mais numerosas e diversificadas, em relação às
quais se espera a participação efetiva na formação da vontade estatal. Como já percebeu
Airton Cerqueira-Leite Seelaender, “democracia e plena visibilidade tendem a constituir, pois,
fenômenos indissociáveis” (SEELAENDER, 2006, p. 60).
O direito de livre expressão e de informação constituem elementos indispensáveis para conferir visibilidade às formas de exercício de poder em uma sociedade, possibilitando a sua fiscalização e controle mais adequados, além de assegurar uma participação mais ampla. Por outro lado, a visibilidade proporcionada pela proximidade com o poder pode concorrer para que as pessoas se tornem mais inclinadas e mais aptas a julgá-lo de modo racional. O hábito do juízo crítico tende, por sua vez, a levar à reivindicação de participar politicamente. (SEELAENDER, 2006, p. 60).
78
Os meios de comunicação, portanto, podem funcionar como poderosos instrumentos de
amplificação das diversas conformações de liberdade de expressão de uma sociedade,
garantindo um amplo debate de ideias apto a fundamentar decisões que alberguem a opinião e
interesses das maiorias, sem, contudo, representar ofensas aos direitos das minorias. Ademais,
posicionam-se como canais de denúncia de violações de direitos para a sua consequente
proteção, no marco das promessas estabelecidas nos textos constitucionais, servindo, pois,
como limitadores do poder. Ainda na perspectiva de proteção de minorias, Seelaender (2006,
p. 73) aduz que: “[...] aproximado subitamente, pela comunicação de massa, do mundo
outrora invisível das pessoas cujas decisões influenciam a vida coletiva, o homem comum
pode, em tese, pela primeira vez conhece-lo e vir a ter perspectivas, remotas ou não, de dele
participar”.
Malgrado sua decantada importância, entretanto, principalmente em sua função de
estabelecer consensos sociais, deturpações dos caminhos escolhidos pelos meios de
comunicação de massa podem conduzir a resultados opostos àqueles que os legitimam como
fundamentais para uma ordem democrática. Assim, quando destinados a funcionar como
instrumentos de reprodução de manifestações da criminalização da pobreza, os meios de
comunicação amplificam uma conduta discriminatória em relação a determinadas parcelas da
sociedade, em nítida função desmobilizadora da democracia.
Como marco de aprofundamento dessas condutas, Fausto (2014, p. 26) identifica a
última década do século XIX, quando o noticiário criminal ganhou destaque nos jornais
respeitáveis, como O Estado de São Paulo e o Correio Paulistano, pelo surgimento dos
primeiros repórteres especializados que não se limitam ao mero registro. “Eles introduzem a
crônica policial como uma peça caracterizada por certo estilo e competem às vezes com as
autoridades na apuração dos crimes misteriosos. A aparição da imprensa sensacionalista nos
anos de 1910 (A Capital e mesmo O Combate) vem radicalizar esses traços” (FAUSTO, 2014,
p. 26). O final do século XIX também é apontado como época em que os vespertinos
argentinos incorporam seções ou colunas policiais, estando alguns jornalistas, inclusive,
vinculados à instituição policial, como o então famoso José Alvarez (“Fray Mocho”),
comissário da Policia Federal Argentina desde 1886 (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 57).
Releva destacar que esse foi o período histórico do auge das teorias criminológicas da
Escola positivista, na esteira da obra de Cesare Lombroso, O Homem Delinquente, de 1876,
que descrevia as características físicas do criminoso nato (LOMBROSO, 2013), que
79
conquistou ampla aceitação no âmbito científico e despertou enorme interesse no meio social,
nomeadamente os leitores dos jornais da época. Tais fatores se propagaram e se perpetuaram,
apesar da cristalização de direitos fundamentais de igualdade, desde as primeiras décadas do
século XX, com o consequente fortalecimento de ideais de não discriminação, que lograram
se estabelecer nos textos constitucionais. Permanecem, até os dias atuais, atitudes nitidamente
seletivas de veiculação de notícias e de tratamento de pessoas acusadas de delitos, conforme a
classe social a que pertençam.
Daroqui (2009, p. 22-23), ao apreciar esse fenômeno na sociedade argentina, assevera:
Así es que los delictos econômicos producto de la articulación entre diferentes actores, tanto políticos, empresários, jueces, fiscales, policías, etc, dificilmente se encuentran desarrolados en la sección de policiales de cualquier diário del país, integran otras secciones como economía, sociedad e inclusive política. Y si por alguna azarocidad de la vida y de los malos acuerdos o retiro de respaldos necesarios, algunos de los participantes porta la desgracia inesperada de “quedar” imputaddo o inclusive procesado y, más dificilmente condenado, nunca en ninguno de estos tres estadíos procesales se lo denominará delincuente, mucho menos “caco”, “malviviente”, o “chacal”, entre tantas denominaciones que suelen reducir la cuestión de la autoría criminal em esos términos a aquellos que son individualizados y visibilizados a través de los discursos “construídos” desde la agencia policial, los médios de comunicación y la própria agencia judicial.
Resulta claro, na opinião de Ângela Daroqui, que esse recorte reconhece, em
importantes meios de comunicação, a formulação de um discurso que se alimenta e
retroalimenta daqueles produzidos pelas agências policial e judicial e que, ademais, registra
uma intensa ligação com o senso comum, propondo visualizar a criminalidade (essa específica
criminalidade) como o problema a resolver não só pelo Estado, mas também por parte dos que
são considerados cidadãos-potenciais vítimas (DAROQUI, 2009, p. 23). Complementa
Esteban Alzueta percebendo que a mídia cultiva atitudes e valores já arraigados na cultura,
reforçando, então, crenças ou condutas convencionais, encontrando eco na audiência,
precisamente, porque esta se identifica com as concepções de mundo postas em jogo
(RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 81).
Esse discurso seletivo, por outro lado, estabelece uma indústria da insegurança, como
prossegue analisando Daroqui (2009, p. 23), “que requer uma estreita vinculação dos
diferentes atores mencionados, “amparada” em uma construção discursiva que assimila,
iguala e identifica ao delito e em particular ao delito violento com a pobreza, quer dizer, com
os pobres”. Com a mesma lógica, locais de residência de pessoas pobres são igualmente
etiquetados como lugares de intensa criminalidade, conforme nota Kessler (2009, p. 13), para
quem:
80
La inseguridad ha pasado a ser un problema público nacional: cada lugar pode señalar sus “focos peligrosos”, amalgamando, de forma escandalosamente estigmatizadora en ciertos medios de comunicación, determinados asentamientos precarios con delincuencia.
Na imprensa argentina, por exemplo, Kessler (2009, p. 86) identifica o fato de que
quando se faz referência a villas miseria ou certos bairros, tratam-nos de modo quase explícito
como zonas de concentração de delinquentes. Formada dessa maneira a “opinião do público”,
resta constituído o lastro necessário para que se legitime uma atuação estatal
desproporcionalmente repressora contra pessoas dessas localidades, diuturnamente
convivendo com o fardo da suspeita constante.
Analisando o estado de crianças e adolescentes em situação de rua, Pojomovsky e
Gentile (2008, p. 66-67), em pesquisa de notícias em periódicos argentinos, perceberam as
maneiras “clássicas” de tratamento estigmatizado desta população particular: os “chicos de la
calle” são tratados como vítimas ou como delinquentes (e, portanto, vitimários). No que diz
respeito à maneira de atuar por parte dos mass media na veiculação de matérias em relação a
crianças e adolescentes, de nada adiantaram os avanços produzidos pela CF/88, que
abandonou a doutrina da situação irregular (fulcrada em uma ideia paternalista), para a adoção
do princípio da proteção integral, conferindo a essas pessoas a posição de titulares de direitos
fundamentais, gozando de prioridade absoluta nos programas públicos e privados.
Por outro lado, paradoxalmente, a imagem criada pelos meios de comunicação não
contrapõe as figuras (vítima/delinquente) como opostas, mas, pelo contrário, trata-as como
duas dimensões simultâneas do mesmo fenômeno: “[...] os ‘chicos de la calle’ aparecem
percebidos ao mesmo tempo e sem mediações como vítimas e como delinquentes,
enquadrando assim o problema no marco do discurso da ‘insegurança’ e da ‘violência
urbana’” (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 66-67). Prosperam as sociólogas argentinas a
sua análise para, mais adiante, concluir que
o resultado desta construção é a aparição de um ser definido exclusivamente pela negatividade, por aquilo que não é ou que não tem, uma figura social sem laços estáveis com a família, nem com a sociedade por meio da escola, um potencial perigo para a ordem pública e, deliberadamente, um futuro vitimário. (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 72).
Como consequência desse discurso estigmatizante, percebe-se que os media
naturalmente evoluíram para a conclusão pela própria supressão do atributo infância daqueles
que vivem em situação de rua, engrossando o discurso pela redução da maioridade penal.
Atribui-se às crianças em situação de rua uma pretensa maturidade, antecipadamente
81
alcançada pela necessidade de prover a própria subsistência na rua e que evolui naturalmente
para a criminalidade. Assim, essas crianças e adolescentes não deveriam merecer, segundo tal
discurso, o tratamento concedido a crianças e adolescentes em conflito com a lei, considerado
brando e ineficaz.
A maneira de apelação dos meios de comunicação ao Estado para a resolução dos
problemas das crianças e adolescentes em situação de rua, segundo Julkieta Pojomovsky e
María Gentile, traduz uma demanda implícita de correção normalizadora da situação dos
“meninos de rua”, ao concebê-la como desviada (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 73).
Quando os meios de comunicação destacam que essas crianças não participam da família e da
escola, que seriam os espaços destinados naturalmente a eles – demanda-se do Estado que
“arranque” as crianças da rua e os insira nos locais destinados à infância, como uma função
meramente corretiva e de “limpeza” (POJOMOVSKY; GENTILE, 2008, p. 73). Mal
conseguem esconder a dificuldade de enxergar essas pessoas como sujeitos de direitos, cujo
rol, embora previsto normativamente, é amplamente negado. Tratando-os como meros objetos
de intervenção de um Estado paternalista, à moda da doutrina da situação irregular16, os meios
de comunicação apenas reforçam um discurso de higienização dos espaços públicos, pouco
importando o destino dos indesejáveis que, com sua incômoda presença, teimam em
estabelecer espaços de degradação e medo na cidade dos ditos “cidadãos de bem”.
Outra percepção que resulta clara nas representações midiáticas é que os meios de
comunicação são guiados por critérios que determinam a seleção de matérias: importância,
interesse, o produto em si, a adequação da peça ao meio, a imagem que o jornalista formulou
do público e a concorrência, buscando sempre o pitoresco, o inusitado, descartando o trivial
(MELO, 2014, p. 170). Como é possível observar, não são as situações rotineiras e recorrentes
que ocupam o noticiário, mas aquelas que carregam um elevado grau de potencialidade de
causar impacto. Assim, embora se esteja vivenciando um morticínio da população pobre e
negra nas periferias, tal fato não ganha o mesmo destaque na mídia do que, por exemplo, os 16 A doutrina da situação irregular era a adotada pelo Código de Menores brasileiro de 1979 e identifica-se com a
etapa tutelar do sistema da infância e da juventude, dotada de caráter meramente assistencialista, pois somente protegia os “menores” em situação irregular, ou seja, em conflito com a lei ou postos à margem da assistência familiar. Assim, as crianças e adolescentes eram vistos como meros objetos de intervenção jurídica (e não sujeitos de direitos). Inspirada na Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1990a), a Constituição brasileira adotou a doutrina da proteção integral, em seu artigo 227 (BRASIL, 1988), abrangendo todas as necessidades de um ser humano para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. São protegidos, assim, não somente as crianças e adolescentes enquadráveis na situação de desamparo, mas em qualquer situação jurídica, passando aqueles a ser titulares de direitos fundamentais oponíveis ao Estado, à família e à sociedade. Substitui-se, portanto, a etapa meramente tutelar para a afirmação de uma fase garantista do sistema da infância e da juventude, fundada nos princípios da prioridade absoluta e no melhor interesse da criança e do adolescente.
82
cruzamentos de ruas da cidade nos quais há maior risco de um veículo ser abordado por
assaltantes. A disparidade entre a gravidade dos fatos é gritante, mas o público buscado pelos
meios de comunicação sentirá maior influência e consequentemente estará mais inclinado a
“consumir” o último tipo de matéria citado.
A percepção apontada aufere relevo quando as vítimas de homicídio são delinquentes
(ou suspeitos, ou pessoas que preenchem o estereótipo), cujas vidas importam ainda menos
para o grande público, que, ao contrário, muitas vezes comemora tais acontecimentos. Em
detalhada pesquisa sobre a morte de “delinquentes” em enfrentamentos (reais ou forjados)
com a polícia, Calzado e Maggio (2009, p. 66) destacam que “na maior parte das vezes não se
cita a informação fornecida por testemunhas do fato, por familiares do “delinquente” ou pela
própria justiça, pois a informação se constrói com base na versão de uma das partes do
enfrentamento, a polícia”, em percentual que, na pesquisa, chegou a 74% dos casos de
exclusiva informação policial (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 67).
As pesquisadoras observam, ademais, que, “para reproduzir o discurso policial os meios
de comunicação não buscam confirmar as informações, mas quando estão no papel de
justificar a ação policial tais respaldos confirmatórios são buscados, em termos de diversidade
de fontes consultadas e citadas” (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 69). Como consequência,
obviamente, a matéria publicada plasma uma atuação escorreita por parte da polícia, obrigada
a reagir ante a ameaçadora atuação do delinquente, invariavelmente retratado como portador
de grande periculosidade. De efeito, a imprensa não ajuda a desvelar as recorrentes situações
de execuções extrajudicias, fantasiadas de enfrentamentos, que seriam facilmente verificadas
com uma simples checagem mais detalhada do caso concreto. Tal proceder midiático, ao
contrário, contribui para a invisibilização dessas mortes institucionais17 produzidas nos
setores sociais mais pobres, em números alarmantes, sem que haja a correspondente reação
por parte do Estado. Alijados da fruição da maioria dos direitos fundamentais e,
principalmente, sem acesso às instâncias estatais, mormente à Justiça, as famílias dessas
vítimas estão impotentes ante a normalização dessas mortes, estampada, nas mais das vezes,
em noticiários nos quais somente a versão oficial é oferecida à audiência.
Isso porque há “critérios de noticiabilidade” das mortes em confronto com a polícia que
são, para Calzado e Maggio (2009, p. 79-83), de acordo com a pesquisa das peças impressas 17 Dicção utilizada por Eugênio Zaffaroni para qualificar as mortes produzidas pelo aparelho repressivo do
estado na obra Muertes Anunciadas, sobre a qual este trabalho trata mais detidamente no capítulo imediatamente seguinte (ZAFFARONI, 2016).
83
nas páginas policiais e das entrevistas com dois grandes editores argentinos: 1) o
procedimento policial deve ser impactante em algum sentido (rasgos de espectacularidad); 2)
a singularidade, notoriedade ou fama do delinquente ou do policial; 3) quando ocorre a morte
de algum policial no confronto; 4) casos de “gatillo fácil”, ou seja, quando envolve pessoa
que comprovadamente não estava cometendo um delito e foi vítima da ação policial
excessiva, abusiva. Definitivamente, resta claro que a maior relevância em termos de
possibilidade de noticiamento é conferida “pelas características do fato e seu atrativo
comercial, assim como as lógicas internas dos meios de comunicação, e não o que acontece
com os delinquentes em situação de um suposto enfrentamento com a polícia” (CALZADO;
MAGGIO, 2009, p. 79).
“Assim, a morte de alguém etiquetado como delinquente não ingressa como notícia
importante nos jornais pesquisados se não estiver acompanhada de outras circunstâncias
relevantes para o meio gráfico” (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 84). Esta invisibilização é
produto da naturalização da morte de integrantes dos setores sociais excluídos em geral e que
foram exitosamente etiquetados como delinquentes (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 85-86).
A morte converte-se em um resultado lógico e também legítimo da insegurança, de um
contexto de medo, constituindo uma equação letal: em um contexto marcado por uma coativa
“insegurança”, a morte do delinquente é apenas uma consequência lógica. São mortes
silenciadas (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 87).
Calzado e Maggio (2009, p. 92) concluem na pesquisa que há uma escala hierárquica
entre as mortes provocadas pelo Estado e que tais mortes representam “maneiras pelas quais a
sociedade se expressa, sendo possível, então, por meio delas ler o sentido de uma época, os
fundamentos e dinâmicas de uma sociedade”. Para eles,
Os meios de comunicação fixam sua atenção exclusivamente nas características da pessoa morta para enquadrá-la entre as mortes “por erro” (“gatilho fácil”) ou aquelas consideradas “corretas” e deixam assim totalmente à sombra (policial) as circunstâncias do fato. Serão as características pessoais (e mais precisamente sociais) do sujeito que hierarquizam a morte em suas duas ordens contrapostas. (CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 93).
Os parâmetros seletivos de veiculação também são percebidos diuturnamente. Como
denuncia Galeano (2010, p. 298), os pobres ocupam, ainda, quase sempre, o primeiro plano da
crônica policial:
Qualquer suspeito pobre pode ser impunemente filmado e fotografado e escrachado quando a polícia o detém, e assim a televisão e os diários ditam a sentença antes que
84
se abra o processo. Os meios de comunicação condenam de antemão, e sem apelação, aos pobres perigosos, como de antemão condenam os países perigosos.
Sob as visões complacentes da sociedade e do sistema de justiça, diversos direitos
fundamentais são vilipendiados por horas de programas policiais televisivos, invariavelmente
veiculados, no Brasil, no horário do almoço. Presunção do estado de inocência, imagem,
honra, intimidade são simplesmente ignorados pelos repórteres e âncoras de telejornais,
muitas vezes no próprio ambiente da delegacia de polícia, na presença de delegados e agentes
de polícia. Obviamente que, nesse formato de programa televisivo, somente são expostos os
“delinquentes” oriundos das camadas mais pobres da população, apodados imediatamente de
bandidos, vagabundos, culpados pelo próprio estereótipo, este repetido à exaustão, muitas
vezes jocosamente, por repórteres com pretensões de comediante. São programas que, assim,
angariam audiência estrondosa e continuam escancarando seletividade, sem serem
incomodados por nenhuma crítica, seja da própria sociedade, seja daqueles que deveriam
velar pela defesa da ordem jurídica e dos valores democráticos.
É conveniente se ter em conta o fato de que os meios de comunicação são movidos por
uma lógica comercial, aplicando-se a eles a mesma lógica estrutural que perpassa as demais
empresas da sociedade, com o objetivo de alcançar o lucro econômico (CALZADO;
MAGGIO, 2009, p. 74). Ademais, como percebe Eduardo Galeano “os meios dominantes de
comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos mãos, e como regra geral atuam
a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao uso mútuo e ao mútuo medo”
(GALEANO, 2010, p. 282). “A televisão aberta e a cabo, a indústria do cinema, a imprensa
massiva, as grandes editoras de livros e discos e as rádios de maior alcance também avançam,
com botas de sete léguas, até o monopólio” (GALEANO, 2010, p. 283-284). Mais adiante,
denuncia que “os empresários de televisão garantem tribuna aos políticos e estes retribuem o
favor outorgando-lhes impunidade: impunemente, os empresários podem dar-se ao luxo de
por um serviço público a serviço de seus interesses privados” (GALEANO, 2010, p. 306).
Em toda a América Latina, essa pródiga fonte de dinheiro e votos está em pouquíssimas mãos. No Uruguai, três famílias dispõem de toda a televisão privada, aberta e a cabo. Dois grandes grupos de multimídia ficam com a maior parte da televisão argentina. Também na Colômbia são dois os grupos que tem em suas mãos a televisão e os demais meios importantes de comunicação. A empresa Televisa, no México e a Rede Globo no Brasil, exercem monarquias apenas disfarçadas pela existência de outros reinos menores. (GALEANO, 2010, p. 308-309).
Comentando sobre a liberdade de imprensa, percebe Seelaender (2006, p. 63):
85
Fundada ideologicamente a partir das liberdades de opinião e expressão, mas esteada na prática bem mais na liberdade empresarial dos controladores dos meios de comunicação, a liberdade de imprensa tem legitimado, desde o século XIX, a consolidação de novos centros de poder social – na própria mídia, cada vez mais oligopolizada – e o uso de novos modos de exercício do poder – através da mídia.
No momento da venda de seu “produto”, as exigências do mercado são os guias dos
meios de comunicação para a definição das matérias que serão veiculadas e quais devem ser
silenciadas. Leitores demonstram preferências de consumo e estas devem ser satisfeitas, a fim
de que seja mantido o sustentáculo financeiro dos mass media.
Sobra, assim, estabelecido um ciclo perverso em que mídia e sociedade retroalimentam-
se na escalada de estigmatização e controle sociais dos pobres. Valendo-se de um preconceito
social que tem suas raízes fincadas no passado escravista, os meios de comunicação
reproduzem e reavivam um medo e prevenção do “outro”, invariavelmente oriundo das
camadas mais pobres da população. Conforme nota Fausto (2014, p. 67), “na consciência
coletiva, estão profundamente arraigadas as associações entre o negro e o ócio, a violência, a
permissividade sexual”. O pórtico das páginas dos jornais “é apenas um exemplo de como
isso se reflete na imprensa. Ser negro é um atributo negativo conferido pela natureza que só se
desfaz parcial e excepcionalmente pela demonstração de características positivas: o
devotamento ao trabalho, a fidelidade de algum branco protetor, a humildade etc.” (FAUSTO,
2014, p. 67).
Tal preconceito foi percebido por Gabriel Kessler, como resultado de várias pesquisas
que realizou para concluir que as pessoas eram normalmente abertas em temas ligados à
diversidade, “enquanto eram autoritários em temas referidos ao delito, por associarem-nos de
forma explícita com franjas de setores populares, em uma nova articulação entre demandas de
liberdade individual e de uma ordem pública com características autoritárias” (KESSLER,
2009, p. 101-102). Como conclui Galeano (2010, p. 33) “a injustiça, fonte do Direito que a
perpetua, é hoje mais injusta do que nunca, ao sul do mundo e ao norte também, mas tem
pouca ou nenhuma existência para os grandes meios de comunicação que fabricam a opinião
pública em escala universal”.
Outro ponto que não pode ser escamoteado é a relação comercial estabelecida entre os
meios de comunicação e as empresas ligadas ao mercado da segurança privada. Obviamente
que estas últimas se beneficiam do sentimento de insegurança incensado pelos media. O medo
do delito cria uma demanda natural por instrumentos de proteção da incolumidade física e do
patrimônio. Para não deixar qualquer dúvida sobre a existência dessa relação, antes invisível a
86
boa parte da população, os recados são cada vez mais explícitos. Os anunciantes publicitários
dos programas policiais mais sensacionalistas são exatamente grupos de segurança privada,
alarmes, blindagem de veículos, entre outros.
Assim, entre uma notícia de crime e outra – não raro com a exposição ultrajante de
vítimas e pretensos autores, ancorada em comentários de apresentadores sobre a falência do
Estado na garantia de segurança pública – são anunciadas as mais recentes e pretensamente
eficientes soluções em segurança privada. O recado, portanto, é inequívoco: a sociedade está
imersa em uma situação insustentável de insegurança, em relação à qual o Estado é impotente.
A solução, portanto, é buscar opções de segurança na iniciativa privada. Referindo-se à
sociedade argentina, Gabriel Kessler nota que, “En paralelo, el mercado de la seguridade, la
vigilância privada y el control eletrônico, entre otros servicios, há conocido un crecimiento
exponencial e diversificado” (KESSLER, 2009, p. 13).
Tão eficiente é esse discurso, e lucrativos seus efeitos, que as matérias de crimes não
mais se limitam às páginas policiais ou a programas especializados, com público reduzido.
Como percebe Kessler (2009, p. 78), o delito deixa de estar confinado aos diários populares
ou às páginas policiais para aparecer nas seções políticas e inclusive nas principais manchetes
dos meios de comunicação considerados mais importantes. Constitui-se, de tal modo, “a
sensação de que toda a sociedade estaria imersa em um estado de caos, de criminalidade
violenta, em verdadeiras “ondas de violência”, a partir da exposição, ampliação e distorção de
fatos isolados” (KESSLER, 2009, p. 79). Bem antes já havia percebido Massimo Pavarini que
“el delito ha salido de los restringidos espacios de la crónica negra y ha cubierto con
prepotencia las primeras paginas de los diarios. Es razonable pensar que la orquestrada
campaña de alarma social persiga el fin de utilizar politicamente nuevas formas de consenso
de masas” (PAVARINI, 2002, p. 23).
Essas podem ser explicações plausíveis para o fato de que, enquanto crimes de roubo
contra as classes mais favorecidas são expostos à exaustão nos media, o morticínio da
população jovem, negra e pobre das periferias é simplesmente invisibilizado18.
18 Ver capítulo 2 tese, no qual a temática é desenvolvida em detalhes, como consequência, também, da
seletividade penal e criminalização da pobreza
87
1.5 Criminalização da pobreza e incompatibilidade com o Estado
Democrático de Direito
O Estado Democrático de Direito constitui o terceiro formato estatal, cujo surgimento se
deu no final do século XVIII como Estado Liberal, substituindo o Estado Absoluto. Entre o
Estado Democrático de Direito e o Liberal, aflorou, no início do século XX, a segunda
modalidade de Estado de Direito, o Social, caracterizado pela adoção de direitos
prestacionais. Essas distintas configurações de Estados de Direito decorrem de uma grande
complexidade de fatores que determinam a mudança do modelo.
Assim, as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial evidenciaram a
necessidade de adotar outro estalão de Estado de Direito, capaz de acolher, no seu íntimo, a
internacionalização dos direitos humanos e o enfrentamento aos totalitarismos de toda ordem,
dando lugar ao Estado Democrático de Direito. Como ensina Peixoto (2008, p. 80), tal
modelo de Estado tem por principal missão “[...] conciliar os ideais de legalidade e
legitimidade, para fins de efetivação dos direitos e garantias até então conquistados”. Na
ingente tarefa de alcançar essa finalidade, “[...] faz-se necessária a conjugação harmônica de
fundamentos aparentemente distintos, como a segurança (legalidade) e a justiça
(legitimidade)” (PEIXOTO, 2008, p. 80). Nas palavras de Bobbio ((2004, p. 50), seu
conteúdo mínimo é
Garantia dos principais direitos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas ou tomadas com base no princípio da maioria e, de qualquer modo sempre após um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão de governo.
Destaca-se desse conceito a ideia de a missão fundamental do Estado Democrático de
Direito consistir em instaurar um regime democrático que realize a justiça social, pugnando
para que a lei não permaneça em uma esfera puramente formal, mas influa decisivamente na
realidade social, realizando, assim, os princípios da igualdade e da justiça (PEIXOTO, 2008,
p. 86). “A democracia dos modernos é o Estado no qual a luta contra o abuso do poder é
travada paralelamente em duas frentes – contra o poder que parte do alto em nome do poder
que vem de baixo, e contra o poder concentrado em nome do poder distribuído” (BOBBIO,
2004, p. 73).
Ademais, “[...] o Estado Democrático tem, pois, como principal fundamento o princípio
da soberania popular que requer a participação efetiva e operante do povo nas decisões
88
políticas do Estado, visando, assim, à realização do princípio democrático como garantia geral
dos direitos fundamentais da pessoa humana” (PEIXOTO, 2008, p. 85). Como adverte Bobbio
(2004, p. 40), referindo-se à democracia, deve-se buscar aumentar não somente o número dos
que têm direito de participar das decisões que lhes dizem respeito, mas também os espaços
nos quais podem exercer esses direitos.
Os paradigmas a serem adotados para a integral vigência de um Estado Democrático de
Direito não se limitam a formulações jurídicas internas, mas faz parte desse arcabouço o
sistema normativo internacional, com destaque para o sistema interamericano, que, em 11 de
setembro de 2001, proclamou a Carta Democrática Interamericana, em Lima, contando com a
assinatura dos 34 países componentes da OEA, constituindo um compromisso coletivo de
manutenção e fortalecimento da democracia nas Américas (OEA, 2001). Importante é
destacar, para os fins deste estudo, que a compreensão de democracia abraçada por esse
documento não se limita à de um formato de governo das maiorias, sob o viés eleitoral, mas a
enxerga como intrinsecamente ligada à proteção e à promoção de determinados valores,
dentre os quais estão, primordialmente, os direitos humanos.
Já em seu Preâmbulo é possível ler, entre outros considerandos, que
[...] a solidariedade e a cooperação dos Estados americanos requerem a sua organização política com base no exercício efetivo da democracia representativa e que o crescimento econômico e o desenvolvimento social baseados na justiça e na eqüidade e a democracia são interdependentes e se reforçam mutuamente; a luta contra a pobreza, especialmente a eliminação da pobreza crítica, é essencial para a promoção e consolidação da democracia e constitui uma responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos contêm os valores e princípios de liberdade, igualdade e justiça social que são intrínsecos à democracia; a promoção e proteção dos direitos humanos é condição fundamental para a existência de uma sociedade democrática e reconhecendo a importância que tem o contínuo desenvolvimento e fortalecimento do sistema interamericano de direitos humanos para a consolidação da democracia. (OEA, 2001).
Prossegue a Carta Interamericana estabelecendo em seu artigo terceiro que o respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais são elementos essenciais da democracia
representativa (OEA, 2001). Prospera, em seu artigo 12, afirmando que a pobreza, o
analfabetismo e os baixos níveis de desenvolvimento humano são fatores negativamente
incidentes na consolidação da democracia, e que os Estados-Membros da OEA se
comprometem a adotar e executar todas as ações necessárias para a criação de emprego
produtivo, a redução da pobreza e a erradicação da pobreza extrema, levando em conta as
distintas realidades e condições econômicas dos países do Hemisfério (OEA, 2011). Já o
89
artigo 14 proclama que “[...] os Estados acordam examinar periodicamente as ações adotadas
e executadas pela Organização destinadas a fomentar o diálogo, a cooperação para o
desenvolvimento integral e o combate à pobreza no Hemisfério, e tomar as medidas oportunas
para promover esses objetivos” (OEA, 2011).
O primeiro fator a ser analisado como dinamizador da criminalização da pobreza, em
evidente incompatibilidade em relação ao Estado Democrático de Direito, é o abismo cultural
entre as promessas de felicidade e as condições materiais para alcançá-la, no marco da teoria
criminológica da anomia. Esta, aqui aludida, procede “[...] do colapso da estrutura cultural,
especialmente de uma bifurcação aguda entre as normas e objetivos culturais e as capacidades
(socialmente estruturadas) dos membros do grupo de agirem de acordo com essas normas e
objetivos” (SHECAIRA, 2014 a, p. 200).
A juventude popular urbana vive enorme crise de expectativa, por interiorizar mais
intensamente as promessas e aspirações promovidas pelos media, escola e política, sem
aceder à mobilidade e ao consumo contidos neles, padecendo, então, de uma combinação
explosiva: maiores dificuldades para incorporar-se ao mercado laboral de acordo com seus
níveis educativos; submissão a um processo de educação e aculturação que introjetam o
potencial econômico da própria formação, desmentido quando entram com poucas
possibilidades no mercado de trabalho; maior acesso a informações e estímulos sobre novos e
variados bens e serviços aos quais não terão acesso e que se constituem em símbolos de
sucesso; uma clara observação de como os demais acedem a esses bens, em um processo
aparentemente meritocrático (HOPENHAYN, 2005, p. 48).
Há uma universalização cultural de preferências e opções de consumo que apenas
aparentemente são livres, já que, como lembra Galeano (2010, p. 284), metade de todo o
dinheiro que o Planeta gasta em publicidade é para a promoção de apenas dez grandes
conglomerados, que monopolizam a produção e a distribuição de tudo o que tenha relação
com a imagem, a palavra e a música. Como ensinou Bauman (2005, p. 22), os consumidores
falhos da sociedade de consumidores só têm uma certeza: “[...] excluídos do único jogo
disponível, não são mais jogadores – e portanto, não são mais necessários”, representam “uma
variedade de refugo humano”, “baixas colaterais, não intencionais e não planejadas do
progresso econômico” (BAUMAN, 2005, p.22); “tornaram-se supérfluos, imprestáveis,
desnecessários e indesejados, e suas reações, inadequadas ou ausentes, transmitem a censura
de uma profecia autorrealizada” (BAUMAN, 2005, p. 55). A “injustiça” mudou de sentido:
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hoje significa ser deixado para trás no movimento universal em direção a uma vida cheia de
prazeres (BAUMAN, 2003, p. 76). A busca da felicidade e a esperança de sucesso tornaram-
se a motivação principal da participação do indivíduo na sociedade, transformando-se da mera
oportunidade que era, num dever e no supremo princípio ético (BAUMAN, 2003, p. 76).
Fausto (2014, p. 108) escreveu em 1984, em sua obra Crime e Cotidiano:
Brutais desigualdades existiram sempre no Brasil, mas a “escalada da violência” é coisa recente, vinculando-se a um modelo capitalista que não só radicalizou a desigualdade como converteu o consumismo em ideologia avassaladora dominante. Poder-se-ia mesmo sugerir, sobretudo no que diz respeito às camadas pobres, a correlação entre crescentes padrões de agressividade e a frustração resultante do bloqueio de canais participatórios no plano sóciopolítico, o que não quer dizer que a democracia seja uma panacéia para acabar com a criminalidade.
Há, ainda, um fator agregado por Kliksberg e Sem (2010, p. 241), referindo-se
especificamente à situação da América Latina, onde a exclusão social, ao lado da
desarticulação familiar, posicionam um setor da juventude em uma situação de “jovens
encurralados” que, ante a inexistência de respostas por parte das políticas públicas, podem se
achar atraídos por bandos de delinquentes juvenis, colocando-se disponíveis para
recrutamento, o que é ainda mais grave, pelas máfias do tráfico de drogas e do crime
organizado.
Importante é advertir, como feito em passagem transata deste estudo, que a teoria da
anomia, subjacente às reflexões de Galeano, Bauman, Fausto e Hopenhayn, não é a
explicação única (e muito menos justificativa exculpante) para toda a criminalidade, mas a
que esclarece boa parte daquela de cariz patrimonial que normalmente recebe maior atenção e
incidência do poder punitivo estatal, direcionado que está às camadas desfavorecidas da
sociedade. Explique-se, ainda, que não são somente os pobres que cometem crimes
patrimoniais, mas, como o estudo demonstra, são somente eles que merecem a preocupação
punitiva estatal, enquanto os estratos mais abastados praticam vários crimes de danos difusos
muito mais graves e permanecem impunes.
Cuellar (2012, p. 438) defende o argumento de que a realidade histórica mostra,
irrefutavelmente, que uma sociedade desigual e excludente é irreconciliável em relação a uma
de teor democrático, com a cidadania universal e a observância dos direitos humanos, só
sendo possível superar essa contradição com uma estrutura que permita a satisfação das
necessidades básicas de maneira universal, permanente e viável, na qual o acesso ao que é
comum e às condições para o desenvolvimento pessoal esteja assegurado pelas obrigações
91
estatais em direitos humanos. Na perspectiva de Pinto (2012, p. 369-370), superar a pobreza
supõe garantir mais e melhores direitos humanos, combater a corrupção e fomentar a
transparência das decisões e a prestação de contas dos funcionários públicos, incentivar a
democracia e seus mecanismos de adoção de decisões, reforçar o Estado de Direito e a
independência e imparcialidade do Poder Judicial.
Importa considerar, ainda, que a exclusão social opera por meio da estigmatização de
pessoas e lugares. Associar determinados territórios à insegurança implica vincular o medo
aos seus moradores, referenciados, então, como perigosos, identificáveis por compartilhar
estilos de vida, cortes de cabelo, trajes e maneiras, feitos à imagem e semelhança do medo,
arautos de uma profecia autocumprida (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 68). O estigma,
então, é componente do repertório penal oficial, seja para fins punitivos, seja para a proteção
do público, sendo, pois, duplamente útil, pois serve para punir o criminoso e alertar a
comunidade do risco que ele representa (GARLAND, 2008, p. 385). A estigmatização social
cria condições para práticas institucionais por meio das quais se criminaliza a pobreza, pois
esta não funcionaria sem consenso social (GARLAND, 2008, p. 117), como resta
demonstrado mais detalhadamente no segmento 2.1, que se ocupa de mostrar como tais
atitudes seletivas acompanham a história da humanidade. Kessler (2009, p. 250) defende o
argumento de que há distintas posições relativamente ao estigma: a indignação pura e simples
ou a constante tentativa de demonstrar a todo momento a condição de não culpados ou não
perigosos, ante a discriminação social e estreita vigilância sobre suas pessoas e locais de
residência.
Nos processos de estigmatização, fomentam-se as profecias que se cumprem por si
mesmas: tanto se repete que um grupo possui tal ou qual característica que finalmente os
indivíduos que pertencem a dito grupo assumem a etiqueta que sobre eles se põe - eles
encarnam o estereótipo (HOPENHAYN, 2005, p. 52). Serão desencaixados da estrutura social
desigual e somente são considerados como fatores produtores de risco, guiados pelo livre
arbítrio e sem direito de fazer valer as circunstâncias determinantes de que são objeto e não
podem controlar (ALZUETA, 2014, p. 111).
Há habitantes de bairros pobres, por outro lado, que enveredam pelo caminho das
estratégias de convivência com o estigma, adotando táticas argumentativas para contestar ou
fugir dos juízos criminalizantes que sobre eles se abatem. Os pais, por exemplo, orientam seus
filhos a evitar, em qualquer circunstância: transitar sem documento de identificação, portar
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objetos sem a nota fiscal de compra correspondente, resistir ou questionar abordagens
policiais (qualquer que seja a sua modalidade e ocasião), retornar para casa após determinados
horários à noite. Condutas que jamais são ensinadas (porque, muito provavelmente, não serão
necessárias) aos filhos das classes médias e altas se convertem em estratégias de
sobrevivência e de fuga do aparelho repressivo estatal em bairros populares. Ensina-se aos
filhos, portanto, a não ser criminoso e a não parecer criminoso, sob o prisma dos estereótipos
sociais e estatais constituídos sobre os pobres.
A generalização da suspeita, outrossim, implica a continuidade de práticas sociais com
ações públicas de cariz estigmatizante e frequentemente violento, o que, no plano
microssocial, conduz a modos de prevenção em relação ao outro que, além da intenção
manifesta de quem se protege, produz uma evidente discriminação daqueles que são evitados
no contato social, promovendo, em um plano mais geral, ações públicas de controle sobre
territórios considerados perigosos (KESSLER, 2009, p. 269). Isso explica o apoio da
população a mecanismos de controle por parte das forças de segurança em bairros
considerados perigosos, pela instalação da suspeita constante, com o suposto intento de
diferenciar os justos dos perigosos, escondendo uma criminalização explícita da pobreza, que
seria politicamente mais contestada (KESSLER, 2009, p.269-270).
Desse modo, os novos níveis de medo e insegurança, aliados ao crescimento de uma
divisão social e cultural entre “nós” (inocentes, sofredores de classe média) e “eles”
(indesejados e perigosos, pobres), tornou a sociedade complacente com relação ao
fortalecimento de um poder estatal bem mais repressivo, no qual os criminosos não são
verdadeiramente cidadãos, detentores de direitos (GARLAND, 2008, p. 386). As tarefas de
prevenção certificam o estado de sítio vigente para determinados setores da população,
destinadas a segregar e compartimentar os grupos considerados produtores de risco,
implantando zonas urbanas com acessibilidade diferenciada, polarizando a sociedade,
fragmentando a cidade e encarregando a polícia de evitar o contato entre os dois modos de
vida (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 55).
Além disso, no extremo, produz-se o que Bauman (2003, p. 109) chama de
“guetificação”, que, segundo ele, é paralela e complementar à criminalização da pobreza, na
medida em que há uma troca constante de população entre os guetos e as penitenciárias, um
servindo como grande e crescente fonte para a outra. Guetos e prisões são dois tipos de
estratégia de “prender os indesejáveis ao chão”, de confinamento e imobilização (BAUMAN,
93
2003, p. 109). As prisões, então, são guetos com muros, e os guetos são prisões sem muros,
diferindo entre si principalmente no método pelo qual seus internos são mantidos no lugar e
impedidos de fugir, mas em ambos os casos imobilizados, com as rotas de fuga bloqueadas e
mantidos firmemente no lugar (BAUMAN, 2003, p. 109 - 110).
Consoante ocorre no ambiente prisional, a incidência das normas constitucionais sucede
esmaecidamente nos bairros aos quais se atribui a pecha de violentos ou perigosos. Direitos
fundamentais enunciados como sustentáculos do Estado Democrático de Direito, como
vedação à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes, inviolabilidade de domicílio,
proteção às liberdades de expressão, locomoção e reunião, presunção do estado de inocência,
são relativizados em proporções que jamais seriam admitidas em bairros nobres - ou mesmo
em relação a pessoas inseridas geográfica, mas não culturalmente, na periferia.
Desse modo, revistas pessoais e invasões domiciliares são realizadas aleatória e
arbitrariamente; a defesa de direitos é criminalizada, reuniões de pessoas são dissolvidas por
serem havidas como suspeitas, tudo transcorrendo de maneira tão repetida e irrefreada que se
torna natural para os habitantes, que, em certas oportunidades, até aplaudem as violações de
seus direitos, por não serem apresentados a outras modalidades de enfrentamento à
criminalidade, que também os vitima.
Uma das mais recentes manifestações dessas intervenções desproporcionais e
generalizantes da criminalização da pobreza são os mandados de busca e apreensão coletivos
realizados no Brasil, excrescências jurídicas criadas à mingua de previsão legal, nascentes da
coletivização de um instrumento de persecução essencialmente individual ou pelo menos
individualizável. Por meio desses instrumentos, concede-se autorização judicial para buscas
em todos os domicílios de um determinado bairro ou região, independentemente de
individualização de residências, que invariavelmente é feita apenas no local, pelos próprios
policiais da diligência.
Por esse caminho, busca-se conferir um aspecto de respeito à regra constitucional de
inviolabilidade do domicílio, prevista no art. 5º, XI como direito fundamental, excepcionada
pela entrada com mandado judicial, durante o dia, mas com total inobservância da regulação
legislativa da matéria. A disciplina do mandado de busca e apreensão encontra-se nos artigos
240 a 250 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). O art. 243 determina expressamente
que o mandado de busca deverá indicar, o mais precisamente possível, a casa onde será
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realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca
pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem, além de
mencionar o motivo e os fins da diligência (BRASIL, 1941). Já o art. 245 prescreve que as
buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à
noite, e, antes de penetrarem a casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador,
ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta (BRASIL, 1941).
A simples leitura dos textos legais conduz à interpretação de que não são possíveis
mandados de busca e apreensão coletivos, visto que são instrumentos excepcionais de
flexibilização da regra da inviolabilidade do domicílio, somente podendo se verificar quando
houver fundadas suspeitas, sobre pessoas específicas, de envolvimento com delitos. Assinalar
uma área territorial para o ingresso em todas as residências é uma conduta que não consegue
disfarçar o caráter seletivo do poder punitivo sobre populações carentes, tratadas como
presumivelmente culpadas, em clara inversão do princípio constitucional da presunção do
estado de inocência.
Mais escancarada ainda se torna a seletividade quando o mandado de busca abrange
bairros com profunda desigualdade social, nos quais estão lado a lado casebres improvisados
e construções de luxo (em Fortaleza-CE, por exemplo). Nessas ocasiões, a “imunização da
riqueza” (outra face da “criminalização da pobreza”) aparece pela deliberada renúncia de
ingresso nas casas e condomínios das classes abastadas, mesmo que inseridas no perímetro
abrangido pela ordem de busca e apreensão coletiva, enquanto são invadidas e reviradas as
residências humildes dos suspeitos de sempre.
Referindo-se à ação da polícia francesa em ações semelhantes em bairros pobres,
Didier Fassin identifica dois fatores que se repetem nas ações policiais brasileiras: a
desproporção entre os meios utilizados e os resultados efetivos buscados ou alcançados, assim
como a exibição espetacular na mídia, que claramente buscam produzir um duplo efeito: por
um lado, aterrorizam os habitantes desses bairros, diante de quem é feita uma demonstração
de força ao colocá-los em situação equiparável ao estado de sítio, ainda que por algumas
horas; por outro lado, impressionam a população em geral que passa a entender que esse tipo
de expedição quase militar é necessária para restabelecer a autoridade do Estado nesses
territórios (FASSIN, 2016, p. 71). Não é o caso de envolver mais agentes, mas de fazê-lo da
maneira mais aparatosa para dar maior visibilidade e impacto. O uso ostensivo de armas, o
golpe de efeito que produz o “desembarque” e a utilização de camionetas, quadriciclos e
95
helicópteros não é uma consequência colateral, mas um efeito buscado. Por meio da
saturação, demanda-se atacar a insegurança subjetiva antes da insegurança objetiva. O
objetivo não é o delito, mas o medo do delito, ensejar golpes de efeito que catalizem a
angústia que produzem determinados conflitos (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 246).
Assim, a título de exemplo do contraste entre o vultoso aparato policial - montado com
nítidas finalidades de causar influxo – e os pífios resultados concretos dessas ações, leia-se a
matéria publicada pelo jornal Diário do Nordeste (Fortaleza-CE) no dia 21 de agosto de 2014:
A Operação Nômade III cumpriu um mandado de busca e apreensão coletivo nesta quinta-feira (21) na comunidade Lagoa Seca, no bairro Sapiranga, em Fortaleza. Na ação de combate ao crime, iniciada na madrugada e concluída por volta das 8h30, foram vistoriadas 320 casas, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Um proprietário de uma residência com uma rinha de galos, local onde ocorriam apostas ilegais relacionadas a brigas dos animais, foi preso e encaminhado à Divisão de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP). A operação também resultou na apreensão de uma submetralhadora artesanal e de uma pequena quantidade de drogas em outra casa do bairro. As forças policiais também encontraram na residência a identidade de um homem chamado Gabriel Costa de Araújo e estão à procura dele. A ação envolveu um total de 272 agentes, incluindo Polícia Civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer).
Resumindo: 272 agentes das forças de segurança, viaturas, helicópteros, invadiram 320
casas do bairro, aleatoriamente, e apreenderam: uma pessoa com galos de briga, outro com
uma arma artesanal, pequena quantidade de drogas em uma casa vazia e a cédula de
identidade de uma pessoa.
Isto não conforma situação isolada. O próprio sítio, da rede mundial de computadores,
usado pela Polícia Militar do Estado do Ceará, dá conta doutra operação semelhante, na
comunidade Pôr do Sol, Messejana, em Fortaleza-CE, no dia 24 de julho de 2014, que
envolveu 310 agentes da Coordenadoria Integrada de Planejamento Operacional (COPOL),
Coordenadoria de Inteligência e Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (CIOPAER)
da SSPDS, além de agentes da Polícia Militar (PM), Polícia Civil (PC) e Corpo de Bombeiros
Militar do Ceará (CBMCE), com a “vistoria” de 270 casas. Resultado: quatro pessoas detidas,
sendo duas flagradas (uma com algumas pedras de crack e uma balança de precisão e outra
com uma motocicleta roubada) e duas apreendidas por porte de drogas para uso, além de um
bar onde foram encontradas embalagens utilizadas na comercialização de drogas (POLÍCIA
MILITAR DO CEARÁ, 2019).
Obviamente, a formação de tão aparatosas operações possibilita a oportunidade perfeita
para quem estiver na posse de algo ilícito desvencilhar-se da condição de ser “flagranteado”, o
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que reforça a certeza de que se trata de uma mera operação de interesse midiático, ao custo da
ofensa gritante de direitos fundamentais dos moradores de comunidades carentes.
Em razão de violações tão flagrantes, releva lembrar, como o faz Jaqueline Sinhoretto,
que o tratamento igualitário diante das leis a todos os indivíduos, independentemente de
estamento, classe, credo religioso ou convicção política, aliado à independência do Poder
Judiciário para julgar os excessos dos governantes, foram aspectos fundacionais da
democracia moderna, erigida na constituição da cidadania (SINHORETTO, 2014, p. 401). O
Judiciário, entretanto, afasta-se cada vez mais dessa função e passa a funcionar como se fosse
órgão de segurança pública. É nesse sentido que Valois identifica: “Quando o Judiciário passa
a pensar que uma de suas funções é o combate à criminalidade ele se afasta da posição de
garantidor de direitos e liberdades para agir como mais uma arma apontada para a população”
(VALOIS, 2014, p. 126). Com esse ita agendum, o Judiciário produz o sentimento de que a
independência judicial com relação às hierarquias sociais constitui mais um princípio formal
do que uma experiência concreta, o que reforça a necessidade de reafirmação das lutas das
quais depende, ainda hoje, o reconhecimento de grupos sociais desfavorecidos
(SINHORETO, 2014, p. 401).
Isso porque as agressões que padece o ser humano em razão da sua pobreza não são
acidentais, mas encontram raiz na maneira como está organizada a vida da comunidade
nacional, e mesmo internacional, nas quais uma grande massa que se revelou débil ou
vulnerável desemboca em condições de vida impróprias ao gênero humano (NIKKEN, 2012,
p. 413). Nós, a “maioria democrática”, nos consolamos com o fato de que todas essas
violações dos direitos humanos não se dirigem a “nós”, as pessoas decentes, e sim a “eles”,
tipos diferentes de seres humanos (“Cá entre nós, será que são mesmo humanos”?)
(BAUMAN, 2013, p. 30). Como mordazmente percebe Eduardo Galeano (2010, P 32), “[...] o
poder, que pratica a injustiça e vive dela, transpira violência por todos os poros”, dividindo a
sociedade em bons e maus e perseguindo, nos infernos suburbanos, os condenados de pele
escura, culpáveis por sua pobreza e com tendência hereditária ao crime. Forma-se, então, um
umbral de indeterminação entre democracia e autoritarismo nos Estados e nas sociedades,
produzidos pelo cárcere e pela luta contra o delito dos pobres (RODRÍGUEZ ALZUETA,
2014, p. 360).
Mais uma demonstração inequívoca é a análise dos orçamentos previstos e os recursos
humanos disponíveis para perseguir os delitos dos pobres, que é muito superior ao destinado a
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visibilizar e combater os delitos dos poderosos; assim, não só há mais polícia, mais tribunais
penais e mais cárceres, como também todos esses movem-se por uma lógica punitiva que se
dispõe a castigar os que têm dificuldades sociais, sem que tal atitude seja seriamente
questionada (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 354). Nessa perspectiva, cabe a advertência
de Nikken (2012, p. 417): “[…] mientras tengamos victimas sin responsables, la violación
persistente, masiva e sistemática de los derechos humanos de los pobres seguirá en la
impunidad”.
Nesta análise não poderia faltar a observação de que o gozo e exercício dos direitos
humanos conforma-se com a eficácia do direito de ser diferente, deslegitimando-se, contudo,
toda diferença que tenha por objeto cercear ou de algum modo afetar ou impedir o gozo e
exercício de direitos humanos (PINTO, 2012, p. 353). Não se advoga, neste passo - seja tal
repisado - a formulação de uma exculpante baseada na pobreza, mas simplesmente que essa
diferença de nível socioeconômico não seja utilizada como fator de discrimen em favor de
uma política de combate ao crime que proteja somente os setores favorecidos da sociedade
(proteção da propriedade), à custa da criminalização, etiquetagem e encarceramento dos
pobres. Eo ipso, ainda que haja uma contraposição ou colisão de direitos fundamentais com
outros valores constitucionalmente protegidos, como a segurança pública, o produto da
atividade ponderativa deve sempre se aproximar da solução que implique a prevalência da
dignidade humana, na perspectiva kantiana já aludida no estudo, de considerar o indivíduo
sujeito e não objeto de direitos (KANT, 2007, p.68). Rodrigues (2001, p. 35) doutrina uma
síntese entre estes valores como exigência do moderno Estado:
No tempo presente, a síntese deve fazer eco do Estado contemporâneo, de direito, democrático e social. Um Estado em que a defesa intransigente da dignidade da pessoa não se opõe a uma legitimação utilitarista da intervenção punitiva estadual, pois os critérios de utilidade aparecem em relação dialéctica com as garantias formais e materiais que intervêm na autolimitação do Estado. A opção unilateral pela dimensão garantística ou pela preventiva é hoje, por estas razões, impossível.
A universalidade da cidadania, entendida aqui em sentido amplo, como condição de
acesso a direitos, é a condição preliminar de qualquer “política de reconhecimento”
significativa, no entendimento de Bauman (2003, p. 126), que acrescenta: “[...] a
universalidade da humanidade é o horizonte pelo qual qualquer política de reconhecimento
precisa orientar-se para ser significativa”. A democracia hoje em dia corre sério risco de ser
impunemente obliterada e contraditada por uma casta de magistrados ou por uma política
governamental que, ignorando os standards internacionais de direitos humanos, produz e/ou
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legitima estados de exceção permanentes, porque continua despojando determinados setores
da sociedade de sua condição de humanidade (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 361).
A sociedade pós-moderna que, teoricamente, teria todas as condições para aprofundar as
conquistas democráticas por ser porosa, móvel, aberta, conforme defende Garland (2008, p.
348), na prática, confere causa a exercícios de controle do crime que buscam tornar a
sociedade menos aberta e também móvel, fixando identidades, imobilizando indivíduos,
estabelecendo quarentenas para setores da população, erguendo fronteiras e fechando acessos.
A “subclasse”, os “emigrados internos”, “estranhos de dentro”, embora estejam no interior da
sociedade, não são “da” sociedade, pois em nada contribuem para o seu desenvolvimento,
devendo ser, por isso, extirpados ou confinados, de maneira induzida ou planejada
(BAUMAN, 2013, p. 10).
A aguda e crônica experiência da insegurança é um efeito colateral da convicção de que,
com as capacidades adequadas e os esforços necessários, é possível obter uma segurança
completa, porém, quando percebemos que não iremos alcançá-la, atribuímos o fracasso a um
ato errado e premeditado, o que implica a presença de algum delinquente (BAUMAN, 2009,
p. 15). Os estranhos e delinquentes, portanto, seriam a encarnação da falta de proteção e,
assim, por extensão, da insegurança que assombra as vidas, mas que, de forma paradoxal e ao
mesmo tempo perversa, convertem-se em um conforto: “[...] os temores difusos e esparsos,
difíceis de apontar e nomear, ganham um alvo visível, sabemos onde estão os perigos e não
precisamos mais aceitar os golpes do destino placidamente. No fim, há algo que podemos
fazer”. (BAUMAN, 2003, p. 130). A tentativa de solução normalmente utilizada é assinalada
por Garland (2008, p. 60-61): basta aumentar os controles sociais, os situacionais,
autocontroles, cujas teorias informam o pensamento e a ação oficiais e são os temas
dominantes na criminologia contemporânea, enxergando a delinquência como problema não
de privação, mas de controle inadequado.
As teorias de controle citadas são problemáticas porque partem de uma visão obscura da
condição humana, ao preceituarem que os indivíduos são fortemente propensos ao egoísmo e
a condutas criminosas, a menos que sejam inibidos por controles robustos e eficazes, por isso
a nova criminologia insiste em intensificar o controle e reforçar a disciplina, em substituição a
uma criminologia que demandava mais em termos de bem-estar e assistência (GARLAND,
2008, p. 61). Esse controle, contudo, não tem como destinatários todos os indivíduos, mas é
direcionado a grupos pauperizados e suas condutas particulares, pois os ricos continuam a
99
desfrutar das liberdades pessoais e do individualismo moral proporcionado pelas mudanças
sociais do pós-guerra, à medida que a sociedade mergulhava mais na economia de mercado
(GARLAND, 2008, p. 217).
De acordo com Garland, o efeito combinado de políticas “neoliberais” e
“neoconservadoras” – da disciplina do mercado e de disciplina moral – constitui o de criar
uma situação na qual mais e mais controles são impostos aos pobres, enquanto cada vez
menos controles afetam as liberdades de mercado para o resto da população (GARLAND,
2008, p. 419). Nas democracias pós-modernas, a tentativa de criar ordem social por
intermédio de instrumentos penais é profundamente problemática, pois sedimenta uma divisão
entre aqueles grupos que podem viver em liberdade desregulamentada e aqueles que devem
ser pesadamente controlados (GARLAND, 2008, p. 426). Em outros termos, fica
restabelecida visão que pugna por “mais Estado” em determinadas áreas, principalmente no
que diz respeito à segurança pública, que recebe cada vez mais vultosos investimentos,
reforçando-se o controle sobre a população mais pobre; e “menos Estado” na área econômica
e social, em benefício da expansão do mercado.
Nessa realidade, as classes médias, por sua vez, passam a atacar o Estado do bem-estar,
por vê-lo cada vez menos como um sistema que funciona em seu benefício, encarado agora
como uma burocracia governamental onerosa e ineficiente, cuja função é redistribuir os
recursos da população trabalhadora para uma massa de beneficiários ociosos e irresponsáveis,
contribuindo, destarte, para um raciocínio no qual os setores médios são – na previdência,
como no crime – “vitimizados” pelos pobres e por um sistema que reproduz o problema que
deveria resolver (GARLAND, 2008, p. 419). David Garland (2008, p. 423) formula, então, a
pergunta fundamental: “Por que os governos adotam, tão rapidamente, soluções penais para
lidar com o comportamento de populações marginalizadas, em vez de cuidarem das fontes
sociais e econômicas de sua marginalização?”. As respostas são fornecidas pelo mesmo autor:
Porque soluções penais são imediatas, fáceis de serem implementadas e podem alegar que “funcionam” como instrumento punitivo ainda que fracassem todos os outros objetivos. Porque elas possuem poucos oponentes políticos e relativo baixo custo, assim como se harmonizam com o senso comum no que concerne às fontes da desordem social e à adequada distribuição de culpa. Porque ela se amparam em sistemas de regulação existentes, deixando intocados os arranjos sociais e econômicos fundamentais. Sobretudo, porque elas concentram o controle e a condenação nos grupos excluídos, deixando relativamente livre de regulação e censura o funcionamento dos mercados, das empresas e das classes sociais mais favorecidas. (GARLAND, 2008, p. 423).
100
O recrudescimento do controle e o encarceramento em massa de determinados grupos
continua atraente para os Estados que se apoiam nos movimentos de “lei e ordem”, mas
representam uma contradição com os ideais da democracia liberal, principalmente onde o
poder punitivo esteja concentrado em setores vulneráveis, constituindo, na realidade, um
Estado-apartheid, que tenta sustentar a ordem social por meio da exclusão (GARLAND,
2008, p. 429). Assim, a ênfase na punição e no policiamento reforça a marginalização social
endêmica, preferindo valer-se das pretensas certezas de uma solução hobbesiana mais
simplória, mais coercitiva, em vez de tratar o difícil problema da solidariedade social num
mundo diversificado e individualizado (GARLAND, 2008, p. 427). Isso porque tais líderes
são julgados pela severidade que manifestam na “corrida por segurança”, procurando superar
um ao outro nas promessas de tratar com austeridade os responsáveis pela insegurança –
autênticos ou supostos, mas que podem ser enfrentados e derrotados, ou pelo menos
conquistáveis (BAUMAN, 2013, p. 29). No extremo, é necessário atentar-se para a
advertência de Christie (1993, 25), para quem “[...] el mayor peligro del delito en las
sociedades modernas no es el delito en sí mismo, sino que la lucha contra este conduzca las
sociedades hacia el totalitarismo”.
Há de se adir, ainda, a noção de que os efeitos da criminalização e de sua face mais
visível, a prisão, reforçam, por meio da restrição de direitos políticos, o distanciamento entre
o tratamento dado a determinados setores da população e o funcionamento de um Estado
Democrático de Direito. No Brasil, a própria Constituição (BRASIL, 1988) estabelece a
suspensão dos direitos políticos enquanto durarem os efeitos da sentença penal condenatória
(art. 15, III, CF). Já no tocante aos presos provisórios, embora permaneçam na titularidade de
direitos políticos, protegidos pela presunção do estado de inocência, são privados de tais
direitos por obstáculos de natureza administrativa e burocrática.
Ainda que veiculada por norma constitucional, há que se questionar se a suspensão de
direitos políticos dos definitivamente condenados guarda harmonia com outras disposições
igualmente constitucionais, além de ser necessário analisar se contém pretensões efetivamente
democráticas. A seguir, são expressos os entendimentos doutrinários referentes a essa
temática que, como visto, são bastante díspares, com sua posterior sistematização e mostra do
posicionamento adotado nesta pesquisa.
Os defensores da privação utilizam o seguinte argumento, oferecido por Fialho (2011, p.
380-381):
101
O pano de fundo que dá substância à privação dos direitos políticos na hipótese de condenação criminal transitada em julgado é de inspiração ética e material, já que a norma visa a tutelar a ordem democrática sob o ponto de vista da indignidade e da responsabilidade penal do indivíduo que, submetido a um édito penal condenatório, sob o ponto de vista exógeno, não reuniria condições éticas mínimas para participar dos atos de gestão estatal e, igualmente, parte da noção de que, em função da privação da liberdade do indivíduo, a fruição deste direito encontra-se obstaculizado.
Para Conceição (2104, p. 189), o escopo dessa norma é afastar temporariamente da
participação das discussões e decisões mais importantes do País pessoas que tenham cometido
fatos desabonadores e que, por isso, são consideradas inaptas a participar das decisões mais
relevantes do Estado, ultrapassando, portanto, os exames de adequação e necessidade da
medida para os fins a que se propõe. Por outro lado, de acordo com o entendimento
jurisprudencial consolidado, que teve como origem o julgamento do Recurso Especial
Eleitoral nº 11.589/SP, em 1994, restou assentado que o preceito determinante da suspensão
de direitos políticos é de aplicação imediata e irrestrita, independentemente da infração penal
praticada, além de fixar a ideia de que tal supressão decorre de efeito automático da sentença,
sendo desnecessário, inclusive, menção expressa no texto decisório (BRASIL, 1994 b). O
Supremo Tribunal Federal também consolidou seu entendimento nesse sentido, tendo como
precedente o RE 179.502-6/SP, julgado em 31/05/1995, acrescentando, ainda, que não é o
recolhimento do condenado à prisão que justifica a suspensão de seus direitos políticos, mas o
juízo de reprovabilidade expresso na condenação (BRASIL, 1995)19.
Tal interpretação, contudo, é contraposta por entendimento doutrinário calcado em
decodificação sistemática da CF/88, cuja principal premissa é a de que a limitação da
abrangência da universalidade do sufrágio se traduz como fator de exclusão social (FIALHO,
2011, p. 377). Como já aludido em outro estudo, “[...] qualquer forma de exclusão da
participação política representa manifestação de exclusão social”. (BESSA, 2008, p. 229).
Assim, quidem, “[...] os indivíduos cerceados em seu direito de manifestar sua vontade para a
formação das leis, seja direta, ou indiretamente, acabam relegados a uma classe inferior de
cidadãos, inaptos a contribuir com a sua voz para ditar as regras que regerão suas vidas”
(BESSA, 2008, p. 229). Com essa conclusão concorda Antony Duff, ao identificar uma
19O entendimento foi reafirmado em 2011 no RE 577012 AgR / MG - MINAS GERAIS. EMENTA:
CONSTITUCIONAL. DIREITOS POLÍTICOS. SUSPENSÃO EM DECORRÊNCIA DE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO. ART. 15, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONSEQUÊNCIA QUE INDEPENDE DA NATUREZA DA SANÇÃO. RECURSO IMPROVIDO. I – A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não impede a suspensão dos direitos políticos. II – No julgamento do RE 179.502/SP, Rel. Min. Moreira Alves, firmou-se o entendimento no sentido de que não é o recolhimento do condenado à prisão que justifica a suspensão de seus direitos políticos, mas o juízo de reprovabilidade expresso na condenação. III – Agravo regimental improvido (BRASIL, 2010 c).
102
importância simbólica nesse contexto, pois, ao inabilitar-se o voto dos presos, mostra-se com
clareza que eles deixam de ser cidadãos (status cívico fica suspenso), enquanto estão na
prisão, porquanto desvestidos de um atributo que para a maioria das pessoas é definidora do
compromisso político dos cidadãos (DUFF, 2015, P. 63). Nas palavras de Alexander (2017, p.
39), referindo-se ao mesmo fenômeno nos Estados Unidos,
Se acorrentar os prisioneiros a uma vida de dívidas e autorizar discriminação contra eles em empregos, habitação, educação e benefícios públicos não for o suficiente para enviar a mensagem de que eles não são queridos nem sequer considerados cidadãos de pleno direito, retirar o direito a voto daqueles rotulados como criminosos certamente o é.
Assim, conforme já aludido, embora, na análise da proporcionalidade, a privação
automática de direitos políticos supere os exames de adequação e necessidade, esbarraria,
segundo essa posição, no exame de proporcionalidade em sentido estrito, quando se verificam
os efeitos deletérios que poderia causar em direitos fundamentais relevantes relacionados com
a participação política. Conforme defende Fialho (2011, p. 381), a tese de aplicação
automática e irrestrita precisa ser desconstituída, para dar lugar à exigência de que o
magistrado deixe expressamente registrado no dispositivo da sentença penal condenatória a
determinação de suspensão de direitos políticos do apenado, precedida de fundamentação e
justificação da pertinência e conveniência da medida. Isso porque “[...] toda desvantagem
imposta a um direito fundamental traz consigo o ônus de afirmação perante a ordem
constitucional, a partir de uma fundamentação racional” (CONCEIÇÃO, 2014, p. 170). Dessa
maneira, estaria o magistrado cumprindo as determinações constitucionais da fundamentação
das decisões judiciais, veiculado pelo art. 93, IX da CF/88 (BRASIL, 1988) e da
individualização da pena (art. 5º, XLVI) (BRASIL, 1988), na medida em que faria a
necessária distinção entre delitos dolosos e culposos, crimes de perigo concreto, abstrato e de
dano, comuns e hediondos, evitando que se atribua idêntico peso valorativo a todos, pela
aplicação da mesma consequência (FIALHO, 2011, p. 381).
Não se pode, de fato, esquecer de que a Constituição brasileira não faz qualquer
distinção quanto ao tipo de condenação para que seja determinada a suspensão dos direitos
políticos, que decorre automaticamente da sentença condenatória irrecorrível, como
pacificado nas cortes patriais. Tal ocorrência aumenta enormemente o número de pessoas
alcançadas pela privação de direitos políticos, convertendo-se, portanto, em muitas
oportunidades (como na aplicação de penas restritivas de direitos, por exemplo), uma punição
103
desproporcional que, embora acessória, resulta muito mais grave do que a própria pena do
delito, em muitos casos de potencialidade lesiva ínfima.
A privação de direitos políticos, ademais, contradiz a própria finalidade de
ressocialização da pena. Com efeito, se o objetivo maior da execução penal é garantir a
reintegração do condenado à sociedade, a privação de participação política representará um
obstáculo a tal intento.
Como esperar que um indivíduo, cerceado em seu direito de manifestação, sinta-se parte da sociedade cujas regras foram formadas sem a sua participação? Como considerar representado politicamente um indivíduo que não escolheu, por meio voto, aquelas pessoas que considera aptas a defender seus interesses nas casas legislativas e no Poder Executivo? (BESSA, 2008, p. 229).
No mesmo sentido é a doutrina de Vasconcelos (2005, p. 164):
O objetivo de reintegrar o preso na sociedade fundamenta a tese de que ele continua sendo membro da comunidade. A pena a que foi condenado decorre de uma transgressão à lei penal. Por este motivo é afastado, por tempo determinado da vida comunitária. Porém não perde todos os direitos de que se beneficia o cidadão.
Assim, os pobres, em sua vulnerabilidade, como são invariavelmente alcançados pelo
poder punitivo estatal, permanecem temporariamente sem voz no debate democrático, o que
tende a perpetuar a situação de abandono e desrespeito a direitos a que são submetidos,
principalmente quando em situação de encarceramento. A opinião majoritariamente
construída (ou fabricada), calcada em sentimentos e argumentos de “lei e ordem”, prevalece
na produção das normas e em sua aplicação, tendendo, portanto, a se perpetuar, na medida em
que alija a participação daqueles submetidos aos rigores dessa política.
Impende lembrar o sempre empalmado argumento da inaptidão para o voto das pessoas
encarceradas, obsoleto e autoritário fundamento que, durante séculos, impediu a participação
política de outras minorias, como mulheres, escravos e analfabetos. Como aludido em outra
oportunidade, sobre o assunto,
[...] a história da democracia demonstra uma evolução no sentido de ampliação da participação popular, rompendo velhos preconceitos ou interesses de classes e afastando a concepção sempre empunhada de que determinada parcela da população não teria condições de bem escolher seus representantes. (BESSA, 2008, p. 231).
Como ensina Bobbio (2004, p. 31), o progressivo alargamento do número de pessoas
com direito ao voto foi um indicativo, no século imediatamente passado, de um continuum de
democratização. Logo, a restrição apontada em relação aos presos, também por esse prisma,
representa uma minimização da democracia, pelo fato de restringir o número de pessoas aptas
104
a participar. Pretende-se demonstrar, contudo, é que, partindo da premissa de ser o sistema
seletivo e criminalizar a pobreza, como exaustivamente demonstrado, a privação de direitos
políticos atinge desproporcionalmente a população mais pobre, como natural consequência.
De outra parte, a inabilitação política, no caso brasileiro, avança ainda mais quando
alcança os presos provisórios, em relação aos quais não há qualquer restrição de natureza
normativa, mas que são impedidos de votar por pretextos meramente burocráticos e
administrativos (ligados ao domicílio eleitoral ou por dificuldades de logística nas unidades
prisionais, por exemplo), que se sobrepõem ao direito fundamental de participação. Assim,
deficiências da Justiça Eleitoral ou obstáculos meramente burocráticos inviabilizam o
exercício de direitos políticos de indivíduos em relação aos quais não há qualquer definição
de culpa, pois aguardam presos, muitas vezes por extensos períodos, o julgamento de seus
processos.
Partindo da premissa de que (como já demonstrado em várias passagens deste estudo) o
poder punitivo estatal se volta quase exclusivamente sobre a população mais pobre, ela está
sub-representada nas posições de poder e decisão, na proporção em que sobre-representada
nas malhas repressivas do Estado. Os influxos deletérios na soberania popular e,
consequentemente, no próprio funcionamento da democracia, destarte, são inegáveis. De
acordo com dados do DEPEN, encontram-se encarceradas 726.712 pessoas (BRASIL, 2017).
Não há dados oficiais de hoje do número de pessoas em cumprimento de penas alternativas,
mas sabe-se que em 2008 ultrapassou o número de pessoas presas (G1, 2008). Conclui-se,
então, que aproximadamente 1,5 milhão de pessoas encontram-se impedidas de participar do
processo de formação da vontade estatal, superando, apenas para ilustrar, o número de
eleitores de Roraima (com 331.489 eleitores em 2018), Amapá (com 512.110 eleitores em
2018) e Acre (com 547.680 eleitores em 2018) somados (BRASIL, 2019).
Considerando-se o fato de que o número de eleitores no Brasil aptos a votar nas eleições
de 2018 era de 147.302.357 (BRASIL, 2019), facilmente se deduz que o encarceramento e as
demais sanções penais, ao atingirem desproporcionalmente determinada parcela da população
(principalmente nos crimes de baixa e média potencialidade lesiva, como já aludido),
conduzem a uma crise de legitimidade e representatividade dos poderes estatais, já que essas
vozes não contribuem para o exercício do direito de sufrágio, redundando na fragilização de
sua principal característica, configurada na universalidade. Por outro lado, afasta-se o Estado
105
brasileiro do cumprimento do que estabelece a Carta Democrática Interamericana em seu art.
6:
A participação dos cidadãos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento é um direito e uma responsabilidade. É também uma condição necessária para o exercício pleno e efetivo da democracia. Promover e fomentar diversas formas de participação fortalece a democracia. (OEA, 2001).
Esta, sem dúvida, é uma conjunção de problemas bastante complexa que admite,
portanto, como visto, uma série de possibilidades, que podem ser assim sistematizadas: 1 –
suspensão automática e irrestrita de direitos políticos a todos os criminalmente condenados,
enquanto durar o cumprimento da pena (posição adotada pelo TSE e STF); 2 – proposta de
mudança constitucional para a exclusão pura e simples do art. 15, III da Constituição, a fim de
conferir sufrágio parcial aos condenados criminalmente (somente capacidade eleitoral ativa),
mas tornando-os inelegíveis (posição adotada por Vasconcelos, 2005, p. 163); 3 – necessidade
de interpretação sistemática da CF/88 com tendência a alargar o direito de sufrágio, de modo
que a suspensão de direitos políticos somente deva ocorrer precedida de fundamentação de
sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito perante o caso concreto; 4
– tão somente as condenações criminais decorrentes da prática de crimes dolosos e que
possibilitem a pena privativa de liberdade deveriam habilitar a suspensão de direitos políticos
(FIALHO, 2011, p. 388).
Neste experimento universitário de sentido estreito (tese de doutoramento), adota-se o
posicionamento de que o atual entendimento dos tribunais superiores cuida de maneira
uniforme de situações que, na prática, podem ser sobejamente diferentes, o que enseja
injustiças em muitos casos concretos relacionados a delitos de menor potencialidade lesiva.
Por outro lado, entende-se que a suspensão de direitos políticos pode ser solução adequada em
decorrência de pesadas violações da ordem social, representada por crimes graves, de modo
que deve ser mantida nessas situações. Por fim, defende-se a posição segundo a qual, em
qualquer caso, a suspensão de direitos políticos, pelo fato de representar a privação, ainda que
temporária, do status de cidadão, não pode ser efeito automático e necessário da condenação
criminal, devendo o magistrado, quando pretender impô-la, superar os onera de
fundamentação consistente, demonstrativa da proporcionalidade de sua incidência no caso
concreto. Advoga-se, com efeito, a alteração constitucional para deixar evidente em quais
crimes poderia incidir a suspensão de direitos políticos e, mesmo nesses eventos admissíveis,
exigir-se do magistrado a citada fundamentação. Reitere-se o fato de que a proposta somente
pode ser consolidada com uma emenda à Constituição que deixe claros os crimes nos quais
106
será aplicável a suspensão de direitos políticos (rol de crimes graves, excepcionais) e que,
ainda em relação a esses – até mesmo por exigência de fundamentação das decisões judiciais
e respeito à individualização da pena – o juiz deva demonstrar na sentença a razoabilidade, in
rebus, da privação dos direitos políticos. Eventuais equívocos judiciais poderiam ser
superados pela via recursal, mas se considera que a solução oferecida supera a atualmente
adotada pela Constituição e interpretada pelos tribunais pátrios, seja por maior garantia da
universalidade do direito de sufrágio, seja em efetivação da soberania popular, onde reside
todo o poder político.
Isso porque o impedimento de participação de tantas pessoas na definição dos rumos a
serem adotados em uma sociedade, automática e irrefletidamente, representa apenas mais uma
faceta de uma política totalmente direcionada a excluir ainda mais determinados setores da
sociedade, em evidente contradição relativamente aos ditames de um Estado Democrático de
Direito, que deveria buscar, ao contrário, ser mais inclusivo e justo, por meio da definição de
estratégias de participação social e controle das ações estatais.
2 SELETIVIDADE PENAL E SUAS MANIFESTAÇÕES
NOBRASIL
Analisadas as diversas concepções de pobreza e os principais aspectos de sua
criminalização, bem como a sua contradição com diversos valores albergados pelo Estado
Democrático de Direito, como analisado na seção imediatamente precedente, tem aqui
continuidade o estudo específico da seletividade penal, com destaque para a realidade
brasileira, iniciando-se por um necessário escorço histórico, para, então, se obedecer uma
sistematização de manifestações de seletividade penal e criminalização da pobreza em solo
pátrio. O fenômeno carcerário, que no Brasil adquire contornos dramáticos, merece, nesse
particular, uma observação mais atenta, pelo desastre humanitário que produz e por ser o mais
deplorável exemplo de um indisfarçável tratamento discriminatório.
Assim, no capítulo sob relatório, fixa-se o conceito de seletividade penal, com a
apresentação das suas diversas manifestações no decorrer da história, a demonstrar como o
poder punitivo realiza os seus maus desígnios, para, na sequência, investigar como tal
fenômeno é expresso em terras brasileiras, desde a época colonial até o período em decurso.
Na sequência, então, está o exame de aspectos específicos da seletividade penal estatal –
principalmente, da persecução criminal e do sistema de justiça – desvelando essa marcante
característica dos posicionamentos estatais no que diz respeito ao encarceramento preferencial
dos pobres, mortes institucionais, tortura e demais tratamentos negativamente marcantes, com
destaque para a situação brasileira.
2.1 Seletividade penal
As sociedades humanas, desde os primórdios de suas formações, conviveram com o
desvio das normas de conduta estabelecidas como consenso. Várias foram as modalidades de
resposta utilizadas, desde a vingança privada, com a exclusão do infrator do grupo social ou a
simples composição (autotutela), passando pela imposição de sanções representativas de uma
vingança divina, até o surgimento da vindita pública, caracterizada pelo surgimento do poder
108
de punir, normalmente atribuído a um ente específico, no caso, o Estado. Com efeito, nem
todas as infrações à ordem estabelecida eram efetivamente punidas e os critérios de definição
de quem seriam os alcançados pelo poder punitivo foram igualmente variáveis no decorrer do
tempo.
O que se verificou, portanto, ante a impossibilidade fática de punição de todos os
desvios, somada à falta de interesse pela punição daqueles que ocupavam ou gravitavam em
torno do poder, foi a seleção daqueles que seriam colhidos pela vingança pública, a fim de
reafirmar o poder punitivo, estabelecendo-se, exemplarmente, o controle social formal.
Apenas alguns membros do corpo social, facilmente identificáveis, seriam, então,
historicamente, sacrificados a pretexto da distribuição de “justiça”, como demonstrado nas
linhas que vêm.
Seletividade penal, portanto, pode ser entendida como a atitude de se direcionar o poder
punitivo contra grupos determinados e determináveis de modo desproporcional, ao mesmo
ponto em que não são destinados os mesmos esforços para prever e impor normas penais
sobre outros grupos, que igualmente ofendem a ordem jurídica estabelecida. Tal conforma
uma atitude que, de resto, não se restringe aos órgãos estatais, mas que se espraia por toda a
sociedade, com a atuação específica e contundente dos meios de comunicação social, mas
sempre com a mesma característica de tratamento desigual, conforme a pessoa que
protagonize a situação de conflito penal.
Assim, como define Sinhoretto (2014, p. 400-401), “[...] o problema formulado em
torno da seletividade penal é entender como e por que o Estado privilegia a perseguição de
certas condutas ou de certos grupos criminosos ou é tolerante com outras condutas e grupos
sociais”. Em outras palavras, da mesma autora:
Trata-se de pensar em como as instituições do sistema de justiça operam constrangimentos e seleções para certos atores sociais que movimentam suas habilidades e capitais na tentativa de lidar com filtros institucionais. Os mais bem afortunados são aqueles cujas demandas por justiça transitam facilmente pelas estruturas judiciais e suas infrações atraem pouca atenção da repressão penal. Os desfavorecidos são os que atraem a repressão penal aos seus modos de morar, trabalhar, comerciar, viver e encontram muitas dificuldades em administrar os conflitos de que são protagonistas por regras e procedimentos estatais. (SINHORETTO, 2014, p. 401).
Cuida-se, portanto, de estabelecer qual o percurso histórico trilhado pelo tratamento
seletivo, a fim de compreender as suas raízes e sua intrínseca relação com o poder. Alagia
(2013, p. 42) atribui ao filósofo francês Joseph de Maistre o mérito de descobrir os vínculos
109
entre pena pública e trato sacrificial. A imolação produtora de sangue para satisfazer a
vontade dos deuses recaía inicialmente sobre animais, mas logo passou a centrar-se em seres
humanos. Prossegue o Criminólogo da Universidade de Buenos Aires:
Se trata de una idea antigua y aceptada en el mundo enterro: el delito no pude ser expiado más que con la eficácia del sacrifício y la sangre del culpable. Ninguna nación ha dudado sobre la existencia de una virtud en el derramamento de sangre sacrificial, assegura el filósofo de la contrarrevolución. No obstante, talvez su mayor descubrimiento sea en orden a la selectividad en el uso de la violencia extrema que denomina “dogma de la reversalidad”. La destrucción de algo, de alguien o de un grupo vulnerable puede satisfacer y ocupar el lugar de los verdaderos culpables en la crisis del orden social. Una vida menos “preciosa” se ofrece y acepta por outra. (ALAGIA, 2013, p. 43).
Igualmente entende Zaffaroni (2007, p. 11, grifo do autor), para quem “[...] o poder
punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que
não correspondia à condição de pessoas, posto que os considerava apenas como entes
perigosos ou daninhos. Para Giorgi (2013, p. 36), “[...] a penalidade se inscreve num conjunto
de instituições jurídicas, políticas e sociais (o Direito, o Estado, a família), que se consolidam
historicamente em função da manutenção das relações de classe dominantes”. O grau de
periculosidade do inimigo – e, de igual modo, da necessidade de contenção – dependerá
sempre do juízo subjetivo do individualizador, que é exatamente quem exerce o poder
(ZAFFARONI, 2007, p. 25). Na aproximação procedida por Alagia (2013, p. 57), “[...] o
poder punitivo sobrevoa a população vulnerável para encontrar alimento que consumir”.
Selecionar determinadas pessoas com a finalidade sacrificial, portanto, se consolida
historicamente como característica ínsita às sociedades humanas, principalmente quando
exercem o poder de punir. Nas palavras de Alagia (2013, p. 515), “Encontrar em la
institucionalización del genocídio la matéria de que está hecho el castigo retributivo y toda
pena es uma verdadeira sorpresa, tanto más perturbadora cuando deja ver trazos de uma
violência sagrada”.
De fato, tal afirmação é facilmente comprovada na manifestação atroz mais próxima na
história e uma das mais estarrecedoras da experiência humana: o genocídio do povo judeu
pelos nazistas. Como lembrou o intelectual uruguaio Galeano (2010, p. 61) (há pouco tempo
noutra dimensão), “[...] o plano nazi de limpeza da raça ariana começou com a esterilização
dos enfermos hereditários e criminosos, e continuou, depois, com os judeus”. De fato, as
distâncias que parecem existir entre genocídio e pena pública tendem a desparecer quando se
110
considera que o “sagrado” do castigo está determinado pelo bem que dele se espera a
expensas de oferecer uma vítima sacrificial (ALAGIA, 2013, p. 54).
A hipótese de Alagia (2013, p. 15) é a seguinte: “[...] não é improvável que o trato
punitivo organizado seja herança da solução sacrificial do mundo selvagem e que o homem
civilizado converteu em modo de vida”. Para ele, há aproximadamente cinco mil anos
vivemos sob ameaça e padecimento punitivo com a crença de que “[...] alguém tem que sofrer
ou morrer para que a sociedade viva” (ALAGIA, 2013). Concorda Galeano (2010, p. 81) ao
sentenciar que “[...] a morte de cada malvivente surte efeitos farmacêuticos sobre os
benviventes. A palavra farmácia vem de phármakos, que era o nome que davam os gregos às
vítimas humanas dos sacrifícios oferendados aos deuses em tempos de crise”. Bauman (2013,
p. 198-199) complementa, aduzindo que
Precisamos de alguém para odiar porque precisamos de alguém para culpar por nossa abominável e insustentável condição, e pelas derrotas que sofremos ao tentar melhorá-la e torná-la mais segura. Precisamos dessa pessoa para descarregar (e assim, ao que se espera, aliviar) a devastadora percepção de nossa própria indignidade (...) Vamos insistir em que odiamos porque queremos ver o mundo livre do ódio.
Mesmo que, com o advento do Estado de Direito, após as revoluções burguesas do
século XVIII, tenha ocorrido uma minimização do Estado, não foi possível abandonar as
pulsões de Estado absoluto que se manifestam pela maneira como eram selecionados os
considerados perigosos e, portanto, alvos da ação persecutória do Estado. Em sua obra “O
inimigo no Direito Penal”, Zaffaroni (2007, p. 12) desenha uma tese segundo a qual
[...] o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é compatível com um modo de Estado absoluto e que, consequentemente, as concessões do penalismo têm sido, definitivamente, obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de Direito.
A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o
Direito lhe nega sua condição de pessoa. Essa característica, inserta no poder punitivo, é
contraditória em relação ao princípio da igualdade, mesmo em seu aspecto meramente formal,
que funda o Estado de Direito. Tratar diferenciadamente certas pessoas, punindo-as
preferencialmente e negando acesso aos direitos enunciados para todos, representa a
contradição essencial do Estado de Direito que, por um lado, ostenta a característica de que
todos estão submetidos ao Direito indistintamente e, de outra parte, seleciona sempre aqueles
pertencentes a um determinado grupo social. Importante é lembrar, com Bauman (2013, p.
111
79), a ideia de que “[...] o extermínio de judeus, ciganos ou homossexuais, para seus
perpetradores era uma ação de higiene (cristais de Zyklon B, originalmente produzidos como
veneno para vermes, eram espargidos através dos telhados da câmaras de gás por “agentes de
higiene”).
Zaffaroni (2007, p. 22) identifica no Direito Romano “[...] os eixos troncais que
haveriam de servir de suportes posteriores a todas as subclassificações do hostis levadas em
conta para o exercício diferencial do poder punitivo e racionalizadas pela doutrina penal”.
Para o Jurista argentino, estas categorias remontam a duas, originárias do Direito Romano:
a) hostis alienígena – núcleo que abarca todos os que incomodam o poder, os
insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros que, como estranhos, são
desconhecidos e, como todo desconhecido, inspiram desconfiança e, por conseguinte,
tornam-se suspeitos por serem potencialmente perigosos;
b) hostis judicatus – declarado hostis em função da autorictas do Senado, que era um
poder excepcional que, em situações excepcionais, declarava inimigo público o
indivíduo que ameaçava a segurança da República por meio de conspirações ou
traição (ZAFFARONI, 2007, p. 22-23).
Com origem na Roma, portanto, o conceito de inimigo ou hostis, sob as mais variadas
modalidades, explícita ou veladamente, “[...] atravessou toda a história do Direito ocidental e
penetrou na Modernidade, não apenas no pensamento de juristas como também no de alguns
de seus mais destacados filósofos e teóricos políticos, recebendo especiais e até festejadas
boas-vindas no direito penal” (ZAFFARONI, 2007, p. 24).
A Idade Média, por sua vez, foi marcada pela existência da Inquisição, cuja atuação
tinha por principal característica a perseguição de pessoas consideradas refratárias ao
pensamento único estabelecido pela Igreja Católica. Hereges e bruxas passaram a figurar
como os principais inimigos públicos da época, submetidos a simulacros de julgamento, nos
quais as provas de inocência eram praticamente impossíveis, e acusação, defesa e julgador
concentravam-se na mesma pessoa. O processo era apenas o instrumento que antecedia os
suplícios, espetáculos públicos por meio dos quais se pretendia distribuir temor ao restante da
população, valendo-se de técnicas que incluíam esquartejamento, cruxificção, empalamentos,
submissão à fogueira ou ao confinamento com feras, entre outras atrocidades. A eliminação
112
física era, portanto, o destino inexorável dos indesejáveis que caíam nas malhas punitivas
estatais.
Na transição ao capitalismo, nos séculos XIV e XV, “[...] o crescimento constante do
crime entre os setores do proletariado empobrecido, sobretudo nas grandes cidades, tornou
necessário às classes dirigentes buscar novos métodos que fariam a administração da pena
mais efetiva” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 31). De tal sorte, o sistema de penas
permaneceu imutável, mas se aprofundaram as diferenças na aplicação das leis, de acordo
com a classe social do condenado (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004). No entendimento de
Baratta (2003, p. 32), os grupos dominantes impuseram condições de desigualdade,
despojando, por exemplo, violentamente, populações inteiras da propriedade de seus corpos
(escravidão de africanos na América) e, por meio das leis e do poder institucional,
mantiveram as condições de dominação ao definir como “criminosos” os despossuídos
errantes, os escravos desobedientes ou ociosos, os subalternos indisciplinados.
Com o início da Idade Moderna e o surgimento do Estado absolutista, permaneceu bem
marcante a finalidade intimidatória, manifestada pelos suplícios como espetáculos punitivos.
A pena era executada em praça pública, espectadora das inúmeras arbitrariedades do
soberano, objetivando mostrar à sociedade as consequências da desobediência a ele. Foucault
(2007, p. 31), após conceituar o suplício como uma pena corporal, dolorosa, mais ou menos
atroz, considera que ele “[...] repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta
produção é regulada”. Assim,
O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas. (FOUCAULT, 2007, p. 31).
Os suplícios demonstravam o poder exercido sobre o corpo da pessoa, servindo para
expressar o domínio que o soberano exercia na sociedade, evidenciando a autoridade
monárquica sobre os súditos. O poder de punir era confundido com a força pessoal do
soberano. O Mestre de Poitiers conclui que o suplício representava exatamente “[...] um ritual
organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é
absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse todo o
controle” (FOUCAULT, 2007, p. 32). Assim, arremata o Filósofo, com a ideia de que o
suplício não restabelece a justiça, mas reativa o poder. As páginas mais marcantes de um
espetáculo de suplício são as iniciais da obra mais famosa de Foucault, Vigiar e Punir. Neste
113
clássico está narrado com detalhes o espetáculo dantesco da execução da pena contra
Damiens, condenado em 1757 pelo crime de parricídio (FOUCAULT, 2007, p. 9-10).
No Brasil, a mais famosa execução de pena por intermédio do suplício foi a morte de
Tiradentes, o inconfidente mineiro que ousou sonhar com um Brasil independente. A
inacreditável gravura do corpo do revolucionário trespassado por finas lanças de madeira
ainda povoa o imaginário brasileiro e enche de horror os diálogos que se travam sobre o
famoso esquartejamento.
Batista (2003, p. 43) identifica o fato de que, a partir do século XV, a transição para o
capitalismo conduz a um direito penal orientado contra os setores populares e buscando ser
eficaz diante dos delitos contra a propriedade, em atenção aos interesses de uma burguesia
ascendente, aprofundando-se, ademais, as diferenças de execução das penas por classes,
porquanto os pobres, impossibilitados de sofrer penas pecuniárias, sentiam sobre seus corpos
o espetáculo do horror punitivo.
Pavarini (2014, p. 36) identificam na segunda metade do século XVI, na Inglaterra, a
substituição dos açoites, desterro e pena de morte por uma experiência que se mostraria
exemplar: o confinamento, no castelo de Bridewell, de vagabundos, ociosos, ladrões e autores
de delitos menores, com a finalidade de reformá-los por meio do trabalho obrigatório e
disciplina. Em apenas quatro anos tais casas de correção (doravante chamadas de bridewells)
passaram a ocupar todo o País, recolhendo uma população bem definida: filhos de pobres
(para educá-los para o trabalho), desempregados, além daqueles a quem foram destinados
originalmente esses locais, com a nítida finalidade de “[...] dobrar a resistência da força de
trabalho e fazê-la aceitar as condições que permitissem o máximo grau de extração da mais-
valia” (PAVARINI, 2014p. 36-38).
Rusche e Kirchheimer (2004, p. 43), de igual maneira, percebem, no final do século
XVI, uma mudança gradual e profunda nos métodos de punição, pois a possibilidade de
explorar o trabalho de prisioneiros passou a receber crescentemente mais atenção, uma vez
adotada a escravidão nas galés, deportação e servidão penal por meio de trabalhos forçados;
as duas primeiras por um certo tempo, a terceira como precursora hesitante de uma instituição
que permanece até o momento).
Como historia De Giorgi (2013, p. 26),
114
Com efeito, diante do espetáculo da mendicância, da pobreza e da dissolução moral oferecido pelos pobres na Europa entre os séculos XVII e XVIII, as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa, de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva, de recuperação, disciplinamento e normalização dos diferentes. É aqui que se inicia a era do “grande internamento”. Pobres, vagabundos, prostitutas, alcoólatras e criminosos de toda espécie não são mais dilacerados, colocados na roda, aniquilados simbolicamente através da destruição teatral dos seus corpos. De forma muito mais discreta, silenciosa e eficaz, eles são encerrados. Eles começam a ser internados porque se compreende que eles são passíveis de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar, transformar em sujeitos úteis, isto é, em força de trabalho.
Assim, premidos pela carência de mão de obra observada no século XVII, os países
europeus foram obrigados a rever as suas políticas em relação à pobreza, amadurecendo a
ideia de que os pobres em condições de trabalhar deveriam ser obrigados a fazê-lo, pois assim
seriam enfrentados a vagabundagem e o aumento dos salários, provocado pela escassez de
força de trabalho (DE GIORGI, 2013, p. 41). Essa nova filosofia inspira a criação das
primeiras instituições destinadas à reclusão dos pobres: Bridewell, na Inglaterra (como já
visto); Hôpital General, em França, e Zuchthaus e Spinhaus, na Holanda, que depois se
consolidaram como a principal modalidade de punição (DE GIORGI, 2013, p. 41-42).
Na primeira metade do século XVII, na Holanda, essa nova instituição (casa de
trabalho) atinge seu formato mais desenvolvido, respondendo a uma exigência conexa ao
desenvolvimento geral da sociedade capitalista, muito mais do que à genialidade de algum
grande reformador, como frequentemente a história jurídica tenta convencer (PAVARINI,
2014, p. 39).
Não escapou à percepção desses autores o papel precursor das casas de trabalho,
instalando-se como importante precedente do cárcere. Classificam-nas como o primeiro
exemplo de detenção laica sem a finalidade de custódia da história do cárcere, percebendo que
“[...] os traços que a caracterizam, no que diz respeito às classes a quem foi destinada, sua
função social e a organização interna já são, grosso modo, aquelas do clássico modelo
carcerário do século XIX” (PAVARINI, 2014, p. 39).
Até o século XIX, portanto, a instituição carcerária foi o instrumento para
disciplinamento e controle da massa pauperizada para reformá-la com a finalidade de
possibilitar o reforço da mão de obra para o capitalismo nascente e, posteriormente, para as
duas revoluções industriais verificadas. Cárcere e fábrica, portanto, como demonstram Dario
Melossi e Massimo Pavarini, imiscuem-se, na medida em que “[...] a primeira representa o
sistema de punição correspondente ao sistema de produção do qual a segunda é o expoente
115
máximo” (PAVARINI, 2014). “A história da pena deverá, por conseguinte, tornar-se uma
história econômica e social dos aparelhos repressivos que se constituem como aparelhos
reguladores das relações de classe” (DE GIORGI, 2013, p. 38).
De semelhante modo, historiando o surgimento das prisões, Rushe e Kirchheimer
(2004, p. 19) esquadrinham a relação citada em Punição e Estrutura Social, lecionando que
“[...] a pena como tal não existe; existem somente sistemas de punição concretos e práticas
penais específicas”. Assim, referindo-se especificamente ao cárcere, aduzem a ideia de que
“[...] de todas as motivações na nova ênfase ao encarceramento como método de punição, a
mais importante era o lucro, tanto no sentido restrito de fazer produtiva a própria instituição
quanto no sentido amplo de tornar todo o sistema penal parte do programa mercantilista do
Estado” (RUSHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 103).
Na passagem do século XIX para o XX, entretanto, os cárceres abandonaram suas
pretensões reformadoras para a produção capitalista (embora as legislações permaneçam
constando a “ressocialização” como objetivo), para se converterem em meros” [...] campos de
concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos
sociais” – como define Wacquant (2001, p. 11). De Giorgi (2013, p. 28), ao analisar as
tecnologias de controle do fim do século XIX e início do XX, identifica o segundo grande
internamento, que, consoante pensa, não cultiva nenhuma utopia de tipo disciplinar, “[...]
configurando-se como uma tentativa de definir um espaço de contenção, de traçar um
perímetro material ou imaterial em torno das populações que são “excedentes”, seja no plano
global ou na contextura metropolitana, em relação ao sistema de produção vigente”.
Alimenta-se, por outro lado, o que Christie (1993) denominou indústria de controle do
delito, preparada para enfrentar a distribuição desigual da riqueza e do acesso ao trabalho, por
promover lucros e trabalho ao mesmo tempo em que produz controle sobre os perturbadores
do processo social, encontrando-se tal indústria em situação privilegiada, pois não sofre de
escassez de matéria prima (a oferta de delito parece ser infinita), nem de demanda pelos
serviços ligados à segurança, além de possibilitar um ambiente limpo, ao extrair os
indesejáveis do sistema social.
Bauman (2009, p. 22), por sua vez, vaticina que a exclusão atual tem toda a aparência
de definitiva e não resultado de uma momentânea e remediável má sorte, o que torna escassas
as possibilidades de reverter a transformação dos excluídos de hoje em classes perigosas.
116
Com efeito, as novas classes perigosas são aquelas incapazes de reintegração, não
assimiláveis, são supérfluas e excluídas de modo permanente, pois suas oportunidades de
redenção tendem a desaparecer (BAUMAN, 2009, p. 22-23).
Nesse sentido, verifica-se que as
[...] transformações históricas da pena representam não o resultado do progresso da sociedade, mas, pelo contrário, a evolução das estratégias repressivas com as quais a população rica sempre impôs sua própria ordem social à população pobre, para evitar ameaças a esta ordem proveniente dos despossuídos. (DE GIORGI, 2013, p. 38).
Como lembra Galeano (2010, p. 96), “[...] José Hernández, o poeta, havia comparado a
lei com a faca, que jamais ofende a quem a maneja”. Para o Escritor uruguaio, “[...] os
discursos oficiais invocam a lei como se regesse a todos, e não somente os inferiores e que
não podem eludí-la. Os delinquentes pobres são os vilões do filme; os delinquentes ricos
escrevem o roteiro e dirigem os atores” (GALEANO, 2010, p. 96).
Na opinião de De Giorgi (2013, p. 36), o Direito Penal, em uma sociedade capitalista,
não pode ser disposto a serviço de um “interesse geral”, pois se torna necessariamente a
expressão de um poder de classe. Como, de maneira contundente, entende Foucault (2007, p.
240),
Não há então natureza criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão: pobres, os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os campos de trabalhos forçados; e os forçados, se fossem bem nascidos, tomariam assento nos tribunais e aí distribuiriam justiça.
O controle do desvio conforma, pois, uma elaboração social por meio da qual as classes
dominantes preservam as bases materiais da sua dominação, uma vez que as instituições de
controle não tratam a criminalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em
seu conjunto; ao contrário, contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de
produção capitalista, por meio da reprodução de um imaginário social que legitima a ordem
em curso (DE GIORGI, 2013, p. 36).
Essa conclusão é reforçada pela criminalização primária da pobreza (ver subseção
1.2.1), por meio da qual há uma superproteção da propriedade, ante uma frágil proteção de
outros bens jurídicos titularizados pela coletividade. Por outro lado, é indiscutível que os
crimes de maior lesividade social, pela sua amplitude e capacidade de atingir direitos
coletivos e difusos (como aqueles contra o sistema financeiro nacional, a Administração
Pública e o meio ambiente, por exemplo), são alcançados muito raramente pelo sistema penal,
117
enquanto toda a estrutura repressiva estatal volta-se à persecução de ofensas à propriedade
(ver dados estatísticos brasileiros na subseção 2.2 desta tese).
A atual quadra histórica, por sua vez, produz o próprio instrumento de seletividade
penal, caracterizada por uma política criminal atuarial, definida por Dieter (2013, p. 20) como
“[...] o uso preferencial da lógica atuarial na fundamentação teórica e prática dos processos
de criminalização secundária para fins de controle de grupos sociais considerados de alto
risco ou perigosos mediante incapacitação seletiva de seus membros”. Dieter (2013, p. 238)
chama tal política criminal de “criminologia do fim da história”, atribuindo a ela a
característica de não ter constrangimento em admitir a sua orientação classista, racista,
xenófoba, sexista ou moralista. Fácil é perceber o seu perfil seletivo direcionado aos
vulneráveis ao serem listados os critérios mais frequentemente contabilizados para um perfil
de alto risco:
a) sub ou desemprego;
b) raça;
c) nacionalidade;
d) uso ou dependência de drogas ilícitas;
e) baixa escolaridade;
f) pouca idade;
g) relações familiares conflituosas;
h) comportamento sexual desviante (DIETER, 2013, p. 238).
Em relação às pessoas portadoras de uma ou mais dessas características, agrega-se um
fator de risco mais elevado, o que significa um incremento do controle social, seja pelas
demais pessoas, seja pelo Estado, com uma probabilidade muito maior de criminalização,
guiada, portanto, por uma lógica que pretende ser securitária, mas que mal consegue esconder
o seu caráter seletivo.
2.2 A seletividade penal na história brasileira
Como analisado no capítulo anterior, a seletividade é uma característica congênita ao
sistema penal, que se manifesta, em maior ou menor medida, em todas as nações. É inegável,
entretanto, também, que tal fenômeno admite contornos ainda mais dramáticos quando a
população perseguida preferencialmente pelas instituições de controle representa a maior
parte de uma sociedade. Assim, em países periféricos, nos quais a desigualdade social é
118
abissal e a pobreza funciona como poderosa causa e efeito de violação de direitos humanos, a
seletividade penal produz chagas muito mais profundas. É exatamente a situação brasileira.
A atual crise da segurança pública, que tem no sistema carcerário um dos seus mais
importantes motores, é igualmente produto dos posicionamentos estatais que historicamente
se direcionaram para a repressão pura e simples, tendo como alvo setores socialmente
vulneráveis. Consoante anota Fausto (2014, p. 50), a estigmatização de camadas sociais
destituídas é um dado que percorre a história brasileira desde o período colonial. No mesmo
sentido é a percepção de Roig (2013, p. 15), para quem os processos de cominação, aplicação
e execução das penas no Brasil refletem historicamente a incessante busca de ordem,
disciplina e segurança sociais, em detrimento dos direitos mínimos dos presos, conferindo-se
caráter inexpugnável ao cárcere, por meio do obscurecimento da realidade intramuros e da
elaboração de um complexo normativo peculiar, de cunho autoritário e nulificante.
A linea directrix dessa atitude repressiva e direcionada pode ser encontrado na
constatação de Ribeiro (2006, p. 21), para quem as elites dirigentes (lusitanas, luso-brasileiras
e finalmente brasileiras) “[...] viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do alçamento
das classe oprimidas”. Assim, a “[...] brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a
predisposição autoritária do poder central, que não admitem qualquer alteração da ordem
vigente”, são boas expressões desse pânico (RIBEIRO, 2006, p.21). O risco sempre ocorrente
de convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade explica a preocupação obsessiva
que tiveram as classes dominantes pela manutenção da ordem durante toda a história
brasileira (RIBEIRO, 2006, p.22).
Desde o período colonial até os dias atuais, a história do Brasil é uma sucessão de
tentativas reprimidas de efetivação da liberdade, contidas por via de retrocessos autoritários,
ilustrados pelas sazonais experiências ditatoriais na República, que sucederam um extenso
período de concentração de poderes de caráter absolutista no Império, que, por sua vez,
herdou mais de três séculos de submissão colonizadora. As experiências democráticas
brasileiras são de curtíssima duração e, ainda assim, caracterizadas por profundas
desigualdades sociais, que inviabilizam a efetividade dos direitos, nota essencial de uma
verdadeira democracia.
119
2.2.1 O período colonial
A história da desigualdade brasileira (e da consequente seletividade penal) inicia-se com
a opressão da população nativa, considerada pelos colonizadores como composta de seres
destituídos de humanidade e, portanto, sujeitos à escravização20. A Metrópole Portuguesa,
atribuindo-se a condição de “descobridora” das terras brasileiras, impôs seu domínio sobre
tudo o que nela se encontrava, especialmente as pessoas, que foram subjugadas aos interesses
comerciais metropolitanos. Como percebe Ribeiro (2006, p. 65), os índios, desapossados de
suas terras, escravizados, foram também despojados de suas almas, pela conversão que
invadiu e avassalou a sua consciência, fazendo-os enxergar a si mesmos como seres
inferiores.
No início do período colonial, portanto, a seletividade foi identificada com um
tratamento diferenciado conferido conforme o destinatário do controle social: opressivo e com
finalidade de escravização sobre a população nativa e posteriormente aos seus descendentes
(ainda que miscigenados) e leniente com os patrícios portugueses. Identifica-se, portanto, uma
“[...] elite de senhores da terra e de mandantes civis e militares, montados sobre a massa de
uma subumanidade oprimida, a que não se reconhece nenhum direito” (RIBEIRO, 2006, p.
65).
Outro fator que contribuiu sobremaneira para a situação, conforme Victor Nunes Leal,
decorre da imperfeita legislação portuguesa de distribuição de atribuições dos funcionários
encarregados da polícia e da justiça (LEAL, 1997, p. 213). Ocorria, então, uma “[...]
acumulação de poderes administrativos, judiciais e de polícia nas mãos das mesmas
autoridades, dispostas em ordem hierárquica, nem sempre rigorosa”, o que perdurou ainda por
muito tempo, até meados do século XIX. Assim, os detentores da força política concentravam
igualmente o poder de persecução penal e de julgamento pelos crimes cometidos, fazendo
abater-se sobre a população mais pobre toda a carga punitiva estatal, não havendo instâncias a
recorrer para a proteção de direitos. À maioria da população, portanto, somente restava a
20 “Aqueles índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também tão semelhantes,
seriam eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus, à sua imagem e semelhança? Caíram na impiedade. Teriam salvação? Ficou logo evidente que eles careciam, mesmo, é de um rigoroso banho de lixívia em suas almas sujas de tanta abominação, como a antropofagia de comer seus inimigos em banquetes selvagens, a ruindade com que eram manipulados pelo demônio através de seus feiticeiros; a luxúria com que se amavam com a naturalidade de bichos; a preguiça de sua vida farta e inútil, descuidada de qualquer produção mercantil” (RIBEIRO, 2006, p. 52-53).
120
submissão ao apadrinhamento ou ao paternalismo do potentado local, jamais responsabilizado
pelos crimes que cometia.
Impende destacar, ainda, que, no período colonial (precisamente na segunda metade do
século XVI), iniciou-se a escravidão de negros trazidos da África, representando, na definição
de Carvalho (2004 p. 19-20), o fator mais negativo para a cidadania brasileira, por “[...] em
todas as classes, em todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade”, que era escravista
de alto a baixo. Não são conhecidos com exatidão os números de negros trazidos para o
Brasil, mas até 1822 calcula-se em mais de 3 milhões (CARVALHO, 2004, p. 19).
Aqui chegando, os negros africanos passaram a ser tratados como bens dos senhores da
época, que deles se utilizavam para a realização dos mais diversos serviços, desde o trabalho
forçado nas grandes fazendas até a satisfação da sua lascívia. Compunham o patrimônio da
elite da época, vendo negada a sua condição de humanidade; ocupavam o posto de alvos
preferenciais do controle social formal e informal daque tempo, sendo submetidos às atrozes
condições de vida, bem como às mais cruéis punições, que não raro chegavam à morte como
resposta a demonstrações mais veementes de inconformismo com a condição subumana a que
eram submetidos.
Ribeiro (2006, p. 272) lembra como é bem documentado o pavor provocado pelas
expressões de insurgência dos pretos e pardos, que poderiam descambar para convulsões
sociais sangrentas, além de conduzirem a debates ou mesmo redefinições da ordem vigente,
com grave perigo a duas questões fundamentais: a propriedade fundiária e a escravidão.
Receava-se que ocorresse algo parecido com o que sucedeu no Haiti, onde os escravos se
rebeleram, proclamaram a independência e expulsaram a população branca (CARVALHO,
2004, p. 27).
Conforme noticia Costa (2007, p. 295), o medo de insurreições apavorou a sociedade
durante todo o período da escravidão, gerando medidas severas, mobilização de tropas, prisão
e punição severa de suspeitos, reforço das medidas de segurança pela legislação, proibição de
ajuntamento de escravos em portas de vendas e proximidades de chafarizes, toque de recolher
de escravos e interdição de acesso destes a tavernas. Era uma preocupação que se assentava,
portanto, no medo da rebeldia dos escravos (RIBEIRO, 2006 p. 22). “Dada a coloração escura
das camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que
ameaçam eclodir com violência assustadora” (RIBEIRO, 2006, p. 22).
121
A rotina atroz dos negros escravos é uma crua manifestação de um tratamento penal
seletivo e somente aplicável a essas pessoas:
Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso. (RIBEIRO, 2006, p. 107-108).
Na época colonial surgiram os capitães-do-mato, que eram remunerados para a captura
de negros escravos fugidos e cuja profissão foi legalizada por um regimento em 1724,
chegando até a publicar nos jornais anúncios oferecendo seus serviços, em busca das vultosas
remunerações oferecidas pelos proprietários (COSTA, 2007, p. 297). Espelhava mais um
robusto indício da legitimação do poder privado para a imposição de castigo e aceitação da
crua persecução, fundadas no tratamento profundamente discriminatório e desigual, destinado
exclusivamente à parcela da população submetida ao flagelo da escravidão.
De fato, os escravos não possuíam o atributo da cidadania, encontrando-se destituídos
dos direitos civis mais básicos, como integridade física, liberdade e até mesmo a vida, haja
vista que a legislação da época os equiparava a animais, meras propriedades dos senhores
(CARVALHO, 2004, p. 21). Estes, por sua vez, absorviam parte das funções que deveriam
ser estatais, principalmente as judiciárias, que se tornavam simples instrumentos do poder
pessoal (CARVALHO, 2004). “O poder do governo terminava na porteira das grandes
fazendas”, não podendo, pois, ser considerado um poder verdadeiramente público que
pudesse ser a garantia de igualdade perante a lei ou de garantia dos direitos civis
(CARVALHO, 2004, p. 21-22).
Mesmo com a proibição do tráfico de escravos em 1831, este prosseguiu ainda por
muitas décadas, fundado na decantada inferioridade racial dos negros e no direito de
propriedade sobre eles, bem como no poder incontrastável das oligarquias, que detinham o
poder político e administrativo das localidades. Como anota Costa (2007, p. 284-285)
Quando algum potentado local era indiciado em processo de contrabando de escravo – o que era raro -, não se encontrava quem depusesse contra ele. Apesar de todas as evidências, era absolvido pelo júri. O zelo de uns poucos funcionários esbarrava na oposição das oligarquias. A justiça manejada por elas não chegava nem a ameaçar seus interesses. Na maioria das vezes, os membros da justiça estavam ligados por laços de família, amizade ou conveniência aos grupos locais dominantes. Mesmo quando isso não acontecia, não dispunham eles de independência para julgar.
122
A escravidão, de fato, foi uma instituição longeva, atravessando todo o período colonial
e somente declinando com os estertores da quadra imperial. Suas marcas na formação
brasileira são indeléveis, representando relevante fator para se compreender o fenômeno de
estigmatização e seletividade direcionado às classes mais depauperadas, ao qual se agrega
indisfarçável componente racial.
2.2.2 O período imperial
A seletividade penal, portanto, se manteve como uma marca também do Império
brasileiro. Os grandes senhores estavam acima da lei, principalmente porque as ditavam e,
ainda, quando a encontravam em evidente confronto com a sua letra, seguiam inalcançados
pelo poder punitivo estatal que, por outro lado, se abatia ferozmente sobre a grande massa de
escravos e homens livres sem posses, ambos os estratos completamente sujeitos ao jugo dos
senhores. Como identificou Costa (2007, p. 295),
A representação do crime e da culpabilidade era inconscientemente deformada pelos estereótipos vigentes. Via-se o escravo como culposo permanente. O senhor, aos olhos do júri, parecia sempre ter razão. Se a legislação era pouco eficaz na defesa do escravo, revelava-se atuante na defesa dos interesses senhoriais.
O passado escravista e a miscigenação de raças verificados em solo brasileiro
produziram, nas palavras de Ribeiro (2006, p. 163), “[...] uma classe dominante de caráter
consular-gerencial, socialmente irresponsável, frente a um povo-massa tratado como
escravaria, que produz o que não consome e só se exerce culturalmente como uma marginália,
fora da civilização letrada em que está imersa”. Forjou-se uma discriminação racial que, para
Costa (2007, p. 293), “[...] tinha como função manter instransponíveis as distâncias sociais
que separavam um mundo de privilégios e direitos de um mundo de obrigações e deveres”.
As atuais classes dominantes brasileiras guardam, em relação ao negro, a mesma atitude
de desprezo vil, enxergando nele (e no branco pobre) o sinônimo de preguiça, ignorância e
criminalidade inata e inelutável, tido consensualmente como culpado de suas desgraças,
decorrentes de sua raça e não como resultado da escravidão e da opressão (RIBEIRO, 2006, p.
204). Até hoje a população negra ocupa posição inferior em todos os indicadores de qualidade
de vida, sendo a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados,
os menores salários, os piores índices de ascensão social (CARVALHO, 2004, p. 52) e,
repise-se, os principais alvos do poder punitivo estatal. Toda essa situação é acobertada por
afirmações sobre “[...] a suavidade do sistema escravista no Brasil ou sobre a atitude
123
paternalista dos fazendeiros, os retratos do escravo fiel e do senhor benevolente, que
acabaram fixando-se na literatura e na história”, não passando de “[...] mitos forjados pela
sociedade escravista para defesa de um sistema que julgava imprescindível” (COSTA, 2007,
294).
O período colonial legou, portanto, um sistema penal privatístico e corporal, marcado
pelas punições públicas de senhores sobre seus escravos e pela subsistência das penas de
morte na forca, galés, desterro e degredo, bem como de trabalhos forçados, além de prisões
precariamente adptadas em ilhas, fortalezas, quartéis e navios, bem assim as prisões
eclesiásticas, em conventos (ROIG, 2013, p. 28-29). É possível perceber que os castigos
impostos a eles funcionam como modelos implantados nas prisões da República sob a forma
de sanções disciplinares e reverberam no tratamento atualmente conferido aos presos,
considerados seres de segunda categoria, cujos direitos são simplesmente desconsiderados.
A independência brasileira em relação à Metrópole Lusitana não representou uma
ruptura em relação às estruturas sociais de então. A mesma elite dominante permaneceu no
comando dos destinos do País, gravitando, então, à órbita de um reinado português
estabelecido no Brasil, pronto a submeter-se aos interesses da nova potência hegemônica da
época: a Inglaterra. “A principal característica política da independência brasileira foi a
negociação entre a elite nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura
mediadora o príncipe D. Pedro” (CARVALHO, 2004, p. 26). Como identifica Ribeiro (2006,
p. 230), o Estado continuou estruturado como “[...] uma máquina político-administrativa de
repressão, destinada a manter a antiga ordenação, operando nas mesmas linhas a serviço da
velha elite”. e “[...] muito poucas alterações afetam a vida da massa assalariada que
permanece atada às plantações e submetida ao mando imediato dos capatazes”
(RIBEIRO,2006, 276).
De igual modo, se posiciona Carvalho (2004, p. 18), para quem os portugueses legaram
um país dotado de unidade territorial, linguística, cultural e religiosa, mas com uma “[...]
analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um
Estado absolutista”, não havendo, pois cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira. A classe
desfavorecida, composta fundamentalmente de escravos, “brasilíndios”21 e negros forros,
prossegiu sendo sufocada por intervenções criminalizantes sobre suas intenções libertárias,
21 Expressão adotada por Darcy Ribeiro para identificar os brasileiros nascidos da miscigenação (muitas vezes
forçada) entre brancos e índias (2006).
124
duramente reprimidas pelo regime imperial, essencialmente centralizador politicamente,
escravocrata e socialmente excludente. Os escravos, nessa perspectiva, são identificados por
Ribeiro (2006, p. 252) como a “[...] única força oposta ao sistema que, exercendo uma ação
subversiva constante, exigia a reação permanente de um aparato repressivo”.
É de se destacar, ainda, na configuração da sociedade imperial brasileira, o poder do
senhor de engenho, principalmente na quadra histórica de predomínio da produção açucareira
que sustentou economicamente o regime, quando sua autoridade era superior à alcançada pela
própria nobreza no período colonial, não deixando condição alguma para reivindicações
contrárias à sua vontade (RIBEIRO, 2006, p. 258). Assim, “[...] no seu domínio, o senhor de
engenho era o amo e o pai, de cuja vontade e benevolência dependiam todos, já que nenhuma
autoridade política ou religiosa existia que não fosse influenciada por ele” (RIBEIRO, 2006,
p. 258).
Desse modo, mesmo suas condutas que configurassem crimes na legislação da época
eram simplesmente ignoradas quando tinham por alvo os vulneráveis. O poder punitivo do
Estado, portanto, quase sempre não representava limite à sua atuação, a não ser que esta fosse
antagônica a outro senhor de engenho ou à estrutura político-administrativa do Império. Por
outro lado, a sujeição dos mais débeis era tamanha que suas condutas restavam criminalizadas
independentemente de previsão legal, principalmente se eram escravos, quando o poder
punitivo poderia ser personificado e exercido (e muito frequentemente o era) pelo senhor de
engenho, com o beneplácito estatal.
Karasch (2000, p. 178) identifica situações nas quais algumas prisões recebiam escravos
encaminhados por seus donos em razão de faltas e que poderiam ser abandonados para o resto
de suas vidas, caso seus senhores nunca anunciassem a sua libertação e, por outro lado, o
governo não tinha como perdoá-los, pois não tinham sido condenados por nenhum crime,
permanecendo, pois, presos. Nesse momento histórico “[...] o poder público ainda se
reportava ao senhor para fins de graduação das punições” (ROIG, 2013, p. 32) e o Código
Criminal de 1830 estabelecia em seu art. 60:
Se o reo fôr escravo, e incorrer em pena que não seja capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e, depois de os sofrer, será entregue ao seu senhor, que se obrigará a traze-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar. O numero de açoutes será fixado na sentença, e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta. (BRASIL, 1830).
125
Tal disposição legal representa uma das muitas manifestações de criminalização
primária que tinham por alvo específico os escravos, tratados, pois, na oportunidade, de
maneira subumana. Mesmo a parte final do dispositivo legal, que traz uma aparência de
tratamento humanitário, por limitar o número de chibatadas por dia a que poderia ser
submetido o escravo, tinha, na realidade, a pretensão de evitar a sua incapacitação para o
trabalho, o que representaria um grande prejuízo para o seu proprietário.
As agitações sociais da primeira metade do século XIX e o enorme temor de uma
insurreição escrava fizeram nascer “[...] um modelo penal policialesco e disciplinatório, capaz
de vigiar determinados segmentos da sociedade, de subjugar a população cativa e de reforçar
o regresso conservador” (ROIG, 2013, p. 36). Havia no Código Criminal de 1830, por
exemplo, a previsão do crime de insurreição, assim redigido: “Art. 113. Julgar-se-ha
commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por
meio da força. Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio;
e por quinze annos no minimo; - aos mais – açoutes” (BRASIL, 1830).
Para Ribeiro (2006, p. 262), “[...] a senhoralidade do patronato açucareiro lembra, em
muitos aspectos, a da aristocracia feudal, pelos poderes equivalentes que alcança sobre a
população que vivia em seus domínios, pelo exercício da judicatura e pela centralização
pessoal do mando”. “Nas fazendas, imperava a lei do coronel, criada por ele, executada por
ele” (CARVALHO, 2004, p. 56). A lei tornava-se, portanto, “[...] apenas instrumento de
castigo, arma contra os inimigos, algo a ser usado em benefício próprio” (CARVALHO,
2004, p. 57).
Os direitos civis simplesmente inexistiam para a população escrava e, para os que eram
livres, mas não ocupavam posição de mando, somente tinham efetividade quando se
coadunando com o poder privado. Vivia-se sob o pálio do coronelismo, retratado por Leal
(1997, p. 84), que assevera:
O Rei, muitas vezes, era ou se mostrava impotente para deter o mandonismo desses potentados, que dominavam câmaras e, por meio delas, todo o espaço territorial compreendido em sua jurisdição. A massa da população – composta em sua maioria de escravos e dos trabalhadores chamados livres, cuja situação era de inteira dependência da nobreza fundiária – também nada podia contra esse poderio provado, ante o qual se detinha, por vezes, a própria soberania da Coroa.
126
No “Brasil sertanejo”22, por sua vez, as pessoas do sertão eram obrigadas a conviver
com o poder despótico do seu patronato, temerosas de que qualquer atitude os tornasse
malvistos e desgarrados, sem patrão e senhor que os protegesse do arbítrio do policial, do juiz,
do cobrador de impostos, do agente de recrutamento militar, o que seria equivalente a “[...]
mergulhar na terra de ninguém, na condição dos fora-da-lei” (RIBEIRO, 2006, p. 316). Os
vulneráveis do sertão, portanto, viam-se “[...] ilhados no mar do latifúndio pastoril dominado
por donos todo-poderosos, únicos agentes do poder público”, submetidos a uma condição
paradoxal de ter como única saída “libertarem-se da opressão em que vivem, seja emigrando
para outras terras, seja caindo no banditismo” (RIBEIRO, 2006, p. 316)23.
A situação repete-se no “Brasil caipira”, no qual o Estado ingressa como “[...] agente da
camada proprietária e representa para ele, essencialmente, uma nova sujeição” (RIBEIRO,
2006, p. 349). Os pobres da região de São Paulo, então, igualmente precisavam situar-se sob a
proteção de um senhorio que tivesse voz perante o poder, para escapar de suas arbitrariedades,
sob pena de o sujeito ver-se “[...] desgarrado, sem um senhor poderoso que se interponha, se
necessário, entre ele e essa ordem impessoal, antipopular, todo-poderosa, que avança sobre o
seu mundo” (RIBEIRO, 2006, 349).
Isso porque todo o aparato da cidade colocava-se a serviço da concentração e proteção
da propriedade, por meio do suborno de juízes e recrutamento de forças policiais pelos
grileiros, com a finalidade de perseguir e desalojar famílias caipiras, consideradas invasoras
das terras nas quais sempre viveram, mas cuja exploração comercial tornou-se viável
(RIBEIRO, 2006, p. 163). Conforme se reporta Sadanha (2001, p. 142), “[...] gerações e mais
gerações de brasileiros se habituaram a conviver numa estrutura social em que se repetia e
mantinha o costume imemorial do domínio dos outros homens pela posse da terra”.
Quanto ao funcionamento das instituições, assevera Leal (1997, p. 224) que a
organização policial no Império foi deplorável e esteve sempre dominada pelo espírito
partidário, ao passo que a organização judiciária se encontrava carcomida pela corrupção da
22 Zona territorial demarcada por Darcy Ribeiro: “Para além da faixa nordestina das terras frescas e férteis do
massapé, com rica cobertura florestal, onde se implantaram os engenhos de açúcar, desdobram-se as terras de uma outra área. Começam pela orla descontínua ainda úmida do agreste e prosseguem com enormes extensões semi-áridas das caatingas. Mais além, penetrando já o Brasil Central, se elevam em planalto como campos cerrados que se estendem por milhares de léguas quadradas”. (RIBEIRO, 2006, p. 306).
23 Darcy Ribeiro, inclusive, explica o surgimento do cangaço a partir da “[...] revolta sertaneja contra as injustiças do mundo” (2006, p. 320). Obviamente, é um fenômeno bastante controverso, principalmente pela enorme ferocidade e crueldade de seus métodos. Exprime-se, entretanto, como saída dos sertanejos para as relações opressivas promovidas pelo Estado e pelos fazendeiros e senhores de engenho.
127
magistratura, em razão de suas vinculações políticas. Por esse pretexto, havia intensa
movimentação dos grandes proprietários para manter-se no controle das instituições públicas,
seja diretamente, seja por indicação dos seus servidores, o que se conseguia à custa da
manutenção de enormes “currais” eleitorais e fraudes, possibilitados pelo exercício de um
poder praticamente ilimitado.
Quanto ao complexo de normas disciplinares carcerárias do Império, estas são marcadas
pelo vigilantismo (panoptismo), pela distribuição de punições conforme a condição social do
apenado, pela notória discriminação entre presos escravos (cuja pena tinha caráter nitidamente
aflitivo, retributivo) e “comuns” (aos quais se aplicava o modelo ressocializante, voltado à
regeneração da pessoa), encarnando a contradição, pulsante à época, entre liberalismo e
escravidão (ROIG, 2013). No Regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro, de 1850,
em seu art. 36, por exemplo, constava absoluto impedimento de inflição de castigos corporais
aos presos que não fossem escravos, sendo igualmente vedada a imposição de ferros (ROIG,
2013, p. 64).
O final do período imperial (segunda metade do século XIX) caracteriza-se pelo
surgimento de grandes contingentes de homens negros, escravos e libertos, bem como de
imigrantes, nas cidades brasileiras, o que produzirá um mercado de trabalho, no futuro
período republicano, constituído sob o medo das massas negras e do movimento operário
internacional, possibilitando que o temor à insurreição seja mais sólido do que a própria
perspectiva de revoltas (BATISTA, 2003, p. 39). Assim são delineados os grupos sociais que
serão alvos do controle social na nascente República.
2.2.3 O período republicano
O advento da República, na visão de Saldanha (2001, p. 252), “[...] foi um processo
principalmente político: faltou-lhe dimensão social. E isto se observa tanto na fase da
propaganda, quanto na da instauração institucional”. Permaneceu o tratamento desigual
conferido às camadas desfavorecidas da sociedade, que continuaram sendo alvo do controle
social e da estigmatização. O governo agia, nas relações entre patrões e empregados, exempli
gratia, por intermédio da polícia, que não tinha uma atuação que pudesse ser chamada de
equilibrada, como deixaram claras as leis de expulsão de operários estrangeiros acusados de
anarquismo e agitação política (CARVALHO, 2004, p. 62-63). Conforme noticia Costa
(2007, p. 492), “[...] as condições de vida dos trabalhadores rurais continuaram as mesmas;
128
permaneceram o sistema de produção e o caráter colonial da economia, a dependência em
relação aos mercados e capitais estrangeiros”.
Roig (2013, p. 100), após identificar a superação do sistema escravista, que
imediatamente antecedeu a República, reproduz o rol de segmentos sociais que passam a ser
selecionados pelo sistema penal:
A Primeira República notabilizou-se pelo vigilantismo, pela repressão de movimentos anarquistas, comunistas e sindicalistas, pela coerção da vadiagem e da mendicância, pela regulação da condição jurídica dos estrangeiros, pela contenção dos ex-cativos e pelo recorrente apelo às medidas de ordem proscritiva e institucionalizante, tudo isso legitimado pelos discursos do positivismo criminológico e do higienismo social.
No mesmo sentido, prefaciando a obra de Batista (2003, p. 32), leciona Alessandro
Baratta, para quem a criminalização da pobreza no Brasil “[...] permaneceu como uma espécie
de compensação à perda de propriedade sobre os escravos e como uma forma de manutenção
da autoridade dos proprietários sobre os libertos e seus filhos”. Dessa maneira, punição,
tortura e destruição dos descendentes dos escravos prosseguem como a reafirmação simbólica
de um tipo de propriedade sobre eles, que permitiu as mesmas condutas em relação aos seus
ascendentes, enfatizando a sua diversidade e combatendo uma suposta tendência natural à
insubordinação (BARATTA, p. 32-33).
A abolição da escravatura, de efeito, não alterou as condições de vida da população
negra. De fato, resultou muito mais da inadequação da escravidão aos novos tempos do que de
um desejo de emancipação dos escravos, que foram deixados à própria sorte, sem qualquer
preocupação com a sua integração na sociedade de classes (COSTA, 2007, p. 343). “Suas
dificuldades de ajustamento às novas condições foram encaradas como prova de incapacidade
do negro e de sua inferioridade racial” (COSTA, 2007, p. 343). Ademais, “[...] o esquema de
vida a que estavam habituados dificultavam-lhes a adaptação ao trabalho livre”, promovendo
o desenvolvimento de “formas de comportamento típicas do marginalismo” (COSTA, 2007,
p. 343). Estavam lançadas as bases para a constituição de uma chaga que representa, como a
escravidão de antanho, “[...] o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade
democrática”: a desigualdade social (CARVALHO, 2004, p. 229).
Sobre a organização policial no período republicano, Leal (1997, p. 224-225) identifica
a manutenção da polícia partidária, cujas raízes são imperiais, em decorrência da adoção da
livre nomeação dos chefes de polícia, delegados e subdelegados, sendo utilizada como
129
instrumento habitual de ação política. “Durante a Primeira República, a organização policial
foi um dos mais sólidos sustentáculos do ‘coronelismo’ e, ainda hoje, em menores
proporções, continua a desempenhar essa missão” (LEAL, 1997, p. 226).
A polícia construía bancos de dados de criminosos habituais ou reincidentes para
possibilitar novas prisões e condenações, policializando, obviamente, de maneira mais intensa
os grupos sociais em situação precária: anarquistas, ex-excravos, trabalhadores ocasionais,
bêbados e prostitutas, atuando, ademais, de maneira mais detida em certos bairros (SOUZA,
2006, p. 67). Apresentando números do total de detenções realizadas no ano de 1889 em São
Paulo, Souza (2006, p. 69) conclui que três quartos dessas prisões se referiam a estratégias de
controle social, permitindo a construção de uma rede de vigilância sobre as pessoas que caíam
na malha da polícia. O trabalho policial representava, então, “[...] uma forma de justiça rápida
e desigual para grande parcela da população”, funcionando como “agenciadora dos estigmas
socialmente implantados” (SOUZA, 2006, p. 79-80).
A organização judiciária da Primeira República, por sua vez, favoreceu enormemente
“[...] os planos de dominação do situacionismo estadual, refletindo-se, diretamente, no
mecanismo ‘coronelista’” (LEAL, 1997, p. 229). Isso porque a Constituição, ao estabelecer as
garantias dos membros do Judiciário, apenas mencionou a Justiça Federal, possibilitando que
muitos estados, em interpretação restritiva, estabelecessem limitações aos direitos de seus
juízes (LEAL, 1997, p. 227), o que certamente comprometeu sobremaneira a sua
independência funcional. Os membros do Ministério Público, por sua vez, eram de livre
nomeação e exoneração, sendo utilizados, portanto, como “ferramentas” para a ação político-
partidária (LEAL, 1997, p. 229), obviamente sempre a favor dos interesses políticos e
econômicos dominantes, mormente ligados à persecução de crimes de caráter patrimonial e
contrários à ordem estabelecida.
Souza (2006, p. 60) identifica o fato de que a manutenção da ordem social republicana
no período de 1889 a 1930 ocorria em torno do combate, como objetos preferenciais da ação
da polícia, dos pequenos atos de insubordinação, como, por exemplo, andar à noite em lugares
ermos; parar no meio da rua, atrapalhando o trânsito de pedestres; atentados à moral, vida e
propriedade; cultos afro-brasileiros e sessões de curandeirismo; aliciamento de trabalhadores
para greves; vadiagem; atentado ao pudor; jogo do bicho; embriaguez e exploração da
prostituição. Por outro lado, demonstrativos da existência de um “[...] funil no sistema de
justiça criminal, identifica que o estelionato, o abuso de autoridade e o uso inadequado de
130
recursos públicos, embora tipificados, aparecem em pequeno número nas estatísticas
criminais do período” (SOUZA, 2006, p. 60).
O Código Penal de 1890, sob os influxos (embora tardios) do Iluminismo, buscou
romper com práticas punitivas do Império, consideradas arcaicas e degradantes, extirpando as
penas de morte, de galés, de açoites e perpétua, e estabelecendo para quase todos os delitos a
pena de prisão celular com trabalho obrigatório, em formato progressivo, mas continuava
decorrendo da rígida estratificação da sociedade brasileira, além de não afetar a verdadeira
essência do sistema penal, tendente a alcançar determinados segmentos sociais indesejados
(ROIG, 2013, p. 79-80).
O pensamento criminológico dominante na nascente República brasileira, do mesmo
modo, gravitava à órbita da poderosa influência do positivismo que, nessa área de
pensamento, era orientado pela obra de Cesare Lombroso, O Homem Delinquente, de 1876.
Salo de Carvalho atribui a Clóvis Bevilácqua o papel de introduzir a nova Ciência do Direito
no Brasil, com a obra Criminologia, de 1896, mas confere ao maranhense Raymundo Nina
Rodrigues o epíteto de principal divulgador da Escola Positiva no Brasil, sustentando a
necessidade de impor freios à miscigenação racial, temendo-se um processo de degeneração
social (CARVALHO, 2008, p. 63). A fim de verificar o caráter seletivo da análise, é
importante a transcrição de partes da obra do cearense Bevilácqua há pouco citada, mais
especificamente do capítulo intitulado “Confrontos ethnicos e históricos”, extraídas de edição
de 1983, que manteve a configuração original:
O que se póde affirmar é que o cruzamento das duas raças inferiores é mais productivo em seres inquinados pelo estigma da delituosidade do que a mestiçagem de qualquer dellas com a raça branca [...] vê-se que os descendentes mais directos dos europeus contribuíram com uma fraca parcella da criminalidade, si compararmo-la com a dos descendentes mais directos das tribos africanas e americanas [...] Quando o preto se combina com o branco (mulato), a inclinação criminosa baixa; mais, si há um retorno à fonte negra (cabra), se realça aquela inclinação [...] As conclusões que se podem tirar destas ponderações resumem-se no seguinte: as duas raças inferiores contribuem muito mais poderosamente para a criminalidade do que os aryanos. (BEVILÁQUA, 1983, p. 93-94).
A análise de Bevilácqua centrava-se sobre 232 pessoas envolvidas em processos
criminais da época que, como já demonstrado, continham em seus autos, invariavelmente, as
parcelas desfavorecidas da população. Ora, disso somente poderia resultar uma sobre-
representação de negros, índios e seus descendentes entre os considerados criminosos da
época. Não porque somente eles cometessem mais ilícitos, mas porque algumas das suas
condutas eram preconceituosamente criminalizadas pela legislação e o sistema judiciário,
131
ambos orientados para a manutenção dos privilégios e posição das classes dominantes. Por
outro lado, a investigação criminológica era baseada em critérios biológicos, sendo
desconhecido o viés crítico que posteriormente adquiriria a criminologia.
O médico Nina Rodrigues (2011, p. 76), cujo pensamento criminológico predominou
amplamante no período, deixa claras as suas pretensões eugênicas na sua principal obra As
raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, ao defender o argumento segundo o
qual,
Em tal país, o gérmen da criminalidade – fecundado pela tendência degenerativa do mestiçamento, pela impulsividade dominante das raças inferiores, ainda marcadas do estigma infamante da escravidão recentemente extinta, pela consciência geral, prestes a formar-se, da inconsistência das doutrinas penes fundadas no livre arbítrio –, semeado em solo tão fértil e cuidadosamente amanhado, há de por força vir a produzir o crime em vegetação luxuriante, tropical verdadeiramente (RODRIGUES, 2011, p. 76).
Referindo-se à fixação da idade de responsabilidade penal, ensinou que “[...] não há,
portanto, maior contrassenso do que pedir, em nome das nossas raças inferiores e da
inferioridade da nossa cultura mental, que nos códigos penais brasileiros se marque a
menoridade um prazo maior do que o aceito para as raças europeias” (RODRIGUES, 2011, p.
80). Defendeu ainda o ponto de vista conforme o qual o Brasil deveria ter pelo menos quatro
códigos penais distintos, pois as desigualdades de prevalência de determinadas raças no
território brasileiro impediam a vigência de legislação singular. Sobre o assunto verberou: “Se
em rigor o Pará e o Amazonas se podem reger pelo mesmo código penal, é intuitivo, no
entanto, que esse código não deve servir à Bahia e muito menos ao Rio Grande do Sul”
(RODRIGUES, 2011, p. 92).
Alvarez (2006, p. 141), diante do quadro apresentado, ensina que a Criminologia no
Brasil “[...] será vista pelas elites como um instrumento essencial para a viabilização dos
mecanismos de controle social necessários à contenção da criminalidade” e, na Primeira
República, [...] “não permanecerá apenas como como uma retórica cientificista sobre o crime,
mas influenciará de modo concreto aspectos das políticas criminais” (RODRIGUES, 2011, p.
142). De fato, como ensina Carvalho (2014, p. 136), a formulação do tipo ideal de criminoso
pelo positivismo criminológico foi o marco teórico de definição de metanormas que
direcionam a ação de policiais, promotores de justiça, juízes e agentes penitenciários, o que
explica como os estereótipos criminais não apenas modelam o agir desses profissionais, seja
132
no momento da persecução, seja no direcionamento do raciocínio judicial, quando da eleição
das inúmeras variáveis entre os extremos absolvição e condenação à pena máxima.
Do ponto de vista legislativo, é possível perceber na nascente República fortes traços de
criminalização primária. O Código Penal, estabelecido pelo Decreto 847 de 11 de outubro de
1890 (BRASIL, 1890), continha, por exemplo, o livro das contravenções penais, que dedicou
seu capítulo XII para tratar “Dos mendigos e ébrios”. Assim, o art. 391 prescrevia:
“Mendigar, tendo saúde e aptidão para trabalhar. Pena – de prizão cellular por 8 a 30 dias.”
(BRASIL, 1890). Já o 392 estabelecia: “Mendigar, sendo inhabil, para trabalhar, nos logares
onde existem hospicios e asylos para mendigos. Pena – de prizão celular por 5 a 15 dias”.
(BRASIL, 1890). A doutrina da época reforça o tom discriminatório da legislação, como se
verifica das palavras de um comentarista do Código Penal, Oscar de Macedo Soares, cuja
edição da obra, de 1910, foi publicada em fac-simile, em razão de seu valor histórico, pelo
Senado Federal em 2004:
Louis Paulian, no seu interessante livro Paris qui mendie, lês vraiset lês faux pauvres, mal et remede, demonstra que a mendicidade, em Paris como em todos os centros populosos, constitue uma profissão a que se entrega certa classe de gente da peor espécie. Elle mostra como o mendicidade (sic) profissional se prepara: a entrada na carreira pela aprendizagem, os primeiros passos do officio, a especializasão, o serviço activo e o sedentário. (SOARES, 2004, p. 761).
Por sua vez, O Capítulo XIII do Código Penal de 1890 ocupava-se dos “Vadios e
capoeiras” (BRASIL, 1890), estabelecendo em seu art. 399:
Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes. Pena – de prizão celular por 15 a 30 dias. (BRASIL, 1890).
Nesse caso, o “vadio, ou vagabundo”, conforme o §1º, era obrigado a assinar termo de
tomar ocupação dentro de 15 dias, a partir da data do cumprimento da pena (BRASIL, 1890).
Já o art. 400 estabelecia que: “Si o termo for quebrado, o que importará reincidência, o
infractor será recolhido por hum a tres annos a colônias penaes, que se fundarem em ilhas
marítimas, ou nas fronteiras do território nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os
presidios militares existentes” (BRASIL, 1890). Notória e reprovável aqui a crueldade da
sanção para o caso de a pessoa não obter ocupação lícita dentro do prazo fixado de 15 dias.
Tal exigência equivale a impor ao apenado submeter-se a qualquer tipo de ofício, o que
implica dizer: ocupar a posição a ele destinada pelo sistema capitalista, de mão de obra
133
similar à escrava. Assim, esses “indesejáveis sociais” que, em muitos casos, se negavam a
assumir tal papel, eram por isso inconvenientes à sociedade da época e, ao mesmo tempo,
representavam um estorvo à paisagem da cidade. Assim, a sua recalcitrância era punida com
uma segregação muito mais severa, em ilhas marítimas ou nas fronteiras nacionais, bem
distantes, portanto, dos olhos das demais pessoas, nomeadamente os pertencentes às classes
sociais prósperas. Comentando referidos dispositivos legais, Soares (2004, p.766), com as
lentes da época, ensina:
A vadiagem é, como diz Silva Ferrão, menos um facto criminoso em si mesmo do que um modo de existência social perigoso que o legislador quiz reprimir. E' mais um acto preparatorio ou de predisposição de- crime, que mesmo tentativa maléfica, porque o ser vadio não constitue nem começo de crime, ou habito de fazer mal. Mas a lei penal presume aqui a grande possibilidade e probabilidade dessa conseqüência, e seu caracter e fim é portanto eminentemente preventivo e correcional.
A legislação, refletindo o sentimento da época (embora ainda bem atuante hoje),
presumia que a pessoa sem ocupação lícita, sem condições de subsistência, estava predisposta
às práticas criminosas. Se resta alguma dúvida de que a norma se dirigia estritamente aos
pobres, Oscar de Macedo Soares trata de esclarecer ao doutrinar que “O parasitismo social ou
simples, como diz João Vieira, o parasitismo dos ricos, dos doentes, dos inaptos, dos
desoccupados sem culpa própria, não pode ser punido” (SOARES, 2004, p. 766). (Grifou-se).
O art. 401 do primeiro Código Penal da República, de acordo com Fausto (2014, p. 46),
constitui um claro exemplo de criminalização de um comportamento com o propósito de
reprimir uma camada social específica, discriminada pela cor. Consoante Fausto (2014, p. 46),
a preocupação com a “capoeiragem” está ligada a uma conjuntura histórica e, em particular, a
uma cidade – o Rio de Janeiro, no período imediatamente posterior à Abolição. De fato, o
citado decreto estabelece:
Fazer nas ruas e praças publicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecido pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena — de prizão cellular por dois a seis mezes. (BRASIL, 1890).
A reincidência aqui importa em uma pena de três anos de recolhimento a colônias
penais, que se fundaram em ilhas marítimas, ou nas fronteiras do Brasil, podendo para esse
fim serem aproveitados os presídios militares, nos termos do art. 403 do diploma legal em
comento (BRASIL, 1890). O novo tipo penal foi aplaudido pelos doutrinadores da época.
134
Soares (2004, p.776) assinalou que “[...] o novo Código andou bem avisado
constituindo a figura especial da capoeiragem em contravenção punível, ainda que dos
exercicios não resultem offensas physicas ou mortes”.
Avulta como importante nessa situação é o fato de que não há no Código Penal de 1890
qualquer outra previsão de figura delituosa referente à perturbação da ordem, restando apenas
a que se realize pelo exercício de capoeira, em manifesta atitude preconceituosa em relação a
práticas realizadas quase que exclusivamente por negros, recém-libertos da escravidão oficial,
mas ainda excluídos do exercício da cidadania e atados aos grilhões da pobreza. De igual
modo, a utilização das primeiras referências aos “vadios” e “vagabundos” direcionou-se à
massa excluída do novo mercado de trabalho (BATISTA, 2003, p. 59).
As informações referentes às pessoas presas na cidade de 1904 a 1916 mostram que
negros e mulatos eram presos em proporção mais de duas vezes superior à parcela que
representam na população, constituindo em média 28,5% do total de presos, enquanto
representavam em torno de 10% dos habitantes de São Paulo, no mesmo período (FAUSTO,
2014, p. 63-64).
Fausto (2014, p. 105) oferece um quadro de prisões de acordo com as profissões, no
período de 1907-1916 e constata o seguinte: jornaleiros urbanos: 32,1%; sem profissão: 31%;
artesãos, trabalhadores manuais autônomos: 14%; empregados domésticos: 8,9%;
comerciários: 3,6%. Posteriormente, o Historiador paulistano sublinha o fato de que presos e
indiciados são em larga medida gente pobre, fundado nas informações sugerentes de que,
“[...] na época e nos limites dos crimes estudados, a pobreza é mais acentuada entre os detidos
do que entre os responsabilizados criminalmente. Um dado a mais, a reforçar o significado
das prisões como instrumento de controle social da massa da população” (FAUSTO, 2014, p.
105).
Nota que “[...] o racismo de autoridades policiais está presente em transcrições de
depoimentos, nos relatórios de delegados, rompendo-se em certos casos critérios
classificatórios prévios” (FAUSTO, 2014, p. 67).
Percebe que
[...]a menção ‘cor’ não consta em regra das folhas de qualificação dos indiciados com indicações impressas (nome, idade, profissão etc.) e espaços em branco correspondentes, a serem preenchidos. Não obstante, o qualificativo “negro”,
135
“pardo” é às vezes introduzido a tinta, em letras bem nítidas, na margem das páginas. (FAUSTO, 2014, p. 67).
Com esse expediente, decerto, as autoridades responsáveis pelo andamento do processo
estariam permanentemente “avisadas” dessa característica do acusado que, embora devesse
ser indiferente para a apuração da culpa ou determinação da pena, era utilizada como
elemento relevante para tais definições. Assim, quando a tramitação burocrática, representada
pelo contato dos servidores públicos com o papel, fazia-os esquecer as ligações pessoais com
o réu, no qual poderiam visualizar a sua cor, a anotação nítida em local estratégico reacendia
na mente desses burocratas o estigma do indesejável social.
Ao analisar os processos da época, Fausto (2014, p. 31) identifica o fato de que
Pobreza e riqueza deixam por vezes nítidas pegadas distintivas. Em um extremo, a relativa uniformidade resultante da sucessão de declarações, que não é cortada pelas petições dos advogados; ou requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, em que os requerentes esclarecem que deixam de selar por falta de recursos. No outro, as transcrições dos diferentes atos processuais entremeados de petições de advogados, em papel de linho timbrado; os memoriais impressos, distribuídos aos desembargadores; a peça de defesa datilografada, que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestígio do próprio defensor.
Essa observação deixa clara a ausência de devido processo legal aos acusados pobres.
Como se não bastasse a estigmatização a que estavam submetidos, sendo alvos permanentes
da persecução estatal, não tinham condições de possuir uma defesa efetiva, capaz de
estabelecer o contraditório. Para eles sequer existia defesa formal, restringindo-se os atos
defensivos às súplicas muitas vezes redigidas por terceiros, em razão do comum
analfabetismo dos réus. O Estado não dispunha de uma instituição destinada à defesa dos
vulneráveis, que então, para terem alguma chance de fugir às malhas da justiça, mesmo
quando inocentes, precisavam submeter-se ao apadrinhamento dos detentores do poder, que
assim os submetiam à satisfação de suas vontades.
O documento de antecedentes, a ser juntado aos autos pelo acusado, tem a finalidade de
apresentar sua rede de relações (vizinhos, patrões, colegas, amigos), para então procurar
demonstrar a conformidade de sua vida com o modelo sociofamiliar, sua origem respeitável
etc (FAUSTO, 2014, p. 31). Sua eficácia dependia fundamentalmente de quem o emitia,
conforme “[...] a força de seu conteúdo verbal, os signos formais de que está revestido”.
(FAUSTO, 2014, p. 31).
Com efeito,
136
‘Papeluchos de favor’, escritos a mão, em papel ordinário, em que se enfileiram frágeis assinaturas anônimas, contrastam com documentos na solene expressão do termo, em papel timbrado, datilografado, contendo a assinatura de pessoas influentes ou representantes de grandes empresas. (FAUSTO, 2014, p. 31).
As decisões judiciais, portanto, guiavam-se rotineiramente muito menos pelos
elementos de prova colhidos do que pelas demonstrações de prestígio que o acusado
conseguisse amealhar em seu benefício. Ora, se o próprio cargo de juízes e promotores
dependia de indicações políticas, como já demonstrado, não era de se esperar que suas
decisões contrariassem os interesses ou os “pedidos” formulados pelos detentores do poder
econômico e/ou político. Se o acusado, enredado nas malhas da justiça, não conseguia dela se
desvencilhar pela demonstração de sua participação ou utilidade para o sistema clientelista
então em funcionamento, o juízo condenatório afigurava-se quase uma certeza.
A enorme defasagem entre o número de pessoas presas e o de processadas, em alguns
anos em que a comparação foi realizada, revela claramente a significação das prisões como
instrumento de controle social. Para ficar apenas em poucos exemplos, em 1893, foram presas
3.466 pessoas na Capital paulista, registrando-se a abertura de 329 inquéritos; em 1905, os
presos foram 11.036 e os processados 794; em 1907, 9.361 presos, abrindo-se 1.441
inquéritos (FAUSTO, 2014, p. 42)24. Isso mostra como era grande o número de prisões
arbitrárias, que sequer se transformavam em processos. Assim, mesmo com uma estrutura
judiciária completamente comprometida com os interesses dominantes, tais prisões eram tão
flagrantemente arbitrárias, que os fatos que as fundamentavam sequer denotavam condições
de serem conduzidos a um processo judicial.
A repressão penal na passagem do século XIX para o XX abandonou o viés
essencialmente corporal, admitindo o discurso regenerador, embora continuassem inalterados
os alvos do sistema penal (ROIG, 2013, p. 80). A prisão possuía, até então, nítidas funções de
dissuasão, neutralização e aflição, pois o empreendimento escravista supria qualquer
disfunção na oferta de mão de obra, mas, no alvorecer da República, o encarceramento passou
a incorporar o ideário da preparação para o trabalho, elevando-o à condição de elemento
reparador do indivíduo “aproveitável”, relegando-se a função neutralizadora para os
irrecuperáveis (ROIG, 2013, p. 80).
24 Esse dado serve para demonstrar a importância da garantia inserta no art. 5º, LXI da Constituição Federal de
1988 segundo o qual: “[...] ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. (BRASIL, 1988).
137
Uma situação bastante complicada no Brasil da Primeira República que, portanto,
merece destaque, era a dos imigrantes, principalmente os recém-chegados, que também
encarnavam estereótipos ligados à criminalização. Como percebe Fausto (2014, p. 177), eles
estavam em situação de vulnerabilidade quando acusados da prática de um delito, pois a sua
situação de desemprego e a ausência de residência fixa eram sempre ressaltadas pela polícia
como fortes indícios de responsabilidade criminal, por não terem laços na cidade que
pudessem vir em seu socorro, e os laços de além-mar eram distantes ou inconfessáveis quando
se trata de profissionais.
Assim, os imigrantes encontravam-se em situação de maior desamparo, pois ao
sentimento xenofóbico existente somava-se a suspeita constante pelas autoridades policiais,
mormente quando eles não tinham condições de se utilizarem do artifícios normalmente
utilizados pelas pessoas “bem relacionadas” para fugir das malhas da justiça, a saber, a
apresentação de boas referências, ainda que artificialmente constituídas, fornecidas por
pessoas de poder político ou econômico na sociedade.
Em 1930, ocorreu um importante rearranjo de forças políticas, representado pela
Revolução que levou Getúlio Vargas à Presidência da República, inaugurando um extenso
tempo, que durou até 1945 e que assumiu, principalmente em 1937, feição autoritária e
centralizadora. “A política de marginalização pura e simples realizada pelas velhas classes
dominantes não tinha mais condições de se sustentar” (FAUSTO, 1997, 140). Esclarece
Abrucio (2002, p. 42) que “Isto não quer dizer que as elites regionais tenham perdido seu
poder de influência na cena política e que o Estado nacional tenha se transformado em
organismo totalmente avesso às pressões das oligarquias”. O que realmente ocorreu, segundo
Fausto (1997, p. 22-23) na sua obra A Revolução de 1930, foi um rearranjo oligárquico,
pondo fim ao modelo vigente de 1889 a 1930, tendo como pressuposto um padrão autoritário
(entremeado apenas pelo intervalo 1934-1937), com amparo nas convicções de Getúlio, na
maioria de seus ministros e assessores, assim como na cúpula das Forças Armadas, cujo poder
cresceu significativamente.
Para Alvarez (2006, p. 144), o autoritarismo do Estado no pós-30 impulsionou o
discurso cientificista, autoritário e antiliberal da Criminologia e da Medicina Legal. As ideias
biodeterministas e seus desdobramentos podem ser encontradas no ordenamento jurídico
brasileiro, nas políticas de segurança pública e mesmo na prática jurídica e dos
138
administradores públicos, mesmo com o seu declínio no pós-Segunda Guerra Mundial
(ALVAREZ, 2006, p. 145-146).
A criminologia prosseguiu sendo um saber destinado ao poder, ou seja, um
conhecimento principalmente voltado ao estabelecimento de técnicas de identificação
criminal e outros mecanismos de controle social, derivando na estigmatização de setores da
população considerados como potencialmente perigosos (ALVAREZ, 2006, p. 147). Na
mesma trilha, vai a doutrina de Cristina Rauter, para quem “[...] a criminologia produziu uma
concepção de crime na qual este não mais se refere à infração da lei, mas a um fenômeno com
características quase naturais, produto de uma anormalidade social ou individual”. (2003, p.
69). Além do mais, “[...] o combate ao crime, ao tornar-se uma tarefa técnica, é
descaracterizado, em seu evidente compromisso com a manutenção das formas de dominação
vigentes na sociedade” (RAUTER, 2003, p. 69).
O período 1945-1964, por sua vez, é caracterizado por Abrucio (2002, p. 48) como “[...]
o início da democracia competitiva de massas no Brasil”, apesar de destacar que “o
republicanismo esteve ausente da base do sistema político” e “[...] as mudanças
socioeconômicas do período não foram acompanhadas de transformações institucionais”
(ABRUCIO, 2002, p. 56). Nos anos 1950, o Brasil passou a experimentar um intenso
processo de urbanização, com um aumento considerável das classes populares nas grandes
cidades, tornando ainda mais visíveis as desigualdades sociais que caracterizam a sociedade
brasileira. A imprensa, de igual modo, passou a dar mais destaque a situações de
criminalidade e violência urbanas.
Como adverte Rolim (2006, p. 184), o fato de determinados segmentos sociais estarem
sendo excluídos dos ganhos materiais ou permanecendo à margem desse movimento de
modernização da sociedade possibilitou um processo de apropriação, por parte do pensamento
social brasileiro, de teorias sobre a marginalidade social formuladas para a compreensão de
outras realidades sociais, como, verbi gratia, as teorias sobre a marginalidade social dos
Estados Unidos surgidas após os anos de 1920, com o intuito de produzir um diagnóstico
relativo à integração dos imigrantes no País. Essa interpretação da realidade social levava à
conclusão de que as classes populares no Brasil, por serem marcadas pela privação e pelo
desvio, não haviam introjetado a mentalidade dos tempos modernos e, portanto, de antemão,
eram lobrigadas como marginais, objeto de um diagnóstico acerca de sua conduta e
comportamento por parte das ideias jurídico-penais (ROLIM, 2006, p. 185).
139
Sob esse viés, o pensamento jurídico penal da época identificava um comportamento
antis-social e antijurídico dos negros, por exemplo, explicando-o como uma questão de
desajuste e de despreparo para com os aspectos da Modernidade, visto que carregavam
atitudes mentais ou tipos de personalidade de um regime que não se assentava na competição
na vida social, e isso redundou em um desajuste decorrente, pois, de heranças socioculturais e
não meramente raciais ou biológicas (ROLIM, 2006, p. 192). “Sendo assim, para os
operadores jurídicos os negros possuíam uma subalternidade ético-social que havia definido a
sua personalidade. Por terem esse padrão sociocultural, adotaram determinados princípios
morais, éticos e de caráter” (ROLIM, 2006, p. 194).
A consequência dessa maneira de interpretar a sociedade foi, mais uma vez, a
criminalização da pobreza, atribuindo-se à privação econômica a responsabilidade pela não
introjeção dos princípios ético-jurídicos dos novos tempos, o que desembocava em
recrudescimento da criminalidade. Por outro lado, defendia-se o argumento de que “[...] as
classes populares eram criminosas porque o ambiente de pobreza no qual viviam provocava
desajustes psicológicos e sociais” (ROLIM, 2006, p. 198). Não é de se estranhar, portanto,
que são mantidas as previsões dos ilícitos penais de mendicância, vadiagem, dedicação aos
jogos de azar na legislação punitiva dos anos 1940, com alvo e funções muito bem
determinados.
Thaís Battibugli, analisando a polícia paulista de 1946-1964, conclui que o sistema
policial se caracterizava pela corrupção e pela impunidade de suas ações criminosas, ainda
inadaptado à legalidade democrática e às novas exigências sociais, pautando sua atuação, em
algumas oportunidades, por ideias e ações condizentes com um Estado de Direito, mas, em
outros momentos, agindo como em períodos autoritários, em decorrência de não ser fixada a
tradição democrática e manutenção de uma dura tradição autoritária (BATTIBUGLI, 2006, p.
104).
As pretensões democráticas que timidamente buscavam ressurgir após o período
autoritário pós-45 foram novamente sepultadas com a tomada do poder pelos militares em
1964. Foi uma ditadura que se iniciou com a pretensão declarada de afastar o risco de uma
ditadura de esquerda e manifestando abertamente a necessidade de breve devolução do poder
aos civis, por meio de eleições. Iniciou-se, então, um processo de perseguição política que
desembocou no emprego da repressão como instrumento de manutenção do poder. Os
140
considerados “subversivos” passaram a ser selecionados como objeto do poder punitivo,
colocado a serviço da repressão de natureza política. Carvalho (2004, p. 160-161) esclarece:
O perigo comunista era a desculpa mais usada para justificar a repressão. Qualquer suspeita de envolvimento com o que fosse considerada atividade subversiva podia custar o emprego, os direitos políticos, quando não a liberdade, do suspeito. Como em geral acontece em tais circunstâncias, muitas vinganças pessoais foram executadas sob o pretexto de motivação política.
O aparato represivo da ditadura lançou mão da tortura, do assassinato, do sequestro e do
“desaparecimento” como instrumentos de perseguição, combinados com a formalidade de
alguns processos criminais colocados sob a competência da Justiça Militar, estabelecendo-se,
assim, a coexistência entre o tribunal e o porão, que constituíam os dois lados da mesma
lógica de repressão (MATTOS, 2006, p. 204). Carvalho (2004, p. 193) lista:
O habeas corpus foi suspenso para crimes políticos, deixando os cidadãos indefesos nas mãos de agentes de segurança. A privacidade do lar e o segredo da correspondência eram violados impunemente. Prisões eram feitas sem mandado judicial, os presos eram mantidos em isolamento e incomunicáveis, sem direito a defesa. Pior ainda: eram submetidos a torturas sistemáticas por métodos bárbaros que não raro levaram à morte da vítima. A liberdade de pensamento era cerceada pela censura prévia à mídia e às manifestações artísticas, e, nas universidades, pela aposentadoria e cassação de professores e pela proibição de atividades políticas estudantis.
O sistema penitenciário, após 1964, retomou com vigor a sua utilidade para os escopos
de repressão política, reforçando os ideários do regime então vigente, notadamente o
defensivismo social e o combate à periculosidade individual (ROIG, 2013, p. 125). As
polícias militares, encarregadas do policiamento ostensivo, foram colocadas sob o comando
do Exército e usadas para o combate às guerrilhas rurais e urbanas, tornando-se, então,
completamente inadequadas, pela filosofia e pelas táticas adotadas, não para proteger o
cidadão e respeitar seus direitos, mas para combater o inimigo, tornando-se, com efeito, um
ente a ser temido em vez de um aliado a ser respeitado (CARVALHO, 2004, p. 194).
Durante a ditadura militar, entretanto, se tornou muito mais rígida a política de
isolamento dos perigosos para a manutenção do regime, fazendo ressurgir o isolamento
absoluto como modalidade de castigo, que existiu desde os primeiros regulamentos
penitenciários do século XIX, atingindo seu ápice no Codigo Penal de 1890 (ROIG, 2013, p.
157). Batista (2003, p. 40) identifica, na transição da ditadura para a abertura democrática, a
modificação do inimigo interno do terrorista para o traficante, com a convergência de todo o
controle social para a elaboração do novo estereótipo, que se multiplicou nos bairros pobres,
na figura do jovem traficante. Esse período histórico coincide com o aprofundamento da
141
guerra às drogas, iniciada nos anos de 1970 pelo governo do Tio Sam, como estudado de
modo aprofundado no segmento 2.4 deste experimento acadêmico em sentido estreito.
Caindo a ditadura militar em meados dos anos 1980, iniciou-se o mais longo período
democrático vivenciado no Brasil, ainda em fase de amadurecimento, sob constantes ameaças
de retrocesso autoritário. A Constituição de 1988 exprime uma comprida listagem de direitos
fundamentais, autoaplicáveis, elevados à condição de cláusulas pétreas25, materializações do
principio fundamental da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que estabelece
como objetivos fundamentais da República constituir uma sociedade livre, justa e solidária;
garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras modalidades discriminatórias (BRASIL, 1988).
O caminho da consolidação da cidadania brasileira, contudo, permanece inconcluso,
conforme Carvalho (2004, p. 216), que, ao se referir à atual quadra histórica, menciona que a
população que pode contar com a proteção da lei é pequena, dividindo os cidadãos brasileiros
em classes: na primeira, estão os privilegiados, “doutores” “que estão acima da lei, que
sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social”,
mantendo vínculos importantes nos negócios, no governo e no Judiciário; na segunda estão
cidadãos submetidos aos rigores e benefícios das leis, que “[...] nem sempre têm a noção exata
de seus direitos, e quando a têm carecem dos meios necessários para os fazer valer, como o
acesso aos órgãos e autoridades competentes, e os recursos para custear demandas judiciais”
(CARVALHO, 2004, p. 216). Esse grupo está frequentemente “[...] à mercê da polícia e de
outros agentes da lei que definem na prática que diretos serão ou não respeitados”, pois para
eles os códigos existem, mas são aplicados de maneira parcial e incerta (CARVALHO, 2004,
p. 216). Já os cidadãos de terceira classe compõem a grande população marginal das grandes
cidades, quase sempre pardos ou negros, analfabetos ou com educação fundamental
incompleta, e que participam da comunidade política nacional apenas nominalmente, pois na
prática têm seus direitos sistematicamente desrespeitados pelos demais cidadãos, pelo
governo, pela polícia, merecendo atenção tão somente para a incidência do Código Penal
(CARVALHO, 2004, p. 216-217).
25 O art. 60, §4º da CF/88 (BRASIL, 1988) fala expressamente em direitos individuais, mas é majoritário na
doutrina o entendimento de que engloba todos os direitos fundamentais, dada a aindissociabilidade entre eles. Ver, por todos, SARLET. Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. 13.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
142
Roig (2013, p. 15), no mesmo sentir de Carvalho, percebe a manutenção de determinado
estado de coisas, ao identificar o fato de que, desde os regulamentos penitenciários da
sociedade escravista brasileira do século XIX até a legislação atual, representada pela Lei de
Execução Penal (LEP), “[...] o sistema disciplinar imposto em nossas unidades prisionais
segue uma perspectiva utilitarista, subserviente aos escopos de controle social”. Por outro
lado, conclui que o aparato repressivo estatal brasileiro historicamente legitima a
arbitrariedade carcerária, contribuindo para a nulificação e aculturação da pessoa em nome de
uma pretensa ordem, constituindo a penitenciária como uma sociedade à parte, cuja
característica principal é a tentativa de criar e manutenir um grupamento humano submetido a
um regime de controle total, consistindo, pois, sob esse aspecto, em um regime totalitário
(ROIG, 2013, p. 174). Os métodos legais de controle e de punição disciplinar brasileiros à
extensão das diversas conjunturas históricas vividas pelo País, refletindo os valores reinantes
na sociedade, constituem parâmetro de aferição da essência antidemocrática do sistema
penitenciário (ROIG, 2013, p. 27).
Todo o percurso histórico analisado corrobora a conclusão de Koerner (2006, p. 13), em
cuja análise as instituições da justiça penal no Brasil são “[...] marcadas por estruturas
organizacionais complicadas e ineficientes, procedimentos e rotinas arcaicos, atos de
violência e arbitrariedade, cujas bases e efeitos têm evidentes relações com as diversas fases
da desigualdade, a socioeconômica, de poder e de status da nossa sociedade”. “Toda a
arquitertura legal e física do sistema penal na República brasileira é erigida para dar conta dos
novos excluídos da ordem republicana, sob o olhar lombrosiano e positivista” (BATISTA,
2003, p. 133). Como objeto da intervenção estatal, a serviço de uma minoria privilegiada,
vislumbram-se os pobres como destinatários preferenciais do controle social e do poder
punitivo estatal, encontrando no cárcere, na maioria das vezes, o resultado dessa ação seletiva
estatal, conforme será analisado no módulo sequente.
2.3 O cárcere como instituição destinada aos mais pobres
A pena privativa de liberdade, ideologicamente, teve sua utilização sistemática como
castigo atrelado à evolução de pretensões humanitárias, em substituição aos desumanos
suplícios que a antecederam. De todo modo, essa espécie punitiva enfrenta, desde muito
tempo, fortes críticas, exatamente por desconsiderar a humanidade daqueles que são
143
submetidos aos seus rigores. De fato, comparada aos suplícios26, certamente, a prisão pode
representar algo bem menos doloroso, mas ainda está bem distante de ser uma resposta digna
aos atos criminosos. Para alguns autores, como Christie (1993, p. 34), por exemplo,
representa, depois da morte, o exercício de poder mais severo que o Estado tem à sua
disposição, porque nada é tão extremo quanto as restrições, degradação e imposição de poder
característicos do cárcere. É, conforme Foucault (2007, p. 214), o “[...] local onde o poder de
punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um
campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a
sentença se inscrever entre os discursos do saber”.
Durante sua evolução, a pena de prisão foi apresentada com diversas finalidades, que
acabaram unificadas na tentativa de torná-la eficaz na prevenção e combate das condutas
criminosas. Garcia Ramírez (2003, p. 143), por exemplo, defende o argumento de que “[…]
las penas se proponen retribuir, intimidar, expiar, purificar, recuperar, contener o conciliar,
o bien, mejor todavía, todo de una vez”. Atualmente são apontadas quatro finalidades para a
pena de prisão: repressão ou retribuição; prevenção ou intimidação; ressocialização ou
reinserção social e incapacitação.
Ao se afirmar que a prisão é retributiva, significa que funciona como resposta do Estado
àquele que descumpre a ordem jurídica: a compensação da culpa do criminoso com a
imposição de um mal. Nesse particular, é considerada um fim em si mesma, não possuindo
outro desiderato a não ser funcionar como consequência jurídica da ação criminosa. Funda-se
na crença de que o homem, dotado de livre arbítrio, tem a capacidade de decidir entre o justo
e o injusto e, se decide por este, deve merecer a desaprovação da sociedade, expressa pelo
isolamento no cárcere. “A disposição de aplicar penas severas a criminosos condenados
compensa, magicamente, o fracasso em prover segurança para a população em geral”
(GARLAND, 2008, p. 283). Importantes pensadores foram ardorosos defensores do caráter
retributivo da pena, dentre os quais se destacam Kant, Hegel, Karl Binding, Welzel e
Maurach. Mesmo na antiga Ética cristã podem ser verificadas apologias ao caráter repressivo
da pena.
26 Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é
escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848. (FOUCAULT, 2007, p. 16-17).
144
Com o intuito de evitar a prática de novos delitos, afirma-se que a pena privativa de
liberdade pode ter também finalidade preventiva ou intimidatória (função preventiva). A lei
funciona como instrumento dissuasório, pelo qual o Estado procura intimidar o cidadão para
que esse não cometa infrações penais. Para Rodrigues (2001, p. 30-31), tal finalidade está
associada à secularização do Direito Penal, após a superação da legitimação teológica e
metafísica do jus puniendi, quando a pena perdeu, em grande parte, a sua função de cunho
retributivo, justificou-se, doravante, pela necessidade terrena de prevenir o cometimento de
outros crimes.
Esta ideia foi reforçada no século XVIII, com a lição de Beccaria (2006, p. 103), para
quem “[...] a certeza de um castigo moderado causará sempre maior impressão que o temor de
um mal terrível, ao qual está aliada a esperança da impunidade”. Acrescenta ainda o autor
italiano que “[...] as penas e o modo como são aplicadas devem ser escolhidos de forma que,
guardadas as proporções, causem uma impressão mais eficaz e durável na índole dos homens,
e menos torturante no corpo do réu” (BECCARIA, 2006, p. 59). Já para Foucault (2007, p.
18), é à alma que se dirige a punição. “À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder
um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”
(FOUCAULT, 2007, p. 18).
A função preventiva da pena divide-se em prevenção geral e especial, diferenciando-se
quanto ao destinatário da intimidação. De acordo com a primeira, a pena tem a finalidade de
intimidar toda a sociedade para evitar que ocorram crimes, atuando como coação psicológica
e tendo como principais defensores Bentham, Beccaria, Filangieri, Schopenhauer e Feuerbach
(BITENCOURT, 2004, p. 125). A prevenção especial, por seu turno, dirige-se ao delinquente
em particular, para evitar a reincidência no crime, resumindo-se em intimidação, correção e
“inocuização”.
A terceira finalidade declarada da pena de prisão é a reinserção social ou
ressocialização. A idéia da penalidade como “tratamento” povoava os anseios dos pensadores
do século XIX, como deixa entrever a afirmação de Hugo (2002, p. 188), no prefácio de 1832
à sua obra O Último dia de um condenado: “Veremos o crime como uma doença, e essa
doença terá seus médicos que substituirão seus juízes; seus hospitais que substituirão suas
galés. A liberdade e a saúde se parecerão”. Trata-se da perspectiva da pena como a “[...]
possibilidade de ‘cura’ do delinquente, secularmente encarado como objeto da execução
penal, a ser manipulado pelo cientificismo criminológico” (ROIG, 2013, p. 18-19). Na
145
perspectiva do enquadramento penal-previdenciário que predominou no mundo até os anos
1970, a reabilitação “[...] era o princípio hegemônico, o substrato intelectual e o valor
sistêmico que unia toda a estrutura e que fazia sentido para os operadores do sistema”
(GARLAND, 2008, p. 104).
Foucault (2007, p. 196) identifica o papel de transformar as pessoas como uma
obviedade, que se converte no papel da prisão, pois o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar,
ao transformar os indivíduos em seres dóceis, é reproduzir (ou mesmo acentuar) todos os
mecanismos ordinariamente encontrados no seio social. Obviamente, a perspectiva de
transformação aduzida por Foucault é sob a forma de crítica, confundindo-a com a
docilização dos corpos com uma finalidade de imposição do poder. Não é a mesma acepção
dos que defendem a possibilidade de ressocialização como algo positivo.
Garcia Ramírez (2003, p. 145), destacando a vasta sinonímia para o termo, aponta que
ressocialização, recuperação, reinserção, reeducação, reabilitação conformam uma densa
doutrina, obedecendo à crença, ainda que sujeita às mais severas críticas, em uma nova
oportunidade, que se conforma melhor com a ideia de perfectibilidade humana do que a
doutrina da eliminação, por ser esta carregada de desesperança. É nessa circunstância que a
LEP brasileira estabelece como uma de suas finalidades, em seu art. 1º, “[...] promover a
reinserção social do condenado” (BRASIL, 1984). Com vistas a atingir esta meta, dispõe que
os estabelecimentos prisionais devem ser dotados de estrutura suficiente para garantir aos
presos assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa – art. 11
(BRASIL, 1984).
Acerbas críticas são recorrentemente formuladas ao papel ressocializador da pena
privativa de liberdade, principalmente por questionamentos que continuam sem satisfatória
resposta: como socializar ou reinserir na sociedade, nos moldes desejados, quando a maioria
dos presos não se encontrava plenamente incluída? Como é possível ensinar alguém a viver
em sociedade estando preso, se as regras do cárcere são diversas? Como compatibilizar os fins
retributivo e regenerativo da pena?
Alguns autores chegam a negar a sua possibilidade, atacando por diversas perspecticas o
que chamam de “discurso ‘re’”. Rodrigues (2001, p. 52), por exemplo, aposta em uma “[...]
tentativa de não-dessocialização, no duplo sentido de não amputar o recluso dos direitos que
sua qualidade de cidadão lhe assegura e, a um só tempo, reduzir ao mínimo a marginalização
146
de fato que a reclusão implica”. Ocorre na realidade é que “[...] la cárcel certifica um estigma
y lo perpetua en el tempo, lo socializa. Lleva la cárcel más allá de la cárcel. La cárcel marca,
y cuando lo hace reproduce el encierro más allá del claustro que lo contuvo” (RODRÍGUEZ
ALZUETA, 2014, p. 297).
Sob outro viés, Espinosa (2004, p. 158-159) entende que o conceito de tratamento não
tem existência real, por consistir em um vazio que permite o uso de modelos de base religiosa,
militar ou pedagógica, ou ainda médica e psiquiátrica. Ela complementa, afirmando que a
ressocialização não passa de um mito que “[...] sob a aparência de amabilidade, preocupada
com o futuro do sujeito, com sua reabilitação e ressocialização, serve para dissimular a real
intenção de eliminar o condenado, quer uniformizando sua personalidade à do modelo social,
quer neutralizando-o ou destruindo-o aos poucos” (ESPINOSA, 2004, p. 158-159).
A normatização penitenciária contemporânea possibilita enorme discricionarismo
administrativo, ao ponto de a efetividade de direitos depender do alvedrio da autoridade
penitenciária e não dos comandos normativos, totalmente distantes da cadeia, e que se
convertem, na prática, em benesses ou regalias, conferidas conforme a impune e soberana
autoridade administrativa, reforçando, assim, os coniventes laços de submissão (ROIG, 2013,
p. 138).
Galeano (2010, p. 113) percebe a falácia do discurso de ressocialização, ao constatar
que “[…] a Justiça venda os olhos para não ver de onde provêm o que delinquiu, o que seria o
primeiro passo para a sua possível reabilitação. O cárcere modelo do fim de século não tem o
menor propósito de redenção e nem sequer de lição. A sociedade enjaula o perigo público e
joga fora a chave”. Conhecer a realidade social de onde provêm os presos seria muito mais
eficaz para buscar estratégias de inserção social do que simplesmente os amontoar em celas,
quando doravante são esquecidos. Fazer isso sob o pretexto de que se pretende fazê-los
conviver em um ambiente de respeito às normas é absolutamente contraditório.
Por último, Leal (1995, p. 20) inclui a incapacitação como uma das finalidades da pena
privativa de liberdade, por ser esta um meio de impedir que o condenado pratique novos
delitos no meio livre. Sob essa perspectiva, considerando-se o criminoso um perigo à
sociedade, deve-se segregá-lo para que não volte a produzir danos à sociedade. O papel
incapacitador da pena privativa de liberdade foi reforçado com o abandono do
previdenciarismo penal, momento identificado por Garland (2008) como o período pós-1970.
147
Como decorrência desse movimento, “[...] as atuais autoridades prisionais consideram que sua
tarefa principal é guardar com segurança os criminosos, e não pretendem mais levar a cabo
medidas reabilitadoras para a maioria dos internos” (GARLAND, 2008, p. 65).
Tão presente é essa finalidade da prisão que o romancista Dostoiévski (2006, p. 24), em
Recordações da casa dos mortos, entendia que os cárceres são “[...] locais voltados
exclusivamente para o castigo, garantindo, em termos teóricos, que o criminoso, encarcerado,
não cometa outros atentados à paz social”. “A prisão é usada atualmente como um tipo de
reservatório, uma zona de quarentena, na qual indivíduos supostamente perigosos são
segregados em nome da segurança pública” (GARLAND, 2008, p. 380).
Observa na prática, contudo, principalmente no Brasil, é que as promessas estabelecidas
legal e doutrinariamente para a prisão fracassam fragorosamente. Primeira constatação,
simples: é impossível ressocializar sem participação da sociedade. Não se olvida que a LEP
estabelece tal premissa em seu art. 4º (BRASIL, 1984), mas cerece de efetivação. Isso porque,
como ensina Graland (2008, p. 381), “[...] a fronteira entre a prisão e a comunidade é
fortemente patrulhada e cuidadosamente monitorada, para prevenir o risco de vazamento de
um lado para o outro”, de maneira que os que deixam o cárcere “[...] estão sujeitos a controle
mais rigoroso do que antes e frequentemente retornam à prisão por falharem em cumprir as
condições que continuam a restringir a sua liberdade” (GARLAND, 2008, p. 381).
Ademais, são as finalidades da prisão contraditórias entre si. Ali, impõe-se um modo de
vida e essa circunstância, por si, torna estéril qualquer pretensão de tratamento e converte em
retórica a chamada adaptação social do delinquente (NEUMAN, 1997, p. 35). Isso porque no
ambiente carcarério não é possível a vivência plural efetiva, já que são uniformizadas as
maneiras de pensar e agir, vedando-se quaisquer manifestações de individualidade, como a
religião, por exemplo. Rodrigues (2001, p. 8) comunga do mesmo sentimento, ao asseverar
que a ressocialização não pode se calcar “[...]em qualquer imposição coactiva de valores, a
dar cobertura a um modelo médico de tratamento ou à negação do direito à diferença”. Elege-
se um sistema de valores por demais fechado, impermeável às diferenças, e pune-se qualquer
manifestação de pluralidade. Chega-se ao extremo, por exemplo, de negar-se as
especificidades femininas, porquanto são minoria no ambiente carcerário. Em última análise,
a interiorização forçada de valores contraria flagrantemente a concepção de uma sociedade
democrática, baseada em uma pluralidade de modalidades de vida e de concepções.
148
A prisão cria o status de detento e, ao mesmo tempo, impõe ao indivíduo trabalho,
obediência e disciplina (elementos constitutivos desse status) como condições que devem ser
satisfeitas, a fim de que possa, no futuro, se livrar do cárcere, evocando a privação extrema
imposta ao preso como consequência óbvia e quase natural da recusa da disciplina do trabalho
(DE GIORGI, 2013, p. 46). O objetivo, coerentemente, é produzir um proletariado que
considere “[...] o salário como justa retribuição do próprio trabalho e a pena como justa
medida dos seus próprios crimes (DE GIORGI, 2013, p. 47). Não se reporta ao
estabelecimento de trabalho forçado, proibido pela Constituição brasileira (art. 5º, XLVII, c)
(BRASIL, 1988), mas à consequência jurídica para o ato de negar-se ao trabalho, que é
aplicar a sanção por falta grave, que representa como efeito o impedimento da
progressividade da pena e, portanto, seu prolongamento em regime fechado27.
Submetidos a um ambiente repressivo e sancionador, privados dos mais básicos direitos
humanos, não é razoável esperar que os presos retornem “ressocializados”, principalmente ao
convívio de uma sociedade que desde o início não os têm como participantes de seu corpo,
como já estudado. Tratados como anima vili, espera-se que se comportem como anima nobili.
Eis a contradição flagrante na qual está enredada a atual privação de liberdade no Brasil:
segregá-los, primeiro pelas grades, depois pelo estigma e esperar que se insiram na sociedade,
como pessoas trabalhadoras (sendo que ninguém os aceita como empregados).
A LEP adota um sistema legal repressivo, podendo-se constatar que metade dos deveres
impostos por ela (art. 39, I, II, IV, V e VI) exalta os valores da ordem, disciplina e submissão
dos presos, além de defluir do art. 50, VI, a noção de que o descumprimento dos deveres de
obediência ao servidor, de respeito a qualquer pessoa com quem deva se relacionar e de
execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas, representa falta de natureza grave
(ROIG, 2013, p. 139-140). Exige-se do preso, portanto, obediência cega a determinações e
ordens emanadas sem necessidade de justificação e cujo descumprimento conduz a uma série
de consequências, sendo a mais grave delas o prolongamento dos dias do cárcere. É de se
destacar o fato de que tais ordens sempre carregam a justificativa de manutenção da ordem e
da disciplina, mas que, na verdade, funcionam como instrumentos de imposição de
humilhação desnecessária, já que os mesmos objetivos poderiam ser alcançados por outros 27 De acordo com o artigo 39, V da LEP, constitui dever do condenado a execução do trabalho, das tarefas e das
ordens recebidas (BRASIL, 1984). Por outro lado, o artigo Art. 50, VI do mesmo diploma legal estatui que comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei (BRASIL, 1984). O bom comportamento carcerário constitui-se em requisito subjetivo para fazer jus aos principais direitos de antecipação da liberdade na execução da pena: progressão de regime, indulto, livramento condicional, ou mesmo para saídas temporárias.
149
caminhos. Exigências constantes de desnudamento e posterior permanência sob o sol por
várias horas, sentados, amontoados, com as mãos para trás das cabeças; ordens de voltar-se
contra a parede, enconstando a cabeça, em silêncio absoluto, quando da passagem de agentes
penitenciários ou outros servidores; determinação de horário inflexível para dormir, acordar,
alimentar-se, são algumas dessas ordens.
O art. 44 da LEP reforça o servilismo exigido por esse diploma legal, embora constando
uma aparência de legalidade, ao dispor que a disciplina consiste na colaboração com a ordem,
na obediência às determinações das autoridades e seus agentes e no desempenho do trabalho
(ROIG, 2013, p. 140). O direito ao trabalho, nessa perspectiva, converte-se, na realidade, em
um dever, na medida em que se negar a exercê-lo configura falta grave (art. 50, VI da LEP).
De efeito, a vedação à aplicação de trabalhos forçados, estabelecida constitucionalmente
como direito fundamental, resta ofendida veladamente sob uma exigência do trabalho imposto
como condição para abreviar os dias de cárcere. Foucault (2007, p. 187) observa não ser de se
admirar que a prisão celular tenha se tornado o instrumento moderno da penalidade, em razão
de suas cronologias marcadas, trabalho obrigatório, instâncias de vigilância e notação, com
seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, parecendo-se,
pelo recurso a uma disciplina infinita, com as fábricas, escolas, quartéis e hospitais.
A prisão destitui da pessoa as concepções que até então possuía acerca de si mesma. Os
sinais de pertença à sociedade, acaso existentes, são anulados ou substituídos por aqueles que
regem o cárcere. O nome do preso é substituído pelo número do artigo do crime que cometeu
ou pelo apelido que passa a ostentar ao ser recrutado por alguma organização criminosa, ao
qual muitas vezes é obrigado a pertencer ao entrar na prisão, de acordo com o bairro da cidade
do qual é oriundo ou com a facção predominante naquela unidade prisional. Como percebeu
Goffman (2005, p. 24), “A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o
mundo externo assinala a primeira mutilação do eu”.
Essa “casa para mortos vivos”, como considerou Dostoievski (2006, p. 17), promove
intensa desculturalização, ou “prisonização”, conforme definido por Thompson (1991, p. 95-
96) como “[...] a assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos,
precipuamente, pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos propensos a
melhoras. Adaptar-se à cadeia, destarte, significa, em regra, adquirir as qualificações e
atitudes do criminoso habitual”. Ilustrativa dessa prisionização é a passagem do romance O
Último dia de um condenado, de 1829, de Hugo (2002, p. 44), no qual, se referindo ao uso de
150
uma linguagem diferenciada no cárcere, descreve-a como “[...] uma língua ancorada na língua
geral como uma excrescência repulsiva, como uma verruga”. A adapatação ao mundo
carcerário, portanto, depende da submissão a estas regras e, mais do que isso, a inadaptação
significa, muito frequentemente, a morte do renitente. Este fenômeno é denominado
“destreinamento” por parte de Goffman (2005, p. 23).
O romancista Dostoievski (2006, p. 24) – que passara quatro anos de sua vida em uma
prisão com trabalhos forçados na Sibéria – em sua obra Recordações da Casa dos Mortos,
define:
Estou convencido de que o tão propalado regime de penitenciária oferece resultados falsos, decepcionantes, ilusórios. Esgota a capacidade humana, definha o espírito e, depois, apresenta aquele detento mumificado, como um modelo de regeneração. Na verdade, ao revoltar-se contra a sociedade, esse criminoso a rejeita abertamente, considerando-se absolutamente inocente. Ou então acredita que, como está cumprindo o castigo, já acertou suas contas com a sociedade.
Foucault (2007, p. 223) leciona que “[...] a prisão fabrica indiretamente delinquentes, ao
fazer cair na miséria a família do detento”. Godoi (2017, p. 192), na mesma linha
raciocinativa, noticia a opinião de especialistas no sentido de que a prisão atua no entorno
social do detento (“punição inivisível”), que compromete modalidades de subsistência, destrói
orçamentos familiares, promove a estigmatização de mulheres, crianças e comunidades, com
consequências objetivas e subjetivas bastante graves.
Os efeitos deletérios da prisão, portanto, não se abatem somente sobre os internos, mas
especialmente sobre seus componentes familiares, amigos e vizinhos, inicialmente sob o
formato de estigma, que se transmite como uma poderosa doença infectocontagiosa, causando
epidêmicas consequências que vão desde a discriminação nos relacionamentos sociais até o
tratamento hostil por parte dos agentes de segurança pública e penitenciária. Essa extensão
dos efeitos da prisão é chamada por Rodríguez Alzueta (2014, p. 290) de “socialização do
cárcere”, pois este tende a se desterritorializar, quando se projeta sobre os bairros marginais,
por intermédio de meios de controle, que, mesmo brandos, por serem seletivos,
discricionários e também regulares, promovem a confusão do bairro com a prisão.
Mesmo quando são aplicadas medidas opcionais ao cárcere, a elas normalmente estão
agregadas obrigações de permanência em domicílio ou no bairro, constituindo, assim,
verdadeiras “jaulas transparentes”, na medida em que paralisam os movimentos, estabilizam
os circuitos, circunscrevendo a vida cotidiana, formando uma continuidade entre a jaula de
151
ferro e a gaiola transparente, um cárcere virtual, com efeitos de encarceramento concretos
(RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 291). Há de se agregar, ainda, a ideia de que a
socialização do cárcere se verifica pelos efeitos negativos que ele produz sobre as pessoas
pertencentes aos círculos de relacionamento dos presos, visto que estas passam a carregar
igualmente o estigma, principalmente se precisam visitar os presos, pois recebem, na
oportunidade, um tratamento humilhante e vexatório que certifica uma condição de
subalternidade (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 292).
Para ilustrar, é suficiente a descrição de um processo de revista de visitantes feito por
Rafael (2017, p. 202-203), sociólogo que, como agente da Pastoral Carcerária, conheceu por
dentro as prisões paulistas:
Num cubículo, sozinhas ou em pequenos grupos, diante do olhar minucioso das agentes de segurança penitenciária, as visitantes devem se despir completamente, entregando peça por peça de roupa a ser revistada. Nuas, precisam se posicionar de costas, voltadas para a parede. Então, devem soltar, sacudir e erguer o cabelo, mostrar as solas dos pés e agachar uma, duas, três vezes. O movimento expõe vagina e ânus, enquanto as agentes observam se há indícios de objetos introduzidos. Quando há suspeita, mandam a visitante repetir o movimento, acocorar-se mais, fazer força, limpar algum corrimento, abrir mais com as mãos. Se permanecer a dúvida, podem chamar outras agentes para verificar. A visitantes suspeita, às vezes obesa, às vezes idosa, ter de ficar ali agachada enquanto as agentes lhe fazem perguntas e insinuações, discutem aspectos de seu corpo, não se contentam com o que veem. No limite, quando desistem de verificar por si mesmas, mandam a visitante se vestir, barram a sua entrada e comunicam o fato a seus superiores. Se a suspeita insiste em querer entrar, aqueles providenciam uma escolta que a conduzirá a um hospital, onde ela será submetida a um exame de raios X.
Esse procedimento brutal e de intensa degradação da dignidade repete-se,
invariavelmente, aos finais de semana nos estabelecimentos prisionais nos quais ainda
predomina a revista vexatória no Brasil para os visitantes dos presos, convertendo seres
humanos em objetos do ilimitado escrutínio de seus corpos, a partir de um sedimentado
processo de presunção de culpa. Rafael Godoi considera os visitantes, em sua esmagadora
maioria, mulheres, meio livres (porque podem simplesmente dar as costas e desistir da visita)
e meio presas (nuas e agachadas diante das agentes penitenciárias, sujeitando-se às suas
ordens – e às vezes caprichos – por mais vexatórios que sejam, para poderem adentrar);
confinadas em um cubículo que é o território limiar entre o dentro e o fora da prisão, um local
de passagem obrigatória no qual a condição de mulher (ser humano) fica em suspenso perante
o Estado (GODOI, 2017, p. 203-294).
O cárcere, da maneira como é utilizado, funciona, também, como poderoso elemento
criminógeno. Assim, com a declarada finalidade de combater o crime, o que ele faz na
152
verdade é gerá-lo, levando novamente, quase fatalmente, diante dos tribunais, aqueles que
nele estiveram confinados (FOUCAULT, 2007, p. 213). Ademais, capacita e treina ao aportar
capitais aos presos, inscrevendo-os em redes criminais e conferindo a eles fama e prestígio no
“mundo do crime”, muitas vezes pelo simples fato de terem frequentado esta ou aquela prisão
ou ala prisional (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 301).
A prisão fabrica delinquentes também em outro sentido, conforme Foucault (2007, p.
213), por introduzir “[...] no jogo da lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do
carrasco, a realidade incorpórea da delinquência que os liga uns aos outros e, há um século e
meio, os pega todos juntos na mesma armadilha”. O delinquente, aqui, não é o mero infrator,
por ser a sua vida (e não seu ato) que o caracteriza, por estar ligado ao seu delito por um feixe
de elementos complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento) e não apenas ao ato
criminoso (FOUCAULT, 2007, p. 211).
Essa fábrica de delitos e deliquentes, por outro lado, alimenta a expansão desenfreada
de um mercado de segurança28, ávido pelos lucros da comercialização de instrumentos de
combate ao medo, assim como sustenta o funcionamento de um aparato cada vez mais
importante em termos orçamentários, cujos custos com o sistema judicial e policial superam
os destinados a direitos sociais importantes, como saúde, previdência e educação. Como já
advertiu Bauman (2013, p. 160), observam-se no mundo inteiro esforços para aumentar o
volume de medo e fornecer os alvos sobre os quais se possa descarregar a ansiedade
resultante.
A prisão pode ser caracterizada, também, como uma espécie de tecnologia repressiva,
por impor um estado de privação absoluta que produz um sujeito totalmente dependente do
aparelho de poder que o subordina, funcionando também como um poderoso dispositivo
ideológico, por impor a submissão ao trabalho como caminho único para sair dessa condição
e, paradoxalmente, enseja privação ao mesmo tempo em que impõe as próprias engrenagens
disciplinares como remédio para essa condição (DE GIORGI, 2013, p. 46).
A pessoa, no cárcere, é submetida a um autêntico processo de aculturação, tornando-se
presa dócil e apta a cumprir, sem questionamentos, “[...] todas as determinações das
28 Como percebe Esteban Alzueta, “Por um lado, la privatización o administración de las cárceles, la
construcción de nuevos estabelecimentos de máxima seguridade, el equipamento de esos espacios con tecnologia de vanguardia, pero también las medidas alternativas a la prisión (arrestos domiciliários controlados com pulseras o brazaletes electrónicos o cámaras de vigilancia), fueron componiendo un mercado del castigo susceptible de ser contenido por determinadas empresas”. (2014, p. 304).
153
autoridades carcerárias, elevadas pelo sistema penitenciário à metafórica condição de
patriarcas onipotentes, que elegem o que é bom ou ruim para os apenados, se os mesmos
desejarem a ressocialização” (ROIG, 2013, p. 141). Na doutrina de Foucault (2007, p. 199), a
prisão exerce disciplina incessante e ininterrupta sobre a pessoa, conferindo sobre esta um
poder quase total, com seus mecanismos de repressão e castigo, no que ele chama de
disciplina despótica; seu modo de ação é a coação de uma educação total.
Existe, ainda, completa dissociação das normas em relação à prática, como exposto por
Neuman (1997, p. 44), por meio de elucidativa metáfora:
Este tipo de normas son como los faros de un coche que ilumina la ruta pero no lo maneja. Principios meramente formales porque la realidad lo transgrede todo. Por así decirlo, las normas y su sentido estrellan su cabeza contra las paredes de la prisión. Y aunque duela el desvio y la impunidad de ese desvio, es preciso señalar que la realidad deslegitima a la ley y la descalifica.
Consoante adverte Rivera Beiras (2005, p. 224), não há como se admitir a existência de
“[...] unos derechos para quienes viven en libertad y, otros, para quienes habitan como
internos en las instituciones penitenciarias”, pois assim estará nascendo, no seio de um
Estado que se pretende democrático, um grupo de cidadãos de segunda categoria, conforme
conclui o citado Professor da Universidade de Barcelona (2005, p. 224). Obviamente, com o
aprisionamento, é normal que haja a restrição de alguns direitos. Observa-se, entretanto, é que
muitos direitos que deveriam ser preservados, ainda em um contexto de prisão, são
simplesmente desconsiderados. Pessoas em relação às quais não são garantidas as mínimas
condições de salubridade, a quem se sonegam água, alimentação adequada, assistência à
saúde et reliqua, se convertem mesmo em subpessoas.
Com aberta e interessada influência dos mass media29, no entanto, se reforça na
sociedade a exigência de recrudescimento da repressão, tratada como remédio mas que,
rapidamente, se mostra como destruidor veneno, por favorecer o surgimento de grupos
criminosos arregimentadores da legião de presos descontentes, cada vez engrossada ante a
situação desumana a que são submetidos os encarcerados. Foi nessa ambiência de repressão e
abandono que surgiu o Primeiro Comando da Capital (PCC), com o inicial e declarado
objetivo de protestar por melhores condições carcerárias e que se converteu em poderosa
organização criminosa, com ramificações inclusive internacionais. Não causa surpresa que tal
tenha ocorrido, pois há muitas décadas já advertia Foucault (2007, p. 222) para a noção de que
29 Ver subseção 1.3.4 desta tese.
154
a prisão “[...] favorece a organização de um meio de delinquentes, solidários entre si,
hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras”.
Os problemas carcerários não são peculiaridades brasileiras, mas adquirem aqui
contornos alarmantes. Leal (2003, p. 29) vislumbra um sério hiato entre a realidade brasileira
e a de outros países, decorrente, em sua opinião, da ausência histórica, entre nós, de políticas
públicas federais e estaduais destinadas à melhoria das condições do sistema prisional, aliada
“[...] com o acumpliciamento autovitimizante da comunidade, alheia às condições do preso,
geralmente pobre, analfabeto ou semianalfabeto”. De fato, é uma constante nos países latino-
americanos a conjugação do subdesenvolvimento econômico com as ineficientes políticas de
segurança pública, sendo óbvio esperar, pois, efeitos idênticos. Nas palavras de Garcia
Ramírez (2003, p. 146),
En América Latina se han llevado con desmesura las cifras de la población penitenciaria. De 26 países examinados por el Instituto Latinoamericano de las Naciones Unidas para la Prevención del Delito y Tratamiento del Delincuente, prácticamente todos – es decir, 25 – mostraban sobrepoblación penitenciaria; de ellos, en 20 había niveles de sobrepoblación crítica por encima de 120 por ciento.
No Brasil, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, do
Departamento Penitenciário Nacional – INFOPEN (dados atualizados até junho de 2016) 30, a
população prisional brasileira atingiu os 726.712 presos, com uma taxa de ocupação de 197,
4%, o que representa um défice de 358.663 vagas (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017, p. 7).
Trata-se de um aumento de 707% em relação ao início dos anos de 1990 (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA, 2017, p. 9).
O Estado, ao promover esse perverso amontoamento de presos em celas, olvidar-lhes
sua condição de seres humanos e sua indissociável dignidade, na medida em que se abstém de
tratá-los como sujeitos de direitos para lançá-los na vala comum de objetos, fazendo incidir
toda a carga do poder e da repressão sobre o corpo e o espírito dos encarcerados (BESSA,
2007).
O persistente estado de violação sistemática de direitos fundamentais no sistema
carcerário brasileiro foi reconhecido pelo STF que, em arguição de descumprimento de
preceito fundamental – ADPF proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)31 –
30 Até a finalização dessa tese, em junho de 2019, esse tinha sido o último levantamento oficial do número de
presos no Brasil. 31 No caso, alegava-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de
coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos
155
concedeu medida cautelar (BRASIL, 2015 b). Conforme é possível ler no Informativo 798 do
STF, o Plenário anotou que
No sistema prisional brasileiro ocorreria violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas. Nesse contexto, diversos dispositivos constitucionais (artigos 1º, III, 5º, III, XLVII, e, XLVIII, XLIX, LXXIV, e 6º), normas internacionais reconhecedoras dos direitos dos presos (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Americana de Direitos Humanos) e normas infraconstitucionais como a LEP e a LC 79/1994, que criara o Funpen, teriam sido transgredidas. Em relação ao Funpen, os recursos estariam sendo contingenciados pela União, o que impediria a formulação de novas políticas públicas ou a melhoria das existentes e contribuiria para o agravamento do quadro. Destacou que a forte violação dos direitos fundamentais dos presos repercutiria além das respectivas situações subjetivas e produziria mais violência contra a própria sociedade. Os cárceres brasileiros, além de não servirem à ressocialização dos presos, fomentariam o aumento da criminalidade, pois transformariam pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública estaria nas altas taxas de reincidência. E o reincidente passaria a cometer crimes ainda mais graves. Consignou que a situação seria assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social. Registrou que a responsabilidade por essa situação não poderia ser atribuída a um único e exclusivo poder, mas aos três — Legislativo, Executivo e Judiciário —, e não só os da União, como também os dos Estados-Membros e do Distrito Federal. Ponderou que haveria problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Além disso, faltaria coordenação institucional. A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representaria falha estrutural a gerar tanto a ofensa reiterada dos direitos, quanto a perpetuação e o agravamento da situação. O Poder Judiciário também seria responsável, já que aproximadamente 41% dos presos estariam sob custódia provisória e pesquisas demonstrariam que, quando julgados, a maioria alcançaria a absolvição ou a condenação a penas alternativas. Ademais, a manutenção de elevado
fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades. Postulava-se o deferimento de liminar para que fosse determinado aos juízes e tribunais: a) que lançassem, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não se aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; c) que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; d) que estabelecessem, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e) que viessem a abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando reveladas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica em razão do quadro do sistema carcerário, preservando-se, assim, a proporcionalidade da sanção; e f) que se abatesse da pena o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica, de forma a compensar o ilícito estatal. Requeria-se, finalmente, que fosse determinado: g) ao CNJ que coordenasse mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no País, que envolvessem a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f”; e h) à União que liberasse as verbas do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. Foram deferidas as medidas contidas nas alíneas “a” e “h” (BRASIL, 2015b).
156
número de presos para além do tempo de pena fixado evidenciaria a inadequada assistência judiciária. A violação de direitos fundamentais alcançaria a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial e justificaria a atuação mais assertiva do STF. Assim, caberia à Corte o papel de retirar os demais poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados. A intervenção judicial seria reclamada ante a incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas. Todavia, não se autorizaria o STF a substituir-se ao Legislativo e ao Executivo na consecução de tarefas próprias. O Tribunal deveria superar bloqueios políticos e institucionais sem afastar esses poderes dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias. Deveria agir em diálogo com os outros poderes e com a sociedade. Não lhe incumbira, no entanto, definir o conteúdo próprio dessas políticas, os detalhes dos meios a serem empregados. Em vez de desprezar as capacidades institucionais dos outros poderes, deveria coordená-las, a fim de afastar o estado de inércia e deficiência estatal permanente. Não se trataria de substituição aos demais poderes, e sim de oferecimento de incentivos, parâmetros e objetivos indispensáveis à atuação de cada qual, deixando-lhes o estabelecimento das minúcias para se alcançar o equilíbrio entre respostas efetivas às violações de direitos e as limitações institucionais reveladas. O Tribunal, no que se refere às alíneas “a”, “c” e “d”, ponderou se tratar de pedidos que traduziriam mandamentos legais já impostos aos juízes. As medidas poderiam ser positivas como reforço ou incentivo, mas, no caso da alínea “a”, por exemplo, a inserção desse capítulo nas decisões representaria medida genérica e não necessariamente capaz de permitir a análise do caso concreto. Como resultado, aumentaria o número de reclamações dirigidas ao STF. Seria mais recomendável atuar na formação do magistrado, para reduzir a cultura do encarceramento. No tocante à cautelar de ofício proposta pelo Ministro Roberto Barroso, o Colegiado frisou que o Estado de São Paulo, apesar de conter o maior número de presos atualmente, não teria fornecido informações a respeito da situação carcerária na unidade federada. De toda forma, seria imprescindível um panorama nacional sobre o assunto, para que a Corte tivesse elementos para construir uma solução para o problema. (BRASIL 2015 b).
Em três decisões recentes, a CorteIDH manifestou-se sobre a específica situação de
graves violações de direitos humanos em cárceres brasileiros. Em 14 de março de 2018,
solicitou à República Federativa do Brasil que adotasse, de imediato, todas as medidas
necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade das pessoas privadas de liberdade
no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, localizado na cidade de São Luís, Estado do
Maranhão, bem como de qualquer pessoa que se encontrasse nas unidades desse
estabelecimento (CORTEIDH, 2018a). O mesmo ocorreu em 28 de novembro de 2018, em
relação ao Complexo Penitenciário de Curado, constituído por três unidades carcerárias:
Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros (PJALLB), Presídio Marcelo Francisco de Araújo
(PAMFA) e Presídio Frei Damião de Bozzano (PFDB), no Estado de Pernambuco
(CORTEIDH, 2018b) e, em 13 de fevereiro de 2017, em relação ao Instituto Penal Plácido de
Sá Carvalho, bem como de qualquer pessoa que se encontre neste estabelecimento, localizado
no Complexo Penitenciário de Gericinó, na cidade do Rio de Janeiro (CORTEIDH, 2017c).
Sobre o problema na América, a CIDH, em seu Informe Anual de 2016, anota que são
constantes as informações a respeito do estado de superpopulação carcerária na região,
157
destacando como consequência o incremento dos níveis de violência, lembrando os sete
chamados que a CIDH realizou por seus comunicados de imprensa em 2016, nos quais
condenou fatos violentos nos Estados do Brasil, Guatemala, México e Venezuela, instando-os
a investigar e esclarecer as circunstâncias em que ocorreram, de modo a identificar e
sancionando os responsáveis (CIDH, 2017a).
A aceleração no ritmo de aprisionamento na América Latina, capitaneada pelo Brasil,
passou a ser definida por encarceramento em massa. Trata-se de uma política completamente
dissonante dos princípios e intenções dos reformistas liberais originais, por ser tributária de
políticas mais severas relacionadas à intimidação, ao abuso da prisão preventiva, a longas
penas de prisão, decorrentes de condenações expressivas, substituindo a preocupação com
penas mais justas, proporcionalidade e minimização da coerção penal (GARLAND, 2008, p.
155). Por outro lado, conforme o mesmo autor, o encarceramento atual
[…] serve, simultaneamente, como uma satisfação expressiva de sentimentos retributivos e como mecanismo instrumental para a administração de riscos e para o confinamento do perigo. Os setores populacionais efetivamente excluídos do mundo do trabalho, da previdência e da família – típicamente jovens do sexo masculino, pertencentes a minorias urbanas – estão cada vez mais atrás das grades, tendo sua exclusão económica e social efetivamente escamoteada por seu status criminal. A prisão reinventada da atualidade é uma solução pronta e acabada para um novo problema de exclusão social e económica. (GARLAND, 2008, p. 422).
Alexander (2017, p. 265) compara o atual sistema de encarceramento em massa com
uma gaiola com a porta trancada, visto que compõe um “[…] conjunto de arranjos estruturais
que bloqueiam um grupo racialmente distinto em uma posição política, social, e econômica
subordinada, criando efetivamente uma cidadania de segunda clase”. Nos EUA, “[...] surgiu,
na verdade, como um sistema de controle social racializado abrangente e bem disfarçado e
que funciona de maneira incrivelmente parecida com o Jim Crow32“ (ALEXANDER, 2017, p.
39), “[...] perpetuando e aprofundando padrões preexistentes de segregação e isolamento
racial, não apenas removendo pessoas não brancas da sociedade e pondo-as em prisões, mas
jogando-as de volta em guetos após a sua libertação” (ALEXANDER, 2017, p. 279), em um
“circuito fechado de marginalidade perpétua” (ALEXANDER, 2017, p. 280). Para se divisar a
magnitude desse fenômeno, vê-se que a população negra encarcerada nos EUA supera a da
Àfrica do Sul na época do apartheid, ao ponto de três em cada quatro negros jovens em
Washington podem ter a expectativa de passar algum tempo de sua vida na prisão (p. 42). Ao 32 São chamadas de Jim Crow as leis que oficializaram o sistema de segregação estadunidense de 1876 a 1965
nos Estados do Sul (ALEXANDER, 2017). Os do Norte, embora não tenham promulgado leis dessa natureza, promoveram igualmente a segregação racial, que também ocorreu no âmbito federal, podendo ser citados como exemplos as forças armadas (ALEXANDER, 2017).
158
contrário do que se poderia imaginar, o incremento do encarceramento não está ligado
genericamente ao desemprego, mas sim ao desemprego que atinge alguns estratos sociais
considerados perigosos à ordem constituída: minorias étnicas, imigrantes, jovens marginais
(DE GIORGI, 2013, p.51).
Um dos principais vetores desse encarceramento massivo é o abuso no manejo de
prisões cautelares, que se aplica quando há indicios de autoria e materialidade, aliadas à
necessidade de segregar a pessoa que represente um risco à “ordem pública”, ao regular
andamento do proceso ou à aplicação da lei penal, de acordo com as balizas legais brasileiras,
estabelecidas no CPP.
Conforma um instituto que deveria ter a nota da excepcionalidade, por flexibilizar um
direito fundamental importantíssimo: a presunção do estado de inocência; entretanto, dada a
sua utilização indiscriminada, ganhou ares de aplicação antecipada de pena, verificando-se
mesmo em situações nas quais a própria condenação final conduziria a medidas legais muito
mais brandas, representando, pois, poderoso instrumento de controle social sobre a população
marginalizada, que ainda hoje abarrota os cárceres enquanto aguardam julgamento. Tais
fatores indicam, como percebe Rodríguez Alzueta (2014, p. 276), que pouco interessa se um
real delinquente é alvo do encarceramento, do contrário, não se prenderia tanto
preventivamente, bastando, portanto, constatar superficialmente a etiqueta que o define como
uma pessoa que causa temor social, ou seja, basta que seja um “suspeito”.
Em seu informe anual de 2016, publicado no ano seguinte, a CIDH advertiu que um dos
principais problemas a respeito da superpopulação carcerária é causado pela utilização “geral
e excessiva da prisão preventiva”, já que os Estados continuam adotando políticas criminais
direcionadas a aumentar o encarceramento como solução para uma segurança cidadã; optando
por legislação que privilegia a aplicação da prisão preventiva e restringe o emprego de
medidas alternativas. Desse modo, confere inadequada defesa às pessoas em prisão
preventiva; submetendo-se à pressão dos mass media e da generali sententia para enfrentar a
insegurança pública por meio da privação da liberdade; omitindo-se em uma coordenação
interinstitucional entre os agentes do sistema de administração da justiça (CIDH, 2017a).
Por outro lado, a CIDH identificou o fato de que a falta de recursos econômicos
inviabiliza direitos de acesso à justiça da população privada de liberdade preventivamente, já
que algumas medidas processuais para a determinação da liberdade condicional ou vigiada
159
estão submetidas ao prévio pagamento de fianças, custas processuais ou de manutenção,
podendo-se supor, por conseguinte, discriminação a pessoas em situação de pobreza ou com
escassos recursos econômicos (CIDH 2016a). Esses são fatores, sem dúvida, que contribuem
para os altos índices de pessoas pobres privadas de liberdade. Como conclui Rodíguez
Alzueta, “[...] la prisión preventiva y el encarcelamiento en massa son dos estratégias que
responden a una urgencia: la contención de la pobreza y la regulación del delito”
(RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 278).
Além do gravíssimo estado de superpopulação carcerária, as prisões brasileiras são
dotadas de intensos problemas de salubridade. Sobre este assunto, Leal (2001, p. 58) detalha,
na obra Prisão: crepúsculo de uma era:
Prisões onde estão enclausuradas milhares de pessoas, sem nenhuma separação, em absurda ociosidade, carentes de assistência material, à saúde, jurídica, educacional e religiosa; prisões infectas, úmidas, por onde transitam livremente ratos e baratas, onde a falta de água e luz é rotineira; prisões onde vivem em celas coletivas improvisadas dezenas de presos, alguns seriamente enfermos, como tuberculosos, hansenianos e aidéticos; prisões onde quadrilhas controlam o tráfico interno da maconha e da cocaína e firmam as suas próprias leis; prisões onde vigora um código arbitrário de disciplina, com espancamentos freqüentes como método de obter confissões; prisões onde se conservam as surdas, isto é, celas de castigo, expressamente proibidas, onde os presos são recolhidos por tempo indefinido, sem as mínimas condições de aeração, insolação e condicionamento térmico; prisões onde os detentos promovem o massacre de colegas, a pretexto de chamarem atenção para suas reivindicações; prisões onde muitos aguardam julgamento durante anos, enquanto outros são mantidos por tempo superior ao constante na sentença ou, embora absolvidos, continuam presos por esquecimento do juiz; prisões onde, por alegada inexistência de local próprio para a triagem, os recém-ingressos – que deveriam se submeter a uma observação científica – são transferidos em celas de castigo, ao lado de presos extremamente perigosos.
Não há, contudo, nenhum indicativo de que os efeitos negativos dessa tendência
impositiva arrefeçam, principalmente, como reforça Karam (2005, p. 164), nesses tempos de
um significativo reforço do distorcido, dramático e demonizador discurso da repressão penal.
Embora seja possível identificar alguns esforços para estabelecer opções penais, a prisão tem
ainda curso como a principal resposta estatal aos conflitos penais. Guemureman (2015, p.
544) entende que
[...] a privação da liberdade não está em extinção, e sim gozando de boa saúde, alardeada como “santo remédio” contra a insegurança; como antídoto para barrar a periculosidade dos jovens; assimilada à melhor estratégia de neutralização da população socialmente vulnerável; tão inútil em seu afã de prevenir a reincidência como funcional a um sistema de exclusão social; via régia de vulneração de direitos, cuja existência remete aos constantes maus-tratos, restrições de toda ordem, falta de acesso à saúde, educação, recreação e a programas de rebilitação efetivos.
160
Daí surge o questionamento de Foucault (2007, p. 225): “O pretenso fracasso não faria
parte do funcionamento da prisão?” Ele mesmo responde: “Se a instituição-prisão resistiu
tanto tempo, e em tal imobilidade, se o princípio da detenção penal nunca foi seriamente
questionado, é sem dúvida porque esse sistema carcerário se enraizava em profundidade e
exercia funções precisas” (FOUCAULT, 2007, p. 226). Talvez seja necessário procurar o que
se esconde sob o cinismo de uma instituição que constantemente marca e persegue as pessoas
como delinquentes, mesmo depois que quitam sua pena como infratores (FOUCAULT, 2007,
p. 226).
No Informe Anual, a CIDH indicou a existência de uma Relatoria sobre os Direitos das
Pessoas Privadas de Liberdade, com incidência em todos os Estados-Membros da OEA, que
continua recebendo informações preocupantes acerca das graves violações de direitos
humanos, identificando o fato de que os principais desafios são: o uso excessivo da prisão
preventiva, os altos índices de superpopulação carcerária e as inadequadas condições de
detenção (CIDH, 2017a).
Por outro lado, a CIDH destina especial atenção à agudização do estado das pessoas
privadas de liberdade com escasos recursos financeiros (pobreza extrema), identificando que a
privação de direitos é mais ampla do que a experimentada pelo resto da população carcerária
(CIDH, 2016a). Isso porque, de acordo com o Informe preliminar sobre pobreza, pobreza
extrema y derechos humanos en las Américas, expressa maiores dificuldades para aceder a
serviços ou benefícios normalmente disponíveis, mas sujeitos ao pagamento exigido por
outros presos e até mesmo por autoridades penitenciárias (CIDH, 2016a).
A CIDH observa, ainda, que a situação de pobreza extrema de pessoas presas também
pode afetar negativamente a fruição do direito de visitas familiares quando transferidas para
centros de privação de liberdade distantes de seus núcleos familiares (CIDH, 2016a). O citado
informativo da CIDH denuncia a reiterada utilização dessa prática, especialmente na
Argentina e no Chile, onde 68,6% das pessoas entrevistadas pela CIDH declararam que a
prisão foi responsável pelo fim de uma relação familiar próxima, e em 48,8% dos casos em
razão da falta de dinheiro para os traslados até as prisões (CIDH, 2016a).
Impende destacar a situação da mulher encarcerada, que sofre dupla estigmatização,
visto que, imersa em uma cultura machista que lhe reserva os papéis de manutenção e guarda
161
de filhos, recebe mais severa reprovação social, bem como manifesta mais elevada penitência
interior, o que reverbera em seus entes familiares queridos (BESSA, 2017).
A CIDH, atenta a esse problema e aos papéis reservados pela sociedade à mulher,
destaca que o encarceramento feminino enseja severas consequências aos seus filhos e
àqueles que normalmente se encontram sob seus cuidados, tais como pessoas com
deficiências e idosos (CIDH, 2016a). Sobre esse ponto, a CIDH adverte para a noção de que
apenas 10%, aproximadamente, dos filhos daquelas que estão privadas de liberdade ficam
com os pais, enquanto que, quando o homem é preso, a maioria dos filhos continua sendo
cuidada pelas mães e, por essa razão, a ruptura de laços de proteção gerada pelo
encarceramento de mulheres possibilita situações de transmissão intergeneracional da
pobreza, marginalidade e abandono, que podem desembocar em envolvimento com
organizações criminosas ou mesmo a institucionalização (CIDH, 2016a)33.
O cárcere conforma, por outro lado, local de privação da liberdade de pessoas
pertencentes a uma raça. Com amparo na análise da amostra daquelas sobre as quais foi
possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, lobriga-se a informação de que 64% da
população prisional compõem-se de pessoas negras (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017, p.
32). Na população brasileira acima de 18 anos, em 2015, a parcela negra representa 53%,
indicando a sobre-representação deste grupo populacional no sistema prisional (MINISTÉRIO
DA JUSTIÇA, p. 32). Por fim, 75% da população prisional brasileira ainda não acessou o
ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA, 2017, p. 34).
Ademais, em considerável indicativo de criminalização secundária da pobreza, com o
direcionamento da ação estatal mais intensamente contra determinados ilícitos penais34,
verifica-se que os crimes de tráfico correspondem a 28% das incidências criminais pelas quais
as pessoas privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em junho de
2016 - enquanto os crimes de roubo somam 37% das incidências (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA, 2017, p. 43). No comparativo da distribuição entre homens e mulheres, no entanto,
se evidencia a maior frequência de crimes ligados ao tráfico de drogas entre as mulheres
33 Esse fato, inclusive, foi levado em consideração pelo STF para a decisão no HC Coletivo 143.641/SP,
conforme estudado em detalhes no segmento 4.3 do ensaio sob relação, impetrado em favor de mulheres presas preventivamente na condição de gestantes, puérperas ou mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.
34 Sobre o assunto, ver subseção 1.2.2 desta tese.
162
(enquanto, em relação aos homens, representam 26% dos registros, no concernente às
mulheres, atingem 62%) (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017, p. 43).
Como demonstrado noutras passagens deste estudo, a prisão é povoada por pessoas
pobres e, no Brasil, a situação tem números impressionantes. A sobre-representação de pobres
nas cadeias contrasta fortemente com a insignificante situação de pessoas abastadas
cumprindo pena presas. Nas palavras de Galeano (2010, p. 95),
Os presos são pobres, como é natural, porque só os pobres vão presos em países onde ninguém vai preso quando desaba uma ponte recém inaugurada, quando se quebra um banco ou quando se desmancha um edifício recém construído sem cimento. O mesmo sistema de poder que fabrica a pobreza é o que declara a guerra sem quartel aos desesperados que gera.
Como ensina Bauman (2005, p. 108), “[…] o refugo humano não pode mais ser
removido para depósitos de lixo distantes e fixado firmemente fora dos limites da vida
normal. Precisa, assim, ser lacrado em contêineres fechados com rigor. O sistema penal
fornece esses contêineres”. As prisões, que antes funcionavam como instituições
correicionais, são percebidas como mecanismos de exclusão e controle, pois o mais valioso da
instituição são seus muros e não o que ocorre dentro deles (GARLAND, 2008). “De forma
explícita, o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo
qualquer, mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado, sempre rejeitado” (BAUMAN,
2005, p. 108). “Se reciclar não é mais lucrativo, e suas chances (ao menos no ambiente atual)
não são mais realistas, a maneira certa de lidar com o lixo é acelerar a biodegradação e
decomposição, ao mesmo tempo isolando-o, do modo mais seguro possível, do hábitat
humano comum” (BAUMAN, 2005, p. 109).
Wacquant (2001, p. 11), detectando o problema, refere-se às prisões brasileiras como
“[...] campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial
dos dejetos sociais”, para mais adiante arrematar a ideia de que “[...] o cárcere só serve para
agravar a instabilidade e a pobreza das famílias cujos membros ele sequestra e para alimentar
a criminalidade pelo desprezo escandaloso da lei, pela cultura da desconfiança dos outros e da
recusa das autoridades que ele promove” (WACQUANT, 2001, p. 12). Como adverte Batista
(2003, p. 55), “[...] a prisão dos países periféricos é uma instituição de sequestro menor,
dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural. Em nossa região, o sistema
penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características
“disciplinadoras” dos países centrais”.
163
2.4 Execuções extrajudiciais e tortura
Consoante examinado em passagens anteriores deste estudo, a atitude de seletividade
penal adotada pelo Estado e estimulada pelos meios massivos de comunicação, que
estabelecem sólido consenso social, enseja, não somente, o encarceramento puro e simples de
determinados grupos vulneráveis (o que já seria, por si, trágico para a democracia35), mas
também contribui para o tratamento desumano a eles dispensado, que pode culminar (e, não
raro, chega ao clímax) na imposição de intensos sofrimentos (tortura) ou mesmo na execução
extrajudicial, consequências quase naturais da desumanização.
Assim, duas condutas que, na corrente quadra histórica, foram banidas das previsões
legislativas internacionais (e também da maioria dos Estados nacionais) e, mais do que isso,
constam como abomináveis nos discursos em todo o mundo, a eliminação física e a tortura
continuam sendo utilizadas amplamente pelos caminhos subterrâneos do exercício do poder
punitivo, em decorrência da função que cumprem, conforme será demonstrado nos segmentos
à frente. Noutro torneio de elocução, embora haja sedimentado consenso internacional
contrário a essas práticas (monitorado por organizações internacionais globais e regionais de
direitos humanos, que enseja, inclusive, posicionamentos estatais de negação), mortes
institucionais e torturas permanecem acontecendo impunemente, como frequentemente
denunciam órgãos de defesa de direitos humanos, fato comprobatório de que continuam
fazendo parte das rotinas estatais.
Nos módulos do trabalho, que vêm logo em seguida, se analisam, separadamente, as
situações de execuções extrajudiciais e a tortura, como consectários de posições estatais
seletivas, “legitimadas” por um discurso normalizante que permeia o tecido social e mantém
incólumes seus praticantes, na senda de uma guerra ao crime que, na realidade, é uma batalha
contra determinados tipos de criminosos, reais ou fabricados, mas pertecentes,
invariavelmente, à mesma camada social.
35 Sobre a contradição própria da criminalização da pobreza em relação ao Estado Democrático de Direito, ver
subseção 1.5 desta tese.
164
2.4.1 Execuções extrajudiciais
Mortes anunciadas foi a dicção utilizada por Zaffaroni (2016, p. 29-30)36 para
conceituar as mortes que, massiva (ocorrem com frequência extraordinariamente alta) e
normalizadamente (projetadas e recebidas publicamente sem maior alarme), são causadas pela
operatividade violenta do sistema penal, formando um quadro de dramaturgia fatal, como
resultado de papéis previamente definidos. São óbitos que contam com a aprovação de boa
parte dos discursos midiáticos, que as apontam como sinais de eficácia preventiva da polícia e
que, em vez de causarem alarme na população, constituem recursos para provocar
aquiescência ou consenso (ZAFFARONI, 2016, p. 29).
Por óbvio, a compreensão dessa insensibilidade por parte da sociedade passa pela
sedimentada invisibilização desses sacrificáveis. A lamentação e os protestos de componentes
familiares e amigos, por exemplo, mesmo quando conseguem romper os diques de uma
naturalização imposta, são desconsiderados pela imprensa, o Estado e a sociedade. Como
critica Rodríguez Alzueta, o direito de matar somente é visível para os familiares das vítimas,
pois, para o restante da sociedade, atemorizada, que acompanha os acontecimentos pelos
media, são mortes merecidas, a maneira rápida de repartir justiça (RODRÍGUEZ ALZUETA,
2014, p. 257). Nesse sentido é a lição de Bauman (2013, p. 78): “A negação da subjetividade
desqualifica os alvos selecionados como parceiros potenciais do diálogo; qualquer coisa que
possam dizer, assim como o que teriam dito se lhes dessem voz, é a priori declarado imaterial,
se é que se chega a ouví-los”.
Muito mais grave do que o silêncio social, em relação a esses trespasses, é a mudez
institucional. Muitos deles ocorrem em situações que há bem pouco tempo originavam os
famigerados “autos de resistência”, nos quais eram relatados fraudulentos enfrentamentos
com a polícia que resultaram na morte dos suspeitos. Como lembra Flauzina (2017 p. 15), em
prefácio à obra de Michelle Alexander, o histórico registro das execuções sumárias
perpetradas pelas polícias como autos de resistência era, até muito recentemente, confirmado
pelo imediato pedido de arquivamento do caso pelo Ministério Público e pela chancela
judicial. Nesse ciclo bem orquestrado, milhares de vidas foram ceifadas sem qualquer
investigação ou censura dos agentes que praticaram os homicídios, demonstrando-se como a
anuência do Judiciário é decisiva para a conformação da cultura punitiva de caráter racista,
36 O próprio autor confere a Nilo Batista o crédito pelo emprego dessa unidade de ideia, embora com um sentido
mais limitado, em Bogotá, em 1987 (ZAFFARONI, 2016, p. 29).
165
consolidando modos de operar tão brutais do sistema de justiça criminal (FLAUZINA, 2017,
p. 15). Zaffaroni adverte para a noção de que o fenômeno destrói a vida de um grupo humano
extenso, composto em sua quase totalidade por jovens de setores depauperados, constituindo
não uma guerra contra “bandos”, como se procura fazer crer, mas de um fenômeno de morte
massiva provocado por um formato de exercício de poder normalizado na sociedade
(ZAFFARONI, 2016, p. 46).
O historiador e cientista político camaronês Mbembe (2016, p. 146), nessa perspectiva,
introduz conceito aplicável a essa situação de extermínio, ao propor as noções de
necropolítica e necropoder para traduzir as várias maneiras pelas quais, na
contemporaneidade, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de
pessoas e da criação de “mundos de morte”, nos quais vastas populações são submetidas a
condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. Observa-se aí ter curso
uma política da morte, na qual estas são componentes inexoráveis e deliberados das ações
estatais.
Eduardo Galeano (2010, p. 81), por oportuno, considera que, “Em um mundo que
prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça nos
altares da segurança. Nas ruas das cidades celebram-se as cerimônias. Cada vez que cai um
delinquente alvejado, a sociedade sente alívio ante a enfermidade que a acossa”. No que diz
respeito à percepção pública, a crença dominante é a de que a vida urbana está eivada de
perigos; livrar as ruas dos ostensivos e ameaçadores estranhos como a mais urgente das
medidas destinadas a restaurar a segurança que falta aparece como verdade evidente por si
mesma, que não precisa de provas, tampouco admite discussões (BAUMAN, 2003, p. 131).
Aplica-se aqui o entendimento de Mbembe (2016, p. 23), para quem:
[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.
As mortes anunciadas são produzidas das mais variadas maneiras, merecendo,
portanto, uma taxionomia oferecida por Zaffaroni (2016, p. 30-33), que dá conta da gravidade
e extensão do problema. Assim, divide-as em mortes:
a) institucionais (causadas pelo aparato repressivo estatal no cumprimento de suas
obrigações);
166
b) extrainstitucionais (produzidas pelos integrantes das agências armadas, mas
sem relação com suas funções);
c) para-institucionais (cometidas por grupos de extermínio, “esquadrões da
morte”, “justiceiros”);
d) contrainstitucionais (vitimam os integrantes das agências armadas, em razão de
suas funções);
e) metainstitucionais (sucedem em decorrência da omissão estatal, como, verbi gratia,
presos vitimados por outros presos) (ZAFFARONI (2016, p. 30-33).
Na percepção de Alagia (2013, p. 59), as sociedades dividem, rotineiramente, a sua
população em não sacrificáveis e sacrificáveis, sendo estes os indivíduos cujas mortes não
causam nenhum agravo em parentes, tampouco em aliados. O sacrifício é uma violência sem
risco. No mesmo sentido é a lição de Agamben (2007, p. 146), para quem toda sociedade,
mesmo a mais moderna, fixa o limite além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante
e, como tal, pode ser impunemente eliminada. Essas execuções são aprovadas pela opinião
pública como parte integrante da reação social ao desvio e ao crime (ZAFFARONI, 2016, p.
42). Elabora-se, então, em toda sociedade, um discurso para que o medo etéreo de ser vítima
de um crime se concretize sobre determinadas pessoas, cujo tratamento não pode ser o mesmo
conferido aos demais cidadãos. Há de se nomear o medo para que ele efetivamente exista,
escolher uma cor, uma idade e um bairro; demonizá-lo como tática de imprimir um rosto a um
temor difuso, produzindo, paradoxalmente, um laço social, porque o temor é um meio de
constituir vínculos nas sociedades inseguras (RODRÍGUEZ ALZUETA, 2014, p. 43). No
mesmo sentido entende Bauman (2003, p. 105):
Dada a intensidade do medo, se não existissem estranhos eles teriam que ser inventados. E eles são inventados, ou construídos, diariamente: pela vigilância do bairro, pela tevê de circuito fechado, guardas armados até os dentes. A vigilância e as façanhas defensivas/agressivas que ela engendra criam seu próprio objeto. Graças a elas, o estranho é metamorfoseado em alienígena, e o alienígena, numa ameaça. As ansiedades esparsas e flutuantes ganham um núcleo sólido.
Os mortos pela polícia passam por um processo de etiquetamento e estigmatização:
somente aparecem como delinquentes e não “pessoas comuns”, que não distinguem entre o
bem e o mal, não havendo, então, razões para defender seus interesses (CALZADO;
MAGGIO, 2009, p. 89). “Desde una retórica perversamente trágica, el discurso policial
concede que con ellos nada podría hacerse en términos de rehabilitación ya que se los
diagnostoca como “irrecuperables” por lo cual la eliminación resulta una respuesta posible y
167
definitiva” (CEPEDA et al., 2009, p. 140). Mediante este etiquetamento, finaliza-se o
fenômeno de estigmatização que culmina com a intervenção selectiva do sistema penal feito
resultado de uma profecia autocumprida (CANAVESIO; DAMONE; MAGISTRIS, 2009, p.
171).
As vítimas letais da violência policial provêm, regularmente (não de modo casual), dos
grupos sociais mais vulneráveis, tanto em termos econômicos como na distribuição de
recursos sociais simbólicos – intelectuais e materiais – e para os quais o sistema de justiça é
inacessível (CEPEDA et al., 2009, p. 106). Na opinião de Pita (2010, p. 8), são pessoas
acostumadas a conviver com a arbitrariedade dos operativos massivos de controle policial e
que, em determinadas situações, não aceitam suportar, sem resistir, os maus-tratos e a
vigilância constante da polícia em seus bairros. Muitas mortes ocorrem, portanto, como
resultado do acirramento das relações estabelecidas entre policiais e jovens de bairros que
convivem em contínuo entrechoque, em razão do intenso e continuado controle pelas forças
de segurança nesses territórios, valendo-se, muitas vezes, de atitudes estigmatizantes e
violentas, como será visto em seção específica, vinda na sequência.
Como adverte o Centro de Estudios Legales e Sociales (CELS), da Argentina, um dos
fenômenos de violência institucional mais preocupantes em seu país é o que chamam de
“desaparecimento forçado”37 como método policial extremo para garantir a impunidade ou
evitar investigações sobre abusos e outras modalidadess de violência cotidiana da polícia
sobre os jovens pobres, figurando como o último degrau na cadeia de práticas violentas
(CELS, 2016, p. 74). Tais práticas são possibilitadas pelas amplas margens de autonomia
policial, pela degradação do ofício policial e pela ausência de controle sobre as forças que a
conduzem, além de um sistema de justiça que efetivamente investigue e aplique as sanções
devidas (CELS, 2016, p. 75). É uma combinação que, de fato, conduz a uma escala
ascendente de violência que culmina com a eliminação física: práticas violentas contra
vulneráveis, autonomia policial excessiva (arbitrariedade), ausência de controle sobre a ação
policial, condescendência social e do sistema de justiça. Rodríguez Alzueta (2014, p. 254),
por sua vez, sintetiza os fatores que sustentam incólumes os casos que chama de “gatillo
37 A denominação não é casual, mas decorre de evidente analogia às práticas da ditadura militar argentina, que
perseguia seus opositores e os fazia literalmente desaparecer, não raramente, por meio de uma prática bastante difundida nesse regime que eram os “voos da morte”, nos quais os presos políticos - após submetidos a intensas sessões de tortura, normalmente com a finalidade de delação, ou por simples castigo - eram atirados de aviões da Marinha argentina no mar ou no rio da Prata, ainda com vida, dopados, amarrados e amordaçados.
168
fácil”38: violência policial rotinizada e sistemática (regular, discricionária e seletiva), que se
sustenta no desgoverno e descontrole da polícia; a modorra e classismo do poder judicial; a
preguiça ética de uma sociedade com pânico moral; o espírito revanchista dos setores mais
conservadores da classe dirigente e das empresas de comunicação.
Segundo Zaffaroni (2016, p. 53), “[...] lo cierto es que la población latino-americana
está sufriendo los efectos de una construcción social de guerra permanente y como resultado
de esa construcción desarrolla comportamientos bélicos en el plano de la realidade”. Essa
maneira de agir é bastante regular e se nutre de um marco normativo ambíguo e alheio aos
princípios democráticos, revestindo-se de um denso entramado de representações, cultura
institucional, preconceitos e tradições que moldam o olhar sobre o delinquente, uma
carcacterização prefigurativa e um esquema que orienta a aplicação da força física e o uso de
armas, como também a naturalização da morte dos delinquentes como resultado de uma
equação elementarmente letal: se é delinquente, já está implícito que seja morto (abatido) e
isto nunca representa um homicídio em termos de tipificação legal, tampouco um assassinato
em matéria de representação social (CEPEDA et al., 2009, p. 137-138). Os delinquentes
enquadram-se, assim, na categoria dos “matáveis”, portadores de uma vida nua,
assemelhando-se à figura do homo sacer, na formulação doutrinária do Agamben (2007, p.
107): “[...] no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e
irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte como tal, sem que nenhum rito e nenhum
sacrifício possam resgatá-la”. Com efeito, “[...] o assassinato do homo sacer não constitui
homicídio” (AGAMBEN, 2007, p. 108).
As mortes anunciadas constituem, na realidade, uma mensagem dirigida aos outros
jovens dos bairros populares, bem como para membros familiares das vítimas, amigos e
eventuais testemunhas, que sofrem ameaças e distintas modalidades de intimidação (CELS,
2016, p. 75). E essas mensagens costumam surtir o efeito intimidatório pretendido, pois as
mortes figuram como resultado das práticas de violência que habitualmente não têm
consequências negativas para as carreiras de quem as desenvolve, pois na verdade
representam modos de reafirmar a autoridade policial nos territórios (CELS, 2016, p. 77). De
tal sorte, se não há controles (internos, externos, judiciais, políticos) nem se mostram sanções
38 “Gatillo fácil” é expressão amplamente usada na Argentina, principalmente pelos meios de comunicação, para
significar a ação, normalmente policial, de disparar armas de fogo de maneira inadvertida e abusiva, atingindo, nas mais das vezes, pessoas pobres.
169
oportunas e efetivas, as mortes montam uma trama que pode desembocar em meios de
garantir a impunidade e resultar nos piores extremos (CELS, 2016, p. 77).
Isso ocorre também porque, como denuncia Galeano (2010, p. 89), boa parte da
população aplaude, ostensivamente ou em segredo, os esquadrões da morte, que aplicam a
pena capital, ainda que a lei não a autorize, com a habitual participação ou cumplicidade das
polícias e militares. Como concluem Cepeda et al. (2009, p. 150), é preferível, em uma caçada
bélica:
[...] un tiro certero que una gran persecución, ya que la diferencia entre atrapar al delincuente vivo o muerto se desvanece como categoría diferencial. Y esto sólo es posible en el marco de un alto rédito social para los paladines de la restitución de la “seguridad”. Cueste lo que cueste.
Os executores de boa parte dessas mortes são pessoas com determinadas características
individuais que potencializam a sua prática, mas não se pode minimizar o reforço delas pelo
treinamento, potencialização interativa e introjeção de um discurso e de técnicas de
neutralização que normalmente singularizam as instituições policiais, contando, não
raramente, com o consentimento da cúpula, que contribui para a reprodução institucionalizada
da deterioração da personalidade e condicionamento de comportamentos homicidas
(ZAFFARONI, 2016, p. 157).
Nenhum país da região poderia institucionalizar a pena de morte com a extensão com
que são praticadas as mortes institucionais, porque isso seria inadmissível perante os
organismos judiciais regionais e internacionais, e os alvos habituais não poderiam ser
submetidos a penas de morte formais, pois os crimes de que são acusados não têm a pena
capital como consequência proporcional (ZAFFARONI, 2016, p. 174). São, normalmente,
acusados de roubos ou de tráfico de drogas, quase sempre, de pequeníssima monta. Eles são,
pois, vítimas de execuções sem processo, os mesmos que há dois séculos são perseguidos por
viverem uma “má vida”, convertendo-se, pela sua inadaptação ou marginalização, em
indesejáveis sociais (ZAFFARONI, 2016, p. 174).
O mais desolador é que não existem estratégias específicas, por parte das autoridades,
para abordar responsavelmente esse problema, uma vez que a prática generalizada de matar
nessas condições sequer é visualizada como um problema, conduzido muitas vezes como
resultado inevitável do enfrentamento à delinquência. Essa foi a percepção que o CELS
consolidou como resultado do mapeamento das políticas destinadas a trabalhar sobre estas
relações conflitivas na cidade de Buenos Aires e nas províncias de Buenos Aires, Chaco,
170
Mendoza e Santa Fé (2016, p. 81). Não é difícil perceber que a mesma conclusão aplica-se
facilmente à realidade dos estados e das grandes cidades brasileiras, cujos representantes
políticos costumam acompanhar a mesma senda de naturalização das mortes, por meio de um
silêncio conivente e, não raro, apoio explícito às ações policiais com resultado morte, sem
qualquer juízo crítico sobre a maneira de atuação - isso quando não agem diretamente, como,
ex. g., fez o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que, em maio de 2019, embarcou
em um helicóptero acompanhado de snipers para metralhar comunidades carentes, chegando-
se a atingir uma tenda religiosa, confundida com uma casamata do tráfico (O GLOBO, 2019).
Somente de uma maneira é possível visibilizar tais mortes e então, ainda que de modo
tímido, problematizar-se: quando se demonstra que o morto pela polícia era inocente
(CALZADO; MAGGIO, 2009, p. 94). Não raro, os meios de propagação coletiva legitimam
as mortes anunciadas, quando não ostensivamente, ressaltando os antecedentes do falecido,
em velada maneira de reduzir as reações sociais que, por sua vez, somente aparecem se a
pessoa “não tinha passagem pela polícia”. No entendimento de Zaffaroni (2016, p. 161), “[...]
el comportamento de las agencias de comunicación social es extremadamente importante en
la dinámica de las muertes anunciadas, pues sin su concurso carecerían de toda
funcionalidade”. Os media conformam uma lógica perversa que, contrario sensu, significa
que, se há notícia de envolvimento anterior com prática delitivas, a morte surge como
consequência quase natural e, portanto, aceitável.
Os próprios entes familiares da vítima se apressam a verberar o “passado limpo” do seu
morto, como uma maneira de encontrar empatia e apoio sociais, que, de outro modo, não
viriam. Buscar o apoio midiático, portanto, é fundamental para legitimar a dor pela perda do
ser querido executado e até mesmo ter o direito de senti-la publicamente. Isso porque, se o
falecido tinha antecedentes criminais, o jeito como morreu já não importa, pois, para o
“tribunal das ruas”, a morte foi procurada, restando aos componentes familiares a dor privada,
envergonhada, indigna de ser sentida e a ela concedida publicidade, por homenagear uma vida
que sequer é digna de ser vivida e, menos ainda, reivindicada.
Além disso, como percebem Canavesio, Damone e Magistris (2009, p. 175) em sua
pesquisa, nos testemunhos de juízes e promotores de justiça sobre tais mortes, somente há
interesse em investigar a possibilidade de um homicídio em um enfrentamento, quando há
provas prévias (difíceis de desconsiderar), pois, do contrário, se limitam ao fato que foi o
presumido delito que deu origem ao enfrentamento. Assim, somente quando a versão policial
171
reluz absurda é que se põe em questão a morte do delinquente (CANAVESIO; DAMONE;
MAGISTRIS, 2009, p. 175). Em outras palavras, a ação estatal, que se presume deva ocorrer
desvestida de preconceitos e representações sociais acríticas, na realidade, obedece a mesma
lógica normalizadora das mortes, que somente é rompida ante evidências incontrastáveis
(quase nunca alcançáveis) de eliminação física de teor criminoso perpetrada pelas forças
estatais. Os órgãos estatais, então, sobram enredados em um estado de guerra, cujas
consequências para a própria existência e funcionamento da democracia são bastante funestas,
caso se atente para a advertência de Agamben (2004, p. 13):
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários politicos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema politico. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.
A inércia estatal brasileira no tocante ao enfrentamento à situação das mortes praticadas
por agentes estatais foi alvo de recente condenação por parte da CorteIDH, no Caso Favela
Nova Brasília x Brasil, sentenciada em 16 de fevereiro de 2017, no qual a CorteIDH declarou
a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação dos direitos às garantias judiciais de
independência e imparcialidade da investigação, devida diligência e prazo razoável, do direito
à proteção judicial, e do direito à integridade pessoal, com respeito às investigações de duas
incursões policiais na Favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, que resultaram em execuções
extrajudiciais de 26 pessoas pela Policía Civil no dia 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de
1995, listadas como “autos de resistência”, além de, no mesmo dia 18 de outubro de 1994,
três mulheres, duas delas adolescentes, terem sido vítimas de torturas e violência sexual por
parte de agentes policiais (CORTEIDH, 2017 b).
A CorteIDH considerou que investigações realizadas pela polícia civil do Rio de Janeiro
não cumpriram os mínimos padrões de devida diligência em casos de execuções extrajudiciais
e graves violações de direitos humanos que outros órgãos estatais tiveram a oportunidade de
retificar a investigação e não o fizeram (CORTEIDH, 2017 b). Ademais, é importante o
destaque concedido pela Corte de que, apesar da extrema gravidade dos fatos narrados, as
investigações realizadas se mantiveram tendenciosas em decorrência da concepção prévia de
que as vítimas haviam morrido em consequência das próprias ações, num contexto de
enfrentamento com a polícia (CORTEIDH, 2017 b). A CIDH, inclusive, ao submeter o caso à
CorteIDH, já havia identificado o fato de que a investigação dos eventos mencionados
172
demonstrou objetivo de estigmatizar e “revitimizar” as pessoas assassinadas, dando enfoque à
sua culpabilidade e não na verificação da legitimidade do uso da força (CORTEIDH, 2017b).
Dentre as reparações impostas pela CorteIDH, importa destacar algumas de caráter geral e
incidência mais abrangente impostas ao Estado brasileiro:
vii) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos do presente caso e sua posterior investigação, durante o qual deverão ser inauguradas duas placas em memória das vítimas da presente Sentença, na praça principal da Favela Nova Brasília; viii) publicar anualmente um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da polícia em todos os estados do país e com informação atualizada anualmente sobre as investigações realizadas a respeito de cada incidente que redunde na morte de um civil ou de um policial; ix) estabelecer os mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado, ou acusados; x) adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial; xi) implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro e a funcionários de atendimento de saúde; xii) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação de delitos conduzida pela polícia ou pelo Ministério Público; xiii) adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão “lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial” nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial. O conceito de “oposição” ou “resistência” à ação policial deverá ser abolido. (CORTEIDH, 2017b).
Apesar da condenação enfática pela CorteIDH, os números de mortos no Brasil em
enfrentamentos (supostos ou reais) prosseguiu em assustadora crescente, em particular, no Rio
de Janeiro, como mostram os números de pesquisa feita pelo Projeto Monitor da Violência,
que iniciou em 2015, de uma parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo (USP), o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Portal G139.
Em 2015 foram 3.330 pessoas mortas pela polícia (645 no RJ); em 2016 foram 4.222 e 925 no
RJ; em 2017, 5.225, sendo 1.127 no RJ; em 2018, policiais mataram 6.160 pessoas, sendo
1.534 no RJ (ESPECIAIS G1, 2019a). Em quatro anos, portanto, chega-se ao total de 18.937
pessoas, quantitativo correspondente à população de boa parte dos municípios brasileiros. É
possível perceber um aumento continuado nos mencionados anos, demonstrando que o
39 Os dados de 2015 e 2016 são dos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; os de 2017 e 2018 são
do G1 e obedecem o mesmo padrão metodológico
173
fenômeno não tende a arrefecer, superando em muito a quantidade de mortes em conflitos
armados ocorridos no mundo, recentemente.
O número de mortes produzido pelo aparato repressivo estatal conduz à absurda média
de uma morte a cada 85 minutos no ano de 2018. Considerando-se que o total de mortes
violentas no País chegou a 51.589 em 2018 (ESPECIAIS G1, 2019b), percebe-se que
praticamente 12% foram praticadas pelo Estado. Ademais, o crescimento de 2017 a 2018 vai
na contramão do índice de mortes violentas no Brasil, que experimentou uma queda de 13%
em 2017 e 2018 (G1, 2019). Não menos relevantes são os números de mortes de agentes da
segurança pública no Brasil, embora se verifique um nítido viés de queda. Em 2017 foram
374, enquanto em 2018 se registraram 307 (redução de 18%) (G1, 2019).
No que diz respeito às mortes ocorridas no interior de estabelecimentos prisionais ou de
internação de adolescentes em conflito com a lei, a invisibilização é ainda maior. Espaços
impermeáveis à inspeção pública por excelência, os cárceres convertem-se em locais perfeitos
para a eliminação física de indesejáveis, principalmente porque existe o álibi ideal de que tais
mortes ocorreriam, em sua maioria, por suicídio ou praticada por outros internos, em brigas de
facções. Uma vez estabelecidas previamente as explicações oficiais, acriticamente publicadas,
não há maior problematização ou investigação sobre as reais causas das mortes. Isso quando
não ocorre a pura e simples desconsideração da morte, quando o preso, o que não é raro, não
tem membros familiares ou amigos que o reclamem, além de se encontrarem fora do raio de
ação e atenção de entidades de direitos humanos e – o que é também muito grave - dos seus
defensores.
Registre-se, por oportuno, o fato de que o fenômeno das “mortes institucionais” não
deve ser analisado por meio de uma parcialização do discurso, no sentido de minimizar a
gravidade do igualmente alto número de passamentos de agentes das forças de segurança
(como já mostrando em números). Na opinião de Zaffaroni (2016, p. 129), tal proceder apenas
reforça o discurso bélico corrente na constituição social da realidade, significando, tão-
somente, uma inversão do objeto do discurso, que sempre continua sendo o falso discurso de
“guerra”, cuja nota refalsada é precisamente o fato de que não há uma guerra, pois ambos -
funcionários e não funcionários - são vítimas do sistema penal (um dos modi operandi de
exercício de poder) e que todos são alvos de violações ao direito humano à vida.
174
Importante é considerar, como o faz Zaffaroni (2016, p. 159), que a maior parte dos
policiais é recrutada dos mesmos setores humildes da população onde estão os mortos
institucionais e os criminalizados, devendo transitar e habitar as zonas de seus “inimigos” na
guerra fabricada, correndo semelhantemente os riscos a que estão sujeitos quaisquer
habitantes dessas zonas, com o agravante de ser vítima de homicídio, por vingança ou medo,
caso seja descoberta a sua condição de policial. De fato, policiais saem de suas casas
diuturnamente com a árdua e imprecisa missão imposta de combater inimigos públicos
constituídos e que, invariavelmente, pertencem à mesma classe social de onde provêm. Não
raramente, são obrigados a intervir em situações nas quais estão em evidente inferioridade de
armas, sem condições de avaliar adequadamente como agir, precisando decidir em frações de
segundos sobre o uso de equipamentos letais, em relação aos quais nem sempre foram
adequadamente treinados, além de sujeitos à execração em caso de erros graves. Expõem suas
vidas (e a de sua família do mesmo jeito), a maioria deles imbuída do sentimento de buscar a
paz social almejada, mas que, ao contrário, resta cada vez mais distante pelo discurso e
práticas permanentes de guerra, aos quais, muitas vezes, inconscientemente, aderem. São
condições que se combinam para incrementar o fenômeno das mortes anunciadas, dentre as
quais figuram, também, embora em menor proporção, as de agentes da segurança pública.
2.4.2 Tortura
Como historia o sociólogo Oliveira (2014, p. 462), a tortura acompanha a própria
experiência humana, abrangendo desde um antropoide atormentando um inimigo até negros
da África do Sul amarrando um pneu em chamas no pescoço de um delator, na época do
apartheid, ou as atrocidades do nazismo e do comunismo, e do anticomunismo na América
Latina. No Brasil, dada a persistência de uma estrutura social escravagista, como já aludido
em várias oportunidades neste estudo40, é fácil perceber a continuidade dos castigos físicos
aplicados pelos capitães-do-mato sobre os negros escravos insubordinados ou fugitivos e os
sofrimentos aplicados pelos policiais, ainda hoje, sem maiores consequências, sobre qualquer
marginal pobre, o que acentua a certeza de que a abolição da tortura em terras brasileiras é
apenas de fachada, ou somente válida para certos setores da sociedade, enquanto persiste em
relação às classes subalternas (OLIVEIRA, 2014, p. 466-467).
Os consensos internacionais definidores de tal prática tardaram muito a se estabelecer.
Apesar de, desde o século XVIII, com o pensamento iluminista, haver fortes argumentos 40 Ver, sobre o assunto, a subseção 2.2 desta tese: Seletividade penal no Brasil.
175
contra a tortura41, seu conceito somente foi delineado pela Assembleia Geral da ONU em
1984, funcionando, desde então, como verdadeiro guia a orientar as diversas ordens jurídicas
nacionais que, com a mesma veemência, condenam qualquer modalidade de tratamento
desumano ou degradante. Com efeito, define a ONU no art. 1º da Convenção contra a tortura
e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adotada pela Resolução nº
39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984:
Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa, com o fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões, de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido, de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou qualquer outra pessoa no exercício de função pública, ou por sua instigação, ou com seu consentimento e aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.
No mesmo sentido opera a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura,
cujo art. 2 reza:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo. (OEA, 1985).
Hoje a tortura é absolutamente proibida no Direito Internacional, não havendo
possibilidade de sua utilização lícita em nenhuma circunstância, por ser uma negação dos
propósitos da Carta das Nações Unidas e uma violação à DUDH (FOLEY, 2013, p. 39).
Promulgada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, a DUDH reza: “[...] ninguém será
submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (ONU,
1948). De igual modo, dispõe o art. 7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
(PIDCP), segundo o qual “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou
tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido sobretudo, submeter uma pessoa,
sem seu livre consentimento, a experiências médias ou cientificas” (ONU, 1966).
A CADH, em seu art. 5º, que trata do direito à integridade pessoal, exprime: 41 Ver, por todos, BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Silene Cardoso. São Paulo: Ícone, 2006.
176
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. (OEA, 1969).
Na ordem jurídica brasileira, o inciso III do art. 5º. da CF/88, buscando inspiração em
tais documentos internacionais, dispõe que “[...] ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988). Há norma ainda mais específica no
inciso XLIII do art. 5º, pretendendo dar tratamento austero aos praticantes desse delito,
equiparou-o a crime hediondo, localizando-o dentre os mais graves ilícitos, com a aplicação
de severo tratamento penal e processual penal42. Apesar de constituir uma norma que
necessitou de legislação infraconstitucional para uma melhor especificação, tal previsão já
mostra o posicionamento intransigente do legislador constituinte para com atos de tortura. A
lei ordinária disciplinadora deste dispositivo constitucional foi a de nº 8.072/90, de 25 de
julho de 1990, chamada de Lei dos Crimes Hediondos (BRASIL, 1990). Por meio desta,
ficaram vedados aos praticantes dos crimes nela elencados os benefícios de anistia, graça,
indulto, fiança, liberdade provisória43 e progressão de regime44 (BRASIL, 1990). Por outro
lado, as penas dos crimes nela indicados foram aumentadas. Posteriormente, em 07 de abril de
1997, foi editada lei específica para tipificação e repressão ao crime de tortura. Recebendo da
doutrina o nome de Lei de Tortura, a Lei nº 9.455/97 (BRASIL, 1997) estabeleceu as diversas
maneiras como pode se apresentar este abominável delito45.
Órgãos de monitoramento foram igualmente delineados com a finalidade específica de
prevenir, acompanhar e denunciar atos de tortura em todo o mundo, além de coordenar ações
em seu combate. Em junho de 2006, entrou em vigor o Protocolo Facultativo das Nações 42 Art. 5º, XLIII: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (BRASIL, 1988) (Grifoou-se).
43 A Lei nº 11.464, de 29 de março de 2007, modificando o regime da Lei de Crimes Hediondos, não mais veda a concessão de liberdade provisória para os praticantes destes delitos (BRASIL, 2007).
44 A Lei nº 11.464, de 29 de março de 2007, modificando o regime da Lei de Crimes Hediondos, não mais veda a concessão de progressão de regime, subordinando a concessão deste aos seguintes requisitos: cumprimento de dois quintos da pena, para criminosos primários, e três quintos da pena para criminosos reincidentes (BRASIL, 2007). Ver capítulo 1, subseção 1.2.1 (estrutura geral do sistema prisional brasileiro).
45 Para cada uma destas modalidades, a tortura recebe um epíteto: a) tortura-persecutória ou tortura prova (art. 1º, I, a - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa) (BRASIL, 1997); b) tortura-crime ou tortura-para-a-prática-de-crime (art. 1º, I, b - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa) (BRASIL, 1997) c) tortura-racismo ou tortura-discriminatória (art.1º, I, c - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental em razão de discriminação racial ou religiosa) (BRASIL, 1997); d) tortura-castigo (art. 1º, II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo) (BRASIL, 1997).
177
Unidas contra a Tortura e de outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes
(OPCAT), ratificado pelo Brasil em 2007 (ONU, 2006). Tal Protocolo cria o Subcomitê de
Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes
(SPT), bem como requer aos Estados a criação de mecanismos nacionais de prevenção, com a
finalidade de cooperação. Esses órgãos somam-se aos já existentes, como o Comitê de
Direitos Humanos, no âmbito global, e a CIDH e CorteIDH, na contextura regional.
Não é vã esta preocupação do legislador – tanto constituinte quanto infraconstitucional
– em dar tratamento específico à repressão à tortura, porquanto, infelizmente, ainda é uma
prática constante no Brasil a sua utilização como instrumento para a consecução dos mais
diversos fins, com destaque para a tortura persecutória e a tortura-castigo, normalmente
levadas a efeito contra as pessoas sob a custódia do Estado, seja em caráter provisório, seja
para cumprimento de pena privativa de liberdade46. De igual maneira, as previsões
constitucionais representam indiscutível reação ao regime autoritário anterior, que se utilizou
da tortura sistemáticamente para punir e perseguir opositores da ditadura militar instaurada.
Saliente-se, contudo, que o aparato repressivo imposto ao País em 1964, que se valia
amplamente da tortura, não foi uma invenção do regime militar, bastando, para comprovar
isso, ver os formatos utilizados, pelos senhores de escravos, como o “pau de arara”, por
exemplo (OLIVEIRA, 2014, p. 467-468)47.
A tortura continuou clandestinamente a fazer parte do trabalho policial e da rotina das
prisões, unidades de internação e manicômios, mesmo após a redemocratização, fazendo
vítimas preferenciais entre pessoas suspeitas de crimes, afrodescendentes, jovens moradores
das periferias de grandes cidades e presos (JESUS, 2010, p. 19). O mesmo ocorreu na
Argentina, como noticia Daniel Rafecas, onde, nos anos de 1980 e 1990, a tortura (e outras
práticas, como execuções e procedimentos policiais fraudados) manteve-se vigente como
mera continuação, em períodos democráticos, das mesmas técnicas que antes as agências
policiais utilizavam contra os perseguidos políticos e que passaram a ser dirigidas a outros
coletivos considerados desviados ou perigosos (RAFECAS, 2015, p. 111).
46 A Lei 9.455/97 estabelece também norma específica relacionada à repressão de crimes de tortura praticados
contra pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade. Assim dispõe o §1º do art. 1º deste diploma legal: “Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”. (BRASIL, 1997). Ademais, estabelece como causa de aumento de pena (de um sexto a um terço) o fato de ter sido o crime cometido por agente público (art. 1º, §4º, I) (BRASIL, 1997).
47 Ademais, já nas Ordenações Filipinas, que vigeram no Brasil de 1693 a 1830, constava a regulamentação do uso dos tormentos no artigo CXXXIII, do livro V.
178
O problema da maior vulnerabilidade dos pobres à violência, portanto, não é
peculiaridade brasileira e, por essa razão, foi objeto de cuidado da CIDH, que em 2016
elaborou informe sobre pobreza, pobreza extrema e direitos humanos nas Américas, deixando
assentado que:
Asimismo, la Comisión ha señalado que los adolescentes varones, que viven en situación de pobreza, pertenecientes a grupos tradicionalmente discriminados y excluidos, entre ellos los afrodescendientes y de otras minorías, están especialmente estigmatizados en estos contextos y son los que más padecen las circunstancias de la violencia y la inseguridad. (CIDH, 2016a).
No monitoramento realizado em 2016, especificamente no que se refere à situação dos
adolescentes em conflito com a lei, a Relatoria identificou a ausência de uma completa
adequação dos ordenamentos jurídicos e as práticas de todos os países da região, sem
exceção, aos patamares interamericanos e universais em matéria de justiça juvenil e às
recomendações da CIDH (CIDH, 2016a). A CIDH demonstrou específica preocupação com
as precárias condições de privação da liberdade e pelas situações de violência, tratos cruéis,
desumanos, degradantes e de tortura, dos quais teve conhecimento e que motivam
manifestações públicas de preocupação pela CIDH e a adoção de medidas cautelares,
especialmente em relação ao Brasil (CIDH, 2016a).48
São reiteradas as manifestações da ONU denunciando práticas de tortura e demais
tratamentos desumanos e degradantes, além de recomendações específicas em relatórios. Na
mais recente incursão, em novembro de 2016, o representante regional para América do Sul
do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), Amerigo Incalcaterra,
afirmou que a impunidade em casos de tortura praticados por agentes públicos contra presos
se tornou regra – e não exceção – no sistema penitenciário brasileiro (ONU, 2017a).
Especialistas do Subcomitê sobre a Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos e Degradantes (SPT) das Nações Unidas visitaram 22 locais de detenção
no Rio de Janeiro, Manaus, Recife e Brasília de 19 e 30 de outubro de 2015, produzindo um
relatório que foi entregue às autoridades brasileiras em 25 de novembro de 2016, no qual
citaram frequente ocorrência de tortura e maus-tratos nas prisões, superlotação e controle das
48 CIDH, comunicado de prensa, CIDH condena hechos de violencia en centros de detención en Pernambuco,
Brasil, 23 de noviembre 2016. CIDH, medida cautelar No. 302-15, Asunto adolescentes privados de libertad en el Centro de Atención Socioeducativo del Adolescente (CASA), de 21 de julio 2016; CIDH, medida cautelar No. 60-15 Adolescentes privados de libertad en centros de atención socioeducativa de internación masculina en el estado Ceará, Brasil, de 31 de diciembre de 2015 la cual sigue vigente al 31 de diciembre de 2016. CIDH, comunicado de prensa al finalizar el 160 periodo extraordinario de sesiones, CIDH concluye el 160º Período de Sesiones, 19 diciembre 2016.
179
unidades penitenciárias por facções criminosas com a permissão tácita do Estado (ONU,
2017b).
Segundo o documento, que reitera muitos aspectos de outro relatório, de 2012,
recomenda-se que: as autoridades brasileiras redobrem seus esforços no combate aos maus-
tratos, implementando um sistema de investigação que combata a impunidade e promova a
ética no treinamento de funcionários das penitenciárias com ênfase em direitos humanos; a
implementação imediata de procedimentos internos para garantir investigações consistentes
de acusações de tortura e maus-tratos envolvendo forças policiais, medidas disciplinares
apropriadas ou processo criminal quando as investigações revelarem que tais atos foram
cometidos (ONU, 2017b). De acordo com o relatório, a tortura e os maus-tratos cometidos por
policiais não são detectados por funcionários do Instituto Médico Legal (IML), onde presos e
detidos são examinados para verificar sinais de tortura (exames realizados de maneira
superficial e ineficaz, e os presos não são questionados sobre a causa de seus ferimentos ou a
maneira com a qual são tratados pelos policiais que os prenderam), principalmente em razão
da falta de independência dos IMLs que, em muitos Estados, são subordinados às autoridades
administrativas da polícia ou a secretarias públicas de segurança (ONU, 2017 b).
A necessidade de intervenção de organismos internacionais de proteção dos direitos
humanos mostra que o Estado brasileiro continua mantendo na impunidade os casos de tortura
praticados por agentes públicos, a despeito do elevado número de denúncias formuladas
rotineiramente pelas entidades da sociedade civil, comprovadas pelos órgãos de
monitoramento nacionais e internacionais. Como identifica Maria Gorete de Jesus, os casos
de tortura não chegam ao conhecimento público e quase nunca são investigados, e, quando o
são, as conclusões dos órgãos de persecução tendem a declarar que a agressão não constitui
crime de tortura (principalmente quando atinge presos), exceto quando tais fatos são
acompanhados por entidades de direitos humanos, ou quando atingem segmentos sociais de
grande visibilidade (JESUS, 2010, p. 36).
Isso pode indicar que, “[...] no momento do julgamento não se problematiza o ato
criminoso da tortura contra um ser humano, mas se este humano é titular de um direito, se ele
é considerado um mebro da comunidade, de um mundo comum em que as pessoas são vistas
como iguais e como cidadãs” (JESUS, 2010, p. 52). O aparato repressivo estatal, tão pródigo
em abater-se ferozmente sobre os infratores da lei penal, o faz de modo bastante tímido
quando os réus são torturadores, principalmente se fazem parte desse aparato, voltando a
180
sanha persecutória, na realidade, contra aqueles que deveria proteger na oportunidade: aqueles
que são submetidos aos tormentos.
Como exemplo, menciona-se o Relatório Final da Campanha Nacional Permanente de
Combate à Tortura e à Impunidade, que apontou a resistência do Ministério Público em
receber as denúncias fornecidas pelas centrais de denúncias e dar prosseguimento às
investigações como sendo o principal obstáculo para o sucesso da campanha (CEJIL, 2004, p.
17). Tal relatório foi elaborado com a finalidade de verificar a implementação das
recomendações feitas pelo relator das Nações Unidas sobre Tortura, na época, sir Nigel
Rodley, que, em visita ao Brasil, identificou a prática “sistemática e generalizada” da tortura
em Brasilía e em cinco capitais de estados brasileiros (CEJIL, 2004, p. 7).
Há que se agregar ainda as graves dificuldades brasileiras no que concerne ao respeito à
memória e verdade em relação ao período ditatorial, que legou a impunidade dos torturadores
como mau exemplo para a sociedade, fruto não somente da Lei de Anistia de 1979, mas,
principalmente, também, das sistemáticas negativas da existência de tais práticas,
constituindo-se um discurso que sequer é seriamente problematizado, como ocorreu, por
exemplo, em vários países vizinhos da América do Sul. Essa atitude brasileira de “apagar” os
crimes cometidos pelo Estado como sustentáculos do regime militar, sufragada pelo STF ao
considerar constitucional a Lei de Anistia, mereceu condenação na CorteIDH, no caso Gomes
Lund vs Brasil49.
Mesmo na Argentina, que tem histórico recente de persecução e condenação de autores
de crimes de tortura durante o regime ditatorial, Rafecas (2015, p. 409) demonstrou, em densa
pesquisa, baseada em estatísticas e repertórios jurisprudenciais analisados sistemáticamente,
49 Entre as disposições da CorteIDH, é possível ler, entre os pontos resolutivos: 3. As disposições da Lei de
Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil; (...) 5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da 114 mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma (CORTEIDH, 2010b).
181
“[...] las dificultades que evidencia el Estado argentino cuando se trata de criminalizar este
tipo de comportamentos ilícitos cometidos por agentes estatales”.
No que diz respeito ao ambiente carcerário, este constitui território ainda mais sensível
no que diz respeito a aspectos relacionados a tortura e demais tratamentos desumanos ou
degradantes. Isso porque, como já estudado, historicamente, o cárcere foi utilizado como
destino preferencial daqueles que “merecem” ser supliciados, assim como se constitui no
ambiente perfeito, dada a sua invisibilidade, para que a insidiosidade característica dos
tormentos encontre seu ambiente mais propício para proliferar. Por essas razões, as normas de
direitos humanos e fundamentais preveem proteção específica (ainda que redundante) contra a
tortura e demais tratamentos desumanos ou degradantes que vitimam aqueles que estão
privados de liberdade. Assim, o PIDCP estabelece em seu art. 10 (1): “Toda pessoa privada de
sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa
humana”. (ONU, 1966). De igual modo, e sendo ainda mais específica, a CF/88 estatui em
seu art. 5º, XLIX: “[...] é assegurado aos presos o repeito à integridade física e moral” (sic).
(BRASIL, 1988). Sobra estabelecido, portanto, um acabouço normativo que deve ser seguido
de preocupações institucionais de atenção reforçada e especializada em relação à tortura no
cárcere.
Levando-se em consideração as condições dos estabelecimentos prisionais brasileiros,
mormente no tocante a superlotação, condições de salubridade e desrespeito aos mais básicos
direitos humanos, não há como escapar à constatação de que sua existência configura
indiscutível atentado à vedação constitucional do tratamento desumano ou degradante (art. 5º,
III, CF/88), entendido como aquele aviltante, humilhante, restritivo da dignidade humana50.
Assim, mesmo sem a específica análise da utilização da força ou de outros elementos para
causar intenso sofrimento físico e mental, o próprio sistema, da maneira como existe,
possibilita que a maioria dos presos brasileiros esteja em permanente condição de vítimas de
tortura. Assim, utilizando-se analogicamente da figura do “estado de coisas
inconstitucional”51, pode-se concluir que o sistema carcerário brasileiro constitui um “estado
de coisas torturante”, na medida em que, sistemática e generalizadamente, pela própria
maneira de apresentação, produz e normaliza tratamento desumano ou degradante e tortura.
50 Sobre as condições dos cárceres brasileiros e a decretação de um estado de coisas inconstitucional, ver
subseção 2.2 deste tratado. 51 O assunto é estudado específicamente no segmento 2.3 desta tese de doutoramento.
182
Centrando-se, contudo, na aplicação de tormentos físicos, cabe a pergunta: qual o grau
de legitimidade da prática de violências físicas contra presos comuns? É corrente afirmar-se
que é o caso de uma ação legítima, profundamente aceita na consciência social, ao ponto de se
manter intocada ao correr dos anos, na vigência de regimes relativamente democráticos ou
quando vigoram regimes autoritários (FAUSTO, 2014, p. 183). Some-se a isso o fato de que
há certa aceitação de tais práticas sob o pretexto de conter rebeliões e evitar fugas, quando a
força estatal costuma se abater de modo tão desmedido que, não raro, enseja tragédias como a
do massacre do Carandiru, conforme sobejou conhecida a execução de 111 presos pela PM de
São Paulo, em outubro de 1992.
Tais acontecimentos costumam repetir-se cotidianamente, o que é ainda mais paradoxal
em um país no qual há dezenas de instituições, cujas atribuições são, direta ou indiretamente,
ligadas à fiscalização dos cárceres. Para ficar somente nos previstos na LEP, conforme seu art.
61, são órgãos da execução penal: I - o Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária (CNPCP); II - o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho
Penitenciário; V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da
Comunidade; VIII - a Defensoria Pública (BRASIL, 1984). Todos, portanto, em maior ou
menor grau, fracassam rotundamente em sua missão de garantir a integridade física e também
moral de pessoas privadas de sua liberdade. Reforça-se, desse modo, uma das ideias
condutoras da tese ora sob relação: a dignidade humana de determinadas pessoas, de acordo
com a sua condição social, é simplesmente desconsiderada.
Na América Latina, conforme noticia Galeano (2010, p. 93), os “apremios ilegales”
aplicam-se, desde sempre, aos delinquentes comuns ou àqueles que tenham cara de
delinquente, consistindo, inclusive, em costume normalizado que a polícia arranque
confissões mediante métodos de tormento idênticos aos que as ditaduras militares aplicaram
aos presos políticos. No Brasil, “[...] boa parte da opinião pública convive pacificamente com
a ideia de que a polícia pode prender e bater em delinquentes. Por mais desconfortável que
seja admití-lo, isso integra o nosso senso comum” (OLIVEIRA, 2014, p. 467). É decantada,
ainda, a opinião sobre a sua efetividade para a obtenção de confissões e delações. Recorre-se
aos tormentos como método mais rápido e eficaz para se obter informações, de sorte que isso
é havido como metodologia natural por alguns agentes públicos e uma “técnica” investigativa
que supera as demais, visualizadas como ingênuas e frágeis. “A natureza imoral dos suplícios
desaparece aos olhos daqueles que os fazem funcionar, confundindo-se primeiro com razões
183
de Estado e depois com a qualidade do desempenho que dá às investigações” (GASPARI,
2002, p. 19-20).
Apesar do consenso social que legitima a tortura sobre determinados grupos sociais, sua
ignomínia é tão flagrante que, mesmo regimes abertamente autoritários, que desdenharam o
humanismo em relação a certos grupos de pessoas, não assumem publicamente a sua prática,
indicando que os torturadores são conscientes de que seus atos ultrapassam os limites do que
se considera admissível em uma “guerra civilizada” (OLIVEIRA, 2014, p. 468-469). Assim, a
tortura não consta como método explícito de combate ao crime, mas continua sendo utilizada
extralegal e clandestinamente, com apoio social, sob o argumento da necessidade decorrente
do aumento da criminalidade (JESUS, 2010, p. 18). A percepção de que a tortura é praticada
em defesa da sociedade, contudo, é falsa, conforme ensina Elio Gaspari (2002, p. 25), pois ela
não é instrumento da lei, mas do Estado, utilizada, em determinados momentos, contra certas
ameaças, para atingir objetivos específicos.
Pesquisas como a de Jesus (2010, p. 3352) mostram que a tortura não atinge a todos
igualitáriamente, por se basear em critérios cuja linha mestra é a distinção desde o
reconhecimento do outro como cidadão, explicando-se, assim, por que, historicamente,
sempre se abateu sobre escravos, estrangeiros, grupos raciais, étnicos e religiosos bem
definidos. A dor sobre os copos dos dominados é, por outro lado, “[...] concebida como forma
de controle, poder e ordem, além de ser considerada também uma forma de desenvolvimento
moral e social” (JESUS, 2010, p. 38).
Os defensores, por sua vez, buscam demonstrar que seus constituintes (réus de tortura)
são servidores públicos exemplares, merecedores de mais credibilidade do que a vítima, que,
por sua vez, não seria digna de confiança por possuir antecedentes criminais, por exemplo,
pondo em xeque sua versão e alegando situações de autolesão ou de lesões produzidas por
terceiros (JESUS, 2010, p. 116). Há, também, a se destacar a omissão que muitas vezes
acompanha a atuação de advogados e defensores públicos que, em sua atuação diuturna,
deparam situações com sensíveis indícios de tortura e não empregam todo o empenho
52 Mencionada pesquisa consisitiu na análise minuciosa de 57 processos criminais em tramitação em todas as
varas criminais do Fórum da Barra Funda, no Estado de São Paulo, pelo crime de tortura nos anos de 2000 a 2004, assim como os inquéritos que deram origem às ações penais. (JESUS, 2010, p. 92). Como resultado, identificou o fato de que, dos 181 agentes do Estado acusados pelo crime de tortura, 127 foram absolvidos, 21 tiveram o crime desclassificado para outro mais brando e apenas 33 foram condenados (apenas 18%). Quando os acusados eram civis (12), metade foi condenada por crime de tortura (IBIDEM, p. 98).
184
necessário para movimentar a máquina estatal no sentido de inculpar os responsáveis,
acompanhando a inércia do Ministério Público (pelas razões apontadas) e do Judiciário53.
Digna de nota, nos processos por crime de tortura, é a enorme dificuldade de se
encontrar testemunhas quando o crime é praticado pelos agentes do Estado. Há um enorme
receio de represálias, que se transforma em absoluto silêncio, quando os atos criminosos
ocorrem no interior de carceragens. Estando completamente à mercê dos torturadores,
eventuais testemunhas ou vítimas, muitas vezes sem a necessária assistência jurídica e certas
da impunidade de seus algozes, não possuem a necessária liberdade para depor, mormente
quando o inquérito é realizado na própria delegacia.
Ademais, mesmo quando o silêncio é rompido, suas versões dos fatos, malgrado ricas
em detalhes e provas, normalmente não são dignas de credibilidade perante o Judiciário, que
geralmente confere mais valor à palavra dos agentes estatais, como já aludido. “Não é mais o
crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima” (JESUS, 2010, p. 167). Como percebe
Conor Foley, os juízes brasileiros precisam ficar mais atentos às possibilidades de tortura,
pois os sucessivos relatórios da ONU demonstram que os magistrados, raramente, se
preocupam com o tratamento de detentos durante as investigações ou cumprimento de pena,
muito menos tomam providências para remediar tais situações (FOLEY, 2013, p. 94).
Destaque-se, ainda, a total ausência de responsabilização nos casos de omissão. Com
efeito, o art. 1º, §2º da Lei nº 9.455/1997 estabelece que aquele que se omite em face do crime
de tortura, quando tinha o dever de evitá-lo ou apurá-lo, incorre na pena de detenção de um a
quatro anos (BRASIL, 1997). Jesus (2010, p. 70), em sua pesquisa, não identificou nenhum
caso da citação de agentes penitenciários ou delegados como enquadrados no fato típico
apontado, em eventos nos quais há tortura de um preso por outro(s), no interior das
carceragens que estavam sob a sua vigilância. De fato, como já aludido, se, até mesmo, os
casos de ação criminosa têm como resultado, normalmente, a impunidade, com muito maior
frequência, continuam invisibilizadas as ocorrências nas quais se pratica o crime por omissão.
Nessas situações, é obrigação desses agentes públicos tomar todas as precauções para evitar
os atos de tortura e, uma vez verificados, empenhar esforços para a sua persecução criminal.
O resultado de todas essas situações, constituídas, toleradas ou inevitáveis, é apontado
por Jesus (2010, p. 81), que conclui de sua pesquisa que “[...] a punição de agentes do Estado 53 As modalidades de atuação que a Defensoria poderia assumir nessas situações são tratadas na subseção 4.1
desta tese.
185
pela prática de tortura é irrelevante, face ao pequeno número de condenações, no já reduzido
universo de casos que acabam chegando ao conhecimento dos órgãos encarregados de apurar
as agressões”. Resta, portanto, a perplexidade, ante a invisibilidade das torturas pelo consenso
social que em seu entorno se forma, com amparo no silêncio ou conivência midiáticos e
estatais, seja das instituições de persecução, seja das de defesa, que, por conveniência ou
fragilidade, confundem algozes e vítimas, protegendo aqueles e sobrecriminalizando estas.
3 DEFENSORIA PÚBLICA: FUNÇÕES FUNDAMENTAIS
3.1 A Defensoria Pública brasileira
A história constitucional brasileira é marcada por vários avanços e retrocessos
democráticos, principalmente, na previsão e efetivação de diretos. Da Carta Imperial
outorgada em 1824 à CF/88, cognominada de “Constituição Cidadã”, foram séculos de
aprofundamento das desigualdades e de uma persistente cultura de desrespeito às previsões
normativas. O legislador constituinte, então, premido por essas verdades históricas e por um
movimento crescente de oposição ao regime autoritário anterior, precisou dotar a atual Carta
de um extenso rol de direitos, escudados por garantias, cujo principal desafio era (e continua
sendo) fazer chegar a todos o exercício efetivo de direitos, principalmente valendo-se do
direito de acesso à justiça.
Obtendo status constitucional apenas em 1934, embora em uma acepção bastante
restrita ao ser identificada com o acesso ao Judiciário, a garantia fundamental de acesso à
justiça alcançou amplitude considerável em 1988, principalmente ao abranger o direito de
assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes, encartado como direito
fundamental no pródigo rol do art. 5o, além do estabelecimento de uma instituição
especialmente destinada à sua efetivação: a Defensoria Pública.
Essa instituição, cujos antecedentes remontam às atitudes assistencialistas de órgãos
criados pelos Estados com meras funções caritativas, colheu novos contornos com a CF/88,
inserida como instituição essencial à função jurisdicional do Estado e recebendo incremento
considerável em sua missão constitucional com amparo na atuação do poder constituinte
reformador, que atualiza a Constituição aos reclamos da sociedade.
Busca-se neste módulo, portanto, compreender as atuais feições da Defensoria Pública
brasileira, com suporte no conhecimento de seus antecedentes históricos, dos valores e
exigências sociais da época dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que a criou,
até a consolidação do arcabouço constitucional atual, oriundo de uma atuação ainda tímida do
186
legislador constituinte, mas ampliada consideravelmente pela intervenção do poder
constituinte reformador, ante as necessidades de enlarguecer o raio de ação institucional.
Ademais, são considerados a existência e o grau de efetividade da legislação
infraconstitucional relacionada e o público alvo da proteção da Defensoria Pública, com base
no reconhecimento das pessoas em situação de vulnerabilidade como titulares de direitos,
culminando com a verificação da atual posição dessa instituição como promotora da garantia
de acesso à justiça e dos demais direitos e garantias fundamentais.
3.1.1 A Defensoria Pública ontem e hoje
Para entender a opção brasileira pelo atual formato de acesso à justiça, é preciso
compreender quais as soluções práticas adotadas para os problemas relacionados a esse
acesso. Em estudo seminal, Cappelletti e Garth (1988, p. 35-46) lograram sistematizar três
modelos adotados pelos Estados, apontando suas vantagens e falhas:
1) sistema judicare;
2) sistema do advogado remunerado pelos cofres públicos;
3) modelos combinados.
No sistema judicare, a assistência judiciária representa um direito para todas as pessoas
que se enquadrem nos termos legais, que são, pois, assistidos por advogados particulares
pagos pelo Estado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 35). Tal sistema, apesar de ter
representado um grande avanço na amplitude do acesso à justiça, produz o inconveniente de
não atacar outros obstáculos encontrados pelos pobres (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.
38). De fato, por não possuírem uma atuação proativa, os advogados do sistema judicare não
costumam empreender orientação jurídica, nem promovem educação em direitos,
normalmente apenas aguardando que os hipossuficientes identifiquem as violações que estão
sofrendo e somente então busquem a assistência.
No modelo do advogado remunerado pelos cofres públicos, “os serviços devem ser
prestados por “escritórios de vizinhança”, atendidos por advogados pagos pelo governo e
encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe” (CAPPELLETTI;
GARTH, 1988, p. 40). Assim, esse modelo vai em direção aos pobres para ajudá-los na sua
reivindicação por direitos, criando uma categoria de advogados eficientes para atuar pelos
pobres, não se limitando a encaminhar as demandas individuais que são trazidas a eles (como
ocorre pelos advogados no judicare) (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 41).
187
Os modelos combinados buscam extrair o que há de melhor nos citados anteriormente,
além de minimizar as falhas de ambos. Cappelletti e Garth (1988, p. 43) apontam que a Suécia
e a Província de Quebec, no Canadá, como os primeiros a oferecer a escolha entre o
atendimento por advogados servidores públicos ou por causídicos particulares.
A evolução histórico-constitucional brasileira transitou por esses modelos de acesso à
justiça, até chegar ao formato atualmente vigente, inaugurado pela Constituição de 1988 e
ampliado pelo constituinte reformador, que contempla tanto o acesso ao Judiciário como as
demais dimensões do acesso à justiça, desde a tutela individual como a supraindividual.
Advirta-se, ademais, para a noção de que as constituições brasileiras anteriores à de
1988 não traziam preocupação com uma concepção ampla de acesso à justiça, limitando-se a
estabelecer o direito de acesso ao Judiciário e, assim mesmo, só desde 1934.
O acesso à justiça, com a configuração hoje verificada, somente se estabeleceu na
Constituição de 1988, abrangendo a função de proteção de todo o amplo espectro de direitos e
garantias nela estatuídos. Nas Constituições anteriores, o que há, quando muito, são
disposições de acesso ao Judiciário, como mostra a análise sequente.
A primeira Constituição Brasileira (1824), foi outorgada pelo imperador D. Pedro I e
previa uma separação de Poderes bastante peculiar, ressaltando-se a figura do Poder
Moderador, chave de toda a organização política, delegado privativamente ao Imperador,
como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente
velasse sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes
políticos, nos exatos termos do art. 98 da Carta Imperial. Como se percebe, conformava um
modelo de enorme concentração de poderes, no qual os direitos eram meras concessões da
“magnanimidade imperial” aos súditos. Assim, o acesso à justiça, como entendido hoje, ou
mesmo próximo dele, simplesmente inexistiu no Império brasileiro, porquanto fruto de um
processo histórico e político ainda não consolidado àquela altura da evolução do Brasil
(CARNEIRO, 2000, p. 36).
A segunda Constituição Brasileira e a primeira da história republicana, a de 1891, não
se reportou à assistência jurídica aos pobres, fazendo apenas alusão à plena defesa, que se
deveria realizar, em benefício do acusado, com “todos os recursos e meios essenciais a ela”,
no art. 72, §16 (GONÇALVES, 2007, p. 547).
188
Somente a terceira Constituição, a de 1934, estabeleceu o acesso dos necessitados ao
Judiciário como uma obrigação do Estado. Com efeito, em seu art. 113, nº 32, no capítulo
destinado aos direitos e garantias individuais, rezava que:
A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 32. A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.
De duração bastante curta, essa Constituição instaurou o Estado Social no Brasil, sob a
influência marcante da Constituição Alemã de 1919, uma das primeiras a reconhecer em seu
texto a necessidade de previsão de direitos sociais com vistas a minimizar as intensas
desigualdades fáticas produzidas e aprofundadas pela sociedade capitalista, até então fundada
exclusivamente em direitos de liberdade. O constitucionalismo da época primava por uma
atuação positiva do Estado, por meio de prestações jurídicas e materiais para a efetivação de
direitos sociais, afastando-se da concepção do Estado apenas absenteísta, típica da noção
meramente liberal.
A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, sob influxos do ditatorial Estado
Novo, inspirada na Constituição da Polônia e de nítida inspiração fascista, não estabelecia
qualquer direito relacionado ao acesso à justiça no diminuto rol do seu art. 122, então
destinado aos direitos e garantias individuais, muitos deles suspensos por decisão presidencial
e outros tantos sem qualquer efetividade sob o pálio de uma ditadura.
A Constituição de 1946, buscando restaurar o ambiente democrático após a deposição
de Vargas, estatuiu em seu art. 141, §35, que o Poder Público, na forma que a lei estabelecer,
concederá assistência judiciária aos necessitados. Tratava-se, como se percebe, de mera
norma programática que não logrou se estabelecer efetivamente, a não ser pelos então
existentes serviços de assistência judiciária pelos Estados-membros, compostos por
advogados remunerados pelo Erário e de nomeação livre pelos governantes da oportunidade.
De fato, não havendo previsão de instituição incumbida da prestação do serviço, prevaleceu o
entendimento de que era hipótese de competência concorrente entre os entes federativos,
tendo alguns Estados-membros, então, estabelecido órgãos oficiais específicos para prestar
assistência judiciária, enquanto outros apenas credenciaram advogados com tal finalidade
(GONÇALVES, 2008, p. 550).
189
A Constituição de 1967, apesar de surgida sob a égide da ditadura civil-militar
instaurada em 1964, estabeleceu em seu art. 150, §32, também de modo bastante lacônico,
que “[...] será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei”.
Permaneceram os serviços estaduais de assistência judiciária gratuita, com o
desenvolvimento, em alguns Estados-membros, de órgãos específicos com essa finalidade. O
que se verificava, contudo, era uma atuação nitidamente assistencialista dos serviços de
assistência judiciária, encarados como meros favores oferecidos pelos governantes aos pobres
e não propriamente como um direito apto a ser exigido.
As Constituições anteriores a 1988, como observado por Junkes (2006, p. 77), não
previam um organismo público instituído e estruturado com essa finalidade, até que surgiu a
Defensoria Pública com a promulgação da vigente Constituição54. A previsão dessa
instituição no Texto Constitucional, entretanto, não ocorreu de graciosamente, mas foi uma
imposição histórica e dos influxos dos reclamos sociais da época da sua elaboração,
subsequente a um período de duas décadas de inefetividade dos direitos fundamentais,
principalmente daquelas pessoas sem vinculações com as forças sociais dominantes.
Importante pesquisa elaborada por Leôncio Martins Rodrigues, intitulada Quem é quem
na constituinte: uma análise sócio-política dos partidos e deputados permite visualizar um
quadro aproximado das forças políticas dominantes na Assembleia Constituinte eleita em
1986. A obra, está dividida em duas partes: a primeira compreende a apresentação dos
resultados de uma pesquisa sobre as origens partidárias, formação profissional, perfil social e
orientações políticas dos deputados federais; a segunda parte abrange um perfil biográfico dos
deputados constituintes, efetuado com o auxílio das informações contidas nos questionários e
outras fontes (RODRIGUES, 1987).
Em conclusão, Leôncio Rodrigues afirma que “as facções de centro-esquerda
conquistaram mais da metade dos lugares, sendo as facções de direita formalmente
inexistentes” (RODRIGUES, 1987, p. 128). Por outro lado, apontou que 54 De fato, no Ceará, por exemplo, como noticia Carlos Augusto Andrade (2005, p. 87) sobre a assistência
judiciária cearense, por meio do Decreto nº 1.560, de 10 de maio de 1935, foi criado o órgão “Assistência Judiciária do Estado”, pelo então interventor do Estado, Coronel Felippe Moreira Lima. Este órgão era subordinado à “Secretaria dos Negócios do Interior e da Justiça”, com suas atribuições também regulamentadas pelas Leis: nº 213, de 1º de junho de 1948; nº 467, de 05 de janeiro de 1949 e nº 3.609, de 31 de maio de 1957. Esta última trouxe inovação estadual na nomenclatura dos cargos de “Advogados de Ofício”. A estrutura da “Assistência Judiciária do Estado” foi modificada para “Departamento de Assistência Judiciária aos Necessitados”, pelo Decreto nº 12.594, de 15 de dezembro de 1977, que, por sua vez, foi transformado pela Lei nº 10.704, de 13 de agosto de 1982, em “Coordenadoria-Geral de Assistência Judiciária do Estado”, a CAJE, integrante da então Secretaria do Interior e Justiça do Estado do Ceará.
190
a Constituição que nasceria sofreria importantes influências: a) ação de forças externas, desde movimentos sociais, “pressões de massa” da esquerda, lobbies variados, até a movimentação (ou ameaça de movimentação) de alguns Urutus; b) habilidade e experiência pessoal de alguns líderes de algumas facções; c) de centros formadores de opinião pública e de legitimação de valores, citando a CNBB, OAB e outras entidades associativas como dotadas de ampla legitimidade, representativas, ademais, de correntes de esquerda ou centro-esquerda. (RODRIGUES, 1987, p. 128).
Analisando-se o espectro político apresentado na pesquisa citada, de nítida oposição ao
regime autoritário anterior e com representatividade considerável dos setores menos
favorecidos da população, embora não se desconsidere o poderio econômico de entidades
conservadoras igualmente representadas, pode-se concluir que o ambiente na Assembleia
Constituinte era nitidamente favorável à previsão de direitos e também de garantias de sua
efetividade, pautas dos movimentos de esquerda e de centro-esquerda. Silva (2001, p. 30)
lembra que
o amplo espectro de movimentos sociais que haviam emergido no cenário político nos anos de 1970 e 1980, passando a interagir com partidos políticos, sindicatos ONGs e Igreja Católica, defendendo direitos humanos e sendo portadores de reivindicações por emprego, terra, habitação, saúde, transporte, educação, contribuíram para o debate em torno da necessidade de mudanças legislativas e institucionais que garantissem novos direitos individuais e coletivos, sobretudo para a população marginalizada e para as minorias.
Com efeito, Cardoso (2014, p. 37) acrescenta que a participação popular constituiu um
instrumento para que as desigualdades aflorassem como pontos prioritários e possíveis
soluções coletivas para a efetivação da Justiça, superando-se os entraves linguísticos e
operacionais vinculados ao exercício do Direito.
Barroso (1993, p. 70) recorda, por oportuno, que o Regimento Interno da Constituinte
oficializou, em seu art. 24, a possibilidade de apresentação de proposta ao Projeto de
Constituição subscrito por 30 mil ou mais eleitores brasileiros, em listas organizadas por, no
mínimo, três entidades associativas, legalmente constituídas e que efetivamente foram
apresentadas 122 emendas populares. O ambiente político era favorável às exigências por
maior participação popular, represadas pelas duas décadas de alijamento de exercício do
poder político pelo povo. O resultado dessa “euforia constituinte” saudável e inevitável após
tantos anos de exclusão da sociedade civil, no dizer de Barroso (2007, p. 225), levaram a uma
Carta que, mais do que analítica, é prolixa e corporativa.
Efetivamente, como identifica Silva (2001, p. 29),
191
A reconstrução das instituições democráticas do país nos anos de 1980 tem na elaboração de uma nova Constituição o seu principal momento. Durante a Assembleia Constituinte, em torno da qual se aglutinaram as diferentes forças políticas do país, demandas pelo reconhecimento de novos direitos e pela introdução de mecanismos de participação da sociedade civil nas decisões públicas foram defendidas pelas forças políticas, que fizeram oposição ao regime autoritário, e pela sociedade civil organizada.
Dessa combinação de fatores surgiu uma Constituição bastante pródiga na previsão de
direitos fundamentais. Luís Roberto Barroso anota que “a Carta de 1988 tem a virtude
suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira e ter contribuído decisivamente para
a consolidação do mais longo período de estabilidade política da história do país”
(BARROSO, 2007, p. 224-225). Conclui, ademais, que “[...] por vício e por virtude,
entretanto, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de interesses legítimos de
trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos,
reservas de mercado e privilégios corporativos” (BARROSO, 2007, p.225).
Por seu turno, defende Cardoso (2014, p. 35) o argumento seguinte:
A perspectiva de restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil se fez acompanhar de novos preceitos estruturantes, como a participação social e a valorização de mecanismos de exercício direto da vontade popular na administração pública. Pele primeira vez esses princípios se tornam eixos fundamentais de constituição das instituições públicas, como são os casos do artigo 1º, parágrafo único, e do artigo 37, §3o, I a III da CF.
Sadek (2014, p. 20) considera que:
a Constituição de 1988 é, sem dúvida, um marco na história dos direitos tanto individuais como coletivos e uma baliza no processo de assistência jurídica no país. Direitos individuais e supra-individuais foram reconhecidos e instituições foram arquitetadas para a salvaguarda desses direitos. O rol de direitos constitucionalizados é amplo, abrangendo direitos de primeira, de segunda e de terceira geração. Do ponto de vista dos direitos, o Brasil foi alçado a posição de destaque no concerto de nações democráticas. Em poucas palavras, a Constituição de 1988 formalizou a institucionalidade democrática, baseada em princípios de igualdade e de liberdade.
É forçoso reconhecer, entretanto, que a simples previsão constitucional não é suficiente
para corrigir séculos de exclusão social e baixíssima participação política. Um rol extenso de
direitos fundamentais, dentre os quais a indeclinabilidade da prestação jurisdicional,
significando um Poder Judiciário que não se furta a apreciar lesão ou ameaça ao Direito,
enseja, também, muitas frustrações, principalmente pela incapacidade estatal de efetivar as
promessas firmadas no texto constitucional. Ademais, com a Constituição de 1988 e a
consagração do princípio da dignidade humana como vértice axiológico de seu texto, entre os
princípios fundamentais, retoma-se a juridicidade das relações sociais, transformando o
192
sistema de justiça em um espaço a ser apropriado pela sociedade para a efetivação de direitos
previstos nas normas, mas constantemente negados na realidade cotidiana (RAMOS;
RIBEIRO, 2010, p. 55).
“Essa mudança impacta diretamente o sistema de justiça, uma vez que a ausência de
políticas sociais ou a execução precária destas passam a ser tema cada vez mais recorrente de
processos judiciais” (CARDOSO, 2014, p. 34-35). Por outro lado, a descoberta do Judiciário
como espaço de luta acontecia em um momento em que a esquerda brasileira e determinados
grupos de oposição ao regime militar começavam a valorizar a esfera institucional,
inaugurando práticas de intervenção e participação na administração pública.
A socióloga Soares (2009, p. 413) enxerga, ainda, que, com o processo de abertura
política do Brasil nos anos de 1980 e a ratificação de importantes tratados de direitos
humanos, surgiu a necessidade de uma instituição pública habilitada a promover medidas
judiciais e extrajudiciais, exigindo do Estado tanto a abstenção de atos violadores dos direitos
humanos, como também ações positivas voltadas para a promoção de políticas públicas
sustentáveis e inclusivas, afinadas com as crescentes reivindicações dos movimentos
populares.
Era esse o contexto sociopolítico que envolvia o País nos anos que precederam a feitura
da Constituição de 1988, possibilitando que o texto constitucional, “[...] diferentemente do
que ocorria anteriormente, e mesmo na maior parte dos países ocidentais, reservasse espaço
para a Defensoria Pública e determinasse para esta instituição um papel extremamente
relevante” (SADEK, 2014, p. 19).
O caminho, entretanto, na Assembleia Nacional Constituinte, para a inserção da
Defensoria Pública – de modo inédito em um texto constitucional brasileiro - como instituição
destinada ao acesso à justiça por parte dos vulneráveis, foi cercado de muitos percalços.
Conforme historia Martins (2012, p. 47), dentre as várias subcomissões, naquela destinada ao
Judiciário e ao Ministério Público inicia-se “o debate constituinte pela inserção de um órgão,
cuja função seria o acesso integral à justiça, tendo vários constituintes manifestado a
necessidade de criação de um órgão técnico especifico para a abertura do Judiciário aos
carentes de recursos” (MARTINS, 2012, p. 47). Recorde-se, como já mencionado, que ela já
existia no nível infraconstitucional, em várias unidades federativas do País, mas não tinha
logrado ser inserida em nenhum texto constitucional brasileiro.
193
Grupos conservadores de direita e centro-direita, muitos oriundos da antiga ARENA e a
voz do empresariado na Constituinte, aglutinando-se sob o epíteto de “Centrão”, realizaram
diversas manobras para modificar o modo de elaboração da Constituição que vinha sendo
levada a efeito a partir de comissões que, em sua maioria, eram compostas por representantes
da esquerda e centro-esquerda. Martins (2012, p. 49), com espeque na doutrina de José
Reinaldo Lima Lopes, relata que a exclusão da Defensoria Pública decorrente dos objetivos
daquele grupo foi contornada pela tentativa de reaproximação dos autores do projeto
sistematizado e as do “Centrão”, com vista à aprovação de texto-base desse, mas com
acréscimos de emendas daqueles (LOPES, 2008, p. 137).
Este entendimento e o fortalecimento do presidente da Assembleia, Ulisses Guimarães,
propiciaram ao Congresso Constitucional começar a escrever a Constituição. Portanto, a
manutenção da Defensoria Pública no texto constitucional decorreu de consensos entre as
propostas do “Centrão” e a modificação posterior da proposta de seu texto-base, chancelada
pelo relator, “[...] que se identificava com a essência da orientação política plasmada no
projeto de sistematização” (LOPES, 2008, p. 150), o que “[...] beneficiou a aprovação da
emenda da Defensoria Pública por mais da metade dos parlamentares, indicando uma
consensualidade na sua importância” (MARTINS, 2012, p. 49).
Assim, como percebeu Weis (2014, p. 153),
antes mesmo da Organização dos Estados Americanos ter fixado a noção de que os Estados devem desenvolver serviços públicos e gratuitos de assistência legal, o Brasil cuidou de estabelecer uma instituição pública com a finalidade de garantir o acesso à justiça dos mais vulneráveis, de certa maneira aprimorando o que fora estabelecido em Cartas anteriores.
A redação original do caput do artigo 134 da CF estabelecia: “A Defensoria Pública é
instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (BRASIL, 1988).
Ademais, o parágrafo único destinava à Lei Complementar (LC) o papel de organizar a DPU
e do Distrito Federal e dos Territórios e prescrevia normas gerais para sua organização nos
Estados, além de estabelecer as prerrogativas de inamovibilidade e vedando o exercício da
advocacia fora das atribuições institucionais.
Para José Augusto Garcia de Sousa, o texto constitucional que nasceu da ação do poder
constituinte originário conferiu ao legislador infraconstitucional e ao intérprete uma ampla
margem de manobra para constituir o perfil institucional mais adequado aos reclamos da
194
época, isso porque a Defensoria Pública constitucional está assentada em cláusulas bastante
abertas, como “essencial”, “necessitados”, assistência jurídica “integral” e “insuficiência de
recursos” (SOUSA, 2010, p. 168). O passar dos anos, contudo, apenas deixou inequívoca a
necessidade de alargar o raio de ação da Defensoria Pública, armando-a de instrumentos mais
adequados, mormente a configuração de sua autonomia, para poder efetivamente se aproximar
de sua missão constitucional: servir de porta de acesso à cidadania e à justiça.
Esse evoluir da história constitucional brasileira consolidou a opção pelo regime
democrático, sedimentado pelo exercício da Constituição de 1988 e pelo fortalecimento das
instituições. Essa combinação de fatores contribuiu para um incremento considerável de
acesso ao Judiciário. Sadek (2014, p. 25) oferece dados relevantes sobre o assunto: em 1990,
havia 5,1 milhões de processos na primeira instância; em 2011, eram 26 milhões. Em 2009,
eram 86,6 milhões de processos em tramitação; em 2011, eram 90 milhões. Em 2003, havia
um processo para cada 10,2 habitantes; em 2008, um para cada três habitantes e em 2011 era
um para cada dois.
Tal não traduz, ainda, uma democratização do acesso ao Judiciário, pois as demandas
concentram-se em poucos litigantes: Estado, bancos e empresas de telefonia. Tais fatores
demonstram uma gigantesca demanda de processos abarrotando a estrutura do Judiciário,
tendo quase sempre os mesmos protagonistas na lide, mas também desvelam uma
litigiosidade contida altíssima, composta por pessoas que, embora vilipendiadas em seus
direitos, não buscam o Poder Judiciário.
Como percebe Sadek (2014, p. 25), “o quadro é ainda agravado por indivíduos que
sequer conhecem seus direitos e nem chegam a demandar”. Somando a todo essa preocupante
situação, é possível acrescentar “que a falta de informação da população mais carente e sua
relativa inexperiência, diante das mais complexas relações jurídicas que vêm se
desenvolvendo na atualidade, acaba elevando ainda mais essa vulnerabilidade” (RÉ, 2014, p.
96).
Nessa perspectiva, percebeu-se a necessidade de fortalecimento e ampliação do raio de
ação da instituição pensada para garantir o acesso à justiça dos hipossuficientes. Como não foi
possível, à época da Constituinte, pelas razões já apontadas, estruturar a Defensoria Pública
com as mesmas prerrogativas, autonomia e poder institucional do Ministério Público, coube
ao poder constituinte reformador levar a efeito essa evolução.
195
A primeira intervenção reformadora no texto constitucional ocorreu na contextura da
Emenda Constitucional (EC) 45, de 2004 (EC nº 45/2004), conhecida como Reforma do
Judiciário55 (BRASIL, 2004). Na senda democratizante dessa reforma, o art. 134 da CF foi
acrescido de um parágrafo, numerado como §2o, por meio do qual se conferiu às defensoria
públicas estaduais autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta
orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e
subordinação ao disposto no art. 99, § 2º (BRASIL, 2004). A importância desse dispositivo
pode ser traduzida pela doutrina de Ramos e Ribeiro (2010, p. 39), para quem,
A assistência jurídica no Estado Democrático de Direito deve estar conectada à complexidade social que gera novas demandas que permeiam o direito contemporâneo. Esse é o caso, por exemplo, de demandas em que o próprio Estado é o principal “adversário” no âmbito judiciário, como o direito à saúde, à educação à previdência social, à assistência social, à moradia, parcela do direito do consumidor, entre outros ramos do direito. Em tais demandas fica evidenciada a necessidade de independência funcional e autonomia administrativa das Defensorias Públicas. Todo discurso sobre cidadania e justiça social deve ter como cerne a realização efetiva da assistência jurídica.
Apesar da importância da autonomia da Defensoria Pública, e da clareza do texto
constitucional, muitos Estados permaneceram vinculando-a ao Poder Executivo, sendo
necessária a intervenção do STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade,
para reafirmar a insubordinação dessa instituição às Secretarias de Estado56.
Estranhamente a EC 45/2004 não atribuiu autonomia à DPU e do Distrito Federal,
restando perdida nos meandros da tramitação da proposta de emenda que a ela deu origem.
Tal incongruência somente foi sanada quase nove anos depois, em 2013, com a inclusão do
55 Importante intervenção da Emenda Constitucional n. 45, a demonstrar seu caráter de democratização do Poder
Judiciário foi o estabelecimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Judiciário, bem como do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, de composição híbrida, por abranger membros de outras instituições e mesmo da sociedade civil, o que já havia sido proposto na Constituinte, mas que não logrou impor-se naquela quadra histórica. De fato, como noticia Magdaleno Barroso (1993, p. 360-361) a criação do CNJ foi proposta pela OAB para fiscalizar o desempenho do Poder Judiciário e do Ministério Público e rejeitada após receber forte oposição de todos os presidentes de Tribunais de Justiça dos Estados.
56 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. LEIS DELEGADAS N. 112 E 117, AMBAS DE 2007. Lei Delegada n. 112/2007, art. 26, inc. I, alínea “h”: Defensoria Pública de Minas Gerais órgão integrante do Poder Executivo mineiro. 2. Lei Delegada n. 117/2007, art. 10; expressão 'e a Defensoria Pública', instituição subordinada ao Governador do Estado de Minas Gerais, integrando a Secretaria de Estado de Defesa Social. 3. O art. 134, §2o, da Constituição da República, é norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata. 4. A Defensoria Pública dos Estados tem autonomia funcional e administrativa, incabível relação de subordinação a qualquer Secretaria de Estado. Precedente. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 3965, Rel. Min. Cármem Lúcia , Tribunal Pleno, julgado em 07/03/2012) (BRASIL, 2012). No mesmo sentido foram os julgamentos das ADIs 3.569PE(Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Tribunal Pleno, julgado em 2.4.2007) (BRASIL 2007), 4.056/MA (Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Tribunal Pleno, julgado em 26.5.2009) BRASIL, 2009).
196
§3o ao art. 134 (BRASIL, 2013), determinando que se aplica às Defensorias Públicas da
União e do Distrito Federal o disposto no §2o.
Somente em 2014, por meio da EC nº 80/2014, a Defensoria Pública foi dotada de
instrumentos mais adequados ao cumprimento de sua missão na defesa dos vulneráveis.
Como notam Ragazzi e Silva (2104, p. 201), houve uma verdadeira revolução no perfil
institucional da Defensoria Pública que, saindo da condição de mera prestadora de orientação
jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, para transformar-se em instituição de
expressão e instrumento do regime democrático, incumbindo-lhe, fundamentalmente, a
orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de modo integral e gratuito, aos
necessitados, consoante o art. 5o, LXXIV da CF.
Outro avanço produzido pela EC n. 80/2014 foi a previsão de simetria de tratamento
conferida aos membros do Judiciário, no que couber dos artigos 93 e 96, II da CF, com a
inclusão do §4o no art. 134 (BRASIL, 2014). Assim, a CF passou a reconhecer a essa
instituição essencial à função jurisdicional do Estado, bem como a seus membros, uma série
de prerrogativas que, de um lado, representam um reforço ao exercício da autonomia
institucional, e do outro arma os defensores públicos de instrumentos para o efetivo
desempenho de seus misteres.
Por fim, mas não menos importante, a EC nº 80/2014 estabeleceu, em seu art. 2º, que o
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passaria a vigorar acrescido do art. 98,
segundo o qual: “O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional
à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população” (BRASIL,
2014). Por outro lado, o § 1º do citado artigo reza que: “No prazo de 8 (oito) anos, a União, os
Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades
jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo” (BRASIL, 2014)e o § 2º estatui
que; “Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores
públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão
social e adensamento populacional” (BRASIL, 2014).
Essa norma é de importância vital para a efetivação do direito de acesso à justiça,
mormente dos mais pobres, ao estabelecer uma obrigação estatal, sujeita a cumprimento de
prazo, para capilarização da Defensoria Pública, fazendo-a chegar de fato àqueles que dela
197
necessitam para a proteção e promoção de seus direitos, produzindo, também, a
democratização do acesso ao Judiciário. “Por meio da abertura institucional das Defensorias
passa ser possível uma compreensão mais exata do quadro de exclusão da ordem jurídica que
precisa ser superado, do que precisa ser priorizado” (CARDOSO, 2014, p. 37). Desse modo,
“o dispositivo em questão estabelece um dever constitucional do Estado de ampliação
progressiva do serviço público de assistência jurídica prestado pela Defensoria Pública,
focando tal avanço institucional nas regiões com maior exclusão social” (FENSTERSEIFER,
2017, p. 101).
O fato é que a criação da Defensoria Pública no Brasil só pode ser realmente compreendida como um órgão público destinado à realização dos direitos humanos, e não só a oferecer profissionais destinados a substituir o advogado particular para a atuação em casos de litígios interindividuais de baixa complexidade e sem qualquer conteúdo político. (WEIS, 2014, p. 153-154).
Aliás, é indiscutível “a identidade existente entre o projeto constitucional pós-ditadura e
os objetivos fundamentais da Defensoria Pública. Nesse contexto, ela se apresenta como a
principal Instituição para a concretização desse nosso modelo humanista pós-moderno” (RÉ,
2014, p. 92). A previsão constitucional de hoje, portanto, carrega densa carga semântica
direcionada à promoção do acesso à justiça e dos direitos fundamentais da parcela mais
fragilizada da população. É desses aspectos, portanto, que o próximo segmento se ocupa.
3.1.2 A Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988 (CF/88):
instituição promotora do acesso à justiça e dos direitos fundamentais das
pessoas em situação de vulnerabilidade
A atual previsão constitucional da Defensoria Pública, como restou claro, amplia o rol
de atribuições relacionadas à assistência jurídica integral e gratuita e ao acesso à justiça,
tornando o atual modelo o mais abrangente da história constitucional brasileira e um dos mais
avançados do mundo na proteção dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Assim, o atual
texto constitucional estabelece, em seu art. 134, que
A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (BRASIL, 2014).
198
A evolução normativa apresentada, culminando com o texto do art. 134 da CF, reveste-
se de maior importância no Brasil. De fato, em um país marcado por extremas desigualdades
econômicas, sociais e culturais, os preceitos relativos à igualdade e à inclusão poderiam soar
como pura abstração ou como componentes de uma carta de intenções. “A possibilidade real,
contudo, de transformação de mandamentos igualitários em realidade concreta encontra na
Defensoria Pública o motor mais importante na luta pela efetivação dos direitos e pela
prevalência da igualdade” (SADEK, 2014, p.20). No mesmo sentido entende Sousa (2010, p
185):
Além de ser a entidade que presta advocacia aos pobres, consolida-se para a Defensoria o papel de uma grande agência nacional de promoção da cidadania e dos direitos humanos, voltada para quem mais necessita de cidadania e direitos humanos. Desmancha-se de vez o exacerbado individualismo que sempre acompanhou os caminhos da instituição, passando a prevalecer a filosofia bem mais solidarista. Dessa forma, restaram positivadas inclinações que se mostravam irresistíveis, em função de fatores aqui mencionados, como a objetivação crescente dos institutos jurídicos e a pluralização do fenômeno da carência.
Como leciona Sadek (2014, p. 26),
a atuação da Defensoria Pública tem a possibilidade de romper com uma situação caracterizada por desigualdades cumulativas. Tal traço, definidor da realidade brasileira, retrata uma situação na qual a precariedade de renda implica precariedade em educação, saúde, habitação, ou seja, déficits em qualidade de vida. São desigualdades que se agregam, constituindo uma situação de exclusão. Nessa situação, sobra pouco espaço - se algum - para a vivência de direitos.
A situação é ainda mais grave quando os sujeitos de direitos são grupos historicamente
discriminados, aos quais está agregada a pobreza, conforme enxerga a CIDH (2016a):
La CIDH ha observado como las personas afrodescendientes, los pueblos indígenas y en particular las mujeres en situación de pobreza, frecuentemente encuentran barreras adicionales para acceder a la justicia, que combinadas con la falta de recursos económicos configuran una doble discriminación que les impide acceder a remedios judiciales efectivos contra la discriminación o las violaciones de los derechos humanos de que son víctimas. En ese sentido, la Comisión comparte lo indicado por la ex Relatora de Naciones Unidas para la Extrema Pobreza y los Derechos Humanos, al indicar que el acceso a la justicia es fundamental para hacer frente a las principales causas de la pobreza, la exclusión y la situación de vulnerabilidad. Se hace necesario facilitar un recurso sencillo, rápido, efectivo y económico en sede administrativa y judicial, de manera que se garantice la efectividad de los programas y prestaciones de los derechos sociales a las personas que viven en situación de pobreza.
Nessa mesma perspectiva, identifica-se relação visceral entre o regime constitucional de
proteção social e o papel delineado constitucionalmente para a Defensoria Pública,
verificando-se, subjacente à assistência jurídica prestada aos necessitados, o próprio princípio
da igualdade, pelo tratamento desigual a determinadas pessoas e grupos sociais, a fim de
199
afirmar (por meio de uma ação política afirmativa) a sua igualdade material no plano
comunitário (FENSTERSEIFER, 2017, p. 6).
A amplitude de atribuições conferida à Defensoria Pública permite que se constate,
legitimamente, que ela “[...] se constitui na porta de entrada para a inclusão. De seu
desempenho dependerá a ampliação e a generalização do exercício dos direitos, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (SADEK, 2014, p. 20).
Assim, a Defensoria Pública sedimenta-se como um órgão estatal (e não governamental),
essencial à promoção da justiça, conectada estrutural e ideologicamente com as demandas
populares, para dar vazão às reivindicações dos segmentos da sociedade civil, que se
organizam em torno de carências comuns, em demandas de nítido cariz político (SOARES,
2009, p. 412).
Ré (2014, p. 95) aduz que:
Realmente, o modelo adotado no Brasil é público e institucionalizado, na medida em que refuta a política corporativista, demandista ou simplesmente judiciária de atendimento, mas opta por uma política preventiva e informativa de atuação, por meios jurídicos-sociais, dotada de métodos multidisciplinares e participativos de prevenção e de solução de conflitos, bem como de uma gestão democrática, com objetivos e metas dialeticamente definidas. De fato, o Brasil opta por um modelo de afirmação do direito de acesso à Justiça em benefício das chamadas “minorias” (não em termos de quantidade, mas de poder) com declarado foco no interesse público à efetiva e substancial igualdade.
Após a opção formal pelo Estado Democrático de Direito entre os países latino-
americanos, tornou-se comum a previsão, nas diversas constituições, de um extenso rol de
direitos fundamentais, decorrentes do princípio básico de respeito à dignidade da pessoa
humana. Ainda é possível observar, todavia, um grave défice de efetividade desses direitos, o
que torna muitas destas constituições meros repositórios de “boas intenções”, continentes de
belas peças retóricas, mas sem nenhuma correspondência no campo fático.
De fato, como denuncia Méndez (2000, p. 243), a exclusão de amplos setores do gozo
de seus benefícios – que representa a materialização de um dos maiores defeitos das
democracias latino-americanas contemporâneas – é decorrente da fraqueza das instituições
estatais para proteger as vítimas de comportamento abusivo, para garantir-lhes compensação e
criar um fórum para a resolução de seus conflitos. No continente americano, como reforça a
CIDH em seu Informe sobre pobreza, pobreza extrema e direitos humanos na América Latina:
Las personas que viven en situación de pobreza o pobreza extrema generalmente enfrentan mayores obstáculos para acceder a la justicia, así como a los medios que
200
le permitan la gestión efectiva para denunciar y exigir el cumplimiento de sus derechos. Las políticas que apuntan a garantizar servicios jurídicos a personas carentes de recursos actúan como mecanismos para compensar situaciones de desigualdad material que afectan la defensa eficaz de los propios intereses. (CIDH, 2016a).
Para que haja um reforço à efetivação desses direitos, é imprescindível que o Estado se
exprima como garante de sua observância, bem como se mostre como instância promotora da
aplicabilidade e proteção desses direitos. Assim, como medida de legitimidade do Estado, é
preciso que este respeite e efetive os direitos considerados fundamentais pela Constituição,
bem como aqueles tidos como essenciais a uma vida digna pela comunidade internacional
(direitos humanos).
É nesta perspectiva que se vislumbra inconteste a importância do acesso à justiça como
garantia dos direitos fundamentais. De fato, conforme menciona Canotilho (2003, p. 396), “as
garantias traduzem-se no direito de exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos,
como igualmente no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade”.
Somente dotando o arcabouço constitucional de garantias, o legislador constituinte
poderá facilitar a efetividade dos demais direitos fundamentais previstos na Constituição, que
quedarão como letra morta, caso inexistentes meios aptos de fazê-los valer. É nesse compasso
que doutrina Pastore (2004, p. 159): “Assim, como uma das armas mais importantes na busca
da efetivação de todos os direitos fundamentais está o acesso à justiça, e é nesse sentido que
os Estados têm buscado fornecer aos seus indivíduos mecanismos específicos para a sua
reivindicação e exercício”.
Da mesma maneira, não basta a mera previsão de que as pessoas de determinado Estado
tenham acesso à justiça. É preciso que este Estado conceda os instrumentos necessários para
que este acesso seja pleno e eficaz. Assim, a pessoa (independente de sua condição social,
econômica, de nacionalidade, ou qualquer outra) que tiver algum direito fundamental
desrespeitado deve ter a possibilidade concreta de acionar os poderes públicos para
reconstituir a lesão sofrida, com eficiência e celeridade. A previsão formal desacompanhada
de instituições fortes, capazes de concretizá-la, manter-se-á como mera figura retórica. Por
outro lado, se tal acesso não for universal e geral, não haverá verdadeiramente um direito, mas
um privilégio (MÉNDEZ, 2000, p. 248). Como reforço a esta constatação, eis o entendimento
de Cappelletti e Garth (1998, p. 11-12):
De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez
201
que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.
Em uma acepção restrita, o acesso à justiça confunde-se com o acesso aos tribunais,
representando o direito a recorrer ao Judiciário para a solução das contendas jurídicas.
Segundo Pastore, esgota-se este conceito restrito na oportunidade de alguém participar, em
sua defesa própria, de um procedimento judicial (PASTORE, 2004, p. 161). Trata-se da
“garantia de acesso aos tribunais” (CANOTILHO, 2003, p. 491). Nessa perspectiva, possui
duas finalidades básicas: “Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo,
ele deve produzir resultados individual e socialmente justos” (CAPPELLETTI; GARTH,
1998, p. 8).
O acesso aos tribunais é importante porque, conforme ensina Sutil, “o Judiciário é um
fórum onde os argumentos de justiça, igualdade, discriminação e injustiça encontram um
lugar apropriado” (SUTIL, 2000, p. 296). Ademais, prossegue o Professor chileno, no
processo judicial os grupos poderosos não poderão simplesmente ignorar os argumentos dos
não privilegiados, pois ambos os lados estão obrigados a fundamentar suas razões em
princípios e normas comuns (SUTIL, 2000, p. 297). “O fórum judicial pode, assim, oferecer
uma voz aos não-privilegiados que não é ouvida no mercado ou na arena política” (SUTIL,
2000, p. 297).
No mesmo sentido é o entendimento sedimentado pela CIDH, em seu Informe sobre
pobreza, pobreza extrema e direitos humanos na América Latina, de 2016:
Es común que la desigual situación económica o social de los litigantes se refleje en una desigual posibilidad de defensa en juicio. Un primer aspecto en relación con los alcances del derecho a acceder a la justicia está dado por los obstáculos económicos o financieros en el acceso a los tribunales, y por el alcance de la obligación positiva del Estado de remover esos obstáculos para garantizar un efectivo derecho a ser oído por un tribunal563. En ese sentido, la obligación de proveer servicios de asistencia gratuita resulta un elemento fundamental para asegurar las debidas garantías procesales y la igualdad ante los tribunales de las personas que viven en situación de pobreza. (CIDH, 2016a).
Como já advertiu o jurista argentino Garro (2000, p. 307), “a amplitude do acesso à
justiça tem sido usada como importante indicador para medir o nível de consolidação de uma
democracia submetida ao controle dos cidadãos”. De fato, se os mais pobres têm as mesmas
possibilidades (“paridade de armas”) dos ricos de recorrer ao Judiciário para reparar lesões a
202
direitos, tem-se um indicativo de que o peso das vontades dos cidadãos equivale entre si e não
é auferido pelo poder econômico de cada um. Como observa Ré (2014, p. 90),
[...] as forças contra-hegemônicas ainda não possuem a organização e o respaldo necessários para a criação de uma resistência eficiente, o que certamente passa pelo acesso às Instituições Democráticas, em especial por aquela responsável pela prestação da assistência jurídica, a Defensoria Pública, com perfil aberto e objetivos emancipatórios bem definidos e sedimentados.
Avançando-se para uma conotação ampla, o acesso à justiça significa o direito às
condições de existência objetiva da justiça, representada pela possibilidade de participação no
processo político, econômico e social, aproximando-se, nesta concepção, da própria ideia de
cidadania. Aqui a acepção jurídica da dicção “acesso à justiça” engloba um largo conteúdo:
a) a compreensão do ingresso da pessoa em juízo;
b) enfoca o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais;
c) perspectiva mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado ao qual
compete não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico, mas, inclusive,
proporcionar a realização da justiça (PASTORE, 2004, p. 161).
Não se pode olvidar, contudo, como adverte Ré (2014, p. 94), que:
[...] o modelo de assistência jurídica está umbilicalmente ligado ao modelo de Estado e ao tipo de tutela jurisdicional preferido. Com efeito, Estados Liberais têm a tendência de adotar modelos privatistas e individualistas de assistência jurídica, além de prioridades tutelares ressarcitórias. Doutra banda, Estados Democráticos priorizam os modelos públicos de assistência jurídica, prestada e gerida por Entes Estatais, responsáveis pela oferta de soluções estruturais e de tutelas inibitórias às ameaças ou às megaviolações de direitos fundamentais, mormente dos direitos sociais e coletivos.
No sistema constitucional brasileiro, portanto, nos termos do art. 127, o Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe
a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (BRASIL, 1988). A essa atribuição, portanto, soma-se a atuação da Defensoria
Pública em caráter metaindividual, sempre que o intuito seja proteger pessoas em situação de
vulnerabilidade econômica, como será mais bem demonstrado em subseção do capítulo 4.
Nessa senda, atendendo a essas perspectivas mais amplas de acesso à justiça, o
legislador constituinte brasileiro, como aludido alhures, resolveu delinear a instituição
Defensoria Pública, confiando-lhe o papel de efetivar a assistência jurídica integral e gratuita
aos necessitados. Assim estatuindo, a ordem constitucional brasileira, pelo menos
203
formalmente, entregou à população carente uma instituição destinada a servir de “porta de
acesso” ao Judiciário e, mais do que isso, funcionar como instrumento de efetivação da
cidadania. Nesse quadrante, exerce um papel constitucional essencial na tutela e promoção
dos direitos fundamentais (e humanos) de todas as dimensões de titularidade dos vulneráveis,
arrimando-se, inclusive, na perspectiva da integralidade, indivisibilidade e interdependência
de todas elas (FENSTERSEIFER, 2017, p. 7).
Posteriormente, pela ação do poder constituinte derivado e do legislador
infraconstitucional, a Defensoria consolidou-se normativamente como instituição promotora
do acesso à justiça e dos direitos fundamentais, restando, na atual quadra histórica, envidar
todos os esforços para a efetivação dos comandos normativos em prol das pessoas em
situação de vulnerabilidade. Conforme leciona Weis (2014, p. 157),
Em tal contexto, mostra-se evidente que a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”, incumbência da Defensoria Pública segundo previsão constitucional, coloca a instituição ao lado dos grupos sociais vulneráveis para os quais o Estado tem a obrigação jurídica de dotar todos os esforços possíveis, inclusive fazendo com que a Defensoria Pública interpele os administradores públicos ou mesmo ingresse com ações judiciais para o fim de ver realizados direitos de natureza coletiva ou difusa.
Como repisado, a Constituição estabelece a assistência jurídica integral e gratuita aos
necessitados. Como defende Fensterseifer (2017, p. 3):
a expressão necessitado carrega o significado de vulnerabilidade existencial dos indivíduos e grupos sociais atendidos pela Defensoria Pública, o que está, na absoluta maioria das vezes, diretamente associado à carência de recursos econômicos. Ou seja, num primeiro plano, são as pessoas pobres, individual ou coletivamente consideradas, as beneficiárias do serviço público prestado pela Defensoria Pública.
É de relevo, entretanto, evidenciar que o conceito doutrinário não se exaure na
hipossuficiência econômica. Como destacado na subseção 1.3 das Regras de Brasília sobre
Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade57, aprovadas no âmbito da XIV
Conferência Judicial Ibero-Americana em 2008,
Considera-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. (REGRAS DE BRASÍLIA, 2008).
57 Tais regras, embora não tenham força normativa ao ponto de impor um determinado conceito, constituem-se
em manifestação de um consenso, entre países participantes, sobre a formulação de um conceito que pode, inclusive, agregar-se ao Direito Internacional na condição de Direito consuetudinário.
204
Nessa perspectiva, a atuação da Defensoria Pública granjeia uma amplitude muito
maior, embora excepcional, para alcançar pessoas que denotam fragilidades não somente
econômicas, mas também de outras ordens, que inviabilizam o seu acesso a uma ordem
jurídica justa. Se o Estado, por intermédio da Defensoria, não direcionar esforços para
solucionar esses problemas, eles continuarão “[...] na sua invisibilidade, produzindo visíveis
injustiças” (ROCHA, 2013, p. 86), pois a ausência de recursos funciona como impeditivo para
a contração de um advogado ou, muitas vezes, de simplesmente conhecer seus direitos
(ROCHA, 2013, p. 86).
O conceito de necessitado (ou vulnerável), portanto, deve estar alinhado com o sistema jurídico contemporâneo que, rompendo com a tradição liberal-individualista caracterizada por conceber um sujeito de direito apenas “formal”, assimila as desigualdades fáticas que imperam no âmbito comunitário (no que toca ao exercício dos direitos) e destina especial proteção a determinados grupos sociais. (FENSTERSEIFER, 2017, p. 37).
Essa concepção amplificada é designada pela doutrina de necessitado em sentido amplo
ou em termos organizacionais, e foi abraçada pela legislação brasileira, notadamente no art.
4º, XI da LC 80/9458, com redação dada pela LC 132/2009 (BRASIL, 2009), que em rol
exemplificativo enumera pessoas ou grupos vulneráveis.
Tal concepção de vulnerável mostra-se evidente na seara penal. Como demonstrado, os
clientes preferenciais do sistema penal estatal são os necessitados na acepção econômica do
termo, mas já é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a ausência de
defesa no processo penal, mesmo da pessoa dotada de condições financeiras, deve ser
colmatada pela atuação do defensor público, ante a vulnerabilidade processual concreta da
pessoa sem assistência jurídica suficiente para exercer a sua defesa perante o Estado
persecutor, representado no processo pelo Ministério Público, que é, nas mais das vezes, o
promovente da ação penal.
Importante é esclarecer que essa maneira de atuação representa função atípica da
Defensoria Pública, somente realizada excepcionalmente, quando o réu no processo penal está
indefeso, a fim de que se assegure o devido processo legal (com seus corolários da ampla
defesa e do contraditório), respeitado o direito da pessoa de escolher advogado de sua
confiança. Há, nesse particular, “[...] uma vulnerabilidade jurídica da pessoa, que independe
58Art. 4º, XI: São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: exercer a defesa dos interesses
individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (BRASIL, 2009).
205
de incapacidade econômica, fundando-se na necessidade de se assegurar o exercício efetivo e
real do direito de defesa” (LIMA, 2015, p. 217).
Obviamente, a defesa da atuação da Defensoria Pública, na seara penal, em situações
nas quais não haja vulnerabilidade econômica, será submetida à respeitável crítica de que a
destinação de atenção e esforços para a defesa de ricos, eventualmente, enfraquece a
instituição em seu papel típico e primordial de defesa dos pobres. Os direitos da pessoa a
serem defendidos em um processo penal, entretanto, mostram-se de tão elevada importância
que não podem ficar à mercê da improvisação, que se constitui na nomeação de advogados ad
hoc ou dativos.
Assim pensou o legislador brasileiro na reforma do CPP no ano de 2011 ao estabelecer,
no art. 306, §1, que, em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será
encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe
o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública (BRASIL, 2011). Resulta
claro que não há, na circunstância, qualquer apreciação sobre a condição econômica do réu.
Se, no caso concreto de prisão em flagrante, não há indicação de advogado pelo preso,
verifica-se evidente situação de vulnerabilidade jurídica, impondo-se a atuação imediata da
Defensoria Pública para a proteção dos direitos da pessoa presa.
No momento de submissão a um processo penal, não raro sob aprisionamento, ainda
que dotado de condições financeiras, o réu encontra-se, de fato, em situação de
vulnerabilidade perante o Estado persecutor. No exercício das funções persecutórias, perceba-
se, encontra-se um profissional estatal (delegado de polícia ou membro do Ministério
Público), cujo cargo não pode ser ocupado por mera indicação de quem quer que seja.
No mesmo sentido de atuação ampla da Defensoria Pública é a lição do equatoriano
Pazmiño Granizo (2008, p. 317):
El papel de la Defensa Penal Pública, en un modelo adversarial, es garantizar el acceso a la defensa de toda persona que ha sido acusada por el Estado. Es importante diferenciar de la tradicional “defensa de pobres”; en primer lugar el ciudadano tenga o no recursos, al estar en juego su libertad, tiene derecho a que se le otorgue el servicio de defensoría gratuita, aspecto que difiere de la tradicional visión.
É exatamente essa a interpretação do art. 8, 2, e) da CADH, (OEA, 1969), a qual estatui
como garantia mínima o “direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado
pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender a
206
ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei”. Como resta claro, a
CADH não exige a vulnerabilidade econômica do acusado para ter acesso à assistência
jurídica gratuita prestada pelo Estado, como o fazem, por exemplo, a Convenção Europeia de
Direitos Humanos59 e o PIDCP60.
Por seu turno, a CorteIDH já se pronunciou sobre o assunto no Caso Ruano Torres e
outros vs. El Salvador, ao estatuir, no § 155 da sentença, que:
Si bien la norma contempla diferentes alternativas para el diseño de los mecanismos que garanticen el derecho, cuando la persona que requiera asistencia jurídica no tenga recursos ésta deberá necesariamente ser provista por el Estado en forma gratuita. Pero en casos como el presente que se refieren a la materia penal en la cual se consagra que la defensa técnica es irrenunciable, debido a la entidad de los derechos involucrados y a la pretensión de asegurar tanto la igualdad de armas como el respeto irrestricto a la presunción de inocencia, la exigencia de contar con un abogado que ejerza la defensa técnica para afrontar adecuadamente el proceso implica que la defensa que proporcione el Estado no se limite únicamente a aquellos casos de falta de recursos. (CORTEIDH, 2015b).
Mais adiante, nos §§ 156 e 157, em síntese conclusiva do exposto, reforça a CorteIDH
(2015b):
La institución de la defensa pública, a través de la provisión de servicios públicos y gratuitos de asistencia jurídica permite, sin duda, compensar adecuadamente la desigualdad procesal en la que se encuentran las personas que se enfrentan al poder punitivo del Estado, así como la situación de vulnerabilidad de las personas privadas de libertad, y garantizarles un acceso efectivo a la justicia en términos igualitários. Sin embargo, la Corte ha considerado que nombrar a un defensor de oficio con el sólo objeto de cumplir con una formalidad procesal equivaldría a no contar con defensa técnica, por lo que es imperante que dicho defensor actúe de manera diligente con el fin de proteger las garantías procesales del acusado y evite así que sus derechos se vean lesionados221 y se quebrante la relación de confianza. A tal fin, es necesario que la institución de la defensa pública, como medio a través del cual el Estado garantiza el derecho irrenunciable de todo inculpado de delito de ser asistido por un defensor, sea dotada de garantías suficientes para su actuación eficiente y en igualdad de armas con el poder persecutorio. La Corte ha reconocido que para cumplir con este cometido el Estado debe adoptar todas las medidas adecuadas222. Entre ellas, contar con defensores idóneos y capacitados que puedan actuar con autonomía funcional.
59Art. 6º, 3, c: O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos:c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência
de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem. Disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em: 30 dez. 2017.
60Dec. N. 592 de 6 de julho de 1992. Art. 14, 3, d: 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-offício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 30 dez. 2017.
207
Não se olvide, por fim, do fato de que diversas condições de fragilidade não raro
coincidem, nascendo, assim, a figura do hipervulnerável, que pode ser definido como a pessoa
ou grupo social que, por sua peculiar condição existencial, expressa não apenas um fator de
vulnerabilidade (ser pobre, criança ou idoso, por exemplo), mas, também, um somatório de
dois ou mais fatores agravadores de sua vulnerabilidade, ensejando a necessidade de um
regime jurídico ainda mais reforçado na sua proteção, cabendo ao ordenamento jurídico e ao
próprio sistema de justiça ampliar os mecanismos destinados à sua proteção
(FENSTERSEIFER, 2017, p. 52).
3.1.3 A Lei Orgânica da Defensoria Pública (LONDP)
As previsões constitucionais relativas à Defensoria Pública, embora mais detalhadas
pelas emendas constitucionais que se seguiram, precisavam de regulamentação mais
pormenorizada, a fim de que os traços institucionais destinados ao cumprimento da missão
constitucional restassem mais específicos. Assim, e para conferir efetividade ao preceito
constitucional que inseriu a Defensoria Pública na nova ordem jurídica inaugurada em 1988,
foi editada a LC nº 80, de 12/01/1994 (BRASIL, 1994), robustecida pelas alterações da LC nº
132, de 2009 (BRASIL, 2009), cujo papel foi organizar a DPU, do Distrito Federal e dos
Territórios, e prescrever normas gerais para sua organização nos Estados, dando outras
providências, nos exatos termos do §1º do art. 134 da CF (BRASIL, 2004).
O legislador constituinte estabeleceu campo material reservado a lei complementar no
tocante à tarefa de organizar a DPU e traçar normas gerais para a organização das defensorias
públicas estaduais, diferentemente, por exemplo, da equivalente norma constitucional relativa
ao Ministério Público (art. 127, §2º da CF) (BRASIL, 1988), que atribui tal função à lei
ordinária. Essa peculiaridade confere imprescindível garantia de estabilidade à legislação
atinente à Defensoria Pública, por dotá-la de maior rigidez, impedindo alterações bruscas
oriundas de maiorias parlamentares ocasionais, além de colocá-la a salvo do decantado abuso
legiferante do Poder Executivo, impossibilitado de interferir pelo manejo de medidas
provisórias.
O advento da Lei Orgânica da Defensoria Pública (LONDP) contribuiu sobremaneira
para a consolidação institucional da mais recente das funções essenciais à justiça, orientando a
sua atuação descentralizada e prioritária nas regiões brasileiras cujos índices de exclusão
208
social e adensamento populacional são maiores, seguindo os ditames dos Diagnósticos da
Defensoria Pública no Brasil, produzidos pelo Ministério da Justiça61.
Dentre as mudanças ocorridas na Lei Orgânica pela LC 132/2009 (BRASIL, 2009),
destacam-se a ampliação das funções institucionais, a introdução de mecanismos de controle e
participação social na gestão das defensorias públicas (as ouvidorias), a criação de um rol
exemplificativo de direitos a serem exigidos pelos assistidos e a regulamentação da autonomia
garantida constitucionalmente às defensorias públicas estaduais pelas emendas constitucionais
já mencionadas.
O art. 1º limita-se a repetir a disposição constitucional constante no novo art. 134
(BRASIL, 2009). Já o art. 2º trata da abrangência da Defensoria Pública: da União, do Distrito
Federal e Territórios e dos Estados (BRASIL, 1994). O art. 3º-A da OL aduz serem princípios
institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional
(BRASIL, 2009), em idêntica disposição à contida no §4º do art. 134 da CF, após redação
conferida pela EC nº 45/2004 (BRASIL, 2004). Tais princípios visam a tornar a atuação da
Defensoria Pública isenta de influências estranhas ao pleno desenvolvimento processual,
podendo a instituição, inclusive, atuar contra o Poder Público (LANDIM, 2008, p. 102).
Decorre do princípio da unidadea ideia de que a instituição é concebida como única,
possuindo a mesma direção, constitucional e também legal, iguais fundamentos, idênticas
finalidades. Assim, a Defensoria Pública é um todo orgânico formado por idênticos aspectos
estruturais. Desse princípio decorre “a vedação de existirem instituições públicas
concorrentes, com a mesma base política e com chefias distintas, para o exercício das funções
cometidas a cada Defensoria Pública” (JUNKES, 2006, p. 90)62.
61O I Diagnóstico da Defensoria Pública, lançado em 2004, apresentou, pela primeira vez, dados consolidados
sobre a instituição. O II Diagnóstico, publicado dois anos depois, mostrou aspectos importantes sobre a sua estruturação, desde a Emenda Constitucional nº 45. O III Diagnóstico, elaborado em 2009, mostrou diversos avanços decorrentes da promulgação da Lei Complementar nº 132/09. O IV Diagnóstico foi feito no âmbito do projeto Fortalecimento do Acesso à Justiça no Brasil, parceria entre a Secretaria de Reforma do Judiciário, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores (ABC/MRE). O seu resultado apresenta, por um lado, progressos relacionados ao crescimento dos atendimentos realizados pela Defensoria, além de trazer informações relevantes sobre planejamento estratégico da carreira, infraestrutura e pessoal, universalização do acesso à justiça e questões sobre a percepção dos Defensores Públicos sobre a Defensoria e a população (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015).
62O Supremo Tribunal Federal (STF), quando do julgamento da ADI nº 3700/RN, pacificou a impossibilidade de atuação de outras instituições em campo de atuação exclusivo da Defensoria Pública: EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 8.742, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2005, DO ESTADO DO RIO GRANDE NORTE, QUE “DISPÕE SOBRE A
209
Obviamente, há uma dificuldade de se alcançar a citada unidade, decorrente das
diversas realidades regionais em um país tão imenso e no qual as unidades federadas gozam
de ampla autonomia. Como defende, entretanto, Amélia Rocha, a LONDP e a atuação
coordenada pelo Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) fortalecem
essa unidade nacional, ao mesmo tempo em que permitem “a adequação às peculiaridades
regionais em respeito ao pacto federativo, todos com base nos mesmos princípios, objetivos e
funções institucionais” (ROCHA, 2013, p. 111).
O princípio da indivisibilidade, decorrente da ideia de unidade, significa que “os
membros da Defensoria Pública podem ser substituídos uns pelos outros sem que haja
prejuízo ao exercício das funções do órgão” (LIMA, 2015, p. 89). Busca-se evitar, com esse
princípio, que o serviço público prestado pela instituição sobre interrompido por eventuais
impedimentos ou impossibilidades de algum de seus membros, havendo, pois, uma
preestabelecida ordem de substituições e delimitações de atuação63. Como distingue Amélia
Rocha, “enquanto o princípio da unidade garante o mesmo núcleo gestor, o da
indivisibilidade, que cada membro é a instituição; enquanto o primeiro tem uma maior
aplicabilidade político-administrativa, o segundo tem uma maior perspectiva técnico-
funcional” (ROCHA, 2013, p. 114).
CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA DE ADVOGADOS PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE DEFENSOR PÚBLICO, NO ÂMBITO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO”. 1. A Defensoria Pública se revela como instrumento de democratização do acesso às instâncias judiciárias, de modo a efetivar o valor constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). 2. Por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira. 3. A estruturação da Defensoria Pública em cargos de carreira, providos mediante concurso público de provas e títulos, opera como garantia da independência técnica da instituição, a se refletir na boa qualidade da assistência a que fazem jus os estratos mais economicamente débeis da coletividade. 4. Ação direta julgada procedente. (STF Plenário. ADI 3700/RN, Rel. Min. Carlos Brito, julgado em 15/10/2008).(BRASIL, 2008).
63Nessa toada, inclusive, a Primeira Turma do STF já decidiu pela desnecessidade, em caso concreto, de intimação pessoal do Defensor público atuante em processo, bastando a intimação da Chefa da instituição: Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. INEXISTÊNCIA DE ARGUMENTAÇÃO APTA A MODIFICÁ-LA. MANUTENÇÃO DA NEGATIVA DE SEGUIMENTO. DEFENSORIA PÚBLICA. INTIMAÇÃO PESSOAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão recorrida. 2. Por força da Lei Complementar 80/94, a intimação pessoal é prerrogativa da Defensoria Pública. Entretanto, não se exige seja a comunicação dirigida exatamente à pessoa do defensor que atua no processo, podendo encaminhar-se, quando necessário, à chefia da instituição, visto que, nos moldes das intimações do Ministério Público, o endereçamento administrativo não descaracteriza, por si, a pessoalidade do ato processual. Ademais, a instituição é regida pelos princípios da unidade e indivisibilidade, os quais autorizam aos seus membros substituir uns aos outros no exercício em determinado processo. Precedentes. 3. Agravo regimental desprovido. (STF Primeira Turma. HC 136060 AgR/AC, Rel Min. Luiz Fux, julgado em 18.10.2016).(BRASIL, 2016a)
210
No referente ao princípio da independência funcional, percebe-se sua interligação com a
atuação da Defensoria Pública, no papel que lhe atribuiu o legislador constituinte de 1988.
Com efeito, a tarefa da instituição deve ser livre de ingerências de qualquer ordem,
principalmente do poder estatal, não havendo qualquer hierarquia entre membros da
Defensoria e de quaisquer outros, independentemente do Poder ou instituição a que
pertençam. Seguindo as diretrizes deste princípio, o STF declarou, em sede de controle
concentrado, a inconstitucionalidade de lei estadual do Amapá que atribuía competência ao
Governador de Estado de nomear ocupantes de cargos administrativos na estrutura de
Defensoria Pública Estadual (Subdefensor Público-Geral, Ouvidor-Geral, Corregedor-Geral,
Defensor Público-Chefe etc)64.
64Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR Nº 86/2014 DO
ESTADO DO AMAPÁ. AÇÃO PROPOSTA PELA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP. ART. 103, IX, DA CRFB/88. LEGITIMIDADE ATIVA. PERTINÊNCIA TEMÁTICA CARACTERIZADA. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO QUANTO À IMPUGNAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS IMPUTADOS AO GOVERNADOR DO ESTADO. ATOS DE EFEITOS CONCRETOS E DESPROVIDOS DE CARÁTER NORMATIVO. AÇÃO CONHECIDA PARCIALMENTE. LEI DE ORGANIZAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA ESTADUAL. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE. ART. 24, XIII, DA CRFB/88. FIXAÇÃO DE NORMAS GERAIS PELA UNIÃO ECOMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS ESTADOS-MEMBROS. NECESSÁRIA E OBRIGATÓRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ESTADOS, DAS NORMAS GERAIS. IMPOSSIBILIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO DOS LIMITES FIXADOS PELA LEGISLAÇÃO FEDERAL. AUTONOMIA FUNCIONAL, ADMINISTRATIVA E ORÇAMENTÁRIA DAS DEFENSORIAS PÚBLICAS. INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL. ART. 134, E PARÁGRAFOS, DA CRFB/88. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO, POR LEI ESTADUAL, DA COMPETÊNCIA DE NOMEAR OCUPANTES DE CARGOS DA ESTRUTURA ADMINISTRATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA A GOVERNADOR DO ESTADO. DESCUMPRIMENTO À LEI COMPLEMENTAR Nº 80/1994. ART. 24, § 1º, DA CRFB/88. INICIATIVA DE LEI QUE FIXA OS SUBSÍDIOS DOS MEMBROS DA CARREIRA. DECORRÊNCIA DA AUTONOMIA ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA. IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO LOCAL. APLICAÇÃO DE SANÇÕES. COMPATIBILIDADE COM O QUE DISPOSTO PELA LEI FEDERAL DE NORMAS GERAIS. AÇÃO DIRETA PARCIALMENTE CONHECIDA E JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa, bem como a prerrogativa de formulação de sua própria proposta orçamentária (art. 134, § 2º, da CRFB/88), por força da Constituição da República, após a Emenda Constitucional nº 45/2004. 2. A competência legislativa concorrente prevista no art. 24 da CRFB/88, no sentido da fixação de normas gerais pela União, limita a competência suplementar dos Estados-membros, os quais devem obrigatoriamente atender àqueles preceitos gerais. 3. Consectariamente, as leis estaduais que, no exercício da competência legislativa concorrente, disponham sobre as Defensorias Públicas estaduais devem atender às disposições já constantes das definições de regras gerais fixadas pela LC nº 80/94. 4. A lei estadual que atribui competência ao Governador de Estado de nomear ocupantes de cargos administrativos na estrutura de Defensoria Pública Estadual (Subdefensor Público-Geral, Ouvidor-Geral, Corregedor-Geral, Defensor Público-Chefe etc) viola a autonomia administrativa da Defensoria Púbica Estadual (art. 134 e parágrafos da CRFB/88), bem como as normas gerais estabelecidas pela União na Lei Complementar nº 80/1994 pelo exercício de competência legislativa concorrente (art. 24, XIII, e §§ 1º e 2º, da CRFB/88). 5. A autonomia financeira e orçamentária das Defensorias Públicas Estaduais e a expressa menção pelo art. 134, § 4º, ao art. 96, II, todos da CRFB/88, fundamentam constitucionalmente a iniciativa do Defensor-Público Geral dos Estados na proposição da lei que fixa os subsídios dos membros da carreira. 6. A ação direta de inconstitucionalidade apenas é admissível quando proposta contra lei ou ato normativo federal ou estadual, não sendo possível seu ajuizamento contra ato administrativo de efeito concreto e desprovido, portanto, de caráter normativo, generalidade e abstração, tal como o que nomeia individualmente defensores ad hoc. 7. A Associação Nacional de Defensores Públicos é
211
Importante é aduzir a ideia de que a independência funcional não significa que o
membro da defensoria está infenso a pressões de qualquer ordem, podendo conduzir a tática
da defesa de acordo com o seu próprio entendimento e estratégia, mas que tal princípio tem
por objetivo conferir ao defensor público o suporte necessário para suportar pressões
decorrentes da sua atuação na defesa dos vulneráveis (ROCHA, 2013, p. 117).
São objetivos da Defensoria Pública, conforme o art. 3-A da LONDP (incluído pela LC
nº 132/2009) (BRASIL, 2009): a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das
desigualdades sociais; a afirmação do Estado Democrático de Direito; a prevalência e
efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa
e do contraditório. Tais objetivos harmonizam-se com as funções institucionais definidas pelo
art. 4º. Da LC 80/94 (BRASIL, 2009). O fato destes dispositivos aparecerem antes da
descrição das funções institucionais oferece indicativo de que “estas incumbências recebem a
influência dos escopos projetados para a Defensoria Pública” (LIMA, 2015, p. 110). Como
defende Amélia Rocha, “[...] todas as atitudes da Defensoria e de seus membros devem ser
guiados para os objetivos institucionais, ter por base os seus princípios e manejados por suas
funções institucionais” (ROCHA, 2013, p. 123).
Já as funções institucionais da Defensoria Pública encontram-se elencadas no art. 4º, da
LC 80/1994, com as modificações introduzidas pela LC nº 132/2009 (BRASIL, 2009), em rol
exemplificativo, sendo possível a realização de outras que se harmonizem ao cumprimento
dos objetivos institucionais e às metas instituídas pela CF. Relativamente ao tema em estudo,
merecem destaque as funções65 de: orientação jurídica e educação em direitos (incisos I e III);
promoção da solução extrajudicial de solução de conflitos (incisos II, IV e §4º); acesso ao
Judiciário (incisos V, IX, X, XI, XV, XIX e XXI); proteção de direitos e interesses coletivos e
difusos (incisos VII, VIII, X, XI e XV); instituição defensora dos direitos dos vulneráveis
(incisos VII, VIII, XI, XIV, XVI, XVII, XVIII e XXII); atuação perante organismos
internacionais de direitos humanos (inciso VI); participação, quando tiver assento, dos
conselhos federais, estaduais e municipais afetos às funções institucionais da Defensoria
Pública (inciso XX).
parte legítima a provocar a fiscalização abstrata de constitucionalidade (art. 103, IX, da CRFB/88). Precedentes: ADPF 307-MC-Ref, rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 27/3/2014; ADI 4.270, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe de 28/9/2012; ADI 2.903, rel. min. Celso de Mello, DJe 19/09/2008. 8. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, nesta parte, julgada parcialmente procedente. (STF Plenário. ADI 5286/AP, Rel Min. Luiz Fux, julgado em 18.05.2016). (BRASIL, 2016b)
65Tais funções são especificadas no capítulo 4 desta tese.
212
Como percebe Amélia Rocha, essas funções institucionais têm o condão de explicitar e
sistematizar “as inúmeras e necessárias possibilidades de atuação da instituição”, como
“meios e caminhos possíveis e necessários para a concretização do acesso ao que é justo para
as pessoas em situação de vulnerabilidade” (ROCHA, 2013, p. 124).
A Defensoria Pública brasileira, assim, logrou se estabelecer normativamente com um
sólido arcabouço de previsões aptas a conferir-lhe condições de desempenhar as ingentes
tarefas que lhe foram atribuídas. Com efeito, a partir da sua inclusão normativa no texto
constitucional, passando pelo reforço representado pela atuação do poder constituinte
reformador e pelo legislador infraconstitucional, despontou como uma das principais
instituições de acesso à justiça do continente, servindo, inclusive, de modelo no SIDH.
3.2 Atuação internacional da Defensoria Pública: a Defensoria Pública da
União (DPU) e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)
Uma das importantes funções a serem desempenhadas pela Defensoria Pública, e que
sustém cada vez mais protagonismo, é a decorrente do inciso VI do art. 4º da LONDP
(BRASIL, 2009), referente à atuação perante os organismos internacionais de direitos
humanos. Por isso a necessidade de um estudo mais aprofundado dessa modalidade de
atuação, com base no conhecimento prévio da estrutura e funcionamento do SIDH (que é o
mais próximo da realidade brasileira), para uma posterior análise dos mecanismos utilizados
pela DPU e da AIDEF no efetivo acesso a esse peculiar sistema de proteção dos direitos
humanos no continente.
3.2.1 O SIDH: estrutura e funcionamento
A Segunda Guerra Mundial representou um momento histórico que ensejou profundas
transformações. As atrocidades cometidas em nome da lei, em evidente afronta à dignidade
humana, fizeram aflorar a necessidade de se constituir um arcabouço jurídico arrimado na
universalização e internacionalização dos direitos humanos. O documento basilar desse foi a
Carta da ONU, aprovada na Conferência de São Francisco, em junho de 1945 (ONU, 1945).
Desde então, foi estabelecido um sistema global de direitos humanos, em torno da ONU,
seguindo-se a DUDH, de 1948 (ONU, 1948), e diversos outros tratados que passaram a
compor o sistema internacional global de proteção dos direitos humanos.
213
Paralelamente, com a finalidade de reforçar o arcabouço internacional de proteção dos
direitos humanos, levando-se em consideração as especificidades regionais e a afinidade de
países de regiões determinadas, surgiram os sistemas regionais de proteção dos direitos
humanos, destacando-se o europeu, o africano e o interamericano.
Diversamente do sistema regional europeu que teve como fonte inspiradora a tríade
indissociável Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos, “o sistema regional
interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuadamente
autoritário” (PIOVESAN, 2015, p. 145). Assim, o SIDH foi criado pela OEA em 1948. O
primeiro documento a integrar o SIDH foi a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, proclamada em 1948 (OEA, 1948), que inclusive precedeu cronologicamente a
própria Declaração Universal.
O documento fundamental de proteção dos direitos humanos, entretanto, é a CADH, de
1969, também chamada de Pacto de San Jose da Costa Rica (OEA, 1969), que entrou em
vigor somente em 1978, após receber o número mínimo de 11 ratificações (MAZZUOLI,
2014, p.114). De acordo com o site da CIDH, atualmente são 23 os países que aderiram e
ratificaram a CADH (CIDH, s/d), com ausências relevantes, como EUA, Canadá e Venezuela,
esta última tendo denunciado o tratado em 2102 (OEA, s/d). Conforme informação do mesmo
site da CIDH, o Brasil aderiu à Convenção em 7 de setembro de 1992, depositou a carta de
adesão em 25 de setembro de 1992 (CIDH, s/d), promulgando-a por meio do Decreto n. 678,
de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992).
A CADH assegura um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto no Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966. Já os direitos sociais,
culturais e econômicos encontram-se previstos no Protocolo de San Salvador, adicionado à
CADH em 1988 e em vigor desde novembro de 199966. O Brasil ratificou o Protocolo em
1999, por meio do Decreto nº 3321, de 30 de dezembro de 1999 (BRASIL, 1999).
Relevante é destacar que o arcabouço normativo constante na CADH representa uma
proteção complementar à oferecida pelos Estados-partes, no exercício de sua soberania, por
66O art. 26 da CADH apenas enuncia que: Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no
âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados (OEA, 1969).
214
meio de seu Direito interno. Assim, aos Estados cabe a atribuição precípua de amparar e
proteger os direitos das pessoas sujeitas à sua jurisdição. Somente nos casos nos quais não há
ou essa proteção é deficiente, em descompasso relativamente às previsões da CADH, o SIDH
poderá ser acionado, a fim de assegurar determinado direito, com cujo cumprimento o Estado-
parte comprometeu-se ao aderir à CADH. É exatamente nessa perspectiva que se pensa, na
esteira do proposto por Flávia Piovesan67, em uma perspectiva garantista multinível de
proteção de direitos no âmbito interno e, de modo complementar, pelo SIDH (PIOVESAN,
2015).
Cumpre lembrar, por oportuno, que a CADH passou a ostentar o status de norma
supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, em virtude de decisão do STF68, que atribuiu
tal hierarquia aos tratados internacionais de direitos humanos não ratificados, seguindo o
procedimento estabelecido pelo §3º do art. 5º da CF, incluído pela EC 45/2004 (BRASIL,
2004).
Há que se destacar, entretanto, o entendimento doutrinário que considera que,
independentemente da entrada em vigor do §3º do art. 5º da CF, os tratados internacionais de
direitos humanos têm hierarquia constitucional, por força do §2º do art. 5º, que estabelece
cláusula materialmente aberta de direitos fundamentais. Nesse mesmo sentido posiciona-se
Piovesan (2013, p. 144), para quem os tratados ratificados anteriormente à EC 45/2004 são
material e formalmente constitucionais e, quanto aos posteriores, defende o argumento de que
o quorum que o § 3º do art. 5º estabelece serve tão somente para atribuir eficácia formal a
esses tratados e não a índole materialmente constitucional que eles já têm em virtude do §2 do
art. 5º da Constituição. Assim, conforme Piovesan (2013, p. 145), “com o advento do §3º do
art. 5º surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: a)
os materialmente constitucionais; b) os material e formalmente constitucionais”, para concluir
67Neste contexto, o SIDH gradativamente se empodera, mediante diálogos a permitir o fortalecimento dos
direitos humanos em um sistema multinível. É sob essa perspectiva multinível que emergem duas vertentes do diálogo jurisdicional, a compreender o diálogo com os sistemas nacionais (a abranger o controle de convencionalidade) e o diálogo com a sociedade civil (a emprestar ao SIDH crescente legitimação social). (PIOVESAN, 2015, p.154).
68De fato, no julgamento do RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, o STF, ao decidir sobre a possibilidade de prisão civil do depositário infiel em face da proibição contida na CADH, reconheceu o status de norma supralegal (embora ainda infraconstitucional), no ordenamento jurídico nacional, dos tratados internacionais de direitos humanos, em decisão assim ementada: “PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, §7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE n. 349.703 e dos Hcs n. 87.585 e n. 92.556. É ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. (BRASIL, 2008a)
215
em seguida que “todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente
constitucionais, por força do §2º do art. 5º” (PIOVESAN, 2013, p. 145).
Disposição importante da CADH é a que estabelece a chamada “cláusula federal”, para
evitar que Estados aleguem questões internas relativas às competências de entes federativos
para o descumprimento de normas da Convenção e posterior responsabilização69.
Em reforço à efetividade das normas contidas na CADH, seu art. 29 estatui que
nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o
exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em
maior medida do que a nela prevista;
b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser
reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de
Convenções em que seja parte um dos referidos Estados;
c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem
da forma democrática representativa de governo;
d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a DADH e outros atos internacionais
da mesma natureza (OEA, 1969).
O monitoramento da efetividade dos direitos enunciados na CADH é levado a efeito
pela CIDH e pela CorteIDH, nos moldes adiante estabelecidos.
A CIDH foi estabelecida na Carta da OEA, em 1948 (OEA, 1948), e, por essa razão, sua
competência alcança todos os Estados-partes da CADH e, ainda, todos os Estados-membros
da OEA, em relação aos direitos estabelecidos na DADH (PIOVESAN, 2013 p. 137). Sua
configuração atual, entretanto, somente foi possível com suporte no extenso rol de artigos da
CADH.
69Artigo 28. 1. Quando se tratar de um Estado-parte constituído como Estado federal, o governo nacional do
aludido Estado-parte cumprirá todas as disposições da presente Convenção, relacionadas com as matérias sobre as quais exerce competência legislativa e judicial. 2. No tocante às disposições relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, o governo nacional deve tomar imediatamente as medidas pertinentes, em conformidade com sua Constituição e com suas leis, a fim de que as autoridades competentes das referidas entidades possam adotar as disposições cabíveis para o cumprimento desta Convenção. 3. Quando dois ou mais Estados-partes decidirem constituir entre eles uma federação ou outro tipo de associação, diligenciarão no sentido de que o pacto comunitário respectivo contenha as disposições necessárias para que continuem sendo efetivas no novo Estado, assim organizado, as normas da presente Convenção(OEA, 1969).
216
A CIDH, que atualmente tem sede em Washington, está composta de sete membros,
pessoas de elevada autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos
(art. 34) (OEA, 1969), que são eleitas, a título pessoal, pela Assembleia Geral da OEA, com
base em uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados-membros (art. 36)
(OEA, 1969), não podendo fazer parte da CIDH mais de um nacional de um mesmo país (art.
37, 2) (OEA, 1969).
De acordo com o art. 41, a CIDH tem a função principal de promover a observância e a
defesa dos direitos humanos e, no exercício de seu mandato, tem as seguintes funções e
atribuições:
a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América;
b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar
conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos
humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como
disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos;
c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de
suas funções;
d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações
sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos;
e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da OEA, lhe formularem os
Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de
suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que lhes solicitarem;
f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade,
de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 desta Convenção;
g) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral da OEA (OEA, 1969).
O acesso à CIDH é amplo, pois, conforme o art. 44, qualquer pessoa ou grupo de
pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-
membros da OEA, pode apresentar à CIDH petições que contenham denúncias ou queixas de
violação da CADH por um Estado-parte, desde que cumpridos os requisitos de
admissibilidade encartados no seu art. 46 (OEA, 1969).
Detalhe importante é que somente a CIDH (que tomará parte em todos os casos
propostos perante a CorteIDH, conforme o art. 57 da CADH) (OEA, 1969) e os Estados-
217
partes podem submeter um caso à CorteIDH (art. 61) (OEA, 1969), não estando legitimados o
indivíduo, grupos de indivíduos ou organizações não governamentais (como acontece, por
exemplo, no acesso à Corte Europeia de Direitos Humanos, nos termos do art. 34 da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH70). Por essa razão, a doutrina considera
o papel da CIDH assemelhado ao desempenhado pelo Ministério Público no sistema de
justiça brasileiro, no tocante às ações penais de iniciativa pública incondicionada.
Já a CorteIDH tem sede atual em San José (Costa Rica), local de assinatura da CADH,
embora possa realizar reuniões no território de qualquer Estado-membro da OEA em que
considerar conveniente, pela maioria dos seus membros e mediante prévia aquiescência do
Estado respectivo (art. 58) (OEA, 1969). É composta de sete juízes, nacionais dos Estados-
membros da OEA, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral, de
reconhecida competência em matéria de direitos humanos.
A CorteIDH é competente para processar e julgar qualquer caso relativo à interpretação
e à aplicação das disposições da CADH, para apreciar consultas dos Estados relativas à
interpretação das normas do SIDH e para emitir pareceres a respeito da compatibilidade entre
leis internas e os tratados do SIDH, fazendo o que na doutrina se convencionou chamar de
“controle de convencionalidade das leis”.
De acordo com o site da CIDH, até dezembro de 2017, 20 países estavam submetidos à
jurisdição contenciosa da CorteIDH (CIDH, s/da). Mencionem-se, mais uma vez, importantes
ausências: EUA, Canadá e Venezuela. “A submissão à jurisdição de uma Corte internacional
não significa um enfraquecimento da soberania estatal, mas o fortalecimento de sua
democracia e da promoção dos direitos fundamentais elencados na sua constituição”
(LASCALA; FREITAS, 2012, p. 1040).
Ressalte-se que a CorteIDH não efetua uma interpretação estática dos direitos humanos
enunciados na CADH, mas, tal como a Corte Europeia, realiza interpretação dinâmica e
evolutiva, considerando o contexto temporal e as transformações sociais, o que permite a
expansão de direitos (PIOVESAN, 2013, p. 146).
70 Art. 34. O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou
grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem - se a não criar qualquer entrave ao exercício efectivo desse direito (CONSELHO DA EUROPA, 1950).
218
Streck e Saldanha (2013, p. 415) ressaltam a importância da jurisprudência da Corte
para a consolidação dos direitos humanos na América Latina, marcada por Estados
submetidos a governos autoritários que, no curso de décadas, “não só reforçaram as
consequências negativas do pós colonialismo e institucionalizaram a violência, quanto
cumpriram a agenda econômica neoliberal predeterminada” (STRECK; SALDANHA, 2013,
p. 415). Ademais, outra importante contribuição da CorteIDH para o direito internacional dos
direitos humanos tem sido a imposição bem-sucedida de reparações, não mais limitadas ao
pagamento de indenizações, mormente no tocante às alterações legislativas necessárias para
compatibilizar o direito interno à CADH. Valério Mazzuoli e Luiz Flávio Gomes citam como
exemplos de reparações distintas da mera indenização: obrigação de construção de posto
médico e escolar; obrigação de alterar o ordenamento jurídico interno; obrigação de investigar
e punir responsáveis pela violação; obrigação de tornar nulo processo judicial; construção de
monumentos em memória das vítimas de violações de direitos humanos (GOMES;
MAZZUOLI, 2010, p. 330).
A principal dificuldade que a CorteIDH vem enfrentando refere-se ao cumprimento das
condenações referentes às investigações efetivas dos fatos que originaram as violações, bem
como a identificação e sanção dos responsáveis. De fato, como preconiza Bobbio (1992, p.
25), a garantia dos direitos humanos no plano internacional só será implementada quando uma
“jurisdição internacional se impuser concretamente sobre as jurisdições nacionais, deixando
de operar dentro dos Estados, mas contra os Estados e na defesa do cidadão”. Em outro
estudo, “O Futuro da Democracia”, Bobbio retomou a ideia ao vaticinar que “o sistema ideal
de uma paz estável pode ser expresso com esta fórmula sintética: uma ordem democrática de
Estados democráticos” (BOBBIO, 2004, p. 13).
Piovesan (2013, p. 163-166), por sua vez, aponta alguns caminhos para o fortalecimento
da justiça internacional:
a) adoção de legislação interna, pelos Estados, relativa à implementação das decisões
internacionais em matéria de direitos humanos;
b) previsão de sanção ao Estado que, de forma reiterada e sistemática, descumprir as
decisões internacionais;
c) demanda por maior democratização do sistema, começando com o direito de acesso
direto do indivíduo à CorteIDH;
219
d) instituição de funcionamento permanente e da CIDH e da CorteIDH, com recursos
financeiros, técnicos e administrativos suficientes.
Enquanto tais medidas não sejam implementadas, porém, é possível valer-se da
simbiose entre a ordem constitucional interna e os organismos internacionais, potencializando
a proteção dos direitos humanos. De fato, como leciona Neves (2014, p. 207), o “modelo de
articulação” (“engagement model”) ou melhor, de entrelaçamento transversal entre ordens
jurídicas, é caminho mais adequado em matéria de direitos humanos, porque estas
apresentam-se aptas a reconstruírem-se permanentemente, por meio do aprendizado com as
experiências de ordens jurídicas interessadas concomitantemente na solução dos mesmos
problemas jurídicos constitucionais de direitos fundamentais ou direitos humanos.
Um dos objetivos desta tese, portanto, é investigar como a Defensoria Pública pode
funcionar como instituição catalisadora desse “modelo de articulação” entre ordens jurídicas,
resultando em um ambiente de maior conhecimento, promoção e proteção de direitos
humanos. Nessa perspectiva, indispensável é o conhecimento da atuação da DPU e da
AIDEF.
3.2.2 A atuação interamericana da Defensoria Pública: DPU e Associação
Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF)
A DPU encontra-se organizada pelos ditames da LC 80/94 que, em seu art. 14,
estabelece que tal instituição atuará nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, junto às
Justiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores e instâncias
administrativas da União (BRASIL, 1994). No âmbito da DPU, no que diz respeito à atuação
dos defensores públicos federais no âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos
humanos, destaca-se a previsão da Resolução n. 127, de 6 de abril de 2016, do Conselho
Superior, que cria a figura do Defensor Nacional de Direitos Humanos, designado pelo
Defensor Público-Geral Federal, dentre integrantes de lista sêxtupla elaborada pelo Conselho
Superior da DPU (DPU, 2016).
No art. 7º, I da citada Resolução (DPU, 2016), verifica-se que incumbe ao Defensor
Nacional de Direitos Humanos representar aos sistemas internacionais de proteção dos
direitos humanos, postulando perante seus órgãos. Assim, a DPU atribui a uma figura
específica a tarefa de acessar os diversos Comitês Internacionais do Sistema Geral de
220
Proteção dos Direitos Humanos, como, por exemplo, os previstos no PIDCP, no PIDESC e
seus respectivos protocolos adicionais facultativos ou mesmo nos comitês do sistema
internacional especial de proteção dos direitos humanos, como os previstos na “Convenção
para a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, na “Convenção para a
eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher”, na “Convenção
internacional contra a Tortura” entre outros. Ademais, avultará a importância do Defensor
Nacional de Direitos Humanos em sua atuação perante o SIDH, levando até a CIDH situações
de graves violações de direitos humanos ocorridas e verificadas na diuturna labuta dos
defensores públicos federais em seus órgãos de atuação.
A AIDEF, por sua vez, é uma associação de defensorias públicas entre cujos objetivos
principais se encontram: defender a plena vigência e eficácia dos direitos humanos,
estabelecer um sistema permanente de coordenação e cooperação interinstitucional das
Defensorias Públicas e Associações de Defensores Públicos das Américas e Caribe, defender
a independência e autonomia das Defensorias Públicas para assegurar o pleno exercício do
direito de defesa das pessoas (AIDEF, s/da).
A criação da AIDEF foi oficializada em 18 de outubro de 2003, na cidade do Rio de
Janeiro, durante o II Congresso Interamericano de Defensorias Públicas, quando foi assinada
a sua ata constitutiva. O Estatuto da AIDEF foi aprovado em 2009, em Montevideo e
devidamente registrado na Guatemala (país sede da Associação), no dia 4 de junho. A criação
da AIDEF foi motivada pela perspectiva dos seus países-membros perante a necessidade de
assegurar o funcionamento de um sistema estável de coordenação e cooperação
interinstitucional, a fim de fortalecer as Defensorias Públicas das Américas e Escritórios de
Assistência Jurídica do Caribe (DPU, s/d).
Cabe destacar que a AIDEF obteve avanços proeminentes quanto às metas estabelecidas
em seu plano de trabalho, dos quais se ressaltam a aprovação de duas resoluções inéditas da
OEA sobre a assistência jurídica gratuita e a assinatura de convênio com a CIDH e CorteIDH
para indicar defensores públicos interamericanos para atuação perante o SIDH (AIDEF, s/da).
O primeiro documento normativo da OEA, Resolução AG/RES. 2656 (XLI-O/11)
(OEA, 2011), reconhece a figura do Defensor Público Interamericano e respalda o trabalho da
AIDEF no fortalecimento das defensorias públicas nos Estados-membros. Importante é
destacar, ainda, que a citada Resolução, em seu nº 2, decide “apoiar o trabalho que vêm
221
desenvolvendo os defensores públicos oficiais dos Estados do Hemisfério, que constitui um
aspecto essencial para o fortalecimento do acesso à justiça e à consolidação da democracia”;
em seu nº 3 “afirmar a importância fundamental do serviço de assistência jurídica gratuita
para a promoção e a proteção do direito ao acesso à Justiça de todas as pessoas, em especial
daquelas que se encontram em situação especial de vulnerabilidade; no nº 4 “recomendar aos
Estados membros que já disponham do serviço de assistência jurídica gratuita que adotem
medidas que garantam que os defensores públicos oficiais gozem de independência e
autonomia funcional”; nº 5 “incentivar os Estados membros que ainda não disponham da
instituição da Defensoria Pública que considerem a possibilidade de cria-la em seus
ordenamentos jurídicos” (OEA, 2011).
Conforme anota Fensterseifer (2017, p. 164-165), a Resolução AG/RES. 2656 (XLI-
O/11), da OEA (OEA, 2011) “estabelece as premissas de um modelo público de assistência
jurídica aos necessitados, em sintonia com o modelo constitucional adotado pelo Brasil pela
CF/88” (FENSTERSEIFER, 2017, p. 164), sendo tal modelo sugerido a todos os Estados
Americanos, firmando, assim, a OEA “importante posição política a respeito do direito à
assistência jurídica, de titularidade dos necessitados e do correspondente dever dos Estados-
partes que a integram de efetivá-lo por meio de um sistema público” (FENSTERSEIFER,
2017, p. 165).
No dia 3 de agosto de 2016 a AIDEF aprovou os princípios e diretrizes sobre a
Defensoria Pública das Américas (AIDEF, 2016), que sistematizam os parâmetros em matéria
de Defensoria Pública que a Assembleia Geral da OEA tem desenvolvido nas resoluções
adotadas desde 2011, por provocação da AIDEF. No citado documento, se reconhece, entre
outros pontos, que o trabalho dos defensores públicos oficiais constitui um aspecto essencial
para o fortalecimento do acesso à justiça e a consolidação da democracia; a obrigação dos
Estados de eliminar os obstáculos que afetem ou limitem o acesso à Defensoria Pública, de
maneira que se assegurem o livre e pleno acesso à justiça e a importância que a Defensoria
Pública conte com independência, autonomia funcional, financeira e orçamentária. Cabe
destacar o fato de que tais princípios e diretrizes constituem um documento inédito para a
região, que consolida os princípios básicos de uma Defensoria Pública integral e autônoma,
ferramenta fundamental para a proteção dos direitos humanos de todas as pessoas, em
especial, daquelas mais vulneráveis (AIDEF, 2016).
222
No dia 13 de outubro de 2016, no marco do 89º Período Ordinário de Sessões, ocorrido
na cidade do Rio de Janeiro, de 3 a 14 de outubro, o Comitê Jurídico Interamericano (CJI) da
OEA adotou por unanimidade a Resolução CJI/RES. 226 (LXXXIX-O/16), mediante a qual
aprovou os princípios e diretrizes sobre a Defensoria Pública das Américas. Ademais o CJI
decidiu remeter o documento “ao Conselho Permanente da OEA com a recomendação de que
considere elevá-la à Assembleia Geral da Organização para a eventual aprovação de ditos
princípios”. Em sua Resolução AG/RES. 2908 (XLVII-O-17) de junho de 2017, a Assembleia
Geral tomou nota dos princípios e diretrizes e solicitou ao Departamento de Direito
Internacional que desse a ele a mais ampla difusão (AIDEF, s/da).
Assim, além do papel de fornecer defensores públicos interamericanos para atuação
perante o SIDH, percebe-se que a AIDEF exerce importante papel político, influenciando a
elaboração de documentos importantes que delimitam subidos parâmetros de acesso à justiça
por meio das defensorias públicas no Continente. Desse modo, os Estados que se colocam sob
a ingerência da OEA comprometem-se com um modelo público de assistência jurídica
bastante semelhante ao adotado no Brasil, com foco na defesa dos direitos humanos e,
principalmente, de grupos vulneráveis.
Fensterseifer (2017, p. 165) lembra que a figura do defensor interamericano foi criada
no LXXXV Período Ordinário de Sessões da CorteIDH, dos dias 16 a 28 de novembro de
2009, inserindo novos dispositivos em seu Regulamento. Nos termos do seu art. 2º, 11
(CORTEIDH, 2009) “a expressão ‘Defensor Interamericano’ significa a pessoa que a Corte
designe para assumir a representação legal de uma suposta vítima que não tenha designado
um defensor por si mesma”. Já o art. 37 passa a estatuir que “em casos de supostas vítimas
sem representação legal devidamente credenciada, o Tribunal poderá designar um Defensor
Interamericano de ofício que as represente durante a tramitação do caso”. Com efeito,
conforme exprime Rocha (2013, p. 36),
a AIDEF firmou com a Corte Interamericana de Direitos Humanos Acordo de Entendimento “para que nos casos em que figure vítima que careça de recursos econômicos e de representação legal perante a CorteIDH, a AIDEF seja acionada, por sua Coordenação geral, para designar Defensor Público apto a assumir a sua representação e defesa legal”.
A criação do defensor público interamericano surgiu da necessidade de reformar o papel
da CIDH perante a CorteIDH, outorgando maior protagonismo ao litígio entre os
representantes das vítimas ou presumidas vítimas e o Estado demandado, permitindo, assim,
223
que a CIDH exerça mais um papel de órgão do sistema interamericano, afiançando, desse
modo, o equilíbrio processual entre as partes, conforme é possível ler na Exposição de
Motivos da Reforma do Regulamento da CorteIDH (CORTEIDH, 2009a). De fato,
anteriormente a CIDH exercia posição dual perante a CorteIDH, sendo ao mesmo tempo a
representante das vítimas de violações de direitos humanos e um órgão do sistema
interamericano.
A figura do Defensor Interamericano é, sem dúvida, distinta daquela destinada ao
defensor público no âmbito constitucional, mas, ainda assim, há forte conexão entre ambas as
funções, bem como o movimento político verificado no âmbito da OEA de valorizar a figura
dos defensores públicos (FENSTERSEIFER, 2017, p. 165). Tal distinção verifica-se, por
exemplo, na forma de investidura, nas prerrogativas e amplitude de atuação, mas apresentam
similitude nas funções de defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Como noticia Rocha (2013, p. 37),
Os critérios de seleção dos defensores públicos interamericanos serão definidos internamente por cada país, de modo que cada um indique seus representantes à AIDEF. No caso brasileiro, foi divulgado edital conjunto ANADEP (Associação Nacional de Defensores Públicos) e CONDEGE (Conselho de Defensores Públicos Gerais) estabelecendo critérios objetivos para a seleção, priorizando a qualificação técnica e os conhecimentos teóricos e práticos sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Atualmente integram a AIDEF representantes de 18 países: Argentina, Bolivia, Brasil,
Colômbia, Costa Rica, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Perú, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Posteriormente foram incorporados Bahamas, Bolívia, Estados Unidos, Guatemala, Jamaica,
Panamá, Perú y Trinidad y Tobago (AIDEF, s/d). Os defensores públicos interamericanos,
hoje em número de 20, possuem atuação destacada perante a CIDH e a CorteIDH.
Assim, podem ser citados os seguintes casos, nos quais houve intervenção de defensores
públicos interamericanos na CorteIDH, em ordem cronológica, de acordo com o site da
AIDEF (AIDEF, s/db):
*Sebastián Claus Furlán y familia vs. Argentina (Caso Nº 12.539) – Primeiro caso da
CorteIDH em que houve a atuação da Defensoria, remetido em 15 de março de 2011 e com
sentença datada de 31 de agosto de 2012. Sebastián Furlan sofreu um acidente nas
224
dependências de um prédio do Exército argentino, que implicou uma série de consequências
físicas e mentais. A CorteIDH condenou o Estado argentino por:
a) violação do direito ao julgamento do processo em prazo razoável, especialmente por
conta do estado de vulnerabilidade acentuada da vítima;
b) violação do direito à proteção judicial e propriedade privada;
c) inefetividade do Estado em garantir o acesso à justiça e integridade pessoal de
Sebástian e seus familiares.
A CorteIDH entendeu que é dever do Estado incluir a pessoa com deficiência na
sociedade e adotar medidas positivas para eliminar as barreiras impostas pela sociedade
(CORTEIDH, 2012a).
*Oscar Alberto Mohamed vs. Argentina (Caso 11.618) – Remetido em 13 de abril de
2011 e com sentença datada de 23 de novembro de 2012. Mohamed foi condenado pelo delito
de homicídio culposo, por um tribunal que revogou uma decisão absolutória de primeira
instância. A Corte Interamericana decidiu que:
a) não há que se falar em novo processo quando a acusação interpõe o recurso de
apelação dentro do prazo legal, tendo em vista que o processo penal se desenvolve
em etapas, sendo a fase recursal uma delas;
b) o sistema processual penal argentino aplicado não garantiu um recurso ordinário
acessível e eficaz que permitisse um exame da sentença condenatória, nos termos do
art. 8.2.h da CADH;
c) o Estado adotasse as medidas necessárias para garantir a Mohamed o direito de
recorrer da sentença, bem como o pagamento de indenização (CORTEIDH, 2012b).
*Familia Pacheco Tineo vs. Bolivia (Caso No. 12.474) – Remetido em 21 de fevereiro
de 2012 e com sentença datada de 25 de novembro de 2013. Nesse caso atuou o defenor
brasileiro Roberto Tadeu Vaz Curvo. Refere-se à devolução da família Pacheco Tineo em
fevereiro de 2001 como consequência da denegação da solicitação de reconhecimento do
estatuto de refugiados na Bolívia e sua expulsão ao país de origem, sem qualquer
possibilidade de defesa. Esta solicitação foi resolvida desfavoravelmente em horas, de forma
sumária e em violação das garantias do devido processo. A CorteIDH declarou a
responsabilidade do Estado pela violação dos direitos e garantias judiciais, proteção judicial,
circulação e residência, integridade pessoal e direitos da criança, em prejuízo da Pacheco
225
Tineo. A condenação abrangeu a obrigatoriedade de ampla publicidade à sentença, obrigação
de capacitação aos funcionários da Direção Nacional de Migração e Comissão Nacional de
Refugiados e indenização às vítimas (CORTEIDH, 2013).
*Hugo Oscar Argüelles y otros vs. Argentina (Caso No. 12.167) – Remetido em 29 de
maio de 2012 e com sentença datada de 20 de novembro de 2014. Refere-se à violação ao
direito de liberdade e a um processo justo nos processos internos levados adiante contra
oficiais militares pelo delito de fraude militar, em cumprimento às disposições do Código de
Justiça militar argentino então vigente. A CIDH já há via concluído que foi violado o direito à
liberdade pessoal das vítimas ao mantê-las em prisão preventiva por um período excessivo e
que o Código de Justiça Militar incluía certas previsões que constituíam violação do direito a
um juízo justo e de acesso à justiça. Já a CorteIDH declarou o Estado argentino responsável
internacionalmente pela violação do direito à liberdade pessoal e da presunção de inocência,
do direito de ser assistido por um defensor letrado de sua eleição e da garantia judicial do
prazo razoável do processo (CORTEIDH, 2014).
*Canales Huapaya y otros vs. Perú (Caso No. 12.214) – Remetido em 5 de dezembro
de 2013 e com sentença datada de 24 de junho de 2015. Nesse caso atuou o defensor
brasileiro Antonio José Maffezoli. Refere-se à violação do direito às garantias judiciais e
proteção judicial em prejuízo de Carlos Alberto Canales Huapaya, José Castro Ballena e
María Gracia Barriga Oré, como consequencia da falta de resposta judicial adequada e efetiva
frente aos ceses na qualidade de funcionários permanentes do Congresso da República do
Perú. A CorteIDH determinou que o Estado peruano era responsável pela violação dos
direitos protegidos nos artigos 8.1 e 25.1 da CADH (garantias judiciais e proteção judicial),
em relação às obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento (CORTEIDH,
2015a).
*José Agapito Ruano Torres y familia vs. El Salvador (Caso No. 12.679) – Remetido
em 13 de fevereiro de 2014 e com sentença datada de 5 de outubro de 2015. José Agapito
Ruano Torres foi preso em sua casa, na madrugada de 17 de outubro de 2000, sendo
maltratado diante de sua família. Depois foi processado e condenado penalmente em violação
às garantias mínimas do processo. A CIDH concluiu pela ocorrência de tortura e condenação
com sérias dúvidas de autoria, em violação à presunção de inocência, além da deficiente
atuação da defensoria pública ter constituído uma violação do direito de defesa. Considerou
ainda que o Estado não garantiu recursos efetivos para investigar as torturas sofridas, para
226
proteger a vítima frente às violações ao devido processo, nem para revisar sua prisão. A
CorteIDH considerou El Salvador responsável pela violação ao direito à integridade pessoal,
pela tortura, pela violação do direito à liberdade pessoal, presunção de inocência, ao direito de
defesa e o de ser ouvido com as devidas garantias, ao direito à proteção judicial, assim como a
falta de garantias do direito à integridade pessoal com respeito à obrigação de investigar atos
de tortura. Importante destacar que a CorteIDH ressaltou que a Defensoria Pública, por meio
da provisão de serviços públicos e gratuitos de assistência jurídica permite, sem dúvida,
compensar adequadamente a desigualdade processual na qual se encontram as pessoas que
enfrentam o poder punitivo do Estado, assim como a situação de vulnerabilidade das pessoas
privadas de liberdade, bem como garantir-lhes um acesso efetivo à justiça em termos
igualitários (CORTEIDH, 2015b).
*Luis Williams Pollo Rivera vs. Perú (Caso No. 12.617) – Remetido em 8 de fevereiro
de 2015 e com sentença datada de 21 de outubro de 2016. Nesse caso atuou o defensor
brasileiro Carlos Eduardo Barros da Silva. Refere-se a uma série de violações aos direitos
humanos de Luis Pollo durante o tempo em que esteve sob a custódia do Estado, desde 4 de
novembro de 1992, pelo delito de terrorismo. A CIDH concluiu que a detenção foi ilegal e
arbitrária, por não cumprir com a obrigação de informar detalhadamente os motivos da prisão
e realiza-la sem controle judicial. A CorteIDH considerou que o Estado do Perú violou o
direito à liberdade e à integridade pessoal; o direito de ser julgado por um tribunal
competente, independente e imparcial; o direito à presunção de inocência e à defesa, a não
produzir prova contra si mesmo e à publicidade do processo; o princípio da legalidade. A
CorteIDH ordenou ao Estado: i) continuar e concluir, com a devida diligência e em prazo
razoável a investigação pelos atos de tortura sofridos por Pollo Rivera e, se for o caso,
processar e punir os responsáveis; i) publicar a Sentença da Corte Interamericana e pagar as
quantias fixadas na sentença por danos materiais e imateriais e reembolso de despesas
(CORTEIDH, 2016).
*Agustín Bladimiro Zegarra Marín vs. Perú (Caso No. 12.700) – Remetido em 22 de
agosto de 2014 e com sentença datada de 15 de fevereiro de 2017. Refere-se à violação ao
princípio da presunção de inocência e ao dever de motivação das decisões judiciais em
prejuízo de Augustín Bladimiro Zegarra Martín, que foi condenado em primeira instância em
8 de novembro de 1996. A CIDH considerou que existiu inversão do ônus da prova em
desfavor do apenado e que não foram assegurados os recursos judiciais efetivos, gerando
227
violação ao devido processo na sentença condenatória de primeira instância (CORTEIDH,
2017).
*Manfred Amhrein y otros vs. Costa Rica (Caso 12.820) – Remetido em 28 de
novembro de 2014 e com sentença ainda PENDENTE. O Sr. Amrhein e outras dezesseis
pessoas foram condenadas penalmente e não contaram com a possibilidade de apresentar
recursos nos termos do art. 8.2.h da CADH. De acordo com o direito processual penal da
Costa Rica na época, o recurso de cassação era orientado a impugnar unicamente questões de
direito. A CIDH entendeu violado o direito a um recurso que outorgue a possibilidade de uma
revisão integral da decisão condenatória. Assim, os Estados devem dispor dos meios
necessários para compatibilizar as particularidades de seu sistema processual penal com as
obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e, especialmente, com as garantias
mínimas do devido processo estabelecidas no art. 8 da CADH (CIDH, 2014).
*Johan Alexis Ortiz Hernández vs. Venezuela (Caso 12.270) – Remetido em 13 de maio
de 2015 e com sentença ainda PENDENTE. Refere-se ao falecimento de Johan Alexis Ortiz
Hernández, nas instalações da Escola de Guardas Nacionais de Cordero (ESGUARNAC) em
15 de fevereiro de 1998. A vítima tinha 19 anos e foi atingido por projéteis de metralhadora
em um exercício militar, de forma acidental, segundo a versão oficial. Os peticionários
entendem que foram vítimas de ocultação de informações, e denunciaram que as autoridades
investigativas tardaram de maneira negligente a exumação do cadáver. Alegaram, pois, que o
Estado era responsável pela violação aos direitos à vida (artículo 4), integridade pessoal (art.
5), garantias judiciais (art. 8) e proteção judicial (art. 25) da CADH, assim como a obrigação
genérica de respeitar e garantir os direitos protegidos no art. 1(1) do mesmo estatuto (CIDH,
2015).
*V.R.P. y V.P.C v. República de Nicarágua (Caso 12.590) – Remetido em 25 de agosto
de 2016 e com sentença ainda PENDENTE. Refere-se à violação sexual sofrida pela menina
V.R.P, que tinha 9 anos de idade e que afirmou que o responsável pela violação era seu pai. A
CIDH determinou que as violações sexuais cometidas por um ator não estatal constituíram
afetações aos direitos à integridade pessoal, a dignidade, vida privada e autonomia, igualdade
e não discriminação e a proteção especial da menina, em prejuízo de V.R.P. Também
determinou que o Estado da Nicarágua é responsável internacionalmente pelo
descumprimento do dever de garantir tais direitos, particularmente, do dever de investigar
com a devida diligência, em um prazo razoável e de acordo com a perspectiva de gênero e os
228
deveres estatais reforçados derivados da condição de menina da vítima. Considerou ademais
que V.R.P foi gravemente revitimizada com um impacto severo em sua integridade psíquica,
como de sua mãe e outros filhos desta. A CIDH entendeu que a absolvição do agente foi
resultado de um processo violador das obrigações internacionais do Estado e, por tanto, ao
tratar-se de uma grave violação de direitos humanos, recomendou a continuidade da
investigação a nível interno, entre outras medidas de reparação (CIDH, 2016b).
*Poblete Vilches y familiares vs. Chile (Caso 12.695) – Remetido em 27 de agosto de
2016 e com sentença PENDENTE. Nesse caso atuou o defensor brasileiro Rivana Barreto
Ricarte de Oliveira. Refere-se às ações e omissões que tiveram lugar entre 17 de janeiro e 7 de
fevereiro de 2001, datas nas quais Vinicio Antonio Poblete Vilches ingressou em duas
oportunidades no hospital público Sótero del Río, onde faleceu. A Comissão estabeleceu que
houve negligência médica no primeiro atendimento determinou a responsabilidade estatal pela
falta de provisão do tratamento intensivo que necessário na segunda internação. Finalmente,
considerou que as investigações a nível interno não foram realizadas com a devida diligência
e em um prazo razoável (CIDH, 2016c).
*Villaseñor y otros vs. Guatemala (Caso 11.388) – Remetido em 15 de março de 2017 e
com sentença ainda PENDENTE. Caso relaciona-se com uma sequencia de agressões,
ameaças, intimidações e hostilidades sofridos por uma juíza da Guatemala, María Eugenia
Villaseñor, que participou de processos judiciais entre 1991 e 2012, algum de impacto
nacional ou internacional. As denúncias não foram investigados devidamente pelo Estado a
fim de identificar as fontes de risco, erradicá-las e impor sanções. A impunidade dos fatos
denunciados é total. A CIDH considerou que a falta de proteção adequada e de investigação
diligente e efetiva dos fatos repercutiram nos trabalhos como juíza da senhora Villaseñor. A
CIDH concluiu que o Estado violou os artigos 5(1), 8(1) y 25(1) da CADH, en relação com o
art. 1(1) em prejuízo da senhora Villaseñor, e o art. 5(1) combinado com o art. 1(1) em
prejuízo de sua filha, seu irmão e sua irmã (CIDH, 2017).
No âmbito da CIDH, conforme informações do site institucional, podem ser registradas
participações dos defensores públicos interamericanos nos seguintes casos: 1- Esteban Juan
Martínez Pérez vs. Perú, com atuação do brasileiro Antonio José Maffezoli; 2 - Fernando
Rodríguez González vs. México; 3 - Víctor Manuel Boggiano Bruzzon vs. Bolivia; 4 - Gerson
Milusk de Carvalho vs. Brasil; 5 - Gerardo Cruz Pacheco vs. Estados Unidos de México; 6 -
Jorge Eduardo Olivares y otros vs. Perú; 7 - Carlos Andrés Galeso Morales c. Colombia, com
229
atuação da defensora pública brasileira Isabel Penido Campos de Machado; 8 - José Alejandro
Reséndiz Olvera c. México; 9 - Mario Merwan Chira Alvarado y otros c. Perú (CIDH, s/db).
4 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA RESISTÊNCIA
À CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E À SELETIVIDADE
PENAL
Ante os decantados fenômenos da criminalização da pobreza e da seletividade penal,
exaustivamente estudados nos capítulos 1 e 2 desta tese, importante é sublinhar, no arcabouço
constitucional brasileiro, a instituição pensada para garantir aos vulneráveis o efetivo acesso à
justiça, aqui entendido como garantia da plenitude de usufruto de direitos, em uma
perspectiva específica de enfrentamento a esses dois graves problemas. Assim, urge a tarefa
de estabelecer o papel desempenhado pela Defensoria Pública, apresentando caminhos (e
construindo outros) de efetivação de suas múltiplas funções de empoderamento dos pobres, a
fim de garantir-lhes conhecimento e fruição dos direitos formalmente assegurados aos demais.
Essa é a razão condutora deste estudo: delinear o papel constitucional da Defensoria
Pública, em um Estado fundado na ideia-força da dignidade humana, no combate à
criminalização da pobreza, explorando as potencialidades dessa jovem instituição, alargando
suas possibilidades além da mera atuação forense (igualmente importante), fazendo-a alcançar
o status como difusora do discurso e do conhecimento dos direitos humanos, entronizando-a
como porta-voz dos pobres, tornando-os aptos ao exercício da cidadania, no sentido da
consolidação do Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, direcionam-se as ações
conforme doutrina Boaventura de Sousa Santos, deslocando-se a visão para a prática de
grupos e classes socialmente oprimidos que, lutando contra a opressão, a exclusão, a
discriminação, a destruição do meio ambiente, recorrem a distintos formatos de direito como
instrumento de oposição, devolvendo ao direito o seu caráter insurgente e emancipatório
(SANTOS, 2017, p. 7).
Em última análise, trata-se do primeiro passo rumo à escolha de que futuro se pretende
deixar para as gerações vindouras, na esteira do que preconiza Wacquant (2001, p. 13): uma
sociedade aberta e ecumênica, incentivada por um espírito de igualdade e de concórdia (pela
edificação, por mais lenta e difícil que seja, de um Estado social), ou um arquipélago de
231
ilhotas de opulência e de privilégios perdidas no seio de um oceano frio de miséria, medo e
desprezo pelo outro, a partir da escalada, sem freios nem limites, da réplica penal
(WAQUANT, 2001, p. 13).
É preciso incidir contra a lógica punitiva, por meio de uma mudança institucional
profunda, que situa as pessoas no centro das intervenções, garantindo seu protagonismo e sua
dignidade, constituindo a maneira distinta de se lidar com violências e conflitos, que deveria
perpassar todo o sistema de justiça criminal (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 28). Em seus
estudos sobre acesso à justiça, Sadek (2014, p. 26) complementa:
A atuação da defensoria pública tem a possibilidade de romper com uma situação caracterizada por desigualdades cumulativas. Tal traço, definidor da realidade brasileira, retrata uma situação na qual a precariedade de renda implica precariedade em educação, precariedade em saúde, precariedade em habitação, déficits em qualidade de vida. Isto é, desigualdades que se agregam constituindo uma situação de exclusão. Nessa situação, sobra pouco espaço - se algum - para a vivência de direitos.
Destarte, deve-se pugnar pelo estabelecimento, desde os paradigmas e objetivos
constitucionais, de uma proposta de atuação da Defensoria Pública que pretenda aproximar os
pobres da condição de protagonistas de sua história, capazes de identificar e,
organizadamente, se contraporem às manifestações ofensivas à sua dignidade humana pela
atuação discriminatória e criminalizadora, seja do Estado, seja de particulares. Segue-se na
esteira da percepção de Weis (2014, p. 147-148) que, se referindo a uma noção fixada pelo
SIDH, percebeu que o devido processo legal exige do Estado prestações positivas, na busca
de um efetivo direito de acesso à Justiça, de natureza prestacional própria da segunda
dimensão de direitos humanos, ultrapassando o original e restrito direito da pessoa de
constituir defensor para a defesa penal.
Concorda-se, então, com a doutrina de Fensterseifer (2017, p. 92), ao ensinar que
Um dos pontos mais importantes da atuação da Defensoria no cenário jurídico-político contemporâneo é atuar em duas frentes de combate à marginalização social. Ou seja, da mesma forma que lhe é permitido atuar no enfrentamento à repressão penal “elitizada” e, como diz Luigi Ferrajoli, direcionada aos “crimes de subsistência” – ao invés de voltada aos “crimes de poder”, com maior impacto social -, também lhe é autorizado atuar de forma preventiva nas causas que conformam tal realidade criminológica, ou seja, assegurando aos indivíduos e aos grupos sociais vulneráveis os bens sociais indispensáveis ao desfrute de uma vida digna e à conformação do sentimento de respeito e pertencimento a determinada comunidade político-estatal. Em outras palavras, estamos a falar da sua inclusão no pacto social de índole político-jurídica.
232
Para desincumbir-se de tão ingente tarefa, é fundamental a fixação de postulados,
princípios e diretrizes de atuação, a fim de que se confira um norte para a atuação defensória,
evitando condutas sem um foco definido, engolida pela rotina de elaboração mecânica de
peças processuais sem paradigmas de ação, o que resulta em uma atuação que perde em
qualidade. Por essa razão, o CONDEGE, em parceria com o DEPEN e o PNUD,
possibilitaram a publicação Princípios para a atuação da Defensoria Pública nas áreas
criminal e de execução penal, voltada à conformação de um modelo gestor para a atuação de
defensoras e defensores públicos nessa seara (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018), “[...]
considerando-se as visões político-criminais, a situação de encarceramento em massa e a
necessidade de efetivação de uma assistência judiciária integral e gratuita a todas as pessoas”
(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018), além de enfrentar o desafio de “[...] desenhar as
possibilidades institucionais de ampliação da estrutura da Defensoria, de modo a possibilitar
uma articulação mais justa e equilibrada entre os atores do sistema de justiça criminal”
(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018).
Os postulados apontados no estudo foram: I - Enfrentamento ao racismo, às
desigualdades, à seletividade e à violência do sistema de justiça criminal (com os seguintes
princípios: a. enfrentamento ao racismo do Sistema de Justiça Criminal; b. enfrentamento à
criminalização da pobreza e à desigualdade social; c. enfrentamento ao encarceramento em
massa de mulheres e à desigualdade de gênero; d. enfrentamento a todas as formas de
opressão identitárias e respeito à diversidade; e. defesa da liberdade das pessoas com
transtornos mentais e em conflito com a lei; f. prevenção e enfrentamento à tortura e outros
tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes; g. promoção da Liberdade e da
Prevenção; h. afirmação da atuação política da Defensoria Pública); II. Acesso integral e
interdisciplinar à Justiça (com os seguintes princípios: a. centralidade na pessoa e não no
processo; b. escuta qualificada; c. alteridade e sororidade); III. Centralidade, dignidade e
protagonismo das/dos usuárias/os do serviço (com os seguintes princípios: a. Acesso Integral
à Justiça b. Promoção de direitos e acesso a políticas públicas; c. Atuação com enfoque
restaurativo; d. Interdisciplinaridade; e. Promoção e educação em direitos; f. Atuação em
todas as esferas do sistema de Justiça; g. Atuação estratégica; h. Defesa investigativa e
individualizada; i. Efetividade na assistência jurídica); IV. Articulação e integração inter e
intrainstitucional (com os seguintes princípios a. Fortalecimento e profissionalização da
gestão institucional; b. Articulação dos atores internos na gestão e na atuação e com os demais
atores do Sistema de Justiça; c. Atuação em rede); e V. Gestão participativa e transparente
233
(com os seguintes princípios: a. Participação social; b. Transparência institucional)
(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018).
É nessa perspectiva e com esse espírito, portanto, que se defende, neste estudo, o
fortalecimento da atuação defensória em pelo menos cinco eixos, que se comunicam e
complementam, a serem explorados concretamente pela Defensoria Pública no enfrentamento
à criminalização da pobreza e à seletividade penal: 1) a atuação tutelar clássica na defesa
penal; 2) a educação em direitos como instrumento de empoderamento dos vulneráveis; 3) a
atuação transindividual, na proteção de direitos coletivos em sentido amplo; 4) a atuação
extrajudicial; 5) as possibilidades de recurso aos organismos internacionais de proteção dos
direitos humanos.
4.1 A atuação judicial clássica: a Defensoria Pública como instância de
proteção e defesa dos vulneráveis na esfera penal
No primeiro eixo proposto de atuação da Defensoria Pública, deve-se primar
necessariamente por uma atitude de denúncia à atual situação dos cárceres, seguindo-se a
advertência de Zaffaroni (2007, p. 187), para quem “[…] a melhor garantia de eficácia do
direito penal – até onde ela pode ser exigida – é o respeito aos direitos fundamentais”. Dessa
maneira, nos embates diuturnos na esfera penal, deve-se ter em mente essa sólida convicção
de que a prisão existencialmente está em total descompasso relativamente as suas finalidades,
produzindo exatamente o que promete combater e prevenir. Atacar as atuais condições da
prisão significa, então, firmar compromisso com a superação de um modelo que deveria
ensejar vergonha na sociedade, pela quantidade de recursos e esforços que exige (e ainda
assim é inócuo) e pela quantidade de dor desnecessária que produz.
O defensor público, para o integral e comprometido exercício de seu mister no
enfrentamento e contenção do poder punitivo, deve se aproximar do saber criminológico,
principalmente em sua perspectiva crítica, a fim de que assuma, como defendem Shimizu e
Strano (2014, p. 378), “[...] uma visão abrangente sobre o sistema criminal e sobre o contexto
político-econômico dentro do qual se dá a opção política pelo encarceramento em massa da
pobreza”, adquirindo, assim, “[...] um instrumento valioso para que possa entender onde sua
função está inserida, bem como para que se atribua um sentido maior à sua atuação”.
234
Há de se advertir sobre o fato de que a Constituição brasileira oferece opção pela
liberdade, elencando extenso rol de direitos e garantias fundamentais, secundado por uma
legislação das mais modernas na proteção às pessoas acusadas, condenadas e presas. Vive-se
um ambiente satisfatório de previsões normativas. O problema enfrentado é de efetividade, o
que exige uma atuação dos poderes públicos dirigida a uma perspectiva garantista, entendida
como uma técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos e que, por essa razão, é o
traço mais característico, estrutural e substancial da democracia: garantias, tanto liberais como
sociais, expressam direitos fundamentais da pessoa perante os poderes do Estado, os
interesses dos mais débeis em relação aos mais fortes, tutela das minorias marginalizadas
relativamente às maiorias integradas (STRECK; SALDANHA, 2013, p. 411). Em tempos de
reiterado e normalizado descumprimento das disposições constitucionais, potencializados na
seara penal, as tradicionais teorias abolicionistas e inovadoras de proteção transpostas à
legislação restam superadas por súplicas de que, pelo menos, seja-se legalista, garantista.
Ademais, vive-se uma crise do sistema de Justiça, ainda excludente, elitista,
burocratizado e obsoleto, cujos processos, de modo geral, não cumprem seu papel, apenas
servindo de legitimação de um sistema ineficiente, fundado em legalismos e formalismos
arcaicos que sustentam o status quo, marcado pelo “patrimonialismo” nas relações
obrigacionais e pelo “patriarcalismo” nas relações pessoais, tudo dentro de uma lógica rígida
e imóvel de poder (RÉ, 2014, p. 89). O sistema de Justiça, que se desenvolve em prédios
suntuosos, dentro dos quais as pessoas se comunicam em uma linguagem hermética e
ininteligível ao cidadão, impressa em processos, cujas regras de funcionamento não são
menos complexas e inacessíveis, mal conseguem disfarçar que sua existência está vinculada
ao afastamento dos menos favorecidos, aos quais resta a nítida sensação de que não são bem-
vindos. Se na área cível esse sentimento já é recorrente, com muito mais razão ocorre na
senda penal, onde uma pessoa, invariavelmente pobre, comparece (quase sempre,
coativamente) para enfrentar o poder punitivo estatal, muitas vezes parcamente assistido sob o
prisma jurídico, contando com a Providência Divina (para os que crêem) para não serem
injustiçados por um sistema, cuja seletividade é a marca característica. No mesmo sentido
entende Ripoll (2006, p. 56):
La injusticia básica consiste en que los pobres no pueden exigir los derechos que tienen según la ley, primero, porque los procedimientos de la justicia ordinaria no están a su alcance, por ser demasiados caros e dispendiosos; y segundo, porque la pretendida neutralidad del sistema mismo, favorece a los que tienen recursos al no dar un trato preferente a los que no los tienen.
235
A primeira ingente tarefa da Defensoria Pública, pois, passa pela necessidade, em sua
atuação processual diuturna, de cobrar e pugnar por técnicas judiciais adequadas para
assegurar efetividade aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais consagrados
por eles. Essa instituição, assim, não deve se render ao sistema posto/imposto, promovendo a
inclusão jurídica dos marginalizados pelo (e no) sistema, no sentido de concretizar os direitos
fundamentais e fazer da CF e dos tratados internacionais de direitos humanos um modelo não
tão utópico como a realidade tem indicado (RÉ, 2014, p. 91).
Em outros termos, como ensinam Lênio Streck e Jânia Saldanha, o sistema jurídico por
si não pode garantir absolutamente nada; as garantias não podem estar sustentadas apenas em
normas; nenhum direito fundamental pode sobreviver concretamente sem o apoio da luta pela
realização por parte de quem é seu titular e da solidariedade da força política e social
(STRECK; SALDANHA, 2013 p. 412). Na mesma esteira, Carvalho (2008, p. 102), muito
embora reconheça que o modelo garantista assume seu caráter ideal típico, afirma que este
“[...] não se contenta com a mera proposição descritiva isenta de respaldo no plano da
eficácia”. Por essa razão, continua o autor, “[...] a proposta garantista nega os mitos do
positivismo dogmático dedicados a uma visão meramente contemplativa de ordenamentos
jurídicos absolutamente incapazes de responder às demandas das sociedades contemporâneas
(complexas)” (CARVALHO, 2008, p.103).
A atuação tutelar do Estado a ser provocada pela Defensoria Pública afigura-se, então,
importante, principalmente, como leciona Julieta Ripoll, ante a exclusão fática de
determinados grupos populacionais dos serviços do Estado, particularmente de acesso à
justiça, já que a tutela requer um mínimo de recursos materiais e culturais, o que explica sua
baixa utilização pelos grupos mais vulneráveis (RIPOLL, 2006, p. 67). Mais necessária ainda
é essa atuação no processo penal e no de execução penal, nos quais a prisão representa fator
de incremento da vulnerabilidade e do abandono. Como percebeu Godoi (2017, p. 117), em
sua minuciosa pesquisa do sistema penitenciário paulista, “[...] o regime institucional de
processamento de pessoas no sistema penitenciário de São Paulo depende, em grande medida,
da agência dos presos, de seus familiares e/ou defensores, de modo que possa se desenrolar”.
A Defensoria Pública paulista, por sua vez, “[...] para contornar a desorganização e a
irracionalidade das varas e poder interferir em determinados processos de execução no
momento preciso, também dependem da provocação de familiares, agentes pastorais e presos”
(GODOI, 2017, p. 117).
236
Outrossim, como não se pode simplesmente adotar uma atitude abolicionista, pela
ausência de um sistema adequado de total substituição da prisão, que deve continuar existindo
como ultima ratio, além de serem necessárias soluções atuais para o fato concreto de que as
prisões existem (e não há nenhum sinal de que deixarão tão cedo de existir) e o flagrante
desrespeito de direitos que têm produzido, importante destacar a atuação defensória no
enfrentamento às situações de aprisionamento e, no limite, na promoção do respeito aos
direitos dos enredados nessas condições. Como demonstra a história da pena de prisão, sua
função sempre foi isolar, preferencialmente, pessoas que já se encontravam à margem da
sociedade71. Ademais, na prisão contemporânea, que, via de regra, abdicou de seus ideais
ressocializadores e incapacita um número cada vez maior de pessoas, o gerenciamento
meramente burocrático da população prisional assume renovada importância estratégica
(GODOI, 2017, p. 100). Esse regime de processamento pode ser pensado como uma
modalidade particular de governo a distância, que opera por meio de tecnologias de escrita,
em que a internação direta entre presos e agentes estatais é reduzida ao mínimo possível
(GODOI, 2017, p. 101). O defensor público, destarte, tem o dever de funcionar como esse
agente de aproximação e desburocratização, minimizando os efeitos despersonalizantes de
uma atuação que considera apenas o que está no papel (ou nas telas dos computadores),
continente do processo.
Assim, a redução da população prisional deve ser a maior prioridade da instituição. Nesse cenário, a atuação estratégica de consiste em uma intensa e qualificada atuação nas audiências de custódia, “porta de entrada” do sistema de justiça criminal; atuação diligente no processo penal, para a coleta adequada de provas, e em relação aos presos provisórios, por meio da atuação individual e coletiva que sirva de mecanismo para a conquista da liberdade provisória. (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 46).
É inafastável, portanto, a atuação da Defensoria Pública como meio de garantir o acesso
à justiça aos encarcerados. De fato, não há outra maneira de assegurar apoio jurídico a essas
pessoas que não têm condições de suportar os custos elevados da assistência jurídica
particular. Não é à toa que a Defensoria Pública passou a figurar expressamente como órgão
da execução penal, com a inclusão do inciso VIII no art. 60 da LEP pela Lei nº 12.313/2010
(BRASIL, 2010b). Nessa condição, tem-se admitido pela doutrina e jurisprudência pátrias, no
caso de verificação de desídia por parte de advogado particular eventualmente constituído,
inclusive, a atuação da Defensoria Pública no exercício de sua função de velar pela
regularidade da execução penal e na condição de defensora dos direitos humanos, devendo
71 Sobre o assunto, ver subseção 2.3 da tese.
237
tomar medidas para sanear a vulnerabilidade enfrentada pela pessoa (mormente se privada de
liberdade) que esteja sendo prejudicada em seus direitos (ROIG, 2018, p. 313).
Como doutrina Fensterseifer (2017, p. 90), a Defensoria Pública (na medida em que
expressa a ideia de “defesa pública”), nasce da busca de assegurar o exercício do direito de
defesa ante a persecução penal promovida pelo Estado, na busca por um alinhamento de
forças na relação vertical e desproporcional entre Estado e cidadão. Assim, se em regra o
criminoso está em situação de superioridade (de força, astúcia ou poder) sobre a vítima, o que
é mais visível nos casos de utilização da violência, quando se encontra diante do Estado para a
apuração de sua responsabilidade, apresenta-se em situação de vulnerabilidade, necessitando,
assim, de uma equalização de forças que confira ao sistema de justiça a legitimidade e a
racionalidade necessárias para a imposição das consequências proporcionais e suficientes pelo
ato criminoso. Advirta-se para a noção de que essa situação, quando titularizada por pessoas
com as condições financeiras satisfatórias, o que é bastante excepcional, como demonstrado,
pode ser amenizada pela atuação de um advogado contratado com essa finalidade.
A atuação desta importante instituição não poderá, portanto, ser apenas “cosmética”,
gerando mera aparência de prestação do serviço, sem, no entanto, efetivar as disposições
constitucionais e também legais impositivas do real acesso à justiça. Atento a essa
constatação, o legislador alterou a redação do art. 16 da LEP, fazendo inserir a imposição de
que as unidades da Federação tenham serviços de assistência jurídica integral e gratuita, pela
Defensoria Pública, dentro e fora dos estabelecimentos penais (art. 16, LEP), reforçando a
exigência no §5º do art. 83 da LEP, que trata especificamente das áreas e serviços
indispensáveis ao estabelecimento penal (BRASIL, 1984). Ademais, a Lei de Execução, com
as alterações produzidas pela Lei nº 12.313/2010, reza que as unidades da Federação deverão
prestar auxílio estrutural, pessoal e material à Defensoria Pública, com local apropriado nos
estabelecimentos penais destinado ao atendimento pelo defensor público (art. 16, §§1º e 2º,
LEP) (BRASIL, 2010 b).
A legislação brasileira, nesse particular, caminha paralelamente às recomendações da
CIDH, que, ao se referir às pessoas privadas de liberdade, estabeleceu em seu informe
preliminar sobre pobreza, pobreza extrema e direitos humanos na América Latina,
La CIDH recomienda a los Estados a adoptar las medidas necesarias para brindar asistencia legal pública a aquellas personas en privación de libertad preventiva o que cumplen condena y que están en situación de poder solicitar revisión de la privación de libertad o beneficios penitenciarios, a fin de evitar que por falta de
238
recursos económicos no accedan a los mecanismos de revisión o beneficios que la legislación aplicable establezca. (CIDH, 2016a).
Observa-se é que há um sério défice de efetividade, mercê do reduzido número de
defensores públicos no Brasil, o que torna descumprida a citada recomendação da CIDH. Para
tentar, emergencialmente, fazer face ao grave problema, o CONDEGE criou o Programa
Defensoria sem Fronteiras, um acordo de cooperação técnica entre o Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN/MJ), a DPU, o CONDEGE, a Associação Nacional dos Defensores Públicos
(ANADEP) e a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), a fim de
promover melhorias no sistema prisional e garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade
(ANADEP, 2019). O acordo baseia-se em quatro pilares: mobilização de defensores públicos
estaduais e federais para atuação em ações concentradas em unidades da Federação definidas em
planos de trabalho específicos; análise processual e adoção de medidas judiciais ou administrativas,
quando cabíveis, para tutela de direitos de pessoas presas em caráter definitivo ou provisório;
atendimento presencial de pessoas presas, colhendo demandas e prestando informações sobre a
situação processual e acerca de medidas adotadas para a tutela de seus direitos; e, por fim, a produção
de diagnóstico sobre o sistema de Justiça criminal e sistema prisional das unidades da Federação
atendidas pelo Projeto, com elaboração de recomendações voltadas à melhoria das práticas do Poder
Executivo, Defensoria Pública local e demais órgãos do sistema de Justiça (ANADEP, 2019).
O Projeto Defensoria sem Fronteiras é fundamental para atuações emergenciais em unidades da
federação onde a permanente crise do sistema penitenciário eclode em morticínio, fugas e rebeliões,
que é quando finalmente algumas atitudes são tomadas pelo Poder Público. São os momentos, por
exemplo, nos quais se percebe como é insuficiente o número de defensores públicos para dar vazão a
toda a demanda proporcionada pelo sistema penitenciário que, como visto, não se restringe à
protocolização de pedidos perante o Judiciário. Por agregar defensores de todo o Brasil, estaduais e
federais, o Defensoria sem Fronteiras é importante para o intercâmbio de ideias e boas práticas para
sua posterior réplica nas unidades federadas, além de funcionar como relevante instrumento para a
configuração de redes de defensores públicos, para permanente contato, o que amplia as possibilidades
de ação.
A assistência jurídica integral e gratuita, com toda a amplitude que lhe é peculiar,
conforme já explicitado, deverá estender-se, inclusive, aos sentenciados em liberdade,
egressos e seus familiares, sem recursos financeiros para constituir advogados, por meio de
Núcleos Especializados da Defensoria Pública, fora dos estabelecimentos penais, conforme a
letra do art. 16, §3º da LEP, alterado pela Lei nº 12.313/2010 (BRASIL, 2010 b). Esta,
239
inclusive, também é recomendação da CIDH (2016b), no já citado Informe: “Disponer de
servicios públicos o privadas a fin de proporcionar a las personas que estuvieron privadas de
la libertad, ayuda pospenitenciaria eficaz que permita contribuir en su reinserción social”.
Com a efetivação desses novos dispositivos legais, apenas positivou-se o que já era uma
realidade na execução penal: a entronização da Defensoria Pública no papel de protagonismo.
O defensor público poderá, no ambiente prisional, desempenhar suas funções tutelares
clássicas, ao requerer os direitos previstos: livramento condicional, progressão de regime,
indulto, comutação de pena, detração, remição e extinção de pena, trabalho externo, saídas
temporárias e todos os demais relacionados com o sistema progressivo da execução da pena.
Por outro lado, para aqueles que aguardam o julgamento presos, por força de alguma decisão
judicial cautelar, importante é o manejo de pedidos relacionados ao controle da legalidade e
necessidade do encarceramento provisório, que hoje é responsável por quase metade das
prisões no Brasil. É o defensor público, pois, que providenciará o acesso dos encarcerados ao
Judiciário para que usufruam de uma série de direitos subjetivos (impropriamente chamados
de benefícios), relacionados com o retorno à liberdade e à regular execução penal. Sua
atuação plena e independente é vital para a execução penal, mostrando-se inegavelmente
eficaz para a minimização dos riscos de rebeliões e motins, dos índices de superlotação
carcerária, corrupção e tortura, assim como para a maior celeridade e efetividade dos
processos judiciais de execução (ROIG, 2018, p. 314).
Como um meio de expressar as atribuições defensórias nesta seara, a Lei nº
12.313/2010 inseriu na LEP um capítulo específico intitulado “Da Defensoria Pública”,
inventariando um rol exemplificativo de incumbências, por meio das quais esta instituição
velará pela regular execução das sanções penais (art. 81-A e 81-B na LEP)72.
72 Art. 81-A. A Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no
processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva.
Art. 81-B. Incumbe, ainda, à Defensoria Pública: I - requerer: a) todas as providências necessárias ao desenvolvimento do processo executivo; b) a aplicação aos casos julgados de lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado; c) a declaração de extinção da punibilidade; d) a unificação de penas; e) a detração e remição da pena; f) a instauração dos incidentes de excesso ou desvio de execução; g) a aplicação de medida de segurança e sua revogação, bem como a substituição da pena por medida de
segurança; h) a conversão de penas, a progressão nos regimes, a suspensão condicional da pena, o livramento condicional, a
comutação de pena e o indulto;
240
De fato, o grande objetivo é afastar a realidade atual daquela já denunciada por Fragoso,
Catão e Sussekind (1980, p. 98), que, nos anos de 1980, relataram:
A grande maioria da população carcerária não possui advogado particular e fica esquecida nos estabelecimentos penitenciários. Muitos poderiam obter livramento condicional, já que cumpriam os requisitos legais; outros poderiam ter o caso reexaminado através de revisão criminal, com grandes possibilidades de êxito; outros, ainda, foram condenados com base em processos que apresentavam vícios de diversas origens que poderiam ser nulificados por meio de habeas corpus. Em suma, se atendida de maneira conveniente, boa parte da população carcerária poderia estar em liberdade.
A observação de situações atentatórias ao princípio do devido processo legal deve ser
acompanhada da atuação eficiente e em tempo hábil, a fim de que não haja vilipêndio
indevido do direito à liberdade. Assim, a Defensoria Pública deve atuar para evitar que
situações de ilícito aprisionamento perdurem no tempo, causando lesões seriíssimas e
irreparáveis, tanto nas pessoas privadas de liberdade como nos componentes familiares destas
que, inevitavelmente, sofrem com a ausência de um de seus entes queridos. Como, com
acuidade, nota Puleio (2006, p. 184), a Defensoria Pública possui uma posição privilegiada
proporcionada pelo conhecimento exaustivo do funcionamento do sistema penal, o que
possibilita a percepção antecipada dos comportamentos limitativos de direitos que ele produz,
permitindo e incitando a tomada de decisões efetivas em função da proteção dos direitos em
jogo.
Assim, da labuta cotidiana nas varas judiciais de execução penal, é possível antever o
formato que assumem ordinariamente os posicionamentos de membros do Ministério Público
e do Judiciário, atuando-se, assim, estrategicamente, com o conhecimento antecipado e
preventivo, de modo a proteger e promover direitos. Por outro lado, a repetição diuturna de
procedimentos, fluxos e atendimentos habilita o defensor público a conhecer detalhadamente
os problemas que rotineiramente ocorrem na execução penal, que, por serem muitas vezes
inusitados e até inimagináveis em outros ramos do Direito, tornam a atuação peculiarmente i) a autorização de saídas temporárias; j) a internação, a desinternação e o restabelecimento da situação anterior; k) o cumprimento de pena ou medida de segurança em outra comarca; l) a remoção do condenado na hipótese prevista no § 1o do art. 86 desta Lei; II - requerer a emissão anual do atestado de pena a cumprir; III - interpor recursos de decisões proferidas pela autoridade judiciária ou administrativa durante a execução; IV - representar ao Juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de sindicância ou
procedimento administrativo em caso de violação das normas referentes à execução penal; V - visitar os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento, e requerer,
quando for o caso, a apuração de responsabilidade; VI - requerer à autoridade competente a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal. Parágrafo único. O órgão da Defensoria Pública visitará periodicamente os estabelecimentos penais, registrando
a sua presença em livro próprio.
241
difícil. Podem ser listadas, exemplificativamente: sentenças condenatórias que demoram anos
para serem executadas pela simples falta de encaminhamento da guia de recolhimento à vara
de execução; transferências de presos entre unidades prisionais de outras cidades (ou mesmo
para outros estados) sem o encaminhamento do processo de execução; falta de indicação nos
processos da existência de outros processos em andamento; manutenção indevida de
mandados de prisão em aberto, mesmo após decisões concessivas da liberdade; e execuções
de penas em total descompasso em relação ao estabelecido nas sentenças condenatórias.
Todas essas intercorrências, bastante rotineiras, dificultam sobremaneira algo que deveria ser
muito simples e claro, mas que se converte em um grande desafio: identificar a razão do
encarceramento no caso concreto. Somente a prática reiterada e avolumada possibilita a
rápida identificação do problema, bem como a adoção das medidas necessárias para a sua
correção.
A labuta defensória na execução penal é, no rescaldo, uma luta contra o tempo, sua
inexorabilidade e seus efeitos deletérios, principalmente quando vivido em um ambiente de
degradação e desesperança. Não ter como saber o que esperar nem quanto há de durar a
espera são fatores que intensificam bastante o sofrimento vivido no decorrer desse tempo
(GODOI, 2017, p. 99). Como explica Arantes (2012, p. 233), o cárcere vale-se do “esperar”
como uma modalidade de punir “[...] na exata medida que não se pune mais para corrigir um
desvio mas para agravar um estado indefinido de expiação e contenção”, em um sistema no
qual “[...] no limite se encarcera ‘para fazer mal’, ‘pune-se para punir’, numa indistinção
deliberada de meios e fins. Há que se destacar, ainda, na esteira da doutrina de Messuti
(2003), que o tempo no interior da prisão difere absurdamente daquele que se vive fora, de
modo que anos, meses e dias adquirem sentidos diversos quando suportados pela pessoa em
situação de aprisionamento, mormente em circunstância da generalizada ausência de
atividades laborativas e lúdicas, aliadas ao sofrimento natural da privação da liberdade. Os
influxos dessa diversidade de sentimentos quanto ao passar do tempo, ademais, não se
limitam ao interior das muralhas, mormente quando as ações policiais são concentradas em
áreas determinadas da cidade, provocando um contexto no qual “[...] a temporalidade interna
à prisão entra em continuidade com a externa” (GODOI, 2017, p. 127). Desse modo, conclui
o Sociólogo paulista:
O tempo não para de passar, tanto dentro quanto fora da muralhas. Não existe ruptura absoluta de vínculos: dentro se atualizam relações urdidas fora, enquanto fora se desdobram reações de dentro. Uma ampla circulação se estabelece entre determinados bairros e a prisão, tendo com um de seus efeitos a sincronização de
242
temporalidades – o compartilhamento de ritmos, parâmetros e marcos temporais. (GODOI, 2017, p. 127-128).
Imprescindível, portanto, a atuação do defensor público na verificação da legalidade e
da regularidade da execução da pena73. É este profissional que observará se a privação da
liberdade está ocorrendo de modo consentâneo aos ditames constitucionais e também legais,
denunciando situações abusivas e desviantes, assim como promovendo as ações judiciais de
responsabilização do Estado ou de seus agentes, como um meio de inibir os episódios de
desrespeito aos direitos fundamentais e, a um só tempo, promover a indenização por eventuais
danos morais e patrimoniais. Conforme Puleio (2006, p. 187), “[...] el defensor representa,
además, un controlador principal de las condiciones en que se ejecuta la detención – sea
cautelar o no – a partir de la relación fluida y de confianza con su asistido y su incidencia
funcional en las distintas etapas del proceso”. A Defensoria Pública há que velar pela
regularidade jurídica da execução penal (respeito às leis, à Constituição e aos tratados
internacionais), assim como pela regularidade ética, consistente na proteção dos apenados
contra a supressão de seu estado de sujeitos de direitos, ou que deles se utilizem como
instrumentos para alcançar objetivos políticos-criminais utilitaristas (ROIG, 2018, p. 310).
Portanto, os estabelecimentos prisionais precisam contar com profissionais
independentes, sem vinculações de qualquer ordem com a direção do estabelecimento
(maiormente empregatícias, como nos casos de terceirização ou privatização de presídios),
nem com os governantes, a fim de que possuam a isenção necessária para efetuar as denúncias
citadas e movimentar a máquina judicial com o fito de albergar os direitos fundamentais dos
encarcerados. Em apoio a essa constatação, Godoi (2017, p. 60), em sua pesquisa oriunda de
intensa observação do funcionamento das prisões paulistas, destaca as deficiências de atuação
de advogados contratados pela Administração Prisional para a prestação de assistência
jurídica aos presos:
Sua rotina de trabalho, no entanto, costuma centrar-se na verificação dos processos, na conferência de lapsos de progressão e no encaminhamento de pedidos de benefícios, num ritual burocrático de processamento de papeis. Não obstante o trabalho no interior da unidade, próximo ao preso e com o auxílio de outros funcionários, os serviços de assistência judiciária em execuções penais prestados por esses advogas estão longe de ser adequados: os processos ficam anos parados, os pedidos de progressão são, de igual modo, em demasia até, protocolares e geralmente tardam mais que os lapsos mínimos previstos em lei.
73 Esse é, inclusive, o comando constante no art. 81-A da LEP, incluído pela Lei 12.313/2010: “Art. 81-A. A
Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva” (BRASIL, 2010).
243
Neste particular, mostra-se inolvidável a necessidade de dotar a própria instituição
Defensoria Pública de um grau de autonomia que a livre de quaisquer empecilhos para o
desenvolvimento de suas atribuições, em especial, afastando-a de pressões indevidas de
setores do Estado contra os quais seja necessário fazer intervir o Poder Judicial para afastar
situações de abuso ou de negação de direitos fundamentais. No Brasil, desde a EC no 45, de
2004, a CF passou a assegurar, em seu art. 134, §2º, que a Defensoria Pública é dotada de
autonomia funcional e administrativa, assim como da iniciativa de sua proposta orçamentária
(BRASIL, 2004), o que reforçou o papel dessa instituição essencial à função jurisdicional do
Estado e aprimorou o acesso à cidadania dos mais carentes de recursos.
A resistência da Defensoria Pública ao encarceramento preferencial dos pobres, embora
seja mais proeminente na fase de execução penal, deve iniciar-se desde o primeiro contato do
indivíduo com o aparato repressivo estatal74. Logo, já no momento da prisão em flagrante,
mostra-se inexorável a intervenção da Defensoria Pública, a fim de denunciar os frequentes
excessos ou desvios do poder punitivo, que muitas vezes carrega ínsitas a seletividade e a
criminalização da pobreza. Configura um momento bastante sensível, pois, na esfera policial,
onde se inicia o processo inquisitorial, não vigem em sua inteireza a ampla defesa e o
contraditório, o que reflete seriamente na definição da responsabilidade quando do desenrolar
do processo judicial, o qual se limita, como já estudado, tão somente, a reproduzir o que já foi
constituído durante o inquérito policial. “La experiencia indica que es, precisamente, en este
momento, cuando por lo común se producen los excesos y apartamentos de lo debido”
(VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 210). Esta é uma fase na qual se percebe, de modo mais claro,
que, na prática, o indiciado é um mero objeto de investigação e não sujeito de direitos,
posicionando-se em total sujeição ao poder estatal.
Os manejos de pedidos de liberdade provisória (quando ausentes os requisitos da prisão
preventiva), relaxamento de prisão em flagrante e habeas corpus devem caminhar
paralelamente com apresentação de denúncias da realização de eventuais atos de tortura ou de
negação de direitos como de não autoincriminação (direito ao silêncio), contato com membros
familiares em virtude da prisão e identificação dos responsáveis por esta e interrogatório. Para
isso, o defensor público deve atuar desde o momento da lavratura da prisão em flagrante, mas
não simplesmente em função protocolar e passiva, mas funcionando como fiscal da 74 Não é sem razão, portanto, que o CPP estabelece em seu art. 306, § 1º, com a redação dada pela Lei
12.403/2011 que: “Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública” (BRASIL 2011 a).
244
regularidade da fase inquisitorial, evitando-se o seu desvirtuamento. Por essa razão, a LC no
80/94, com redação dada pela Lei no 132/2009, estatui como função institucional da
Defensoria Pública, em seu art. 4º, XIV – “[...] acompanhar inquérito policial, inclusive com a
comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não
constituir advogado” (BRASIL, 2009), bem como concede aos defensores públicos a
prerrogativa de “[...] examinar, em qualquer repartição pública, autos de flagrantes, inquéritos
e processos, assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar apontamentos”, nos art. 44,
VIII, 89, VIII e 128, VIII da mesma lei (BRASIL, 2009).
Ademais, o defensor público deve comparecer às audiências de custódia, primando para
que não se convertam em meros instrumentos de convolação da prisão em flagrante em
preventiva, sem a existência dos elementos legais necessários para tanto, ao mesmo tempo em
que devem constranger os demais órgãos do sistema de justiça a levarem a sério as frequentes
denúncias de tortura que nessa oportunidade são formuladas, muitas vezes com sinais visíveis,
evitando a perpetuação da invisibilidade dessa prática, que historicamente conta com a inércia
estatal em sua prevenção e combate, como demonstrado na subseção 2.5 desta tese75. Esta
conforma fase muito importante, na qual será possível: 1) a primeira conversa com o assistido
(muitas vezes inviabilizada quando de seu aprisionamento) para serem colhidos os primeiros
elementos necessários para a realização de uma defesa mais completa possível; 2) a
identificação e catalogação de eventual prática de tortura, para posterior monitoramento da
situação do preso em situação de permanência no cárcere, para evitar a ocorrência de
represálias em razão das denúncias formuladas.
Após recebida a denúncia pelo Ministério Público, iniciado o processo judicial, é, ainda,
importante a atuação do defensor público, velando pela observância do devido processo legal,
confrontando a acusação para que esta, caso se imponha, seja pela força da prova e pela
necessidade da pena e não de maneira automática e antecipadamente desejada, como acrítica
resposta aos temores sociais, reais ou fabricados, o que produz sentenças completamente
75 Como percebe Jesus (2010, 171-2) em sua pesquisa sobre a tortura, já citada nesta tese, a ampla divulgação
desses crimes nos meios de comunicação e o seu acompanhamento por entidades de direitos humanos, nacionais e internacionais, contribuem para que os processos sejam alvos de debate público, o que propicia o aumento da pressão relativamente ao julgamento, além de aumentar a proteção da vítima durante a tramitação do processo, pois, desse modo, ela pode estar mais prevenida quanto aos estigmas e preconceitos que poderia sofrer durante apuração e julgamento do crime. “A presença das entidades nas oitivas e nas audiências pode garantir que as vítimas não enfrentem sozinhas o processo, fato que contribui para que elas sustentem a denúncia sem medo de represálias” (JESUS, 2010, p. 172).
245
desconectadas da situação concreta, verdadeiros libelos contra perigos difusos e abstratos,
todos eles encarnados na figura do acusado. Como percebe Godoi (2017, p. 102),
É pela materialidade e pelo fluxo dos papéis que se condiciona o fluxo dos corpos e se assinala o destino de todos e de cada um. Nos gabinetes do sistema de justiça, os processos – não diretamente os presos – são avaliados, encaminhados e chancelados, e esse fluir impacta, conforma e individualiza a experiência que cada qual terá na prisão. O gabinete do juiz é como um “centro de comando” – de avaliação, cálculo e intervenção – a partir do qual é possível que um único agente, baseado num conjunto de documentos, decida sobre a vida e o destino de milhares de pessoas.
O defensor público, então, deve direcionar todos os seus esforços para impedir que a
concentração sobre as frias informações processuais, constantes nas telas dos computadores,
impeça que se enxerguem as pessoas envolvidas, a humanidade que as caracteriza e as
consequências que as decisões tomadas pelos agentes do sistema de justiça podem acarretar
nas vidas dos envolvidos no conflito penal. Estudar o processo para conhecer suas nuanças,
produzir provas, orientar o acusado para seu interrogatório, reforçar a luta pela liberdade,
questionar os excessos estatais, orientar acusados e componentes familiares destes são
algumas das principais atribuições do defensor público, na defesa criminal, que o tornam
igualmente um agente no enfrentamento à criminalização da pobreza, fugindo sempre de uma
atuação burocrática, de conformismo, na defesa dos interesses do assistido.
O defensor público não pode tergiversar na sua defesa ou renunciar às modalidades
processuais, porquanto existem para garantia do acusado, razão pela qual não é possível se
negociar sobre algo que não se titulariza. Por fim, não deve a sentença significar
necessariamente o termo final da atuação do defensor público, que deve externar a sua
irresignação por meio dos recursos cabíveis, a fim de que os tribunais superiores reexaminem
a matéria, na busca de uma aplicação adequada das normas, principalmente quando
veiculadoras de direitos fundamentais. É de se lembrar que, do mesmo modo que a acusação,
a defesa é uma proposta de decisão e, como esta, é uma investigação das circunstâncias de
fato e valoração de provas, além de ser igualmente uma exposição arrazoada e fundamentada
do direito aplicável às circunstâncias fáticas de cada caso (VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 145).
Como facilmente perceptível, a atuação na senda penal jamais será confortável,
tranquila ou capaz de gerar prestígio social ou aplausos públicos, mas será sempre alvo de
profundos preconceitos e submetida a severas críticas pela communis opinio, muitas vezes
inflada pela posição dos meios de propagação coletiva. O defensor público, como qualquer
defensor de direitos humanos nessa área, é estigmatizado de igual maneira como as pessoas
246
cujos direitos postula, muitas vezes sendo tratado como se criminoso fosse76. Por essa razão,
um grande desafio do defensor público, nesse particular, é manter incólumes sua
independência e a intransigência na defesa dos direitos fundamentais, alimentando
cotidianamente sua convicção do acerto dessa opção, para que não sucumba às pressões
cotidianas, muitas delas vindas de pessoas e familiares próximos, que não compreendem o
relevante serviço prestado em benefício do devido processo legal e da defesa da dignidade
humana77.
Ainda no tocante ao exercício das funções tutelares clássicas, destaque-se, ademais, que
a necessidade de assistência jurídica não se restringe ao viés do Direito Penal, pois a
população carcerária denota necessidades reprimidas de acesso à justiça, principalmente, nas
áreas do Direito de Família, do Consumidor, Sucessório, de Propriedade e Previdenciário.
Assim, a criminalização da pobreza produz outros efeitos deletérios, que permanecem
invisíveis porque o bem imediato que os encarcerados almejam é a liberdade, fato impediente
de que verbalizem (até por desconhecimento) outras necessidades também prementes, suas e
de seus partícipes familiares, muitas vezes situados em maior desamparo pela privação da
liberdade de um de seus membros. Para alcançar o sentido de ampla defesa, a Defensoria
Pública deve se articular melhor internamente, entre suas distintas áreas, de modo a garantir a
defesa integral e com centralidade nas pessoas, e não nos processos, com uma abordagem
interdisciplinar, para a redução da vulnerabilidade social dos usuários, o que influencia,
também, em sua vulnerabilidade penal (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 28). Necessário é
esclarecer que não se exige que o defensor público atue em outras áreas do conhecimento, já
que, quase sempre, não possui qualificação para tanto. A instituição é que deve ser aparelhada
com esses profissionais para possibilitar o atendimento interdisciplinar.
Nos estabelecimentos femininos, há necessidade, ademais, de uma estrutura de apoio
jurídico especializada. Efetivamente, a par do apoio jurídico relacionado à prisão, há uma
carência significativa no concerto do Direito de Família, principalmente concernente à
proteção dos filhos das mulheres encarceradas, em demandas que vão desde a pensão
76 “No cuesta comprender que si se parte, como históricamente ha ocurrido, de una concepción represiva que
privilegia la eficiencia de la averiguación, todo lo que implique trabas a la misma será considerado como un obstáculo molesto del que hay que desembarazarse lo antes posible”. (VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 124).
77 Importante ainda a advertência de Jorge Eduardo Vázquez Rossi (2006, p. 86-87), de que o direito de defesa e as garantias que o rodeiam são condições preestabelecidas pelo ordenamento constitucional para a realização válida do Direito Penal por meio do processo e que os diversos procedimentos que se estabeleçam devem implementar, com a necessária amplitude e operatividade, modos de efetivar a defesa, cuja ausência ou fragilidade desqualifica as decisões.
247
alimentícia, disputas por guarda, até a necessidade de acolhimento institucional. A estrutura
de apoio jurídico nos estabelecimentos prisionais femininos, portanto, não deve se restringir
ao acompanhamento dos processos criminais, sendo essencial que disponha de profissionais
especializados também nas demandas do Direito de Família, com atuação direta nas varas
especializadas nesta matéria.
Para que seja possível cumprir adequadamente todas essas atribuições, é necessário que
haja defensores públicos em número suficiente, principalmente abrangendo as comarcas dos
estados (salvo as das capitais, no Brasil, normalmente, as cidades maiores), o que ainda é uma
realidade bem distante, embora haja determinação constitucional por meio da Emenda no
80/2014 para que tal problema seja sanado no prazo de oito anos (BRASIL, 2014)78.
Ademais, urge que exista efetiva dedicação profissional no sentido de buscar incessantemente
o cumprimento de tantas e tão importantes atribuições, com a devida fiscalização dos órgãos
de controle da atuação funcional, para evitar eventuais atos de desídia, inconcebíveis ante as
ingentes tarefas exigíveis do defensor público nessa área. Por outro lado, é preciso que a
União e os estados-membros confiram condições estruturais, remuneratórias e de trabalho
suficientes a assegurar uma efetiva paridade de armas em relação ao Ministério Público, a fim
de equilibrar acusação e defesa no processo penal e viabilizar a proteção dos direitos
fundamentais assegurados igualmente na execução penal.
4.2 A educação em direitos como instrumento de empoderamento dos
vulneráveis
O segundo eixo proposto refere-se à educação em direitos como instrumento de
empoderamento dos vulneráveis para uma posição de resistência à sua injusta criminalização
e à seletividade penal. Inicialmente, cumpre destacar o papel desempenhado pela educação
para a consolidação da dignidade da pessoa humana e da formação da cidadania.
Reconhecendo a sua importância, a DUDH em seu art. 26 dispõe:
78Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 98: “Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo
serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. § 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos
em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo. § 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá,
prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.” (BRASIL, 2014).
248
I - Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. II – A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais [...]. (ONU, 1948).
Nos mesmos termos configura-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, que determina em seu art. 13, §1º:
Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. (ONU, 1966).
Já a Carta Democrática Interamericana verbera em seu art. 16:
A educação é chave para fortalecer as instituições democráticas, promover o desenvolvimento do potencial humano e o alívio da pobreza, e fomentar um maior entendimento entre os povos. Para alcançar essas metas, é essencial que uma educação de qualidade esteja ao alcance de todos, incluindo as meninas e as mulheres, os habitantes das zonas rurais e as minorias. (OEA, 2001).
Na CF/88, a educação encontra-se listada entre os direitos sociais, no art. 6º
(BRASIL, 1988), bem como mereceu seção à parte no Texto Constitucional, no título
destinado à ordem social (Seção I do Capítulo III do Título VIII), na qual está estatuído o
dever do Estado de garantir sua observância (BRASIL, 1988).
Os dispositivos citados complementam-se para estabelecer a tríplice finalidade da
educação, explícita na CF/88: o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo desta para a
cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988). Dessa maneira, o âmbito de
proteção desse direito fundamental é bem mais amplo do que a mera instrução. Sobre o
assunto, manifesta-se Piaget (1973, p. 40):
A educação como direito de todos, portanto, não se limita em assegurar a possibilidade da leitura, do escrito e do cálculo. A rigor, deve garantir a todos o pleno desenvolvimento de suas funções mentais e a aquisição dos conhecimentos, bem como dos valores morais que correspondem ao exercício dessas funções, até a adaptação à vida social atual.
O amplo campo de incidência delineado entroniza a educação como um dos pilares
do bom funcionamento do Estado, na medida em que a sua efetivação aproxima-se da
situação ideal da gestão por um povo dotado de conhecimentos de seus direitos e deveres.
249
O acesso à educação representa uma das modalidades de consolidação da democracia. De
fato, a igualdade de acesso ao conhecimento possibilita aos cidadãos participar de modo
mais consciente da formação da vontade estatal. Somente um povo educado para a
cidadania pode se desapegar das influências e artifícios dos detentores do poder. De
semelhante maneira, entende Gomes (2005, p. 93-94, grifo do autor):
A construção e vivência da democracia pressupõe a possibilidade de efetiva participação de todas as pessoas em prol dos valores que compõem o conteúdo do ideário democrático. Isso somente se torna possível se a educação estiver ao alcance de todos. Em tal regime assume-se que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição” (CF/88, art. 1º, parágrafo único). Isso pressupõe que o povo seja suficientemente esclarecido a respeito de seu papel político ativo, de sua capacidade para atuar seja por meio dos representantes que lhe compete eleger, seja diretamente, nos casos previstos no texto constitucional (CF/88, art. 14, I, II e III). Tal esclarecimento é fruto da educação.
Saliente-se, ainda, que o direito à educação, ao abrir espaço para o desenvolvimento
das potencialidades do ser humano, representa importante elemento de respeito ao
princípio fundamental da dignidade humana, encartado no art. 1º da CF/88 como um dos
fundamentos de Estado Democrático de Direito (BRASIL, 1988). A existência deste,
portanto, está condicionada à efetivação do direito fundamental à educação e sua extensão
a todas as pessoas, sem distinções de qualquer natureza.
No que diz respeito especificamente à educação em direitos humanos, lembre-se que
o período 1995-2004 foi proclamada pela ONU como a Década das Nações Unidas para a
Educação em Direitos Humanos. Na oportunidade, definiu-se educação em direitos
humanos como
[...] os esforços de formação, divulgação e informação destinados a construir uma cultura universal de direitos humanos através da difusão de conhecimentos e competências e da definição de atitudes, com vista: (a) ao reforço do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais; (b) ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e da sua inerente dignidade; (c) à promoção da compreensão, tolerância, igualdade de género e amizade entre todas as nações, povos indígenas e grupos raciais, nacionais, étnicos, religiosos e linguísticos; (d) a permitir a participação efectiva de todas as pessoas numa sociedade livre; (e) à promoção das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. (ONU, 1994).
A educação em direitos é fundamental, ainda, porque, como adverte Michel
Foucault, o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque a ele serve ou
aplicando-o porque é útil); poder e saber estão diretamente implicados e não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 2007, p. 27).
250
O legislador brasileiro não se furtou ao reconhecimento da importância da educação em
direitos humanos como um dos primeiros objetivos da Defensoria Pública, estabelecendo na
LONDP (LC no 80/94, com redação dada pela LC 132/2009) em seu art. 4º, III que compete a
essa instituição “[...] promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da
cidadania e do ordenamento jurídico” (BRASIL, 2009). Tal dimensão supera a simples
orientação jurídica, fundada no esclarecimento técnico de demandas individuais, em regra. A
educação em direitos pressupõe uma atuação voltada à preparação das pessoas para o
exercício de seus direitos, por meio de atitude proativa dos veiculadores do conhecimento
sobre os direitos.
De fato, um fator que dificulta muito a defesa de direitos de vulneráveis é que as
pessoas sem acesso ao conhecimento de seus direitos estão submetidas a um processo que
Paulo Freire chama de autodesvalia (FREIRE, 2014, p. 69), resultante da introjeção que
fazem da visão que os opressores têm deles e que, de tanto ouvirem que são incapazes,
enfermos, indolentes, que não podem saber, terminam por se convencer da própria
“incapacidade”, reconhecendo-se como aqueles que nada sabem, em contraposição ao
“doutor”, que tudo sabe e que por isso devem escutar (FREIRE, 2014, p. 69).
O primeiro passo para o enfrentamento do problema da criminalização da pobreza,
portanto, é a identificação de suas manifestações, mormente por aqueles que são os alvos
dessas práticas, submetidos a tratamento discriminatório em razão de sua vulnerabilidade. Isso
porque a falta de informação da população mais carente e sua relativa inexperiência, diante
das mais complexas relações jurídicas que vêm se desenvolvendo na atualidade, elevam ainda
mais essa vulnerabilidade (RÉ, 2014, p. 96). Como adverte Bauman (2005, p. 67), “[...] a
vulnerabilidade e a incerteza humanas são as principais razões de todo poder político. E todo
poder político deve cuidar da renovação regular de suas credenciais”. No mesmo sentido
entende Cuellar (2012, p. 437), para quem “[...] la educación es la que genera una cultura de
derechos humanos, y la que impulsa a la sociedad a organizarse para ejercer sus derechos,
participar en la elaboración de las políticas públicas, presionar a las instituciones estatales
para que cumplan con sus deberes y rindan cuentas sobre ello, y denunciar las violaciones”.
Há que se destacar, ainda, como o faz Duff (2015, p. 154), que o alheamento à
linguagem do Direito é variável de acordo com a classe social, existindo, assim, uma
comunidade cujos membros efetivamente falam a linguagem do Direito com a própria voz,
porque compartem os valores por ele encarnados, de modo que podem reconhecê-los como
251
seus (sentem-se em casa nas estruturas econômicas e políticas que o Direito protege); já os
não pertencentes a essa comunidade, aqueles em situação de desvantagem ante as estruturas
econômicas e políticas, não reconhecem como próprios os valores que o Direito proclama, e
na voz deste ouvem uma língua estranha. Desvelar essa flagrante injustiça é também papel do
defensor público em sua atuação cotidiana: fazer ver que a própria legitimidade do poder
punitivo do Estado pode estar seriamente comprometida caso este esteja calcado em um
discurso ininteligível para os destinatários preferenciais desse poder, porquanto assoma
evidente a iniquidade caso se abata com a mesma intensidade sobre os que falam a sua voz e
aqueles que sequer a compreendem.
De outra parte, ainda se partindo da premissa da necessidade de comunicação como
fator determinante do equânime funcionamento da Justiça, é importante discutir o abismo
entre as posições sociais ocupadas pelos agentes do sistema de justiça e as pessoas
normalmente enredadas em um processo penal. No Brasil, essa situação mostra-se ainda mais
grave, na medida em que juízes, promotores de justiça e defensores públicos compõem uma
verdadeira casta superior de servidores públicos, em relação aos quais se estendem privilégios
nem sempre republicanos79, que os fazem pertencer às classes sociais mais abastadas e
compartir visões de mundo e jeitos de expressá-las totalmente distintos daqueles vivenciados
pela clientela da justiça penal. Como identifica Baratta (2002, p. 177), referindo-se aos juízes,
mas com ideias que se aplicam a todos os citados agentes públicos, o insuficiente
conhecimento e capacidade de penetração no mundo do acusado é desfavorável aos mais
pobres, tanto pela ação dos estereótipos e preconceitos, como pela influência das chamadas
“teorias de todos os dias”, que tendem a ser aplicadas na reconstrução da verdade judicial.
Forma-se, destarte, verdadeira ideologia da punição do mais pobre, que permeia o sistema
punitivo estatal, desde a repetição de dogmas acadêmicos alienantes e dos preconceitos
decorrentes do abismo da desigualdade social (SHIMIZU; STRANO, 2014, p. 381).
Cabe ao defensor público, portanto, a responsabilidade de não se afastar da sua real
razão de existir: a população pobre cuja voz, por si, ordinariamente, não tem força suficiente
para ser considerada, precisando da renitente atuação defensória, nos foros de justiça, para
que o seu discurso seja levado em consideração, mesmo quando não veiculado com o dialeto
exigido pelo sistema de justiça. Mais do que isso, deve ser lembrança diária do defensor
público quais valores deve verdadeiramente defender, não se rendendo às benesses do poder, 79 Podem ser citados, só para ficar nos exemplos mais sensíveis, os diversos auxílios exclusivos e a quantidade
de férias remuneradas diferenciadas, que não se aplicam a outros servidores públicos.
252
na defesa daqueles cuja vida depende da contenção dos seus excessos, encarnando, assim, seu
inexorável papel de contra- poder. Conquanto seja proveniente dos mesmos estratos sociais,
possua semelhantes vícios acadêmicos e parecida dose de preconceitos, a missão dos
defensores públicos a favor dos vulneráveis deve aproximá-los da realidade, sofrimento e
sentimento de justiça peculiares aos processados criminalmente, assim como sedimentar a
percepção de elementos que denunciam a falsidade do discurso jurídico-penal (SHIMIZU;
STRANO, 2014, p. 381). “A tarefa de enxergar a punição sob o prisma do oprimido está
conectada, assim, com um processo de ‘desalienação’ e questionamento no que diz respeito à
própria existência do sistema punitivo, suas finalidades e seus meios” (SHIMIZU; STRANO,
2014, p. 382).
Como propostas de solução para o distanciamento verificado entre defensor público e as
demandas da população carente, urgem a radical alteração do modo de selecionar
profissionais, assim como o investimento relevante em capacitação continuada. Assim, os
concursos públicos devem buscar fugir do formato tradicional que privilegia a memorização
de respostas prontas para questões objetivas, assim como as disciplinas de intensivo cariz
dogmático, em detrimento da verificação da aptidão do candidato para a solução de questões
cotidianas que necessariamente vai deparar. Ademais, áreas do conhecimento que denotam
sólida formação humanística, como Filosofia, Sociologia, Criminologia, Ciências Sociais e
Direitos Humanos devem auferir maior ênfase no processo seletivo. Por outro lado, é
indispensável uma contínua e efetiva capacitação dos defensores públicos e demais
servidores, direcionada à constante reafirmação do papel constitucional da Defensoria Pública
e da responsabilidade de seus membros perante a sua razão de existir: os carentes de recursos,
o que envolve, inclusive, o necessário conhecimento de sua realidade nos locais onde estão
mais presentes: as comunidades, os cárceres, as escolas e hospitais públicos.
Outro aspecto que não pode fugir à compreensão é que contingentes populacionais
pauperizados, submetidos diuturnamente a ações muitas vezes truculentas de agentes do
Estado, consideram normais aqueles jeitos de atuar, representados por abordagens policiais
fundadas no estereótipo, invasões de domicílio fora das hipóteses constitucionais e tratamento
como suspeitos pelo simples pertencimento a determinada comunidade. Não raro, tais ações
sobejam aplaudidas pelos membros da comunidade, que as compreendem como as
unicamente possíveis para a garantia da segurança pública. Isto conforma o que Bauman
(2013, p. 46) chama de teoria da “falsa consciência”, que ocorre quando “[...] o ambiente
geral de uma sociedade capitalista impede que seus segmentos não privilegiados, carentes e
253
discriminados percebam a verdade sobre a sua própria condição, em particular as causas
dessa condição, e a possibilidade de escapar dessa miséria”; ou, nas palavras de Freire (2014,
p. 44), “[...] o seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra, contudo,
prejudicado pela 'imersão' em que se acham na realidade opressora”, o que representa uma
situação-limite de opressão na qual essas pessoas não têm condições de enxergar (ou apenas
de maneira distorcida) as ofensas aos seus direitos (FREIRE, 2014, p. 132).
Uma das mais flagrantes demonstrações do tratamento desigual normalizado é a
concessão de mandados judiciais de busca e apreensão coletivos, que movimentam centenas
de policiais com autorização para a invasão de todas as residências de uma determinada
comunidade, estabelecendo verdadeira presunção de culpa. Observa-se é que tais ações têm
invariavelmente como alvo residências carentes, estigmatizadas e etiquetadas em razão das
comunidades nas quais essas pessoas residem, jamais alcançando moradias de classe média ou
alta, imunes à suspeita generalizada que acomete somente as mesmas pessoas80.
Cabe ao defensor público, aqui, desvelar a diferença de tratamento levada a efeito pelo
Estado penal de acordo com a classe social que figura como alvo da investigação ou
abordagem. Importante é difundir o conhecimento dos direitos dos pobres, deixando claro que
a maneira de ação historicamente promovida nas comunidades carentes não é a única e muito
menos o melhor modo de levar segurança pública para essas localidades. Expressa uma
modalidade de “[...] educação para a ação, que visa contribuir para que as pessoas se sintam
cidadãs e, com isso, assumam-se como um ser social, responsável pela sociedade” (REIS,
2014, p. 729). Deve-se atuar na perspectiva de Paulo Freire, para constituir uma pedagogia
forjada com o oprimido e não para ele, na luta pela recuperação de sua humanidade, com
suporte na reflexão sobre a opressão e suas causas, de que resultará o engajamento para a luta
por libertação (FREIRE, 2014, p. 43).
Para que serve, pois, a educação em direitos humanos?
Existe um crescente consenso em torno da ideia de que a educação em direitos humanos e para os direitos humanos é essencial e pode contribuir para a redução das violações de direitos humanos, assim como para a construção de sociedades livres, justas e pacíficas. A educação em matéria de direitos humanos é também cada vez mais reconhecida como uma estratégia eficaz para prevenir os abusos de direitos humanos. (ONU, 1994).
80 O tema é objeto de tratamento mais detido no segmento 1.5 da tese.
254
E por que razão educar a população carente para os direitos humanos afigura-se tão
importante? Reis (2014, p. 737) também procura oferecer uma resposta:
Primeiro, porque os direitos e a justiça social surgem de baixo para cima, e não de cima para baixo. Segundo, porque como decorrência do primeiro – e esse é um diferencial da Defensoria, que diariamente convive com a pobreza e, por isso, gradativamente aprende a entender as principais necessidades da população, que é algo relevante para a própria interpretação do direito -, é no espírito de solidariedade e de vontade de mudança vistos na população carente que entendemos a importância de que ela possua o conhecimento mínimo de seus direitos.
Ademais, como percebe Nikken (2012, p. 402-403),
[…] el sistema judicial es culturalmente ajeno a los más pobres. Se trata de un sistema distante, que parece concebido para ser utilizado solamente por quienes disponen de medios de fortuna. Se trata de mecanismos socialmente distantes de los pobres. A esto se une la natural falta de comprensión del funcionamiento del sistema, con todos sus tecnicismos ininteligibles para los niveles culturales más bajos de la població
Assim, propõe-se que a educação em direitos deve ocorrer principalmente quando da
atuação tutelar clássica. Durante o andamento do processo, e não somente nesse momento,
portanto, compete ao defensor público, além de representar a defesa penal perante o poder
punitivo estatal (funcionando como escudo aos seus excessos), permanentemente traduzir ao
assistido, da maneira mais eficiente possível, a situação dos direitos e deveres envolvidos na
demanda. Pode-se, de certo modo, minimizar o sentimento de total alheamento que
normalmente acompanha quem se encontra enredado em um processo de natureza penal,
constituído de maneira hermética, como mais um instrumento de consolidação do poder sobre
a pessoa. Nesse sentido é a doutrina de Santos (2017, p. 46):
É preciso que os cidadãos se capacitem juridicamente, porque o direito, apesar de ser um bem que está na sabedoria do povo, é manejado e apresentado pelas profissões jurídicas através do controle de uma linguagem técnica ininteligível para o cidadão comum. Com a capacitação jurídica, o direito converte-se de um instrumento hegemônico de alienação das partes e despolitização dos conflitos a uma ferramenta contra-hegemônica apropriada de baixo pra cima como estratégia de luta.
Do contrário, se à ignorância do assistido quanto ao formato e à natureza do processo e
das consequências possíveis de seus atos somar-se uma atuação meramente protocolar do
defensor público, estarão postas as condições favoráveis para o exercício da criminalização
secundária da pobreza. Dadas essas circunstâncias, que não raramente se combinam nos
processos reais Brasil afora, consolida-se uma situação de total vulnerabilidade do leigo
quando posto diante do poder punitivo estatal, com suas insígnias e formalidades, criadas
também com a finalidade de facilitar o seu exercício. Antony Duff, seguindo a mesma ideia,
entende que o acusado deve compreender a linguagem do Direito a fim de desempenhar seu
255
papel em juízo, como uma condição de legitimidade do procedimento que o chama a
responder a uma demanda penal e, para isso, deve contar com tradutores dessa linguagem, não
somente do ponto de vista fático, mas também normativo (DUFF, 2015, p. 146).
De fato, sem a atuação de um profissional habilitado a compreender e comunicar a
linguagem ao acusado, o processo converte-se em um instrumento de imposição inexorável de
uma penalidade, sem capacidade de resistência, sobre uma pessoa para quem as normas
possibilitam que contradiga a acusação, mas que simplesmente não o pode fazer por sequer
compreender do que está sendo acusado e quais as consequências de cada uma de suas
atitudes perante o Judiciário. Como conclui Duff (2015, p. 148),
[...] si el acusado no tiene acceso a este tipo de comprensión, faltará una condición esencial de la responsabilidad penal en general, una precondición esencial de la responsabilidad penal como deber de responder: aquel no podrá entonces entender ni responder al cargo por el que se le imputa.
Por outro lado, como doutrina Valle (2006, p. 44), não se pode entender o direito à
igualdade em uma sociedade, se muitos de seus membros desconhecem que determinados
problemas cotidianos podem ser resolvidos com o acesso ao Judiciário, a um procedimento
administrativo ou uma mediação e, por outro lado, se as instituições decidem arbitrariamente
quem deve ou não aceder à Justiça. Nesse sentido, conclui: “[...] cualquier política estatal que
no prevea soluciones a las diferencias de información intersectorial resulta violatoria de ese
compromiso” (VALLE, 2006, p. 44).
Por meio dessa atuação, portanto, a Defensoria Pública está cumprindo seu papel de
assegurar a tais pessoas o exercício de seu status político-jurídico de cidadão, ou seja, de
membro ativo e participativo da comunidade política, de modo, inclusive, a que tais pessoas,
em determinadas circunstâncias, tenham condições de fazer valer e reivindicar os seus direitos
por conta própria (em face de outros particulares ou mesmo dos entes públicos),
independentemente de intervenção da Defensoria Pública ou do Poder Judiciário
(FENSTERSEIFER, 2017, p. 77).
Ademais, como decorrência do comando legal do citado art. 4º, III, da LONDP já
citada, cumpre à Defensoria Pública, por meio do seu quadro de defensores públicos e
servidores, promover palestras, cursos, impressão de cartilhas, elaboração de vídeos
institucionais, entre inúmeras outras medidas possíveis, no sentido de educar e informar a
população, especialmente os indivíduos e grupos sociais necessitados, a respeito dos seus
direitos e de questões envolvendo o exercício da cidadania (FENSTERSEIFER, 2017, p. 71).
256
Tal atuação contribui, em última instância, para a própria inserção político-comunitária das
pessoas e dos grupos sociais necessitados (FENSTERSEIFER, 201781). No concerto penal,
afigura-se ainda mais urgente a necessidade, dado o estado de privação de liberdade
experimentada por boa parte dos titulares dos direitos humanos a serem esclarecidos, para em
seguida serem exigidos e implementados. A normalização da sedimentada situação de
descalabro do sistema prisional precisa ser enfrentada por uma atuação esclarecedora da
existência de extenso rol de direitos diuturnamente vilipendiados, principalmente pelo Estado,
que seria o garante primordial de sua observância, com esteio nas promessas assumidas pelo
poder constituinte originário. A cotidiana reafirmação e difusão da existência do citado rol,
bem como a denúncia do seu reiterado desrespeito, constituem os primeiros passos para o seu
efetivo exercício.
No que diz respeito à criminalização secundária, urge que a Defensoria Pública se
afirme como instituição porta-voz de um discurso de reforma das instituições que promovem
atitudes tendentes a essa consequência deletéria, bem como problematizar os consensos
sociais que se formam nessa temática. É preciso conduzir a Defensoria Pública para uma
atitude de oposição ao debate proposto pelas instâncias de poder que “[...] parecem cada vez
mais deslumbradas com a ‘solução’ punitivista fácil e populista, vendo no encarceramento em
massa da pobreza uma resposta imediata para os conflitos sociais” (SHIMIZU; STRANO,
2014, p. 378).
Interessante, ainda, nessa temática, é a ideia proposta por Fensterseifer (2017, p. 77) de
que a educação em direitos (ou alfabetização jurídica) deve também ser compreendida como a
facilitação na comunicação entre defensores públicos (e demais servidores da instituição) com
os usuários do serviço público de assistência jurídica, com o propósito de romper barreiras de
comunicação que possam obstar a defesa e reivindicação de direitos dos indivíduos e grupos
sociais necessitados. Por ser a instituição que necessita estar em constante proteção e defesa
dos direitos e interesses dos pobres, a Defensoria Pública deve armar-se de todos os meios
possíveis de facilitar a sua acessibilidade, principalmente tendo-se em conta a ideia de que
muitos sequer sabem da sua existência e finalidades. Escapar de uma situação de imobilismo,
físico e comunicacional, chegando efetivamente até os necessitados, representa um grande
81 Não se olvida a noção de que o papel primordial de educação em direitos humanos é das instituições de
educação, principalmente de ensino superior, em relação às quais deve a Defensoria Pública, principalmente pela enorme demanda que já enfrenta, buscar convênios e outras modalidades de cooperação para atingir adequadamente seu público-alvo, evitando-se, assim, que a ocupação integral com a educação em direitos, que exige um envolvimento muito grande, inviabilize o exercício das demais atribuições defensórias.
257
desafio para a instituição, principalmente em decorrência do extenso rol de atribuições a ela
destinados pela CF/88 e pelas leis, pela enorme extensão territorial brasileira e pelo imenso
contingente populacional que figura como potencial usuário de seus serviços.
É superando esses obstáculos que a Defensoria Pública deve atuar, para amenizar o que
Boaventura de Sousa Santos chama de procura suprimida, titularizada por aqueles que têm
consciência de seus direitos, mas que se sentem totalmente impotentes para os reivindicar
quando são violados, pois se acham desalentados sempre que entram no sistema judicial, que
contatam com as autoridades, que os esmagam pela sua linguagem esotérica, pela sua
presença arrogante, pela sua maneira cerimonial de vestir, pelos seus edifícios esmagadores,
pelas suas labirínticas secretarias etc (SANTOS, 2017, p. 24). Assim, deve a Defensoria
Pública atuar para visibilizar essas demandas, inicialmente afastando, da sua estrutura e na sua
atuação diuturna, as barreiras que obstaculizam a ação das pessoas na busca pela efetivação de
seus direitos.
Deve-se ter em mente, contudo, a ideação de que a atuação defensória na educação em
direitos não pode partir de uma atitude paternalista, calcada na ideia de que aos membros da
instituição cabe um papel de introjetar o conhecimento em uma massa de ignorantes que
serviria apenas de receptáculo e reprodução acrítica das ideias postas (e impostas) em uma
relação vertical, de subordinação. Não se há de esperar resultados positivos de uma ação,
desrespeitando a visão particular de mundo que tenha o povo, porque isso, na verdade,
representa uma invasão cultural, ainda que feita com a melhor das intenções (FREIRE, 2014,
p. 119). A ação libertadora, na perspectiva de Paulo Freire, reconhece a dependência dos
oprimidos como ponto vulnerável e, por isso, deve tentar, pela reflexão e ação, transformá-la
em independência, mas não por meio da doação de uma liderança, ou libertação de uns feitas
por outros, pois a libertação dos oprimidos não é uma libertação de “coisas”, mas de pessoas
(FREIRE, 2014, p. 74). A educação em direitos pressupõe, assim, um comportamento de
escuta com a mesma intensidade do repasse de informações, principalmente para que se possa
diagnosticar as demandas reais da população vulnerável, mas também a fim de que o processo
ocorra como uma conversa entre iguais, em uma “relação dialógica permanente” (FREIRE,
2014, p. 77), da qual resultem ambas as partes engrandecidas da troca de experiências e
informações.
258
4.3 A atuação transindividual
A terceira perspectiva de atuação é a transindividual, quando a Defensoria se converte
em instituição de proteção de direitos coletivos em sentido amplo, almejando a concretização
da “segunda onda de acesso à justiça”, na classificação pensada por Cappelletti e Garth (1988,
p. 49), com expressiva vantagem sobre as repetitivas demandas individuais. De fato, a
assistência jurídica individual e orientada para os tribunais, embora capaz de corrigir
injustiças de casos individuais, não é apropriada para estabelecer uma justiça igual para os
pobres (GARRO, 2000, p. 315). Não que se deva substituir a atuação clássica, da qual se
tratou na seção imediatamente passada, mas reforçá-la pela ação de outros instrumentos que a
coadjuvarão na defesa dos direitos. Isto porque muitas das lesões a direitos atingem diversas
pessoas ao mesmo tempo e não são corrigíveis pela mera atuação individualizada; isso sem
que se reporte aos custos bem mais baixos de ações judiciais que englobem várias pessoas de
uma só vez, muitas demandas com praticamente idêntico fundamento. Como entende Ripoll,
mesmo que haja uma estratégia de oferecer serviços legais diretamente aos pobres, o máximo
que se pode conseguir é melhorar um pouco a sua situação, pois não se leva a sério a injustiça
básica, já que não se buscam transformações sistêmicas (RIPOLL, 2006, p. 57). No mesmo
sentido defende Valle (2006, P. 43):
[…] el derecho de acceso a la justicia debe ser capaz de proteger también a grupos históricamente desfavorecidos o ignorados por el sistema y a intereses colectivos o difusos. Es claro que este nivel de protección tiene vital importancia por razones que transcienden la satisfacción individual de quienes posee un conflicto y logra solucionarlo, a saber, porque puede irradiar sus efectos a la sociedad en general, contribuyendo de esta forma a morigerar las enormes desigualdades existentes.
A necessidade de atuação transindividual titularizada pela Defensoria Pública, contudo,
demorou a sedimentar, dependendo de aportes, inicialmente, da doutrina e jurisprudência
constitucionais brasileiras, para somente depois passar a fazer parte da legislação
constitucional. A redação original do art. 134 da CF era bastante singela no que diz respeito às
atribuições constitucionais da Defensoria Pública, como visto no capítulo 3 desta tese,
recebendo importante reforço com a EC n. 80, em 2014, quando foi estabelecido que lhe
incumbem a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os
graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de modo integral e gratuito,
aos necessitados (BRASIL, 2014). Incorporou-se, embora tardiamente, ao texto a necessidade
de superar uma atuação meramente individual.
259
Antes disso, contudo, a legislação infraconstitucional, seguindo orientação
jurisprudencial já consolidada, já alargava as possibilidades da Defensoria Pública sob esse
aspecto, representando um importante marco insertar essa instituição entre as que detêm
legitimidade para a propositura da ação civil pública, com a Lei no 11.448/07, com a redação
que deu à Lei no 7.347/85, em seu art. 5º, II (BRASIL, 2007 a). Como percebia Sousa (2008,
p.240), “[...] o silêncio legislativo quanto à legitimidade da Defensoria Pública reproduzia
sutilmente, no campo específico da legitimação processual, o secular desprezo que devotamos
às classes desfavorecidas”. Além de todo o atraso para o reconhecimento legislativo da citada
legitimidade, ainda houve resistências à sua implementação. Logo após a sua promulgação,
por exemplo, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP)
ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF alegando que, tendo sido criada
para atender, gratuitamente, cidadãos sem condições de se defender judicialmente, seria
impossível para a Defensoria Pública atuar na defesa de interesses coletivos, por meio de ação
civil pública (BRASIL, 2015c). Finalmente, contudo, o STF julgou improcedente a ação (ADI
3943/DF)82. Seguiu o STF a esteira do que entendia a doutrina majoritária, aqui representada
pela lição de Zufelato (2014, p. 312-313, grifo do autor):
Parece-nos que a Defensoria Pública não é somente mais um dos legitimados ativos a que a lei atribui a função de tutelar os interesses coletivos. A combinação da relevância social, política e econômica dos direitos de natureza coletiva, com a função constitucional imposta à Defensoria, e a característica de altos índices de exclusão social do país (alta vulnerabilidade), torna-a uma das mais importantes instituições na defesa desses direitos. Trata-se de verdadeira vocação constitucional para o processo coletivo.
Apesar de a atuação em processos coletivos ser uma atribuição tradicional do Ministério
Público, não há razão alguma para que seja exclusiva. A própria lei da ação civil pública, em
sua redação original, por exemplo, conferia legitimidade para a sua propositura pelo
Ministério Público, pela União, estados e municípios, autarquia, empresa pública, fundação,
sociedade de economia mista ou por associação constituída há pelo menos um ano, nos termos 82 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA
DEFENSORIA PÚBLICA PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA (ART. 5º, INC. II, DA LEI N. 7.347/1985, ALTERADO PELO ART. 2º DA LEI N. 11.448/2007). TUTELA DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS (COLETIVOS STRITO SENSU E DIFUSOS) E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DEFENSORIA PÚBLICA: INSTITUIÇÃO ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL. ACESSO À JUSTIÇA. NECESSITADO: DEFINIÇÃO SEGUNDO PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS GARANTIDORES DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO E DA MÁXIMA EFETIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS: ART. 5º, INCS. XXXV, LXXIV, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE NORMA DE EXCLUSIVIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO INSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELO RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE (ADI 3943, Rel. Min. Cármem Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 07/05/2015) (BRASIL, 2015 c).
260
da lei civil (BRASIL, 1985). A Defensoria Pública, então, foi acrescentada como ente
legitimado em 2007, reforçando assim a proteção dos interesses coletivos, com foco para
aqueles nos quais se vislumbre a proteção de pessoas economicamente desfavorecidas. Não se
cuida, então, de confusão inadequada de atribuições institucionais, mas um reforço estatal
nesse terreno que, ademais, reconheceu legislativamente algo que já estava consolidado como
possível na doutrina e na jurisprudência.
Posteriormente, a LC no 132/2009 deu outra redação à LC no 80/94, passando o art. 4º,
inciso VII a inserir nas atribuições da Defensoria Pública “[...] promover ação civil pública e
todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos,
coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo
de pessoas hipossuficientes” (BRASIL, 2009), assim como o inciso X reza que cabe a essa
instituição “[...] promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados,
abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais,
sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva
tutela” (BRASIL, 2009). O Novo Código de Processo Civil, por sua vez, trouxe um título
específico para a Defensoria Pública (o que não constava no Código anterior), estabelecendo,
ademais, no art. 185, redação semelhante à da LODP no que diz respeito à possibilidade de
atuação na defesa de direitos coletivos (BRASIL, 2015d).
Atendo-se, portanto, ao contexto brasileiro atual, no qual os processos coletivos são
instrumentos de amplo acesso à justiça e de transformação social, não há como fugir à
conclusão de que a Defensoria Pública deve atuar como protagonista desse processo judicial
democrático (CARVALHO, 2014, p. 285). De fato, esse modelo de processo, de robusta
dimensão axiológica, demanda modalidades ampliadas de participação, com desiderato de
possibilitar que todos os aspectos que compõem a complexidade dos direitos com acentuada
conotação política sejam levados a juízo pelos agentes sociais ou entes públicos incumbidos
da defesa de tais direitos, de modo a caracterizar um contraditório realmente participativo,
apto a legitimar a atuação do poder jurisdicional (ZUFELATO, 2014, p. 306).
Assim, como ensina Carvalho (2014, p. 286), a opção político-legislativa, por meio de
normas processuais regentes da legitimidade nos processos coletivos, é pela entronização de
determinados órgãos e entidades como porta-vozes de um grupo de pessoas, na medida em
que a função do representante coletivo não é defender as próprias opiniões e interesses
individuais, mas efetivamente representar uma coletividade. Nesse particular, portanto,
261
desponta a Defensoria Pública como autêntica representante quando envolvidos interesses de
classes marginalizadas, em razão da proximidade e dos estreitos laços que a instituição
mantém com a parcela populacional mais carente, cujas necessidades e interesses devem
impulsionar os atos praticados pelos defensores públicos (CARVALHO, 2014).
Para isso, é indispensável que se estabeleça genuína vivência compartilhada entre
defensores públicos e populações mais pobres, a fim de que essas demandas sejam não
somente conhecidas, mas, também, efetivamente sentidas, no dia a dia, evitando-se a
elaboração de defesas de interesses coletivos imaginados e não reais, veiculados por ações
artificiais, meramente protocolares, que não representem radical defesa dos direitos violados
ou ameaçados. No que tange ao enfrentamento ao poder punitivo seletivo, portanto, a atuação
transindividual precisa ter em sua tessitura a marca inconfundível da presença constante dos
defensores públicos nas comunidades carentes, nos cárceres masculinos e femininos, nas
delegacias e seus xadrezes, nos estabelecimentos de internação de adolescentes. São esses os
ambientes diuturnos de resistência à criminalização da pobreza e é daí que têm de ser forjadas
as estratégias de contenção transindividual das ofensas. “A ação política junto aos oprimidos
tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles”
(FREIRE, 2014, p. 73).
Conforme sugere a ANADEP (2015), na publicação II Relatório Nacional de Atuações
Coletivas da Defensoria Pública, exige-se do defensor público
Atuação proativa de estar no local do conflito, de estar presente em espaços de articulação de defesa de direitos, interlocução com a sociedade civil, discussão do tema em audiências públicas, atuação multidisciplinar, mobilização com as pessoas envolvidas. Todas essas características estão intimamente relacionadas à atuação coletiva e que merecem atenção de modo a permitir maior êxito – e conferir a legitimidade social acerca da atuação institucional.
Importante é considerar, ademais, a necessidade de pertinência temática para a atuação
coletiva, representada pela proteção de pessoas vulneráveis entre os protegidos, a fim de que a
Defensoria Pública não seja utilizada para a proteção de grupos que, embora sejam titulares de
direitos coletivos, encontram-se em situação privilegiada na sociedade, podendo, por si,
prover as condições para um efetivo acesso à justiça. Isso não significa, entretanto, que a
atuação da Defensoria Pública esteja barrada pela simples existência, entre os titulares de
direitos, de alguns indivíduos que não ostentam o perfil de assistidos dessa instituição. Como
leciona Zufelato (2014, p. 314), “Exigir que a ação coletiva proposta pela Defensoria Pública
tutele exclusivamente hipossuficientes é algo absolutamente impossível, que esvaziaria de
262
sentido e função a atribuição de legitimidade ativa do órgão”. Assim, garantida estará a
pertinência temática autorizativa da legitimidade ativa defensória desde que a ação proteja
pelo menos um beneficiado vulnerável.
Na seara da execução penal, o legislador igualmente se preocupou em atribuir funções
metaindividuais aos defensores públicos. A Lei no 12.313/10 fez inserir, na LEP, dispositivos
reconhecedores destas atribuições. Primeiramente, o art. 81-A estatui que “A Defensoria
Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no
processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os
graus e instâncias, de forma individual e coletiva” (BRASIL, 2010b).
Já no rol do art. 81-B, os incisos II, IV, V e VI determinam ser incumbência da
Defensoria Pública, respectivamente: requerimento da emissão anual do atestado de pena a
cumprir; representar ao juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de
sindicância ou procedimento administrativo em caso de violação das normas referentes à
execução penal; visitar os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado
funcionamento, e requerer, quando for o caso, a apuração de responsabilidade; requerer à
autoridade competente a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal (BRASIL,
2010 b). Como visto, em todas essas maneiras de atuar, o defensor público não estará
patrocinando direitos de um indivíduo determinado, mas de grupos de pessoas. Como aduz
Rodrigo Roig, a nova dimensão protetiva da vulnerabilidade do coletivo carcerário pela
Defensoria Pública decorre tanto de um novo paradigma ético da instituição, como também
do imperativo constitucional da humanidade penal, decorrente lógico da pessoa humana, o
que confere a essa proteção o caráter de humano, muito mais do que puramente normativo
(ROIG, 2018, p. 312).
Já é possível detectar, em vários estados brasileiros, por exemplo, a tramitação de ações
civis públicas promovidas pela Defensoria Pública para a interdição, desativação ou
demolição de estabelecimentos prisionais em razão das péssimas condições de salubridade e
segurança apresentadas, em prejuízo flagrante dos direitos fundamentais dos presos. Da
mesma maneira, outras ações de idêntica natureza podem ser propostas para obrigar o Estado,
por exemplo, a dotar o sistema prisional de estabelecimentos aptos para a recepção de
mulheres que se encontrem em regime semiaberto ou estejam sujeitas a medidas de
segurança; ou mesmo para impedir a aplicação de sanções coletivas, sem individualização de
condutas e culpas.
263
A missão constitucional da Defensoria Pública na proteção de direitos dos
hipossuficientes confere grande importância a essa instituição para atuação em demandas de
proteção de direitos coletivos normalmente olvidados. É o que ocorre indiscutivelmente em
relação aos direitos dos presos e seus familiares, cujos interesses, apesar de relevantes para a
ordem jurídica, mostram-se costumeiramente “invisíveis” ou mesmo incompreendidos aos
olhos da sociedade em geral e aos demais legitimados (SOUSA, 2014, p. 246). Ademais, a
priorização de um modelo individualista está superada, seja pela necessidade premente de
institucionalização de um modelo de assistência judiciária de índole coletiva, para
acompanhar, paralelamente, as demandas dos novos conflitos sociais, seja porque a conotação
de poder estatal desempenhado pelo processo traz novos desafios à ideia de vulnerabilidade
ou hipossuficiência daqueles que necessitam de tutela jurisdicional (ZUFELATO, 2014, p.
307).
Importante é destacar que a atuação individual na labuta diuturna de defesa dos
interesses das pessoas submetidas ao Estado Penal estimula a ação coletiva fundada na
observação de ofensas reiteradas a determinados direitos, evitando-se “ações civis públicas de
gabinete”, nas quais se busca adivinhar os anseios dos destinatários (SOUSA, 2014, p. 247).
Alguns exemplos de atuação da Defensoria Pública, citados por José Augusto Garcia de
Sousa, ilustram a importância de superar a atuação meramente individual e estabelecer
verdadeiros parâmetros de respeito a direitos: habeas corpus coletivo dirigido contra portaria
do Juízo da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru-SP, que criou “toque de recolher”
dirigido a crianças e adolescentes; habeas corpus coletivo contra detenção de moradores de
rua por vadiagem, em Franca-SP; habeas corpus coletivo contra revista invasiva em membros
familiares de detentos em Taubaté-SP; ação civil pública para fornecimento de alimentação
aos presos custodiados na delegacia de Pirambu-SE (SOUSA, 2014).
Necessário é oferecer, por oportuno, outros exemplos emblemáticos da atuação da
Defensoria Pública na imposição de limites ao poder punitivo estatal e que, no rescaldo,
representam marcos importantes no enfrentamento à criminalização da pobreza. O II
Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública, de 2015, contém nove das
muitas ações propostas, que serão analisadas a título ilustrativo (ANADEP, 2015):
1 - Ação civil pública para interdição do Centro de Triagem de Viana (CTV) (ES): a
Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo realizou inspeções no CTV (local destinado à
triagem dos presos ingressos no sistema prisional), onde se verificaram inúmeras
264
irregularidades e violações de direitos dos presos, principalmente a permanência por muito
mais tempo do que o previsto, com superlotação de 425%. A Secretaria de Justiça do Estado
do Espírito Santo foi procurada para que fosse firmado um termo de Ajustamento de Conduta.
Como não foi obtida uma composição extrajudicial, ajuizou-se a ação civil pública junto à
Vara de Fazenda Estadual e Municipal de Registros Públicos e Meio Ambiente (Processo nº
0005090-83.2013.8.08.0050), visando à interdição parcial do CTV, bem como várias medidas
para acabar com a superlotação e para garantir condições de estrutura e dignidade aos presos,
com decisão liminar procedente (ANADEP, 2015).
2 - Ação civil pública para garantir aos presos condições adequadas de higiene, limpeza,
alimentação (PA): Em visita de rotina ao Centro de Recuperação Regional de Paragominas, a
Defensoria Pública constatou inúmeras violações aos direitos humanos dos que estavam ali
custodiados, derivadas das condições indignas que atentavam contra a saúde dos presos, a
exemplo da falta de higiene e limpeza, falta de alimentação adequada, falta de equipe médica,
falta de local para visita íntima etc. Com isso, foram feitos vários questionamentos à direção
do Centro de Recuperação, mediante ofício emitido pela Defensoria Pública, cuja resposta
corroborou o que tinha se observado, não se tendo vislumbrado qualquer medida para sanar os
problemas, razão pela qual foi necessário o ajuizamento da Ação civil pública (ANADEP,
2015).
3 - Ação inominada de interdição do Presídio de Paragominas – Containers (PA): ação
inominada ajuizada em conjunto pela Defensoria Pública e Ministério Público do Estado do
Pará, objetivando a interdição parcial do Centro Regional de Recuperação de Paragominas,
bem como a desativação da ala denominada de “containers” e a proibição do ingresso de
internos vindos de outras comarcas, até o início da construção do novo centro de recuperação.
Além do ajuizamento da ação, a Defensoria Pública encaminhou à Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Pará, relatório contendo as principais
violações de direitos humanos nesse Presídio, que foi inspecionado por um representante da
Comissão. Em seguida, realizou-se audiência pública sobre a questão carcerária do Pará, na
qual a Defensoria Pública também apresentou o relato sobre a situação crítica existente. Em
decorrência de toda essa mobilização e das articulações realizadas por vários setores
institucionais e da sociedade civil, foi iniciada a construção do novo centro de recuperação de
Paragominas em 25 de junho de 2014 (ANADEP, 2015).
265
4 - Ação civil pública para garantir alimentação dos presos nos deslocamentos para
participarem de audiências (RJ): Proposta pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro, visando a garantir a alimentação dos presos que, ao se
deslocarem das unidades prisionais para os fóruns a fim de participarem de audiências,
ficavam por inúmeras horas sem qualquer alimentação, ou sem alimentação adequada. A
liminar foi indeferida sob o argumento de que “eventual liminar obrigando a melhora da
alimentação poderia viabilizar a contratação, por parte do estado, sem prévio processo
licitatório, o que é inaceitável no nosso ordenamento jurídico” (ANADEP, 2015). A relatora
do agravo de instrumento interposto pela Defensoria Pública deu provimento, na forma do art.
557, § 1º-A, do Código de Processo Civil Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
fundamentando-se no princípio da dignidade humana, sendo obrigatório que o Estado garanta
a alimentação mínima aqueles que estão sob sua custódia (ANADEP, 2015).
5 - Ação civil pública objetivando a construção/ restauração do sistema de esgoto da
Casa Prisão Provisória de Palmas, e ressarcimento a título de dano moral coletivo (TO): teve
como objeto compelir o Estado do Tocantins a realizar a restauração do sistema de tratamento
de esgoto dessa prisão, que se encontrava com várias irregularidades, contaminando o solo, as
águas fluviais e o lençol freático, causando dano ambiental e à saúde pública de toda a
população da cidade. O Núcleo Especializado de Assistência e Defesa ao Preso (NADEP),
que instaurou um Procedimento Preparatório, realizou vistoria no local e buscou os órgãos de
defesa do meio ambiente para obter uma solução extrajudicial do problema. No entanto, não
houve avanços nessa composição. Além da restauração do sistema de tratamento de esgoto e
da retirada de todo o material depositado nas lagoas seriadas, foi requerido que o Estado se
abstivesse de fazer novas deposições bem como de receber mais presos, em razão da
superlotação. Considerando, todavia, o dano ambiental causado pela omissão estatal, que afeta
a sociedade e futuras gerações, foi postulada reparação pelo dano moral coletivo (ANADEP,
2015).
Todas essas cinco ações foram apenas tentativas para minimizar os efeitos deletérios
que o encarceramento produz no Brasil, conforme já amplamente estudado. A situação de
descaso e abandono nos casos concretos (desde a superpopulação carcerária até a falta de
alimentos) somente pôde ser enfrentada com a interposição da ação de natureza coletiva, para
que o Estado passasse a conferir a atenção devida. Em outros termos, flagrantes violações de
direitos foram promovidas apesar de todos os esforços extrajudiciais no sentido de solução
dos problemas. Não resta alternativa, assim, senão a movimentação do Estado-juiz para a
266
satisfação de demandas básicas como acesso a saneamento básico e alimentação. Releva
destacar o fato de que, em algumas dessas ações, o Judiciário, mesmo provocado, não adotou
imediatamente a decisão de proteger condizentemente os direitos humanos no caso concreto,
o que denota uma posição estatal de tratamento indiferente a pessoas privadas de liberdade,
desconsideradas em sua humanidade.
6 - Termo de cooperação técnica visando ao combate à tortura (PI). Com o objetivo de
combater e prevenir a prática de tortura contra presos no Estado do Piauí, foi firmado um
Termo de Cooperação Técnica por diversos órgãos e instituições, a exemplo da Corregedoria
Geral de Justiça do Estado do Piauí (CGJ-PI), Defensora Pública Geral do Estado do Piauí,
Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), a Procuradoria Geral
de Justiça e as Secretarias Estaduais de Segurança Pública (SSP) e de Justiça e Direitos
Humanos (SEJUS). Essa atuação de natureza extrajudicial permite a participação da
Defensoria Pública na formação e discussão de políticas públicas, o que garante, em última
análise, a defesa dos interesses das pessoas que estão em condição de maior vulnerabilidade
de forma coletiva e com ênfase preventiva (ANADEP, 2015).
O enfrentamento à tortura, como estudado na subseção 2.5 da tese, representa um dos
maiores desafios na defesa dos direitos humanos também na atualidade, seja pela sua
admissão por muitos países em determinadas circunstâncias, o que dificulta um consenso
internacional mais veemente em seu absoluto repúdio, seja porque continua sendo realizada
de maneira sub-reptícia como investigação e castigo pelos órgãos de segurança pública.
Assim, muitas vezes a atuação meramente individual de denúncia e promoção de
reponsabilidade de torturadores revela-se inócua, como estão a provar os baixíssimos índices
de processos e condenações por esses crimes. Resta, portanto, o recurso a ações de natureza
coletiva, nesse caso concreto representado pela chamada à responsabilidade dos órgãos de
segurança pública, bem como das instituições do sistema de justiça no enfrentamento a essa
prática que se configura em relevante manifestação da criminalização da pobreza, como já
estudado e demonstrado. Importante lembrar é que o inciso XVIII do art. 4º da LC no
80/1994, com redação dada pela LC no 132/2009, estabelece como função institucional da
Defensoria Pública a atuação “[...] na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas
de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência,
propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas” (BRASIL,
2009).
267
7 – Ação civil pública para impedir a revista vexatória nas unidades prisionais (RJ) –
proposta pelo Núcleo de Direitos Humanos, teve liminar indeferida em primeiro grau, mas o
Tribunal de Justiça reformou a decisão em sede de agravo de instrumento, determinando a
suspensão imediata da prática. Importante observar é que foi fundamental a mobilização dos
defensores, junto aos desembargadores, visando a sensibilizá-los para a relevância e a
legitimidade da causa, por meio da apresentação de dados do sistema prisional de São Paulo
que demonstravam a falta de efetividade da medida e a existência de recursos tecnológicos
que poderiam substituir essa revista tão invasiva e agressiva. Nesse sentido, “[...] em apenas
0,03% das visitas houve tentativa de ingresso de objetos proibidos. A pesquisa relata também
a inexistência de armas entre as apreensões e acrescenta terem sido encontrados quatro vezes
mais objetos proibidos no interior das unidades prisionais que com os visitantes”, diz o estudo
(ANADEP, 2015). Tais dados concretos foram objeto também de nota técnica que a
Defensoria Pública apresentou na Assembleia Legislativa para instruir o Projeto de Lei no
77/2015 sobre o fim da revista vexatória que, apesar de aprovado, foi vetado pelo governador.
Vale observar que a atuação da Defensoria Pública se deu transposta ao âmbito judicial,
acompanhando o processo legislativo e divulgando material em redes sociais no intuito de
demonstrar que a revista vexatória é inconstitucional por violar a intimidade e submeter os
membros familiares dos presos a tratamento desumano e degradante (ANADEP, 2015).
A realização de revistas vexatórias, como analisado na subseção 2.5 da tese, ocupa lugar
central entre os tratamentos estigmatizantes levados a efeito pelo Estado em relação a presos e
seus componentes familiares. São técnicas que, de tão degradantes, saltam aos olhos em sua
indignidade, mas que continuam sendo utilizadas amplamente no Brasil, sob os olhares
complacentes dos membros dos Três Poderes da República. Como demonstrado nessa ação,
os defensores públicos precisaram ingressar com ação judicial coletiva a fim de sanar tal
prática, que já deveria ter sido extirpada há muito tempo da realidade prisional, mercê da
evolução tecnológica experimentada, capaz de possibilitar outras modalidades de verificação
da condução de ilícitos nos corpos de presos e visitantes. Não foi suficiente essa ação, pois o
pedido de medida liminar foi indeferido, exigindo dos defensores públicos o esforço de
“sensibilizar” os desembargadores para a legitimidade da causa, o que evidencia o tratamento
indiferente que muitas vezes é dado a uma situação que deveria merecer pronta resposta
judicial pela sua simples veiculação. Não bastasse isso, o acompanhamento de processo
legislativo que resultou na proibição da revista vexatória, em atuação bastante proativa dos
defensores públicos, esbarrou no veto governamental, em mais uma mostra de
268
despreocupação relativa aos alvos de tratamentos humilhantes e degradantes, invariavelmente
pobres.
8 - Exposição de presos à mídia e direito de imagem (RJ): o Núcleo de Direitos
Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro propôs ação civil pública
visando a tutelar os direitos da personalidade, especialmente de presos provisórios, cujas
imagens são recorrentemente veiculadas na grande mídia sem qualquer restrição.
Fundamentou-se que “[...] tal exposição desvinculada de qualquer utilidade para a persecução
penal, processual ou pré-processual, é ato que contamina a imparcialidade do julgador e de
jurados, viola o princípio da presunção de inocência e, sobretudo, gera danos irreversíveis na
vida de pessoas que aguardam julgamento”. E o pedido foi no sentido de impedir a exibição
da imagem de tais presos pelos agentes estatais de segurança, sob pena de multa e
responsabilização (ANADEP, 2015).
A atuação da mídia e seu papel na criminalização da pobreza também foram enfrentados
nesse trabalho (subseção 1.4), ficando remarcado, igualmente, o seu tratamento seletivo na
divulgação de notícias de crimes. Assim, mais uma vez, foi necessária a busca da intervenção
judicial a fim de fazer cessar os espetáculos de exposição midiática indevida daqueles que
ocupam os estratos mais desfavorecidos da sociedade, conduta que normalmente não ocorre
com todos os criminosos apanhados pela polícia, não se verificando frequentemente quando
os suspeitos ou criminosos são ricos.
9 - Habeas corpus preventivo contra detenção de flanelinhas (RJ): a Defensoria Pública
do Estado do Rio de Janeiro, por meio do órgão de atuação junto ao Juizado Especial Adjunto
Criminal da cidade de Volta Redonda, passou a observar a existência de inúmeros termos cir-
cunstanciados relacionados à detenção de flanelinhas por agentes da PM e Guarda Municipal,
que os encaminhavam à delegacia em razão da suposta prática de contravenção de “[...]
exercício irregular da profissão de guardador de veículos” (ANADEP, 2015). Em cada
procedimento, a Defensoria Pública passou a requerer a não homologação da transação penal
em razão da atipicidade da conduta, bem como a impetrar habeas corpus para suspender os
procedimentos dos juizados (ANADEP, 2015). Tais medidas adotadas individualmente em
cada procedimento estavam sendo exitosas, entretanto, demandavam uma multiplicidade de
petições e habeas corpus idênticos. Em suma, a situação se repetia, reiterada e
constantemente, justificando uma atuação coletiva e preventiva, para evitar constrangimentos
a dezenas de trabalhadores que desempenhavam tal atividade nas cidades do interior do
269
Estado e para evitar o desperdício de recursos humanos e estruturais envolvidos na rotina do
sistema de Justiça. Foi impetrado habeas corpus coletivo (Processo nº 0035227-
28.2012.8.19.0066), obtendo-se a medida liminar, confirmada ao final por sentença. De efeito,
concederam-se salvo-condutos a todas as pessoas que se encontravam trabalhando, como
guardadores de veículos automotores nas “[...] ruas da cidade de Volta Redonda –
“flanelinhas” – garantindo-lhes o direito de ir, vir e permanecer a qualquer hora do dia, não
podendo ser removidos contra sua vontade, nem serem conduzidos a Delegacia de Polícia ou
serem autuados por exercício irregular da profissão, salvo em hipótese de flagrância por crime
ou por ordem judicial, sob pena de multa de R$ 1.000,00 (mil reais)”.
Nesse caso particular, foi necessário atuar coletivamente para barrar uma ação típica de
criminalização da pobreza, mediante a qual os órgãos de segurança pública estavam
perseguindo criminalmente condutas que sequer estavam tipificadas como crime pela
legislação, em indisfarçável ação de “higienização” de espaços públicos, destinada a afastar
indesejáveis sociais do convívio dos proprietários de veículos do Rio de Janeiro. As ações, na
realidade, não combatiam condutas propriamente ditas, mas pessoas, em inegável
manifestação de direito penal do autor. Nessa ação da Defensoria Pública, encontra-se um
nicho de atuação relevantíssimo para a perspectiva desta tese, na medida em que cumpre uma
finalidade importante, conforme defende Alzueta (2014, p. 197-198), que é colocar em crise
as rotinas policiais violentas afincadas na vida cotidiana da instituição, os modos de pensar,
sentir e atuar, todos autorizados pela demagogia punitiva, o descontrole judicial e a
intolerância social.
Ações coletivas dessa natureza, muito mais do que a importância de tornar plúrimos os
efeitos de decisões judiciais, que, do contrário, permaneceriam adstritos aos limites dos casos
individuais, representam instrumentos de enfrentamento à criminalização da pobreza por meio
da reafirmação de sua essencial iniquidade, na medida em que forçam o Estado-juiz a reiterar
expressamente o que as normas, principalmente constitucionais, dispõem: que as instituições
públicas (mesmo as de segurança pública) não se podem converter em instrumentos de
perseguição de pessoas em virtude de sua condição socioeconômica.
Perante tão amplo complexo de situações que pediram a intervenção da Defensoria
Pública, é importante considerar um argumento que aufere, paulatinamente, bastante força na
doutrina recente: a possibilidade de atuação da Defensoria Pública ad coajuvandum em
processos coletivos, como defendido por Zufelato (2014, p. 320):
270
Por tais razões, e especialmente pela relevância dada pela Constituição à Defensoria Pública na defesa dos necessitados, é indispensável potencializar os canais de participação da instituição no processo coletivo, admitindo a sua intervenção ad coajuvandum ao autor ou réu quando o interesse defendido for preponderantemente relacionado com a tutela de grupos vulneráveis, nos casos em que a instituição não figurar nos pólos processuais.
A atuação da Defensoria nos termos propostos se justifica, seja pela exigência de
fortalecimento dos canais de participação processual, seja pela complexidade e alta
conflituosidade que marcam as demandas coletivas, o que poderia gerar sub-representação
dos interesses dos pobres, o que torna importante a presença de representantes adequados –
mesmo que não sejam partes – para que defendam da maneira mais eficiente possível os
interesses do grupo, contribuindo, assim, para conferir maior legitimidade à decisão
jurisdicional (ZUFELATO, 2014, p. 320-321).
Uma emblemática atuação da Defensoria Pública atuando como amicus curiae foi no
HC coletivo 143.641/SP, impetrado inicialmente pelo Coletivo de Advogados em Direitos
Humanos, em favor de mulheres presas preventivamente que ostentem a condição de
gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome
das próprias crianças (BRASIL, 2018b). A Defensoria Pública do Estado do Ceará pleiteou
seu ingresso como custos vulnerabilis ou, subsidiariamente, como amicus curiae, enfatizando
ser órgão interveniente na execução penal para a defesa das pessoas presas, que formam um
grupo por demais vulnerável, e que sua atuação como guardiã dos vulneráveis tem por
fundamento o art. 134 da Constituição e o art. 4º, XI, da LC no 80/1994; afirmou que, caso
assim não se entendesse, devesse ser aceita para atuar como amicus curiae, na medida em que
o habeas corpus era de natureza coletiva; postulou, no mérito, a aplicação do princípio da
intranscendência e do princípio da primazia dos direitos da criança; defendeu o argumento de
que a leitura correta da Lei no 13.257/2016 é a de que não há necessidade de satisfazer-se
outras condições, salvo as expressas na própria lei, para a substituição da prisão preventiva
pela domiciliar (BRASIL, 2018b). O STF, após manifestação da Procuradoria Geral da
República, afirmou o cabimento do habeas corpus coletivo, com algumas premissas para seu
conhecimento, como a legitimação ativa: por analogia à legislação referente ao mandado de
injunção coletivo, decidiu ser da DPU, por tratar-se de ação cujos efeitos tinham abrangência
nacional (BRASIL, 2018b). Outras defensorias públicas estaduais e organizações da
sociedade civil ingressaram também no processo, que resultou na seguinte decisão, que será
transcrita, apesar de extensa, por ser uma marca histórica: a primeira a admitir o HC coletivo
no Brasil, ainda que esse instrumento não tenha previsão legal:
271
Ementa: HABEAS CORPUS COLETIVO. ADMISSIBILIDADE. DOUTRINA BRASILEIRA DO HABEAS CORPUS. MÁXIMA EFETIVIDADE DO WRIT. MÃES E GESTANTES PRESAS. RELAÇÕES SOCIAIS MASSIFICADAS E BUROCRATIZADAS. GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS. ACESSO À JUSTIÇA. FACILITAÇÃO. EMPREGO DE REMÉDIOS PROCESSUAIS ADEQUADOS. LEGITIMIDADE ATIVA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI 13.300/2016. MULHERES GRÁVIDAS OU COM CRIANÇAS SOB SUA GUARDA. PRISÕES PREVENTIVAS CUMPRIDAS EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. INADMISSIBILIDADE. PRIVAÇÃO DE CUIDADOS MÉDICOS PRÉ-NATAL E PÓS-PARTO. FALTA DE BERÇARIOS E CRECHES. ADPF 347 MC/DF. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL. CULTURA DO ENCARCERAMENTO. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO. DETENÇÕES CAUTELARES DECRETADAS DE FORMA ABUSIVA E IRRAZOÁVEL. INCAPACIDADE DO ESTADO DE ASSEGURAR DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS ENCARCERADAS. OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO E DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. REGRAS DE BANGKOK. ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA. APLICAÇÃO À ESPÉCIE. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE OFÍCIO. I – Existência de relações sociais massificadas e burocratizadas, cujos problemas estão a exigir soluções a partir de remédios processuais coletivos, especialmente para coibir ou prevenir lesões a direitos de grupos vulneráveis. II – Conhecimento do writ coletivo homenageia nossa tradição jurídica de conferir a maior amplitude possível ao remédio heroico, conhecida como doutrina brasileira do habeas corpus. III – Entendimento que se amolda ao disposto no art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal - CPP, o qual outorga aos juízes e tribunais competência para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus, quando no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. IV – Compreensão que se harmoniza também com o previsto no art. 580 do CPP, que faculta a extensão da ordem a todos que se encontram na mesma situação processual. V - Tramitação de mais de 100 milhões de processos no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, a qual exige que o STF prestigie remédios processuais de natureza coletiva para emprestar a máxima eficácia ao mandamento constitucional da razoável duração do processo e ao princípio universal da efetividade da prestação jurisdicional VI - A legitimidade ativa do habeas corpus coletivo, a princípio, deve ser reservada àqueles listados no art. 12 da Lei 13.300/2016, por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo. VII – Comprovação nos autos de existência de situação estrutural em que mulheres grávidas e mães de crianças (entendido o vocábulo aqui em seu sentido legal, como a pessoa de até doze anos de idade incompletos, nos termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA) estão, de fato, cumprindo prisão preventiva em situação degradante, privadas de cuidados médicos pré-natais e pós-parto, inexistindo, outrossim berçários e creches para seus filhos. VIII – “Cultura do encarceramento” que se evidencia pela exagerada e irrazoável imposição de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis, em decorrência de excessos na interpretação e aplicação da lei penal, bem assim da processual penal, mesmo diante da existência de outras soluções, de caráter humanitário, abrigadas no ordenamento jurídico vigente. IX – Quadro fático especialmente inquietante que se revela pela incapacidade de o Estado brasileiro garantir cuidados mínimos relativos à maternidade, até mesmo às mulheres que não estão em situação prisional, como comprova o “caso Alyne Pimentel”, julgado pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas. X – Tanto o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio nº 5 (melhorar a saúde materna) quanto o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas), ambos da
272
Organização das Nações Unidades, ao tutelarem a saúde reprodutiva das pessoas do gênero feminino, corroboram o pleito formulado na impetração. X – Incidência de amplo regramento internacional relativo a Direitos Humanos, em especial das Regras de Bangkok, segundo as quais deve ser priorizada solução judicial que facilite a utilização de alternativas penais ao encarceramento, principalmente para as hipóteses em que ainda não haja decisão condenatória transitada em julgado. XI – Cuidados com a mulher presa que se direcionam não só a ela, mas igualmente aos seus filhos, os quais sofrem injustamente as consequências da prisão, em flagrante contrariedade ao art. 227 da Constituição, cujo teor determina que se dê prioridade absoluta à concretização dos direitos destes. XII – Quadro descrito nos autos que exige o estrito cumprimento do Estatuto da Primeira Infância, em especial da nova redação por ele conferida ao art. 318, IV e V, do Código de Processo Penal. XIII – Acolhimento do writ que se impõe de modo a superar tanto a arbitrariedade judicial quanto a sistemática exclusão de direitos de grupos hipossuficientes, típica de sistemas jurídicos que não dispõem de soluções coletivas para problemas estruturais. XIV – Ordem concedida para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes. XV – Extensão da ordem de ofício a todas as demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições acima. (BRASIL, 2018b).
Atuação semelhante como amicus curiae é desempenhada pela DPU no HC Coletivo
154.118/RJ, em tramitação na 2ª. Turma do STF, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes,
interposto por Wadih Nemer Damous Filho e outros, com o fim de impedir a decretação de
medidas de busca e apreensão coletivas e/ou genéricas em desfavor dos cidadãos brasileiros,
em especial aqueles moradores de comunidades carentes, negros, pobres e marginalizados
(BRASIL, 2018c). Como já expresso em outros momentos neste ensaio, a expedição e
cumprimento de mandados de busca e apreensão coletivos representam modalidades
escancaradas de criminalização da pobreza, na medida em que autorizam o ingresso nas
residências das pessoas de uma determinada área, indiscriminadamente, em verdadeira
presunção de culpa e ao arrepio da proteção constitucional à inviolabilidade do domicílio e,
nas vezes ocorridas, em indisfarçável seletividade, dado que os ingressos somente acontecem
nas casas de pessoas pobres83. Nesse sentido, é relevante o manejo de uma ação de natureza
coletiva, dadas as flagrantes dificuldades enfrentadas, às quais se acresce a importante
observação da DPU na petição mencionada:
83 Alguns casos concretos foram expressos na subseção 1.5 desta tese.
273
Todavia, além de todas as dificuldades que adviriam de tal medida, como distribuição para Juízos diferentes, número de feitos e dificuldades normais de acesso à Justiça, há ainda outro aspecto que enfraqueceria a demanda, se ela fosse veiculada na forma individual, qual seja, perder-se-ia a noção de que um grupo específico estaria a sofrer invasão indevida em seus direitos fundamentais em decorrência de sua condição econômica e social. Essa perspectiva é fundamental para o deslinde da questão submetida à apreciação da Corte. A impetração coletiva, no caso em exame, mostra que o mandado genérico volta-se contra os mais frágeis, os mais fracos, os mais pobres como um todo, em razão única dessa condição. (DPU, 2019).
Trata-se, portanto, de intervenção defensória com a expressa finalidade de deixar claro o
caráter seletivo dessas ações e o componente de criminalização da pobreza que inegavelmente
carregam, como um jeito de chamar a atenção do Judiciário para as sistemáticas violações de
direitos representadas pelos mandados de busca e apreensão coletivos.
Apesar da fundamental importância da atuação transindividual da Defensoria Pública,
muitas vezes indispensável para a tutela de determinados direitos, concorda-se com o
entendimento de Zufelato (2014, p. 330), para quem devem ser priorizadas as ações
extrajudiciais, no sentido de educação e conscientização de direitos, mesmo os de natureza
coletiva, a fim de que se afaste de uma atuação defensória meramente paternalista,
contribuindo, ao contrário, para o empoderamento dos grupos vulneráveis, pela transmissão
de autonomia e consciência de direitos.
Com amparo nessa conscientização, estudada na subseção 4.2 da tese, aliada a outros
meios extrajudiciais de solução de conflitos, evita-se o ajuizamento de novas ações judiciais
ao já abarrotado e ineficiente sistema de justiça, primando-se pela prevenção de conflitos ou
alcançando-se soluções muito mais efetivas e duradouras, por atingirem o âmago dos
eventuais litígios. É sobre isso que se ocupa o segmento que vem agora, trazendo o quarto
eixo de atuação defensória no enfrentamento à criminalização da pobreza.
4.4 A relevância da atuação extrajudicial
O quarto eixo pressupõe a vocação constitucional da Defensoria Pública à atuação
extrajudicial, garantindo o acesso à justiça em uma perspectiva ampla, não restrita ao acesso
ao Judiciário, opondo-se à criminalização da pobreza por meio de: solução extrajudicial dos
conflitos por métodos alternativos (mediação, conciliação, arbitragem), com base nas
previsões legais nesse sentido e da proximidade dos defensores públicos dos problemas das
comunidades e dos movimentos sociais; orientação jurídica; atuação em processos
274
administrativos disciplinares; participação em conselhos; convocação de audiências públicas;
inspeções de locais de privação de liberdade.
Inicialmente, importa lembrar que a CF/88 estabelece em seu art. 134, com a redação
dada pela EC no 80/2014, que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime
democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a
defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, integral
e gratuitamente, aos necessitados, conforme o inciso LXXIV do art. 5º da CF/88 (BRASIL,
2014).
Já o art. 4o, II da LC no 80/94, com redação dada pela LC no 132/2009 elenca, entre os
objetivos institucionais da Defensoria Pública (art. 4º): II promover, prioritariamente, a
solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de
interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e
administração de conflitos (BRASIL, 2009). A ordem jurídica brasileira, portanto, confere à
Defensoria Pública legitimidade para atuar em situações nas quais os conflitos ainda
apareçam em seu estádio embrionário, evitando que se convertam em situações muito mais
graves.
Ademais, partindo de uma necessária descentralização do atendimento e da inserção do
defensor público nos bairros, será possível a este profissional, que receberá toda a demanda de
conflitos de determinada comunidade, perceber quais são os mais recorrentes casos de
criminalização da pobreza e qual sua raiz comum, facilitando sobremaneira a sua
identificação e a resistência a eles. Por outro lado, sua presença constante representará
certamente um fator de contenção de práticas abusivas e ofensivas a direitos fundamentais,
mesmo aqueles que são imperceptíveis para os moradores das comunidades mais carentes, já
tão habituados com a contínua violação de direitos (desde individuais até sociais) que sequer
os visualizam84.
Com efeito, desde que a Defensoria Pública se converta, efetivamente, na porta de
acesso à justiça do carente, este passará a levar grande parte de seus problemas à análise do
defensor público, que construirá, com suporte no contato diuturno com as dificuldades
daquelas pessoas, uma espécie de “arquivo de conflitos”, no qual estarão inseridos tanto suas
84 Há referências mais detalhadas a esse assunto na seção 4.2.
275
causas como meios de solução. Situações de invasão ilícita de domicílio, tratamentos
estigmatizantes e até mesmo tortura e mortes institucionais podem ser levados imediatamente
ao conhecimento do defensor público, a fim de que sejam tomadas as providências de
contenção devidas.
Por outro lado, as pessoas pobres atendidas pelas defensorias públicas, em muitos casos,
por meio de uma escuta qualificada, podem expressar a necessidade de acesso a outra política
pública que pode ser viabilizada por uma rede de acolhimento interdisciplinar promovida pela
própria Defensoria Pública, como medida de promoção de acesso aos direitos (na concepção
de direitos humanos e da execução de políticas públicas) (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p.
48). “Atendendo à interdisciplinaridade, a Defensoria Pública deve atuar em rede, no sentido
da promoção de ações preventivas, em conjunto com outros órgãos públicos ou entidades
privadas, e ações repressivas, como é o caso do atendimento por equipe psicossocial”.
(FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 48))85.
Outro fator importante decorrente dessa maneira de atuação é a confiança que este
profissional poderá angariar junto aos membros da comunidade, que passarão a ver nele um
agente de acesso aos direitos, na medida em que possibilita a sua defesa, possibilitando que as
previsões legais não sejam continuamente esquecidas. É nessa perspectiva que o Centro de
Estudios Legales e Sociales (2016, p. 82) manifesta-se, em relação à sociedade argentina:
Por otra parte, es cada vez más evidente que muchas manifestaciones del hostigamiento policial no son formas encapsuladas de abuso, sino que se integran en tramas de violencia más amplias, a las que retroalimentan. En lugar de ser un factor que contribuye a la seguridad y a la protección, esta violencia policial es un engranaje fundamental de una violencia social más amplia. Por esto la prevención de los abusos policiales hacia los jóvenes debe enmarcarse en políticas más generales de reducción de la violencia en estos barrios, a través de la presencia permanente de distintos recursos y agencias del Estado que excedan a las fuerzas de seguridad.
Há que se destacar, ainda, que esse contato direto do defensor público com a
comunidade torna muito mais fácil para o Estado inserir-se em determinadas localidades com
um histórico de abandono e que já criaram os próprios meios de solucionar seus problemas de
acesso aos bens que deveriam ser públicos e universais. Necessária, portanto, é uma
instituição que chegue a esses locais para ouvir as pessoas e funcionar como freios aos
85 Não se pretende aqui, advirta-se, que a Defensoria Pública substitua outras instituições na realização de
políticas públicas, como de educação, saúde, trabalho, mas sim que aquelas assistências que puderem ser prestadas, por serem afins com suas obrigações institucionais (alguns tipos de assistência social e psicológica), podem ser imediatamente fornecidas no próprio âmbito da Defensoria Pública e outras sejam realizadas pelas instituições competentes, após o devido encaminhamento.
276
excessos do poder estatal (e não para impor decisões criminalizantes). Obtendo sucesso nesta
empreitada, a Defensoria Pública funcionará como importante catalisador da inclusão social,
com efeitos benéficos e imediatos na amenização do problema da insegurança pública, no
qual está imbricada, registre-se, a complexa e grave situação prisional.
Ressalte-se, ainda, a importância da ação inclusiva da Ouvidoria externa, iniciativa
pioneira das defensorias públicas do Brasil entre as instituições do sistema de justiça (que
resistem ferozmente a qualquer tipo de controle externo) e que funcionam de modo bastante
eficaz para a aproximação dessa instituição com a sociedade. A Ouvidoria é formada por
pessoas de fora da instituição, oriundas dos movimentos sociais, responsáveis por captar as
demandas da sociedade civil referentes à atuação da Defensoria Pública e exigir efetividade
na proteção, promoção e defesa dos direitos. Para ilustrar as possibilidades de atuação da
Ouvidoria externa, tome-se como exemplo a existente no Estado do Ceará, uma das primeiras
do Brasil, instituída por LC Estadual no 91, de 20 de dezembro de 2010 (CEARÁ, 2010), que
alterou a LC nº 06, de 28 de abril de 1997 (CEARÁ, 1997), para incluir o art. 8º - A, com a
seguinte redação:
Art. 8º-A A Ouvidoria-Geral é órgão auxiliar da Defensoria Pública do Estado, de promoção da qualidade dos serviços prestados pela Instituição, contando com servidores da Defensoria Pública do Estado e com a estrutura definida pelo Conselho Superior após proposta do Ouvidor-Geral, competindo-lhe: I - receber e encaminhar ao Corregedor-Geral representação contra membros e servidores da Defensoria Pública do Estado, assegurada a defesa preliminar; II - propor aos órgãos de administração superior da Defensoria Pública do Estado medidas e ações que visem à consecução dos princípios institucionais e ao aperfeiçoamento dos serviços prestados; III - elaborar e divulgar relatório semestral de suas atividades, que conterá também as medidas propostas aos órgãos competentes e a descrição dos resultados obtidos; IV - participar, com direito a voz, do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado; V - promover atividades de intercâmbio com a sociedade civil; VI - estabelecer meios de comunicação direta entre a Defensoria Pública e a sociedade, para receber sugestões e reclamações, adotando as providências pertinentes e informando o resultado aos interessados; VII - contribuir para a disseminação das formas de participação popular no acompanhamento e na fiscalização da prestação dos serviços realizados pela Defensoria Pública; VIII - manter contato permanente com os vários órgãos da Defensoria Pública do Estado, estimulando-os a atuar em permanente sintonia com os direitos dos usuários; IX - coordenar a realização de pesquisas periódicas e produzir estatísticas referentes ao índice de satisfação dos usuários, divulgando os resultados. Parágrafo único. As representações podem ser apresentadas por qualquer pessoa, inclusive pelos próprios membros e servidores da Defensoria Pública do Estado, entidade ou órgão público. (CEARÁ, 2010).
Pelo rol de atribuições estabelecidas, é possível perceber o relevante papel que pode
desempenhar, independentemente, a Ouvidoria, funcionando como receptáculo de
277
informações sobre conduta indevida de servidores públicos (inclusive e principalmente,
defensores públicos), para encaminhamento aos órgãos de responsabilização; formulando
políticas públicas no âmbito da Administração Superior da Defensoria Pública; participando
na normatização interna da Defensoria Pública, por meio de seu assento no Conselho
Superior; promovendo o intercâmbio com a sociedade civil, como canal de comunicação entre
esta e a Defensoria Pública, pelo recebimento de sugestões e reclamações e seu
encaminhamento à Administração Superior ou às supervisões específicas; disseminando
maneiras de participação popular no acompanhamento e na fiscalização da prestação dos
serviços realizados pela Defensoria Pública; identificando os direitos dos usuários, para
encaminhamento aos setores competentes; coordenando a realização de pesquisas periódicas e
produção de estatísticas referentes ao índice de satisfação dos usuários, com posterior
divulgação os resultados. As ouvidorias externas, como instrumentos de participação e
controle social, constituem, indiscutivelmente, espaços de aproximação da Defensoria Pública
com os usuários de seu serviço, além de serem capazes de produzir maior transparência da
política pública.
Lembre-se, na temática em tela, que, com o alinhamento da perspectiva (eixo) de
atuação extrajudicial com a anterior (atuação transindividual), será possível buscar a solução
de muitas situações que representem criminalização da pobreza com amparo na realização de
Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), evitando-se a judicialização dos conflitos, com
suporte na mera “ameaça” de ajuizamento, em caso de descumprimento, de demandas de
natureza coletiva. Como exemplos podem ser citadas as instaurações de TACs para a solução
de problemas de superpopulação carcerária; regularização no fornecimento de água potável e
alimentação adequada a pessoas privadas de liberdade; adequação dos procedimentos de
revista para ingresso e permanência de visitantes nos cárceres; destinação de locais adequados
para que as mulheres encarceradas permaneçam com seus filhos durante o período de
amamentação; fornecimento adequado de assistências material, educacional, religiosa e à
saúde no ambiente prisional, dentre outras inúmeras possibilidades. Antes mesmo da
instauração de TACs, o simples encaminhamento de ofícios denunciando a situação de
desrespeito a direitos ou mesmo o contato verbal com as autoridades competentes é, muitas
vezes, suficiente para a resolução desses problemas. Para isso, contudo, o defensor público
precisa legitimar-se como porta-voz constante dessas demandas, deixando claro que o seu
compromisso é com o respeito às normas constitucionais e também legais e com a defesa
intransigente da dignidade humana.
278
Ainda no tocante às funções extrajudiciais, destaque-se a importante atuação dos
defensores públicos do sistema prisional na orientação jurídica dos que estão enredados em
um conflito criminal. Trata-se do cumprimento da primeira função institucional da Defensoria
Pública à qual compete, de acordo com o art. 4º, I da LODP, “[...] prestar orientação jurídica e
exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus”. (BRASIL, 2009). Como já aludido na
perspectiva da educação em direitos, a interpretação dos significados dos documentos e
manifestações existentes no processo, sua funcionalidade e efeitos, bem como do andamento
do processo de conhecimento (quando presos provisórios) ou da gama de benefícios a que faz
jus, são tão importantes quanto a própria atuação tutelar clássica. Em outras palavras, muitas
vezes a acessibilidade e o contínuo contato do defensor com seu assistido representam, para
este último, fatores que proporcionam muito maior segurança e tranquilidade do que a atuação
processual propriamente dita, em relação à qual muito pouco entende e menos ainda tem
condições de influir. Em muitas situações, atuações processuais tecnicamente impecáveis são
simplesmente minimizadas, na percepção dos assistidos, caso não venham acompanhadas de
sua comunicação adequada e, principalmente, da tradução de sua função e efeitos.
A orientação jurídica aufere ainda maior relevo em relação àquele privado de liberdade,
pois este, normalmente alijado de qualquer contato com o mundo exterior, vivencia uma
constante sensação de abandono. Assim, sua necessidade de informação sobre sua situação
processual e prisional ganha contornos dramáticos, porquanto o que está em jogo é a tradução
dos elementos que se confundem com os condicionantes e determinantes da própria privação
da liberdade. Um dos principais fatores de angústia do preso, portanto, é exatamente a
indefinição de seu estado prisional e processual. É fácil constatar nas inspeções que são feitas
nas unidades prisionais que, mesmo as mais degradantes condições de insalubridade e
privação de direitos básicos, são simplesmente ignoradas pelos presos ante sua angústia para
saber alguma informação sobre o seu processo. Por mais que se questione a eles sobre a
qualidade da água, da comida, eventuais atos de tortura, a sede pela liberdade suplanta tudo e
é, invariavelmente, o que vem à tona nas queixas dos presos e presas que respondem aos
questionamentos das comissões de inspeção. Relatos sobre excesso de prazo nas prisões
processuais, denúncias de falta de assistência jurídica, queixas de cumprimento de pena por
tempo superior à sentença ou do suficiente para progressão de regime são ouvidos de modo
muito mais constante do que a quantidade de presos nas celas, ou mesmo a qualidade ou
quantidade da comida que é servida.
279
Realmente, a privação de liberdade torna-se ainda mais penosa e chega a ser desumana,
quando acompanhada do total alheamento sobre os direitos de que o detento dispõe, bem
como das suas perspectivas concretas de deixar o cárcere. Ao defensor público, portanto, cabe
a tarefa de amenizar esta angústia com o atendimento individualizado dos presos, que,
sabedores de que contarão com o apoio jurídico quando necessário, passarão a cumprir sem
sobressaltos a pena que lhes foi imposta. Do contrário, a ausência de assistência jurídica faz
nascer no preso a ideia alternativa de recorrer a meios de autodefesa (FRAGOSO; CATÃO;
SUSSEKIND, 1980, p. 102). Rebeliões e motins, portanto, estão muito mais suscetíveis de
ocorrer se há total desconhecimento, por parte dos presos, das acusações que contra eles são
eventualmente formuladas e das projeções de manutenção da privação da liberdade.
Repise-se, então, nesse particular, a ideia de que o acompanhamento adequado dos
processos, com a veiculação de todas as petições corretas, no prazo ideal, embora sejam
atitudes esperadas do defensor público e imprescindíveis para a integral assistência jurídica ao
encarcerado, perdem enormemente sua importância, caso não sejam comunicadas aos seus
beneficiários, já que, para eles, em suas realidades de privação da liberdade, só existe de fato
o que chega ao seu conhecimento pelas palavras proferidas pelo defensor de seus direitos.
Outra atuação extrajudicial importante vem encartada no art. 4º, XXII da LC no 80/94,
incluído pela LC no 132/2009, segundo o qual compete à Defensoria Pública “[...] convocar
audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais”
(BRASIL, 2009). Por esse instrumento, o defensor público pode colher subsídios ou mesmo
informar à população a respeito de determinado procedimento administrativo em trâmite
perante a instituição, sendo tal medida salutar em sede de tutela coletiva, dada a gama de
interesses que podem ser afetados, bem como de modo a possibilitar a participação social na
elaboração das medidas extrajudiciais e judiciais adotadas pela Defensoria Pública
(FENSTERSEIFER, 2017, p. 72).
Assim agindo, a Defensoria democratiza suas ações, na medida em que as abre para
contribuições advindas dos próprios beneficiários, que podem ser muito enriquecedoras, ao
agregar informações que jamais seriam alcançadas senão por aqueles que vivenciam a
situação concreta. Um exemplo: a realização de audiência pública para discutir o tratamento
conferido pelo Estado a visitantes de pessoas privadas de liberdade pode trazer dados
concretos do que ocorre nesses momentos de visita que jamais poderiam ser visualizados pelo
defensor público, ainda que acompanhasse a entrada e permanência de visitantes no cárcere,
280
mormente porque as ofensas aos direitos, que ordinariamente ocorrem, dificilmente se
verificariam nessas condições.
As audiências públicas representam também oportunidades de construir ambientes para
amplo e democrático debate sobre determinados temas, possibilitando a participação de
quaisquer pessoas, para a formulação de consensos e a cobrança de políticas públicas. No que
tange ao objeto deste estudo, é importante a realização de audiências públicas para tratar, por
exemplo: da situação carcerária geral de determinada cidade ou Estado, ou de questões
contingenciais ligadas aos problemas carcerários; a atuação policial em bairros,
principalmente periféricos; alguma situação específica de chacina; denúncias gerais de atos de
tortura ou ações outras desumanas ou degradantes, principalmente em locais de privação de
liberdade; invasão ilícita de domicílios; deficiências de atuação da Defensoria Pública, dentre
outros.
Sob essa perspectiva, a Defensoria Pública desveste-se de uma condição de panaceia
para todos os problemas, abrindo-se para a participação popular, a fim de colher elementos
para o robustecimento de suas atuações institucionais, bem como para servir de veículo de
acesso a outras instituições que, no caso, sejam as competentes para a solução dos problemas
ventilados. A reiterada utilização desses instrumentos, por outro lado, confere legitimidade à
Defensoria Pública como porta-voz dos grupos vulneráveis, além de possibilitar a construção
de espaços que podem ser destinados, igualmente, à educação em direitos, nos moldes
estudados na subseção 4.2 desta tese.
Também na perspectiva de prevenir situações de conflito, importante é a possibilidade
de atuação da Defensoria Pública no sentido de fiscalização, controle e participação na gestão
de políticas públicas, cabendo à instituição, nos exatos termos do art. 4º, XX da LC no 80/94,
incluído pela LC no 132/2009, “[...] participar, quando tiver assento, dos conselhos federais,
estaduais e municipais afetos às suas funções institucionais, respeitadas as atribuições de seus
ramos” (BRASIL, 2009).
Na particular atuação no âmbito penal, a Defensoria Pública pode tomar parte no
CNPCP (de acordo com legislação federal específica, com base no comando do art. 63 da
LEP) (BRASIL, 1984), nos conselhos penitenciários estaduais (conforme legislação estadual
específica, desde o comando do art. 69, §1º da LEP (BRASIL, 1984) e conselhos da
comunidade (art. 80 da LEP, com redação dada pela Lei no 12.313/2010) (BRASIL, 2010),
281
todos eles órgãos da execução penal de acordo com a LEP, com importantes funções de
fiscalização do sistema penitenciário, além de formuladores das políticas públicas
relacionadas à área. Lembre-se, ainda, que a Defensoria Pública pode tomar assento no
Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), conforme art. 2º, §2º, V da
Lei no 12.847/2013 (BRASIL, 2013).
Ao participar de tais colegiados, a Defensoria Pública tem condições de influir no
controle e participação social da execução penal, de modo que esta se afaste do caráter
seletivo e discriminatório que tem sido a sua marca – tudo isso no cumprimento da função
delineada por Fensterseifer (2017, p. 30-31), para quem
A Defensoria Pública representa, portanto, esse “movimento” do estado, por força dos seus deveres de proteção estabelecidos pela Constituição, no sentido de criar, tanto em termos organizacionais quanto procedimentais, políticas públicas inclusivas e capazes de operacionalizar o próprio princípio da igualdade na sua dimensão material, designadamente naquilo que constitui um dos principais esteios do Estado de Direito: um direito a ter direitos fundamentais civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais efetivos.
A Defensoria Pública pode, portanto, representar um canal estatal que seja receptáculo
das demandas sociais externadas pelos movimentos organizados da sociedade civil. Isso
porque, como David Garland ressalta, no complexo e diversificado mundo da Pós-
Modernidade, o governo efetivo e também legítimo deve devolver poderes e compartilhar a
tarefa de controle social com organizações locais e comunidades, já que não se pode mais
confiar em um simples “saber do Estado”, em burocráticas agências estatais inertes e nas
soluções universais impostas de cima, devendo-se, em lugar disto, incrementar as capacidades
governamentais com as organizações e associações da sociedade civil, com o conhecimento e
os poderes locais que estas contêm (GARLAND, 2008). Tal proximidade com a sociedade
civil, ademais, cria canais de comunicação aptos a fornecer subsídios para o próprio exercício
do direito de defesa nos processos criminais e de execução penal.
Por outro lado, como identificam Carolina Ferreira e Rosier Custódio, é possível que,
ainda durante o exercício de atividades de escuta e atendimento, defensores públicos e demais
servidores identifiquem a existência de outros conflitos que não sejam necessariamente objeto
de processos de criminalização, devendo-se priorizar, nesses casos, que os conflitos sejam
resolvidos em esferas externas ao sistema penal, por programas de mediação ou justiça
restaurativa desenvolvidos por equipes interdisciplinares e capacitadas da própria Defensoria,
282
ou mesmo com o encaminhamento voluntário para organizações que façam parte da rede de
parceiros da instituição (FERREIRA; CUSTÓDIO, 2018, p. 43).
Ainda na perspectiva de atuação extrajudicial, o art. 4º, XIV da LC no 80/94 atribui à
Defensoria Pública o papel de “[...] acompanhar inquérito policial, inclusive com a
comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não
constituir advogado”, enquanto o inciso XVII do mesmo dispositivo trata da atuação “[...] nos
estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar
às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias
fundamentais”. Como ensina Tiago Fensterseifer, a atuação em foco possui intenso caráter
preventivo, pois a presença de defensores públicos em estabelecimentos prisionais, além de
facilitar a comunicação direta de violações a direitos dos presos e posterior adoção das
medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, inibe tais práticas. Essa atuação está conectada
com a obrigação estabelecida no art. 81-B, parágrafo único da LEP (BRASIL, 2010), de visita
periódica aos estabelecimentos penais, que será objeto de análise mais detida. Nesse
particular, desde que a presença seja de fato constante e efetiva, funcionará o defensor público
como garante dos direitos humanos em locais de privação de liberdade, papel que ultrapassa
em muito a função de meramente propor os pedidos necessários perante as varas criminais
(em relação aos presos provisórios) e as varas de execução penal (no caso de condenados),
para alcançar a fiscalização do cumprimento do extenso rol de direitos que não deixam de
existir com a privação da liberdade.
De igual modo, sucede no relacionamento com o âmbito administrativo de execução da
pena, na medida em que o defensor público, pela atuação permanente no cárcere, conhece
como poucos o funcionamento das regras desse sistema, completamente alheio, muitas vezes,
às previsões legislativas e ao conhecimento da sociedade. Assim, converte-se no guardião dos
direitos fundamentais dos encarcerados, identificando mais facilmente as situações de
violação e acionando o Judiciário (ou mesmo as autoridades administrativas superiores) para a
recomposição dos direitos eventualmente violados ou ameaçados seriamente de lesão. De
efeito, situações de tortura são mais facilmente identificadas; descumprimento de direitos
básicos, como acesso a água, por exemplo, pode ser denunciado; dificuldades individuais de
convivência em determinada cela podem ser sanadas. Esses são exemplos de intervenção do
defensor público por meio de sua atuação extrajudicial, mas que podem se converter na
necessidade de acesso ao Judiciário (combinação com atuação judicial clássica).
283
No âmbito administrativo, ainda, há que se destacar a importância de participação
efetiva dos defensores públicos nos processos disciplinares, que podem funcionar como
relevantes instrumentos de perpetuação do cárcere. Uma decisão desfavorável, nesse caso,
representa impeditivo à concessão de vários institutos. Tratando especificamente da realidade
das prisões paulistas, mas que é replicada em todo o Brasil, Rafael Godoi conclui que a
sindicância é o processo que mais perfeitamente realiza o que Foucault (2017, p. 108) chama
de “soberania punitiva” da administração penitenciária, uma vez que ela torna o Judiciário um
mero avalista do procedimento, escapando-lhe o poder de determinar a qualidade e a duração
efetiva do período de reclusão, os direitos adquiridos e os lapsos aquisitivos de benefícios
prisionais. Os processos de sindicância – operacionalizados, soberana e fundamentalmente,
pelos agentes da administração penitenciária – constituem o meio mais generalizado para
assinalar pessoas e grupos de risco entre a população prisional, aos quais as penas serão
invariavelmente ainda mais duras e longas (GODOI, 2017, p. 116).
Por isso a LEP estatui em seu art. 59, caput¸ que, “Praticada a falta disciplinar, deverá
ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito
de defesa” (BRASIL, 1984). O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já proferiu Súmula no
mesmo sentido:
Súmula 533 - Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado. (BRASIL, 2015e).
São nulos, portanto, quaisquer procedimentos disciplinares que ocorram sem a presença
e efetiva participação do defensor público, nos casos nos quais não houver advogado
constituído, ou se demonstrada a sua desídia, quando a atuação se dará como órgão da
execução penal, conforme já explicado.
O defensor público, aqui, deve impedir que os processos disciplinares se convertam em
instrumentos de reafirmação do poder da administração prisional sobre os internos, que
normalmente se manifesta pela aplicação de punições desproporcionais e desconectadas do
devido processo legal. Nesse particular, são comuns: imposição de sanções coletivas quando
não se identifica a autoria (por exemplo, punição de todos os habitantes de uma cela, pela
existência de um aparelho celular em seu interior), aplicação de punições sem qualquer
284
razoabilidade, realização do processo disciplinar com uma defesa meramente formal86,
desconsideração de circunstâncias atenuantes, entre outras violações graves.
Quanto à atuação na inspeção de estabelecimentos prisionais, a LEP estatui em seu art.
81-B, incluído pela Lei no 12.313/2010 que: “O órgão da Defensoria Pública visitará
periodicamente os estabelecimentos penais, registrando a sua presença em livro próprio”.
(BRASIL, 2010). A lei estabelece a necessidade de visitas periódicas, diferentemente da
exigência dirigida aos juízes (art. 66, VII, LEP), membros do Ministério Público (art. 68,
parágrafo único, LEP) e conselhos da comunidade (art. 81, I, LEP), em relação aos quais a
exigência é de que seja mensal (BRASIL, 1984) e, no caso do Conselho Penitenciário, para o
qual não há periodicidade estabelecida (art. 70, II, LEP (BRASIL, 1984). Entende-se,
portanto, da interpretação dos citados dispositivos legais, que a presença dos defensores
públicos nos estabelecimentos prisionais deve ser mais constante do que a dos demais órgãos
de execução penal, até mesmo pelas razões apontadas neste experimento acadêmico stricto
sensu. Além da visita com a finalidade de atendimento e orientação jurídica, assim como para
atuar como garante de direitos humanos, funções analisadas anteriormente neste ensaio,
destaque-se a visita com a finalidade de inspecionar as condições de funcionamento do local
de aprisionamento, em cumprimento ao que o inciso V do art. 81-B reza, entre as
incumbências defensórias, a de “[...] visitar os estabelecimentos penais, tomando providências
para o adequado funcionamento, e requerer, quando for o caso, a apuração de
responsabilidade” (BRASIL, 2010).
Com a finalidade de uniformizar os procedimentos e práticas defensórias nessa seara,
foi concebido o Protocolo de Atuação da Defensoria Pública nas Inspeções em
Estabelecimentos Penais (DEFENSORIA NO CÁRCERE, 2019 b), no âmbito do Projeto
Defensoria no Cárcere, iniciativa do Ministério da Justiça, por meio do DEPEN, Secretaria de
Reforma do Judiciário (SRJ) e CNPCP, da DPU, do CONDEGE, da ANADEF e da
ANADEP87. No citado documento, estão demarcados alguns pontos de relevo, analisados a
seguir.
86 Rafael Godoi, após identificar em sua pesquisa o fato de que os advogados da FUNAP que trabalham na
unidade pouco participavam das sindicâncias para a apuração de faltas dos internos, refere que muitos internos relatam que prestaram depoimentos ou compareceram a oitivas sem a assistência de um defensor e que tudo o que falaram, na verdade, não teve consequência prática nenhuma, bastando a acusação do agente penitenciário para a imputação de culpa e punição (GODOI, 2017, p. 107).
87 Como consta no sítio da internet: “O programa tem como objetivo a reafirmação do papel do defensor público como órgão da execução penal, enquanto garantidor do direito à ampla assistência jurídica, bem como de fiscal
285
As inspeções não excluem a atribuição do defensor público de, sempre que necessário,
se dirigir ao estabelecimento penal para a averiguação de irregularidades circunstanciais ou
quaisquer outros aspectos pertinentes, bem como não se confundem com a atribuição dos
defensores públicos atuantes na área criminal de visitarem os estabelecimentos prisionais (art.
1º, §4º). Sobeja estabelecida, aqui, uma competência concorrente entre os vários defensores
públicos atuantes na esfera criminal, sejam eles dos núcleos especializados, sejam das
defensorias criminais, para reforçar a presença constante nas unidades prisionais. Além disso,
fixa a ideia de que a inspeção não pode ser um momento isolado de presença nos
estabelecimentos, não excluindo outras incursões periódicas.
De acordo com o art. 2º, cada inspeção será realizada por, no mínimo, três defensores
públicos, devidamente identificados, eventualmente acompanhados de integrantes do quadro
funcional de apoio e entidades convidadas, utilizando-se do modelo de relatório de inspeção
unificado, oriundo do Acordo de Cooperação nº 17/2011, firmado pelo Ministério da Justiça,
Senado Federal, Câmara dos Deputados, CNJ, Conselho Nacional do Ministério Público e
CONDEGE, observadas as alterações posteriores, sem prejuízo de observações
complementares, segundo as especificidades de cada Estado-Membro. As inspeções serão
realizadas sem prévia comunicação à Direção do estabelecimento penal, utilizando-se
preferencialmente dos veículos oficiais da Defensoria Pública (inciso II), realizadas, sempre
que possível, fora dos dias de visita e dos horários de alimentação das pessoas presas (inciso
III), por defensores públicos que não atuem habitualmente no estabelecimento inspecionado,
preferencialmente (inciso IV), devendo ser acompanhadas por defensores públicos com
atuação específica em direitos humanos, onde houver (inciso V).
A Defensoria Pública deverá organizar ou estimular a participação dos defensores
públicos responsáveis pelas inspeções em cursos de capacitações específicos sobre o tema, de
acordo com o inciso VI. Conforme o inciso VII, antes das inspeções, a Coordenação do
Núcleo Especializado reunirá as informações disponíveis e também relevantes sobre as
unidades penais a serem inspecionadas, proporcionando o adequado preparo da incursão, o
que deve incluir informações sobre a segurança do local. No curso das inspeções, os
defensores públicos portarão câmera com funções fotográfica e filmadora, sendo que, na
de estabelecimentos de privação de liberdade. Assim, o Programa Defensoria no Cárcere busca fomentar, aprimorar e uniformizar a atuação da Defensoria Pública nos estabelecimentos prisionais em todo o país e instrumentalizar o defensor público com ferramentas necessárias ao desempenho de sua função institucional, concedendo-lhe apoio para contribuir de forma efetiva na transformação da realidade do cárcere no Brasil”. (DEFENSORIA NO CÁRCERE, 2019 a).
286
hipótese de qualquer embaraço no ingresso ao estabelecimento penal oposto por seus
servidores, os defensores públicos certificarão o incidente, solicitarão da Direção documento
formalizando a negativa e, em seguida, acionarão o Núcleo Especializado e a Chefia
Institucional para as providências cabíveis, remetendo a estes órgãos os documentos
mencionados (inciso VIII).
Conforme os ditames do art. 3º, VI, encerradas as diligências, no prazo de 15 dias úteis,
os defensores públicos componentes da equipe emitirão relatório circunstanciado conclusivo
das atividades, instruído com todas as informações do questionário e imagens captadas,
enviando-o para a Coordenação do Núcleo Especializado, onde houver. Este ficará
responsável por efetivar o monitoramento das providências requeridas aos órgãos externos,
oficiando-os periodicamente, em prazo nunca superior a um mês, enquanto não solucionada a
demanda.
Não é vã a preocupação em estabelecer minucioso esquadrinhamento do funcionamento
de uma inspeção. É necessário um plano bem desenhado para a incursão em um universo
completamente distinto daquele com o qual estão acostumados os agentes públicos do sistema
de justiça. O cárcere e suas regras próprias de funcionamento fogem completamente à
compreensão de pessoas leigas e mesmo àquelas que ocuparam bancos acadêmicos dos cursos
de Direito, principalmente porque estes não têm qualquer preocupação, em regra, com a
formação teórica ligada à execução penal e, muito menos, com a formação de profissionais
conhecedores da realidade prisional, um ambiente quase exclusivo de presos e agentes
penitenciários, que criam as próprias regras de convivência, baseadas em uma relação de
poder e sujeição, muitas vezes ao arrepio das disposições constitucionais e também legais.
Ingressar no cárcere com a finalidade de perceber a sua realidade é atividade excessivamente
complexa e desgastante, física e emocionalmente, exigindo preparação prévia e disposição.
Não deixa de ser, contudo, uma atividade revigorante para o defensor público, na
medida em que reafirma a certeza da seletividade penal e faz nascer ou reforça a consciência
da necessidade de seu imediato combate, valendo-se de todas as armas possíveis estabelecidas
pela legislação e ditames éticos. Vivenciar o cárcere funciona, ademais, como indispensável
lenitivo a eventuais crises de consciência que podem, sazonalmente, ecoar no ser humano
defensor público, bombardeado diuturnamente por um discurso de ódio e discriminação
direcionado às pessoas presas e seus defensores.
287
4.5 Defensoria Pública como porta de acesso aos sistemas internacionais de
direitos humanos
A quinta perspectiva de atuação da Defensoria Pública no enfrentamento à
criminalização da pobreza é o acesso aos sistemas internacionais de direitos humanos,
especialmente o Interamericano. Assim, esgotadas as possibilidades internas de proteção,
resta a provocação dos organismos internacionais convencionados, que têm por garantia o
respeito à dignidade humana, o que restou bastante fortalecido após a Segunda Guerra
Mundial e o desenvolvimento do Direito Internacional dos direitos humanos, resultante do
protagonismo da pessoa como sujeito de direitos na esfera internacional e certa flexibilização
da ideia de soberania estatal.
De fato, com suporte no desenvolvimento dos sistemas internacionais de direitos
humanos e seu progressivo reconhecimento pelas ordens jurídicas internas, é inafastável a
ideia de que as instituições conduzam suas atuações balizadas pelas convenções internacionais
e compreendam a maneira de acessar os órgãos de monitoramento do cumprimento dos
direitos, a fim de possibilitar a convivência dialógica entre o sistema interno e o supranacional
de defesa dos direitos humanos (LOPES; BESSA, 2018, p. 137).
Com efeito, como percebe Marcelo Neves, o Estado, embora seja um locus fundamental
e indispensável de solução de problemas constitucionais, é apenas um dos diversos lugares em
cooperação e concorrência na busca do tratamento desses problemas, porquanto a integração
sistêmica sempre cada vez maior da sociedade mundial levou à desterritorialização de
problemas-caso jurídico-constitucionais, que se emanciparam do Estado (NEVES, 2014, p.
211). Concorda Piovesan (2015, p. 155), referindo-se ao sistema regional, com a ideação de
que aos parâmetros constitucionais devem ser somados os de ordem convencional, “[...] na
composição de um trapézio jurídico aberto ao diálogo, aos empréstimos e à
interdisciplinaridade, a ressignificar o fenômeno jurídico sob a inspiração do human rights
approach”.
Ocupando-se de uma a análise geral do sistema global88, têm ressalto o PIDCP, (ONU,
1966a) e o PIDESC, (ONU, 1966b), ambos de 1966, que representam densificações e
especificações dos princípios estabelecidos pela DUDH (ONU, 1948). De fato, esse último
88 No que diz respeito à estrutura e funcionamento do sistema interamericano (regional), remete-se ao subseção
3.2.1 da tese.
288
documento, apesar de sua relevância histórica como marco na internacionalização dos direitos
humanos e sua posterior incorporação ao Direito Internacional consuetudinário, bem como a
reafirmação de seus princípios nos diversos tratados que o sucederam, surgiu como mera
resolução da ONU e, por essa razão, teve sempre questionado o seu caráter vinculante pela
doutrina tradicional. Somente com a vigência dos pactos citados, bem como de seus
protocolos facultativos (esses, sim, autênticos tratados internacionais), pôde-se efetivamente
acessar o sistema internacional para a proteção de direitos humanos.
O Brasil incorporou o PIDCP somente em 1992, submetendo-se, então, ao Comitê de
Direitos Humanos, estabelecido pelo art. 28 (ONU, 1966), que tem como principal função o
monitoramento do cumprimento das obrigações estabelecidas no PIDCP. O PIDCP,
entretanto, não traz a possibilidade de denúncia de pessoas diretamente ao Comitê, o que
somente foi possibilitado pelo Protocolo Facultativo ao PIDCP (ONU, 1966 c), incorporado
pelo Brasil no ano de 2009, que em seu art. 1º estatui que
Os Estados Partes no Pacto que se tornem partes no presente Protocolo reconhecem que o Comitê tem competência para receber e examinar comunicações provenientes de particulares sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, por esses Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. (OUN, 1966c).
Como percebe Flávia Piovesan, o Comitê não se atém a declarar que resta caracterizada
a violação, podendo determinar a obrigação de reparar ou adotar medidas necessárias para a
observância do Pacto, embora não esteja prevista sanção para o descumprimento, restando
apenas power of embarrassment (PIOVESAN, 2013, p. 246), o que, embora não seja a
situação ideal, reforça a efetividade dos direitos do PIDCP, minimizando o caráter
programático de suas normas. Destaque-se, ademais, o fato de que o Comitê de Direitos
Humanos já concluiu que as comunicações de violações de direitos humanos podem ser
encaminhadas por organizações ou terceiras pessoas, que representem aquele que sofreu a
violação (PIOVESAN, p. 244). Abertas estavam, portanto, as portas para a inclusão da
Defensoria Pública como instituição viabilizadora do acesso de pessoas que tivessem direitos
vilipendiados ao Comitê de Direitos Humanos da ONU.
Buscando conectar a possibilidade de acesso aos sistemas internacionais de direitos
humanos com a previsão legislativa interna de concretização, a LC no 80/ 1994, com a
redação dada pela LC no 132, de 2009, em seu art. 4º, VI, estatui que é função institucional da
Defensoria Pública, entre outras, representar os sistemas internacionais de proteção dos
direitos humanos, postulando perante seus órgãos (BRASIL, 2009). Essa previsão legislativa
289
ganha ainda maior relevo no Brasil, pois, como ressalta José Guevara, apesar do intenso
compromisso dos governos e das organizações internacionais para lutar com vistas a erradicar
a pobreza, isso não corresponde à elaboração de mecanismos internacionais que permitam às
vítimas da pobreza exigir o cumprimento de seus direitos violados, nem fincar
responsabilidades aos responsáveis de produzir as ofensas (GUEVARA, 2006, p. 220).
A primeira posição que os defensores públicos devem adotar no exercício dessa
perspectiva é passar a invocar maciçamente os documentos internacionais de direitos
humanos e da jurisprudência emanada dos órgãos internacionais de monitoramento
(especialmente da CIDH e da CorteIDH), fazendo referência às interpretações, decisões,
opiniões consultivas e informes emitidos, seja nas peças processuais, seja nas manifestações
jurídicas ordinárias cotidianas (LEITE, 2014, p. 578). Esse modus operandi, além de chamar a
atenção para direitos estatuídos como consenso no Continente, reforçando, assim, a
importância de sua efetividade, deriva do chamado controle de convencionalidade, ao
determinar que “[...] autoridades dos Estados que ratificaram a Convenção Americana de
Direitos Humanos de 1969, ou Pacto de São José da Costa Rica, devem deixar de aplicar
norma nacional se contrária a essa convenção ou à interpretação que a CorteIDH faz dela”
(LOPES; CHEHAB, 2016, p. 83).
Sendo assim, na atuação tutelar clássica de enfrentamento à criminalização da pobreza,
representa importante reforço argumentativo a demonstração de que o eventual direito
descumprido ocupa lugar de destaque no Direito Internacional, sendo, portanto, objeto de
monitoramento por órgãos internacionais, que podem vir a ser acessados, caso permaneça o
descumprimento pelo Estado brasileiro. Será possível contribuir, por outro lado, para o
desenvolvimento de uma prática jurisdicional que não seja ensimesmada, limitada aos
instrumentos legislativos nacionais, mas que segue os parâmetros dos compromissos
assumidos pelo País perante a comunidade internacional. Proporciona-se, assim, que os
defensores públicos nacionais sejam também internacionais (do ponto de vista global) e
interamericanos (no que concerne ao âmbito regional).
Alegações de excesso de prazo nas prisões processuais, evocações do devido processo
legal, da presunção do estado de inocência, exigências de publicidade e fundamentação de
decisões judiciais, por exemplo, podem ser empalmadas nas petições de defesa, valendo-se
sempre do recurso às normas internas, por óbvio, mas devidamente reforçadas pelas regras
internacionais que igualmente preveem tais direitos. Conferem-se às autoridades, com efeito,
290
mais instrumentos para fundamentar suas decisões de modo a torná-las adequadas aos
documentos internacionais de direitos humanos, representando para o Judiciário, ao mesmo
tempo, reforço à sua legitimidade e uma maneira de robustecer a sua resistência às pressões
criminalizantes e punitivas advindas de setores da sociedade, os mass media e até mesmo de
representantes de outros poderes da República.
A Defensoria Pública é chamada, portanto, a cumprir importante papel de efetivação do
chamado transconstitucionalismo que, na doutrina de Marcelo Neves, significa o
reconhecimento de que as diversas ordens jurídicas, por estarem entrelaçadas na solução de
um problema-caso constitucional, que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar
maneiras transversais de articulação para solucionar o problema, cada uma delas observando a
outra, para compreender seus limites e possibilidades de contribuir para solucioná-lo
(NEVES, 2014, p. 211).
Além da atuação judicial clássica baseada nos tratados interamericanos, a Defensoria
Pública pode funcionar como instituição difusora dessas convenções, principalmente, no
âmbito regional, a CADH, seja na atuação diuturna perante o sistema de justiça, seja por meio
da educação em direitos, outro papel importante a ser desempenhado e que consiste no
empoderamento de pessoas e comunidades, especialmente as mais carentes, esclarecendo
sobre a existência e a relevância dos tratados internacionais, além do estabelecimento
conjunto de estratégias de apresentação de casos aos organismos internacionais de direitos
humanos (LOPES. BESSA, 2018, p. 139-140). Essa possibilidade de atuação é muito
importante, principalmente porque, como noticia Flávia Piovesan, todos os casos submetidos
à Comissão foram fruto de uma articulação a reunir vítimas e organizações não
governamentais locais e internacionais, com intenso protagonismo na seleção de um caso
paradigmático, na litigância deste (aliando estratégias jurídicas e políticas) e na
implementação doméstica de eventuais ganhos internacionais (PIOVESAN, 2015, p. 158).
A Defensoria Pública, portanto, tem todas as credenciais para protagonizar essa atuação
hoje desempenhada quase exclusivamente por organizações não governamentais, na medida
em que pode se valer de sua estrutura institucional, que há de funcionar como suporte para a
capacitação de defensores públicos de núcleos de direitos humanos especializados, além da
natural proximidade desses profissionais com as comunidades mais carentes, onde,
certamente, são diuturnas as violações a direitos humanos, aptas a gerar a provocação do
sistema internacional de proteção dos direitos humanos (LOPES; BESSA, 2018, p.140).
291
Ainda que dessa provocação não resulte decisão favorável, a simples apreciação do caso por
uma Corte internacional de direitos humanos já representa relevante vitória, porque, como
percebe Silva (2010, p. 111), o ônus argumentativo para rejeitar suas decisões é enorme.
Impõe-se destacar, ainda, que, em razão da amplitude dos efeitos da decisão de um tribunal
internacional, são originadas duas consequências: vinculação direta e obrigatória para o país
condenado e vinculação relativa – erga omnes – para todos os membros do modelo, que não
participaram do processo (HITTERS, 2014, p. 360).
Destaque-se, ainda, o caráter pedagógico causado pela simples movimentação do
sistema internacional, por provocar nos Estados uma tentativa de correção de rumos, como
meio de evitar o desgaste e a má impressão internacionais, inevitavelmente causados pelo
descumprimento de direitos humanos, rebaixando o Estado na escala civilizatória mundial
(LOPES; BESSA, 2018, p. 141) – isso sem se reportar ao fato de que a apresentação de uma
denúncia a um sistema internacional de direitos humanos provoca, regressivamente, no país
de origem, uma movimentação dos órgãos e instituições envolvidos no caso, a fim de evitar
que a denúncia tenha seguimento e que esses órgãos e instituições sejam apontados como
violadores de direitos humanos (LEITE, 2014, p. 579-580).
Esse aspecto é especialmente relevante no que diz respeito às violações ocorridas no
sistema carcerário nacional, já que são ofensas que historicamente se repetem sem um
posicionamento estatal sistêmico e efetivo de solução, em virtude da proverbial invisibilidade
das pessoas encarceradas, que continuam tratadas na qualidade de objeto da intervenção
punitiva estatal e não como sujeitos de direitos. Quando algum caso de gritante violação
chega a organismos internacionais de direitos humanos, costuma haver um “despertar” do
Estado e mesmo dos meios comunicacionais para a adoção de providências, como a maneira
de evitar o prosseguimento do fenômeno em âmbito internacional e constrangimento que isso
pode causar ao país.
De semelhante modo, sucede no que diz respeito ao enfrentamento às mortes
institucionais e à prática de tortura em Território Nacional. Como visto, são violações
gravíssimas a direitos humanos que acontecem reiteradamente e, o que é mais grave,
normalizadas, o que torna praticamente impossível encontrar uma solução no âmbito interno,
já que as instituições parecem anestesiadas pela necessidade de enfrentamento ao crime e, sob
esse pretexto, admitem qualquer modalidade de ação com esse objetivo, mesmo que isso
represente a desconsideração absoluta de direitos fundamentais, como a vida e a liberdade. O
292
acesso aos organismos internacionais de proteção de direitos humanos, destarte, parece ser o
último recurso para romper a inércia estatal no enfrentamento ao morticínio que vitima quase
exclusivamente pessoas das classes pobres e também agentes de segurança, embora em muito
menor escala. O Estado brasileiro precisa ser confrontado pela comunidade internacional,
principalmente com base na provocação da Defensoria Pública, a fim de finalmente adotar
comportamentos de respeito aos direitos. É inadmissível a inércia institucional da Defensoria
Pública nesse particular, porquanto são exatamente os seus assistidos que estão sendo mortos,
presos, torturados, de maneira irrefreada, normalizada.
Como exemplo da utilização dessa perspectiva de atuação institucional, as defensorias
públicas da Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e Rio
Grande do Sul levaram, em 2018, denúncia à CIDH por:
a) práticas de tortura e de aumento indefinido de prazo para a internação provisória de
adolescentes e jovens;
b) iniciativas parlamentares para tentar reduzir a chamada maioridade penal de 18 para
16 anos, e para aumentar para até dez anos o tempo máximo de internação, frisando
que as alterações legislativas que tramitam no Congresso brasileiro representam um
grave retrocesso à garantia dos direitos de crianças e adolescentes, e demandam a
urgente atenção da CIDH sobre o risco desta pauta legislativa;
c) ausência de resposta estatal para as mortes e suicídios dentro dos centros de
internação de adolescentes em todo o Território Brasileiro, apresentando três casos
emblemáticos para atenção da Comissão, no Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul
(JUSTIÇA GLOBAL, 2018).
É fundamental, contudo, como adverte Flávia Piovesan, no que diz respeito ao sistema
regional, fortalecer a efetividade do sistema interamericano, no que se refere à supervisão das
decisões da Corte ou Comissão, pois, diversamente do sistema europeu, não há mecanismo
específico para essa tarefa, cabendo aos próprios órgãos o follow up das decisões que eles
próprios proferem (PIOVESAN, 2015, p. 159). Observa-se, nessa perspectiva, outra atuação
possível da Defensoria Pública: a fiscalização constante e o acompanhamento do
cumprimento das decisões dos órgãos do sistema interamericano, valendo-se, para isso, dos
mecanismos internos e mesmo acessando novamente o sistema interamericano, se necessário
(LOPES; BESSA, 2018, p. 142). Isso porque, como leciona Pellegrini (2011, p. 102), o
descumprimento de decisões da CorteIDH representa um “nuevo ilícito internacional”.
293
Outra função importante a ser desempenhada pela Defensoria Pública é a obrigação de
apoiar iniciativas de implementação da CADH, ainda que estas sejam alvo de resistências de
setores comprometidos com um Estado mais repressor (LOPES; BESSA, 2018, p.142). Como
exemplo dessa possibilidade, pode ser citada a previsão das audiências de custódia, projeto
idealizado pelo CNJ, que determina a obrigatoriedade de apresentação do preso, sem demora,
à autoridade judiciária, em cumprimento ao estatuído no art. 5.7 da CADH89. De fato, tal
iniciativa recebeu intensa resistência dos órgãos nacionais de persecução penal, merecendo no
Ceará, a título de exemplo, nota técnica pela sua inconstitucionalidade por parte do Ministério
Público Estadual (LOPES; BESSA, 2018). “Cabe à Defensoria Pública, portanto, o papel de
contrapor-se a esse discurso, funcionando como instância de pensamento e ação garantidora
da efetivação da CADH, seja valendo-se dos fóruns de discussão próprios, seja pela utilização
dos meios judiciais necessários” (LOPES; BESSA, 2018, p.142).
Por fim, urge destacar a possibilidade de participação da Defensoria Pública como
amicus curiae nos processos em trâmite na CorteIDH, pois a vítima ou organização
denunciante não tem acesso direto à CorteIDH (somente a CIDH e os Estados-partes podem
acessá-la), mas o regulamento da CorteIDH, em seu art. 44 (CORTEIDH, 2009d), prevê a
figura do amicus curiae, cabendo perfeitamente a atuação da Defensoria Pública nesse
particular (LOPES; BESSA, 2018, p.143). Como já analisado a respeito dessa modalidade de
participação da Defensoria Pública nos processos coletivos, (subseção 4.3) tal vai ocorrer,
normalmente, na função de custos vulnerabilis, como instituição destinada à proteção dos
interesses de pessoas em situação de vulnerabilidade. Por outro lado, vai ser possível à
Defensoria Pública levar à CorteIDH situações de violações de direitos humanos ocorridas no
interior do Estado e que eventualmente escapem ao conhecimento e análise da CorteIDH,
contribuindo, dessa maneira, para a consolidação de uma jurisprudência que considere a
maior parte possível dos aspectos de um determinado problema-caso. Isso porque a
participação defensória no processo trará mais informações relevantes, além de olhares
específicos para o seu deslinde, principalmente por configurar um instituto cuja função é lidar
cotidianamente com a população mais pobre, angariando, assim, importante conhecimento de
aspectos que podem fugir à análise dos organismos internacionais de direitos humanos nos
casos concretos.
89 Art. 7 Liberdade pessoal. 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença
de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (OEA, 1969).
294
Como já advertido em outro estudo mais específico, em coautoria com Ana Maria
D’Ávila Lopes, não se busca atribuir à Defensoria Pública o papel de redentora dos direitos
humanos e de panaceia para a superação dos obstáculos de funcionamento dos sistemas
internacionais de direitos humanos e, especificamente, o interamericano, na medida em que
suas deficiências estruturais ainda são gigantescas e as tarefas cotidianas no exercício das
funções corriqueiras já absorvem a maior parte da energia e atenções dos defensores públicos,
ainda muito poucos para tão ingentes desafios (LOPES; BESSA, 2018, p.145). A exploração
dessas potencialidades no âmbito do sistema internacional de direitos humanos, contudo, abre
novas perspectivas de promoção e proteção, principalmente daqueles direitos ligados a ações
que representem criminalização da pobreza.
Analisadas as possibilidades e, principalmente, os obstáculos para o enfrentamento à
criminalização da pobreza, resta a percepção de Shimizu e Strano (2014, p. 394) de que o
defensor público, ao transcender uma atuação meramente processual para funcionar como
tensionador da malha do poder, provavelmente, jamais alcançará o resultado efetivo e
acabado de sua resistência, compreendendo que sua luta cotidiana tem muito mais relação
com os meios do que com os resultados, entendendo, enfim, sem que isso importe em
resiliência, que sua luta é infinita. Por fim, tal compreensão não se confunde com uma atitude
conformista, principalmente porque é importante considerar todas as vitórias alcançadas nessa
resistência cotidiana, quando se possibilita que a liberdade, pontualmente, vença o
encarceramento, o retorno ao lar suplante uma vivência insalubre e degradante no cárcere, a
tranquilidade do lar subjugue a invasão violenta, a voz dos pobres seja ouvida em ambientes
antes a ela proibitivos, a compreensão chegue onde antes havia ignorância, ou os corpos
torturados possam simplesmente descansar pela cessação dos tormentos, quando, enfim, ainda
que por alguns momentos, seja possível ver humanidade onde antes só se divisava degradação
e preconceito. “Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na
esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero” (FREIRE, 2014, p. 114).
CONCLUSÃO
A pobreza e a desigualdade social há muito constituem razão de estudo em todo o
mundo, assim como seu combate passou a constar entre os objetivos dos organismos
internacionais de direitos humanos, principalmente da ONU que, sob sua tutela, desenvolveu
uma série de documentos com a finalidade de conceituar o fenômeno da pobreza, assim como
de assumir o compromisso de erradicá-la. Inicialmente, a pobreza foi conceituada com
amparo em critérios estritamente monetários, o que não deixa de ser importante para o
estabelecimento de fundamentos definidores de políticas públicas, mas, posteriormente, houve
uma evolução para um conceito multidimensional, não se limitando à situação de renda, mas
para abranger a privação de capacidades básicas, aproximando-se de uma ideia de
vulnerabilidade social. No mesmo sentido, e com igual preocupação, vieram os documentos
internacionais do SIDH, desde a fundadora Carta da OEA, que estabeleceu a erradicação da
pobreza crítica como um de seus propósitos essenciais, passando por diversos outros tratados,
determinantes da pobreza como privação de direitos básicos a uma vida digna.
A pobreza no Brasil assume contornos dramáticos, tanto pela sua extensão como pela
sua persistência histórica. Após ser submetido à colonização portuguesa e passar por um
processo de independência, mesmo que sob a égide da Família Real (que instituiu um império
ainda dependente de potências estrangeiras), o Brasil chegou finalmente ao período
republicano, no derradeiro quartel do século XIX, quase ao mesmo tempo em que
formalmente aboliu a escravidão, com um atraso que enodoa a sua História. Nesse percurso
de mais de 500 anos narrado pela Historiografia patrial, as marcas de patrimonialismo,
clientelismo e exploração dos desfavorecidos tornaram-se características das quais a
sociedade brasileira ainda não conseguiu se desvencilhar, incluindo o Brasil no rol dos países
mais desiguais, sendo possível vislumbrar a convivência, às vezes, no mesmo quilômetro
quadrado das grandes cidades, de pessoas com padrão de vida digno dos países mais
desenvolvidos ao lado daquelas com níveis de desenvolvimento humano semelhantes ao da
África subsaariana.
296
Atentos a esse crônico problema, os legisladores constituintes de 1988 estabeleceram,
(no inciso III do artigo 1o), a dignidade da pessoa humana como um dos princípios
fundamentais da República Federativa; e, como seus objetivos fundamentais, no artigo 3º,
estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I); garantir o desenvolvimento
nacional (II); erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais (III); promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (IV) (BRASIL, 1988), todos afinados com a busca
da igualdade, além de elencar extenso (e não exaustivo) rol de direitos sociais destinados à
promoção da igualdade material, no art. 6 o.
Apesar dessa profícua normativa constitucional, a pobreza continua sendo causa e efeito
de violação de vários direitos fundamentais, na medida em que vulnerabiliza e expõe os
pobres aos mais diversos formatos de desrespeito à sua dignidade humana. Uma dessas
modalidades de desrespeito é a criminalização da pobreza, que pode ser definida como a
previsão de condutas em relação às quais o Estado ameaça responder com a imposição de
penas (criminalização primária) e a maneira como estas são efetivadas (criminalização
secundária), tendo como alvo pessoas das classes economicamente menos favorecidas.
A criminalização primária ocorre no momento da produção legislativa, quando são
selecionadas pelo Parlamento as condutas criminalizadas, propostas as gradações punitivas de
acordo com a gravidade do crime, além da fixação, na lei, de um tratamento processual penal
diferenciado, arrimado igualmente em uma escala valorativa, estabelecida a priori pelo
legislador. A criminalização secundária, a seu turno, ocorre quando se possibilita a ação
desproporcional ou injusta do poder punitivo sobre os pobres, desde a intervenção das
instituições de segurança pública (polícias, fundamentalmente) e do sistema de justiça
(Ministério Público, Judiciário e Defensoria Pública), ou de sua omissão quando deveriam
agir na proteção dos direitos dessas pessoas.
A criminalização da pobreza não é uma peculiaridade brasileira, sendo possível
identificar suas manifestações em vários países, como nos Estados Unidos, onde vigorou, em
alguns estados federados, por exemplo, a política de tolerância zero, com nítido enfoque
punitivo seletivo, por direcionar-se às camadas pauperizadas das cidades; assim como ocorre
em França, com espeque numa ação policial de viés mais repressivo contra os imigrantes e
seus descendentes, por meio de um controle ferrenho nos bairros onde eles se concentram. Da
mesma maneira sucede em vários países da América Latina, o que pode ser constatado em
297
decisões da CorteIDH, que condenou diversos Estados por práticas nas quais podem ser
identificados componentes de criminalização da pobreza e seletividade, nos moldes
conceituados nesta tese.
Releva deixar firmado o fato de que a criminalização da pobreza não é uma atitude
exclusiva do Estado, até mesmo porque as ações estatais são reflexos de uma cultura
legitimada no seio da sociedade, com calço em um preconceito social que, como se
demonstrou, é histórico e arraigado, com práticas que remetem, no Brasil, ao passado
escravagista. A atuação dos meios de propagação coletiva é outro indicativo de atuação
criminalizante da pobreza estranha aos quadros estatais. Quando destinados a funcionar como
instrumentos de reprodução de manifestações da criminalização da pobreza, os media
amplificam uma conduta discriminatória em relação aos mais pobres, em nítida função
desmobilizadora da democracia. Por outro lado, a cotidiana campanha de recrudescimento do
Estado penal, veiculada pelos instrumentos de propagação maciça contra determinados tipos
de crime (principalmente os ligados à proteção da propriedade) mal conseguem esconder o
compromisso com os patrocinadores desses media, muitos deles representantes de produtos
ligados à segurança privada, alimentando, com efeito, uma “indústria de controle do crime”.
A pobreza, com sua criminalização, portanto, foi o tema de que se ocupou o capítulo
primeiro desta tese, resultando em um segmento de fecho, no qual ficou assentada a
contrariedade da criminalização da pobreza com o Estado Democrático de Direito. De fato,
dois dos principais sustentáculos desse tipo de Estado são exatamente a proteção à dignidade
humana e o tratamento igualitário de todos. Assim, quando há atitudes (estatais ou não) que
desconsideram a humanidade de determinadas parcelas da população, por meio de atitudes
seletivas, a um só tempo resultam ofensas à necessidade de igualdade (paridade de estimação
social das pessoas) e, em última análise, à própria dignidade humana.
O capítulo segundo cuidou da seletividade penal e suas manifestações no Brasil. Com
aporte nos fundamentos expressos, arrematou-se a ideia de que a seletividade penal significa a
opção pelo direcionamento do poder punitivo contra grupos determinados e determináveis de
maneira desproporcional, ao mesmo ponto em que não são destinados os mesmos esforços
para prever e impor normas penais sobre outros grupos, que igualmente ofendem a ordem
jurídica estabelecida. Assim, ante a impossibilidade fática de punição de todos os desvios,
somada à falta de interesse por imposição de castigo àqueles que ocupavam ou gravitavam em
298
torno do poder, selecionam-se os pobres a serem colhidos pela vingança pública, a fim de
reafirmar o poder punitivo, estabelecendo-se, de maneira exemplar, o controle social formal.
No Brasil, tal opção seletiva produz injúrias sociais muito mais profundas, já que a
população perseguida preferencialmente pelas instituições de controle representa a maior
parte da sociedade. Ademais, o percurso histórico desta Nação ajuda a explicar os
comportamentos seletivos atualmente adotados. O passado colonial brasileiro herdou um
tratamento discriminatório e criminalizante em relação aos índios, inicialmente, e aos negros
escravizados, posteriormente, inscrevendo um imaginário de criminalização de suas condutas
que se sedimentou historicamente. Durante o Império, o medo das insurreições negras
incensou a perseguição aos oriundos da África e aos seus descendentes, mesmo aqueles que
conseguiam se libertar do jugo da escravidão, associando-os aos problemas de segurança
pública verificados na época. O período republicano, inaugurado logo após o fim da
escravidão, não foi capaz de superar o tratamento discriminatório até então verificado e,
embora, em alguns momentos, tenha se direcionado contra setores médios da sociedade, por
pretextos políticos (como nos períodos ditatoriais), manteve o tratamento desigual conferido
às camadas desfavorecidas, que continuaram sendo alvo do controle social e da
estigmatização. A criminalização da pobreza na nascente República do Brasil continuou
ocorrendo a modo de compensação à perda de propriedade sobre os escravos e de manutenção
da autoridade das classes proprietárias sobre os libertos e seus descendentes.
Como consequência, os instrumentos de controle social passaram a direcionar-se aos
mais pobres. O cárcere é somente mais um deles. Uma observação simples nas prisões
brasileiras é suficiente para identificar a quem elas se destinam. A habitação quase exclusiva
de pobres é a face mais explícita do tratamento criminalizante que se confere à pobreza e
constitui a prova definitiva da seletividade penal. O discurso de ressocialização (inclusive
legislativo) é inócuo para esconder as péssimas condições às quais são submetidos os presos
brasileiros, em status quo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, pelo
fato de representar sistêmica e massiva situação de descumprimento de rol extenso de direitos,
principalmente encartados como fundamentais pela Constituição Federal, em evidente
desconsideração da humanidade dos encarcerados.
A seletividade penal adotada pelo Estado e estimulada pelos mass media, formadora de
sólido consenso social, igualmente contribui para um tratamento de pessoas pobres que pode
desaguar na imposição de intensos sofrimentos (tortura) ou mesmo na execução extrajudicial
299
ou desaparecimento forçado, consequências quase naturais dos processos de desumanização
ou invisibilização de que são objeto. Desse modo, duas condutas que, no presente momento
histórico, foram banidas das previsões legislativas internacionais (e também da maioria dos
Estados nacionais) e, mais do que isso, que constam como abomináveis nos discursos em todo
o mundo, a execução extrajudicial e a tortura prosperam amplamente, sendo empregadas
pelos caminhos subterrâneos do exercício do poder punitivo, em decorrência da função que
cumprem.
Depois de verificados os fenômenos da criminalização da pobreza e da seletividade
penal, eis a propositura do estudo ora relatado para o estabelecimento de seu objetivo
principal: a verificação do papel constitucional da Defensoria Pública na resistência contra
essas graves ofensas à dignidade humana. O capítulo terceiro, portanto, possibilitou se
concluir que essa instituição, consolidada na Constituição de 1988, representou a superação
de um mero assistencialismo que historicamente caracterizou a assessoria jurídica no Brasil,
sendo atualmente dotada de crescentes responsabilidades no papel de assistência jurídica
integral e gratuita daqueles que comprovam insuficiência de recursos. Ademais, a redação
original do artigo 134, que, de modo singelo (mas não menos importante), atribuía à
Defensoria Pública o papel de dar efetividade ao direito fundamental encartado no art. 5º,
LXXIV da Constituição Federal de 1988, foi substituída, com a EC no 80/2014, por outra que
ampliou seu papel constitucional e a consolidou como instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime
democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a
defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, integral
e gratuitamente, aos necessitados.
A atual previsão constitucional destinada à Defensoria Pública, dessa maneira, amplia o
rol de atribuições relacionadas à assistência jurídica integral e gratuita e ao acesso à justiça,
tornando o atual modelo o mais abrangente da história constitucional brasileira e um dos mais
avançados do mundo na proteção dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Supera-se, de
efeito, uma visão de acesso à justiça que se confunde com a chegada ao Judiciário, para
estabelecer uma nova perspectiva, mais ampla, de aportar à ordem jurídica justa. Na busca por
alcançar esse objetivo, a Defensoria Pública tem que ser dotada de condições materiais,
estruturais e humanas para atuar no desempenho de suas atribuições tutelares clássicas, cuja
importância deve ser sempre ressaltada, principalmente para o ser humano carente que
necessita do acesso imediato a um direito, mas acrescida de outras esferas de atuação, tais
300
como: extrajudicial, transindividual, na educação em direitos humanos e perante os órgãos
internacionais de proteção dos direitos humanos.
É exatamente nessa perspectiva que o capítulo quarto foi elaborado, para a constituição
de paradigmas específicos de atuação na resistência à criminalização da pobreza e à
seletividade penal. Por meio da atuação tutelar clássica, portanto, o defensor público exerce,
na seara penal, a maior parte de suas atribuições, funcionando como escudo contra a
criminalização da pobreza e seletividade penal desde o momento da prisão em flagrante,
passando pelo processo penal e culminando na execução da pena, velando pelos direitos
fundamentais dos desvalidos que forem alcançados pelo poder punitivo estatal,
principalmente pelos princípios do devido processo legal e da presunção do estado de
inocência e seus respectivos corolários.
Em segundo lugar na exposição, fixou-se a importância da educação em direitos como
instrumento de empoderamento dos vulneráveis para uma atitude de resistência à sua injusta
criminalização, que pressupõe uma atuação dirigida à preparação das pessoas para o exercício
de seus direitos, por meio de comportamentos proativos dos veiculadores do conhecimento
sobre estes. Inicia-se esse exercício pela identificação, difusão e denúncia de atuações estatais
e sociais de criminalização da pobreza, desvelando-a ante os olhos daqueles que
eventualmente sejam vítimas dela, uma vez que, em muitas oportunidades, eles nem sequer
têm essa consciência. De outra vertente, apenas vai ser possível uma educação em direitos
efetiva se o defensor público não se afastar da sua real razão de existir: a população pobre,
cuja voz necessita da continuada atuação defensorial, nos foros de justiça, a fim de que o seu
discurso seja levado em consideração, mesmo quando não proferido com o dialeto exigido
pelo sistema de justiça. Não se pode, ademais, partir de um comportamento paternalista,
tributário da falsa ideia de que aos defensores públicos cabe o papel de introjetar o
conhecimento em uma massa de ignorantes que serviria apenas de receptáculo e reprodução
acrítica das ideias postas (e impostas) em uma relação vertical de subordinação.
Conclui-se, ainda, sobre a importância da atuação transindividual, que, sem
desconsiderar a proteção individual, possui enormes vantagens de efetividade e economia, ao
chegar a um número considerável de pessoas. Com essa mentalidade, urge uma vivência
compartilhada entre defensores públicos e populações mais pobres, a fim de que essas
demandas sejam conhecidas e igualmente sentidas, no dia a dia. Na resistência aos excessos e
à seletividade do poder punitivo, portanto, a atuação transindividual deve emergir da atuação
301
constante dos defensores públicos nas comunidades carentes, nos cárceres masculinos e
femininos, nas delegacias e seus xadrezes, nos estabelecimentos de internação de
adolescentes.
Restou sedimentada, ainda, a relevância da atuação extrajudicial, encontrada na
preferência pela solução extrajudicial dos conflitos por métodos alternativos (mediação,
conciliação, arbitragem), arrimada em previsões legais e da proximidade dos defensores
públicos dos problemas das comunidades e dos movimentos sociais, bem como por meio de:
orientação jurídica; atuação em processos administrativos disciplinares; participação em
conselhos; convocação de audiências públicas; inspeções de locais de privação de liberdade.
Tudo isso pressupõe a inserção dos defensores públicos nas comunidades, por meio da
capilarização da instituição, possibilitando que o contato direto do defensor público com a
comunidade torne mais fácil para o Estado mourejar em determinadas localidades com um
histórico de abandono e que já criaram os próprios meios de solucionar seus problemas de
acesso aos bens, que deveriam ser públicos e universais. Do contato cotidiano com as
situações de criminalização da pobreza, será possível identificar meios de composição dos
conflitos que possam ser solucionados por essas vias. De outra parte, será possível, de modo
mais eficiente e célere, transmitir orientação jurídica para os destinatários dos serviços
defensoriais. Tal modo de proceder aufere alçada relevância no ambiente prisional, território
naturalmente impermeável às notícias do mundo extramuros, o que torna os encarcerados
pessoas anda mais ansiosas por informações, principalmente relacionadas com a sua situação
processual e ensanchas de retomar a liberdade.
Como última faceta específica de atuação, firmou-se no estudo a importância da
Defensoria Pública como porta de acesso aos sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos, principalmente o interamericano, como recurso último de resistência às situações de
desrespeito de direitos convencionados internacionalmente, em particular, quando
representem modos de criminalização da pobreza. Nessa perspectiva, os defensores públicos
precisam tornar rotineira, em suas peças processuais e manifestações cotidianas, a referência
aos documentos internacionais de direitos humanos (inclusive à jurisprudência), de molde a
inserir nas discussões jurídicas, processuais ou não, os parâmetros do Direito Internacional de
proteção aos direitos humanos. Por outro lado, devem atuar os defensores públicos como
instrumentos para difusão, monitoramento e chancela das disposições das convenções
302
internacionais de direitos humanos e das iniciativas de seus órgãos exteriores de execução,
primando pela efetivação do transconstitucionalismo90.
Para que os objetivos dessa ingente tarefa de resistir à criminalização da pobreza sejam
alcançados, é indispensável modificar as posições estatais nesse sentido, além de se firmar
real compromisso com o fortalecimento das defensorias públicas, de sorte que os recursos
destinados para o desempenho de suas funções institucionais sejam compatíveis com os
direcionados aos demais órgãos do sistema de justiça. Ademais, há que se exigir a adoção de
comportamentos pelos membros da Instituição que se coadunem com o cumprimento de seus
objetivos na defesa dos direitos das pessoas em situação de desvantagem social: proximidade,
empatia, escuta e ação proativa, de modo que jamais se afastem da sociedade, ancorados em
privilégios injustificáveis. É preciso, ainda, que a técnica de selecionar os defensores públicos
e demais servidores prime pelo conhecimento das soluções de circunstâncias cotidianas de
ofensa aos direitos dos necessitados, além da exigência de sólida formação humanística, em
preferência ao conhecimento de soluções de problemas formulados por bancas especializadas,
que somente concorrem para a formação de indústrias de concursos públicos, que abarrotam
os cargos do sistema de justiça daqueles com interesses meramente pessoais, sem qualquer
compromisso com o cumprimento dos propósitos institucionais.
Não se espera, ao final, que a Defensoria Pública seja a sacrossanta instituição cuja
missão é redimir as posturas estatais de todos os seus males. Suas deficiências e fragilidades,
que também são de seus membros, precisam ser constantemente denunciadas, combatidas e
minimizadas. É possível acreditar, entretanto, na possibilidade – que se espera reforçada por
este estudo - de conceber uma Defensoria Pública que desempenhe adequadamente seu papel
de resistência à criminalização da pobreza, mercê do ofício a si conferido pela Constituição
Federal e da atuação diuturna verificada em todo o Brasil por defensores públicos que, em
número muito inferior ao necessário, funciona como poderoso instrumento de inclusão social
e acesso efetivo à justa ordem jurídica.
90 O conceito é de Marcelo Neves e encontra-se no tópico 4.5 desta tese.
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