LUZES E SOMBRAS NO DIA SOCIAL: O SÍMBOLO RITUAL EM VICTOR TURNER
Spinoza, as Luzes Radicais e o fim do finalismo: considerações sobre os impactos éticos e...
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Spinoza, as Luzes radicais e o fim do finalismo: considerações sobre os impactos éticos e jurídico-políticos da filosofia spinozana Maurício de Albuquerque Rocha – Departamento de Direito da PUC Rio Francisco de Guimaraens – Departamento de Direito da PUC Rio1
Rio de Janeiro, Janeiro de 2011
1 Coordenadores do Círculo de leitura Spinoza & a filosofia do Rio de Janeiro : http://www.spinoza_filosofo.blogger.com.br
2
Luzes radicais: a fertilidade de uma hipótese
As Luzes imprimiram um sentido e um valor à atividade filosófica (álibis, justificativas, mas também uma necessidade),
forjaram uma nova imagem do pensamento, novos modos de entender a vida humana, de definir as formas de
socialidade, organização política, valores e direitos. A hipótese historiográfica de uma variedade de vertentes das Luzes
subverte nossa consciência do calendário filosófico e recompõe a memória e a geografia desse movimento. André Tosel
fornece um diagnóstico do ambiente intelectual no qual é gerada a hipótese das Luzes radicais, e assinala que, de fato, a
hipótese ocorre após décadas de críticas que assinalaram as aporias e limites das Luzes. Críticas que muitas vezes não
apresentavam alternativas históricas para além da denúncia dos malefícios da racionalização da vida social, segundo ele.
A identificação, sem mais, de uma vertente do racionalismo moderno com as Luzes resultou em inúmeros contrassensos –
nem por isso menos férteis em debates intensos: por um lado, o combate ao que se convencionou reconhecer como
formas de irracionalismo (os fascismos do século XX, mas também os fundamentalismos religiosos), bem como a expansão
das políticas de bem estar no pós-guerra, concederem aos valores modernos a função de defensores das liberdades civis,
da democracia e dos direitos (e mesmo o socialismo real guardava esse espírito em seus princípios). Por outro, as décadas
de lutas nacionalistas e o processo de descolonização alimentaram a contestação e a convicção de que era necessário
estender os valores modernos aos que apareciam como excluídos do progresso da ordem. A convicção moderna da
marcha contínua de emancipação rumo à universalização das formas civilizatórias anglo-europeias, rumo às sínteses
ideais (socialistas ou capitalistas), viu-se confrontada à realidade das estratégias de dominação. Esses debates marcaram
as últimas décadas, com maior ou menor intensidade – sempre em torno do desprestígio ou celebração dos valores
modernos2.
Pensamos que essa hipótese historiográfica permite tratar dos valores modernos para além do trabalho de luto sobre
esses mesmos ideais, e para além da tentativa anacrônica de refundá-los abstratamente. Pois se trata de mudar o passado
e redesenhar latitudes e longitudes desse ataque aos modos de pensar o sagrado, as hierarquias políticas, as formas de
subordinação social, os valores morais e o sentido das práticas de cooperação, a produção da riqueza e do conhecimento.
E de ir além do registro exclusivo das expressões moderadas que serviram de referência para os relatos que consagram a
matriz hegemônica da modernidade — centrada na física experimental e no empirismo (Bacon, Locke, Newton, para os
britânicos); no enciclopedismo e no materialismo (Voltaire, Rousseau, Diderot, para os franceses); e enfim no idealismo
alemão. A imagem tradicional de uma história da filosofia restrita aos textos prestigiados dos grandes filósofos
reconhecidos institucionalmente dá lugar à literatura clandestina estruturada em torno do retorno ao materialismo
antigo, da crítica à superstição, da denúncia da religião como instrumento, e não fundamento, dos poderes. Essa é a
virtude da leitura proposta por M. Jacob3, a primeira a usar a noção de modo sistemático: as Luzes se desenvolvem sob
uma tensão estrutural entre a perspectiva radical (por radicalizar a crítica filosófica e política) e a moderada (que partilha
com os radicais a crítica à superstição e ao despotismo). Esta última eventualmente se aliará ao movimento de reação às
Luzes – reunindo a contrarreforma, a ortodoxia protestante e o establishment universitário. A autora também revê a
2 A. Tosel, "Les lumières à la clarté des lumières radicales". A controvérsia, que vai das obras da Teoria Crítica frankfurtiana até o pós-modernismo, incluindo aí as correntes resolutamente antimodernas do século XX (Heidegger, por exemplo), não será resumida aqui. Mas o debate não afetou apenas os ambientes filosóficos, como documenta o antropólogo Marshall Sahlins: “Nos anos 50 e 60, pairava uma certeza lúgubre de que os séculos de imperialismo ocidental, o longo desenvolvimento do subdesenvolvimento, haviam devastado as instituições, valores e consciência cultural dos povos (ex-) aborígines em todo o mundo. As teorias da modernização tinham os mesmos pressupostos. Na verdade, acreditava-se que a modernização levaria o processo de deculturação a uma solução final, visto que os costumes tradicionais eram considerados como um obstáculo ao “desenvolvimento”. Cf.“O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um “objeto” em via de extinção.” Revista Mana 3 (1):41-73. 3 M. Jacob, The Radical Enlightenment – Pantheists, Freemasons and Republicans, 1981/2005.
3
periodização, recuando o começo das Luzes para 1650 e enfatizando o final do século XVII, quando se consolidam as
divergências entre moderados (liberais, deístas etc.) e radicais (materialistas, sensualistas etc.). Por fim, a geografia do
movimento é ampliada, com ênfase no cenário britânico, mas concedendo atenção à dinâmica subterrânea das Luzes –
daí o subtítulo que inclui a maçonaria, o panteísmo e o republicanismo. Coube a Jonathan Israel4 levar adiante essas
teses, mas sua contribuição maior foi introduzir a figura de Spinoza como protagonista do movimento. Para ele as Luzes
foram um movimento transnacional, paneuropeu, e de sua corrente radical Spinoza foi o principal teórico – “armadura
intelectual das Luzes radicais por toda parte na Europa”. A filosofia spinozana representaria, portanto, uma espécie de
iluminismo avant la lettre, considerado fundamental para a compreensão da própria modernidade e dos conflitos entre
pensadores iluministas. Das afirmações anteriores decorre uma crítica à metodologia historiográfica praticada nos
círculos anglo-saxões (mas não só): a história das ideias (britânica) seria cheia de omissões – em particular no que
concerne a Spinoza, cuja influência é desprezada5. Caracterizando as Luzes como um movimento heterogêneo no seio do
racionalismo moderno, de caráter internacional e de longa duração, podemos ultrapassar o particularismo chauvinista
das histórias nacionais. Mas, sobretudo, tal abordagem modifica as descrições sobre os vínculos entre as Luzes, a
modernidade e o racionalismo – emprestando a essas noções algo mais do que uma etiqueta a celebrar o sucesso, ou
acusar o fracasso, de uma revolução passada.
O que dá às Luzes seu caráter radical é o confronto com o pensamento teológico encarnado na versão latino-cristã do
platonismo (postulando a unidade do Ser e do Bem, a defesa de uma concepção dualista da relação alma-sensibilidade
associada à tese da superioridade da alma etc.). Desde Lisboa a Moscou, de Dublin à Sicília, de Amsterdã a Edimburgo,
foi decisiva para a fortíssima coesão cultural a constituição de canais de comunicação compostos de jornais, panfletos,
publicações clandestinas, bibliotecas privadas e outros dispositivos que serviram para formar uma rede ampliada
sistematicamente desde meados do século XVII. Além disso, conforme o autor, as Luzes radicais não foram periféricas, e
foram mais coesas internacionalmente do que as formas moderadas. Estas se tornaram hegemônicas retrospectivamente
pela historiografia e pelo esforço dos expoentes da vertente moderada diante do que percebiam como um perigo para os
valores estabelecidos e para todos os modos de legitimação e compreensão do mundo (incluindo o complexo teológico-
político), fundados na transcendência. Tudo isso nos obriga a reler o período e a reinventar o contexto que dá sentido aos
problemas e obras filosóficas – além, é claro, de nos forçar a reavaliar os modos de transmissão/comunicação (ou
contágio) das ideias.
Como lembra Yves Citton6, pensar em termos de influência leva a privilegiar contatos diretos entre autores, além de
supor uma continuidade explicitada em citações e referências, ou convergências conscientes entre eles. Como se
houvesse uma fonte teórica original com a qual o influenciado teria uma relação de imitação, mais ou menos precisa,
segundo os casos. No caso de Spinoza, a transmissão não se faz pela lógica dos conceitos puros, nem pode ser dissociada
dos dinamismos imaginativos (a língua dos filósofos é a mesma do vulgo) e afetivos e dos variados modos de capturar
4 J. Israel, Radical Enlightenment, 2001 e Enlightenment contested, 2005. 5 M. Jacob diverge de J. Israel por avaliar que ele pratica uma história idealista e exagera quando confere a Spinoza centralidade no movimento, que ela avalia difuso, plural e irredutível a apenas um foco de influência. Por sua vez, J. Israel afirma que o protagonismo spinozano se constitui por sua obra ser uma reserva de pensamento inesgotável contra as autoridades metafísicas, teológicas, morais e políticas. E que ele dá coerência às necessidades e formas de vida que emergem na modernidade. Por fim, ele lembra que foram os próprios adversários que obrigaram o pensamento crítico a munir-se de uma expressão coerente e sistemática – daí o spinozismo ter assimilado positivamente as acusações de ateísmo, libertinismo, panteísmo, materialismo e ter procurado em Spinoza as bases de uma revolução filosófica. Para um registro do debate entre ambos Cf. C. Secrétan, T. Dagron, L. Bove, Qu’est-ce que les Lumières Radicales?, pp. 29-59, além de L. Bove, “Lumières radicales ou moderées” e A. Tosel, "Les lumières à la clarté des lumières radicales". 6 Y. Citton, “L’invention du spinozisme dans la France du XVIIIe siècle”.
4
uma obra que, mesmo proscrita, circula sous le manteau. Há uma desproporção entre as referências feitas a ele e o impacto
da sua presença na cultura filosófica moderna: as versões da filosofia spinozana se caracterizam pelo desconhecimento e
pelos efeitos (de imaginação, no sentido spinozano da noção) de associação de ideias que a menção a ele provoca. As
figuras do spinozismo correntes no século XVIII são irreconhecíveis, se confrontadas com a obra, e não podem ser
julgadas pelo critério da autenticidade. O spinozismo se desenvolve entre os que o compreendem e os que o refutam (que
podem ser os mesmos) ora dissimulando adesão, ora exprimindo objeções – e o filósofo polidor de lentes é personagem
constante das refutações. Gênero literário e filosófico cujo fim é a denúncia de um perigo intelectual e moral, a refutação
é atravessada pela ambiguidade da propaganda negativa que contagia e desperta interesse pelo refutado7. Daí o
spinozismo como “enigma aberto”, cujas dificuldades são produtivas, mais do que as verdades8. Esse processo sinuoso e
ambíguo do spinozismo é coletivo e internamente diverso, exercício de ocupação de um território a desbravar – que é
lugar de passagem e de encontros entre tradição e traição, adesão e recusa. Por isso Citton sugere que em vez de
pensarmos em continuidade e influência, pensemos em contiguidade e invenção, e que sejamos conduzidos a
conceber o pensamento humano sob o modelo da ressonância da corda vibrante, e não sob o modelo da circulação dos fluidos – um fluido passa de um recipiente para outro, e o primeiro não alimenta o segundo sem perder seu conteúdo, mas o conhecimento pode ser posto em comum pois posso comunicá-lo a outrem sem perdê-lo, assim como a corda que faz uma outra vibrar em uma relação harmônica nada perde da vibração que ela partilha.9
Um exemplo da fertilidade dessa hipótese é o exame da relação entre Spinoza e Hume, para a qual Jonathan Israel
apresenta uma nova leitura10. Em vez de considerá-los autores antagônicos, Israel entende que a proximidade dos
fundamentos da filosofia de ambos é maior do que as distâncias assinaladas quando se investigam aspectos políticos de
seus sistemas. Evidentemente é melhor duas filosofias do que uma, e não se trata de reduzir um ao outro, suprimindo o
singular de cada um. Segundo Israel, essas diferenças residem no fato de Spinoza ser o mais destacado filósofo da Luzes
radicais, enquanto Hume deve ser considerado integrante da vertente moderada. O conflito dessas vertentes se deu no
âmbito das teses políticas desenvolvidas pelo mainstream iluminista, de um lado, e, de outro, pela teses defendidas pelas
Luzes radicais. Hume, por exemplo, expõe argumentos em defesa de uma espécie de desigualdade constitutiva dos seres
humanos. Segundo Israel, Hume entende que “se os homens forem deixados livres, partindo de uma posição de
igualdade geral, a natural desigualdade dos homens em inteligência, habilidade e diligência ‘imediatamente eliminará a
igualdade’”11. De acordo com o filósofo escocês, o governo que tentasse, de algum modo, produzir ou conservar a
igualdade entre os seres humanos, terminaria por se tornar uma tirania e seria extremamente parcial. Essa posição não é
compatível com as teses expostas por Spinoza no Tratado Político, segundo as quais uma aristocracia só se mantém
enquanto tal caso evite o aprofundamento da desigualdade entre patrícios e plebeus e por defender que a liberdade não
se sustenta sem a igualdade – seguindo os passos de Maquiavel.
Com o sapientíssimo florentino, o filósofo holandês compartilha a ideia da primazia das forças e das relações de forças na
realidade social e política. Em lugar da Lei e do Contrato, o que importa são os desejos, as paixões, as imaginações
coletivas e os interesses que coordenam as condutas. Esse realismo político faz com que a democracia não seja legitimada
moralmente, como um valor universal a realizar, mas sim do ponto de vista das próprias paixões. Pois o desejo de
7 Bayle, Écrits sur Spinoza. Paris: Berg, 1983, pp. 142-143 8 Só na Alemanha do século XIX uma outra atitude aparece: em vez de saber se Spinoza disse a verdade, o problema será saber o que ele verdadeiramente disse. Cf. Spinoza au XIXe siècle. 9 Yves Citton, ”L’invention du spinozisme dans la France du XVIIIe siècle”. 10 J. Israel, Enlightenment contested, p. 43. Convém registrar que tanto Jean-Pierre Cléro, como M. Malherbe, sondaram essas vizinhanças. 11 Enlightenment contested, p. 55.
5
governar e não ser governado por um igual ou semelhante, que é o cerne da vida democrática, faz com que ela seja o
mais natural dos regimes para cada um e para todos. E o problema da democracia é conservar essa dinâmica
institucional de contra-poderes que operem sobre os afetos coletivos de modo a evitar que o desejo de cada um de não
ser governado se torne desejo de dominar os seus semelhantes. Daí a importância da organização do corpo político, pois
se trata da funcionalidade e da produção de uma potência comum, e não da realização de um valor ou ideal. A diferença
entre Spinoza (por sua inspiração maquiaveliana) e o republicanismo humanista, bem como das vertentes jusnaturalistas,
e que ele não se detém apenas na separação do político e do teológico – programa comum aos iluministas moderados,
como é o caso da posição de compromisso da posição deísta, como veremos a seguir, defensora da monarquia
constitucional esclarecida, que combate a superstição, mas teme os materialistas e os ateus. São esses compromissos
admitidos pelos moderados com a reação, como por exemplo a defesa da religião natural como cimento da nova ordem,
sob a forma de monarquias constitucionais, em vez de repúblicas que levam aliados pontuais à posição de antagonistas
nas questões decisivas do movimento das Luzes12.
O finalismo como fio da meada
O conflito político se mescla ao religioso – ou o vocaliza com outros tons nas controvérsias sobre a religião natural 13, suas
figuras subjetivas – deístas, teístas, teístas experimentais – e envolve temas cruciais em ambos, a saber: a ideia de natureza
humana (a crítica ao sujeito substancial) e o enfrentamento, por ambos, com argumentos muito próximos, das teses
metafísicas e teológicas que sustentaram moralidade e o transcendentalismo (seja da Providência, seja do sujeito) na
filosofia moderna – cujo contraponto é a imputação de ateísmo à filosofia de Spinoza. Índice histórico da temperatura
desse debate é a publicação póstuma da História da religião natural de Hume – pois o filósofo escocês reconhecia que as
tensões permaneciam, ainda que atenuadas no contexto do século XVIII britânico, já que desejava “viver tranquilamente,
ao abrigo de vociferações”. 14
Na era clássica a acusação de ateísmo incide mais sobre as mediações entre Deus e os homens do que sobre a existência
de Deus — e os filósofos do XVII falam de Deus sem cessar. Pois um pensador será definido como ateu mesmo que
considere Deus como princípio criador do Mundo, caso suspeitem de um questionamento sobre três coisas: as leis que
Deus dá aos homens; os intermediários pelos quais Deus fala ou salva; o julgamento, a punição ou a recompensa
reservada para cada um. É ainda mais ateu quem nega Deus como fim do que princípio (fins estabelecidos pelas
instituições e autoridades eclesiásticas). Daí Spinoza aparecer como ateu para seus contemporâneos, pelo que escreveu
sobre o problema do mal (crucial no século XVII) e do pecado — em oposição à moral cristã. Por mais de uma vez ele
12 Laurent Bove, “Lumières radicales ou modérées : une lecture à partir de Spinoza”. 13 A religião natural correspondeu, no plano religioso, ao individualismo jurídico do direito natural subjetivo que se desenvolve paralelamente na mesma época: o itinerário da salvação é pensado na primeira pessoa. O que não impede que o indivíduo viva com outros, e que põe imediatamente em questão a Igreja e suas relações com o poder político. A Igreja verdadeiramente universal não é uma comunidade institucional de fiéis, qualquer que ela seja; é a comunidade espiritual de todos os homens de bom senso e boa vontade que partilham as mesmas crenças fundamentais e as mesmas exigências éticas. Uma conseqüência dessa perspectiva é a recusa do exclusivismo eclesiástico ou da pretensão de toda Igreja de deter o monopólio das vias para a salvação; a recusa do magistério, espiritual ou clerical – o que significa reivindicar autonomia do laico para encontrar o caminho de sua salvação e para buscar o verdadeiro e o bem; afirmação do direito do Príncipe sobre as coisas sagradas – ou subordinação do poder religioso ao poder civil e o direito e potência dadas ao príncipe de impedir que os clérigos imponham novos dogmas ou obrigações. O poder do Príncipe não é um poder de imposição, mas de contenção e proteção da ordem civil e da liberdade individual dos súditos (além de ele não determinar crenças, nem práticas de culto necessárias à salvação, nomeação de chefes religiosos, convocação de concílios etc. cf. Grotius, 1609: De império Summarum Potestarum circa sacra). A Igreja institucionalizada funciona como estratégia a serviço da liberdade do pensamento e da pesquisa intelectual – e a tolerância é sua contrapartida. Cf. Jacqueline Lagrèe, La religion naturelle. 14 Hume cercou-se de precauções em torno dessa obra, estabelecendo o prazo de dois anos para que ela fosse publicada por seu editor, cinco anos para que Adam Smith o fizesse, e menos de cinco anos para seu sobrinho. Cf. Intr. Dialogues, ed. Malherbe, pp. 7-13.
6
recusou essa imputação, afirmando que Deus é o modelo da vida verdadeira, mesmo se não é no registro finalista como
entendem os teólogos15.
As ideias de finalidade e a o finalismo, como hermenêutica delirante, aí desempenham funções decisivas e fornecem um fio
da meada para determinar critérios filosóficos (e não apenas historiográficos) que permitam distinguir, no interior do
Iluminismo, suas várias vertentes – e o lugar de Spinoza no interior delas16. Israel assinala ao menos três encontros entre
ambos: a primeira em torno da finalidade e da transcendência, a segunda o problema da experiência, e a terceira em
torno das paixões e da moral. E Spinoza, assim como Hume, compreendem que a origem de qualquer conhecimento
reside na experiência17. Israel chama atenção para a necessidade de evitar o dualismo rígido entre empirismo e
racionalismo proposto pela filosofia anglo-americana, na medida em que a teoria do conhecimento de Spinoza não cabe
nessas categorias18. A filosofia de Spinoza não pode ser enquadrada na concepção anglo-americana de racionalismo,
visto que, ao menos quanto às suas premissas, ela é empirista19. Sem a imaginação, que envolve o conhecimento
apreendido pela experiência, é impossível desenvolver os demais gêneros de conhecimento (razão e intuição). Como
lembra Michel Malherbe, é preciso liberar Hume da interpretação kantiana, pois sua filosofia não visa a busca de um
fundamento racional para o conhecimento e para a racionalidade. Ela é uma ciência dos princípios da natureza humana,
crenças e paixões, que permitem ao homem pensar e agir, e que se justificam pela eficácia, não pela razão. É uma
15 P.-F. Moreau, Problèmes du spinozisme, p. 104. 16 É provável que Hume, quando esteve na França, no Colégio La Flèche, tenha lido Spinoza – justamente na época em que o filósofo holandês é uma obsessão, como documentou Vernière. É certo que Hume leu Bayle, de onde extraiu boa parte das referências explícitas (como o estratégia de defesa da imputação de spinozismo à sua filosofia, presente no TNH I, IV, V) e que teria participado de debates sobre o filósofo. Fica para outra oportunidade um exame apurado das muitas convergências entre os dois pensadores, a saber: a recusa da causalidade recíproca entre alma e corpo (“ou Hume aprendeu isso com Spinoza, ou em outro lugar”, comenta W. Klever); a proximidade entre ambos na concepção da mente, presente na fórmula de Hume mind is a collection of different perceptions... e na de Spinoza na Ética, II, 15: ex pluribus ideis composita; a coincidência do uso do termo constituído em ambos, que demonstra que Spinoza não está convencido da ficção do caráter pessoal, tanto quanto Hume em favor da destituição da suposta soberania da consciência e do hábito de dizer EU. A ênfase no caráter quase mecânico da associação de ideias e a função da imaginação em ambos – ela é modo de conhecimento e não fonte de conhecimento em Spinoza – e em Hume, tudo se passa na imaginação, inclusive a constituição do sujeito (Ética, II, 17 e 18 e TNH, I, 3 e 4); a crítica às ideias gerais e o nominalismo de ambos, bem como a ênfase na teoria das paixões. A relação entre ambos, portanto, carece de maior atenção – para além dos esquemas que prejulgam a filosofia de ambos segundo os cânones da historiografia filosófica corrente, como é o caso de R. Popkin, que só consegue notar a similaridade da concepção que ambos têm sobre a religião popular (a demanda de ordem), mas que passa ao largo do tema da imaginação e da crença. Cf. Wim Klever, “Hume contra Spinoza?” p. 90-95 e R. Popkin, “Hume and Spinoza”, p. 75. 17 Gilles Deleuze já alertava para o modo como Spinoza colocava o empirismo a serviço do racionalismo (Spinoza et le problème de l’expression, p. 134) e dizia que o estudo das relações de composição entre as coisas exigiria o recurso a um programa de experimentação físico-química e biológica (como a pesquisa sobre a unidade de composição dos animais entre eles), pois não temos conhecimento antecipado dessas relações de composição (Spinoza philosophie pratique, cap. V). P.-F. Moreau reconhece o acerto de Deleuze e documenta que, embora o termo experimentum não apareça na Ética (mas compareça nas cartas e no Emendatione), a pequena física da Parte II supõe que a necessidade da experiência para compreendermos as leis abstratas das naturezas individuais. Por exemplo: a conservação da forma individual para além das variações dos modos de ser afetado nada diz sobre os modos de ser afetado, nem sobre a natureza dos componentes (o que supõe relações exteriores e abre caminho para procedimentos de experimentação). Além disso, na seqüência da Ética, II, 13, Spinoza afirma a conformidade entre seus postulados e a experientia. Moreau lembra que no pensamento clássico não é possível reduzir o nascimento da ciência experimental à oposição entre o dado e o construído, entre a observação e a experimentação. Tal oposição simplificaria o movimento histórico própria às relações entre experiência e conhecimento em seus vários registros: o da experiência comum, ou observação; a extensão desta a novos objetos, com o uso de instrumentos; a experiência derivada dos processos de desenvolvimento das técnicas; e a experimentação construída. É a articulação desses registros que determina as relações entre racionalidade e interrogação da Natureza. Cf. Pierre François-Moreau, Spinoza l’experience et l’eternite, pp. 279 e ss. 18 Israel, Enlightenment contested, p. 46. 19 A fortuna crítica sobre o prólogo do Emendatione reforça essa tese, desde que a noção de empirismo seja matizada. G. Deleuze em seu Empirismo e subjetividade (pp. 121 ss.) escreve: “o conhecimento não é o mais importante para o empirismo, mas apenas o meio de uma atividade prática (...) pois a experiência não tem para o empirista e para Hume esse caráter unívoco e constituinte que se lhe empresta (...) se denominamos a experiência a coleção de percepções distintas, devemos reconhecer que as relações não derivam da experiência, elas são efeitos dos princípios de associação, dos princípios da natureza humana, a qual, na experiência, constitui um sujeito capaz de ultrapassar a experiência (...) devemos reconhecer ainda que os princípios não vêm da experiência, ao contrário, a experiência é que deve ser compreendida como um princípio (...) o empirismo é uma filosofia da imaginação, não uma filosofia dos sentidos”.
7
filosofia da prática intelectual, moral, artística, política e religiosa – filosofia do agir, não do conhecer. Como também o é a
de Spinoza20.
Brevíssimo exame do finalismo – entre Descartes e Spinoza
Do século XVII ao XVIII, o debate sobre a finalidade na natureza, que remonta à antiguidade21, renasce em uma polêmica
que ultrapassa os domínios estritos da ciência nova. A aceitação ou recusa do finalismo e o debate em torno dessa noção
demonstram as interseções das filosofias clássicas, seus diálogos implícitos ou explícitos, que podemos listar: se conhecer
é conhecer causas, ou pelas causas, essas causas são apenas mecânicas, sem finalidade, ou não? Como conhecer o corpo
humano, por exemplo? Que um órgão passe a ser explicado por sua função, essa é a norma. Mas atribuir que este órgão
foi feito para tal função é algo bem distinto (Harvey, a circulação do sangue, o coração bomba). Além disso, um órgão
visa ou não a manutenção do corpo – ou dele é apenas uma parte associada em um arranjo para a conservação do todo
do qual é parte? Podemos compreender a natureza como resultado de uma operação necessária e mecânica, ou como o
resultado de uma série de processos aleatórios? Ou devemos compreender a natureza a partir do modelo da fabricação
de objetos – feitos com um fim, e cujo sentido é determinado em função desse fim? Há, ou não há, sentido na Natureza?
E se houver, como captar esse sentido? E se a natureza é um livro, é preciso determinar qual a língua desse livro, e como
convém ler o que nele está escrito – trata-se de compreender sua sintaxe ou é preciso perguntar sobre as intenções do
autor? (note-se que tal modo de pôr o problema envolve uma confiança na inteligência humana, que seria capaz dessa
decifração...).
Esse conjunto de problemas determina, ao menos, três perspectivas: a primeira supõe o finalismo, suposição que por sua
vez envolve a hipótese da existência de um Deus, mas cujos desígnios são insondáveis. O obstáculo aqui é a presunção
de explicar o que mal se compreende – mas que pode ser conhecido e descrito (os objetos da natureza, ela própria em sua
totalidade de leis) – por alguma coisa que não conhecemos (os fins da vontade do criador). A segunda posição é a que
recusa o finalismo e declara que a própria noção de causa final é uma ilusão que consiste em aplicar à natureza
categorias tiradas de nossa percepção de nossas ações. A terceira posição defende que há finalidade na natureza – e que
ela pode ser conhecida, sem o que o sentido do real permanecerá incompreensível, bem como alguns aspectos de seu
funcionamento. Depois de Galileu, explicar a natureza não quer mais dizer a mesma coisa, assim como a própria ideia do
que é racional se modifica. Em conjunto, as matemáticas e a mecânica racional revertem a ideia de que o movimento se
explica por seu telos. Nessa novas figuras da razão e da cientificidade, o télos não é geometrizável, nem quantificável, o
que interdita o finalismo. O novo paradigma depende de uma mudança nas questões endereçadas aos eventos naturais –
e é por isso que as respostas mudam, pois as questões não sempre as mesmas: há questões que aparecem como não
científicas: não se trata mais de perguntar sobre o telos mas sobre como tal coisa funciona — e não é por acaso que os
personagens galileanos são engenheiros. Sabemos o quanto a era clássica foi marcada pela tentativa de elaborar uma
20 M. Malherbe, “Introduction” à David Hume, Histoire Naturelle de la religion pp. 8-9. Os trabalhos recentes de David Rabouin, Vivre Ici – Spinoza, Éthique locale e de Maxime Rovere, Exister – Méthodes de Spinoza, exploram justamente a filosofia spinozana como filosofia prática. 21 A noção de fim ou causa final estava ligada, na filosofia grega, à reflexão sobre a ação humana técnica (fabricadora) e prática (moral e política). Assim, em Aristóteles, a poiésis, produção do artesão ou do artista, é um ato subordinado a um fim exterior ao agente: a obra.; a arte do arquiteto tem por fim a casa; mas também o passeio pode ter por fim a manutenção da saúde. Por outro lado, a práxis nada produz de exterior ao agente, seu único fim é a eupraxia, a ação bem feita; por analogia, pode se dizer que o olho não tem outro fim senão ver. Este fim, “isso em vista do que” é, para a ação humana individual, o bem; para a Cidade, é o bem comum (koïnon). A Cidade é uma comunidade de semelhantes que tem por fim a melhor vida possível. A referência à “arte” permite dar conta da natureza: “a arte realiza o que a natureza não tem o poder de realizar, ou a imita”. A natureza é o que possui o princípio do seu movimento. O movimento se compreende a partir do seu télos, pois a natureza nada faz em vão e tudo nela tende para algum fim.
8
metafísica para Galileu – e entre Descartes e Spinoza essa tentativa encontra na resposta ao finalismo uma medida de
incomensurabilidade entre as duas filosofias.
É nos Principes de la philosophie (1644; 1647) que a rejeição das causas finais aparece mais explicitamente. Nessa primeira
exposição conjunta da filosofia cartesiana, espécie de manual filosófico em substituição às obras inspiradas pela
escolástica aristotélica, todos os temas correntes serão tratados, para que sua refutação seja mais sólida. Descartes admite
perfeitamente que Deus tenha fins. Simplesmente, ele afirma que, para poder decifrar na natureza as intenções divinas
nas suas produções, é preciso conhecer o criador e a criação. Ora, nós só temos um ponto de vista muito parcial sobre
ambos. Só conhecemos de Deus os atributos que ele desejou nos dar a conhecer, e da natureza o que percebemos por
intermédio dos nossos sentidos. Ainda que o finalismo possa ser um instrumento para a compreensão da natureza, seria
preciso de início conhecer a natureza para poder decifrar a finalidade. Mas, com tal intento, qual conhecimento pode ser
visado e está ao nosso alcance? Não o dos fins de Deus na natureza, mas o dos meios utilizados na sua produção — daí o
abandono das causas finais pelas causas eficientes, como é dito nos Principes, pois não se trata portanto de raciocinar
sobre o que não se vê, nem se pode conhecer (as causas finais), mas de interrogar sobre as condições de produção do que
se vê:
Nós também não nos deteremos a examinar os fins que Deus se propôs criando o mundo, e nós rejeitaremos inteiramente de nossa Filosofia a pesquisa das causas finais [...]; mas, o considerando como o Autor de todas as coisas, nos empenharemos somente em encontrar pela faculdade de raciocinar que ele pôs em nós, como aquelas que nós percebemos por intermédio de nossos sentidos puderam ser produzidas. 22
No início da Parte III, Descartes celebra a onipotência e a suprema bondade de Deus, e a perfeição, a beleza, a grandeza
das obras onde elas se exprimem. Mas tais textos conduzem, ao contrário do que se poderia concluir, a uma justificativa
da rejeição das causas finais, apoiada na relação entre o finito e o Infinito. Diante do infinito divino, há a finitude de
nosso entendimento, que é para Descartes a segunda coisa que convém lembrar sempre, ao examinarmos a natureza. E a
simultaneidade, no nosso espírito, da lembrança da infinitude divina e de nossa mediocridade nos proíbe de pretender
conhecer os fins de Deus. Assim, a recusa da utilização das causas finais em física se apoia, de início, no apelo a uma
modéstia necessária.
Esta presunção se torna caricatural quando o homem põe a si mesmo como fim da Criação, e imagina que Deus criou o
mundo para seu uso. Mas a infinitude divina, a finitude de nosso entendimento e o caráter indefinido do universo, tal
como a ciência nova o descobre, interditam o finalismo antropocêntrico. Não que ela seja absolutamente sem valor — tal
ideia é boa do ponto de vista religioso — nem é desprovida de fundamento, na medida em que tudo na natureza pode
nos dar satisfação, nem que seja apenas para contemplarmos as obras divinas. Mas tal ideia se torna inverossímil quando
se transforma na crença presunçosa de que Deus só criou o mundo para nós — e, sobretudo, é um princípio danoso nos
assuntos da física23.
Portanto, Descartes não recusa a ideia da finalidade; o que ele recusa é, de uma parte, um antropocentrismo que reduz a
infinidade divina e, de outra parte, o uso das causas finais como método para a ciência que o homem pode produzir por
seus próprios meios. Além disso, fora da revelação, os fins de Deus permanecem desconhecidos e incognoscíveis. E se
podemos dizer que todas as coisas da natureza foram feitas para a glória de Deus, inclusive reconhecendo ao finalismo
antropocêntrico o direito de dizer que o sol foi feito para nos iluminar — pois, de fato, é o que ocorre —, no entanto, o
22 AT, IX, pp. 37. 23 AT, IX, p. 101 e 104.
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finalismo passa dos limites quando afirma que o sol foi feito apenas para isso. Pretender louvar a Deus desse modo é o
mesmo que reduzir o alcance de suas obras etc.24
A física nova mostra a grandeza do universo e destrói a ilusão de que os céus existem em função da terra, e a terra para o
homem. É a ciência da natureza, tal como apresentada nos Principes, que demonstra verdadeiramente o poder divino —
enquanto que um finalismo mal compreendido o restringe, tornando o universo menor do que é. Assim, há uma razão
moral para rejeitar metodicamente as causas finais: por o homem no seu lugar, convidando-o à modéstia25.
Mas Descartes nunca afirmou que não existiam causas finais. Ao contrário, há um Deus e, consequentemente, não há
dúvida de que existem fins, dos quais Deus é o sujeito e o objeto. Fins que não podemos conhecer, dada a nossa finitude.
Por isso a pesquisa das causas finais, por não nos levar a lugar nenhum, é contrária ao método, que se apresenta como
economia de esforço, como boa organização do pensar. Assim, a rejeição às causas finais não é ontológica, mas metodológica.
Mesmo na questão da máquina, na descrição do funcionamento animal, não há uma renúncia ao finalismo — pois a
máquina supõe um operário, e a explicação do vivo recorre a noções finalistas26. Tal divórcio entre ordem ontológica e
metodológica é problemático, se admitimos que a ordem das razões, que é o método, deve ser calcada sobre a ordem das
coisas, admitir a existência de fins e ao mesmo tempo rejeitá-la no âmbito do método é determinante para boa parte das
dificuldades do cartesianismo27.
A crítica ao finalismo no Apendix da Parte I da Ética
Spinoza radicaliza a recusa do finalismo ao afirmar que essa representação da Natureza deriva dos automatismos da
imaginação, e que ela é o pilar fundamental da superstição e de uma compreensão invertida dos processos imanentes de
produção do real (beirando o delírio...). Os efeitos dessa recusa são notáveis em sua ética (a causa final é o próprio
desejo) e na política (recusa das utopias). Pois há um pressuposto que resume todos os outros, e que deriva do hábito de
explicar as coisas não por suas causas, mas por seus fins, ou pretensos fins, interpretados como causas finais, o que leva a
uma interpretação invertida e deformada das coisas. A questão do Apendix da Parte I da Ética é não só denunciar como
ilusória a estrutura de pré-julgamentos que o finalismo envolve, mas dar conta da gênese desse modo de conhecer –
compreender sua necessidade, pois se o seu conteúdo não é racional (não é compreensão causal), eles têm uma razão em
sua produção e são inteligíveis – embora causem efeitos devastadores na inteligência. Pois a causa da superstição é a
ignorância das causas, como dizia Lucrécio.28
No Apendix a retórica e a argumentação são próprias a uma discussão que não é o da explicação puramente racional,
estabelecendo uma forma mínima de comunicação com os destinatários, que estão privados de conhecimentos
elaborados pela via racional. Como se as lições do raciocínio fossem transpostas na forma de um discurso de
compromisso, transversal à exposição racional feita no texto. O que explica o emprego de termos do vocabulário
religioso, ou metafísico – como predeterminação. Os temas tradicionais da teologia e da metafísica (onipotência,
onisciência) são retomados em outra chave: em vez de pensados como pensamento mal formado, pois possuem uma
parte de verdade. E essa argumentação se insere em um debate no qual a Philosophia retira o máximo de efeitos de
conhecimento dessa parte de verdade – que indiretamente tais noções portam (uma hermenêutica do signo ou uma clínica do
24 AT, III, pp. 421-435 [Carta a Hyperaspiste, agosto de 1641] 25 AT, IV, pp. 290-296 [Cartas: 15/9/1645, a Elizabeth] e AT, V, pp. 50-58 [6/6/1647, a Chanut;] 26 Cf. Martial Gueroult, Descartes selon l’ordre des raisons, II, 173. 27 Seguimos aqui o estudo de Colas Duflo, La finalité dans la nature de Descartes a Kant. 28 Lucrécio, De rerum natura, V, vs. 1161-1240.
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delírio coletivo). Preconceitos renascem todo o tempo, por isso é só depois de reconstituir a gênese do finalismo que será
possível mostrar seus inconvenientes, e se interrogar sobre as noções que sustentam nossa maneira espontânea de ver o
mundo e julga-lo. E o próprio Spinoza assinala a incompletude da explicação (não é o lugar de deduzi-las da natureza
humana... embora no Apendix já opere a teoria da imaginação, que será apresentada adiante na Parte II).
Spinoza se contenta com uma verdade da experiência que deveria ser admitida por todos (mas é justamente o que não
ocorre) antes mesmo de ser admitida racionalmente – o duplo aspecto da condição humana, que associa o estado de
ignorância e o interesse vital. À negatividade da ignorância se somam os comportamentos e condutas, as representações
e seus conteúdos, em um sentido de inocência movido pelo interesse pelo que é útil. Ignorância das causas, ignorância
das coisas, ignorância de que as próprias causas são coisas entre outras coisas. Falsa consciência, semiconsciência, sob um
fundo de ignorância – consideração dos efeitos apreendidos independentemente de suas causas. Ignorância própria a
uma mente preocupada em buscar o que lhe é útil (coisa de que são conscientes) – em uma antecipação da definição do
desejo na Ética, III, 9.
Se o ser humano acredita naturalmente ser livre é por se arrogar o estatuto de substância (tanquam imperium in império),
tirando sua realidade apenas de si mesmo, visto que ignora a rede de determinações que faz dele uma coisa particular
entre outras (uma afecção da substância). Ilusão que se traduz nas atitudes e sentimentos cotidianos, através da convicção
que os homens têm de dominar e serem os autores de seus desejos, daí julgarem que buscam e procuram as coisas
porque elas são boas etc., quando na verdade é o inverso etc. São empurrados em direção a elas, são atraídos por elas porque já
as desejam, mentalmente condicionados... mas sem a devida consciência disso. Pois na ignorância das causas os homens se
lançam na perseguição de bens que são desejados sem se saber exatamente o motivo, o que produz a convicção de que
são livres e mestres do que eles querem – os homens agem em função de um fim, em função do útil que desejam... em todas as
circunstâncias se empenham em saber as causas finais... O que implica em converter um impulso espontâneo encarnado de
início em uma atitude puramente prática – que tem sua fonte na natureza daquele que a adota – em uma interpretação
com vocação especulativa, destacada do movimento através do qual as coisas se realizam, considerando-as isoladas de
seu contexto, e de todo contexto. Em lugar de irmos aos fins, são eles que vêm até nós, pois esses fins estariam
encarnados nas coisas. Que os fins exteriores tenham uma realidade objetiva fora dos próprios desejos humanos é algo
que satisfaz e conforta. Daí o delírio (ou a metafísica delirante): mostrando que na Natureza nada se faz em vão, que não seja
em proveito do homem, não deram a ver mais que isto: a Natureza e os deuses deliram tal qual os homens. Vejam a que ponto se
chegou...
O finalismo substitui a relação causa-efeito pela relação meio-fim (subordinando a primeira à segunda). Essa formação
de um esquema categorial representado pela relação meio-fim permite que a especulação se fixe e se universalize. E nesse
esquema os homens encontram a garantia de seu estatuto de seres livres na realidade de um mundo no qual –
conjuntamente – projetaram e objetivaram seus próprios desejos, sem levarem em conta de que o fizeram justo porque
renunciaram a dominar seus desejos e os deixaram se desenvolver de modo autônomo, com estes passando a lhes ditar
sua lei (que os aliena quando eles se figuram como comandando em tudo todas as coisas). Ao final do processo que
conduziu os homens a representarem o mundo a partir, e em função, de seu desejo de liberdade, se encontra a visão de
um mundo submisso a fins que o ultrapassam e transcendem. Processo acelerado que é característico das representações
que formam as crenças religiosas, índice de seu automatismo. Toda a história da religião, com suas principais etapas –
fetichismo, politeísmo e monoteísmo –, mostra como o sentimento do divino pouco a pouco sai do desejo humano e se
modela naturalmente por sua imagem. A primeira etapa é fetichismo – quando os homens se afiguram que as coisas são
portadoras de uma destinação divina. A segunda é a representação dos deuses artesãos e demiurgos que manipulam o
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mundo segundo seu gosto (é de se notar a ideia de comércio entre homens e deuses, como relações de serviço). A última é
monoteísmo – que seria um caso particular do politeísmo: ideia do mundo governado (pouco importando que seja
aristocrático ou monárquico). Esse sistema rígido de interpretação do mundo, que se supõe valer a priori para todos os
fenômenos, inclusive os que manifestamente se afastam do sistema, está presente na fórmula que vulgariza o
aristotelismo a natureza nada faz em vão29. Portanto, no Apêndice Spinoza vai além de uma crítica negativa que retiraria
consistência, validade e realidade ao finalismo. Relacionar as coisas a fins faz parte das condições naturais da existência
humana – algo que o projeto ético tem que levar em conta. Do contrário, se tornaria uma utopia abstrata e reativa. Trata-
se de visar um fim: a representação de um modo de vida humana mais perfeita – relativizando aqui a noção de fim, e
compreendendo que esta é resultante da imaginação (e do desejo). Spinoza não está sozinho nessa veemente refutação
do finalismo, como lembra Jonathan Israel, pois embora os argumentos de Hume tenham origem em um ponto de vista
cético, sua concordância com Spinoza é notável, pois ambos recusam qualquer apelo à transcendência como forma de
explicar os acontecimentos30.
Do Mal à Desordem
Entre 1680-1730 uma nova onda de polêmicas corre pela Europa: a crítica histórica prossegue atacando a superstição
(Bayle, Fontenelle); a ideia de uma religião universal laica se impõe com a progressiva dissolução dos dogmas cristãos
(católicos e reformados), sobretudo nos Países Baixos; o cartesianismo recua diante da ofensiva da variedade de
pensadores iluministas moderados; o deísmo filosófico produz o congraçamento de britânicos e germânicos em torno do
experimentalismo newtoniano, do empirismo (na política e na moral) e das metafísicas de Leibniz e Wolff. Os cinqüenta
anos seguintes veem progredir as vertentes radicais, com a ampliação da rede clandestina de publicações (Tratado dos três
impostores ou O espírito de Spinoza). Na França, o deísmo faz interseção com o neospinozismo (Boulainvilliers), enquanto
entre os britânicos ele se exprime como panteísmo associado ao utilitarismo (Toland, Collins, Mandeville etc.). E por toda
parte se espalham as dissidências (Alemanha, Itália, Escandinávia) ou versões moderadas, mas em permanente
confronto com o passado (Pombal em Portugal, por exemplo). Mas será na França que a recepção de Spinoza irá mais
longe, ultrapassando o mecanicismo, as variedades panteístas criptoreligiosas, em favor do materialismo sensualista do
spinozismo recriado por Diderot31, um dos responsáveis pela Enciclopédia “mais formidável empreendimento de
renovação intelectual e moral de toda a modernidade, que explora enfim novos percursos em ciência da organização e
em antropologia, e realiza uma crítica inédita do etnocentrismo e do machismo”.32
Pois o que se passa no final do século XVIII no domínio da teologia é o aparecimento de um Deus que é fundamento da
Natureza, do Espírito, um absoluto que dá conta da ordem do mundo – e que deixa de ser um criador, garantia ou
providência que dá conta do mal. O problema mudou: se o XVII temia o mal, do XVIII ao XIX o temor se volta para a
desordem33. Transição que é um sinal dos tempos – e que M. Chauí, avaliando as críticas de Bayle, documenta: “o ataque
de Bayle ao ateísmo de Spinoza opera em dois níveis distintos: serve para ilustrar a tese do ateu virtuoso e,
simultaneamente, para introduzir a figura nova do ateu especulativo, para com ela garantir que a virtude ateia não é
29 Lucrécio, De rerum natura IV, v. 832 ss. Alain Gigandet, em seu estudo Fama Deum – Lucrèce et les raisos du mythe (pp. 49, 58, 90 e 206) documenta a retomada, por Spinoza, da crítica de Lucrécio à superstição como saber maníaco que interpreta como intencional o que não consegue explicar causalmente. Vittorio Morfino também examina no vínculo de Spinoza com a linhagem lucreciana, manifesta pelo próprio Spinoza na célebre Carta 56, em seu livro Le temps de la multitude (p. 167-187). 30 J. Israel, Enlightenment contested, p. 53. 31 Y. Citton em seu livro L’envers de la liberte propõe uma reconstrução sistemática do spinozismo no contexto francês das Luzes. 32 A. Tosel, op. cit. 33 P.-F. Moreau, Problèmes du spinozisme, p. 60.
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necessariamente correlato de boa metafísica”34. Seguramente, passada a era da metafísica com o advento da crítica, ao
ateísmo do XVII, associado ao entusiasmo ou dogmatismo pelos romantismo e idealismo alemão, será acrescentada a
acusação de espírito democrático – agora como censura. Pois a maneira de pensar a religião, a teoria do Estado e do
direito, ameaçavam a visão tradicional do mundo, herdada do medievo e aclimatada à moderação das Luzes
germânicas35. E no período da posteridade imediata de Spinoza, dois termos começam a se impor, índices lexicais da
própria história interna das divergências e cisões no campo religioso, filosófico e político das Luzes. O primeiro é o
Deísmo – forjado na França para se opor simultaneamente ao ateísmo e à religião revelada. Em francês o termo guardou o
sentido da reprovação ortodoxa aos que se limitavam a crer em Deus, sem aceitar os dogmas e as práticas de uma
religião determinada – enfim, o deísmo seria a crença racional na existência de Deus dentro dos limites da religião
natural. No século XVIII, os filósofos das Luzes procuraram distinguir Deísmo e Teísmo, até então eram sinônimos.
Diderot (Ensaio sobre o mérito e a virtude) dirá que deísta é quem crê em Deus, mas nega a revelação, enquanto o teísta
admite a existência de Deus e está próximo de admitir a revelação. Kant retomará essa distinção para criticar seu
fundamento: o deísta se proíbe de determinar o conceito de Deus, enquanto o teísta o autoriza e faz de Deus o autor do
mundo. Mas ambos creem poder provar racionalmente a existência de Deus – embora a razão não possa fornecer tal
prova. Já a noção de teísmo é de origem inglesa e designa um sistema filosófico que põe a existência de um Deus pessoal
como causa do mundo. Em inglês designa o não ateísmo filosófico, armado de um arsenal de provas da existência de
Deus. A presença de Deus no mundo é afirmada, ao mesmo tempo, como transcendente e imanente (o Deísmo rejeita a
imanência). Depois de Hume, Kant usa o termo para designar toda doutrina que crê poder determinar, por analogia, a
natureza de Deus, sem seus atributos36.
Hume e a religião natural
Qual privilégio particular possui essa pequena agitação do cérebro, que nós chamamos pensamento, para que façamos dele o modelo de todo universo?37
O exame da religião natural ressoa e serve de complemento às análises do Tratado da Natureza Humana e do Ensaio sobre o
entendimento humano, e tem como elemento central o caráter delirante do modo de pensar a finalidade no contexto do
teísmo. Este pretendia fundar uma crença apoiada na autoridade da razão, liberada da tutela das Igrejas – embora se
vinculasse ao anglicanismo –, bem como de uma moral universal e congregava parte da intelectualidade britânica. Hume
pensa a religião a partir da observação da natureza humana e da analise genética dos efeitos sociais das paixões38. Ele
propõe uma história natural das religiões – religião natural incluída – contra o suposto consenso sobre a universalidade dos
fenômenos religiosos e das crenças. Religião natural por ser conforme à natureza humana, que solicita uma história
natural, e não sobrenatural ou sacra, sob a forma de uma genealogia dos afetos que dão nascença às diferentes formas de
religião: politeísmo primitivo, teísmo popular, teísmo especulativo da religião natural. Daí a analítica da crença modular
sua abordagem, pois o que importa não é o grau de racionalidade, verdade ou probabilidade das religiões, mas as
paixões das quais derivam, seus efeitos sociais e individuais, as expectativas implicadas, a necessidade de crer.
34 M. Chauí, Nervura do Real, pp. 291-303. 35 M. Chauí, Nervura do Real – Livro de Notas, p. 54, nota 338. 36 I. Kant, Crítica da razão pura, A 631, B 659. 37 David Hume, Diálogues sur la religion naturelle, II, pp. 102-103 (ed. Malherbe). 38 Idem, ibidem, p. 49.
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A religião natural não é o núcleo comum a todas as religiões existentes, nem é portadora de evidencia moral, nem é pura
ilusão: ela é uma resposta às necessidades práticas dos homens, sejam eles os simples submetidos às exigências da vida,
sejam eles sábios – e a diferença entre as formas da religião natural reside aí. A diversidade das respostas é determinada
por uma questão comum – como dar conta da desordem, da incerteza do futuro, e instituir uma ordem?39 – e sua
variedade corresponde aos temperamentos e situações. Necessidades são satisfeitas ou deslocadas. E uma crença não é
nem verdadeira nem falsa: é forte, fraca, eficaz, estéril, perigosa... O que dá ao fenômeno religioso sua equivocidade,
impureza e contradição, pois é mistura de antropomorfismo e superstição. Em todo caso, se trata de combater o temor,
estabilizar a esperança e conjurar o futuro – o que vale também para a religião natural, ainda que movida pelo amor à
verdade e pelo desejo de ordem no mundo, essa ordem que a ciência newtoniana ou a biologia descobrem em toda parte
e que inspira o teísmo experimental – variedade do teísmo que pretende fundar uma crença apoiada na autoridade da
razão, liberada da tutela das Igrejas (embora se vincule ao anglicanismo), bem como de uma moral universal. Essa
corrente filosófica congregava parte da intelectualidade britânica contemporânea de Hume, e é ela que é alvo dos
Diálogos. Essa corrente crê poder renovar o argumento das causas finais, provando-o pela harmonia do mundo –
evidência que conforta o sentimento religioso e leva à adesão do crente, diante do espetáculo da obra do Criador.
Nos Diálogos sobre a religião natural, Hume empreende a crítica aos argumentos finalistas. Ao argumento a priori (da
existência de Deus) ele contrapõe uma regra de proporção entre a ação humana e a suposta ação divina – supondo as
experiências nas quais a matéria é ordenada pela produção humana: basta comparar os efeitos dessas ações para ver sua
desproporção, o que interdita toda possibilidade de comparação. Esse argumento teísta toma a regra da parte pela regra
do todo, mas o todo é sem medida com a parte. O que reduz o argumento pela causa à analogia entre a invenção humana
e o artifício – como dirá Hume. Porém, uma característica do teísmo era passar do raciocínio físico-teológico (existência da
ordem, existência de Deus) à suposta evidência da harmonia como índice da finalidade – método que assegura a
demonstração racional, que dá à experiência um sentido e ao sentimento a adesão a uma evidência. Pois se a experiência
envolve o fato de que há uma ordem no mundo, isso leva a buscar a intenção a qual essa ordem corresponde, e à
conclusão sobre o princípio criador que realiza tal intenção. Assim, o universo aparece como signo sensível do divino, já
que há um sentido que é, simultaneamente, senso comum, sentido final e sentimento religioso. Eis o problema, que ocupa a
Parte IV dos Diálogos: se um argumento teológico pode ser refutado, isso é bem mais difícil quando se trata da evidência
que liga a experiência da ordem à inferência do desígnio – pois estamos diante de um sentimento que se apresenta como
raciocínio baseado em uma inferência natural.
É pela a crítica à causalidade, já consignada em obras anteriores, aliada à redução da inferência da finalidade aos seus
pressupostos – pois essa inferência oculta um princípio metafísico, um sentido prévio atribuído ao real, que Hume desata
o problema. Admitir a causalidade do desígnio divino é postular que Deus produz o mundo segundo um plano
representado em seu entendimento. E que essa ordem ideal é a causa suficiente da harmonia do mundo real, expressão
do desígnio que preside este mundo: o de um ser infinitamente inteligente e sábio – mas é preciso admitir que esse
postulado não pode derivar da experiência, e sim de uma analogia antropomórfica. Daí a classificação dos sistemas
religiosos por Hume seguirem o modo como a ordem é posta ora como transcendente, ora como imanente ao mundo: à
finalidade racional corresponde o teísmo experimental; à finalidade artesanal o politeísmo; à finalidade naturalizada uma
cosmogonia naturalista e à estética da aparente desordem (da ordem contingente) o ateísmo materialista.
39 Popkin, em seu “Hume and Spinoza” (p. 75), afirma que o centro da análise de Hume sobre a religião popular é o fato dela estar voltada mais para as deformidades (o extraordinário) do que para as regularidades (order).
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Assim, a experiência da ordem e da harmonia perde seu valor religioso, já que sem essa analogia nada pode ser pensado. A
questão especulativa e que depende de decisão filosófica – qual a origem do mundo? Qual é a causa do sistema de
causalidade que é o mundo da experiência? – exorbita qualquer abordagem empírica. E por ser a inferência religiosa
uma inferência filosófica, ela pode ser refutada no domínio da filosofia. E se permanece a força da crença religiosa,
mesmo depois de banhada no ácido do ceticismo, isso se deve a um fato (natural diria Hume): o argumento dos fins está
a serviço da finalidade moral40. Pois a essência da ação está no vínculo entre meio e fim, vínculo que não é só de
causalidade, mas de utilidade. Agir é agenciar meios para um fim – e para que uma causa possa ser considerada um meio
é preciso que o efeito que ela produz nos interesse: úteis são as paixões, os sentimentos, as qualidades próprias dos
indivíduos, e não apenas as coisas41. Resta então perguntar não só a quem é útil a religião, mas em que medida ela pode
ser útil.
Hume mais uma vez entra em sintonia com Spinoza ao tratar da questão da origem da moral. Segundo Hume, as regras
morais têm origem nas paixões e nas sensações, e não na razão. Por esse motivo, a razão nada pode contra o estímulo ou
a neutralização de ações que a moral pode causar nos homens42. Essa afirmação de Hume em muito se aproxima do
entendimento de Spinoza segundo o qual a razão nada pode contra os afetos. Somente um afeto pode neutralizar outro
afeto. A moral se funda em costumes, na tradição e no status quo, e não em postulados da razão. Essa concepção perturba
em demasia a suposição – interna ao debate das próprias Luzes – de que as normas morais e jurídicas, e os valores a elas
associados, perderiam sua força de constrangimento quando considerados como produtos de causas naturais:
As vertentes moderadas vêem no imanentismo dos radicais (seja em política, seja em metafísica, seja onde for) uma ameaça. Pois como sustentar as obrigações políticas, jurídicas e morais pela evocação de um absoluto prático, de uma transcendência na imanência da consciência moral e de uma teleologia moral (de Rousseau até Kant, passando por Locke) diante dos que recusam a dualidade entendimento-sensibilidade, a transcendência de um princípio ideal (Hume e a imaginação, os materialistas franceses), em favor de uma explicação da natureza integralmente imanente – bem como da natureza humana, pensada em termos de afetos, de composição e decomposição dos mesmos (as paixões em Hume). Pois se são as leis naturais que explicam a formação das leis morais e políticas, se resultam de causas naturais (os princípios da natureza humana), tais leis não seriam relativas a um certo meio e não valeriam apenas sob certas condições, visto que a mente que as constitui é, ela própria, parte dessa natureza determinada? Toda a ordem normativa humana com seu sistema de valores perde sua autorreferencialidade e incorpora um relativismo histórico irredutível – que é, enfim, inimigo não apenas do dogmatismo religioso, mas da compromisso entre o passado e o futuro no campo filosófico.43
Propor que os sistemas de valores, e as normas, são apenas produtos de um meio (sócio-histórico e natural), resulta em
suprimir qualquer fundamento, em propor um relativismo corrosivo, um ceticismo, enfim o niilismo... Posta a
alternativa44, restará à corrente normativa das Luzes a busca de um novo fundamento da obrigação e da normatividade –
em breve encontrado na Razão capaz de desvendar e dominar a Natureza, por descrever suas leis etc. Razão que é prova
40 Seguimos aqui M. Malherbe em sua introdução aos Dialogues sur la religion naturelle, pp. 49-59. 41 Gilles Deleuze, assinala que a moral não deriva da razão em Hume, e que é por isso que é preciso não confundir relação e sentido. Do ponto de vista lógico, a relação presente na ideia de ser mau para quem me fez o bem e ser bom para quem me fez mal é a mesma: uma relação de contrariedade. Mas o reconhecimento da diferença (de sentido) entre os dois atos, embora logicamente idênticos, é de ordem moral, não racional. As relações tornam uma ação possível, mas é pelo sentido que se escapa às relações e que há ação. Cf. Empirismo e subjetividade, p. 136-139. 42 Israel, Enlightenment contested, p. 54. 43 A. Tosel, op. cit. 44 Alternativa que reencarna na problemática do transcendental em Kant: de um lado, o “dogmatismo da metafísica de escola”, as essências e os decretos de Deus e, de outro, o discurso das condições de possibilidade, a crítica. O procedimento consiste em empurrar o adversário para uma alternativa ruinosa para ele, dados os pressupostos que lhe são atribuídos (as versões do fatalismo seriam outra expressão disso), e apresentar-lhe a intimação (ou bem se é dogmático, ou bem se é cético, ou bem...). Estratégia de contenção dos adversários, que é também decisão sobre o sentido do pensamento e da ação. Sobre o assunto cf. Gérard Lebrun, “O transcendental e sua imagem” p. 232.
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da transcendência humana face ao mundo natural e que fornece os elementos (dictamina rectae rationis) para um conduta
reta, em substituição à promulgação transcendente e revelada.
Essa estratégia é comum a vários pensadores do XVIII, como Voltaire: enquanto dura o combate contra o adversário
comum (a religião revelada e sua proeminência política) os elogios a Spinoza são constantes. Mas não há acordo com o
que se considera amoral em sua filosofia – e os argumentos retirados do campo teológico retornam, agora contra Spinoza.
Isso indica que a cisão entre as correntes, a moderada e a radical, vai além da mera alternativa norma versus niilismo
cético-relativista, e incide sobre pressupostos antropológicos (a ideia genérica de Homem) e políticos (a quem cabe a
Soberania?) – e ajuda a começar a desfazer a figura historiográfica, an-histórica, de uma Era da Razão, condição para
determinar com maior precisão a diferença interna entre as vertentes das Luzes, bem como as representações que estas
forjaram de Spinoza.
As duas vertentes das Luzes lutam pelo declínio da religião revelada, seja propondo, como faz a vertente normativa, uma
moral purificada, fundada e completada pela religião natural, ou denunciando a religião revelada como uma fortaleza da
vida alienada. Spinoza, por sua vez, mostra que a religião revelada, por causa do caráter ambivalente do conhecimento
imaginativo do qual ela depende, pode ser a arma mais eficaz nas mãos dos que tentam dominar a multidão. Mas, por
outro lado, há um núcleo duro de convicções religiosas em todas elas que incitam o homem a obedecer a Deus, cuidar do
próximo como de si mesmos – justamente o que a razão diz ao Sábio45. Se há um acordo de fato entre a verdadeira religião
e a filosofia, o que importa não é visar a morte da religião revelada, mas conduzir o culto da verdadeira religião oposta à
superstição. Spinoza critica impiedosamente a moralidade religiosa dolorista fundada sobre as paixões tristes e a crença
no pecado original, ao que contrapõe sua ética e a crítica da superstição, da credulidade nos milagres e nos mitos do
criacionismo, redefinindo a religião a partir do sentimento social positivo e pela simbolização do laço humano de
cooperação.
Manfred Walther nomeia esse procedimento de Spinoza de de-paradoxização das posições que delimitariam as Luzes
(conforme as representações correntes na historiografia filosófica etc.)46. Seja os que não viveram a Reforma e tinham o
catolicismo romano como adversário da liberdade ética e política, o materialismo será o cerne das Luzes; seja os que dão
ênfase à secularização e a associam à igualdade, à democracia e ao universalismo, como os judeus alemães enredados na
querela do panteísmo; seja os que identificam a modernidade com a dimensão normativa e com certa versão historiográfica
do empirismo – em todos esses casos encontraremos uma versão de Spinoza e do processo das Luzes, pois nele há
argumentos que servem a todas elas. Entretanto, no domínio dos problemas, ou da forma como são tratados os temas em
comum, a distância é enorme. O denominador comum dessas singularidades é que elas têm muito a ver com as duas
vertentes das Luzes – a vertente relativista, cética e niilista, bem como a normativa – embora Spinoza pouco tenha a ver
com elas, pois ele recusa o modo como os problemas são postos: ele considera um falso dilema opor a passionalidade
natural às capacidades racionais (a virtude não é recompensa ou obrigação, não é ascetismo ou renúncia), bem como a
versão política desse dilema, sob a forma da separação entre o possível humano e a determinação animal.
Normatividade e constituição política
No Contratualismo do século XVII o princípio do consentimento (pacto ou contrato) legitima a obediência. Mais do que
explicar as formas de associação entre os homens, essa hipótese é funcional por justificar a transferência, ou alienação, do
45 O credo mínimo anunciado no Prefácio TTP, a relação com os círculos heterodoxos dos cristãos sem Igreja e a ideia de uma religião do segundo gênero já foram objeto de inúmeros estudos, de Matheron a Lagrée, passando por Kolakowski etc. 46 M. Walther, “Spinoza et les lumières radicales”.
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poder dos indivíduos em estado natural para o corpo político. O pressuposto é que a autoridade do Estado só pode ser
afirmada contra a liberdade dos indivíduos, e que esta liberdade pré-política, reconhecidamente fundada nos apetites
naturais, poria em risco não apenas os próprios indivíduos, mas também a existência coletiva. Então, à relatividade dos
valores sociais do suposto “estado de natureza” é contraposta a sobredeterminação normativa da hipóstase da
autoridade soberana, garantindo a unificação dos membros dispersos que desordenadamente afirmam seu direito
natural, destruindo-se reciprocamente. Caberia uma paráfrase, timbrada de anacronismo: o fantasma da multitudo
assombra os juristas e pensadores políticos da era clássica — se o homem é o lobo do homem, quando reunidos em
multidão eles são terríveis, sobretudo quando não temem.
Marshall Sahlins47 lembra que essa teoria politica do animal sem fé nem lei dividiu-se em duas concepções: de um lado,
os defensores da hierarquia e da autoridade monárquica, de outro os defensores da igualdade e do equilíbrio
republicano. Os primeiros apelavam por um sistema de dominação, exterior ao corpo social, capaz de frear o egoísmo
natural dos homens. Os segundos defendiam um sistema autorregulado no qual a partilha igualitária dos poderes e seu
livre exercício levaria à conciliação dos interesses particulares e do bem comum. Para afastar o espectro da violência, e da
lei do mais forte, um cortejo de palavras de ordem harmoniza os pressupostos elementares do liberalismo: não somos
animais, não coexistiremos segundo a lei da selva, nosso destino nos pertence48. Encontramos aí pressuposto metafísico de
descrição de uma realidade na qual uma anarquia originária dos elementos passaria a um estado ordenado com a ajuda
de uma interveção superior, ou pela anulação progressiva das diferenças internas – e esse pressuposto também vale para
a organização do universo físico, da Cidade, ou da saúde corporal. Sabemos que o modelo hobbesiano da transição do
estado de natureza para a sociedade política envolve uma consciência lúgubre sobre o que é o homem: os homens no
fundo são animais (e essa seria uma distinção entre os anglo-europeus e os povos colonizados que julgam, inversamente,
que os animais, no fundo, é que são humanos49). Mito original do pensamento capitalista50, metafísica da ordem que narra a
passagem do estado conflituoso no qual os elementos individuais tendem a se desenvolver por si próprios (anarquia),
para a formação de uma coletividade tornada estável pela ação coercitiva de um poder externo que mantém os
elementos em equilíbrio regulado – quando os próprios elementos nao se limitam uns aos outros (hierarquia/iguadade).
O contraponto de Spinoza vem do fato de ele não supor o homem fora da ordem natural para escapar à violência
originária e dispor de uma política51. E a partir de sua filosofia podemos pensar o que há em comum entre a vida coletiva
e a ordem geral da natureza: a forma da produção causal. A política é concebida, para além de todo contratualismo,
como sistema em devir de automanipulação, pelo qual uma pluralidade de indivíduos determinados – uma multidão –
se produz em uma relação circular, constituindo, a partir de si própria, uma potência soberana que interpreta bem ou
mal seus desejos e encontra ou não o sistema de autorregulação concreta que lhe permita manter o consenso de sujeitos.
A antropologia spinozana é uma crítica radical do humanismo mistificado que concede ao homem um lugar privilegiado
e lhe confere um poder especial, uma natureza que segue suas próprias leis. Trata-se de uma antropologia descentrada
(ou não antropomórfica) na qual a potência produtiva da Natureza inteira opera na constituição do individuo humano,
47 Marshall Sahlins, The western illusion of human nature, Prickly Paradigm Press, Chicago, 2008. 48 Yves Citton e Frederic Lordon, Spinoza et les sciences sociales, pp. 15-44. 49 Cf. Eduardo Viveiros de Castro, ‘Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena’, in A inconstância da alma selvagem, Cosacnaif, São Paulo, 2002, pp. 347 – 399. 50 Como argumentava C. B. McPherson, em seu célebre Individualismo possessivo. 51 Yves Citton e Frederic Lordon, loc. cit.
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que é parte desse mundo como produto e produtor simultaneamente52. Este é o sentido da fórmula o homem não é um
império dentro de um império – a ordem humana não é um enclave subtraído ao determinismo da Natureza.
A ideia do indivíduo como integração interna de partes e de forças que operam como causa única para produzir um efeito único leva à ideia de um indivíduo coletivo complexo, a multitudo, e, por outro lado, a ideia do indivíduo como diferenciação interna dos constituintes pela diferente intensidade da força dos componentes permite compreender que a multitudo é constituída por diferentes intensidades internas de forças assim como pela concordância ou pelo conflito entre elas.53
O individuo é determinado pela relação interna de seus componentes e pela relação que compõe, em seu meio exterior,
com as outras coisas, pois emerge em um encadeamento indefinido de causas. Relação de relação a individuação será
sempre pensada em todos os níveis (ao infinito, grande e pequeno) em termos de processos cinéticos (movimento e
repouso, velocidade e lentidão) e dinâmicos (sensibilidade ou poder de afetar e de ser afetado).
Spinoza ultrapassa a alternativa ordinária entre a união dos homens sob a moralidade, ou seu assujeitamento ao poder
absoluto – alternativa que cadencia o debate político e jurídico moderno. Spinoza reformula essa problemática
concedendo à potência da multidão (potentia multitudinis) o papel de protagonista da constituição do corpo político — e
não apenas no sentido quantitativo do grande número de cidadãos, mas no sentido qualitativo do comportamento
coletivo dos indivíduos em grande número. A democracia, assim, não é tanto um regime determinado, mas o processo
aberto e não garantido da constituição recíproca da multidão e da potência soberana do Estado. A ontologia spinozista
não é um constitucionalismo teológico e político que funda um constitucionalismo ético, jurídico e político sob a
dominação da forma da lei. Ela é um potencialismo ontológico e político; ela pensa a manifestação de uma potência
infinita sem nenhum fundamento além de si própria exprimindo-se na potência dos modos finitos. A democracia radical
que ela exprime não tem outro fundamento senão as relações transindividuais entre potências individuais54.
Eis porque Spinoza e os spinozistas recusam aquilo que é o cerne da moderação das Luzes: um normativismo que
transforma em absoluto, ainda transcendente, a capacidade dos homens de compreender seu poder de produzir o meio
de vida que eles produzem, bem como suas leis de organização. Para Spinoza, a normatividade – a obrigação – é objeto
de uma teoria do real, através do qual se elabora uma teoria da conduta humana. Para além do bem e mal – mas coerente
com uma vida ética. Mais uma vez se vê a des-paradoxização da oposição entre niilistas e idealismo-normativo: o
indivíduo guiado pela razão é incitado (e não obrigado) a dirigir sua própria vida – e desde o Emendatione isso é
afirmado. Enquanto pensarmos em termos de normatividade e obrigação, passaremos ao largo da perfeição que
procuramos. Vê-se também como Spinoza põe em perigo o conjunto do movimento da ética normativa (de Voltaire e
seus aliados) que tentam concorrer com a moral cristã – até Kant.
Spinoza descobre a autonomia. [...] Trata-se de uma autonomia naturalista, humanista e racionalista: progressivamente destacada da tradição de subordinação a Deus — ela não é autonomia sem Deus, mas autonomia em Deus, concebido como a Natureza, o ser infinito do qual somos cada uma de suas partes, ou modos. Nesse sentido é infinitamente mais rica e rigorosa do que a autonomia que será exaltada pelo Romantismo e pela Aufklärung. 55
Mas persiste ainda um problema: a refutação do finalismo não é a supressão da ideia de finalidade, presente ao menos em
três momentos decisivos da obra spinozana, quando o filósofo evoca o modelo de natureza humana para o qual aponta o
projeto ético. Como notou André Santos Campos:
52 Paola Cuzzani, “Une anthropologie de l’homme décentré”, p. 7-21. 53 M. Chauí, “Medo e esperança. Guerra e paz em Spinoza”. 54 Cf. A. Tosel, op. cit. 55 Bernard Rousset, La perspective finale de l’Éthique et le problème de la cohérence du spinozisme, p. 238.
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“o fim é sim elemento da maneira inadequada através da qual o homem tenta conhecer a causalidade eficiente de seu conatus, e por isso é apetite [...]. O finalismo não é senão uma maneira com que o homem tenta compreender como opera a sua causalidade, ele não age em vista de um fim, não deseja um fim, pelo contrário o fim é apenas o processo de imaginação pelo qual o homem expõe a sua própria causalidade. Logo, quando Spinoza define o fim no início da Parte IV da Ética, não lhe está a atribuir qualquer densidade ontológica, está sim a qualifica-lo como uma modalidade intelectiva do apetite, do conatus humano que, esse sim, tem densidade ontológica” 56.
Brevemente recorremos a um belo livro recente, de Frederico Manzini57, para documentar essa questão. A importância
da leitura de Manzini é justamente lembrar ao leitor o anacronismo da retomada, por Spinoza, do léxico antigo (para os
quadros cognitivos modernos, mas não ultrapassado) do summum bonum – eco das éticas formuladas nas bordas do
mediterrâneo, antes de Cristo. O autor assinala que Spinoza menciona Aristóteles, de quem possuía uma edição da Opera
Ominia, em onze ocorrências (KV, 3 vezes; Cogitata, 2 vezes, TTP, 5 vezes e Carta 56), e que só Descartes e Hobbes têm
mais citações. Em geral, as evocações são polêmicas ou desdenhosas e a referência ocorre quase sempre para sublinhar o
rigor insuficiente do método, as especulações ociosas, ou para atacar sua autoridade – como na Carta 56. E supõe que o
estagirita seria visado no Prefácio da Parte III, quando são mencionados os “homens superiores” (viri praestantissimi) que
trataram da problemática ética. E de uma ética universal, referida ao soberano bem como o fim de todas as ações humanas e
dos meios de obtê-lo. Enquanto Aristóteles considera ética a introdução à política, Spinoza subordina toda a filosofia à
questão do summum bonum – tema, aliás, em desuso no século XVII. Mas, em ambos, o Summum bonum não consiste no
Bem transcendente do platonismo – em Aristóteles a realidade do Bem se diz em vários sentidos, relativamente a cada
ente, como em Spinoza: o bem nada mais é do que um modus cogitandi, efeito de comparação (E, IV, prefácio e IV, 65,
dem.). A busca do Summum bonum significa perguntar quem o julga como tal, pois é de direito relativo a todos os homens,
mas pertence de direito ao sábio. Manzini afirma que Spinoza assimila o comum e o singular do sábio em virtude de um
princípio aristotélico, não revelado, que subentende seu sistema: o princípio de que é o homem de bem, aquele cuja
qualidade (moral) é mais alta – e que é medida de todas as coisas, pois os valores morais são determinados por ele e por
sua ação, ainda que elas não preexistam a ele. E a figura do spoudáios (Et. Nic., IX, 4, 1165 a 12 e III, 6 1113 a 19-33)
ressurgiria sob os traços do modelo de natureza humana que por três vezes é evocado no KV II, 4, no Emendatione, 13 e no
Prefácio da Parte IV da Ética. Nesta obra, como se sabe, Spinoza subordina o bem ao desejo, e a equivalência entre bem e
desejo, embora mantenha a concepção orética do desejo (o bem é isso ao que todas as coisas tendem), recebe uma resposta
similar, mas oposta à de Aristóteles – não nos esforçamos, não queremos, não apetecemos, por julgarmos bom, mas ao contrário
(E, III, 9, escólio)58. Essa é a subversão spinozana – da qual o filósofo é cônscio (E, IV, 18, escólio: assim procedi para, se for
possível, ganhar a atenção dos que julgam que este princípio... é o fundamento da impiedade...): definido em relação determinada
com o desejo, o conceito spinozano de bonum não comporta, a priori, nenhum elemento de moralidade ou dever. Além
disso é contrário à tendência moderna que majoritariamente só admite como moral o que é fundado no desinteresse da
vontade, e que opõe sensibilidade e virtude.
o eudemonismo spinozano não é um hedonismo qualquer (no qual se abismam os ignorantes), nem um ideal de apatia estoica (que procura combater as paixões), menos ainda um ascetismo cristão (para quem a salvação se conquista pela experiência da renúncia mais ou menos dolorosa a tudo o que pode aparecer como um prazer culpável), pois o homem livre do qual se desenha o retrato (no Emendatione e na Ética) não conhece mais o dilaceramento da alma, bem como a tentação dos instintos etc. A sabedoria não é sair
56 André Santos Campos, Jus sive Potentia, p. 242. 57 Frédéric Manzini, Spinoza: une lecture d’ Aristote. 58 Que é simetricamente inverso ao proposto, por exemplo, na Metafísica Λ, 7, 1072a 28-29 (com efeito é desejável o que parece bom ... mas nós desejamos mais uma coisa por ela parecer boa...) e Et. Nic., III, 5-6, 1113 a 9 ss., como lembra Manzini.
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do mundo, nem um puritanismo, nem rigorismo dolorista, mortificação – é sabedoria que se desenvolve a partir da vida comum59.
Por isso a moralidade funda a religião e não o inverso – ela não é expressão do dever prescrito por uma lei interior à
consciência e não repousa sobre mandamentos abstratos independentes da expansão do agente – ao contrário, ela se
apoia sobre a questão de saber qual vida levar para chegar ao soberano bem. O que é demonstrado na análise que o TTP faz
do dispositivo religioso como elemento de estabilização do processo de constituição de um corpo político singular — o
povo hebreu. Ali onde se vê um pacto cujo conteúdo seria uma fé universal, Spinoza trata de analisar a historicidade da
religião e da superstição e sua função unificadora do corpo disperso da multidão. Pois o que importa é a função prática
da fé universal e do credo mínimo que faz da teologia um instrumento de garantia da paz e da segurança. O TTP é uma
“semiótica das paixões do corpo social”60 – e demonstra como a constituição do corpo político depende de um sistema de
signos imaginativos cuja função é estabilizar a dinâmica afetiva da multidão. Delas se extrai um modelo de interpretação
da história na qual o profetismo e a ideia de destino são fundamentais. Fundada no finalismo e no antropocentrismo,
uma crença antiga entre os hebreus, anterior ao pacto, constitui o relato mítico de uma nação que se afirma, e se
reconhece, como indestrutível e eterna — crença que irá se expandir por toda parte, pela lição do profetismo: é mais
seguro fazer de Deus um Rei, e não do Rei um Deus. Dessa ficção, o povo hebreu extrai a imagem da vocação singular de
sua nação, como povo eleito. Spinoza mostra como esse confisco exemplar da imaginação coletiva dissimula sua
arbitrariedade pela conversão de uma contingência histórica em necessidade absoluta. E como a composição política da
multidão é institucionalizada através de um conjunto de superstições eficazes — sendo essa institucionalização o
remédio para os males da própria superstição. Mas também surpreende seus leitores, ao afirmar o sentido originalmente
democrático da aliança dos hebreus com a divindade como uma transferência da potência da multidão para o todo, e não
para um terceiro. Prova disso seria o fato de Moisés não fazer um sucessor, dando lugar a uma teocracia na qual se
institui um equilíbrio funcional de poderes — o que permite evitar o poder tirânico dos chefes, mas também a rebeldia
da multidão. Essa lógica de contrapoderes é mística, arcaica, mas exprime a lógica da instituição da liberdade.
A obra de Spinoza fornece elementos cruciais para a reflexão sobre as condutas humanas, por ser justamente consignada
como uma ética, isto é, uma teoria da potência de agir e pensar dos indivíduos – reconhecidamente passionais e
determinados pelo dinamismo das suas variações afetivas. A crítica ao livre-arbítrio e ao finalismo o afasta das
concepções que conferem ao sujeito a dimensão de universalidade própria à razão humana, como princípio sobre o qual
o conjunto do conhecimento, da moral e do direito poderá ser fundado. Se ser sujeito é dar razão das coisas e de si
mesmo, se afirmar como livre e responsável, tal experiência, para Spinoza, é derivada e não primeira, além de ser rara. E
depende justamente da compreensão do dinamismo afetivo que subjetiva, da dimensão relacional que é constitutiva da
experiência por envolver determinações causais que operam sobre todas as coisas. Spinoza é um autor que rompe com a
sequência do transcendentalismo no pensamento europeu; com a pressuposição de extranaturalidade do humano face ao
mundo natural; que efetua a crítica das teorias jusnaturalistas no momento em que são formuladas; identifica o direito
subjetivo e o objetivo (com sua concepção do direito como potência); propõe uma ideia de autonomia que guarda
distância da concepção posterior das vertentes hegemônicas das Luzes; e oferece a perspectiva de uma pensamento da
individuação como transidividuação coletiva. Para Peter Sloterdijk, assim como para outros autores61, Spinoza pode ser
59 F. Manzini, op. cit. p. 63. 60 L. Vinciguerra, Spinoza et le signe. 61 Antonio Negri, por exemplo.
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considerado “o descobridor filosófico da massa”62, por ter indagado como o autogoverno da multidão seria possível,
dado que a multidão é passional — e isto sem querer “alçar a multidão sob o ponto de vista da razão ou da maioridade
lógica”. Nem a pedagogia, nem as guilhotinas, poderiam suprimir a passionalidade do vulgo, e sua tendência natural ao
delírio da superstição — que não é exclusiva dos simples63. E, como lembra J. Israel, Spinoza foi o único pensador do
período a conseguir integrar uma filosofia moral, uma metafísica e uma epistemologia materialistas em um sistema
teórico libertário, tolerante, emancipador e igualitário, e em uma filosofia republicana. Apenas uma filosofia
sistematicamente monista poderia ser revolucionária, pois permite justificar uma crítica completa da autoridade, da
tradição, da monarquia, da aristocracia, da escravidão e da teologia.
62 Peter Sloterdijk, O desprezo das massas, p.52-55. 63 Esta cláusula interpretativa pode ser útil para retomar a problemática religiosa no mundo contemporâneo, como lembra Marilena Chauí, “por haver imaginado que a religião poderia ser suprimida imediatamente, a modernidade parece não ter como explicar a avalanche religiosa que inunda as sociedades contemporâneas”. Cf. “O retorno do Teológico-Político”.
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