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Mateus Campos Gonçalves da Silva
“Salve, simpatia”
fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor
Dissertação de mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras do Centro de Tecnologia e Ciências Humanas da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz
Rio de Janeiro Abril de 2020
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Mateus Campos Gonçalves da Silva
“Salve, simpatia”
fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo.
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz
Orientador Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Maria Clara Lucchetti Bingemer PUC-Rio
Prof. Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira
UFRJ
Rio de Janeiro, 12 de junho de 2020
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Silva, Mateus Campos Gonçalves da
Salve, simpatia : fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor / Mateus Campos Gonçalves da Silva ; orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz. – 2020.
105 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2020.
Inclui bibliografia
1. Letras – Teses. 2. Música Popular Brasileira. 3. Jorge Ben Jor. 4. Fé. 5. Sincretismo. 6. Catolicismo popular. I. Diniz, Júlio Cesar Valladão. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
CDD: 800
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho
sem autorização da universidade, da autora e do orientador.
Mateus Campos Gonçalves da Silva
Graduou-se em Jornalismo na PUC-Rio em 2014. Atua desde então como repórter
cultural, com especialidade em música e literatura. Como pesquisador da área de
Letras, concentra-se no estudo da canção popular e de suas ramificações na
cultura brasileira.
Ficha Catalográfica
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Para Guida e Dedé (in memoriam),
que me incentivaram a descobrir
novos mundos…
… e para Ananda Porto, felicidade
suprema que me trouxe são e salvo
até aqui.
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Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
pela bolsa concedida durante um ano de trabalho. Agradeço sobretudo ao corpo de
servidores da entidade, que entende e valoriza a importância da pesquisa no
Brasil. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001
A Júlio Diniz, meu orientador, pela paciência e generosidade com que conduziu
este processo.
A todos os demais professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em
Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Em especial, a Frederico
Coelho e Miguel Jost, que também contribuíram de maneira fundamental para a
pesquisa.
A Diuner Mello, tio querido, cuja dedicação como pesquisador me serviu de
exemplo e inspiração.
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Resumo
Silva, Mateus Campos Gonçalves da.“Salve Simpatia”: fé e sincretismo
na lira de Jorge Ben Jor. Rio de Janeiro, 2020. 109p. Dissertação de
Mestrado - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Esta dissertação de mestrado se insere no campo de reflexão sobre música
popular brasileira desenvolvido dentro dos estudos de literatura e examina a
produção poética do cantor e guitarrista carioca Jorge Ben Jor. A pesquisa parte
hipóteses teóricas contidas em textos de autores como Paulo da Costa e Silva e
Luiz Tatit para, com o auxílio de indícios fornecidos pelo próprio artista em
entrevistas, iluminar caminhos menos percorridos por leitores críticos do seu
trabalho. Por isso, encara com atenção a influência da religiosidade e, sobretudo,
da fé na sua escrita. Ao longo de uma prolífica carreira, que já dura mais de cinco
décadas, compreende 27 álbuns de estúdio, e registra incontáveis canções de
sucesso no Brasil e no exterior, o autor explorou por diversas vezes temáticas
como o catolicismo popular, religiões de matriz africana e até os saberes
alquímicos. Ao cantar a história e os feitos de santos e orixás como São Jorge e
Ogum, figuras pelas quais nutre uma desmedida admiração, o artista reverbera
princípios e convicções que estruturam e marcam toda a sua obra e – ao mesmo
tempo – sintetiza, de maneira bastante particular, elementos do sincretismo
religioso que existe no país.
Palavras-chave
Música Popular Brasileira; Jorge Ben Jor; Fé; Sincretismo; Catolicismo
popular; Umbanda; Alquimia.
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Abstract
Silva, Mateus Campos Gonçalves da.“Salve Simpatia”: fé e sincretismo
na lira de Jorge Ben Jor. Rio de Janeiro, 2020. 109p. Dissertação de
Mestrado - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
This study is affiliated to the Brazilian popular music research field
developed within the Literature community and examines the poetic production of
the singer and guitarist from Rio de Janeiro Jorge Ben Jor. The research starts
with theoretical hypotheses contained in texts by authors such as Paulo da Costa e
Silva and Luiz Tatit and tries to illuminate paths less traveled by critical readers of
Ben Jor's work. The text focus is the influence of religiosity and faith in his
writing. Throughout a prolific career, which has lasted more than five decades and
comprises 27 studio albums, the author has explored several themes such as
popular Catholicism, religions of African origin and even the alchemical
knowledge. When singing the history and the deeds of saints and orixás such as
São Jorge and Ogum, for whom he nurtures an immense admiration, the artist
reverberates principles and convictions that structure and mark all his work and
synthesizes, in a very particular way, elements of religious syncretism that exist in
his home country.
Keywords
Brazilian music; Jorge Ben Jor; Faith; Syncretism; Popular catholicism;
Umbanda; Alchemy.
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Sumário
1. Introdução 11
2.
As roupas e as armas de Jorges
30
3.
‘Católico apostólico carioca’
48
4.
Ponta de lança africano
65
5.
A fórmula alquímica da canção imperecível
78
6.
Considerações finais: O dia em que o Sol declarou seu amor
pela Terra
95
7. Referências bibliográficas 103
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Lista de Figuras
Figura 1 - Silvia e Augusto Menezes, pais de Jorge Ben Jor, 1970 12
Figura 2 -
São Jorge e o dragão, de Rafael Sanzio. Óleo sobre madeira, circa 1505
35
Figura 3 -
Capa do disco 23, lançado por Jorge Ben Jor em 1993
39
Figura 4 -
Ben Jor apresenta “Charles anjo 45” no IV Festival Internacional da Canção, 1969
59
Figura 5 -
Ben Jor desfila no Salgueiro com o enredo “Festa para um rei negro”, 1971
71
Figura 6 -
Anjos instrumentistas na fachada de Nicolas Flamel em Paris
79
Figura 7 -
Anjos instrumentistas na fachada de Nicolas Flamel em Paris
79
Figura 8 -
Ben Jor e o Trio Mocotó em 1971
97
10
“Parece banal escrita
Mas é viceral cantada
A palavra cantada
Não é a palavra falada
Nem a palavra escrita
A altura a intensidade a duração a
posição
Da palavra no espaço musical
A voz e o mood mudam tudo
A palavra-canto
É outra coisa”
Augusto de Campos
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Introdução
Em suma, a história do pensamento, dos
conhecimentos, da filosofia, da literatura,
parece multiplicar as rupturas e buscar
todas as perturbações da continuidade,
enquanto a história propriamente dita, a
história pura e simplesmente, parece
apagar, em benefício das estruturas fixas,
a irrupção dos acontecimentos.
(FOUCAULT, 2008, p. 6)
Esta é uma história que, como tantas outras, começa com a irrupção de um
acontecimento: João Gilberto. O baiano de Juazeiro, dono de um violão
sincopado, cuja caixa de ressonância parecia conter um conjunto completo de
samba, e de uma voz contida, que suavemente desenhava melodias de amor e dor,
sacudiu as estruturas um pouco antiquadas do edifício da Música Popular
Brasileira quando, em agosto de 1958, lançou “Chega de Saudade” e se mudou
para o primeiro andar. Dependendo do ângulo em que era observado pela janela
da crítica especializada, João Gilberto podia parecer tanto o herdeiro de uma
antiga tradição brasileira, que remetia a Caymmi, quanto um inovador singular,
elemento novo que não se parecia em nada com aquilo que fazia sucesso.
Mais do que o ponto de partida para aquilo que se convencionou chamar
de bossa-nova, a aparição de João no cenário artístico brasileiro foi responsável
por seduzir dezenas de jovens músicos que, através das ondas do rádio, foram
impactados pelos aspectos modernos do seu estilo. Anos mais tarde, ainda sob
efeito deste primeiro contato com o som de João, sopa primordial que ainda
alimenta a força criativa de incontáveis cantores e violonistas mundo afora, estes
nomes floresceram no cenário musical do país, contribuindo com as suas próprias
interpretações do estilo do mestre. É o caso de Jorge Ben Jor, o objeto deste
trabalho.
De Beth Carvalho a Baby do Brasil, de Caetano Veloso a Roberto Carlos,
diferentes figuras que surgiram a partir dos anos 1960 admitiram o peso do
violonista baiano durante a sua formação. Em algum lugar entre o Rio Comprido e
Copacabana, aos 16 anos, Jorge Duílio Lima Meneses ouviu a letra de Tom Jobim
e Vinicius de Moraes embalada pelo violão de João Gilberto e teve certeza de que
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precisava fazer parte daquele universo. Conforme entrevista concedida ao Roda
Viva, da TV Cultura, em 1995, Jorge Ben Jor revelou a sua mais profunda
admiração pelo homem que moldou a bossa-nova de acordo com sua imagem e
semelhança:
Eu comecei, posso dizer, eu ouvi muita bossa-nova, mas uma
pessoa só: João Gilberto. João Gilberto foi meu ídolo. Ainda é,
pela maneira de tocar, tão coloquial, da divisão de cantar e tocar
o violão, ele já era bossa-nova. Nunca ninguém tocou igual a
ele, ninguém. João Gilberto, ele é a bossa-nova. Ele é
totalmente diferente de todos da bossa-nova. A bossa-nova veio
depois, naquele "oba-oba" em cima, mas bossa nova é João
Gilberto. E é o estilo que eu sempre gostei, foi o do João
Gilberto (BEN JOR, 1995)
Assim como a chegada de João balançou as estruturas fixas da MPB cinco
anos antes, a ascensão de Ben Jor, também ele dono de um jeito muito próprio de
atacar as cordas de um violão, com Samba Esquema Novo (1963), representa um
dos mais significativos pontos de inflexão no curso da canção brasileira até então.
Assim como o “ídolo”, que apesar de ter ajudado a dar forma a bossa-nova
sempre se considerou antes de tudo um sambista, o pupilo jamais fez questão de
se encaixar em um movimento específico, transitando livremente por onde quer
que fosse bem recebido. Livre, absorveu o que cada um oferecia de melhor e
integrou de maneira muito natural ao seu estilo pessoal.
Em Noites tropicais (MOTTA, 2000, p. 97), o jornalista e produtor
musical Nelson Motta conta que, no fim dos anos 1960, os artistas brasileiros
estavam divididos entre a “música jovem” e “a música brasileira”. Cada um
desses segmentos tinha um programa na TV Record para chamar de seu: os
“jovens” se aglutinavam em torno do “Jovem Guarda”, capitaneado pelo “iê-iê-iê”
de Roberto, Erasmo Carlos e Wanderléa. Os “brasileiros”, por sua vez, tinham em
“O Fino da Bossa”, de Elis Regina e Jair Rodrigues, o seu ponto de referência.
A música de Ben Jor não cabia nessa dicotomia e não se adequava às
pretensões da maioria de seus pares. Jorge era, ao mesmo, tempo jovem e
brasileiro. Por conta disso, fez questão de aceitar os convites de ambos os lados
para se apresentar nesses programas. Motta explica que a performance do cantor
nos dois extremos da música nacional da época desagradou a turma do “Fino da
Bossa”, que exigiu que ele aderisse apenas a um dos programas.
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Foi o primeiro tiro de uma guerra musical e mercadológica (e
até mesmo política, para alguns mais inflamados) entre “Jovem
guarda” e “O fino” (...) Além de ter se apresentado no programa
do “inimigo”, Jorge agora tocava uma guitarra elétrica — uma
afrontosa provocação para as brigadas da “autêntica” música
brasileira, que seria acústica pela própria natureza, simbolizada
pelo violão (...) (MOTTA, 2000, p. 97).
A celeuma com “O Fino” gerou uma singular declaração de
independência, registrada no disco O Bidu (Silêncio no Brooklin), de 1967, em
que ele é acompanhado pelo grupo de rock The Fevers. Jorge apresentou a
“Jovem Samba”, cujo título une a juventude por um lado e as raízes da música
nacional por outro. “Eu sou da jovem samba/ A minha linha é de bamba/ O meu
caso é viver bem/ Com todo mundo e com você também”, cantou. Para o
historiador Renato Santoro Rezende (2012, p. 33), na canção “pode-se ver como o
compositor não apenas afirma a sua maneira particular de fazer música —
misturando samba com o rock da Jovem Guarda — como também demonstra a
sua intenção de poder fazer parte e ser aceito por esses dois universos”. Ele afirma
também que a canção soa como uma resposta ao preconceito que o compositor
sofreu na época. Em Roberto Carlos em detalhes (ARAÚJO, 2006, p. 230), o
jornalista Paulo Cesar de Araújo registra a posição de Ben Jor quanto à polêmica:
“Sofro gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba, a turma do
samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas
composições para o público que eu quiser, junto com os cantores que quiser e
acompanhado pelo instrumento que me for mais conveniente”.
Ben Jor foi capaz de manter o olho fixo em seu tempo e perceber que as
fronteiras que dividiam a MPB e os ritmos estrangeiros eram finas e frágeis. Seu
jeito percussivo (e autodidata) de tocar violão já mostrava que ele não tinha
respeito pelas regras formais que faziam a cabeça de alguns. Era evidente que,
para ele, a guitarra elétrica era um mero instrumento a serviço de uma
inventividade genuinamente brasileira. Na solução encontrada pelo “menino de
mentalidade mediana” para a querela entre o nacional e o estrangeiro,
manifestaram-se claramente no espírito criativo de Ben Jor elementos
estruturantes de toda sua concepção artística: a capacidade de se relacionar de
maneira sincrética com ideias aparentemente opostas e a sua jornada em busca de
uma síntese perfeita entre elementos aparentemente tão distintos quanto o chumbo
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e o ouro. Era seu modo de ser no Mundo. Atitude que um coração modernista
poderia chamar de antropofágica, mas que na verdade era sincrética.
Figura 1 – Silvia e Augusto Menezes, pais de Jorge Ben Jor, 1970
Fonte: Agência O Globo
Filho de Augusto Meneses, estivador durante o ano e pandeirista do bloco
Cometas do Bispo nos carnavais, e da dona de casa de origem etíope Silvia Saint
Ben Lima, Ben Jor nasceu em 22 de março de 1942, embora – nas últimas
décadas – tenha passado a declarar ter nascido três anos mais tarde. Seu coração
esteve próximo da música desde o princípio. Aos 13 anos, já tocava pandeiro,
surdo e tamborim no bloco fundado pelo pai. Aos 15, cantava no coro da igreja do
Seminário São José. Aos 18 anos, quando servia o Exército, ganhou da mãe um
violão para lhe fazer companhia. Desenvolveu seu jeito percussivo de tocar as
cordas do violão a partir deste manual, que veio junto com o instrumento. Anos
mais tarde, a matriarca seria homenageada pelo filho com o instrumento que o
presenteara anos antes com “Silvia Lenheira”, a “rainha da casa cor de rosa”.
Sozinho, Ben Jor criou uma revolucionária “puxada” que repercutiu entre
músicos e admiradores da música popular. Na juventude, conviveu com Erasmo
Carlos e Tim Maia e fez parte da grande turma roqueira que circulava pela Tijuca.
Criado no Riachuelo, dividia seu tempo entre o bairro da Zona Norte carioca e a
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praia de Copacabana. Foi descoberto em 1962 por um executivo da Phillips
quando se apresentava no Beco das Garrafas, no bairro da Zona Sul, espaço onde
teve contato com experientes músicos do jazz, como o lendário baterista Dom Um
Romão e o saxofonista Meirelles. Ao Pasquim, em 1969, relembrou:
Eu faço música só de há seis anos pra cá. Eu já comecei como
profissional. Uma vez, eu fui ao show dos Cariocas no Beco das
Garrafas e, então, quem tocava lá eram os Copa 5, conjunto do
Meirelles. Quem tocava nos Copa 5 era o Gusmão, o
contrabaixista, que me conhecia da praia e sabia que ele tocava
violão e tinha algumas composições. Um dia, acabou o show e
não tinha ninguém lá. “Dá uma canja aí, canta uma daquelas das
tuas músicas” – ele disse. Eu cantei, só tinha um cara dentro da
boate: era o João Melo que era diretor da Phillips. A música era
a “Mas que Nada”. Aí ele falou comigo se eu não queria fazer
um teste na Phillips. Eu nem fui porque pensei que era grupo,
nem conhecia o cara. (…) Mas depois, quinze dias depois, ele
voltou, nós acertamos tudo e eu fiz meu primeiro disco na
Phillips, um compacto. (BEN JOR, 1969)
O primeiro registro fonográfico de Ben Jor é a sua participação, em 1962,
no disco de Zé Maria e seu Órgão (Continental). Ele cantou "Mas que nada", cuja
boa recepção deu combustível para a gravação de seu primeiro compacto e,
posteriormente, do primeiro LP já pela Phillips no ano seguinte. Ben Jor recebeu
uma bolsa do Itamaraty para excursionar nos EUA, e por isso gravou três discos
em tempo curtíssimo para cumprir com a gravadora o contrato e seguir viagem
para o país do blues. Apresentou-se junto a Sérgio Mendes em clubes, boates e
universidades. Pouco tempo depois, já com o conjunto Brazil 66, Mendes
transformou “Mas que nada” em um sucesso global. Jorge já não estava mais lá: a
saudade o trouxe de volta ao Brasil – sob efeito da contracultura negra dos EUA.
Aqui, experimentou momentos de ostracismo e de sucesso. Foi assim na cisão
entre o Fino da Bossa e a Jovem Guarda, durante a Tropicália; durante a “fase
alquímica”, nos anos 1970; com a Banda do Zé Pretinho, na década seguinte; e na
volta triunfal comercial com “W/Brasil”, nos anos 1990.
Antes de prosseguir, cabe aqui uma breve explicação onomástica. Apesar
de o artista ter se apresentado durante boa parte de sua carreira com o nome
artístico de Jorge Ben (de “Samba esquema novo”, de 1963, até “Ben Brasil”, de
1986), esta pesquisa optou por chamá-lo sempre pela alcunha que ele mesmo
adotou a partir da sua estreia na Warner Music em 1989: Jorge Ben Jor. Esta
escolha se deu unicamente pela necessidade de padronização no texto, já que usar
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Ben e Ben Jor poderia confundir leitores neófitos, e respeita a decisão do artista
na condução de sua obra.
A escolha da lira de Ben Jor como o centro gravitacional desta dissertação
no Departamento de Letras se deu por dois motivos. O primeiro, por certo, é a
vontade de contribuir com mais um elemento para a fortuna crítica do autor no
campo acadêmico. Notadamente, se destacam trabalhos como o de Paulo da Costa
e Silva (2014), com A Tábua de Esmeralda e a pequena Renascença de Jorge
Ben, e o de Luiz Tatit (2002), em O Cancionista: Composição de Canções no
Brasil, que dedica um capítulo somente ao trabalho de Ben Jor.
Alexandre Reis dos Santos e Renato Santoro Rezende também fizeram
fundamentais contribuições para a compreensão das relações raciais na obra de
Ben Jor nas dissertações de mestrado 'Eu quero ver quando Zumbi chegar':
Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976) e Jorge
Ben: um negro na MPB nas décadas de 1960-1970. Natália Parreiras, por sua vez,
ofereceu uma visão singular das interseções entre a lira benjoriana e a filosofia de
Santo Tomás de Aquino em A Alquimia da Potência: O estofo filosófico Tomista
na obra de Jorge Ben Jor, monografia para pós-graduação em Letras na PUC-Rio.
Além das valiosas contribuições para a leitura da obra benjoriana dentro dos
muros da academia, a imprensa (artigos de Tárik de Souza e José Ramos
Tinhorão, sobretudo) e colegas artistas também ofereceram singulares
interpretações para o trabalho do músico carioca, como as de Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Jorge Mautner, que o enxerga como um dos exemplos mais
acabados para sua formulação sincrética - a amálgama.
O segundo, admito, é servir como uma tardia ironia aos críticos dos jornais
diários que, no princípio da carreira, costumavam inferiorizar as composições do
autor em detrimento da usina rítmica que era o seu violão. “Você (...) assiste a
Jorge Ben com raiva de o rapaz não ter encontrado um letrista à altura de suas
melodias. Sem exagero: Jorge Ben é, de fato, um ótimo melodista, com absoluto
senso de harmonia e ‘comunicabilidade’ musical. Mas deveria ser proibido pelos
amigos de fazer letras”, escreveu Sérgio Bittencourt no Correio da Manhã após
assistir a um show do compositor no Bottle's, em 1963. Equiparar a caneta ao
violão de Ben Jor foi, portanto, um dos elementos que nortearam o processo de
escritura desta dissertação nos últimos dois anos. Afinal, a mão que escreve é a
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mesma que percute o violão. Faz parte do corpo cuja voz melismática dá vida a
diferentes e coloridos personagens desde os idos da década de 1960.
É certo que Ben Jor jamais se esforçou para a formação de um arcabouço
teórico em torno de si. O artista nunca se preocupou em comentar aquilo que
compõe, nem em fornecer muitos detalhes sobre seu processo de formação
musical. Ao contrário dos seus contemporâneos mais celebrados, Ben Jor não quis
escrever livros ou publicar artigos em jornais e revistas para justificar ou passar
em revista a própria carreira. Ele se comunica com o mundo apenas através de sua
música. Chacrinha, um exímio vendedor do próprio peixe e do bacalhau dos
outros, sinalizou este entrave no fim dos anos 1960 em uma entrevista à edição de
número 21 de O Pasquim: "Jorge Ben, aliás, é um cara injustiçado: deveria ter
uma posição um milhão de vezes melhor. Mas ele próprio é o culpado porque ele
não se promove". (O Pasquim, 1969, ed. 21)
Fora do campo da canção, só é possível ter um vislumbre de suas ideias a
partir das entrevistas, que, segundo a lenda, reluta em conceder. Neste trabalho,
serão principalmente utilizadas as conversas que ele manteve com o O Pasquim,
em 1969 (edição número 14), e à TV Cultura, em 1995, além da conversa com o
repórter Pedro Alexandre Sanches na Revista Trip, em 2009. Nos três casos, ele
teve liberdade maior para desenvolver um raciocínio acerca do próprio trabalho.
Em diversos momentos durante esses encontros, o artista ofereceu os seus pontos
de vista sobre os interesses que me moveram para realizar essa pesquisa.
Ben Jor parece se divertir com as diferentes tentativas da crítica em ler o
seu jeito de se relacionar com a música. No já citado papo com O Pasquim em
1969, o jornalista Sérgio Cabral perguntou se o estilo pessoal era “racional” ou se
“simplesmente fez as músicas”, como se houvesse um limite claro entre uma coisa
e outra. Ele respondeu: “Eu fiz e saíram assim. Nunca achei que tivesse criado um
estilo pessoal. Há pouco tempo é que eu fui saber que tinha um estilo meu. Não
riam, é verdade. Eu fiquei surpreso. Uma vez, na TV Tupi, havia uma música
minha que ia ser cantada e, no arranjo da orquestra, estava escrito na partitura,
para todos os músicos: 'estilo Jorge Ben'. Foi há pouco tempo. Achei bacana” (O
Pasquim, 1969).
Tatit (2002, p. 213) o descreve como o jogador que “bate bem na bola de
primeira”: alguém que carrega um pensamento corporal inato que tanto produz
passes comuns ou lançamentos de mestre ao sabor da partida. Tárik de Souza
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(Jornal do Brasil, 1982) também recorre ao corpo para compará-lo com um
acrobata sem rede, que pode terminar o número ovacionado pela plateia ou
estatelado com as costas no chão. Já Costa e Silva (2014, p. 26) viu em Jorge o
antimétodo. O pesquisador também registrou, no áudio-documentário Imbatível
ao extremo – assim é Jorge Ben Jor! (2012), a opinião de Caetano Veloso sobre o
assunto. Em Verdade Tropical (VELOSO, 1997), o baiano havia sugerido que os
tropicalistas enxergavam em Ben Jor a resposta prática para todas as suas
construções teóricas: um tropicalista avant la lettre. Ao documentário de Costa e
Silva, Caetano disse: “É muito impressionante o modo como funciona a cabeça de
Jorge Ben. Ele não parece seguir nenhum método que impeça que as imagens
internas venham pra fora. É curioso isso, porque as letras dele são como monstros
de letras. Parece que ele escreve sem método, mas aquilo é o método dele. E
aquilo também é a necessidade de deixar virem as imagens internas. Aquilo tem
um caráter religioso, um pouco jungiano”.
Ben Jor costuma dizer que não se impõe regras: pode começar uma canção
tanto pela letra quanto pelo som. Quando começa pela letra, pode esculpir versos
mais longos (ou mais curtos) do que a frase musical pede. A resolução para esse
“problema” passa por sua capacidade vocal: Costa e Silva nota que ele pode
duplicar sílabas como em “Namorado da Viúva” (ou melhor, “Namo-mo-ra-ra-do
da Víuva”) ou encaixar as frases gigantes na melodia, como em “O Homem da
Gravata Florida”. Para Costa e Silva, Ben Jor “é um dos casos mais extremos de
compositores que têm por procedimento dominante partir da palavra escrita para a
música. E o fato singular é que não há qualquer ‘preparação’ do texto” (COSTA E
SILVA, 2014, p. 28) . As palavras se encantam e transformam-se em música.
Ben Jor também é conhecido por aproveitar de maneira singular e própria
textos de terceiros para compor, em um método que muitas vezes se aproxima dos
recortes antropofágicos dos idealizadores da Semana de 1922: já musicou quase
inteiramente sinopse de cinema enviada por Cacá Diegues (“Xica da Silva”),
tratados de teologia (“Assim falou Santo Tomás de Aquino”) e alquimia (“Hermes
Trismegisto Escreveu”). Além disso, enumerou títulos de livros de Dostoiévski
(“As rosas eram todas amarelas”) e já foi acusado de plágio por pegar
emprestados dois versos de Victor Hugo. O compositor de “O vendedor de
bananas” e “O circo chegou” também é um experimentado observador do
cotidiano. Na entrevista concedida à TV Cultura em 1995, ele recorda o início da
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sua relação com o universo da música e descortina um pouco da filosofia que
envolve o seu processo de escritura:
Eu tenho muitas letras. Eu vou escrevendo muito. Por exemplo,
aqui hoje eu posso descrever, modéstia à parte, eu posso chegar
em casa e descrever o Roda Viva. (...) Eu desde os treze anos,
treze, quatorze anos, eu fiz seminário menor. Tinha aulas de
canto, de teclado, órgão, já sabia isso tudo. Porque se cantava
muito no coral gregoriano. Isso tudo misturou com o que eu
ouvia fora, quando eu passava as férias. Eu ouvia desde samba,
desde rock e de música brasileira, que meus pais tinham em
casa, que gostavam. Isso tudo foi misturando, até que, com essa
idade, eu já fazia minhas letras. Na escola, eu sempre escrevi
muito. Modéstia à parte, eu sempre fui bom. Escrevia grandes
redações, escrevia coisas que eu gostava. E aí depois eu passei a
cantarolar essas coisas todas. (BEN JOR, 1995)
Como é impossível (e contraproducente) tentar exaurir a totalidade da
produção literária de um autor em uma modesta dissertação de mestrado, este
trabalho irá se concentrar em apenas um dos diferentes aspectos que desaguam no
cancioneiro de Ben Jor. Regularmente, algo emerge de maneira muito evidente
nas letras de Ben Jor: a fé. A capacidade de ter esperança e acreditar em algo é
recorrente nas suas letras. Costa e Silva (2014, p. 19) reconhece tamanha crença
religiosa e sugere que o imaginário do compositor “parece remeter ao próprio
homem medieval”: “Trata-se de um imaginário marcado por uma capacidade de
crer nas coisas que é desconcertante para o espírito cético de nosso tempo. É como
se o inconsciente vivesse livre de qualquer tipo de censura”. Algumas páginas
adiante, o crítico esclarece:
Devo logo esclarecer o óbvio: que Jorge Ben evidentemente não
é um homem medieval. Há, contudo, algo no seu jeito de se
aproximar da música, na livre vazão que ele concede ao
imaginário, no modo como embaralha consciente e
inconsciente, que sugere um contato duradouro com essas
figuras do medievo. A identificação mística que experimenta
em relação ao santo guerreiro com seu nome (São Jorge), a
relação apaixonada que desde cedo manteve com os tratados de
alquimia, a mitologia que cerca a filosofia hermética e as
biografias de seus protagonistas (Hermes Trismegisto, São
Tomás de Aquino e Paracelso), o estudo de harmonias
renascentistas são ainda alguns dos indícios que permitem
seguir essa trilha. Talvez essas figuras não sejam apenas
presenças superficiais em suas músicas, palavras e nomes
evocados por uma inusitada qualidade de exotismo. O interesse
de Jorge nesses assuntos é cercado não apenas por uma vontade
de compreensão distanciada, mas por uma crença na
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importância e na realidade deles; por um sentimento de
afinidade. (COSTA E SILVA, 2014, p. 58)
É difícil imaginar que o autor de tantas músicas de amor tenha um dia,
mesmo que nos primeiros momentos de sua adolescência, considerado renunciar a
todas as suas musas para se tornar um padre da Igreja Católica, nos bancos do
Seminário São José, do Riachuelo. Mesmo que tenha abandonado este projeto
mais tarde em detrimento da música, a habilidade para construir discursos
religiosos e para encantar a palavra prevaleceu na lira de Ben Jor ao longo da sua
carreira.
Para me acompanhar nesta jornada teórica por temas tão distintos e
complexos como alquimia, axé e o catolicismo popular, tentei ser tão eclético nas
escolhas bibliográficas quanto Ben Jor. A psicologia analítica de Carl G. Jung
oferece explicações muito interessantes sobre o simbolismo envolvido no
pensamento dos antigos filósofos. Os textos do sociólogo Reginaldo Prandi
ajudam a pintar um panorama muito rico sobre as tradições que envolvem as mais
proeminentes religiões afro do país. Com o historiador Luiz Antonio Simas,
percorro as encruzilhadas entre a fé afro-ameríndia e o catolicismo popular
brasileiro, em especial na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde – por
um descuido geográfico – nasceu Jorge Ben Jor. E, por fim, Mircea Eliade oferece
um arguto comentário sobre a história das religiões e os mistérios alquímicos a
partir de uma perspectiva europeia. É possível utilizar uma acepção contida em
Eliade (2008) para descrever a maneira com que Jorge Ben Jor, em grande parte
de seu repertório, se relaciona com dimensões específicas da experiência religiosa
no mundo.
O leitor não tardará a dar-se conta de que o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história.
Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à
história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o
objeto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em
última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem
das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e,
consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a
todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis
da existência humana. (ELIADE, 2008, p. 20).
21
Em seu livro, Costa e Silva cita uma imagem criada por Gilberto Gil para
definir Ben Jor: um estuário onde diversos rios desembocam. Ao mesclar
elementos esotéricos com fundações das religiosidades afro-brasileiras e do
catolicismo popular, sua obra é um exemplo bem acabado do sincretismo religioso
que encontrou no Brasil um solo fértil para florescer. Nas suas canções, mistura a
fé católica - sua principal denominação, por sinal - com costumes da umbanda e
do candomblé e também com elementos místicos, notadamente a alquimia. Na
voz do artista carioca, São Jorge da Capadócia, Ogum e Hermes Trismegisto, o
faraó que lançou as bases da alquimia, se erguem em igual estatura, e convivem
em um diverso e colorido panteão. “Pois malandro pra ser malandro tem que ter
fé”, sintetiza em “Gimbo”, de “Sacundin Ben Samba” (1964).
Mas, como essa dissertação pretende mostrar, a fé do autor não se limita
aos muros dos templos erguidos pelas religiões estabelecidas. Em diversos
momentos do seu cancioneiro, o autor expressa fé na humanidade. Esse complexo
sistema interno de crenças se manifesta até quando vai se referir à ciência, como
ficará claro a partir do final dos anos 1960. A ciência aparece pela primeira vez de
maneira mais evidente em 1969, em Jorge Ben, disco de capa multicolorida que
mais se aproxima do tropicalismo. Nele, Ben Jor se mostra afetado pelos
desdobramentos da corrida espacial. “Quem me dera ser um ser intergalático”,
suspira em “Barbarella” para, duas faixas depois, vaticinar: “Depois que o
primeiro homem/ Maravilhosamente pisou na lua/ Eu me senti com direitos, com
princípios/ E dignidade de me libertar”. Coincidência ou não, a guinada espacial
de Ben Jor se dá justamente no momento em que ele mais se aproxima da
Tropicália. Ao se conectar com os anseios e projetos do núcleo baiano, Ben Jor
parece absorver certo espírito perquiridor que acompanhava os inquietos Caetano
Veloso e Gilberto Gil, enquanto eles recebiam de volta a conclusão sempre
particular sobre qualquer assunto do autor que um dia escreveria “Spyro Gyro
Story”.
Ao flexibilizar a linguagem, o tropicalismo injetou uma nova
rapidez na música brasileira. Era mais importante entrar no fluxo
do mundo do que ficar definindo se isso ou aquilo era ou não
música brasileira (o problema passa a ser, então, o de saber como
se dá essa entrada a partir de um lugar periférico). De algum modo,
Jorge já vinha fazendo isso. Seu álbum de 1969, Jorge Ben tocava
indiretamente em temas candentes na época: conquistas espaciais e
consciência racial, liberação feminina, violência e exclusão. Só que
22
aquilo que em Jorge Ben parecia ser uma decorrência normal de
sua imensa capacidade assimilativa – e que se realizava
intuitivamente –, para os tropicalistas tornou-se uma estratégia
consciente de atuação político-estética. (COSTA E SILVA, 2014,
p.86).
Particularmente no LP lançado em 1969, as descobertas científicas da
conquista espacial passam a ocupar lugar de destaque nas letras de Ben Jor. Os
resultados da corrida empreendida por Estados Unidos e União Soviética, que
culminaria com a chegada do homem à Lua, e as naves intergalácticas de
produções de ficção científica, como o filme Barbarella (1968), povoam seu
imaginário. Do livro Eram os deuses astronautas, de Erich von Däniken, saiu
"Errare humanum est", um dos destaques da A Tábua de Esmeralda, que revela
dúvidas e teorias sobre a vida nas estrelas.
Em “Charles Jr.”, canção do LP Força Bruta (1970), a letra diz: “Eu tenho
o pé, o amor e a fé/ No século XXI/ Onde as conquistas científicas, espaciais,
medicinais/ E a confraternização dos povos/ E a humildade de um Rei/ Serão as
armas da vitória/ Para a paz universal”. Ao contrário do que pode parecer, a
religiosidade de Ben Jor nas letras não se coloca em oposição ao conhecimento
científico, mas sim como camada justaposta. Costa e Silva (2014, p. 73) afirma
que as canções de Ben Jor “reverberam amplamente esse espírito de confiança na
humanidade e no milagre do indivíduo humano. Na capacidade obstinada de
superação dos obstáculos e de contínua afirmação da vida”. Fé na vida.
Desde que estreou em 1963 com o “samba de preto velho” de “Mas que
nada”, Ben Jor espalhou referências às divindades como Zambi, Ogum e Iansã em
diversos pontos de sua discografia. Não faltam exemplos: circulam pelo terreiro
do frontman da Banda do Zé Pretinho entidades como o “Cavaleiro do cavalo
imaculado”, “Maria Conga” e Pretos Velhos de toda sorte. Em “Na Bahia tem”,
ele faz uma de suas conhecidas enumerações enciclopédicas e cita ebós, abarás do
candomblé e também o Senhor do Bonfim. Também é digno de nota o álbum
Ogum Xangô, que gravou ao vivo em estúdio com Gilberto Gil. Este LP de 1975
registra uma interpretação vigorosa de “Filhos de Gandhi”, em que o canto de Ben
Jor emula um discurso religioso em um dialeto africano.
A conexão com a herança dos saberes e tradições religiosas vindos da
África é a primeira coisa a chamar atenção da crítica especializada nas resenhas de
Samba esquema Novo. Esta perspectiva, latente no som e nas letras, foi diversas
23
vezes rotulada com termos e expressões infelizes e redutoras. O próprio material
de divulgação da Phillips, assinado por Armando Pittigliani, fala em influência
“negroide” e “primitivismo” para promover o artista. Embora valorizado por esse
resgate, Ben Jor sentiu na pele o que é carregar consigo a herança africana na
sociedade brasileira. Depois de relatar um episódio de racismo vivido no colégio
durante a infância à equipe do jornal O Pasquim, ele revela ter sofrido também no
início da carreira: “O Armando Pittigliani me levou para um show no Iate Clube.
Os caras não me conheciam e quando eu fui entrar, um diretor me barrou. Eu fui
embora pra casa e depois foram lá me buscar. O Armando Pittigliani não sabia,
porque tinha entrado antes” (O Pasquim, 1969).
Parece evidente, no entanto, que a relação de Ben Jor com o continente
africano é, antes de tudo, corporal. Após investigar a origem da batida do violão
de Ben Jor, o historiador Luiz Antonio Simas, autor de inúmeros livros sobre as
tradições afro-ameríndias no Brasil, vaticina que a maneira que o compositor toca
o instrumento “bebe na fonte do agueré de Oxossi, um dos ritmos nobres – quase
digo o mais nobre – do candomblé de Ketu”. Para isso, ele compara a canção “Os
alquimistas estão chegando os alquimistas” com o toque de evocação aos deuses
da caça. No plano da palavra, alquimia. No plano do ritmo, candomblé:
Ben Jor percute o violão como se fosse o tambor tocando para
os deuses da caça: taque tataque tataque tataque tataquetatatá/
taque tataque tataque tataque tataquetatatá. A corrida no ritmo
ilustra que Oxossi, andando discretamente na floresta, viu a
caça! Não é samba, não é balanço, não é jongo, não é maracatu.
É tudo isso, mas é fundamentalmente o agueré que fundamenta
o babado. Ele mesmo, o aguerezão, base do toque de caixa da
Mocidade Independente de Padre Miguel, inspiração para o
toque da Portela e para o samba reggae baiano; a sublime
louvação ao caçador de uma flecha só. (SIMAS, 2016).
É difícil rastrear com exatidão as origens africanas da família de Ben Jor,
mas a principal narrativa dá conta de que seu avô era etíope e chegou ao Brasil de
navio, fugindo dos confrontos da Segunda Guerra Ítalo-Etíope (1935-36). Junto a
ele, estava Silvia, aos 13 anos. Frequentemente, nas letras, Ben Jor alude ao fato
de a mãe fazer parte de uma linhagem nobre em seu país natal. Ao louvar o país
de origem da família em "Selassie", Jorge valoriza, ao mesmo tempo, a religião e
a própria negritude: “Selassie/ Leão de Judá/ Descendente da negra rainha de
24
Sabá”. Santos (2014) dá um panorama da importância do país africano para o
imaginário dos negros das Américas. Segundo o autor:
No Brasil, e não só, a Etiópia era uma importante referência
positiva para os sujeitos negros, pois foi o único país africano
não envolvido no tráfico europeu de escravos e que em um
primeiro momento venceu o colonialismo. Em São Paulo, um
dos mais antigos órgãos da imprensa negra paulista foi O
Menelick, fundado em 1915, cujo nome era uma homenagem ao
imperador etíope que antecedeu Tafari Makonen. Este também
é um importante modelo para os sujeitos negros da diáspora. De
acordo com os ideais do pan-africanismo, formulados pelo
jamaicano Marcus Garvey, o povo da Etiópia era considerado
um povo eleito por Deus, por conta de crença de que descendem
da Rainha de Sabá, cuja ascendência remete a Com, e portanto,
ao Noé bíblico. O garveysmo, por volta de 1925, profetizava o
surgimento de um messias na Etiópia, que viria a salvar todo o
povo negro. Seus seguidores associaram esta figura a Haile
Selassie, quando este subiu ao trono em 1930. Destas
associações e rearticulações do garveysmo e dos princípios da
Igreja Ortodoxa Etíope surgiu o rastafarianismo, uma doutrina
filosófico-religiosa cujo principal personagem é o Ras Tafari.
(SANTOS, 2014, pp. 131-132)
Sincretizado com Ogum no Brasil, São Jorge ocupa lugar fundamental no
altar de Ben Jor, e serve como elemento de transição entre as temáticas das
religiões africanas e o catolicismo popular na obra do artista. A célebre oração ao
soldado romano que supera o dragão foi musicada na íntegra por ele em Solta o
Pavão (1975). O compositor não esconde o orgulho de carregar o mesmo nome do
Santo Guerreiro, que aparece de maneira recorrente em sua discografia. O
personagem do soldado romano que derrota o monstruoso dragão parece encarnar
valores muito caros - e também recorrentes - a sua escrita: coragem, sabedoria e
virtude, conforme nota Costa e Silva (2014).
O modelo exemplar de uma atitude baseada na coragem de
afirmar valores é sintetizado no ancestral arquétipo do herói.
Em "Domingo 23", a primeira aparição do Santo Guerreiro em
sua lira, Jorge começa descrevendo os imponentes apetrechos
de batalha – o cavalo branco, a "armadura e capa", a "espada
forjada em ouro" – para logo depois focar no "gesto nobre", no
"olhar sereno de cavalheiro, guerreiro e justiceiro". Conforme a
letra migra dos atributos materiais para as qualidade de ordem
espiritual, o canto se torna mais suave e sonhador, menos
combativo, a melodia ganhando contornos mais relaxados. Aos
poucos, um composto de virtudes e atributos físicos vai
definindo a figura do herói, que é finalmente qualificado como
"imbatível ao extremo", a maravilhosa, "hiper-hiperbólica"
formulação poética do que não pode ser destruído, daquilo que
25
resiste, do que é inquebrantável. (COSTA E SILVA, 2014, p.
96).
São Jorge é o arquétipo fundamental do herói benjoriano, e suas
qualidades podem ser encontradas mesmo em um fora da lei, como "Charles, anjo
45" ("um homem de verdade/ com muita coragem"). A dimensão mítica, por sinal,
é uma das grandes marcas próprias do discurso do autor e se manifesta de maneira
clara sempre que ele cita o Santo Guerreiro em suas músicas. O mito, argumenta
Eliade, conta uma história sagrada. Um acontecimento primordial que teve lugar
no começo do Tempo. Para ele, a repetição fiel dos modelos divinos tem um
resultado duplo: por um lado, ao imitar os deuses, o homem mantém-se no
sagrado e, consequentemente, na realidade; por outro, graças à reatualização
ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado.
Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério,
pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses
ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem
mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem
revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo
tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos
fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o
que se passou ab origine. Uma vez "dito", quer dizer, revelado,
o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta.
(ELIADE, 2008, p. 84).
Mas o cavaleiro da Capadócia não está só. Ben Jor dedica suas canções à
Santa Clara, ao Menino Jesus de Praga, a São Cristóvão e a São Pedro, todas
figuras populares do catolicismo no país. Quando perguntado, o cantor sempre
deixou claro que o cristianismo era o seu principal credo. Foi assim na entrevista
concedida a O Pasquim, em 1969, quando Millôr Fernandes questionou a sua
religião: "Sou católico. Vou à missa sempre que posso. Acredito em espiritismo
também. Quer dizer, depende do espiritismo. Mas não frequento. Peço a alguém
que peça por mim, sei que é bom"
Importante também é a presença dos anjos na sua lira. Em 1969, canta
“Descobri que sou um anjo”. Dois anos depois, em “Por que é proibido pisar na
grama”, retoma o assunto: “Descobri que além de ser um anjo eu tenho cinco
inimigos”. Em 1974, a identificação do autor com os seres alados da tradição
judaico-cristã ganha uma nova camada ao citar o “anjo amigo Jorge” em “A
história de Jorge”. As citações continuam em “Ave Anjos Angeli” (1995) e
26
“Gabriel, Rafael, Miguel” (2004). Em 1995, durante “Roda Viva”, foi perguntado
pelo jornalista Matinas Suzuki sobre o interesse dele no assunto:
O anjo, para mim, sempre teve um significado grande. E acho
que todos nós temos um anjo da guarda, que protege a gente.
Isso eu aprendi na minha passagem pelo seminário. Estudei. Eu
acho até que o Observatório Romano gosta, porque segue os
padrões do Observatório Romano, toda a cadência dos anjos,
desde Serafim, Querubim. São os anjos todos. Os anjos cristãos.
E isso segue o padrão. Hoje em dia tem muita mistura de anjo.
Tem anjo em umbanda, nos búzios, tem mil coisas. Como você
citou, tem mil livros. Tem muita gente querendo aparecer,
escrevendo errado. (BEN JOR, 1995)
Natália Parreiras relaciona as seguidas menções aos anjos ao próprio Santo
Tomás de Aquino, filósofo do século XI de quem Ben Jor musicou trechos da
“Suma Teológica” em “Solta o Pavão”, de 1975. O Aquinate foi um dos grandes
pensadores da teologia natural. O italiano era “grande defensor da oposição
perfeita (racional) entre a filosofia aristotélica e o cristianismo” (PARREIRAS,
2018, p. 7). Fundador da Escolástica, teve “entre as suas centenas de obras
concebidas sob as bases dogmáticas da igreja, a escritura da Suma Teológica que
trata da natureza de Deus e das questões morais segundo Jesus Cristo” (Idem),
trabalhando fé e razão como elementos complementares e nada antagônicos. Ela
nota que o santo ocupa tamanha importância simbólica na vida de Ben Jor, “que
até os nomes de seus dois únicos filhos tem relação direta com o Aquinate:
Tomaso, o primogênito, e Gabriel, sim, tal qual o anjo da anunciação”
(PARREIRAS, 2018, p. 9).
Em outra de suas principais contribuições às ciências
investigativas, Sobre os Anjos - do latim De Substantiis
Separatis - considerada por muitos especialistas como o ápice
da metafísica - o autor comenta a abordagem dada à
problemática filosófica da existência de formas separadas da
matéria, popularizadas pela tradição judaico-cristã sob o signo
linguístico de “Anjos”. Seu legado tem tamanho
reconhecimento que o próprio Aquino, segundo a escritora e
pesquisadora Yvette Centeno, viria a ser representado por
Goethe, em Fausto como o Doctor Angelicus, guia supremo do
herói em sua trajetória de ascensão. (PARREIRAS, 2018, p. 8)
Entre 1974 e 1976, Ben Jor gravou os três discos que compõem a “trilogia
mística” (RIBEIRO, 2014) dentro de sua produção musical. O termo aglutina os
álbuns A tábua de esmeralda, Solta o pavão, onde ele toca o violão que lhe deu
27
fama, e África Brasil, já fazendo a transição para a guitarra, que manteve como
instrumento principal desde então. Os discos formam o ápice daquilo que ele
próprio chamou de “alquimia musical”. Inspirado por tratados e textos de
filósofos como Hermes Trismegisto, Nicolas Flamel, Paracelso e Fulcanelli o
compositor escreveu algumas das canções mais singulares da MPB.
Fazem parte destes três álbuns músicas como “Hermes Trismegisto e sua
Celeste Tábua de Esmeralda”, “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas",
"O Homem da Gravata Florida (A Gravata Florida de Paracelso)", "Luz
Polarizada", “Hermes Trismegisto Escreveu” e "O Filósofo". O interesse pela
alquimia, no entanto, não se refletiu na obra de Ben Jor apenas durante a “trilogia
mística”. É possível encontrar indícios da sabedoria alquímica antes e depois deste
rico período de produção musical.
No momento em que une a perquirição pré-científica dos pais da química
com a fé mística na transformação dos metais, Ben Jor encontra momento de raro
equilíbrio entre a religiosidade e o saber científico na sua obra. Ao ressaltar que o
lema dos alquimistas era “ o obscuro pelo mais obscuro, o desconhecido pelo mais
desconhecido”, Jung (1990, p. 239) situa o início do ocaso da alquimia quando os
filósofos herméticos se separaram dos químicos durante as primeiras horas do
pensamento iluminista. Antes desse momento, a relação do iniciado com a matéria
era preenchida pelas suas próprias projeções:
Eram os tempos em que a mente do alquimista ainda lutava
realmente com os problemas da matéria, em que a consciência
indagadora se confrontava com o obscuro espaço do desconhecido,
no qual figuras e leis eram obscuramente percebidas e atribuídas à
matéria, apesar de realmente pertencerem à psique. Todo
desconhecido e vazio é preenchido com projeções psicológicas; é
como se o próprio fundamento psíquico do investigador se
espelhasse na obscuridade. O que ele vê ou pensa ver na matéria
são principalmente os dados de seu próprio inconsciente nela
projetados. Em outras palavras, ele encontra na matéria, como se
pertencessem a ela, certas qualidade e significados potenciais de
cuja natureza psíquica ele é inteiramente inconsciente.
(JUNG,1990, p. 240)
O que Ben Jor vê — ou pensa ver — na matéria quase imperscrutável dos
livros e tratados da alquimia, ele reverte em canções. No limite, todas elas
carregam uma espécie de crença em uma transformação interna e individual do ser
28
humano. Assim como São Jorge, os alquimistas transmitem qualidades
fundamentais para a lira benjoriana. Novamente, coragem, sabedoria e virtude.
Apesar de estar circunscrito a um período delimitado do século XX, o
trabalho se descola de uma temporalidade cronológica e dialoga simultaneamente
com passado, presente e futuro. Em seu famoso ensaio "O que é o
contemporâneo", Giorgio Agamben diz que o contemporâneo é capaz de fraturar
as vértebras de seu tempo e fazer dessa fratura o lugar de um compromisso e de
um encontro entre os tempos e as gerações. É aquele que transforma o tempo e o
coloca em relação com outros tempos. Capaz de ler de modo inédito a história,
“de citá-la segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu
arbítrio, mas de uma exigência que ele não pode responder” (AGAMBEN, 2009,
p. 72). Penso que não existe maneira melhor para definir Ben Jor e sua relação
com a fé.
Na ilustração escolhida para a capa de Jorge Ben (1969), o artista plástico
Albery espalhou diferentes símbolos muito caros à lira benjoriana daquele
momento: estão lá o escudo do Flamengo, as incontáveis musas, algumas plantas
e frutas tropicais e os grilhões rompidos em seus braços. Acima de todos, brilha
um sol vermelho, cujos raios se espalham como na bandeira do Japão imperial, ou
melhor, como no pavilhão do Salgueiro, escola do coração do artista. À frente do
Sol, como se fosse responsável por espraiar toda aquela luz, voa uma pomba
branca. Tradicionalmente na iconografia da Igreja Católica, a pomba branca está
associada ao Divino Espírito Santo, a terceira ponta do triângulo que perfaz a
Santíssima Trindade. Neste caso, portanto, penso que é possível fazer uma
extrapolação a partir do desenho de Albery: a pomba branca pode ser vista como a
manifestação da fé na obra do artista: está sempre no alto, sobrevoando tudo, e se
faz presente em todos os momentos em que ele canta.
29
Cavaleiro de Jorge
Sem medo nenhum
O número um direito
Sempre firme sobre o cavalo
Impávido-turquesa
Estrada ou mesa de bar
Sempre mil pavões-força
De beleza pura e simples
Como uma onda do mar
Cavaleiro de Jorge
Potência de amar
Senhor do lugar inteiro ("Cavaleiro de Jorge", Caetano Veloso)
2
As roupas e as armas de Jorges
A hagiografia da Igreja católica sustenta que São Jorge viveu entre os
séculos III e IV. Georgius era filho de uma família nobre da Capadócia, região
que hoje se encontra dentro das fronteiras da Turquia. Órfão do pai, guerreiro
morto em um combate, tornou-se ele também um soldado do Império Romano,
tendo sido reconhecido por sua atuação corajosa nos campos de batalha. Negou-se
a renegar a própria crença por ordem do imperador Diocleciano, cuja reputação de
perseguição aos praticantes do cristianismo é atestada por historiadores
contemporâneos. Por ter se insurgido contra a crueldade e preconceito religioso do
líder máximo foi punido com torturas e sevícias. Tornou-se um mártir da Igreja,
sobretudo por ter encarado os algozes sem jamais renegar a própria fé. Com a
ajuda do sagrado, seria capaz de realizar milagres e, por isso, era tomado por
muitos como como um feiticeiro. Embora seja impossível diferenciar
completamente os registros históricos do mito, teria morrido decapitado aos 23
anos em 23 de abril do ano 303. De acordo com o historiador Alexandre Reis dos
Santos (2014), as lendas sobre o santo passaram a fazer parte do imaginário
popular apenas séculos depois da morte do mártir católico.
Por volta do século XI, surgem os relatos míticos de que São
Jorge teria enfrentado e vencido um dragão como prova do
poder da fé em Cristo. Alguns mitos contam que, antes de ser
martirizado, Jorge teria ido a Britânia e visitado o túmulo de
José de Arimateia em Glastonbury. Entretanto, é a partir do
período das Cruzadas que o culto a São Jorge teria se
popularizado na Inglaterra, pois conta-se que teria visto
auxiliando os cruzados britânicos no cerco de Antióquia. No
30
decorrer desse movimento, devido ao intenso fluxo de pessoas e
ideias, o culto a este mártir ganhou força também em Portugal,
o que contribuiu para sua institucionalização como patrono do
reino português. No Brasil, um dos vetores de divulgação do
culto a esse santo foi a Venerável Confraria dos Gloriosos
Mártires, São Gonçalo Garcia e São Jorge fundada em 1741.
(SANTOS, 2014, p. 114)
Compilado pelo frade dominicano Jacopo de Varazze no Século XIII, o
livro Legenda aurea reúne a história de vida de 153 santos da Igreja Católica.
Com linguagem acessível, o volume se tornou um sucesso comparável a um best-
seller na Idade Média, chegando a rivalizar com a própria Bíblia. Ao todo, cerca
de 1.100 exemplares sobreviveram até os dias de hoje. Em grande dose, o sucesso
do livro se deu porque Varazze, apesar de se cercar das mais diversas fontes para
escrever os seus relatos, não tentou diferenciar a história dos mitos que cercavam
as biografias das figuras santificadas. Com elementos literários das fábulas que
faziam sucesso então, os textos são baseados em uma fórmula simples, que
misturava fundamentos morais e histórias exemplares. A vida e os feitos de São
Jorge ocupam o 56º capítulo da Legenda aurea. O texto começa com uma breve
explicação etimológica:
Jorge [Georgius] vem de Geos, que quer dizer “terra”, e de
Orge, “cultivar”, de forma que o nome significa “cultivando a
terra”, isto é, sua carne. No seu livro Sobre a Trindade,
Agostinho afirma que a boa terra pode estar tanto no alto das
montanhas como nas encostas temperadas das colinas ou nas
planícies. O primeiro tipo convém ao pasto, o segundo às
vinhas, o terceiro aos cereais. De forma semelhante, o beato
Jorge foi como a terra alta por desprezar as coisas baixas e
exaltar as puras, foi como a terra temperada devido à descrição
do vinho da eterna alegria, foi como a terra plana pela
humildade que produz frutos de boas obras (VARAZZE, 2003,
p. 365)
O livro conta que Jorge certa vez cavalgou até Silena. Na cidade da
província da Líbia havia um lago, grande como um mar, onde estava escondido
"um pestífero e enorme dragão que muitas vezes afugentou o povo armado que
tentara atacá-lo” (VARAZZE, 2003, p. 366). Para acalmá-lo e impedir que se
aproximasse das muralhas da cidade, "que não protegiam de seu hálito
empesteado que matava muita gente” (Idem), os habitantes sacrificavam todos os
dias duas ovelhas. Depois de algum tempo, a quantidade de ovelhas disponível
não era mais suficiente. O governo local decidiu, então, que a fome do inimigo
31
seria saciada por um animal e um humano. Para isso, um sorteio seria realizado
entre os rapazes e as moças da região, sem excetuar nenhum dos habitantes do
vilarejo. A prática continuou até o dia em que a filha única do rei foi sorteada para
ser entregue ao dragão.
O rei, claro, tentou salvar a vida da filha e cancelar o trágico sorteio, mas
foi impedido por uma furiosa multidão, formada por pais e mães que já haviam
sacrificado seus filhos. Após o impasse, o monarca decidiu aceitar o triste destino
e ordenou que a sua herdeira fosse até o lago se entregar ao monstruoso dragão.
No caminho, ela encontrou Jorge montado em seu cavalo. Informado do triste
destino da moça, se recusou a abandoná-la e jurou protegê-la.
Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago
e foi se aproximando. Toda trêmula, a moça falou: “Fuja, meu
bom senhor, fuja depressa”. Jorge montou imediatamente em
seu cavalo, protegeu-se com o sinal-da-cruz, e com audácia
atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a
lança com vigor, recomendou-se a Deus, atingiu o monstro com
força, jogando-o ao chão, e disse à moça: “Coloque sem medo
seu cinto no pescoço do dragão, minha filha”. Ela assim o fez e
o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso.
(VARAZZE, 2003, p. 367)
Com a besta em seus domínios, Jorge rumou até a cidade. Diante de uma
população aterrorizada, prometeu matar o monstro com a sua própria espada se os
habitantes do local adotassem a fé católica. Naquele mesmo dia, segundo Varazze,
mais de 20 mil homens foram batizados, sem contar os velhos, as mulheres e as
crianças. O herói, então, decapitou a fera. Perplexo e agradecido, o rei quis
recompensar Jorge por ter salvo a sua linhagem. Humilde, o cavalheiro pediu que
todo o dinheiro que recebesse fosse doado aos pobres. Somente após este episódio
é que o santo teria se levantado contra a perseguição ao cristianismo empreendida
por Diocleciano. O santo, então, deixou de lado a armadura e passou a viver em
oração com os grupos em risco, até ser capturado, torturado e assassinado pelo
exército do imperador.
Na apresentação da edição brasileira de Legenda aurea, o historiador
Hilário Franco Júnior ressalta o evidente componente simbólico presente nos
textos de Varazze. Para ele, os personagens ali funcionam como uma espécie de
espelho, que reflete algo que não estaria visível aos olhos dos fiéis.
32
Devemos considerar o simbolismo presente por toda Legenda
aurea. Isto é, a cosmovisão pela qual cada fato, objeto ou
pessoa, mais do que uma realidade em si, é uma representação,
uma imagem, uma figuração, de algo superior, transcendente,
com o qual o ser humano não poderia ter contato direto e que
nem poderia compreender, não fosse a intermediação do
símbolo. Na linguagem bíblica, fundamental para a Idade
Média, o símbolo é o espelho que permite entrever algo, ainda
que de maneira deformada, antes de se poder vê-lo no Além
“face a face”. (FRANCO JUNIOR, 2003 apud VARAZZE,
2003, p. 16)
Mais do que os embates entre soldado e imperador, a cena que permeia a
imaginação popular sobre os feitos de São Jorge é a simbólica batalha contra o
dragão. Ao combater a fera, que encarna com unhas e dentes o lado sombrio na
dicotômica luta do bem contra o mal, o cavaleiro da Capadócia entrou para o
imaginário como a representação de valores como a nobreza, a coragem e a
humildade. No artigo Vozes de São Jorge e Ogum: Um percurso do Romanceiro
Português aos pontos de umbanda no Brasil, Roncalli Dantas Pinheiro (2012)
argumenta que o simbolismo vai além:
A vitória sobre um dragão é mais do que derrotar o mal, é
também a possibilidade de ordenar um sítio natural, a floresta,
um lodaçal. Derrotar um dragão simbolicamente é civilizar,
demarcar um local não conquistado ainda e tem relações fortes
com o empreendedorismo de uma comunidade, com a expansão
do território. (PINHEIRO, 2012)
A vitória de São Jorge sobre o infame animal mitológico influenciou e
inspirou diferentes artistas desde então, dos cordelistas brasileiros aos pintores do
Renascimento italiano. No acervo do Museu do Louvre, por exemplo, há duas
pinturas de Rafael Sanzio retratando o famoso combate. Uma delas (figura 2)
reflete a iconografia consagrada em relação ao santo, em que ele aparece de
armadura montado em um cavalo perfurando o inimigo com a sua lança. Ao
fundo, pode-se ver a princesa em oração.
A reputação de guerreiro, somada aos componentes civilizatórios e
expansionistas citados por Pinheiro, fez com que a figura do santo tenha sido
reverenciada ao longo dos séculos em territórios que vão do Ocidente ao Oriente.
Ao redor do globo, São Jorge foi escolhido para ser padroeiro de países díspares
como Inglaterra, Geórgia, Lituânia, Sérvia, Montenegro e Etiópia, além de
proteger cidades como Londres, Barcelona, Gênova, Moscou e Beirute. No Brasil,
33
a devoção ao santo se espalhou sobretudo pela herança colonial portuguesa. O
culto a São Jorge converteu-se em um dos mais populares do país, impulsionado
pela sincretização entre a figura do santo e entidades do candomblé e da umbanda
como Ogum, no Rio de Janeiro, e Oxóssi, na Bahia.
O mito de São Jorge chega ao Brasil por vias do Romanceiro
tradicional português através de textos que são entoados
oralmente até os dias atuais nas zonas agrárias mais
conservadoras do norte Lusitano e pelas dezenas de imagens
que expressam a luta do Santo Guerreiro contra o mal. No solo
brasileiro, o mito entra em contato com os povos de origem
Afro, que impossibilitados de cultuarem seus Orixás com
liberdade, promovem interpenetrações arquetípicas entre São
Jorge e Ogum, produzindo um ritual dinâmico, que faz nascer
uma profusão de diferentes expressões lexicais do mesmo Orixá
ferreiro, visualmente observado com posse das armas e das
vestes de São Jorge. (PINHEIRO, 2012)
No Rio de Janeiro, o dia 23 de abril é marcado por ritos solenes praticados
por fiéis das mais diversas denominações. O dia — feriado estadual — começa
com alvoradas repletas de foguetes e as celebrações prosseguem com cavalgadas
festivas, feijoadas nos terreiros e verdadeiras multidões nas missas oferecidas
pelas igrejas dedicadas ao Santo Guerreiro, no Centro e em Quintino. Porto e
Guidi (2011) afirmam que é nesta data que a capital fluminense se encontra,
apesar das suas brutais diferenças sociais.
Podemos ver como o catolicismo popular é mágico ao ponto de
cada santo exercer a tutela sobre um setor específico da vida - se
eu quero casar, rezo a Santo Antônio, se quero algo 'impossível',
peço a São Judas Tadeu, e assim por diante. No entanto, para
aquele santo de quem sou devoto, peço tudo, entrego a minha
vida, independente das especialidades dele às quais recorrem.
São Jorge é tido como um santo que tem o dom de curar doentes
em estado grave, e principalmente de oferecer proteção contra
situações de risco e violência. No caso de sua devoção,
podemos ver que, "como outros santos, cruza fronteiras
religiosas, étnicas, morais e sociais" (Pitrez, 2007:36). Trata-se
de um santo que não é cultuado apenas por católicos, mas
também por umbandistas e candomblecistas; não apenas pelos
soldados militares e policiais, mas também por transgressores
da lei; não apenas por uma classe social, mas por muitas. Trata-
se assim de um santo que dilui diferenças sociológicas,
contribuindo para tal imaginário a comemoração de seu dia,
quando a cidade se encontra, sem esquecer completamente suas
tensões cotidianas, em respeito à devoção. (PORTO E GUIDI,
2011, p. 44)
Figura 2 - São Jorge e o dragão, de Rafael Sanzio. Óleo sobre madeira, circa 1505.
34
Fonte: Museu do Louvre.
Porto e Guidi (2011) também identificam que o ethos guerreiro do santo
faz com que uma extensa camada dos fiéis crie uma identificação extremamente
pessoal com a sua figura. Sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, a figura
do herói montado no cavalo derrotando o dragão se transformou em estampa pop,
frequentemente presente no mundo da moda. Está multiplicada em joias,
bijuterias, peças de roupa, adesivos, quadros e grafites nos muros da metrópole.
De alguma maneira, o antigo guerreiro da Capadócia parece ter se tornado deveras
íntimo e próximo daqueles cariocas que desejam ser protegidos por ele.
Além de ser a imagem mais difundida, remete à característica
atualmente mais ressaltada e celebrada do santo: seu caráter de
35
guerreiro. Assim, a ele é atribuída a proteção tanto dos
inocentes, para que não se firam em batalhas que não são as
suas, mas também daqueles que estão na linha de frente dos
conflitos. A proteção física também é uma evocação comum no
que diz respeito ao corpo dos devotos. Isto pode ser bem
observado pelo uso de adereços bem próximos a ele, como as
medalhas, em geral carregadas junto ao peito, simbolizando e
celebrando a intimidade e proximidade com o santo, além da
sua proteção. Nesse aspecto, as tatuagens também indicam esse
tipo de relação próxima e íntima, em um grau muito elevado,
pois neste caso a imagem do santo é algo que se inscreve no
corpo do devoto de maneira permanente. Em muitos casos, as
tatuagens são feitas após uma graça especial recebida e atribuída
ao santo. O poder de proteção do corpo também pode ser
observado como uma característica marcante do culto ao orixá
Ogum, requisitado muitas vezes para o fechamento do corpo de
seus filhos. Com essa ação, o corpo do devoto se torna imune a
qualquer perigo. (PORTO E GUIDI, 2011, p. 49)
Ogum é o orixá da metalurgia e das guerras, responsável por abrir os
caminhos para as atividades dos cavaleiros, caçadores e ferreiros, daí a sua
associação com a figura da Capadócia. Santos (2014, p. 117) ressalta que “os usos
populares do culto aos santos católicos articulam uma lógica própria, permeada
pelos princípios africanos de que era possível, pelo recurso ao mundo espiritual,
se proteger contra ameaças de cunho natural ou que transcendam à matéria”. Um
dos grandes "poderes" de São Jorge, portanto, seria transmitir sua invencibilidade
aos devotos.
Esta referida prática para “fechar o corpo” seria um ritual em
que um indivíduo, através de uma série de feitiços, deixaria o
seu corpo intocável a doenças ou agressões físicas. Este rito está
inserido na lógica do pensamento mágico de religiões afro-
brasileiras como o candomblé e a umbanda, tendo como uma de
suas premissas a crença de que seria possível, pelo uso do
conhecimento e das forças sobrenaturais, a intervenção no
mundo material. (SANTOS, 2014, p. 118)
Um trecho das mais famosas orações para São Jorge serviu de base para a
composição de “Jorge da Capadócia”, gravada por Ben Jor em 1975, no álbum
Solta o Pavão. O compositor escreveu apenas uma abertura, como se fosse um
prólogo, e um encerramento. No meio, repetiu ipsis literis as palavras
tradicionalmente ditas durante a reza. Como resultado, parece-me ter havido uma
identificação direta entre público e obra. Logo, esta canção se tornou uma das
mais populares do artista. Ao longo dos anos, ganhou versões de Caetano Veloso,
Racionais MCs, Fernanda Abreu e Seu Jorge.
36
Jorge sentou praça na cavalaria
E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia
Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem
Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem
Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam
E nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal
Armas de fogo, meu corpo não alcançará
Espadas, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar
Cordas, correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar
Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge
Sensacional
Jorge é de capadócia, maravilha
Viva Jorge
Jorge é de capadócia, sensacional
Salve Jorge
Perseverança, ganhou do sórdido fingimento
E disso tudo nasceu o amor
Perseverança, ganhou do sórdido fingimento
E disso tudo nasceu o amor
(BEN JOR, 1975)
Em 2009, a canção-oração de Ben Jor se encontrou sincreticamente com
“Ogum”, samba conhecido na voz de Zeca Pagodinho. Em uma apresentação ao
vivo, gravada para o DVD do sambista, Jorge repete – num registro emocionado,
muito próximo da fala – os trechos famosos de “Jorge da Capadócia” logo depois
da letra do samba, que diz:
Eu sou descendente zulu
Sou um soldado de Ogum
Devoto dessa imensa legião de Jorge
Eu sincretizado na fé
37
Sou carregado de axé
E protegido por um cavaleiro nobre
Sim vou na igreja festejar meu protetor
E agradecer por eu ser mais um vencedor
Nas lutas nas batalhas
Sim vou no terreiro pra bater o meu tambor
Bato cabeça firmo ponto sim senhor
Eu canto pra Ogum
(PAGODINHO, 2009)
Pode-se afirmar, sem qualquer exagero, que Jorge é um dos devotos que se
identifica diretamente com a imagem de São Jorge. Não é raro que ele se
apresente com uma camisa branca com uma estampa do cavaleiro da Capadócia.
No dia 23 de abril, costuma participar dos festejos populares que tomam a cidade.
Em 1970, no LP Ben, gravou “Domingo 23” homenageando a data (“Domingo
23/ É dia de Jorge/ Dia dele passear no seu cavalo branco/ Pelo mundo/ Pra ver
como é que tá”).
O Santo Guerreiro voltou a ocupar espaço central na usina de criação
benjoriana justamente 23 anos depois de Ben. Em 1993, o artista batizou o seu
vigésimo terceiro álbum solo em estúdio de 23. O disco leva uma imagem de São
Jorge na capa (figura 3), acompanhada das palavras “Alegria”, “Energia”,
“Harmonia” e “Simpatia”, além de duas inscrições: “Santo também é muso” e
“As linhas nunca estão ocupadas quando se quer falar com Deus”. O trabalho
chegou às lojas brasileiras justamente no dia 23 de novembro, data em que o santo
também é festejado em localidades como a Geórgia, que proclama feriado
nacional neste dia. Até Elizabeth II, rainha da Inglaterra, recebeu uma cópia das
mãos do embaixador brasileiro em Londres, conforme registra Danuza Leão no
Jornal do Brasil daquele ano. Em uma carta endereçada a Ben Jor, a monarca do
país protegido por São Jorge agradeceu o presente e a chance de conhecer melhor
a música brasileira.
38
Figura 3 - Capa do disco 23, lançado por Jorge Ben Jor em 1993
Fonte: Warner Music
Abençoado por São Jorge, 23 foi um dos álbuns lançados na década de
1990 que ajudaram a reabilitar Ben Jor depois de uma série de discos com pouca
vendagem no fim dos anos 1980. Estão neles sucessos como “Alcohol”, “Engenho
de dentro” e “Spyrogyra Story”, que continuam a frequentar os setlists do artista
até os dias de hoje. Ao Jornal do Brasil, em 1993, ele falou sobre a devoção ao
Santo Guerreiro eternizada no disco: “Eu sou um guerreiro no bom sentido. Faço
minhas guerrilhas através da minha música, onde quero levar harmonia, energia,
simpatia e alegria. São Jorge, sincretizado no candomblé com o orixá Ogum, é o
meu padrinho, meu santo protetor”.
A canção "Cowboy Jorge", lançada no disco anterior Ben Jor (1989),
ganha uma nova versão no álbum de 1993, com Bi Ribeiro, dos Paralamas do
Sucesso, a cargo do contrabaixo. A letra, que conversa com "Domingo 23", é a
única da lavra de Ben Jor que explora de maneira clara as interconexões entre o
cavaleiro da Capadócia e o orixá da metalurgia.
Ogum, Ogum, Ogum
39
Dia 23 continua sendo
Dia de cowboy Jorge
Na terra no ar na terra no mar
Jorge toca com 23 tambores
Jorge toca com 23 amores
Jorge toca com 23 batuqueiros
Jorge toca com 23 terreiros
Na terra no ar na terra no mar
Jorge toca para Deus e para os Santos
Toca para as crianças e para os anjos
(BEN JOR, 1989)
Podem ser encontradas no cancioneiro do artista canções que ecoam as
virtudes do santo, assim como o arquétipo do cavaleiro nobre que combate o mal.
"Cavaleiro do cavalo imaculado", do LP África Brasil (1976a), é uma delas.
Enquanto Rezende (2012) enxerga semelhanças entre o personagem principal da
letra, São Jorge e o próprio autor, Santos (2014) é taxativo ao identificar o
protagonista da canção com o cavaleiro da Capadócia.
É possível achar referência a estes outros cultos nas letras de
Jorge Ben. Cavaleiro do Cavalo Imaculado (1976), por exemplo
é uma composição onde o artista constrói uma imagem de São
Jorge que se distancia do rito estritamente católico. “Ele é Leão
do Império/ Cavaleiro do cavalo imaculado/ Ministro de Zambi
na terra/ O príncipe de toda África”. É possível inferir que
quando se remete a Zambi, deus supremo nos mitos bantos, o
artista seja se referindo à associação que se faz na religiosidade
popular entre São Jorge e Ogum, o orixá da guerra e do ferro. O
título de “príncipe africano” conferido por Ben a São Jorge
também indica alguma inferência das religiões de matriz
africana como o candomblé e a umbanda. (SANTOS, 2014, p.
116)
Simas (2018) argumenta que o sincretismo pode ser entendido como
estratégia de resistência e controle e como fenômeno de fé. Uma via de mão
dupla, onde ambos os lados se transmutam. A incorporação de deuses e crenças
do outro é vista por muitos povos como acréscimo de força vital, e não diluição ou
estratégias pensadas friamente. Sobre Ogum, o historiador nota que o orixá
originalmente ocupa a função de herói civilizador e senhor das tecnologias, de
acordo com a cosmovisão iorubá. Foi ele que ensinou o segredo do ferro aos
orixás e tornou possível a confecção de pás, enxadas, rastelos e arados. É
40
interessante notar, também, que a metalurgia que a mitologia de povos africanos
atribui a Ogum ocupa papel fundamental na origem de outro ponto de interesse de
Ben Jor: a alquimia, conforme Eliade (1979).
Ao acelerar o processo de crescimento dos metais, o
metalúrgico precipitava o ritmo temporal: o tempo geológico
era transformado por ele em tempo vital. Essa audaciosa
concepção, segundo a qual o homem assegura a sua plena
responsabilidade diante da Natureza, já nos permite pressentir a
obra alquímica. (ELIADE, 1979, p. 35)
No entanto, em países da como o Brasil e Cuba, a face mais marcante do
orixá, “a do ferreiro, patrono da agricultura, inventor do arado, desligado de bens
materiais senhor das tecnologias que mataram a fome do povo e permitiram a
recriação de mundos como arte” (SIMAS, 2018, p. 73), desapareceu. Para os
indivíduos escravizados, não fazia sentido adorar as ferramentas de trabalho que
eram obrigados a usar pelos senhores nas fazendas e plantações Brasil afora.
Desta forma, o culto ao orixá passou por uma ressignificação, e a imagem do
orixá guerreiro passou a predominar entre os adeptos das religiões afro-brasileiras.
A agricultura nas Américas ficou, afinal, diretamente ligada aos
horrores da escravidão. Como querer que um escravo,
submetido ao cativeiro e aos rigores da lavoura, louvasse os
instrumentos do cultivo como dádiva? Ogum foi perdendo,
então, o perfil fundamental de herói civilizador e seu culto entre
nós, cada vez mais ligado apenas aos mitos do guerreiro. Ogum
é o general e esse perfil militar se reflete nas maneiras como foi
sincretizado. (SIMAS, 2018, p. 73)
A partir desta informação, é possível notar que a linha que liga São Jorge
ao orixá africano passa também por outra canção que pertence, ao mesmo tempo,
dos álbuns de 1974 e 1976: “Zumbi”, que dois discos depois voltaria com um
arranjo mais agressivo rebatizada de “África Brasil”. Nela, a chegada do
protagonista, senhor das guerras e das demandas, é aguardada para vingar as
chagas do dragão metafórico da escravidão em uma fazenda de café, algodão e
cana de açúcar. Depois de enumerar territórios africanos, como Angola, Congo,
Benguela, Monjolo, Cabinda e Mina, o artista pinta um retrato vívido da
exploração de seres humanos no período colonial.
Aqui onde estão os homens
41
De um lado, cana de açúcar
Do outro lado, cafezal
Ao centro, senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhidos por mãos negras
Eu quero ver
Eu quero ver
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Zumbi é senhor das guerras
É senhor das demandas
Quando Zumbi chega
É Zumbi é quem manda
(BEN JOR, 1974)
É como se o quilombola Zumbi atuasse como um cavalo para o orixá
ferreiro, que – revestido pela armadura de guerreiro que ganhou no Brasil – estaria
vindo para se vingar da degradação da agricultura. Costa e Silva (2014, p.122)
ressalta que esta canção, que originalmente estreou no festival Phono 73, é uma
das poucas de Ben Jor em que o protagonista redentor ainda está para chegar. Ele
argumenta também que o tema da escravidão jamais voltaria a “explicitamente
encenado” por Ben Jor em sua discografia. Da primeira para a terceira versão, o
pesquisador demonstra que é possível notar que o tom do primeiro verso do refrão
(“Eu quero ver quando Zumbi chegar”) vai gradativamente se metamorfoseando,
da esperança até a ameaça.
Zumbi é, portanto, mais uma possibilidade, um sonho, do que
propriamente um herói em ação. Uma possibilidade poderosa,
certamente, pois "Zumbi é senhor das guerras/ senhor das
demandas/ quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda".
Somente ele pode reverter o quadro de injustiça. (...) Mesmo no
espaço fictício da canção, a lenda histórica do temido guerreiro
do Quilombo dos Palmares permanece circunscrita ao terreno
mítico. "Zumbi" é, nesse sentido, uma das canções mais
realistas de Jorge Ben (...) (COSTA E SILVA, 2014, p. 124)
42
A devoção ao Santo Guerreiro não aparece de maneira explícita nesta
canção, mas o arquétipo do nobre combatente que luta contra as injustiça
prevalece, assim como em muitos outros protagonistas virtuosos que de tempos
em tempos irrompem no cancioneiro de Ben Jor. É assim com “Guerreiro do Rei”,
de Ben é samba bom (1964); “Charles Anjo 45”, de Jorge Ben (1969); “Os
cavaleiros do Rei Arthur”, de Sonsual (1985) e “Gabriel guerreiro galático”, de
Ben Brasil (1986), por exemplo. Assim como em "Jorge da Capadócia", destas
canções emana uma certa exaltação da coragem. Parece ser esta uma das
principais razões da identificação entre Ben Jor e São Jorge. Costa e Silva (2014)
argumenta:
Uma coragem sem limites flui de certas músicas de Jorge Ben.
Coragem não significa ausência de desespero ou medo. Ela é
antes a força de seguir adiante apesar do desespero e do medo.
As pessoas alcançam valor e dignidade a partir das inúmeras
decisões tomadas todos os dias. E essas decisões exigem
coragem. Não se trata de uma virtude ou valor, entre outros
valores pessoais, como amor ou a fidelidade. A coragem é antes
o fundamento primordial que sustenta e possibilita as virtudes e
valores. Sem ela, o amor fenece em mera dependência, e a
fidelidade se torna conformismo. Muitas canções de Jorge Ben
inspiram uma atitude de coragem diante da vida. (...) Jorge é um
compositor que exalta o ideal de vida guerreira. A coragem
jamais é confundida com o simples uso da força bruta, sem
direção, mas deve sempre ser conformada pela verdadeira
sabedoria. A impressão é de que se pode efetivamente aprender
a viver a partir das canções de Ben. Elas carregam diretrizes
éticas, ensinamentos, possuem um jeito próprio de enfatizar
valores fundamentais. (COSTA E SILVA, 2014, p. 95)
O apreço do compositor pelo registro mítico é outro fator que o aproxima
de histórias como as de São Jorge e Ogum. Em sua lira, estão espalhadas canções
que operam neste registro. O discurso mitificador de Ben Jor está presente em
canções que tratam de eventos históricos, como a construção do Taj Mahal, mas
também em campos como o esporte, conforme as letras de “Cassius Marcellus
Clay” e “Ponta de lança africano” podem comprovar. O discurso mítico está,
desde o início das civilizações, intrinsecamente ligado ao discurso religioso.
Eliade (1972) afirma que as sociedades arcaicas entendiam o mito como “história
verdadeira”, preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. O mito, se
configura, então, como uma realidade cultural extremamente complexa, que pode
ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares:
43
descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado no
Mundo.
Vemos, portanto, que a “história” narrada pelo mito constitui
um “conhecimento” de ordem esotérica, não apenas por ser
secreto e transmitido no curso de uma iniciação, mas também
porque esse “conhecimento” é acompanhado de um poder
mágico-religioso. Com efeito, conhecer a origem de um objeto,
de um animal ou planta, equivale a adquirir sobre eles um poder
mágico, graças ao qual é possível dominá-los, multiplicá-los ou
reproduzi-los à vontade. (ELIADE, 1972, p. 18)
O antimétodo de Ben Jor faz com que ele domine, multiplique e reproduza
os mitos de acordo com a sua vontade. Quando escreve e canta, o compositor
“vive” e reconfigura o mito à sua maneira. De acordo com Eliade (1972, p. 22), o
indivíduo que recita os mitos reintegra-se ao tempo fabuloso em que ele teria
ocorrido, tornando-se contemporâneo, de certo modo, dos eventos evocados.
Compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Ao “viver” o mito, sai-se do
"tempo profano, cronológico" e ingressa "num tempo qualitativamente diferente,
um tempo 'sagrado', ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável".
"Viver" os mitos implica, pois, uma experiência
verdadeiramente "religiosa", pois ela se distingue da experiência
ordinária da vida cotidiana. A "religiosidade" dessa experiência
deve-se ao fato de que, ao reatualizar os eventos fabulosos,
exaltantes, significativos, assiste-se novamente às obras
criadoras do Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo
de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral,
impregnado da presença dos Entes Sobrenaturais. Não se trata
de uma comemoração dos eventos míticos, mas de sua
reiteração. O indivíduo evoca a presença dos personagens dos
mitos e torna-se contemporâneo deles. (...) Reviver esse tempo,
reintegrá-lo o mais frequentemente possível, assistir novamente
ao espetáculo das obras divinas, reencontrar os Entes
Sobrenaturais e reaprender sua lição criadora é o desejo que se
pode ler como em filigrana em todas as reiterações rituais dos
mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a
vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa
história é significativa, preciosa e exemplar. (ELIADE, 1972, p.
22)
Além do particular apreço do compositor pelo discurso mítico, um último
e óbvio fator liga Ben Jor ao Santo Guerreiro: o nome. Jorge não esconde o
orgulho de carregar o mesmo nome próprio que o cavaleiro mitológico da
Capadócia. Além disso, é conhecido por uma boa dose de autorreferência em sua
obra. O resultado mais bem-humorado deste procedimento é a canção “Jorge
44
Well”, gravada em seu quarto álbum de estúdio pela Phillips: Big Ben (1969). A
tradução-trocadilho de seu sobrenome artístico e a interpretação em um inglês
autodidata gerou rimas como “Take it easy, girl/ I am Jorge Well”.
Em diversos pontos de sua discografia, Jorge batizou seus personagens
com o nome que ganhou dos pais. “A história de Jorge”, de África Brasil (1976a)
é outra delas. Na letra de tintas surrealistas, Jorge é retratado como o amigo
voador (“amigo anjo”) de um menino. A música começa com um chamado do
músico ao microfone: “Ei, xará!” e prossegue com o relato da amizade entre os
personagens da canção. Mais uma vez, o protagonista aparece como uma espécie
de salvador, capaz de redimir o amigo das humilhações daqueles que não tinham
fé na sua capacidade de voar.
Olha, esta é a história de um menino que tinha um amigo que
voava
E Jorge se chamava
Ninguém acreditava no menino não voava
Quando ele dizia que tinha um amigo que falava, brincava e até
voava
Todo mundo dele caçoava
Um dia Jorge soube de tudo e voou para toda gente ver
O espanto foi geral
E o menino que não voava, feliz da vida gritava:
“Voa, Jorge!”
(BEN JOR, 1976a)
A profunda identificação do compositor com o próprio nome aparece em seu
cancioneiro até mesmo quando ele fala de amor, tema primeiro e mais
proeminente em toda a sua discografia. Na canção “Georgia e Jorge”, registrada
em Alô alô, como vai (1980), ele faz juras de amor para uma mulher que carrega a
versão feminina de seu primeiro nome. “Georgia” já havia irrompido em seu
cancioneiro quatro anos antes, no disco Tropical. De certo modo, na letra da
canção de 1980, Ben Jor parece escrever uma declaração de amor para o próprio
nome. Ao citar as dificuldades que cercam o relacionamento com a amada, o
compositor fornece pistas muito interessantes sobre a maneira com que se
relaciona com o mundo e com a própria religiosidade.
45
Jorge Jorge (Georgia Georgia)
Isso é que é vida
Isso é que é viver
Céu azul, sol e mar
Isso é que é viver
Chuva de verão, meu violão
Muito amor e você
Que me importam o que digam
Que eu não sou ninguém
Que eu não tenho estudos
Sou até antissocial
Que eu devo procurar o meu lugar
Que eu sou pobre sem tostão
Ah mas eles não sabem
Ah não sabem não
Que eu sou nobre
Tenho um bom coração
Pois na minha oração
Eu rezo com muita fé
Eu rezo com muita fé
E não peço nada
Eu só agradeço a Deus
Por você ser minha namorada
(BEN JOR, 1980)
Ao frisar que é nobre e tem um "bom coração", o Jorge compositor se
aproxima das virtudes com que ele tanto descreveu São Jorge em suas canções.
Assim como o Santo Guerreiro, ele valoriza a fé e a orações como elemento
principais para a definição do seu caráter. Não ter estudos, ser pobre ou pouco
social se tornariam irrelevantes diante dessas qualidades positivas enumeradas na
canção. Mesmo quando fala de amor, o compositor parece tomar emprestadas as
qualidades que ele atribui ao seu santo protetor e xará. Veste as roupas e as armas
de Jorge até quando ama.
46
Eu só quero que Deus me ajude
E o menino muito mais também
Pois a rosa é uma flor
A flor é uma rosa E o menino não é ninguém
Pois a rosa é uma flor
A flor é uma rosa
E o menino não é ninguém
Olha o menino ui Olha o menino ui, ui, ui, ui
Olha o menino ui
Olha o menino ui, ui, ui, ui
Há seis mil anos o homem vive feliz
Fazendo guerras e asneiras
Há seis mil anos Deus perde tempo
Fazendo flores e estrelas
(“Olha o menino [Frases]”, Jorge Ben
Jor)
3
“Católico apostólico carioca”
São Jorge pode ocupar o capítulo mais conhecido da Legenda aurea
escrita por Jorge Ben Jor desde Samba Esquema Novo (1963) até Recuerdos de
Assunción 443 (2007). No entanto, ele está longe de ser o único no altar erguido
pelo músico em quase sessenta anos de carreira. O compositor já dedicou versos a
pelo outros cinco homens e mulheres santificados pela Igreja Católica, além de ter
escrito três canções citando sua fé em Jesus Cristo. Em entrevista a Globo News
em 2012, o compositor resumiu a sua religiosidade de maneira particular: “Sou
católico e apostólico. Mas não sou romano, sou carioca”.
Por conta disso, seu cancioneiro é fortemente influenciado pelo
catolicismo popular que floresceu na cidade do Rio de Janeiro desde a ocupação
portuguesa do território brasileiro no Século XVI. Faustino Teixeira (2005) nota
que o catolicismo no Brasil revela uma grande complexidade. Segundo o autor,
trata-se de um campo religioso caracterizado por grande diversidade. A
pluralidade é um traço constitutivo de sua configuração no Brasil. Citando Pierre
Sanchis, Faustino afirma que o modo como se firma a identidade católica no país
47
envolve “mecanismos de fagocitose” bem peculiares, que traduzem uma
roupagem singularmente plural: “há religiões demais nesta religião”.
É digna de nota também a capacidade de adaptação e ajustamento dessa
religião às novas situações: “quando observada de perto, vemos como ela se abre
e se permite diversificar, de modo a oferecer, em seu interior, quase todos os
estilos de crença e de prática da fé existentes também fora do catolicismo” (p. 16).
O autor conclui que não é possível situar o catolicismo brasileiro num quadro de
homogeneidade. Existiriam, portanto, muitos “estilos culturais de ser católico” (p.
17), como vêm mostrando os estudiosos que se debruçam sobre esse fenômeno.
São malhas diversificadas de um catolicismo, ou se poderia mesmo falar em
catolicismos. Uma dessas formas de manifestação seria o “catolicismo santorial”,
que existe em paralelo à religião oficial centrada no Vaticano.
O catolicismo santorial, para usar uma expressão de Cândido
Procópio Camargo, é uma das formas mais tradicionais de
catolicismo presentes no Brasil desde o período da colonização.
Tem como característica central o culto aos santos. Foi esse
culto que marcou a peculiar dinâmica religiosa brasileira, de
caráter predominantemente leigo, seja nas confrarias e
irmandades, seja nos oratórios, capelas de beira de estrada e
santuários. O catolicismo brasileiro foi durante muito tempo um
catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco
padre”. Os santos sempre ocuparam um lugar de destaque na
vida do povo, manifestando a presença de um “poder” especial
e sobre-humano, que penetra nos diversos espaços de vida e
favorece, numa estreita aproximação e familiaridade com seus
devotos, a proteção diante das incertezas da vida (TEIXEIRA,
2005, p. 17)
Desde que deixou os bancos do Seminário São José para tentar a sorte nas
divisões de base do Flamengo e, depois, para servir o Exército Brasileiro, Ben Jor
escreveu canções sobre algumas das figuras santificadas mais veneradas no
território brasileiro. Penso que canções como “Meu glorioso São Cristóvão”, de
Ogum Xangô (1975), “Viva São Pedro”, de A Banda do Zé Pretinho (1978) e
“Santa Clara clareou”, de Bem-vinda amizade (1981), são as melhores expressões
da irrupção deste “catolicismo santorial” citado por Faustino Teixeira (2005), que
enxerga nestas frestas um canal de comunicação entre diferentes religiões.
O que se vê, como no caso do catolicismo majoritário, é a
presença de uma identidade plástica, permeável ao influxo de
outras tradições e sistemas religiosos, ou, pelo menos, de seus
fragmentos. E isso ocorre inclusive em expressões religiosas
48
com propostas de exclusivismo religioso (...). Tudo isso é
surpreendente e dá razão a Pierre Sanchis quando fala da
“encruzilhada” que é o catolicismo, de sua pluralidade
inusitada: uma religião que envolve muitas religiões. O
pluralismo religioso se expressa nas frestas de uma pretensa
homogeneidade; ele brilha na “metamorfose das práticas e
crenças reelaboradas” ou reinventadas. Não há dúvida, este é
um país de sincretismo religioso e de intenso trânsito entre
tradições que aparentemente se opõem, mas que de forma
enigmática deixam no outro as marcas de sua tatuagem.
(TEIXEIRA, 2005, p. 22)
A primeira das três canções citadas acima abre o lendário álbum que Ben
Jor gravou ao vivo em estúdio com Gilberto Gil, em 1975. De acordo com o mito,
o disco foi feito por sugestão de Eric Clapton, que teria ficado impressionado com
a performance da dupla brasileira em uma festa no apartamento do executivo da
Phillips André Midani. Embora não seja enquadrado dentro da “trilogia mística”
que compreende A Tábua de Esmeralda, Solta o Pavão e África Brasil, o álbum
foi gravado em um momento em que a religiosidade do compositor se expressava
de maneira mais extrema em seu cancioneiro. Na letra, cita o “glorioso mártir”
que teria levado Cristo nos ombros e pede proteção “nas viagens de terra,
subterrâneo, mar e ar”.
Natural da Cananéia, São Cristóvão teria sido martirizado por volta do ano
250. De acordo com Varazze (2003), era um gigante de quase oito metros. Por sua
força extrema, desejava servir ao senhor mais poderoso do mundo. Em O Livro de
Ouro dos Santos Nilza Botelho Megale (2003) conta que, por algum tempo,
Cristóvão serviu ao próprio diabo pensando ser ele o maior soberano da terra.
Convertido por um ermitão ao cristianismo, passou a praticar a caridade
atravessando velhos, crianças e mulheres nas próprias por um rio caudaloso da
região. Durante uma severa tempestade, um menino pediu para ser levado nos
ombros. No meio do caminho, o gigante parecia estar esgotado diante do peso
descomunal que aquela frágil criança fazia em seu dorso. Então, o pequeno disse:
“Eu sou Jesus e estais carregando nas costas o Redentor e os pecados do mundo”.
Em Legenda aurea, o frade medieval registra:
Cristóvão antes do batismo chamava-se Réprobo, mas depois
passou a ser Cristóvão, que quer dizer Chrístum forens, “aquele
que carrega Cristo”, pois o carregou de quatro maneiras: sobre
as costas para transportá-lo, em seu corpo por meio da
maceração, em sua mente por meio da devoção, em sua boca
49
por meio da confissão ou da pregação. (VARAZZE, 2003, p.
571)
Como boa parte dos santos de então, passou a ser perseguido por professar
a fé em Cristo na Ásia Menor e teve um final trágico. Foi preso durante o período
de governo do imperador romano Décio. Torturado na prisão, foi degolado no dia
25 de julho. É neste dia que as celebrações ao santo acontecem no Brasil, com
procissões de carros, motos e caminhões. Por ter levado Cristo nos ombros, é tido
como protetor dos motoristas. O martírio e a relação com os transportes são
elementos centrais da canção gravada por Ben Jor e Gilberto Gil, em 1975.
Assim como São Cristóvão, Ben Jor sempre demonstrou especial interesse
na proteção das parcelas mais desprotegidas da sociedade. Isto fica evidente na
canção “Velhos, flores, criancinhas e cachorros”, de Solta o Pavão, que será mais
profundamente analisada no capítulo que investiga a relação do compositor com a
alquimia. Mas o desejo de livrar crianças do mal também aparece em “Olha o
menino”, de O Bidu: Silêncio no Brooklyn e epígrafe deste capítulo, e em “Não
desanima, João”, de Sacundin Ben Samba.
“Santa Clara clareou”, de Bem-vinda amizade (1981), é outra canção de
Ben Jor a dialogar com o catolicismo popular e suas tradições e simpatias. Nesta
canção, o compositor não contempla os detalhes biográficos da santa nascida em
Assis, na Itália, ou os seus milagres. Ele retira o título de um trecho da oração
dedicada à santa e versa sobre seu “poder” de transformar o tempo chuvoso em
ensolarado. No país, é comum que se ofereça uma dúzia de ovos para Santa Clara
a fim de conseguir um dia de sol. O Papa Francisco, quando visitou o Brasil para a
Jornada Mundial da Juventude de 2013, fez alusão a essa simpatia popular para
frear o mau tempo que atormentava o Rio de Janeiro.
De manhã bem cedinho
Com despertar alegre
Do canto dos passarinhos
Bonito como Deus gosta...
O Sol nasceu
Para a vida e o amor
Enxugando sereno
Com seus raios solares
Cheio de esplendor
50
Com toda a beleza celestial
Em homenagem a Santa Clara
Santa Clara!
Santa Clara clareou
Oh! Oh!
E aqui quando chegar
Vai clarear
(BEN JOR, 1981)
“Viva São Pedro”, gravada por Ben Jor em A Banda do Zé Pretinho
(1978), completa a tríade de homenagens benjorianas a santos populares. A
canção até cita dados bíblicos atribuídos ao apóstolo, como “pescador da Galileia”
e “amigo de Thiago e João”. De acordo com Megale (2003), São Pedro foi
testemunha de todos os atos importantes da vida de Cristo, mas negou-o na hora
da Paixão. Apesar disso, Jesus, ao ressuscitar, consagrou-o como Pastor de seu
“rebanho”. Depois de Pentecostes, Simão Pedro anunciou Jesus aos judeus,
organizando as igrejas de Samaria e da Costa Mediterrânea, indo posteriormente
para Roma. A autora lembra também que São Pedro é considerado pelo povo
como um santo bonachão, e há mesmo uma certa irreverência a seu respeito.
A letra de Ben Jor se concentra mais nos festejos que celebram o “porteiro
do Céu” e padroeiro dos pescadores no dia 29 de junho. Novamente por influência
das tradições populares portuguesas, as festas de São Pedro no Brasil formam,
junto com as de Santo Antônio e de São João, as festas juninas. E, por conta disso,
o autor recorre a elementos típicos destes festejos para a sua louvação.
Viva São Pedro
Vou soltar um belo balão
Eu vou
Nas cores vermelho, azul e rosa
Vou fazer uma fogueira bem quente
Pois eu sei que na minha festa vai ter gente
Vai ter arrasta-pé
Pé-de-moleque
Caldo verde
Quentão
Canjica
51
Batata doce
Sardinha na brasa
Pipoca
Fogos
E muita animação
Em homenagem a São Pedro
O santo dos pescadores
(BEN JOR, 1978)
Também é importante salientar que a manifestação desses elementos
religiosos do catolicismo se dá até nos momentos em que o autor se vale do
humor para escrever. Fortemente inspirado na sonoridade da Jovem Guarda, o
compacto de 1966 — que continha “Aleluia (É nome de mulher)” e “Você não é
Ave Maria mas é cheia de graça” — evidencia isso. As duas canções giram em
torno do amor, mas são recheadas de termos e expressões empregados
cotidianamente por adeptos do cristianismo. O mecanismo se repete em “Aleluia,
aleluia (E ainda tem mais)”, composição em que o Ben Jor faz uma bem-
humorada confissão sobre a própria fé:
Sou da paz e do amor
Sou pra frente, sou pro alto
Minha fé é limitada,
sou crente desconfiado
Mas meu sentimento é puro e sincero
(BEN JOR, 1976b)
É certo que a admiração do autor pelas figuras santificadas decorre, em
certa medida, de seus estudos no Seminário São José, no Rio de Janeiro. De
acordo com Ben Jor, durante dois anos ele fez parte do seminário menor da
instituição, localizada na Avenida Paulo de Frontin, no Rio Comprido. O
seminário menor é voltado para alunos jovens, ainda em idade escolar. Na
instituição, eles recebiam o ensino normal, o que nos dias de hoje corresponderia
ao Ensino Médio. Além disso, preparação prévia para o estudo universitário de
Filosofia e Teologia.
Atualmente, de acordo com o site oficial da entidade, “os alunos realizam
as orações canônicas de Laudes, Vésperas e Completas previstas na Liturgia da
52
Horas, cultivam a salutar e necessária devoção à Virgem Maria, participam de
retiros espirituais e possuem um diretor espiritual, pelo qual são dirigidos
regularmente”1. Procurada, a administração do Seminário informou que perdeu
boa parte de seus arquivos históricos por conta das “mudanças de sede” e de
“sucessivas reformas” e que, por conta disso, não possui mais qualquer registro da
passagem do pequeno Ben Jor pelo lugar nos anos 1960.
É possível afirmar que o ensino que ele recebeu nas salas de aula da
instituição se refletiram na sua obra tanto no conteúdo – com os temas religiosos –
quanto na forma. Influenciado pela tradição do canto gregoriano, que conheceu
quando fez parte do coral do colégio preparatório para sacerdotes, ele desenvolveu
uma certa preferência por composições em tom menor — que a tradição da
música erudita associa a temas tristes. No entanto, como salienta o historiador
Renato Santoro Rezende, a música de Ben Jor não necessariamente respeita essa
concepção. O músico, que certa vez declarou com orgulho jamais ter escrito uma
música melancólica, se valeu da escala menor para falar de felicidade. O debute
em “Mas que nada” é um dos exemplos mais bem acabados dessa estratégia
benjoriana.
Outro marco da sua infância, destacado por Jorge como
determinante para a sua carreira musical, foram os dois anos
que estudou no Seminário São José, no Rio Comprido. Ali,
além de suas primeiras incursões como cantor – cantando no
coral do Seminário – Jorge acabou definindo uma de suas
marcas como compositor: a utilização de tons menores.
“Minhas melodias, antigamente, saíam todas em tom menor.
(...) Tive uma escola de dois anos no Seminário, e lá se cantava
tudo em menor. A influência ficou. Era tudo suavezinho... ‘Mas
que Nada’, ‘Chove Chuva’, é tudo menor” Essa característica é
curiosa na obra do artista, pois suas músicas são quase que em
sua totalidade muito alegres e festivas ou, como se diz
popularmente, “pra cima”. Em certa tradição, os tons menores
são associados a canções de cunho melancólico, mais
introspectivas e sugerem um caráter triste. Esses adjetivos são
opostos às composições de Jorge, de um modo geral exaltadas,
alegres e com uma mensagem positiva, mesmo havendo um
grande número de músicas compostas em tons menores.
(REZENDE, 2012, p. 11)
A passagem pelo seminário e consequente contato com o estudo mais
profundo das teses e tratados sobre teologia legaram outro elemento fundamental
1 Disponível em http://seminariosaojose.org.br/seminario-menor/
53
para o cancioneiro de Ben Jor: a devoção a Santo Tomás de Aquino. O cantor e
compositor carioca explicou a sua relação com o fundador da Escolástica na
entrevista concedida a Pedro Alexandre Sanches para a revista Trip, no ano de
2009:
Aprendi latim por causa de São Tomás de Aquino. Ele tem uns
textos lindos, a Suma teológica... Saber que um santo como ele
era um alquimista famoso... É demais, pra você ver, São Tomás
de Aquino escreveu uma coisa simples, bonita e poderosa [fala
em tom recitado]: “O mundo é um suceder de níveis, desde a
matéria inanimada até a suprema beatitude do ser eterno, que é
Deus”. Ele diz que a primeira lei natural é a conservação da vida
– todo mundo quer conservar a vida –, depois a geração, que é
ter filhos e educar os filhos, e depois o desejo de verdade. (BEN
JOR, 2009)
Nilza Botelho Megale (2003, p. 202) registra que Tomás era “descendente
da nobre estirpe dos condes de Aquino, unido a lados de sangue com diversas
dinastias reinantes”. Nasceu em 1225 no castelo de Roccasecca, localizado entre
Roma e Nápoles. Aos 16, resolveu abraçar a vida religiosa, mas encontrou forte
oposição da família. Fugiu de casa para entrar em um convento dominicano, mas
por ordens do pai e dos irmãos, foi trazido de volta e trancado na torre do castelo
onde nascera. Com a ajuda de uma corda, desceu pela janela e rumou a Nápoles,
para, um ano depois, pronunciar seus votos religiosos. Escolheu a Ordem
Dominicana porque desejava difundir a fé cristã e os dominicanos eram os
grandes pregadores da época.
Estudou em Paris e Colônia, na Alemanha, sob a direção de
Santo Alberto Magno, recebendo o título de Mestre. Introduziu
com seu professor a mais radical inovação intelectual, baseada
na filosofia de Aristóteles, apesar das críticas que chegaram de
todos os lados. A oposição contra sua doutrina durou pouca e a
verdade sobrepujou as paixões. Estabeleceu um novo método de
estudo e com isso sua reputação se espalhou pela Europa, sendo
convidado a lecionar em vários centros culturais do velho
mundo. Bacharel e professor de teologia, aos 27 anos assumiu o
cargo na universidade de Paris, o grande centro de estudos
teológicos, onde o rei São Luís o procurava frequentemente para
ouvir-lhe os conselhos. São Tomás de Aquino foi o maior gênio
da filosofia escolástica e sua influência perdura até hoje.
Mostrou que a razão não se opõe à fé e que filosofia e teologia
são ciências distintas. Escreveu várias obras, entre elas: Summa
contra os gentios, Do ser e da essência, porém a mais
importante foi a Suma Teológica, que consagrou sua doutrina e
à qual dedicou grande parte de sua existência. Faleceu a 7 de
março de 1274, na abadia cisterciense de Fossa Nova (...). Pela
54
sua vida ilibada e profunda inteligência foi comparado aos
espíritos celestes e recebeu os títulos de Doutor Angélico e
Príncipe dos Escolásticos. Canonizado em 1323 pelo Papa João
XXII, admirador e leitor assíduo de suas obras, foi declarado
Doutor da Igreja em 1567, pelo Papa Pio V. (MEGALE, 2003,
p. 202)
A obra de Santo Tomás de Aquino aparece de maneira direta em duas
canções de Ben Jor. "Assim falou Santo Tomás de Aquino" é a primeira delas,
registrada no álbum Solta o Pavão, de 1975. Nesta música, Ben Jor usa a
recorrente estratégia de transliteração, em que repete trechos inteiros de textos de
terceiros. Neste caso, o texto em questão é a Suma Teológica, escrita por Aquino
entre 1265 e 1274, em que o autor trata da relação entre os seres humanos e Deus.
A semelhança da criatura com Deus é tão imperfeita que não chega
a ser do gênero comum
Comum
Pois certos nomes que implicam relação de Deus com a criatura
dele se predicam temporariamente
E não são eternos
Não são eternos
E não são eternos
Deve-se saber que quem ensinou que a relação não é uma realidade
da natureza
E sim da razão
Estão enganados, puramente enganados
Estão errados, puramente enganados
Deus não é uma medida proporcionada ou medido
Por isso não é necessário que esteja contido
No mesmo gênero da criatura
No mesmo gênero da criatura
Da criatura
Por isso dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor
Jesus Cristo
55
Do qual toda Sua sábia paternidade tomou nome nos céus e na
Terra
Assim falou Santo Tomás de Aquino
(BEN JOR, 1975)
É importante lembrar que Santo Tomás de Aquino é um dos pontos de
ligação entre a fé benjoriana e o estudo da alquimia. Após a sua morte, pelo
menos dois conjuntos de tratados alquímicos seriam atribuídos ao santo: “Aurora
Consurgens” e “Da Pedra Filosofal e Sobre a Arte da Alquimia”. O disco de 1975,
como veremos adiante, é um dos álbuns em que o compositor explora o assunto
com maior profundidade. Também à Trip, ele falou sobre a fama de alquimista
que cerca o santo italiano.
A igreja proíbe falar que ele foi alquimista. Proíbe, mas ele foi.
O papa Silvestre deixava, isso no século 13, porque São Tomás
de Aquino era um cara de família riquíssima. E ele quis ser
padre, monge. Seus pais tinham preparado ele pra ser o conde
de Assis, maravilhoso, ricaço. Tanto que se internou sozinho.
Foram tirá-lo de lá, e ele falou: “Quero ser padre, gosto daqui”.
Em pleno século 13 ele escreveu aquilo tudo, já fazia arte com
alquimia. (BEN JOR, 2009)
A segunda menção ao Aquinate na obra de Ben Jor se dá justamente em seu
penúltimo álbum, o primeiro de estúdio do Século XXI. Em Reactivus Amor Est
(Turba Philosophorum), Jorge retoma os temas da alquimia e cita Santo Tomás de
Aquino em “C 589”, que faz referência ao cânon 589 do Código de Direito
Canônico e termina dialogando com a canção registrada em Solta o Pavão.
O Cânon 589 estabelece
Que o estudo da filosofia e da teologia
Deve ser feito de acordo com o ensinamento
De Santo Tommaso D'Aquino
O mundo é um suceder de níveis
Desde a matéria inanimada
Até a suprema beatitude
Do ser eterno que é Deus
56
A primeira lei natural
A conservação da vida, a geração
A educação dos filhos
O desejo de verdade
A segunda lei humana
Positiva estabelecida pelo homem
Com base na lei natural
E dirigida à utilidade comum
A terceira lei divina
É guiar o homem para o bem sobrenatural
E para o bem temporal
Assim falou o Santo Tommaso D’Aquino
(BEN JOR, 2004)
Além da clara relação da obra benjoriana com o estudo da teologia de
Santo Tomás de Aquino, Parreiras (2018) entende que o apreço do compositor
pela figura do anjo é um dos pontos que o ligam ao religioso italiano. Ben Jor usa
o anjo para falar de amor, como em “Anjo azul”, de Sacundim Ben Samba; para
retratar um homem fora da lei, tal qual “Charles Anjo 45”, de Jorge Ben, que
concorreu no IV Festival Internacional da Canção de 1969 (figura 4); e também
para filosofar, como em “Ma ma ma mamãe (A língua dos anjos)”, de Alô Alô
Como Vai (1985) e “Gabriel Rafael Miguel”, também de Turba Philosophorum.
57
Figura 4 - Ben Jor apresenta “Charles anjo 45” no IV Festival Internacional da Canção,
1969
Fonte: Agência O Globo
Parreiras (2018) cita os versos de “Ave anjos angeli”, de Homo Sapiens
(1995) como exemplo. A canção começa com Ben Jor enumerando uma série de
valores positivos e comuns ao seu modo de ver o mundo: verdade, amor,
sabedoria, felicidade, síntese, clareza, confiança, abundância, ação correta, justiça,
renascimento, beleza, harmonia, força, vitória, glória, paz, comunicação e alegria.
Daí, a letra segue com mais uma profissão de fé em seu cancioneiro.
Anjo, anjo, anjo, anjo, anjo
Minha fé me faz a cabeça
Ela me faz com certeza
Senhora das águas
Senhora dos ventos
Senhora das flores
Senhora dos amores
Dá licença d'eu tocar nesse lugar
Dá licença d'eu cantar nesse lugar
Quero tocar pros anjos
Quero cantar pros anjos
Seraphim, Cherubim
58
Cherubim, Seraphim
Throni
Dominatione
Virtutes
Potestates
Principatus
Archangeli
Angeli
Seraphim, Cherubim
Cherubim, Seraphim
(BEN JOR, 1995)
Em sua monografia, Natália Parreiras (2018, p. 22) argumenta que “não é
possível adentrar o universo de São Tomás de Aquino sem deparar-se com a
questão inerente ao SER: A metafísica. Para muito além do conceito de
‘mensageiros divinos’, os Anjos possuem uma influência definitiva na obra de
Ben Jor, justamente pela enorme relevância que possuem nos estudos Tomistas”.
Aproximar o homem do divino parece mesmo ser a maior
experimentação metafísica de Jorge Ben Jor enquanto tece seus
labirintos melódicos, rítmicos e vocabulares. Quando
observamos a letra da canção acima ["Ave anjos angeli"],
percebemos que existe um culto ritualístico que funde uma das
instâncias mais primordiais da linguagem - quando o autor faz
uso recorrente do latim - e, através de cada palavra escolhida
com precisão “cirúrgica”, constrói a evocação das forças
transformadoras da natureza, dos astros e das energias
especulares para criar uma atmosfera de aproximação: A fé, o
amor e o divino se entrelaçam de modo a traçar paralelos e rotas
coincidentes para a evolução do homem e para guiar a
descoberta da instância maior do propósito da vida humana:
Amar o Amor mais próximo do intangível, o amor da potência.
Sim, esse seria o propósito genuíno da criação para o qual todos
os seres humanos seriam destinados. (PARREIRAS, 2018, p.
25)
A desenvoltura de Ben Jor com o latim se manifesta em outros episódios
da produção do artista. Não é de todo raro que o artista se valha do conhecimento
adquirido no Seminário São José para se aventurar na língua dos antigos romanos.
Talvez a melhor expressão disso seja “Errare humanum est”, de A Tábua de
Esmeralda (1974). “Cantileñas de São Victor”, de Salve Simpatia (1979) e “A
fonte de Paulus V”, de Ben Brasil (1986) também apresentam experiências do
59
cantor com o idioma. A primeira, inclusive, é um tanto obscura. Ben Jor usa a
mesma fórmula empregada com Santo Tomás de Aquino (“São Victor escreveu e
falou”, “Cantou para quem quisesse ouvir”, “São Victor escreveu”, “São Victor
cantou”) para citar ipsis literis trechos na língua morta. No entanto, na hagiografia
da Igreja Católica não existe nenhum São Victor que tenha se dedicado a escrever
súmulas ou tratados. O compositor talvez esteja se referindo a trechos de autoria
do cardeal Hugo de São Victor, filósofo, teólogo e autor místico que viveu
durante a Idade Média.
É também em língua estrangeira que alcançamos o último eixo temático
deste capítulo. Além dos santos e teólogos homenageados ao longo da sua
carreira, Ben Jor reservou um espaço significativo em seu cancioneiro para louvar
Jesus Cristo. Pelo menos três letras em sua discografia citam o filho de Deus de
maneira direta. A primeira dela é fortemente influenciada pelo soul norte-
americana e foi composta em inglês: "Brother", também presente no célebre A
Tábua de Esmeralda. Santos (2014, p. 99) nota que esta é a canção de Ben Jor que
“mais evidencia alguma influência da Soul Music americana, e mais
especificamente do Gospel”.
Brother (brother)
Brother (brother)
Prepare one more happy way for my Lord
With many love and flowers, and music, and music
Brother (brother)
Brother (brother)
Prepare one more happy way for my Lord
With many love and flowers, and music, and music
Jesus Christ is my Lord, Jesus Christ is my friend
Jesus Christ is my Lord, and Jesus Christ is my friend
(BEN JOR, 1974)
A partir da leitura de Amanda Palomo, Santos (2014) ressalta que da fusão
do Gospel e do rhythm and blues surgiu a Soul Music. E que gospel normalmente
é o termo usado para definir a forma dos Negro Spirituals, um gênero musical
60
surgido de uma rearticulação dos hinos evangélicos com concepções do que seria
um canto coral africano ou afro-americano. “Brother”, portanto, é uma canção de
tintas religiosas tanto na letra quanto na forma.
A conexão de Ben Jor com elementos musicais e religiosos presentes na
cultura norte-americana não se dá apenas através dos meios de comunicação de
massa. Após o sucesso de “Mas que nada” no Brasil, Ben Jor recebeu uma bolsa
do Itamaraty para percorrer os EUA com apresentações ao lado de Sérgio Mendes.
A temporada de meses passada lá aproximou Ben Jor dos costumes e visões de
mundo presentes na sociedade dos Estados Unidos, sobretudo na comunidade
afro-americana. Desde o seu retorno, ele passou a incluir elementos do Soul e do
Funk em sua sonoridade. Em 1971, ele lança “Negro é lindo”, que estava em total
consonância com os desejos e aspirações do crescente movimento negro dos
EUA, presentes no slogan “Black is beautiful”.
“Jesus de Praga”, de Tropical (1976b), posteriormente regravada como
“Menino Jesus de Praga”, em A banda do Zé Pretinho (1978) é outra
manifestação da devoção do autor em Jesus Cristo. No entanto, a canção é
também uma manifestação do “catolicismo santorial” que se mostrou bastante
comum na obra de Ben Jor.
Salve o menino
Salve o bom menino
De Jesus de Praga
Lá lá, lá lá
Nas horas fáceis e difíceis
Me ajudou e me mostrou o amor
Nos caminhos errados e perigosos
Me protegeu e me guiou
Com a sua cândida inocência de menino santo
Ele vai pelo mundo
De canto em canto
Ouvindo lamentos e prantos
Pedindo ao seu pai, Nosso Senhor
Que lhe ajude a proteger os que dele necessitar
Com perseverança, carinho, fé e amor
(BEN JOR, 1976b)
61
O autor escreveu a canção acima inspirado em uma famosa imagem do
menino Jesus venerada na Igreja da Nossa Senhora Vitoriosa em Praga, na
República Tcheca. Com apenas 47 centímetros, a peça de madeira é decorada com
vestes ricamente bordadas doadas pelos fiéis, que atribuem a ela os mais
prodigiosos milagres. É a essa reputação a que o compositor se refere quando
canta a música composta no fim dos anos 1970.
Por fim, a “A terra do filho do homem (Jerusalém)”, de Sonsual (1985), é
uma das canções mais bíblicas de todo o repertório do artista: fala do Milagre da
Anunciação e do nascimento de Cristo. Na letra, ele reúne outros elementos
comuns a suas canções de cunho religioso e cristão, como o anjo Gabriel, a figura
dos santos: São José e Santa Maria, e a narração de eventos épicos acontecidos em
um passado distante. O Oriente, assim como nas canções em homenagem a São
Jorge e na história de vida de São Cristóvão, é mais uma vez o território escolhido
por ele para encenar a canção.
Jerusalém, Jerusalém
A terra do Homem
A terra do Filho
A terra do Filho
Do Filho do Homem
Jerusalém, a terra do Filho
Um dia lá no Oriente
Desceu do céu um anjo chamado Gabriel
Um anjo benfeitor que avisou Maria
Que o Divino Espírito Santo lhe fecundou
Maria ia ter um bebê, um bebê em Belém
Jerusalém, Jerusalém
A terra do Homem
A terra do Filho
A terra do Filho
Do Filho do Homem
Jerusalém, Jerusalém
José no princípio se grilou
Mas meditando e dormindo ele sonhou
Com uma voz amiga que lhe dizia
62
Não tenha medo em receber Maria
E depois que o menino nascer
Fuja com eles para o Egito
Escaparás da tirania do rei Herodes
E sua quadrilha
Serás o guardião do Filho de Deus
E de Maria
Virão de terras distantes
Guiados por uma estrela guia
Três reis magos para abençoar
Três reis magos para presentear
Trazendo mirra, incenso e ouro
Para o menino Rei que nascerá em Belém
No dia vinte e cinco de dezembro no Natal
Em Belém
(BEN JOR, 1985)
Seja a partir do “catolicismo santorial”, que transborda em suas
composições ao longo da carreira, dos tratados de teologia que estudou no
seminário, ou da fé pura e simples na figura de Jesus Cristo, Ben Jor se afirma
como o "católico apostólico carioca", com todas as frestas e possibilidades que
esta definição pode oferecer. Se não é possível situar o catolicismo brasileiro num
quadro de homogeneidade, e se existem muitos estilos culturais de ser católico, é
possível afirmar que na obra do autor pode-se enxergar este fenômeno de
amálgama de maneira muito cristalina. Sobretudo quando sincrética e misturada, a
lira benjoriana parece abarcar todos os catolicismos forjados pelo povo brasileiro.
63
A conga está chamando
Vamos todos até lá
Pois a tamba está tocando
Hoje nós vamos sambar
Ié, ié, ié, ié, ié, iá
Ié, ié, ié, ié, ié, iá
Desde que se foi O nosso Rei Nagô, ô, ô
Ninguém jamais fez samba
Ninguém jamais cantou
Ô, ô, ô, ô Um lamento ou uma canção de amor
("A Tamba", Jorge Ben Jor)
4
Ponta de lança africano
Ben Jor mantém com o continente africano uma relação umbilical, que
conversa com a ancestralidade do artista e a cultura com a qual ele teve contato
desde menino. O reflexo desta profunda conexão de um herdeiro da diáspora com
o continente que gestou os seus antepassados é latente em todas as diferentes fases
pelas quais atravessou o seu repertório. Ela se afirma de maneira mais
contundente e poderosa em discos gravados na década de 1970, como Negro é
lindo (1971) e África Brasil (1976a), mas essa marcada ligação já se manifesta de
maneira cristalina logo em sua canção “inaugural”, o primeiro sucesso que
alavancou o desenvolvimento de sua carreira: “Mas que nada”. A canção faz
referência ao Preto Velho, entidade muito popular entre os adeptos da umbanda.
Esse samba
Que é misto de maracatu
É samba de preto velho
É samba de preto tu
(BEN JOR, 1963)
Esta relação entre Ben Jor e África foi largamente percebida e analisada
pela crítica quando do seu surgimento no mercado fonográfico, e é um dos
aspecto mais estudados por aqueles que se dedicam a pesquisar a obra do autor em
trabalhos acadêmicos. Santos (2014) avalia que a música registrada no álbum de
64
estreia do artista, Samba Esquema Novo (1963), é a primeira composição do autor
a refletir aquilo que o pesquisador chama de “texto negro”. O pesquisador avalia
que a menção ao preto velho na letra pode ser entendida como uma referência às
religiões de matriz africana, como a umbanda. Apesar de reconhecer uma
influência estética da bossa nova em “Mas que nada”, Santos (2014) afirma que o
que prevalece na canção é justamente o “texto negro”:
É possível perceber na estética sonora desta canção uma
influência da bossa nova: um violão suave, mas ao mesmo
tempo sincopado, carregado na contrametricidade, fazendo
referência ao samba. Para além da estética bossa-novista, em
Mas que nada é possível perceber um determinado texto que vai
reaparecer ao longo de sua obra: um texto que vou chamar de
negro, com referências a uma ancestralidade africana e as
tradições afro-brasileiras. [...] Estou lançando mão desta
categoria no intuito de dar conta do discurso de afirmação de
uma identidade negra orgulhosa que pode ser percebido nas
letras, canções e nas performances deste artista. O texto negro
pode ser definido como um discurso que defende a igualdade
racial, evoca com orgulho uma imagem grandiosa do continente
africano, como a terra de seus ancestrais, valoriza as tradições
afro-brasileiras, incluindo a religiosidade popular e o culto aos
orixás, e chama atenção para a beleza dos sujeitos negros,
questionando os padrões estéticos vigentes. (SANTOS, 2014, p.
40)
O “texto negro” não é a única manifestação de uma herança africana no
trabalho artístico de Ben Jor. Renato Santoro Rezende nota que Ben Jor – apesar
de circular por gêneros como bossa-nova, rock e soul – está intimamente ligado ao
ritmo afro-brasileiro mais conhecido no mundo: o samba. A conexão benjoriana
com elementos de origem africana, portanto, não se dá apenas no campo do
discurso, mas sobretudo no campo do ritmo.
Transitar entre diferentes gêneros musicais – geralmente
relacionados com alguma origem “afro” – foi uma constante ao
longo de toda a carreira do artista. Contudo, pode-se dizer que
sua “raiz” (ou aquilo que esteve presente ao longo das mais
diferentes manifestações da sua música) sempre foi o samba. As
síncopas, temáticas e instrumentação do samba sempre serviram
como ponto referência para a sua música. Mesmo quando os
seus arranjos aproximavam-se mais do rock (como no disco O
Bidú – Silêncio no Brooklin) ou do funk norte-americano (em
África Brasil), os elementos do samba sempre estão presentes.
(REZENDE, 2012, p. 12)
65
Ben Jor é africano no discurso e no ritmo porque é africano no corpo. A
maneira original e percussiva com que suas mãos atacam as cordas do violão e da
guitarra — que algumas vezes soam como uma escola de samba completa na
avenida e outras como os tambores encantados dos terreiros do Brasil — deixa
bem evidente que os costumes e tradições das religiões afro-brasileiras fazem
parte do rol de influências do artista. Sobre a maneira de Ben Jor palhetar o
violão, Rezende (2012) nota que — apesar de derivado da bossa nova — o
instrumento tocado pelo músico apresenta singularidades desde a afinação até o
encadeamento harmônico.
Uma das marcas mais características da sonoridade de Jorge
Ben é a sua batida de violão. Embora seja muito lembrado e
reconhecido pela sua maneira de tocar o instrumento, Jorge
“descobriu o violão quando entrou para o exército em 62”
apenas um ano antes de lançar o seu primeiro disco. Apelidado
de Pinho Envenenado 22, seu violão possui, já na afinação, uma
singularidade, a corda Ré é afinada em Sol. Essa característica
já é suficiente para fazer com que mesmo utilizando harmonias
simples – com poucos acordes alterados – ou mesmo
encadeamentos harmônicos muito comuns no universo de
música pop e do blues norte-americano – como a cadência II-V-
I – a sua sonoridade seja muito diferente. “Estava mais para os
três acordes empregados na jovem guarda do que para o
refinamento exigido na MPB da época” (TATIT, 1996). Em
entrevista à revista Rolling Stone, Jorge afirma que tentava
copiar as complexas harmonias da bossa nova, porém sem
sucesso. Com isso, acreditava que o resultado dos seus
encadeamentos harmônicos parecia sempre estar errado.
(REZENDE, 2012, p. 23)
Na produção de Ben Jor, aquilo que muitas vezes seria encarado pelos
puristas — das letras e da música — como erro, é incorporado de maneira original
em sua produção. Sejam os versos disformes, adaptados de acordo com a
capacidade vocal do artista, sejam os encadeamentos harmônicos “quebrados”,
que dão às canções certo exotismo e sobrevivem graças às soluções encontradas
pelo artista de posse seu violão, sincopado pela influência do samba. Tatit (2012)
nota que aqueles que “não captam sutilezas melódicas fora de um enquadramento
musical estável” podem enxergar no trabalho de Ben Jor “insuficiência” musical
ou “mau gosto” criativo:
Perceber apenas isso é ficar na superfície do trabalho,
observando sua feição de época, comprometida com a moda
vigente. Pouco ou nada tem a ver com a composição em si.
66
Nesta, Jorge Ben Jor inaugura uma conduta de criação em que
qualquer fragmento de texto pode ser resgatado melodicamente
sem prejuízo da naturalidade enunciativa. Qualquer texto pode
ser tomado de primeira, bem mais pelo conteúdo linguístico que
pela justeza métrica. Cabe à elasticidade melódica corrigir
algum desvio de trajetória que não colabore com a meta final.
Esse nível de utilização dos recursos figurativos nunca foi
atingido por qualquer outro compositor brasileiro (...). Sua
dicção é, igualmente, um paradigma na história da canção
brasileira, ainda muito pouco explorado como recurso de
evolução da linguagem. (TATIT, 2012, p. 220)
Em recente artigo publicado pela revista Cult, o historiador Luiz Antonio
Simas esboça o conceito de “cultura da síncope” enquanto faz um paralelo entre a
umbanda e o futebol. Apesar de não ter sido citado por Simas, penso que Ben Jor
pode ser visto como um dos representantes mais reluzentes desta cultura, que
privilegia o drible, a adaptação inventiva do tempo e do espaço em busca do gol.
A síncope subverte a normatização, busca caminhos que não são
os do enfrentamento, joga com o tempo e o contratempo no
deslocamento do jogo rítmico, traz o segredo da polirritmia
típica da música africana: o bailado sonoro de padrões rítmicos
complexos, geralmente envolvendo um ritmo tocado contra o
outro, que na contraposição se complementam para dar conta
das sutilezas, mais que do som, da vida. As culturas de síncope,
por sua vez, dialogam com o drible, já que são capazes de
“garrinchar” tempo e espaço. E aí penso mesmo no futebol. O
jogo inventado pelos britânicos consistia na tentativa de evitar o
adversário por meio de lançamentos longos, bolas alçadas em
direção ao arco inimigo – o famoso “chuveirinho”, na
linguagem dos boleiros. Em vez do chuveirinho, ou da troca de
passes curtos ou longos, o futebol brasileiro se caracterizou pela
estratégia do drible, aquela que foi corporificada em sua
potência mais ampla por Mané Garrincha. O drible consiste na
tentativa de burlar o inimigo pelo deslocamento do corpo/bola
para o espaço vazio, aquele onde o oponente não está e não
pode chegar. Ao subverter a norma da marcação (como faz a
síncope) e propor o ritmo quebrado, necessariamente inusitado,
capaz de deslocar o jogo para a brecha, Garrincha abre o campo,
amplia o horizonte de possibilidades que, em suma, podem
levar ao gol. (SIMAS, 2020)
Ben Jor é corpo elástico em movimento, que dribla as estruturas fixas das
partituras europeias para gestar canções que abrem o campo, ampliam as
possibilidades que levam ao gol. Logo depois do seminário, o futebol fez parte
dos anos de formação do artista: foi aspirante a jogador profissional do Flamengo
e só parou às vésperas da maioridade. Como é costumeiro acontecer em sua lira,
este interesse se refletiu de maneira cristalina nas letras de Ben Jor, que compôs
67
“Fio Maravilha” (Jorge Ben, 1969), “Zagueiro” (Solta o Pavão, 1975), “Ponta de
lança africano” (África Brasil, 1976a) e “Cadê o pênalty?” (A Banda do Zé
Pretinho, 1978). Na canção de 1976, Ben Jor exalta os predicados de um
futebolista africano cujo talento era tamanho que — sozinho — esvaziava as ruas
de Paris quando atuava nos gramados do futebol francês. O sucesso de um corpo
africano na Europa é matéria prima para a exaltação benjoriana. A ligação com o
continente africano sobressai novamente no “texto negro” da canção e no ritmo,
que remete ao afrobeat do nigeriano Fela Kuti.
Umbabarauma, homem gol
Umbabarauma, homem gol
Umbabarauma, homem gol
Umbabarauma, homem gol
Joga bola, joga bola
Corocondô
Joga bola, joga bola
Jogador
Pula, pula, cai, levanta, sobe, desce
Corre, chuta, abre espaço, vibra e agradece
Olha que a cidade toda ficou vazia
Nessa tarde bonita só pra te ver jogar
(BEN JOR, 1976a)
Não por acaso, a metáfora do futebol é largamente utilizada para descrever
o processo criativo desenvolvido por Ben Jor. Tatit (2012), por exemplo, diz que
para esse compositor toda a sequência linguística é passível de melodização. Ou
melhor: toda bola chutada pelo artista pode resultar em um gol. Algumas bolas até
podem ir para fora durante o jogo, mas cedo ou tarde, o golaço – lance digno de
um “Camisa 10 da Gávea” – aparece.
Penso que a influência do futebol em Jorge Ben Jor é mais
profunda que a sugestão de alguns temas. Jorge compõe como
quem bate na bola de primeira. Às vezes faz apenas uma jogada
comum, que se completa com outras jogadas e vai adensando
sua volumosa produção, toda constituída de recorrências
(tabelinhas) de mitos e filosofias. Às vezes, manda direto a gol e
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surpreende a nação com achados geniais que se transformam em
contagiantes sucessos (embora nem todos os seus grandes
achados tenham se convertido em hits). (TATIT, 2012, p. 213).
Para Simas (2020), “garrinchar” é “arriscar o deslocamento para o vazio,
fugir da previsibilidade, chamar o marcador para a roda, entender o que o corpo
pede, transitar entre o atleta e o dançarino”, “sincopar o tempo para encontrar, no
próprio tempo, o ritmo adequado”. Quando escreve, toca e joga, Ben Jor
“garrincha”. É nas linhas e melodias tortas como as pernas de Mané que vive o
elemento que ilumina a sua obra e a torna tão única na Música Popular Brasileira.
No artigo, o historiador segue com a aproximação entre o futebol e a umbanda,
cuja costura seria justamente a “cultura da síncope”.
O esporte e a religião se encontrariam “na encruzilhada em que o
brasileiro, nas frestas de um sistema excludente, apropriou-se do jogo britânico e
do kardecismo francês para construir seus modos de jogar bola e conversar com
os mortos”. Ele segue explicando que a umbanda é “um sarapatel que mistura
ritos de ancestralidade dos bantos, calundus, pajelanças indígenas, catimbós,
encantarias, elementos do cristianismo popular, do candomblé nagô, das magias e
dos sortilégios de ciganos, mouros e judeus, e do espiritismo kardecista europeu”.
A versão mais famosa para a criação da umbanda do Rio de
Janeiro – uma espécie de mito de origem que não exclui os
sentidos de diversos outros – remete ao dia em que no distrito
de Neves, na cidade de São Gonçalo, em 1908, o jovem Zélio
Fernandino de Moraes sofreu uma paralisia inexplicável. Depois
de certo tempo sem andar, Zélio teria se levantado e anunciado
a própria cura. No dia seguinte, saiu andando como se nada
tivesse acontecido. A mãe de Zélio, Leonor de Moraes, tomou
um susto e levou o filho a uma rezadeira chamada Dona
Cândida, conhecida na região, que incorporava o espírito do
preto velho Tio Antônio. Tio Antônio baixou em Dona Cândida
e disse que Zélio era médium e deveria trabalhar com caridade.
Em 15 de novembro, por sugestão de um amigo do pai, Zélio foi
levado à Federação Espírita de Niterói, difusora do kardecismo
francês no Brasil. Chegando lá, o rapaz e o pai sentaram-se à
mesa. Subvertendo as normas do culto kardecista, Zélio
levantou-se subitamente e disse que ali faltava uma flor,
deixando a turma do centro espírita sem reação. Foi até o
jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a, com um copo de
água, no centro da mesa de trabalho. Ainda segundo a versão
mais famosa para o acontecido, Zélio incorporou um espírito
que batia no peito e dava flechadas imaginárias.
Simultaneamente diversos médiuns presentes receberam
caboclos, índios e pretos velhos. Instaurou-se, na visão dos
membros da Federação Espírita, um furdunço inadmissível (...).
69
No mito da anunciação, o Caboclo das Sete Encruzilhadas
estava insatisfeito porque o centro espírita não permitia a
chegada dos espíritos de índios, caboclos e pretos velhos;
preferia dar passagem apenas aos espíritos já vistos como
desenvolvidos ou em processo de desenvolvimento e
doutrinação. Na religião que o Caboclo das Sete Encruzilhadas
anunciou, os espíritos daqueles que formaram o Brasil aos
trancos e barrancos seriam bem chegados para dar passes,
consultas, curar, dançar etc. (SIMAS, 2020).
Figura 5 - Ben Jor desfila no Salgueiro com o enredo “Festa para um rei negro”, 1971
Fonte: Agência O Globo
Dada a visão preconceituosa dos meios de comunicação de massa para
com elementos da religiosidade africana no Brasil, a relação de Ben Jor com a
umbanda nos anos 1960 não era totalmente explícita, chegando ele mesmo a negar
ser praticante da religião em entrevistas concedidas no início da carreira. O
sociólogo Reginaldo Prandi (2004), um dos maiores estudiosos das religiões afro-
brasileiras, nota que o preconceito de certas camadas da sociedade brasileira com
os praticantes da umbanda e do candomblé faz com que, até os dias de hoje,
muitos dos adeptos dessas religiões se considerem católicos.
Desde o início as religiões afro-brasileiras se fizeram
sincréticas, estabelecendo paralelismos entre divindades
africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do
70
catolicismo, valorizando a frequência aos ritos e sacramentos da
Igreja católica. Assim aconteceu com o candomblé da Bahia, o
xangô de Pernambuco, o tambor-de-mina do Maranhão, o
batuque do Rio Grande do Sul e outras denominações, todas
elas arroladas pelo censo do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) sob o nome único e mais conhecido:
candomblé. Até recentemente, essas religiões eram proibidas e,
por isso, duramente perseguidas por órgãos oficiais. Continuam
a sofrer agressões, hoje menos da polícia e mais de seus rivais
pentecostais, e seguem sob forte preconceito, o mesmo
preconceito que se volta contra os negros, independentemente
de religião. Por tudo isso, é muito comum, mesmo atualmente,
quando a liberdade de escolha religiosa já faz parte da vida
brasileira, muitos seguidores das religiões afro-brasileiras ainda
se declararem católicos, embora sempre haja uma boa parte que
declara seguir a religião afro-brasileira que de fato professa.
Isso faz com que as religiões afro-brasileiras apareçam
subestimadas nos censos oficiais do Brasil, em que o quesito
religião só pode ser pesquisado de modo superficial. (PRANDI,
2004, p. 16).
Santos (2014) usa o exemplo da Revista do Rádio, publicação de “linha
editorial sensacionalista”, que certa vez classificou Ben Jor como “macumbeiro da
bossa nova, por falar de preto velho em suas músicas”. Algumas edições depois,
em 1963, o artista, contrariado, rebate a classificação dada pelo veículo
jornalístico em uma entrevista que, em alguns momentos, faz lembrar um
interrogatório policial.
Os que me consideram assim não conhecem as raízes da minha
música, bem como meus ancestrais. Eu como já declarei (...)
tive o meu avô nascido na Abissínia (...). Dele herdei o sangue e
quem sabe? Um pouco das coisas e dos costumes etíopes, daí
até ser macumbeiro é coisa muito diferente!
Julga então seu estilo de cantar diferente dos pontos de
macumba?
Pra ser absolutamente sincero, nem sequer conheço os tais
pontos, excluídos aqueles tão copiados para músicas de
carnaval.
Confessa que já assistiu a uma sessão de macumba?
Eu jamais estive em um terreiro. Se isso não fosse verdade teria
a coragem de dizer, pois não constitui desdouro para ninguém,
coisas que aqui no Rio, pela beleza folclórica, tornou-se até um
atrativo turístico. Eu não fui, mas na primeira oportunidade irei.
(Revista do Rádio, 1963)
Apesar de negar e diminuir, pelo menos no início, a influência clara que os
aspectos da religiosidade africana exerceram em seu trabalho, Ben Jor sempre
71
reivindicou a ancestralidade etíope como elemento definidor da sua musicalidade.
Ele costuma falar com orgulho de sua linhagem e, vez ou outra em suas letras, dá
a entender que sua família materna faz parte da realeza deste país. Em “Criola”,
de Jorge Ben (1969), isso se evidencia de maneira pronunciada, por exemplo.
Santos (2014) nota que uma notícia de publicada em março de 1974 nas páginas
do diário carioca O Globo “indica que o artista ganhou de presente da gravadora,
em seus 10 anos de carreira, uma viagem ao continente africano, mais
especificamente à Etiópia, ‘para conhecer seus parentes’”.
Visitar a terra de sua mãe é algo que sempre esteve no horizonte
deste artista. Em 1970, Jorge Ben já dizia que pretendia viajar
para “pesquisar” ritmos etíopes. Esta ancestralidade africana,
etíope, aparece em diversas de suas composições, como em
Criola, onde Jorge diz que sua mãe é “filha de nobres
africanos”. Izabel Guillén aponta como os ancestrais são
importantes na construção da identidade dos sujeitos negros,
como são exemplos a serem seguidos nas lutas cotidianas, no
combate ao racismo e na busca por uma sociedade mais justa
para negros e negras. O nome que este cantor e compositor
escolheu usar em sua carreira artística também evidencia esta
intenção de reverenciar seus ancestrais: Jorge Ben é a inversão
do nome de seu avô etíope, Ben Jorge, como declarou em 1963
à Revista do Rádio. Nesta mesma ocasião, foi questionado sobre
seu estilo musical e mais uma vez se remeteu às suas origens:
“Dizem que se chama ‘afro-bossa-nova’”. (SANTOS, 2014, pp.
127-128)
Se, à época das queixas à Revista do Rádio, Ben Jor frequentava terreiros
ou não é impossível precisar, mas em Samba Esquema Novo (1963) há mais uma
referência indireta à religiosidade africana em "A Tamba", que louva o
instrumento percussivo usado nos terreiros da Alta Guiné. Parte do método de
repetição amplamente usado por Ben Jor, o verso “A tamba está tocando” aparece
novamente em “Nascimento de um príncipe africano”, do álbum O Bidu: Silêncio
no Brooklyn (1967), onde a referência a entidades das crenças afro-brasileiras se
torna mais evidente.
Hoje vai ter festa no Gonga
Vai sambar Aruan
Vai sambar Inaná
Vai sambar Ogan
Vai sambar Obá obá
72
A tamba está tocando
Um novo príncipe está nascendo
Está até chovendo
Mas é um bom sinal
É um futuro rei pra combater o mal
É um futuro rei pra combater o mal
Ifan e Nabejada
Protejam o nosso príncipe
Ele é o nosso futuro rei
Agô oba obá agôlê
Agô oba obá agôlê
(BEN JOR, 1967)
Rezende (2012) nota que na letra da canção podemos ver um alto índice de
palavras africanas. Porém, mais do que estabelecer uma conexão com o
continente, o pesquisador sustenta que de fato Ben Jor tenta estabelecer uma
relação mais direta com elementos próprios à religião afro-brasileira. O
pesquisador acrescenta:
Essa conexão é estabelecida logo no começo da letra quando ele
canta “Hoje vai ter festa no Gonga”. O termo Gonga se refere ao
local (altar) onde ficam as imagens dos santos e orixás. Em
seguida, Jorge canta sobre a felicidade das figuras importantes
do ritual (sejam orixás ou pessoas do culto) que, ao se
depararem com o nascimento, começam a celebrar sambando,
como por exemplo Inaná e Ogan. Com isso, o compositor situa
seu herói, que está nascendo, como uma figura mítica dentro de
um ambiente religioso de origem africana (REZENDE, 2012, p.
128).
No segundo disco da carreira de Ben Jor, Sacundin Ben Samba (1964), o
Preto Velho aparece novamente como personagem central em “Jeitão de Preto
Velho”, canção que se situa temporalmente no período da escravidão e retrata a
complexidade do relacionamento entre negros e brancos da sociedade brasileira de
então. Eufrázia Cristina Menezes Santos (1999) revela que, de acordo com a
cosmogonia da umbanda, pretos velhos representam os espíritos dos velhos
africanos e dos ex-escravos que trabalharam e viveram no Brasil.
Segundo ela, estas figuras são tidas por trabalhar para o bem, prestar
auxílios àqueles que necessitam e praticar a caridade, “através da palavra ou de
73
serviços mágicos-religiosos” (p. 184). Ela nota também que aos Pretos Velhos são
atribuídas qualidades que costumam abundar nos personagens benjorianos:
"paciência, resignação, bondade, tolerância e humildade” (idem). Até mesmo o
discurso das entidades muitas vezes se parece com o do próprio autor: "Estão
sempre a repetir que nada sabem, pedem desculpas pela simplicidade das suas
palavras” (ibidem).
Olha o jeitão do olhar de preto velho
Quando vê sinhá passar
Olha com carinho, ternura
Enciumado, orgulhoso
Pois ele é o padrinho de sinhá
Foi quando sinhazinha nasceu
Às pressas teve que se batizar
Preto velho foi padrinho
E conseguiu sinhá salvar
(BEN JOR, 1964)
Um ano depois, no quarto álbum de estúdio (Big Ben), é a vez do
surgimento de Maria Conga, que de acordo com Santos (2014) também pode ser
conhecida pela denominação de Preta Velha na umbanda. A letra também cita o
aluá, bebida fermentada servida durante festas da religião. Em “Na Bahia tem”,
Ben Jor demonstra dominar a terminologia das religiões afro-brasileiras ao
enumerar itens e comidas que fazem parte das cerimônias, e chega a citar
diretamente o candomblé. Nesta mesma canção, ele também faz menção às
crenças indígenas que foram amalgamadas ao catolicismo popular e às
religiosidades africanas no sincretismo brasileiro. É interessante notar que apenas
dois anos separam o “drible” na sensacionalista Revista do Rádio desta letra.
Na Bahia tem, tem, tem
Na Bahia tem ecó
Na Bahia tem caruru
Na Bahia tem efó
Na Bahia tem vatapá
Na Bahia tem mungunzá
74
Na Bahia tem acarajé
Na Bahia tem abará
Na Bahia tem candomblé
Tem Nosso Senhor do Bonfim
Que é o nosso padroeiro
Todos os dias ele abençoa
O nosso Brasil inteiro
Bahia de Tupinambá
Bahia de Tupiniquim
Bahia abençoada
Às vezes mata sem fim
(BEN JOR, 1965)
Santos (2014) nota que, na década de 1960, o culto aos orixás passa a ser
amplamente reconhecido e valorizado por parte da classe média intelectualizada, o
que proporciona certa legitimidade social aos cultos de matriz africana. Essa lenta
mudança paradigmática parece ter deixado o autor mais à vontade para louvar o
culto aos orixás em suas letras ao longo do tempo. O interesse do autor pelo
assunto deslancha a partir dos fins da década de 1970. Portanto, não se resume, no
entanto, a essas figuras populares que povoam as cerimônias da umbanda. Ben Jor
também se interessa pelos orixás do candomblé. Além do já citada devoção por
Ogum/São Jorge, outras figuras importantes das religiosidades afro-brasileiras vez
ou outra aparecem na lira benjoriana. Todas, no entanto, de maneira lateral,
esporádica.
Em “Agora Ninguém Chora Mais”, também de Big Ben, o protagonista é
“protegido de Iansã”, senhora dos ventos e das tempestades. Oxóssi, orixá da
mata, dos animais e do alimento, aparece em “A fonte de Paulus V”, que a
princípio fala de uma fonte de água em Roma, na Itália.
Naquela Praça Trilussa
Naquela Praça Romana
Onde a coruja dorme
E a águia vigia
A Fonte de Pont Max
É lá que o arco-íris
75
Descansa e bebe água
Por lá passa a cavalaria
Cavalaria marinha
Conduzindo o machado
O machado de Oxóssi
(BEN JOR, 1986)
No universo benjoriano, é possível que passem pela Fontana dell'Acqua
Paola — gigantesca fonte construída em 1612 pelo Papa Paulo V para levar água
pura aos habitantes de uma pobre região romana que ainda precisavam beber do
poluído Rio Tibre — duas cavalarias. Uma delas conduzindo, o machado de
Oxóssi, o caçador de uma flecha só. A outra, a espada de São Jorge, seu duplo nos
terreiros baianos.
Penso que esta canção representa muito bem o intrincado sistema de
crenças onde opera a lira de Ben Jor. Ao misturar elementos da religiosidade
europeia com figuras e personagem dos cultos afro-brasileiros, Ben Jor
“garrincha” mais uma vez as religiões oficiais, engessadas, para criar uma
amálgama sincrética bastante digna da “cultura da síncope” que marca o seu
processo criativo de maneira significativa.
76
Use o conhecimento com perseverança e
consciência
Pratique, transmute à vontade
Com lealdade
E sinceridade
Seja atento e assíduo porque
A qualquer hora, a qualquer momento
Pode estar nascendo o amor
("Luz Polarizada", Jorge Ben Jor)
5
A fórmula alquímica da canção imperecível
Quatro anjos adornam a fachada de pedra da casa número 51 da Rua
Montmorency, em Paris. Cada um dos seres alados leva nas mãos instrumentos
musicais do medievo, como cítolas e saltérios (figuras 6 e 7). O antigo prédio,
erguido em 1407, foi a residência de Nicolas Flamel, um escriba cuja fama de
alquimista atravessou os séculos e chegou à cultura pop dos nossos tempos.
Naquele prédio de três andares, ele viveu ao lado da mulher Penelle e, segundo
contam as lendas, estudou antigos manuscritos que o levaram à transmutação de
metais em ouro e à obtenção da Pedra Filosofal.
Secreta, tradicional e iniciática, a alquimia se valeu de símbolos cifrados
para transmitir adiante o conhecimento acumulado ao longo de séculos por seus
adeptos. Os anjos instrumentistas da casa de Flamel, portanto, estão lá por um
motivo específico. Os filósofos herméticos, como também são chamados os
alquimistas, tinham a música em alta conta. Para eles, a perfeição com que
melodia e harmonia se unem em uma composição musical era uma boa metáfora
para as operações alquímicas. Em A letra e a voz: a 'literatura' medieval, Paul
Zumthor (1993) argumenta que a poesia teve importância para a preservação da
sabedoria dos alquimistas. Ela também foi fundamental para sua consolidação na
cultura popular:
Com efeito, a alquimia, tanto quanto a poesia, não possui nem a
ambição nem a função de descobrir o novo. Só precisa, como a
poesia, transmitir segredos; envolve com um ritual o
cumprimento de sua tarefa: o rito põe em ação o que fala. Daí a
permanência (...) das imagens fundamentais e das estruturas
metafóricas da linguagem alquímica que penetra no Ocidente
cristão no século XII. Alguns desses elementos foram
77
consignados por escrito, mas é graças à transmissão oral que o
conjunto conserva sua coerência. Graças a ela, retalhos do saber
filosofal filtram-se fora do círculo dos iniciados e, já se supôs
por várias vezes, informam a sensibilidade, senão a ideologia,
de alguns poetas (ZUMTHOR, 1993, p. 82).
Os apontamentos de Eliade (1979) em Ferreiros e Alquimistas corroboram
a visão de Zumthor. Para o primeiro, há um elo fundamental entre o fazer artístico
e o labor alquímico: “Parece haver (...) um estreito laço entre a arte do ferreiro, as
ciências ocultas (xamanismo, magia, cura, etc.) e a arte da canção, da dança e da
poesia. Essas técnicas solidárias parecem, além disso, ser transmitidas numa
atmosfera impregnada de sagrado e de mistério, que comporta iniciações, rituais
específicos, 'segredos de ofício’” (p. 77-78).
Figuras 6 e 7 - Anjos instrumentistas na fachada de Nicolas Flamel em Paris
Fonte: Acervo pessoal
É certo que esses “retalhos" informaram a sensibilidade e a ideologia de
um músico e poeta brasileiro. Sabe-se que Jorge Ben Jor visitou a casa de Nicolas
Flamel pelo menos duas vezes. A primeira delas foi no início dos anos 1970,
quando ele também passou pela Torre de Saint Jaques, outro monumento ligado
aos alquimistas na capital francesa. Ao Jornal do Brasil, em 1978, o compositor
carioca detalhou a visita e afirmou que foi nas viagens à Europa que encontrou
78
livros para saciar um antigo interesse pelo assunto. Em outra oportunidade, fez
questão de levar Gilberto Gil a tiracolo. Lá, a dupla presenciou um fenômeno
"incrível", conforme Ben Jor contou em uma conversa com a revista Trip, em
2009. Discreto como um alquimista de suas canções, se negou a revelar detalhes
daquilo que seus olhos viram. Esquivo como em quase toda interação com a
imprensa, se limitou a dizer que a dupla enxergou algo "bonito, não feio".
Embora a biografia de Ben Jor seja repleta de lacunas e algo incapturável,
sabe-se que o compositor teve o primeiro contato com a alquimia ainda na
infância, nas visitas que fazia à biblioteca esotérica do avô, integrante do
movimento Rosa-cruz. Na juventude, quando frequentou as salas de aula do
seminário São José, pode conhecer os textos de Santo Tomás de Aquino, autor de
Tratado da Pedra Filosofal e a arte da alquimia. Em entrevista ao jornal O
Globo, em 1983, ele deu uma declaração que coaduna com a inferência de
Zumthor e que revela os motivos da sua aproximação com o tema.
O alquimista era o cientista de seu tempo, ele queria transformar
o mundo, só que usando processos diferentes. (...) Os
alquimistas de posses pagavam um músico para memorizar as
fórmulas sob a forma de melodias. No fundo, eu acho que não
queria ser um alquimista, mas o músico do alquimista (BEN
JOR, 1983).
Por diversas vezes, o compositor já se referiu ao próprio método de
trabalho como "alquimia musical". O termo ganhou certa popularidade na
imprensa, já que sintetiza de modo simples a capacidade que Ben Jor tem de
mesclar ritmos — sincretizar influências. Como o crítico José Ramos Tinhorão
nota em uma resenha publicada em 1974, o artista parecia disposto a "procurar a
pedra filosofal da moderna música popular” (Jornal do Brasil, 1974) brasileira.
Ao tratar do “original” e “criativo” A Tábua de Esmeralda, Tinhorão faz uma
ressalva quanto a onda mística que tomou conta da primeira metade dos anos
1970 na Música Popular Brasileira, que ele enxerga um mero movimento
mercantil: “Depois que a guerra de mercado, no campo industrial, criou o mito da
necessidade do novo (para estimular as vendas fornecendo, na realidade, as
mesmas coisas, com rótulos diferentes), os compositores de músicas ao nível da
classe A – que é a grande consumidora – precisaram adaptar-se às regras do
marketing”. No entanto, faz uma ressalva: “Mas a surpresa é que o compositor
consegue seus objetivos com uma força criativa, uma invenção formal e um
79
sentido de poesia, que o próprio absurdo se torna nas suas músicas um elemento a
mais de atração”.
Através da leitura de Toulmin, Costa e Silva (2014), por sua vez, relaciona
a ascensão de temas místicos do cancioneiro nacional a “uma reconexão quase
súbita com algo que estava adormecido” (p. 36), “uma retomada coletiva de
valores que haviam sido progressivamente deixados de lado pela intensificação do
racionalismo moderno desde o Renascimento” (idem). Ao retomar e reconectar-se
com as escrituras da Alquimia, Ben Jor, de certa maneira, aplica a recomendação
de Eliade:
Só há um meio de compreendermos um fenômeno cultural
estranho à nossa atual conjuntura ideológica: é descobrirmos o
seu centro e aí nos instalarmos, a fim de podermos, a partir dele,
chegar a todos os valores que comanda. É tornando a nos
colocar na perspectiva do alquimista que alcançaremos uma
melhor compreensão do universo da alquimia, e que lograremos
medir-lhe a originalidade. A mesma abordagem metodológica
impõe-se a todos os fenômenos culturais exóticos ou arcaicos:
antes de julgarmos, temos de chegar a compreendê-los bem e
assimilar a sua ideologia, sejam quais forem os seus meios de
expressão: mitos, símbolos, ritos, comportamentos sociais…
(ELIADE, 1979, p. 12)
É interessante lembrar que o trabalho que envolvia a busca pela Pedra
Filosofal era chamado pelos alquimistas de “A grande obra”. Eliade (1979, p. 35)
explica que a alquimia resulta de séculos de experiências pré-científicas realizadas
durante o desenvolvimento da metalurgia: “Ao acelerar o processo de crescimento
dos metais, o metalúrgico precipitava o ritmo temporal: o tempo geológico era
transformado por ele em tempo vital. Essa audaciosa concepção, segundo a qual o
homem assegura a sua plena responsabilidade diante da Natureza, já nos permite
pressentir a obra alquímica”.
É com base em tais experiências rituais relacionadas com as
técnicas metalúrgicas e agrícolas que se foi precisando pouco a
pouco a ideia de que o homem pode intervir no ritmo temporal
cósmico, de que pode antecipar um resultado natural, precipitar
um crescimento. Não se tratava, é óbvio, de ideias claras,
formuladas com precisão, mas antes, de pressentimentos, de
adivinhações, de “simpatia”. Temos aí, não obstante, o ponto de
partida dessa grande descoberta de que o homem pode assumir a
obra do Tempo, ideia que encontramos, claramente expressa,
nos textos ocidentais tardios. Temos, também aí, voltamos a
dizê-lo, o fundamento e a justificação da obra alquímica, o opus
alchymicum que tem preocupado a imaginação filosófica
80
durante aproximadamente dois mil anos: a ideia da
transmutação do homem e do Cosmo por meio da Pedra
filosofal. Ao nível mineral da existência, a Pedra realizava o
milagre de suprimir o intervalo temporal que separava a
condição atual de um metal “imperfeito” (“cru”) da sua
condição final (quando ele se teria convertido em ouro). A
Pedra realizava a transmutação de maneira quase instantânea:
substituía-se ao Tempo. (ELIADE, 1979, p. 61)
É em A Tábua de Esmeralda, de 1974, que a alquimia transborda no
cancioneiro benjoriano de maneira mais intensa. Influenciado pelas viagens à
França e produzido graças a uma carta branca de André Midani, então diretor da
gravadora Phillips, o disco se encaixa em um momento de singular misticismo na
produção fonográfica brasileira: é contemporâneo de Krig-ha, Bandolo! (1973),
viagem de Raul Seixas e Paulo Coelho pelo universo ocultista de Aleister
Crowley, e de Racional Vol. 1 (1975), álbum de Tim Maia influenciado pelo
Universo em Desencanto de Manoel Jacintho Coelho.
Nele, estão as canções “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”,
“O Homem da Gravata Florida (A Gravata Florida de Paracelso)”, “O Namorado
da Viúva” e “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda (Tratado
Hermético Escrito pelo Faraó Egípicio Hermes Trimegisto e Traduzido por
Fulcanelli)”. A recepção crítica ao álbum rapidamente o transformou em um dos
mais célebres de Ben Jor. Em sua coluna no jornal O Globo, Nelson Motta
também teceu loas ao disco e recorreu à mesma palavra utilizada por Tinhorão
para definir o resultado das incursões benjorianas nos temas misteriosos e
esotéricos: “absurdo".
Jorge Ben subverteu inteiramente todas as regras de poética
dentro da música, falando seus versos, ignorando totalmente
qualquer relação exata sílabas-notas em favor de uma riqueza
expressionista. Subverteu de forma total todas as batidas do
violão existentes, transformando o instrumento em percussão &
cordas, valorizando ritmicamente de forma nunca ouvida. Jorge
deu um nó difícil de desamarrar nas posições elitistas (e de certa
forma até fascistas) tão presentes na poética musical brasileira
dos últimos tempos, tão cheia de ‘regras absolutas’,
‘compromissos’ e ‘intenções’ profundamente fechadas e
duvidosas. Ele explode tudo isto com sua maneira de ver as
coisas intensamente livre e criando valores e situações absurdos,
no melhor e mais excitante sentido da palavra (MOTTA, 1974)
81
Obscuro, sim. Absurdo, não. Nicolas Flamel desempenhou papel de
destaque na construção do imaginário benjoriano sobre a alquimia. As ilustrações
que estampam a capa de A Tábua de Esmeralda foram retiradas do seu Livro das
Figuras Hieroglíficas. E ele é também o muso insuspeito de Ben Jor em
“Namorado da viúva”, canção bem-humorada inspirada em sua relação com
Penelle, conforme revelou à revista Trip:
Nicolas Flamel, ele é que é meu muso. Ele e a mulher dele. Ele
é “O namorado da viúva”. Ninguém queria ela – não, eles
queriam, mas tinham medo, porque ela era rica e já era viúva
três vezes. Flamel é do século 15. É o meu muso. (BEN JOR,
2009)
Mas não é o único. Do início ao fim, A Tábua de Esmeralda tem
referências a outros personagens da alquimia, que Ben Jor maneja com a sua
poética pessoal. O disco começa com “Os alquimistas estão chegando os
alquimistas”, uma espécie de abre-alas para o álbum que vem a seguir. A canção
logo enumera diversas qualidades típicas dos filósofos herméticos: são
“discretos”, “silenciosos”, “pacientes”, “assíduos” e “perseverantes”. Autor da
mais aprofundada análise deste disco, Costa e Silva argumenta que Ben Jor se
mirava nos exemplos dos alquimistas, “enxergando virtudes e ensinamentos a
serem seguidos”, de maneira bastante parecida com que ele faz com a figura de
São Jorge da Capadócia, por exemplo.
Passou a cultivar uma relação real com o universo da alquimia,
identificando-se com aqueles personagens e extraindo deles, a
seu modo, modelos de conduta. Na verdade, os alquimistas
integravam um dos arquétipos favoritos de Ben: o dos heróis –
capazes de simbolizar virtudes, diretrizes éticas, ensinamentos
de vida, e de exaltar valores que perpassam a sua lira épica
(COSTA E SILVA, 2014, p. 20)
Ben Jor parece ter fé na alquimia como um caminho para uma profunda
transformação individual. Como se a transmutação do espírito humano fosse um
resultado tão importante do fazer alquímico quanto a metamorfose física pela qual
os metais passam ao fim da Grande Obra. A retidão moral parece ser um
imperativo para quem deseja partilhar um pouco das artes ocultas dos filósofos.
Não à toa, os alquimistas da canção “evitam qualquer relação com pessoas de
temperamento sórdido”.
82
Jung se dedicou por décadas a estudar a alquimia. Ao fim de uma extensa
revisão bibliográfica, o autor concluiu que o segredo essencial da filosofia
hermética está oculto no espírito humano, mais precisamente no inconsciente. A
alquimia, portanto, não poderia ser encarada como um empreendimento
puramente químico e protocientífico, mas como um processo de transformação
filosófica. No livro Psicologia e alquimia (1990), ele afirma que os alquimistas
compreendiam que sua obra se achava ligada de algum modo à alma humana e
suas funções.
O processo alquímico da época clássica (da Antiguidade até
mais ou menos meados do século XVII) consistia numa
investigação química propriamente dita, na qual se imiscuía
mediante projeção material psíquico inconsciente. Eis por que
os textos ressaltam sempre a condição psicológica da obra. Os
conteúdos de que se trata são os que se prestam à projeção na
matéria química desconhecida. Dada a natureza impessoal e
puramente objetiva da matéria ocorrem projeções de arquétipos
impessoais e coletivos. Em paralelo com a vida espiritual
coletiva daqueles séculos, trata-se principalmente da imagem do
espírito aprisionado na escuridão do mundo, isto é, de um
estado irredento, doloroso de uma inconsciência relativa,
reconhecida no espelho da matéria e por isso trabalhada na
matéria. (JUNG, 1990, p. 496)
Mais uma vez, essa perspectiva é ratificada por Eliade, segundo a qual não
se chegaria ao mais nobre dos metais sem o enobrecimento interior em primeiro
lugar.
Sem sombra de dúvida, os alquimistas alexandrinos, desde o
começo, estavam conscientes de que, ao perseguirem a
“perfeição do metais”, procuravam alcançar a sua própria
perfeição. O Liber Platonis quartorum atribui grande
importância ao sincronismo entre o opus alchymicum e a
experiência íntima do adepto. “As coisas são tornadas perfeitas
pelos seus semelhantes, e é por esse motivo que o operador deve
participar da operação”. (ELIADE, 1979, p. 122)
Segunda faixa do disco de 1974, “O homem da gravata florida”, cujo título
alternativo é “A gravata florida de Paracelso”, é uma das canções mais complexas
de todo o álbum. Na letra, de traços tão simbolistas quanto parnasianos, Ben Jor
se dedica a descrever longamente os detalhes de uma gravata florida, “um jardim
suspenso dependurado no pescoço de um homem simpático e feliz”.
Lá vem o homem da gravata florida
83
Meu Deus do Céu… que gravata mais linda
Que gravata sensacional
Olha os detalhes da gravata
Que combinação de cores
Que perfeição tropical
Olha que rosa linda
Azul turquesa se desfolhando
Sob os singelos cravos
E as margaridas, margaridas
De amores com jasmins
Isso não é só uma gravata
Essa gravata é um relatório de harmonia e de coisas belas
É um jardim suspenso
Dependurado no pescoço
De um homem simpático e feliz
Feliz, feliz porque
Com aquela gravata qualquer homem feio
Qualquer homem feio vira príncipe
Simpático, simpático, simpático
Porque… com aquela gravata
Ele é bem chegado
É adorado em qualquer lugar
Por onde ele passa nascem flores e amores
Com uma gravata florida singela como essa
Linda de viver
Até eu
(BEN JOR, 1974)
Em O espírito na arte e na ciência (1991), Jung conta que Teophrastus
Paracelsus foi um médico famoso na Idade Média, também tido como alquimista
pelos seus contemporâneos. Nascido Philippus Aureolus Bombast Von
Hohenhein, a 10 de novembro de 1493 nos arredores da cidade de Zurique, na
Suíca, Paracelso era tido por possuir um temperamento difícil e ser praticante de
métodos que desafiavam e em certa medida ultrajavam a tradição da medicina
acadêmica da época. Percorreu a Europa curando doentes na mesma medida em
84
que colecionava inimizades. O médico escandalizava as rígidas regras da
Universidade de então porque ministrava suas aulas em alemão e andava pelas
ruas usando seu surrado avental de laboratório. De acordo com registros
históricos, o homem era descrito por inimigos como um ébrio incorrigível, um
bêbado sem virtudes. Pelos admiradores, era visto como um médico astuto, capaz
de resolver até mesmo as mais perigosas enfermidades. Jung faz uma descrição
pouco lisonjeira da aparência de Paracelso, que vai de encontro aos elogios
tecidos por Ben Jor na segunda faixa de A Tábua de Esmeralda.
Ao invés da compleição de um herói revolucionário, [a
natureza] deu-lhe uma estatura de apenas 1,50m, uma aparência
doentia, o lábio superior muito curto e que não encobria os
dentes (característica frequente de pessoas nervosas) e, ao que
parece, uma pelve, que se revelou feminina, quando foram
exumados seus ossos, em Salzburgo, no Século XIX. Corria,
mesmo, a versão de que era eunuco, mas, quanto saiba, não há
maiores evidências a respeito. Em todos os casos, parece que o
amor nunca teceu suas rosas na vida terrena dele, e seus
espinhos lhe eram supérfluos uma vez que seu caráter era, de
qualquer forma, espinhoso. (JUNG, 1991, p.3)
É pouco provável, portanto, que Ben Jor, um ávido leitor do assunto, não
conhecesse a má fama de Paracelso quando decidiu vesti-lo com uma gravata
florida “linda de viver”. Que Ben Jor, um compositor que usou do amor como
matéria prima em todos os momentos da sua carreira, tenha elegido como um de
seus “musos” um homem que, de acordo com os relatos, não experimentou o
amor, soa como uma divertida ironia. Como, se séculos mais tarde, escrevesse que
para fazer justiça ao seu herói da alquimia. Paracelso não era simpático e
provavelmente não se preocupou em ser feliz. E, como mostram os registros
históricos, não era “bem chegado em qualquer lugar”.
Nesta canção, a gravata florida decorada com uma rosa azul turquesa pode
ser vista como um dispositivo que reflete a prática da alquimia. O verso-chave que
dispara esta concepção é, portanto, “Com aquela gravata qualquer homem feio/
Qualquer homem feio vira príncipe”. É a prática da alquimia, que transmuta a
alma tanto quanto o metal, que transformou o controvertido Paracelso em um
homem digno de nota que, ao contrário de seus detratores, sobreviveu para ser
tratado como um dos pais da Medicina moderna e também como ícone místico
entre os iniciados. Na cosmogonia de Ben Jor, a gravata florida transforma o
85
metal vil em nobre, o homem impuro em puro. É a perfeita metáfora para a
transformação humana inerente ao fazer alquímico, explicitado por Jung e Eliade.
Depois de analisar o texto “Teatrum Chemicum”, Jung (1990, p.91) notou
que “a ‘flor de ouro da alquimia’ pode também ser ocasionalmente uma flor azul”.
É com ela estampada em seu peito – e por causa dela, sobretudo – que Paracelso é
“esperado”, “bem chegado” e “adorado” em qualquer lugar. Com o adereço no
pescoço, canta, “qualquer homem feio vira príncipe”. Nesta passagem, novamente
Ben Jor alude à transformação humana inerente à filosofia hermética.
Jung (1991) argumenta que Paracelso foi um espírito típico de uma grande
época de transição, em que os valores religiosos começavam a ser postos à prova
pelos experimentos pré-científicos: “Seu intelecto, empenhado na busca e na luta,
já se libertara de uma visão espiritualista do mundo, mas seus sentimentos ainda
permaneciam presos a ela” (p. 8), escreve. O psicanalista argumenta que, de
acordo com o médico medieval, o sujeito é o principal objeto da transformação
alquimista, tornando-se “maduro”, “evoluído”.
Esta observação de difícil compreensão refere-se, no entanto, à
doutrina secreta, ao arcano. Pois a alquimia não é só um
empreendimento químico como o entendemos hoje, mas – e isto
talvez no mais alto grau – um processo de transformação
filosófica, quer dizer, uma estranha modalidade de ioga, no
sentido de que também a ioga visa a uma transformação
psíquica. Por causa disso os alquimistas colocaram a
transmutatio paralelamente à simbólica de transformação da
Igreja cristã (JUNG, 1991, 17)
É curioso notar que a tensão entre a razão e religião também se manifesta
no cancioneiro de Ben Jor. Em 1979, Caetano Veloso defendeu no Festival de
Música Popular da Rede Tupi a canção “Dona Culpa ficou solteira”, de autoria de
Ben Jor. A apresentação foi marcada pelas vaias que o baiano e A Outra Banda da
Terra receberam da audiência. Apesar de não ter se classificado entre as
vencedoras, a composição carrega versos emblemáticos, que, de certa maneira,
ajudam a iluminar toda a produção musical do carioca:
Pois aqui só se voa com duas asas
Com a asa da fé e com a asa da ciência
Quem voar sem nenhuma das duas
Vai cair e se arrebentar
Sem ter tempo pra pedir clemência
86
Ou história pra contar
(BEN JOR, 1979)
Ao falar de alquimia, sabedoria ancestral que legou diversos
procedimentos e descobertas à química moderna, penso que o autor encontra o
equilíbrio fundamental entre religião e conhecimento científico na sua obra. A
alquimia, conforme Eliade (1979) argumenta, é uma doutrina fundada em uma era
em que as duas “asas” citadas em “Dona Culpa” ainda batiam juntas: o alquimista
se valeu da fé para fazer (proto)ciência.
Também é importante ressaltar que todos estes livros encontrados na
coleção do avô, nas estantes do seminário e nas livrarias europeias passa pelo
singular filtro benjoriano. Jorge é conhecido por se aproximar de maneira muito
própria de escritos de terceiros para compor. No passado, foi acusado de plágio
por samplear dois versos de Victor Hugo e por reproduzir trechos de um texto de
jornal, procedimentos estéticos muito próximos do recorte antropofágico de
Oswald de Andrade. Assim como nos métodos de Oswald, a princípio, o material
que serve de fonte para esse tipo de recorte benjoriano não era considerado
normalmente um elemento da esfera das artes: configurava, de maneira geral,
corpo estranho, material de fim puramente utilitário: sinopses, enciclopédias,
textos didáticos de todas as sortes. Ao tocá-los com a sua intervenção poética, Ben
Jor os transporta diretamente ao patamar da arte.
Em “Hermes trismegisto e sua celeste tábua de esmeralda”, penúltima
faixa do disco de 1974, o compositor usa da intertextualidade e faz pouquíssimos
ajustes no texto seminal da alquimia. De acordo com o mito, o texto foi escrito
pelo faraó egípcio Hermes Trismegisto, uma mistura do Hermes grego com o deus
egípcio Toth, e encontrado, muitos anos depois, por soldados de Alexandre, o
Grande. As primeiras menções à Tábua Esmeraldina, no entanto, só aparecem a
partir do século VIII em textos árabes. Verdadeiro ou não, o documento foi
estudado com atenção por nomes como Isaac Newton, Alberto Magno e Roger
Bacon, além do próprio Nicolas Flamel, que buscava nele orientações na busca
pelo metal nobre. Ben Jor se valeu da tradução de Fulcanelli, um alquimista ativo
nos anos 1920, para compor. Em um dos versos, Hermes/Fulcanelli/Ben Jor diz:
“Tu terás por este meio a glória do mundo e toda obscuridade fugirá de ti”.
87
A complexidade do texto que, não à toa, transformou o adjetivo
“hermético” em sinônimo de algo difícil de compreender, não intimidou Ben Jor.
Munido do seu antimétodo, ele explicou ao Diário de Notícias, em 1974 como se
comportava diante dos escritos dos antigos filósofos: “Os textos alquímicos são
complicadíssimos, mas eu os vou interpretando de acordo com a minha
compreensão, sentimento e bem estar” (Diário de Notícias, 1974).
A lista de interseções entre a lira benjoriana e a alquimia não se esgota em
A Tábua de Esmeralda de Flamel, Paracelso e Hermes Trismegisto. Quatro anos
antes, em Ben, surgem duas canções que Ben Por reputa como suas duas primeiras
experiências musicais diretas com a alquimia. Ambas são centradas no segredo e
no silêncio, em aquilo que não pode ser revelado. "Moça" tem os enigmáticos
versos “Há um girassol maravilhoso/ Sendo plantado agora/ Faltam cinco
minutos/ Eu não posso te dizer/ Mais nada, mais nada”. Ao citar romances de
Dostoiévski em “As rosas eram todas amarelas”, Ben Jor confundiu — driblou —
Augusto de Campos no apêndice de "Balanço da Bossa". Onde o concreto viu
pensamento bruto, estava, na realidade, um conhecimento lapidado durante
milhares de anos: a alquimia.
Na estranha letra de As rosas eram todas amarelas Jorge Ben
começa com o que parece uma enumeração caótica: 'o
adolescente/ o ofendido/ o jogador/ o ladrão honrado/ eles
sabiam/ mas ninguém falava/ esperando a hora de dizer/
sorrindo/ que as rosas/ eram todas amarelas'. Coincidência ou
não, os quatro personagens enunciados correspondem aos títulos
de novelas ou romances de Dostoiévski: O Ladrão Honrado,
Humilhados e Ofendidos, O Jogador e O Adolescente. Em
seguida, ele desenvolve um discurso raro na literatura da música
popular, ao esquadrinhar as relações entre poesia e vida, dizer e
não-dizer: 'lendo um livro de um poeta/ da mitologia
contemporânea/ sofisticado senti que ele era/ pois morrendo de
amor/ renunciando em ser poeta/ dizia/ basta eu saber/ que
poderei viver sem escrever/ mas com o direito/ de fazer quando
quiser/ porque/ ele sabia, mas esperava a hora de escrever/ que
as rosas eram todas amarelas'. 'Être poète, non. Pouvoir l'être'.
(Valéry). Que sabedoria! Pura intuição? Pensamento bruto? Seja
o que for, é fantástico. (CAMPOS, 1974, pp. 340-341)
A sequência para A Tábua de Esmeralda veio no ano seguinte. Solta o
Pavão mantém intacto o interesse de Ben Jor pela alquimia, oferecendo novos
pontos de vista do autor sobre o assunto. Além de citar passagens inteiras e pedir
benção a Santo Tomás de Aquino em uma faixa, o compositor deixa de lado os
88
segredos e cifras para incluir uma menção direta à pedra filosofal na bem-
intencionada “Velhos, flores, criancinhas e cachorros”. Nela, o eu-lírico implora a
Deus pela “pedra celestial angular miraculosa”, pois precisa ele mesmo “salvar os
velhos, as flores, as criancinhas e os cachorros”. Novamente aí o tema do herói se
manifesta, de maneira ultradireta, em seu cancioneiro. Por fim, é a vez de “Luz
polarizada”, que mistura uma detalhada descrição de métodos da alquimia com
conselhos morais para quem está ouvindo: “pois aquele que forja a falsa prata/ e o
falso ouro/ não merece a simpatia de ninguém”. A música começa com duas
instruções: “Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Oh, meu filho, lava as
escórias com a água tridestilada”. Os versos que abrem a canção foram retirados
das páginas de um o romance francês de 1960, escrito por Louis Pauwels e
Jacques Bergier: o best-seller O despertar dos mágicos (1960). Nos anos
seguintes ao seu lançamento, a trama de realismo fantástico se estabeleceu como
leitura obrigatória entre os contemporâneos de Ben Jor que se interessaram pelos
estudos da arte da alquimia.
A “trilogia mística” de Ben Jor, fase de sua discografia em que a
admiração pelos saberes alquímicos se expressa de maneira mais direta, se fecha
com África Brasil, de 1976. Além de produzir belas linhas que cantam a herança
da religiosidade e dos costumes africanos ao Brasil, o primeiro disco eletrificado
do artista desde a frustrada experiência com O Bidu: Silêncio no Brooklyn (1969)
tem mais uma transliteração de Hermes Trismegisto em “Hermes Trismegisto
escreveu” e uma canção sobre “O Filósofo”. Nesta canção, o filósofo chega ao
ambiente acompanhado (novamente) por rosas, mostrando “como o belo pode ser
simples/ E o simples pode ser belo”.
Finda a trilogia mística, Ben Jor escreve apenas mais duas canções que
conversam diretamente com a alquimia, ambas derivadas de alguma expressão ou
nome em latim. “Occulatus Abis”, gravada no disco Salve Simpatia (1979) e
“Turba Philosophorum”, que batiza o disco gravado por um veterano Ben Jor, em
2004. A primeira foi retirada de uma inscrição presente na última gravura do
Mutus Liber (1677), o livro mudo da alquimia. Uma das maiores façanhas do
hermetismo medieval, o volume representa, em 15 imagens, a grande obra
alquímica. A letra da canção é idêntica à de “Errare humanum est”, registrado em
A Tábua de Esmeralda, com exceção do refrão, que repete “occulatus abis”. A
expressão em latim pode ser traduzida literalmente como “o que vê bem deriva
89
dele”. A frase em conjunto com a iluminura contribui para entender que aquele
que passa pelo processo alquímico adquire olhos, vê melhor, alcança a
clarividência que o fim da obra alquímica concede.
A derradeira menção aos antigos alquimistas na grande obra de Ben Jor é
“Turba philosophorum”, não por acaso título de um livro que tenta transmitir os
saberes da alquimia grega para o árabe. Literalmente, pode ser traduzido como
“Assembleia dos filósofos”. É nesse espírito de coletividade que Ben Jor justapõe
versos de diferentes canções que compôs no passado. Entram nas linhas trechos
de “Hermes Trismegisto escreveu”, “Velhos, flores, criancinhas e cachorros” e
“Occulatus abis”. A redundância é característica primeira da obra de Ben Jor, e o
autor nunca se furtou a recorrer às suas antigas letras para tecer outras novas. Os
novos excertos inseridos na canção refletem sobre a passagem do tempo e a
responsabilidade do homem para com a sua própria espécie.
Não que o saber alquímico não tenha perpassado outros momentos da
discografia de Ben Jor. Até mesmo antes de irromper oficialmente no cancioneiro
do autor em Ben, traços destes ensinamentos filosóficos e herméticos podem ser
encontrados desde a sua estreia fonográfica, em 1963. Afinal de contas, a letra de
“Rosa, menina rosa” pode ser ouvida de maneiras diferentes depois que as rosas
de Paracelso e do Filósofo surgiram na lira benjoriana. Naquela insuspeita e
ingênua canção de amor, um jovem Ben já anunciava que as melodias que
balançavam carregavam consigo segredos: “Pois o meu samba/ Tem mistério/
Mas é gostoso de sambar”.
Valente (1999, p. 120) nota que a “voz é o único instrumento que se
caracteriza por reunir num mesmo corpo executante e meio de execução”: “a voz
é, portanto, mais do que palavras que são pronunciadas, mais do que a qualidade
do som que sai da boca; e o corpo inteiro, caixa de ressonância que fala,
emanando energia”. Para Julio Diniz (2003), a voz é um espaço de criação. Ao
reinterpretar uma canção, um artista conversa com todas as outras interpretações
dela e a rasura com uma assinatura vocal própria, desencadeando, assim, o que o
pesquisador batizou de "genealogia das vozes".
O que me interessa basicamente nessa reflexão [...] é a idéia de
que existe uma construção identitária, uma construção
significativa, uma possibilidade de debate cultural, em
particular nos anos 60, através do que eu chamo de a voz como
assinatura, uma assinatura rasurada de outras vozes, uma
90
genealogia do canto no Brasil. Para isso eu utilizo uma idéia que
é a de pensar a canção através da corporificação que a voz
outorga ao conjunto enunciação/enunciado, ao escriturante
como letra e ao musicante como som. (DINIZ, 2003, p. 99)
Após usar a metáfora da voz como assinatura, Diniz (2003, p. 99) afirma
que é preciso “pensar a canção através da corporificação que a voz outorga ao
conjunto enunciação/enunciado, ao estruturante como letra e ao musicante como
som”. Claudia Neiva de Matos (2006, p. 1), por sua vez, argumenta que a
execução ou performance de uma canção, ao interagir com texto e música, “perfaz
o triângulo estético e semiótico que constitui a obra”:
A metáfora feliz da “voz como assinatura” se adequa
particularmente à canção popular mediatizada: por um lado,
destaca o papel autoral do intérprete, ao lado dos compositores e
letristas, na construção da canção enquanto obra; por outro lado,
evoca o caráter específico da vocalidade da canção popular, ao
sugerir que esta existe no quadro de uma certa escrita, que é a
inscrição fonográfica. (MATOS, 2006, p. 3)
Quando de Ben Jor grava os sulcos do disco de vinil como se fosse o
mítico faraó munido de uma ponta de diamante, ele dialoga com todas as vozes
ancestrais que contribuíram para que aquele texto atravessasse os séculos e
chegasse aos nossos dias. Especialmente na fase alquímica de Ben Jor, há um
exacerbado sentido de permanência, como se o compositor quisesse ultrapassar o
tempo cronológico para se inscrever em uma duradoura tradição milenar. É
curioso, portanto, que A Tábua de Esmeralda seja o disco mais lembrado quando
fãs e críticos repassam a sua obra em revista nos dias de hoje. É importante
também notar que é neste período que Ben Jor parece atingir certa maturidade
lírica e sonora, abandonando alguns maneirismos e vícios juvenis que vez ou
outra irrompem durante a primeira fase de sua produção fonográfica.
O homem que quis ser o músico dos alquimistas já havia manifestado essa
ideia na entrevista ao JB, em 1978: “Todos os bons alquimistas estavam sempre
acompanhados por um trovador. Era a eles que os mestres passavam suas
fórmulas mágicas que, transformadas em músicas, se tornavam imperecíveis”.
Eliade nos lembra que os alquimistas tinham especial interesse pelo ouro
porque ele seria o elemento químico mais maduro:
A “nobreza” do ouro é portanto fruto da sua “maturidade”: os
outros metais são “comuns” por estarem “crus”, “não maduros”.
91
Ora, a finalidade da Natureza é levar a um termo o reino
mineral, é a sua “maturação” última. A conversão “natural” dos
metais em outro está inscrita em seu próprio destino. Em outros
termos, a Natureza tende para a perfeição. Mas como o Ouro
contém um simbolismo altamente espiritual [“O ouro é a
imortalidade, repetem os textos indianos], é evidente que,
preparada por certas especulações alquímico-soteriológicas,
uma nova ideia vem à tona: a do papel assumido pelo alquimista
como Salvador fraterno da Natureza: ele ajuda a Natureza a
cumprir sua finalidade, a alcançar o seu “ideal”, que é o remate
da sua progenitura — mineral, animal ou humana —, até chegar
à maturidade suprema, isto é, à imortalidade e à liberdade
absolutas) sendo o ouro o símbolo da Soberania e da autonomia)
. (ELIADE, 1979, p. 43).
A resistência à corrosão, portanto, era uma das características do ouro que
mais encantava os alquimistas. Por sinal, aquela casa decorada com anjos
musicais que Ben Jor visitou nos anos 1970 resistiu a duas grandes guerras,
incêndios e revoluções. Hoje, a residência de Flamel é reconhecida por
historiadores como a mais antiga ainda de pé em toda Paris. Quando cantou as
virtudes dos filósofos herméticos e traduziu seus tratados para a MPB, Ben Jor
parece ter escrito para durar, como as pedras da fachada do edifício da Rua
Montmorency ou então como uma pepita de ouro escondida debaixo da terra. É
como se ele buscasse uma canção imperecível. Quanto tempo as suas criações vão
seguir resistindo à corrosão implacável do tempo, ninguém é capaz de precisar.
Mas é certo que ele trabalhou em sua grande obra mirando-se nos exemplos mais
duradouros que encontrou.
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Pois eu vou fazer uma prece
Pra Deus, nosso Senhor
Pra chuva parar
De molhar o meu divino amor
Que é muito lindo É mais que o infinito
É puro e belo
Inocente como a flor
(Jorge Ben Jor, “Chove chuva”)
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Considerações finais: O dia em que o Sol declarou o seu
amor pela Terra
O pré-projeto que redundou nesta dissertação de mestrado foi gestado
quando ainda me encontrava sob efeito das 136 páginas de A Tábua de Esmeralda
e a pequena Renascença de Jorge Ben, publicadas pela Cobogó, e dos dez
capítulos do documentário em áudio “Imbatível ao extremo – Assim é Jorge Ben
Jor!”, veiculados pela Rádio Batuta do Instituto Moreira Salles. No entanto, desde
a primeira infância, já havia qualquer coisa em mim que me arrastava até o campo
gravitacional da música de Jorge Ben Jor. Consigo me lembrar com alguma
clareza do breve momento de arrebatamento musical que senti quando “Chove
Chuva” aconteceu pela primeira vez diante dos meus ouvidos. A assinatura vocal
havia sido feita com um lápis de ponta dupla: parecia capaz de carregar ao mesmo
tempo sentimentos antagônicos como a tristeza e a felicidade. Par de emoções que
se materializa nas estrofes escolhidas como epígrafes do último ato desta
pesquisa.
É curioso que “Chove Chuva” tenha sido a irrupção da música de Ben Jor
que permaneceu registrada nos arquivos muitas vezes imprecisos das memórias de
criança. Cheguei a este mundo apenas em 1991, ano em que a ultra comercial
“W/Brasil” era a canção de Ben Jor que tocava nas rádios. Fui descobrir (meia
década depois, talvez?) aquela composição de 1963 – que embora estivesse
presente no álbum de estreia, nunca foi trabalhada como single pelo departamento
de marketing da Phillips – tocando no aparelho três em um que ficava na antiga
sala da minha avó, em Paraty. Hoje, ao concluir esta etapa, percebo que já
93
estavam ali, nas letras do encontro inicial, tanto o diálogo com o divino, quanto as
simbólicas flores com que Jorge Ben Jor decoraria os seus versos durante toda a
sua carreira. Estava ali também a fé inquebrantável nas possibilidades humanas,
nas palavras encantadas, ditas em forma de oração, que – no fim das contas –
seriam responsáveis por levar a chuva embora e trazer a felicidade plena e ultra
utópica – também estes dois reconhecidos elementos recorrentes e caros ao
antimétodo de Ben Jor.
Recorrências, por sinal, renderam a Ben Jor a fama de artista repetitivo. A
repetição, sabemos, é elemento fundamental para a perpetuação dos rituais e
cerimônias. A cada vez que se repete um mantra ou uma oração, a palavra salta do
plano concreto e humano em direção ao terreno metafísico do sagrado. Mesmo
quando não está falando do divino, como nesta simples canção de amor, Ben Jor
canta como quem reza. E isto me parece ter ficado claro após estes dois anos
mergulhado em seu cancioneiro.
Ao mesmo tempo, o salgueirense Ben Jor escreve como se fizesse parte da
ala dos compositores do Grêmio Recreativo Unidos da Simpatia, entidade
fantástica criada por ele na canção “O dia que o Sol declarou seu amor pela
Terra”, registrada no álbum Bem-vinda, Amizade (1981). Como os trovadores de
Zumthor, que escreviam, encenavam e interpretavam as canções de gesta nas ruas
e praças durante o Medievo, o sambista Ben Jor surge como compositor, ritmista,
intérprete e carnavalesco de seu próprio barracão. Suas canções se desenvolvem
como enredos em evolução em plena Avenida Marquês de Sapucaí. Os
incontáveis shows da Banda do Zé Pretinho que pude acompanhar ao vivo depois
de vir morar no Rio de Janeiro – muitos deles com Neném da Cuíca fazendo às
vezes de passista desta agremiação – só reforçaram esta certeza dentro de mim.
Cada vez que Ben Jor sobe em um palco para cantar suas canções-orações em
shows-rituais, o ambiente passa por uma súbita e radical alteração. Abundam,
neste momento mágico, as tais pletoras de alegria que Caetano Veloso cantou em
"Fora da Ordem".
94
Figura 8 - Ben Jor e o Trio Mocotó em 1971
Fonte: Agência O Globo
Parece-me digno de nota também que, já nos primeiros anos da
adolescência, o reencontro com a lira benjoriana tenha se dado através do
controverso projeto Acústico MTV, lançado por Ben Jor no início do Século XXI.
Nele, o artista finalmente se reencontrou com o violão após anos palhetando única
e exclusivamente a sua guitarra cantante. Paradoxalmente, o violonista que criou
uma puxada própria e causou uma pequena revolução no ritmo brasileiro decidiu
tocar o instrumento de madeira adaptado com cordas de aço, como se fosse o seu
irmão elétrico. Ben Jor nunca foi um artista de decisões previsíveis e fáceis de
explicar. É mesmo como o meia cerebral e imarcável que Tatit descreveu direto
da arquibancada: capaz de produzir gols de placa porque atua com repertório
particular, original, com uma visão do jogo completamente diferente daquela dos
outros jogadores em campo. Quando dribla, “garrincha” tempo e espaço para
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atingir o seu objetivo final. Foi assim que produziu e registrou no álbum ao vivo
de 2002 a versão “Os Alquimistas Estão Chegando”, fonograma que me
introduziu ao repertório alquímico de Ben Jor.
Dez anos depois, Ben Jor chegou a viajar até Paraty para a gravação um
segundo volume acústico para a emissora paulistana – desta vez com uma
guitarra. A ideia, no entanto, não foi adiante e serviu apenas para que eu ouvisse
novamente esta famosa canção de A Tábua de Esmeralda, desta vez no areal do
Pontal, onde praia e o rio se encontram – poucos metros distante daquela casa
onde anos antes “Chove chuva” havia ecoado de maneira definitiva em mim. O
cancioneiro de Ben Jor, como Gilberto Gil formulou para Paulo da Costa e Silva,
se assemelha a um estuário onde diversos corpos hídricos desembocam, afinal de
contas.
Depois de me graduar em jornalismo e obter alguma experiência dentro do
mercado de trabalho das redações, quando já havia passado a compreender a
pesquisa da Música Popular Brasileira como elemento fundamental para a
constituição da minha trajetória como profissional engajado nos debates culturais
do Rio de Janeiro, é que finalmente me deparei com perspectivas teóricas
genuínas sobre a lira benjoriana. Neste momento é que comecei a ter uma
consciência mais plena do andar que o artista ocupa no edifício da Música Popular
Brasileira.
Desta maneira, meu primeiro ímpeto foi pesquisar a influência específica
de textos e saberes alquímicos nas letras de Ben Jor. Só depois de aprovado no
mestrado é que realmente me dei conta do desafio ao qual eu havia me proposto,
do tamanho do obstáculo que como pesquisador calouro pretendia superar em tão
curto espaço de tempo. Jung, referência bibliográfica em que eu desejava me
apoiar, gastou dez anos estudando em absoluto silêncio antes de declarar em
público que se interessava pela doutrina. Também ficou óbvio no início que meu
conhecimento da língua latina era infinitamente inferior ao que Ben Jor acumulou
quando passou pelas salas de aula do Seminário São José. Percorrer somente os
labirintos linguísticos e semânticos da doutrina que cultivava a obscuridade pela
obscuridade não levaria apenas os dois anos que a pesquisa de mestrado permitiria
e poderia dar em um beco sem saída.
Mais válido, portanto, seria entender a carga teopoética que aparece
também nos momentos em que a voz de Ben Jor canta a alquimia, mas que gira
96
em torno sobretudo da relação do artista com a fé e com o modo de ser sagrado no
Mundo. O diálogo com o elemento religioso e o discurso sagrado são elementos
estruturantes de toda a sua obra. E foi esta, então, a matéria prima da qual foi feita
esta dissertação. Busquei desenhar a fé benjoriana – em Deus, mas também na
Humanidade – de uma forma mais ampla e aberta, assim como ele mesmo fez
durante toda a sua obra. Para citar uma correspondência de Mario de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade, Ben Jor sempre teve “espírito religioso pra com a
vida”:
Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz
de viver a vida: é ter espírito religioso. Explico melhor: não se
trata de ter espírito católico ou budista, trata-se de ter espírito
religioso pra com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu
sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma
manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma
boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach
e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que
vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois
como um romance a que darei a impassível eternidade da
impressão. Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta
pra certos moços de tendência modernista brasileiros é isto:
gostarem de verdade da vida. Como não atinaram com o
verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam se, ficam tristes ou
então fingem alegria o que ainda é mais idiota do que ser
sinceramente triste. Eu não posso compreender um homem de
gabinete e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem
um pouco de gabinete demais. Meu Deus! se eu estivesse nessas
terras admiráveis em que vocês vivem, com que gosto, com que
religião eu caminharia sempre pelo mesmo caminho (não há
mesmo caminho pros amantes da Terra) em longas caminhadas!
Que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas depois do
estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo
da ação corporal. (ANDRADE, 2015, p. 20)
A maneira livre e desamarrada com que Ben Jor se apoiou nos textos e
tratados antigos me deu também certa flexibilidade e margem para manobras. Em
paralelo com a revisão bibliográfica, aconteceu a pesquisa nos acervos dos jornais
e revistas. Sem qualquer dúvida, esta se tornou a parte mais divertida da jornada.
Foi refrescante mergulhar nas edições diárias e semanais da nossa imprensa a
partir dos anos 1960. Certos processos só se desvelam completamente diante de
um pesquisador quando se acompanha a reprise da História capítulo a capítulo,
como ela foi registrada nas fontes primárias no calor do momento, sempre
consciente da necessidade permanente de escová-la a contrapelo.
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Considerei pedir uma entrevista com o autor, a fim de confrontá-lo com
minhas incertezas e perquirições, mas me pareceu um movimento precoce, que
poderia gerar mais dúvidas do que propriamente certezas. Talvez se justifique
plenamente em um futuro projeto de pesquisa para o doutorado, mas para esta
dissertação bastaram a voz e as ideias de Ben Jor registradas nas páginas e telas da
nossa imprensa – O Pasquim, Trip e Roda Viva, sobretudo.
No interior da Bahia há uma tradição entre os santeiros – mestres
escultores que usam o barro para modelar figuras sagradas – de criar imagens de
dupla-face: de um lado, o santo católico; do outro, o orixá. No mesmo corpo
físico, como nos grifos lendários do Oriente Médio e da Grécia Clássica, habitam
forças tão opostas quanto complementares. Alguns exemplos desses trabalhos
sincréticos foram expostos no conjunto de instalações, esculturas e manifestos
reunidos pelo artista visual Bené Fonteles na mostra “Ágora: OcaTaperaTerreiro”,
da 32ª Bienal de São Paulo, em 2016. Penso que essas estátuas duplas são boas
imagens para descrever a relação que Ben Jor mantém com as histórias e tradições
que envolvem os cultos a São Jorge e Ogum no Brasil. Pude demonstrar que, em
seu altar, os dois personagens são modelados como arquétipos fundamentais dos
heróis – sagrados e profanos – que ele cantou ao longo da carreira. Também ficou
evidente como ele se serve livremente da palavra encantada dos textos sagrados –
a oração do Santo Guerreiro, por exemplo – para escrever.
Depois, contei como a afeição de Ben Jor pelas figuras do catolicismo
popular não se restringe apenas ao cavaleiro da Capadócia, e citei os exemplos de
São Cristóvão, São Pedro e Santa Clara para fundamentar essa afirmação.
Também procurei demonstrar como os anos no Seminário Menor exerceram
influência na sua maneira de escrever. Como Santo Tomás de Aquino deixa claro
em sua Suma Teológica, o objeto da fé é a veritas prima – verdade primeira,
originária. Ela é o pórtico fundamental por onde se adentra na concepção tomista
das virtudes. Na lira benjoriana, a fé também parece ser imprescindível para o
acesso à lista de valores e predicados que o autor costuma atribuir aos
personagens que admira.
Em seguida, mostrei a relação inicialmente dúbia com que Ben Jor tratava
os temas da religiosidade africana nos primeiros anos da sua carreira: como as
letras estavam em descompasso com as declarações na imprensa, muito por conta
daquilo que Reginaldo Prandi (2004) apontou como o preconceito e a
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discriminação que sofreram os adeptos dessas religiões no Brasil ao longo dos
séculos. Contei também como vocabulários e práticas destas maneiras sagradas
afro-brasileiras de se estar no Mundo foram se afirmando conforme as letras do
artista passavam a cada vez mais a emanar um determinado texto negro. Também
investiguei as raízes de sua conexão familiar com a Etiópia e o desdobramento da
"cultura de síncope" proposta por Simas (2020) na sua maneira de tratar os temas
da umbanda e o candomblé.
Por fim, como se a dissertação tomasse a forma de um ouroboros, voltei
aos alquimistas, personagens que foram o ponto de partida desta jornada. A
eternidade sugerida pelo símbolo mitológico da cobra que morde a própria cauda
também era perseguida por Paracelso e sua gravata florida; Flamel e a viúva
Penelle; e Hermes Trismegisto e a tabula smaradigna. Mostrei como a relação de
Ben Jor com o assunto passa pela alquimia interna – o processo de transformar o
chumbo da experiência humana na Terra em ouro. Ben Jor queria ser o trovador
dos alquimistas, escrever fórmulas secretas em forma de canção para eternizá-las
— mais uma vez, portanto, se aproximando da palavra encantada que lhe é tão
cara no trato com São Jorge e com as demais crenças populares de matriz europeia
e africana.
Este trabalho jamais pretendeu fechar o assunto ou ser capaz de encontrar
uma conclusão definitiva para a complexa relação de Ben Jor com os mistérios da
fé e da criação. Pelo contrário, quero crer que cada capítulo abriu dezenas de
possibilidades interpretativas para pesquisadores que se interessam no trabalho
deste artista. Da minha parte, fico satisfeito em poder contribuir com um pequeno
item que se soma à fortuna crítica benjoriana, que faço votos que continue a
crescer no mesmo ritmo dos últimos anos.
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São Paulo, São Paulo, 26 nov. 1980.
SOUZA, Tárik de. ‘África-Brasil’ A supremacia do terceiro mundo sobre a
tecnologia (nem sempre voluntariamente) importada. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 21 nov.1976.
. “Jorge Ben assegura que ‘Mocotó’ é sério”. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 25 out.1970.
. “Jorge Ben o acrobata sem rede”. Jornal do Brasil, Rio de
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MOON, Scarlet. “Jorge Ben: ‘onde é que você vai, SPEED?”. Correio da
Manhã. Rio de Janeiro, 9 nov. 1972..
TEIXEIRA, Faustino. Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo.
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TINHORÃO, José Ramos. O gênio de Jorge Ben ou ninguém pode mudar
chumbo em ouro. Jornal do Brasil, 27 mai. 1974.
“O pá-tropi no FLAG”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 set. 1972.
“O sucé de Jor na Euro”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jan. 1970.
3. DISCOGRAFIA
3.1 ÁLBUNS:
BEN JOR, JORGE. Samba esquema novo. Philips/Universal, 1963 (2009).
. Sacundin Ben samba. Philips/Universal, 1964 (2009).
. Ben é samba bom. Philips/Universal, 1964 (2009).
. Big Ben. Philips/Universal, 1965 (2009).
. O Bidu – Silêncio no Brooklin. Artistas Unidos, 1967.
104
. Jorge Ben. Philips/Universal, 1969 (2009).
. Força Bruta. Philips/Universal, 1970 (2009).
. Negro é Lindo. Philips/Universal, 1971 (2009).
. Bem. Philips/Universal, 1972 (2009).
. 10 anos depois. Philips/Universal, 1973 (2009).
. A tábua de esmeralda. Philips/Universal, 1974 (2009).
. Solta o pavão. Philips/Universal, 1975 (2009).
. África Brasil. Philips/Universal, 1976a (2009).
. Tropical. Island Records/Phillips, 1976b.
. A Banda do Zé Pretinho. Som Livre, 1978.
. Salve Simpatia. Som Livre, 1979.
. Alô, alô como vai? Som Livre, 1980.
. Bem-vinda, Amizade. Som Livre, 1981.
. Dádiva. Som Livre, 1983.
. Somsual. Som Livre, 1985.
. Ben Brasil. Som Livre, 1986.
. Ben Jor. Warner, 1989.
. 23. Warner, 1993.
. Homo Sapiens. Sony Music, 1995.
. Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum). Universal, 2004.
. Recuerdos de Asunción 44. Som Livre, 2007.
BEN JOR, Jorge e GIL, Gilberto. Gil & Jorge Ogum Xangô. Philips/Universal,
1975 (2009).
MARIA, Zé. Tudo azul: Bossa nova e balanço. Continental. 1962.
PAGODINHO, Zeca. Uma prova de amor (Ao vivo). Universal. 2009.
VELOSO, Caetano. Cores, nomes. Phillips. 1982.
3.2 COMPACTOS
BEN JOR, JORGE. Aleluia/Você não é Ave Maria, mas é cheia de graça.
Philips, 1966.
4. DEPOIMENTOS
COSTA E SILVA, Paulo da. Imbatível ao extremo – assim é Jorge Ben Jor!. Rio
de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.
105
Entrevista de Chacrinha a O Pasquim, edição 14 (1969).
Entrevista de Jorge Ben Jor a O Pasquim, edição 21 (1969).
Entrevista de Jorge Ben Jor ao Programa Arquivo N (21/03/2012). Globo News.
Entrevista de Jorge Ben Jor ao Programa Roda Viva (18/12/1995). TV Cultura.
Áudio.