Concepções de natureza e raça em Eça de Queiroz

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4 Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de História Projeto de Pesquisa – Relatório Final: Concepções de natureza e raça em Eça de Queiros – As imagens do Brasil. Projeto de Iniciação à Pesquisa Científica Danilo Valderrama Banzatto Orientação: Íris Kantor (depto de História) São Paulo, Agosto 2007

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de História Projeto de Pesquisa – Relatório Final:

Concepções de natureza e raça em Eça de Queiros – As imagens do Brasil.

Projeto de Iniciação à Pesquisa Científica Danilo Valderrama Banzatto

Orientação: Íris Kantor (depto de História) São Paulo, Agosto 2007

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Resumo A pesquisa se iniciou com o intuito de investigar a obra de Eça de Queiroz e suas representações do Brasil. Tomava-se como documentação seus artigos das Farpas, o romance O primo Basílio e algumas de suas cartas trocadas até 1878. Com o avanço da análise das fontes e da bibliografia, percebeu-se a importância de traçar um panorama das relações entre os intelectuais portugueses e brasileiros da década de 1870, enfatizando a proximidade entre os dois espaços intelectuais e os questionamentos que ambas se fazem sobre sua realidade. Eça se tornou ao longo da pesquisa um exemplo de relevo dessas relações, por vezes tensas, entre portugueses e brasileiros.

Palavras-chave Século XIX – Portugal – Brasil – Teorias Raciais – Literatura – História das Idéias – Eça de Queiroz – Silvio Romero.

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New York não tem civilização: a civilização não é ter maquina pra tudo – e um milhão para cada coisa: a civilização é um sentimento não é uma construção: há mais civilização num beco de Paris do que em toda vasta New York.

Eça de Queiroz, carta a Ramalho Ortigão

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Parte I – Introdução

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Iniciei minha pesquisa com o objetivo de traçar alguns elementos constitutivos do pensamento de Eça de Queiroz através das representações do Brasil por ele construídas; em meu projeto pretendia utilizar como documentação uma obra ficcional do autor, O Primo Basílio, alguns textos jornalísticos e suas cartas trocadas com brasileiros. No entanto percebi que alguns destes documentos não eram os mais adequados, além de que a problemática que eu tinha definido como central não era a questão mais interessante a ser abordada.

Ao longo do trabalho, analisando o meu corpus documental e parte da bibliografia, notei que as cartas de Eça trocadas com seus amigos brasileiros que nos restaram concentram-se no período final de sua vida, entre 1889 e 1900, e, como João Alves das Neves1 aponta em seu artigo inserido nos Anais do III Encontro internacional de queirosianos, o conteúdo dessas correspondências não passam de meras mensagens entre amigos, sem um debate intelectual mais profundo. Quanto aos artigos jornalísticos, a maior parte das referências ao Brasil concentram-se n’As Farpas, publicadas em conjunto com Ramalho Ortigão entre 1871 e 72, cujos artigos chegaram a gerar polêmicas e conflitos em Pernambuco. Se a isso somarmos que existem algumas informações relevantes em cartas de Eça para diversos destinatários até 1878, o ano de publicação da última edição d’O Primo Basílio, veremos que é mais proveitoso utilizarmos esse novo corpus para a pesquisa, o romance, as cartas até 1878 e os artigos das Farpas.

Além disso, leitura de outros textos (como, por exemplo, o livro Eça de Queirós Antibrasileiro, de João Medina; Eça de Queiroz agitador no Brasil, de Paulo Cavalcanti; Idéias em Movimento, de Ângela Alonso e Estilo Tropical, de Roberto Ventura) podem nos colocar um novo problema: a forma como se dá a construção de 1 NEVES, J. A. “As paginas ‘brasileiras’ de Eça de Queirós”. In: MINÉ, E. 150 anos com Eça de Queirós. Anais do III encontro internacional de queirosianos. pp. 250-261

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um ideal de civilização vindo da Europa, mas que é difundido, reinterpretado e adaptado pelos brasileiros de modo a atender à realidade política e intelectual locais.

Desse modo, apesar de apoiar-se em ideais de modernidade, evolução, civilização e raça a princípio muito similares aos de Eça, Silvio Romero e os acadêmicos da Faculdade de Direito do Recife participam, através de seus jornais, da contenda em resposta ao artigo das Farpas em que Eça satiriza o brasileiro, no ano de 1872. Da mesma forma podemos enxergar a tensão existente entre a série de artigos sobre a visita de Dom Pedro II a Portugal e a construção da imagem do imperador como homem de letras.

Assim, uma temática que estaria em segundo plano no projeto original passa a ter maior destaque e a interagir de forma mais direta com aquela que seria na origem a idéia principal, constituindo uma nova problemática: a elaboração das imagens do Brasil e sua apropriação pelos brasileiros fazem parte de um ambiente intelectual comum, cujas bases desenvolvem-se na Europa, mas que ao serem lidas pelos intelectuais brasileiros são reelaboradas de forma a atender a uma proposta de modernização e de consolidação do Estado nacional. Tento, portanto, dar conta das tensões que marcaram a afirmação de um pensamento moderno e cientifico em Portugal e no Brasil, focalizando a obra de Eça de Queiroz e de Silvio Romero.

Metodologicamente, procuro interpretar as fontes seguindo os passos de Edward

Said2, que defende a indissociabilidade entre o romance do final do século XIX e o imperialismo e a chamada “leitura em contraponto”, e também de Nicolau Sevcenko, que afirma que a literatura “fala ao historiador sobre a história que não ocorreu”3, para

2 SAID, E. Cultura e Imperialismo. 3 SEVCENKO, N. Literatura como missão. p. 30.

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refletir sobre a construção d’O Primo Basílio e as sugestões de Jeanne Bem4 para pensar sobre a correspondência de Eça. Teoricamente, me apoio em Ângela Alonso e Lilia Schwarcz5 para analisar os movimentos intelectuais do Brasil na década de 1870, entendendo esses movimentos como culturais e, sobretudo, políticos, alternativas ao status quo estabelecido. Encaro a “Geração de 70” portuguesa como um movimento correlato, voltando-se igualmente para as bases dos sistemas político e cultural vigentes. Isto posto, pergunto-me: portugueses e brasileiros se “imaginavam” pertencentes a uma mesma comunidade (lingüística, cultural, econômica), tal qual exposto por Benedict Anderson6, dado as intensas relações entre os dois países ao longo de todo século XIX?

De qualquer modo, procurarei nessas paginas traçar um panorama da sociedade portuguesa e brasileira no século XIX, destacando os debates que marcaram as últimas décadas do século e reconhecendo a partir daí a ação das “Gerações de 70”, dentro desse cenário, pretendo também expor algumas idéias contidas nas obras de Eça de Queiroz e a recepção dessas obras no Brasil, com ênfase nos conflitos em Pernambuco. Porém, creio ser necessário esboçar um histórico das perspectivas européias sobre a América e sobre o desenvolvimento do conceito de “raça”, para delinear as fontes usadas tanto por brasileiros quanto por portugueses para pensar a nação, a natureza e a literatura.

4 BEM, J. O estatuto literário da carta. 5 Alonso, A. Idéias em Movimento. SCHWARCZ, L. As Barbas do Imperador ; O Espetáculo das Raças. 6 ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas.

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Ao sul do Equador: como a Europa viu a América e o homem americano.

Os debates oitocentistas sobre o caráter positivo ou negativo da natureza e da

“raça” americanas se inserem em uma longa tradição estabelecida por pensadores europeus, que procuraram entender a realidade americana segundo os mais variados pressupostos filosóficos. Desde o século XVI os cronistas, profundamente marcados pela tradição bíblica, procuraram aproximar o novo território do paraíso terrestre, devido a sua natureza exuberante, ao mesmo tempo em que a ferocidade do nativo e a existência de sociedades canibais causaram horror a estes homens quinhentistas, povoando suas narrativas com seres bestiais7.

È em meio a estas concepções da América que Montaigne realiza, em 1580, uma iniciativa pioneira na relativização da visão européia sobre as sociedades indígenas. Em seu famoso ensaio Dos Canibais afirma entre outras coisas que:

É mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entrega-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado.8 No século XVIII, Montesquieu também se debruçou sobre a natureza e as

sociedades tropicais. Para ele, existem “leis naturais”, definidas pelo clima e pelo solo, que determinam os costumes de uma sociedade: o clima quente provoca o relaxamento das fibras nervosas, tornando a população indolente e propícia a aceitar o despotismo e a escravidão. Dessa afirmação deriva a aceitação da existência da escravidão fora da Europa; mesmo entendendo o absolutismo e a escravidão como práticas condenáveis, 7 Para um debate especifico sobre as perspectivas quinhentistas sobre o paraíso americano ver o clássico estudo de Sergio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso. 8 MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1991, p. 101.

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admite sua existência em outras áreas pela imposição dos fatores climáticos. Visão semelhante é a de Buffon, que considera que entre as latitudes 40 e 50 situa-se a civilização, característica da zona temperada. Para este autor, a natureza americana seria menos ativa que a européia e por esse motivo seus habitantes seriam selvagens.

Além de hierarquizar os povos, Buffon defende que o homem branco é o tipo humano original, sendo que os outros apareceram graças à ação do meio:

O branco parece ser assim a cor primitiva da natureza, que o clima, a alimentação e os costumes alteram e mudam, até chegar ao amarelo, ao moreno ou ao negro, e que reaparece em certas circunstâncias, mas com uma alteração, que não mais se parece com o branco primitivo, que foi na verdade desnaturado pelas causas que acabamos de indicar9. Buffon, juntamente a Raynal e De Pauw, negam a antiguidade e grandiosidade

das civilizações asteca, tolteca e maia, pois os indígenas não teriam o desenvolvimento necessário para construir os monumentos narrados por Cortés ou Garcilaso de La Vega. Cornelius De Pauw vai ainda mais longe e afirma que as plantas, os animais e o homem da América (descendentes de europeus incluídos) seriam degenerados e que o povo americano não possuiria história. Posteriormente, essas interpretações seriam refutadas através do estudo de fósseis e monumentos americanos pelo naturalista Alexander Von Humboldt.

É através destas teorias que essa vertente do Iluminismo constrói uma imagem profundamente negativa da América. Do outro lado encontra-se a voz quase solitária de Rousseau, um dos poucos que defendem a positividade do ambiente americano. Retomando a divisão dos povos americanos entre os “impérios despóticos do México e do Peru” e os “pequenos povos livres” das outras regiões feita por Montesquieu, Rousseau afirma que estes “pequenos povos livres” equivalem ao “homem natural”, anterior ao estabelecimento do contrato social, e defende que esse homem é superior ao 9 BUFFON, Georges-Louis. Histoire Naturelle de l’homme. In: Oeuvres choisies V. 3. Paris : Daguin, 1824. p. 273-4. apud : VENTURA, R. Estilo Tropical. p. 26.

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europeu, vítima da degradação vivida pelo Ocidente. Esta sua tese do “bom selvagem” é fundadora do “mito do retorno às ‘origens’ e [d]o ponto de vista anti-histórico da literatura romântica e da moderna antropologia”10.

As teorias de Rousseau dialogam diretamente com Montesquieu e Buffon, e é parte do impasse que a América gera nas teorias do Iluminismo. A tensão existente entre o pensamento ilustrado e sua aplicação no ultramar (que legítima o colonialismo, afirmando a superioridade européia) está na origem do racismo cientifico do século XIX e também da consciência moderna, que conforma sua identidade através da comparação entre civilizados e selvagens11.

No princípio do século XIX, as teorias de Montesquieu de que a natureza americana apesar de tornar os homens fracos os dotou de uma prolífica imaginação serão recuperadas pelos viajantes e naturalistas para pensar a literatura americana. Ferdinand Denis afirma que a natureza brasileira permite que o homem se recolha a solidão e se isole da sociedade, marcada pela escravidão; a natureza é o espaço da reflexão. Propõe ainda que a cultura indígena seja tomada como fonte para a criação de uma literatura independente, o que fará com que seus escritos sejam recuperados pela geração romântica indigenista durante o segundo Reinado. Outro autor que defende a influência do meio para o surgimento de uma literatura autônoma é Ferdinand Wolf, autor austríaco cujos escritos são inspirados pelo “Discurso sobre a história da literatura do Brasil”, do ministro do Brasil na Áustria e escritor indigenista Gonçalves de Magalhães.

Mas nem só de imagens positivas vive a literatura de viagem; do outro lado existiam aqueles que enxergavam no brasileiro um povo mestiço e degenerado. As

10 VENTURA, R. Estilo Tropical. p. 23. 11 Ibidem. p. 24.

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impressões que Louis Agassiz teve em sua passagem pelo país em 1865 são exemplos desta visão:

Qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por mal-entendida filantropia, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental.12 Próxima a essa interpretação será a de Gobineau, que passará pouco mais de um

ano no Brasil como representante da França. Para ele a sociedade brasileira era composta por uma multidão caótica de “macacos”, cuja única exceção era D. Pedro II, de quem era amigo íntimo. Os dois autores são nomes expressivos do pensamento racial do século XIX.

No início do século XIX, Georges Curvier introduz o conceito de “raça”,

afirmando a existência de heranças físicas permanentes nos vários grupos humanos e destruindo o pouco do otimismo, fruto da Revolução Francesa, que restava em relação aos povos. A partir desse momento se processa uma reação á noção igualitária do Iluminismo e o termo “raça” se aproxima de “povo”, de forma que o discurso racial surge como parte do debate sobre cidadania, mas que está ligado a uma discussão mais profunda sobre as origens da humanidade.

A vertente explicativa predominante até meados do século é a monogenista, que prega que toda a humanidade se originou de uma fonte comum. De acordo com esta teoria os grupos humanos se diferenciavam pelo estado de “perfeição” (mais perfeitos ou mais degenerados) em que se encontrariam. Anos mais tarde, com o desenvolvimento das ciências biológicas e o conseqüente questionamento da explicação monogenista, partilhada pela Igreja, ganha importância uma corrente que afirma que a

12 AGASSIZ, Louis. A journey in Brazil. Boston: s.e., 1868. p. 71. apud: VENTURA, R. Op. Cit. p. 13.

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humanidade se desenvolveu a partir de vários centros de criação, os quais corresponderiam ao surgimento das diferentes raças, explicando as divergências raciais atuais. Essa vertente, denominada como poligenista, fortaleceu teses que interpretavam o comportamento humano como manifestações biológicas; assim nascem disciplinas como a frenologia, a antropometria e a antropologia criminal, que pretendiam estabelecer “rígidas correlações entre conhecimento exterior e interior, entre a superfície do corpo e a profundeza de seu espírito”, e relacionar criminalidade e origem racial e genética13.

Com a publicação do livro Origem das espécies, de Charles Darwin, o debate entre monogenistas e poligenistas arrefeceu: ambos passaram a adotar as teses de Darwin sobre a evolução e a seleção natural. Após a resolução dessa “disputa biológica”, os dois grupos passarão a usar “raça” como um conceito de diferenciação política e cultural.

No entanto, conforme as teorias darwinistas se disseminavam, surgiram interpretações que atribuíam sentidos à obra de Darwin que originalmente não existiam, utilizando-se de conceitos como evolução, hereditariedade, competição e seleção do mais forte para analisar as sociedades humanas. Dessa maneira as teses poligenistas voltam a ganhar força e passam a justificar as ações imperialistas européias através da “seleção natural” da sociedade mais adaptada sobre as mais “atrasadas”: sendo os europeus mais fortes e evoluídos que os africanos e asiáticos, nada mais natural do que a dominação.

Nesse momento também se desenvolvem algumas correntes filosóficas (que de resto já apareciam em Buffon) que consideram que a ação humana se submete às condições naturais e biológicas: são os chamados “determinismos”. Uma dessas

13 SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças. p. 49.

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correntes é o “determinismo geográfico”, de Ratzel e Buckle, que defende que a “exata valorização do elemento humano na história não pode ser obtida senão mediante o estudo das condições em meio à quais o homem realiza sua obra política”14. Buckle, por exemplo, divide os países em quentes e frios, afirmando que a natureza amena da Europa deu espaço para o surgimento da civilização, já nos meios tropicais a natureza exuberante subjugou o homem, inviabilizando o progresso. Outra vertente do determinismo é aquela que ficou conhecida por “darwinismo social”, defendendo que as raças são imutáveis e irredutíveis. Seus seguidores apoiavam-se em três noções básicas:

A primeira tese afirmava a realidade das raças, estabelecendo que existiria entre as raças humanas a mesma distância encontrada entre o cavalo e o asno, o que pressupunha também uma condenação ao cruzamento racial. A segunda máxima instituía uma continuidade entre caracteres físicos e morais, determinando que a divisão do mundo entre raças corresponderia a uma divisão entre culturas. Um terceiro aspecto desse mesmo pensamento determinista aponta para a preponderância do grupo “racio-cultural” ou étnico no comportamento do sujeito, conformando-se enquanto uma doutrina de psicologia coletiva, hostil à idéia do arbítrio do indivíduo15. O pensamento determinista estabeleceu também uma diferenciação entre

desigualdade e diferença. Desigualdade remete-se a idéia de uma humanidade única, com distinções contingenciais, elimináveis com o tempo ou pelo contato com grupos mais “evoluídos”. Diferença pressupõe a existência de espécies humanas distintas, cujas diferenças não podem ser eliminadas. Os etnólogos evolucionistas sociais adotaram o conceito de desigualdade, afirmando o princípio monogenista, já os darwinistas sociais defenderam a noção de diferença entre os homens e as teses poligenistas. Desses últimos, quatro autores merecem ser lembrados: Taine, Le Bon, Renan e Gobineau.

Para Taine, responsável pela famosa fórmula de determinação das ações humanas: a raça, o meio e o momento, todo fenômeno tinha uma causa externa que determinava seu aparecimento. Taine promoveu também a ampliação da noção de raça, 14 RATZEL, F. “Antropogeografia”. In: MORAES, Antonio. C. R. de. Ratzel. São Paulo: Ed. Ática, 1990. p. 80. 15 SCHWARCZ, L. Op. Cit. p. 60.

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de uma dimensão biológica ela passa a significar a “nação”. Outro responsável pela transformação no conceito foi Gustave Le Bon, que utilizou “raça” no lugar de “espécie”, reforçando as posições poligenistas. Já para Renan, os amarelos, os negros e os mestiços “seriam povos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis, não perfectíveis e não suscetíveis ao progresso”16. Perspectiva parecida com a de Gobineau, que em seu famoso Essai sur l’inegalité des races humaines, de 1853, defende a diferença inata entre as raças e a degeneração causada pela mestiçagem. Seus escritos serão largamente utilizados durante as primeiras décadas do século XX para legitimar o racismo e os regimes totalitários que ascendem na Europa nos anos de 1920 e 3017.

Essas teorias marcam o debate europeu durante o século XIX, mas também chegam ao Brasil e são reapropriadas e modificadas para justificar projetos de nação, seja o do romantismo oficial das décadas de 50 e 60 ou as novas propostas da “geração de 70”, bem como foram fundamentais na formação teórica do grupo de jovens portugueses que se reuniram em maio de 1871 no Cassino de Lisboa para discutir os rumos de Portugal.

16 Ibidem. p. 62. 17 Para uma análise aprofundada do tema, ver o clássico As origens do totalitarismo, de Hannah Arendt.

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Parte II – Um Império nos Trópicos

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As barbas do Imperador – ascensão e queda do imaginário imperial

Desde a Independência, a monarquia brasileira teve que fazer grandes

investimentos para construir uma representação de si mesma que convencesse os países europeus da distância que a separava da “anarquia” vivida pelas pequenas repúblicas hispano-americanas18 e que se sobrepusesse à lembrança do tráfico africano e do sistema escravista em que estava baseado. Assim, será organizada uma simbologia estatal profundamente híbrida, que buscará se remeter diretamente à tradição européia, mas ao mesmo tempo procurará afirmar seu caráter peculiar e original de uma monarquia tropical19. Certamente, é após a plena consolidação do Estado, com o fim das grandes revoltas separatistas, durante o Segundo Reinado que esse projeto será conduzido de forma mais explícita, encontrando no romantismo sua estética por excelência e tendo o próprio monarca como sua expressão mais acabada.

D. Pedro II incentiva e participa, desde os anos 40, das reuniões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que se tornará o núcleo da produção romântica no país e que contará com a intervenção cada vez mais direta do monarca. Já em 1849 ele propõe como tema de debate: “o estudo e a imitação dos poetas românticos promovem ou impedem o desenvolvimento da poesia nacional?”20. A partir desse momento, D. Pedro II construirá sua imagem como grande mecenas das artes do país, financiando, muitas vezes com seu próprio dinheiro, os artistas ligados ao IHGB bem 18 À época da Independência, a fragmentação do território sul-americano em diversos países republicanos era vista com receio pelas elites brasileiras, e em partes foi responsável pela costura política que viabilizou a instalação de uma monarquia, governo forte suficiente para manter unidas as várias partes da colônia portuguesa na América, bem pouco integradas entre si. O questionamento dessa ordem centralista se concretiza de alguma maneira na Confederação do Equador, em 1824, e nas várias revoltas regenciais, que põem em cheque o poder das elites instaladas no governo central. 19 SCHWARCZ, L. As Barbas do Imperador. p.18. 20 Ibidem. p. 127.

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como incentivando a vinda de diversos cientistas estrangeiros, entre eles Couty, Martius, Derby, Agassiz e outros. Assim, o imperador “selecionou um grupo e de forma direta afastou outros. Na verdade, é com a entrada de d. Pedro II no IHGB e seu mecenato que o romantismo brasileiro se transforma em projeto oficial, e verdadeiro nacionalismo, e como tal passa a inventariar o que deveriam ser as ‘originalidades locais’”.21

A característica singular do Império que os românticos procuraram destacar é a figura do indígena. Vêm à luz dicionários e gramáticas de tupi e guarani e uma infinidade de obras ficcionais que têm por protagonistas estes que até então eram vistos como canibais, polígamos e pagãos. Nessas obras, o índio, resgatado segundo o modelo rousseauniano do “bom selvagem”, é revestido dos ideais românticos europeus e se transforma no cavaleiro medieval dos trópicos, homem forte e valoroso que vivencia, em meio ao cenário paradisíaco da floresta, paixões arrebatadoras, normalmente com personagens europeus. Porém, mesmo elevado a símbolo da nação o indígena se mostra submetido ao domínio europeu; José de Alencar22, o mais renomado autor do grupo (ainda que não fosse diretamente vinculado a ele) construirá o romance Iracema (cujo nome não por acaso é o anagrama de América) em torno do amor da indígena que ao final da trama morre, enquanto seu amado português Martim leva seu filho Moacir para fundar outras colônias.

O indianismo se tornava um modelo que penetrava diversos campos: a iconografia política (nas representações oficiais aparece recorrentemente algum elemento que lembre o indígena e os trópicos), as propagandas de produtos variados, os títulos da recém criada nobreza brasileira (tão bem satirizados por Eça e Ramalho no 21 Ibidem. p. 131. 22 Ângela Alonso diz que os romances de Alencar são responsáveis pela disseminação do indianismo, “dando à tradição inventada uma forma acessível ao gosto médio”. Alonso, A. Idéias em Movimento. p. 58.

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“barão de Minhinhonhá” e no “conde de Ipátápá”) e até as vestes do monarca, que orgulhosamente trajava uma murça de pena de papo de tucano, evidenciando o profundo hibridismo das representações que sustentavam o imaginário do Império. Porém, é importante lembrar que a despeito da miscigenação representada, o elemento negro é sistematicamente alijado da memória nacional, como se não houvesse a escravidão para macular nossa idílica sociedade tropical; o negro e o mestiço serão recuperados somente na década de 1870, para demonstrar, segundo as novas teorias raciais, a viabilidade ou não do Brasil como nação.

É nesse momento também que as representações oficiais do monarca se transformam. Após a Guerra do Paraguai, e a progressiva oposição ao regime, D. Pedro II passará a veicular uma imagem de “monarca-cidadão”, dispensando os rituais e as pompas, adotando o terno e o jaquetão como uniforme oficial e os livros como fiéis companheiros. Diretamente inspirado pela postura de Luis Filipe de Orleans, o imperador se aproxima de seus súditos, consolidando-se, “no lugar do cenário ostensivo dos áureos tempos do imperador, um aparato diverso, em que os atores à paisana fazem lembrar antes uma ‘democracia coroada’ do que uma realeza”23.

Nesse sentido, ao fazer a primeira viagem para fora do Brasil, em 1871, D. Pedro II dispensará as recepções oficiais e o tratamento diferenciado, afirmando que o rei tinha ficado no Brasil e que ele seria apenas Pedro de Alcântara, cidadão brasileiro. Esse comportamento definirá a imagem de D. Pedro II na Europa (mesmo que As Farpas e outros escritos do gênero tenham questionado essa postura): o sábio e humilde monarca que viaja para se encontrar com os intelectuais europeus, como Alexandre Herculano, Gobineau, Richard Wagner24, além de visitar uma série de museus e instituições de ensino e pesquisa. 23 SCHWARCZ, L. Op. Cit. p. 321. 24 Ibidem. pp. 361-371.

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A despeito dessa imagem de príncipe filósofo25 e da efetiva vontade de conhecer o velho continente, a viagem de D. Pedro II tem também um caráter político, pois realizou-se em meio às discussões sobre a lei do Ventre Livre. Vários políticos, entre eles José de Alencar, que a pouco tinha sido preterido pelo imperador na lista para o senado, e Nabuco de Araújo, consideram a viagem inoportuna26. Para eles, deixar a inexperiente Isabel como regente não seria uma atitude ponderada num momento crucial como aquele. A verdade é que o imperador pouco se interessava pelas questões políticas do país, preferia freqüentar o IHGB às sessões do congresso; em carta ao conde Gobineau revela: “as necessidades do Governo estão me consumindo todas as forças”27, mas ainda assim detinha e usava seu Poder Moderador.

A expansão da economia do café e a diversificação das atividades econômicas após a extinção do tráfico fazem com que o equilíbrio político do Império se torne insustentável ao final da década de 1860. O Estado se vê forçado a reformar a ordem saquarema, estabelecida desde a Lei de Interpretação do Ato Adicional, em 1841; assim, a relação entre o Estado e a estrutura patriarcal, sempre tencionada, é objeto de amplas reformas, levadas à cabo pelo ministro Visconde de Rio Branco. O ministro, além de impor a aprovação do Ventre Livre, naturalizou os estrangeiros que aqui estivessem por mais de dois anos e criou uma comissão para medir as terras públicas, como forma de incentivar o desenvolvimento do trabalho livre e a vinda de imigrantes. Também reformou a justiça, ampliando o habeas-corpus e transferindo para os juízes de direito a responsabilidade pela clareza e honestidade das eleições, dificultando o domínio, exercido pela violência, dos conservadores. Além disso, instituiu o sistema métrico, reformou o sistema monetário e tentou laicizar o Estado, propondo o registro civil. 25 Assim o chamava Lamartine, e Vitor Hugo o apelidou de “neto de Marco Aurélio”. SCHWARCZ, L. O Espetáculo das Raças. p. 253. 26 CAVALCANTI, P. Eça de Queiroz, agitador no Brasil. p. 37. 27 SCHWARCZ, L. As Barbas do Imperador. p. 371.

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No entanto, o principal ponto de suas reformas consistiu na modernização da infra-estrutura do país, que alterou as relações comerciais com os países vizinhos, através da ampliação da rede ferroviária e da instalação de um cabo telegráfico que conectava o Brasil ao resto da América e à Europa. Também nesse sentido ampliou a rede de ensino, expandindo a educação básica e criando várias instituições de ensino técnico (como por exemplo, a Escola de Minas de Ouro Preto), que visavam à formação de pessoal especializado capaz de promover o desenvolvimento do país28.

Essa “modernização conservadora” reorganizou o jogo político e permitiu a ascensão de novos agentes político-intelectuais, que contestavam o status quo imperial:

O processo de cisão política e a tentativa de modernização da sociedade e da economia dos anos 1870 geraram uma crise que desestabilizou a ordem saquarema. Os partidos políticos se desfiguraram, exacerbou-se a cisão liberal e os princípios de legitimação da ordem sociopolítica foram reiterados por uma ala reacionária. Além disso, a reforma conservadora abriu novas vias de acesso ao universo político para agentes sociais até então alijados.29 Se a essa observação de Ângela Alonso acrescentarmos outra, de Lilia

Schwarcz, sobre as conseqüências da construção da imagem de D. Pedro II como “monarca-cidadão”, teremos uma dimensão da crise política, social e simbólica vivida pelo Império brasileiro nos últimos decênios do século XIX:

D. Pedro era recuperado como “um grande cidadão”, mas tornava-se “cômico” todo seu aparato... Ao descuidar de sua imagem, d. Pedro deixava evidentes as fragilidades reais da monarquia, até então vinculada à estabilidade do Estado. Com efeito, não só o “teatro da política” enfraquecia-se; o período era também adverso, e as contradições do Império brasileiro sobressaíam.30 As duas autoras abordam de maneira distinta o surgimento do movimento de

1870. Alonso investe em uma perspectiva nova, enfatizando a ação política desses indivíduos que chegam “à idade adulta e ao ‘mercado de trabalho’ ao longo dos anos

28 ALONSO, A. Op. Cit. p. 85-6 29 Ibidem. p. 87 30 SCHWARCZ, L. Op. Cit. pp. 413 e 415.

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1870 e inicio dos anos 1880”31; opondo-se, portanto, à interpretação tradicional, que explica o movimento através da “clivagem doutrinária”. Segundo a autora, essa interpretação tradicional pode ser dividida em duas vertentes: uma cognitiva e a outra prática.

A primeira, que orienta a maior parte dos trabalhos sobre o assunto, analisa o movimento a partir da história das idéias, trabalha com a noção de influência e busca filiar os agentes nacionais às correntes de pensamento vindas da Europa (cientificismo, positivismo, darwinismo, etc.), estabelecendo maior ou menor adequação dessas idéias no contexto brasileiro e ignorando a ação política dos “intelectuais”; essa vertente procura demonstrar o surgimento de uma “ilustração brasileira”32. A outra vertente busca identificar os agentes em uma mesma posição social, assumindo “a correspondência entre a emergência de novos movimentos intelectuais – ou ‘ideologias’ – e a configuração de novos grupos sociais na esfera econômica”33. Alonso demonstra que as esferas política e intelectual são indissociáveis e as duas vertentes têm sistematicamente ignorado essa convergência, além de se basearem nas formas como os próprios agentes se definiam para elaborar suas categorias de análise.

A autora defende que mesmo na Europa, onde as instituições acadêmicas eram mais consolidadas, a divisão entre um campo intelectual e outro político não se processava, “o clima de convulsão social e política produziu uma reflexão intelectual rente à conjuntura, com forte acento político”; aqui, as instituições de ensino sequer estavam desenvolvidas, e a produção das faculdades de Direito e Medicina eram antes voltadas às discussões políticas34. Da mesma forma não se pode considerar as distinções doutrinárias como principal eixo explicativo, pois mesmo em suas origens as 31 ALONSO, A. Op. Cit. p. 43. 32 Ibidem. p. 24. 33 Ibidem. p. 28. 34 Ibidem. p. 30.

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teorias não eram puras, e a divisão entre as escolas era “nublada”. Além disso, o rótulo pelos quais os agentes se auto-referiam era antes um meio de se opor à grupos rivais (laffittistas versus littreístas, darwinistas versus spencerianos) do que vinculações filosóficas diretas, resultando numa guerra de significados35.

Por fim, critica a classificação dos participantes segundo grupos sociais e o conceito de “contra-elite” de José Murilo de Carvalho e considera que ele acaba por evidenciar justamente a diversidade de origens36. Assim, Alonso prefere agrupar os membros do movimento de 1870 em “comunidades de experiência” e dividir a ação dos diversos grupos em “círculos concêntricos em progressivo afastamento em relação [ao] núcleo da estrutura estamental do Império e de suas instâncias de poder”37, mais próximo do centro ficariam as dissidências liberais, seguido pelos positivistas abolicionistas e por fim os federalistas científicos do Rio Grande do Sul e São Paulo.

Lilia Schwarcz, por sua vez, interpreta o movimento de 1870 segundo a história das idéias; mesmo evidenciando a dimensão política do movimento, seu interesse em O Espetáculo das Raças é compreender como as teorias cientificistas são incorporadas pelos intelectuais brasileiros e como a noção de raça passa a vigorar como categoria explicativa da realidade brasileira. Para tanto a autora enfatiza a “ação intelectual” e as bases teóricas e não as “ações políticas”, como Alonso. Outra diferença que encontramos na análise das autoras diz respeito à forma como organizam o movimento; Alonso considera a maior ou menor proximidade dos centros de decisão política e enxerga as instituições em que esses intelectuais se inseriam como um locus de reunião e encontro, mas que não podem ser usadas para definir os grupos. Schwarcz opta por essa divisão institucional e distribui os grupos entre os museus etnográficos, os institutos históricos, as faculdades de Direito e as de Medicina. 35 Ibidem. p. 32. 36 Ibidem. p. 98. 37 Ibidem. p. 100.

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Também apostando na interpretação do aspecto intelectual do movimento de 1870 e também interessado na questão da raça e do mestiço, Roberto Ventura, no seu Estilo Tropical percorre o trajeto intelectual de Silvio Romero, suas posições teóricas e suas extensas polêmicas com intelectuais como José Veríssimo, Teófilo Braga e Machado de Assis. As perspectivas de Schwarcz e Ventura são muito semelhantes, pois ambos enfatizam o processo de seleção e adaptação de teorias e modelos estrangeiros (muitas vezes desfavoráveis ao país), que esse grupo de “mosqueteiros intelectuais” se utiliza para pensar um novo projeto de nação. Baseando-me nesses três autores, passo a tratar de um dos grupos da “geração de 70”, e de seu principal nome: a Escola do Recife e Silvio Romero.

Um bando de idéias novas – Sílvio Romero e a “Escola do Recife”

O surgimento das faculdades de direito, à época da independência, está

intimamente ligado à necessidade de construir um corpo de leis para o novo país e de formar uma intelligentsia capaz de elaborar uma imagem nova para a nação. Assim, a partir de 1828 começam a funcionar a faculdade de São Paulo e de Olinda (depois transferida para o Recife), que passam a formar a elite política e intelectual do Império brasileiro.

Em Olinda, o curso se organizou de maneira muito semelhante à Coimbra, inclusive grande número de professores e alunos era português. Também é patente a forte influência da Igreja, sobretudo nos vinte e dois anos em que a escola funcionou no mosteiro de São Bento. Após esse período, o curso foi transferido para o Casarão do

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Hospício, até ser definitivamente instalado em Recife, em 1854. Os primeiros anos de atividades, tanto em Olinda como em São Paulo, foram marcados pela baixa qualidade do curso e pelo desrespeito aos professores:

O que restou foram sobretudo as estruturas rígidas dos cursos, as reproduções de obras jurídicas do estrangeiro, as profundas raízes e influencias das mestres religiosos e do jus-naturalismo católico. Trata-se de uma ciência católica, comprometida com a revelação divina e com a defesa do caráter imutável da monarquia.38

Conjuntamente à transferência da sede da escola, foi realizada uma reforma acadêmica que visou a regularizar o calendário de aulas, os exames preparatórios e a relação dos alunos com o curso e os professores. De igual importância é a reforma de 1879, quando é estabelecido o “ensino livre”, instituindo a não obrigatoriedade de freqüência e dividindo o curso em ciências jurídicas (composto pelo direito natural, romano, civil, comercial, criminal, legal, constitucional, e teoria e prática do processo) e ciências sociais (abrangendo o direito natural, constitucional, público, universal, das gentes, eclesiástico, administrativo, diplomacia, ciência da administração, história dos tratados, economia, higiene pública e política)39. Essa reforma é fruto do ambiente de renovação cultural que já existia no Recife desde princípios da década de 1870, e que busca a sistematização de uma “ciência do Direito”; nas palavras de Silvio Romero:

O decênio que vai de 1868 a 78 é o mais notável de quantos no século XIX constituíram nossa vida espiritual... De repente a imutabilidade das coisas se mostrou... Um bando de idéias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte... Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo, na poesia e no romance, novos processos de crítica e história literária, transformação da instrução do Direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do Recife.40 Mais uma vez Ângela Alonso se distancia da interpretação usual sobre a atuação

de Silvio Romero e Tobias Barreto e a existência “real” da “Escola do Recife”, pelo

38 SCHWARCZ, L. O Espetáculo das Raças. p. 146. 39 Ibidem. p. 147. 40 Ibidem. p. 148.

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menos no sentido utilizado por aquele. Para a autora, a “Escola do Recife” resume-se “quase exclusivamente às façanhas do próprio Romero e a amplificação dos acanhados feitos de seu ‘mestre’, Tobias Barreto.”41. Ela é inventada por Silvio Romero, não havendo uma identificação clara dos membros participantes, que acaba por integrar todos os alunos da faculdade no período.

Segundo Alonso, as ações de Tobias Barreto e Silvio Romero são bem mais limitadas do que se costuma afirmar. Com relação a Tobias, ela defende que por permanecer durante os anos de 1870 no interior, envolvendo-se com política e negócios de família, e depois, a partir de 1882, em virtude de sua frágil saúde, pouco lecionar, não teve uma grande influência na formação “científica” dos alunos, sendo muito mais influentes professores como José Higino Duarte Pereira e Aprígio Guimarães. Também Silvio, por haver se deslocado para a Corte em 1875 (após discutir com os membros da banca durante seu doutoramento), pouco envolvimento teve com as movimentações do Recife ao final da década de 1870 e início de 1880. Ademais, pelo seu comportamento instável e polêmico, Silvio Romero não constituiu novos laços na Corte42 e ao mesmo tempo se desligou de seus antigos companheiros.

Ao tomarem Romero como modelo de ação e pensamento do núcleo do Recife, os analistas acabam por criar uma falsa imagem de instabilidade teórica. Para Alonso, o “ativista intelectual médio” do Recife, e de todos os outros grupos, exibia, via de regra, “certa fidelidade a [algumas] cepas e vertentes teóricas”. Nesse sentido, Martins Jr. e os irmãos Falcão seriam os nomes mais importantes, pois conservavam o grupo estruturado, eram responsáveis pela organização de periódicos e mantinham relações com os grupos positivistas de São Paulo e da Corte (além disso, redigiram o primeiro manifesto abolicionista positivista, em 1882). Assim, para Alonso esse grupo de 41 ALONSO, A. Op. Cit. p. 134. 42 Segundo a autora, quando um membro do grupo se desloca para outra região ele acaba servindo de ponto de contato entre o grupo original e os outros, o que não acontece com Romero. Ibidem. p. 142.

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abolicionistas liderado por Aníbal Falcão, Miguel Lemos e Teixeira Mendes seria muito mais atuante na última década do Império do que têm afirmado os estudiosos.

Lilia Schwarcz por sua vez considera a ação de Tobias Barreto na divulgação de autores como Haeckel, Buckle, Spencer, Darwin, Littré, Le Play, Le Bon e Gobineau43 fundamental para a difusão das idéias cientificistas européias no Recife. Da mesma maneira enxerga em Silvio Romero um pai, “senão de criação, ao menos de afinidade”, da Escola do Recife. Responsáveis pela afirmação do Direito como uma disciplina “científica”:

“Longe da metafísica”, “distantes do subjetivismo”, viviam esses intelectuais a certeza de estarem construindo não somente novas teorias, mas também uma nova nação. Em Recife, (...) esses intelectuais compartilhavam da sensação de que a “ciência tudo pode” e de que existiria uma verdadeira tarefa, uma missão a ser cumprida.44 Entretanto, ao separar a ação dos intelectuais do Recife como prioritariamente

“doutrinadora”, enquanto a faculdade de São Paulo seria sobretudo “política”45, Schwarcz perde a dimensão da simultaneidade de objetivos políticos e “intelectuais” na atuação desses homens, como afirma Alonso.

Porém, apesar de considerar a análise que Ângela Alonso faz do movimento criteriosa e em grande medida acertada, não posso deixar de ressaltar uma contradição existente em sua abordagem: mesmo afirmando a indissociabilidade entre produção intelectual e ação política, diminui a importância da participação de Silvio Romero nos debates. Ainda que admita que “o recorte é efeito do critério” e que Silvio Romero é excluído por não ser “representativo de nenhum grupo”, não me parece justificável deixar de lado uma obra tão importante como a dele apenas por não apresentar uma face política mais nítida. As polêmicas e as constantes oscilações teóricas são partes

43 SCHWARCZ, L. Op. Cit. p. 149. 44 Ibidem. p. 150. 45 Ibidem. p. 184.

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constitutivas da estratégia adotada pelo crítico para realizar a tão desejada transformação política e cultural da sociedade brasileira. Não nos esqueçamos que Romero é o responsável (inspirado por Von Martius) pela revitalização do mestiço como fator de diferenciação nacional; ainda que pregasse o branqueamento da população, foi o precursor das teses de Gilberto Freyre, inserindo-se no longo debate sobre o “tipo humano nacional”46. É por acreditar na importância intelectual e política de Silvio Romero que darei agora especial atenção para a trajetória desse pensador e para tanto me basearei no estudo de Roberto Ventura, Estilo Tropical.

Silvio Romero nasceu em Lagarto, no Sergipe, em 1851, falecendo no Rio de

Janeiro em 1914. Ao longo de seus 63 anos de vida procurou realizar uma crítica literária e histórica que contribuísse para alcançar a regeneração nacional, objetivo que também foi o de muitos de seus companheiros de geração. Para tanto, buscou como alternativa de luta a crítica e a polêmica, combatendo seus adversários com textos e opiniões que muitas vezes extrapolavam os limites intelectuais ou políticos, escorregando para a ofensa e para os ataques pessoais. Esta forma de escrever, porém, fazia parte de sua estratégia de ação e funcionava como uma forma de seleção literária e aperfeiçoamento cultural através da violência do debate. Sua proposta de ação está intimamente ligada às noções evolucionistas em que se fundamentavam Romero e a Escola do Recife, principais responsáveis pela disseminação do naturalismo no Brasil. Eles divulgavam os conceitos de natureza e raça, que já haviam aparecido na famosa dissertação de Martius “Como se deve escrever a história do Brasil”, apresentada para o concurso do IHGB em 1845.

Nas polêmicas de Silvio Romero, dá-se a convergência entre valores modernos e tradicionais. O discurso evolucionista é empregado como radicalização científica de

46 Ibidem. p. 247 e SEVCENKO, Op. Cit. 335.

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tais debates, que promoveriam a propagação das “novas idéias” e o aperfeiçoamento cultural pela seleção e depuração das obras e escritores, lançados à luta pela sobrevivência, como as espécies animais na cadeia evolutiva. À argumentação evolucionista, são incorporadas tradições da cultura popular sertaneja, como a linguagem do desafio e o código de honra. A modernidade de pressupostos, como a aplicação do struggle for life à literatura e à cultura, coexiste com o tradicionalismo das disputas entre grupos rivais, de ordem tópica ou regional, dominantes nas sociedades em que o espírito rural sobrepuja a mentalidade urbana.47 Uma das conseqüências da adoção do “evolucionismo literário” adotado por

Romero foi a incapacidade de enxergar as intenções subjacentes à obra de um escritor como Machado de Assis, considerando-o deslocado de seu tempo. Para Romero, os autores literários compõem elos na cadeia evolutiva da literatura, devendo também agir na sociedade como “centros de força”; o valor literário não se encontraria na “originalidade” da obras, mas na “semelhança entre o indivíduo, a obra e o momento histórico”48; a obra machadiana, por fundamentar-se nas estéticas romântica e clássica, não teria lugar definido na sociedade de seu tempo e na cadeia literária.

Profundamente controverso, Silvio Romero foi sempre lembrado por sua indefinição teórica, retirando elementos de diversos modelos europeus, muitas vezes contraditórios, para compor suas propostas. Muitos analistas encaram o percurso da “geração de 70” de modo a destacar as incoerências entre os modelos adotados e a realidade do país. No entanto, é importante ressaltar o processo de seleção e adaptação dessas teorias, para servir aos propósitos, bastante específicos, desses intelectuais.

Assim, mesmo influenciado pelas concepções negativas da América formuladas por Montesquieu, Buffon e Tomas Buckle e admitindo a ação do meio sobre as populações dos trópicos, Romero negou que esse fosse o único fator explicativo para o atraso brasileiro, argumentando que o fator racial era essencial para compreender nossa realidade social. Aliás, foi esse o ponto que o distanciou das interpretações de Araripe Jr. Embora ambos se baseiem no modelo naturalista e evolucionista de Taine e Spencer, 47 VENTURA, R. Op. Cit. p. 143. 48 Ibidem. p. 97.

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Araripe e Romero percebem-nos de forma bastante distinta. Da tríade de Taine, raça, meio e momento, Araripe privilegia o segundo elemento e dessa forma analisa a obra de Aluísio Azevedo através do conceito de “obnubilação”, deformação causada pelo meio tropical no modelo naturalista de Zola, que, para o autor, fundaria um “estilo tropical”: um realismo “quente” e sensual, origem de nossa força, diferente do realismo “frio”, fruto da decadência da Europa.

O naturalismo ou se subordina a esse estado de coisas, ou se torna um planta exótica, – de mera curiosidade. A nova escola, portanto, tem de entrar pelo trópico de Capricórnio, participando de todas as alucinações que existem no fermento do sangue doméstico, de todo o sensualismo que queima os nervos do crioulo49. Devido à ênfase na ação do meio para a formação da literatura nacional, Araripe

defende a inclusão dos cronistas coloniais na história da literatura brasileira. Romero por sua vez, mesmo sem negar a ação do meio, enfatiza a ação da “raça” e da miscigenação como elemento diferenciador nacional. Romero acreditava que os cronistas europeus, que passavam por aqui e retornavam ao velho continente, não poderiam ser considerados como literatos nacionais, (salvo, na melhor das hipóteses, aqueles que permaneceram no território e se “nacionalizaram”, como Anchieta, por exemplo); para ele, a literatura brasileira nasceu “no dia em que o primeiro mestiço cantou a primeira quadrinha popular nos eitos dos engenhos”50.

Romero e Araripe também possuem posições divergentes quanto à influência estrangeira na literatura brasileira. Araripe considera que a literatura não sofre com a dependência cultural, pois acredita que assim que os europeus chegaram aqui sofreram a ação do meio (que forçou o cérebro europeu a adaptar-se), conformando rapidamente o “caráter brasileiro”. Para Silvio, além da raça, do meio e do momento, deve-se

49 ARARIPE Junior, Tristão. “Estilo tropical. A fórmula do naturalismo brasileiro” (1888). In: Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa.v. 2, 1958. p. 71. apud: VENTURA, R. Op. Cit. p. 18. 50 ROMERO, Silvio. Estudos sobre poesia popular no Brasil (1870-1880). Rio de Janeiro: Laemmert, 1888. p.250. Apud: VENTURA, R. Op. Cit. p. 48

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considerar a influência estrangeira na formação do pensamento brasileiro, uma vez que “o servilismo do negro, a preguiça do índio e o gênio autoritário e tacanho do português produziram uma nação informe, sem qualidades fecundas e originais”51.

Nota-se aqui não somente a reelaboração das teses de Taine, acrescentando-lhe novos elementos, mas a apropriação parcial do pensamento de Gobineau. Adotando seu arianismo e assumindo as diferenças internas à raça branca (o português é decadente, “autoritário e tacanho”), mas ao mesmo tempo obliterando suas conclusões sobre o caráter negativo da mestiçagem (uma vez que os descendentes carregariam apenas os caracteres negativos de cada “raça”). Romero distingue e hierarquiza as raças, mas defende a miscigenação como forma de aprimorar a civilização brasileira, integrando os negros e os índios à raça branca superior. Para ele, através do branqueamento e com o auxilio da imigração, as raças inferiores poderiam ser absorvidas dentro de três ou quatro séculos.

A apropriação heterodoxa que Romero faz de muitas das teorias européias do século XIX pode sugerir um desconhecimento das idéias sobre as quais se apoiava, o que tornaria sua obra crítica e intelectual insatisfatória; ou poderia demonstrar a contradição existente entre essas teorias e a realidade brasileira, rural e mestiça, apontando, em ultima análise, para a inviabilidade de seu projeto nacional. Contra essas interpretações deve-se defender o caráter seletivo da apropriação que esses intelectuais fazem dos modelos (não somente Romero ou a “Escola do Recife”, mas toda essa “geração”). Assumindo a realidade brasileira como mestiça ou tropical, buscavam nos teóricos europeus aquelas idéias que poderiam solucionar o grande impasse em que viviam: como “re-imaginar” a nação em moldes modernos e civilizados?

51 Ibidem p.355. Apud: VENTURA, R. Op. Cit. p. 49.

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Parte III – A decadência dos Povos Peninsulares

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O Bom Senso e o Bom Gosto – a “Geração de 70”

O Romantismo português surge no momento de afirmação do liberalismo no país, nesse momento em que as “imposições históricas da época empurram inapelavelmente a escol portuguesa na direção do progresso e no rumo do porvir, segundo o horizonte da modernidade liberal”52, instaurada através de numerosos conflitos políticos entre 1820, com revolução do Porto, e 1851, com a “Regeneração”. Dessa forma, instala-se uma crise de valores entre o passado e o futuro de Portugal. Cabe a Almeida Garret e a Alexandre Herculano a tarefa de (tentar) abrir o caminho do progresso e redimensionar a arte e a sociedade. Por esse motivo Mario Higa enxerga no “projeto de reforma social” dessa primeira geração romântica portuguesa o equivalente do liberalismo na arte, opinião partilhada por Eduardo Lourenço: “O que o grande reformador Mouzinho da Silveira inscreveu na história real do país, eles o inscreveram, mais duradouramente ainda, na nossa história ideal”53. Para o crítico português é também essa geração, sobretudo Garret, que funda a mitologia da Saudade portuguesa, fruto desse impasse entre passado e futuro:

A Saudade é gosto amargo de bem passado, “delicioso pungir de acerbo espinho”, mas igualmente penhor de ressurreição do que por excesso da vida não pode morrer. (...) Unindo historicamente, e não acidentalmente ou liricamente, Portugal e a Saudade, Garret instaurou a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendência. A que fez do país de Camões, o País-Saudade, o Portugal-Saudade que não tem outro destino que o da busca de si mesmo.54 Entretanto, esses projetos são pouco a pouco frustrados pela ação da burguesia,

que enriquece a despeito das condições e aspirações operárias: E a sociedade portuguesa, acompanhando uma tendência européia, passa a desconfiar da burguesia instalada no poder, cuja imagem tende a se confundir com a da antiga

52 HIGA, Mario A. Cítara Estranha. p. 6. 53 LOURENÇO, E. Mitologia da Saudade. p. 104. 54 Ibidem. p. 109.

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aristocracia, fria, ambiciosa e oportunista. As numerosas convulsões sociais do fim da primeira metade do século XIX apontam inequivocamente para uma situação de crise em Portugal e em toda a Europa capitalista.55 Assim, a segunda geração romântica volta-se para um medievalismo sombrio e

inerte (diferente do mundo medieval de Garret, símbolo da força do país, instrumento de “resgate da nacionalidade”), pano de fundo para histórias de amor e paixão. É contra essa geração que os estudantes de Coimbra se rebelam.

Já em 1861, Antero de Quental publica no jornal O Fósforo três artigos exaltando a poesia de João de Deus, primeira voz a se levantar contra o domínio de José Feliciano de Castilho e seus seguidores do ultra-romantismo. Antero denuncia o mútuo elogio como forma de crítica literária: “o amigo faz apoteose do amigo, por que lhe paguem com serviço igual”56; também critica a afetação e a falsidade destes: “poetas, sombras de outros poetas, há muitos: poetas de frases, de imagens estudadas, de regras de arte longamente meditadas, mas frios e vãos como as suas palavras ocas e retumbantes”57. Também nesse ano publica um volume de poemas, Sonetos de Antero, dedicado a João de Deus.

João de Deus pode ser considerado, e assim o era por Antero e Teófilo Braga, o precursor da moderna poesia portuguesa, por se libertar do jugo de Castilho. Em 1863 publica no jornal O Bejense, no qual era diretor e redator, uma carta de resposta ao prefácio que Castilho faz ao “poema-romance” D. Jaime, de seu protegido Tomás Ribeiro. Neste, Castilho compara o poema aos Lusíadas, do ponto de vista de sua aplicabilidade nos níveis básicos do ensino; concluindo que a poesia de seu aluno, pelo

55 HIGA, M. A. Op. Cit. p. 6. 56 Quental, Antero de. “A propósito dum poeta”. In: Prosas da Época de Coimbra. Lisboa: Sá da Costa. 2a ed., 1982. p. 88. Apud: HIGA, M. A. Op. Cit. p. 11. 57 Ibidem. p. 89. Apud HIGA, M. A. Op. Cit. p. 12.

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menos como recurso didático, é superior a de Camões. Em sua resposta, João de Deus defende a sinceridade e a naturalidade contra o convencionalismo de Castilho58.

Um ano depois, em 1864, vêm a lume dois livros de Teófilo Braga: Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras. Neles, Teófilo aplica os princípios do positivismo comtiano, construindo uma “epopéia da humanidade” dividida em ciclos. Para ele, a poesia é “um ramo da ciência ou a ciência tornada arte” e tem por função contribuir para a organização de uma sociedade mais justa, de acordo com o “estado positivo” da humanidade.59

Em 1865, uma série de artigos de Antero e Castilho, bem como as críticas que Pinheiro Chagas faz a poesia de Antero e Teófilo, vem acirrar os ânimos entre os dois pólos. Quando em outubro, no posfácio ao Poema da Mocidade seguido do Anjo do Lar, de Pinheiro Chagas, Castilho, além de criticar os dois jovens poetas, recomenda abertamente seu afilhado para uma cadeira no Curso Superior de Letras de Lisboa, os estudantes coimbrãos decretam guerra aberta ao professor e seus discípulos.

A primeira manifestação estudantil contra o caciquismo de Castilho a aparecer é o famoso texto de Antero, Bom Senso e Bom Gosto. Carta ao Ex.mo Sr. António Feliciano de Castilho. Seguido de várias réplicas e tréplicas de ambos os lados, acabam por envolver intelectuais que a princípio nada tinham com a disputa, por exemplo, Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão (este chega às vias de fato com Antero, numa luta de espadas em que sai ferido). Ao combater Castilho, Antero expõe suas vinculações filosóficas, afirmando que o professor se opõe a todas as correntes modernas européias:

Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet, Proudhon, Littré, Feuerbach, Creuzet, Strauss, Taine, Renan, Büchner, Quinet, a filosofia alemã, crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a história, a metafísica, as imensas criações da

58 HIGA, M. A. Op. Cit. p. 10. 59 Ibidem. p. 14.

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alma moderna, espírito da nossa civilização...Quem seguir tudo isto vai com o pensamento moderno; com as tendências das ciências; com os resultados de trinta anos de crítica, com a escola histórica; com a renovação filosófica; com os pensadores; com os gênios; vai com a França; vai com a Alemanha... È a Questão Coimbrã, marco da viragem cultural portuguesa e primeira

manifestação daquele grupo que ficará conhecido como “Geração de 70”. Cabe agora fazer um parêntese para tratar de uma definição importante: quem

faz parte da “geração de 1870”? Ângela Alonso define a “geração de 70” brasileira como um epíteto que “circunscreve os indivíduos chegando à idade adulta e ao ‘mercado’ de trabalho ao longo dos anos 1870 e início dos anos 1880”60. Alfredo Campos Matos, ao falar sobre o grupo em seu Dicionário de Eça de Queiroz, define-o como: “poder-se-á admitir que, numa determinada média de oscilação de idades, se estabelece um percurso paralelo, percurso esse de formação e desenvolvimento estético-ideológico e de factos culturais, por parte de um número restrito de intelectuais” 61.

Também João Medina, na introdução de sua obra Eça de Queirós e a geração de setenta, relativiza o critério etário, exemplificando que Fialho de Almeida, mesmo sendo uma década mais jovem que os principais nomes do grupo, participa da mesma “geração”. Propõe dessa forma, um “coeficiente, de tipo ideológico ou sociológico, capaz de integrar figuras que não cabem rigorosamente nos limites considerados, e que pertencem todavia à Geração de 70 por via duma adesão cultural ou de outro tipo, embora exorbitando das suas balizas históricas e etárias”62.

Delineiam-se nessas interpretações duas diferenças entre os intelectuais oitocentistas brasileiros e portugueses: a idade e a unidade entre eles. Em primeiro lugar, os portugueses eram mais velhos que os brasileiros, enquanto em 1871 aqueles estão em plena atividade intelectual, estes ainda estão começando a se organizar; a

60 ALONSO, A. Op. Cit. p. 43. 61 MATOS, A. C. Dicionário de Eça de Queiroz. p. 472. 62 MEDINA, J. Eça de Queiroz e a Geração de setenta. p. 12.

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maior parte da atividade dos brasileiros é posterior a 1875 e, sobretudo, a 1880, enquanto que os lusos desde 1865 já se apresentam como alternativa artística, política e ideológica para a sociedade portuguesa. Além disso, uma constatação clara pode ser feita: enquanto grupo, os portugueses se apresentam muito mais coesos que os brasileiros.

A definição de Ângela Alonso é conseqüência direta de sua proposta analítica, tomar a geração de 1870 como um movimento político, mas ao cotejar a bibliografia o que fica claro é a desarticulação quase que completa entre os diversos grupos de políticos-intelectuais brasileiros63. Seja qual for a divisão – instituições de ensino, corrente ideológica ou proximidade do centro político do Império – os grupos se organizam localmente, tendo poucos pontos de intersecção. Quanto aos portugueses, o que percebemos é que os analistas sempre se baseiam na relação entre os membros; se o critério etário é uma baliza, ele se subordina, ou antes, se vincula, à relação entre os agentes; de tal forma que ainda que especificidades político-ideológicas bastante nítidas entre eles se apresentem é sempre posto em relevo a (relativa) coesão do grupo.

Sem desconsiderar as perspectivas próprias de cada grupo e seus projetos para o país, tanto no Brasil quanto em Portugal, uma hipótese explicativa que considero razoável é a diferença geográfica entre eles. Os portugueses se originam em sua maior parte da Universidade de Coimbra, e quando não, tem um contato mais próximo entre si, facilitado pela dimensão geográfica reduzida de Portugal; já no Brasil, as dificuldades de comunicação entre as diversas partes do território, principalmente no caso de Recife, devem ter dificultado a organização de um grupo mais coeso. Mas é apenas uma hipótese, que deve se confirmar com pesquisas mais aprofundadas.

63 Ainda que Alonso identifique indivíduos que funcionam como conexões entre os grupos, Aníbal Falcão, por exemplo, a relação entre eles é fragmentária.

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Mas voltando ao grupo português da Questão Coimbrã, Campos Matos reconhece nessa primeira manifestação da “geração de 70” elementos que serão fundamentais na obra posterior de seus participantes: o cosmopolitismo cultural, a defesa de uma literatura voltada aos problemas socioculturais de seu tempo, mas igualmente preocupada com o “futuro” e a consciência da decadência de Portugal64.

É desse sentimento de pertencimento a seu país e sua época, essa vontade de realizar uma arte ativa e transformadora, essa formação revolucionária inspirada nos movimentos franceses de 1848 e da Comuna de 1871, que surge o projeto do Cenáculo e das Conferências Democráticas, que vão se realizar no Cassino de Lisboa, em 187165.

Reunindo-se em Lisboa, parte dos manifestantes de Coimbra procura formar um grupo literário, que posteriormente será chamado de Cenáculo, eram Eça de Queiroz, Salomão Saragga e Lobo de Moura, juntando-se a seguir Antero de Quental, Jaime Batalha Reis, Guerra Junqueiro, Augusto Machado e José Fontana. É esse grupo que pensa em realizar debates para tratar das “preocupações intelectuais do seu tempo”, assim dizia seu programa:

Abrir uma tribuna, onde tenham voz as idéias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna; estudar as condições da transformação política, econômica e religiosa portuguesa; tal é o fim das conferências democráticas.66 Pensar Portugal. Tal é o objetivo dos intelectuais de 1870. Desde já fica clara a

dimensão política da ação desses homens, concordando com aquilo que Alonso defende para seus correlatos brasileiros. João Medina chega mesmo a afirmar que a pergunta crucial que Eça de Queiroz, e também seus companheiros, nos faz no final da década de 64 MATOS, A. C. Op. Cit. p. 474. 65 João Medina considera as Conferências como “a certidão de nascimento da Geração de 70”. MEDINA, J. Op. Cit. p. 10. 66 MATOS, A. C. Op. Cit. p. 173.

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70; momento em que reelabora seu primeiro romance, O crime do padre Amaro, e simultaneamente começa a trabalhar nos Maias e no Conde de Abranhos e que Portugal comemora os 500 anos de Camões; é: Portugal existirá deveras?67 Esse impasse é muito semelhante àquele que Herculano e Garret viveram anos antes. Pensar sobre o passado e, principalmente, sobre o futuro de Portugal foi o objetivo destes, que por sua vez são os ídolos da nova geração e que são recuperados para engrandecer a oposição ao fontismo e ao ultra-romantismo estéril, promovendo uma transformação real na sociedade68.

As duas primeiras conferências ficaram a cargo daquele que desde Coimbra sempre foi considerado o líder do movimento: Antero de Quental. Da primeira somente se conhece o relato do jornal Revolução de Setembro, cujo titulo foi “O Espírito das Conferências”; a segunda é a famosa “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, na qual Antero ataca a Igreja e a Monarquia e exalta os ânimos dos conservadores com a celebre expressão: “O Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno”69. A terceira conferência é de Augusto Soromenho, que versa sobre “A Literatura Portuguesa”, afirmando que, excetuando Camões e Gil Vicente, a arte portuguesa é toda ela composta de imitações, e proclama: “o fim da arte não é a imitação”70.

Eça de Queiroz pronunciou-se a 12 de Junho, com a conferência “A Afirmação do Realismo como Nova Expressão da Arte”, vinculando-se ao “espírito revolucionário” e à Revolução, entendida como fato permanente e teoria jurídica. Inspirando-se em Proudhon, Eça concebe o espírito revolucionário como a “manifestação concreta da lei natural da transformação constante” e, portanto, fato 67 MEDINA, J. Eça Político. p. 44. 68 MATOS, A. C. Op. Cit. p. 472. 69 Ibidem. 173. 70 HIGA, M. A. Op. Cit. p. 35.

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permanente, mas também relativa, vinculada “não só a fatos, mas à idéia”, portanto, é também teoria jurídica71.

Para Eça, a arte é um produto da sociedade, intrinsecamente ligada a sua ascensão ou decadência. Sob esse prisma, o artista fica submetido às determinações sociais permanentes, como o clima, o solo e a raça, e às históricas, os costumes do seu tempo e a idéia-mãe que rege a sociedade naquele momento. E partir daí, julga que a arte do século XIX está em desacordo com seu tempo:

O espírito do tempo é a revolução. É essa revolução que anda por baixa de tudo, convulsionando e abalando, sem que nenhuma coisa nem ninguém se possa eximir a ela. As nossas consciências estão sendo formadas por ela. Ela é a alma do século XIX. – E, entretanto, os ideais da arte são ainda os velhos ideais do passado. A revolução está em tudo menos na arte: – a arte representa e sustenta a reação.72 Como solução ao impasse Eça propõe a adoção do Realismo, uma arte que “nos

pinta a nossos próprios olhos”, condenando os aspectos negativos da sociedade, promovendo sua moralização e regeneração; como noções concretas para a realização de uma arte realista, Eça expõe:

1º – O Realismo deve ser perfeitamente do seu tempo, tomar a sua matéria na vida contemporânea. Deste princípio que é basilar, que é a primeira condição do realismo, está longe a nossa literatura. A nossa arte é de todos os tempos menos do nosso; 2º – O Realismo deve proceder pela experiência, pela fisiologia, ciência dos temperamentos e dos caracteres; 3º – O Realismo deve ter o ideal moderno que rege as sociedades – isto é: a justiça e a verdade. 73 Dessa forma, une os pressupostos deterministas de Taine, afirmando a

determinação histórica da produção artística, com o sentido moral da missão social do artista, extraído de Proudhon. Perceba como essa proposta é similar à posição de Silvio Romero em sua avaliação da obra de Machado de Assis; a “Escola de Recife” e a

71 MATOS, A. C. Op. Cit. p. 173. 72 Ibidem. p. 175. 73 Ibidem. p. 176.

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“Escola de Coimbra” estavam profundamente marcadas por esse “evolucionismo literário”.

A conferência seguinte é de Adolfo Coelho, discorrendo sobre “O Ensino”, especificamente o secundário e o universitário, onde “atesta a precariedade do sistema educacional português, que se arrastava tolhido por princípios religiosos”74. Quando se realizaria a sexta conferência, a 26 de junho, a cargo do hebraísta Salomão Saragga, com o tema “História crítica de Jesus”, o governo português, na pessoa do marquês d’Ávila e Bolama, ordena o encerramento das Conferências, sob o argumento de que os conferencistas “ expõem e procuram sustentar doutrinas e preposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado”75. Apesar das manifestações dos participantes e de diversos órgãos da imprensa, a proibição é mantida e encerra-se o projeto de levar à sociedade um debate aberto e intenso sobre o futuro de Portugal. Mas se as Conferências malograram, circulava desde maio pelas ruas do país uma nova revista, As Farpas, composta por dois dos jovens conferencistas, Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, que buscavam fazer a crítica, ao mesmo tempo feroz e risonha, da sociedade e dos costumes portugueses, pretendendo cravar “em cada fato contemporâneo uma pequena farpa, apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um sinal”76. É o princípio de um projeto que Eça de Queiroz sustentará durante, ao menos, 15 anos, o de traçar um retrato da vida portuguesa, e é dele que me ocupo agora.

74 HIGA, M. A. Op. Cit. p. 36. 75 MATOS, A. C. Op. Cit. p. 178. 76 EÇA DE QUEIROZ, J. M. Obras Completas. V.3. p. 665.

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Os di cá e os di lá – Eça de Queiroz e o Brasil

Antes de prosseguirmos com a análise dos artigos de Eça n’As Farpas, d’O primo Basílio, e de cartas enviadas a alguns correspondentes, cabem algumas considerações acerca das edições utilizadas e de algumas propostas teóricas que nortearam minhas interpretações.

Quanto às edições, utilizo a Obra Completa de Eça de Queiroz organizada por Beatriz Berrini, sendo que O primo Basílio encontra-se no primeiro volume, As Farpas no terceiro, e as cartas no quarto volume. Para a análise do artigo de Eça sobre o “brasileiro”, utilizei também o texto publicado por João Medina como apêndice ao seu livro Eça de Queirós antibrasileiro, para comparar a redação original de 1871 com a de 1890, quando seus artigos d’As Farpas são compilados em livro77. Partilho da opinião de João Medina de que “o Eça que desde 1875 começa a escrever a sua obra romanesca (a começar com O crime do padre Amaro, cuja primeira edição é desse ano) é fortemente tributário (ou continuador, se se preferir) do jornalista do ‘riso que peleja’ das Farpas”78; portanto, analiso as construções e interpretações de Eça sobre o Brasil e a América sempre partindo dos artigos d’As Farpas, ainda que me tenha sido vedado conhecer a redação original de todos eles e que me baseie nas versões de 1890.

Especificamente para as cartas, elas são interessantes para o estudioso por conterem informações que não transparecem na “obra oficial” do escritor. Antes de revelar revezes e pormenores da biografia do artista (que muitos pretendem ser determinantes na construção das obras, o que sem dúvida é falso), a correspondência de Eça pode nos revelar “o germinar de uma idéia sua ou o desenho de um plano de 77 A versão de 1890 e o texto original podem ser encontrados em. EÇA DE QUEIROZ, J. M. Op. Cit. pp. 839-842 e 909-915, respectivamente. O original também consta em MEDINA, J. Eça de Queirós antibrasileiro. pp. 187-196 78 MEDINA, J. Eça de Queirós antibrasileiro. p. 147.

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trabalho; acompanhar o seu desenvolvimento; tomar conhecimento das dificuldades de edição e posteriores e sucessivas correções de provas; como ainda chegar a saber o porquê do abandono de determinado manuscrito ou a desistência de uma coleção já esboçada”79, além do debate informal com os amigos sobre algum tema do momento, expondo suas impressões e opiniões sobre certos assuntos e nos dando pistas (mais ou menos explícitas) sobre suas idéias. Entretanto, não devemos nos enganar com a aparente transparência na construção da forma epistolar; como acontece com todos nós, o missivista exibe diversas facetas de sua personalidade conforme o receptor a quem se dirige, diz Jeanne Bem que:

A correspondência é o discurso autobiográfico buscado por outros meios, com um tratamento da temporalidade que é aquele do diário íntimo, mas com um tratamento do destinatário diverso do desses dois gêneros. A correspondência é um discurso fragmentado, um puzzle de discurso. (...) Obra referencial, a correspondência não conta apenas uma vida, mas toda uma época, o que justifica as abordagens sócio-históricas. Enfim, como na autobiografia, a transparência do “eu” é enganosa, a verdade, problemática. As variações são particularmente legíveis nas cartas simultâneas dirigidas a correspondentes diferentes.80 No caso de Eça, basta comparar o tom e o estilo nas cartas dirigidas aos amigos

mais íntimos, a noiva (e mulher) D. Emília e aos seus superiores do governo para se ter a dimensão dessa variação, para vermos a escrita elaborada conforme a situação. Eça tem total consciência desse processo, justificando mesmo suas demoras em se comunicar: “a irregularidade da minha vida epistolar provém de que eu penso sempre as minhas cartas antes de as escrever. E como as penso inteiras, acabadas, desde a data até ao seu e.c., fico com a ilusão física de que as escrevi, as sobrescritei, as estampilhei”81. Por fim, é preciso considerar o corpus epistolar como inacabado e sempre sujeito à alterações e acréscimos que modifiquem drasticamente as tendências esboçadas; uma nova missiva descoberta dentro de um livro, autógrafos valiosos e esclarecedores 79 BERRINI, B. “Introdução Geral”. In: EÇA DE QUEIROZ, J. M. Obra Completa. v. 4. p. 13-4. 80 BEM, Jeanne. 81 Carta a Domício da Gama, datada de 26/09/1899. EÇA DE QUEIROZ, J. M. Op. Cit. p. 422.

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encontrados em algum arquivo ou biblioteca ou, essa é bastante comum, uma coleção particular até então inacessível que vem a público, tudo contribui para que a obra epistolar de um autor consagrado seja um “tomo em aberto”, transformada constantemente por novos achados. Soma-se a esses fatores a quase inevitável destruição dos originais; em primeiro lugar existe uma explicável censura dos receptores que, por não perceberem a importância dos diálogos travados ou então desejando omitir certos eventos constrangedores, destroem as cartas recebidas; ou ainda, um herdeiro menos perspicaz que se desfaz do espólio do receptor, atirando as cartas ao lixo ou vendendo-as para colecionadores. No caso de Eça, é sabido que muita coisa se perdeu, tanto do que ele enviou para amigos, editores e familiares quanto do que ele recebeu, principalmente destas, uma vez que o autor não tinha o costume de conservar as cartas que recebia. De toda forma, as cartas que nos restaram revelam aspectos importantes do pensamento de Eça de Queiroz.

No que diz respeito ao romance O primo Basílio, me apoio na interpretação que Edward Said faz dos romances ingleses do final do século XIX para pensar as relações entre cultura e literatura. Diz Said que os romances ingleses desde o final do século XVIII são fundamentais para a construção de uma “cultura imperialista” e ao mesmo tempo fruto dela; os romances constroem as imagens de um território distante, de onde as pessoas tiram suas fortunas ou para onde mandam os degredados, um território sempre enevoado, indefinido, mas que está lá. Esses lugares aparecem como sendo, naturalmente, domínios europeus: “em Mansfield Park, de Jane Austen, a fazenda escravagista de Thomas Bertram em Antígua é misteriosamente necessária para o equilíbrio e a beleza de Mansfield Park”82.

82 SAID, E. Cultura e Imperialismo. p. 95-6

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Said defende que as oportunidades de sucesso financeiro que o exterior inspira nos ingleses estão profundamente ligadas a construção do romance oitocentista, de modo que não devemos ignorar as vinculações entre a literatura e a História. Exemplifica sua tese com uma citação de Dombey e filho, de Dickens, que vale ser reproduzida:

A terra era feita para que Dombey e Filho comercializassem, e o sol e a lua eram feitos para lhes dar luz. Rios e mares eram formados para sustentar seus navios. (...) Abreviaturas comuns assumiam novos significados aos olhos dele, e referiam-se exclusivamente aos dois: A.D. não guardava nenhuma relação com Anno Domini, mas queria dizer Anno Dombey – e Filho.83 O que Said afirma é que esse tipo de imagem não somente critica ou ironiza o

imperialismo, mas deriva dele; essa imagem só pode ser construída por se remeter a uma situação histórica específica, que pode ser apreendida pelos leitores. Certamente isso não significa dizer que os escritores são completamente condicionados por ideologias, mas que seus escritos inserem-se na “história de suas sociedades”, influenciando suas “experiências sociais”, mas também influenciados por elas: “a cultura e suas formas estéticas derivam da experiência histórica”84. Para o caso específico de Eça e O primo Basílio, acredito que a perspectiva de que as bases de construção da ficção eciana, pelo menos até sua obra capital, Os Maias, se encontram desde 1871 em um periódico de crítica política e social vem ao encontro das teses de Said sobre o romance e o imperialismo.

Said propõe como metodologia analítica a “leitura em contraponto”: para se ler um texto devemos pensar sobre o que está escrito e o que não está, “não só no conteúdo, mas também na forma do debate, não só no que é dito, mas também como, por quem,

83 DICKENS, Charles. Dombey and son. Hamandsworth: Penguin, 1970. p. 50. Apud: SAID, E. Op. Cit. p. 45 84 SAID, E. Op. Cit. p. 23.

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onde e para quem é dito”85. Essa proposta aproxima-se de alguma maneira da noção de “intervalo”, postulada por João Alexandre Barbosa. Para este crítico, a literatura é “o trabalho com os significantes responsáveis por aquela multiplicidade de significados que tecem a tensão que envolve e desafia o leitor”86, ou seja, a literatura é, em sua essência, a arte da palavra. Porém, se a obra literária é a arte da palavra, devemos analisá-la somente enquanto palavra? Barbosa acredita que não, que devemos distinguir entre dois tipos de abordagens: uma interna e a outra externa. A abordagem interna analisa a construção do texto enquanto tal, como a poética, a estilística, a lingüística e a semiótica, por exemplo; já a abordagem externa procura encontrar “aquele elemento que, extraído da história, da biografia, da biologia da sociologia, da psicologia, justifiquem a obra”87. O autor faz uma ressalva às tentativas de interpretação “externa” da obra literária, frisando que se os significados (históricos, psicológicos, sociais, etc.) externos à obra emergem durante a leitura, estes são diretamente subordinados ao trabalho com os significantes, que é a literatura:

Aquilo que não é literatura na leitura da literatura, isto é, a multiplicidade de significados referidos à experiência do leitor, tem uma existência dupla: faz parte do mundo da experiência empírica enquanto dado da realidade psicológica, histórica ou social e, por outro lado, eventualmente existe como componente de uma organização, ou construção específica, que é a literatura. As vinculações entre a obra literária e a sociedade na qual ela se insere,

encontram-se nesse espaço de tensão entre o signo literário e os valores por ele questionados; nesse fluxo e refluxo entre o dentro e o fora do texto, nesse “intervalo”. Assim, tendo consciência das íntimas relações que unem a obra literária e a sociedade, mas sem esquecer do caráter artístico dessa obra, passemos aos textos de Eça de Queiroz.

85 Ibidem p. 53. 86 BARBOSA, J. A. A leitura do intervalo. p. 15. 87 Ibidem p. 25.

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Como foi dito, a obra ficcional de Eça é bastante influenciada pelas Farpas, tanto nesta quanto naqueles o autor tenta identificar o “progresso da decadência” de Portugal. Decadência que perpassa todos os níveis sociais:

O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. (...) Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. O desprezo pelas idéias aumenta em cada dia. (...) A ruína econômica cresce, cresce, cresce...88 O comércio definha. A indústria enfraquece.89 Estando a sociedade em tão flagrante declínio, a literatura não poderia ter outra

feição: “sem idéia, sem originalidade, convencional, hipócrita”. Ecos ainda da Questão Coimbrã, critica os “poetas líricos e os cismadores idealistas [que] tratam de se empregar nas secretarias [ou em um] centro político”90. Quanto aos romances, afirma que esses são “a apoteose do adultério”, anunciando o tema central d’O primo Basílio.

Em outras duas farpas, uma de março e outra de outubro de 1872, condena o estado da educação das mulheres em Portugal, sobretudo em Lisboa, afirmando que a família as educa de modo que com oito anos já se interessam por vaidades e assuntos de adultos, corrompendo-se. Também a educação religiosa se resume a “papaguear a Doutrina”, sem a devida compreensão moral; as mulheres aceitam Deus como um chic, limitando-se ao aspectos externos da religião. Preocupadas com o casamento, desejam-no rico, para ter todas as facilidades do mundo moderno; suas duas únicas preocupações são os vestidos e os namoros. Sem uma educação sólida, ficam a mercê desses homens inescrupulosos (mas que ainda assim são considerados vitoriosos e interessantes pela “opinião moderna”) que vêm lhes destruir a família91. Parece-me nítida a base da trama d’O primo Basílio e também d’O crime do padre amaro; a formação distorcida que se

88 Note-se a ironia decorrente da justaposição de termos com cargas significativas opostas: a ruína econômica cresce. Sentido igual ao que existe em “progresso da decadência”. 89 EÇA DE QUEIROZ, J. M. Obras Completas. V. 3. pp. 661-2. 90 Ibidem. p. 671. 91 Ibidem. pp. 848-862; 890-903.

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dá as mulheres provoca situações dramáticas em que a última vítima é sempre a mulher: Amélia e Luísa morrem após suas aventuras amorosas serem desmanteladas.

Nos dois artigos citados, Eça evoca o nome de Taine para estabelecer comparações entre as portuguesas e as inglesas. Considerando que características físicas são análogas a características morais ou psicológicas:

Taine diz, pintando o sólido vigor inglês – que o dever essencial de uma menina é ter saúde. A saúde é o esplendor físico da inocência. Mens sana in corpore sano. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam livremente, busto direito, beiços vermelhos, – indicam juízo forte, consciência reta, um sentir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho – revelam um ser devastado por apetites e sensibilidades mórbidas. Ora, entre nós, as raparigas não têm saúde. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne, sem força vital – umas padecem dos nervos, outras de estomago, outras do peito, e todas da clorose que ataca os seres privados do sol. (...) Nada dá tanta idéia da constância de caráter como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa – direita e certa. As nossas raparigas, constantemente sentadas e aninhadas, quando têm que se pôr de pé e de marchar, gingam e rolam Notável a vinculação entre o corpo e o caráter, tão em voga entre os teóricos

racialistas do momento. Outras referências importantes a Taine estão nas cartas. Em uma delas, endereçada a Ramalho Ortigão e datada de 20 de julho de 1873, Eça relata ao amigo as impressões que teve da América do norte. Descrevendo as cidades, manifesta o forte impacto que as cidades indústrias lhe causaram, sobretudo Nova York. Acerca desta, sente-se surpreso com a quantidade de movimento, negócios, pessoas (e ladrões) que tem Nova York. Contudo, sente um desprezo por essa cidade que se auto-intitula como A Cidade, mas que não deu ao mundo nenhum homem ou acontecimento memoráveis92, como o fez a Europa. Afirma que, apesar de todo o maquinário da cidade, ela não tem “civilização”, pois esta não se traduz por máquinas, mas por sentimentos: “há mais civilização num beco de Paris do que em toda vasta New York”. Percebe-se dessa maneira a tensa relação de Eça com os Estados Unidos, parece que ele 92 “Paris fez a Revolução, Londres deu Shakespeare, Viena deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa deu-nos a nós – que diabo! Mas esta estúpida New York o que tem dado? Nem mesmo as invenções da América são delas. Aqui quem inventa, quem inventa por todos, quem inventa sempre é Chicago.” Idem. Obras Completas. Vol. 4. p. 105.

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diz: “mesmo sendo industriais, não é possível ser civilizado na América”. Esse sentimento atinge sua plena significação quando cita Taine:

Taine! Como este nome soa aqui no Canadá: o fino, o subtil, o delicado, o perfeito Taine(...) – era aqui que eu o queria, com o seu fino senso classificando, decompondo, reconstruindo, dissecando, provando. – Qual seria sua conclusão sobre a América e os Americanos?93 Em outra carta a Ramalho, essa datada de 28 de novembro de 1878, Eça

comenta sobre os planos que aquele tem de viajar ao redor do mundo, sugerindo então: “deveria começar pelo Brasil e contar-no-lo à Taine”94. Se o industrialismo americano chamaria a atenção de Taine, também nossa realidade tropical poderia interessar ao famoso determinista.

N’O primo Basílio, as imagens traçadas do Brasil serão sempre de tropicalidade, e de miscigenação. Assim, ao saber da volta de Basílio e imaginado que poderia ter casado com ele, Luísa perde-se “em superstições doutros destinos, que se desenrolavam, como panos de teatro; via-se no Brasil, entre coqueiros, embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios”95. E Basílio, ao relatar o período no Brasil, afirma ser um horror, e que fizera a corte à uma mulata, para mangar96. Mas a passagem do romance que mais informações nos dá sobre o Brasil é quando se encontram Basílio e o conselheiro Acácio na casa de Luísa, e estes pedem a Basílio que toque alguma coisa ao piano, ele decide-se por uma “modinha da Bahia”:

Sentou-se ao piano, e depois de ter preludiado uma melodia muito balançada, dum embalado tropical, cantou:

Sou negrinha, mas meu peito

Sente mais que um peito branco

E interrompendo-se: Isto fazia furor nas reuniões da Bahia quando eu parti. 93 Ibidem. p.106 94 Ibidem. p. 134. 95 Idem. Obras Completas. V. 1. p. 463. 96 Ibidem. p. 493-4

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Era a história duma “negrinha” nascida na roça, e que contava, com lirismo de almanach, a sua paixão por um feitor branco. Basílio parodiava o tom sentimental de alguma menina baiana; e a sua voz tinha uma preciosidade cômica, quando dizia o ritornello choroso:

E a negra p’ra os mares

Seus olhos alonga; No alto coqueiro

Cantava a araponga.

O conselheiro achou “delicioso”; e, de pé na sala, lamentou a propósito da cantiga a condição dos escravos. Que lhe afirmavam amigos do Brasil que os negros eram muito bem tratados. Mas enfim a civilização era a civilização! E a escravatura era um estigma! Tinha todavia muita confiança no imperador... Monarca de rara ilustração... acrescentou respeitosamente.97 O Brasil se apresenta nesse trecho como o lugar dos “coqueiros e arapongas”,

onde “negrinhas” e “feitores brancos” conviviam pacificamente e se apaixonavam, embora tendo entre si o “estigma” da escravidão. Este espaço tropical se antepõe à Europa, lugar da “civilização”, livre da escravidão, ainda que o conselheiro tivesse confiança na ação do “imperador” para solucionar o problema.

Não por acaso quem cita D. Pedro II é o conselheiro, personagem inconveniente, ridícula e deslocada, representante da velha sociedade portuguesa de corte, escritor dotado de uma erudição romântica e inútil e ufanista verborrágico; somente esse tipo social pode considerar D. Pedro II como um “monarca de rara ilustração”, as outras pessoas partilham do estranhamento e do riso com que Eça descreveu o imperador nas famosas Farpas de fevereiro de 1872. Nesses artigos, Eça censura a hipocrisia de D. Pedro II, que em viagem pela Europa, insiste em ser chamado de Pedro de Alcântara e tratado como um “cidadão” brasileiro, mas que recebe visitas oficiais e se vale de ser D. Pedro II quando algo lhe desagrada.

Ainda n’O primo Basílio, o Brasil aparece como lugar de “degredo”, para onde se emigra em busca de melhores condições de vida. Sebastião pensa em pagar uma passagem para Juliana, depois de reaver as cartas e Luísa recorda que Basílio foi para o 97 Ibidem. p. 524.

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Brasil depois da falência do pai. Em um dos relatórios que faz aos seus superiores no ano de 1873, de Havana, Eça afirma que por lá chegam muitos portugueses advindos do Brasil, México e outros países americanos, uma vez que não “encontraram fortuna” nesses lugares98.

Encontramos uma outra informação importante sobre a imigração numa carta para Teófilo Braga, de 12 de março de 1878; Comentando sobre Basílio, afirma que muitos amigos acham “incrível que um homem que trabalhou no Brasil, com valor, seja no fundo um canalha”, para Eça é estranha a opinião que considera a Bahia “como Fonte Santa da Purificação”99. Essa afirmação contém dentro de si dois sentidos: em primeiro lugar, a Bahia, berço tropical da mestiçagem não poderia purificar ninguém; em segundo, somente enriquece no Brasil quem não é “puro”. De fato, Sebastião “ouvira que ele [Basílio] tinha ido para o Brasil fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai; que mesmo na Bahia, com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador”100, hipótese que Basílio confirma posteriormente101.

A duplicidade existente na carta a Teófilo já havia aparecido uma vez na obra de Eça, no artigo “o brasileiro”, do mesmo número das Farpas em que aparecem os textos sobre D. Pedro II. Nesse artigo, Eça se vale da confusão gerada pelo termo “brasileiro” para atacar tanto o brasileiro brasílico quanto o português que retorna rico do Brasil. Explora-se também a relação entre os emigrados e os portugueses que ficaram na Europa; Eça de Queiroz afirma que o calor e o sol do Brasil (novamente a tropicalidade!) expandem os defeitos que os portugueses já contêm dentro de si, tal qual ocorre com as plantas; contudo, essa sátira mordaz da imigração e da sociedade portuguesa também se vale da ambigüidade significativa de “brasileiro”, atingindo o 98 Idem. Obras Completas. Vol. 4. p. 755. 99 Ibidem. p. 919. 100 Idem. Obras Completas. V. 1. p. 529. 101 Ibidem. p. 632.

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Brasil e os brasileiros brasílicos com seu escárnio. Na edição de 1890 das Farpas todas as construções que geram essa ambigüidade procurarão ser desfeitas ou suprimidas.

Logo no início do texto acrescenta-se a explicação: “Há longos anos o brasileiro (não o brasileiro brasílico, nascido no Brasil – mas o português que emigrou para o Brasil e que voltou rico do Brasil)...”. Da mesma forma, são mantidas as referências ao português “torna-viagem” enriquecido, andando por Lisboa de “colete e grilhão de ouro” e “diamantes de peitilho”, ou a constatação da necessidade que Portugal sente do dinheiro desses retornados: “Quando [o português] vês o Brasileiro chegar dos Brasis, estalas em pilhérias: – e se ele nunca de lá voltasse com o seu bom dinheiro morrias de fome!”.

Entretanto, as supressões indicam a força das imagens mobilizadas, como já disse, ele procura em 1890 desfazer as ambigüidades ou eliminar as referências diretas ao Brasil: a expressão “nação irmã” é substituída por “irmãos do além-mar”; “o Brasil é Portugal” é trocado por “o brasileiro é o português”. Grande parte do sexto parágrafo do texto original foi suprimida, nela se conforma com toda força a imagem que Eça faz do Brasil:

Tudo o que faz, tem uma cauda de gargalhada: se negocia aparece como o dono di navio, personagem grotesco das comedias de feira. Se pertence à nobreza é suspeito de se chamar barão de Suriquitó ou conde de Ipátápá! Se fez guerra uma universal risada ecoa, e todos lembram a grito celebre – quebra esquina, minhá genti! Se fala aquela estranha linguagem, que parece português – com açúcar, a hilaridade estorce-se. A celebridade de seus calos enche o mundo. O seu pouco asseio faz desmaiar as virgens. O seu maior feito – a vitória do Paraguai mereceu em Portugal este dito celebre que corria as ruas: O Brasil encheu-se de gloria, oh Brasil dá cá o pé. Enfim, a opinião, a cruel opinião, – tudo o que é mau gosto, grosseria, tosquice, obtusidade, pelo, ordinarismo – coloca-o como num índice no brasileiro102. Esse artigo, sem dúvida o momento em que Eça descreve o Brasil e os

brasileiros com mais ferocidade, não poderia ser mantido intacto em 1890. Passados vinte anos, Eça tornou-se um diplomata e um literato bem sucedido, inclusive no Brasil, 102 Idem. Obra Completa. v. 3. p. 911. Ou MEDINA, J. Eça de Queirós antibrasileiro. p. 189.

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mas o texto original nos revela muito do que o Brasil representava para Eça de Queiroz: um lugar quente e sujo, com um povo mestiço com tons de chocolate, recanto da tapioca e da bananeira. Compreende-se que em Pernambuco, lugar de forte presença lusitana, ele tenha exaltado os sentimentos nativistas da população.

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Parte IV – As Farpas em Pernambuco: Conclusão

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Eça de Queiroz: Agitador no Brasil A principal obra sobre esses conflitos é a de Paulo Cavalcanti, Eça de Queiroz

agitador no Brasil, de 1959. É nela que fundamento minha análise, pois, apesar de antiga, ainda constitui uma excelente fonte de informações, dado a volumosa pesquisa de jornais, cartas e processos de época. Entretanto, são absolutamente necessárias novas pesquisas sobre esses conflitos (que segundo o autor tem repercussão direta por três anos e é um dos motivos do levante de “quebra-quilos”103 em Goiana) para recuperarmos uma parte do conflito deixada à margem na obra, as impressões dos portugueses residentes em Pernambuco, e atualizarmos os termos do debate, dando, quem sabe, nova feição aos acontecimentos.

Ao chegar a Pernambuco as Farpas contendo o artigo que ficou conhecido como

“O Brasileiro”, teve início uma série de manifestações na imprensa contra Eça, Ramalho, as Farpas e os portugueses em geral. Segundo Paulo Cavalcanti, um dos primeiros jornais a se posicionar contra as Farpas foi O Movimento, dirigido por Silvio Romero e outros estudantes da Faculdade de Direito do Recife. Dizia O Movimento que “As Farpas nasceram de uma baforada de binho berde, de uma garotada em roda às sertãs de bolo de bacalhau e de um êxtase, uma comichão, um sarilho da vítima do Sr. Antero de Quental e do inútil advogado de Évora [Ramalho e Eça]”. Muitos outros jornais se colocaram contra os dois escritores portugueses e mesmo surgiram livros destinados a revidar os insultos contra os brasileiros; é o caso, por exemplo, das Frechas. Essa obra, assinada por “um Caeté e um Tamoio”, patente influência do 103 Movimento popular contra a instauração do sistema métrico-decimal, atacavam as feiras e destruíam as medidas, correu diversas partes do nordeste. Sobre as revolta dos “Quebra-quilos” Cf. BARMAN, Roderick. “The Brazilian peasantry reexamined: the implications of the Quebra-Quilo Revolt, 1874-1875”. Hispanic Historical Review. V. 57, n. 3, 1977, pp 401-424. e MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Crise agrária e luta de classes: o nordeste brasileiro entre 1850 e 1889. Brasília: Horizonte, 1980.

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indigenismo, critica os escritores das Farpas e toda colonização portuguesa no Brasil, afirmando que as únicas coisas que os portugueses ensinaram ao brasileiro foram “a prostituição, o adultério, a poligamia”, o hábito de produzir moeda falsa e fraudar os livros comerciais, o jesuitismo e a inquisição, “a mancha negra da escravidão” e “o sistema aberrativo da forma monárquica”, ficando clara a circulação dos ideais republicanos e abolicionistas.104

Aparece nas Frechas manifestações diretas contra os comerciantes lusitanos, que são acusados de enriquecer a custa do trabalhador brasileiro e de impedirem, através de lobbys e cartéis, a ascensão dos comerciantes nacionais, principalmente no comércio a retalho. Reivindica-se dessa forma a nacionalização do comércio e evoca-se as lutas antilusitanas em Pernambuco nos anos de 1817 e 1848 como fundamentação histórica das aspirações pernambucanas105. No entanto, a resposta que mais causará repercussões será Os Farpões ou Os Bandarilheiros de Portugal – resposta cabal aos Srs. Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, autores das Farpas ou Fastos da peregrinação de S. M. o Imperador do Brasil pelo Reino de Portugal, de autoria de José Soares Pinto Corrêa.

Nos Farpões, o jornalista inverte os argumentos de Eça e usa contra os portugueses as características que este reconhece nos brasileiros: “dizeis que o brasileiro é entre vós o tipo de caricatura mais francamente popular. Bem; os portugueses entre todos os povos do mundo, não só são o tipo de caricatura mais francamente grotesca, como também o sinônimo mais manifesto da estupidez!”106. Por fim, José Corrêa sugere para Eça e Ramalho, como punição pelas agressões aos brasileiros, uma surra de “cipó-pau e quiri”, vegetais de grande resistência que foram frequentemente usados como armas nas revoltas nativistas de Pernambuco. 104 É interessante notar também como essa opinião sobre a colonização portuguesa é partilhada por Silvio Romero. VENTURA, R. Estilo Tropical. p. 49. 105 CAVALCANTI, P. Eça de Queiroz, agitador no Brasil. pp. 121-5 106 Ibidem. p. 102.

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Aos escritos dos Farpões, responde Ramalho Ortigão nas Farpas de Junho/Julho de 1872. Em tom evidentemente jocoso, afirma que, mesmo conhecendo as mais belas paisagens do mundo, a vontade dele e de Eça era vir para Pernambuco, mas que, dado as promessas de espancamento, não mais o fariam, e ameaça José Corrêa de que procederão da mesma forma caso este um dia fosse até Lisboa107.

Aparece, então, novo volume dos Farpões, rebatendo o artigo de Ramalho e uma carta endereçada a José Corrêa por alguém que se diz português, de nome Honório Pinto Carreira (provavelmente um pseudônimo parodiando o nome do editor dos Farpões. Paulo Cavalcanti considera a hipótese de ter sido Eça o autor da carta).

Para atacar Eça e Ramalho, o pernambucano insiste no gosto com que o “cipó” brasileiro foi apreciado pelos dois editores e afirma que a ameaça não foi para eles, mas que se eles apreciam tanto o açoite deveriam se entender com seus patrícios, que “são mestres no exercício do azorrague”, referindo-se aos conflitos de 1817; e prossegue o pernambucano dessa maneira: “Não devem os senhores ignorar que, em 1817, além dos brasileiros assassinados e escravizados, muitos outros foram açoitados à grade de cadeia. Já vendo os senhores quem são os verdadeiros e inimitáveis meneadores de qualquer látego”108.

Em seguida, o editor ocupa-se da carta do lisboeta Honório, escrita em tons de ofensa, de tal maneira virulenta que o pernambucano não a publicou na íntegra, não sendo possível conhecê-la por completo. Nas partes publicadas, o português contesta a integridade das mulheres brasileiras, desdenha da vitória sobre o Paraguai (que ele afirma ter sido possível graças a um comandante português) e considera que o povo brasileiro é composto de mestiços e negros degenerados. A essas acusações José Corrêa responde também em linguagem dura e ofensiva, e conclui negando o heroísmo do povo 107 Ibidem. pp. 118-21. 108 Ibidem. p. 129.

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português, citando uma fala de Clemente Pereira, proferida durante a abertura do tribunal do Comércio da Corte do Brasil, em 1851:

Um número imenso de especuladores tão atrevidos como ignorantes apoderou-se do comércio. Quem não acha meios de vida na terra que o viu nascer, e muitos até foragidos por crimes de indústrias, vêm procurar fortuna no hospitaleiro Brasil, e a encontra, e todos sem capital próprio para arriscar, e até sem precedentes que os abonem, levantam aparentes casas de comércio, giram com grandes fundos de créditos, empreendem especulações temerárias, ostentam opulento tratamento, dissipam, roubam e ninguém lhes toma contas...109

Note-se mais uma vez a hostilidade contra os comerciantes lusos. A partir da publicação do segundo número dos Farpões os conflitos diretos entre brasileiros e portugueses estouram na cidade de Goiana, próximo ao Recife.

Goiana era naquele momento uma região bastante próspera, graças à produção açucareira, que alcançava bons preços no mercado internacional, com seus senhores ostentando grande luxo; na política, a predominância era do partido conservador, ainda que a cidade fosse reduto de um grande número de liberais. Culturalmente, é marcada por numerosos jornais, associações beneficentes, teatros, um Instituto Histórico e um Gabinete Português de Leitura e inúmeras bandas de músicas. O comércio de Goiana era fortemente dinâmico devido à circulação de capital proveniente do açúcar, ao seu porto fluvial, que ligava a cidade ao resto do nordeste, e a sua proximidade com o mar, três léguas. Contudo, essa intensa atividade comercial era dominada por portugueses, desde as grandes transações até o pequeno comércio, formando um bloco monopolista, que impedia a ascensão dos brasileiros, conforme já se disse110.

Goiana participou diretamente de diversas lutas ao longo do período colonial e também após a independência, como a expulsão dos holandeses, a Guerra dos Mascates, a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do equador de 1824 e a Revolução

109 Ibidem. p. 136. 110 Ibidem. pp. 139-44.

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Praieira de 1848111. Segundo a interpretação de Cavalcanti, a participação intensa nessas lutas pernambucanas criou um forte sentimento de nacionalidade nos habitantes de Goiana e por essa razão os escritos de Eça e Ramalho tiveram maior repercussão lá do que em outras regiões112.

A 30 de Julho de 1872 realizou-se um jantar em protesto contra as Farpas, organizando-se em seguida uma passeata pelas ruas da cidade, onde alguns participantes relembraram versos utilizados pelos portugueses para denegrir os brasileiros. Ao dia seguinte começaram as depredações dos estabelecimentos de lusitanos e os espancamentos dos mesmos com os cipós que José Soares recomendava para Eça e Ramalho. Durante uma semana prosseguiram os espancamentos e depredações, entoando-se os gritos de “mata-mata marinheiro”, recuperado de outro conflito entre brasileiros e portugueses: a Guerra dos Mascates.

Cavalcanti analisa também a resposta das Farpas aos acontecimentos de Goiana, atribuindo a Eça a “Carta ao presidente da província de Pernambuco”, artigo publicado no volume de Setembro de 1872. Essa carta não foi incluída na compilação Uma Campanha alegre, de 1891, e, segundo Cavalcanti, nem na dos textos de Ramalho. Como é sabido que Eça refez boa parte dos textos originais e suprimiu outros e que Ramalho manteve os seus inalterados, o crítico pernambucano chega à conclusão que essa carta e o artigo sobre o “Barão de Minhinhonhá”, de fevereiro do mesmo ano, são de autoria de Eça.

Mesmo demonstrando através de extensa análise que os dois textos são do escritor dos Maias, João Medina afirma em seu livro Eça de Queirós, antibrasileiro que 111 Paulo Cavalcanti diz que Goiana foi responsável pela deposição do presidente Luis do Rego e a eleição da Junta Constitucional no princípio da década de 1820. Afirma também que essa foi a primeira Junta constituída no Brasil, porém Márcia Berbel afirma que a primeira Junta constituída foi a do Pará, e que a Junta pernambucana se organizou por iniciativa do presidente Luis do Rego. BERBEL, Márcia Regina. A Nação Como Artefato. Deputados do Brasil nas Cortes portuguesas (1821-1822). São Paulo: Ed. Hucitec, 1999. pp. 57 e 61. 112 Ibidem. p. 146.

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Cavalcanti se equivocou e “esqueceu” de verificar o volume XIII da compilação dos textos de Ramalho, constando lá esse artigo113. Na mesma obra, o autor atribui o texto sobre o Barão de Minhinhonhá a Ramalho114. Beatriz Berrini, nas obras completas de Eça de Queiroz, reabilita-o, colocando-o como uma introdução ao “Brasileiro”115, porém deixa de fora a carta acima referida.

. Heitor Lyra, na obra O Brasil na vida de Eça de Queiroz, considera que a carta foi redigida por Eça, mas que o texto sobre o “Barão de Minhinhonhá” é de Ramalho; João Alves das Neves afirma que a carta pertence mesmo a Eça, não se pronunciando acerca do outro artigo116. Permanece, portanto, a dúvida sobre sua autoria, o que apesar de tudo não invalida o argumento do autor, uma vez que sendo co-editores Eça e Ramalho acordavam sobre o que publicar.

De qualquer forma, a resposta das Farpas aos conflitos em Pernambuco é veemente, e pondera sobre suas verdadeiras causas. Considera improvável que um povo se levante contra páginas de literatura, sobretudo Pernambuco e o Brasil, “massa plebéia [que] só se agita sob a aguda solicitação do juro e da agiotagem”117. Defende que o “brasileiro detesta o português”, pois, pela sua superioridade e inteligência, este domina o comércio brasileiro, e se eles se riem dos brasileiros, a sátira é justa, uma vez que os brasileiros dão aos portugueses “nomes injuriantes, os murros, os pesados fardos às costas, a ofensa e o desdém”. Com o sempre presente humor das Farpas, exigem que não sejam tomados pro pretexto de disputas comerciais:

Sr. Presidente, nós não consentimos que Pernambuco nos tome para pretexto. Nós somos sempre causa. Repelimos o emprego subalterno e humilhante de pretexto. Além disso, sr. Presidente, que se massacre uma colônia de portugueses em virtude das Farpas, bem; mas que se atribuam às Farpas massacres que lhes não pertencem, que

113 MEDINA, J. Op. Cit. p. 83. 114 Ibidem. p. 64. 115 EÇA DE QUEIROZ. Obras Completas. V. 3. p. 909. 116 NEVES, J. A. “As paginas ‘brasileiras’ de Eça de Queirós”. In: MINÉ, E. 150 anos com Eça de Queirós. Anais do III encontro internacional de queirosianos. pp. 250-261. 117 CAVALCANTI, P. Op. Cit. p. 348.

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se não originaram delas, de que são apenas o indistinto pretexto – isso não!...Nós não somos os testas de ferro da degolação dos inocentes... Ainda segundo Cavalcanti, os contemporâneos conseguiram discernir as

manifestações contrárias ou favoráveis aos artigos das farpas como manifestações de caráter social, o domínio dos negociantes lusos, e também político, estreitamente vinculadas às disputas entre liberais, conservadores e republicanos; um correspondente do Jornal do Recife, rebatendo a interpretação conservadora do jornal A Nação, do Rio de Janeiro, escreveu:

Diga-se que As Farpas exacerbaram velhos preconceitos de nacionalidade; diga-se que a concorrência do comerciante português desagrada à maioria dos comerciantes brasileiros de Goiana; diga-se que homens odientos e vingativos exploram a credulidade e exaltação de gente “pouco pensante”, para satisfazer, a salvo de qualquer responsabilidade, suas mesquinhas vinganças; diga-se tudo quanto quiser, mas não se diga que a causa das violências exercidas contra os portugueses residentes em Goiana, o “casus belli”, foi a inofensiva passeata de 30 de Julho.118 Também no Jornal do Recife, o jornalista goianense Romualdo Alves de

Oliveira (nos anos seguintes ele será responsável pela publicação do jornal O Comércio a Retalho, importante órgão de defesa das posições dos “patriotas”, intenção que já se anuncia no próprio nome da publicação) questiona se alguém, aproveitando-se do clima de revolta decorrente das Farpas, “explorando essa mina de combustíveis, não procurasse lançar-lhe fogo”119. Evidencia-se aqui as diferentes interpretações do conflito, que será usado por liberais e conservadores num período próximo a eleições como “pretexto para alargar velhos ressentimentos, cada grupo procurando colocar-se da melhor maneira diante da população e do eleitorado”120. Os conservadores, por exemplo, partidários do Barão de Goiana, afirmavam através dos jornais que este agira imediatamente para encerrar os conflitos, já os liberais noticiavam que o mesmo Barão refugiara-se em seu engenho até acalmar-se a revolta. Portanto, não podemos imaginar 118 Ibidem. p. 166. 119 Ibidem. p. 163. 120 Ibidem. p. 172.

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que os escritos de Eça (e de Ramalho) sejam a causa única da revolta em Goiana, o conflito entre imigrantes abastados e nacionais empobrecidos teve fundamentação econômica, política e histórica; a recuperação dos conflitos coloniais, tanto nos jornais quanto nos embates de rua, a participação de lideres liberais, inclusive senhores, denota a ação e a manipulação política de relações historicamente tensas. Situação que fica ainda mais evidente se considerarmos a recepção aos textos de Eça sobre a viagem do Imperador D. Pedro II à Europa e ao Oriente ao longo do ano de 1871.

Paulo Cavalcanti organiza seu texto de modo a primeiro apresentar a recepção dos artigos das Farpas sobre o Imperador e depois sobre o brasileiro. A impressão que temos é que essa é a ordem em que os textos foram divulgados em Pernambuco, porém ambos são da edição de fevereiro de 1872. O título completo dos Farpões pode dar a pista sobre isso: José Soares responde aos autores dos Fastos da peregrinação de S. M. o Imperador do Brasil pelo Reino de Portugal. Por esse título ficaram conhecidos os artigos de Eça sobre D. Pedro II, fruto de uma republicação ilegal das Farpas em Pernambuco. Além dos Fastos, as Farpas sofrerão a concorrência de uma outra republicação ilegal, que assume o título original e também se faz circular pela província.

A esses “roubos” de seus direitos autorais os escritores portugueses se manifestarão na edição de abril das Farpas, onde atacarão os editores pernambucanos, o jornal O Movimento, de Silvio Romero121, e também o jornal A República, dirigido por Quintino Bocaiúva, no Rio de Janeiro, que também publica as Farpas, mas alegando possuir a concessão dos autores. Eça e Ramalho negam veementemente que tenham concedido permissão a quem quer que seja, e ainda ridicularizam a ação da justiça brasileira pedindo ao imperador que, na impossibilidade de punir os responsáveis (“às 121 Paulo Cavalcanti transcreve o trecho do artigo em que aparece o Jornal de Silvio, que os haviam chamado de “moedeiros falsos”: “é bem achada e denota fina crítica. Efetivamente, desde o momento em que o jornalismo brasileiro se apropria do dinheiro bom que o nosso trabalho nos produz, é perfeitamente lógico supor ele que nós nos sustentamos com dinheiro falso. Ao Movimento”. Ibidem. p. 75.

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vezes é pior”) que converse amigavelmente com os “ladrões” e os convença a deixar os escritores portugueses de lado122.

Parece-me que são postos em circulação pela imprensa republicana brasileira principalmente os artigos que ridicularizam D. Pedro II, como forma de combate ao regime, a imprensa satírica e panfletária se apropria da produção de Eça e Ramalho para propagar seus ideais e deixa de lado o “brasileiro”, que será divulgado em menor escala, pelo menos a princípio, e terá repercussão mais lenta Isso explicaria a diferença entre a aclamação das Farpas, como produção anti-monárquica, num primeiro momento e a subseqüente revolta contra seus escritos. Essa abordagem reforça as teses do uso político das Farpas em Pernambuco e do caráter político da ação dos homens que participavam da efervescente imprensa brasileira da década de 1870.

Eça de Queiroz defende em seu artigo a visão da realidade tropical e mestiça como negativa. Sem dúvida, informado pela literatura dos viajantes do princípio do século ou então nos relatos de Agassiz e Gobineau. Teoricamente inspirado pelo mesmo Gobineau, Taine, sempre lembrado em seus escritos ou Buffon, e por tantos outros que viram a América como o lugar da degeneração do homem.

Eça se vê na obrigação de alterar seus textos depreciativos sobre os brasileiros em 1890, eliminando todas as ambigüidades sobre as quais estava fundamentado. Agora um consagrado escritor, que tem nos brasileiros boa parte, senão a maior, de seu público leitor, Eça tenta apagar a tensa, ainda que estreita, relação travada anteriormente com o Brasil. Ironicamente, esse público se forma após o sucesso d’O primo Basílio, romance onde mais uma vez o Brasil aparece entre coqueiros, mulatas e especulações financeiras.

122 Ibidem. pp. 71-78.

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Conclusão O confronto em Pernambuco nos revela uma dimensão importante do nosso

processo de apreensão da realidade: o plano do “real” é inundado pelo “imaginário”, por idéias pré-concebidas que mobilizamos para construir aquilo que entendemos do real. O real não existe por si só, ele é antes aquilo que dele dizemos, o que dele pensamos. Subverter padrões de representação implica em transformar o “real”. Ao mesmo tempo, o “real” condiciona as representações que fazemos dele, limitando as apreensões possíveis. O “real” e o “imaginário” convivem nessa relação tensa entre dentro e fora, é nesse “intervalo” que podemos compreender o mundo.

Os conflitos em Goiana nada têm de peleja literária, Eça e Ramalho o sabiam, são antes a defesa de disputas concretas, entre brasileiros e portugueses no plano econômico, entre liberais e conservadores no plano político, mas mobilizam imagens, representações, abstrações, do que é o brasileiro e do que é o português para articular suas lutas “reais” por melhores condições econômicas ou posições políticas.

Benedict Anderson afirma que o nacionalismo pôde se desenvolver graças à ação do “capitalismo impresso”, que contribuiu para desagregar os reinos dinásticos e as comunidades de caráter religioso (a idéia de uma “cristandade”, por exemplo) e para fortalecer as línguas vernáculas, regionais, além de influenciar na transformação da percepção do “tempo” (de uma concepção religiosa, onde o passado e o presente se confundem para uma percepção horizontal – homogênea, como diz Benjamin). Para Anderson, a nação é uma “comunidade política imaginada como, inerentemente, limitada e soberana”:

É imaginada porque mesmo os membros da menor nação não conhecerão jamais a maioria de seus compatriotas, não os verão nem ouvirão sequer falar deles, mas na mente de cada um vive a imagem de sua comunhão...

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A nação se imagina limitada porque mesmo a maior delas (...) tem fronteiras finitas, ainda que elásticas, além das quais se encontram outras nações... Se imagina soberana porque o conceito nasceu em uma época em que a Ilustração e a Revolução estavam destruindo o reino dinástico hierárquico, divinamente ordenado... Por ultimo, se imagina como comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração que na prática podem prevalecer em cada caso, a nação se concebe sempre como um companheirismo profundo, horizontal.123

Procurei demonstrar como a apropriação dos debates científicos do século XIX por intelectuais brasileiros e portugueses de maneiras distintas e o “virtual” confronto entre as duas “gerações” de 1870, fez parte das lutas que ambas travaram contra o status quo (monárquico, agrário, romântico) de seus países, tentando estabelecer projetos nacionais até certo ponto semelhantes, tentando “re-imaginar” suas nações.

Portugueses e brasileiros se reconheciam como uma “comunidade”? Parece-me claro que não. As lutas nativistas sempre evocadas em Pernambuco e os freqüentes conflitos de nacionalidade no Rio de Janeiro, durante a República Velha124, comprovam-no Os di lá e os di cá reconheciam suas diferenças (políticas, econômicas, filosóficas, sociais, raciais) e o espaço próprio de cada um, mas é inegável a força política, econômica e cultural que os unem.

Também os unirá a desilusão de ver suas aspirações derrotadas duas décadas após bradarem pela regeneração nacional. Romero, que acreditava na mestiçagem como forma de elevar o Brasil à condição de civilizado, na virada do século se questiona sobre a viabilidade dessa proposta; se antes acreditava que em três ou quatro séculos a população seria homogênea, agora pensa ser necessário “seis ou oito” séculos, se não mais, para branquear o país. Eça, após o Ultimatum inglês de 1890, quando as esperanças de “regenerar” Portugal se tornam tão longínquas quanto a África que os

123 ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas. pp. 23-5. Grifos do autor. 124 Para maiores informações ver RIBEIRO, Gladys Sabina. Mata galegos: os portugueses e os conflitos de trabalho na república velha. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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ingleses naquele momento usurpavam, reúne-se com os amigos e formam o “grupo jantante” Vencidos da Vida.

Porém, o maior exemplo essa desilusão sem duvida será Antero de Quental; intelectual ativo e combatente desde os tempos da faculdade, que percebendo a impossibilidade de transformar seu mundo se retira dele, voluntariamente. Se esses intelectuais eram, simultaneamente, homens de letras e de lutas, desde os estertores do século XIX a ação política do letrado tem sido progressivamente diminuída e dificultada. Hoje, talvez mais do que nunca, entendemos a idéia por trás dos Vencidos da Vida: se não nos foi possível transformar nosso mundo, que possamos, ao menos, jantar com dignidade.

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