ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA...

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA PESQUISA EM INSTITUIÇÕES HENRIETTE T. P. MORATO Buscar aproximar a Psicologia, como ciência, da Filosofia, como teoria do conhecimento, é tarefa im- pertinente. São modos de pensar que nem sequer caminham em paralelo. Cumpre ao filósofo resgatar o caminho próprio da Filosofia, enquanto ao psicólogo talvez seja possível caber compreender o modo de ser psicólogo, como humano que é, não pelo modelo de cientista da Psicologia. Desse modo, este trabalho se resume a uma ousadia: procurar articular algumas considerações da Fenomenologia (analítica) Existencial de Heidegger e a ação psicológica, no modo como ocorre na prática e na pesquisa em instituições. O caminho a percorrer envereda pelos existenciários e, a partir deles, poder compreender o modo de ser clínico pela sua acontescência em campo. Nesse percurso, recorre-se a uma tese de doutorado (ALMEIDA, 2005) orientada pela autora, que buscou compreender Aconselhamento Psicológico por uma leitura fenomenológica existencial. Entremeando, será tentada uma interpretação, tomando por base alguns textos anteriores a respeito de compreensões da prática e pesquisa em projetos de intervenção em instituições. 1

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL PARA A AÇÃO

PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA PESQUISA EM INSTITUIÇÕES

HENRIETTE T. P. MORATO

Buscar aproximar a Psicologia, como ciência, da

Filosofia, como teoria do conhecimento, é tarefa im-

pertinente. São modos de pensar que nem sequer caminham em

paralelo. Cumpre ao filósofo resgatar o caminho próprio da

Filosofia, enquanto ao psicólogo talvez seja possível caber

compreender o modo de ser psicólogo, como humano que é, não

pelo modelo de cientista da Psicologia.

Desse modo, este trabalho se resume a uma ousadia:

procurar articular algumas considerações da Fenomenologia

(analítica) Existencial de Heidegger e a ação psicológica, no

modo como ocorre na prática e na pesquisa em instituições. O

caminho a percorrer envereda pelos existenciários e, a partir

deles, poder compreender o modo de ser clínico pela sua

acontescência em campo.

Nesse percurso, recorre-se a uma tese de doutorado

(ALMEIDA, 2005) orientada pela autora, que buscou compreender

Aconselhamento Psicológico por uma leitura fenomenológica

existencial. Entremeando, será tentada uma interpretação,

tomando por base alguns textos anteriores a respeito de

compreensões da prática e pesquisa em projetos de intervenção

em instituições.

1

I - Ser clínico: uma possibilidade de leitura fenomenológica

existencial

O termo clínica, provindo do grego kline, significa cama;

assim clínica significaria debruçar-se sobre alguém que está

ao leito. Clinicar seria debruçar-se ou inclinar-se para poder

apreender e escutar aquele que precisa de cuidado em mal

estar. Clínica, então, seria uma modalidade da solicitude1,

fundamentada na escuta.

De fato, ser-com implica em não apenas fazer com

outros, mas também através e por eles, já que, ao preocupar-se

com possibilidades de outros, o ser-aí realiza também suas

possibilidades. Nesse sentido, psicólogos da saúde e da

educação são íntima e explicitamente engajados nesse ofício: o

ser psicólogo deve compreensivamente mover-se no âmbito do

ser-com, no modo de ser clínico, pois o outro é sempre alguém

com o qual o psicólogo profissionalmente se pre-ocupa:

solicitude não é ocupação, mas pre-ocupação.

Partindo de considerações de Heidegger (1927/1984)

acerca da solicitude, há duas formas básicas e extremas: a do

modo da substituição e a do modo liberador. No primeiro, toma-

se o lugar do outro em sua tarefa de cuidar de ser, retirando-

o de realizador de suas próprias possibilidades. Refere-se a

quando o profissional da saúde e da educação, ao invés de

acompanhar seu cliente em suas possibilidades, como1 Solicitude diz respeito a procurar: composta pelo prefixo pro, que se refere a projetono sentido de proyectum, traduzido por lançado adiante e por curar, em sua concepçãode cuidar. Sendo o ser-aí é sempre projetivo, na acepção de lançar-se adiante emdireção a possibilidades, equivale a dizer que o homem é um realizador depossibilidades, sempre conjuntamente com outros.

2

testemunha, compreende-o por interpretações de diversas

teorias explicativas, ou por prescrições tecnicamente

padronizadas, por atitude autoritária portadora da verdade

sobre a experiência: substitui o cuidado do outro por si

mesmo. Já no modo liberador, compreende-se o outro diante de

suas próprias possibilidades, encarregando-o de seu poder-ser

para conduzir-se em dada situação, pertinentemente a seu ser-

no-mundo.

Na experiência cotidiana, o primeiro modo, na esfera da

saúde, revela-se por um saber fazer algo a alguém, intencionado

atenuar o sofrimento do outro. Quanto ao segundo, quando uma

supervisão educativa atenta ao modo como o supervisionando é

tocado pelo cliente, possibilita que o psicólogo se compreenda

nesse encontro, para poder dar seu testemunho como possível

encaminhamento de uma história a seus cuidados; atento ao modo

como é mobilizado em sua experiência com o supervisionando, o

supervisor dirige sua atenção na ressonância estabelecida

entre este e seu cliente, pois cuida do outro se dirigindo

tanto a cenas do passado, quanto ao futuro, dando lugar à

paciência, visto que a solicitude apresenta-se sob viés

temporal.

Desse modo, como ser-com, o ser-aí é para si mesmo e

para outros, circulando o mundo da alteridade com o qual se

implica e refere na teia de significatividade na qual é.

Aparece em seu estado de aberto em seu próprio ser-no-mundo,

porém também é do lançado ao mundo pelo outro, sempre o

descobrindo numa certa mundanidade à qual se reporta:

compreendendo o outro, o eu sabe de si mesmo através do outro

3

em seu mundo. Assim, o eu nunca é dado a partir de si mesmo: é

um poder-ser que desenvolve possibilidades dadas pelo mundo,

pois que lançado, o ser-aí aceita ou refuta os modos através

dos quais os outros cuidam de ser, identificando-se ou

distinguindo-se. Por esse modo de ser, percebe diferenças ante

a alteridade, simultaneamente desenvolvendo características

específicas e organizando estilos que o diferenciam dos

outros, nem sempre se revela como autenticidade.

Assim, a condição de ser-em e de ser-com do ser-aí

recolhe e expressa, como logos, a maneira de ser do homem: pode

dizer algo porque já recolheu, reuniu, juntou esse algo junto

a outro, (de legen em alemão como colocar junto). Como

conhecimento, recolher refere-se a captar o que foi visto,

sendo possível falar sobre: sobre algo que se apreendeu,

escutou. Desse modo, compreender, dizer e escutar são muito

próximos e articulados, expressando o modo pelo qual o eu já

se encontra no mundo junto a outros: o eu sempre é numa forma

afetiva, humoral, de encontro com o que está acontecendo,

constituindo o seu ser-no-mundo uma fatia de sua história.

Para Almeida (2005, p. 178), “O encontrar-se, condição

ontológica da manifestação ôntica do encontro humoral com o

que há no mundo, surge da possibilidade do homem como ser-no-

mundo, sendo os humores a manifestação pela qual a vida é dada

ao humano”.

1. Ser afetado

4

Uma escuta clínica atenta aos estados de humor, sendo

possível, através deles, compreender o aí (mundo) no qual cada

um está situado: medo em mundo ameaçador; mau humor em mundo

que falha; alegria em mundo vibrante; angústia em mundo

inóspito e carente de sentido, revelando o cotidiano transitar

de uma emoção para outra. A este modo Heidegger (1927/1984)

denomina de indiferença afetiva cotidiana: movimento com

emoções sem grandes diferenças, uniformizadas e sem

ressonância intensa.

O estado de humor, como abertura para o mundo, revela o

modo do ser aí nesse mundo: é nessa afetividade que está mais

plenamente entregue a si mesmo como quem de fato é, e não pela

idéia que tem do mundo. Através da emoção, o eu situa-se no

mundo, compreendendo tal situação, pois a apreensão do mundo

dá-se através do modo pelo qual o eu nele se insere. Emoção,

por emergir do mundo, não é algo interno, mas sim se apresenta

através do próprio ser-no-mundo: a emoção refere-se a como se

está no mundo em tal preciso momento.

Se as emoções expressam a situação na qual o eu já está

imerso, mostrando sua circunstância, considerar a emoção algo

intrapsíquico de um sujeito, como pregam teorias psicológicas,

é algo a ponderar. Na constituição de ser aí, o mundo fere2 o eu,

que, por sua vez, a ele se refere, respondendo na justa medida

em que é ferido. Afetando o eu, o mundo lhe é revelado nesse

toque, implicando que o real só é real por ser experienciado

de certa maneira, e não originariamente, modelado por

2 Ferir, do latim ferre, em sentido próprio é levar, carregar, suportar. Assim, omundo é levado para o eu, impactando-o; por sua vez o eu é trazido ao mundo,respondendo a esse impacto. (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam-webster.com in 12 Aug. 2011).

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conceito. “Implacavelmente, há uma realidade que se abre por

uma emoção e uma emoção que se esculpe numa realidade”

(ALMEIDA, 2005, p. 182): a emoção abre o real, que, por sua

vez, dispõe o eu em determinado estado de ânimo.

Na ação psicológica, pela escuta clínica pode-se captar

que o mundo do cliente/narrador, se converte numa ameaça por

feri-lo ameaçadoramente, respondendo com temor. Assim,

compreende-se que não há um ato de vontade pelo qual se

constitua uma emoção para ser vivida: a emoção convoca o eu,

numa dada circunstância e o eu é por ela colhido. Tocado

inapelavelmente pelos acontecimentos mundanos, “ao eu é

entregue a responsabilidade de ser, respondendo a uma dada

situação, mesmo que cale e não aja.” (ALMEIDA, 2005, p. 182)

Mas como essa condição pode expressar-se e ser

compreendida pela ação psicológica?

No entanto, apesar de ser colhido, é o eu quem vive essaemoção: o eu é inescapável de si através de seus humorese dores. Inclinando-se ao eu com dores, o clínico nãoapreende um funcionamento psíquico perturbado porvicissitudes ou traumas, mas uma situação dolorosacomposta por circunstâncias e por outros. Apresentando-se na condição de uma situação, na qual o eu étestemunhado no momento preciso de seu sofrimento eprocura por cuidado, o Plantão [Psicológico] é um espaçopossibilitador para que a situação do narrador possadesvelar-se em inteireza e complexidade articuladas:debruçando-se sobre a narrativa, o psicólogo podesilenciosamente escutar os desvios de rumo de umahistória, que clama por um sentido pertinente. (ALMEIDA,2005, p. 182)

Ser quem se é diz de caráter de ser e aparecer para simesmo já acolhido numa dada existência, numa determinadacircunstância, e não numa realidade dada como algoindependente do eu. Pelo olhar clínico, apreende-se quea rejeição é um tipo de acolhimento, pois o homem ésempre lançado acolhido, mesmo que seja, em demasia

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adversa, numa certa facticidade enigmática, já que o eué abrigado de tal modo que só pode ver o que seu olharpermite e ouvir o que é possível. (ALMEIDA, 2005, p.183)

Encontrar-se é a condição de possibilidade pela qual o

eu percebe sua facticidade: por seus humores, o eu apanha-se

em sua facticidade, atualizando como é ferido e como se

refere, por ser uma abertura numa facticidade, de uma

facticidade e para uma facticidade, constituindo-se no modo

pelo qual o eu é no mundo já acolhido3. Desse modo, na ação

psicológica, debruçando-se solicitamente sobre uma história

que clama por um redestinar-se, o clínico é atingido pela

experiência narrada, constituindo sua própria experiência pela

referência a ela: sua compreensão do cliente dá-se por

ressonância e não por empatia (MORATO, 1989). Isto porque a

compreensão empática diz poder compreender o narrador indo ao

mundo fenomenal da experiência “como se fosse ele”, assim,

promovendo uma objetivação da subjetividade tanto do cliente

quanto do psicólogo. Fenomenologicamente, compreende-se o

outro tal como se foi por ele afetado, dada a condição de ser-

com. Numa entrevista de Plantão, implica pôr-se diante do

outro para trabalhar com o que está acontecendo,

primeiramente, tal como4 se é tocado pelo cliente: a

compreensão é originariamente afetiva e acontece no encontro3 O ontológico refere-se à estrutura de possibilidades e o ôntico à configuração daspossibilidades. Só se chega ao ontológico pelo ôntico: compreende-seontologicamente aquilo que se apanha onticamente, ou seja, o que está emmanifestação. Assim, pela condição ontológica do encontrar-se, o eu se encontraconsigo mesmo inapelavelmente.

4 “Tal como” pode ser compreendido como a coisa mesma hursserliana: o real validadopela experiência.

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do psicólogo com o cliente, acontecendo no entre, por

ressonância.

Assim, o encontrar-se do plantonista com o cliente não

pode ser tomado como recurso para mero acolhimento afetivo

incondicional, mas sim pelo olhar do tratamento ontológico do

encontro: por sua própria condição de ser, se encontra com

outro e a si mesmo. Ou seja, por não ser técnica de

aproximação e acolhimento, “o encontro toca a historicidade:

manifestando-se pelo passado, interroga-se pelo que está

comprometido no presente e futuro. O encaminhamento dessa

interrogação atrela-se ao estado de ânimo de cliente e

plantonista, afetado pelo testemunho narrado.” (ALMEIDA, 2005,

p. 184)

É a experiência humorada/afetiva que abre a

possibilidade do ser-aí deparar-se consigo mesmo, pois a emoção

efetua a realização do real, dando significatividade a tudo

que é: é por ela que o ser humano se dá conta de quão

intransferível é sua possibilidade de ser, expressa no

próprio estar presente num mundo aí lançado: o eu sempre está

lançado numa situação, num certo sentido norteador, aberto

pela emoção. Nesse sentido, a emoção é já uma forma de

compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade: ela

é um modo específico de entendimento.

O estar lançado não é caótico, pois o eu já se descobrenuma situação acolhido por e nela, mesmo que sob a formada rejeição, o que implica que há vários modos deacolhimento acontecido num entrelaçamento, no qual o eu,circunstancialmente, se experiencia. Todas as relaçõeshumanas são, assim, conotadas pelas emoções, o que aludea que o procurar pelos outros, por exemplo, a solicitude

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do conselheiro ou psicoterapeuta, sempre se dá numarelação sentida e, por isso, consistente. (ALMEIDA,2005, p. 186)

Através das emoções, o eu descobre-se ser-no-mundo com

outros, não podendo deixar de considerar sua circunstância e

facticidade. Talvez por isso, na entrevista psicológica

clínica, a referência direta aos sentimentos do cliente

propicia um alargamento da compreensão do que está

experienciando, favorecendo-o não paralisar-se em uma dada

situação. Citando Arendt (1993), é pela compreensão que o

homem se reconcilia com o mundo, tornando-o familiar e

novamente transitável. Ou seja, descobre-se no mundo,

entendendo primeiro a mundanidade, os outros e si mesmo, pois

que as emoções se originam do modo de habitar o mundo, modo

esse cultural.

Testemunhado pelo psicólogo, o cliente compreende que

seu destino não é dado a priori nem pelo livre arbítrio, já que

habitar o mundo orienta sua existência: pela facticidade do

mundo e emoções que o afetam, o eu entende-se como alguém que

tem direção, isto é, se destina por ires e vires na

coexistência, percebendo-se na espacialidade do existir por

aproximações e afastamentos. Refere-se à possibilidade do

homem em dirigir-se – um sentido.

Capturando o homem, o estado de ânimo/afetabilidade

permite que este permaneça sempre referido a algo por

aproximação ou distanciamento, porém sempre aberto a uma

direção. As emoções chamam ao sair (cair) e ir para o mundo,

tornando-o público na co-existência: embora atente a si, está9

voltado para o mundo. O único humor que não procede do mundo é

a angústia: “sua proveniência é do poder-ser mais peculiar do

eu, o que a torna no exclusivo estado de ânimo que o afasta do

mundo, aproximando-o de si mesmo”. (ALMEIDA, 2005, p. 186).

Desse modo, enquanto as emoções revelam a condição humana de

aberta ao mundo, a angústia traz a experiência da ausência de

mundo (do nada): “se todas as emoções possibilitam que se

habite o mundo, a angústia nasce da ocorrência de um mundo

inabitável, o qual clama para ser reabitado; a angústia é uma

requisição para que o eu, sem morada e carente de sentido e

destinação, habite de novo o mundo”. (ALMEIDA, 2005, p. 187)

A vida cotidiana, pautada pela ameaça, abre ao homem

compreender sua existência como uma carga/peso que pode

esmagá-lo, provinda de algo do mundo ou junto aos outros.

Ademais, nada nem ninguém pode defendê-lo contra a morte:

sempre está lançado em perigo, sendo sua condição ontológica

compreender tanto ser quanto não ser. Ao assumir atitudes de

prevenção em relação a sua existência, a proteção de si mesmo

não é uma aproximação de si mesmo, mas de dirigir a atenção

àquilo que, provindo do mundo, o ameaça. Focado no perigo que

pode atingi-lo, não foca si mesmo como segurança; ao

contrário, há incerteza quanto a acontecimentos no mundo que

podem feri-lo.Uma entrevista de Plantão é uma situação acolhedora naqual, às avessas desse exemplo acima, algo pode serdesmascarado do falso caráter ameaçador, emergido nacircunstância de uma existência, na qual, havendo umapreponderância absoluta do medo, se teme por qualquerpasso em direção à assunção de possibilidades maispróprias. Esse desmascaramento pode abrir o aconselhandonum outro estado de ânimo, o qual permite que esse algoapareça numa outra perspectiva; o aconselhando pode

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deixar-se tocar de uma nova maneira pelo que antes só seapresentava ameaçadoramente. Seu ver-em-torno via comotemível quaisquer desses passos, porque seu estado deânimo hegemônico era o temor. Nesses termos, cada emoçãodá liberdade a tudo que se apresenta segundo o tipo deabertura que proporciona, conferindo-lhe, assim,consistência. (ALMEIDA, 2005, p. 194)

Em outras palavras, algo temido nem sempre se apresenta

assim; diz respeito a tirá-lo do lugar no qual se apresenta

pela emoção de temor; temer é dar liberdade, pois deixar ser e

aparecer é aletheia. Nesse sentido, contrariamente ao pensamento

cartesiano, o verdadeiro se dá a ver pelas emoções: o que é

verdadeiro de algo se apresenta torna-se o que é, aberto pelo

que é sentido e não pelo que é pensado. A sensação

experienciada é aletheia, dando liberdade para o que é pelas

emoções.

É ação psicológica abrir o cuidar de ser sob própria

responsabilidade como bem-vindo, levando o cliente a assumir-

se como referência de si mesmo para possibilidades dada pela

situação: destinar-se em apropriação. Porém, sendo temerária a

angústia que abre à propriedade, o cliente pode respoder a ela

com desespero, des-responsabilizando-se por si mesmo. É

próprio da ação psicológica acompanhar o cliente paralisado em

projetar-se, abrindo o benefício da dúvida quanto à “certeza

temerosa” experienciada.

Assim, a ação psicológica na prática seria um modo do

psicólogo procurar pelo cliente que cuida de ser si mesmo,

testemunhando a narrativa do vivido como cuidado (MORATO,

2006). Nesse sentido, fenomenológica existencialmente,

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experiência diz do ser-aí como abertura temporal: “diz

respeito a um dado projetar-se, pelo qual, vindo a si, o eu

volta a si, retomando determinados modos do sido e, assim, se

torna presente numa dada situação, atualizando uma determinada

ação.” (ALMEIDA, 2005, p. 199)

Como testemunha de uma narrativa, o psicólogo é afetado

pelo que é experienciado pelo cliente: é próprio à clínica

psicológica agir debruçando-se na direção do encontrar-se do

cliente e do psicólogo, desvelando-os a si mesmos via a

compreensão originária de si, manifestada pelo modo como se é

tocado em cada situação. Na mesma direção, o psicólogo

pesquisador encaminha sua investigação pelos vestígios da

narrativa do pesquisado, compreendida como elaboração de

experiência, ao mesmo tempo em que também registra suas

sensações e compreensões prévias em “diários de bordo”, a fim

de compor uma cartografia do contexto pesquisado (MORATO,

2007).

Resgatando Heidegger (1927/1984), Almeida (2005, p.

201) diz que a “clínica só pode acontecer à medida que já se

está aberto numa afetação, possibilitando um acesso direto à

própria historicidade e não personalidade e identidade do eu;

o conselheiro deve permanecer atento à abertura do

aconselhando, atentando à maneira pela qual é tocado nessa

relação, o que se constitui numa compreensão originária.” Para

Gendlin (1978/1979), a partir de Heidegger, a propriedade da

afetabilidade (befindlichkeit) abre a possibilidade da ação

psicológica como cuidado por abrir ao psicólogo experienciar

em si a própria manifestação de disposições humorais, por ele

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denominada “felt-sense”: o real dado no próprio ato de

experienciar. (MORATO, 2009). Seria legítimo dizer que a ação

psicológica junto ao singular ôntico possibilita aproximar-se

do ser humano como tal, isto é, a humanidade de cada um?

2. A compreensão e interpretação

Compreender refere-se à apreensão do que está na

abertura junto a outros; ou seja, diz do a fim de que da condição

de existir, abrindo ao homem seu poder-ser e a dimensão de ser

como projeto do ser-aí. Nesse sentido, o compreender acompanha

sempre o encontrar-se: não há humor que já não seja

compreensivo, como também não há compreensão que não seja

humorada. O aberto ao mundo é compreensão no sentido

originário, já que destinar-se ao mundo é destinar-se a si

mesmo: ser-no-mundo é abertura para o que o ser-aí se

interessa. Nessa abertura encontra-se a

significatividade/interpretação do mundo, apresentada pela

cultura (costumes, moral, leis, saberes); o compreender já

está aí no fenômeno, uma vez que o compreendido é o desvelado.

Sendo o compreender projetivo (aquilo a que se dirige),

numa intervenção5 psicológica isso se pode se mostrar quando o

cliente se vê possível, não nas referências, trazidas, mas em

cada gesto seu em relação a elas. É tarefa da ação psicológica

clarear que, antes de ir em direção a algo, o eu vai em

5 Intervenção como interpor os bons ofícios. (engage to look after or attend to : accept the responsibility for the care of) (Webster's Third New International Dictionary, Unabridged. Merriam-Webster, 2002. http://unabridged.merriam-webster.com in 4 Oct. 2011).

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direção ao que lhe é possível ser, diretamente implicado ao

cuidar concreto realizado a cada momento: é pelo cuidado que

se abre ao poder ser (realizar possibilidades), sendo o real

possibilidades e não necessidades. Assim, vir a ser através do

cuidar, confere à humanidade do homem o caráter de

inauguração. Desse modo, numa ação psicológica procurar ser

testemunhado em sua experiência pode ser manifestação do

poder-ser re-clamando re-destinar-se a re-inaugurar sua

história. Isto porque o possível é o que ainda não é, mas cujo

significado pode ser antevisto pela compreensão.

A possibilidade já é anunciada no contexto em que a

existência é lançada, ou seja, numa circunstância; podendo ser

a partir do que já lhe é dado, o eu não é livre de sua

circunstância, porém para poder ser além. O eu é livre para

resgatar possibilidades ainda não configuradas; voltando-se

para a realização do que ainda não é, o agir humano instaura a

liberdade. Compreender é abertura para o possível, isto é,

projetar-se sobre possibilidades, apreendidas não por

entendimento, abrindo o poder-ser para responder em situação:

trazer à luz o possível do oculto, não como saber/conhecer,

mas como abarcar o sentido da existência humana, ou seja, pelo

modo como vai se constituindo pela vida, situado num mundo

junto a outros.

Testemunhado pelo psicólogo, o cliente pode expressar

como se encontra no mundo em relação aos demais, avaliando o

quão está na direção ou não de seu poder-ser e o quão

necessita de certa sujeição, necessária para prosseguir em seu

projeto. É compreendendo em situação que se faz possível ao

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homem desconsiderar seu modo próprio de ser por convenientes

determinações culturais.

É nesse sentido que também se encaminha a ação

psicológica em prática e pesquisa em instituições. Para este

presente trabalho, recorremos a projetos, realizados por

laboratórios universitários a partir de solicitações de

instituições (públicas) de saúde, educação e segurança

pública, de atenção psicológica tanto para usuários e seus

familiares como para funcionários e profissionais que nelas

atuam. Iniciados em 2000, mantiveram-se alguns por 8 anos,

enquanto outros se iniciaram em 2007 e ainda se mantêm.

Desfiando a prática psicológica tradicional (MORATO, 2009)

constituíram-se em elementos para pesquisa interventiva

participativa (SZYMANSKI e CURY, 2004), ambas relendo a ação

psicológica pela ótica da Fenomenologia Existencial. O

questionamento implicava em considerar precisamente a

compreensão da condição humana em suas dimensões de ser-aí-no

mundo-com outros, a qual seria possível ser contemplada visto a

ação ocorrer numa instituição, podendo se dar a ver bem como a

todos os atravessamentos manifestos que implicam em seu modo

de ser interpelado (MORATO, 2008).

Sendo o poder-ser direcionado a sentido e duração, a

compreensão se manifesta temporalmente como interpretação,

decodificando o compreendido como possibilidades projetadas no

compreender. Dizendo respeito ao modo pelo qual tudo se

apresenta, constitui-se num como, sendo a interpretação aquilo

que é. Existencialmente, a estrutura do como é uma

interpretação articuladora, enunciada por proposição.

15

“Sucintamente, a compreensão do possível desdobra-se

temporalmente na interpretação, que sustenta a possibilidade

de entendimento da proposição, a qual pertence à ordem da

língua e pela qual se exibe a interpretação.” (ALMEIDA, 2005,

p. 203).

No contexto da ação psicológica, ocorre um jogo

interpretativo entre psicólogo e cliente através de enunciados

como expressão de dada interpretação, o que permite ao cliente

elaborar possibilidades por ele projetadas. Assim, interpretar

não é obtenção de informações para explicar “funcionamento”

mental por teoria explicativa. Refere-se a preencher lacunas

presentes numa forma de compreensão do projetar-se desse

cliente, manifesto em seu temporalizar-se, ou seja, de que

modo um futuro incerto remete a eventos do passado

dificultando sua atualização.

Isto porque o homem já é imerso em trama de

significações culturais interpretadas: o que a ele se abre já

se abre num fundo de cultura que demanda compreensão prévia

interpretativa. Assim,

A interpretação permite que qualquer coisa que seja semostre em sua significatividade. É pelo ver-em-torno queo mundo sempre já compreendido se interpreta, o queremete a que o à-mão é clareado pelo enxergar dacompreensão em todo seu contexto de significações. Essainterpretação já está dada a priori a qualquer ver-em-torno, possibilitando, assim, seu referenciar-se;apreendendo a serventia, o ver-em-torno decodifica o quese apresenta. (ALMEIDA, 2005, p. 209).

Tudo que é existe numa totalidade de nexos

significativos, no contexto prévio (de antemão) da tradição,

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adquirindo um caráter de utilidade e uso (à-mão). Desse modo,

ver de antemão é reconhecer que existe algo da tradição que

também constitui o modo humano de ser, implicando uma

concepção prévia da trama de significações: existir em uma

situação atravessada pela cultura conduz a interpretações.

Nessa medida, a ação psicológica, inclinando-se à

narrativa do cliente, é interpretativa por requerer

identificar como a tradição e a trama de significações são

constituintes de seu modo de ser. É sua tarefa interpretativa

dar a ver como concepções culturais podem estar conduzindo à

ausência de sentido na existência.

Sentido é a direção, o rumo para onde se vai, estando,assim, atrelado ao destinar-se; o destino último daexistência é a morte, última paragem do ser. Ainda quenão visível em si, o sentido é uma armação sem a qual omundo não se arruma, organiza; configurando-se somentena dimensão humana, todos os demais entes são carentesde sentido. Fenomenológica existencialmente, a perguntapelo ser não se dirige ao que é, porém ao sentido deser; por esse viés, a pergunta pelo ser não passa pelosignificado dos entes, os quais só fazem sentido quandosão apanhados em modos de existir, desenvolvidos pelohomem. O sentido em si é inarticulável; sendo um fundoinvisível, atua como um fundamento sobre o qual tudo oque é pode aparecer em sua especificidade. (...) só numadestinação é que algo faz sentido. Nessa medida, já queo sentido é inerente à estrutura da compreensão, o quenão faz sentido não chega a ser compreendido; o estadode compreensível de algo apóia-se sobre um fundo, que éo sentido. (ALMEIDA, 2005, p. 213)

Pela proposta fenomenológica, o sentido é inerente ao

projetar-se humano: destinar-se. Vir a ser diz de algo

manifesto, mas desdobrando-se a um poder-ser. O que tem

sentido é a existência do homem, pois apenas ele pode

compreender sua direção, imprimindo modos que são e como podem17

ser: sentido é a direção na qual o humano articula os fatos de

sua vida. Dessa forma, desorientar-se expressa ausência de

sentido, que clama pela necessidade de encontrar-se.

É este o preciso momento que a ação psicológica entra

em cena: a emergência da urgência por sentido. Presta-se à

demanda do cliente para encaminhamento de si testemunhado por

outro, o psicólogo, inclinado à sua historicidade. Por outro

lado, mas na mesma direção, na supervisão do psicólogo, como

situação de aprendizagem, atentamente inclinada à compreensão

do cliente pelo supervisionando, a ação psicológica do

supervisor abre um “ver além”6: dirige-se ao modo como o

supervisionando foi tocado na situação do atendimento e de

supervisão, como forma de dar a ver como através de sua

disposição afetiva abriu-se uma compreensão interpretativa do

cliente, e pelo qual o cliente surge em sua singularidade.

Contudo, ser tocado, compreender/interpretar não

esclarece a questão do sentido se não houver uma sinalização

responsiva a essas manifestações. Sendo no mundo com outros, o

compreendido desdobra-se pela ordem da língua em comunicação:

apreender e responder o que se mostra por palavras, para que

outros apreendam o que foi apreendido, tornando-o comum, pois

o dizer “torna presente tudo o que é para o ser-no-mundo, que

sempre coexiste com outros.” (ALMEIDA, 2005, p. 219), ampliandotanto o próprio ouvir quanto o mundo como mundo comum pela

significação comunicativa.

Assim, numa situação de ação psicológica de prática e

pesquisa em instituições, o testemunho do psicólogo, atento ao

6 Sentido etimológico de supervisão, encontrado na expressão latina super videre, mas dogrego theorein (ato de ver, contemplar). (MORATO, 1989).

18

dizer narrativo de quem o solicita, possibilita um

recolhimento para ampliar a compreensão de circunstâncias de

vida por meio do desvelar sentido para re-encaminhamento de

direção. Nesse sentido, pela ressonância afetiva ao expresso

junto a outros e com ferramentas à mão, uma interpretação

esclarecedora da experiência vivida pode se apresentar e

sugerir a continuidade de uma história.

Por esses projetos, a ação psicológica tem desvelado

como o falar só consegue permitir que palavras possam conduzir

a uma interpretação caso se apresentem apontando

direção/sentido. Porém, palavras podem indicar sentido quando

partem do sentimento/disposição afetiva, referindo que ser

afetado/sentir é o fundo/sentido da palavra.

O sentir abre-se como um sentido, em que a existência sepõe, sendo o aí em que se forja o falar. De novo, fala-se do Plantão e também da supervisão como um exercíciodo logos, já que, nessas situações, pelo jogointerpretativo, se evoca o sentido e não o pensado, oqual, para adquirir tal condição, precisa destacar-se dosentido para tornar-se ante-os-olhos, num distanciamentosem envolvimento; o jogo interpretativo só podeacontecer na emergência da afetação do conselheiro,psicoterapeuta, supervisor, aconselhando, analisando eestagiário, dando-se numa absoluta proximidade, em que oenvolvimento elicia a confiança. (ALMEIDA, 2005, p. 224)

Nesses termos, a ação psicológica possibilita o

clareamento de uma situação para tomada de decisões,

testemunhando uma narrativa de história lacunar. O narrar,

vindo por meio de conteúdos, vê-se atravessado pelo joga da

interpretação como historicidade, dando a ver-se um entre que

nem sempre conduz a um destinar-se pertinente, mas sim à

19

lacuna de sentido. Por ser atravessado pela cultura, o homem é

lançado no âmbito da pluralidade; contudo, buscando ser quem

é, como singularidade, nem sempre suporta a angústia de seu

ser ser-no-mundo com outros, levando-o a rupturas em sua

história. Pela ação psicológica, é possível “reintegração

pelo jogo interpretativo, que, operando no âmbito do

desvelamento, traz à tona o fio de sentido seguido” (ALMEIDA,

2005, p. 221), que possibilita ao cliente recorrer a seus

próprios recursos para ir adiante rumo a ser singular.

3. Linguagem: dizer e ouvir para “fazer sentido”

Para Heidegger, o falar origina-se de logos, do verbo

legein, cuja tradução é falar. Simultaneamente ao sentir e

compreender, o falar é originário para o homem: é por ele que

se expressa a articulação entre ser afetado e compreender,

dando a ver o sentido. É fundamento ontológico-existenciário

da linguagem, pelo qual o mundo dito e interpretado pelo homem

expressa articuladamente sua significação: logos é fala/

expressão de compreensibilidade do mundo, por reunião e

separação de palavras como significado, articular ou desarticular

sentido/significações.

Na ação psicológica clínica, o falar é modo fundante de

procedimento. Inclinado à narrativa, o falar se apresenta como

um falar sobre ou a respeito de, ou seja, daquilo do que se

fala, num primeiro momento. Entretanto aquilo do que se fala

se fala a outro, constituinte do ser-com: o cliente fala de

20

experiência ao psicólogo. Porém, ao falar deixa entrever algo

não presente no falado, mas ocultamente expresso, como se a

própria fala falasse por entre lacunas de compreensão

(CRITELLI, 2002). Nesse sentido, a fala é comunicação,

revelando intenções de quem fala, por outros modos que não por

palavras: noticia algo. É esta a brecha da possibilidade

interpretativa da ação psicológica.

Desse modo, fala é comunicação, pois o homem é no mundo

falando com outros, abrindo possibilidade para o que é comum

entre homens: aquilo que é familiarmente compartilhado em co-

existência, condição de ser humano.

Ser psicólogo expressa a especificidade mesma do ser-

com no sendo-com: o cuidado a que se dirige é solicitude pela

pré-ocupação com o outro em seu padecimento. É essa a tarefa da

ação psicológica:

não se desincumbe de sua ação de cuidar limitante7,balizada, circunscrita numa situação de atendimento,procurando pelo outro naquilo que, nessa situação, possaser testemunhado, o que possibilita um esclarecimentonorteador ao aconselhando; assim, não se trata deocupar-se com o aconselhando, fazendo um meroencaminhamento nos moldes de uma triagem. Numaentrevista de Plantão, a comunicação não se dá comotransporte de mensagens e vivências entre aconselhando econselheiro; o ser-com, condição de ser do ser-aí, já épatente nas manifestações do encontrar-se e nosdesdobramentos temporais da compreensão, que se dão emconcomitância, o que é expresso no jogo interpretativopela fala. (...) A fala articula tanto o sentido fundadono sentir quanto o desdobramento das possibilidadesprojetadas no compreender, assim, vinculando oencontrar-se ao compreender e alimentando o ser comum.(ALMEIDA, 2005, p. 224)

7 O substantivo limite remete-se à fronteira que perfaz um horizonte apartir do qual algo começa a se fazer presente.

21

Nessa direção, a experiência da comunidade apresenta-se

dentro de uma circularidade: articula-se pelo co-compreendido

e co-sentido, estofo do jogo interpretativo numa ação que se

proponha terapêutica ou educativa. Ao falar, o que se comunica

é também uma notificação, manifestada pelo modo (modalidade)

como se expressa a forma como foi tocado pelo mundo e como o

compreende.

A fala só pode articular uma compreensibilidade por sua

dimensão do ouvir, constituinte básico do compreender, como

apreender com. O ouvir dispõe um proceder em relação ao outro:

acompanha-o, nega-o, não o ouve, acolhe-o, opõe-se a ele; sem

o ouvir, não há acolhimento das crenças embutidas no estado de

interpretado, impossibilitando a comunidade humana, pois

ninguém ouve o não compreendido. É a interpretação,

desdobrando o compreendido, que é a expressão do significado

da realidade, tendo linguagem como organizadora do mundo. A

fala difícil e raramente traz o estranho, já que é a

articulação do já interpretado.

Se o ouvir ocorre como possibilidade fundante do

humano, o escutar é uma sua realização; nunca se escuta ruídos

puros, porém, já imbricados na interpretação já articulada. A

escuta permite a vinculação entre os homens, pois o ser-com

acontece articulado pelo ouvir: o que está pendente é aberto

pelo escutar. Contudo, o ouvir pode realizar-se como um mero

escutar, não levando adiante qualquer crença e interrompendo a

comunicação entre os falantes.

22

A ação psicológica, como debruçar-se sobre o sofrimento

do outro, constitui-se em solicitude apoiada na escuta: o

ouvir radical. Acompanhar o cliente na expressão do que lhe

dói, urge apreendê-lo em sua realidade e sentido do existir, é

escuta que pode permitir se manifestarem certos elementos

norteadores vindos da tradição, mas que emperram a

singularização. Clinicamente, nunca se escutam queixas puras,

mas já mescladas no caldo interpretativo de sua realidade,

estado de interpretado no qual se forjam as relações da vida

em situações com outros, em família, social e no trabalho.

Também, é pela escuta que se estabelece a relação com o

psicólogo, fundada na confiança pelo bom ouvinte. A escuta

clínica, pelo ouvir, é fundamental em qualquer situação

demandante de ampliação da compreensão. Em projetos de atenção

psicológica em instituições, nas modalidades de Plantão,

Psicogiagnóstico Colaborativo, Plantão Psicoeducativo,

Supervisão de Apoio e Oficina de Recursos Expressivos, o ouvir

se apresenta como abertura à compreensão de mal estares em

relações situadas, indicando caminhos para aprendizagem

significativa como direção/sentido.

O falar propriamente dito é o falar com outros, o que sedá pela enunciação de proposições; é resposta a umaescuta que já realizou a articulação do interpretado,tratando-se de uma contra-fala, que faz parte de ummesmo circuito, como complemento do compreendido. Nessesentido, o falar propriamente dito, tomado como contra-fala da escuta, é um dizer; contudo, esse falar podeassumir as vezes de um mero falar, associado a uma meraescuta. (ALMEIDA, 2005, p. 225)

23

O dizer do psicólogo se apresenta como contra-fala8

própria ao jogo interpretativo. Nesse sentido, responde

completando e abrindo possibilidade de ampliar a compreensão

emergente do cliente; assim, apreende temporalmente a

experiência narrada, conduzindo à indicação de sentido. O

dizer responsivo do psicólogo, pela escuta primeira, completa

o círculo da com-fiança (fiar-se-com): “ser fiador do outro no encontro,

o que acarreta que se acredite nesse dizer que, por ter recolhido, expressa aquilo

que é, constituindo-se na contra-fala do bom ouvinte.” (ALMEIDA, 2005, p. 225)

Outra dimensão da fala, além do dizer e ouvir, diz

respeito ao calar, que colhe e acolhe o ouvido. É uma forma de

dizer, articulando o compreendido, embora se revele no

silenciar, não expressando o compreendido em palavras, pois o

compreensível, para além da palavra, pode ser apreendido pelo

silêncio: é a silenciosidade como fala. Silêncio não é

mutismo, pelo qual nada se tem a dizer.

Falando sem palavras, no silêncio, o calar refere-se auma compreensão que “calou fundo”; cala porque corta apalavra pela genuinidade da interpretação. A compreensãofunda, não passível de apreensão em palavras, debuta nosilêncio: ao genuíno falar compete o calar, no qualfulgura o sentido. O insight, acontecimento fundante emqualquer situação terapêutica e de aprendizagem, ocorrena silenciosidade; pelo jogo interpretativo, abre-se,caladamente, ao aconselhando a direção em que seuexistir navega, possibilitando-lhe uma visão clara egenuína de seu mundo e o discernimento de seu poder-sernesse mundo. (ALMEIDA, 2005, p. 228)

Sendo a condição fundante do homem ser-em, é um aí

aberto, ou seja, o si-mesmo, como centro dessa clareira, pode

8 Questiona-se “contra-fala”, na medida em que “contra” pode ser compreendida como “contrária”

24

exercer o logos que, ouvindo, dizendo e calando, tira o véu e

traz à luz a coisa mesma como realmente é. Por recolher e

expressar, falar se constitui num desvelar o mundo, os outros

e si mesmo.

Assim, na situação de ação psicológica clinica e/ou de

aprendizagem acontece o exercício do logos como aletheia. O

Plantão Psicológico e a Supervisão de Apoio, modalidades da

ação psicológica, ocorrem como um acontecimento; trata-se de

uma paragem na qual o psicólogo, debruçado e atento à

narrativa, testemunha o entre, ou seja, a condição do cliente de

ser em história. Através do jogo interpretativo, é possível

deixar ver um sentido na temporalização de uma experiência:

“uma história oculta, mas repleta de lacunas, agora passíveis de serem

perscrutadas pelo exercício do logos”, revelando filamentos

desconectadamente conexos.

Dá-se a ver que o falar não é apreensível por análise

formal, mas sua acontescência é própria ao humano, e pela qual

constitui sua humanidade em seu falar cotidiano. Como cada um

de nós se humaniza pela forma aprendida em dada cultura, somos

também, ao mesmo tempo, todos nós e nenhum. Desse modo, o

homem tem na fala a possibilidade de se inserir no mundo,

expressando/comunicando sua compreensão de mundo comum pelo

falar cotidiano, que a todos captura. Nesse sentido, esse

falar é impessoal, dizendo respeito ao que Heidegger denomina

por impropriedade, que exerce imperativo domínio no humano. Se

a questão fundamental é ser humano como se é humano, a fala

como falada no cotidiano, por todos nós, a fala imprópria, é

aquela que possibilita uma compreensão, por “pôr em andamento a

25

publicidade em suas formas de equivalência, uniformização e distanciamento”,

empurrando cada um para o mundo comum: o cotidiano, estando na

dimensão da impropriedade, apresenta um modo característico de

falar, cujas três formas Heidegger denomina falação, avidez de

novidades e ambigüidade.

O modo de ser do ser-aí poder realizar seu ser mostra

que a linguagem originariamente não é um sistema. Sustenta-se

como um enunciado de uma interpretação prévia, pois expressa

algo já interpretado. Nesses termos, a fala regula o que é

comum entre os homens, um modo cultural de apreensão do mundo

que tudo articula. Desse modo, o que se interpreta não são

fatos em si, mas modos de ser.

Pela sua abertura, o ser aí encontra-se com si mesmo no

mundo com outros através da linguagem, numa rede de

significatividade por ela apresentada. É ela que intermedeia,

pela abertura, o ser-aí junto ao mundo e outros. Assim, a fala

mesma é um modo de abertura, pelo qual o eu cuida de ser,

cuidando de como é no mundo: é isso que a fala fala. Nessa

medida, o falar cotidiano é possibilidade de manter o contato

junto a outros no mundo, garantindo o real; daí não importar

sobre o que se fala, mas que se fale.

A “falação” (“falar por falar”) é uma dimensão da fala

cotidiana que não explora o que se passou, mas apenas permitir

a circulação do falado, mantendo julgamentos e crenças pelos

quais cada um se vai constituindo, sustentando a trama da

realidade e explicitando a condição de homem (HEIDEGGER,

1927/1984). Trata-se de um levar adiante da fala, favorecendo

a entrada na publicidade, porém sem uma apropriação do que é

26

dito. “Põe-se veladamente em cena o que é falado, sabendo-se tudo por alto;

embora não tenha o propósito de promoção de engano, ao invés de explicitar, o

falar da falação vela.” (ALMEIDA, 2005, p. 229)

Numa situação de ocorrência da ação psicológica, dois

aspectos da falação podem se apresentar. O primeiro diz

respeito a que é pela falação que o cliente se introduz,

trazendo o já é interpretado e comum; no entanto, não há como

negar que esse momento é possibilidade de entrar em contato

com sua experiência. Por sua vez, o segundo revela como o

cliente se traz longe de ser propriamente, mas como que guiado

por circunstâncias da realidade de um mundo inóspito. Nesse

sentido, esses dois aspectos permitem compreender como a

versão primeira da experiência trazida pelo cliente chega sob

a forma de queixas, ou seja, a emergência do mal estar

incômodo sentido pelas circunstâncias da vida. É

especificidade da ação psicológica como atenção e cuidado, a

tarefa de acompanhando a realidade apresentada pela falação do

cliente, sugerir-lhe, através do jogo interpretativo,

encaminhar-se para a apropriação de si mesmo, ou seja, dizer

de sua demanda/necessidade, como urgência na procura por poder

ser. (MORATO, 2006).

Junto à falação, surge a “avidez de novidade”

(HEIDEGGER, 1927/1984): maneira da fala cotidiana apoiada no

ver à distância, ou seja, vendo tudo por cima, não se

demorando junto a nada, passando rapidamente para o que vem

depois. “É sofreguidão de acúmulo do visto pelo aspecto, o que

incide numa dissipação, pela qual o eu não tem paragem e,

assim, moradia; passando-se rapidamente a outros aspectos,

27

instala-se um distanciamento para que não haja envolvimento.

Está-se diante da perdição do eu...” (ALMEIDA, 2005, p. 230)

No tocante à “ambigüidade” (HEIDEGGER, 1927/1984),

refere-se a um modo cotidiano da fala acerca de possibilidades

que não podem ser atualizadas, apenas rastreadas, numa esfera

pública em que tudo parece ser acessível, com uma conseqüente

compreensão subliminar de que pode ser feito. Essa forma é bem

reconhecida no discurso tanto político, notadamente

ideológico-partidário, quanto institucional: há uma essencial

e evidente ambigüidade entre o falar e agir. Afinal, a

ambigüidade pressupõe que não se saia do lugar, pois requer

uma ação, que, se realizada, provocaria restrições. Desse

modo, impede as alternativas do agir pela fala das

possibilidades. Realizar alguma possibilidade aventada

implicaria sair-se da impessoalidade, dando a ver a própria

irresponsabilidade. Pela fala ambígua, mantém-se o

descompromisso em fazer o que deve ser feito, relegado à

dimensão da suspeita.

No cotidiano, busca-se a impessoalidade, porque não sequer puxar para si o gasto que uma situação configuradapossa deflagrar. Embora se queira algo, não se suportaque aconteça, ou seja, deseja-se profundamente umarealidade diferente, mas recusa-se, também,profundamente que o sonhado se torne real. Quem ageresponde pela realização do que estava em possibilidade:o eu é colocado em questão e cobrança; permanecendo nopossível, o eu exime-se de qualquer responsabilidade.Por isso é que a ambigüidade resolve a questão na fala,dispensando qualquer realização, que pode abortar oufracassar. (ALMEIDA, 2005, p. 229)

28

É nesse sentido que a tarefa da ação psicológica em

instituições dirige-se a testemunhar o outro fugidio em sua

responsabilidade perante o que lhe diga respeito. Procura

servir como “cama elástica” ao outro em seu lento tempo de

empreendimento para poder ser si mesmo, contrastando com o

tempo rápido da fala cotidiana. “O tempo do fazer genuíno dá-se sob a

égide do empenho, que medra no silêncio: a silenciosidade é realizadora, já o

marketing não faz, só fala.” O psicólogo acompanha o cliente que ainda

teme fracassar caso se empenhe em realizar uma possibilidade

cabível. Testemunhando a ameaça, possibilita ao cliente tanto

a discernir sua situação e como disponibilizar-se para a

consecução de seu projeto. Contudo, a ambigüidade caminha

sobre um saber dar conta de uma situação, não pela prescrição

do que deve ser feito, mas por suspeitas: “se isso...

então...”, resolvendo pela fala e não pela ação, visto operar

por projeções. Porém estas surgem não como possibilidades

próprias, mas aquelas disponíveis a todos, escolhendo fazer

algo no âmbito do público no qual se perde, por prevalecer o

ninguém. É deste modo que a fala cotidiana, pela ambigüidade,

falação e avidez de novidades aproximam os homens entre si,

mas sem que se esteja com o outro, porém com todos.

Assim, na ação psicológica, em instituições de saúde ou

educação, precisamente pelo caráter do “todos nós... ninguém”,

há que cuidar para acompanhar o cliente em suas peculiaridades

de ser conforme suas possibilidades públicas de realização, a

fim de não se estar “contra” ele, na dissimulação peculiar,

mas não deliberada, ao ser um com o outro na cotidianidade.

29

Afinal, competir e não cooperar revela ser um contra o outro

também um modo de ser-com.

Na fala cotidiana, sendo na impropriedade, o ser-aí é

impessoalmente equivalente a outros modos de ser: um desvio de

si, abafando a angústia para a propriedade. Assim, embora a

tarefa de ser humano convoque para a impropriedade, sempre

permanece a abertura de ser quem se é na propriedade. Isto

porque ser si mesmo não é dado a priori, mas sim vai se

afirmando que ser si mesmo ocorre pela aprendizagem, na fala

da co-existência, mesmo que se desviando, já que ser-aí é uma

absorção de ser lançado aí no mundo prévio.

Está-se diante do fenômeno denominado por Heidegger(1927/1984) de queda, que, de modo algum, significa queo eu nasça formado e depois decaia; trata-se de serabsorvido pelo mundo no qual é lançado: não é posterior,mas integrante ao nascimento. Assim, não se trata de umnovo fenômeno, porém a junção das condições delançamento e absorção. Sendo capturados, tragados pelomundo, os homens são submissos a modos de usar os úteise sujeitados aos outros, por exemplo, na moralidade; oser-no-mundo é anterior à percepção do eu e a queda,tanto condição da própria existência, quanto situaçãopresente e permanente. A captura do eu pelo mundo dá-sena e pela fala cotidiana. Na falação, o eu flutua, sembase, num lago de como se é dito; na avidez denovidades, está em todas as partes e, ao mesmo tempo, emnenhuma; na ambigüidade, nada está ocultado àcompreensão do eu, com o propósito de reforço dasituação anterior. Realizando-se através desse falar unscom os outros, a queda apresenta quatro característicasfundamentais: sedução, tranqüilização ou aquietamento,alienação e enredamento, as quais se intercambiam nummovimento contínuo de derrubamento, no qual uma é levadapara outra, perfazendo um redemoinho. (ALMEIDA, 2005, p.230)

Sempre é possível que pela falação já se possa

encontrar si mesmo recorrendo a interpretações já dadas no

30

público para dizer o que se é (usos e costumes). Isto seduz

pois significa já ter uma resposta para si de antemão,

encobrindo a angústia para apropriar-se do poder-ser,

reconhecendo-se bem situado no mundo. Desse modo,

tranqüilizado, os outros passam a ser a referência de ser,

porém alienado de si mesmo absorto que é pelo mundo. Assim

enredado em si mesmo em suas questões, diluído nos outros,

porém aquietado, ocorre a sensação de estar conduzindo sua

vida adiante, esi.mbora a presumida segurança esteja no que é

dado e não apropriado de

Na ação psicológica, através do exercício do logos,

acompanha-se como naquilo que crer seu próprio o cliente está

interpretando-se pelo que é dado, perdendo-se de si nas vozes

comuns. Nem se dá conta como esse modo de ser impessoal o

incomoda, desespera e faz sofrer pela ausência de sentido

próprio. Enredado, interpreta a angústia por sensações

corpóreas, aflito e desamparado que está.

Nessa situação de atropelado por si mesmo, o cliente

prende-se à ocupação percebendo, contudo, que está sendo

derrubado, mas não por si mesmo. “É nessa dimensão da queda,

como experiência da impropriedade, que se tem a maior dimensão

do que é ser-no-mundo; no dia-a-dia, o eu está nesse

enovelamento. É um modo de ser que significa estar no mundo,

habitando-o.” (ALMEIDA, 2005, p. 231)

É pelo jogo interpretativo que o psicólogo pode

acompanhar o cliente, realçando o enovelamento em que se

encontra, buscando juntos re-tecer fios para que ele se

encaminhe em seu poder-ser no mundo como é. Debruçado atento,

31

pela com-fiança cooperativa, o psicólogo pode agir, legitimado

pelo cliente, na direção do des-envolvimento da própria

experiência para sentido de ser si mesmo.

II - Para a ação psicológica na prática e na pesquisa em

instituições.

O des-enrolamento da experiência do humano pela ação

psicológica revela-se também uma escuta afinada com a ação

educativa. Educar, do latim educere, compõe-se pelo prefixo ex

(para fora) e pela palavra ducere (conduzir, levar, guiar),

referindo-se a conduzir para fora, ou seja, promover que algo

possível de si possa surgir (eduzir) no no mundo pelo ensinar

e aprender. Ensinar, do latim insignare, remete a in-signum (em

sinal): como diz Rosa (1989), aquele que ensina não se

ensimesma, mas sim sai de si, indicando sinais no mundo que

são relevantes para o aprendiz. Por sua vez, aprender vem do

latim ad-prendere, cujo prefixo ad (por, para) indica direção,

enquanto prendere diz de tomar, agarrar, pegar. Assim,

aprendizagem refere-se a fazer uso de sinais no mundo que

apontem para mudanças: aprendiz é aquele que se transforma em

trânsito pela existência, narrando sua experiência para levá-

la adiante e abrir brechas para outras aprendizagens. Por sua

vez, a experiência, pela ótica fenomenológica existencial,

sendo uma abertura temporal, na qual presente, passado e

futuro se co-pertencem, é a manifestação da historicidade do

ser aí: faz-se como acontecimento e apresenta-se, pela fala,

32

como narrativa, a qual se constitui num dizer no fazer

situado.

O psicólogo, seja numa entrevista de Plantão em

clínica-escola ou em cartografia por uma instituição de saúde

ou de educação, mantendo-se inclinado à narrativa daquele com

quem fala, está sempre in-vestigando a experiência

clinicamente, experiência essa que, vindo do mundo com outros,

se apresenta enovelada no público, porém sem fio de sentido ao

narrador. Em outras palavras, a ação psicológica conduz-se a

ir por entre os vestígios do vivido para des-ocultar outras

facetas que se mostram nas situações de homens e atores

institucionais. Buscando des-enredar a experiência da trama

sedutora de significados na qual se encontra, acompanha o

cliente testemunhando sua narrativa pela desorientação e

desamparo para, junto a ele, sugerir o encaminhar-se para fora

de seu sofrimento, levando-se adiante dessa urdidura do

público na qual se enroscou. E isso só pode acontecer em

experiência em ação, ou seja, quando a interpretação da

compreensão pudesse conduzir-se para “fora do perigo”,

considerando a etimologia latina de experiência: ex-perire.

Estruturando-se a partir da escuta, a ação psicológica,

amparada na perspectiva fenomenológica existencial, conduz-se

pela narrativa na prática e na pesquisa, já que ambas dizem de

experiência e história que urgem por uma compreensão mais

ampla. Na trilha do sofrimento na história, outros modos de

seu enfrentamento são per-seguidos pela atenção e cuidado

psicológicos, sem jamais percorrer modelos clássicos de

triagem, amparados no psicodiagnóstico tradicional ou na

33

psicopatologia, nem de intervenção, quase sempre

acompanhamento psicoterápico. Apenas emerge no encontro entre

o cliente e o psicólogo/pesquisador como testemunha que

autoriza e legitima uma continuação da história desse cliente

numa dimensão em que possa existir em bem estar e

autenticidade.

A ação psicológica, por esta ótica, sempre se vincula a

uma situação, que tem tanto uma vertente institucional

referida à pertença do profissional e do cliente, quanto uma

vertente vinculada à realidade sociocultural e existencial do

cliente e do psicólogo. Desse modo, é importante que busque

uma compreensão da realidade do cliente para cotejá-la com o

que a realidade da instituição pode oferecer. Assim, a ação

psicológica pode ser ainda caracterizada como uma prática e

pesquisa psicossocial.

De qualquer forma, nela importa a demanda do cliente do

que uma explicação que se possa ter dele, assim como também a

relação estabelecida importa mais do que uma “interioridade” a

ser perscrutada. Nesse sentido, a “interioridade” é

manifestada na relação e não tomada como um “em-si”: a relação

é o campo de aparência, tanto dessa “interioridade” quanto de

uma realidade sócio-econômica cultural, uma vez que é nela que

a experiência do cliente encontra lugar para ser compreendida

e clareada. Trata-se de contextos originários em que a

experiência ocorre, pois não há homem sem mundo com outros:

trata-se de uma perspectiva fáctica, que é histórica e

concreta.

34

A ação psicológica se apresenta para além de âmbito de

intimidade, não se restringindo a qualquer um, mas se

referindo a mundo trazido pela apresentação que cada cliente

faz de si próprio. Nesse contexto, emergem modos de cuidar, já

que o cuidar-se de si requer a explicitação da teia de

relações estabelecidas na sociedade, que “sustenta

representações que, ideologicamente, vinculam o sofrimento

psíquico a fatores individuais, velando suas determinações

sócio-culturais.” (ALMEIDA, 2005, p. 232)

Assim, partindo do contexto psico-sócio-existencial, a

ação psicológica intenta uma visão compreensiva de sofrimento

embutido na narração de uma história que, embora singular, diz

respeito a outras pessoas em vários contextos. Nesse sentido,

o cuidado do pesquisador/psicólogo considera as questões de

quem se é, como se é, com quem se está e onde se está, dando a

ver como modos de cuidado, apoiados na experiência do encontro

psicólogo/cliente, que consideram a situação existencial do

cliente, incluindo a esfera sociocultural.

Desse modo, na perspectiva fenomenológica existencial,

o sofrimento psíquico não é da ordem do patológico, assim

determinando uma história. É algo que aparece nessa história,

revelando um destinar-se conturbado no mundo do narrador e em

suas situações de vida com outros: enraizado na história, o

sofrimento psíquico diz de um acontecimento pertinente a seu

modo de ser, não sendo considerado como proveniente de doença

mental.

Ao mesmo tempo em que a ação psicológica na prática e

pesquisa em instituições contempla um aspecto clínico, também

35

pode apresentar um elemento educativo, voltado tanto para a

formação profissional de psicólogos quanto de outros

profissionais de saúde e educação.

Nos projetos de atenção psicológica, o

estudante/estagiário tem a oportunidade de entrar em contato

com as mais diversas realidades trazidas pela clientela e por

instituições, conduzindo-o a pensar o sentido originário de

clínica, de prática, de pesquisa, de intervenção, de público e

privado, de ser quem se é de modo próprio a poder ser. Desse

modo, o estagiário experiencia debruçar-se não ao entendimento

de uma doença, seus mecanismos e sua repercussão na mente e na

conduta de um “doente” ou de uma instituição, mas ao modo de

ser do qual emergem as experiências existenciais que sustentam

as atividades da pessoa que está a sua frente, cliente ou ator

institucional. Na perspectiva existencial, a experiência

humana não é conseqüência de um processo de desenvolvimento da

sexualidade, da cognição e da volição, mas a condição

historial9 do homem, fundamentando a constituição de quaisquer

das esferas da experiência pelas quais o homem transita.

O modo de condução da ação psicológica nos projetos de

atenção não compreende uma automática continuidade de

atendimento aos encontros com a clientela. Orientam-se a cada

encontro a possíveis desdobramentos para questões apresentadas

como demanda, considerando-se, no diálogo com o cliente,

outras intervenções de práticas especializadas ou populares,

contando com recursos institucionais, comunitários ou

familiares, quando se fizer necessário. Assim, cliente e

9 Historial remete-se à dimensão ontológica humana.36

psicólogo consideram conjuntamente aquilo que melhor atende ao

que é preciso e não ao que é explicitado como pedido. Este

modo faz-se particularmente pertinente quando o cliente é um

dirigente de uma instituição: compreende-se a necessidade

institucional, do dirigente como seu ator, mas também se abre

a perspectiva de considerar qual a demanda da comunidade a

quem está sendo pedida a atenção psicológica. É a isto que se

dirige a cartografia, amparada na atitude clínica.

Ao aluno esta é uma situação que o pro-voca a procurar

por seu próprio modo de ser psicólogo, não enovelado nas

malhas publicas da trama de significações implicadas em sua

formação. Experiencia ele mesmo orientar-se a um poder-ser de

modo próprio e não impessoal. Tal aprendizagem se manifesta em

sua forma de cuidar tanto do cliente quanto do autor

institucional, conduzindo o outro a encontrar-se propriamente

em sua vida e/ou em seu trabalho, tornando-se, ele mesmo

estagiário, um multiplicador de possibilidades de poder-ser

junto a outros: uma aprendizagem significativa.

Esse comprometimento, em várias oportunidades, árduo e

sofrido, aponta a direção que se trilha na ação psicológica:

ao invés de circunscrever-se a aspectos referentes a

alterações de personalidade e presença de doenças psíquicas,

trata-se de, decisivamente, atentar à possibilidade de um

redestinar-se da existência no que plausivelmente se anuncia.

Por esse viés, a história pessoal, emergindo da história

coletiva, é narrada ao psicólogo/ouvinte, o qual, via essa

intervenção, passa também a ser narrador.

37

Enquanto uma atividade com sentido educativo na

formação profissional de psicólogo, contemplando a supervisão

do trabalho prático e de pesquisa realizado pelos

estudantes/estagiários, a ação psicológica se apresenta em

dimensão clínico-pedagógica. É o caráter de acompanhamento

junto ao estagiário que constitui a especificidade dessa

supervisão: elaborar a experiência de testemunha de uma

história que, de algum modo, o afetou. Assim, entre o

supervisor e o estagiário surgem possibilidades de compreensão

de si mesmo e do outro, na medida em que o supervisor atenta

ao modo como o estagiário foi tocado, compreensivamente, pelo

cliente, suspendendo as pré-concepções que, normalmente, um

aluno de psicologia tem sobre psicoterapia e entendimento do

sofrimento; na supervisão, a ação psicológica é experienciada

na mesma direção em que foi realizada junto ao cliente

Muitas vezes, a supervisão atém-se a dimensões bem

concretas do atendimento. No entanto, isso não quer dizer

orientar-se por uma visão pragmática do ser humano e da

atividade clínica. Trata-se, mais uma vez, de partir da

situação para nela encontrar saídas concretas, plausíveis de

postura e conduta, considerando-se a singularidade de cada

encontro. Assim, a própria ação psicológica constitui-se numa

situação de passagem, na qual se avaliam e decidem os

possíveis encaminhamentos10 disponíveis para o enfrentamento de

um sofrimento emergente de uma pessoa que clama por cuidados.

Desse modo, ação psicológica na prática e pesquisa em

instituições, em seu exercício, requer recursos institucionais10 Por encaminhamento compreende-se o encaminhar-se do próprio cliente emdireção ao que sua demanda lhe desvendou durante a ação psicológica.

38

e comunitários que possam re-dirigir o caminhar de uma

existência, requisando uma específica paragem como abertura de

recursos necessários a des-dobramento harmonioso de sua

história para tornar tolerável um sofrimento.

Nesse sentido, a ação psicológica demanda uma rede de

apoio social que acompanhar e atender modalidades de cuidados

clínicos e/ou pedagógicos de que a clientela possa necessitar.

Em suma, essa rede de apoio social constitui-se num

“organismo”, em relação mútua, que possibilita a prática da

solicitude própria ao trabalho da ação psicológica,

viabilizando a seqüência de atendimentos necessários na

realidade emergente.

Sendo realizada dentro da Universidade e de outras

instituições públicas, a elas servindo pelo exercício das

responsabilidades civis de ensino, pesquisa e extensão

universitária, compete que os desdobramentos solicitados pela

ação psicológica dirijam-se por esses mesmos objetivos. A

Universidade, por sua vez, não se deve constituir em apenas

ser um banco de dados e informações de interesse da

comunidade; é sua tarefa poder ser um centro de referência

para os profissionais de várias áreas, possibilitando a

circulação de colaboração, como trabalho de co-autoria. Nesse

contexto, uma de suas funções é poder subsidiar pesquisas que

concorram na efetivação de modalidades de prática da ação

psicológica, propiciadoras de tal trabalho: é ação política11

realizar pesquisas interventivas em instituições demandantes.

11 MORATO, H. T. P. Plantão Psicológico: inventividade e plasticidade. In: Anais doIX Simpósio de Práticas Psicológicas em Instituições - Atenção psicológica:fundamentos, pesquisa e prática. Recife: UNICAP, 2009. v. 1. p. 1-15.

39

III – Para arrematar

Finalizando, este trabalho teve o propósito de

apresentar a possibilidade de uma leitura da ação psicológica

na prática e pesquisa de profissionais de saúde e educação

através de uma compreensão fenomenológica existencial, que

subsidiasse sua propriedade de ação humana entre homens. Nesse

sentido, configura-se a necessidade de refletir temáticas

pertinentes à ação psicológica destinada à demanda de

humanidade do homem contemporâneo. Percorrer tais temáticas

implica conduzi-la a pensar sua legitimação de um agir

comprometido a interpor os bons ofícios, ou seja, intervenção,

junto a profissionais de saúde e educação, apresentando-lhes

um modo de pensar diverso daquele implicitamente comprometidos

com modelos tradicionais explicativos, percorrendo sentido de

“homem, existência e história”12.

Assim, esta contribuição consistiu em apresentar temas

básicos segundo uma ótica fenomenológica existencial: o modo

de ser clínico implicado na ação psicológica, ressaltando o

ser afetado, a compreensão desdobrando-se em interpretação e

fala (ouvir, dizer, calar). O desenvolvimento desses temas é

um esforço de leitura de ação psicológica em prática e

pesquisa em instituições de saúde e educação através da

ontologia fundamental de Martin Heidegger, em “El ser y el

tiempo” (1927/1984), recorrendo, a situações dessa ação em

12 Não se trata de compreender a existência segundo o critério de uma concretudeaparente; mas, de compreendê-la como um modo humano de ser.

40

suas várias modalidades. Enfim, a interrogação que se leva

adiante ao abordar tais temáticas é a busca de subsídios para

a ação psicológica pela antropologia filosófica proposta nessa

obra, que apresenta uma compreensão do humano pela aproximação

da pergunta pelo ser.

Na experiência da própria prática e da pesquisa na ação

psicológica, a compreensão aqui empreendida abriu questões

ainda a serem esclarecidas. No entanto, procurou-se sempre

conservar, ao alcance dos olhos, um todo que pudesse

paulatinamente crescer e, concomitantemente, oferecer uma

possibilidade para encaminhamento do sentido da ação

psicológica. Mas, sem dúvida, o que se pretendeu com essa

retomada em perspectiva foi abrir outros horizontes para uma

aproximação existencial da ação psicológica clínica na prática

e na pesquisa em instituições de saúde e educação.

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