Toda criança desenha... Toda criança desenha?!...

20
1 Toda criança desenha... Toda criança desenha?!... Alice Fátima Martins 1 A princípio, toda criança desenha. Desenha com qualquer instrumento que lhe sirva de prolongamento para o corpo, deixando registrado nalguma superfície o seu gesto. Desenha deslocando-se no espaço, traçando etéreos caminhos, fugazes construções, imaginárias estruturas que se compõem e recompõem no brincar desde si em direção ao mundo. Desenha interagindo com os objetos nos quais projeta o próprio corpo, que vai sendo descoberto e reconhecido aos poucos, na medida da construção das relações consigo, com os outros, com o seu meio. Toda criança desenha a si mesma enquanto rabisca, quando esboça quaisquer figuras, enquanto grafa os elementos do seu universo explorado, e os nomeia, e compõe intermináveis histórias a partir deles... Toda criança cresce enquanto brinca com outras crianças, com os objetos, enquanto experimenta seu corpo, pesquisa o tempo, o espaço e as relações no meio sócio cultural em que se encontra; enquanto se expressa através do gesto, do traço, da cor, do grito, do riso, do jogo, do canto, do sonho e da fantasia. Toda criança é lúdica em seu desejo por saber, descobrir, construir... Toda criança é lúdica enquanto aprende a complexa teia de códigos, signos, significados dos caminhos que deve trilhar para tornar-se sujeito social, para estabelecer vínculos de pertencimento, identidades. Pillar (1990) chama a atenção para o fato de que, mais do que apenas impressões deixadas pela criança sobre materiais, superfícies e espaços, os desenhos, as pinturas, as construções evidenciam o seu processo de elaboração cognitiva, emocional e perceptiva do mundo, no qual é agente. Em seu trabalho, a criança constrói noções a partir das vinculações que estabelece com o que foi percebido nas suas experiências sensoriais, motrizes, em suas aventuras pelos jogos das relações socioculturais. Gente pequena desenha o que sabe de si mesma e de outras gentes de todos os tamanhos Desde os primórdios da vida, a criança constrói sua autoimagem a partir da percepção e das relações que estabelece com os estímulos de origem externa e interna ao seu corpo, ajustando-se, em maior ou menor grau, ao ambiente sociocultural do qual 1 Doutora em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB), Arte Educadora. Docente permanente do Programa de Pós Graduação em Cultura Visual (FAV/UFG). Atualmente desenvolve projeto de pesquisa no Programa de Pós Doutorado em Estudos Culturais (PACC/FCC/UFRJ).

Transcript of Toda criança desenha... Toda criança desenha?!...

1

Toda criança desenha... Toda criança desenha?!...

Alice Fátima Martins1

A princípio, toda criança desenha. Desenha com qualquer instrumento que

lhe sirva de prolongamento para o corpo, deixando registrado nalguma superfície o seu

gesto. Desenha deslocando-se no espaço, traçando etéreos caminhos, fugazes

construções, imaginárias estruturas que se compõem e recompõem no brincar desde si

em direção ao mundo. Desenha interagindo com os objetos nos quais projeta o próprio

corpo, que vai sendo descoberto e reconhecido aos poucos, na medida da construção das

relações consigo, com os outros, com o seu meio. Toda criança desenha a si mesma

enquanto rabisca, quando esboça quaisquer figuras, enquanto grafa os elementos do seu

universo explorado, e os nomeia, e compõe intermináveis histórias a partir deles...

Toda criança cresce enquanto brinca com outras crianças, com os objetos,

enquanto experimenta seu corpo, pesquisa o tempo, o espaço e as relações no meio

sócio cultural em que se encontra; enquanto se expressa através do gesto, do traço, da

cor, do grito, do riso, do jogo, do canto, do sonho e da fantasia. Toda criança é lúdica

em seu desejo por saber, descobrir, construir... Toda criança é lúdica enquanto aprende a

complexa teia de códigos, signos, significados dos caminhos que deve trilhar para

tornar-se sujeito social, para estabelecer vínculos de pertencimento, identidades.

Pillar (1990) chama a atenção para o fato de que, mais do que apenas

impressões deixadas pela criança sobre materiais, superfícies e espaços, os desenhos, as

pinturas, as construções evidenciam o seu processo de elaboração cognitiva, emocional

e perceptiva do mundo, no qual é agente. Em seu trabalho, a criança constrói noções a

partir das vinculações que estabelece com o que foi percebido nas suas experiências

sensoriais, motrizes, em suas aventuras pelos jogos das relações socioculturais.

Gente pequena desenha o que sabe de si mesma e de outras gentes de todos os

tamanhos

Desde os primórdios da vida, a criança constrói sua autoimagem a partir da

percepção e das relações que estabelece com os estímulos de origem externa e interna

ao seu corpo, ajustando-se, em maior ou menor grau, ao ambiente sociocultural do qual

1 Doutora em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB), Arte Educadora. Docente permanente do

Programa de Pós Graduação em Cultura Visual (FAV/UFG). Atualmente desenvolve projeto de pesquisa

no Programa de Pós Doutorado em Estudos Culturais (PACC/FCC/UFRJ).

2

faz parte. A percepção de si mesma se dá a partir da diferenciação entre os estímulos e

necessidades e a sua satisfação ou saciedade. Nessa diferenciação reside a base da

formação da autoimagem.

As relações estabelecidas entre estímulos e necessidades, de um lado, e sua

satisfação ou saciedade, do outro, dependem da atuação de um terceiro elemento, “aquele

que não sou eu”, o “outro”, cuja contraposição é condição para o início do esboço da

própria identidade. O outro, outros, com quem a criança interage, iniciam-na pelas

veredas de ser, ao mesmo tempo, verso e reverso, subjetividade e objetividade, indivíduo

e coletivo, desejo e tensão, impulso e coerção, pulsão e repressão, solidão e multidão...

Dessa forma, a imagem que cada pessoa elabora sobre si, de modo sempre

dinâmico, resulta da sua história de vivências desde o próprio corpo, que é o espaço que

cada um ocupa no universo, na relação com os demais e o meio em que vive, o que

envolve conquistas, tensões, frustrações, desejos, ambiguidades, dúvidas... Se cada

corpo é único e tem uma história igualmente única, se cada pessoa manifesta-se no

mundo com o seu corpo e sua história, ao mesmo tempo, cada corpo conta uma história

que também é social, coletiva, cultural, histórica. Assim, além de suas construções

individuais e únicas, a cada um cabe participar da caminhada que a humanidade

cumpre, produzindo conhecimento, fazeres, símbolos, modos de vida, visões de mundo,

formas de expressão coletivas.

Ou seja: se a autoimagem, em contínua constituição, pelo indivíduo, no

decurso de sua história, traz suas marcas digitais de vivências, ela também reflete suas

interações com o meio, com os outros indivíduos, com vários níveis e formas de

pertencimento a diferentes grupos sociais, cujas construções iniciam-se desde a mais

tenra idade.

Nos processos de descoberta de si nas relações com os outros e o meio, no

princípio, é grande o poder expressivo do gesto: a criança movimenta-se corporalmente,

aceitando, rejeitando, repousando, alegrando-se, denunciando desconforto,

reivindicando. “A atividade motora (...) é a base da criatividade, dessa busca constante

onde nada jamais é fixo, onde nada se repete” (LAPIERRE & AUCOUTURIER, 1988).

Mas o gesto é também efêmero: findado o movimento que o produz, acaba-se. Se

repetido o movimento, já é outro: outro gesto, num outro tempo... O próprio corpo já se

terá modificado em relação ao momento anterior.

No entanto, a despeito de sua efemeridade, o gesto pode deixar marcas. A

descoberta, pela criança, de que pode fixar ao menos parte da trajetória do gesto ao

3

fazer uso de algum instrumento que registre o movimento do seu corpo tem sabor e

valor inestimáveis: batons, canetas, lápis, alimentos sobre superfícies diversas abrem

campo para experimentações as mais diversificadas, quantas vezes inesperadas. O

prazer gestual na produção de marcas é fonte de grande motivação para a criança

pequena que começa a desenhar. O gesto da mão que traça inicia-se no corpo todo,

envolvido no ato de expressar-se no desenho. Essa conquista ocorre quando a

linguagem verbal também está sendo descoberta e, diariamente, um grande número de

palavras e estruturas frasais são incorporadas ao repertório em franca expansão.

Desenhar e falar são ações que possibilitam o estabelecimento de correspondências e

complementaridades: “A ação gráfica no papel sugere figuras. A palavra representa o objeto,

a pessoa, o fato” (DERDYK, 1989, p. 97).

As primeiras manifestações gráficas são rabiscos aos olhos do adulto.

Lowenfeld & Brittain (1977) denominam esse como o estágio das garatujas. Pillar

(1996), com base nos estudos de Luquet e Gardner, refere-se a esse desenhar aleatório

como atividade motora não simbólica. Em outras palavras, o desenho é entendido como

um jogo em que a criança expressa gestos motores e descobertas perceptivas, sem o

necessário compromisso com o registro ou a comunicação com o outro.

Desenho de Yasmin, 4 anos

Os traços, inicialmente marcados ao acaso, vão sendo controlados pela criança

no domínio gradativo das relações entre o movimento do braço e as marcas produzidas,

cujos resultados ela aprende a confirmar com o olhar. Para tanto, impõe-se o desafio de

4

coordenar as complexas relações entre o traçado que vê, o traçado que pretende, a ação

da mão e o movimento que produz o desenho.

Aos poucos, os rabiscos se modificam, incorporando intencionalidades,

sentidos, ampliando, portanto, as possibilidades representacionais. A criança descobre a

possibilidade de produzir marcas, registros que podem significar coisas, evocar fatos,

pessoas e objetos, e mais, podem ser decodificados por outras pessoas. É o ingresso no

mundo da linguagem. Mas o que é falar? O que é internalizar os sistemas de

comunicação culturalmente articulados? O que significa dominar a escrita, ser capaz de

produzir imagens reconhecíveis no coletivo?

Ao possibilitar a vivência de questões como essas, o exercício do desenhar

entrecruza a expressão individual da criança com as construções de sentido no contexto

da cultura. Assim considerado, o ato de desenhar é individual e coletivo, tem marcas

espontâneas de experimentação, e ao mesmo tempo observa conjuntos normativos do

viver em sociedade.

Ao perceber-se diferenciado em relação ao meio em que se encontra, a

criança inicia a estruturação da representação gráfica da figura humana, cuja célula

básica é a forma arredondada, a cabeça, à qual são acrescentados braços, pernas, tronco.

Nesse processo, ganha registro toda informação descoberta e vivenciada pela criança

sobre o próprio corpo, em graus crescentes de complexidade. A esse respeito, Derdyk

(1990) comenta:

Do eu mesclado e mimetizado com a natureza, surge, aos poucos, um eu

mais fortalecido e comprometido com a noção de um corpo, forma finita,

que entra em relação com o mundo. O eu se diferencia das coisas. No

desenho, similarmente, uma forma existe na medida em que se diferencia

de outras formas (p. 107).

A figura humana – seu detalhamento, expressão, movimento, localização no

espaço e nas paisagens – vai tomando formas de representação cada vez mais ricas, tanto do

ponto de vista das informações que porta, quanto dos recursos de linguagem usados. Além

da estrutura corporal representada, as idéias de localização espacial, de movimento nesse

espaço, de identidades, vão tomando forma, bem como papéis sociais e temáticas gerais de

interesse para a criança e o adolescente, que envolvam esse estar no mundo.

Em síntese: a criança desenha, pinta, constrói, com o seu corpo, o seu

espaço de existência no mundo, em interação com ela mesma, com os outros e com o

meio, nas dinâmicas de construção de suas identidades.

5

Desenho de Yasmin, 4 anos

Reitero, no conjunto de reflexões aqui proposto, que escolho não me ater às

discussões sobre os quantos modelos e quadros que tratam dos estágios de desenvolvimento

das representações gráficas elaboradas pelas crianças. Também escolho não estabelecer

relações entre os possíveis estágios do desenho e etapas do desenvolvimento cognitivo,

propostas por quantos estudiosos da área. Prefiro me aproximar dos complexos processos de

perguntas e buscas de respostas, nos quais o ato de desenhar tanto amplia as indagações,

quanto contribui para a busca de respostas que logo se abrem em novas indagações, no

contínuo confronto entre o sujeito e a sociedade, nos embates da cultura, da qual tomam

parte as visualidades que habitam o quotidiano de cada um. Entendendo que o ato de

desenhar, pela criança, integra as múltiplas aprendizagens das veredas de se fazer sujeito

social, nas dinâmicas de construção de sentidos da cultura.

O interesse pelos desenhos das crianças

O interesse pelos desenhos das crianças não tem muito mais que 100 anos. De

fato, ganhou espaço entre artistas, educadores, e outros profissionais, nas primeiras décadas

do século XX, a partir das influências dos estudos emergentes da psicanálise, da psicologia

afirmando-se como campo de estudos do comportamento humano. Pela vereda psicológica,

os desenhos eram vistos como janelas que poderiam possibilitar o acesso a conteúdos

emocionais das crianças, abrindo frentes diversas de uso e interpretação de suas

manifestações.

6

Artistas modernistas também se interessaram pelo modo como as crianças

expressavam-se, desenhando ou fazendo uso de outros recursos. É célebre a frase de Pablo

Picasso, já na maturidade de seu percurso artístico: – “Precisei de uma vida inteira para

aprender a desenhar como as crianças...” Reconhecidamente, Max Ernst, Miró, Paul Klee,

dentre outros, encantavam-se com os traçados feitos por crianças, buscando exercitar

esse espírito, de diferentes modos, em suas obras. Não faltaram artistas modernistas que

tenham aberto espaço, em seus ateliers, para o trabalho com os pequenos, inspirando-se em

sua disposição para experimentar, descobrir, expressar-se... Como fez, por exemplo, Anita

Malfatti, na cena brasileira dos anos 30.

Tais motivações, aliadas ao ideário educacional da Escola Nova, que

reivindicava o deslocamento do foco, no processo de ensinar e aprender, do professor para o

aluno, forneceram as bases para propostas de ensino de arte, e nelas de desenho, orientadas

pela liberdade de expressão, pelo direito de manifestação espontânea da criança. No Brasil, o

Movimento das Escolinhas de Arte tem destaque como iniciativa nessa direção.

No ambiente escolar regular, por sua vez, o desenho marca presença há bem

mais tempo, mas sem a ênfase na expressão; ao contrário, prevalece a reprodução de

imagens, treino da mão, produção de formas geométricas, além da ilustração de outros

conteúdos, e adornos de eventos institucionais, dentre outras atividades.

Se de um lado, a educação escolar, marcadamente mais conservadora no tocante

à inserção do desenho em suas atividades, deixou como herança a concepção do desenho

como cópia, treino, reprodução, as experiências desenvolvidas em ambientes extra-escolares

– ateliers, escolinhas de arte, e outros – legaram os ideais da liberdade para expressar-se, do

desenho espontâneo, da inocência do traço infantil, bem como referencias ao conteúdo

psicológico dessa produção.

Mais recentemente, tem ganhado visibilidade a dimensão cultural do ato de

desenhar. O sujeito que desenha interpreta o que vê e age sobre o mundo produzindo signos,

marcas, sentidos. Nesses termos, visualidades, dentre as quais os desenhos, não são neutras,

inocentes, espontâneas: elas portam sentidos, refletem relações, tensões, expectativas... Os

desenhos das crianças, desde suas primeiras elaborações, também dialogam com seu meio,

estabelecendo relações de tensão, desafios, fazendo acordos, acolhendo normas, estruturando

linguagem.

Assim, supera-se a idéia de desenho espontâneo, na direção da noção de

produção que resulta das complexas relações entre o indivíduo e os contextos culturais em

que ele se manifesta. Em se tratando da educação infantil, há que se ter em conta as

7

peculiaridades dos modos como as crianças estabelecem as relações entre as informações de

que dispõem sobre o mundo, como elaboram as sínteses, como explicam os fatos, a cada

etapa de suas aprendizagens, em constante transformação. Ao desenhar, a criança não está só

expressando tais processos, ela também os está elaborando, e neles articulando mais que

informações cognitivas e afetivas, também dados do meio sócio-cultural em que ela se

encontra.

Na escola, brincando de desenhar...

Em meados dos anos 90, eu lecionava na rede pública de ensino, em

Brasília, trabalhando com crianças de cinco e seis anos, além dos estudantes dos

primeiros anos do ensino fundamental, na faixa dos sete aos dez anos. A escola era

muito grande2. O acesso às salas de aula distribuídas por setores exigiam dos estudantes

boas caminhadas nas trocas de atividades, quando passavam, por exemplo, da aula na

Biblioteca à de Artes Plásticas. Essa caminhada parecia interminável sobretudo para os

estudantes menores, cuja estatura não permitia que vislumbrassem o final do pátio, por

trás de tantos obstáculos interpostos: bancos, jardins, objetos de arte, salas, salas, muitas

salas... Mas a aventura valia sempre a pena, e os caminhos pelo pátio traçavam desenhos

de conquistas. Quando chegavam à oficina onde eu os aguardava, as descobertas do

mundo transbordavam por todos os poros em alegria e entusiasmo.

Nesse período, as orientações institucionais para o planejamento das

atividades apontavam que deveríamos, dentre outros conteúdos, desenvolver os

conceitos relativos aos chamados elementos constituidores do desenho: ponto, linha,

textura, dentre outros. Vale notar que essa referência, ao lado das solicitações de se

incluir tópicos de História da Arte, significaram uma conquista em relação à década

anterior, quando os planejamentos das aulas de artes eram montados em torno de

atividades esvaziadas de sentido, reduzidas a exercícios repetitivos de recorte e

colagem, colagem com palitos, desenho livre, etc.

2 Tratava-se de uma das Escolas Parque previstas no projeto de ensino concebido por Anísio Teixeira para

Brasília. No projeto original, cada Escola Parque deveria atender, diariamente, numa estrutura de

educação integral, aos estudantes de quatro Escolas Classe circunvizinhas, oferecendo aulas de Artes,

Artes Industriais, Biblioteca e Educação Física. Não estava previsto o atendimento a crianças da educação

infantil (na década de 60, denominada pré-escola, com atividades desenvolvidas nos Jardins de Infância),

mas do ensino fundamental (à época, denominado primário e ginásio). No decurso do tempo, não só não

foram construídas todas as Escolas Parque previstas, bem como sua organização e modo de atendimento

foram muito modificados. No período referido em meu relato, a escola onde eu trabalhava passou a

receber, também, crianças na faixa de 4 a 6 anos de idade (só posteriormente o ensino fundamental

incorporou a idade de 6 anos, ampliando sua duração para 9 anos).

8

Por essa razão, não é difícil encontrar, nos diários escolares daquele período,

e em muitos ainda hoje, registros dos conteúdos ministrados, nos quais os professores

listam tópicos tais como ponto, linha, textura, ao lado de arte na pré-história, semana

de arte moderna, e outros, para crianças cuja experiência de vida não tinha muito mais

que a metade de uma década... As noções que tinham construído de tempo e duração,

não as ajudavam a projetar a imaginação muito além dessa temporalidade.

Além disso, em geral, os professores quase nunca avançavam muito além de

abordar esses conceitos de modo aligeirado, em atividades pouco estimulantes e

destituídas de significado. São bom exemplos as aulas em que as crianças deveriam

preencher desenhos colando bolinhas de papel crepom coloridas, ou cobrir formas com

pontos fazendo uso de canetas hidrocor. Muitas vezes, fazendo pesquisa de campo, ouvi

relatos dos pequenos aprendizes, quando eram submetidos a tarefas como essas,

queixando-se de cansaço nas mãozinhas.

No exercício de meu papel como professora, em especial professora de artes,

sempre tive muitas dúvidas quanto ao acolhimento dessas orientações, principalmente

pelas inquietações que me moviam sobre as aprendizagens que fizessem sentido para as

crianças, em seus modos de perceber, sentir e pensar o mundo, em seus contextos de

viver. Por essa razão, preferia brincar com algumas idéias, para construir possibilidades,

partindo de vivências das próprias crianças, na direção de ampliar a complexidade de

suas interpretações e formulações.

Ao iniciar conversas sobre os conteúdos que deveríamos desenvolver,

lembro-me do entusiasmo de algumas crianças, por exemplo, tentando definir o que lhes

sugeria a idéia de ponto: – “quando a gente se corta, o médico dá pontos para fechar o

machucado...”, ou linha: – “quando eu quero telefonar p’ro meu amigo, eu escuto no

telefone p’rá saber se tem linha...”

As idéias de ponto e linha que desfiávamos nessas conversas, fazendo

associações diversas, nos permitiam pensar em muitas coisas, elaborar idéias, propor

muitas brincadeiras... aprender...

Por vezes, imaginávamos que éramos pontos nos deslocando no espaço,

cumprindo trajetórias, deixando marcas, estabelecendo elos e relações com outros

pontos e trajetórias... A partir daí, eu pedia às crianças que, depois das aulas,

observassem os caminhos que elas percorriam entre os diversos lugares-pontos pelos

quais transitavam: a escola e a casa, a casa e o parque, o parque e a casa de um amigo, o

retorno para casa... E pedia, também, que observassem como cumpriam esses percursos:

9

de carro, ônibus, a pé, de bicicleta. Que marcas cada um deixava pelo caminho? Que

paisagens abriam-se a cada passo? Quais cores mais lhes chamavam a atenção? Depois,

ouvíamos os relatos de cada sobre as impressões desses caminhos, as linhas com que

costurávamos nossos trajetos pelo mundo, fixando na memória retalhos de sensações,

emoções, pensamentos, idéias...

Muitas vezes, sentávamo-nos no chão, juntinhos, e olhávamos fotografias,

imagens diversas, que incluiam reproduções de obras de artistas, ou trabalhos de outros

estudantes da escola. Eles faziam muitos comentários, falavam de coisas que

lembravam vendo aquelas imagem; eventualmente eu lhes contava histórias ancoradas

naquilo que víamos...

Passávamos, então, às superfícies do chão, dos papéis, levando linhas a

passear com o auxílio de lápis, carvão, giz, barbantes, a recontar histórias, a refazer

percursos, limites, a montar mapas. E, pelos caminhos, as linhas iam parando para olhar,

“se admirar” com o que viam, em pausas por vezes breves, outras vezes mais

demoradas. A cada passo, uma pausa, um ponto, um laço... Às vezes, um escorregar

mais longo e prazeroso, noutras a linha ficava delgada, para depois se alargar, vestir-se

de outra cor, quantas vezes “se acabar” nas bordas de alguma superfície, à beira de

algum abismo...

As crianças de uma das turmas mais jovens acostumaram-se a trabalhar

debaixo das mesas e outros móveis, fazendo esconderijos, cavernas mágicas, cabanas,

casas, escolas... Reuniam-se em pequenos grupos, organizavam as carteiras de modo a

abrigarem-se confortavelmente durante sua produção, para a qual levavam consigo tudo

de que precisavam: papéis, lápis, tesouras, colas, tintas, caixas, tecidos, etc.

Trabalhavam secretamente, protegidas de quaisquer invasões que as pudessem ameaçar.

Por vezes uma ou outra criança saía, para fazer uma pergunta, mostrar um desenho em

processo, pedir algum objeto, estabelecer contato com outro grupo recolhido em outro

abrigo...

Ao final de certo tempo, a magia dos esconderijos cessava, e as crianças

começavam a se retirar. Traziam, consigo, suas produções. Nos sentávamos, novamente,

no grupo grande, para ver o que tinham feito. Seus poucos anos de vida lhes provia de

doses variáveis de paciência para esse e os demais exercícios; muitas vezes sua atenção

era rapidamente arrebatada por outros estímulos. A possibilidade de dispersão

espreitava nossas atividades. Mas, aos poucos, elas aprendiam a comparar seus

trabalhos com os trabalhos dos outros, a relacionar o que haviam feito com nossas

10

conversas anteriores. Ou a explicitar outras relações. Falar sobre o que haviam feito era

sempre um exercício enriquecedor da própria produção, e aos poucos ampliava seu

repertório para dar sequência às aprendizagens.

Na escola, aprendendo... a copiar...

Nessa escola, as paredes transformavam-se em enormes painéis onde se

expunham muitos desenhos e pinturas de crianças, fotografias, e eventualmente

trabalhos de adultos – artistas, professores, professores-artistas... Mas esse não era, e

não tem sido o cenário que prevalece nas escolas regulares de ensino, dedicadas ao

início da escolarização, tampouco à educação infantil.

Os primeiros anos na escola estão repletos de apelos que pretendem

conquistar a atenção e a motivação dos pequenos frequentadores. Dentre esses, os

elementos visuais integram os ambientes, bem como os recursos metodológicos

adotados para a promoção das aprendizagens pretendidas.

Uma das marcas dessas visualidades é que, em sua maioria, são produzidas

por adultos cuja intenção é reproduzir traçados supostamente relacionados a um certo

gosto infantil... Nesse trabalho, adultos empenham-se em copiar modelos, tentando

reproduzir figuras, personagens, ambientes gráficos veiculados por meios de

comunicação, livros didáticos, indústria do entretenimento, ou mesmo reunidos em

arquivos escolares, disponíveis para esse fim. Alguns professores e funcionários

aperfeiçoam-se nos processos de fazer cópias e reproduções. Muitos orgulham-se disso.

É importante ressaltar que, raramente, desenhos de criança fazem parte

desses repertórios imagéticos.

Considerando-se que a principal missão da escola, desde os últimos anos da

educação infantil, ao início do ensino fundamental, seja iniciar as crianças no mundo da

palavra escrita, a utilização de imagens, ilustrações, exercícios de desenho, em auxílio

do processo de alfabetização, ganha versões as mais variadas, que vão de exercícios

para aumentar o controle do movimento da mão, a cartazes e ilustrações diversas que

ajudam a memorizar palavras, letras, sonoridades.

Descrevo, em seguida, um conjunto de episódios comuns, que acontecem

quotidianamente em muitas escolas. Os aqui descritos foram observados em campo,

com crianças de educação infantil sendo preparadas para a alfabetização.

11

Episódio 1

A professora identifica, com os alunos, a letra M no alfabeto colocado acima do quadro

de giz. Depois, desenha a letra no quadro. Distribui um material impresso, no qual está

desenhada a letra M maiúscula e minúscula. Ela pede que os alunos cubram a linha da

letra com bolinhas de papel crepom colorido.

Episódio 2

A professora conversa com os alunos sobre as coisas que existem numa fazenda. Os

alunos contam histórias, fazem observações. Ela explica: – “nós vamos fazer um

trabalho que é colorir uma ilustração, para depois criarmos, juntos, uma historinha”.

Ela distribui uma folha com uma ilustração. – “Cada um vai olhar tudo o que tem aí no

desenho. Vão observar o que ‘tá acontecendo...” Um aluno comenta: – “o menino tá em

cima do boi...” Outro questiona: – “Tia, não é gado, não?” Ela explica: – “gado é

quando tem muitos bois e muitas vacas. Vocês vão colocar o nome de vocês.

Caprichem!”. A professora percorre as carteiras, observando os alunos trabalhando.

Pergunta a um deles: – “que cor que é a vaca?! Preto e branco?” O menino não

responde. Ela prossegue: – “conserta a cor dessa vaca, viu? Você já viu alguma vaca

azul?” O menino sorri timidamente. Outro colore o boi com a cor cinza: – “ninguém

lava ele...” e acrescenta pontinhos escuros usando a caneta hidrocor: – “é pulga”.

Coloca pontinhos na figura da menina sentada sobre o boi: – “ela pegou pulga porque

montou nele. Tem até uma que pulou lá em casa...”

Episódio 3

A professora fixa, no quadro de giz, o desenho de uma cesta com flores coladas. –“cada

um vai ganhar uma cestinha, vai pintar, vai recortar. Depois vão fazer aquelas

florzinhas para colar nela. Vocês é que vão fazer!”. Ensina a fazer a flor, desenhando

no quadro: – “faz uma bolinha, põe as pétalas em volta, e vai fazendo uma flor... pode

ser assim também...” Um menino pergunta: – “tia, posso fazer um monte de

laranjinha?” Ela responde: – “eu pedi para fazer laranjinha? É claro que não!”.

Distribui retalhos de papel colorido para as crianças fazerem as flores. Um menino

pergunta: – “ hoje é dia das mães?” A professora responde que não. Ele então continua:

– “então p’ra que é que eu vou levar isso p’ra casa?” Uma menina decide colar flores

naturais na cesta, em lugar das flores de papel. Para isso, chama a professora: – “tia, eu

12

vou colar flor de verdade!” A professora responde: – “Não, não fica bom!”. A menina

desiste. Uma colega adota sua idéia, colando as flores no seu trabalho. Finalizando,

várias crianças colam as flores na cesta.

Desenhos de Marcela e Maiko, ambos com 6 anos

Episódio 4

A professora trouxe uma flor impressa para trabalhar com os alunos. – “Hoje nós vamos

pegar esta flor. Vocês vão pintar, com muito amor e carinho. Eu vou dar um palito de

picolé para vocês colarem e ser o caule, o cabinho da flor. Presta atenção. Nós temos

três folhas aqui para a flor. Vocês vão pintar as folhas, e vão colar as folhas desse

jeito: duas folhas na florzinha e outra no cabinho, no palito do picolé”. Desenha no

quadro para mostrar como eles devem colar as folhinhas, – “por trás das pétalas da

flor”. Continua a explicar: – “depois nós vamos aprender a música do jardim e vocês

vão balançar as flores. Mas para isso vocês vão ter que estar com ela pronta”. As

crianças começam a colorir. Inquietam-se durante a execução do trabalho, em parte pela

necessidade de troca de materiais, o que os leva a levantarem-se e caminharem pela

sala. Conversam entre si, comparam os desenhos. Muitas vezes, distraem-se com outros

assuntos. A atividade é interrompida pelo horário do lanche. Nem todas as crianças

concluem a flor. A professora não ensina a “música do jardim” para eles. Ao final da

aula, muitas flores são jogadas na lixeira da sala.

13

Algumas questões podem ser levantadas a partir dos episódios descritos.

Inicialmente, vale observar que desenhos de crianças, em geral, diferem

substancialmente das ilustrações de livros destinados ao público infantil, de livros

didáticos, e também das coletâneas de desenhos pedagógicos que circulam nos

ambientes escolares. Estas ilustrações são desenhos de adultos que visam o público

infantil, com traço e estilos próprios.

Em geral, as imagens veiculadas nos ambientes escolares observados

tendem à simplificação do traço, uma estilização da forma, o que, contudo, não

subentende a busca de sua essencialidade visual. A simplificação e estilização da forma

observadas, muitas vezes, devem-se às interferências no traçado feitas por quem executa

a cópia, o que determina alterações na imagem entregue para as crianças, se comparada

com a imagem original, de que é copiada. Essas alterações acabam por criar um caráter

quase expressionista, a partir da deformação da imagem. Desse modo, a sua significação

fica condicionada às convenções estabelecidas em sala de aula entre professor e

crianças: determinada imagem significa determinada palavra. Finalmente, a baixa

qualidade quanto à programação visual e impressão dos desenhos impressos, em sua

maioria, tem sido superada com o uso dos novos recursos tecnológicos disponíveis para

professores, que contam com scanners, impressoras, além da possibilidade de busca de

imagens diversas na rede de computadores.

No tocante à escolha das figuras para serem reproduzidas, as questões

estéticas não tem relevância prioritária, em favor da funcionalidade das imagens. Muitas

vezes, as ilustrações de textos, os desenhos para serem coloridos, os cartazes são

trazidos ao ambiente de sala de aula para substituir a realidade, simulando a interação

do aluno com o concreto. Algumas professoras explicam que a utilização de desenhos

tem maior incidência no período que antecede e durante a alfabetização, por haver a

necessidade “de se trabalhar mais o concreto com o aluno”. Entenda-se: o “concreto”

por elas referido é a representação visual de coisas, cenas, ambientes... Ou seja, a idéia

de promover aprendizagens a partir da interação com a realidade, na relação com

objetos, pessoas, fatos, continua não sendo realizada, posto que o desenho,

independentemente de sua qualidade gráfica e estética (ou da falta dela) não substitui a

coisa desenhada: tão somente a representa visualmente.

Mas é importante notar que as crianças absorvem informações por meio da

observação e exploração ativas de seu meio, e do processamento contínuo do

conhecimento anteriormente organizado. E, afinal, visões de mundo não são

14

comunicadas apenas nos textos e composições visuais das imagens, mas, sobretudo, nos

contextos culturais de interação comunicativa. Nos episódios descritos, é possível

constatar que as respostas das crianças às atividades com desenho reproduzido não são

marcadas pela passividade. Ao contrário, se algumas crianças mostram-se mais

disponíveis para observar as instruções da professora, outras estabelecem uma relação

mais ativa com os desenhos, alterando-lhe o traçado, descobrindo novas possibilidades

de execução. Mesmo quando não tem suas iniciativas aprovadas pela professora.

De toda sorte, a ênfase na cópia, na reprodução, redunda, quase sempre, em

atividades destituídas de sentido para as crianças. Para que fazer uma cesta com flores

se não é Dia das Mães? Essa pergunta permanece sem resposta. A lixeira fica cheia de

desenhos mal concluídos ao final da aula, e esse fato também não é trazido à pauta das

discussões sobre planejamento.

Perguntadas sobre se gostam ou não de desenhar, algumas crianças revelam,

timidamente, que gostam, mas em seguida afirmam não saber desenhar: – “Quem sabe,

mesmo, é a professora.” E, por considerarem que nunca conseguirão desenhar como a

professora, elas preferem apenas colorir os desenhos que recebem durante as aulas...

Ocorre que a professora também “não sabe desenhar”. Na verdade, ela é habilidosa

para copiar, ampliar, colorir, recortar, colar... Os materiais pedagógicos são preparados

por ela, cuidadosamente, por meio da cópia e reprodução, fazendo uso dos diversos

recursos técnico-tecnológicos disponibilizados, de acordo com o perfil sócio-cultural da

escola e da comunidade na qual está inserida: mimeógrafo, máquina fotocopiadora,

scanner, internet...

Os fluxos das visualidades nas escolas, portanto, desde a educação infantil,

apresentam-se carregados de sentidos, tensões, intenções... significam e orientam ações,

escolhas... Quase sempre, ensinam a não desenhar, a copiar... Quando assim, ensinam,

também, que o desenho das crianças “não é bom”... E, desde as atividades preparatórias

para a alfabetização, priorizam, majoritariamente, a especialização do movimento da

mão para o exercício da escrita...

Talvez a profusão com que as crianças pequenas costumam desenhar reflita

a urgência que elas pressentem, ante o esgotamento iminente do tempo de que dispõem

para desenhar tudo quanto estão em vias de descobrir e aprender... Chama a atenção

como essas mesmas crianças, tão rapidamente, em seus percursos escolares, perdem o

gosto por desenhar...

15

Da educação infantil aos primeiros anos de escolarização, em algum lugar, o

prazer de desenhar fica esquecido, em favor da internalização de todas as normas

escolares e suas prioridades na agenda das aprendizagens: ler, escrever, contar...

Perde-se de vista, nesse processo, que “não se alfabetiza fazendo apenas as

crianças juntarem as letras. Há uma alfabetização cultural sem a qual a letra pouco

significa. A leitura social, cultural e estética do meio ambiente vai dar sentido ao mundo

da leitura verbal” (BARBOSA, 1996, pp. 26-27).

Do desenho-criança ao traço adestrado...

Do gesto amplo que traça linhas, à mão apoiada, que escreve palavras, no

processo de alfabetização, pode ocorrer um esvaziamento do ato de desenhar. A esse

respeito, Derdyk, muito pertinentemente, observa:

O sistema educacional geralmente dá uma grande ênfase ao mundo da

palavra. Dependendo da estratégia utilizada para a aquisição da escrita,

existe um esvaziamento da linguagem gráfica como possibilidade

expressiva e representativa. A aprendizagem escrita canaliza a descarga

energética e expressiva da atitude gráfica que o desenho carrega para uma

noção regulada de controle técnico na utilização do instrumento. A

manifestação gráfica fica à margem. (1989, p. 103)

Em visitas a muitas escolas, foi possível constatar que, em geral, se

privilegiam atividades de coordenação motora e visomotora no período anterior à

alfabetização, quando são adotados exercícios que pedem o preenchimento de linhas

pontilhadas e espaços delimitados, observando-se os limites, e apresentam figuras para

serem completadas. Tais exercícios, baseados em desenhos reproduzidos, preparam as

crianças para serem alfabetizadas. Nesse processo, as imagens copiadas auxiliam no

processo de aprendizagem da escrita.

Imagens para serem copiadas... palavras para serem treinadas... frases para

serem montadas... linhas para serem trilhadas...

A prontidão, entendida como um conjunto de habilidades mínimas

necessárias para que o aluno aprenda a ler e a escrever, é um conceito criticado por

vários estudiosos, que denunciam tais condições como artificialmente impostas às

crianças. Ferreiro & Teberosky (1985), por exemplo, argumentam que a criança, em

diferentes estágios, desenvolve diferentes hipóteses sobre o ato de ler e escrever. Cabe

16

ao professor reconhecer tais hipóteses e estimular a criança a avançar na direção da

escrita convencional, culturalmente produzida e socialmente aceita, e da leitura. O que

significa dizer que não há um conjunto específico de habilidades que capacite a criança

a ser alfabetizada, mas, em cada momento do seu desenvolvimento, a criança dispõe de

um conjunto de esquemas de pensamento a partir do qual o professor deve propor suas

estratégias de ensino.

Exercício de alfabetização feito por criança de 6 anos

O ensino organizado em torno do ato de copiar não leva em conta o potencial

cognitivo e criativo, nem os referenciais socioculturais das crianças: “Fornecer um „modelo‟

para ser copiado exclui a possibilidade de a criança selecionar seus interesses e necessidades

reais. No ato da seleção está inclusa uma leitura da realidade, que, em si, é um exercício

reflexivo e criativo”. (DERDYK, 1989, P. 107).

O que difere substancialmente dos processos de imitação nas relações de

ensinar e aprender. Na imitação, a criança escolhe seus assuntos, para deles se apropriar,

por meio da representação. Ao imitar, a criança elabora imagens mentais, para

reapresentá-las sob a forma de linguagem, ampliando seu repertório.

Na imitação, portanto, a criança se apropria daquilo que seja de sua escolha,

imprimindo-lhe seu próprio traço. No ato da cópia, ao contrário, ocorre um

distanciamento de si mesma, donde o esvaziamento de significado.

17

A formação dos professores que atuam na Educação Infantil

Essa discussão requer que se traga à pauta duas questões fundamentais. A

primeira: qual a formação dos professores que atuam na educação infantil, e como as

visualidades estão nela inseridas? A segunda: como as questões relativas à educação

infantil integram a formação dos professores de artes?

É necessário esclarecer que os grupos de crianças menores de 7 anos terem

sido atendidos por mim consistiu situação de excessão, devida, tão somente, à

especificidade da Escola Parque, onde professores licenciados em artes, educação física,

letras, ensinam crianças de início de escolarização e, esporadicamente, da educação

infantil. De acordo com a legislação vigente, é no segundo segmento do ensino

fundamental que professores com essa formação devem atuar. Na prática, há muita

carência de professores com formação específica para essa demanda, em especial na

área de artes, o que justifica, muitas vezes, desvios de atuação, com professores lotados

para ministrar aulas em campos do conhecimento para os quais não tem formação, ou

cuja formação é precária. Tal quadro precisa ser modificado.

Já as crianças menores tem aulas com professores cuja formação deveria ser

feita nos cursos de Pedagogia, ou Normal Superior. Em geral, nos centros de formação

desses professores, as orientações quanto à inserção do desenho e de outros meios

visuais de comunicação no ensino não são restritas à área de artes, que, em geral, tem

espaços mais ou menos tímidos nos currículos. Diferentes concepções e orientações

sobre o trabalho com visualidades são veiculadas em um conjunto variável de

disciplinas, formado principalmente pelas didáticas. Nas disciplinas voltadas para os

recursos metodológicos, são tratados nos chamados materiais de ensino aprendizagem,

que evolvem o desenho de letras, a utilização de cartazes, ilustrações, estampas, rótulos,

maquetes e desenhos reproduzidos para serem utilizados como suporte para diversos

conteúdos escolares.

Ainda que disciplinas voltadas para o ensino de arte sejam previstas, e

priorizem fundamentos e aspectos metodológicos da área para o início de escolarização,

geralmente elas não chegam a integrar o chamado núcleo forte da formação, sendo

consideradas periféricas, ou de apoio.

Na outra via da questão, professores de arte, salvo excessões, não atuam na

educação infantil e início de escolarização. Esse fato acaba por gerar uma espécie de

desinteresse entre arte-educadores para aprofundar questões relativas a esse segmento

18

do ensino. A mais, em sua formação, a prioridade é dada aos aspectos do ensino de arte

de pré-adolescentes e adolescentes, faixa etária que frequenta o segundo segmento do

ensino fundamental e o ensino médio. De modo que é pouca a familiaridade desses

professores com as especificidades do trabalho com as crianças menores, sobretudo da

educação infantil, seja para atuar com elas, seja para formar professores que atuarão

nesse segmento.

Esse descompasso tem repercussões diretas nos modos como o desenho e as

visualidades em geral integram as atividades que precedem e durante o processo de

alfabetização, bem como nos argumentos que sustentam essas orientações.

Tais questões precisam ser pensadas, portanto, também a partir das relações

entre a formação inicial e continuada dos professores que atuam com educação infantil,

para a qual professores e pesquisadores na área do ensino de artes e cultura visual

podem contribuir de modo efetivo.

Pelo direito de brincar, aprender, e se fazer agente de cultura ativo desde a

infância

Esses fatores entrecruzados, somados a outros que aqui não foram

considerados, por certo, criam as condições nas quais as crianças tendem a abandonar,

gradativamente, o exercício de experimentar e construir modos de representações por

meio dos desenhos.

No entanto, talvez caiba a pergunta: é mesmo importante para a criança que

seja assegurado o espaço do desenhar?

A esse respeito, é preciso notar que fala, desenho e escrita são sistemas de

representação distintos, que dialogam, complementando-se, apesar das tensões que

possam estabelecer entre si. O exercício de cada um deles envolve estruturas cognitivas,

capacidade de representação, imaginação, sensibilidade, criação, e articulação da

experiência pessoal com a coletiva, no âmbito da cultura.

Não se pode perder de vista, também, que uma das características mais

marcantes da cultura contemporânea está no aumento sem precedentes de circulação de

informações visuais, bem como de acesso a equipamentos e tencologias que ampliam a

um número cada vez maior de pessoas a possibilidade de produzir imagens as mais

variadas. Atualmente, é cada vez mais precoce o acesso das crianças a essas tecnologias,

em câmeras fotográficas e de vídeo, telefones celulares, computadores, jogos

eletrônicos, dentre outras novidades que chegam ao mercado a cada dia.

19

Nesse ambiente, a produção imagética ganha outras dimensões e códigos,

passando do traçado sobre superfícies, das marcas deixadas pelo gesto, à operação de

equipamentos que respondem aos comandos digitalmente.

Ora, se à escola cabe parte significativa da formação de crianças e jovens

para sua inserção ativa, criativa, nas teias das relações sociais, sem perder de vistas suas

identidades sempre em construção, e se aos centros que trabalham com educação

infantil cabe promover a passagem desde o ambiente familiar, doméstico, em direção ao

mundo mais amplo, para a criança, então essas questões não podem deixar de

comparecer de modo efetivo à pauta das reflexões, dos planejamentos, dos processos de

ensinar e aprender deflagrados.

Somos todos responsáveis, sim, em alguma medida, por assegurar aos

pequeninos o direito de brincar, aprender, produzir sentidos no decurso de sua inserção

progressiva na complexa malha das relações sociais e construções culturais. Desse

processo, o desenhar, compreendido de modo amplo, é parte inalienável, e seu espaço

deve ser preservado em todo o processo de escolarização, desde a educação infantil.

Como condição para que possamos afirmar, sem sustos, que sim, toda

criança desenha!...

Referência Bibliográfica

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996.

DERDYK, Edith (1989). Formas de pensar o desenho. Série Pensamento e Ação no

Magistério. São Paulo: Editora Scipione.

(1990). O desenho da figura humana. Série Pensamento e Ação no Magistério.

São Paulo: Editora Scipione.

FERREIRO, Emília, e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto

Alegre: Artes Médicas, 1985.

LAPIERRE & AUCOUTURIER (1986) A simbologia do movimento. Porto Alegre: Artes

Médicas.

LOWENFELD, V. & BRITTAIN, W. L. (1977). Desenvolvimento da capacidade

criadora. São Paulo: Mestre Jou.

PILLAR, Analice Dutra (1990). Fazendo artes na alfabetização. Porto Alegre: Kuarup.

____ (1996). Desenho e construção de conhecimento na criança. Porto Alegre: Artes

Médicas.

20

Para citar este texto:

MARTINS, Alice Fátima. Toda criança desenha... Toda criança desenha?!. In:

MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. (Org.). Cultura Visual e Infância. Santa

Maria: Editora UFSM, 2010.