Post on 09-Jan-2023
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL PARA A AÇÃO
PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA PESQUISA EM INSTITUIÇÕES
HENRIETTE T. P. MORATO
Buscar aproximar a Psicologia, como ciência, da
Filosofia, como teoria do conhecimento, é tarefa im-
pertinente. São modos de pensar que nem sequer caminham em
paralelo. Cumpre ao filósofo resgatar o caminho próprio da
Filosofia, enquanto ao psicólogo talvez seja possível caber
compreender o modo de ser psicólogo, como humano que é, não
pelo modelo de cientista da Psicologia.
Desse modo, este trabalho se resume a uma ousadia:
procurar articular algumas considerações da Fenomenologia
(analítica) Existencial de Heidegger e a ação psicológica, no
modo como ocorre na prática e na pesquisa em instituições. O
caminho a percorrer envereda pelos existenciários e, a partir
deles, poder compreender o modo de ser clínico pela sua
acontescência em campo.
Nesse percurso, recorre-se a uma tese de doutorado
(ALMEIDA, 2005) orientada pela autora, que buscou compreender
Aconselhamento Psicológico por uma leitura fenomenológica
existencial. Entremeando, será tentada uma interpretação,
tomando por base alguns textos anteriores a respeito de
compreensões da prática e pesquisa em projetos de intervenção
em instituições.
1
I - Ser clínico: uma possibilidade de leitura fenomenológica
existencial
O termo clínica, provindo do grego kline, significa cama;
assim clínica significaria debruçar-se sobre alguém que está
ao leito. Clinicar seria debruçar-se ou inclinar-se para poder
apreender e escutar aquele que precisa de cuidado em mal
estar. Clínica, então, seria uma modalidade da solicitude1,
fundamentada na escuta.
De fato, ser-com implica em não apenas fazer com
outros, mas também através e por eles, já que, ao preocupar-se
com possibilidades de outros, o ser-aí realiza também suas
possibilidades. Nesse sentido, psicólogos da saúde e da
educação são íntima e explicitamente engajados nesse ofício: o
ser psicólogo deve compreensivamente mover-se no âmbito do
ser-com, no modo de ser clínico, pois o outro é sempre alguém
com o qual o psicólogo profissionalmente se pre-ocupa:
solicitude não é ocupação, mas pre-ocupação.
Partindo de considerações de Heidegger (1927/1984)
acerca da solicitude, há duas formas básicas e extremas: a do
modo da substituição e a do modo liberador. No primeiro, toma-
se o lugar do outro em sua tarefa de cuidar de ser, retirando-
o de realizador de suas próprias possibilidades. Refere-se a
quando o profissional da saúde e da educação, ao invés de
acompanhar seu cliente em suas possibilidades, como1 Solicitude diz respeito a procurar: composta pelo prefixo pro, que se refere a projetono sentido de proyectum, traduzido por lançado adiante e por curar, em sua concepçãode cuidar. Sendo o ser-aí é sempre projetivo, na acepção de lançar-se adiante emdireção a possibilidades, equivale a dizer que o homem é um realizador depossibilidades, sempre conjuntamente com outros.
2
testemunha, compreende-o por interpretações de diversas
teorias explicativas, ou por prescrições tecnicamente
padronizadas, por atitude autoritária portadora da verdade
sobre a experiência: substitui o cuidado do outro por si
mesmo. Já no modo liberador, compreende-se o outro diante de
suas próprias possibilidades, encarregando-o de seu poder-ser
para conduzir-se em dada situação, pertinentemente a seu ser-
no-mundo.
Na experiência cotidiana, o primeiro modo, na esfera da
saúde, revela-se por um saber fazer algo a alguém, intencionado
atenuar o sofrimento do outro. Quanto ao segundo, quando uma
supervisão educativa atenta ao modo como o supervisionando é
tocado pelo cliente, possibilita que o psicólogo se compreenda
nesse encontro, para poder dar seu testemunho como possível
encaminhamento de uma história a seus cuidados; atento ao modo
como é mobilizado em sua experiência com o supervisionando, o
supervisor dirige sua atenção na ressonância estabelecida
entre este e seu cliente, pois cuida do outro se dirigindo
tanto a cenas do passado, quanto ao futuro, dando lugar à
paciência, visto que a solicitude apresenta-se sob viés
temporal.
Desse modo, como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e
para outros, circulando o mundo da alteridade com o qual se
implica e refere na teia de significatividade na qual é.
Aparece em seu estado de aberto em seu próprio ser-no-mundo,
porém também é do lançado ao mundo pelo outro, sempre o
descobrindo numa certa mundanidade à qual se reporta:
compreendendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro
3
em seu mundo. Assim, o eu nunca é dado a partir de si mesmo: é
um poder-ser que desenvolve possibilidades dadas pelo mundo,
pois que lançado, o ser-aí aceita ou refuta os modos através
dos quais os outros cuidam de ser, identificando-se ou
distinguindo-se. Por esse modo de ser, percebe diferenças ante
a alteridade, simultaneamente desenvolvendo características
específicas e organizando estilos que o diferenciam dos
outros, nem sempre se revela como autenticidade.
Assim, a condição de ser-em e de ser-com do ser-aí
recolhe e expressa, como logos, a maneira de ser do homem: pode
dizer algo porque já recolheu, reuniu, juntou esse algo junto
a outro, (de legen em alemão como colocar junto). Como
conhecimento, recolher refere-se a captar o que foi visto,
sendo possível falar sobre: sobre algo que se apreendeu,
escutou. Desse modo, compreender, dizer e escutar são muito
próximos e articulados, expressando o modo pelo qual o eu já
se encontra no mundo junto a outros: o eu sempre é numa forma
afetiva, humoral, de encontro com o que está acontecendo,
constituindo o seu ser-no-mundo uma fatia de sua história.
Para Almeida (2005, p. 178), “O encontrar-se, condição
ontológica da manifestação ôntica do encontro humoral com o
que há no mundo, surge da possibilidade do homem como ser-no-
mundo, sendo os humores a manifestação pela qual a vida é dada
ao humano”.
1. Ser afetado
4
Uma escuta clínica atenta aos estados de humor, sendo
possível, através deles, compreender o aí (mundo) no qual cada
um está situado: medo em mundo ameaçador; mau humor em mundo
que falha; alegria em mundo vibrante; angústia em mundo
inóspito e carente de sentido, revelando o cotidiano transitar
de uma emoção para outra. A este modo Heidegger (1927/1984)
denomina de indiferença afetiva cotidiana: movimento com
emoções sem grandes diferenças, uniformizadas e sem
ressonância intensa.
O estado de humor, como abertura para o mundo, revela o
modo do ser aí nesse mundo: é nessa afetividade que está mais
plenamente entregue a si mesmo como quem de fato é, e não pela
idéia que tem do mundo. Através da emoção, o eu situa-se no
mundo, compreendendo tal situação, pois a apreensão do mundo
dá-se através do modo pelo qual o eu nele se insere. Emoção,
por emergir do mundo, não é algo interno, mas sim se apresenta
através do próprio ser-no-mundo: a emoção refere-se a como se
está no mundo em tal preciso momento.
Se as emoções expressam a situação na qual o eu já está
imerso, mostrando sua circunstância, considerar a emoção algo
intrapsíquico de um sujeito, como pregam teorias psicológicas,
é algo a ponderar. Na constituição de ser aí, o mundo fere2 o eu,
que, por sua vez, a ele se refere, respondendo na justa medida
em que é ferido. Afetando o eu, o mundo lhe é revelado nesse
toque, implicando que o real só é real por ser experienciado
de certa maneira, e não originariamente, modelado por
2 Ferir, do latim ferre, em sentido próprio é levar, carregar, suportar. Assim, omundo é levado para o eu, impactando-o; por sua vez o eu é trazido ao mundo,respondendo a esse impacto. (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam-webster.com in 12 Aug. 2011).
5
conceito. “Implacavelmente, há uma realidade que se abre por
uma emoção e uma emoção que se esculpe numa realidade”
(ALMEIDA, 2005, p. 182): a emoção abre o real, que, por sua
vez, dispõe o eu em determinado estado de ânimo.
Na ação psicológica, pela escuta clínica pode-se captar
que o mundo do cliente/narrador, se converte numa ameaça por
feri-lo ameaçadoramente, respondendo com temor. Assim,
compreende-se que não há um ato de vontade pelo qual se
constitua uma emoção para ser vivida: a emoção convoca o eu,
numa dada circunstância e o eu é por ela colhido. Tocado
inapelavelmente pelos acontecimentos mundanos, “ao eu é
entregue a responsabilidade de ser, respondendo a uma dada
situação, mesmo que cale e não aja.” (ALMEIDA, 2005, p. 182)
Mas como essa condição pode expressar-se e ser
compreendida pela ação psicológica?
No entanto, apesar de ser colhido, é o eu quem vive essaemoção: o eu é inescapável de si através de seus humorese dores. Inclinando-se ao eu com dores, o clínico nãoapreende um funcionamento psíquico perturbado porvicissitudes ou traumas, mas uma situação dolorosacomposta por circunstâncias e por outros. Apresentando-se na condição de uma situação, na qual o eu étestemunhado no momento preciso de seu sofrimento eprocura por cuidado, o Plantão [Psicológico] é um espaçopossibilitador para que a situação do narrador possadesvelar-se em inteireza e complexidade articuladas:debruçando-se sobre a narrativa, o psicólogo podesilenciosamente escutar os desvios de rumo de umahistória, que clama por um sentido pertinente. (ALMEIDA,2005, p. 182)
Ser quem se é diz de caráter de ser e aparecer para simesmo já acolhido numa dada existência, numa determinadacircunstância, e não numa realidade dada como algoindependente do eu. Pelo olhar clínico, apreende-se quea rejeição é um tipo de acolhimento, pois o homem ésempre lançado acolhido, mesmo que seja, em demasia
6
adversa, numa certa facticidade enigmática, já que o eué abrigado de tal modo que só pode ver o que seu olharpermite e ouvir o que é possível. (ALMEIDA, 2005, p.183)
Encontrar-se é a condição de possibilidade pela qual o
eu percebe sua facticidade: por seus humores, o eu apanha-se
em sua facticidade, atualizando como é ferido e como se
refere, por ser uma abertura numa facticidade, de uma
facticidade e para uma facticidade, constituindo-se no modo
pelo qual o eu é no mundo já acolhido3. Desse modo, na ação
psicológica, debruçando-se solicitamente sobre uma história
que clama por um redestinar-se, o clínico é atingido pela
experiência narrada, constituindo sua própria experiência pela
referência a ela: sua compreensão do cliente dá-se por
ressonância e não por empatia (MORATO, 1989). Isto porque a
compreensão empática diz poder compreender o narrador indo ao
mundo fenomenal da experiência “como se fosse ele”, assim,
promovendo uma objetivação da subjetividade tanto do cliente
quanto do psicólogo. Fenomenologicamente, compreende-se o
outro tal como se foi por ele afetado, dada a condição de ser-
com. Numa entrevista de Plantão, implica pôr-se diante do
outro para trabalhar com o que está acontecendo,
primeiramente, tal como4 se é tocado pelo cliente: a
compreensão é originariamente afetiva e acontece no encontro3 O ontológico refere-se à estrutura de possibilidades e o ôntico à configuração daspossibilidades. Só se chega ao ontológico pelo ôntico: compreende-seontologicamente aquilo que se apanha onticamente, ou seja, o que está emmanifestação. Assim, pela condição ontológica do encontrar-se, o eu se encontraconsigo mesmo inapelavelmente.
4 “Tal como” pode ser compreendido como a coisa mesma hursserliana: o real validadopela experiência.
7
do psicólogo com o cliente, acontecendo no entre, por
ressonância.
Assim, o encontrar-se do plantonista com o cliente não
pode ser tomado como recurso para mero acolhimento afetivo
incondicional, mas sim pelo olhar do tratamento ontológico do
encontro: por sua própria condição de ser, se encontra com
outro e a si mesmo. Ou seja, por não ser técnica de
aproximação e acolhimento, “o encontro toca a historicidade:
manifestando-se pelo passado, interroga-se pelo que está
comprometido no presente e futuro. O encaminhamento dessa
interrogação atrela-se ao estado de ânimo de cliente e
plantonista, afetado pelo testemunho narrado.” (ALMEIDA, 2005,
p. 184)
É a experiência humorada/afetiva que abre a
possibilidade do ser-aí deparar-se consigo mesmo, pois a emoção
efetua a realização do real, dando significatividade a tudo
que é: é por ela que o ser humano se dá conta de quão
intransferível é sua possibilidade de ser, expressa no
próprio estar presente num mundo aí lançado: o eu sempre está
lançado numa situação, num certo sentido norteador, aberto
pela emoção. Nesse sentido, a emoção é já uma forma de
compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade: ela
é um modo específico de entendimento.
O estar lançado não é caótico, pois o eu já se descobrenuma situação acolhido por e nela, mesmo que sob a formada rejeição, o que implica que há vários modos deacolhimento acontecido num entrelaçamento, no qual o eu,circunstancialmente, se experiencia. Todas as relaçõeshumanas são, assim, conotadas pelas emoções, o que aludea que o procurar pelos outros, por exemplo, a solicitude
8
do conselheiro ou psicoterapeuta, sempre se dá numarelação sentida e, por isso, consistente. (ALMEIDA,2005, p. 186)
Através das emoções, o eu descobre-se ser-no-mundo com
outros, não podendo deixar de considerar sua circunstância e
facticidade. Talvez por isso, na entrevista psicológica
clínica, a referência direta aos sentimentos do cliente
propicia um alargamento da compreensão do que está
experienciando, favorecendo-o não paralisar-se em uma dada
situação. Citando Arendt (1993), é pela compreensão que o
homem se reconcilia com o mundo, tornando-o familiar e
novamente transitável. Ou seja, descobre-se no mundo,
entendendo primeiro a mundanidade, os outros e si mesmo, pois
que as emoções se originam do modo de habitar o mundo, modo
esse cultural.
Testemunhado pelo psicólogo, o cliente compreende que
seu destino não é dado a priori nem pelo livre arbítrio, já que
habitar o mundo orienta sua existência: pela facticidade do
mundo e emoções que o afetam, o eu entende-se como alguém que
tem direção, isto é, se destina por ires e vires na
coexistência, percebendo-se na espacialidade do existir por
aproximações e afastamentos. Refere-se à possibilidade do
homem em dirigir-se – um sentido.
Capturando o homem, o estado de ânimo/afetabilidade
permite que este permaneça sempre referido a algo por
aproximação ou distanciamento, porém sempre aberto a uma
direção. As emoções chamam ao sair (cair) e ir para o mundo,
tornando-o público na co-existência: embora atente a si, está9
voltado para o mundo. O único humor que não procede do mundo é
a angústia: “sua proveniência é do poder-ser mais peculiar do
eu, o que a torna no exclusivo estado de ânimo que o afasta do
mundo, aproximando-o de si mesmo”. (ALMEIDA, 2005, p. 186).
Desse modo, enquanto as emoções revelam a condição humana de
aberta ao mundo, a angústia traz a experiência da ausência de
mundo (do nada): “se todas as emoções possibilitam que se
habite o mundo, a angústia nasce da ocorrência de um mundo
inabitável, o qual clama para ser reabitado; a angústia é uma
requisição para que o eu, sem morada e carente de sentido e
destinação, habite de novo o mundo”. (ALMEIDA, 2005, p. 187)
A vida cotidiana, pautada pela ameaça, abre ao homem
compreender sua existência como uma carga/peso que pode
esmagá-lo, provinda de algo do mundo ou junto aos outros.
Ademais, nada nem ninguém pode defendê-lo contra a morte:
sempre está lançado em perigo, sendo sua condição ontológica
compreender tanto ser quanto não ser. Ao assumir atitudes de
prevenção em relação a sua existência, a proteção de si mesmo
não é uma aproximação de si mesmo, mas de dirigir a atenção
àquilo que, provindo do mundo, o ameaça. Focado no perigo que
pode atingi-lo, não foca si mesmo como segurança; ao
contrário, há incerteza quanto a acontecimentos no mundo que
podem feri-lo.Uma entrevista de Plantão é uma situação acolhedora naqual, às avessas desse exemplo acima, algo pode serdesmascarado do falso caráter ameaçador, emergido nacircunstância de uma existência, na qual, havendo umapreponderância absoluta do medo, se teme por qualquerpasso em direção à assunção de possibilidades maispróprias. Esse desmascaramento pode abrir o aconselhandonum outro estado de ânimo, o qual permite que esse algoapareça numa outra perspectiva; o aconselhando pode
10
deixar-se tocar de uma nova maneira pelo que antes só seapresentava ameaçadoramente. Seu ver-em-torno via comotemível quaisquer desses passos, porque seu estado deânimo hegemônico era o temor. Nesses termos, cada emoçãodá liberdade a tudo que se apresenta segundo o tipo deabertura que proporciona, conferindo-lhe, assim,consistência. (ALMEIDA, 2005, p. 194)
Em outras palavras, algo temido nem sempre se apresenta
assim; diz respeito a tirá-lo do lugar no qual se apresenta
pela emoção de temor; temer é dar liberdade, pois deixar ser e
aparecer é aletheia. Nesse sentido, contrariamente ao pensamento
cartesiano, o verdadeiro se dá a ver pelas emoções: o que é
verdadeiro de algo se apresenta torna-se o que é, aberto pelo
que é sentido e não pelo que é pensado. A sensação
experienciada é aletheia, dando liberdade para o que é pelas
emoções.
É ação psicológica abrir o cuidar de ser sob própria
responsabilidade como bem-vindo, levando o cliente a assumir-
se como referência de si mesmo para possibilidades dada pela
situação: destinar-se em apropriação. Porém, sendo temerária a
angústia que abre à propriedade, o cliente pode respoder a ela
com desespero, des-responsabilizando-se por si mesmo. É
próprio da ação psicológica acompanhar o cliente paralisado em
projetar-se, abrindo o benefício da dúvida quanto à “certeza
temerosa” experienciada.
Assim, a ação psicológica na prática seria um modo do
psicólogo procurar pelo cliente que cuida de ser si mesmo,
testemunhando a narrativa do vivido como cuidado (MORATO,
2006). Nesse sentido, fenomenológica existencialmente,
11
experiência diz do ser-aí como abertura temporal: “diz
respeito a um dado projetar-se, pelo qual, vindo a si, o eu
volta a si, retomando determinados modos do sido e, assim, se
torna presente numa dada situação, atualizando uma determinada
ação.” (ALMEIDA, 2005, p. 199)
Como testemunha de uma narrativa, o psicólogo é afetado
pelo que é experienciado pelo cliente: é próprio à clínica
psicológica agir debruçando-se na direção do encontrar-se do
cliente e do psicólogo, desvelando-os a si mesmos via a
compreensão originária de si, manifestada pelo modo como se é
tocado em cada situação. Na mesma direção, o psicólogo
pesquisador encaminha sua investigação pelos vestígios da
narrativa do pesquisado, compreendida como elaboração de
experiência, ao mesmo tempo em que também registra suas
sensações e compreensões prévias em “diários de bordo”, a fim
de compor uma cartografia do contexto pesquisado (MORATO,
2007).
Resgatando Heidegger (1927/1984), Almeida (2005, p.
201) diz que a “clínica só pode acontecer à medida que já se
está aberto numa afetação, possibilitando um acesso direto à
própria historicidade e não personalidade e identidade do eu;
o conselheiro deve permanecer atento à abertura do
aconselhando, atentando à maneira pela qual é tocado nessa
relação, o que se constitui numa compreensão originária.” Para
Gendlin (1978/1979), a partir de Heidegger, a propriedade da
afetabilidade (befindlichkeit) abre a possibilidade da ação
psicológica como cuidado por abrir ao psicólogo experienciar
em si a própria manifestação de disposições humorais, por ele
12
denominada “felt-sense”: o real dado no próprio ato de
experienciar. (MORATO, 2009). Seria legítimo dizer que a ação
psicológica junto ao singular ôntico possibilita aproximar-se
do ser humano como tal, isto é, a humanidade de cada um?
2. A compreensão e interpretação
Compreender refere-se à apreensão do que está na
abertura junto a outros; ou seja, diz do a fim de que da condição
de existir, abrindo ao homem seu poder-ser e a dimensão de ser
como projeto do ser-aí. Nesse sentido, o compreender acompanha
sempre o encontrar-se: não há humor que já não seja
compreensivo, como também não há compreensão que não seja
humorada. O aberto ao mundo é compreensão no sentido
originário, já que destinar-se ao mundo é destinar-se a si
mesmo: ser-no-mundo é abertura para o que o ser-aí se
interessa. Nessa abertura encontra-se a
significatividade/interpretação do mundo, apresentada pela
cultura (costumes, moral, leis, saberes); o compreender já
está aí no fenômeno, uma vez que o compreendido é o desvelado.
Sendo o compreender projetivo (aquilo a que se dirige),
numa intervenção5 psicológica isso se pode se mostrar quando o
cliente se vê possível, não nas referências, trazidas, mas em
cada gesto seu em relação a elas. É tarefa da ação psicológica
clarear que, antes de ir em direção a algo, o eu vai em
5 Intervenção como interpor os bons ofícios. (engage to look after or attend to : accept the responsibility for the care of) (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam-webster.com in 4 Oct. 2011).
13
direção ao que lhe é possível ser, diretamente implicado ao
cuidar concreto realizado a cada momento: é pelo cuidado que
se abre ao poder ser (realizar possibilidades), sendo o real
possibilidades e não necessidades. Assim, vir a ser através do
cuidar, confere à humanidade do homem o caráter de
inauguração. Desse modo, numa ação psicológica procurar ser
testemunhado em sua experiência pode ser manifestação do
poder-ser re-clamando re-destinar-se a re-inaugurar sua
história. Isto porque o possível é o que ainda não é, mas cujo
significado pode ser antevisto pela compreensão.
A possibilidade já é anunciada no contexto em que a
existência é lançada, ou seja, numa circunstância; podendo ser
a partir do que já lhe é dado, o eu não é livre de sua
circunstância, porém para poder ser além. O eu é livre para
resgatar possibilidades ainda não configuradas; voltando-se
para a realização do que ainda não é, o agir humano instaura a
liberdade. Compreender é abertura para o possível, isto é,
projetar-se sobre possibilidades, apreendidas não por
entendimento, abrindo o poder-ser para responder em situação:
trazer à luz o possível do oculto, não como saber/conhecer,
mas como abarcar o sentido da existência humana, ou seja, pelo
modo como vai se constituindo pela vida, situado num mundo
junto a outros.
Testemunhado pelo psicólogo, o cliente pode expressar
como se encontra no mundo em relação aos demais, avaliando o
quão está na direção ou não de seu poder-ser e o quão
necessita de certa sujeição, necessária para prosseguir em seu
projeto. É compreendendo em situação que se faz possível ao
14
homem desconsiderar seu modo próprio de ser por convenientes
determinações culturais.
É nesse sentido que também se encaminha a ação
psicológica em prática e pesquisa em instituições. Para este
presente trabalho, recorremos a projetos, realizados por
laboratórios universitários a partir de solicitações de
instituições (públicas) de saúde, educação e segurança
pública, de atenção psicológica tanto para usuários e seus
familiares como para funcionários e profissionais que nelas
atuam. Iniciados em 2000, mantiveram-se alguns por 8 anos,
enquanto outros se iniciaram em 2007 e ainda se mantêm.
Desfiando a prática psicológica tradicional (MORATO, 2009)
constituíram-se em elementos para pesquisa interventiva
participativa (SZYMANSKI e CURY, 2004), ambas relendo a ação
psicológica pela ótica da Fenomenologia Existencial. O
questionamento implicava em considerar precisamente a
compreensão da condição humana em suas dimensões de ser-aí-no
mundo-com outros, a qual seria possível ser contemplada visto a
ação ocorrer numa instituição, podendo se dar a ver bem como a
todos os atravessamentos manifestos que implicam em seu modo
de ser interpelado (MORATO, 2008).
Sendo o poder-ser direcionado a sentido e duração, a
compreensão se manifesta temporalmente como interpretação,
decodificando o compreendido como possibilidades projetadas no
compreender. Dizendo respeito ao modo pelo qual tudo se
apresenta, constitui-se num como, sendo a interpretação aquilo
que é. Existencialmente, a estrutura do como é uma
interpretação articuladora, enunciada por proposição.
15
“Sucintamente, a compreensão do possível desdobra-se
temporalmente na interpretação, que sustenta a possibilidade
de entendimento da proposição, a qual pertence à ordem da
língua e pela qual se exibe a interpretação.” (ALMEIDA, 2005,
p. 203).
No contexto da ação psicológica, ocorre um jogo
interpretativo entre psicólogo e cliente através de enunciados
como expressão de dada interpretação, o que permite ao cliente
elaborar possibilidades por ele projetadas. Assim, interpretar
não é obtenção de informações para explicar “funcionamento”
mental por teoria explicativa. Refere-se a preencher lacunas
presentes numa forma de compreensão do projetar-se desse
cliente, manifesto em seu temporalizar-se, ou seja, de que
modo um futuro incerto remete a eventos do passado
dificultando sua atualização.
Isto porque o homem já é imerso em trama de
significações culturais interpretadas: o que a ele se abre já
se abre num fundo de cultura que demanda compreensão prévia
interpretativa. Assim,
A interpretação permite que qualquer coisa que seja semostre em sua significatividade. É pelo ver-em-torno queo mundo sempre já compreendido se interpreta, o queremete a que o à-mão é clareado pelo enxergar dacompreensão em todo seu contexto de significações. Essainterpretação já está dada a priori a qualquer ver-em-torno, possibilitando, assim, seu referenciar-se;apreendendo a serventia, o ver-em-torno decodifica o quese apresenta. (ALMEIDA, 2005, p. 209).
Tudo que é existe numa totalidade de nexos
significativos, no contexto prévio (de antemão) da tradição,
16
adquirindo um caráter de utilidade e uso (à-mão). Desse modo,
ver de antemão é reconhecer que existe algo da tradição que
também constitui o modo humano de ser, implicando uma
concepção prévia da trama de significações: existir em uma
situação atravessada pela cultura conduz a interpretações.
Nessa medida, a ação psicológica, inclinando-se à
narrativa do cliente, é interpretativa por requerer
identificar como a tradição e a trama de significações são
constituintes de seu modo de ser. É sua tarefa interpretativa
dar a ver como concepções culturais podem estar conduzindo à
ausência de sentido na existência.
Sentido é a direção, o rumo para onde se vai, estando,assim, atrelado ao destinar-se; o destino último daexistência é a morte, última paragem do ser. Ainda quenão visível em si, o sentido é uma armação sem a qual omundo não se arruma, organiza; configurando-se somentena dimensão humana, todos os demais entes são carentesde sentido. Fenomenológica existencialmente, a perguntapelo ser não se dirige ao que é, porém ao sentido deser; por esse viés, a pergunta pelo ser não passa pelosignificado dos entes, os quais só fazem sentido quandosão apanhados em modos de existir, desenvolvidos pelohomem. O sentido em si é inarticulável; sendo um fundoinvisível, atua como um fundamento sobre o qual tudo oque é pode aparecer em sua especificidade. (...) só numadestinação é que algo faz sentido. Nessa medida, já queo sentido é inerente à estrutura da compreensão, o quenão faz sentido não chega a ser compreendido; o estadode compreensível de algo apóia-se sobre um fundo, que éo sentido. (ALMEIDA, 2005, p. 213)
Pela proposta fenomenológica, o sentido é inerente ao
projetar-se humano: destinar-se. Vir a ser diz de algo
manifesto, mas desdobrando-se a um poder-ser. O que tem
sentido é a existência do homem, pois apenas ele pode
compreender sua direção, imprimindo modos que são e como podem17
ser: sentido é a direção na qual o humano articula os fatos de
sua vida. Dessa forma, desorientar-se expressa ausência de
sentido, que clama pela necessidade de encontrar-se.
É este o preciso momento que a ação psicológica entra
em cena: a emergência da urgência por sentido. Presta-se à
demanda do cliente para encaminhamento de si testemunhado por
outro, o psicólogo, inclinado à sua historicidade. Por outro
lado, mas na mesma direção, na supervisão do psicólogo, como
situação de aprendizagem, atentamente inclinada à compreensão
do cliente pelo supervisionando, a ação psicológica do
supervisor abre um “ver além”6: dirige-se ao modo como o
supervisionando foi tocado na situação do atendimento e de
supervisão, como forma de dar a ver como através de sua
disposição afetiva abriu-se uma compreensão interpretativa do
cliente, e pelo qual o cliente surge em sua singularidade.
Contudo, ser tocado, compreender/interpretar não
esclarece a questão do sentido se não houver uma sinalização
responsiva a essas manifestações. Sendo no mundo com outros, o
compreendido desdobra-se pela ordem da língua em comunicação:
apreender e responder o que se mostra por palavras, para que
outros apreendam o que foi apreendido, tornando-o comum, pois
o dizer “torna presente tudo o que é para o ser-no-mundo, que
sempre coexiste com outros.” (ALMEIDA, 2005, p. 219), ampliandotanto o próprio ouvir quanto o mundo como mundo comum pela
significação comunicativa.
Assim, numa situação de ação psicológica de prática e
pesquisa em instituições, o testemunho do psicólogo, atento ao
6 Sentido etimológico de supervisão, encontrado na expressão latina super videre, mas dogrego theorein (ato de ver, contemplar). (MORATO, 1989).
18
dizer narrativo de quem o solicita, possibilita um
recolhimento para ampliar a compreensão de circunstâncias de
vida por meio do desvelar sentido para re-encaminhamento de
direção. Nesse sentido, pela ressonância afetiva ao expresso
junto a outros e com ferramentas à mão, uma interpretação
esclarecedora da experiência vivida pode se apresentar e
sugerir a continuidade de uma história.
Por esses projetos, a ação psicológica tem desvelado
como o falar só consegue permitir que palavras possam conduzir
a uma interpretação caso se apresentem apontando
direção/sentido. Porém, palavras podem indicar sentido quando
partem do sentimento/disposição afetiva, referindo que ser
afetado/sentir é o fundo/sentido da palavra.
O sentir abre-se como um sentido, em que a existência sepõe, sendo o aí em que se forja o falar. De novo, fala-se do Plantão e também da supervisão como um exercíciodo logos, já que, nessas situações, pelo jogointerpretativo, se evoca o sentido e não o pensado, oqual, para adquirir tal condição, precisa destacar-se dosentido para tornar-se ante-os-olhos, num distanciamentosem envolvimento; o jogo interpretativo só podeacontecer na emergência da afetação do conselheiro,psicoterapeuta, supervisor, aconselhando, analisando eestagiário, dando-se numa absoluta proximidade, em que oenvolvimento elicia a confiança. (ALMEIDA, 2005, p. 224)
Nesses termos, a ação psicológica possibilita o
clareamento de uma situação para tomada de decisões,
testemunhando uma narrativa de história lacunar. O narrar,
vindo por meio de conteúdos, vê-se atravessado pelo joga da
interpretação como historicidade, dando a ver-se um entre que
nem sempre conduz a um destinar-se pertinente, mas sim à
19
lacuna de sentido. Por ser atravessado pela cultura, o homem é
lançado no âmbito da pluralidade; contudo, buscando ser quem
é, como singularidade, nem sempre suporta a angústia de seu
ser ser-no-mundo com outros, levando-o a rupturas em sua
história. Pela ação psicológica, é possível “reintegração
pelo jogo interpretativo, que, operando no âmbito do
desvelamento, traz à tona o fio de sentido seguido” (ALMEIDA,
2005, p. 221), que possibilita ao cliente recorrer a seus
próprios recursos para ir adiante rumo a ser singular.
3. Linguagem: dizer e ouvir para “fazer sentido”
Para Heidegger, o falar origina-se de logos, do verbo
legein, cuja tradução é falar. Simultaneamente ao sentir e
compreender, o falar é originário para o homem: é por ele que
se expressa a articulação entre ser afetado e compreender,
dando a ver o sentido. É fundamento ontológico-existenciário
da linguagem, pelo qual o mundo dito e interpretado pelo homem
expressa articuladamente sua significação: logos é fala/
expressão de compreensibilidade do mundo, por reunião e
separação de palavras como significado, articular ou desarticular
sentido/significações.
Na ação psicológica clínica, o falar é modo fundante de
procedimento. Inclinado à narrativa, o falar se apresenta como
um falar sobre ou a respeito de, ou seja, daquilo do que se
fala, num primeiro momento. Entretanto aquilo do que se fala
se fala a outro, constituinte do ser-com: o cliente fala de
20
experiência ao psicólogo. Porém, ao falar deixa entrever algo
não presente no falado, mas ocultamente expresso, como se a
própria fala falasse por entre lacunas de compreensão
(CRITELLI, 2002). Nesse sentido, a fala é comunicação,
revelando intenções de quem fala, por outros modos que não por
palavras: noticia algo. É esta a brecha da possibilidade
interpretativa da ação psicológica.
Desse modo, fala é comunicação, pois o homem é no mundo
falando com outros, abrindo possibilidade para o que é comum
entre homens: aquilo que é familiarmente compartilhado em co-
existência, condição de ser humano.
Ser psicólogo expressa a especificidade mesma do ser-
com no sendo-com: o cuidado a que se dirige é solicitude pela
pré-ocupação com o outro em seu padecimento. É essa a tarefa da
ação psicológica:
não se desincumbe de sua ação de cuidar limitante7,balizada, circunscrita numa situação de atendimento,procurando pelo outro naquilo que, nessa situação, possaser testemunhado, o que possibilita um esclarecimentonorteador ao aconselhando; assim, não se trata deocupar-se com o aconselhando, fazendo um meroencaminhamento nos moldes de uma triagem. Numaentrevista de Plantão, a comunicação não se dá comotransporte de mensagens e vivências entre aconselhando econselheiro; o ser-com, condição de ser do ser-aí, já épatente nas manifestações do encontrar-se e nosdesdobramentos temporais da compreensão, que se dão emconcomitância, o que é expresso no jogo interpretativopela fala. (...) A fala articula tanto o sentido fundadono sentir quanto o desdobramento das possibilidadesprojetadas no compreender, assim, vinculando oencontrar-se ao compreender e alimentando o ser comum.(ALMEIDA, 2005, p. 224)
7 O substantivo limite remete-se à fronteira que perfaz um horizonte apartir do qual algo começa a se fazer presente.
21
Nessa direção, a experiência da comunidade apresenta-se
dentro de uma circularidade: articula-se pelo co-compreendido
e co-sentido, estofo do jogo interpretativo numa ação que se
proponha terapêutica ou educativa. Ao falar, o que se comunica
é também uma notificação, manifestada pelo modo (modalidade)
como se expressa a forma como foi tocado pelo mundo e como o
compreende.
A fala só pode articular uma compreensibilidade por sua
dimensão do ouvir, constituinte básico do compreender, como
apreender com. O ouvir dispõe um proceder em relação ao outro:
acompanha-o, nega-o, não o ouve, acolhe-o, opõe-se a ele; sem
o ouvir, não há acolhimento das crenças embutidas no estado de
interpretado, impossibilitando a comunidade humana, pois
ninguém ouve o não compreendido. É a interpretação,
desdobrando o compreendido, que é a expressão do significado
da realidade, tendo linguagem como organizadora do mundo. A
fala difícil e raramente traz o estranho, já que é a
articulação do já interpretado.
Se o ouvir ocorre como possibilidade fundante do
humano, o escutar é uma sua realização; nunca se escuta ruídos
puros, porém, já imbricados na interpretação já articulada. A
escuta permite a vinculação entre os homens, pois o ser-com
acontece articulado pelo ouvir: o que está pendente é aberto
pelo escutar. Contudo, o ouvir pode realizar-se como um mero
escutar, não levando adiante qualquer crença e interrompendo a
comunicação entre os falantes.
22
A ação psicológica, como debruçar-se sobre o sofrimento
do outro, constitui-se em solicitude apoiada na escuta: o
ouvir radical. Acompanhar o cliente na expressão do que lhe
dói, urge apreendê-lo em sua realidade e sentido do existir, é
escuta que pode permitir se manifestarem certos elementos
norteadores vindos da tradição, mas que emperram a
singularização. Clinicamente, nunca se escutam queixas puras,
mas já mescladas no caldo interpretativo de sua realidade,
estado de interpretado no qual se forjam as relações da vida
em situações com outros, em família, social e no trabalho.
Também, é pela escuta que se estabelece a relação com o
psicólogo, fundada na confiança pelo bom ouvinte. A escuta
clínica, pelo ouvir, é fundamental em qualquer situação
demandante de ampliação da compreensão. Em projetos de atenção
psicológica em instituições, nas modalidades de Plantão,
Psicogiagnóstico Colaborativo, Plantão Psicoeducativo,
Supervisão de Apoio e Oficina de Recursos Expressivos, o ouvir
se apresenta como abertura à compreensão de mal estares em
relações situadas, indicando caminhos para aprendizagem
significativa como direção/sentido.
O falar propriamente dito é o falar com outros, o que sedá pela enunciação de proposições; é resposta a umaescuta que já realizou a articulação do interpretado,tratando-se de uma contra-fala, que faz parte de ummesmo circuito, como complemento do compreendido. Nessesentido, o falar propriamente dito, tomado como contra-fala da escuta, é um dizer; contudo, esse falar podeassumir as vezes de um mero falar, associado a uma meraescuta. (ALMEIDA, 2005, p. 225)
23
O dizer do psicólogo se apresenta como contra-fala8
própria ao jogo interpretativo. Nesse sentido, responde
completando e abrindo possibilidade de ampliar a compreensão
emergente do cliente; assim, apreende temporalmente a
experiência narrada, conduzindo à indicação de sentido. O
dizer responsivo do psicólogo, pela escuta primeira, completa
o círculo da com-fiança (fiar-se-com): “ser fiador do outro no encontro,
o que acarreta que se acredite nesse dizer que, por ter recolhido, expressa aquilo
que é, constituindo-se na contra-fala do bom ouvinte.” (ALMEIDA, 2005, p. 225)
Outra dimensão da fala, além do dizer e ouvir, diz
respeito ao calar, que colhe e acolhe o ouvido. É uma forma de
dizer, articulando o compreendido, embora se revele no
silenciar, não expressando o compreendido em palavras, pois o
compreensível, para além da palavra, pode ser apreendido pelo
silêncio: é a silenciosidade como fala. Silêncio não é
mutismo, pelo qual nada se tem a dizer.
Falando sem palavras, no silêncio, o calar refere-se auma compreensão que “calou fundo”; cala porque corta apalavra pela genuinidade da interpretação. A compreensãofunda, não passível de apreensão em palavras, debuta nosilêncio: ao genuíno falar compete o calar, no qualfulgura o sentido. O insight, acontecimento fundante emqualquer situação terapêutica e de aprendizagem, ocorrena silenciosidade; pelo jogo interpretativo, abre-se,caladamente, ao aconselhando a direção em que seuexistir navega, possibilitando-lhe uma visão clara egenuína de seu mundo e o discernimento de seu poder-sernesse mundo. (ALMEIDA, 2005, p. 228)
Sendo a condição fundante do homem ser-em, é um aí
aberto, ou seja, o si-mesmo, como centro dessa clareira, pode
8 Questiona-se “contra-fala”, na medida em que “contra” pode ser compreendida como “contrária”
24
exercer o logos que, ouvindo, dizendo e calando, tira o véu e
traz à luz a coisa mesma como realmente é. Por recolher e
expressar, falar se constitui num desvelar o mundo, os outros
e si mesmo.
Assim, na situação de ação psicológica clinica e/ou de
aprendizagem acontece o exercício do logos como aletheia. O
Plantão Psicológico e a Supervisão de Apoio, modalidades da
ação psicológica, ocorrem como um acontecimento; trata-se de
uma paragem na qual o psicólogo, debruçado e atento à
narrativa, testemunha o entre, ou seja, a condição do cliente de
ser em história. Através do jogo interpretativo, é possível
deixar ver um sentido na temporalização de uma experiência:
“uma história oculta, mas repleta de lacunas, agora passíveis de serem
perscrutadas pelo exercício do logos”, revelando filamentos
desconectadamente conexos.
Dá-se a ver que o falar não é apreensível por análise
formal, mas sua acontescência é própria ao humano, e pela qual
constitui sua humanidade em seu falar cotidiano. Como cada um
de nós se humaniza pela forma aprendida em dada cultura, somos
também, ao mesmo tempo, todos nós e nenhum. Desse modo, o
homem tem na fala a possibilidade de se inserir no mundo,
expressando/comunicando sua compreensão de mundo comum pelo
falar cotidiano, que a todos captura. Nesse sentido, esse
falar é impessoal, dizendo respeito ao que Heidegger denomina
por impropriedade, que exerce imperativo domínio no humano. Se
a questão fundamental é ser humano como se é humano, a fala
como falada no cotidiano, por todos nós, a fala imprópria, é
aquela que possibilita uma compreensão, por “pôr em andamento a
25
publicidade em suas formas de equivalência, uniformização e distanciamento”,
empurrando cada um para o mundo comum: o cotidiano, estando na
dimensão da impropriedade, apresenta um modo característico de
falar, cujas três formas Heidegger denomina falação, avidez de
novidades e ambigüidade.
O modo de ser do ser-aí poder realizar seu ser mostra
que a linguagem originariamente não é um sistema. Sustenta-se
como um enunciado de uma interpretação prévia, pois expressa
algo já interpretado. Nesses termos, a fala regula o que é
comum entre os homens, um modo cultural de apreensão do mundo
que tudo articula. Desse modo, o que se interpreta não são
fatos em si, mas modos de ser.
Pela sua abertura, o ser aí encontra-se com si mesmo no
mundo com outros através da linguagem, numa rede de
significatividade por ela apresentada. É ela que intermedeia,
pela abertura, o ser-aí junto ao mundo e outros. Assim, a fala
mesma é um modo de abertura, pelo qual o eu cuida de ser,
cuidando de como é no mundo: é isso que a fala fala. Nessa
medida, o falar cotidiano é possibilidade de manter o contato
junto a outros no mundo, garantindo o real; daí não importar
sobre o que se fala, mas que se fale.
A “falação” (“falar por falar”) é uma dimensão da fala
cotidiana que não explora o que se passou, mas apenas permitir
a circulação do falado, mantendo julgamentos e crenças pelos
quais cada um se vai constituindo, sustentando a trama da
realidade e explicitando a condição de homem (HEIDEGGER,
1927/1984). Trata-se de um levar adiante da fala, favorecendo
a entrada na publicidade, porém sem uma apropriação do que é
26
dito. “Põe-se veladamente em cena o que é falado, sabendo-se tudo por alto;
embora não tenha o propósito de promoção de engano, ao invés de explicitar, o
falar da falação vela.” (ALMEIDA, 2005, p. 229)
Numa situação de ocorrência da ação psicológica, dois
aspectos da falação podem se apresentar. O primeiro diz
respeito a que é pela falação que o cliente se introduz,
trazendo o já é interpretado e comum; no entanto, não há como
negar que esse momento é possibilidade de entrar em contato
com sua experiência. Por sua vez, o segundo revela como o
cliente se traz longe de ser propriamente, mas como que guiado
por circunstâncias da realidade de um mundo inóspito. Nesse
sentido, esses dois aspectos permitem compreender como a
versão primeira da experiência trazida pelo cliente chega sob
a forma de queixas, ou seja, a emergência do mal estar
incômodo sentido pelas circunstâncias da vida. É
especificidade da ação psicológica como atenção e cuidado, a
tarefa de acompanhando a realidade apresentada pela falação do
cliente, sugerir-lhe, através do jogo interpretativo,
encaminhar-se para a apropriação de si mesmo, ou seja, dizer
de sua demanda/necessidade, como urgência na procura por poder
ser. (MORATO, 2006).
Junto à falação, surge a “avidez de novidade”
(HEIDEGGER, 1927/1984): maneira da fala cotidiana apoiada no
ver à distância, ou seja, vendo tudo por cima, não se
demorando junto a nada, passando rapidamente para o que vem
depois. “É sofreguidão de acúmulo do visto pelo aspecto, o que
incide numa dissipação, pela qual o eu não tem paragem e,
assim, moradia; passando-se rapidamente a outros aspectos,
27
instala-se um distanciamento para que não haja envolvimento.
Está-se diante da perdição do eu...” (ALMEIDA, 2005, p. 230)
No tocante à “ambigüidade” (HEIDEGGER, 1927/1984),
refere-se a um modo cotidiano da fala acerca de possibilidades
que não podem ser atualizadas, apenas rastreadas, numa esfera
pública em que tudo parece ser acessível, com uma conseqüente
compreensão subliminar de que pode ser feito. Essa forma é bem
reconhecida no discurso tanto político, notadamente
ideológico-partidário, quanto institucional: há uma essencial
e evidente ambigüidade entre o falar e agir. Afinal, a
ambigüidade pressupõe que não se saia do lugar, pois requer
uma ação, que, se realizada, provocaria restrições. Desse
modo, impede as alternativas do agir pela fala das
possibilidades. Realizar alguma possibilidade aventada
implicaria sair-se da impessoalidade, dando a ver a própria
irresponsabilidade. Pela fala ambígua, mantém-se o
descompromisso em fazer o que deve ser feito, relegado à
dimensão da suspeita.
No cotidiano, busca-se a impessoalidade, porque não sequer puxar para si o gasto que uma situação configuradapossa deflagrar. Embora se queira algo, não se suportaque aconteça, ou seja, deseja-se profundamente umarealidade diferente, mas recusa-se, também,profundamente que o sonhado se torne real. Quem ageresponde pela realização do que estava em possibilidade:o eu é colocado em questão e cobrança; permanecendo nopossível, o eu exime-se de qualquer responsabilidade.Por isso é que a ambigüidade resolve a questão na fala,dispensando qualquer realização, que pode abortar oufracassar. (ALMEIDA, 2005, p. 229)
28
É nesse sentido que a tarefa da ação psicológica em
instituições dirige-se a testemunhar o outro fugidio em sua
responsabilidade perante o que lhe diga respeito. Procura
servir como “cama elástica” ao outro em seu lento tempo de
empreendimento para poder ser si mesmo, contrastando com o
tempo rápido da fala cotidiana. “O tempo do fazer genuíno dá-se sob a
égide do empenho, que medra no silêncio: a silenciosidade é realizadora, já o
marketing não faz, só fala.” O psicólogo acompanha o cliente que ainda
teme fracassar caso se empenhe em realizar uma possibilidade
cabível. Testemunhando a ameaça, possibilita ao cliente tanto
a discernir sua situação e como disponibilizar-se para a
consecução de seu projeto. Contudo, a ambigüidade caminha
sobre um saber dar conta de uma situação, não pela prescrição
do que deve ser feito, mas por suspeitas: “se isso...
então...”, resolvendo pela fala e não pela ação, visto operar
por projeções. Porém estas surgem não como possibilidades
próprias, mas aquelas disponíveis a todos, escolhendo fazer
algo no âmbito do público no qual se perde, por prevalecer o
ninguém. É deste modo que a fala cotidiana, pela ambigüidade,
falação e avidez de novidades aproximam os homens entre si,
mas sem que se esteja com o outro, porém com todos.
Assim, na ação psicológica, em instituições de saúde ou
educação, precisamente pelo caráter do “todos nós... ninguém”,
há que cuidar para acompanhar o cliente em suas peculiaridades
de ser conforme suas possibilidades públicas de realização, a
fim de não se estar “contra” ele, na dissimulação peculiar,
mas não deliberada, ao ser um com o outro na cotidianidade.
29
Afinal, competir e não cooperar revela ser um contra o outro
também um modo de ser-com.
Na fala cotidiana, sendo na impropriedade, o ser-aí é
impessoalmente equivalente a outros modos de ser: um desvio de
si, abafando a angústia para a propriedade. Assim, embora a
tarefa de ser humano convoque para a impropriedade, sempre
permanece a abertura de ser quem se é na propriedade. Isto
porque ser si mesmo não é dado a priori, mas sim vai se
afirmando que ser si mesmo ocorre pela aprendizagem, na fala
da co-existência, mesmo que se desviando, já que ser-aí é uma
absorção de ser lançado aí no mundo prévio.
Está-se diante do fenômeno denominado por Heidegger(1927/1984) de queda, que, de modo algum, significa queo eu nasça formado e depois decaia; trata-se de serabsorvido pelo mundo no qual é lançado: não é posterior,mas integrante ao nascimento. Assim, não se trata de umnovo fenômeno, porém a junção das condições delançamento e absorção. Sendo capturados, tragados pelomundo, os homens são submissos a modos de usar os úteise sujeitados aos outros, por exemplo, na moralidade; oser-no-mundo é anterior à percepção do eu e a queda,tanto condição da própria existência, quanto situaçãopresente e permanente. A captura do eu pelo mundo dá-sena e pela fala cotidiana. Na falação, o eu flutua, sembase, num lago de como se é dito; na avidez denovidades, está em todas as partes e, ao mesmo tempo, emnenhuma; na ambigüidade, nada está ocultado àcompreensão do eu, com o propósito de reforço dasituação anterior. Realizando-se através desse falar unscom os outros, a queda apresenta quatro característicasfundamentais: sedução, tranqüilização ou aquietamento,alienação e enredamento, as quais se intercambiam nummovimento contínuo de derrubamento, no qual uma é levadapara outra, perfazendo um redemoinho. (ALMEIDA, 2005, p.230)
Sempre é possível que pela falação já se possa
encontrar si mesmo recorrendo a interpretações já dadas no
30
público para dizer o que se é (usos e costumes). Isto seduz
pois significa já ter uma resposta para si de antemão,
encobrindo a angústia para apropriar-se do poder-ser,
reconhecendo-se bem situado no mundo. Desse modo,
tranqüilizado, os outros passam a ser a referência de ser,
porém alienado de si mesmo absorto que é pelo mundo. Assim
enredado em si mesmo em suas questões, diluído nos outros,
porém aquietado, ocorre a sensação de estar conduzindo sua
vida adiante, esi.mbora a presumida segurança esteja no que é
dado e não apropriado de
Na ação psicológica, através do exercício do logos,
acompanha-se como naquilo que crer seu próprio o cliente está
interpretando-se pelo que é dado, perdendo-se de si nas vozes
comuns. Nem se dá conta como esse modo de ser impessoal o
incomoda, desespera e faz sofrer pela ausência de sentido
próprio. Enredado, interpreta a angústia por sensações
corpóreas, aflito e desamparado que está.
Nessa situação de atropelado por si mesmo, o cliente
prende-se à ocupação percebendo, contudo, que está sendo
derrubado, mas não por si mesmo. “É nessa dimensão da queda,
como experiência da impropriedade, que se tem a maior dimensão
do que é ser-no-mundo; no dia-a-dia, o eu está nesse
enovelamento. É um modo de ser que significa estar no mundo,
habitando-o.” (ALMEIDA, 2005, p. 231)
É pelo jogo interpretativo que o psicólogo pode
acompanhar o cliente, realçando o enovelamento em que se
encontra, buscando juntos re-tecer fios para que ele se
encaminhe em seu poder-ser no mundo como é. Debruçado atento,
31
pela com-fiança cooperativa, o psicólogo pode agir, legitimado
pelo cliente, na direção do des-envolvimento da própria
experiência para sentido de ser si mesmo.
II - Para a ação psicológica na prática e na pesquisa em
instituições.
O des-enrolamento da experiência do humano pela ação
psicológica revela-se também uma escuta afinada com a ação
educativa. Educar, do latim educere, compõe-se pelo prefixo ex
(para fora) e pela palavra ducere (conduzir, levar, guiar),
referindo-se a conduzir para fora, ou seja, promover que algo
possível de si possa surgir (eduzir) no no mundo pelo ensinar
e aprender. Ensinar, do latim insignare, remete a in-signum (em
sinal): como diz Rosa (1989), aquele que ensina não se
ensimesma, mas sim sai de si, indicando sinais no mundo que
são relevantes para o aprendiz. Por sua vez, aprender vem do
latim ad-prendere, cujo prefixo ad (por, para) indica direção,
enquanto prendere diz de tomar, agarrar, pegar. Assim,
aprendizagem refere-se a fazer uso de sinais no mundo que
apontem para mudanças: aprendiz é aquele que se transforma em
trânsito pela existência, narrando sua experiência para levá-
la adiante e abrir brechas para outras aprendizagens. Por sua
vez, a experiência, pela ótica fenomenológica existencial,
sendo uma abertura temporal, na qual presente, passado e
futuro se co-pertencem, é a manifestação da historicidade do
ser aí: faz-se como acontecimento e apresenta-se, pela fala,
32
como narrativa, a qual se constitui num dizer no fazer
situado.
O psicólogo, seja numa entrevista de Plantão em
clínica-escola ou em cartografia por uma instituição de saúde
ou de educação, mantendo-se inclinado à narrativa daquele com
quem fala, está sempre in-vestigando a experiência
clinicamente, experiência essa que, vindo do mundo com outros,
se apresenta enovelada no público, porém sem fio de sentido ao
narrador. Em outras palavras, a ação psicológica conduz-se a
ir por entre os vestígios do vivido para des-ocultar outras
facetas que se mostram nas situações de homens e atores
institucionais. Buscando des-enredar a experiência da trama
sedutora de significados na qual se encontra, acompanha o
cliente testemunhando sua narrativa pela desorientação e
desamparo para, junto a ele, sugerir o encaminhar-se para fora
de seu sofrimento, levando-se adiante dessa urdidura do
público na qual se enroscou. E isso só pode acontecer em
experiência em ação, ou seja, quando a interpretação da
compreensão pudesse conduzir-se para “fora do perigo”,
considerando a etimologia latina de experiência: ex-perire.
Estruturando-se a partir da escuta, a ação psicológica,
amparada na perspectiva fenomenológica existencial, conduz-se
pela narrativa na prática e na pesquisa, já que ambas dizem de
experiência e história que urgem por uma compreensão mais
ampla. Na trilha do sofrimento na história, outros modos de
seu enfrentamento são per-seguidos pela atenção e cuidado
psicológicos, sem jamais percorrer modelos clássicos de
triagem, amparados no psicodiagnóstico tradicional ou na
33
psicopatologia, nem de intervenção, quase sempre
acompanhamento psicoterápico. Apenas emerge no encontro entre
o cliente e o psicólogo/pesquisador como testemunha que
autoriza e legitima uma continuação da história desse cliente
numa dimensão em que possa existir em bem estar e
autenticidade.
A ação psicológica, por esta ótica, sempre se vincula a
uma situação, que tem tanto uma vertente institucional
referida à pertença do profissional e do cliente, quanto uma
vertente vinculada à realidade sociocultural e existencial do
cliente e do psicólogo. Desse modo, é importante que busque
uma compreensão da realidade do cliente para cotejá-la com o
que a realidade da instituição pode oferecer. Assim, a ação
psicológica pode ser ainda caracterizada como uma prática e
pesquisa psicossocial.
De qualquer forma, nela importa a demanda do cliente do
que uma explicação que se possa ter dele, assim como também a
relação estabelecida importa mais do que uma “interioridade” a
ser perscrutada. Nesse sentido, a “interioridade” é
manifestada na relação e não tomada como um “em-si”: a relação
é o campo de aparência, tanto dessa “interioridade” quanto de
uma realidade sócio-econômica cultural, uma vez que é nela que
a experiência do cliente encontra lugar para ser compreendida
e clareada. Trata-se de contextos originários em que a
experiência ocorre, pois não há homem sem mundo com outros:
trata-se de uma perspectiva fáctica, que é histórica e
concreta.
34
A ação psicológica se apresenta para além de âmbito de
intimidade, não se restringindo a qualquer um, mas se
referindo a mundo trazido pela apresentação que cada cliente
faz de si próprio. Nesse contexto, emergem modos de cuidar, já
que o cuidar-se de si requer a explicitação da teia de
relações estabelecidas na sociedade, que “sustenta
representações que, ideologicamente, vinculam o sofrimento
psíquico a fatores individuais, velando suas determinações
sócio-culturais.” (ALMEIDA, 2005, p. 232)
Assim, partindo do contexto psico-sócio-existencial, a
ação psicológica intenta uma visão compreensiva de sofrimento
embutido na narração de uma história que, embora singular, diz
respeito a outras pessoas em vários contextos. Nesse sentido,
o cuidado do pesquisador/psicólogo considera as questões de
quem se é, como se é, com quem se está e onde se está, dando a
ver como modos de cuidado, apoiados na experiência do encontro
psicólogo/cliente, que consideram a situação existencial do
cliente, incluindo a esfera sociocultural.
Desse modo, na perspectiva fenomenológica existencial,
o sofrimento psíquico não é da ordem do patológico, assim
determinando uma história. É algo que aparece nessa história,
revelando um destinar-se conturbado no mundo do narrador e em
suas situações de vida com outros: enraizado na história, o
sofrimento psíquico diz de um acontecimento pertinente a seu
modo de ser, não sendo considerado como proveniente de doença
mental.
Ao mesmo tempo em que a ação psicológica na prática e
pesquisa em instituições contempla um aspecto clínico, também
35
pode apresentar um elemento educativo, voltado tanto para a
formação profissional de psicólogos quanto de outros
profissionais de saúde e educação.
Nos projetos de atenção psicológica, o
estudante/estagiário tem a oportunidade de entrar em contato
com as mais diversas realidades trazidas pela clientela e por
instituições, conduzindo-o a pensar o sentido originário de
clínica, de prática, de pesquisa, de intervenção, de público e
privado, de ser quem se é de modo próprio a poder ser. Desse
modo, o estagiário experiencia debruçar-se não ao entendimento
de uma doença, seus mecanismos e sua repercussão na mente e na
conduta de um “doente” ou de uma instituição, mas ao modo de
ser do qual emergem as experiências existenciais que sustentam
as atividades da pessoa que está a sua frente, cliente ou ator
institucional. Na perspectiva existencial, a experiência
humana não é conseqüência de um processo de desenvolvimento da
sexualidade, da cognição e da volição, mas a condição
historial9 do homem, fundamentando a constituição de quaisquer
das esferas da experiência pelas quais o homem transita.
O modo de condução da ação psicológica nos projetos de
atenção não compreende uma automática continuidade de
atendimento aos encontros com a clientela. Orientam-se a cada
encontro a possíveis desdobramentos para questões apresentadas
como demanda, considerando-se, no diálogo com o cliente,
outras intervenções de práticas especializadas ou populares,
contando com recursos institucionais, comunitários ou
familiares, quando se fizer necessário. Assim, cliente e
9 Historial remete-se à dimensão ontológica humana.36
psicólogo consideram conjuntamente aquilo que melhor atende ao
que é preciso e não ao que é explicitado como pedido. Este
modo faz-se particularmente pertinente quando o cliente é um
dirigente de uma instituição: compreende-se a necessidade
institucional, do dirigente como seu ator, mas também se abre
a perspectiva de considerar qual a demanda da comunidade a
quem está sendo pedida a atenção psicológica. É a isto que se
dirige a cartografia, amparada na atitude clínica.
Ao aluno esta é uma situação que o pro-voca a procurar
por seu próprio modo de ser psicólogo, não enovelado nas
malhas publicas da trama de significações implicadas em sua
formação. Experiencia ele mesmo orientar-se a um poder-ser de
modo próprio e não impessoal. Tal aprendizagem se manifesta em
sua forma de cuidar tanto do cliente quanto do autor
institucional, conduzindo o outro a encontrar-se propriamente
em sua vida e/ou em seu trabalho, tornando-se, ele mesmo
estagiário, um multiplicador de possibilidades de poder-ser
junto a outros: uma aprendizagem significativa.
Esse comprometimento, em várias oportunidades, árduo e
sofrido, aponta a direção que se trilha na ação psicológica:
ao invés de circunscrever-se a aspectos referentes a
alterações de personalidade e presença de doenças psíquicas,
trata-se de, decisivamente, atentar à possibilidade de um
redestinar-se da existência no que plausivelmente se anuncia.
Por esse viés, a história pessoal, emergindo da história
coletiva, é narrada ao psicólogo/ouvinte, o qual, via essa
intervenção, passa também a ser narrador.
37
Enquanto uma atividade com sentido educativo na
formação profissional de psicólogo, contemplando a supervisão
do trabalho prático e de pesquisa realizado pelos
estudantes/estagiários, a ação psicológica se apresenta em
dimensão clínico-pedagógica. É o caráter de acompanhamento
junto ao estagiário que constitui a especificidade dessa
supervisão: elaborar a experiência de testemunha de uma
história que, de algum modo, o afetou. Assim, entre o
supervisor e o estagiário surgem possibilidades de compreensão
de si mesmo e do outro, na medida em que o supervisor atenta
ao modo como o estagiário foi tocado, compreensivamente, pelo
cliente, suspendendo as pré-concepções que, normalmente, um
aluno de psicologia tem sobre psicoterapia e entendimento do
sofrimento; na supervisão, a ação psicológica é experienciada
na mesma direção em que foi realizada junto ao cliente
Muitas vezes, a supervisão atém-se a dimensões bem
concretas do atendimento. No entanto, isso não quer dizer
orientar-se por uma visão pragmática do ser humano e da
atividade clínica. Trata-se, mais uma vez, de partir da
situação para nela encontrar saídas concretas, plausíveis de
postura e conduta, considerando-se a singularidade de cada
encontro. Assim, a própria ação psicológica constitui-se numa
situação de passagem, na qual se avaliam e decidem os
possíveis encaminhamentos10 disponíveis para o enfrentamento de
um sofrimento emergente de uma pessoa que clama por cuidados.
Desse modo, ação psicológica na prática e pesquisa em
instituições, em seu exercício, requer recursos institucionais10 Por encaminhamento compreende-se o encaminhar-se do próprio cliente emdireção ao que sua demanda lhe desvendou durante a ação psicológica.
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e comunitários que possam re-dirigir o caminhar de uma
existência, requisando uma específica paragem como abertura de
recursos necessários a des-dobramento harmonioso de sua
história para tornar tolerável um sofrimento.
Nesse sentido, a ação psicológica demanda uma rede de
apoio social que acompanhar e atender modalidades de cuidados
clínicos e/ou pedagógicos de que a clientela possa necessitar.
Em suma, essa rede de apoio social constitui-se num
“organismo”, em relação mútua, que possibilita a prática da
solicitude própria ao trabalho da ação psicológica,
viabilizando a seqüência de atendimentos necessários na
realidade emergente.
Sendo realizada dentro da Universidade e de outras
instituições públicas, a elas servindo pelo exercício das
responsabilidades civis de ensino, pesquisa e extensão
universitária, compete que os desdobramentos solicitados pela
ação psicológica dirijam-se por esses mesmos objetivos. A
Universidade, por sua vez, não se deve constituir em apenas
ser um banco de dados e informações de interesse da
comunidade; é sua tarefa poder ser um centro de referência
para os profissionais de várias áreas, possibilitando a
circulação de colaboração, como trabalho de co-autoria. Nesse
contexto, uma de suas funções é poder subsidiar pesquisas que
concorram na efetivação de modalidades de prática da ação
psicológica, propiciadoras de tal trabalho: é ação política11
realizar pesquisas interventivas em instituições demandantes.
11 MORATO, H. T. P. Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. In: Anais doIX Simpósio de Práticas Psicológicas em Instituições - Atenção psicológica:fundamentos, pesquisa e prática. Recife: UNICAP, 2009. v. 1. p. 1-15.
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III – Para arrematar
Finalizando, este trabalho teve o propósito de
apresentar a possibilidade de uma leitura da ação psicológica
na prática e pesquisa de profissionais de saúde e educação
através de uma compreensão fenomenológica existencial, que
subsidiasse sua propriedade de ação humana entre homens. Nesse
sentido, configura-se a necessidade de refletir temáticas
pertinentes à ação psicológica destinada à demanda de
humanidade do homem contemporâneo. Percorrer tais temáticas
implica conduzi-la a pensar sua legitimação de um agir
comprometido a interpor os bons ofícios, ou seja, intervenção,
junto a profissionais de saúde e educação, apresentando-lhes
um modo de pensar diverso daquele implicitamente comprometidos
com modelos tradicionais explicativos, percorrendo sentido de
“homem, existência e história”12.
Assim, esta contribuição consistiu em apresentar temas
básicos segundo uma ótica fenomenológica existencial: o modo
de ser clínico implicado na ação psicológica, ressaltando o
ser afetado, a compreensão desdobrando-se em interpretação e
fala (ouvir, dizer, calar). O desenvolvimento desses temas é
um esforço de leitura de ação psicológica em prática e
pesquisa em instituições de saúde e educação através da
ontologia fundamental de Martin Heidegger, em “El ser y el
tiempo” (1927/1984), recorrendo, a situações dessa ação em
12 Não se trata de compreender a existência segundo o critério de uma concretudeaparente; mas, de compreendê-la como um modo humano de ser.
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suas várias modalidades. Enfim, a interrogação que se leva
adiante ao abordar tais temáticas é a busca de subsídios para
a ação psicológica pela antropologia filosófica proposta nessa
obra, que apresenta uma compreensão do humano pela aproximação
da pergunta pelo ser.
Na experiência da própria prática e da pesquisa na ação
psicológica, a compreensão aqui empreendida abriu questões
ainda a serem esclarecidas. No entanto, procurou-se sempre
conservar, ao alcance dos olhos, um todo que pudesse
paulatinamente crescer e, concomitantemente, oferecer uma
possibilidade para encaminhamento do sentido da ação
psicológica. Mas, sem dúvida, o que se pretendeu com essa
retomada em perspectiva foi abrir outros horizontes para uma
aproximação existencial da ação psicológica clínica na prática
e na pesquisa em instituições de saúde e educação.
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