Segundas Intenções Geyme Lechner Mannes Romance - VISIONVOX

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Segundas IntençõesGeyme Lechner Mannes

Romance

Copyright © 2014 by Geyme Lechner Mannes

Capa: © Serg ZastavkinDiagramação: M L M

Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo

da ficção;Não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem

opinião.

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Geyme Lechner MannesSegundas Intenções: Romance

© Geyme Lechner Mannes______________________

Brasil, 2014

Título Original: Segundas IntençõesCopyright © 2014 by Geyme Lechner Mannes

Todos os direitos reservados © Geyme Lechner Mannes

www.geyme.com

Não está permitida a reprodução total ou parcial deste livro,nem a transmissão de nenhuma forma ou por qualquer meio,

seja eletrônico, manual, por imagem, registro ou outrosmétodos sem a permissão prévia e por escrito dos títulos de

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Impresso no Brasil / Printed in Brazil______________________

Geyme Lechner Mannes é natural de Florianópolis, Brasil. EstudouFilosofia no exterior e Administração em Santa Catarina. Ganhouvários concursos literários nacionais e internacionais, assim como oapoio da Biblioteca Nacional para traduzir um dos seus romances aoalemão. Já morou na Argentina e Alemanha. Atualmente, vive no Brasile se dedica exclusivamente à literatura.Todas suas obras estão disponíveis no Amazon, na versão eBook.

Para conhecer mais sobre a autora, acesse:www.geyme.com

© Geyme Lechner Mannes

Para o homem mais nobre;Markus Lechner Mannes,

Com amor.

"Quem comete uma injustiça é sempre mais infeliz que o

injustiçado."(Platão)

PrólogoCapítulo 1Capítulo 2Capítulo 3Capítulo 4Capítulo 5Capítulo 6Capítulo 7Capítulo 8Capítulo 9Capítulo 10Capítulo 11Capítulo 12Capítulo 13EpílogoConheça as outras obras da autora

Prefácio – Segundas IntençõesDando uma espiada na trajetória humana sobre a terra, notamos que más e boas

intenções têm origem no convívio social na grande maioria dos casos. A própria história, apsicanálise e a literatura nos alimentam de boas pistas para entendermos um pouco asidiossincrasias humanas. Desde os mais torpes até os mais louváveis altruísmos.

Lendo Segundas Intenções deparamos com umas histórias cuja autora parece ter saídodo serviço social em lugares onde a carência material e afetiva é a porta de entrada (ou saída)para a formação de pessoas bem e mal intencionadas, sem ou com segundas intenções.

Geyme Lechner não é psicanalista, mas parece reunir em sua admirável habilidade de

construção literária o entendimento para produzir essa, que já pode ser considerada obra prima danossa literatura.

Se durante a leitura temos o ímpeto quase incontrolável de intervir na história, depois delê-la é impossível manter-nos socialmente impassíveis.

José Claudio Adão – Escritor mineiro.

Prólogo

Tomás observou o homem deformado trancar a porta da sala e fechar as cortinas.Em pânico, correu para o quarto, depois de atirar no chão do corredor a muda de roupa

que segurava nas mãos. Tentou pular a janela, mas o homem agarrou-lhe pelos cabelos e o trouxede volta ao interior antes que conseguisse saltar. Jogado no chão com brutalidade, tombou emcima do cotovelo e soltou um grito de dor.

Abominou as lágrimas que lhe vieram ao rosto nesse momento. Os soluços insistentese a tremedeira involuntária de seu corpo delatavam seu medo e impotência; reconheceu que erafraco demais para lutar contra o homem gigante.

Desconhecia a si mesmo. Apesar de sua estatura franzina e magreza, não costumavatemer a nada e a ninguém. Já havia levado uma surra de cinta do pai e suportado a dor e avergonha com bravura, sem derramar uma lágrima...

Na ocasião, pelo menos, meu pai teve razões de sobra para me surrar, mas o que essehomem tem contra mim?

O sorriso de malícia nos olhos e uma expressão ameaçadora por trás da facedeformada do inimigo conseguiram deixar a tremedeira de Tomás em um ritmo constante. Ohomem parecia divertir-se com a situação.

Assustado, Tomás empurrou as costas contra a parede, afastando-se até não podermais, em uma tentativa inútil de derrubá-la, como se o peso de seu corpo pudesse mover abarreira que o separava da liberdade. Em uma ação inconsciente, continuava empurrando-a comas costas atreladas a ela, vendo-se, como em um passe de mágica, desaparecer do lugar. Ohomem fechou a porta do quarto e abriu um sorriso com apenas metade da boca, desfrutandocom prazer todo o medo que o rapaz sentia. Ansioso, tirou a camiseta em um único puxão ebaixou as calças até os pés. Em seguida, livrou-se da roupa presa em seus tornozelos e as jogoupara um canto, sem desgrudar os olhos do menino.

Tomás arregalou os olhos, sem conseguir coordenar as ideias e o ritmo acelerado docoração.

– O que você está fazendo? – Perguntou com agonia ao ver o homem nu.– Nós vamos fazer uma brincadeira, um jogo infantil...O menino pulou por cima da cama e o empurrou, mas seu adversário o abateu em um

piscar de olhos, usando apenas uma das mãos. Tomás começou a gritar quando se deu conta doque estava para acontecer.

Entre socos e pontapés, que acertava aleatoriamente, sua roupa era arrancada do corpo.

Tomás

Curitiba, 1990-2004

Eu quero minha mãeSó para mim

1ª Intenção

Capítulo 1

Quando nasceu, Tomás foi a criança mais feia que uma maternidade podia ter visto.Sua mãe o teve em uma breve gestação de seis meses e meio, e os médicos acharam que ele nãosobreviveria. Pesando 900 gramas, fora uma pulguinha lançada ao mundo (ou um rato) comodiriam alguns mais tarde. Tubos e alimentação mecânica fizeram parte de seus primeiros cincomeses de vida.

Isolado em seu cubículo, Tomás sentia o dedinho da mãe segurando sua mão por dentroda incubadora. Vez por outra escutava a voz terna de sua progenitora e o som de algumaslágrimas caindo. Ele ainda não sabia onde estava ou quanto tempo ficaria naquele lugar, masdesejava desesperadamente estar próximo da mulher que cantava baixinho em seu ouvido.

Quando enfim saiu do hospital e foi para casa, chorou por sucessivos meses, durante odia e a noite, com tréguas apenas para mamar e dormir em períodos intercalados que variavam detrinta a quarenta minutos. A felicidade por estar próximo da mulher que cantarolava era tanta,que ele não conseguia conter as lágrimas e os berros. Por dias e noites a fio, sua mãe o carregounos braços. Cantava músicas que ele ainda não conhecia. Balançava-o de um lado ao outro,sorrindo e beijando-o entre canções, embalando-o suavemente em movimentos de ninar, até queele cansava de chorar e adormecia. Algumas vezes ela revezava segurar o bebê com o marido,mas quando isso acontecia, Tomás despertava do sono na mesma hora e chorava sem parar, entrelágrimas, soluços e saudades do perfume que exalava através do corpo de sua mãe. Somentequando o pai o devolvia aos braços de sua protetora, ele parava de lamentar. Se uma vizinha ouqualquer outro desconhecido o carregasse no colo, ele colocava a boca no mundo e só paravaquando o devolviam a quem lhe interessava. Quando a mãe percebeu que seu bebê ficavahistérico em outros colos, deixou de entregá-lo a outros braços, sentindo-se realmente especial,nutrindo um amor absoluto por aquela pequena criatura que se sentia bem somente com ela.

Embora mamasse nos seios de sua mãe com desespero, Tomás continuava miúdo. Namaioria das vezes, colocava as mãozinhas minúsculas e sugava com ainda mais força os seiosdelicados que o alimentavam até tirar sangue deles e deixá-los em carne viva. A mãe chorava dedor, mas continuava firme em sua missão até ver o filho saciado, sentindo que cumpria seudever. Mulheres da vizinhança ficavam horrorizadas ao ver a pequena criatura ser amamentada,tanto pela fome insaciável quanto pelo estado deplorável dos seios de Ana, e também, porconstatar que nada mudava na estatura franzina da criança. Diziam entre elas, aos cochichos, queo bebê parecia filho de rato.

No seu primeiro ano de vida, Tomás sequer engatinhava. Era ainda muito mole edependia totalmente do colo da mãe. Relutou em caminhar até completar três anos. Em seusprimeiros passos, caminhou com dificuldade. Fazendo gracinhas infantis, mostrava que aindanão estava preparado para a forma bípede. Inseguro, terminava agarrado às pernas da mãe.Mesmo quando já havia dominado a difícil arte de caminhar, sentia-se dependente do olharprotetor de sua mãe a todo instante, na cozinha, sentada à mesa com amigos, bordando no sofá,tomando chimarrão com o pai..., aonde ela fosse e onde estivesse, lá estava Tomás grudado emsuas pernas ou embaixo de seus pés. Se a mãe necessitava se afastar por instantes ele chorava, seo repreendia por alguma travessura, choros! Se ela fechava a porta para usar o banheiro, gritos,lágrimas e pontapés!

Ao anoitecer, Tomás não queria ir para a cama e pedia que sua mãe lhe contasse umahistória ou segurasse sua mão até conseguir dormir. Reclamava de dor no estômago, dor decabeça, medo do escuro, medo de monstros espaciais... Acordava no meio da noite gritando;perdia o sono, e consecutivamente, chamava pela mãe, suplicando que dormisse com ele.

Quando ingressou no colégio, aos cinco anos, foi uma verdadeira luta por parte de Anaconvencê-lo que estudar era algo realmente necessário. No primeiro dia de aula, depois de haverchorado a noite anterior por mais de quatros horas consecutivas, Tomás se plantou na porta deentrada do colégio, agarrando-se com as duas mãos na grade do portão. Alegou que iria morrerse a mãe não o levasse de volta para casa. A bonita mochila, o penal e os cadernos encapadoscom carros vermelhos superpotentes, o empadão de palmito na lancheira e o uniforme novinhoem folha não foram suficientes para entusiasmá-lo com os estudos. Era terrível para Tomásafastar-se de sua mãe, ficar com gente desconhecida durante horas ininterruptas, ter que escutar eaprender coisas das quais não tinha o mínimo interesse.

Frente ao escândalo que fizera no portão da escola na primeira semana de aula, a mãenão teve opções e o levou de volta para casa. Quando Tomás agiu da mesma forma (convicto deque seu plano dava certo) uma semana depois, Ana o sacudiu pelos braços na frente de outrascrianças e duas professoras que recebiam os alunos no portão, ameaçando-o:

– Se você não entrar agora, vou chamar a polícia para trazer a injeção!Tomás entrou pelo portão do colégio na mesma hora, apavorado com a ideia de policiais

segurando agulhas gigantes. Passou feito um furacão pelas tias paradas no portão, sem despedir-se da mãe, sentindo naquele momento que a odiava.

Nas semanas seguintes, tentou fugir do colégio. Para as professoras conseguirem segurara fera, tiveram que amarrá-lo na cadeira. Tomás não fez amigos, não aprendeu o abecedário enem mesmo as vogais como as outras crianças. Os meninos riam dele e as meninas o olhavam delonge, cochichando nos ouvidos umas das outras, como se ele fosse um alienígena dezcentímetros menor que as crianças de sua idade.

Pouco depois de ter completado cinco anos, quando os seios de Ana estavam flácidos,

ela se negou a continuar amamentando Tomás e explicou-lhe as razões. Tomás ficou furioso;sentiu-se rejeitado e foi atacado por uma crise de incontinência urinaria que deixou os lençóis dacama molhados no decorrer das semanas seguintes.

Em alguns períodos, as olheiras de Ana formavam manchas escuras por debaixo dosolhos, mas ela sorria e dissimulava maquiando-se, aderindo a rotina de jogar agua fria no rostovárias vezes durante o dia para espantar o cansaço.

Aos seis anos, Tomás escutou uma briga dos pais que o perturbou. Enquanto a mãesoltava um choro abafado, o pai falava aos gritos. Algumas lembranças daquele estranhomomento ficariam para sempre em sua memória. Escutou o pai reclamar sobre ele, dizendo queera mimado e que seria um bichinha se continuasse sendo tão paparicado.

Bichinha! O que é isso? Pensou, curioso. Pelo tom na voz do pai, boa coisa não deveser! Já havia escutado essa palavra antes no colégio. Cada vez que algum menino a pronunciavaera em tom ofensivo e o resultado gerava uma briga de punhos, empurrões e pontapés.

Concentrou-se na briga dos pais; a mãe era boa demais para discutir, por isso choravaquase em silêncio. Um pensamento terrível passou por sua cabeça: “E se ela acreditasse no queseu pai dizia e deixasse de gostar dele? E se pensasse que ele era um bichinha?” Seu pai era umaameaça ao seu reinado e não havia lugar para dois reis.

Ele resolveu interromper a discussão.

– Mamãe, tô com fome!Ana enxugou com presteza as lágrimas para que o filho não as visse.– Já vou, querido! – Avisou, levantando-se em seguida, já pronta para atendê-lo.Antônio a interpelou.– Está vendo como ele está mal acostumado? Você estraga esse menino! Aprenda a

impor algumas regras e deixe que ele espere até a hora da refeição, ora bolas!– Ele é apenas uma criança. Pare com isso! – Ela o retrucou em voz baixa para que o

filho não entendesse que discutiam por causa dele.Tomás começou a chorar no mesmo instante, mostrando com vivacidade sua

dependência infantil.– Tenho fome! Tenho fome! Tenho fome! – Gritou várias vezes entre desespero e

lágrimas que não caiam, batendo os pés no chão.Seu pai o pegou pelo braço e o ergueu, arrastando-o para fora.– Espere no seu quarto que estou conversando com a mamãe!A pequena criança, raquítica como um camundongo, mordeu o dedo do pai com força e

permaneceu agarrado a ele, triturando-o lentamente. Antônio gritou de dor e tentou arrancar apequenina boca cheia de dentes cravada em seu dedo, empurrando o filho pela cabeça. Tomáscontinuou a morder ainda mais forte, com a mandíbula travada no polegar do pai. Ana interferiu,tentando tirá-lo à força e aos berros, sem resultado. Antônio controlou o instinto de jogá-locontra a parede. Duas vizinhas entraram pela porta, afoitas. As faces empalideceram quandonotaram o desespero dos pais e um fio de sangue escorrendo pela boca de Tomás. As vizinhastambém foram para cima; todos puxando o menino com cuidado, pois do jeito que era magrelo,poderiam arrancar-lhe um braço com facilidade. A gritaria continuou. Tomás estava decidido adar uma lição que seu pai não esqueceria. Desesperado, Antônio deu-lhe um tapa no rosto com aoutra mão. Sem nenhuma resposta, o pequeno continuou a comprimir lhe o dedo com a força desua queixada. As mulheres gritaram e o puxaram à base de sacudidas frenéticas, abaixo de gritos,contudo, quanto mais puxavam, mais o dedo ia para lá e para cá, serrado pouco a pouco enquantoo sangue lhe marcava os dentes de vermelho. Tomás teve a certeza de que sua mãe o olhava comadmiração, exaltada pela força que demonstrava. Ela o veneraria depois daquilo com orgulho eteria a certeza de que ele sozinho, o pequeno Tomás, era capaz de cuidar dela e defendê-la.

Tomás não esperava a reação que tivera ao sentir o gosto de sangue em sua boca.Engasgou-se e precisou cuspir. Necessitava lavar a boca com urgência e liquidar o sabor de ferroque ficou em sua língua e embrulhou seu estômago. Antônio estava pálido, o dedo assinaladocom marcas de dentes como se um animal o tivesse mordido. Uma pitada de sangue escondia aponta do indicador, edemaciada e enegrecida.

Quando conseguiram separá-los, Ana que se sentia impotente frente à situação, agarrouTomás pelo braço e o sacudiu, antes de dar-lhe vários tapas que o deixaram com as nádegasquentes. Perdida, não soube o que fazer primeiro, mas decidiu tirar o filho dali e aplicar-lhe umcastigo. Com as mãos trêmulas, gritou:

– Você é um menino muito malvado! Nunca mais faça isso, escutou? Onde diabos vocêestava com a cabeça? Você vai ficar no quarto até segunda ordem!

Depois de trancar Tomás no quarto, Ana correu de volta para socorrer o marido. Asvizinhas estavam lá, sem saber o que fazer frente à dor do homem e o estado lastimável do dedomordido. Antônio estava astênico, prostrado no chão do quarto, derrubado pela vergonha.Naquele momento, sua dor física era menor que seu descontentamento moral e a aflição acercado filho.

Tomás não entendeu o desespero da mãe. Estava cuidando dela, mostrando seu valor ecoragem. Em sua concepção, merecia pelo menos um agradecimento.

Antônio foi levado imediatamente para o hospital, socorrido pelo marido de umavizinha. Ana notou nos rostos daquelas mulheres um ar de reprovação. Uma vez mais aquestionavam através de um silêncio censurador. Quanto tempo ela suportará as malcriaçõesdesse pirralho? Quanto tempo seu casamento suportará inabalável, antes de começar adesabar? Embaraço e raiva a dominavam: Por que não cuidam das próprias vidas?

Quando Antônio regressou do hospital, Ana prosseguiu com os cuidados que o maridonecessitava. Dera-lhe os remédios receitados pelo médico, ajudara-o a tomar banho, levava acomida na cama, evitava o assunto do dedo mordido e não tocava no nome do filho. Tudo nointuito de deixá-lo mais confortável, ou nesse caso propriamente dito, menos infeliz.

Tanto cuidado em vão, algo estava definitivamente errado. No vigésimo dia, emborasem nenhuma dor, o dedo estava mais inchado, mais escuro, com um odor apodrecido.

Antônio precisou voltar ao hospital e consultar outra vez, mas o que seria uma breveconsulta resultou em uma cirurgia e mais três dias de internação. Quando voltou para casa,estava abatido. Exausto. Derrotado. Usava uma nova tipoia que segurava a mão onde havia umcurativo. Tivera um dedo esmagado por dentes, e o mesmo dedo amputado em uma sala decirurgia.

Como olharia nos olhos do filho de novo?Um clima pesado de velório dominou o lar. Tomás entrou no jogo do silêncio. O pai não

o olhava e sua mãe se negou a brincar de carrinho com ele. Ninguém falava com ninguém. Elesabia que era o culpado e se perguntava até quando suportaria a indiferença da mãe.

Sem poder evitar, evacuou na cama durante dias consecutivos. Antônio e Ana passaram a brigar constantemente, porém, Tomás tentava não ouvir e

não se envolver. Quando discutiam, seu nome era mencionado categoricamente. Buscavacontrolar a respiração e a raiva. Sabia que as discussões acabavam em trinta ou quarenta minutos,e após todo barulho que faziam, semanas seguidas de silêncio mórbido chegariam.

A relação de Tomás e o pai era soturna, ausente de sentimentos fortes; era Ana quemtentava aquecê-la de alguma forma, contando histórias do filho ao marido e minutas heroicas dopai ao filho. O pai era mais propenso a escutar; às vezes sorria com que ouvia, outras vezeschamava o filho e lhe ensinava truques com cartas, afagava-lhe os cabelos, colocava-o paradormir. Tomás não retribuía o carinho, simplesmente aceitava as carícias sem ter algo de afetopara devolver, desconfiado de cada movimento dele, sentindo ciúmes cada vez que o presenciavano quarto a sós com sua mãe ou quando ele a beijava na boca. Sentia um ligeiro mal-estarquando os pais, ao invés de brigarem, riam de qualquer coisa juntos. Um frio no estômago subia-lhe até a garganta e provava o gosto amargo da própria bílis. Seu coração disparava acelerado;suor frio brotava e corria por suas têmporas, e não raro ao testemunhar essas sensações ao ver ospais juntos e felizes, acreditava que iria morrer.

Em outros momentos, quando este tipo de ciúme o dominava, acercava-se de sua mãecom algum tipo de escândalo; em outros, deitava-se no sofá verde da sala e permaneciaprostrado, como se estive enfermo, até ser notado. Com uma expressão apática na face, Tomásalegava que não se sentia bem; inventava dores e desmaios. Desfrutava plenamente quando amãe corria para socorrê-lo e lhe colocava o termômetro embaixo dos braços com evidentedesespero e preocupação. Em seguida, preparava-lhe um chá, que embora tivesse um gostohorrível, tomava-o com prazer porque era feito especialmente para ele. O deleite era total quando

a via correr até o mercado e voltar com mimos: iogurte, Coca-Cola, chocolate e verduras para asopa especial de “doentes”. Nessas ocasiões não ia para a escola e assistia desenhos quase o diainteiro frente à televisão. Exigia água mesmo sem ter sede, pedia a coberta mesmo sem ter frio echamava a mãe para que trocasse o canal mesmo quando gostava do que estava vendo.

Entre o prazer dos carinhos e a preocupação dela, percebia com desagrado os olhares dedesconfiança de seu pai fuzilando-o com discrição, como se dissesse:

Você, não me engana, pirralho! Conheço o seu joguinho, logo contarei tudo a sua mãe.Logo lhe darei um chute na bunda que o farei voar...

Estes pensamentos, causados pelos olhares enigmáticos do pai, faziam a sudorese brotaratravés de seus poros. No mesmo instante em que o medo de perder o amor da mãe cruzava porseus pensamentos, murmurava algo desconexo, gemendo por uma febre que o consumia pordentro, gerando um ciclo de falsas doenças. Fazia questão de contar quantas vezes, depois deamparado com iguarias deliciosas, sua mãe o olhava desde a cozinha, preocupada, enquanto aomesmo tempo preparava geleias que vendia na região. Depois, olhava furtivamente para o paienquanto ele se aprontava para o trabalho (apenas com o rabo do olho), sentindo sua sudoreseaumentar.

Ainda não avaliava e não podia julgar o que sentia. Era uma criança e no alto de suarazão (ou da falta dela), não costumava discutir consigo mesmo sobre suas atitudes esentimentos. Queria a mãe somente para si e percebia que o pai atrapalhava sua vida.

Em uma noite, depois de o pai sentar à mesa em seu lugar de costume, sua cadeira separtiu em vários pedaços e ele estatelou as costas no chão. Antônio recusou a comida e saiu damesa mancando até chegar ao quarto. Gritava de dor, excomungando o desgraçado que fabricaraum móvel tão fajuto, sem saber que Tomás soltou os parafusos da cadeira. No outro lado damesa, enquanto o pai se afastava e a mãe corria na tentativa de ajudá-lo, ele brincavadisfarçadamente com um dinossauro de borracha, controlando a vontade de rir.

Pelo menos uma vez por mês, Tomás soltava a tampa do saleiro e todo o sal caía inteirono prato do pai, que costumava adicionar sal e pimenta à parte na comida. Ana ria, dizendo serbrincadeira de criança, e ralhava com o filho docemente, enquanto Antônio saía furioso da mesa.Várias vezes antes de ir trabalhar, Antônio encontrava os cadarços dos sapatos atados um nooutro com nós. Levava pelo menos dez minutos para desfazê-los; quando não tinha tempo,procurava outro par na sapateira e enfurecia-se ao ver os demais sapatos atados da mesma forma.Gritava com Ana e pedia ajuda, mas comumente terminava saindo atrasado e em jejum. Tomásescutava os pais discutindo desde seu quarto, fingindo indiferença. Desfrutava uma mescla deprazer e medo, perguntando-se até quando a mãe suportaria levar a culpa pelas travessuras dele.

Cada vez que recebiam visitas de outras famílias da cercania, alguma criança saíamachucada. Tomás dizia ter a força do super-homem e tratava de mostrar os superpoderessocando a boca de uma criança ou empurrando-a pela janela. O neto de uma das vizinhas maispróximas teve um dente de lente arrancado à força pelas mãos de Tomás. O menino saiu de ondebrincavam aos berros, com o dente pendurado na boca cheia de sangue. Enquanto davagargalhadas no quarto, escutava sua mãe defendendo-o contra a avó do menino quando a mesmaalegou que ele era anormal e precisava de tratamento psiquiátrico. Eles nunca mais voltaram e amulher tratou de difamar a família de Ana pelo bairro inteiro.

Na escola, era o pior dos alunos. Tinha imensa dificuldade para ler e escrever; os amigoslhe chamavam de burro. Voltava quase todos os dias para casa com alguma parte do corposangrando porque embora pequenino, negava-se a levar desaforo para casa e respondia osinsultos com pontapés e cabeçadas.

Em uma das tantas circunstâncias que se repetiram por causa do mau comportamento deTomás, a diretora chamou Ana para uma reunião. No gabinete estava também a professora quedava aulas para ele. A diretora, uma mulher de meia idade que mesclava uma expressãoautoritária e ao mesmo tempo benevolente por baixo dos óculos quadrados de grau, começou aconversa reclamando sobre a agressividade de Tomás. Asseverou em seguida que ele possuíadificuldade em aprender coisas básicas e contou sobre a péssima relação social que levava comoutras crianças. Ana ficou perplexa. Não tanto pela forma como seu filho se comportava fora decasa, mas principalmente pelo tom como falavam com ela. Segundo seu entendimento, as duaseducadoras não se preocupavam pelo fato de ela ser a mãe da criança em questão, tentandopoupá-la das informações. Era como se devesse apenas reconhecer que seu filho era umselvagem, e ela uma incompetente. Segurando o desejo de estrangular a educadora com aspróprias mãos, escutou resignadamente as duas mulheres relatarem o abominávelcomportamento de Tomás. A professora alegou de forma acusadora com olhares e palavras, queTomás soltava “puns” explosivos em sala de aula causando asco, risos e gargalhadas entre ascrianças da turma; e se não bastasse toda sua falta de educação, ainda mostrava o pênis para asmeninas e pedia que elas o chupassem. Tomás fazia desenhos obscenos na lousa antes da aulacomeçar e negava a ação em seguida, mesmo tendo os demais coleguinhas como testemunha.Ana colocou a mão na frente da boca, barbarizada frente às declarações da professora. Eraimpossível que Tomás – tão delicado e sensível – peidasse dessa forma vulgar, e muito menosque mandasse as meninas o chuparem. Chupar o que, meu Deus do céu? Ele é uma criança! Ananegou veemente, jurando em nome de todos os santos, que Tomás não tinha como aprender taisleviandades. De repente, sentiu-se coagida e furiosa. Com um dedo que passeou entre o rosto dadiretora escolar e a professora, afirmou que seu filho estava sendo perseguido e ameaçoureclamar no Ministério da educação contra o colégio. Negou-se a escutar qualquer palavra mais esaiu batendo o pé, com a bolsa embaixo do braço, deixando diretora e professora absorvidas peloimpacto dessa reação inesperada.

Ana escondeu do marido todas as reclamações que escutou sobre Tomás. Tudo que dissea respeito do filho foi: Ele está fantástico no colégio; dizem que é um verdadeiro gênio!

Tomás se comportava melhor nas semanas seguintes e a mãe terminava por esquecer osepisódios, até se repetirem outros, diferentes no tempo e espaço, porém, iguais na malcriação erebeldia.

À noite, quando se sentia solitário, Tomás batia no quarto dos pais; reclamava sobre omedo do escuro e mentia, referindo ter escutado barulhos. O pai dizia que ele deveria seacostumar, mas a mãe se apiedava com o coração partido, acomodando-o na cama entre eles.Antônio virava para o lado resmungando e Tomás ficava abraçado com sua mãe, fazendo oimpossível para não encostar-se ao pai.

Mesmo com as brigas no casamento e a dificuldade para criar Tomás, Ana mantinha o

sorriso no rosto e uma expressão implacável de felicidade plena. Limpava a casa, cuidava dojardim, da comida, do marido e do filho, mantendo tudo impecável e ordenado com seu grandesorriso. Vendia todos os tipos de geleia caseira que ela mesma fazia com os mais variados tiposde frutas macias. Sua casa era pequena, mas a cozinha ampla. Possuía uma mesa de madeira comoito lugares no canto direito, na frente do sofá que fora de sua mãe, uma geladeira adicional e umfogão de seis bocas com um forno enorme. Em cima da pia deixava as panelas e tachos queusava com frequência, penduradas na parede. As paredes da cozinha não estavam pintadas epermaneciam apenas na cor do cimento; contudo, pretendiam colocar azulejos na parede da pia e

pintar o resto de branco. Quando preparava as compotas de geleia, Ana ordenava a cozinha comantecedência, deixando-a limpa e perfumada com essência de eucalipto. Guardava a louçadesnecessária e deixava sobre a mesa somente o material que usaria. Lavava outra vez ascaldeiras, os tachos, as colheres e dava início ao trabalho, medindo precisamente a quantidade deaçúcar e água para cada fruta. Separava frutas maduras e macias, sempre de acordo com aestação devido à qualidade e preço; então, cortava-as em pedaços pequenos com todo cuidado aodescascá-las para não desperdiçar parte da fruta. Cascas de frutas cresciam em pequenasmontanhas na mesa: mangas, groselhas, framboesas, morangos e goiaba. Duas caldeirascozinhavam as frutas lançando aromas de muitas essências adocicadas e deliciosas no ar.Constantemente, fragrâncias de açúcar queimado, laranja caramelizada, limão e abacaxiperfumavam o ambiente. Dependendo da estação: carambola, fruta do conde, jiló, caqui café,pitanga, maracujá e amora. Tomás adorava especialmente o caju, pois podia comer a castanhadepois de assada no forno. Sentava-se em sua cadeira para observar a mãe mexer os tachos naspanelas com todo cuidado para não deixar a geleia passar do ponto. Imaginava gente chegando esaindo, lambuzando bocas e rostos com geleia de abóbora e coco, sua preferida, comendo docede figo com as mãos. Pessoas falando alto, cantarolando, enfeitiçadas pela geleia de goiaba,banana prata ou mamão, feitas pelas mãos de sua mãe. Ficaria orgulhoso observando desde umcanto da casa toda aquela gente enlouquecida, enquanto era mencionado pelos admiradores delacomo: o filho da mulher das geleias, as melhores do mundo!

A mãe, em uma agilidade fantástica, acabava o serviço com as frutas, envolvia ascompotas de vidro em um pano frio e úmido para que não se rompessem antes de despejar ageleia, vedava as mesmas com tampas limpas, enfeitava, etiquetava ao mesmo tempo em querecolhia pratos e panelas e lavava tudo com sabão de gordura.

Antônio era operador de máquinas em uma olaria. Costumava chegar todos os dias no

trabalho com ótimo humor, mas o deixava na empresa antes de retornar a casa. Contava comaltivez aos amigos e vizinhos sobre seu serviço dizendo que o mesmo exigia muitaresponsabilidade e atenção, que pessoas o procuravam a todo o momento atrás de conselhos eauxílio operacional. Era um dos funcionários mais antigos da fábrica, outro motivo de seusorgulhos. Sentia imensa satisfação em trabalhar, porém, era sua vida pessoal que apresentavaproblemas.

Amava a esposa mais que tudo e estava seguro de seus sentimentos. Seu problema maiorera o filho. Sabia que deveria amar a pequena criatura de maneira incondicional, mas Tomás eraproblemático; sequer o olhava, e não demonstrava qualquer interesse em estar com ele. Erampraticamente estranhos e não encontrava a forma de romper esse silêncio. Sentia quasecotidianamente vontade de dar uns tabefes no filho pelas malcriações e criancices, mas não tinhacoragem. Apesar da vontade, achava que surras apenas piorariam a péssima relação que já existiaentre eles. Queria mostrar autoridade, ensinar-lhe respeito, deixá-lo de castigo..., mas Ana seinterpunha entre eles, defendendo Tomás, paparicando-o. Buscava no inconsciente uma forma decorrigir o filho, mas quando tentava uma aproximação, Tomás se afastava. Quando o convidavapara jogar bola, Tomás negava. Quando o abraçava, Tomás escorria liso até conseguir se livrarde seus braços. Além do fato de sentir a hostilidade de Tomás contra ele, existia o inconvenientedo filho ficar entre ele e a esposa, formando um obstáculo. Os choros, a dependência absurda, ociúme, as intrigas que Tomás criava, faziam-no perder a vontade de voltar para casa. E se tudoisso não fosse o bastante, a pirraça agressiva de Tomás havia lhe custado um dedo, deixando umdesagradável souvenir em sua mão para lembrá-lo cotidianamente os problemas que tinham um

com outro. Quando podia, trabalhava extra para ficar mais tempo longe. Os finais de semana quedeveriam ser de descanso viravam um inferno para ele. Fazia vista grossa em certas malcriaçõesde Tomás para não comprar uma nova briga com Ana e sentir ainda mais o desprezo do filho,mas a situação era insustentável.

Estava disposto a dar um passo atrás. Se conseguisse melhorar a relação com o filho,automaticamente, tudo mudaria para melhor; Tomás ficaria feliz e ele e a esposa deixariam debrigar. Na mesma semana que ponderava sobre sua vida com uma mordaz aflição, um colega detrabalho lhe ofereceu um filhote de gato. Antônio achou que um animal deixaria o filho menoscondicionado à mãe e o levou para casa.

Sem dúvida alguma, Tomás gostou do bichinho. Dava-lhe de comer, deixava que

dormisse em sua cama, acariciava lhe os pelos. O animal era formidável, brincava com tudo quebalançasse um pouquinho, rolava no chão para se coçar, rodeava as pernas dos donos à procurade mimos, dava saltos inesperados pela casa como se fizesse um pequeno espetáculo. Às vezes"falava" com seu miado longo e delicado quando queria brincar, e ronronava de forma elegantequando estava tranquilo ou queria atenção. Tomás decidiu chamá-lo de "Macaco". Os paisficaram surpresos.

Meu filho, isso é estranho! Você não pode dar para um gato o nome de outro animal. Opai pareceu contrariado, mas Tomás respondeu dando de ombros: Por quê? Por acaso vouconfundi-lo? E sem se importar, continuou chamando o gato de Macaco.

Tomás brincava com Macaco no chão da cozinha e Ana descascava frutas. Tirava assementes delas ao mesmo tempo em que caminhava da mesa ao fogão, mexendo o tacho nacaldeira, selecionando goiabas e abrindo vidros. Estava entretida no preparo das geleias quandoescutou o gato miar tão alto que seu coração quase saiu pela boca. Com o susto, deixou a colherde pau cair para fora da caldeira, fazendo a geleia fervente respingar em seu braço e queimá-la.No mesmo instante viu que Tomás tentava cortar o rabo do gato com uma tesoura de costura.

Tomás recebeu puxões de orelha e ganhou a penalidade torturadora do silêncio da mãepor dias seguidos. Foi castigado e sequer entendeu o motivo.

A partir do castigo silencioso imposto por ela, cresceu-lhe uma estranha antipatia pelofelino. Tomás não olhava mais para o gato sem desprezo e raiva; e o sentimento se agravou aindamais com o passar dos dias. Teve certeza que o animal fora culpado por gritar e assustar sua mãe,por isso ela queimou o braço e o castigou com seu silêncio.

Se Macaco tivesse ficado com a boca fechada, poderia ter-lhe cortado a ponta do rabo,pois ouvira dizer na escola que os rabos dos gatos uma vez amputados, voltavam a crescer.

Ana despertou antes de todos para preparar o café. Ao sair do quarto, deparou-se com

um cheiro horrivelmente estranho. O odor de repente pareceu pestear a casa inteira. Eranauseante a essência fétida que vinha da cozinha. Percebeu a fumaça enegrecida que saiu dedentro da estufa do fogão sem entender o porquê da alta temperatura. Quando abriu o forno, seusolhos inflamaram de tal forma que quase não pôde enxergar. Teve que trancar a respiração. Ofedor que invadiu suas narinas embrulhou seu estômago. Esfregou os olhos com as mãos eapartou a fumaça que saía do forno com uma toalha. Estremeceu quando conseguiu enxergarfinalmente. Seus olhos lacrimejaram, suas têmporas latejaram e seu coração palpitou tão forteque todo o corpo vibrou em um arrepio. Gritou tão alto ao ver Macaco dentro do forno quesequer reconheceu a própria voz. Jamais havia gritado assim antes. O gato estava assado.

Antônio saiu da cama em um pulo e correu até a cozinha. Protegeu os olhos e escondeu

o nariz na gola do pijama, sem entender o que estava acontecendo. Ficou paralisado quando viuMacaco arrebentado no forno. Observou com angústia restos das vísceras do animal expostas eos olhos fora da órbita grudadas no vidro da estufa.

O casal fez um estardalhaço. Ana chorava enquanto Antônio puxava os cabelos com asduas mãos, evocando todos os demônios. Mesmo com o escândalo que se armou na cozinha e ocheiro de queimado que se alastrou pela casa inteira, Tomás não apareceu. Os pais tiveram que irbuscá-lo no quarto. O menino pareceu surpreso quando os viu e choramingou quando soube oque aconteceu com o gato. Esperaram uma confissão espontânea do moleque, mas ele negou,oferecendo somente lágrimas e súplicas, implorando para que acreditassem em sua inocência eno amor genuíno que sentia pelo animal. Foi a primeira vez que Ana se questionou acerca docaráter do filho. Ele teve a irresponsabilidade de colocar em risco a vida de todos acendendo oforno de madrugada? A frieza de segurar o pobre gato pelos braços e metê-lo dentro do forno,riscar o palito de fósforo e assistir o animal derreter? Tomás seria frio ao ponto de assistirMacaco queimar, apagar o fogo ao vê-lo morto e voltar a dormir? Um turbilhão de pensamentosdesgovernados cruzou por seu cérebro, sem saber como isentar o filho da culpa. Em todas ashipóteses que levantava, seu veredicto era imparcial: culpado de maldade.

O pai estava branco como cera. Suas mãos tremiam e sua voz saía aos gritos, buscando aconfissão do filho e os motivos que o levaram a fazer aquilo. Antônio saiu do quarto de Tomás evoltou dez segundos depois, com a cinta de couro em mãos. Os olhos do garoto buscaram pelamãe com desespero. O terror se apoderou de seu corpo quando a viu sair pela porta deixando-o amercê da fúria do pai. Ele vai me matar! Teve a certeza. Enquanto Antônio descia a cinta comforça pelo ar, acertando lombo e pernas, vergões apareciam-lhe de imediato.

Em absoluto silêncio, apenas saltando cada vez que a cinta o atingia, Tomás nãoderramou uma lágrima, suportando a dor bravamente. Em sua reflexão, só lembrava os olhostristes da mãe, decepcionada com ele.

Capítulo 2 Tomás estava com doze anos, continuava com problemas na escola e dificuldades na

aprendizagem. Em relação aos estudos, seguia cada vez mais atrasado quando comparado aosgarotos de sua idade. Mal podia escrever seu nome e necessitava mais de dois minutos para leruma pequena frase. Odiava o colégio, as professoras, os outros meninos e estar fora de casa.

Voltava da escola chutando cachorros pela rua e provocando as pessoas que cruzavamcom ele. Arrastava a mochila pelo chão, derrubando lixeiras e cuspindo para frente, isolado emseu mundo. Quando chegou a casa, fechou o portão com um pontapé e largou a mochila imundana porta de entrada, ao lado do lixo. Abriu a geladeira branca da cozinha e tornou a fechá-la,deixando as digitais dos dedos engordurados na porta. Deu uma bocada no purê de batatas e ummordisco no strudel de maçã que sobrou do final de semana. Pegou uma porção de pinhão, abriuo primeiro com os dentes e o engoliu quase inteiro quando viu sua mãe. Ela vinha do quarto e oolhou com indiferença quando passou por ele. Nem bem se sentou no sofá começou a chorar.Eles devem ter brigado novamente! Cogitou, irritado pela própria raiva que sentia quando a viachorar por um homem.

Arrasada, Ana enxugou as lágrimas procurando o apoio do filho. Olhou-o com carinho,mas em seguida, o pranto recomeçou.

Tomás sentou ao lado dela, entristecido.– Vocês discutiram de novo, posso apostar!– Não querido, desta vez não... – Mais lágrimas lhe vieram a face e ela quase não pôde

continuar. – Seu... Seu pai... Ele foi embora! – conseguiu dizer ao final, explodindo em lágrimase soluços.

Os olhos do rapaz ficaram subitamente iluminados e ele teve que se controlar para nãosoltar uma gargalhada de felicidade.

Após o decorrer de alguns meses, Tomás adquiriu a certeza de que o pai não voltaria a

importuná-los. Sua mãe andava abatida; emagrecera tanto que se via a omoplata saltitar pelomúsculo retesado. Recobrava o sorriso pouco a pouco, mas algo ainda estava apagado. Às vezesela desaparecia durante o dia inteiro e só voltava para casa quando escurecia. Em certas ocasiões,chorava incessantemente e as lágrimas chegavam a durar por três dias ininterruptos.

Em busca da luz no sorriso da mãe e em uma tentativa desesperada para que ela nãodesaparecesse mais de casa, Tomás se empenhou em um papel de filho perfeito. Fazia os deveresde casa sozinho, treinara a leitura e a escrita, ajudava nas atividades domésticas, escovava oslongos cabelos dela, fazia as compras na quitanda, vendia picolé e entregava jornal demadrugada para ajudar no orçamento.

Em uma noite de tempestade macabra a chuva caía incessante, como pregos

inexoráveis que despencam do céu. Relâmpagos dançavam uma estranha música, abalando ostímpanos e os nervos de quem os escutavam. O vento balançava as árvores no lado de fora dajanela para todos os lados, despindo-as de folhas. O vendaval incessante lambia o vidro da janelano quarto de Tomás, fazendo a janela e ele tremer de calafrios. Tomás achou que o céu fossecair. Do seu quarto, pôde escutar garrafas vazias descendo ladeira abaixo, o telhado foi levantadoe algumas casas, ademais da sua, perderam telhas. Entre sopros e uivos aterrorizantes, o vendaval

fez algazarra no bairro. Em certo momento, quanto escutou outra telha ser levantada e viu apesada Bíblia que ficava no criado mudo, ao lado de sua cama vibrar, saiu correndo do quarto embusca de sua mãe. Ela ainda estava acordada e sorriu quando o viu chegar. Tomás se meteuembaixo dos lençóis, deixando apenas os olhos e o nariz para fora, protegido na cama dela. Anadeitou ao seu lado e o abraçou. Tomás enfiou a cabeça entre os seios dela, embriagando-se com oleve perfume da pele sedosa e dos cabelos que o envolviam protetoramente. Esperou-a cair emum sono cansado. Beijou-a suavemente nos lábios vermelhos, tocou-lhe os braços de formalenta, sentindo a delicadeza da pele materna. Cheirou um punhado de cabelos com avidez,deslizou os dedos sobre as sobrancelhas da mãe adormecida em toques gentis, cuidadosamente,para não despertá-la. Beijou-lhe outra vez nos lábios, sentindo pela primeira vez o poder e omilagre de uma ereção.

Que mulher linda! Ajeitou-se nos braços dela e ficou com o rosto entre seus seios. Emseguida adormeceu com a imagem dessa magnífica mulher em sua memória.

Bem disseram que agosto é o mês do desgosto, pensou Tomás que não esqueceria o

mês daquele ano. Passaram-se mais de cinco meses desde o sumiço do pai. Sua mãe começou atrabalhar fora limpando casas para mantê-los, enquanto ele mantinha as atividades domésticasem ordem, buscando não incomodá-la com complicações ou deveres do colégio.

Tomás saiu da escola mais cedo. Foram avisados em última hora que a professora

estava doente e não haveria substituição. Antes mesmo de a diretora acabar de falar, ele já estavacom a mochila fechada, pronto para partir. Saiu voando; iria deixar a mochila em casa, comeralguma coisa e ir até a sorveteria pedir mais uma caixa de isopor com picolés para vender.

Quando abriu a porta de casa, a imagem que viu o deixou petrificado. Antes que sua mãeo enxergasse, os amigos que compartilhavam uma pequena festa com ela o olharamestranhamente. No ar, uma atmosfera densa de fumaça de cigarro e suor. Latinhas de cervejaformavam uma pirâmide sobre a mesa no centro da sala. Achou que havia entrado na casa errada.Do banheiro viu sair um tipo magrelo que declarava ter acabado de vomitar. Tampas de garrafasde cerveja foram improvisadas como cinzeiro e transbordavam bitucas de cigarro. Ao lado damãe, que ria alto como ele jamais antes escutou, um homem de barbas fartas pousava a mãosobre a perna dela.

Ana desviou a atenção à porta. As visitas falavam euforicamente e riam às gargalhadas,mas pararam para observar o pequeno intruso.

– Querido, tão cedo em casa?Tomás tentou perceber alguma vergonha na voz dela. Queria entender que ela estava ali

forçada e a casa fora invadida por vagabundos. Certamente sua mãe não conhecia essas pessoasdevassas que bebiam e fumavam, deixando seus cabelos perfumados com cheiro de brasa. Norosto, um sorriso incomum. Ela parecia feliz sem constrangimento.

– Venha aqui, meu amor! Quero que você conheça meus amigos. – Foi só nessemomento que percebeu um homem apoiar a mão esquerda na perda dela.

Tomás deu um passo para trás e ordenou com autoridade, tremendo de raiva:– Saiam já da minha casa!Por alguns segundos pairou um mórbido silêncio no ar, mas ninguém se moveu. Bastou

alguém soltar uma risadinha discreta para os demais explodirem em uma grande gargalhada.Intuiu que a própria mãe segurou a graça da piada, disfarçando a comicidade da situação com umsorriso amarelo.

Tentou segurar o ódio, mas as palavras saíram de sua boca sem qualquer domínio:– Foi por isso que você mandou meu pai embora, sua vagabunda?Tomás viu o sorriso esmorecer no rosto da mãe. Reconhecia haver sido dominado pelo

ódio; não queria ofendê-la, mas contentou-se ao perceber que a vergonha a dominava naquelemomento.

– Vá para o seu quarto agora mesmo! – Antes mesmo de terminar a sentença, agarrou-opelo braço com força, empurrando-o a pontapés dali. – Ficou tão nervosa e envergonhada aoouvi-lo falar dessa maneira na frente de outras pessoas que não conseguiu se controlar.

Do quarto, Tomás chorava baixinho enquanto escutava o pranto da mãe na sala. As semanas que seguiram arrasaram Tomás na escola. Ele não tinha amigos, voltou a

maltratar a professora, perdera novamente o interesse e a concentração nas aulas. Entregou asprovas sem responder absolutamente nada. No dia em que empregou equivocadamente a cedilhana palavra "Fodaçe” escrevendo-a na lousa, a diretora mandou chamar Ana para uma conversaséria.

Ela se apresentou a postos na mesma hora que foi notificada.“Se ele continuar assim, teremos que expulsá-lo”. Afirmou a diretora.Tomás ficou de castigo por duas semanas sem poder assistir televisão.– Olha, eu não sei qual é seu problema, garoto infeliz, mas o meu com certeza é você!Tomás odiou ouvir a declaração da mãe. Sua vontade era matar todos os vermes que

invadiam sua casa para envenenar a cabeça dela.Antes mesmo de terminar a semana foi expulso da escola. Sem poder estudar, tornou-se um estorvo dentro de casa. Perseguia a mãe quando ela

cozinhava, quando estava no banheiro e quando dormia. Deixou de fazer as atividadesdomésticas e Ana teve que se virar sozinha para dar conta de tudo sem perder a paciência com asmalcriações dele. Tomás comia pão no sofá e deixava as migalhas caídas pelo estofado e tapete;meias e cuecas sujas espalhadas pelo chão. Usava o banheiro e não puxava a descarga, arrotava esoltava gases enquanto comia sentado à mesa, na presença dela. Fora dispensado de entregar ojornal no mesmo dia que os atirou em janelas de vidro, quebrando-as. Jogou-os também empoças de água, na lama, no barro e tivera a oportunidade de acertar dois clientes na cabeça.Quando Tomás voltou no dia seguinte para trabalhar, havia dezenas de reclamações. O dono dojornal não pagou para Tomás o dinheiro da semana e colocou-o para fora com um pontapé notraseiro. Na primeira vez que chupou os picolés que deveria vender da caixa de isopor, ficou umasemana com dor de barriga, Ana foi responsabilizada de pagar o prejuízo e Tomás proibido decolocar os pés na sorveteria. Na escola, não podia mais aparecer e Ana sabia que seria impossívelconseguir vaga em outro colégio ainda naquele ano. Tomás ficou tempo integral em casa,evidenciando sua carência afetiva descontrolada.

– Filho, qual é o seu problema? Você quer chamar atenção? – Ana estava preocupada,pois Tomás voltara a urinar e evacuar na cama. Tornava-se mais apático a cada dia e só logravaproblemas por onde quer que fosse.

– Acho que você deve falar comigo. Por que você faz isso? – Estava decidida a ter umaconversa aberta com o menino, abandonando o habitual tratamento infantil que empregava aoconversar com ele. Em breve Tomás seria um adolescente e sentia que precisava libertá-lo de suadependência.

– Não gosto de seus amigos. – Sentenciou com as sobrancelhas franzidas, o bico da boca

para frente, cruzando os braços com birra.– Querido, você precisa interagir mais com outras pessoas. Por que meus amigos o

incomodam tanto? Por que você não procura fazer suas próprias amizades? Há um monte decrianças na rua, no bairro, na escola... Tenho uma amiga, a Verônica, ela tem dois filhos quepoderiam vir até aqui brincar com você.

Tomás deu de ombros.– Não preciso fazer amigos, mãe! Por que não ficamos só nós dois como sempre?

Quando o papai estava em casa, pelo menos você ficava comigo!– Esse foi meu erro! Fiquei demais com você satisfazendo seus caprichos e perdi o

homem que lutei com unhas e dentes para conquistar! – Ela se calou por um instante, pensativa.Não queria descarregar a culpa por um casamento desgraçado nas costas de Tomás. – Olha filho,nada disso é culpa sua... O que quero dizer é que lamento não ter feito algumas coisas diferentes,entende? Detesto olhar para o roupeiro no quarto e não encontrar as roupas de seu pai ali, não vê-lo à noite quando levanto para tomar água; acordar sozinha sem o calor dele! Mas cheguei àconclusão de que não podemos nos isolar do resto do mundo. Você precisa saber que tenhominhas necessidades; preciso conversar com gente grande, rir um pouco, aprender a recomeçar.

– O que a senhora quer é ficar bêbada; deixar aquele homem tocar na sua perna!– Não fale bobagens! Em breve esse homem que você conheceu virá morar conosco. –

Avisou secamente, sem dar-lhe tempo para armar um circo. – Você já é um homenzinho, pare deagir como um bebê! Estou farta das suas exigências, das suas reclamações! – Ela tentou nãoelevar a voz. Tinha vontade de explodir com o filho, mas sabia que depois se arrependeria e aspalavras jamais voltavam.

Tomás sentiu o coração disparar ao ouvir essa informação. Estava livre do pai, mas embreve teria um padrasto que sequer conhecia a invadir lhe a vida, um beberrão a sugar-lhes opouco dinheiro que tinham; um porco a trazer álcool e fumaça para dentro de sua casa. Umhomem de barbas que beijava sua mãe e a tocava na perna. A ideia era absurda; não daria estasatisfação à mãe e ao homem barbudo. Ela dizia que sentia saudades de seu pai, mas sabia queera mentira. Jurou a si mesmo que não daria esse triunfo a ela. Ao contrário do pai, não iriaembora jamais.

– Se a senhora trouxer esse homem para cá eu mato ele! Mato! Mato mesmo! – Repetiusem parar e continuou descontrolado – Mato ele, a senhora vai ver, eu mato...

Ana desconcertou-se ao ouvir isso. Sentiu-se perdida, assustada com a reação de Tomás.Tentava manter o equilíbrio dentro de casa e zelava pela harmonia, mas ao escutar a ameaça dofilho reconheceu que de alguma forma o pequeno herdou seu gene ruim, uma falha no caráterque lutaria até o fim de seus dias para esconder. Tomás era apenas um menino, não sabia o quedizia. Matar! Ora, pobrezinho, nem sabe o que é isso! Ele precisa urgentemente de um pai!Deveria conversar o assunto com Tomás até fazê-lo aceitar a presença de um novo homem emsuas vidas. Precisava introduzir o amante pouco a pouco, apresentá-lo, cativá-lo e convencernaturalmente o filho. Era injusto de sua parte exigir que o menino aceitasse a situação em umpiscar de olhos.

– Filho, não fale bobagens, você é só uma criança! Não vai e nunca matará ninguém! –Falou no mesmo instante em que se lembrou do gato que Tomás assou no forno, sentindo umcalafrio congelar lhe a espinha. Depois de se distrair com céleres lembranças, continuou: – Nãosomos selvagens para usar esse tipo de expressão, entendeu? Vamos recomeçar nossa família, epreciso do seu apoio para encontrar um pouco de felicidade nessa desgraça de vida! – Não haviaterminado ainda de falar quando surpreendeu a si mesma por um ataque de choro. Secou as

lágrimas do rosto com a manga da blusa, porém, as lágrimas insistiram em voltar, incessantes.Ana fungou o nariz e escondeu o rosto entre as próprias mãos, permitindo-se chorar.

Tomás se sensibilizou. Nunca a vira aos prantos dessa forma. Entendia que a mãedesejava ser feliz, mas ele sozinho poderia dar-lhe toda a felicidade que ela necessitava; nãoprecisavam de ninguém mais.

– Calma, mamãe, não fique assim, por favor! – Ele puxou o rosto dela para perto de si eafagou seus cabelos. Cheirou delicadamente uma melena absorvendo toda a fragrância dela.Logo, secou as lágrimas insistentes que caiam dos olhos da mãe com prazer e sofreguidão.

Ana se tranquilizou ao sentir o carinho do filho. Tencionou levantar-se e continuar oserviço, contudo, Tomás não a deixou sair. Abraçou-a com mais força, beijou-lhe a facerepetidas vezes, e então, em um gesto delicado, fechou os olhos e a beijou na boca.

Ana se desvencilhou da posição que se encontrava, levemente surpreendida eenvergonhada.

– Filho, você já é grande, não pode mais beijar assim.– Posso sim, meu pai também beijava! Sem querer, acabou rindo sobre a inocência do filho. Que criança extraordinária! Ele é

tão puro e inocente, refletiu, observando o minúsculo menino que permanecia ao seu ladoenxugando lhe as lágrimas, protegendo-a de sua infelicidade. Tinha a certeza que o único amoreterno que teria na vida seria dele. Antônio foi embora, abandonara aos dois. Futuros amoresiriam e viriam, mas era o amor incondicional do filho que ficaria para sempre. Desfrutou dessesentimento maravilhoso, que só quem é mãe conhece. Ele era uma criança ainda; tinha muito queaprender, e ela o ensinaria. Faria dele um homem magnífico. Tinha a certeza de que algum diaririam de todas as travessuras que ele fizera na infância, contando-as aos próprios netos.

Após a conversa, Ana se retirou satisfeita, enquanto Tomás adormeceu orgulhoso por tê-la ajudado.

Nem bem Tomás despertou, saiu à procura da mãe. Foi como se o tempo não tivesse

passado, ele não houvesse dormido e a mãe ainda estivesse em seus braços.Sentiu o estômago roncar. Colocou os chinelos e saiu em direção à cozinha. Já no

corredor, escutou vozes e o cheiro daquela fumaça de cigarro que repudiava. Seus passos setornaram lentos, os batimentos do coração pesados. Antes que pudesse recuar, o homem debarbas o avistou, cravando os olhos escuros nele. Ele era gigante, observou. No mesmo sofáonde costumavam comer pipoca, o homem bebia cerveja com uma das enormes pernas no chão,e outra aberta, estendida sobre a mesinha central que suportava garrafas de cerveja vazias. Oscabelos eram abundantes e grossos de um negro reluzente; a barba e os olhos castanhos muitoescuros faziam contraste com a pele branca e todo o resto dos pelos que lhe brotavam na face ecabeça. Seus dedos eram amarelados e peludos e sua barriga redonda em formato de pera. Pelospretos fugiam por cima da camisa cortada em V. e manchas em forma de rodas amareladasimpregnavam debaixo das axilas. Tomás o assemelhou a um gorila. Não podia acreditar que amãe estivesse apaixonada por ele. Não entendia sobre amor e paixão, mas a delicadeza de suamãe perto do brutamontes era gritante. Se ele não conseguia encontrar nada de bom naqueleprimata, a mãe também não poderia. Ficou petrificado, mas voltou a si em uma fração desegundos ao perceber o homem observá-lo.

– Venha aqui, garotão! – Escutou a voz grossa do barbucho chamá-lo, disfarçando omedo que sentiu. Como se o cheiro da fumaça ou as mãos peludas sobre a perna da mãe não

fossem razões suficientes para acertá-lo com uma pedra, caminhou na direção do infernofingindo não estar intimidado.

Tomás soube que aquela seria a hora do lengalenga. A mãe iria apresentá-los e obrutamontes o pegaria no colo, contaria qualquer história infantil; depois, convidá-lo-ia parajogar bola e tomar sorvete na tentativa de agradá-lo. Se bobeasse, já tinha um carrinho de fricçãono bolso para negociar seu amor. Barreiras de autodefesa estavam acionadas. Aquele homemtentaria conquistá-lo com bolas de plástico e piqueniques aos domingos, com suas mãos em seuscabelos exatamente como seu pai costumava fazer. Seus pensamentos foram interrompidos pelavoz bruta do homem:

– Pegue aqui! – O homem colocou dinheiro na mão de Tomás e um maço de cigarrosvazio – Leve essas duas garrafas vazias para a mercearia e traga outras; cheias é claro. Comprecigarros iguais a este – ele quase esfregou o maço vazio no nariz de Tomás.

Depois de dar-lhe um tapinha atrás da cabeça, empurrou-o em direção à porta e voltoupara a conversa com os adultos, sem desperdiçar mais atenção ao filho da namorada.

Tomás ficou parado com a encomenda vazia nas mãos, sentindo-se desrespeitado em suaprópria casa. Ao buscar sua mãe com os olhos, encontrou-a segurando um copo de qualquercoisa na mão direita, enquanto na esquerda prendia um cigarro.

Seus olhos se encheram de lágrimas.– Mãe, a senhora está fumando?Ela respondeu com os olhos pequenos, a língua ligeiramente travada:– Não filho, não mesmo – e como se não percebesse que era observada, escondeu a mão

que segurava o cigarro atrás das costas – Vá comprar a cervejinha, vá meu amor. – Pediu,dispensando-o como a um gatinho.

– A senhora está bebendo cerveja?Antes que ela pudesse responder, Damião, o homem ao lado dela se adiantou:– Isso porque ainda não começamos com a cachaça! – Brincou e em seguida soltou uma

gargalhada que estimulou todos a rirem.– Você não foi ainda, rapaz? – Damião mudou o tom brincalhão e adquiriu uma

expressão severa de um segundo para outro.Tomás sentiu vontade de correr, mas seus pés permaneceram no mesmo lugar. Não

conseguia se mover por não saber para onde ir. O barbudo sequer seria como o pai; não haveriabolas e piqueniques, não haveria qualquer tipo de carinho daquele homem.

Ana reprovou a conversa com um olhar autoritário, mas tampouco soube se explicarmuito bem.

– Querido, tudo bem, a mamãe está tomando uma cervejinha. Que mal há nisso? –Olhou para os amigos na procura de apoio, mas eles também estavam altos demais para ajudá-la.– Seja bonzinho e vá à venda!

– “Mamãe?” – O homem repetiu com deboche. – Você não acha que o moleque já estágrandinho para esse tipo de frescura? “Mamãe?” Que boiolice!

Tomás não quis escutar nada mais. Saiu com as garrafas embaixo do braço e as lágrimasembaixo dos olhos.

Se não fosse pela cerveja e os cigarros que trouxe da mercearia nem teriam dado por suapresença quando retornou. Escutou as risadas altas e a voz distante da mãe desde seu quarto.Deitou na cama e tentou dormir, esquecendo-se que o estômago estava completamente vazio.

Quando levantou pela manhã do dia seguinte, Tomás pensou em como encarar a mãe

nos olhos. Sentia raiva, tristeza e uma onda de sentimentos conflitantes que se misturava. Achouque sentiria mais vergonha da mãe do que ela dele.

O silêncio pairava na casa, não sabia que horas eram. Entrara cedo no quarto paradormir tarde. Ficara pensando na mãe e nos amigos beberrões. Quanto mais pensava e osescutava rindo, mais o sono fugia. A fome também não o deixou tranquilo. Pegou a Bíblia e leuum trecho com dificuldade, depois orou para Deus ajudar e proteger sua mãe.

Olhou o relógio e constatou que já passavam das nove horas da manhã. Abriu a portadevagar; ainda sentia o cheiro de fumo insistente penetrado no interior das paredes e em todaatmosfera do ambiente. A casa estava iluminada pelos raios de sol que a penetravam por detrásdas cortinas. Tomás seguiu até a cozinha, mas não encontrou a mãe. Achou estranho que aindaestivesse dormindo, pois ela costumava levantar muito cedo. Voltou ao corredor, pé por pé,evitando fazer barulho. Encontrou a porta do quarto dela fechada e achou ainda mais sinistro,pois ela nunca o fechava. Empurrou a maçaneta e tentou abri-la em vão, estava trancada. Nãopôde aguentar esse suspense. Precisava saber onde ela estava e então bateu na porta tentandocontrolar o ritmo do coração acelerado, mas o trabalho involuntário do órgão não aceitou ocomando.

Preocupado, tornou a bater com mãos e pés, e então, a porta se abriu.– O que você quer? – Perguntou o homem de barbas em cuecas, enquanto Tomás via

desde o corredor sua mãe adormecida na cama.Sentiu novamente o corpo estremecer. O gorila dormira com sua mãe na mesma cama,

enquanto ele dormira sozinho e de estômago vazio. Tomás era minúsculo ao lado dobrutamontes. O medo o impedia de defender sua mãe como a situação exigia. Seu corpo todotremia na presença ríspida do homem desconhecido, mas sem entender de onde viera a coragem,começou a esmurrá-lo nas pernas (na altura que alcançava), gritando:

– Vai embora da minha casa, seu merda! Não queremos você aqui! VAZA, FILHO DAPUTA!

Para quem nascera morto e costumava ser chamado de filho de rato pela vizinhança,Tomás fora bastante valente. No entanto, Damião o deteve apenas com uma mão em sua cabeça.Ana acordou com a gritaria e levantou imediatamente da cama. Presenciou Tomás socando aspernas do namorado, sem entender ao certo o que estava acontecendo.

– O que é isso? O que você está fazendo com o menino? – Ela perguntou, massageandoas têmporas.

– Eu? Ora, você não educou direito o moleque! Acabei de abrir a porta e ele começoucom essa palhaçada. Você não escutou ele me chamar de merda e filho da puta? – Ana pareceuchocada. De fato, embora tenha acordado com o alvoraço, não conseguiu juntar as palavras queescutou. – Esse menino é malcriadão, hein!

Tomás sentiu uma zanga assassina. As pequeninas mãos acariciavam o homem com ossocos, embora julgasse que o estava trucidando. Quando o homem falou, Tomás notou seu hálitoestragado; o cheiro dos ébrios pela manhã: ressecamento de órgãos, dentes podres, comidaputrificada; emanações profundas de cheiros que ele ainda não conhecia. Teve certeza quepoderia sentir a catinga desde o corredor. Não entendia como ela suportava esse homem sujodormindo ao seu lado. Por um momento sentiu vontade de vomitar e correu para os braços de suamãe. Ao contrário de chorar como sempre fazia, começou a cheirá-la efusivamente. Ana tambémparecia estar azeda, seus cabelos cheiravam fumaça e sua boca fedia. O hálito sempre doceparecia haver saído de um bueiro. Os olhos estavam vermelhos, cingidos por olheiras.

– Preciso de você, mamãe... – Balbuciou com mau pressentimento.

Ana teve vontade de chorar ao sentir a fragilidade do filho, mas algo a impediu. Nãopodia permitir que ele interferisse em sua vida dessa forma, insultando Damião com palavrõesdos quais não tinha permissão para falar. Se cedesse à pressão do filho, uma vez mais Damião achamaria de fraca e má educadora; escutaria novamente que ela o estragava com sua proteçãoexagerada. Mesmo cheia de incertezas, pegou o chinelo embaixo da cama e ameaçou bater emTomás. Seu coração se espedaçou no mesmo instante. O filho era tão pequenino, indefesodemais para enfrentar e entender a situação.

Os dois a contemplaram. O filho com terror nos olhos, o homem ansioso como sedissesse: Vá em frente, tenha coragem, ele merece! Dê-lhe educação, mulher estúpida!Finalmente, decidiu-se. Não podia permitir que Tomás controlasse sua vida.

Entre uma expectativa e outra, arrasada pela ressaca e cansada das cenas de Tomás,decidiu surrá-lo. Umas chineladas o ensinariam quem dava as ordens ali, além de mostrar aDamião que não era tão molenga na educação do filho quanto a julgavam.

Passou o domingo angustiada. Em seu íntimo reconhecia haver pecado na educação de

Tomás. Seus amigos a criticavam, amigas e vizinhas interferiam em sua vida, alertando-a sobresua falível conduta como mãe. Seu marido fora embora, seu namorado custava a compreenderTomás. Estavam todos contra ela e na forma como educava o filho. Diziam que era permissiva eque não sabia impor limites, mas ninguém sabia o que vivera nos últimos anos.

Quando narrava alguma arte do filho, mesmo ressaltando a perspicácia e inteligência dopequeno, comumente sentia a reprovação nos olhos de seus ouvintes. Como não tinha apoio equase ninguém lhe dava créditos; acreditava que as pessoas sentiam inveja dela, ou nãoentendiam a maravilhosa e gratificante experiência de ser mãe. Às vezes, fazia a retrospectiva desua própria vida, buscando compreender se de fato estava tudo certo. O filho era inocente dastraquinagens? Ele estava isento de qualquer culpa em seus jogos infantis? Era realmente sadio oamor sufocante que recebia dele? Entre conjecturas e considerações, comumente, seu veredictoera igual: Tomás era apenas uma criança pura e especial!

Os olhares de reprovação que recebia eram puro despeito.

Ana

1976-1990

Nada inocente

2ª Intenção

Capítulo 3

Ana nascera em 1976, na cidade de Londrina, norte do Estado de Paraná, ao lado dolago Igapó. Londrina foi uma região distinguida pelos aspectos fantásticos de riqueza até o cicloeconômico do café acabar, deixando a cidade a mercê dos efeitos do êxodo rural, e parte dapopulação na pobreza.

O declínio do auge cafeeiro fez o pai de Ana perder o emprego e a boa condição de vida.Com a crise do café e a economia particular ameaçada, as dívidas, penúrias e a ruína, tantopessoal quanto matrimonial, não tardaram a surgir. Ele era alcoólatra, possessivo e violento. Osempregados foram testemunhas das surras que ele deu em Agnes, mãe de Ana, quando a meninaainda era um bebê. Ana tinha pouquíssimas lembranças do rosto dele. De sua primeira infância,mantinha vagas recordações de uma casa grande, empregados uniformizados e servis, um quartolevemente pintado de amarelo e uma Bíblia gigante sustentada por um cavalete de aço na sala,onde a família se reunia para as orações. Sua mãe nunca falava dele. O pai de Ana foi embora decasa quando os negócios dele foram à bancarrota, abandonando-as a mercê da própria sorte.

Ana não sabia nada de seu passado. Sua mãe praticamente a ignorava; não por vontade,mas porque precisava sustentar a casa sozinha, saindo muito cedo, voltando muito tarde,trabalhando demais, dormindo de menos, sempre exausta. Agnes jamais havia trabalhado antes,mas viu-se desesperada quando sentiu a fome devorar suas entranhas. Começou a limpar casa degranfinos e assim continuou para sobreviver. Não gostava de limpar para outros e não seconformava em prestar um serviço que outrora pagou para ter. Assumira o papel de empregadasem esquecer que um dia fora patroa.

Ana fora acostumada com a mordomia por tão pouco tempo de sua vida que não sentiufalta de nada quando acabou; nem as lembranças haviam ficado. Seu passado era quase branco, ecomo sua mãe não contava nada, ela nada sabia. Mudaram-se para a zona urbana de Londrina,um bairro escuro, com pessoas pobres, em geral, desempregados e boias-frias. As mulheres quetrabalhavam fora não contavam com creches ou escolas para deixarem os filhos. Ana entrou naescola com quase oito anos. Era muito velha comparada às outras crianças de sua turma, masainda assim, tivera sorte de conseguir estudar. Ela não questionava a pobreza, simplesmenteaceitava a vida como era, julgando que todas as pessoas viviam da mesma forma, que não haviauma realidade diferente daquela.

Ana conhecera Antônio antes mesmo de ter os seios desabrochados. A primeira vez

que o viu, tinha nove anos. Ele era muito mais velho que ela, mas já nessa idade, sentiu ocoração disparar em seu peito como se fosse explodir.

Os anos passaram e ela não conseguia se interessar por ninguém de sua idade. Nutriuuma paixão de quatro anos quando algo aconteceu...

Depois que descobriu o amor pelo vizinho, passou a observá-lo secretamente. Antôniomorava na frente de sua casa. Assistiu durante quatro anos consecutivos, namoradas indo evindo, garotas entrando e saindo, lágrimas nascendo e morrendo; contudo, sua paixão era aindamais intensa. Na rua onde moravam, as casas não eram diferentes; pequenas casas com grandesfamílias, a exceção de Ana que vivia apenas com a mãe, e Antônio que morava sozinho. Casasde madeira sem tinta, janelinhas de vime na frente, vira-latas se alimentando de lixo, baratasdançando pelos cantos; crianças descalças saltando as crateras da rua faziam parte da imagem

avistada por Ana através de sua janela secreta. Sua casa tinha uma pequena cozinha junto com asala e um único quarto que dividia com a mãe, a latrina ficava atrás da casa, um grande buracoligado a uma fossa extremamente profunda. A estrada era de chão batido e a rua sem saída.Crianças brincavam de bola durante a semana; correria, alvoroço, meninos e meninas semisturavam com brincadeiras de esconde-esconde e pega-pega. Nas manhãs dos finais desemana pairava o silêncio na rua; as famílias iam para a igreja escutar o sermão do padre, o bomancião que pregava suas palavras há mais de 40 anos no mesmo templo. O cheirinho de comidaaos domingos era sagrado; aroma de frango, churrasco, alho e cebola, temperos que eclodiam poraquele logradouro e se misturavam ao odor das fossas das casas e lixo, espalhados pelos terrenosbaldios da rua.

Enquanto Agnes limpava casas fora da cidade para ganhar a vida, Ana dividia seu tempoentre os estudos da escola, pensar em Antônio e observá-lo às escondidas.

Em uma tarde especial, despiu-se frente ao espelho, mediu os quadris, os seios, olhou-sede frente ao verso. Concluiu que já era uma mulher, podia enfim tomar a atitude que há temposvinha pensando. Mediu novamente os seios, eram como limões, não havia nada ali. Necessitouimprovisar algumas meias de algodão embaixo do sutiã, decidindo que um pouco de maquiagemtambém não lhe faria mal. Espionou pela janela e viu Antônio de saída com sua lambreta. Correuem direção à porta da sala e a escancarou, gritando desde sua casa, gentilmente:

– Antônio, você pode me dar uma ajudinha aqui, por favor?Ele a olhou por alguns segundos antes de descer da motoca; então tirou o capacete e o

enterrou em um de seus cotovelos, depois atravessou a rua.– Você cresceu, menina! – Disse nem bem colocou os olhos sobre ela, observando-a

ruborizar no mesmo instante. – Não precisa ficar com vergonha, é só um comentário! – Emseguida deu uma risadinha marota, mostrando os dentes perfeitos na face mais charmosa queAna já viu.

– Não estou com vergonha. Você sempre me diz isso!No mesmo instante que ele entrou, Ana fechou a porta da sala e o agarrou pelo pescoço,

empurrando-o em direção ao sofá. A expressão confusa desvencilhou-se pelo sorriso maliciosoque brotou em seguida na face. Contrariando seus anseios e a inusitada situação, ele a afastoudelicadamente, lembrando-se de que conhecera Ana quando era ainda uma menina. Por mais queela o atacasse feito uma mulher feita, não deixava de ser uma criança.

– Calma aí! O que você está fazendo? Sua mãe não está?– Não, ela foi trabalhar e só volta à noite. – Ana respondeu e o beijou agressivamente na

boca, sentindo aumentar o calor que exalava entre suas pernas.– Você faz sempre isso com os meninos? Sempre os traz aqui quando ela sai?– Oh, não, posso garantir que é a primeira vez! – Ela parou de beijá-lo para uma breve

confissão: – Faz muito tempo que gosto de você! Aliás, eu acho que te amo!Antônio a fitou com incredulidade:– O que você sabe sobre amor, Aninha? Você acha que me ama, mas não sabe nada ao

meu respeito, além é claro, de eu ser muito mais velho que você! – Por mais que Antôniobuscasse justificar essa situação inesperada, estava deliciando-se com ela. Ninguém acreditariaquando contasse. – O que você espera disso? O que pretende com...

Antes de responder, ela abriu a blusa. Tirou o sutiã junto com as meias de algodão quehavia colocado para dar algo de volume aos seios e os deixou à mostra, expostos naturalmente.Antônio perdera as últimas palavras frente à cena.

– Vamos, toque! – Ela sentiu a vontade de Antônio prevalecer contra qualquer

argumento.A resistência durara menos que um segundo, e então, Antônio cedeu. Ana fora ousada, depravada, sensual, mas fora a primeira vez que fizera amor em sua

vida. Gotinhas de sangue marcaram o tapete surrado da sala, evidenciando o coito e a celebraçãodo amor que aconteceu. Ana desfrutou por horas seguidas a dor no meio das pernas e nãoconseguiu dormir aquela noite, revivendo e desfragmentando minuciosamente o ato audaciosoque experimentara.

No dia seguinte, correu para frente de casa no mesmo horário. Esperou Antônio até ahora que sua mãe retornou do serviço, mas nem sombra dele viu. No outro dia, percorreu omesmo itinerário. Ficou na frente do muro; entrava e saía de casa, espiava pela janela, andavapara lá e para cá, mas nenhuma presença dele.

Alguns dias depois que fizeram amor, antes que o desespero a dominasse por completo,escutou o barulho da lambreta se aproximar. Correu para frente de casa com a vontade de abriros braços e contar sobre a saudade que sentira desde que ele fora embora. Quando Ana percebeuque ele não chegava sozinho, voou para dentro de casa. Espiou pela janela novamente e o viuentrar de mãos dadas com uma garota, depois de ter estacionado a lambreta.

Ana achou que depois de se entregar a ele, ficariam juntos para sempre. Oferecera suavirgindade, confessara seu amor, esperara por ele desde seus nove anos. Ficou plantada na frentede casa durante dias espiando pela janela, esperando-o sair do esconderijo que havia se metido.O que mais podia fazer? Ver Antônio, o homem com quem se casaria de mãos dadas com outramulher mexia com seus sentimentos de uma maneira absolutamente incontrolável. As lágrimasrolaram por seu rosto enquanto sentia seu coração apertado dentro do peito.

Acho que ele não acreditou na minha declaração de amor. Provavelmente não sabe quedevemos ficar juntos; não entendeu que nascemos um para o outro...

Ana não dormira bem essa noite. No dia seguinte saiu para frente de casa na mesma horacomo de costume. Antônio chegou no horário. Antes que ele saísse da lambreta para guardá-la nagaragem de casa, ouviu a voz do outro lado da rua:

– Antônio! – A menina gritou e acenou com a mão, sem dizer nada depois.– Tudo bem, Aninha? – Perguntou por perguntar, sem intenção de sair de onde estava.– Venha aqui, preciso dizer algo para você!Antônio pareceu titubear. Passou o cadeado na lambreta e a ajeitou na calçada. Com um

pouco de resistência, atravessou a rua.– Vem, entra!Assim que Ana fechou a porta, ele se colocou diante dela e falou com a voz áspera:– Olha, o que aconteceu naquele dia, nunca mais acontecerá. Quantos anos você tem,

por céus? Eu tenho 32, devo ter pelo menos o dobro de sua idade!Ela não acreditou de fato nas palavras que ouviu. Procurou conter sua emoção. A voz

pareceu engasgada em sua garganta. Ana sentiu o calor de Antônio, a fragrância do suor de seucorpo a intimidou. Não conseguiu desgrudar os olhos do físico teso, retratado pela camisetaapertada (e desbotada) que ele usava. Procurou concentrar-se em seus objetivos e respondeuconfiante:

– Tenho 13, e daí? Minha avó casou com 12, aos 13 já era mãe. Você fez amor comigo eagora pergunta minha idade? Somos vizinhos há quanto tempo?

Antônio pareceu envergonhado; a idade dela o impressionou ainda mais. Queriadesesperadamente sair dessa situação, arranjara uma encrenca para sua vida. A menina era

virgem antes de ele deflorá-la, seguiria sendo menor de idade por muitos anos ainda, umacriança! Como pude ser instigado pela tentação? Era ele quem deveria colocar os limites e negara situação.

Porém, esquecera todos os recentes pensamentos morais e seus intuitos de autocontrolequando vira a diminuta blusa de Ana abrir-se diante de seus olhos.

Dois dias se passaram e Antônio não apareceu, nenhum barulho da lambreta ao longe,

nenhum movimento na casa, nenhuma luz acesa. Aquele sentimento de desespero e dependênciavoltou a dominá-la. Precisava vê-lo; não podia imaginar que ele estivesse com outra mulher, emoutros braços que não os seus. Não comeu durante esse período; sentia que o nó em seuestômago dominava seu corpo inteiro, enfraquecendo-o. Teria que arrumar uma forma deencontrá-lo se ele não aparecesse. Mas ele apareceu.

Antes mesmo de entrar na rua, escutou o barulho da lambreta. Amava aquele veículobarulhento que a alarmava cada vez que Antônio estava por chegar.

Gritou da janela assim que o viu estacionar diante da casa:– Antônio!Ele a ignorou, metendo sua moto para dentro da casa sem olhar para trás.Ana ficou chocada, suas pernas tremeram de emoção e aflição. Ele está de volta! Com

certeza não me ouviu chamar. Colocou os chinelos com pressa e atravessou a rua.Bateu três vezes na porta do vizinho, mas ele não a atendeu. Tornou a bater

insistentemente, já com lágrimas na face. Ele não me quer mais! Voltou a bater comimpaciência...

De repente, a porta foi aberta e Antônio apareceu com um meio sorriso estampado naface.

– Você é insistente, não consegue esperar dois minutos, menina!Ela o abraçou com força antes de entrar. Seu corpo tremia e a face ainda estava molhada

pelas lágrimas.– O que aconteceu? Você está tremendo!Ana não quis desperdiçar o momento falando de sua insegurança. Não queria explicar o

medo que sentira em perdê-lo e os ciúmes que a dominaram quando o viu com outra mulher.– Minha mãe brigou comigo! – Foi a primeira mentira que lhe veio à cabeça.– Ela descobriu que fui a sua casa? Sabe o que fizemos? – Ele se afastou alguns passos

ao relembrar que transava com uma criança. O pior de suas culpas era saber que fazia e gostavamuito daquilo. – Você ainda é muito novinha, precisa crescer um pouco antes de seguirmosadiante. Vamos esperar você completar 18 anos, e aí continuamos. Que tal?

Ele parecia decidido, mas Ana estava ainda mais decidida em não perdê-lo.– Vamos nos casar! Ninguém falará nada se estivermos casados!Os dois encontraram a solução que contrariava ambos. Ele queria esperar, confiante que

com o tempo ela esqueceria a paixão que dizia sentir. Ela propunha casamento!– Casar? – Balbuciou, sobressaltado com a proposta absurda. – Tenho idade para ser seu

pai! Acho que você não sabe nada sobre amor, casamento ou sexo, acho realmente que você nãosabe nada e...

Antes que ele continuasse, Ana o acariciou diretamente no membro adormecido,tornando os movimentos mais bruscos. Antônio ficou petrificado, sorvendo as carícias da meninaapaixonada sem conseguir recuar. Comumente, Ana tirava a blusa e deixava de fora os pequenosseios. Desta vez, ao invés de tirar a blusa, levantou a saia, evidenciando que não usava calcinha.

Antônio estremeceu. Ainda tinha o som da palavra “casamento” badalando em suacabeça. Mas Ana estava ali seminua. Apresentava poucos pelos no púbis, sua pele era macia, tãolisa que parecia estirada. As mãos dela trabalhavam rápido em sua virilidade tesa, demonstrandoque sabia como e onde atacá-lo. Antônio a encostou de costas na parede e fizeram amor alimesmo, de pé, em movimentos frenéticos, emitindo gritos de dor e prazer.

Quando acabaram, Antônio subiu as calças, Ana baixou a saia. Ambos sentiram umpouco de constrangimento pelo que tinham acabado de fazer.

– Agora, você já pode ir! – Ele proferiu taxativo, na tentativa de colocar um final nessaloucura.

Estava cada vez mais envolvido com a jovem. Ela era uma menina, ele um homem.Quanto tempo viveriam de sexo? Em quanto tempo o sexo os cansaria? Talvez pudesse ficar comela até cansar; não eram todos os dias que uma garota de 13 anos aparecia em sua casa semcalcinha ou arrancava a blusa na sua frente. Pensou na possibilidade, mas era difícil, existia orisco de se apaixonar, do jogo inverter. Ela era muito jovem, quanto tempo o amaria dessa formaintensa e fiel? Quanto tempo continuaria de olhos fechados para rapazes da idade dela?

Antes que ele pudesse se decidir entre o certo e o errado, o dever ou o querer, a razão ouo desejo, Ana já havia desaparecido.

As últimas palavras que ouvira soaram e vibraram insistentemente em seus ouvidos:

“Agora você já pode ir!”, Antônio me tratou como uma vagabunda que faz o serviço e vaiembora, uma rameira que pode ser enxotada como um lixo! “Agora você já pode ir”! Ele sedivertiu comigo; como sou burra! E aquelas mulheres que vi chegando com ele? Será que eledisse ao final: “Agora você já pode ir”? Deve ter feito de propósito, sabia que eu observavatudo e por isso as levava diante de meus olhos! Fez de caso pensado para me deixar comciúmes. Pois agora quem morrerá de ciúmes será ele, e da próxima vez, eu direi: “Agora você jápode ir, animal!”.

Ao contrário de esperar Antônio como sempre, Ana ficou no colégio no dia seguinte.

Almoçou um sanduíche que ela mesma preparou e permaneceu para assistir o jogo de futebol dosmeninos no terreno baldio que fazia parte do colégio. Chamou duas amigas e as três juntaschamaram atenção durante a partida amadora, desconcentrando os rapazes. O campo em quejogavam era de chão de barro, improvisado pelos próprios garotos sem delimitações exatas. Oterreno era dominado pelo matagal feio e abandonado. Com exceção do espaço limpo para jogar,todo o resto era mato e lixo. Apesar do abandono e da feiura, era o único local onde podiamfumar e conversar sobre o que quisessem longe da presença de adultos.

Maria Aparecida, uma das amigas de Ana, enchera uma garrafa plástica da merenda comvinho que roubara do pai. Ana jamais havia bebido antes, e por isso foi a primeira a sentir osefeitos do líquido barato. Levaram três cigarros e combinaram de dividi-los, acendendo-os emintervalos. Os garotos que jogavam futebol eram desconhecidos e tinham ao redor dos 18 anos.Quando a partida terminou, eles seguiram discutindo em campo, exaltados, falando alto,excitados com o jogo e com a presença das meninas, sentindo-se super-heróis em calções. Asgarotas escutaram a conversa fingindo desinteresse. Logo, eles se aproximaram e todosconversaram juntos.

Acenderam o primeiro cigarro, beberam do mesmo vinho, passaram a garrafa e o cigarrode boca em boca. Os garotos misturaram à bebida alguns comprimidos de cores diferentes,confessando terem roubado de um conhecido que sofria de epilepsia. Os comprimidos eram para

evitar convulsões, mas misturados ao álcool causavam um efeito extraordinário, explicou umdeles. Para elas, o vinho sozinho já era suficiente para causar um “efeito extraordinário”. Asmeninas recusaram os tais comprimidos, com exceção de Ana, que disse querer experimentartudo na vida. E quando dizia “tudo” era tudo mesmo. Ela foi a primeira a engolir o remédio.

Já era fim de tarde quando liquidaram com a bebida. Estavam agitados ao extremo;pulavam, gritavam e riam escandalosamente. Um dos rapazes retornou com cachaça e umrefrigerante imitação Coca-Cola. Logo após, acenderam o segundo cigarro.

Ana ficou sentada ao lado de um garoto de aproximadamente 17 anos. Entre conversafurada e brincadeiras que ela considerou demasiado infantis para seu estilo, resolveu esquentar omomento beijando o garoto que tinha acabado de conhecer. Pensou em Antônio, na forma comoele a humilhou. Lembrou-se do membro duro dentro dela e estremeceu como se estivessenovamente com ele. Bestificado com a ousadia, o rapaz correspondeu imediatamente o beijoempurrando a língua direto na boca de Ana, que emitiu um ronco como se fosse engasgar. Ospensamentos voltados nas tardes de amor com Antônio a desorientaram. Como se o beijo delíngua ainda fosse pouco, conduziu a mão do rapaz por debaixo de sua saia sem se importar coma presença da plateia expectadora. Ana sentia êxtase e adrenalina, fora a pílula ou a bebida, quemsabe os dois. Sentiu-se como um anjo. Soube nesse exato momento que tinha asas e podia voar.Uma sensação de liberdade a envolveu por completo. Enquanto o rapaz a beijava e a tocava comdesespero, abriu os olhos para transformá-lo em Antônio. Possuía todo poder para isso. Em seudelírio viu-se em uma praia deitada em areia muito branca; seu corpo adquirira maturidade, seusseios eram tão volumosos que pulavam pelo decote apertado. Suas coxas eram grossas e aspernas longas; seus olhos brilhavam com uma luz intensa. Ela era adulta e sedutora, uma mulherirresistível, felina e fatal. Antônio implorava por seu amor e ela o maltratava com os saltosperfurantes de seu sapato, cravando-os no umbigo dele.

As amigas ficaram excitadas com o rapaz que apertava Ana com vontade e sabedoria,mas preferiram adotar um papel de castas. Cochicharam qualquer coisa no ouvido uma da outra,balançaram a cabeça manifestando repúdio pela cena que presenciavam. Concordaram emdemonstrar para os outros rapazes que não estavam de acordo, assim eles perceberiam que elaseram diferentes, moças de casa recatadas, meninas para casar! Francisca lançou um olhardesaprovador ao rapaz ao seu lado quando afirmou:

– Ela é uma vagabundinha, eu não fazia ideia! – Simpatizante com suas palavras, ogaroto lhe acariciou a mão.

– Vamos embora antes que pensem que somos do mesmo nível. Deixe que ela se vireaqui sozinha! – Sugeriu Maria Aparecida em cumplicidade com Francisca, na expectativa de queo jovem loiro de calções sujos a impedisse, arrastando-a para qualquer lugar com um pouco maisde privacidade.

Os garotos ficaram com os hormônios ainda mais alvoraçados diante do casal que seacariciava em cima de seus narizes. Francisca e Maria Aparecida continuaram na expectativa, emcochichos, esperando algo de atitude masculina.

Eram cinco rapazes para duas moças, mas eles não se importaram com a diferençaquantitativa de valores quando a libido aflorou latejante. As duas meninas com a mesma idade deAna, sentiram simultaneamente o clima selvagem que as espreitou de repente. A excitação quehaviam experimentado dissipara-se instantaneamente e fora substituída por medo. Estava quaseanoitecendo; não havia ninguém mais no colégio. Recuaram assustadas na esperança que o piornão estivesse por acontecer. O medo fez o efeito do álcool evaporar por completo. O terceirocigarro caiu das mãos de Francisca antes que ela pudesse acendê-lo.

– Vocês querem isso? – Perguntou um dos garotos que tirou o pênis do calção e ochacoalhou com a mão. O rapaz balançou o órgão para cima e para baixo, rindo maliciosamente.Os outros garotos fizeram o mesmo. Em um piscar de olhos estavam com as calças baixas,exibindo os membros brilhantes e peludos em movimentos de vai e vem.

– Vem aqui, Chica, vou dar o que você quer! – Advertiu com malícia um rapaz decabelos encaracolados, enquanto Francisca (que odiava ser chamada de “Chica”) começou a darpassos para trás, decidida a correr.

Ana percebeu o que estava acontecendo ainda um pouco confusa. Fora arrancada de seusdevaneios quando escutou Maria Aparecida gritar e se levantou imediatamente. O rapaz queestava com ela a puxou pela blusa fazendo-a cair em cima de brita. Por sorte conseguiu levantar-se com uma pedra na mão. Atirou-a na direção do garoto sem atingi-lo e correu, mas foiperseguida por outro deles que a alcançou em um piscar de olhos.

As garotas estavam cercadas por marmanjos famintos. Gritaram, mas foram jogadas nochão de cimento e silenciadas com mãos. Ana agarrou um pedaço de pau no chão e acertou ascostas de um deles com toda força, fazendo-o cair urrando de dor. Viu os demais garotos emcima de suas amigas e observou a cena, desorientada. Ainda escutava gritos e risadas, quandocomeçou a correr mais rápido que suas pernas podiam suportar.

Na manhã do outro dia, duas mulheres bateram com truculência à porta da casa de

Ana.Agnes não estava. Ana levantou mancando e espiou pela janela. Seu corpo inteiro doía,

estava fraca, mordida nas costas e arranhada nos seios. Sua vida virara um pesadelo insuportável,sentia que tudo lhe saía muito mal, e mesmo depois da agressão no terro baldio e as marcas daviolência que levava no corpo, Antônio não deixava seus pensamentos em paz. As amigas jamaisa perdoariam e ainda teria que confrontá-las na escola, arriscada a encontrar aqueles garotosnovamente, submetida a qualquer tipo de vingança pela paulada que dera nas costas de um deles.Ana abandonara as duas no terreno ermo e na primeira oportunidade, fugiu sem hesitar. Sentia-seenormemente envergonhada pela covardia, mas pensou que se ficasse para defendê-las,provavelmente teria sido atacada pelo bando. Estava apenas com um pedaço de pau nas mãos,porém, não possuía a força para lutar. Como poderia afrontar cinco rapazes, e ainda, socorrer asamigas?

Por mais que encontrasse elucidações para sua fuga, uma sensação de traição aperseguia. Na noite anterior, não pedira ajuda depois de ter abandonado o terreno. Simplesmentecorreu disparada, como o diabo corre da cruz e sequer olhou para trás. Entrou em casa esbaforidae trancou a porta.

Agnes levantou da cama, mas com a escuridão não pôde notar a sujeira e o quanto elatremia.

– Por onde você andou? Quer me matar do coração?– Desculpe, mamãe, estava brincando e perdi o horário. – Disse, sentindo repúdio da

própria voz que saiu infantil e articulada.Agnes resmungou qualquer coisa mais e voltou para cama.O coração de Ana tornou a disparar ao ouvir novas batidas truculentas na porta, e de

repente voltou a si. Novamente, seus temores e tremores voltaram à tona.Afinal, quem são essas mulheres?As duas mulheres a empurraram assim que ela abriu a porta e a lançaram de volta para

dentro.

– Onde está sua mãe? Queremos falar com ela! – Perguntou uma das mulheres queparecia um sargento de saias, imediatamente após invadir a casa.

– Mamãe está trabalhando, quem são vocês?Ana observou as duas estranhas; ambas usavam saias abaixo dos joelhos, eram feias

como o diabo e pareciam beatas do inferno.– Somos as mães de suas amigas, as mesmas que você abandonou ontem a mercê da

sorte. Você ainda se lembra? – Inquiriu a mulher com os cabelos despontados que chegavam atéa cintura, com fulgente repúdio.

Ana só conseguiu reparar que a outra mulher tinha bigode quando a mesma interrompeu:– Amigas? Ora não diga isso! Você acha que ela é realmente amiga delas? Quem faz o

que esse monstro fez, pode ainda ser considerada amiga?Ana entendeu em seguida: A bigoduda é a mãe de Maria Aparecida, e a que precisa de

um cabeleireiro só pode ser a mãe da Francisca! Seu coração disparou novamente. Teria quecontar a história e relembrar tudo, assumir sua covardia, responder perguntas das quais ainda nãotinha respostas, encontrar explicações por ter fugido e não ter chamado alguém. Ana baixou acabeça, e olhou suas mãos arranhadas. Tivera um pouco de sorte por ter escapado, considerandoque qualquer um em seu lugar teria feito o mesmo.

– Por que vocês estão falando assim comigo?– Porque você as deixou lá? Por que não teve a coragem de nos avisar ou chamar

alguém na rua? Por que...– Vocês já passaram por essa situação? Já foram agredidas dessa forma? – Ana começou

a chorar. Sua voz vibrava quando continuou: – O que vocês querem de mim? Alguém paraculpar? O pesadelo de ontem não foi suficiente?

As duas mulheres a escutaram com leves sinais de comoção. No mesmo instante queAna percebeu que as fazia entender sua dor, a mulher com bigode, mãe de Aparecida, mudougravemente a expressão benevolente da face. Aproximou-se com um dedo apontado no rosto deAna e gritou:

– Foi você quem começou tudo, as meninas contaram! Foi você que os incitou! Vocêbeijou na boca deliberadamente estimulando a violência dos demais! – Ela olhou na direção daoutra mulher, deixando à mostra um pouco de espuma branca nos cantos da boca – Você sabiaque antes de tudo acontecer essa putinha estava quase transando na frente de todos? – Alegou etornou a olhar para Ana, afirmando: – O que você fez foi coisa de prostituta! Agiu como umarameira! Minha filha perdeu a honra, a moral; não para de chorar desde ontem! – A mulhertremia dos pés a cabeça, mas continuou, parecendo perder o equilíbrio na articulação daspalavras: – É sua culpa, desgraçada! A culpa é sua! A culpa é sua! – Continuou repetindo aomesmo tempo em que se descontrolou por completo e partiu para cima de Ana, esbofeteando-avárias vezes no rosto. A marca de cinco dedos apareceu na face de Ana em um vermelho vivo.Defendeu-se apenas suportando a dor dos tabefes, humilhada e impotente, sem rebater. Tudo queconseguiu fazer foi chorar. A mãe de Francisca que assistiu a agressão passivamente, apartou aoutra de cima de Ana. Depois de puxá-la por um braço, disse em tom resoluto:

– Vamos embora, estamos perdendo nosso tempo aqui!– Vou atrás da sua mãe! – Prosseguiu:– Aposto que a pobre não sabe que está criando

uma víbora de Satanás.Ana chorava encolhida no canto da sala.– Você vai matá-la se contar o que aconteceu! Coloque a culpa em mim, vamos! Eu

mereço, mas deixe minha mãe fora disso!

As duas mulheres olharam um pouco mais para o ser medíocre encolhido no chão quechoramingava lágrimas de embuste, antes de virarem as costas e partirem.

No final dessa mesma tarde um grupo apareceu na porta de Ana. Homens e mulheres,

pais e mães enfurecidos queriam linchá-la. Pedras foram atiradas contra a janela e a portagolpeada com chutes e pontapés. Ela empalideceu ao perceber o movimento, sentindo-seencurralada. Eles vão me matar! Mas por que estão fazendo isso comigo?

Sentiu o sangue esvair-se do corpo. Tremia por inteiro, atacada pelo sistema nervosotrabalhando em alta atividade. Escutou um dos homens dizer no lado de fora:

– Vamos com calma gente, ela é uma criança também! O que vocês esperam? Queremjustiça com as próprias mãos? Lembrem-se do Novo Testamento, Romanos 4.7: Bem-aventurados aqueles cujas maldades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado! Vamos tirar esta criança doinferno! Todos concordam?

Ouve um momento de silêncio. Parecia que o grupo cedia à palavra do Senhor.Ana grudou os ouvidos na porta com a esperança de que o grupo maluco concordasse

com as palavras do Novo testamento e a deixasse em paz. Deus age de forma estranha mesmo,primeiro me deixa aqui cagando de medo para depois me ajudar...

E então, escutou novamente outra voz masculina dizer:– Não saio enquanto não honrar minha filha!O homem da Bíblia interferiu novamente:– Honra? A honra de sua filha não voltará! Ou agredir esta criança irá colocar a tal

honra no lugar onde estava? Pense um pouco. Aja com a razão, homem! Com o sentimento sófazemos burradas!

– Você diz isso porque a filha não é sua! Também posso acertar quando permito que aemoção substitua a razão. Ainda podemos ser sábios se usarmos a emoção com inteligência!

Eles continuaram a discutir uns contra os outros. Ora fazendo Ana se animar, orafazendo-a empalidecer.

– A violência nunca será sinal de sabedoria; a razão se perde se utilizamos a força contrao indefeso. Essa honra que julgamos tão importante só existe dentro de nossas cabeças! – Ohomem prosseguiu com a Bíblia em punhos, esbravejando um pouco de palavras santas,prendendo a atenção dos demais:

– Ora, o açoite é para o cavalo, o freio é para o jumento e a vara é para as costas dostolos. Não responda ao tolo segundo sua estultícia; para que também não te faças semelhante aele. O homem sábio que pleiteia com o tolo, quer se zangue, quer se ria, não terá descanso. Atéa criança se dará a conhecer pelas suas ações, se sua obra é pura e reta.

Ana entendeu apenas que o tolo daquela lengalenga era ela. Após as palavras do homem,vieram segundos de silêncio, e então ouviu:

– Sabemos que você está aí, criança! Saia da casa e venha até nós!Ana ponderou. Deveria resolver essa situação antes de sua mãe chegar do trabalho.Bem, eles são da igreja, não podem me fazer qualquer mal! Se falam em nome de Deus,

devem querer me ajudar, mas não entendo porque gritam tanto. Que escândalo!Uma vez mais, sem controle do próprio pensamento, Antônio cruzou suas ideias. Talvez

ele também a flagrasse no meio do apuro se não agisse depressa. Tudo que não precisava era servista no meio de uma confusão sem pé nem cabeça, onde figurava como criminosa. Sabia que ovizinho poderia chegar a qualquer momento, e por receio disso, abriu a porta sem pestanejar

mais.O homem que citava os provérbios se aproximou com a mão estendida e a pousou sobre

a cabeça dela:– Eu te abençoo, filha minha. Vá ao encontro da luz! Caminhe... – Ele não chegou a

terminar de falar.Antes que Ana pudesse ser abençoada, o pai de Maria Aparecida saiu por trás das

mulheres, correu com impulso e arremessou os pés suspensos no ar contra os peitos de Ana. Emuma fração de segundos, seu corpo voou para trás e sua cabeça acertou a quina da janela.

O homem dos provérbios tentou segurá-la, mas Ana escapou por seus dedos. A violênciachocou todos, inclusive ao próprio agressor que caiu aos prantos ao perceber a brutalidadeinvestida contra aquele corpo frágil, que não teve qualquer chance de se defender. Ele a segurouentre os braços, observando o corpinho magro e pequeno da menina.

– O que você fez? O que você fez? – As vozes cortaram o silêncio, misturando-seconfusamente, atrapalhadas, de forma quase inaudível! – Oh, meu Deus, e agora? – O agressor seajoelhou no chão com o corpo de Ana ainda nos braços, balançando-o sem qualquer resposta. Eletentou acordá-la, mas desistiu de outros intentos quando sentiu a umidade do sangue quente nasmãos.

Outras pessoas do grupo também perceberam a viscosidade vermelha que emergiu dacabeça de Ana, através do corpo sem vida.

– Vamos embora, ela está morta! Vamos logo! Vamos! – Não houve discussões. Todosconcordaram que era melhor começar a se dispersar. – Em nome de Deus! O que fizemos?

Outra voz nervosa, respondeu:– Tudo que acontece na terra é obra do Senhor! E se Ele tirou a vida dessa menina,

talvez tenha sido para poupá-la de outros sofrimentos: “Porque o salário do pecado é a morte,mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor”!

O agressor sentiu seu arrependimento render-se à voz dessas palavras:– Sim, ó Deus misericordioso! Agi em teu nome, de acordo com tua vontade e desejo,

fui e sou teu instrumento! Use meu corpo e minhas palavras para salvar esses pecadores emostrar-lhes a verdade, a tua verdade, a verdade eterna! Faço-me pequeno para tornar-te maior!

Após bradar ao vento, euforicamente, essas palavras, o homem voltou a chorar. Sentiu-se agraciado pelas mãos de Deus; reconheceu que entre tantos naquele grupo, fora ele oescolhido para salvar a pobre garota do pecado, e encaminhá-la à libertação da alma eterna.

Ela era ainda uma criança, porém, uma criança à beira da perdição suplicando paraser salva antes de cair em desgraça total. Eu sou seu salvador!

Encerrada a discussão momentos depois, afastaram-se para longe, exaltados, recitandoprovérbios de salvação e ressurreição pelas ruas. Louvando a Deus e ao homem agraciado pelasmãos do Criador.

Ana acordou um pouco confusa, caída no mesmo lugar do incidente. As lembranças

voltaram pouco a pouco. Sentiu a cabeça doer quando se levantou, apoiando-se na madeira quesustentava a casa. Viu um pouco de sangue no chão, mas não se importou; correu depressa paradentro de casa preocupada com o horário. Poucos minutos haviam se passado desde que aquelagente estranha fora embora. Em sua percepção era como se tivesse dormido por dois dias oumais.

Tomou um banho rápido e lavou o ferimento por detrás da cabeça. Notou que era umcorte superficial e cogitou que talvez tivesse desmaiado por medo. O medo que há dias sentia...

Medo de perder Antônio, pânico de não vê-lo nunca mais, temor que ele estivesse com outramulher, aversão de voltar à escola, medo de encarar Maria Aparecida e Francisca, pavor deencontrar novamente os rapazes do terreno baldio, pânico que sua mãe descobrisse o que tinhafeito e o que haviam feito com ela. A história na boca do povo costuma ficar dez vezes maior(ainda mais no bairro em que vivia, onde falar da vida alheia era uma questão vital,principalmente quando podiam usar a capacidade da imaginação para envenenar ainda mais asfofocas). Por mais que ela explicasse o ocorrido, no final, haveria uma dupla versão dos fatos,assim como o risco de sua mãe acreditar na versão que não lhe favorecia. Em certo ponto, Ananão podia deixar de condenar Antônio. Sua desgraça era culpa dele, mas ela o amava tanto quesegundos depois que o culpava, também o eximia.

Quando Agnes chegou, encontrou a filha enxugando os cabelos. O rosto de Ana estava

pálido e entristecido, com uma expressão derrotada estampada na face.Agnes largou a bolsa e um saco de pinhão em cima da mesa, com evidente preocupação:– Querida, você está bem? – Puxou a cadeira da mesa, sugerindo que Ana também se

sentasse.Ana não tinha tempo para inventar uma mentira. Estava farta dessa situação. De alguma

forma, por mais que sentisse culpa por tudo, sabia que não deixava de ser uma pobre criaturadébil, incapaz de defender a si mesma frente ao problema.

– Mãe, preciso contar uma coisa para a senhora, e... Bem, a senhora não vai gostar doque vai ouvir. – Ela segurou o choro engasgado na garganta, desejando ser forte suficiente paracontinuar com a voz firme. Precisava que a mãe a entendesse e a perdoasse de suas burradas.

– Você está me deixando nervosa, filha! O que aconteceu? Não me esconda nada,vamos, continue, seja lá o que tiver acontecido preciso saber agora!

Ana olhou um pouco para a mãe, observando os pés de galinha ao redor de seus olhos;os mesmos olhos que levantavam todos os dias vermelhos para trabalhar, os mesmos olhos semvida, cansados, aqueles olhos sofridos que pareciam ter visto tanto. A preocupação de levar umasurra era pequena frente à vontade que sentia em desabafar. Pensando nisso, continuou:

– Não sei o que a senhora pensará de mim; haverá também outras versões de tudo quevou contar, mas espero que ao final, a senhora acredite na minha! Preciso que seus ouvidos meescutem com atenção. Peço para a senhora esquecer apenas por esse momento que sou sua filha.Quero que a senhora me ouça como se eu fosse uma amiga que vem lhe pedir socorro.

Agnes ficou consternada frente ao pedido da filha. Era estranho escutá-la falar dessamaneira. Ana é apenas uma criança! Que problemas pode ter além da cabeça de uma bonecaquebrada? De repente, sentiu que sua filha cresceu e não notou. O trabalho roubou seu tempo.Agnes percebeu que Ana já era uma mocinha, cresceu diante de seus olhos e não fora capaz dever. Não podia resgatar esse tempo e se perguntou quantas vezes Ana precisou de sua ajuda e elanão estava por perto? Quantas vezes haviam se abraçado nos últimos anos? Os únicos passeiosque faziam eram os quinze minutos de caminhada mensais, de casa até à igreja, para escutar ossermões do padre na igreja católica. Estava convicta de que não faltava nada para a filha. Lutavapara manter comida sobre a mesa trabalhando fora, e no tempo que restava, ocupava-se por dar-lhe valores morais, mas acabava de concluir que o pouco que fazia não era suficiente para tamparas lacunas. Consternada com as cobranças que fazia a si mesma e com o pedido desesperado deAna, tudo que mais queria era ajudá-la.

– Filha, conte tudo que está acontecendo! Prometo que vou entendê-la, e se por acaso eunão conseguir, vou refletir sobre o assunto, pensar... – Os olhos de Agnes vibraram, movendo-se

de um lado ao outro, como se quisesse adivinhar o que havia acontecido.Ana sorveu as palavras de afeto como se há muito tempo quisesse escutá-las. Nunca

antes sentira essa fragilidade, a alma tão delicada e enfraquecida. Sentiu-se absolutamente amadanesse momento, e então, lembrou todas suas burradas, culpando-se por suas mentiras, pelo amornão correspondido de Antônio, por ter abandonado suas amigas no terreno baldio, por ter sidohumilhada por aquelas mulheres e pelas pessoas que a perseguiram até sua casa. Sentiu-seencorajada frente à raiva que sentiu e a liberdade que a mãe lhe proporcionou, mas ao invés decontar sua história, começou a chorar feito um bebê.

Ana foi abraçada pela mãe com força e as duas permaneceram caladas enquanto amenina descarregava com lágrimas o que as palavras não podiam dizer. De repente, lembrou-sede Antônio e sentiu um nó na garganta ainda maior. O vizinho tinha o péssimo hábito de romperseus pensamentos sem ser convidado, em circunstâncias inconvenientes. Desejava enterrá-lo eaniquilá-lo de seu coração. Percebeu com agonia enquanto soluçava, quão mortífero e burro podeser um amor não correspondido. A fraqueza, a debilidade... Tudo porque não soubera pensarcomo uma pessoa adulta. Necessitava crescer com urgência.

Estava disposta a contar toda história para a mãe (com exceção do vizinho mais velhoque amava e que a possuía no tapete da sala). Contaria o acontecido no colégio com os rapazes,sobre as mulheres que a procuraram, os apocalípticos em sua porta, a agressão que sofrera esobre o medo que sentia de voltar a estudar. Decidiu que Antônio seria poupado daquilo tudo, ena sequência o esqueceria para sempre.

Quando finalmente conseguiu se controlar, sentiu que não havia mais lágrimas paraserem choradas e que não existia outra forma de desabafar sem omitir e transformar parte doproblema. Então, continuou a sua maneira:

– Ontem, depois da aula, fiquei no colégio com outras meninas assistindo alguns rapazesjogarem futebol. Eles foram conversar com a gente depois que a partida terminou...

– Quem eram as amigas que ficaram com você no colégio?Ela se lembrou de Maria Aparecida, dos tapas que ganhara dentro de sua própria casa e

sentiu a raiva dominá-la. Através da revolta ocasionada pelas lembranças e a confusão desentimentos, adquiriu a certeza plena de que ser “boazinha” e contar à mãe a verdade, assumindotoda a culpa, não a levaria ao paraíso. No instante que foi completamente absorvida pela raiva,adquiriu a versão da história que desejava, sem perceber:

– Estava com Maria Aparecida e Francisca, a senhora se lembra delas?– Sim, sim, sim, sei quem são – respondeu Agnes impaciente, desejando saber tudo com

urgência.– A Maria Aparecida levou drogas ao colégio e me ofereceu, dizendo que eram pastilhas

que anestesiavam a garganta. – Ana notou o horror estampado na face da mãe – Eu não vi malalgum em experimentá-las e peguei uma, sem que nada acontecesse de verdade na garganta, foisó depois..., Nunca senti isso antes! – Nessa parte Ana não mentiu. Sabia que se a verdade viesseà tona e precisasse usá-la para se defender, seria palavra contra palavra. Tendo em vista asegurança de poder enfrentar a própria mentira, continuou: – Senti que eu me tornava um anjo eque cresciam asas em minhas costas. Eu estava envolvida por uma alucinação quando vi MariaAparecida aos beijos com um garoto. De repente, um dos rapazes que jogava futebol me atacou etentou rasgar minha roupa...

Agnes colocou as mãos na frente da boca controlando-se para não gritar e pedir que afilha se calasse, mas Ana continuou antes que ela pudesse dizer qualquer coisa:

– Eu tive sorte, consegui acertar o rapaz com um pau nas costas e correr. Maria

Aparecida e Francisca foram atacadas por outros, porém, não conseguiram escapar. Eu fugi.Entrei em casa tremendo como uma vara verde, temendo que os rapazes viessem atrás de mim econseguissem fazer o que queriam.

– Então, eles não tocaram em você; verdade?– Espera, mãe! – Ela se mostrava tão irrequieta quanto sua mãe.– Por favor, Ana! Fala logo antes que eu perca as estribeiras!– Os rapazes tentaram me agarrar, mas eu fugi sozinha; nem sei direito o que aconteceu

com Maria Aparecida e Francisca, mas hoje de manhã as mães delas vieram aqui me culpandopor tudo. A mãe da Maria Aparecida me bateu tantas vezes no rosto que perdi as contas. – Aolembrar-se da humilhação, Ana não se conteve e voltou a chorar. As lágrimas caíam em forma devergonha. Sentiu aversão de si mesma por ter permitido que a estranha batesse em seu rostodaquela maneira, dentro de sua casa. Embora a raiva, não podia perder tempo chorando.Precisava continuar contando sua mentira antes que, para seu próprio bem, a versão verdadeirachegasse aos ouvidos da mãe. Ela enxugou as lágrimas, passando o pano de prato com força norosto.

– Aquela miserável! Não acredito que teve coragem... – Agnes gritou com revolta, masAna a interrompeu acelerada:

– E após terem me humilhado e ido embora, elas voltaram com um grupo de pessoas quegritavam coisas malucas sobre a igreja e os tolos. Depois de jogarem pedras contra a casa edizerem que eu iria ao inferno, um deles conseguiu acalmar o grupo. Falaram que eu estavaperdoada e avisaram que eu podia abrir a porta de casa sem medo, pois queriam apenas meabençoar. Eu acreditei! Fui para fora desejando que tudo aquilo terminasse logo, mas um homemmuito nervoso me agrediu assim que coloquei o corpo para fora – Ana levantou da cadeira eabriu a porta. Apontou o sangue no chão para que a mãe pudesse observar – Está ali, a senhoravê? Pode imaginar o que aconteceu? Não me lembro de nada depois, somente que acordei alifora e minha cabeça sangrava e doía. Agrediram-me e me deixaram ali, como se eu fosse um ca-ca-chorro. – Ana gaguejou as últimas palavras, entre choro e soluços. Sabia que não podiacontinuar. Nunca mais mencionaria o horror das últimas vinte e quatro horas.

Ao desabafar e chorar, ficou aliviada.Por outro lado, Agnes experimentava o ódio mais mortal que já havia sentido na vida.

Capítulo 4IURD

Igreja Universal do Reino de Deus As doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus são a priori semelhantes às de

outras confissões cristãs evangélicas, em particular as de linha pentecostal. Entretanto, existemoutras diferenças fundamentais, como o caráter sobrenatural dado pela IURD às celebrações dobatismo por imersão e da Ceia do Senhor. O código de conduta da IURD é a Bíblia Sagrada esuas doutrinas estão resumidas no livro: “Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus”, deEdir Macedo.

Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Romanos 10.13 A igreja ocupava um galpão gigante do bairro, porém, uma parte estava em

construção. Desejavam expandi-la tanto em número quantitativo de fieis, quanto em espaçofísico. Na zona urbana de Londrina, a igreja seria ampliada. O local era feito parte de madeira,parte de alvenaria, relativamente humilde. Com exceção do altar embelezado com cálices de ouroe um grande crucifixo de madeira nobre no centro, restavam algumas poucas cadeiras. Nafachada externa e interna da igreja, um símbolo imponente se apresentava com a imagem de duasmãos juntas em oração. Os fiéis permaneciam em pé, com as mãos para o alto, balançando-as deum lado ao outro, gritando em coro:

Gloria a Deus! Gloria a Deus! Gloria a Deus...!E cada vez que o pastor falava, incitava o público e eles respondiam:Aleluia! Aleluia! Aleluia! Aleluia!Em seguida, o próprio pastor citou o diabo. Correndo no palco de um lado para outro

sem parar, segurou em uma das mãos o microfone, com a outra apontou um dedo ao céu e gritou:– Aleluia, irmãos, Aleluia! Uma cega foi curada, vamos conhecê-la hoje!A plateia gritou com os olhos fechados, com as mãos para o alto, de mãos dadas, orando,

agradecendo e chorando quando a cega que não era mais cega surgiu no palco.Um homem com paletó foi intimado pelo pastor a se aproximar.– Doutor Ulisses, como estão os olhos dela? Ela era cega! Cega por completo! Como

estão os olhos dela?Antes que o médico pudesse responder, o coro da igreja foi acompanhado pelos fiéis em

uma doce melodia:Milagre! Milagre!Maravilhas do seu fogo, Jesus vai operar!O médico subiu ao palanque e depois de verificar os olhos da mulher, respondeu

convencido:– Normal! As pupilas estão normais!O pastor pulou em saltinhos inúmeras vezes:– Curada, a cega está curada! Aleluia! Glória a Deus!Os fiéis entraram em choque quando discerniram o milagre, gerando um caos de delírio,

euforia e gritos. Baldes de lágrimas gotejaram no interior da igreja. Óculos foram quebrados,atirados ao chão, pisoteados. O pastor continuou a discorrer e orar em tom excitado. Sua vozvibrava, enlouquecia os expectadores ao mencionar o nome de Jesus. E, gritou:

– Senhor Jesus, salva minha família! Todos os demônios estão derrotados!E choveram aplausos e mais lágrimas.Em seguida, mandou chamar algumas pessoas possuídas pelo demônio ao palco.

Posicionou-as em fileiras e escolheu uma mulher entre o grupo. Ela transpirava excessivamente;o suor era tanto que seu rosto brilhava de longe. O pastor mandou-a ajoelhar-se frente a ele eordenou:

– Coloca as mãos para trás, Satanás! Coloca as mãos para trás e me obedece ou você vaisentir o poder de Deus!

O diabo, educado, obedeceu imediatamente.– Quantos diabos têm no seu corpo?Quando o diabo começou a falar, sua voz saiu rouca, masculinizada, carregada de ódio:– Um montão deles, mais de quinhentos! – Ao respondê-lo, soltou uma gargalhada

estridente e perturbadora.– E o que você quer dessa infeliz?– Quero matar o pai dela! – Respondeu o diabo na voz da fiel.– Você vai sair desse corpo agora...O pastor tomou ar e colocou a mão na cabeça da mulher, balançando-a para frente e para

trás, enquanto o diabo, decidido, jurava que jamais abandonaria esse corpo. O exorcista contouaté três e bateu com o pé direito ferozmente no chão. Sua voz bradou energicamente como seimprovisasse um ritual ridiculamente complexo:

– Sai capeta! Sai! Todos os demônios estão derrotados! De de do do dchom...!!!Quando voltou a tocar na cabeça da fiel, ela caiu para trás desacordada e o diabo

desapareceu.Os fiéis aplaudiram emocionados, vibraram eufóricos, sentindo que o pastor não

exorcizou apenas a mulher, mas também o demônio de cada um deles.Quando o tumulto entre os fiéis se fez um pouco mais silencioso, o pastor seguiu ao

restante dos possuídos que esperavam no palco. As pessoas se debatiam entre si e algumasnecessitavam ser contidas pelos colaboradores sãos da igreja. O pastor separou alguns membrosdo grupo e inspirou uma grande quantidade de ar antes de iniciar o espetáculo. Com os mesmosgritos do último exorcismo, soprou o ar de seus pulmões contra as pessoas, fazendo-as caírempara trás.

Em seguida, seguiu ao próximo grupo. Tirou o paletó do corpo, passou-o sobre ascabeças delas e gritou:

– Sai demônio! De de de dem, de de de dem!! Olha o poder de Jesus: quando eu passaresse paletó todo mundo vai cair! Olha...

Ao dizer isso, pulou bem alto e continuou:– Sai! De de de dem, de de de dem!! Olha o poder de Deus...Quando o paletó passou alto pelas cabeças, as pessoas desabaram sincronizadamente

para trás.O pastor soprou impetuosamente até ordenar à plateia:– Olha lá! Todos os demônios caídos, derrotados! Isso é uma vontade de Deus! É o

poder dele! Isso não é brincadeira e armação, não! Bate palmas para Jesus! – Uma salva depalmas arrítmica eclodiu pelas mãos dos fieis.

Na metade do culto, depois de atacar feministas, homossexuais, esquerdistas e declararque “É dando muito que se recebe ainda mais”, o pastor falou sobre a importância do Dízimo:

– O Dízimo é uma questão de fé cristã, está na Bíblia, Mateus 23:23. Algumas igrejas se

sentem constrangidas em falar sobre o assunto; mas vocês se sentem constrangidos em buscarajuda na igreja? Por que a igreja deveria se sentir constrangida ao falar do dízimo se ele éobrigação e dever de todo fiel que acredita na salvação? Dízimo é o ato de gratidão a Deus, doqual recebemos tudo o que temos! É devolução a ele um pouco do que dele recebemos por meioda Igreja, para que seu Reino aconteça entre nós. É manifestação de nosso amor a Deus e aosirmãos...

Alguém gritou no microfone, entre os fiéis:– Todos devem contribuir com o Dízimo?– Sim! É evidente que o cristão esclarecido em espírito de oração fará a Deus a sua

promessa, o seu voto de ofertar o Dízimo!A mulher continuou decidida, com a boca encostada ao microfone:– Na Palavra de Deus, o dízimo é sempre em alimento. NUNCA DINHEIRO! Por que

tanta ênfase no dízimo? Serei pecadora se não contribuir? Quando a igreja começará a prestarcontas sobre a utilização desse dinheiro aos cristãos que ofertam?

O pastor perdeu a fala por um segundo. Sua vontade era de expulsar a mulher que oenfrentava diante dos outros fieis, interrompendo seu sermão, questionando os atos da igreja e odízimo, mas conseguiu se controlar quando a respondeu:

– Irmã, o dízimo é um ato de Amor a Deus e aos irmãos. Ou você não tem amor nocoração? – Incitou os fiéis e o agito recomeçou entre eles. – Vocês têm Jesus no coração? –Intermináveis “sins” eclodiram entre as vozes da multidão, repetidas vezes. – O dizimista nãodeve se preocupar com o que sai do seu bolso, se muito ou pouco dinheiro, mas com o que sai deseu coração, se pouco ou muito amor a Deus e à Comunidade. As bênçãos de Deus virão comcerteza sobre o dizimista!

– Os pastores de qualquer denominação autointitulada "cristã" exigindo o pagamento dodízimo, aproveitam-se para enriquecer às custas da fé de seus irmãos. Dízimo não é lei de Deus,mas um mandamento humano, que sem nenhum respeito pressiona seus irmãos mais fracos paraarrancar-lhes ouro. A religião dessa forma parece puro negócio, o senhor não concorda?

Os fiéis a olharam soltando sussurros abafados, balançando as cabeças em tom dereproche. Os “irmãos” ao seu lado falaram que ela não deveria desafiar Deus com mesquinharia,pois a avareza é um pecado.

O pastor teve a certeza que se tratava de uma rebelde tentando desmoralizar osensinamentos da igreja, colocando dúvidas nas cabeças de seu rebanho. Ele mandava naqueletemplo e deveria impor ordem. Sem se importar em respondê-la, ordenou com descaso:

– Acredito que a irmã já falou mais que a boca permite. Passe o microfone para outrosirmãos que também desejam falar!

A voz que desafiava o pastor era de Agnes. Ela foi à igreja evangélica para enfrentar

os agressores da filha, julgando que a igreja fosse pequena e os fiéis, poucos. Ao encontrar umamultidão no templo, percebeu que seria impossível encontrar quem procurava no meio de tantagente. Tampouco sabia que encontraria exorcismos, cura de cegueira e tentativa de assalto.Chegou a sentir medo do que viu. Não era o demônio que a amedrontava, mas sim o pastor, seusfiéis e a fé desesperada que viu.

Sua intenção foi contar ao pastor que alguns membros de seu rebanho atacaram Ana.Pensou que se descrevesse o que aconteceu, ele iria repreender os culpados; censurá-los dealguma maneira e encontrar justiça, mas ela desistiu da ideia já no início do show. O pastor tiravao demônio daquela gente hipnotizando-a com sua oratória ensaiada, articulada, profissional. Eles

formavam um time: O pastor e as ovelhas. Agnes estava em desvantagem. Para eles, o lobo eraela. Indignada, resolveu que não atacaria isoladamente os agressores da filha, mas o grupo inteirocomo um todo: a igreja, o pastor, a manipulação, o teatro que faziam ali. Não sabia comoprosseguir. Descartara a ideia de queixar-se com o pastor, pois ele era mais louco que todos osloucos; estava mais possuído do que aqueles a quem exorcizava.

Agnes não sabia como iria proceder, mas estava disposta a voltar ali. Ver, ouvir,testemunhar, até conhecer o próximo passo.

No dia seguinte, após ouvir o relato de Ana, Agnes telefonou à patroa dizendo que

precisava da folga para resolver um problema urgente e não foi trabalhar.Primeiro, foi até o colégio falar com o diretor. Queria saber exatamente quem eram os

garotos que jogavam futebol depois das aulas, se eram alunos ou não e onde moravam. O diretorficou perplexo ao saber do ocorrido e estranhou que as outras mães não o tivessem procurado.Fez ligações e chamou algumas pessoas ao seu gabinete. Constatou através de funcionários, quedesconhecidos pulavam o muro do colégio para usar o terreno como quadra de esportes, depoisque as aulas terminavam.

Agnes explicou que necessitava com urgência o endereço das outras mães paraconversarem sobre o assunto.

Quando saiu do colégio, foi imediatamente à delegacia prestar boletim de ocorrência. Ospoliciais disseram que precisavam ver Ana, fazer corpo de delito, escutar a própria vítima. Elatentou argumentar que a filha estava abalada, e que não queria expô-la daquela maneira, mas nafalta de argumentos contra a burocracia policial, saiu do lugar dizendo que tentaria levá-la adepor, embora soubesse de antemão que não retornaria.

Preferiu tomar a direção que o diretor anotou em um papel. Ao chegar frente à casa de Maria Aparecida, bateu na porta.Uma garota a atendeu.Agnes reconheceu a amiga de Ana e procurou ser cordial ao perguntar:– Olá! Sua mãe está em casa?A menina respondeu, sem reconhecê-la:– Não, ela está trabalhando e só volta à noite!– E seu pai?– Também está trabalhando!– Você é Maria Aparecida?– Sim, quem é a senhora?– Você ofereceu drogas à minha filha, não foi?A garota pareceu transtornada.– Quê? Do que a...Agnes empurrou a garota com força pela porta. Antes que Aparecida tivesse tempo de

perceber a cilada, recebeu uma bofetada no rosto. Agnes continuou estapeando a garota sempiedade, acertando todos os lugares onde sua mão teve alcance. Maria Aparecida tentou sedefender com os braços na frente do rosto, mas foi encurralada com truculência por duas mãoscalejadas.

Agnes observou-a encolhida em um canto, implorando por piedade. Entrava em um jogode violência sórdido que ao final não ajudaria a resolver o que realmente importava. No entanto,se Ana fora agredida pela mãe daquela garota, ela pagaria na mesma moeda. “Olho por olho,

dente por dente!”, lembrou-se da lei de talião que sua família costumava empregar quando erapequena. Era mesmo correto tal argumento? Nem Deus ou o Diabo poderiam saber! A agressorade Ana sentiria na própria pele, ou melhor, através da pele da filha, quanto pesava a dor de umacovardia.

Parou um segundo antes de sair, e como se tivesse esquecido algo, virou-se de formacautelosa. Ainda ofegante, proferiu de forma desafiadora:

– Fale para sua mãe que eu me chamo Agnes, e sou a mãe da Ana. Ela já conhece oendereço da minha casa se quiser dar o troco, mas avise uma coisa e preste bastante atençãonisso: Que se entenda diretamente comigo porque se chegar a tocar em minha filha novamente,acabo com a raça dela!

Agnes assistira o culto por três dias seguidos, e nos três dias encontrara o mesmo

discurso. Em sua visão, muito longe da própria realidade que vivia, além de tudo que acreditava:“exorcismos”, gritos exacerbados, súplicas, orações escandalosas, um show enlouquecedor deloucura e fanatismo. Parecia que era na igreja onde moravam todos os diabos, pois quanto maiorera a fé do fiel, mais facilidade o diabo tinha para possuí-lo, e encher os bolsos de dinheiro.

Agnes estava bem posicionada; fazia parte da primeira fileira logo na frente do palcoonde observava o pastor com um grosso bracelete de ouro no punho esquerdo, ajoelhar um fiel eaçoitar o diabo com um chicote imaginário nas pernas e nas costas. Os fiéis ao seu lado gritavamem vozes ensurdecedoras:

– Sai, demônio! Cão! Capeta! Tinhoso!Quando terminou o primeiro exorcismo, o pastor bradou aos pulos, com a boca no

microfone:– Desafio aqueles que têm problemas em casa, com drogas, bebida, violência,

infelicidade... – Citou mais de quarenta situações de derrota do gênero para que ninguémescapasse de sua salvação e continuou: – Venham à igreja, procurem Jesus Cristo que ele sempretem a solução! Quem acredita?

Todos levantaram as mãos. Com os olhos voltados para o céu, asseveraram aos gritos:– Eu acredito, ó meu Deus, Misericordioso, seja louvado! Nós acreditamos!Alguém pediu permissão para falar ao microfone. O instrumento passou de um canto

afastado, retirados da mão de uma velhinha até chegar às mãos do fiel. Um homem de meiaidade, vestido humildemente agarrou o microfone e deu uma leve sopradinha no instrumentopara ter certeza que o microfone funcionava. Primeiro, falou bem alto, revelando algumadificuldade em falar no instrumento desconhecido. Quando conseguiu acertar o volume da vozde forma que todos o escutassem, procedeu:

– Antes de entrar para a igreja, tentei me matar. Não conseguia emprego, minha esposaquase me abandonou levando meus filhos. Comecei a beber, entreguei-me ao álcool e às drogas.Foi então que um amigo me trouxe até essa igreja e escutei pela primeira vez as palavras doSenhor. Hoje tenho emprego, minha família continua comigo e saí daquela poluição que meencontrava. Vivemos todos felizes graças ao amor misericordioso de Jeová!

Aleluia, irmão! Aleluia!A palavra estava com o pastor, que disse com o dedo apontado aos fiéis:– Estão vendo? Absorvam e aprendam de uma vez por todas! Jesus é a verdade e a vida!

Se com tua boca confessares ao Senhor Jesus e em teu coração creres que Deus o ressuscitoudentre os mortos, serás salvo!

Aleluia, Aleluia!

Ofegante, parou dois segundos para respirar e prosseguiu com sua voz ruidosa:– Queridos! Querem manchar o nome da igreja evangélica. Os católicos fazem nossa má

fama criticando o dízimo! Mas vejam eles: Lucram com adoração de santos! Nós recolhemos odízimo para ajudar instituições esquecidas pelo poder público. Olhem quantas crianças tiramosda rua, vejam o lindo orfanato que a igreja construiu. Isso eles não dizem! Não se deixem cairnessas mentiras horrendas; nessas estatuetas da Virgem Maria é onde vive o pecado. É nessaadoração às imagens onde o capeta mora! A igreja católica é uma desgraça para o terceiromundo! Estamos a dois meses do feriado católico pelo dia de Nossa Senhora Aparecida; quemtiver estátuas em casa, tragam-nas no dia 12 de outubro que vamos destruí-las juntos em nome deJesus Cristo!

Aleluia, Aleluia!Com o alvoroço apaziguado, o pastor voltou a focar no Dízimo:– É bom lembrar que a contribuição para movimentos e ajudas diversas não substitui o

Dízimo! – Esbravejou em uma voz autoritária: – Não importa se você ajudou uma criança na rua,isso não tem nada a ver com o dízimo, não se equivoquem! O Dízimo deve ser levado àcomunidade, mensalmente, pois os ganhos do dizimista são mensais e as necessidades dacomunidade também!

A mesma mulher que estivera presente no último culto, voltou a perturbá-lo:O pastor não entendia a facilidade com que ela conseguia o único microfone que a

plateia dispunha.– Pastor, então o dízimo é demonstração de generosidade e desapego?Ele sabia que deveria manter a calma, e provar com a razão das palavras que o dízimo

não deixava quaisquer dúvidas. Não permitiria hipóteses que colocassem em descrédito odinheiro que a igreja recebia. Com a voz controlada, buscou não entrar no jogo daquele diabo desaia:

– Irmã, amada! O dízimo, dado com amor, faz-nos mais generosos e agrada a Deus. Faz-nos mais desapegados dos bens terrenos, faz-nos menos egoístas e mais generosos!

Aleluia, Aleluia!– Mas por que o dízimo torna o pobre mais desapegado aos bens materiais e a igreja

mais apegada a eles? – Ela tornou a fixar os olhos no pastor e perguntou, dessa vez, com a voztão carregada de ironia que o intimidou: – E esse bracelete de ouro? O senhor vai dar para Javé?

Nesse momento houve um sussurro ensurdecedor entre os fiéis que falavam todos deuma vez, sem ninguém entender ninguém. Nos olhos vermelhos do pastor faiscavam raios. Nãopermitiria que ela atingisse seu objeto, desmoralizando-o em sua própria casa.

– Irmã, entenda de uma vez por todas: o dízimo é um caminho de conversão. Só édizimista de verdade quem acredita na Palavra de Deus! – Para prender novamente a atenção dopúblico, desviou o foco de seu bracelete, desafiando-os: – Vocês acreditam na palavra de Deus?

As pessoas gritaram no mesmo momento jogando as mãos para o céu em sinal dedevoção ao criador. Em seguida, olharam à questionadora com reproche. Suas expressõesmanifestavam claramente uma interrogação, como se dissessem: Entendeu agora? Estáexplicado?

Mas nada estava explicado e ela continuou:– Só é dizimista de verdade quem acredita na palavra de Deus? E ao contrário, também?

Só acredita na palavra de Deus quem é dizimista? Quer dizer que se não sou dizimista tambémnão acredito na palavra de Deus? Não tenho o direito de permanecer na casa do Senhor? – Vendoque ele tentava ridicularizá-la movendo o rosto para um lado e outro, em sinal de negativa e

reproche, prosseguiu: – Já que não posso fazer minha contribuição diretamente a quem precisa,como por exemplo, ajudando uma entidade, uma criança na rua, posso então ajudar a igrejafazendo uma limpeza ou qualquer tipo de serviço voluntário?

As pessoas deixaram de olhar para ela desviando os olhares curiosos ao pastor, como sede alguma forma também estivessem interessadas na resposta.

No entanto, o pastor estava decidido a colocar ponto final naquelas perguntas,intimidando seu rebanho através da fé e do medo:

– Irmãos, vejam como essa mulher questiona as recomendações bíblicas. Não é a igrejacom que ela discute, mas sim com a Palavra do Senhor!

Aleluia, Aleluia!Os fiéis estavam inteiramente com o pastor e o pastor com a palavra. Ainda mais

colérico e exaltado, prosseguiu com o sermão:– De que forma o homem rouba Deus? Não dando seu dízimo! Qual a forma de ser infiel

a Deus? Escondendo seu dízimo! Qual a única forma de vocês serem prósperos na vida?Pagando o seu dízimo!

Ele chamou alguém do palco, ignorando por completo a mulher que o desafiavadescaradamente:

– Irmão Arantes! Pegue o microfone e venha aqui contar sua história. Venha, venha!Depois de beijar as mãos santas do pastor e ajeitar o microfone à sua altura, o homem

começou a falar:– Há mais ou menos dois meses entrei em um sorteio na empresa onde trabalho, e alguns

dias atrás fui contemplado com o prêmio! Ganhei um Gol novinho em folha! Ele está lá foraestacionado para quem quiser conferir. Tenho a certeza que minha sorte entre tantos outros queparticiparam comigo nesse sorteio foi só porque sou dizimista de coração, nunca deixei de pagaro dízimo. Desde que entrei para esta igreja minha vida pessoal e financeira melhorou da águapara o vinho.

O pastor se aproximou do homem e o abraçou com força, parabenizando-o pela bençãorecebida.

Aleluia, irmão! Aleluia!Uma mulher de meia idade se aproximou do microfone e pediu autorização ao pastor

para falar. Ela tinha as feições rechonchudas, os cabelos grossos e crespos que lhe chegavam atéà cintura.

– Boa-noite, irmãos! – A voz inundou o lugar – Quero contar que ano passado minhairmã sofreu um acidente gravíssimo de carro, enquanto eu fui atropelada duas vezes na rua.Lembramos que não estávamos pagando o dízimo. Quando percebemos o que estavaacontecendo e arrumamos nossa situação junto ao Senhor, a maré de azar desapareceu. Minhairmã está totalmente recuperada, e eu sigo bem e feliz; nada de mau aconteceu desde então.

Aleluia, irmã! Aleluia!O pastor agarrou os braços da mulher e os jogou para cima festejando a graça alcançada.

Gritos, vibrações e mais euforia explodiram entre os fieis. O ministro do templo também asaudou com um abraço enquanto a mulher o reverenciava e o beijava várias vezes na mão.Quando a fiel desceu do palco e o alvoroço diminuiu, ele continuou:

– Alguém ainda dúvida da força de Jeová? Do que adianta crer na palavra de Deus e nãoser dizimista? Vocês querem roubá-lo, é isso? Dessa vez o pastor entonou um acento maisagressivo; a saliva explodiu pela boca nas últimas palavras.

Ele observou os fiéis que balançaram a cabeça em negação, pronunciando em inúmeras

vozes, em um coro bagunçado e resoluto:Não, não, não...Nunca, não, nunca...Jamais! Um absurdo! Nunca, nunca!O pastor esbravejou sua voz firme e autoritária no microfone:– Em todo o dízimo de gado graúdo ou miúdo, a décima parte de tudo o que passa baixo

o cajado do pastor é coisa consagrada a Javé! No livro do Gênesis encontramos a primeirareferência bíblica ao Dízimo: E Abrão lhe deu o dízimo de tudo. O Profeta Malaquias tem umaesclarecedora página sobre o Dízimo: “Tragam o dízimo. Façam essa experiência comigo. Vocêsvão ver se não abro as comportas do céu, se não derramo sobre vocês as minhas bênçãos defartura!”.

Ele desviou o olhar para aquela irmã que tanto o perturbava:– E agora, irmã? Você ainda tem alguma dúvida?Agnes colocou as mãos para o alto e gritou:– Não, senhor! Não, senhor! Perdoe-me por minha ignorância! Aleluia, Aleluia!E os devotos gritaram por quase dois minutos sem tréguas:Aleluia, irmã! Aleluia!Aleluia, irmã! Aleluia...! Agnes saiu da igreja furiosa. Fizera as tais perguntas no intuito de colocar em dúvida a

credibilidade da igreja, mas percebeu que era impossível lutar contra aqueles cérebros escovadoscom cloro e querosene. Em sua visão eram como ovelhas que respondiam aos uivos do grandelobo com um insuportável e ensurdecedor: Béééééééééé. Eles só tinham uma verdade e adefendiam ainda que estivessem obrigados a pagar por ela, ou ainda, esbofetear uma menina emnome dos pecados que condenavam. Por um momento durante o culto, acreditara que alguns fiéistinham parado para refletir (pelo menos em relação ao dízimo), mas as palavras daquele pastoreram fortes demais, um abracadabra para a tolice humana, para o teste da fé sem fronteiras. Opastor estava treinado para fazer aquele tipo de show e manipular as pessoas; era persuasivo obastante para impedir que alguém pensasse distinto a tudo aquilo que ele dizia e pregava. Ora,para fazer seus fiéis temerem bastava falar sobre a fúria de Deus ou citar o pecado. Ninguém ali,tão pequeno, inferior e subordinado às leis divinas, gostaria de desafiar o representante do TodoPoderoso. Ninguém queria pagar pelos pecados no inferno.

Agnes caminhou de volta para casa pensando nas pobres ovelhas da igreja e apiedando-se delas. Não tinham culpa. Mesmo com toda nossa racionalidade, nascemos para viver baixodomínio de outro, de algo, da religião, programados para aceitar que nos manipulem como bemqueiram. A Bíblia continuava sendo o livro mais inteligente que conhecera. Nela as pessoasconseguem explicações para seus males e conflitos, buscam sabedoria e perdão, curas, milagres eensinamentos. Embora toda a astúcia reunida na obra, Agnes começava a duvidar sobre aambiguidade das palavras sagradas. Igrejas usam a Bíblia para sacar proveito e benefício próprio,e por isso enriquecem como uma grande empresa a serviço da fé.

Tudo que ela sabia é que o grupo que atacara Ana estava ali dentro da igreja. Um grupoque chorava por Jesus castigou sua filha injustamente.

Ela não os perdoaria. Antes de sair para trabalhar Agnes escutou alguém bater na porta. Estava atrasada e

nem se deu ao trabalho de olhar pela janela antes de abri-la. Uma mulher estava parada na

entrada da casa, sozinha. Ao reparar no bigode escuro da desconhecida, Agnes soubeimediatamente de quem se tratava.

– Você é a mãe de Ana?– Sim! Você é a mãe de Maria Aparecida. – Afirmou sem conseguir tirar os olhos do

bigode da mulher.– Não vim brigar. Gostaria de falar um instante com você. Posso entrar?Agnes abriu um pouco mais a porta, permitindo que a mulher passasse. Ela apontou o

olhar para uma cadeira, e ofereceu:– Acabei de passar um café, quer?– Sim, por favor! Você está indo trabalhar? Estou atrasando você?– Não, tudo bem! Posso chegar um pouco mais tarde.– Sabe de uma coisa? Admiro sua força! Conseguir voltar ao trabalho tão rápido e...Agnes não entendeu o comentário, pois Ana não fora violentada, como a mulher bem

sabia. Sentiu uma leve tensão no ar. Incomodada com a presença daquela mulher em suacozinha, foi direto ao assunto:

– Você veio aqui, por quê? Espero que não seja para me pedir explicações pelos tapasque dei em sua filha. Depois do que fizeram com Ana, o que poderiam esperar?

A mulher a interrompeu com os olhos marejados de lágrimas.– Oh, não, não, por favor! Depois do que aconteceu naquele dia com Ana, eu não pude

dormir direito até hoje. Tenho pesadelos horríveis; a visão de sua filha caída naquele chão nãome sai da cabeça. Você não sabe como tive que ser forte para voltar aqui e pedir seu perdão. Ananão merecia morrer dessa forma; aliás, quem merece, não? Quando penso que poderia ter sidominha própria filha... Quando penso no sofrimento e tristeza que você deve ter enfrentado, nasolidão... Oh, meu Deus, estremeço de dor!

As ruguinhas da testa de Agnes franziram e os supercílios chegaram mais perto dosolhos. Indignação e espanto se misturaram enquanto ela percebia os lábios da mulher semexendo e verbalizando palavras que não conseguia mais escutar.

Por isso a deixaram ali caída! – Concluiu tardiamente. – Pensaram que Ana estavamorta e fugiram! Essa mulher veio me pedir perdão por ter assassinado minha filha? Elesacham que mataram Ana! Tiveram coragem de agredir uma criança e deixá-la desamparada,inconsciente, sangrando, sem dizer nada a ninguém.

Agnes estava em outro mundo, imaginando o pavor que Ana deveria ter sentido erevivendo a cena sem escutar o que a mulher dizia. Quando voltou a si, percebeu que a mãe deAparecida prosseguia incessante:

-... e também, achei que Ana foi egoísta ao fugir abandonando as meninas lá, semchamar ninguém para ajudá-las. Mas veja como a língua não tem osso! Nós também fizemos oque fizemos e não fomos capazes de chamar ajuda, de avisar que sua filha...

Nesse instante, a porta do pequeno quarto logo ao lado da cozinha se abriu. Ana saiuatravés dela, coçando os olhos, ainda com sono. Ela olhou para mulher com bigodes sentada aolado de sua mãe na cozinha e teve uma vertigem. Sem conseguir dizer algo, as duas seobservaram em um silêncio melindrado.

A boca da mulher abriu quando percebeu a presença da garota. Sua boca começou atremer e os olhos ficaram banhados de lágrimas. A xícara de café deslizou entre seus dedos eespatifou no chão.

– Não pode ser, ó Jesus amado, não pode ser! Um fantasma! É a reencarnação dosmortos! – Olhou desesperada para Agnes, percebendo imediatamente que a mãe da menina morta

não enxergava o espírito da filha entre elas. Como castigo, a única que podia ver a assombraçãoera ela.

Sem conseguir fitar a alucinação diretamente nos olhos por mais tempo, a mulher abriu aporta e saiu correndo. Gritava histericamente quando alcançou a rua:

– É meu castigo! Ela voltou para me assombrar! Deus, dai-me misericórdia por meuspecados!

Filha e mãe ficaram na porta da cozinha. Olharam uma para outra, absorvidas na cenacom uma risadinha presa nos lábios; incrédulas com a cena que acabavam de presenciar.

Com um sorriso cômico, Agnes comentou:– É filha, depois da ignorância, o excesso é o maior pecado da humanidade! Creia! Mas

não ao ponto de transformar sua fé em um picadeiro de palhaços, onde você é o artista principal.– Ela apontou na direção da mulher que corria e completou: – A fé pode ser cativante quandobem aplicada, mas em exagero, e despropositadamente como essa daí, é apenas uma piada parabobos!

Ana retornou à escola depois de duas semanas. O diretor foi pessoalmente a casa delas,

alegando que se encarregaria da proteção de Ana. Agnes, ainda relutante, acabou cedendo apósouví-lo dizer que a menina não poderia deixar de estudar, que atrasaria sua vida escolar e queAgnes olhasse para a filha: Ana já estava atrasada em relação às outras meninas de sua idade.

Ana chegou no primeiro dia à escola após o incidente, apreensiva e excitada. Ao mesmotempo em que receava pela reação das colegas, também se estimulava ao saber que sua mãe deuuma surra em Maria Aparecida, e que a mãe dela, uma lunática, falava por aí que Ana virara umfantasma, fazendo com que todos pensassem que estava totalmente demente.

No caminho para o colégio, Ana olhou para todos os lados. A sensação iminente de quepoderia encontrar os rapazes ameaçadores ou aquela gente da igreja querendo exorcizá-la, matá-la ou castigá-la de qualquer forma, não a deixava em paz. Antes de entrar na escola, avistou oterreno onde tudo aconteceu. Imaginou como as colegas gritaram por socorro enquanto eramviolentadas; como terminaram aquela noite: elas machucadas e arrasadas, eles rindo alto elevantando as calças, abandonando-as como parte de um lixo qualquer. Sentiu seu corpoestremecer, mas entrou na escola com a cabeça erguida. Seu costume habitual era desviar osolhos daqueles que a observavam; evitar enfrentar olhos alheios, procurar não saber se as pessoasriam dela, falavam qualquer coisa de sua roupa ou sua aparência medíocre. No fundo, Ana sentiamedo das pessoas, medo do julgamento que faziam dela, mas diferente de como costumava agirfrente aos olhares curiosos, caminhou pelo pátio com o nariz levantado. Desafiou outros olharese caçou bocas que murmurassem qualquer coisa a seu respeito, porém não viu nada. Notou queos demais alunos pareciam ocupados demais com suas próprias vidas, mexendo e remexendomochilas, namorando furtivamente, contando algum tipo de piada leviana.

Caminhou até a sala de aula; seus colegas de turma estavam quase todos lá, inclusiveMaria Aparecida e Francisca com outras meninas. Dessa vez, teve a certeza que cochichavam aseu respeito. Sentou-se no lugar de costume e tirou os cadernos da mochila, ignorando-as.

Ana fingia que lia qualquer coisa em seu livro de História quando percebeu a presençade alguém ao seu lado.

– Podemos conversar lá fora? – Francisca foi a primeira a se pronunciar. Aparecidaplantou-se logo atrás, fulminando-a com um olhar venenoso.

Ana respirou fundo antes de se levantar da cadeira.Quando chegaram ao pátio, Maria Aparecida tomou a dianteira da conversa e se

antecipou em dizer, como se estivesse compactuando um segredo:– Olha, o que vamos contar agora deve ficar apenas entre nós três, combinado? – Com

os olhos cravados em Ana, não esperou a resposta antes de prosseguir: – Nada aconteceu àquelanoite. Se bem que quase... Fomos salvas por outros rapazes que passavam por ali e nos ouviramgritar. – Ana entendeu que Aparecida pulou a parte em que “foram deixadas para trás por ela”. –Eles chegaram enquanto você ainda corria e deram um jeito no bando de tarados à base daporrada. Colocaram a cambada para correr em dois minutos, antes que fizessem qualquer coisacontra a gente.

Ana titubeou:– Mas... mas... Por que todo aquele desespero se não aconteceu nada?– Porque queríamos dar uma lição em você! Conheço minha mãe, sabia que ela iria

atrás. Ficamos com muita raiva porque você fugiu, sem nos ajudar.– Como vocês podem saber que eu não pedi ajuda?– Vamos contar tudo, mas esperamos confiar em você; afinal, estamos quites! Minha

mãe foi até sua casa, a sua foi na minha e me deu uns belos tapas... Depois de tudo ainda saí napior, pois minha mãe está louca! Ela acha que você virou um fantasma, que você está morta eque sua alma não poderá ir ao paraíso porque foi assassinada. Minha mãe acredita que você estávagando pela terra atrás de justiça e logo irá atrás dela. – Ela fez uma careta de repúdio,revirando os olhos para cima. Depois, como se não quisesse mais expor sua mãe ao ridículo,declarou de forma direta e pouco afetiva: – Olha, vou dizer a verdade, sentimos falta de você,queremos reatar nossa amizade.

Ana suspeitou das intenções de Maria Aparecida, ainda com o assunto entalado nagarganta.

– Vocês estão loucas! Quer dizer então que vocês tiveram a coragem de dizer aos seuspais que foram estupradas só para me fazer pagar por ter fugido? Vocês teriam feito o que nomeu lugar? Eu estava assustada! Eu teria sido apenas mais uma para o festim se tivesse ficado.

– Ora, ela é muito burra! – Constatou Maria Aparecida buscando o apoio de Francisca. –Nós transamos aquela noite, você não entendeu ainda? – Ela percebeu a expressão deperplexidade no rosto de Ana. – Saímos com os outros garotos que nos defenderam. Elesestudam à noite, já estão terminando o segundo grau no Quebra Nozes e são incrivelmentelindos! Eles têm um amigo de sobra que podemos apresentar para você.

– Mas... Mas...– Você é lesada das ideias mesmo, não é? Jura que não entendeu mesmo? – Ela tornou a

perguntar impaciente, depois de soltar com zanga o ar pelas narinas, tornando a revirar os olhos.– Após termos perdido a virgindade àquela noite, precisávamos de uma boa história para contaraos nossos pais por estarmos tão tarde na rua, por nossa roupa estar suja... Minha mãe memataria se visse que não sou mais virgem!

– Nossa! A minha mãe com certeza me colocaria para fora de casa aos pontapés! –Admitiu Francisca.

– Mas como elas poderiam saber? – Ana se sentiu despreparada para a conversa.As duas se entreolharam com impaciência.– Pare com essa ceninha! Vai dizer que sua mãe não bisbilhota sua castidade?– Que? – Ana não entendeu absolutamente nada do que disseram. Para começar, nem

sabia o que era castidade.– Claro! Você não percebe? Utilizamos a história do estupro para limpar nossa barra;

quer dizer... Nossos pais ficaram possessos contra os agressores, mas agora não temos mais

hímen! Nossas mães não precisam mais nos examinar, pois sabem que perdemos o cabaço, e nãopor vontade própria!

– Quer dizer que sua mãe...– Podemos transar, burra! E eles acharão sempre que foi uma única vez, pela agressão, e

não porque liberamos espontaneamente.– É a igreja que manda fazer isso?– Não, isso é coisa da cabeça de nossas mães, mesmo! Elas sabem que temos fogo na

periquita, por isso desconfiam de nós e nos examinam sempre.– Isso é perverso! – Afirmou Ana, tampando a boca com as mãos. – Não sei o que é

pior, ter a periquita investigada pela mãe, ou o que vocês tiveram que fazer para poder transar avontade. Por causa dessa mentira eles quase me mataram! – Ela gritou, controlando para nãochorar. – Minha mãe está furiosa com sua gente! Eu me senti culpada durante dias por ter fugido,imaginando como vocês deveriam estar arrasadas...

– Ora, perverso é termos que abrir as pernas todos os meses e escancarar nossaintimidade aos olhos controladores de nossas mães. Não podemos nem nos depilar! E nãoadianta se fazer de santinha, não! Você fugiu do terreno àquela noite. O fato de não teracontecido o pior com a gente, definitivamente não é mérito seu. – Menos agressiva, elaperguntou em tom de confidência: – Você quer dizer mesmo que sua mãe não faz isso com você?

– Vocês estão doentes! Isso é uma perversão! Eu vou contar tudo à minha mãe!As duas amigas perceberam que não chegariam a um acordo com Ana. Deveriam

encerrar a amizade para sempre, mas não sem antes garantir que ela ficaria de boca fechada.Maria Aparecida ameaçou Ana com o dedo apontado quase em cima do nariz dela:

– É melhor você ficar de bico bem fechado sobre o que conversamos! Aconselho queguarde nosso segredo ou iremos pessoalmente conversar com sua mamãe! Já pensou a cara delaquando descobrir que você brinca de “médico” com o velhote do seu vizinho?

Ana entendeu que elas não queriam reatar amizade; que a conversa já estava planejada ea intenção das duas era apenas ameaçá-la. Mesmo sem dar o braço a torcer em uma declaraçãoescancarada, entendeu que assinava um pacto de silêncio a partir daquele momento.

Ana saiu do colégio sentindo-se arrasada e infeliz. Apesar de tantos problemas ao seu

redor, ela só conseguia pensar na desfeita do vizinho e seu amor mal correspondido. Fazia poucomais de duas semanas que não via Antônio, embora escutasse de seu quarto, todos os dias, obarulho da lambreta chegar e sair. Não podia sequer espiá-lo pela janela porque sua mãe ficara osúltimos dias em casa, andando de um lado ao outro, pensativa, impedindo-a de retomar a rotinade fiscalizá-lo.

Era o primeiro dia, após duas semanas, que sua mãe retornava a rotina normal deserviço. Ana estava a duas esquinas de casa. Ainda pensava sobre Maria Aparecida e Francisca,incrédula por tudo que escutara, imaginando aquelas mães desequilibradas inspecionando aintimidade de suas filhas. O pensamento deixou-a com vergonha; sua mãe ficaria boquiaberta sesoubesse disso, mas não podia contar, pois sabia que ela ficaria ainda mais boquiaberta com suaprópria audácia de procurar o vizinho sem calcinha.

Estava perto de casa quando o barulho da lambreta a alcançou. Caminhou mais depressasem olhar para Antônio, que a seguia sem dizer nada. Desejou que o vizinho percebesse que elao detestava e que jamais voltaria a falar com ele novamente. Antônio saiu da lambreta e aacompanhou os poucos metros que faltavam, empurrando o veículo desligado. Ela sentiu comose descontrolava ao lado dele, seu coração batia acelerado e não podia respirar direito. Pensava

em alguma maneira de enxotá-lo de sua vida, esquecê-lo para sempre. Devo ser resistente, Deus,me ajude! Não me deixe cair em tentação! Eu o odeio com toda minha alma!

– Hei, Ana! Você não vai falar comigo? – Perguntou quando chegaram.– Oh, você! Olá, como vai? – Ela dissimulou pateticamente seu comportamento

silencioso e arisco como se não o tivesse visto. Suas pernas tremiam e sua boca secou. Torceupara que seu nervosismo não fosse descoberto ou do contrário ele poderia rir da paixão insana edescontrolada, que só uma menina tola é capaz de sentir. Ainda tinha as palavras dele em suamemória: “Agora você já pode ir!”. Ao lembrar-se da última vez que estiveram juntos e da formacomo fora tratada, sentiu uma onda colérica correr por suas veias.

Ela puxou a tranca do portão para cima, vagarosamente, congelando o momento dentrode si. Sabia que Antônio estava parado logo atrás, confuso pela situação, onde pela primeira vezela mantinha o silêncio e o ignorava. Evitou a todo custo confrontar seus olhos com os dele, masnão conseguiu. Enxergou-o de relance; rápido suficiente para perceber que ele ainda era ohomem mais charmoso do mundo. Aquilo a incomodou terrivelmente.

Antes de entrar e perdê-lo de vista, perguntou com uma expressão ligeiramenteaborrecida nos olhos:

– Você vai entrar por livre e espontaneamente vontade ou terei que arrastá-lo à força?Antônio sorriu maliciosamente e entrou.

12 de Outubro de 1989E mais um diabo caído

A igreja estava quase pronta, e ficara extraordinariamente magnífica. Agnes

contemplou a nova IURD embasbacada, perguntando-se de onde surgira o dinheiro paratransformar o local que um dia fora um mísero balcão, no empreendimento monstruoso queobservava agora, levantado praticamente do dia para noite. Não sabia o que dizer frente aoexagero dos últimos detalhes e o capricho acirrado da construção.

Vários homens trabalharam na expansão da igreja com afinco nas últimas semanas, masAgnes entrava e saia sempre tão surpreendida pelo espetáculo do culto que não se deu aotrabalho de observar a construção. Sequer reparou nas janelas e portas imponentes com vidroscoloridos. Tampouco percebera os assentos em madeira maciça que chegavam de uma ponta aoutra da parede. Faltavam ainda poucos detalhes à igreja: algo de pintura no canto esquerdo doteto, retirar os últimos entulhos da obra amontoados no pátio. Com uma boa limpeza na parte quefora reformada, a igreja estaria nova em folha, tão bela que nem combinava com a feiura dobairro e as pessoas que a frequentavam, pensou.

Agnes reuniu o máximo de católicos possível. Através da igreja católica e com acolaboração do padre, amigos, conhecidos, vizinhos e o locutor da rádio (um antigo conhecido),formaram um grande grupo para assistir o espetáculo evangélico. Pegaram lugares nos assentosde trás. Ocuparam quase quatro fileiras e tentaram não chamar atenção. O radialista que já estavacom o cassete a postos, convidou dois repórteres da TV Manchete que chegaram com câmerasocultas para participar do culto, após terem sido informados do que estava por acontecer. A redede TV já investigava o crescimento fenomenal da IURD e a forma como a mesma vinhaconquistando milhões de adeptos em todo o Brasil. O que Agnes contara serviu de tempero paraaguçar ainda mais a curiosidade dos interessados da mídia pelo show.

No estacionamento, parte da imprensa filmava às escondidas o pastor chegar. O cortejo

dos fiéis que trabalhavam para a igreja o esperava estacionar seu luxuoso carro, escoltado porobreiros, em uma espaçosa garagem privativa. O pastor saiu do carro e permaneceu na garagemcom sua equipe, conversando e ensaiando os últimos pormenores do culto daquela noite porpoucos minutos. Logo, alguém acionou o portão automático (que fechou nos narizes da imprensaque espiava no lado de fora), e não puderam ver nada mais.

O pastor iniciou o culto com algo de atraso, sem se desculpar pela demora, animando

os fieis na busca de um sapato de fogo. Ele gritava e corria de um lado a outro, desafiando odiabo e curando a febre satânica das pessoas no palco. Colheu o testemunho de pessoas que sediziam curados de dores nas costas e enxaquecas após terem feito as orações da igreja.

Uma menina de uns doze anos que fazia parte do grupo no palco, relatou que vinhasofrendo com dores no joelho, mas depois de fazer a oração da igreja, melhorou no mesmoinstante. Para comprovar o que dizia, pulou no palco demonstrando ao público que estavacurada.

As vozes de sempre se misturaram entre lágrimas e celebração, gritando:Aleluia, Aleluia, Aleluia!Um grupo de pastores atuava exorcizando o demônio das pessoas. Algumas delas eram

arrastadas pelos cabelos até o altar e empurradas contra o chão. Os possuídos permaneciam comos braços por detrás das costas, de olhos fechados, estrebuchando-se e debatendo-se no chão demadeira do palco, executando um terrível (e ao mesmo tempo admirável) espetáculoensurdecedor. Na medida em que os pastores ordenavam o diabo abandonar os corpos dos fiéisem nome de Jesus, as pessoas eram liberadas de Satã. Acordavam sem conhecimento de ondeestavam, recuperadas e livres dos espíritos malignos que as possuíam. A plateia aplaudiaenlouquecida; jogando as mãos para cima, agradecidas, eufóricas e maravilhadas por deportaremo capeta ao inferno.

O diabo já estava fora de cena e as pessoas liberadas a retornar aos seus lugares. Osministros auxiliares subiram ao palco, sentando-se à direita do protagonista do templo, do sábiopastor, o punidor de todos os pecados, o crítico do bem material. O santo ostentava seu braceletede ouro, o terno Canali bem cortado em parceria com uma gravata Salvatore Ferragamo,estampada com delicadas bolinhas brancas. Vestido para exorcizar, ele provocava a fé de suasovelhas.

Com o microfone em mãos, vociferou:– Vocês estão vendo o poder de Cristo? – Ele se referiu aos exorcizados e ao próprio

demônio, derrotado.Desafiando a plateia, ordenou de forma autoritária, como se tivesse tomado uma decisão

de última hora:– Vocês vão trazer tudo o que tem aqui para frente agora! Vão fazer cheques e mostrar

ao mundo que Deus não nos deixa ser covardes! Prestem atenção – ele gritou – Vocês vão metera mão no bolso e trazer tudo o que encontrarem, entenderam?

O público se remexeu agitado. Sem demora, abriram bolsas e carteiras, assinaramcheques, fizeram fila para depositar chave e documento de automóveis no altar, em cima de umaBíblia aberta. Os fiéis se aglomeraram; em menos de dois minutos já não se via o livro sagrado,somente cédulas, relógios, moedas, cheques, dinheiro, dinheiro, dinheiro...

Depois que a mesa ficou coberta de valores, o pastor indagou com cinismo:– Alguém aqui os obrigou a dar algo?– Em forma de ruborizo (um tanto

dessincronizado), a plateia negou ofendida. – Vocês deram por livre e espontânea vontade, não

foi? – Os fiéis tornaram a confirmar que faziam doações porque desejavam.O pastor subiu na mesa, encurvando-se perante a riqueza depositada com joelhos e mãos

pousados sobre o dinheiro, de olhos fechados, e ordenou bravamente: – Levantem suas carteiraspara o céu! – Em seguida, agradeceu a Deus, jogando o dinheiro às alturas. Depois de beijarcédulas e cheques, pediu a benção pela fartura ali disposta e iniciou uma reza implorando aoscéus para que nunca faltasse nada ao rebanho.

O pastor retomou o culto e criticou a igreja católica. Com a afirmação de que o Papa ésomente um político, tornou a falar sobre a desgraça do catolicismo para os países de terceiromundo e a estúpida adoração de santos:

– Hoje é feriado católico, e vejam só: o Brasil está parado para idolatrar Nossa SenhoraAparecida. A padroeira do Brasil! Não é uma piada isso? – Bufou no microfone, demonstrandoum grotesco repúdio, pedindo aos obreiros que trouxessem a imagem da santa. Os fiéis quetrabalhavam para a igreja se aproximaram com uma imagem medindo mais ou menos oitentacentímetros de Nossa Senhora Aparecida. O pastor a olhou com desprezo e perguntou à plateia: –Pode existir santo mais feio? – Era praticamente uma afirmação. – Essas imagens sacras sãopatenteadas pela igreja católica; eles lucram com essa adoração descabida, ridicularizam vocês,mas não se deixem enganar! – Tornou a gritar com saliva nos cantos da boca e pediu um martelopara outro obreiro no palco. Com vários golpes e pontapés, destruiu a estátua, fazendo seuspupilos os aplaudirem com euforia. O pastor se afastou para um canto do palco, permitindo aosfiéis (que haviam levado imagens de santos), atirá-las contra a parede do altar. Algumas pessoassaíram feridas, atingidas por lascas de cerâmica nos olhos e na face, mas não se importaram. Nobanco do fundo, em pé, o grupo de católicos se revoltou contra a cena, partindo para cima dosevangélicos desprevenidos. Os católicos, em menor grupo, exigiram respeito à imagem da santae ao catolicismo.

Os evangélicos e o pastor perceberam através do protesto que haviam sido infiltradosuma vez mais. Católicos e evangélicos discutiram aos gritos, sem chegar a um entendimento.Minutos depois de ter iniciado a confusão, sem que ninguém escutasse ninguém, entraram em péde guerra com socos e coices uns contra os outros. A guerra estava travada. Ovelhas versusovelhas. Católicos versus evangélicos. Interesses versus interesses. Fé versus fé.

A rádio bradou a toda cidade sobre o acontecido, culpando a Igreja Universal do Reino

de Deus pela fomentação da violência enquanto o canal brasileiro de televisão, a rede Manchete,propagou aos quatro ventos o vídeo que retratava a intolerância dos falsos profetas da Universalcontra outras religiões, e ainda: extorsão de dinheiro, aproveitamento da fé dos inocentes elavagem cerebral.

Surpreendentemente, ao contrário de diminuir o número de fiéis e igrejas da Universaldo Reino de Deus com o número de escândalos e denúncias que vinham surgindo em todo país,ambos se multiplicaram.

Agnes encabeçou um grupo em Londrina contra a referida igreja evangélica. Eles saíamnas ruas em passeata, formavam congressos em outras cidades, iniciavam protestos frente àigreja, durante o culto do pastor. Não raro iniciava o quebra-pau, mão a mão. Ao mesmo tempoem que a religião começava a perder sentido para muitos que já não se animavam por qualquerdos lados, descrentes da ideologia de igrejas surgiram alternativos aos olhos do país: ateus,budistas, espíritas, desinteressados por religião em qualquer esfera.

Para muitos, as igrejas tornaram-se motivo de desconfiança e pilhéria. Pessoasbrincavam intitulando-se protestantes porque protestavam contra igreja. As ideologias se

fortaleciam e se perdiam em meio ao caos. Os confrontos entre católicos e evangélicos pioravamgradativamente chegando aos confins da televisão, em rede pública nacional, disputando atémesmo eleições.

Embora aumentasse o ínfimo número de ateus declarados, o número de evangélicosultrapassava a casa dos oito milhões no país. A identidade da fé passou a enfrentar uma crisecom mil facetas, crenças e religiões.

Inúmeras igrejas evangélicas – de diferentes denominações e tipos de pecados rotulados– eclodiram no país; com elas, fiéis, fanáticos e leis bíblicas misturavam-se e confundiam-seentre permissões e proibições, riqueza e pobreza. Enquanto se trabalhava arduamente para que osfiéis fossem ainda mais fiéis, saúde e terrenos no céu começaram a ser negociados por preçosvariantes (autônomos da inflação), baseados apenas na fé do comprador. Quanto maior a fé,maior o preço. As pessoas não pensavam mais por si só; não conseguiam distinguir o certo doerrado sem o aval de seus templos, passando a defender com unhas e dentes as doutrinas queaprendiam.

Com o mercado da fé em alta, distintas instituições evangélicas se multiplicaram, porém,com algo em comum: todas cobravam educadamente um valor em nome de Deus.

Um mês depois do feriado de Nossa Senhora Aparecida e a guerra das religiões ter sido

declarada abertamente, o fundador da IURD, Edir Macedo, assumiu a direção da TV Record edifundiu em rede nacional: preces, exorcismos, testemunhos de gente que se recuperou de pestes,e passou a pedir através de seus pastores (treinados na arte da persuasão através do medo), odinheiro do dízimo. Embora o número de denúncias subisse, a estatística seguia em plenocrescimento, com cada vez mais adeptos e seguidores de igrejas evangélicas no país.

Quando o bispo encheu seu bolso de ouro e garantiu a fortaleza do reinado construídoatravés da fé de seus fieis, marchou para o exterior e passou a controlar seu império do outrolado do muro.

Enquanto Agnes se envolvia cada vez mais no combate contra a igreja Universal, sua

filha envolvia-se ainda mais profundamente com Antônio, embaixo dos lençóis na cama dele.Furtiva e deliciosamente, encontravam-se uma ou duas vezes por semana para perpetrar o deleiteproibido.

Ana estava apaixonada e depois de todos aqueles anos de espera em silêncio, finalmenteera correspondida. Estava no paraíso! Antônio era o milagre do amor.

Ana sabia que Antônio estava em casa porque o viu chegar. Ansiosa, tomou um banho

rápido, passou água de colônia atrás das orelhas e secou os cabelos às pressas.Ainda sem roupas, olhou na gaveta de roupas íntimas e percebeu que suas calcinhas

estavam, ou furadas ou com o elástico esgaçado, ou as duas coisas. Precisava urgentemente decalcinhas, meias, um sapato decente e um uniforme novo, mas não se animava a pedir à sua mãeque sequer ganhava para manter o básico da casa. Pensou na possibilidade de arrumar umemprego; era a única forma de ser independente e conseguir o que precisava para se vestirdecentemente. Chegara à conclusão que a escola não a levaria a lugar algum, pois logo estariacasada com Antônio e os estudos só a faziam perder tempo. Tinha planos concretos de trabalharcomo recepcionista ou secretária em alguma repartição; nesse caso, para que aprender história,física ou química se nada disso seria útil em sua vida? Sim, definitivamente, estudar era umabobagem primitiva.

Ao ver o estado lastimável de sua roupa intima, colocou um vestido de algodão surradosem nada por baixo, afinal, Antônio já estava acostumado com suas surpresas.

Atravessou a rua e bateu na porta do vizinho, impaciente.Uma mulher por volta dos 25 anos, de estatura mediana e olhos negros, abriu a porta.

Ana percebeu como Antônio correu da cozinha até a pequena sala, tentando chegar junto comela. Espreitou o ambiente, notando o embaraço estampado no rosto dele, e um ponto deinterrogação no rosto da mulher desconhecida.

– Ana! – Ele se adiantou: – O que você está fazendo aqui?Ana avançou morrendo de ciúmes, sem saber ao certo o que viria a seguir.– Quem é você? – Perguntou confrontando diretamente os olhos da estranha.– Que bonitinha! Quem é ela? – A estranha indagou, dirigindo a pergunta para Antônio,

como se Ana fosse uma menina sapeca que não podia falar por si só. Ana sentiu um nó noestômago.

– Minha vizinha, Ana! – Respondeu descaradamente. Tremendo por dentro, Antônioacreditou que poderia confiar na discrição de Ana. Piscando um olho que implorava pelacumplicidade dela, anunciou: – Essa é minha noiva, Raquel!

O chão se abriu na frente de Ana, e por um instante ela pensou que seria tragada. O ódioque sentiu da mulher que sorria com cara de idiota fez sua boca secar.

Ana escancarou a porta imediatamente. Tentando controlar sua ira diante da situaçãoinesperada, ordenou:

– Saia daqui, agora!– Como? – Raquel não entendeu o que a menina estava fazendo. – O que é isso,

Antônio?– Antônio é meu noivo! – Ana declarou com muita convicção. – Como ele poderia casar

com nós duas?Raquel soltou uma gargalhada pensando que Ana brincava com eles. Só percebeu que a

“criança” dizia a verdade quando viu Antônio empalidecer.– O que está acontecendo aqui? Ela está brincando, não é, Antônio? Você não tem nada

com essa menina, tem?Antônio buscou uma desculpa convincente, vasculhando o cérebro atrás de uma mentira

que o tirasse dessa situação degradante e perigosa. Olhou para os lados, mas Ana estava ali comuma expressão que dizia claramente que iria afrontá-lo com a verdade se necessário. Ele nãotinha saída.

Os olhos de Raquel ficaram em chamas. Entendeu através do silêncio perturbador e aatmosfera tensa que ele tinha uma relação com a menina. Antônio não passava de um enganador,um devasso, um imoral mal intencionado.

– Quantos anos ela tem? – Raquel perguntou sem esperar a resposta, tirando as própriasconclusões: – Onze, doze no máximo? Olhe para essa menina, imbecil! Ela sequer tem seios!Como você pode? Eu deveria chamar a polícia!

Arrebatada, pegou a bolsa em cima do sofá, parou na frente de Antônio que estavaprestes a se lamentar, e o acertou no lado da orelha três vezes com a bolsa. Ele se defendeu comos braços na frente do rosto, sem conseguir dizer nada.

Raquel calçou o sapato e saiu pela porta sem olhar para trás, consciente de que jamaisvoltaria.

Ana fechou a porta e o encarou decepcionada:

– Como você pôde fazer isso? Você tinha outra mulher enquanto estava comigo? Tinhaplanos de se casar com ela?

Antônio desabou no sofá pensando na situação humilhante em que se metera; no quedeveria inventar para ter Raquel de volta, e em como conseguiria tirar Ana de sua vida. Gostavade Ana, não podia negar. A garota havia lhe proporcionado o melhor sexo que já teve na vida,mas não podia mais se submeter a esse tipo de situação confrontante e arriscada. As coisas foramlonge demais. Era hora de colocar um ponto final nessa loucura.

Ana continuou em pé frente à porta, esperando uma explicação. Seus olhos estavamduros, inflexíveis.

– Por que você mentiu dizendo que éramos noivos? – Antônio perguntou, tentandoentender o que ela fez.

– Porque você vai se casar comigo! – Ela afirmou, segura.Impaciente, Antônio gritou:– Por que você não volta a brincar com suas bonecas e deixa uma vez por todas de

encher o meu saco?Ana segurou a vontade de chorar, resistente. Não perderei meu homem para qualquer

vagabunda!– Você vai se casar comigo ou contarei à minha mãe que me deflorou!Antônio arregalou os olhos, sobressaltado.– Você se ofereceu para mim como uma piranhazinha!– E você aceitou, ou não foi?Ela se aproximou e sentou ao lado dele, observando-o encaracolar os cabelos, nervoso.

Não queria ameaçá-lo dessa forma, mas precisava fazê-lo. Procurando amenizar a situação,sugeriu:

– Olha, vamos esquecer o que aconteceu agora? Eu vou esquecer a tal da Raquel e vocêvai esquecer que eu o ameacei, certo? – Estendeu a mão, oferecendo um acordo.

Antônio a estudou em silêncio, assombrado pela forma como ela tentava manipulá-lo.Vendo que ele não selaria o acordo, Ana puxou sua mão de volta; estendeu o corpo no

sofá e abriu as pernas. Quando Antônio percebeu que ela estava sem calcinha, levantou-se emum salto, imediatamente. Em seu rosto, uma mistura de repugnância e raiva ficou estampada:

– Você está louca? Acha mesmo que faremos algo depois dessa cena patética? Você nãotinha o direito de mentir para a Raquel dizendo que somos noivos!

– Não somos noivos, mas transamos, ou não? Não menti em nada; nós vamos nos casar!Eu só falei uma verdade que ainda não aconteceu!

– Ana, eu nunca vou pedi-la em casamento! Muito menos agora com suas ameaças!Ela preferiu ignorar o protesto e continuou em um jogo de provocação:– Se você não quer tudo bem, vou procurar quem queira atender meus desejos – Ela se

levantou, e disse como se não fosse a menininha madura de treze anos que gostava deimportunar: – Estou de olho no vizinho da esquerda. Ele deve ter uns cinquenta anos, mas achoque ainda quebra um galho...

Sem poder entender a própria fúria, Antônio agarrou os cabelos dela com força. Puxou acabeça de Ana para trás com violência e a ameaçou:

– Se você fizer isso, eu mato você!Ana gozou de uma euforia inexplicável. Dissimulou um pouco de medo, tentando

esconder o ardor de paixão que a dominou por completo nesse instante. Com a mão direita, abriua braguilha da calça jeans e procurou a virilidade dele, que já a esperava excitada. Começou a

estimulá-lo lentamente, sentindo que seus cabelos eram puxados com força para trás, sendoquase arrancados de sua cabeça. Notou o membro de Antônio inchar em suas mãos e a face deleficar ainda mais encolerizada, enquanto empurrava seus dedos com força dentro dela.

Antônio a beijou com violência, depois, empurrou a cabeça dela para baixo, ao encontrode seu pênis. Ana não soube o que fazer quando encarou o membro teso frente a frente.

– Você pensa que já é uma mulher, não é? Abra a boca!Ela obedeceu.– Não morda ou acabo com você!Ana engasgou; procurou esconder os dentes para não machucá-lo, enquanto Antônio

empurrava a cabeça dela para frente e para trás abruptamente, agarrando-a pelos cabelos,fazendo-a engolir seu membro inteiro. Ele urrava e gemia, achando que a sujeitava ao seu plenodomínio e desejo, humilhando-a, sem perceber que Ana desfrutava de um prazer maior que odele. Antônio a puxou de volta para cima e a colocou de costas, com o rosto contra parede.Levantou seu vestido até à cintura, afastou as nádegas dela e a penetrou com agressividade,invadindo-a pela frente e por trás, encolerizado pelo fogo que corria em suas veias. Anadisfarçava a luxúria do momento com gritos e murmúrios, fingindo com pequenos gritos a dorque Antônio gostaria que ela sentisse, sorvendo o deleite através desse castigo carnal do qualdeveria ser vítima (e não, favorecida). Delirou de prazer ao sentir seu corpo invadido comexaltação pelo homem que amava.

Segundos após soltar um urro abafado de prazer, Antônio liberou-a de seu domínio.Subiu a calça e a fechou em seguida; depois apertou o cinto, abandonando Ana contra a parede,ainda com o vestido levantado.

Antes mesmo que ela pudesse se recompor, ele abriu a porta e ordenou:– Saia daqui! Não quero nunca mais vê-la!Ana endireitou o vestido e o atendeu com um sorriso nos lábios, enquanto ele a esperava

ao lado da porta aberta. Passou pela porta cambaleando de dor e felicidade. Respeitaria o tempoque Antônio necessitava para refletir. Ainda podia senti-lo dentro dela, amando-a comveemência, deflorando-a com a agressividade que só a paixão permite.

Tomás fora concebido nessa tarde de amor violento. Ana soube que teria um filho uma

semana depois de receber a notícia de que Maria Aparecida foi colocada na rua pelos pais porquetambém estava grávida; um mês antes da notícia de que Francisca também esperava um bebê.Ana soube que esperava um filho de Antônio no mesmo dia em que sua mãe descobrira que tinhacâncer de estômago em estado avançado.

No começo de novembro desse ano as rádios fremiram e as pessoas não falavam em

outra coisa que não fosse a “queda do muro de Berlim”. Ana escutava as notícias, julgando queBerlim era uma cidade próxima ao Paraná, no Brasil, e dizia não saber por que as pessoas sedebatiam tanto por causa de um muro, Caiu? Vai ver estava mal feito! Por que não constroemoutro mais forte e deixam de falar sobre isso? Escutava também sobre o atual presidente, umcara boa pinta. As mulheres estavam enlouquecidas pelo galã da novela das oito chamado Collorde Mello. Embora a euforia feminina que levou esse homem à presidência, todas as estações derádio e televisão falavam sobre Mello ter destruído o país com uma tal de abertura de mercadonacional às importações que eliminou 920 mil postos de trabalho e provocou uma inflação nacasa dos 1200% ao ano. Ana não se importava com nada, apenas com seu amor pelo grandiosoAntônio, o fruto do amor entre eles que crescia em seu ventre e a doença da mãe, que a consumia

depressa.Ana se mudou para a casa de Antônio logo após comunicar-lhe a gravidez. Casaram-se

no civil não por desejo, mas para selar oficialmente a união tal como Ana queria. Não houvebolo, nem convidados, apenas os parentes mais próximos que serviram de testemunha.

Para evitar escândalos, Antônio aceitou com resignação a vida de casado, a esposa queacabava de cumprir quatorze anos e o filho que estava por nascer. Vendeu a casa na mesma ruade Ana e sacou todo o dinheiro da poupança, acumulado desde quando começara a trabalhardescarregando caminhões de tijolos na olaria. Reuniu todo o dinheiro que tinha e financiou como banco uma pequena quantia para comprar uma casa de alvenaria esquisita (mas barata) queescolhera com Ana. Tinha dois quartos pequenos construídos em um corredor relativamentegrande. Ana gostou especialmente da cozinha. Havia espaço suficiente para uma mesa ampla etudo que necessitava para cozinhar com conforto à sua família.

Os vizinhos foram amáveis desde o princípio, e logo ela e Antônio formaram vínculosde amizade com outros casais. A rua era de terra batida; os novos vizinhos disseram que estavapor ser asfaltada fazia pelo menos dez anos. As casas se enfileiravam uma ao lado da outra,divididas por um muro em comum; algumas apenas parede com parede, coladas no mesmocimento. Havia casas cor de rosa e pintadas de laranja, casas sem tinta, apenas no reboco, casasde madeira estufadas, surradas pelo sol, cachorros magrelos à procura de comida e gente quetrabalhava no pesado dia a dia.

Logo na segunda semana depois de instalados na nova casa, Antônio mobiliou a casacom o pouco dos móveis velhos que dispunha da casa anterior. Comprara um sofá verde emliquidação para a sala (acoplada com a cozinha) e comprou também uma cama de casal desegunda mão. Ana era a pessoa mais feliz que Antônio já vira na vida. Deslumbrava-se com asmenores coisas, fosse uma borboleta que pousava na janela ou com uma barra de chocolate queganhava no final de semana. Quando ele estava de mau humor, ela sorria; quando não queriaconversa, ela cantava; se algo saísse errado, Ana dava risadas. Antônio aprendeu com ela aencarar mais suavemente a vida e os problemas. Quando algo o assustava ou entristecia,lembrava-se de Ana e do sorriso despreocupado dela; um sorriso que ignorava a maldade daspessoas e suas segundas intenções.

Com o tempo, julgou-se afortunado por ter uma esposa jovem, completamenteapaixonada por ele, que causava furor e inveja onde quer que fossem.

Quando Agnes morreu, mais ou menos um ano depois do casamento da filha, Ana

chorou por mais de duas semanas, lutando para esconder sua tristeza do marido. Desejava comurgência tornar-se uma mulher forte e evitava que Antônio a visse chorando seguidamente. Tiroupoucas coisas da casa, entre elas, o minúsculo sofá que a mãe adorava.

Lamentava sua mãe não ter visto, um ano após sua morte, a prisão do fundador daIURD, Edir Macedo, acusado de charlatanismo, curandeirismo e envolvimento com tráfico dedrogas, ainda que inocentado das acusações e liberado pouco tempo depois. Sua mãe não viu amídia tornar a igreja evangélica alvo importante de investigações. Cada vez mais denúncias eramefetuadas, a bandidagem de igrejas vinha à tona, em cadeia nacional: falsos exorcismos, atorespagos no altar declarando cura de doenças, flagrantes de bispos ensinando técnicas aos pastoresde como pedir dinheiro aos fieis.

Em uma visita ao cemitério, Ana contou à mãe sobre o jovem Collor de Mello, umhomem que usou a beleza, jovialidade e simpatia para se eleger, sofrer um processo deImpeachment. Collor foi colocado para fora da presidência abaixo de vaias e protestos, acusado

de corrupção política. O slogan de sua campanha que ficara conhecido nacionalmente foi: “Caçarmarajás”, mas ele acabou de caçador à caça, marcado como modelo de político nacionalinescrupuloso.

Ana lamentava mais que tudo, sua mãe ter visto Tomás somente na incubadora, quandoele era ainda minúsculo e franzido, perdendo a grande transformação do crescimento de seu neto.Tomás continuava miudinho, pequeno demais para sua idade. Os cabelos eram ralos de umcastanho claro que combinava com a cor dos olhos e a pele delicadamente alva. Possuía feiçõesque lembravam o queixo proeminente dela e os mesmos lábios finos do pai. A voz era doce,suave como o cantar de um passarinho, repetindo em seus ouvidos que a amava. Ana selembrava de momentos com Tomás, alguns que a deixavam furiosa e outros, quase constantes,que a faziam morrer de rir. Quando Tomás ficava bravo, seu rosto ruborizava e as veias em seupescoço dilatavam até ficarem calibrosas. Ele fechava as mãozinhas e arregalava tanto os olhosque dava a impressão que explodiriam na face. Quando ela lhe negava um chocolate ou iogurteno supermercado, Tomás enrijecia o corpo por completo e lhe soltava da mão entre gritos elágrimas. Esperneava jogando-se no chão, debatendo-se com os pés e braços e não levantava atéser atendido. Tomás também era extremamente curioso, chegando ao ponto de várias vezes tersido levado às pressas para o hospital por ter engolido uma moeda ou comido sabão em pó.

Ele sempre estava encrencado na escola e costumava não levar desaforo para casa. Ananão imaginava onde o pequeno aprendera tamanha tolice: “Mas vale um valente morto que umcovarde vivo!”. Tomás enfrentava meninos muito maiores que ele com pedras e punhosfechados. Chegava machucado pelo menos uma vez por semana por brigar com seus coleguinhase levava a pior na maioria das vezes, pois voltava sangrando e machucado; mas nessas ocasiõesfazia do sangue que lhe escorria do nariz uma espécie de troféu. Julgava-se o ganhador da luta.Desafiava as professoras colocando tachinhas na cadeira delas, retrucando-as e respondendo-ascom malcriação cada vez que ralhavam com ele. Ana perdeu as contas de quantas vezes teve quecomparecer à diretoria por conta das travessuras dele. Tomás se defendia com sua estaturafranzina da melhor forma que podia. Embora todos os intentos do filho para ser “mau”, Ana oconsiderava engraçado com seu jeitinho enfurecido. Ele era sem dúvida alguma um filhoamoroso apesar da carapuça grossa que usava.

As pessoas diziam que ele era mimado e merecia uns tapas para deixar a rebeldia delado, mas ela se negava por saber que as traquinagens de Tomás não tinham maldade. A fase“rebelde” logo terminaria. Em breve o pequeno seria majestoso e todos que a criticaramperceberiam nele um grande homem. Ela ficaria como um belo exemplo de educadora, umexemplo de mãe a ser respeitado e seguido.

Sentia-se feliz e realizada. Afinal, tudo caminhava bem!Agnes ficaria orgulhosa do neto...

Tomás

Eu quero ser grande

3ª Intenção

Capítulo 5

Ana precisava urgentemente melhorar a renda da casa e procurou a senhora paraquem sua mãe trabalhou por muitos anos. A antiga patroa de Agnes lhe indicou duas casas defamília onde poderia apresentar serviços domésticos. Tivera sorte logo na primeira tentativa.Combinou com a mulher em limpar três vezes por semana e conseguiu também faxina em outracasa, uma vez por semana, ficando com os finais de semana e um dia durante a semana livre.

Enquanto limpava a casa de estranhos, observava seu próprio lar enfiado em umaimundície tremenda. Havia sujeira, migalhas e restos de comida no sofá, nos cantos das paredes,atrás das portas e espalhados por cima do tapete. Moscas varejeiras rodeavam ao redor do lixoque se aglomerava. Os lençóis de sua cama e de Tomás estavam por trocar fazia mais de duassemanas. A pia do banheiro começava a ficar encardida, e os azulejos, engordurados. O vasosanitário mostrava respingos de dejetos humanos, secos há muito tempo. A cortina de banhoestava totalmente encarochada, assim como o teto pintado há alguns anos de branco, perdeu acor. Ana sentiu certa repugnância ao entrar na própria casa; parte de tudo aquilo ela mesmaproduziu. Sentia-se um desleixo como mulher e mãe. Desde que Damião fora morar com eles suavida estava desregrada. Dormia e acordava mais tarde que o habitual. Bebia duas a três vezes porsemana, acordando no outro dia indisposta, com dor de cabeça e diarreia. Todos queparticipavam do ambiente contribuíam para deixar sua casa impregnada por cheiro de cigarro.Parecia que viviam dentro de um cinzeiro.

Ana fumava muito quando bebia, e isso tirava sua disposição no dia seguinte. Como nãopodia falhar nas casas onde limpava, falhava em sua própria. Enfrentava um período difícil emsua vida junto à nova relação e a resistência de Tomás em aceitar Damião como padrasto. Asituação financeira também piorava visivelmente. Logo, a luz seria cortada e estava atrasadamais de vinte dias no pagamento da água. Ana não se animava em pedir ajuda ao namorado, poisele ganhava pouco como servente de pedreiro e gastava quase tudo com as despesas pessoaisdele, que se limitavam a bebida, cigarros e revistas pornográficas. Vez por outra ele levava paracasa um pacote de salsichas; às vezes feijão. Já tinha levado meia dúzia de latas de sardinha emandioca também, além de tê-la presenteado com um videocassete, que embora “presente” paraela, apenas ele podia mexer.

Certo dia Damião chegou com um pote de sorvete para Tomás. Havia fins de tarde queele surgia com uma garrafa de refrigerante, pipoca doce ou balas, especialmente para o menino.Embora a amabilidade e o esforço que o namorado empregava, Tomás não correspondia o afeto eestava cada vez mais apático. Há pouco começara a sofrer com pavores noturnos e acordava aosberros, fazendo-a correr ao quarto dele durante a madrugada. Geralmente o encontrava tremendoe chorando baixinho, mas ao contrário dos velhos tempos, não pedia mais que ela ficasse a noiteinteira. Tomás estava cada vez mais distante, entristecido e apático; não fazia mais birras comoantes, comunicava-se cada vez menos. Ana achou que o menino estava passando por uma fase decrescimento, ou então, era mais uma tentativa para chamar atenção. O tempo seria o melhorremédio para Tomás aceitar um homem dentro de casa; estava convicta de que muito em breveele se acostumaria.

Ana passara mais de uma semana sem beber e fumar. Acordou disposta em uma

manhã de sábado e começou a limpar a casa. Colocou luvas para lidar com a imundície dos

azulejos e do chão. Escovou o banheiro com palha de aço, desinfetante e cloro. Limpou entre osazulejos, sacudiu o tapete, matou as baratas, varreu a casa, passou incontáveis vezes o panomolhado pelo chão, esvaziou armários e os limpou meticulosamente. Juntou o lixo de cada cantoda casa e colocou tudo para fora. Tirou o pó e esfregou o sofá com água e detergente. No final dodia estava exausta pelo cansaço, mas ao mesmo tempo, satisfeitíssima. A casa estava um brinco.

Damião chegou antes de anoitecer com dois amigos e Uzias, um primo de Minas,trazendo asinha de frango para fritar e cerveja.

Sequer haviam acabado de comer, mas a mesa já estava cheia de garrafas vazias,cinzeiros repletos de tocos de cigarro, ainda que Ana os esvaziasse a cada instante. O sofá verdeque limpara já anunciava manchas de cinzas deixadas pelos cigarros que caiam sem qualquercuidado. O chão estava marcado por pegadas de sapatos sujos, causado pela água que escorria dacerveja gelada, pisoteada logo em seguida. Ana tentou manter a ordem na primeira hora. Levavagarrafas vazias para a cozinha, esvaziava os cinzeiros, passava um pano molhado na sujeira dochão, mas desistiu do asseio ao ver o primo do namorado vomitar “acidentalmente” no tapete dasala. Esperou que tivessem um pouco mais de modos e disciplina em sua casa (já que deveriamter percebido que estava limpíssima antes de chegarem). Depois que Uzias limpou seu vômitocom a toalha de rosto deixada no banheiro, e o fato virou motivo de piada, Ana parou de sepreocupar com a limpeza para se divertir um pouco com eles. A motivação de manter a ordemfoi por água abaixo quando percebeu que era impossível conciliar limpeza, bebida e homens.Não quero ser escrava de minha própria casa e uma mulher pé no saco! Disse a si mesma,sabendo que o melhor que tinha a fazer era relaxar.

Enquanto eles se divertiam na sala, Tomás lutava contra seus demônios, escondido noquarto.

Ana chegou do serviço em um final de tarde de quarta-feira. Estava com uma sacola decompras nos braços e quase a deixou cair quando viu Tomás ao lado de Damião no sofá da salaassistindo futebol com um cigarro na mão. Tomás apagou instintivamente o cigarro no cinzeiroenquanto Damião soltou uma risada. Ana não sabia se seu espanto era maior por ver o filho detreze anos fumar ou por encontrar uma relação harmoniosa entre enteado e padrasto.

– Você deu cigarros ao menino?– Menino? – Ele fechou o sorriso na face. – Ele já é um marmanjo! Por que você não se

convence disso?– Eu só queria experimentar – Tomás se desculpou com a mãe, olhando ironicamente ao

padrasto como se fossem cúmplices.– O que está acontecendo aqui? Eu quero saber agora! – Perguntou irritada por ver

Tomás fumando, porém, ligeiramente satisfeita por presenciar depois de muito tempo, algo defelicidade no rosto do filho. Parecia que finalmente ele baixava as armas e se rendia ao encantode formar uma nova família. Ana sabia que necessitava ser rígida, embora estivesse feliz com oclima harmonioso que encontrara. – O que vocês estão me escondendo?

O namorado estava sentado no sofá com as pernas abertas e o controle remoto na mão,mudando os canais da TV, ainda com um sorriso irônico na face. Ele respondeu sem olhar paraAna, enquanto Tomás estendeu o braço para que ela o pegasse no colo.

– Deixe de ser perseguida, não estamos escondendo nada! Tomás fumou um cigarro. Elequeria experimentar e eu dei, que mal há nisso? Não quer dizer que ele vá viciar por causa deumas pitadas. – Ele se virou para o menino assumindo um tom mais sério e perguntou: –Ademais, como você sustentaria o vício, não é?

– Não quero vê-lo nunca mais com um cigarro na boca, entendeu? Nunca mais lhe dêcigarros! – Ordenou, taxativa.

Tomás ainda estava com os braços estendidos para receber colo quando Ana tornou aolhá-lo.

– Agora você quer colo como um bebezinho? Você precisa se decidir entre atitudesadultas ou infantis.

Tomás pareceu ligeiramente envergonhado e baixou os braços no mesmo instante,retornando ao sofá, contrariado.

Ana foi para cozinha com as sacolas. Enquanto descascava as batatas para a sopa,pensou em como Damião fora ardiloso. Tomás era um menino e meninos gostavam de coisasproibidas. Seguramente havia oferecido o cigarro no intuito de se aproximar do enteado emostrar que podia confiar nele. Usou uma estratégia nociva à saúde dele, porém, parecia terfuncionado.

Tomás estava no quarto de porta fechada quando o padrasto entrou sem bater. Damião

olhou primeiro para Tomás, depois se virou para inspecionar o quarto e bufou ao ver osdinossauros de borracha, organizados em fileiras em cima de uma cômoda. Ele pegou um dosbrinquedos na mão e disse:

– Que bobagem essa porcariada! Você sabe que toda esta merda não existiu, não?Tomás deu de ombros e respondeu meio sem vontade:– Não é o que diz a professora no colégio!Os olhos do homem ficaram parcialmente consternados e sua voz saiu cheia de

convicção:

– Ora, um bando de idiotas! Eles não sabem de nada! Não permita que esses calangosabalem sua fé. Você já viu um fóssil de dinossauro? – Ele recolocou o Tiranossauro Rex nolugar e continuou: – Quando sua professora começar a falar sobre essa bobagem de dinossauros,ria na cara dela! Você deve acreditar no criacionismo e não na história idiota de evolução! – Elequis impressionar e agregou enquanto Tomás seguiu atento: – A Bíblia não traz referências dedinossauros porque a terra existe há doze mil anos; entendeu? Diga isso para sua professora!

Tomás assentiu com a cabeça sem entender ao certo a relação da idade da terra com aexistência dos dinossauros; tampouco compreendeu sobre a diferença entre “criacionismo” e“evolução”, mas gravou na memória o que precisava saber: “A evolução é uma coisa idiota”;sendo assim, o criacionismo era certo. Lembrar-se-ia de enfrentar a professora com o argumentoque acabara de ouvir, simplesmente pelo prazer de contrariá-la e mostrar aos colegas o quantoera inteligente. Tomás seguiu um pouco meditativo enquanto observava o homem de barbas embermuda e chinelos dentro do seu quarto, coçar um testículo. Contaria à sua mãe sobre isso; justoela que sempre o proibiu de andar com as mãos dentro das calças e brigava com ele quandoapertava discretamente as bolas, arranjara um namorado que coçava o saco na maior cara de pau.Cobraria atitude dela, pois se ele que era filho não podia coçar as partes íntimas, o namorado delatambém não podia.

O homem de barbas se aproximou da cama e levantou a pesada Bíblia que Tomásdeixava ao seu lado, no criado mudo. Abriu o livro e folheou algumas páginas. Ficou pensativo,perdido em alguma recordação por um momento, deixando escapar um suspiro involuntário.Acariciou o livro sagrado por alguns instantes, depois tornou a fechá-lo e o colocou no lugar,sem dizer qualquer palavra.

Com um ligeiro tom de simpatia, sugeriu antes de deixar o quarto:– Venha comigo, vamos ver um filme! Já é hora de você saber algumas coisas sobre a

vida!Tomás caminhou atrás do homem amedrontador e foi o primeiro a sentar-se no sofá

verde quando chegaram à sala. Estava intimidado pelo desconhecido que falava comdesenvoltura, como se o conhecesse desde sempre.

Tomás viu o homem de barbas escolher um cassete de dentro de uma caixa, ajeitar atelevisão na direção deles e voltar com o controle remoto na mão, sentando-se no canto direitodo sofá verde.

– Tenho uma coleção de filmes; podemos ver um por semana se você gostar! – Declarouantes de começar o filme e prosseguiu como se tivera esquecido algo: – Mas veja bem, não contenada a sua mãe; homem que é homem leva segredos para o túmulo! Se você não quer ser umputo viadinho nojento, tem que viver como homem desde cedo, entendeu? Você está de acordo?

Tomás assentiu com a cabeça em silêncio, balançando-a várias vezes em sinal deconfirmação, insinuando que sabia exatamente como um homem deveria se comportar e queaquilo que o homem de barbas dizia era tão lógico que até ele já sabia. Depois, refletiu e resolveuque não iria contar para a mãe que o padrasto coçava o saco dentro de casa; pois raios: “Homensnão fofocam!”. Eles tinham um acordo de cavalheiros a partir daquele momento. Tomás nãosabia o que o homem tencionava mostrar, mas fosse o que fosse estava certo de que iria gostar,ou pelo menos, dizer que gostou. Entendeu que ali estava a chave para começar a ser adulto.

Os dois permaneceram em silêncio quando o filme finalmente começou. Tomásobservou com curiosidade, ignorando os chuviscos na tela e a qualidade ruim do filme, umhomem em um quarto de hotel tomar vinho e logo após uma mulher bater à porta. Ela vestia umaroupa de empregada curtíssima e empurrava um carrinho com champanhe; ambos falavam em

outro idioma. Tomás não gostou de ver que o filme tinha subtítulos e que estava obrigado a lê-losse quisesse entender a trama. O homem tornou a fechar a porta e ela encheu sua taça com osseios praticamente apontados na cara dele. Tomás não pôde deixar de soltar uma gargalhadaquando viu o casal sem roupas e a mulher ajoelhada na frente do homem colocar o membro deledentro da boca.

– Olha ali, eles estão pelados! – Chamou a atenção de Damião como se ele pudesse sesurpreender com a cena também.

Tomás imaginou a própria mãe nua e o homem de barbas em cima dela, fazendoexatamente o que o ator fazia com a atriz do filme. Fechou a mão em punho, sentindo vontade desocar as fuças do homem sentado ao seu lado, mas desistiu ao olhar para ele e constatar otamanho do brutamontes.

Compenetrado nas cenas do filme, Tomás começou a achar interessante a anatomia doscorpos e a perversidade do sexo, entendendo que aquilo que faziam não era sacanagem, pois elesqueriam e desfrutavam do ato com prazer supremo. “Sacanagem” é fazer algo que outra pessoanão quer: Uma brincadeira sem graça que ofende ou machuca, dar um susto em alguém. ParaTomás, de forma alguma definiria sexo como sacanagem. De repente sentiu um movimentoinvoluntário do órgão tomar corpo dentro de sua cueca. Ao sentir a própria ereção, temeu queDamião risse dele. Procurou disfarçar o volume que levantava a parte da frente de seu shortcolocando uma almofada no colo e apoiando os cotovelos nela de forma despretensiosa. O filmeestava mais interessante e Tomás mais interessado. Cada vez que o padrasto comentava algo,Tomás concordava, mostrando-se entendedor daquilo que via. Queria deixar claro aobrutamontes que gostava de mulheres peladas e que não seria um viadinho. Estava preparadopara ser um homem de verdade.

Quando o filme acabou, Tomás agradeceu dizendo haver gostado muito. Depois, voltoupara seu quarto e trancou-se ali, refletindo sobre as cenas, a nudez e pensando em sua mãecontorcendo-se de prazer quando galopava em hastes masculinas.

Na semana seguinte Damião o chamou novamente para a “sessão cinema” e Tomás o

acompanhou sem pensar duas vezes.Na terceira semana aguardava com ansiedade pelo convite.No segundo mês, após terem visto um filme pornográfico por semana, Tomás e Damião

trocaram os primeiros comentários sobre o filme; falaram sobre o tamanho dos peitos das atrizes,riram de um pênis relativamente pequeno comparado à maioria gigante dos autores e analisaramo desempenho sexual daqueles que não conseguiram permanecer com os pinguelos duros durantetodo o ato. “Se esse viado não consegue uma ereção com uma mulher dessas é porque deve serum maldito puto de merda”! Tomás concordava indubitavelmente, sem pestanejar, com um olharde perito em atuação, balançando a cabeça em concordância.

Tomás achou engraçado quando quatro homens de uma única vez atacaram uma solitáriamulher no meio da rua, que embora assustada, já os esperava preparada para o trabalho. Quaseno mesmo instante viu Damião esconder a mão dentro das calças, com o braço direito emmovimento por dentro da bermuda. Ao lembrar como era importante comportar-se como um“homem de verdade”, mesmo sem privacidade, resolveu imitá-lo e também enfiou a mão paradentro do short. Admirava o homem de barbas, pois ele o tratava como um adulto. Gostava deestar ao lado dele e queria que o padrasto o admirasse também.

Antes de o filme terminar, estavam recompostos. O homem voltou a rir em algumascenas e Tomás também, como se nada tivesse acontecido. O cinzeiro estava repleto de bitucas e

Tomás se prontificou a esvaziá-lo. Ao voltar, perguntou com um pouco de timidez, olhando parao cigarro preso entre os dedos do homem:

– Posso experimentar?Damião o estudou com certa dúvida. Estava com um cigarro aceso e o estendeu na

direção de Tomás, que o segurou com insegurança, levando-o diretamente à boca. Puxou afumaça e a soltou em seguida sem tragar.

– Você tem que engolir a fumaça! – Damião soltou uma gargalhada. – Se vai fumar temque fazer direito. Fumar sem tragar é coisa de viado!

Cada vez que Tomás escutava a palavra “viado” sentia como se precisasse demonstrarque era homem, mas na maioria das vezes não sabia o que fazer. Escutara um milhão de vezes apalavra “viadinho” no colégio, e cada vez que um menino a pronunciava para outro era motivode briga, socos e pontapés. Queria pedir ao barbudo que parasse de dizer isso, pois era chato,cansativo e começava a se sentir ameaçado pelo adjetivo. Toda sua base de vida estava fundadaem não se tornar um viadinho, mas calou-se sabendo que se pedisse para parar o processo seriainverso, e o resultado duas ou três vezes pior.

Sentou-se no sofá e procurou repetir a postura de Damião sem que ele percebesse queestava sendo imitado. Abriu as pernas e coçou o saco, buscando uma faceta intimidante. Depoisde colocar o cigarro de volta à boca e tragar, tossiu por mais de dois sucessivos minutos semconseguir respirar ou engolir saliva direito. Ao invés de ajudar batendo nas costas do enteado,Damião acendeu outro cigarro e o entregou, alertando que dessa vez ele deveria tragar a fumaçalentamente. Tomás obedeceu seguindo as regras ensinadas. No terceiro cigarro já não tossia, masfoi flagrado por sua mãe que entrou com uma sacola de compras pela porta da sala.

Ana, Damião e amigos festejavam mais uma noite de sexta-feira, enquanto Tomás se

encerrava no quarto perdido em pensamentos, ouvindo as vozes exaltadas que vinham da sala.Água e luz haviam sido cortadas há mais de uma semana. Damião solucionou o

problema da luz puxando um “gato” na fiação elétrica junto com outros vizinhos. O cheiro nacasa e no próprio corpo estava insuportável. Até mesmo Tomás, porco por natureza, não sabiaquanto tempo mais poderia aguentar seu fedor. Ana dava um jeito de tomar uma ducha na casada patroa e o homem de barbas dizia que pegava um mangueiraço na construção onde trabalhava,antes de voltar para casa.

Tomás não entendia como faltava dinheiro para pagar a conta da água, mas sobrava parafazer festinhas em casa. Escutava a voz de sua mãe dizer ao homem de barbas que não podiamviver como animais; que precisava zelar pela higiene do filho, e que não poderiam viver de pão emargarina por não poderem cozinhar. O padrasto prometeu que pagaria a conta e tudo voltaria ànormalidade, mas já tinha passado quase duas semanas e ainda não havia água para lavar ospratos e no banheiro não se podia mais entrar. Todos os dias buscavam um balde de água navizinha e o despejavam no vaso sanitário, utilizando-o como descarga, mas muitas vezes osdejetos ficavam lá, flutuantes durante horas, dormindo na madrugada até o dia seguinte. Quandorecebiam visitas era pior, pois a urina de várias pessoas se misturava, acumulando-se no vasosanitário em um fedor insuportável até o dia seguinte.

Toda quarta-feira Damião chegava antes de Ana em casa, trocava a roupa da obra porbermudão e chinelos, comia alguma coisa na cozinha, fumava um cigarro e procurava Tomáspara a sessão cinema (como costumavam chamar). Tomás sofria um conflito de sentimentos;sabia que havia perdido definitivamente sua mãe para aquele homem. Sentia certo excitamento ealgo de repúdio quando a imaginava de quatro para o homem de barbas depois que fechavam a

porta do quarto. Imaginá-la naquelas posições, sentindo prazer, era absolutamente insuportável.Desde o surgimento do homem de barbas, os planos de um dia casar-se com sua mãe estavamcada vez mais apagados e distantes.

Ela estava cada vez mais envolvida com o brutamontes e parecia feliz. Tomás começavaa aceitar essa relação com menos rebeldia, mas nem por isso deixava de imaginar o padrasto emcima dela, perfurando-a exatamente como via os homens fazerem com as mulheres dos filmesque assistiam. Tentava apartar os pensamentos mais terríveis conformando-se com a nudez desua mãe perante outro homem, aceitando o sexo como algo natural entre casais e grupos, comobjetos, dedos, secreções, suor e gritos, palavras devassas, orgasmos..., recebendo tudo issocomo um processo natural da vida, essencial à humanidade.

Depois dos ensinamentos que tivera passou a conhecer-se melhor. Às vezes passava diasdentro do quarto calado, e só voltava a se comunicar às quartas-feiras quando sentava com opadrasto para assistir um novo filme. Nesse momento sentia-se livre e imponente, pois eratratado como um adulto que divide segredos e entende muitas coisas das quais meninos na suaidade não têm sequer ideia.

O padrasto o avisou que se quisesse fumar, teria que ser escondido, e que desse um jeitode comprar os próprios cigarros, pois o pior vício de um fumante não é o vício por si só, mas nãopoder sustentá-lo. Pedir cigarros era estritamente proibido.

Ana entrou no quarto de Tomás acompanhada por uma garota desconhecida. Era

quase alta, não chegava a ser magrela de todo, pois tinha pernas grossas e braços fortes. Os olhoseram de um castanho amendoado brilhante, com cílios e sobrancelhas vermelhas, combinandocom a mesma cor da cabeleira. Os cabelos ruivos formavam uma peruca ondulada de fogo,lançada em cascatas até o meio das costas, que Tomás jamais viu na vida. Em meio ao seutorpor, observou a garota com curiosidade. Ela tinha sardas tamanho de pequeninos feijões nopeito, nos ombros e na face. Reparou em uma marca no canto superior da testa sardenta. Sempoder resistir, aproximou-se dela.

Ana interrompeu a magia desse fascínio que Tomás experimentava, e sem perceber acuriosidade do filho, disse:

– Filhote, essa é Maria Molambo, filha da Madalena! – Tomás sentiu que a mãe queriase ver livre da garota, pois praticamente a empurrou na direção dele – Ela pode ficar umpouquinho aqui com você? Por favor! – Ana pediu, encostando as mãos uma na outra, como seestivesse implorando.

Normalmente Tomás negaria o pedido, disposto a armar um escândalo. Já havia feitoisso muitas vezes. Percebera que as crianças, filhos dos amigos, são uma moléstia sem sentido nafestinha dos adultos. Na diversão deles os jovens ficam sempre do lado de fora, e por isso Tomásse negava a receber em seu quarto os filhos das visitas da mãe. Ainda assim, não pôde deixar deadmirar a coragem dela. Arriscava-se a vergonha de sair novamente enxotada com a garotaembaixo dos braços.

Mas ao contrário de repelir sua mãe e as visitas inoportunas que ela insistia em lheapresentar, estranhamente, ouviu-se dizendo:

– Vou quebrar essa pra você, pode voltar pra sua festa. – Foi praticamente uma ordem.Aproveitou-se do momento para impressionar a garota, totalmente seguro de si. Sabia que a mãenão perceberia seu atrevimento e nem a autoridade que saiu através de sua voz, pelo fato de jáestar meio bêbada.

Ela agradeceu com uma expressão ainda mais boba na face:

– Esse é o meu garoto! Divirtam-se e comportem-se bem! – Disse e saiu do quartotropeçando.

Tomás fechou a porta e continuou a estudar a ruiva com uma mirada fixa. Ela deveriaser pelo menos quatro anos mais velha que ele, trinta centímetros mais alta e possuía “doismelões” na frente do peito que o desconcentravam. Percebeu que a garota também o estudava emsilêncio; não estava tímida, ao contrário, parecia que esperava um momento para falar. O climaera estranho. Provavelmente os amigos de sua mãe (e ela mesma) já haviam avisado queMolambo tomasse cuidado com ele, pois era um garoto rebelde, boca suja e malcriado, que aqualquer momento poderia expulsá-la do quarto sem prévio aviso ou jogá-la pela janela, pensou.Ambos permaneceram calados em uma análise cruel, enquanto a garota disfarçou o mal-estarolhando para os brinquedos dele.

Tomás tentou se decidir entre achá-la incrivelmente linda ou terrivelmente estranha.Rompeu o silêncio, curioso para escutar a voz dela depois de matar uma barata com o punhofechado sem que a garota percebesse:

– Seu nome é curioso. Por que Maria Molambo? Nunca conheci ninguém com um nomeassim. – Nauseado com a sujeira na mão, limpou os restos da barata morta na parte de trás dabermuda que usava.

Surpreendeu-se com o sorriso incrivelmente simpático que recebeu, mas envergonhou-sepor não poder retribuir. Achou-a com cara de menina boazinha, do tipo que sonha em se casarcom um príncipe encantado. Os lábios de Molambo eram finos e a boca amedrontadoramenteenorme, com dentes brancos e bem emparelhados um ao lado do outro. Quando ela sorriu,Tomás conseguiu enxergar os dentes dela quase até o final da arcada.

– Maria Molambo é o nome de um anjo! – Ela respondeu com uma pontada de orgulho.– Mas também já ouvi dizer que foi o nome de uma poderosa rainha! Eu nasci em um terreiro decandomblé pelas mãos da Pomba-gira, a versão feminina do Exu: Maria Molambo, rainha dassete encruzilhadas. Mas claro, isso na época em que meus pais frequentavam a Umbanda. Meupai queria me chamar de Maria Padilha, mas minha decidiu que seria Maria Molambo, assim euseria bela e poderosa.

Tomás não soube o que dizer e não entendeu metade das palavras que escutou.– Só conheço a virgem Maria, nunca ouvi falar de Maria Molambo!Ela riu com vontade.– A Virgem Maria não é um anjo, bobo! É uma santa! E se você só ouviu falar dela,

como poderia conhecer outro nome de santo?Ele deu de ombros.– Ah, Virgem Maria, Virgem Molambo... É tudo a mesma coisa, não? Quem se importa

com isso?– Mas por que é tão importante dar uma representação aos nossos nomes, já que eles são

escolhas de nossos pais? Nós somos totalmente impotentes nesse aspecto. Não quer dizer que setivermos nomes de imperadores seremos reis! Tive um amigo no colégio chamado Hitler, vocêacredita?

Pela expressão de repugnância que Molambo fez, Tomás concluiu que o tal “Hitler” nãoera um cara legal, e dissimulou o mesmo assombro que viu no rosto dela, respondendo sem amínima ideia sobre quem era a figura em questão:

– Fala sério!– Pois é, estou falando; cagada dos pais! – Afirmou com indignação – Ignorância total!

Aposto que os pais do meu amigo escutaram esse nome por aí, gostaram e o batizaram sem

procurar conhecer a procedência do dito cujo. – Ela ainda estava consternada. – Você já viu quebrasileiro adora produto importado e nome estrangeiro, né? – Ela revirou os olhos para cima comdesdém, e prosseguiu: – Dizem que é chique, mas eu particularmente acho brega! – Dessa vezMolambo quis defender a si mesmo, sabendo que “Maria” é o nome mais comum que existe noBrasil.

Tomás se tranquilizou ao perceber que representou bem seu papel. Concluiu uma vezmais que não era importante saber das coisas; “parecer saber” poupava tempo de estudo e leitura.Quem era o tal Hitler? Perguntou-se, achando melhor trocar logo o tema da conversa antes queele voltasse ao foco. Lembrou-se de repente que poderia contar sobre os dinossauros e falar sobrea diferença do evolucionismo e criacionismo (provaria assim que não era burro e também tinhaassuntos interessantes para dividir), porém, esquecera-se o que era o que, quem estava certo equem estava errado. Sabia apenas que os dinossauros não existiram (de acordo com o que ohomem de barbas contou), mas essas informações não formavam um assunto completo, e porisso resolveu ficar de boca fechada.

Para fugir da responsabilidade em ter que iniciar um assunto, disfarçou:– Você tem cigarros? – Perguntou em um tom sério, mas sem dar importância. Sabia que

em realidade nada que dissesse poderia impressioná-la. Não tinha uma grande teoria sobre nada,não era membro de nenhum clube ou equipe de futebol. Era uma negação na escola, totalmentedesprovido de qualquer habilidade e conhecimento. O que poderia dizer?

Para a surpresa de Tomás, Maria Molambo tirou um maço de cigarros amassado dedentro da bolsa. Jogou um na direção dele e acendeu outro.

Repentinamente ficou nervoso. Se sua mãe o flagrasse novamente fumando, levaria umsermão na frente de Molambo que certamente o envergonharia até o dia de sua morte. Tentoudissimular a apreensão, arrependendo-se de ter perguntado pelos cigarros.

Contava como aliado a festinha que faziam na sala. Geralmente sua mãe o esquecia noquarto sem se preocupar se estava vivo ou morto. Porém, não sabia até quando ela o deixariatranquilo sem entrar pela porta cambaleando.

Tomás tornou a observar a marca indefinida na testa da garota e resolveu perguntar:– Que cicatriz é essa? – Apontou o dedo diretamente na direção da marca, sentindo

vontade de tocá-la.– É uma marca de nascença!– Parece a marca da besta!Maria Molambo soltou uma gargalhada.– “Marca da besta?” Da onde você tirou isso?– Escutei o padre falar na missa e lembrei agora. – Ao dizer isso, Tomás sentiu que a

besta era ele, e disfarçou sua falta de jeito para conversas, perguntando: – Posso tocar?Ela concordou.Passou levemente o dedo sobre a marca e ao sentir a discreta aspereza da pele no local,

ficou curioso. Sem perceber, notou-se esfregando o indicador com força pelo desenho indefinido.Molambo gritou:– Hei, o que você está fazendo? Minha cabeça não é um brinquedo!– Desculpe...Eles ficaram sentados lado a lado sem que Tomás pudesse desviar os olhos da cicatriz

dela.– Você não gosta? – Ela inquiriu, massageando o lugar onde ele colocara o dedo com

brutalidade.

– Não, não... Eu gosto muito! Para falar a verdade, gostaria de ter uma igual.– Sério? Por quê?– Ah, assim as pessoas sempre se lembrariam de mim como o garoto da cicatriz!– “A marca da besta”! – Ela acrescentou com comicidade e deu uma risada alta,

sentindo-se lisonjeada.Ambos acabaram os cigarros quase no mesmo momento e jogaram a bituca pela janela.– Sua mãe sabe que você fuma? – Tomás perguntou, tentando disfarçar a importância da

pergunta.– Ora, já sou maior de idade; ela não pode falar nada. Eu compro meus cigarros!Ele se lembrou da importante regra que o homem de barbas repetia sobre “sustentar o

vício”, mas atentou-se à última declaração:– Maior de idade? Quantos anos você tem?– Fiz dezoito no mês passado!– Verdade? Pensei que você tinha no máximo dezessete.– E você, quantos anos você tem?Tomás sentiu vergonha por ser muito mais jovem que ela. Não queria que Molambo o

visse como uma criança e o desprezasse.Sem pensar duas vezes, ouviu-se mentir:– Quinze! – Respondeu, percebendo que Molambo não duvidou, ou talvez, pela falta de

qualquer reação por parte dela, não se importou a mínima. – Como você faz para comprarcigarros?

– Trabalho em um bingo eletrônico.– “Eletrônico”? Só conheço o bingo da igreja! – Entusiasmou-se por haver encontrado

um assunto do qual podia falar com conhecimento e continuou: – A gente marca os números comgrãos de milho na cartela de papel, no final, quem tiver marcado os primeiros seis númerosditados ganha um prêmio! Minha mãe é sortuda, já ganhou duas vezes um frango assado. Noúltimo bingo que fomos, fiquei por um número de ganhar o rádio.

Ela o interrompeu aos risos:– Isso é bingo de vila, passatempo de velhos, Tomás! Conheço muito bem o bingo da

igreja; já levei um xingão de uma mulher uma vez quando gritei bingo, e faltava apenas umnúmero para ela. Onde eu trabalho – explicou – as bolinhas saem automaticamente e os númerossão anunciados através de uma voz suave por microfone. Os ricaços ficam lá, perdendo muitomais dinheiro do que ganham, mas mesmo assim voltam todas as noites, esperançosos derecuperar a grana perdida, só que acabam perdendo ainda mais. Tudo que tenho a fazer é ficarcom um uniforme vermelho andando de uma mesa à outra, vendendo cartelas com um sorrisosimpático grudado na cara. Tive muita sorte de conseguir esse emprego. Se as coisascontinuarem bem assim, logo serei chamada para anunciar as bolinhas e meu salário aumentará.

Tomás imaginou o lugar: Molambo dentro de um vestido vermelho, carrões luxuososestacionando na frente do bingo, homens fumando charutos com anéis de ouro, grana rolandosolta. Certamente era incrível; tudo eletrônico como se estivessem no futuro! Queria perguntarmais sobre o trabalho dela, mas receou que Molambo o considerasse um caipira que seimpressionava facilmente.

– E você não estuda mais? – Ele perguntou com uma curiosidade genuína.– Já terminei o segundo grau.Tomás sentiu uma pontada de inveja e admiração. A garota era um gênio. Ele fez as

contas e concluiu que se tudo seguisse bem e não reprovasse mais na escola, terminaria o

segundo grau com vinte anos. Ela estava apenas com dezoito, formada e trabalhando em umlugar granfino, enquanto ele mal sabia ler e escrever. Tudo que fez foi entregar jornais e venderpicolés.

De repente lembrou-se do banheiro e da urina parada no vaso sanitário. Molambo erauma rainha, como faria se precisasse usar o banheiro? Que vergonha! Seus pensamentos foramde um rumo ao outro, embaralhados.

– Minha mãe conhece seus pais faz muito tempo? – Perguntou, tentando escapar dasapreensões que o remetiam ao banheiro.

– Até onde sei, meu pai é amigo do Damião!– Damião? Quem é Damião?– Seu padrasto, bobo! – Molambo começou a rir. – Você não sabe o nome dele?Tomás perdeu as contas de quantas bolas fora deu essa noite. Acostumara-se a chamar o

namorado de sua mãe como homem de barbas, dando-se conta de que jamais o chamou pelonome; na verdade, sequer sabia que ele tinha um.

– Claro que sei – mentiu – é que não havia me ligado! Achei que você falava de outroDamião, amigo nosso.

– Ah bom, já estava achando que você é doido!– E de onde seu pai conhece o Damião? – Percebeu que foi a primeira vez que falou o

nome do homem de barbas desde que o conhecera.– Ele e meu pai reformaram a capela da antiga igreja católica aqui do bairro.– Você sabe mais sobre ele?– Por que você pergunta? Quem deveria saber é você! Ele é seu padrasto ou não?– “Padrasto”? – Repetiu automaticamente sem gostar do significado que a palavra

estabelecia. – Sei lá! Esse cara veio morar com a gente faz pouco tempo; não sei muito sobre elee também não dou o gosto de perguntar.

Molambo franziu as sobrancelhas.– Que estranho! Você deveria se interessar mais. O homem que vive com sua mãe é

agora seu padrasto, seu segundo pai! – Ela fechou os olhos por alguns segundos, pensativa –Acho que eu não saberia viver sem meus pais; eles são absolutamente tudo para mim!

Tomás quis parecer tão motivado quanto Molambo ao se referir sobre a família quepossuía, mas não conseguiu. Sentia repulsa pelo homem gigante que dormia ao lado de sua mãe enão suportava a ideia de que ela se entregava para ele como as mulheres dos filmespornográficos. No tempo em que seu pai estava em casa padecia de um terrível ciúme, emborareconhecesse (depois de conhecer o brutamontes de barba) que de fato seu pai era gentil eamável, um legítimo “viadinho” perto do gorila. Não formaram uma família harmoniosa porquejamais deu uma chance a ele, ponderou. Uma leve pontada de remorso pelo comportamentohostil que sempre adotou contra seu pai o pegou desprevenido. Lembrou-se da tristeza que suamãe enfrentou quando ele foi embora, enquanto ele vibrava de felicidade porque a teria comexclusividade. Empenhara-se em fazer da vida na casa um pequeno inferno. Poderia ter boashistórias para contar para Molambo nesse momento, mas tudo que lembrava era do desprezo quesempre sentiu pelo pai, de um ciúme avassalador que o torturava dia e noite e de não haverproporcionado a oportunidade de conhecê-lo melhor. “Família” era uma palavra absolutamentevaga.

– Pois é, eu também tive um pai, mas ele foi embora! – Confessou.– E ele era legal?Precisou pensar um pouco antes de responder:

– Eu acho que sim! Às vezes tenho um pouco de saudades dele! – Admitiu, surpreso econtrariado com a própria afirmação.

– Verdade? E por que você não diz isso para ele?– Eu nunca perguntei para minha mãe onde ele mora agora.Molambo percebeu que o tema era delicado e não quis invadir a privacidade do garoto.– Ah, eu acho que você vai descobrir o momento certo de procurá-lo. – Fez uma

curtíssima pausa e completou: – Mas, a decisão é sua. Engolir o orgulho vez por outra economizaarrependimentos.

Ele gostou do que ouviu, mas sabia que não pensaria a respeito e a decisão de procurar opai não chegaria jamais.

– Meu pai foi embora sem se despedir de mim e eu acho que não vou conseguir perdoá-lo tão cedo. – Para colocar um ponto final nessa conversa que tanto o aborrecia e intrigava,trocou de assunto e perguntou: – Por que nunca fomos a sua casa? Seus pais não costumam fazeressas festinhas lá?

Molambo deixou escapar uma careta:– Vivemos no terreno da minha vó com a família inteira; tios e primos. Somos todos

vizinhos uns dos outros, separados em quatro casas pequenas. Não há espaço suficiente para nós,quem dirá para visitas! Minha vó já está muito velha para suportar festas até altas horas da noite.– Ela soltou uma risadinha descontente e acrescentou: – Tenho dois tios que são como pais paramim, mas eles bebem até perderem a consciência. Quando estão bêbados, brigam na porrada,ofendem-se, choram, quebram coisas... Já sobrou para mim algumas vezes. Quando as pessoasbebem elas mudam e se transformam em alguém irreal, pouco confiável e distante. Ao mesmotempo em que podem gargalhar de felicidade, também choram de tristeza! – Ela fez uma caretairônica, contrariada. Logo, encarou o pequeno por um instante e acrescentou com muitaseriedade: – Nunca acredite na palavra de um bêbado, Tomás! Nunca!

Tomás percebeu que não era o único a contar com experiências a respeito de birita ebiriteiros. Molambo falava bonito e prendia sua atenção de uma forma que jamais haviadisfrutado antes. Outra vez ela o fez recordar de seu pai que fora embora. Ele não bebia, nãofumava e não trazia gente estranha para dentro de sua casa, diferente do homem de barbas quelevou sua mãe para este caminho escuro e trepidante. Desde que o conhecera, ela andava semprecom a língua travada, soluçando, rindo por nada, cambaleando pela casa. Os olhos estavam maisvermelhos e sua fisionomia cansada como nunca antes estivera.

– Eu acho que entendo o que você quer dizer...– Espero que você não me interprete errado! – Ela o interrompeu – Tenho uma família

maravilhosa, mas acho lamentável ver meus tios se entorpecendo para tocar a vida! Às vezes,quando estão muito bêbados, sinto raiva deles porque não conseguem falar comigo de uma formanormal: ou me tratam como idiota, cheios de mimos e atenção, ou me ignoram por completo. Osdois já passaram da casa dos trinta e cinco anos, mas ambos parecem ter dezoito, bebendo comodois adolescentes que experimentam o primeiro porre. Coitada da minha vó que ficou de cabelosbrancos antes do tempo por causa deles, sempre vítima, expectadora, e até mesmo cúmplice debaixarias, escândalos e violência. Ela nunca dorme quando eles saem de casa para beber, poisnão sabe se terá que buscá-los em alguma sarjeta, na delegacia ou, vire essa boca para lá: noIML! Eu amo meus tios, mas o que eles fazem com nossa família quando bebem, eprincipalmente com minha vozinha, é imperdoável!

– Mas e seus pais não bebem?– Nada comparado aos meus tios! Se eles bebessem como meus pais, minha vó pareceria

vinte anos mais jovem hoje.– Mas se o seu pai é amigo do Damião que bebe igual um camelo...Molambo soltou uma gargalhada e explicou:– Eles se conhecem há pouco tempo, Tomás! Não sei direito o que rola entre eles, mas

se você parar para perceber, meus pais nunca ficam até tarde. E quando eu digo “nunca” é nuncamesmo, pois minha mãe pega no batente cedinho de segunda a sábado e precisa ir até o outrolado da cidade. Não lembro quando os vi chegar tarde a casa ou um deles faltar ao trabalho.Tenho muito orgulho dos meus pais, sabia?

– É, você já deixou isso bem claro. – Sorriu para parecer simpático ao invés de invejoso.Quem lhe dera poder gabar-se dessa forma...

Ana e a mãe de Molambo entraram no quarto.Tomás achou que foram juntas para averiguar se Molambo ainda estava viva.– Vamos embora, Maria? – Perguntou a mãe de Molambo, sorrindo para Tomás,

imediatamente após sentar ao lado deles. Tomás lembrou tê-la visto uma ou duas vezes antes emsua casa.

– É cedo ainda, acabamos de chegar! – Relutou Molambo enquanto sua mãe lhe alisavaos cabelos com a ponta dos dedos. Tomás as observou com curiosidade, notando que a mulherparecia mil vezes em melhor estado que sua mãe. Falava com clareza e não cambaleou nenhummomento ao se movimentar até a cama. Tinha um rosto sedutor e uns traços que lembravam afilha. Parecia gentil, e sorriu duas vezes para ele em uma fração de segundos.

– Seu pai precisa acordar cedo amanhã; ademais, é o nosso dia de passearmos noshopping ou você esqueceu?

Molambo abraçou-a, carinhosamente. Ao presenciar o genuíno carinho que mãe e filhatinham uma com a outra, Tomás também desejou ganhar um abraço de sua mãe, mas ela estavaem outro mundo.

– Claro que não esqueci! Milk Shake de chocolate?– Um gigante! – As duas brincaram, apertando as mãos como se fizessem um acordo.

Molambo deu um beijo no rosto de Tomás antes de sair. Para surpresa dele, a mãe de Molambotambém o beijou, e sorriu pela terceira vez.

– Nos vemos na próxima, campeão? – Perguntou a mulher, fazendo-o corar asbochechas. Ele concordou, envaidecido pelo mérito de ser chamado de “campeão”. Fazia quantotempo que não escutava uma palavra carinhosa? Já não era capaz de fazer as contas...

Ana farejou o ar e perguntou com alguma desconfiança:– Que cheiro é esse? Vocês fumaram no quarto?Molambo estava com a boca aberta para responder, mas Tomás foi mais rápido:– Esse é o cheiro que vem da sala! Ou a senhora acha que o cheiro de fumaça de vocês

não chega aqui? – Afirmou convicto de que sua mãe acreditaria, pois estava alcoolizada, equando estava alcoolizada acreditava em qualquer coisa e cedia aos seus pedidos facilmente.Podia até dizer que um rabo de sereia crescera em sua bunda, que se ela tivesse tomado unsgorós, era bem capaz de pedir para vê-lo. Envergonhou-se por Molambo ainda estar ali e terescutado, através de sua mentira, que não passava de uma criança que ainda necessitava ocultaras ações da mãe. Lembrou que havia se comportado assim desde sempre, pedindo colo, embaixodas asas dela, dependente para as menores coisas; receando crescer rápido e perder a infância, oscarinhos, a atenção, as regalias...

Molambo percebeu que Tomás não tinha autorização para fumar, e evidentemente, nãopossuía a idade que dissera, mas mesmo assim achou engraçado. Ele parecia divertido atrás

daquele corpinho miúdo, tentando demonstrar uma masculinidade precoce. Ela o olhou comcarinho. Se ele mentiu é porque quis impressioná-la, considerou. Achava que quando alguémtentava impressionar outra pessoa, era porque se importava de alguma maneira com ela.

Ana olhou para mãe de Molambo, envergonhada, e não pôde evitar uma careta quandodisse:

– Ai, filhote, desculpa! Eu não sabia que você também respirava nossa fumaça daqui.Vamos fazer as próximas reuniões em outro lugar.

Tomás queria dizer que aquilo que faziam não eram “reuniões”, mas temeu não reverMolambo e a interrompeu prontamente, quase em súplica:

– Ah, não, eu não me importo!As duas amigas se entreolharam, duvidosas. Ana sempre reclamava do isolamento de

Tomás, e a própria mãe de Molambo já fora testemunha de um escândalo do garoto. Ficaram sementender a reação gentil e inesperada. Ana desconfiou que Tomás tivesse gostado de Molambo esentiu certo alívio. Embora a diferença de idade, seu filho não seria um viadinho como todosdiziam. Tomás fazia a catequese, realizava as tarefas de casa; finalmente tinha aprendido a ler eescrever. Logo, desejaria uma profissão e um trabalho para o futuro. Teria namoricos,namoradas, rolos, até chegar o momento de ter um amor para vida inteira. Quando encontrasse amulher certa, casaria e lhe daria netos. O pensamento arrancou dela um sorriso involuntário deorgulho. Finalmente, poderia dizer em bom som: “Segurem suas cabras que o meu bode estásolto!”.

Concluiu que a primeira paixão de Tomás merecia um brinde. Ana avisou em casa que deveria trabalhar naquele sábado porque sua patroa receberia

visitas. Mesmo estando de ressaca, conseguiu levantar antes de todos. Era pouco mais de meio-dia quando Tomás chegou da catequese e entrou pela porta da casa. Acordou de manhã quandosua mãe já não estava e o padrasto ainda roncava no quarto com a porta entreaberta.

Quando retornou, a casa estava em silêncio. Sem apetite algum, foi diretamente para oquarto pensar no futuro.

Tomás estava ansioso por rever Molambo. Ponderava em arranjar um emprego paraoferecer presentes a ela e convidá-la para sair. Era muito jovem ainda; sabia que não tinhachance de conseguir um trabalho digno e respeitável. Poderia voltar a entregar jornais, mascertamente o encarregado lhe daria outro chute na bunda se voltasse por lá. Na sorveteriatampouco poderia dar às caras. Se trabalhasse, poderia pagar a conta da água atrasada e convidarMolambo a visitá-los, sem medo de ela precisar usar o banheiro. Poderia levá-la para tomarsorvete e lanchar fora, comprar-lhe flores e um perfume; pagar pelo próprio cigarro.

Perdia-se na imaginação e sorria de felicidade: Terminava de jantar com Molambo emum fino restaurante e deixava uma gorjeta ao garçom; tiravam fotos do parque, beijavam-se nobanco, caminhavam de mãos dadas, dormiam na mesma cama. De repente, lembrou que faziamuito tempo que desejava conhecer o cinema; se pudesse levar Molambo e pagar as entradas,seria o máximo! Molambo era uma mulher que necessitava ser impressionada, refletiu convicto eao mesmo tempo preocupado de não estar à altura das grandes expectativas impostas.

Trinta minutos depois de ter encostado a porta, Damião deu duas batidinhas e entrousem esperar permissão. Viu o homem de barbas fazer uma careta de asco nem bem colocou umpé no quarto, colocando o nariz para cima e fungando, na tentativa de encontrar o desagradávelcheiro através do olfato. Incomodado, perguntou:

– Que cheiro de bosta é esse? Você cagou no quarto?

Tomás já estava acostumado com o próprio cheiro. Não gostava de tomar banho.Geralmente esperava até a paciência de sua mãe estourar, quando acabava arrastado pelas orelhasaté o chuveiro. Gritava em protesto, enquanto ela o chamava de porco e esfregava sua pele cinzacom uma escova embaixo da água. Fazia mais de uma semana que a água tinha acabado e maisde uma que Tomás não sabia o que era banho.

Ana trabalhou a semana toda. Com o cansaço, esquecera-se de obrigar Tomás a tomarbanho com o balde de água que pegavam na vizinha. Normalmente ele achava engraçado oimpacto que o próprio cheiro causava nos demais, mas dessa vez ponderou: “E se Molambochegar com os pais de visita? Que vergonha!”.

Respondeu ao padrasto com toda a sinceridade:– Caguei, mas não aqui no quarto. – Asseverou em um tom sério, fazendo o homem de

barbas cair na gargalhada. – Faz tempo que não temos água, você não lembra?Observou o padrasto perder o sorriso e ficar sério como em um passe de mágica.– É, mas você não fez muito esforço para tomar banho com água no balde, não é?Pela primeira vez, Tomás sentiu vontade de tomar um banho decente.– Quando teremos água novamente?– Você ainda não viu? Temos água desde hoje de manhã; paguei a conta há dois dias! Se

não sou eu nessa casa, não sei o que acontece. – Ele soltou uma baforada de ar e depoisperguntou com ar amigável: – Você quer ajuda para tomar banho?

Tomás o olhou com o rabo do olho sem responder, desconfiado com a pergunta.Primeiro o homem de barbas dizia: Já é hora de você se comportar como um homem! Escutava-odizer à mãe que era “mimado” e se tornaria uma bichinha se continuasse sendo tratado como umbebê. Ensinara-o a fumar, a ver filmes pornográficos, a coçar o saco, a não chorar... De repente,queria ajudá-lo a tomar banho como se fosse sua mãe?

– Por quê? Você acha que eu não consigo sozinho? – Humilhado, tentou explicar: –Olha, minha mãe só me colocou debaixo do chuveiro algumas vezes porque eu me neguei atomar banho, não porque eu precisei de ajuda, entendeu?

Damião percebera o estranhamento de Tomás e por isso contornou com uma gargalhada:– É assim mesmo que se fala, garoto! – Emendou a conversa imediatamente: – Vamos

fumar e depois ver um filme? Consegui um novo hoje! Transcorreram-se mais ou menos vinte minutos do filme quando Damião começou a

se tocar, com as mãos enfiadas dentro da bermuda, gemendo baixinho.Geralmente, observava o padrasto fazer isso com certa mistura de pavor e fascínio,

imaginando o que homens faziam com mulheres na prática, e o que sentiam no decorrer de todoo ato. Acostumara-se a substituir as faces das atrizes pornôs dos filmes pela face de sua própriamãe. Mas dessa vez pensou em Molambo, esquecendo-se do corpo nu de sua mãe cavalgado pelohomem de barbas. Pela primeira vez desde que fora introduzido no mundo da pornografia, viu-selivre da imagem materna. Maria Molambo estava em um pedestal, vestida de branco e segurandouma vela. Sua túnica caía acidentalmente e ela ficava a mercê do seu olhar predador, totalmenteindefesa. A beleza dela era intocável, tão perfeita e poderosa que se sentia covardemente incapazde uma aproximação.

O padrasto o arrancou do delírio, abruptamente:– Vem aqui. Deixa eu fazer isso para você.Tomás se levantou e foi até ele, assustado, temendo que o homem de barbas descobrisse

que várias vezes imaginou a própria mãe nua, e que nesse momento, Maria Molambo, a filha de

seu amigo e Madalena, estava prestes a ser seduzida selvagemente por seus pensamentos.Permitiu o homem de barbas descer suas calças e tocá-lo. Pensou em correr, mas sabia

que se fugisse, assustado como estava, o homem de barbas o chamaria de viadinho, riria parasempre de sua cara e o transformaria em motivo de piada para seus amigos. Fazia tempo que opadrasto tentava ensiná-lo como ser um homem de verdade. Julgou que ser tocado por ele faziaparte do aprendizado. Afinal, é só uma maldita punheta! Sentiu pavor frente à própria excitação,e subiu as calças, apressado e envergonhado quando a lição terminou. Damião tornou a vidrar osolhos na televisão, como se tivesse executado uma atividade normal e corriqueira, sem prestarum milésimo de atenção mais no enteado. Quando o filme terminou, estendeu um cigarro jáaceso para Tomás, deixando-o pensativo por um instante. Tomás se lembrou da regra sobrecomprar os próprios cigarros e negou a oferta:

– Não, obrigado, hoje não quero fumar.O padrasto o olhou com desdém, inconformado com a desfeita.– Ah, não seja florzinha! Por que você não quer fumar? – Perguntou e tornou a empurrar

o cigarro.– Não se esqueça do nosso trato de cavalheiros, hein! – Damião cortou com sua voz

austera o silêncio: – Você não pode contar nada disso a sua mãe. Existem segredos e coisas dehomens, que as mulheres não entenderiam nunca! – Pousou a mão direita nas costas de Tomás eacrescentou em um tom fraternal: – Se você precisar de alguma coisa, qualquer coisa, pode pedirpara mim, ouviu?

As dúvidas que o consumiam foram substituídas por um leve contentamento. Aquelehomem lhe ensinava tudo que provavelmente seu pai jamais teria feito. Preocupava-se com ele,ao contrário do que pensou quando o conheceu. Em breve saberia como os homens secomportam e poderia escolher algo grandioso para o futuro. Deveria suportar os poucos minutosde vergonha que sentia ao ser tocado pelo padrasto como uma prova de resistência. Sabia quehomens contavam o que faziam com suas mulheres uns aos outros. Já era assim na escola, comcolegas menores que ele que escancaravam a intimidade dos pais aos quatro ventos. Tomásseguiu em suas conjecturas, julgando provável também que os homens se masturbassemmutuamente. Aquilo era algo completamente normal. Riria da situação quando a entendessemelhor.

Refletiu sobre a última frase do padrasto e lembrou que precisava de um trabalho.Alguns meninos do colégio engraxavam sapatos no centro. Essa era uma excelente oportunidadede pedir uma caixa de sapateiro para trabalhar.

Depois de ter fumado (inclusive a parte da esponja do cigarro), despercebido, dissetimidamente:

– Você poderia me comprar uma caixa de engraxar sapatos? Eu quero trabalhar! –Comunicou e estufou o peito, orgulhoso de si mesmo e de sua iniciativa.

Esperou ansioso pela resposta, observando a sobrancelha direita do homem erguer-seatravés de uma feição pouco amistosa. Damião tirou a mão das costas de Tomás e se levantou,furioso:

– Caixa de engraxar sapatos? Você acha que meu dinheiro é capim? Não aprendeu nadado que ensinei? – Ele balançou a cabeça, contrariado, vendo Tomás se encolher: – Você temideia de quanto custa uma caixa de engraxar sapatos?

Tomás não entendeu a ironia na pergunta e respondeu de forma inocente:– Eu não, mas esperava que você tivesse!Damião levantou a voz, com furor:

– Você só é burro quando quer, não é mesmo? Vá para seu quarto de castigo que nãoquero mais ver sua cara hoje! – Ordenou com o dedo em riste, apontado em cima do nariz doenteado. – Caixa de sapateiros! Hum... Isso deve custar pelo menos uns duzentos reais! –Acrescentou, na tentativa de mostrar que tinha ideia sobre o valor da caixa. – Como você medevolveria o dinheiro se fracassasse no trabalho, hein?

Tomás ficou chocado. Embora a presença do padrasto o intimidasse, sabia que ele nãotinha o direito de tratá-lo dessa forma. Não podia impor castigos de espécie alguma. Nãoentendia os adultos, falavam uma coisa e faziam outra. O brutamontes disse que se precisasse de“qualquer coisa”, para falar com ele, mas quando precisou e falou, o homem teve um acesso defúria. Trataria de interpretar melhor as palavras da próxima vez. Por que o homem de barbasestava tão indignado? Ele não pediu um avião, mas apenas um instrumento de trabalho queserviria também para ajudar nas despesas da casa.

Mesmo intimidado pelo tamanho do homem e pela raiva que sentiu, Tomás se levantoude onde estava e o desafiou. Com a voz um pouco tímida, mas encarando Damião nos olhos,anunciou:

– Vou dar uma volta por aí. Você não manda em mim; não é meu pai!Em um súbito impulso de raiva, Damião levantou uma das mãos para esbofeteá-lo.

Tomás fechou os olhos com força ao ver a expressão de cólera no rosto do homem e sua mãogigante levantada ao céu, mas não saiu do lugar. Lembrou-se da surra de cinta que levou de seupai quando assou o gato no forno, suportando valentemente a dor e a vergonha sem chorar.

No último momento Damião desistiu de usar a força, e a mão que estava parada no alto,desceu alisando os próprios cabelos negros:

– Escuta, você é muito folgado e isso me tira do sério! Sei que não sou seu pai, mas sevocê quiser ser alguém na vida, deverá ser obediente e submisso, entendeu?

Tomás viu como o homem se controlou rapidamente, abrandando a fúria na face e o tomde voz. Ao ver um momento de trégua, tomou coragem para explicar as próprias regras:

– Olha aqui, oh, oh... Damião – a pronúncia no nome saiu cheia de desconsideração: –Eu posso até aprender a respeitar, mas você deve me respeitar também! Assim não teremosproblemas. – Dessa vez, fitou-o nos olhos sem medo, notando a indignação do homem quevoltou a se descontrolar:

– Respeito? Vá se enxergar, fedelho! Você não passa de um pirralho malcriado! Eu jádisse, vá para seu quarto agora ou vou surrá-lo como sua mãe já deveria ter feito há tempos!

Tomás voltou a sentir medo quando o homem de barbas se aproximou com um dedoapontado em sua face, deixando escapar um pouco de saliva branca e espumosa pelos cantos daboca. Pôde ver a face vermelha por debaixo da barba e as veias do pescoço dilatadas. Achoufantástico e ao mesmo tempo assustador como ele conseguia se transformar em uma questão desegundos, de uma pessoa para outra. Estava assustado demais para comprar uma briga com odemônio de barbas, e por isso escapuliu por debaixo das pernas dele. Abriu a porta da sala, saiuem disparada à rua e correu feito louco, sem olhar para trás.

O único caminho que conhecia era o da escola e da vizinhança próxima onde entregou

jornais no tempo em que trabalhava. Parou de correr quando achou estar fora de perigo, eendireitou o passo e a respiração, pensativo, buscando entender porque o homem de barbas ficoutão bravo. Tudo que ele queria era um trabalho, uma caixa de engraxar sapatos para poder ganharo próprio dinheiro.

Um homem que caminhava na direção oposta, cruzou por ele na calçada.

– Você tem um cigarro para me dar? – Tomás perguntou, receoso, interrompendo apassagem.

O homem o olhou dos pés a cabeça, na dúvida entre perguntar-lhe a idade ou não. Temiaos meninos do bairro, eram trombadinhas e perigosos. Tomás sentiu o medo do homemdesconhecido que não conseguia encará-lo nos olhos, sem entender o motivo de seu nervosismo.Observou o homem tirar uma carteira de Plaza do bolso e estender um cigarro. Pensou emagradecer como primeiro instinto, mas aproveitando-se do pavor do homem, agarrou o maçointeiro e correu desatinadamente.

Depois de correr alguns metros, olhou para trás. O estranho teve tanto medo que não foicapaz sequer de xingá-lo. Olhou para si mesmo, continuava pequeno e infantil, praticamente umacriança para fazer qualquer ser vivo sentir medo dele. Talvez fossem seus trajes, julgou. Estavadescalço, usava roupas velhas e fedia a gambá. Ao concluir que o homem deveria ter pensadoque ele era um marginal perigoso, não achou ruim que as pessoas sentissem um pouco de medodele. Enquanto não trabalhasse, poderia sustentar o vício dessa forma, refletiu (contanto quejamais fosse reconhecido pela vizinhança ou sua mãe o mataria).

Entrou no primeiro ônibus que apareceu. Passou por debaixo da catraca e percebeuquando o cobrador o olhou com cara feia. Caminhou para parte de trás do veículo antes que ohomem tivesse tempo de reclamar em seus ouvidos, alegando que não tinha mais idade parafazer isso e deveria pagar pela passagem como todos.

Quando saiu no Terminal Rodoviário José Garcia Villar, ficou assombrado com acidade: carros velozes, homens engravitados, mulheres elegantes, grandes construções, ecorreria. A vida na cidade o fez sentir-se minúsculo. Foi um verdadeiro contraste sair de seubairro pobre cheio de cachorros perebentos, bicicletas velhas, lixo nas ruas, pessoas feias, para derepente encontrar essa modernidade e beleza a alguns quilômetros de distância. O terminalrodoviário teve seu partido arquitetônico elaborado pelo famoso arquiteto Oscar Niemeyer, coma cobertura da construção toda feita em zinco e formato circular, e um jardim interno tambémcircular sem cobertura. Tomás caminhou entre as filas de pessoas que esperavam para comprarsuas passagens nos guichês e observou as vitrines de várias lojas de souvenires, sem poderconcentrar-se em nada específico.

Ao ver as plataformas de embarque e desembarque na parte mais externa do círculo,lembrou-se que estivera ali uma vez com sua mãe, em uma época não tão distante, quando aindaandava de mãos dadas com ela pelas ruas e não possuía problemas; aliás, seu único problema eradividir a atenção de sua mãe com o próprio pai. Lembrou-se de como esse sentimento erainsuportável na época e analisou como parecia pequeno agora, dado que o pai os abandonarapara ceder lugar ao homem que ensinou sua mãe a beber com gente desconhecida. Perdoou aquestão de ela fumar, já que ele mesmo percebeu o quanto era bom desfrutar o sentimento deliberdade cada vez que segurava um cigarro entre os dedos. Padecia um conflito de sentimentosem relação ao padrasto: Primeiro o odiou pelo motivo óbvio de tê-lo afastado de sua mãe, depois,passou a admirá-lo pelo símbolo de força que representava em sua casa e pelos ensinamentos querecebia dele. Sua mãe recuperou o sorriso perdido graças ao barbudo, e graças a ele também, jánão pensava nela sem roupas, não se tocava depois de imaginá-la nua. Até mesmo os constantessonhos de se casar com ela haviam diminuído. Todo o ciúme e amor que sentia pela mãe foramaliviados pela presença do homem de barbas; um homem sem modos, que de alguma maneiramisteriosa, tanto o amedrontava quanto o fascinava. Discutiram pela primeira vez de homempara homem. Não sabia o que lhe esperaria quando voltasse, mas desejava que Damião nãoestivesse zangado. Talvez fosse egoísmo de sua parte, julgou; não desconhecia de todo a situação

financeira da casa, mas admitia a possibilidade de ter pedido algo absurdo, fora do alcance dopadrasto. Damião estimou um valor em torno de “duzentos reais”, parecia muito dinheiro. Jamaisviu uma nota de cem reais, e por isso, imaginou duzentas notas de um real. Era uma verdadeirafortuna, pensado assim. Soube então que deveria ponderar outra forma de conseguir umemprego.

Saiu da rodoviária e caminhou pela Avenida Dez de Dezembro até chegar à AvenidaBrasília, sem ter conseguido organizar as ideias. Ainda tinha um problema: precisava de umemprego se quisesse namorar Molambo. O projeto ainda era audacioso, e talvez ela risse quandosoubesse que estava apaixonado por ela. Molambo era uma mulher adulta e independente,enquanto ele, um ranhento que vez por outra ainda cagava nas calças. A questão de urinar nacama era outro problema que precisaria resolver; não poderia pensar em viver com uma mulherfazendo ainda coisas de recém-nascido.

Tudo que Tomás podia fazer era caminhar e pensar. Quando chegou à Praça RochaPombo, na área central da cidade, viu que estava perdido, e que não tinha fósforos para acenderseu cigarro. Olhou para trás e percebeu que deixou uma longa distância atrás de suas costas. Nãosabia o caminho de volta ao terminal e tentou não se desesperar com a ideia de estar perdido.

Sentou-se em um banco da praça e observou as pessoas passarem por ali apressadas.Lembrou-se outra vez de Molambo. Como seria beijá-la? Perguntou-se em uma excitaçãocontida. Pensou novamente em fumar um cigarro, mas notou pela segunda vez que não tinhafogo e ficou agoniado. Ter cigarros e não ter fósforos era pior do que não poder sustentar o vício(Será que Damião sabe disso? – Conjecturou). Viu um grupo de meninos entre quinze e dezoitoanos se aproximar em direção à praça. Caminhavam rindo às gargalhadas, mexendo com ostranseuntes. Um deles pediu dinheiro a uma mulher que o ignorou, apressando o passo. Pediramcigarros para um homem que escondeu o celular discretamente antes de cruzar por eles, sem sedeter.

– Enfia naquele lugar, otário! – Gritaram.Tomás imaginou que aquele lugar era a bunda. As piores ofensas sempre terminam lá.

Ele mesmo costumava falar assim para os colegas de escola e para a professora, repetindo o quecansava de escutar na rua. “Aquele lugar” funcionava mesmo, pois quando o mencionava(embora sem saber por que a bunda que tem nome próprio e todos sabem exatamente onde fica, échamada daquele lugar, como se fosse um lugar distante e desconhecido), os colegas ficavamfuriosos, arregaçavam as mangas das blusas para brigar e as professoras os mandavam àdiretoria. Claro, aquele lugar, só podia ser o expelidor das coisas mais fétidas, das quaispuxamos a descarga para não vê-las nem suportá-las além dos segundos necessários. Eram cincorapazes. Tomás observou um deles revirar uma lixeira em busca de algo, enquanto outro catavauma bituca de cigarro (ainda acesa do chão) que alguém desprezou em uma parada de ônibus. Ogaroto que vasculhava o lixo, sem encontrar o que procurava, deixou os restos revirados nacalçada. Tomás também costumava chutar latas de lixo pelo caminho quando voltava da escola.Quando estava de uniforme e mochila era um atrativo para retaliações externas; qualquer coisaque fazia de errado, logo era flagrada por um desconhecido que lhe puxava a orelha, fazendo-olimpar a sujeira que produzia com seu vandalismo. Ele ficava envergonhado e furioso, mas nãotinha opção. Além de catar o lixo que espalhava, ainda levava um sermão daqueles. O uniformeda escola era um alvo fácil para receber represálias alheias, pensou. As pessoas acreditam queescola ensina bons modos e valores, e aquele que aprende pode e deve ser ensinado por qualqueradulto, professor do mundo, que já tenha aprendido o suficiente para ensinar um incipiente deuniforme.

– E aí, parceiro, cê tem um bagulho pra descolar pra gente? – Perguntou um dosmoleques do grupo.

O rapaz devia ter por volta de dezessete anos. Estava com camiseta regata de malha bemfina, quase transparente, e um bermudão que chegava até os joelhos. Outro garoto veio logo atrásdele; não usava camisa e tinha várias tatuagens mal feitas no braço e no peito, com a bermuda tãobaixa que deixava à vista dez centímetros de cueca.

– Bagulho? – Ele achou que os meninos se referiam a cigarro e ofereceu o maço quetinha no bolso, usando um leve ar de cumplicidade, sentindo-se poderoso por saber que era oúnico entre eles que dispunha de um maço de Plaza. Tomás contou quantos havia, tirou um paraele e entregou o resto ao rapaz com camiseta regata. – Pega aí, pode dividir entre vocês! – Dissee esperou afoito que alguém tivesse uma caixa de fósforos para lhe oferecer.

Ele pegou o maço com certa educação da mão de Tomás e disse maquinalmente,dirigindo-se aos membros do grupo:

– Olha aí mano, que cara firmeza! Cê é dos nossos, hein! – Distribuindo um cigarro acada companheiro, perguntou: – Cê é daqui, parceiro?

– Sou. E vocês?– Nós somos do mundo! – Asseverou com as palavras firmes. – Quer dar um rolé com a

gente? Nós vamu dá uma banda lá pros cafundós da rodoviária pegar uma parada com os truta, táligado? Cê que é sangue bom, pode dar um teco do bagulho também!

– Que parada é essa? – Tomás perguntou, sem reconhecer metade das palavras queouviu.

– Pirou, mano? Cola da melhor qualidade, coisa de categoria mermo!Concordou, educado, sem perguntar por que raios haveria de querer um teco de cola.

Aproveitou a companhia, pois uma vez na rodoviária, seria fácil descobrir o ônibus que o levariade volta para casa. Tomás procurou imitá-los na forma de caminhar. Incorporou o quadril adiantedo corpo, afastou ligeiramente os braços do tórax (como se tivesse músculos ou a ponta de umalança cravada nas axilas, não podendo encostar os braços nela) e moveu-se arrastando os pés semchinelos. Antes de cruzar a primeira esquina, chutou um latão de lixo e os companheiros oexaltaram com gritos de euforia, sem percebê-lo segurar um grito de dor. A lata era de ferro eTomás a acertou em cheio com o dedão do pé direito desprotegido. Porém, ignorou a dor e ocorte que fez, caminhando junto de seus novos colegas com um gingado malandro, fazendo ospedestres cruzarem o lado da rua ou olharem para o outro lado quando não tinham tempo dedesviarem deles. Seguiram cantando uma música da banda Planet Hemp, afastados do gentio, dolugar e do tempo, como se o mundo fosse só deles. De certa maneira, Tomás se viu desfrutandodo medo que impunha nas pessoas, mesmo sabendo que era totalmente inofensivo. Jamais haviase sentido bem com os meninos uniformizados no colégio, aliás, jamais recebeu umaoportunidade para estar em qualquer grupo. Sentia-se como um repelente. Os meninos queestudavam com ele o detestavam; ninguém acreditava na idade que tinha, julgando-o ainda maisjovem por causa de seu tamanho, apesar de ser mais velho que a maioria e o mais atrasado nosestudos entre eles. De repente, homens e mulheres tinham medo dele e não pôde deixar dedesfrutar.

Embora aqueles garotos de rua tivessem a gíria e os trejeitos iguais (que os identificavade certa maneira), possuíam sotaques que Tomás nunca antes escutou. Soube que o rapaz comcamiseta regata falava “manezes”, tinha o apelido de Barriga verde e vinha de Florianópolis. Omais simpático deles era o tal do Gaúcho que falava engraçado colocando um x no lugar do t, doRio Grande do Sul. Por ter nascido no norte do Paraná, Tomás foi apelidado de Pé vermelho por

dois rapazes de Curitiba: Coxa branca e Nojento, muito amigos do Piradão da gema do Rio deJaneiro.

Tomás conhecia todas as cidades por nomes. Sempre imaginou que por ser o Brasil tãogrande, era impossível esbarrar com pessoas de outros lugares. Sua mãe ficaria impressionadaquando reproduzisse os sotaques que aprendeu.

Ao saber que eles viviam na rua, ficou ainda mais perplexo:– Vocês não têm pais? – Perguntou sem entender como conseguiam sobreviver

sozinhos.O Piradão da gema e o Barriga verde, que andavam ao lado de Tomás, soltaram uma

gargalhada, mas foi o Carioca quem respondeu:– Que pai o que, mano? Tá maluco, cumpadi? Meu pai era um otário e minha mãe uma

vadia! Eles andavam no pico e se foderam. O velho morreu faz dois anos com o bicho. Ele tinhaAIDS, tá ligado? E só o capeta sabe por onde anda minha coroa.

Tomás tentou sorrir, mas não conseguiu. Lembrou-se do próprio pai. Em certa parte,acreditava que foi um otário também, mas ao menos um otário trabalhador. No fundo, mantinhauma esperança de que poderiam voltar aos velhos tempos, quando seu pai ainda estava em casa esua mãe era apenas uma mãe comum e carinhosa. Então, teria a oportunidade de fazer algumascoisas diferentes e ser um bom filho; nunca mais imaginaria sua mãe nua, não sonharia em casar-se com ela, e não voltaria jamais a encarar seu pai como um rival ou o odiá-lo por causa deciúmes.

Ao escutar tantas queixas, considerou que talvez os homens não estejam preparados paraa paternidade, e nem os garotos, para serem bons filhos...

– A gente fica em comunidades; às vezes em baixo da ponte, outras, em um balcão ondea igreja abriga a camaradagem. Só que lá é chato porque pra comer o padre faz a gente rezar.Quando tamu em baixo da ponte com outros brothers, fazemu fogueira, tomamu pinga, rangamuuns espetinhos de gato, passamu a vara em umas vadias. Podemu ficar muito loucos até o solnascer, tá ligado? Não temu compromisso algum. Podemu correr esse mundão afora só de caronae conhecer do Oiapoque ao Chuí. Conheço São Paulo, Salvador, Goiás, e um dia ainda meto o péna Amazônia, papo sério! Cê acha que a gente troca essa liberdade do caralho pra ficar embaixoda saia da mãe? Sai fora, truta! – A gente fazemu uns bicos de vez em quando e levantamu unstrocos pro churrasco e pra birita, tá ligado? O pobrema é que os granfinu não confiam na gentepra trampar, acham que a gente somo tudo vagabundo. É difícil descolar um trampo na moral.Quando a coisa fica preta, levantamu um ferro e sacodimos alguma banca de revista, um feirantebabaca ou um otário engravatado com pinta de mauricinho, tá entendendo? Esses otários achamque tão por cima da carne seca, que a gente somo tudo ralé! Cê precisa ver a cara deles quandotêm um cano na boca. – O rapaz puxou ranho dos pulmões e o cuspiu em seguida no chão. Osdemais ouvintes concordaram, balançando a cabeça e emitindo afirmações monossilábicas. – Sófalta cagarem nas calças! Não existe desigualdade quando a gente enfia o cano na cabeça de umengravatado. Nessas horas, somu tudo igual, a gente e eles, sacou o lance? Tudo igual, só namoral, sem preconceito!

Tomás não conseguiu fazer qualquer comentário (pois não entendeu grande parte do queescutou), mas imaginou ter essa liberdade embaixo da ponte, fazer o que quisesse até altas horasda madrugada, viajar de carona e conhecer outros lugares. Ficar isento da obrigação de tomarbanho, escovar os dentes, do horário regrado para dormir e acordar, de ir à escola... Era umaideia absolutamente tentadora quando pensava a respeito. Mas para conseguir toda essaliberdade, deveria se afastar de quem mais amava na vida.

Sabia que a mãe lavaria sua boca com água e sabão se um dia falasse metade dospalavrões que ouvira ali. Costumava fazer malandragem e usar palavrões apenas na escola,enquanto em casa, comportava-se um pouco melhor. Sua mãe não tinha noção de quantospalavrões ele empregava na linguagem diária como parte da comunicação, e nem do quanto seuléxico continuava crescendo.

Quando avistaram o Terminal Rodoviário, Tomás deixou escapar um suspiro de alívio.No mesmo tempo viu que uns garotos indígenas se aproximavam deles.

Os garotos dos dois grupos se cumprimentaram, e logo, caminharam juntos. Tomás osseguiu sem perguntar nada, observando parte do grupo indígena. Notou que os índios se vestiammelhor que todos os brancos ali presentes, usando tênis Nike e camisetas de marca. Um delestinha um cordão de ouro no pescoço e segurava uma garrafa de cachaça entre os dedos da mãoesquerda. Outro vestia calça jeans.

Havia um mito nas histórias dos índios sobre eles viverem escondidos em aldeias nafloresta? Tomás tentou se lembrar: rituais, crenças, canibalismo... Comiam frutas, macacos,peixes, cobras e andavam com uma folha na frente dos órgãos genitais? Talvez tivessem só carade índios. Eles pareciam diferentes de tudo que aprendeu no colégio e viu nas imagens dos livrosde história. Estava em uma fase de descobertas, desmistificando as mentiras dos adultos edescobrindo pessoas e segredos por si só.

Lembrando que a professora costumava dizer: “a pergunta mais estúpida é aquela nãofeita”, indagou:

– Vocês são índios de verdade?O rapaz de tez morena que se chamava Cauã, tomou vodca direto da garrafa. Depois de

dar uma golada na bebida, respondeu:– Claro! O que você pensa? Aposto que nunca viu um índio antes, não é merrmo?Tomás confirmou com a cabeça, descobrindo que eles existiam de verdade e estavam na

sua frente em carne e osso.– Meu povo é Nhandevas, e dos meus amigos, caingangues. Cê deveria saber mais,

truta! Estamos entre os cinco povos indígenas mais populosos do Brasil. – Articulou com ligeiroorgulho e sorveu outro trago da bebida: – É engraçado, enquanto o mundo inteiro ainda pensaque só existem índios em nosso país, cê que é brasileiro não acredita quando vê um, meu chapa?

Tomás se envergonhou. Deveria saber, mas como? Uma vez mais constatou que aprofessora estava errada e que “somente pessoas estúpidas chegam a formular perguntasestúpidas”. Cauã estendeu a garrafa de vodca e Tomás emborcou um grande gole. A bebidadesceu dilacerando a garganta, queimando seu estômago. Achou que poderia soltar fogo pelaboca nesse exato momento. A vodca desceu por sua goela rasgando tudo que encontrou pelocaminho, bateu no fundo do saco vazio, voltou até sua boca, e ele não pôde deixar de fazer umacareta. Todo mundo riu. Ao parecer, estavam acostumados com o veneno. Tomás riu também,disfarçando a inaptidão e tornou a pedir a garrafa. Dessa vez, deu um gole ainda maior no intuitode anular a má impressão deixada. Esperou que os novos amigos o aplaudissem; que oexaltassem de alguma forma, mas ao contrário disso, Cauã arrancou a garrafa de sua mão,bastante zangado:

– Hei, pega leve, porra! Cê acha que a birita é sua? Cê acha que essa porra é de graça,moleque?

Tomás sentiu as bochechas queimarem. Se pudesse naquele exato momento gritar, teriagritado e chamado por sua mãe. Sentiu que não passava de um menino estúpido que necessitavaimpressionar as pessoas, decidindo-se pelas piores escolhas; dissimulando a fraqueza que levava

na personalidade através da força que não possuía. Queria voltar para casa, mas não disse nada.Os meninos continuaram caminhando. Apartavam do caminho quem quer que fosse,

sem esforços. Pararam em uma praça enorme e erma, depois de terem caminhado algunsminutos, afastando-se do terminal rodoviário. Tomás observou Coxa branca pegar um saco damão de um dos índios. Havia uma espécie de gosma amarela dentro do plástico. Coxa brancafechou a ponta do saco com as mãos e meteu o nariz nele, aspirando profundamente. O sacopassou de mão em mão, e cada qual que inalava o conteúdo, tranquilizava-se de forma rápida. Ogrupo de índios buscou lugar ao redor de uma árvore e sentou em silêncio. Tomás ficou em pé,vendo o pessoal tumbar, curioso. Viu Nojento aspirar pelo menos quatro ou cinco vezes dentrodo saco, e depois passou para ele. Era a vez de Tomás. Aspirou a primeira e a segunda vez, masnão sentiu nada. Tornou a fazer mais profundamente. Estava contando a sétima inalada quandotomou um tapa na cabeça. Cauã parecia indignado:

– Cê é louco, mano? Primeiro cê toma minha birita e agora arregaça meu bagulho?Tomás sentiu medo e constrangimento; estava preocupado apenas em seguir os passos

corretos, tentando ocultar que jamais cheirou cola.O Barriga verde se levantou em defesa de Tomás e apartou o índio enfurecido. Tomás

se afastou alguns passos e sentou-se perto dos outros rapazes da árvore, decidido a permaneceralguns minutos mais, e logo, pegar o ônibus de volta para casa.

De repente, relaxou de forma intensa. Um som penetrante invadiu sua mente e o liberoude todos os pensamentos. Sentiu uma leve corrente circuita cruzar seu corpo de baixo para cimae de cima para baixo. Não sabia explicar como acontecia, mas a sensação era muito agradável;jamais sentiu isso antes. Observou a garrafa de vodca vazia muito próxima dele, caída no chão.Sem entender como, viu-se em uma das partes da garrafa, transformando-se pouco a pouco emum pedaço de vidro. Podia perceber as pessoas, mas elas não o percebiam. Em sua fantasia, tinhaa certeza que tivera uma vida. Ele gritava, mas não podiam ouvi-lo. Tentou abrir a boca e dizeralgo, mas não tinha voz; faltava-lhe a língua. Sua boca estava vazia. Podia apenas ver, apesar denão ter olhos. Era apenas um expectador impotente, transformado em um maldito metal. Na suafrente, sua mãe dançava nua. Não pôde escutar a música, apenas ver o movimento do corpodelgado de sua genitora, balançando suavemente de um lado ao outro. Outra vez tentou gritar,contar que tinha se transformado em uma parte de qualquer coisa, mas ao que tudo indicava, elenão fazia mais parte de algo vivo. Jamais existiu. Sua mãe estendeu a mão para alguém e outrocorpo nu começou a dançar ao mesmo ritmo que ela. Molambo surgiu sem roupas, com umcigarro na mão direita e uma garrafa de licor na outra. As duas se abraçavam e trocavam carícias.Molambo beijou os lábios de sua mãe na boca e colocou a garrafa de licor nos lábios dela,sorrindo maliciosamente.

O grito de Tomás foi tão alto que o despertou do transe. Sentia-se leve como uma pluma,embora incomodado com as alucinações recentes. Acreditava poder flutuar de volta para casa sequisesse. O barulho em seus ouvidos diminuía. Tinha a sensação de haver passado horas, outalvez dias, quando acordou. Uma repentina náusea fê-lo vomitar logo ao lado de onde estavasentado. Olhou para o relógio na catedral; haviam transcorrido apenas alguns minutos e estavasozinho. Ainda conseguiu ver a silhueta na sombra dos garotos que caminhavam longe, emdireção oposta ao Terminal. Olhou para os lados, parecia que o mundo inteiro o observava, masnão havia ninguém. Caminhou alguns passos em direção ao Terminal. Ainda poderia chegar acasa antes do anoitecer. Voltou a vomitar e sentiu nojo pela cor asquerosa e o gosto de bílis queficou na boca. Tentou lembrar o que comeu, sem conseguir. Tanto o prazer quanto a sensação deliberdade que sentira segundos antes, esfumou-se rapidamente, trazendo no lugar uma pulsante

vertigem e queda de pressão. Outra náusea violenta provocou seu terceiro vômito.Caminhou até a parada do terminal. Ainda deveria descobrir qual ônibus tomar e deduzir

pela cara do cobrador, se deveria passar por debaixo da catraca ou sair pela porta da frente sempagar a condução.

Tomás saiu pela porta da frente do ônibus duas paradas antes, por medo de voltar a

vomitar. Ainda se sentia mole, anestesiado pelo efeito da substância que cheirou. A face estavapálida e o corpo astênico. Eram quase seis horas da tarde quando cruzou duas esquinas, antes deentrar na rua de casa. Percebeu que um dos pés imundos estava pintado com sangue ressecado.Sua mãe já devia estar em casa, histérica. Receberia um castigo? Refletiu por um instante: obarbudo disse que iria surrá-lo e o mandou para o quarto. Ele tinha o direito de se defender e porisso fugiu. Diante do medo, homens e crianças fazem bobagens. Não sabia o que o esperava enem o que diria, mas deveria manter a briga com Damião longe do conhecimento da mãe. O queo padrasto contou a ela? Questionou-se. Homens não fazem fofocas! Homens não choram!Homens não amam! Homens não demonstram fraqueza... Como é difícil ser homem! Temosconstantemente que fugir de nossas semelhanças com as mulheres. O que os homens podemfazer e os viados não? Bem que poderia existir uma lista...

E se contasse a verdade e o padrasto nunca mais o convidasse para assistir filmes? Issoseria terrível! O homem de barbas poderia acusá-lo de ter quebrado o tal código de homens quenão fazem fofocas e chamá-lo de viadinho, dizer que ele não sabe guardar segredos eenvergonhá-lo na frente dos pais de Molambo.

Caminhou pelo chão de terra batida da própria rua, observando a feiura do bairro ondemoravam. As casas pintadas de laranja assustavam sua retina. Considerava-as de péssimo gosto.Por que as pessoas metem essas cores ridículas em suas casas? Pensou que se as casas fossempintadas de branco e a rua asfaltada, o lugar teria melhor aspecto. Sentia vontade de arrancar osvarais na frente das casas (que o povo utilizava para pendurar fraldas, cuecas e roupas de camaesburacadas e carcomidas). As roupas velhas estendidas naqueles varais revelavam o aspectopobre do lugar. Pensou que seria mais digno se os moradores estendessem as roupas atrás de suascasas. Ninguém precisava ver cuecas descoloridas, calcinhas gigantes, lençóis gastos e omundaréu de roupa alheia recém-lavada. Outra coisa que o incomodava fazia muito tempo eramos animais. Desejava envenenar todos os cachorros magrelos que viviam por ali, revirando lixos.Não entendia a ideia dos vizinhos que assumiam a responsabilidade de cuidar de animais quandonão conseguiam nem cuidar deles mesmos. O que faziam pelos bichos? Davam comida vez poroutra, mas os deixavam vagabundeando durante todo o dia entre coceira e fedor, levando nocorpo pouco pelo e muita sarna. Assim que tivesse dinheiro compraria bombinhas. Poderiaescondê-las dentro de um pedaço de pão e estourar o estômago dos vira-latas. Seria sua vingançapessoal contra os vizinhos que o chamavam às escondidas de “Filho de rato”. Durante amadrugada cortaria os varais com uma tesoura, picharia a casa deles com giz de cera colorido ecarvão, e jogaria pedras nas janelas. Enquanto não podia realizar seus devaneios, pediria aopadrasto, que era pedreiro, para asfaltar a rua. Deveria ser algo relativamente fácil, refletiu. Seriaa rua mais bonita do bairro e pessoas de outros lugares sentiriam inveja de quem morasse ali. Iriacomeçar essa mudança primeiramente com ele mesmo, lavando os pés e aprendendo a andar comcalçados.

Estava a duas casas de chegar quando viu um dos vira-latas da vizinhança rasgando umsaco de lixo. O cachorro estava com o foucinho dentro do plástico quando Tomás se aproximousilenciosamente e o chutou nas costelas, com o pé que não estava ferido. O cachorro não teve

tempo de tirar a boca do saco antes de ser novamente chutado. O animal ganiu de dor e correu,trepidante. Depois de assistir a cena pela janela, uma das vizinhas saiu esbaforida pela porta decasa:

– Hei, moleque! Você é idiota? O que pensa que está fazendo aí? Se chutar essecachorro de novo vou lhe dar um tapa no meio da cara, ouviu? – Afetada pela covardia do garotocontra o cãozinho, falou ainda mais alto, completando sua frase com um arsenal de adjetivos: –Aprendiz de vagabundo! Safado! Débil mental!

Tomás observou a mulher com sua expressão furiosa na face. A vizinha o ofendia deforma valente e o ameaçava sem o poder de direito. Raios! Ela é apenas a merda de umavizinha! Quem ela pensa que é para me ameaçar?

Então, virou-se para ela e a retrucou com desprezo:– Aprenda a cuidar desses bichos nojentos se você quer ter um, ou da próxima vez que

eu ver um desses animais comendo lixo, vou chutar a bunda deles e depois a sua!A vizinha arregalou os olhos em uma expressão amargurada e ainda mais colérica. Deu

alguns passos na direção dele como se fosse agredi-lo, mas recuou poucos metros antes, tornandoa ameaçá-lo:

– Vou mandar sua mãe puxar sua orelha! Pode aguardar que o que é teu tá guardado,moleque desaforado!

Antes de permitir ser afrontada novamente por um fedelho, a mulher deu meia volta eentrou na casa, aos gritos. Tomás não pôde entender o que ela falou ao final, mas soube que elaseria a primeira de sua lista a ter a casa pichada.

Arrependeu-se levemente de tê-la enfrentado. Se algo acontecesse aos cachorros e comas janelas, todos saberiam imediatamente quem foi o autor. Tampouco gostaria que sua mãefosse atormentada por esse tipo de probleminha que ele causava na rua.

“Foda-se! Se a vagabunda abrir o bico, desminto tudo na cara dela!” A porta de casa estava fechada quando girou a maçaneta. Antes que tivesse tempo de

bater, Ana apareceu aflita à porta, com uma apreensão nervosa e descorada na face.– Oh, meu Deus! Por onde raios você andou? – Ela o sacudiu pelo braço, enquanto

Tomás desviou a mirada para Damião, plantado logo atrás dela. – Por que você saiu de casa semavisar para onde ia?

Damião se adiantou e interferiu:– Estávamos muito preocupados com você, moleque! – Disse com ar fraternal, deixando

Tomás aliviado por não estar bravo. Em seguida acrescentou, olhando para Ana, interpondo-seno meio dos dois: – Vamos, deixe isso para lá! Ele já não é mais nenhum bebê, pode muito bemdar umas voltas por aí, sozinho.

Tomás suspirou aliviado. A mão áspera do padrasto em suas costas, de alguma forma,tranquilizou-o. Porém, Ana não ficou satisfeita:

– Vamos, fale logo: Onde você estava?– Na casa de um amiguinho. – Mentiu através de uma voz inocente, desconhecendo o

motivo de se comportar sempre de maneira tão infantil na presença da mãe. Ainda sentia o corpotrêmulo dos sacudidões que levou quando ela o questionou:

– “Amiguinho”? Que amiguinho é esse?– Um amiguinho da escola! – A voz saiu um pouco mais firme, fingindo estar ofendido

quando rebateu: – A senhora acha que eu não sou capaz de fazer meus próprios amigos?Ao mesmo tempo em que lutava contra essa verdade: Era incapaz de fazer amigos,

queria sensibilizar sua mãe, fazendo-a desistir através de um questionamento que o rebaixaria aofracasso e humilhação. Sabia que ela o defendia de tudo e de todos, inclusive de si mesmo.Jamais o permitiria pensar que era incapaz de qualquer coisa. Afinal, ele nasceu para vencer!Quando ia mal na escola, Ana falava que as professoras não ensinavam bem ou que a matéria eramuito difícil para crianças da idade dele. Quando Tomás batia em algum garoto e outras mãesreclamavam, Ana dizia que algum motivo as crianças deram para apanhar. Quando Tomásapanhava de algum menino, Ana tirava satisfações, dizendo que eles eram covardes...

Como previsto, a zanga nos olhos dela se desvencilhou e uma expressão terna surgiu nolugar:

– Claro que você tem, filho! – Ela se ajoelhou para encontrar os olhos de Tomás acimade seu rosto e pegou nas mãos dele: – Só não estou acostumada que você saia de casa assim, semeira nem beira. Fiquei preocupada!

Tomás se aproveitou da situação para usar as palavras de sua mãe a favor de si mesmo:– Mãe, a senhora precisa saber que tenho minhas necessidades. Preciso conversar com

gente jovem, rir um pouco, aprender algo da vida!Ana reconheceu parte daquela oração nas palavras que disse a Tomás quando começou a

namorar Damião. Não sabia se ele reproduziu a propósito ou não, mas achou brilhante o filho tê-la adequado ao próprio favor. Os filhos são um espelho para os pais, tanto nas atitudes quantono discurso, refletiu. Tomás estava crescendo depressa. Ela reparou no ralo pelinho quecomeçava a surgir em cima da boca do menino. Se fosse mais alto, já teria perdido o ar infantilhá muito tempo, pensou. De uma forma ou de outra, adentrava à adolescência e já era hora detratá-lo como uma pessoa capaz de agir com responsabilidade, considerá-lo alguém de confiança.Chegava o momento de respeitar os segredos de seu filho, seu comportamento macho e suascoisas de menino, como a um indivíduo prestes a atingir a maturidade.

Em uma voz mais afável, disse:– É verdade! Eu fico muito feliz que você tenha seus próprios amigos. Se você quiser,

pode chamá-lo para vir aqui em casa brincar. Vou fazer um lanchão bem gostoso para vocês!– Sério? – Perguntou descrente das palavras da mãe, desconsiderando a boa vontade.

Não faziam “lanchão” nem em dia de aniversário, quanto mais em dias comuns onde elereceberia uma visita. Ao ver a generosidade da mãe, envergonhou-se por ter mentido. Se eladescobrisse sobre a cola e a vodca que compartilhou com garotos de rua, seria o fim de suaimagem inocente.

Cabisbaixo, conseguiu apenas dizer:– Oba!– Mas, me avise antes, ok? A propósito, como é o nome do seu amigo?– Gaúcho! – Respondeu com o primeiro nome que lhe veio à mente.Finalmente, pareceu estar convencida.– Está bem, mas agora vamos tomar banho que você está imundo!Tomás a encarou, contrariado:– Mãe, eu vou sozinho, né? Ou a senhora acha que não consigo me lavar?Ana sorriu deslumbrada com a maturidade do filho, completamente rendida ao seu

encanto. Tomás pegou roupas e uma cueca limpa na gaveta da cômoda e entrou no banheiro.

Ligou o chuveiro e entrou embaixo da água fria. Deixou a água escorrer pelo corpo, e com umaesponja, esfregou-se com força. Enquanto se ensaboava e lavava com vigor cada milímetro da

pele, pensou em Molambo e no quanto desejava revê-la. Precisava convidá-la para ir ao cinema,mas ainda não sabia como conseguir o dinheiro.

Ficou mais tempo que o habitual no chuveiro; enxugou-se e colocou a roupa limpa.Constatou que de fato é verdade que um bom banho relaxa as pessoas. Ao sair do banheiro,sentia-se melhor.

Ana e Damião já estavam sentados à mesa. Enquanto o casal orava agradecendo acomida, Tomás rezava para conseguir um emprego rápido, ou encontrar de maneira fácil, odinheiro que necessitava para levar Molambo ao cinema.

Ana esquentou o feijão do dia anterior, fritou coxa de frango e fez arroz fresquinho.Tomás estava tão faminto que após devorar a comida do prato, pediu para repetir. Percebeu quequase não conseguia ver o homem de barbas por trás da cordilheira de arroz no prato dele.Enquanto sua mãe era delicada ao usar talheres e mastigar de boca fechada quando comia, obrutamontes levava o rosto muito próximo ao prato sobre a mesa, usando apenas garfo e a mãodireita, induzindo o talher com uma urgência tão rápida até a boca que mais parecia que a comidaestava prestes a desaparecer. Mastigava de boca aberta, fungava o nariz ao mesmo tempo em queengolia a comida em garfadas enormes, pausando apenas para limpar os dentes com uma dasunhas que mantinha grande como a de um dinossauro. Ao ver o homem de barbas esfregar aboca na barra da própria camisa, Tomás olhou para sua mãe, sobressaltado. Queria avisá-la quecomiam ao lado de um porcão (caso ela não tivesse percebido), mas ela parecia satisfeita porqueo brutamontes devorava sua comida com apetite de monstro.

Ao ver Damião fazer uma nova montanha de comida no prato, raspando as panelas comuma colher, Tomás não aguentou:

– Por que você não come direto dentro da panela? – Perguntou, oferecendo o ladoprático (e irônico) da situação.

Ele largou o garfo cheio de comida no prato e lançou um olhar gélido em direção aoenteado.

– Alguém disse que você tinha permissão para falar? Sua mãe não ensinou que a mesa éum lugar sagrado? Que não devemos conversar enquanto comemos?

– E sua mãe não ensinou você a comer de boca fechada?– Tomás! – Ana soltou um berro de reprovação.– O que foi que eu disse? Esse menino está estragado e a culpa é desses mimos que você

dá a ele! Eu jamais tive permissão para dar um “piu” na mesa, e muito menos provocar meu paiquando tinha a idade dele...

– Você não é o meu pai! – Tomás asseverou forte o suficiente para que todos pudessemescutá-lo.

Ana arregalou os olhos sem saber o que dizer. Tomás era tão indiferente sobre aexistência do pai que às vezes acreditava que o menino não sabia que tivera um.

Damião largou o garfo e deu um soco na mesa.– É claro que não sou seu pai! Se eu fosse, já teria concertado você, juro por Deus!Dessa vez, Ana se espantou com a declaração, sentindo-se ofendida. Reconhecia que

Tomás necessitava um pouco de emenda, mas Damião não tinha o direito de falar assim.Contrariada, interferiu imediatamente:– E eu posso saber como?Ele voltou a mastigar e respondeu com a boca cheia:– À base da surra! Uns bons tapas ajudam a endireitar uma criança atrevida! Hoje em dia

os pais acreditam que devem ser amigos dos filhos. É essa tolerância sem fim que transforma

crianças em débil mentais! – Ele apontou para Tomás que parecia ignorá-lo, e completou: – Aeducação começa em casa!

Ana controlou a vontade de jogar tudo para o alto, inclusive sua determinação em deixaro filho ser “doutrinado” por Damião, tal foi o tamanho da raiva que sentiu. O namorado nãoestava em sua casa para bater em Tomás, e nem para educá-lo com violência. Julgou por bemavisá-lo, antes de perder a paciência e mudar os planos.

Dominou o tom da voz, encostou a boca no ouvido de Damião e disse quase em umsussurro:

– Se você foi criado abaixo de tapas é problema seu! No meu filho, só eu encosto a mão,entendeu?

Damião largou os talheres imediatamente. Alarmado mais com o tom que ela usou doque com o aviso recebido, tentou abrandar a situação:

– Eu não disse que iria bater em Tomás! – Ele também baixou o tom da voz como serecobrasse o bom senso. – Só disse que no meu tempo, quando um adulto falava, criançasficavam de bico fechado. Foi só isso!

Ao perceber que sua mãe e o homem de barbas começavam a discutir, Tomás pediu parasair da mesa.

Sentado no sofá verde, ligou a televisão, lutando consigo mesmo para tirar Molambo deseus pensamentos. Ao pegar o controle remoto na mesinha de centro a sua frente, viu a carteirado padrasto ao lado da Bíblia que costumava acompanhá-lo. Olhou com o rabo dos olhos,disfarçadamente, sentindo o medo dominá-lo por completo, mesmo antes de ter atuado. Em umgesto único, pegou a carteira, mas estava tão nervoso que a deixou cair. Espiou novamente paracozinha e notou que o casalzinho continuava a discutir. Nervoso, apanhou-a do chão e conferiuse ninguém estava olhando antes de abri-la. Havia quatro notas de dez reais e algumas de um edois reais. Devia ter sido dia de pagamento, pensou. Sorrateiramente, puxou uma nota de dez.Não seria suficiente para o cinema, mas era o começo de uma poupança, e com sorte, o padrastonão daria a falta do dinheiro. Tornou a colocar a carteira na mesma posição; dobrou a nota comcuidado e a enfiou na cueca. Depois desapareceu.

Tomás foi acordado por Ana para ir à escola. Vestiu-se ainda meio adormecido.

Detestava estudar de manhã, mas como tinha sido expulso do colégio (mesmo sua mãe tendoameaçado a diretora de denunciá-la no Ministério de educação), não teve jeito. Procuraram outraescola pública, mas o único horário disponível para ele foi o desumano sacrifício de acordar às6h30, para entrar as 7h45 e permanecer no colégio até meio-dia, entre bocejos e cochiladas.

Tomás saiu do quarto e tomou café com pão amanhecido enquanto sua mãe se preparavapara mais um dia de trabalho. Ele a observou taciturno. Era com certeza a mulher mais linda emaravilhosa que o mundo já viu. Prometeu a si mesmo que um dia seria rico o bastante e ela nãoprecisaria mais trabalhar. A primeira coisa que faria quando tivesse dinheiro seria contrataralguém para trabalhar na casa deles. Sua mãe era rainha e estava perdendo a majestade naqueleserviço pesado. Embora tivesse emagrecido, pneus de gordura circulavam o abdômen dela.Ainda não tinha completado 29 anos, mas já possuía finas ruguinhas ao redor dos olhos; osmesmos olhos que há pouco tempo estiveram cheios de vida. As mãos que foram delicadas aoextremo, estavam ossudas e calejadas, as unhas quebradiças. Relaxou muito com ela mesma eTomás não tinha dúvidas que isso se devia ao fato de viver com um homem grosseiro.

Apenas com a presença, Damião colocava medo nos homens, sem necessitar dizer oufazer qualquer coisa. A palavra dele era lei e os músculos do corpo falavam em seu nome,

sozinhos. Tomás queria ser forte como Damião, no entanto, sentia vergonha quando comia aolado dele, quando ele coçava o saco, cutucava o nariz e a bunda, ou limpava o ouvido com aponta de uma unha crescida (a mesma que costumava sair do ouvido e caminhar até a boca parapalitar os dentes). Tomás receou que com o passar do tempo sua mãe começasse fazer asmesmas coisas. Nesse caso, também iria se envergonhar dela.

Trocou os problemas que tinha com sua mãe e com o padrasto, para pensar emMolambo. Apesar de tê-la visto apenas uma vez, ficou com a imagem de uma jovem elegante,que cruzava as pernas ao sentar, procurava um lugar apropriado para bater a cinza do cigarro (enão a jogava no chão, como os cerdos que frequentavam sua casa). Ela era estudada, trabalhavafora, falava bem, tratava os demais com respeito e já era maior de idade. Será que é importante aquestão da idade? Se conseguisse conquistar o respeito da garota de cabelos vermelhos, comcerteza ela poderia amá-lo do jeito que ele era. Mas idade não é uma “questão de jeito”, é umafase inconstante. Ainda que fosse deixada para trás com o passar do tempo, jamais alcançaria aidade dela. Desanimado, deixou a casa rumo à escola.

Logo depois de jantar, Tomás escovou os dentes e foi para o quarto. Ajeitou-se na

cama para tentar dormir antes de enlouquecer com as ideias que o afastavam de seu amor edeclinavam sua autoestima. Ele era um pirralho, mau aluno, não enxergava a chance de umfuturo melhor (a não ser em delírios). Ainda evacuava na cama, era pequeno e feio como o ratoque as vizinhas descreviam, não tinha amigos e nem dinheiro para comprar sequer um cachorro-quente. Em meio à autoflagelação de si mesmo, chorou até os olhos arderem, e então adormeceu.

Quando acordou no outro dia, esfregou os olhos durante dois minutos antes de levantarda cama. Escutou o padrasto e sua mãe discutirem na cozinha, mas não deu importância.Caminhou até o banheiro e encontrou a privada repleta de pontas de cigarros boiando em umaurina fortemente amarelada. A primeira ideia que veio em sua cabeça foi a de ter faltado águanovamente. Mas como pode ser? Perguntou-se, sabendo que o padrasto tinha acabado de pagar aconta vencida. Ele fez o teste puxando a cordinha da descarga e todo o lixo desceu água abaixo,ficando apenas o fedor. Tomás usou o banheiro e tornou a dar a descarga.

De repente Damião chegou do nada, e gritou atrás da porta:– Hei, moleque! Quem mandou você dar descarga?Tomás acabou de usar o banheiro e abriu a porta, encarando o padrasto sem saber que

resposta ele esperava exatamente.– Ora, estava cheio de cigarros e xixi lá! Vocês estão fazendo algum tipo de coleção?Sem gostar nem um pouco da piadinha, Damião lhe puxou a orelha. A expressão no

rosto dele era de raiva. A voz saiu embargada com absoluta indignação quando disse:– Garoto malcriado! É você quem paga a conta aqui para ficar dando palpite?Tomás não conseguiu entender a relação de coisa com coisa.– O que tem a ver isso? – Acariciou a orelha onde levou o puxão, mostrando uma careta.

– Não posso dar palpites porque não pago as contas? O que foi que eu fiz?Ana veio da cozinha. Estava pronta para sair para o trabalho, mas interferiu na discussão

desde o corredor com autoridade:– Deixe o menino em paz, agora mesmo!– Deixe o menino em paz! Deixe o menino em paz! – Damião reproduziu a fala dela

com desdém e afinou a voz, revelando uma face ainda mais contrariada e furiosa: – Por isso queesse moleque está estragado e pensa que pode falar e fazer o que quer!

Tomás sentia que aquela conversa respingaria nele novamente. Em breve dirão que sou

mimado, malcriado, e que vou ser um bichinha... Já sei. Já sei...– Você não pode conversar com ele direito? Tem que ser sempre tão estúpido?Damião suspirou depois de lançar um olhar de desprezo à Ana.– O negócio é o seguinte; quanto menos descargas dermos, mais economizamos na conta

da água! Você entendeu agora ou quer levar outro puxão de orelha?– Que? – Tomás deixou escapar uma interjeição, sem entender onde o homem de barbas

queria chegar.– Você é burro? Não entendeu ou está se fazendo de idiota para me irritar?Ana interferiu novamente, dessa vez, completamente indignada:– Burro é você que não sabe falar com uma criança de 13 anos!Tomás adorou a colocação apropriada e começou a rir.Damião ficou ainda mais nervoso pelo desrespeito. Controlando a raiva que sentiu,

ergueu um dedo acima da própria cabeça e soltou um berrou que fez a casa estremecer:– Não me desautorize na frente do moleque! A partir de agora, está proibido puxar a

descarga e pronto! Quem decide isso sou eu e aquele que me desobedecer terá que acertar contascomigo!

– Quando fizermos “o número dois” também? – O garoto começou a achar ainda maisengraçado a regra descabida. – Espero você para dar a descarga quando eu fizer cocô?

Tomás viu o padrasto levantar a mão no ar, fechada em punho, e toda graça da situaçãofoi para o espaço. Ele fechou os olhos e se abaixou, protegendo a cabeça com as mãos, encolhidona parede. Ana interferiu com o corpo entre eles e empurrou Damião, protegendo seu filho.

No mesmo instante, Damião voltou a si e se arrependeu do que esteve prestes a fazer.Ana ainda o segurava contra a parede. Ele baixou a mão e recuou.

– Você está louco? – Ela perguntou ofegante através de um grito – Nunca mais levante amão para o meu filho ou quem vai se ver comigo é você! – Ela o ameaçou com um dedo enfiadona frente do nariz dele, e continuou, dirigindo-se a Tomás, que com o susto, continuou encolhidoem um canto sem perceber que manteve essa posição: – Filho, não se preocupe, eu vou dar umjeito de pagar a conta e não precisamos passar por isso. Aliás, eu vou dar um jeito em muitacoisa por aqui... Um pouco de economia é realmente bom, mas a violência nunca entrará nessacasa, ouviu? Nunca!

Tomás esperava uma atitude mais enérgica da mãe; queria que ela expulsasse o homemde barbas de casa imediatamente. Não entendia os adultos. Estava decepcionado. Ele secomportou mal no colégio e foi expulso; o homem de barbas se comportou mal dentro de casa enão precisaria mais pagar a conta que tinha assumido para morar ali. Afinal, a infância édefinitivamente mais difícil e insuportável que a vida idiota dos adultos, pensou com indignação.Lembrou-se dos tempos em que seu pai estava em casa, e de alguma forma, flagrou-se comsaudades. Ele era um homem limpo e perfumado, que falava baixo e não fazia mesquinharia,tampouco deixava faltar comida na mesa ou aplicava regras malucas. Se soubesse que o pai seriasubstituído pelo homem de barbas, poderia ter se comportado melhor, e quem sabe, ele não teriaido embora.

Damião soltou uma risada irônica. Depois, fulminando Ana com um olhar carregado,disse:

– Você mal consegue comprar comida! Quer assumir a água também?Boquiaberta, ela o retrucou no mesmo momento:– O que? É obrigação minha sustentar você? Eu não consigo comprar comida porque

tenho um elefante dentro de casa para alimentar!

– Elefante? – Iterou, ofendido. Com o rosto vermelho em fogo, formando uma rugahorizontal no meio da testa, afirmou: – Você é uma ingrata mesmo! Quero ver você se virar semo elefante aqui! Elefante? Você me chamou de “elefante” mesmo? Dá onde você tirou essapalavra? Aprendeu com seu filho?

Mande o cara de merda embora, mande ele embora! Ave Maria cheia de graça, ajudeminha mãe! Tomás sabia que a paciência dela tinha limite e aquele era o ponto final. O momentoque assistiria o homem de barbas fazer a trouxa de roupa e sair de casa, enxovalhado. Se ela ochamou de “elefante”, queria dizer que os olhos dela não estavam completamente fechados paraa falta de modos dele. Quem sabe a expressão bobona que mantinha na face quando ele comianão fosse orgulho. Talvez ela também pensasse: “Oh, meu Deus, que cavalo!” e disfarçava comaquele olhar imbecil que fazia ao vê-lo comer sua comida.

Ana começou a chorar. Dois segundos depois, meio sem graça, Damião a abraçou.– Olhe pra mim! – Ele enxugou as lágrimas que caíram dos olhos dela e propôs: – Por

que não fazemos um acordo quanto à descarga e eu assumo a conta da água, hein? O que vocêacha? Desculpa se fui grosseiro, eu só queria ajudar!

Ana relutou um momento, fungando o nariz, pensativa. Logo levantou a cabeça e ofitou, permitindo-o enxugar suas últimas lágrimas.

Tomás viu um pequeno sorriso nos lábios dela e sentiu o estômago embrulhar. Ao quetudo indicava, o homem de barbas seria responsável por puxar a descarga em nome de todos.Sentiu vontade de sacudi-la até fazê-la pegar no tranco e tomar uma atitude enérgica. Tomásqueria ver “sangue derramado” (claro que o do padrasto). Imaginava a si mesmo com poderes deum super-herói. Nesse momento de fúria e heroísmo, voava com os dois pés nos peitos dopadrasto, retornava o corpo de volta ao solo em um giro perfeito e seguia a sessão de murros echutes com os próprios punhos e pés; desferindo golpes e coices poderosos contra Damião,desviando-se cada vez que o mesmo tentava acertá-lo. Tomás foi interrompido de seus devaneiospela risada do casal. Sua mãe, após ter gritado, entrado em desespero, chorado e muitoprovavelmente ter se atrasado para o trabalho, ria com o namoradinho babaca. Dispensou a eleuma piscadela de olhos, como se dissesse: “Está tudo bem agora. Já acalmei a fera, você podeficar sossegado!”.

Ele preferia voltar para o quarto, e se pudesse, desaparecer para sempre, mas tinha aula ese não se apressasse, corria risco do portão do colégio estar fechado e não poder mais entrar.

Terminou de vestir o surrado uniforme em questão de segundos; pegou a mochila epassou pelo corredor às pressas. Ana o esperava ainda na cozinha, mas ele não se deteve.Apressou os passos, abriu a porta e saiu da casa feito um furacão.

Ao cair da noite, Ana apareceu no quarto do filho. Tomás observou os mesmos olhos

bondosos, as finas linhas que precipitavam o indício das primeiras rugas e o mesmo sorriso que ofascinava desde que era pequeno. Tencionou demonstrar que estava bravo com ela e que aodiava. Queria ter a coragem de mandá-la escolher entre o namorado ou ele, mas temeu serdescartado caso viesse a competir com o cara de cu. Ainda que quisesse muito abraçá-la (comonos velhos tempos), permaneceu em silêncio, ignorando-a propositadamente.

Ana se sentou na cama ao lado dele, ainda com o sorriso no rosto.Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa ou que ele pudesse se arrepender de ignorar

seu desejo, ergueu-se na cama de joelhos. Com os braços estendidos, e segurando as lágrimas,pediu:

– Mãe, a senhora me dá um abraço?

Ele não pode esperar a resposta e avançou o sinal. Algumas lágrimas correram por suaface, sem poder resistir a tentação de extravasá-las. Sentiu sua mãe o segurar com força,transmitindo-lhe amor e carinho. Permitiu-se ficar em posição quase fetal, encolhido, apertando-se como pode nos braços dela, sentindo as lágrimas quentes que molhavam seu rosto emisturavam-se com as da mãe. Ana o afastou por um instante, fungando baixinho, tentandoesconder que também chorava. Como se quisesse compartilhar um segredo, perguntou:

– Filho, Você está triste, não é? Eu sei, pode dizer...– Claro, mãe! Minha vida virou um inferno! – Ele enxugou o rosto com o dorso da mão

– Estamos sendo controlados por este PORCO e a senhora não faz nada!Ana pareceu ofendida.– Como assim, querido? Eu não faço nada? Estou sempre por perto para defendê-lo...– Se esse cara fosse um homem bom, eu não precisaria ser “defendido” por ninguém. –

Enfatizou a palavra “defender” com sarcasmo.– Mas são coisas tão pequenas, Tomás! Precisamos mesmo ter mais controle e

economizar em casa. Você vai entender isso quando for maior; saberá dar valor ao dinheiro eentenderá melhor os adultos. Acredite em mim, tudo que faço é para seu bem!

Tomás queria confessar que odiava Damião; que sonhava em chutar a bunda dele comum poderoso pontapé. Pensou em contar sobre as vezes que o viu masturbar-se na sua frente, dequando foi levado para assistir filmes pornográficos e aprendeu a fumar... Sentiu muita vontadeem dizer que vê-lo coçar as partes íntimas não era aprendizagem... Mas ao contrário disso, calou-se. Sua mãe não lhe daria créditos.

– A senhora gosta dele? – Foi tudo que conseguiu perguntar.– Claro que sim! Eu gosto dele, mas quem eu amo de verdade, é você! – Disse cheia de

ternura.– A senhora está falando como “mãe e filho”, certo? – Ele se lembrou de quando a via

nua e se casava com ela em pensamentos; e não pode deixar de perguntar. Ana soltou umagargalhada.

– Claro que estou falando como sua mãe! O que mais poderia ser?– Ah, nada, eu só queria saber... Mas a senhora gosta do hom... – interrompeu a frase

antes de usar o apelido usual e corrigiu-se rapidamente: – do Damião, como gostava do meu pai?Os olhos dela brilharam com mais intensidade.– Oh, não! Definitivamente não há comparações! O que eu sinto por seu pai jamais

sentirei por homem algum.– Sente? Então, a senhora ainda gosta dele?– Um amor de verdade é para sempre, querido! Acho que só temos uma oportunidade de

amar na vida, e se perdemos essa chance, não podemos resgatá-la com outra pessoa da mesmaforma.

– Então, a senhora está perdendo tempo!– Como assim? – Ela o fitou com uma interrogação na face.– Ora, se meu pai foi o amor da sua vida, então, sua única oportunidade de amar já

acabou! Por que perder tempo com o homem de... com Damião, se a senhora sabe que nãopoderá gostar dele?

Ana suspirou, olhando para longe, com os pensamentos perdidos.– Não, minha chance de amar ainda existe. Você já pensou que um dia seu pai pode

voltar?Tomás sentiu pena dela. Depois de tudo que sofrera por causa dele, ela ainda tinha

esperanças. Sem saber ao certo o que dizer, perguntou de forma espontânea:– Então a senhora não gosta do barbudo?Ela o olhou atravessado, mas não disse nada. Seu olhar duro reforçava a ordem

proibitiva de colocar apelidos nos outros.– Tem coisas que nem a razão e nem a loucura explicam. Eu não disse que não gosto do

Damião, apenas respondi sua pergunta da forma mais sincera que pude. Eu gosto dele e gostariaque você também gostasse. – Tomás sentiu que ela finalizava a conversa.

Ana adquiriu um tom sério como se houvesse caído em si, lembrando-se da importânciade seu papel como mãe. Estava disposta a ser rigorosa para educá-lo e fazer dele alguém na vida.Não era momento de confundi-lo ainda mais...

– Você precisa crescer com uma referência masculina e acho que pode aprender muitocom o Damião.

– Como o que, por exemplo? Coçar o saco e comer com a boca aberta? Só falta elecomer dentro da panela! A senhora não sente vergonha disso?

Os olhos de Ana ficaram severos e Tomás achou que iria levar um safanão.– Você sabe que eu não gosto que fale dessa forma! Quando você vai aprender a

respeitar as pessoas mais velhas? Ou por acaso foi essa educação que você recebeu?– Não gosta que eu fale, mas não se importa com os modos dele. Acho que ao invés da

senhora tentar me educar, deveria dar educação ao barbão!– Olha aqui, moleque, me respeite ou vai se ver comigo, hein! – A voz saiu em tom

ameaçador e Tomás entendeu que passara dos limites. – Isso é jeito de falar com sua mãe? Poracaso é um fedelho que vai me ensinar como viver minha vida? O que você sabe sobre “modos”para criticar os outros? Você lembra que até pouco tempo atrás ainda soltava “puns” enquantocomia? Aposto que você não faz mais isso porque agora temos um homem dentro de casa. Vocênão reina mais sozinho, viu? Para ganhar o próprio respeito você deve aprender antes a respeitaros demais! – Ela tornou a repetir, dessa vez, em uma voz mais grave e alterada. – O Damião éum homem bom e honesto, ele está tentando nos ajudar. A nós dois! Entendeu?

Tomás estava encolhido, sentado ao lado da mãe, sem coragem de encará-la nos olhos.– Estávamos melhor antes, sem ele.– Ah, é mesmo? Quem disse isso? Você está muito mais independente desde que ele

chegou. Daqui a pouco você será um homem e deve aprender a se comportar como tal.– Comportamento? É isso que a senhora quer de mim? – Perguntou no tom mais

tranquilo de voz que encontrou, por medo de aborrecê-la ainda mais. – A senhora nunca viu obarbicha comendo? Por que preciso de um homem para me ensinar coisas que não queroaprender? A senhora quer me transformar em alguém como ele? Um porcão?

Ana sacudiu a cabeça, contrariada. Era difícil acreditar que depois de tudo que Damiãofez por Tomás, ele ainda tivesse essa raiva do pobre homem.

– Você é mesmo um garoto mimado, não? Será que só eu não vi isso antes? Meu Deus;como eu o estraguei! – Tomás notou decepção no tom que ela usou para falar, e por issoarrependeu-se de ter continuado a conversa. – A única coisa que você faz é ir para escola, e aindaassim, leva mal as matérias, responde com malcriação às professoras e sequer faz os deveres decasa, mas tem a petulância de falar do Damião! Enquanto você observa esse “porco” comer,comodamente desde seu trono de criança que não faz nada, o “porco” trabalha o dia inteiro, etudo para que? Para colocar um prato de comida todos os dias na mesa que você come!

– Tá; ao invés de chamar o barbão de porco, posso chamá-lo de elefante se a senhorapreferir...

Outra vez Tomás se arrependeu por sua burrice. Tanto desejou uma oportunidade comoessa para conversar com sua mãe, mas por não conseguir se explicar com precisão, arruinou-a.Agora sua mãe pensaria que ele sentia ciúmes do homem de barbas, e que pegava no pé deleapenas por criancice, tal qual fazia com seu pai. Ela jamais voltaria a lhe dar ouvidos, nãoimportando o que quisesse contar. Perdera todos os créditos.

– Eu vou fazer de conta que não escutei isso! Pense antes de fazer a próxima malcriaçãoe não esqueça que nem todas pessoas nasceram em berço esplêndido como você. O Damião éuma pessoa humilde!

Tomás voltou a retrucá-la, esquecendo-se de seu remordimento segundos antes:– Ah, não, mãe! Uma coisa é ser humilde e outra é não ter educação! O Damião tem esse

jeito “estranho” porque é ignorante. Não porque é humilde! Como uma pessoa que acha que tema razão sempre, que quer controlar o mundo e a descarga, pode ser humilde?

Ana refletiu por um instante, atônita com as palavras que acabava de escutar. Poderiajurar que crescia uma amizade entre eles, embora a resistência de Tomás por aceitar pequenasregras. Sabia que o filho era genioso e podia se enfezar seriamente por qualquer besteira. Deveriaser crítica quanto às reclamações que ouvia, pois não queria ser injusta com Damião.

– Filho, você deve prestar muita atenção na hora de emitir juízo sobre uma pessoa oufazer acusações. Já está na hora de você crescer e parar com suas criancices!

Tomás sentiu um nó apertado na garganta. A mãe não lhe fazia caso e o fato de ser aindamuito jovem, só jogava em contra aquilo que dizia. E se contasse como Damião o olhavaenquanto tocava as próprias partes íntimas e o incitava, o que ela diria? Ponderou sem ter acoragem de seguir adiante. Provavelmente ela o levaria até o homem de barbas que negaria tudo;ou ainda pior, ela poderia dizer que era normal tudo aquilo, que ele era ainda um pirralhomalcriado incapaz de entender certas coisas. Antes que pudesse ir além, sua mãe interrompeu adesordem de seus pensamentos:

– É melhor você parar com os ciúmes e começar a amadurecer! – Sugeriu em tomimperativo antes de deixar o quarto.

Tomás entendeu que o homem de barbas era o preço que pagaria por todos seus pecados.

Ana

Em pele de cordeiro

4ª Intenção

Capítulo 6

No dia que Antônio a deixou, Ana sentiu que seu mundo acabava. Nada mais faziasentido, nem mesmo sua existência. Pensara inúmeras vezes sobre suicídio, com a ideia fixa deque sua morte seria um castigo de consciência que Antônio não esqueceria jamais. Os primeirosdias sem o marido fizeram-na entrar em um estado de autodestruição; pensava em acabar com omarido usando a si mesma como instrumento de flagelo.

Quis ser forte e esperar, alimentando a esperança que seria apenas uma questão detempo para Antônio cair em si e voltar rastejando atrás dela. Durante os dez primeiros dias deabandono, não conseguiu comer mais que metade de um pão durante o dia; sentia o estômagoembrulhado e um mal estar generalizado. Estava desidratada, emagrecida e levava consigo osolhos extremamente cansados, revelando que há dias não dormia.

Quase duas semanas após ser abandonada, procurou Antônio na empresa de tijolos ondeele trabalhava, decidida a trazê-lo de volta. Maquiou-se discretamente frente ao espelho.Delineou as pálpebras com um pincel delicado, ficando com olhos de felina. Colocou um vestidoflorido que lhe caia quase até os joelhos e prendeu os longos cabelos em um rabo de cavalo.Olhou-se no espelho uma vez mais, reforçou o pó de arroz embaixo dos olhos na tentativa dedisfarçar as olheiras. Sentiu-se bem consigo mesma. A imagem jovem e bela que viu no espelho,proporcionou-lhe a certeza de que traria o marido de volta para casa.

Antônio saía para almoçar com mais dois colegas quando a viu caminhando pelo

corredor da fábrica em direção ao depósito, onde ele costumava estar.Ele pareceu levar um susto ao vê-la.– Podemos conversar? – Ana perguntou quando ficaram frente a frente.– Claro. – Respondeu, sem sorrir. Caminharam de volta em direção à saída pelo enorme

terreno da fábrica, entre pilhas gigantes de tijolos, onde vários homens trabalhavam. Passarampela guarita e cruzaram a rua.

Caminharam poucos metros até chegarem a uma lanchonete. Antônio pediu dois cafés eolhou o cardápio com uma expressão faminta na face. Intuiu que a conversa seria difícil.Disfarçou a tensão, tentando não reparar nas olheiras escuras que contornavam os olhos fundosde Ana, e a aparência de tristeza e abatimento por trás da maquiagem.

– Você quer comer algo? – Perguntou ao pegar o cardápio de lanches na mão, evitandotecer comentários a respeito do vestido, que em outros tempos, ele cansou de elogiar.

– Não, obrigada.Ela o olhou fixamente, louca para beijá-lo e jogar-se aos pés dele. Queria pedir-lhe que

voltasse para casa, prometer-lhe que faria tudo que ele quisesse, mas sabia que precisavaesconder seu desespero para não assustá-lo. Não podia envergonhá-lo perto do local ondetrabalhava e nem causar um vexame, caso ele a rejeitasse. Recordou por uma fração de segundosos velhos tempos, quando ela o procurava sem calcinha e o deixava louco, mas descartou essajogada de antemão. Passaram-se mais de onze meses desde a última vez que fizeram amor. Apresença da calcinha ou a ausência dela não fariam a menor diferença nessa situação.

– Por que você veio até aqui? Está precisando de alguma coisa?– Sim, estou precisando de você! Volte para casa, por favor!Antônio suspirou fundo antes de dizer:

– Ana, eu sinto muito, mas está tudo acabado. Não quero sofrer mais com nossaseparação...

– Sofrer mais? – Repetiu consternada, evidenciando uma pontada de ironia. – Vocêchegou a sofrer em algum instante?

Ana percebeu que Antônio estava bronzeado; continuava trabalhando normalmente, epelo visto não havia perdido o apetite.

Ela continuou em um tom mais ríspido e inesperado:– Fui eu quem ficou com nosso filho; sou eu que deito toda noite sozinha na mesma

cama onde dormíamos juntos, sem ter você ao meu lado. Fui eu quem ficou na casa quecompramos ao nos casar, com todas as lembranças. E o Tomás? Você não se preocupa com seufilho? Ele pergunta todos os dias por você! Sabia? – Apelou para a mentira no intuito desensibilizá-lo. Parecia que Tomás se sentia tão satisfeito por estar livre do pai, como Antônio porestar livre dela.

– Tomás? – Indagou visivelmente surpreso. – Ele pergunta mesmo por mim?Engraçado... Já que ele foi um dos principais motivos por eu ter saído de casa. Ana, pelo amor deDeus! Estávamos mortos dentro daquele lugar! Sem dizer ainda que seu filho me odeia!

– Nosso filho! – A voz saiu mais alta do que ela esperava.– Já falei com um advogado; ele entrará em contato com você. Podemos estabelecer uma

pensão, o que você acha?– Pensão? Você quer me dar uma mesada depois de ter me metido o pé na bunda?– Ana, não seja infantil! O que eu quero é lhe dar condições de sustentar a casa e que

Tomás continue estudando.O decorrer da conversa e o comportamento de Antônio indicavam que ele estava

decidido. Ana sentiu uma espécie de exaltação latente dominá-la, substituindo toda a vontadeque sentira alguns minutos antes, de jogar-se aos pés dele, por estapeá-lo.

– Parece que você já estava de caso pensado, não? Quanto tempo precisou para planejartudo?

– Tudo o que?– Nossa separação! Ora, bolas!– Muito tempo depois que nosso casamento foi destruído, tenha certeza! Quanto tempo

ficamos distantes, brigados e apagados um para o outro dentro daquela casa? Você estavaconforme com a vida que levávamos? Pois eu não!

– Então, porque você nunca me disse nada? Por que não me contou que estava cansado?Por que não tentou arrumar nossa vida comigo antes de procurar um advogado?

– Ana, por mais que conseguíssemos mudar ou fazer tudo diferente, já não seríamos nós;já não éramos nós...

– Se um advogado bater na minha porta, juro por Deus que você jamais voltará a ver seufilho.

– Ora, não seja ridícula!– Você quer pagar para ver? – Ela o ameaçou falando baixinho, convicta que ele

mudaria de opinião.– Ana, entenda: Eu não vou mais voltar para casa...Ela o interrompeu bruscamente:– Onde você está morando?– Em uma pensão.– Onde?

– Não interessa onde.– Você está mentindo, tenho certeza!– Isso não importa mais.– Você tem outra mulher! Quem é a vagabunda?– Você está sendo ridícula outra vez. Pare de fantasiar!– Quem é ela?– Ana...– Você não me ama?Nesse momento a garçonete chegou com os dois cafés e eles permaneceram em silêncio,

até ela se retirar.– Você não vai comer? – Perguntou, substituindo o tom agressivo na voz por algo mais

brando e preocupado.– Não, perdi o apetite.– Então me responda: Você ainda me ama?Antônio respirou fundo sem conseguir encará-la nos olhos, estralando os dedos das

mãos, sentindo-se encurralado.– Por que você quer se magoar mais? Estamos em processo de separação. Eu já disse

que não suporto mais viver naquela casa sem vida, com uma mulher estranha e um filho que meignora. Por que você me pergunta se eu amo você? O que quer escutar?

– Você está em processo de separação, não eu! E o estranho naquela casa era você,nunca viu isso? Não se faça de coitadinho para cima de mim! Tomás e eu sempre estivemosnaquela casa que você não suporta, esperando você chegar do trabalho, preparando sua comidapreferida, cumprindo nosso papel de mãe e filho, mas onde você estava? Quebrando a cabeça,sentindo-se infeliz por ter responsabilidades que não podia mais arcar, descontente com asobrigações de pai de família, pensando quanto tempo ainda teria que suportar viver com umaesposa “desconhecida” e aturar o filho de quem não gosta.

– Não fale bobagens. Você acha que foi assim que fiquei nos últimos meses? Vocêacredita mesmo que eu não gosto de Tomás?

– Sim! Você nunca fez nada para se aproximar dele. O ausente naquela casa era você,com sua omissão, o pouco caso e a indiferença que usou para lidar comigo e com ele.

– Então, você vê? Nós dois sentíamos que existia um problema em nosso casamento;agora basta aceitarmos isso e fazer de nossa separação o mais fácil possível.

– Não existe separação fácil quando uma das partes ainda ama!– Ana...Um arrependimento profundo a dominou ao demonstrar no contra-ataque, que também

estava infeliz ao lado dele. Estava disposta a mudar, fazer tudo diferente, ou mesmo, deixar tudoigual como era antes; satisfeita por continuar levando a mesma vida, mas Antônio não.Desesperada, adquiriu instantaneamente um tom conciliador:

– Desculpa, meu amor! Eu te amo mais que tudo na vida! – Ela o segurou na mão, e aotocá-lo, disfarçou a detestável sensação de sentir a falta de um dedo na mão dele. Mesmo assimapertou-a com força.

– Ana, acabou!Ela ainda não estava disposta a desistir.– Se você não voltar para casa hoje à noite, eu me mato! Juro por tudo que é mais

sagrado que eu me mato! – Tornou a repetir, dando mais ênfase na última frase.– Você está virando protagonista de novela mexicana, Ana! Quanta histérica e

imaturidade, céus! Quem vai cuidar de Tomás se você morrer? – Ele tentou apelar para o bomsenso dela.

– Quem é o pai dele aqui mesmo? Você não é? Preciso dizer mais?– Eu não vou cuidar dele! Se você fizer qualquer bobagem, vai fazê-la sabendo que

nosso filho ficará órfão; fique consciente disso! – Afirmou categoricamente, dessa vez, fitando-anos olhos, desestimulando a loucura da esposa. Sabia que se mostrasse qualquer ímpeto defraqueza ou assombro frente ao que Ana dizia, daria a ela ainda mais estímulo de seguir com aideia absurda de suicídio. – Eu vou vender aquela casa e colocar Tomás no olho da rua!

Os olhos de Ana se encheram de lágrimas e ela largou violentamente as mãos deAntônio. Sua boca começou a tremer e as lágrimas caíram sobre uma face coberta de revolta.

– Você teria coragem?– Pague para ver! – Contestou-a sem hesitar. Se Ana estava louca e não se importava em

zelar pela própria vida, ao menos sabia que ela não arriscaria envolver Tomás em suas tolices.– Maldito, filho da puta! Eu odeio você!Um grupo de funcionários do banco, que comia logo ao lado deles, deteve-se para

escutar a conversa.– Você está fazendo um papelão, pare com isso agora! – Pediu, percebendo que

chamavam a atenção das pessoas. – Vá para casa e descanse! Pense sobre nossa conversa eacredite que o tempo será o melhor remédio para esquecermos, tanto nosso ressentimento quantonosso amor. Não faça nenhuma bobagem pensando em me torturar, – Fez uma pausa e reforçou oaviso com gravidade: – Eu não vou sentir culpa alguma se você fizer qualquer coisa contra simesma. Seja responsável por seus atos e aprenda a recomeçar a vida sem mim!

Ana já não ouvia nada mais. A ideia fixa de que o marido tinha uma amante não saía desua cabeça.

– Você tem outra?– Ana, eu preciso voltar ao trabalho agora.– Responde, porra! – Ordenou, aumentando outra vez o volume da voz, sem controle das

palavras.– Não! E agora, vá embora! Quando você estiver normal novamente, conversamos!Ela tornou a pegar nas mãos do marido, enxugando as lágrimas com o guardanapo da

mesa.– Eu vou, mas prometa que vai pensar sobre voltar para casa.Antônio puxou as mãos de volta para si, com ligeira truculência e se levantou. Ana

acompanhou apenas com os olhos o marido se aproximar do balcão e pagar a conta. Logo, eleretornou e disse baixinho, muito próximo aos ouvidos dela:

– Acabou, Ana! Coloque isso na sua cabeça, acabou!Ela permaneceu sentada, digerindo o sentimento horrível de rejeição em silêncio. A

garçonete retornou à mesa e perguntou se deveria levar algo mais para beber, mas Ana empurroua cadeira onde estava sentada para trás, e saiu correndo.

Chorou pelas ruas e falou sozinha, exorcizando a raiva, o amor e a decepção que sentia.Encontrou um boteco qualquer. Antes de entrar, abriu a bolsa; contou oito reais entre notas emoedas. Enxugou a face, respirou fundo várias vezes, absorvendo o ar fresco, e entrou. Estavadecidida a tomar um porre, beber até cair; e com sorte, esquecer a desgraça que abateu sua vida.Pediu a primeira dose de pinga, bastante envergonhada. O homem que ficava atrás do balcão dobar era jovem e atraente. Odiou a si mesma por ter pedido uma bebida tão vulgar em um lugar dequinta categoria. A dose saiu ao preço de dois reais. Virou quatro doses em menos de vinte

minutos; e ao final, quando achou que a bebida não tinha causado efeito, saiu cambaleando. Nãoatingiu o estado que desejava, pois ainda podia lembrar-se de todas suas dores e perdas, e o queera pior: com a bebida, a sensação de derrota e tristeza jazia ainda mais forte. Não pôde evitar aslágrimas; uma vontade incessante de chorar se apoderou dela. Encostou-se ao primeiro poste queviu pela frente. Sua cabeça rodava e uma forte sensação de que iria vomitar a dominou. Respiroufundo repetidas vezes, inalando profundamente o ar pelos pulmões. Aguardou a náusea irembora, e depois, quando sentiu condições de caminhar, procurou uma estação de ônibus.Lembrou-se então que tudo que tinha gastou no bar, e odiou-se ainda mais. Caminhou mais deduas horas até chegar a casa. As sandálias de tira haviam machucado seus pés, deixando feridascomo queimaduras na parte de cima dos dedos e bolhas nos calcanhares.

Tomás a esperava sorrindo. A casa estava limpa e o sofá verde escovado, novo em folha,como se tivera sido retirado da loja recentemente. A janta: feijão requentado e arroz (um poucoqueimado) estavam postos sobre a mesa.

– Bom apetite, mamãe!Ana caiu aos prantos. Ana entrou em estado de depressão e letargia nos dias que seguiram. Antônio não a

procurou mesmo sabendo que ela se mataria. No quarto dia após ter ido à fábrica, enquantoTomás estava no colégio, um advogado dizendo que representava os “interesses do casal” aprocurou. Quando Ana entendeu que o mesmo tencionava tratar sobre o divórcio, deixou-oparado na frente da porta. Pelo lado de fora da casa, ela foi até o tanque de cimento onde lavavaroupas, acoplou a mangueira na torneira e colocou o homem para correr com jatos de água fria.O advogado saiu correndo aos tropeções e deixou a maleta cair. A água pingava da cabeça aospés dele. Ensopado, resmungou qualquer coisa já no meio da rua, mas Ana caiu em um acesso degargalhadas tão grande que não pode entendê-lo. Ela correu até o portão que ainda estava aberto,parou no meio da rua, ainda com a mangueira na mão e disse aos gritos, contendo a gargalhada:

– Volte aqui mais uma vez e na próxima, a água estará fervendo!Quando fechou a porta de casa, o sorriso morreu instantaneamente na face. Afundou-se

no sofá, refletindo ainda sobre o divórcio e a decisão de Antônio em deixá-la. O sentimento deangústia e a realidade do momento caíram feito um meteoro sobre ela. As lembranças de tudoque haviam vivido, a luta para conquistá-lo, a paixão que nutriu desde os nove anos de idade...Tudo em vão! Lutava contra os pensamentos negativos, pois eles a faziam cair em uma realidadedolorosa: algo lhe dizia que Antônio não lhe pertencia mais. Ela mudou forçadamente o destino eagora pagava o preço. Ana se rendeu à depressão, imaginando Antônio nos braços de outramulher, beijando outra boca, fazendo amor e desfrutando o corpo de uma estranha. Encolhida nosofá verde, com pensamentos e ideias que a torturavam lentamente, chorou quase a tarde inteira.

No meio da tarde do dia seguinte, Ana vestiu uma calça de moletom e calçou tênis

com o intuito de caminhar até a fábrica, esperançosa de fazer Antônio reconsiderar a decisão.Enquanto caminhava abaixo de sol e uma temperatura por volta dos trinta graus, pensava em seucasamento afastando a ideia do divórcio. Estava disposta a lutar até o final de suas forças, massabia que para ganhar sua batalha, necessitava antes lutar contra si mesma. Não podia se deixarvencer pelos pensamentos conflitantes que a torturavam. Normalmente era uma pessoa otimista ede bem com a vida. Encontrava felicidade no simples fato de viver e acordar a cada dia, estarlonge de problemas, ter um filho que crescia saudável, que se tornava cada dia mais inteligente eparecido ao marido. O que mais posso desejar? Como poderia pedir mais da vida? As pessoas

estão sempre correndo atrás de sonhos impossíveis, descontentes, tentando alcançar oinalcançável, deprimindo-se por aquilo que não têm e esquecendo-se de suas conquistas,colocando metas dia após dia; mas e eu? Não espero nada de ninguém e nem me coloco aprovas de fogo, não crio falsas ilusões; não tento ser aquilo que não sou ou mostrar aquilo quenão tenho. Por que justo eu, que me contentei com o que sou e com a vida que levei, estouprestes a perder o pouco que possuo? Onde foi que eu errei? Deveria ter sido mais ambiciosa,criado problemas, conflitos... Se eu tivesse sido mais complexa, talvez agora Antônio não meabandonasse... Mas ele está certo, tenho que ser responsável por meus atos, sem me vitimar.Não fui boa o suficiente, mas ainda tenho tempo de chegar a ser a mulher que Antônio deseja!

Com os pensamentos voltados ao seu favor, esboçou um sorriso e apressou o passo.Quando percebeu, estava a três quadras da fábrica, ansiosa para dizer ao marido que o entendia eestava disposta a perdoá-lo. Como já era quase final de tarde e Antônio estava por terminar ajornada de trabalho, Ana resolveu esperá-lo no estacionamento, ao lado de sua lambreta e fazer-lhe uma surpresa. Esperou por quase trinta minutos. Eram seis horas da tarde, mas o sol aindabrilhava imponente. Observou os primeiros trabalhadores abandonarem a fábrica, despedindo-seuns dos outros nem bem deixavam o portão de saída. Cada qual tomava seu rumo, emboragrupos caminhassem em direção ao ponto de ônibus muito próximo dali. Desviou a atenção doportão de saída para a porta principal novamente, e viu Antônio sair pela porta gigante. Ele tinhao capacete enterrado no braço, na região do cotovelo, e caminhava com seu sorriso simpático.Observou-o tirar um celular do bolso da calça, enquanto caminhava em direção aoestacionamento, falando descontraidamente através do aparelho. Ela desejou se esconder e tentarescutar a conversa, saber por que ele sorria; quem ligou, por que comprara um celular. Não haviamais tempo para se esconder sem ser vista. Sentiu um frio no estômago quando ele a fitou comos olhos frios, deixando o sorriso morrer na face.

Percebeu o desgosto na face do marido, com uma afiada dor no coração. Teve a certezade que ele não queria vê-la, e que a surpresa de sua visita, era nada mais que um grandeaborrecimento. Depois de dizer um breve: “depois nos falamos” no telefone, desligou o celular etornou a guardá-lo no bolso. Caminhou arrastando os pés na direção de Ana, que se encontravaem estado quase catatônico.

Antes que ela pudesse articular o pensamento ou uma saudação cordial, já foi logo ointerrogando:

– Você comprou um celular? Quem estava no telefone?– Ana... – ele suspirou profundo e virou os olhos para cima, mostrando-se irritado. – Por

que você está aqui?– Por que você tem um celular?– O que importa isso, meu Deus? O celular é da empresa! Ficarei de sobreaviso os

próximos finais de semana, mas só preciso trabalhar se me ligarem. Satisfeita? – Respondeuimpaciente, colocando o capacete que segurava no guidão da lambreta.

– Você está mentindo! – Ela afirmou, sentindo a boca seca. – Quem ligou para você? Euquero saber agora!

– Ana...– Pare de repetir meu nome e responda logo de uma vez, antes que eu perca a cabeça! –

A voz saiu descontrolada e autoritária. Ana sentiu que estava prestes a desmaiar pelos flashesescuros e embaralhados que viu.

Antônio inalou ar pelos pulmões, tomando coragem para seguir a conversa. Calou-se porum instante e a encarou com os olhos acesos, em uma mistura indecisa entre piedade e raiva.

– Você quer saber mesmo quem me ligou, não é? Pois bem, eu tentei poupá-la, mas vocêpreferiu esquecer que tem amor próprio ao negar nossa separação! Sim, eu tenho outra mulher!Era isso que você queria ouvir? Foi isso que veio escutar? E agora, o que vai fazer? Estásatisfeita? Você pode assinar os papeis do divórcio, por favor?

Foi mais rude do que tencionava, mas precisava disso para lidar com Ana. Se falamos àsclaras somos insensíveis; se não falamos por consideração à pessoa, somos omissos. Dequalquer forma o resultado é ruim. De uma forma ou de outra, quando não queremos mais estarcom alguém que nos ama, terminamos sendo um maldito filho da puta!

Ana escutou a declaração de Antônio entre sinos e zumbidos. Sua cabeça latejava. Ochão sumiu abaixo dos pés. Percebeu que sua pressão caiu quando começou a suar frio.

– Você tem outra mulher? – A voz saiu abafada, em um sussurro. Repetiu o que escutoucomo se ainda precisasse de uma confirmação.

– Você está passando mal? – Antônio perguntou quando a viu sem cor. Ele a segurounos braços antes da queda, aturdido e apiedado.

Ela teve uma vertigem e precisou se sentar na calçada para se recuperar. Estava brancafeito papel de seda. Antônio tirou o celular do bolso e avisou que chamaria uma ambulância, masela o repeliu, tomando o aparelho da mão dele.

– Não, tudo bem, eu já estou melhor.– Ana, você tem se alimentado direito?– Claro que sim! – Mentiu, tentando não parecer ainda mais deprimente – Amor... Volta

pra mim! Eu preciso de você. Não sei o que vou fazer da minha vida sozinha. Eu acho, achoque... Vou morrer! – Sua voz era praticamente uma súplica. Antônio seguiu de cócoras,segurando o braço dela e dando-lhe apoio. Observou os lábios sem cor, sentindo a pele de Anapegajosa. Viu a aparência derrotada na face dela e observou aqueles olhos cansados. Eraimpossível não apiedar-se. Ana estava à beira da agonia e a um passo de perder todo o orgulho(se é que ela já não o havia perdido há tempos).

Antônio se afundou em um mar de comiseração, quando desprevenido, absolto em seuspensamentos, Ana se jogou sobre ele, usando o resto de força que ainda tinha para beijá-lo.Segurou o rosto dele com as duas mãos e o levou até ela, empurrando sua língua com força paradentro da boca do marido. Antônio não teve tempo de impedi-la, e só conseguiu tirá-la de cimadepois de ter sido mordido nos lábios. Ele a empurrou para o lado, mas Ana tentou beijá-lo umavez mais, usando toda sua força. Mesmo jogada no chão, arrastou o corpo contra o piso eprendeu os calcanhares de Antônio com as mãos. Aos gritos, suplicava, com ranho e lágrimasmisturados na face, em um rosto desfigurado de sofreguidão:

– Fica comigo, por favor! Não me deixa, eu te amo, porra! Você nunca encontrará umamulher que te ame como eu!

– Me larga, agora! Você está louca, mulher? – Antônio conseguiu gritar e Ana percebeua máscara de aversão e terror no rosto dele.

O vigia da guarita alertou o segurança que circulava pelo pátio através do rádio. Antônioestava no chão, tentando se livrar de Ana, quando alguns colegas apareceram e a levantaram noar. Ana berrou ainda mais e se debateu com os pés, tentando alcançar Antônio, que a olhavahorrorizado, com a boca sangrando devido à mordida que recebeu. O pessoal lutou para conter afúria (ou o amor) de Ana, segurando-a pelos braços enquanto ela chutava o ar e as pessoas maispróximas. Afastaram-se para dar espaço ao segurança (um homem com quase 2 metros de alturae braços largos como um tronco de árvore), que conseguiu imobilizá-la com apenas doismovimentos. Ana tentou correr de encontro a Antônio, mas depois do terceiro passo o segurança

a pegou pelos braços e os apertou, levando-os para trás das costas, enquanto ela ainda debatia aspernas e gritava enlouquecida.

– Você está me machucando, seu palhaço! Antônio, mande ele me soltar agora! – Gritouuma vez mais, dando pontapés como se fossem coices. Quando acertou o segurança pela segundavez, ele torceu os braços dela até curvá-la de joelhos. Com a dor e a humilhação de ter presenteum marido que não a defendia da violência, Ana finalmente começou a ceder.

– Chamamos a polícia, Seu Antônio? – Perguntou o segurança, ofegante.– Polícia? – Repetiu sobressaltado, sentindo-se envergonhado com a situação de ter Ana

jogada aos seus pés, em um estado lamentável. Ana chorava mais que antes, porém, semdeliberar mais agressões corporais. Estava ainda ajoelhada, presa como uma bandoleira,descabelada, pálida feito leite. Antônio sentiu vontade de gritar. Como permitiu ela chegar nesseestado? Perguntou-se com culpa. Estava arrasado pela autodestruição de Ana e a insanidade quedemonstrava. Ele teve vontade de abraçá-la e tirá-la do chão, mas como proceder a favor daesposa, sem dar-lhe falsas ilusões? Entre a razão e a loucura, não chegava à conclusão alguma,mas sabia que precisava atuar rapidamente. Negava-se a seguir como o ator de uma peçamedíocre. Precisava sair dali e ajudá-la.

Ele se ajoelhou ao lado da esposa e afastou os cabelos que caiam na face dela; depoisperguntou com muito cuidado:

– Você está melhor? Consegue se segurar na lambreta? Vou levá-la para casa!Ela balançou a cabeça em sinal positivo e Antônio fez sinal para o segurança soltá-la.Ana acariciou os punhos e massageou os cotovelos sem olhar para ninguém. O grupo

que os cercava foi se dispersando pouco a pouco.Antônio a levantou do chão e percebeu que ela embargava uma vergonha profunda.

Olhou-a taciturno com a intenção de dizer: “Fique tranquila, tudo vai terminar bem”, ou ainda:“Não se envergonhe, você não fez nada demais...”, mas sabia que seriam comentários ridículos,já que levaria muito tempo para “tudo ficar bem”. O que aconteceu no estacionamento seriaassunto de chão de fábrica para três semanas. Ela mesma não esqueceria isso tão cedo. Depois dahumilhação que passou, Antônio teve a certeza que Ana não aprontaria um escândalo nuncamais.

Entregou o capacete para ela usar, e a esperou subir na moto. Depois, deu partida nalambreta e se afastou lentamente, quebrando ruas e atalhos para a polícia não vê-lo pilotar semcapacete.

Quando chegaram à frente da casa, Ana desceu da lambreta e entregou o capacete paraAntônio. Seu olhar era de derrota. Sem saber o que dizer ou como desculpar-se, levantou o rostona direção do marido. Sem manifestar qualquer expressão no rosto, embora os olhos estivessemfrios como gelo, sussurrou no ouvido dele:

– Você roubou minha juventude, e agora, eu vou tirar algo seu!Antônio ficou alarmado tanto pelo tom na voz dela quanto pelas palavras que ouviu:– Não, Ana! Não seja boba! Você se entregou para mim sem eu ter pedido, lembra? –

Ele parecia exausto de lutar. – Vamos esquecer tudo isso e seguir adiante. Não quero perder osentimento bom que ainda existe entre nós. Por favor, assine...

Em estado de transe, ela virou as costas sem escutar mais uma palavra. Caminhou empassos lentos, ignorando-o por completo.

Antes de fechar a porta, acariciou o celular de Antônio escondido no bolso de sua calça,e sorriu maliciosamente.

Capítulo 7

Ana esquentou o barreado que tinha pronto na geladeira e o serviu com banana, arroze farinha de mandioca. Jantou com Tomás no mais profundo silêncio. Estava preocupada com ofilho, temendo transformar-se em uma mãe terrível e omissa. Engoliu as lembranças daquelatarde e meteu um sorriso na face, perguntando ao pequeno sobre a escola.

Quando acabou a refeição, uma chuva de verão estrondosa começou a cair. Apressou obanho por medo dos relâmpagos e trovoadas que eclodiam no céu. Estava no quarto escovandoos cabelos quando Tomás apareceu assustado, perguntando se poderia dormir com ela. Anacaminhou até a cama com um sorriso nos lábios e o abraçou, sentindo-se exausta.

Bloqueou os péssimos pensamentos e sentiu apenas o calor do filho, até ser dominadapor um sono profundo.

Quando Tomás se levantou no dia seguinte, já não chovia, e o café o esperava

quentinho sobre a mesa. Combinara com o dono da sorveteria de começar a vender picolésnaquele dia e saiu logo após o desjejum. Depois de se despedir da mãe com um beijo que lhetocou parcialmente a boca, deixou a casa animado com a promessa de voltar com muito dinheiro.Ana deu uma gargalhada dizendo que ele não tivesse tanta esperança assim.

Depois que o filho saiu, sentou-se à mesa e pesquisou com muita curiosidade o celularque tinha na mão. Conseguiu com facilidade desbloquear o teclado e em seguida apertou todosos botões, sem ideia do que fazer. Fuçou mais de meia hora no aparelho para conseguir encontrara lista de contatos. Anotou todos os poucos nomes estranhos junto com seus respectivos númerosem uma folha de caderno.

Deu-se por satisfeita com seu pequeno achado, quando prestes a finalizar a investigação,encontrou uma tecla que a levou à parte de mensagens do aparelho. Seu coração voltou a bater deuma forma que ela detestava: alto e forte, latejando na boca. Inúmeras mensagens diziam: “Jáestou chegando” “Estou com saudades”... Eram mensagens curtas, porém evidentes. Existia outramulher na jogada e esta mulher se chamava: “Rita de Cássia Castanheira”. Não erampropriamente declarações de amor, mas o fato de Antônio escrever sobre “saudades” deixavaclaro que existia algo entre eles. Ana sublinhou várias vezes o número que já estava anotado nopapel. Passou o lápis repetidas vezes e com tanta força, que chegou a formar um buraco na folha,deixando um risco na mesa.

Ainda tinha o celular nas mãos quando escutou o barulho da lambreta chegar logo nafrente de sua casa. Controlar seus piores sentimentos tornara-se um hábito constante nas últimassemanas. Como de costume, respirou fundo várias vezes; engoliu a raiva, o ciúme e a vontade dematar Antônio, antes de abrir a porta de casa e sair. Passou pelo pequeno jardim e abriu oportãozinho da frente, assoviando. Antônio acabava de tirar o capacete e o segurava na mão ondefaltava um dedo.

– O que você quer? – Perguntou com olhos inexpressivos, sabendo de antemão o que eledesejava.

– Bom-dia! – Respondeu com um sorriso legítimo, fazendo-a derreter-se por dentro. –Quer jantar em uma pizzaria hoje? Você e o Tomás; claro!

Ana foi pega desprevenida. Estava armada com sua espada invisível, preparada paraenfrentar o marido na guerra, porém, sentiu que lhe faltava a armadura. Poderia jurar que a

primeira pergunta dele seria sobre o celular perdido. Não esperava ser convidada para jantar. Suavontade foi rir, mas controlou-se com resistência no intuito de mostrar que ainda possuía amorpróprio. Ela o encarou com desconfiança; não estava disposta a cair em uma armadilha, por maisque seu coração estivesse entregue; ainda que desejasse aceitar o convite de imediato e dizer umavez mais quanto o amava. Refletiu por um momento; fizera muitas bobagens nos últimos dias enecessitava urgentemente recobrar o equilíbrio. Ele não quer voltar para casa, e já deixou issobem claro... O que ele quer, então? Provavelmente que eu assine os papéis do divórcio ou...Voltar? Será que ele quer voltar para mim? Para nossa casa? Pedir perdão? O que ele quer?Oh, meu Deus, ele ainda me ama?

Outra vez confusa, vítima de pensamentos esperançosos, sorriu.– Isso é um pedido de desculpas? – Perguntou como se tivesse adivinhado de antemão as

intenções do marido. Devolveu um sorriso de cumplicidade, mostrando sua benevolência e ofitou de forma apaixonada.

Antônio leu os pensamentos que plainaram transparentes no ar. Todo o medo e violênciareprimidos em Ana, escondidos dentro dela durante os anos, eclodiram na última semana de umaúnica vez. Associou a conduta da esposa ao caráter do filho; as artimanhas, a birra, os ciúmes...Tomás tivera a quem sair, pensou, lembrando-se do gato assado no forno, das vezes que ele sejogou no chão do supermercado e esperneou, batendo as pernas no chão porque não ganhou oque pediu. Desejou dar um basta nos pensamentos antes que começasse a odiar a esposa e ofilho. Negava-se a ser manipulado e abominava o desiquilíbrio de Ana.

– Desculpas pelo que? Por você ter me envergonhado no meu local de trabalho?Ana estremeceu ao escutá-lo. O sorriso morreu instantaneamente na face. De repente,

sentiu-se uma perfeita idiota.Ele continuou:– Você já esqueceu o que fez? Bem, eu não preciso refrescar sua memória. Acho que

você tem sua própria consciência para lembrá-la. Eu queria sair hoje com vocês, tentar amenizarum pouco da sua amargura; fazê-la entender que como amigos ainda temos futuro, mas comocasal, terminaremos nossa história nos odiando, e eu não quero isso.

Os olhos de Ana ficaram marejados de lágrimas, mas não quis chorar na frente delenovamente. Estava frustrada demais para entendê-lo. Estudou-o por um instante. Antônio exibiaos cabelos grisalhos e começava a demonstrar, embora a pele bronzeada, o peso da idade. Eraquase um cinquentão que já havia conquistado tudo na vida: várias mulheres, liberdade plena atéos 32 (quase 33 anos); independência financeira desde muito jovem. Por que não sossegava?Seria a crise dos 40? Mas fazia tempo que ele já tinha passado dessa idade. Crise dos 50, talvez?Mas ele ainda não havia chegado lá. Onde estava o problema? Tinha saúde, um bom emprego euma família que o amava; o que mais poderia esperar? Reconhecia os problemas que existiamentre ele e Tomás, mas Antônio não deveria desistir do próprio filho. Se ele houvesse pensadonessa situação como um desafio e não como um problema, teria conseguido encarar a vidafamiliar com bons olhos e não como uma desgraça; poderia ter vencido as desavenças com ofilho e o conquistado. Ana entendia que Tomás era só uma escusa para ele pular fora docasamento e responsabilidades. A justificativa perfeita para buscar aventuras nos braços de outramulher. Na verdade, Antônio era um homem com quase 50 anos que ainda não havia crescido.Lembrou-se das palavras dele: “Se você fizer uma bobagem, eu coloco Tomás na rua!” e agora,propunha um jantar a três como se fossem uma família. Tudo para alcançar o objetivo dodivórcio. Por que amo esse homem? Quem ele pensa que Tomás é; um saco de batatas? Quepode levá-lo para comer pizza enquanto fala da separação com sua mãe? Que desaparece por

semanas sem dar qualquer satisfação ao menino e reaparece depois de cara lavada querendocomer pizza? Estava decidida a não permitir que Tomás carregasse a culpa pela infelicidade dopai. Tudo que Antônio desejava era pular a cerca e ver-se livre deles. Pensou sobre si mesma;quantas grosserias mais precisaria ouvir para aceitar que estava tudo terminado? Quantas vezesainda permitiria ser humilhada e humilhar-se? Sentia-se como um vira-lata, prestes a desculpar edesculpar-se, mesmo quando havia sido agredida e não tinha culpa; um animal esperançoso deamor, sem saber para onde correr. Perdeu o amor próprio, como Antônio bem dissera, mas estavadisposta a reencontrá-lo. Dali por diante, a mulher estúpida colocaria as regras na mesa.

– Então, você quer o divórcio, não é mesmo?Ele pareceu surpreso.– Você vai assinar os papéis?– Claro! Mande seu advogado voltar aqui.– Ai, Ana! – Ele deixou escapar um suspiro aliviado. – Você não imagina como está

sendo sensata! Você ficará com vinte por cento do meu salário todos os meses, a casa, e odinheiro que temos na poupança; que tal?

– Vinte por cento do seu salário? Você acha que ganha uma fortuna e eu tenho que darpulinhos de alegria por ficar com sua miséria? A casa já é de Tomás; não queira me fazer deidiota! A poupança está no meu nome, e você sabe que só eu posso mexer nela.

Ele procurou passar por cima do tema: “casa e poupança”. Ana estava certa; ela abrira apoupança no banco (com o dinheiro dele é claro), mas era tão mal agradecida que nem isso podiareconhecer, pensou.

– Podemos falar sobre a pensão mais adiante. Se o dinheiro não for suficiente, posso darum extra.

Ela se sentiu como uma mercadoria negociável.– Você vai elaborar um contrato que me deixe com sessenta por cento do seu salário. –

Exigiu.– O QUÊ? Você enlouqueceu?– Ora, quando estávamos juntos, você precisava usar quase o salário integral para os

gastos da casa e a comida; agora que estamos separados, preciso da mesma quantia! A únicadiferença de agora para antes, é que haverá uma boca menos para comer.

– Mas isso é lei, Ana! – Ele se defendeu, consternado. – As esposas ficam com vinte porcento do salário do marido.

– Eu quero que a lei se exploda! Ou você faz isso ou não vou assinar divórcio algum.Leis nesse país só servem para beneficiar um e foder outro.

– Pois então se você não assina, não pagarei nada, nem mesmo os vinte por cento!– Nesse caso, é melhor eu procurar meu advogado. – Ela disse, muito segura de si.– Você não tem advogado!– Não tenho ainda...Antônio arquejou impaciente.– Olha, você está mesmo louca; não dá para conversar com você! Pense sobre o que

conversamos. Você vai precisar desse dinheiro e não está em posição de negociar. Lembre-seque temos um filho para sustentar!

Ana o contestou, prontamente:– Por que você não pensa nisso também? Ele vai continuar sendo seu filho mesmo

depois do divórcio! As obrigações não morrem, meu amor! – Ironizou o final da frase, buscandocontrolar a raiva que experimentava.

– Eu preciso ir agora, estou atrasado para o serviço. A propósito, ainda posso buscá-loshoje à noite para...

– Querido, economize o dinheiro da pizza; você vai precisar dele!Antônio fez de conta não entender o sarcasmo nessas palavras.– Ah, você ficou com o meu celular ontem? –Perguntou de forma casual, como se não

tivesse interesse.Ana tirou o aparelho do bolso e olhou para o celular um instante. Levantou-o até o alto

de sua cabeça como se fosse espatifá-lo no chão, mas abaixou-o ao ver o assombro no rosto dele.Sua voz era puro veneno quando afirmou:– Eu sei que foi só por causa dessa porcaria que você veio até aqui.– Não seja boba! Eu nem sabia se estava com você ou não.– Sim, você sabia e por isso veio. – Ela estendeu a mão e entregou o aparelho – Pode

deixar que não vasculhei nada. Nem sei mexer nessa porcaria.Antônio deu partida na lambreta e ajeitou o capacete depois de colocá-lo na cabeça.

Montado em seu veículo e com o motor ligado, abriu a viseira e insistiu uma vez mais noassunto:

– Você vai pensar na minha proposta, promete?– Claro! – Concordou, lembrando-se da promessa que fizera na noite anterior de “tirar

algo dele”. Era a única promessa na qual pensaria. O resto era apenas resto e iria sobreviver sema esmola do traidor.

O mesmo advogado bateu na sua porta dois dias depois. Ana o recebeu com um sorriso

nos lábios. Estava mais simpática e receptiva que a última vez. Pediu educadamente que ele aesperasse na porta de entrada. Alegou que necessitava trocar de roupa para recebê-lo, masretornaria em um piscar de olhos. Pulando pela janela do quarto de Tomás, deu a volta por trásda casa e correu até o tanque. Retornou com a mangueira espirrando água fria nas costas dohomem. Poupou-se ao trabalho de ler o que o advogado trazia escrito no contrato. Para ela nãointeressava o dinheiro do marido. Não estava disposta a assinar um documento que o afastariapara sempre do homem que amava, do pai de seu filho. O homem foi pego desprevenido.Enganado pelo sorriso cordial que recebera, não teve tempo de escapar a seco daquela casa. Saiunovamente aos pulos, correndo e jurando em nome de todos os santos que jamais voltaria.

Capítulo 8

A primeira conversa ocorreu através de um telefone público, quase três semanasdepois:

– Alô, gostaria de falar com a senhora Rita de Cássia Castanheira.– Sim, é ela.– Boa-tarde! Aqui é da Copel. Meu nome é Celia Cristina. Constatamos irregularidades

na sua conta de luz. Gostaria de confirmar algumas informações com a senhora; pode ser?– Irregularidades? O que aconteceu?– Cobramos nos últimos meses um valor indevido a sua fatura; doze por cento a mais na

conta. Estamos corrigindo esse acréscimo com todos os clientes através de descontos naspróximas faturas.

– Ah, bem que notei que a conta de luz aumentou, e inclusive estava prestes a ligar paravocês! – Alegou a mulher muito convicta no outro lado da linha.

– Sim, a Copel notou o erro e irá ressarcir todos os clientes prejudicados, atéequipararmos o valor. A senhora tem tempo para me passar algumas informações de segurança?

– Claro!– Endereço de residência?– Rua Shangai, 7164. Jardim Cláudia.– Certo. Essas informações serão suficientes para processar o desconto. A senhora pode

anotar o número de agendamento dessa ligação, por favor?– Um momento que vou pegar uma caneta.Dez segundos de espera, depois:– Pode falar.– 250145621625.– O desconto já vem na próxima conta, né?– Sim, caso não ocorra, a senhora pode ligar para Copel com o número que lhe passei

agora, e perguntar a qualquer operadora sobre sua fatura. Obrigada pela confirmação dos dados.A Copel deseja à senhora um bom dia.

– E de quanto será o...Fim de ligação. Ana deixou o orelhão com o endereço da amante de Antônio anotado em um papel,

ignorando a forte dor no estômago que a fez ter náuseas. Escreveu e preparou seu script diasantes, treinando várias vezes consigo mesma, falando frente ao espelho, sem saber se na horaexata seu teatro funcionaria. Em um rascunho, onde anotou os contatos de Antônio, havia trêsnúmeros da tal Rita de Cássia. Um do celular, o outro da casa e o terceiro, provavelmente, do seulocal de trabalho (já que ligou para o terceiro número e a ligação caiu em uma loja deconsórcios). Teve que controlar o nervosismo ao iniciar a conversa com sua rival por telefone.Tivera a ideia sobre a Copel quando escutou o locutor do rádio informar que a conta de luzsofreria um reajuste. No caso fictício que inventou, a situação foi inversa e ela ofereceu umressarcimento. A tal Rita de Cássia caiu como uma pateta no golpe, pensou, sentindo-se satisfeitapor não ser a única mulher estúpida no mundo. Segurou a risada quando Rita disse “estardesconfiada no valor da fatura”; e ao final, quando quis saber “qual o valor do desconto” que

receberia. Não foi difícil pensar no plano. As pessoas são iguais quando se trata de dinheiro,dispostas a caírem em uma trapaça e trapacear sempre que exista um retorno financeiro, umavantagem ou qualquer tipo de lucro fácil (ou mesmo difícil). A Rita de Cássia não foi exceção àregra, pensou Ana. Ademais, tinha voz de vadia.

Tudo que restava nesse momento era saber o que fazer com o endereço de suaadversária. Mas enquanto não sabia, trataria de se divertir.

– Alô, Rita de Cássia?– Sim, é ela. Quem é?– Oi, Rita! Aqui é a Maria, irmã do Antônio. Tudo bem?– Ahh, ehh... Irmã? Desculpe... anhh, ele nunca me disse que tinha uma irmã, mas...

Poxa, é um prazer...!Risos.– Não se preocupe, querida! O Antônio é assim mesmo, nunca conta o que deve... A

propósito, ele me falou maravilhas a seu respeito e fiquei muito ansiosa para conhecê-la. Vocêsestão namorando, não?

– Namorando? Foi isso que ele disse? Porque se foi, vou esganá-lo!– Ué, vocês não estão de namorico?– Namorico é uma pinoia! Antônio é meu marido!Ironia.– Meu amor, como ele pode ser seu marido se é casado?– É que estamos morando juntos faz um tempinho. Ele já deixou a esposa e pediu o

divórcio, mas ela quer mais dinheiro...Raiva.– Ah, sim? Quer mais dinheiro? Ela já deve estar rica a essa altura, não? – Ironizou. –

Eu conheço muito bem a Ana, e posso garantir que ela não é assim... Mas, você a conhece?– Deus me livre e guarde! O Antônio me disse que ela está louca de pedra!Cólera.– Eu poderia conversar com a Ana sobre o divórcio e convencê-la...– Você poderia mesmo? Verdade?– Claro, meu anjo! Você ama o meu irmão, não é?– Oh, sim mais que tudo!– Quantos anos você tem, querida?– 23.Silêncio.– Que gracinha, tão nova e já quer casar! Antônio tem sorte com meninas novas... Você

trabalha, meu amor, trabalha?– Sim, sou estagiária no Mondo Car. O Antônio não falou?– Não, ainda não! Mas ele contou que está apaixonado e me pediu para fazer uma

surpresa, ligando para você.– Poxa, foi uma surpresa mesmo! Confesso que fiquei muito feliz com a sua ligação. Eu

nem sabia que o Antônio tinha uma irmã... eu... bem, espero que você venha conhecer nossacasa.

Loucura.– Casa? Ah claro! Eu tenho que visitá-los em breve; estou louca para conhecer você!

Espero que o Antônio compre logo uma casa de verdade, pois não é fácil viver de aluguel.

– Ah, mas não é aluguel não! Nós financiamos a casa depois de saber da gravidez. Vocêsabe que estou grávida, né? Ai, claro que o Antônio contou que teremos um filho...

Fim da ligação. Grávida? Ana desligou o telefone imediatamente, com o coração em disparada. O

mundo começou a girar e o chão se abriu frente a ela como uma cratera faminta que a engolia.Foi forte ao ouvir que a menina tinha apenas 23 anos e que Antônio a trocou por alguém comidade para ser filha dele. Porém, era completamente inconcebível a informação que engravidou efinanciou uma casa para a piranha. E para mim, o que sobrou dele? Vinte por cento do salário eum adeus! Com certeza o filho da puta usou o FGTS para comprar a casa e alojar avagabundinha... Há quanto tempo estarão juntos? Onde se conheceram? De quanto tempo é agestação? Havia ainda várias respostas em branco, mas percebeu que nunca as conheceria, já quea garota contaria para Antônio que uma mulher (fazendo-se passar por irmã dele), ligou. Comessa ligação liquidou as chances de seguir interrogando a pistoleira. Foi a ideia mais estúpidaque já tive! Será que ele vai desconfiar de mim? É quase óbvio... Se não desconfiar é tão imbecilquanto eu. Ah, mas o que importa isso? Eu vou acabar com a raça desse imoral de um jeito oude outro! 23 anos! Isso quer dizer que estou velha com meus 29! Já não sirvo mais; sou cartafora do baralho! Vagabundo, mentiroso! Quanto tempo ele já tinha uma amantezinha? Ele metrocou por uma desqualificada e nem do filho quer mais saber! Antônio é um pervertido; comonão enxerguei isso antes? Um homem de quase 50 anos com uma piranha com idade para serfilha dele! Como ele pode se expor ao ridículo dessa forma?

Sentiu a fúria correr quente pelas veias, movida por despeito e revolta. Ele vai me pagarmuito caro, ah se vai...

Nos dias que seguiram, ela continuou as ligações para Rita de Cássia sem se identificar,em uma sessão interminável de trotes, ofensas e brincadeiras de mau gosto. Suspeitava que amenina não fosse tão idiota ao ponto de não saber que era ela quem fazia as ligações, mas não seimportou. Se Antônio a procurasse para tirar satisfações, negaria até a morte.

Em casa, aflita e cada vez mais obcecada com Antônio e a nova mulher, tentavaorganizar as ideias e controlar a ira que experimentava. Cada vez que pensava sobre a traição, agravidez e a idade da tal Rita, sentia seu coração disparar de forma tão acelerada que temiaenfartar. Esperou que o tempo amenizasse sua angústia, mas ao contrário disso, o tempo só a fezficar ainda mais ciumenta e infeliz.

Distraia-se passando trotes para Rita de Cássia. Os dias transcorriam lentamente. Anaesperou que Antônio a visitasse, ainda que fosse para repreendê-la ou para buscar o resto de seuspertences, mas nem a sombra dele viu. Perdeu as contas dos dias que morreram desde a últimavez que esteve com ele. Sentia-se imune; o decorrer das últimas semanas serviu apenas para ficarmais colérica, reativando a força de seus ciúmes de forma violenta.

Esteve tão envolvida em seu próprio ódio e comiseração que se esqueceu das

encomendas de geleias. Quando deu por si, estava há pelo menos dez dias atrasada.Correu até o supermercado; comprou morango, laranja e pêssego. Voltou para casa;

arrumou a cozinha como de costume antes de começar o trabalho, dedicando-se a lavar frutas,descascá-las, cortá-las e fervê-las. Enquanto mexia o caldo na panela, mortificava-se naslembranças dos últimos acontecimentos. Sentia saudades de Antônio, queria-o de volta dequalquer forma; não se conformava ter sido trocada por uma garota, não admitia não ser maisamada por ele. Encostou o braço duas vezes na panela quente e queimou o canto da mão direita

enquanto mexia o tacho, amaldiçoando a panela e chamando por todos os demônios. Seguiu emum ritmo incessante, aplicando-se exclusivamente ao trabalho que durou até o cair da noite.

Quando Ana chegou à primeira mercearia no dia seguinte, levava consigo vintecompotas dentro da mochila. Estava habituada a vender entre seis a oito vidros de geleias emcada mercearia que visitava. Tinha em mente deixar as três primeiras remessas; logo, voltar acasa e buscar às outras trinta que havia feito, e partir rumo aos outros mercadinhos clientes.

A dona da mercearia estava nos fundos da loja, arrumando qualquer coisa quando Anachegou. Como era de costume, caminhou até a prateleira entre as quatro fileiras de mercadoriasdiversas existentes no lugar, para averiguar quantas compotas deveria repor. Sobressaltou-sequando percebeu a prateleira completa por compotas de geleias que não eram suas.

– Dona Maria? – Chamou desde onde estava, dirigindo-se ao balcão.A mulher surgiu dos fundos do estabelecimento, abrindo um sorrisinho de culpa.– Oi, Ana! Bom-dia!– Bom-dia, dona Maria! Trouxe as geleias da semana. – Disse, fazendo de conta não ter

visto a prateleira reposta com mercadoria de outro vendedor.– Ai, querida, você não apareceu na semana passada e tive que recorrer a Dona Nizete,

que há tempos vende geleia na região. Desculpe, eu não podia esperar...– Ah, sou eu quem pede desculpas! Fiquei doente na semana passada, por isso não pude

vir, mas sem problemas! Ficamos então para semana seguinte?Depois de tragar saliva, a quitandeira fez uma caretinha e respondeu com certa

comiseração na voz:– Eu acho que não, Ana! A dona Nizete mora aqui do lado e é mais fácil buscá-la caso

me falte mercadoria; ela sempre tem estoque e não costuma falhar, sabe? Não é por nada,entendo que você estava doente, mas aqui é um negócio..., se não tenho mercadoria deixo defaturar. Eu sinto muito!

– Mas faz mais de três anos que vendo para a senhora; qual foi o dia que não cumpricom nosso compromisso?

– Ana, eu sei que parece desleal da minha parte, mas não é isso. Negócios são negóciose a dona Nizete ainda vende as geleias cinquenta centavos mais baratas.

– Sinceramente? Duvido que as geleias da tal Nizete sejam melhores que as minhas, masa senhora que sabe; eu também posso dar esse desconto se a senhora quiser!

– Não, querida, obrigada! Já combinei de comprar com ela. Ana saiu da mercearia depois de agradecer, com o nariz erguido, embora

decepcionada uma vez mais. O que aconteceu com as pessoas? Ninguém mais tem fidelidade ouserá que o problema sou eu? Pouco mais de uma semana de atraso e me passaram a perna!Espero que o povo tenha caganeira com as geleias da bruxa! Eu tenho para quem vender; nãopreciso da dona Maria para nada!

Caminhou poucos metros até o mercado Paraná e descobriu a mercadoria da dona Nizetenas prateleiras também. Ana conversou com o dono, mas escutou a mesma justificativa docomerciante: “Como você não deu o ar da graça, comprei de outro”. Mesmo tendo a prateleiracheia, por consideração ou pena, o comerciante comprou quatro compotas com a exigência deque ela cobrisse o preço da concorrência.

No mercado seguinte (quase um supermercado), onde Ana costumava deixar de dez avinte compotas semanalmente, as prateleiras estavam minadas com geleias de grandes marcasvendidas por multinacionais. Embora a justificativa de Ana pelo atraso na entrega e a insistência

por vender, o encarregado que cheirava a loção de toucinho defumado, disse que não tinhainteresse, mas sugeriu que ela voltasse na semana seguinte, porém, sem lhe prometer nada.

Depois de percorrer o bairro a pé e adentrar outras vizinhanças, Ana não obteve muitosucesso. A maioria dos comerciantes já tinham comprado geleia de outros fornecedores, eaqueles que ainda manifestavam algum interesse, pediam por geleias que ela nãos possuíanaquele momento para vender. Conformara-se em perder o dinheiro daquela semana com aesperança de chegar mais cedo na semana seguinte, e assim, vender sua mercadoria atrasada.

Alocou as compotas no armário da cozinha, enfileiradas minuciosamente por sabor.Conseguiu guardar quase metade delas, depois buscou uma escada e colocou o restante em cimado armário, sentindo-se orgulhosa por ter produzido tal beleza. As geleias de frutas erampigmentadas, vivas, de aspecto saboroso e magnífico. Se não precisasse do dinheiro as deixariaalinhadas como conservas, enfeites divinamente coloridos na cozinha sem cor.

Ana tomou o ônibus lotado até o centro, e logo outro, no terminal. Prestou máxima

atenção quando adentraram à Avenida Garibaldi Deliberador e saiu no local indicado pela listatelefônica. Colocou seu melhor vestido e sapatos altos. Levava o cabelo preso em um coqueelegante e usava uma maquiagem discreta. Saiu em uma parada quase no final da avenida.Caminhou poucos metros e pediu informações em um posto de gasolina. O frentista apontou odedo na direção contraria. Ana o agradeceu e virou-se, tomando o caminho indicado.

Avistou o lugar de longe. Era uma loja ampla com uma placa na lateral, frente aoestacionamento, que dizia: “Mondo Car, o automóvel dos seus sonhos está aqui!”.

Quando ficou a dez passos da loja, respirou fundo, tomou coragem e entrou.– Boa-tarde! Posso ajudá-la? – Perguntou um vendedor de meia-idade com um sorriso

cordial.– Boa-tarde! Estou procurando emprego. O senhor sabe com quem posso falar? –

Mentiu.O sorriso morreu automaticamente na face do homem. A loja estava vazia, somente os

carros à venda e os vendedores desocupados preenchiam o interior do lugar. Pelo visto, eleestava ansioso para vender e não para dar informações. Por essa e por outras, Ana não gostava devendedores. Eles estavam à disposição do cliente somente se o cliente estava com disposição degastar. Recordou das vezes em que experimentou roupas em lojas; não importava se ficasseparecida com um saco de batatas, as vendedoras lhe diziam com muita confiança: “Nossa! Issoparece ter sido feito na medida para você!”. Quando Ana dizia que não estava convencida e queprecisava dar mais uma olhada por aí, elas fechavam a cara, visivelmente enfadadas. Vendedoressão os profissionais mais mentirosos do mundo quando cheiram uma venda, porém, os maissinceros quando o cliente se recusa a fechar negócio.

Aquele homem a sua frente era mais um vendedor fantasiado com um sorriso exclusivopara clientes. Ela não se encaixava nesse requisito.

Fitando-a dos pés a cabeça, dissimulou a curiosidade com certo trejeito afeminado.– Lá! – Apontou para o fundo da loja – Suba as escadinhas e caminhe por cima da

rampa. O escritório está no lado direito. Você pode falar com a estagiária.Ela agradeceu contendo o riso. Jamais tinha visto um homem velho afeminado, embora

fosse evidente que os jovens levavam a sexualidade com eles ao envelhecer. Ao refletir sobre suaignorância, soltou uma risadinha entrecortada e caminhou pela rampa.

Encontrou o escritório facilmente; um cubículo de vinte metros quadrados, sem janelas,que podia ser visto logo depois da rampa. Dentro da sala havia uma mesa de madeira que alocava

um moderno computador, uma calculadora, um cestinho de lixo, e por trás da mesa, umaconfortável poltrona negra. Encostada à parede, uma estante de metal que sustentava uma pilhade papeis, pastas de arquivos e uma impressora, acabavam de formar toda a composição doescritório.

Ana estudava visualmente o local quando viu a porta por dentro da repartição, logo aolado da estante de metal, abrir-se. Uma jovem usando óculos saiu de dentro dela, trazendo umagrossa pasta amarela nos braços.

Observou a pele jovem da garota, ainda marcada por pequenas cicatrizes de espinhas aoredor do queixo e vários pontinhos vermelhos na testa. Um cabelo fino, com resquícios de tinta,e a raiz pelo menos cinco centímetros escura (diferente da cor amarela logo abaixo), caía-lhe emcima dos ombros. Trazia um par de preciosos olhos verdes na face, em cima de um corpo alto echupado, embora a saliência na barriga já estivesse evidente. Trajava por cima da meia-calça,minissaia jeans e levava camiseta branca, com uma frase em inglês na estampa. Parecia umacolegial exibindo formas e curvas precoces, com não mais de 18 anos.

Ana dissimulou seu nervosismo. Não esperava encontrar uma garota franzina cheirandoa leite, com o ranho escorrendo por debaixo do nariz. A garotinha de seu marido vestia-seordinariamente, e certamente fodia no lugar de fazer amor. Devia chupar, lamber e rolar na camacomo ninguém. O que mais Antônio poderia querer além de uma prostituta da qual não precisavapagar pelos serviços? Julgava-a em um silêncio venenoso e perturbador enquanto seus olhospermaneciam impenetráveis como gelo.

– Pois não? – Perguntou a garota sem sorrir, franzindo as sobrancelhas, desconfiada pelapresença da mulher que a fitou nos últimos segundos, sem dizer uma palavra sequer.

– Boa-tarde! Meu nome é Beatriz Antunes! – Ana estendeu a mão, esperando que aoutra fizesse o mesmo.

– Rita de Cássia! – Sua apresentação pareceu ser feita a contra gosto à estranha, masainda assim devolveu um superficial aperto de mão, depois de deixar na mesa a pasta quecarregava.

As pernas de Ana começaram a tremer instintivamente. Soube que deveria sair logodesse lugar antes de ser submetida, inconscientemente, a um daqueles seus habituais acessos deraiva e loucura (se é que “raiva e loucura” não são por si só, adjetivos diferentes, de significadosiguais). A breve saliência no ventre da garota deveria se tratar de uma gestação de mais oumenos três meses.

– Desculpe incomodá-la, passei o dia entregando currículos pela avenida. Gostaria desaber se vocês precisam de vendedoras.

– Infelizmente não, mas pode deixar um currículo comigo se quiser. – Respondeuautomaticamente como se já estivesse acostumada a dar essa negativa todos os dias.

– Ah, claro! Quem sabe tenho alguma chance de ser contratada em breve, não é? – Anadissimulou o nervosismo sem muita perspicácia, percebendo que a garota perdia a ruga entre assobrancelhas da testa e começava a esboçar um pequeno sorriso. – Posso trazê-lo durante asemana? Estou entregando currículos faz horas e acabei ficando sem nenhum. Você é estagiáriaaqui, não é mesmo?

Rita de Cássia pareceu contrariada:– Sou estagiária por enquanto. Logo serei contratada como secretária definitiva. –

Respondeu com tanta presunção, que fez parecer que o cargo que em breve teria não era o desecretária, mas de Presidente da República.

Ana balançou a cabeça, sorrindo por dentro. Lembrou-se de como a enganara com a

ligação sobre a conta da luz. Acreditava que a concessionária daria um chute no traseiro de Ritade Cássia assim que soubesse da gravidez. Afinal, só existia algo que as empresas detestavammais que pagar vale transporte e plano de saúde aos filhos dos funcionários: Cobrir licençamaternidade! Seria muito mais fácil para a empresa dispensá-la enquanto ainda era uma relesestagiária.

– Voltarei depois de amanhã, pode ser? A que horas encontro você aqui?– Entro às onze e saio às cinco da tarde.– Todos os dias? Que excelente horário!A garota soltou um ar inquieto pelas narinas e revirou os olhos, mostrando

descaradamente sua paciência esgotada.– Você quer mais alguma coisa?Ana a fitou por um instante antes de se retirar. Que garota mal educada e ranzinza!

Como Antônio poderia ter se apaixonado por essa fedelha de merda? Sua vontade era de partir acara da esnobe em dois pedaços, mas reteve o delírio em sua imaginação; e simplesmenteagradeceu antes de sair.

Caminhou pela concessionaria, tonta e embriagada de ódio. Quase passou por cima do

vendedor afeminado que a recebera, em uma busca desesperada por encontrar a saída. Ao cruzara rua, não olhou para nenhum lado e só teve tempo de escutar o barulho da freada brusca de umônibus, e em seguida, o pandemônio de uma buzina que quase a ensurdeceu. O motorista depoisde quase tê-la atropelado, gritou pela janela do veículo com labaredas pela boca. Ana foi tomadapor um susto tremendo. Ficou paralisada no meio da rua, observando o motorista mover os lábiose movimentar os braços com furor, sem entender o que ele dizia. Continuou caminhando e correupara o outro lado da rua. Sentia-se humilhada pela beleza juvenil e toda aquela arrogância queviu em Rita de Cássia. Era um disparate que essa ranhenta estivesse grávida de seu marido,refletia, enquanto deixava o choro amarrado junto ao nó da garganta.

Na frente da parada de ônibus encontrou um boteco. Dentro dele, dois homens sentadosem uma mesa jogavam dominó. Com copos de cerveja na mão, outros homens assistiam adisputa em pé. No balcão do bar, um indivíduo sem camisa exibia tatuagens nas costas, braços epeito, enquanto apreciava um dedo de pinga no copo que segurava. Mesmo com os desenhos malfeitos que marcavam seu corpo e poderiam deixá-lo com um aspecto “marginal”, ele tinha seucharme. Possuía olhos vivos e cabelos escuros abundantes, pincelados com o grisalho charmosoque o tempo brinda aos homens de meia idade. Sentado no caixa, por detrás do balcão, estava umhomem gordo, com a pele brilhosa banhada em óleo, fumando um cigarro. Parecia que todos oshomens a espreitaram quando ela entrou, principalmente o tatuado ao seu lado, que a olhou comoum abutre à carniça.

Sentou-se na barra do bar, próxima ao homem tatuado e pediu uma cuba livre. Aapreensão de estar em um local estranho, com homens desconhecidos e mal-encarados,amenizava a vontade que sentia de jogar-se embaixo de um caminhão ou tomar estricnina. Assimque o gordão colocou o copo em sua frente, emborcou quatro grandes goles da bebida.

Incomodada com o tatuado que a encarava de forma explícita, indagou:– Você aí, mané! Tá olhando o que? Nunca viu uma mulher na vida? Só pinguços como

você têm o direito de encher a cara às três horas da tarde em um bar? Maldito país machista!Os homens que jogavam dominó não puderam deixar de soltar uma gargalhada e

aplaudir.– É isso mesmo! Ela tá certa, Cuzão! Vá mexer com as suas negas!

– Poxa, assim você corta as minhas pernas! Eu nem disse uma palavra que fosse... – Otatuado se defendeu, envergonhado e ao mesmo tempo surpreso pela inesperada reação dadesconhecida.

– Fica na sua, ok?Ele vestiu a camiseta pendurada na banqueta onde estava sentado, soltou um sorriso com

apenas uma parte da boca e encostou sua banqueta tão perto de Ana que sentiu o perfume doscabelos dela.

– Ao menos eu tenho um motivo para estar aqui. E você? Comemorando ou afogandomágoas?

– Morrendo! Eu estou morrendo, entendeu? Vá catar coquinho no asfalto se você nãotem nada melhor para fazer! – Ela o respondeu em tom agressivo, e sorveu a metade da bebidaque ficara no copo em boas goladas.

– Desculpe, mas princesas como você não morrem!Desconfiada e ao mesmo tempo, curiosa, rendida por um mero elogio, ela o fitou nos

olhos.– O que isso significa, panaca?– Que você deveria celebrar e não lamentar quem você é.– Tá brincando comigo, né? Quer me fazer de palhaça, rir da minha cara; é isso? Você

gosta de pisar em quem já está caído? Celebrar quem eu sou? Eu nem preciso perguntar se vocêbebeu. Dá para sentir no seu hálito!

Ele balançou a cabeça negativamente, pouco se importando pela forma como eramaltratado.

– Eu posso provar o que digo! Por acaso, você tem um espelho?Ana observou os olhos amendoados no rosto interessante do estranho, intrigada. Ainda

não sabia se aquelas tantas tatuagens que viu no corpo dele, amedrontavam-na ou a seduziam.Gostava de homens com cabelos grisalhos, pois nenhum jovenzinho, por mais experiente quefosse, sabia apreciar e ser paciente com uma mulher igual aos homens mais velhos.

Percebendo que ele a contemplava com veneração e fascínio como se de fato olhassepara uma princesa, esqueceu seus problemas por um instante e envergonhou-se por tê-lo tratadode forma tão rude. Com uma risadinha muito discreta, tentando fingir que não havia sidocomprada pelo galanteio, perguntou de forma investigadora:

– E você? Comemorando ou afogando as mágoas?– Comemorando; sempre!– Posso perguntar ao que?Ele a fitou com mais profundidade por alguns segundos, como se estivesse decidindo

confiar seus segredos à estranha ou não.– Hoje faz dois anos que estou limpo; sem drogas, entendeu? Então, acredito que estou

comemorando a mim mesmo; o presente que me dei quando decidi parar de envenenar meucorpo e minha mente.

Ana tentou mostrar naturalidade ao escutar isso. Em seu mundo ninguém usava drogas.A única experiência que teve com entorpecentes ficou muitos anos atrás no tempo, quando paravariar, sofria de amores por Antônio, e acabou ingerindo álcool e remédios, de maneirainconsequente. Ao lembrar-se disso sentiu o formigamento de asas crescendo em suas costas, esorriu. Podia jurar que foi um anjo, ainda que muito remotamente.

Muito ao contrário de parecer chocada com a declaração, e assim, afugentá-lo com umareação de beata, perguntou sutilmente:

– Que drogas você usava?– Tudo que passar pela sua cabeça, sem restrições. De produtos de limpeza à heroína.– Dois anos sem nada?– Dois anos!– E beber não é ruim? Quer dizer, acho que uma coisa chama outra...– É ruim para você? – A confidência que o tatuado fez ao princípio, agora, parecia

desagradá-lo.– Mas eu nunca usei drogas! Nem aspirina eu tomo! – Ana declarou, sentindo-se

ofendida por ser comparada com um viciado, e completou: – Não me interprete mal apenasporque hoje resolvi me misturar na escória de um bar de quinta categoria.

– Olha aqui, você me perguntou, e eu respondi de forma sincera; aliás, até mais sincerado que deveria. Eu comemoro minhas vitórias do meu jeito, entendeu? Encher a cara de vez emquando é completamente diferente que se drogar. Prometi a mim mesmo que não voltaria a ficardoidão nem com pó nem com solvente, e nem com bagulho algum; porque sei que se eu falhar,estarei declarando minha sentença de morte. Já passei por muita coisa ruim; não tenho maischance de brincar com a vida. Tô com 24 anos na cara, e há três anos, os médicos já falaram queeu não chegaria aos trinta. Você sabe o que é ouvir isso na flor da juventude?

Ana ficou chocada mais pela idade do tatuado do que pela história dele. Embora ohomem ainda preservasse resquícios da juventude, poderia jurar que ele era muito mais velho.

– 24? Sério? Meu Deus! – Dessa vez não conseguiu disfarçar o assombro, eenvergonhou-se por sua indiscrição. – Quer dizer... não me leve a mal... achei que você tivesseum pouco mais. – Disse, tentando retratar a grosseria.

– Você acha que a pele aguenta tanto maltrato? Se a gente não cuida bem da carcaça, eladespenca antes do tempo. Dá para ver nos meus cabelos brancos, não dá?

– Ah, imagina! – Ela fez pouco caso, ainda incomodada por sua falta de tino eindelicadeza, desejando esconder o rosto inteiro dentro do copo que segurava. Para disfarçar odesconforto da situação, perguntou: – Como é o seu nome?

O homem não parecia ter se ofendido, ou quem sabe, sequer percebeu a gafe de suaacompanhante, pois a contestou de forma muito amistosa:

– Uzias, mas pode me chamar de Cuzão! – Proferiu sorrindo e completou: – E como é onome da princesa?

Ana ruborizou. Ficou tão sem graça (e ao mesmo tempo alagada), por ter sido chamadanovamente de “Princesa” que nem percebeu o caráter cômico e vulgar no apelido do homem.

– Ana! – Deu-se conta do codinome dele somente depois de dizer seu próprio nome. –Por que esse apelido bizarro? As pessoas realmente chamam você assim?

Uzias soltou uma gargalhada. Geralmente o apelido levantava certo interesse nosdemais, mas ninguém nunca disse que era “bizarro”. Recebera a alcunha de “Cuzão” quandoestava na cadeia, porque fugia de brigas e conflitos como o diabo foge da cruz, mas essa era umainformação da qual não precisava contar.

– Acho que é porque nunca me meti em confusão. – Simplificou a explicação comomelhor conseguiu.

– Nunca? – Ana pensou em si mesma e o quanto era difícil ficar longe de encrencas. Seexistisse um antônimo para a palavra “Cuzão”, então, esse seria o apelido perfeito para ela,pensou sem achar graça da própria ironia. – E o que você faz da vida?

– Sou gesseiro profissional! – Respondeu orgulhoso, e acrescentou: – Mas no momentotrabalho como zelador em um prédio. Estava difícil conseguir emprego com gesso, e eu preciso

sobreviver, né? – Olhando para os copos vazios, ele passou a língua pelos lábios secos, e sugeriu:– Sua bebida acabou e a minha também! Que tal você pagar uma rodada?

Depois de mais alguns tragos com o tatuado, Ana se sentiu feliz por estar ao lado de

um jovem bonito e galanteador. Em nenhum momento intimidou-se com os beberrões quejogavam dominó e gritavam logo atrás dela. Disfrutava a liberdade em um ambiente que lheproporcionava prazer e diversão.

O relógio marcou cinco horas da tarde quando a voz do Martinho da Vila começou acantar através das caixas de som. O homem que havia acabado de perder no dominó levantou-see caminhou até ela, tirando-a para dançar. Embalada pela música ritmada, foi conduzida pelodesconhecido de uns cinquenta anos, com seu barrigão de cerveja e hálito de salame. Nopequeno espaço do estabelecimento, cheio de gordura e fumaça por cima do piso de cimento cru,o gorducho e a magrela giravam para lá e para cá, estimulados pelo frenesi da pequena plateiaque assoviava e aplaudia. Aparentemente habilidoso, o condutor da dança virava Ana uma eoutra vez como se lidasse com panquecas na chapa, mas que ao contrário de serem jogadas paracima, eram jogadas para frente e para os lados. Os passinhos quase coreografados que davam,confundiam o inigualável samba com forró. Ana não entendia como o álcool lhe causava tal bemestar e felicidade, mas passava a compreender o motivo pelo qual as pessoas bebiam. Estava alihá pouco mais de uma hora e já tinha amigos gentis; inclusive, um cara atraente que a galanteavae a fazia sorrir. Talvez Uzias fosse sua cara metade, um segundo pai para Tomás. Quem sabeainda tudo isso que estava sentindo fosse apenas o efeito da bebida que a fazia ver tudo tãoclaramente, sem inibições, despertando velozmente seus sentimentos mais apaixonados edescomprometidos. Nesse “antro das perdições”, ela encontrava o “antro das oportunidades” eabria bem os olhos, desesperada para ver tudo baixo à ótica dessa nova lente. Ao trazê-la devolta, depois de uma manobra audaciosa, o homem que cheirava a salame também começava acheirar a sovaco. De forma atrevida, o dançarino barrigudo pousou a mão em uma das nádegasdela, mas por não ter certeza se isso fazia parte da dança ou se o homem a tocava com malícia,Ana não disse nada e seguiu o compasso até ser acometida por uma vertigem. As últimas dosesque bebera pareceram criar vida em seu estômago. Sentiu que todo o lugar se movia ao seu redore embaixo de seus pés. Sua pressão caiu e saboreou um líquido amargo que subiu do estômago àboca. Devia correr até o banheiro para esvaziar o veneno que lhe punia dentro de seu corpo, massequer sabia se havia algum na pequena espelunca. Sem forças para desvincular-se do homemque a conduzia, apertava e a girava como se fosse um ioiô, vomitou ali mesmo, nos pés dobailarino.

Completamente envergonhada, limpou a boca com o dorso da mão enquanto tentavaesconder o rosto e não encarar ninguém. Escutou as risadas dos homens e viu um sorriso degraça na face de Uzias. O dançarino balofo lançou uma interjeição de asco, afastando-seimediatamente da poça de vômito com um salto para trás:

– Ecaaaa, o que você está fazendo, garota? – Ele olhou para o vômito e não perdeutempo em fazer uma piada: – Mas, o que você comeu, boneca? Tem um cheiro terrível delinguiça por aqui!

Uma explosão de risos ecoou ainda mais forte.Para não sentir-se ainda mais humilhada, Ana não perdeu tempo em contestá-lo

agressivamente:– Vai ver é o cheiro do peixe que você carrega embaixo dos braços! – Ela o olhou com

ironia e enfatizou: – Ou não! Talvez seja o urubu que você comeu e está saindo pela sua boca! Já

ouviu falar em desodorante e escova de dente, seu carniceiro?O homem ficou vermelho de raiva e disse algo, mas as gargalhadas explodiram com

ainda mais força, e por causa do estardalhaço, ninguém escutou seus protestos. Ana pegou abolsa e saiu disparada em direção à rua, cambaleando. A náusea a perseguiu, acompanhada deum mal estar irritante. Escutou o homem do bar atrás dela, gritar sobre a conta, mas não se viroupara dar-lhe satisfações. Correu a avenida inteira, atordoada e passando mal, sem ver as duasprimeiras paradas de ônibus. Enxergou somente a terceira quando parou para respirar, ofegante.Um pouco menos trêmula agora, sentou-se e esperou a condução. Estava arrasada eenvergonhada; uma vez mais, decepcionada consigo mesma por ser sua pior inimiga, aquela quea levava constantemente pelo caminho da vergonha. O tal “Cuzão” não seria um novo pai paraTomás e nem sua cara metade. Como poderia encará-lo depois de ter vomitado na frente detodos? Como cogitar a ideia de beijá-lo na boca depois de ter colocado as entranhas para fora?

Assim que entrou no ônibus e passou a catraca, começou a chorar. Sentada no banco detrás do veículo, com a cabeça encostada na janela, olhava para fora com os pensamentosperdidos na imensidão do entardecer. Fez o caminho de volta a casa aos prantos. Achousurpreendente a própria reação que a levou da euforia e felicidade, à tristeza, depressão e revolta.Lembrou-se do rosto jovem da garota que em breve teria um filho de Antônio e da saliência queexibia no ventre. Imaginou Antônio em cima dela, no momento exato em que fabricavam obastardo; as palavras ditas ao pé do ouvido, o fluxo sanguíneo em erupção, o excitamento, osuor, as promessas e juras de amor. O “filho bem vindo”! Teriam planejado essa gravidez, ouAntônio e a pirralha haviam sido descuidados quando fornicaram pela primeira vez, àsescondidas? Em certo momento de sua vida, Ana chegou a pensar que Antônio não gostava decrianças, mas começava a entender melhor o assunto do marido: o que de fato ele não gostavaera de seu filho: Tomás! Depois de velho, ansiava pelo bastardo que fizera com a jovem Rita deCássia, como o filho prometido e amado, aquele que seria seu companheiro até o fim dos dias,sendo sua semelhança em corpo e alma. Enxugou as lágrimas, passando diversas vezes a mãopela face. Ao pensar em Tomás que a esperava em casa sozinho, sentiu um aperto no coração.Estava sendo negligente com seu filhinho, abandonando-o ao bel prazer do desamor, da falta depai, da separação e da traição que lhe foi imposta. Ainda que tivesse perdido seu amor próprio,tornando-se omissa e irresponsável em suas obrigações de mãe, iria mudar por amor ao seu filho.Faria tudo para protegê-lo e fazer dele um grande homem. Tomás, o “órfão” de pai, não seriavítima de seus erros.

Estava decidida a não derramar mais uma lágrima, porém, antes cumpriria sua promessa:Tiraria algo de Antônio e sabia exatamente o que.

Os dois homens preparavam o cachimbo de vidro para o crack quando ela chegou. A

casa (se assim se podia alcunhá-la) era como uma caixa de fósforos torta e inclinada, prestes adesabar. O cheiro de fuligem, suor e sujeira humana do lugar era tão forte que impregnava nasnarinas, tornando o ambiente irrespirável.

Para chegar à toca da raposa, Ana precisou ver a opulenta igreja evangélica que um diasua mãe lutou contra. Entrou em um beco, depois de adentrar a favela da Bratac no Jardim NossaSenhora da Paz, entre casebres que se empoleiravam uns em cima dos outros. Homens deaspecto doente, descarnados de pele, com olhares maldosos e ao mesmo tempo vazios,espreitaram-na sem atenção quando cruzou o caminho deles. Descalças, crianças maltrapilhasjogavam futebol; outras acompanhavam uma luta corporal entre dois garotos, onde um ameaçavao outro com um pedaço de pau, cheio de pregos enferrujados. Na esquina seguinte, um menino

de mais ou menos oito anos dava um show de Rap com música do Mano Brown no últimovolume do rádio.

Na casa de apenas uma peça, o cheiro agressivo de sujeira, urina e fezes se misturavam.Uma barata que passeava na pia, em cima de pratos e restos de comida, sequer se deu ao trabalhode buscar um esconderijo quando Ana parou na porta, logo ao lado dela. Ao contrário da barataque parecia bem à vontade em seu habitat doméstico, Ana se enrijecia de nojo e medo, e trancavaa respiração para não vomitar. Na mesa, mais restos de comida e lixo dividiam espaço commoscas varejeiras que sobrevoavam a imundície no móvel. Ao lado do que seria a cozinha, viuum fino colchão de casal no chão e um dos dois homens, empoleirados sobre ele, segurar umapalha de aço em um lado do cachimbo, e do outro uma pedra de crack. A droga já estava acesa eambos aspiravam com sofreguidão o vapor. Depois de esperar um tempo que lhe pareceuinfinito, um homem sem os dentes da frente se levantou do colchão e caminhou à “cozinha”. Aovê-la ali parada feito um dois de paus, sua expressão pareceu zangada.

Ana estremeceu quando o viu mais de perto.– Fala aí, granfina! Por dez real tu leva uma pedra tamanho dum feijão, sacô? Quanto

cê vai tirar da baia? E fala logo, porque tempo é grana e eu não tô a fim de perder meu tempocom uma tansa igual tu.

Ana soltou a respiração e procurou disfarçar o medo que sentiu. Sem saber o que fazer, earrependida de estar ali, murmurou em uma voz fraca:

– Estou procurando o Nóia Cabeção. Ele está?O homem a estudou com interesse e soltou um sorriso malicioso de cumplicidade.– Tô sabendo quem tu é, maluca!Ao escutar seu nome ser citado, o outro homem se levantou do colchão e caminhou até

eles. Sem camisa, via-se uma tatuagem de Cristo em seu peito com a frase: Jesus Cristo é amor.A pele estava arrepiada, cheia de vasos sanguíneos estourados na superfície e hematomas escurospor todas as extremidades. Ele fez questão de chegar bem perto, colocando seu mau hálitoindescritível direto na face da visita. Ana trancou novamente a respiração, observando comrepugnância os tocos de dentes podres, quebrados e pontiagudos que restavam na boca dohomem, pintados de tártaro amarelo e buracos escuros. Seu rosto era enfeitado por feridas malcicatrizadas. Ao contrário do dia em que estiveram juntos e conversaram em um beco com poucaluz, nesse momento Ana viu com nitidez a deformidade e abaulamentos na face dele.

– Passa o cinquentão pra cá e cola na área amanhã que a gente vamo dar cabo dotrampo hoje. – Ele a fitou com desconfiança e falou com agressividade: – E não tenta me passara perna que eu vou na tua cola, maluca! Tu é vizinha da minha irmã e sei onde te caçar, táligada? O bagulho é na moral. Tem que ser na responsa, se tu vacilar comigo eu te pego! Vouatrás de tu nem que seja na casa do caraio!

A elocução final soou como uma ameaça e Ana esqueceu por um instante o hálito podredo homem para ater-se somente ao tom ameaçador de suas palavras. Engoliu o medo edissimulou o nervosismo, enfrentando o peso da mirada de seu contratado.

– Você não precisa se preocupar. Amanhã nessa mesma hora estarei aqui com os outroscinquenta reais, mas não esqueça: O susto deve ser grande!

Ao dizer isso, saiu trêmula, desejando não estar na pele de Rita de Cássia Castanheirasquando eles a encontrassem.

Rita de Cássia estava prestes a sair de casa para o trabalho quando foi abordada pelos

dois marginais. Antes mesmo de conseguir passar a chave na porta, dois homens a empurraramcom truculência de volta para dentro. Ao começar a gritar pedindo ajuda, sua boca foi tapadaviolentamente por uma mão áspera e suja.

– Cala a boca, piranha! – Um homem com hálito de fossa a empurrou com truculência,fazendo-a cair por cima da mesinha quadrada da sala.

Rita começou a chorar um pranto abafado de desespero. Sem saber como controlar opânico que fez seu corpo inteiro tremer, de repente chorou para dentro em absoluto silêncio,fazendo o impossível para não aborrecer os bandidos com seus soluços. Preocupada pela quedaque sofreu, colocou a mão na barriga temendo que seu filho não suportasse semelhantesobressalto.

Inexperiente, sem saber qual comportamento adotar frente à situação, esperando aindaque os bandidos se apiedassem e não a vissem como inimiga, pensava apenas em proteger aprópria vida quando disse:

– Levem tudo, ok? – Ela estendeu a bolsa para eles – Aqui, óh! Tem dinheiro na minhacarteira. Peguem, peguem, podem abrir... Mas não me machuquem, tá? Vocês estão com fome?

Rita percebeu que seus visitantes estavam drogados, pois se comportavam selvagemente,vasculhando gavetas e prateleiras, sem prestar qualquer atenção nela ou nas palavras que dizia.Era como se ela não estivesse ali. Seu papel na cena ademais de vítima rendida, era apenas a deexpectadora impotente. Achou melhor ficar quieta e esperar que os marginais fizessem a limpana casa, fingindo-se de invisível. Provavelmente buscavam dinheiro para drogas, cogitou comaflição, entendendo que a melhor (e única) ação que deveria tomar, era fazendo nada. Assaltosdesse tipo tinham se tornado comum na região, ainda que não tivesse previsto ser refém delesalgum dia. A posição de ler sobre crimes nos jornais era muito mais agradável do que participardireta ou indiretamente deles. Encolheu-se em um canto, lutando para controlar a respiraçãoofegante, contando os segundos na espera que logo tudo estivesse acabado. Estava tão assustadaque teve a impressão de que os olhos lhe saíam da face. Assistiu calada quando o homemdesdentado esvaziou sua bolsa e pegou o pouco que havia na carteira, depois de esvaziar a caixade trocados de cima da estante, enchendo o bolso com moedas e notas pequenas. Enquanto ohomem sem dentes continuou vasculhando a sala e bagunçando tudo com a exaltação primitivade um selvagem, o outro lambeu os beiços ao olhar para ela, parecendo finalmente perceber suapresença.

Rita evitou encará-lo, embora o bandido tenha se esparramado no sofá frente a ela,estudando-a com seus olhos aloucados. Encolhida em um canto que parecia ficar a cada segundomenor, olhou de descanteio para o homem. Um escalafrio pavoroso fervilhou em seu sanguequando o marginal, com a cara deformada por cicatrizes, sorriu para ela mostrando os dentespodres e pontiagudos como um serrote, e os olhos embriagados de malícia. Frente tamanhaameaça, o tempo fez-se interminável e sufocante. Ser encarada pelo monstro desconhecido dessaforma truanesca, além de desconfortável e intimidante, deixava o momento ainda mais perigoso.Rita notou que finalmente o caçador enfastiou-se de brincar com sua presa; pois depois de passara língua pela boca, deixou-se cair propositalmente ao chão, rastejando até onde ela estava semdesviar a mirada deforme de seus olhos.

Rita de Cássia olhou para a porta na intenção de correr, mas o bandido a agarrou antesmesmo que pudesse se levantar do chão.

Ana voltou no outro dia à favela do Bratac para cumprir sua parte no acordo e saber doresultado. Seu coração batia irregular, oscilante entre o medo de encontrar os dois marginais e aansiedade por saber se tudo terminou como combinado.

Ouvia as histórias sobre Nóia Cabeção desde tempos. Há mais ou menos seis anos oconhecera através de sua vizinha e amiga Fátima, irmã dele. Foi um jantar de Natal; váriaspessoas do bairro se juntaram para uma ceia comunitária, onde cada família levou um pratoespecial e uma sobremesa. Fazia alguns meses que Nóia Cabeção começara a revender drogaspela vizinhança, e por isso já desde aqueles tempos, Nóia era mal visto no bairro. Mas porconsideração a Fátima, essa mulher tão guerreira e prestativa (e também por ser Natal, época deunião e bondade), ninguém fez objeções quanto à presença dele. Até onde Ana lembrava (apesarde não entender muito bem sobre o assunto de drogas) era apenas maconha o que Cabeçãovendia, mas o mercado não tardou a prosperar e o jovem empresário assumiu negócios maisambiciosos. Nem bem começou a distribuir cocaína, logo no segundo mês, Nóia ignorou a regraque o proibia terminantemente de consumir o próprio produto, e em uma noite qualquer detormenta, consumiu a mercadoria inteiro sozinho. A aventura o levou à overdose e internação nohospital por cinco semanas e a uma clínica psiquiátrica por seis meses. Quando foi liberado(mais de meio ano depois do incidente), os donos da cocaína mostraram não ter esquecido oprejuízo, e o encalçaram depressa. No entanto, Cabeção já não tinha como devolver a droga emuito menos pagar o que devia. Seus bolsos estavam tão limpos quanto sua mente. Haviacomeçado a ensaiar seu discurso desde que aprendera a ficar sóbrio (forçadamente) na clínica,mas sequer teve tempo de pedir uma nova oportunidade ou explicar-se. Quando os traficantesencontraram a toca onde morava, quebraram-lhe os dedos das mãos sem prévio aviso e socaramsua cabeça no chão até parte do crânio romper. Dado por morto, seu corpo foi deixado ao relento,abandonado às margens do Lago Igapó para os abutres.

Cabeção foi encontrado por pescadores que o levaram ao hospital entre a vida e a morte(muito mais morto do que vivo). Durante a longa internação, dessa vez em estado de comaabsoluto, os médicos atestaram que embora sua sobrevivência fosse prodigiosa, parte de suassinapses nervosas estavam destruídas. Nóia Cabeção jamais seria o mesmo.

Ao receber alta, Cabeção levantou uma grana com a família e viajou para São Paulo nointuito de recomeçar do zero. Supostamente, um morto não deve nada a ninguém; por isso tinhaesperanças de seu nome logo cair no esquecimento. Quando a poeira estivesse baixa e seu nometão morto quanto aquele corpo jogado às margens do Igapó, regressaria das cinzas.Desempregado e com pouquíssimo dinheiro, submetido às ruas da capital paulista, não tardou aconhecer a Cracolândia (o reduto do crack), no centro velho da cidade. A droga teve efeitoimediato e devastador sobre sua vida; e durante esse período, foi sua grande e única conselheira.Casado com o crack em comunhão universal de bens acabou por assinar seu contrato irrevogávelde indigência, creditado à categoria de cidadão anônimo do mundo. Vivendo agora em umuniverso paralelo e virtual, com um rosto deformado e sem nome, o real não fazia mais parte desuas faculdades, e assim perdeu o contato com a esposa e as três filhas. Foi preso em São Paulotrês vezes, mas na última conseguiu fugir da penitenciária após uma rebelião junto com váriospresos. Voltou para Londrina com algumas pedras de crack e escondeu-se na favela do Bratacpara vendê-las, sendo ele mesmo seu principal cliente.

Ana conseguiu o endereço dele com Fátima. Disse que precisava prestar um favor a um

amigo, alguém que queria simplesmente comprar um pouco de maconha para fazer um bolo e se

divertir. Encontrou Cabeção pela primeira vez após tantos anos, fazia uma semana.Ao drogado explicou o caso. Ainda que ele não parecesse interessado em suas

discórdias, alegou ser Rita de Cássia a amante de seu marido, e por isso desejava aplicar-lhe umaboa lição moral e punitiva. Por cogitar a possibilidade de o marginal ainda ter “princípios” enegar-se a assustar uma mulher grávida, Ana omitiu essa informação. Sem vacilar, Cabeçãoaceitou dar um susto na galinha e cobrou cem reais pelo serviço.

Fez o sinal da cruz antes de entrar pela porta daquela casa outra vez. Cabeção já a

esperava drogado e eufórico, sentado em uma cadeira na beirada da porta.Objetiva, foi direto ao assunto quando perguntou:– E então? Deu tudo certo? – Pelo olhar envenenado que recebeu do bandido, temeu a

resposta. Imediatamente entregou o dinheiro, em uma tentativa de evidenciar que não desejavapressioná-lo de nenhuma forma.

Lentamente, Nóia se levantou e sorriu com seus dentes negros de crocodilo, entrando nacozinha. Depois de abrir a portinha de um armário caindo aos pedaços, retirou um embrulho dedentro dele e o estendeu.

Ana desembrulhou o lenço imundo de pano, com certo asco e receio. Seu coraçãoprecipitou no peito quando descobriu o conteúdo. Dentro do tecido havia um dedo de mulher.

Nóia enfiou o dinheiro na cueca antes de fazê-la sentir seu bafo de latrina quando falouorgulhoso, praticamente encostado ao rosto dela:

– E agora? Que que tu acha, maluca? Demo um susto na piranha ou não demo? Masnem adianta ficar de olho no bagulho, porque o anel que tinha nesse dedo já vendi, tá ligada?

As têmporas dela latejaram tão forte que por pouco não caiu. Em um ato involuntáriojogou o dedo para cima e correu depois de soltar um grito que continuou badalando em suacabeça, mesmo depois de horas. Ainda escutava a própria voz enaltecida em um brado sufocante.Ainda sentia a aflição latente que o órgão embrulhado no pano sujo lhe causou. Abandonou olugar sem olhar para trás, fugindo da própria culpa; da responsabilidade e do dedo amputado quesegurou nas mãos.

Fugia do diabo ou de si mesma. No devaneio de suas ações, parecia-lhe que os dois eramapenas um. Por mais que corresse a toda velocidade e tentasse justificar racionalmente seus atos,não podia desmembrá-los uns dos outros: a culpa e a crueldade. A covardia e a loucura. Odemônio e a mulher traída. Todo o mal em uma mesma pessoa.

Tentou acalmar-se quando chegou ao Terminal rodoviário. Dos olhos aos dedos dos

pés, tudo nela tremia. Ainda tinha a visão do dedo estéril enrolado no lenço, e as presas escuras epontiagudas do drogado sorrindo à sua frente. Fazia parte do espetáculo e não conseguia sairdesse cenário mortífero e cruel, ainda que negasse covardemente sua responsabilidade naviolência. Por que se sentia tão aflita e culpada? Não conseguia entender, afinal, foi a mentora docrime. Deveria saber que susto nos ouvidos de um bandido perigoso, davam margens a múltiplasinterpretações. Um susto varia desde gritar um buuuuuuuu nas costas de alguém desprevenido(que coloca a mão no coração disparado e logo acha graça), até cortar-lhe um dedo. Aí está aproeza do subjetivo: dar asas, sem impor limites, à imaginação! Por mais que tentasse sejustificar, afagando a própria consciência com baboseiras calhordas do tipo: “Eu nunca mandeicortar o dedo de ninguém!” ou “Cortar o dedo de Rita não estava nos planos!” ou “Isso nunca mepassou pela cabeça! Jamais faria algo assim com um ser humano...!”, desde o começo soube quehavia um risco maior quando atuou, indiretamente (ou diretamente?) com bandoleiros...

Cortaram um dedo da garota, mas também poderiam ter-lhe cortado a cabeça. De uma forma oude outra era ela o cabeça da operação. Participou na “teoria”, abandonando o ato à mercêimaginativa do sujeito. Deixou-os independente para agir, operando atrás das cortinas como osujeito oculto da peça. Sua atuação ficou no implícito da sentença: “Pagou-se aos bandidos paradarem um susto na grávida!”. Quem pagou? Ana pagou. Se o susto que encomendou não tivessedeixado (ou nesse caso, tirado) alguma amostra, então, certamente esse serviço não teria sidoserviço, e agora estaria exigindo seus direitos de consumidor lesado: Não pelo excesso debrutalidade, mas pela falta dela. Justificar-se através do erro na interpretação dos bandidos,ajudava a aliviar toda e qualquer culpa criminosa e moral.

Conhecia o currículo do irmão de sua vizinha. Nóia Cabeção: drogado, foragido enotório psicopata; diagnosticado com problemas mentais e como “pessoa perigosa eirrecuperável”. O que mais haviam feito com a garota? Deveria ter perguntado antes de saircorrendo da caixa de fósforos feito louca... Quantos gritos são necessários para desmembrar umdedo da própria mão? Em que momento Rita atingiu o ápice de desespero: Quando a abordaraminicialmente, ou quando a abandonaram levando algo que lhe pertencia genética e intimamente?Eram questões que não deixava de levantar cada vez que revivia a cena colocando-se no lugar davítima. Sofrimento e dor! Esse foi o preço que cobrou de Antônio, e ele o sentiria através dosolhos e da carne de Rita.

No alto de sua reflexão, associou um fato irônico: Agora tanto seu marido quanto Ritade Cássia eram mancos de um dedo! Antônio havia sido vítima de seu próprio filho, e Rita deCássia, dela. A partir desse momento abandonava o papel indigesto de vítima traída eabandonada, para tomar um lugar mais importante na trama: Vilã e megera. Perigosa e alucinada.Temível e louca. Ao ser cúmplice e mandante do crime, tornava-se tão psicopata quanto NóiaCabeção e o amigo desdentado dele.

Ao lembrar-se do gato que Tomás assou no forno, Ana começou a entender finalmente aatitude que nem a razão ou a loucura conseguiam explicar: Seu filho foi movido por ciúmes edesespero ao queimar o bichinho vivo; entretanto, ainda era uma criança e poderia ser perdoado.Mas e quanto ela? Quem perdoaria uma mulher adulta, em posse de suas faculdades mentais,autora (ou coautora) de um crime? Tomás herdou um gene malvado que, apesar de não conhecê-lo direito, Ana sabia que estava ali: Dentro dela, passado diretamente a Tomás desde seu ventre.Tanto Antônio, quanto seu filho e Rita de Cássia haviam sido vítimas em suas mãos. Ao ter ummembro do corpo amputado violentamente, Rita de Cássia não devia ter perdido somente o bebêque esperava, mas também a dignidade, a confiança e a fé nas pessoas; algo de dentro e foradela: sentimentos e virtudes dos quais deixava de ser dona.

Ao mesmo tempo em que se via carrasca, Ana também se sentia refém de si própria.Primeiro, castigou seu corpo e envenenou a mente de todas as formas; e se isso não bastasse,agora carregava a culpa de um crime. Escutaria continuamente os gritos de Rita em sua cabeça;viveria de formas diferentes e ininterruptas a dor e o sofrimento que sequer viu.

Castigou e foi castigada no mesmo jogo. Todos pagaram através da consequência dospróprios atos, ou apenas dos atos dela?

A consciência decretada Culpada era o preço com o qual teria que viver. Levou mais ou menos duas semanas para o dolo de Ana lhe dar uma trégua e o sono

voltar à normalidade. Tinha um filho para sustentar e alguém por quem viver e se preocupar. Erahora de cair na real e levantar a cabeça! Tomás era uma criança boa; desde que ambos foram

abandonados pelo homem da casa, o menino empenhou-se em fazer as tarefas domésticas paraagradá-la, enquanto ela, ingrata e egoísta, vivia no mundo da lua, concentrada em sofrer porproblemas que já não tinham solução. Ana se dava conta de que sequer comia com decência. Pornão ter fome, às vezes esquecia-se de alimentar o próprio filho. Em poucos meses liquidouconsideravelmente a poupança que levou anos para construir; e ao que tudo indicava, nãopoderia mais contar com o apoio de Antônio financeiramente. Buscaria um emprego na casaonde sua mãe trabalhou por tantos anos e seria independente. Estava cansada de viver com culpae sentir-se negligente. Era hora de cuidar de Tomás e da própria vida.

Dois meses depois do ocorrido com Rita, e várias noites vagando na escuridão sem

sono, Ana aceitou um convite para sair de casa. Estivera à noite anterior com sua vizinha Fátimae mais duas amigas. As quatro mulheres combinavam na idade, nas ideias e no estado civil:Desquitadas! Encontraram-se na casa de Fátima para jantar. Fizeram repolho roxo refogado,costela de porco cozida, purê de batatas e arroz para acompanhar o banquete. Há tempos Ana nãocomia tão bem. Depois da janta, tomaram vinho de caixinha e comeram salame imitação italiano,escutando Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Dorival Caymmi. As lobas solitárias (elevemente altas de vinho) falaram sobre relações, da própria vida, e conseguiram ao final danoite, fazer piadas e rir sobre si mesmas. Eram mulheres sozinhas e desimpedidas com históriasde amor extraordinariamente mal sucedidas. Compartilhavam a coincidência de já teremexperimentado o abandono, a traição, e a desgraça amorosa de um homem: seus homens. Nadamais lhes restava que tripudiar sobre os hábitos, costumes e formas masculinas. Embora ao finalde cada praga e maldição que jogavam contra eles, acabavam confessando, contraditoriamente,que ainda esperavam pelo príncipe encantado e que Deus as livrasse do mal de morreremsolteironas.

Ana soube por Fátima, que Cabeção fora assassinado em uma briga de rua três semanasantes. Ao ouvir a notícia, apesar da dor e os olhos molhados que viu no rosto de sua amiga, nãopôde deixar de respirar aliviada. Se havia alguma prova viva que a ligava ao atentado contra Ritade Cássia, agora, essa prova estava morta e enterrada.

– Todo mundo aqui sabe: final de vagabundo é no xadrez ou embaixo da terra! – DisseFátima, friamente, depois de enxugar uma lágrima de pesar e ressentimento. Apesar de lamentarprofundamente a morte de seu irmão, jamais poderia perdoar e entender os motivos que olevaram a jogar toda uma vida na lata do lixo.

Ana escutou outras desgraças familiares que abateram a vida daquelas mulheres, mas emnenhum momento confiou revelar seus próprios segredos. Ouviu muito mais do que falou,circunspecta e propositalmente.

Quando Simone contou sobre um menino que virou travesti porque vivia embaixo dasaia da mãe controladora, sem nunca ter tido contato com uma figura masculina influente, asantenas de Ana vibraram em alta tensão.

– Rafael agora é conhecido como Cibele!Susana não pareceu nem um pouquinho admirada por isso:– Ora, não sei da onde tiraram a ideia que somos o sexo frágil! Meu Deus! Isso é o

mesmo que dizer que o caçador é mais delicado que a caça! As mulheres são dominadorasporque os homens são presas domináveis; alguém discorda? Ainda que eles não percebam,somos nós quem ditamos as regras e instauramos as ordens. Só não somos os machos da relaçãoporque embora mandonas não damos porrada! E porque não é a vagina o símbolo viril domundo, mas o pau!

Sem entender o motivo, Ana viu Tomás no relato do garoto travesti, e estremeceu.Talvez a comparação fosse absurda, mas não pagaria para ver. Tomás não teria a história deRafael para contar.

Seu filho teria um novo pai. Era a promessa que fazia. Era seu dever. Ana voltou ao bar onde conheceu Uzias. Pagou a conta que devia ao dono e

desculpou-se, dizendo que no dia em que passou mal lá (desprezou qualquer referência aovômito), não havia se alimentado direito. Um pouco contrariado ao vê-la, mas feliz por receber odinheiro que julgou perdido, o dono do bar sorriu exibindo seus dentes amarelos. Ana sentou decostas para os homens que jogavam dominó logo atrás dela, e pediu uma cerveja. Antes quegerasse desconfiança, preferiu pagar adiantado.

Estava prestes a perguntar por “Cuzão” (seu escolhido para assumir o lugar de Antôniocomo marido e pai para Tomás), quando o próprio apareceu. Dessa vez, trajando camisa polo esapatos, não deixava as tatuagens à vista.

– Uai, olha só quem está aqui! Minha princesa voltou! – Exclamou quando a viu, dando-lhe um beijo com intimidade no rosto.

– Oi Uzias! Tudo bem? – Ana perguntou e sorveu um gole de cerveja, dissimulando oembaraço por ter sido beijada na bochecha onde passou blush.

– Melhor agora que você está aqui, princesinha!Ai, quanta falta de criatividade nesses galanteios repetitivos e baratos! Pensou

contrariada, porém forjando um sorriso rendido.Retirara um pouco de dinheiro do banco antes de chegar ao bar, sentindo-se um pouco

aflita pela forma como vinha eliminando o valor da parca poupança. Se Uzias fosse mesmoentrar em sua vida, então ele teria que arranjar um trabalho melhor, ponderou; pois não iriasustentar vagabundo. Sequer podia sustentar a si mesma e ao filho, quanto mais colocar maisuma boca dentro de casa para comer (ainda que tivesse planos e pretensões importantes com essehomem).

Decidira levar um pai para Tomás, consciente de estar fora das condições de exigir ouesperar muito de um homem. Reconhecia que era pobre, beirava aos trinta anos; tinha um filhoquase adolescente, não possuía profissão ou emprego fixo, muito menos estudo... De que formapoderia esperar que a vida lhe brindasse um príncipe encantado? Não. Se fosse esperta o bastanteagarraria a oportunidade que lhe apareceu, não deixando Cuzão escapar de suas garras.“Escolher” era um luxo sofisticado e exigente demais para sua condição de carência e desespero.Que homem em pleno juízo morreria de amores por ela? Uma mulher feia e abandonada. Essaera a imagem que via todos os dias através do espelho quando se refletia. Encarava o abandonocomo uma marca na testa. Reprovada. Foi testada, usada, e eliminada tal qual refugo ou umapeça obsoleta de fábrica; fora de moda, gasta, deficiente... Poderia ter tido uma vida útil maislonga, e até mesmo vitalícia na condição de esposa, se fosse outra, se tivesse (ou não tivesse)determinadas qualidades e vícios. Mas era inapta para a função. Não havia se reprovado; alguéma reprovou! Igual na escola quando o aluno faz a prova de fim de ano e não atinge a média. Foiusada por Antônio como um produto qualquer, e descartada quando seu prazo de validadechegou ao fim.

Acreditava em destino e defendia a ideia de nada acontecer por acaso. Por algum motivoUzias apareceu em sua vida; e não perderia a oportunidade de averiguar porque seus caminhos secruzaram.

Tomou a precaução de se alimentar antes de sair de casa e beber apenas cerveja em

pequenos sorvos para não cometer o mesmo vexame da última vez.Estavam na terceira garrafa de cerveja quando ela perguntou:– E aí, você não vai me levar para conhecer sua casa?Ele acendia um cigarro nesse momento.– Você quer conhecer o meu palácio? – Perguntou com surpresa nos olhos

desprevenidos, enquanto Ana riu como se tivesse escutado uma grande piada.– Para um palácio acho que ainda falta a princesa! Ana pagou a conta e então deixaram o bar discretamente, três passos afastados um do

outro. Tal cautela era uma tolice, ela sabia. Ambos ali eram adultos, e não deviam nada aninguém. Se os cachaceiros quisessem pensar que ela e Uzias saiam juntos para trepar, e por quenão? Que pensassem o que bem entendessem, inclusive sobre formicação; o ato mais natural,comum e conhecido de todos, inclusive dos pés de cana solitários e sem amor.

Entraram em uma rua estreita e sem saída. Embora fosse uma viela para ninguém, eraasfaltada e não tinha (ainda não) matagal comendo o cimento. Ao contrário das comuns casascoladas umas nas outras, como Ana lembrava sua própria rua, encontrou casinhas separadas pormuros e o condomínio chamado Pombal, um aglomerado de vários prédios de cinco andares,todos desbotados e começando a encarochar, onde Uzias morava.

Na frente de um minimercado onde não se podia entrar devido à falta de espaço, e osclientes faziam o pedido através de uma janelinha, Uzias sugeriu:

– O que você acha de levarmos umas biritas pra baia?Ana ficou desapontada e não conseguiu disfarçar:Birita? Baia? Ai, ai, ai... Parece que a princesa aqui vai beijar um sapo! Onde está o

galanteio? As mãos suadas? As borboletas no estômago? O frio na barriga? A canção do Elvisde fundo...?

– Você quer mesmo beber? – Afoita por colocar em prática suas imaginaçõesromânticas, averiguou, deixando uma prometedora insinuação no ar.

– Claro! E por que não, princesa? Vamos celebrar nosso reencontro! – Se de fato existiuuma insinuação feminina meio segundo antes, ele não notou.

Irrequieta, Ana percebeu que tanta celebração por nada, levaria sua magra poupança àfalência total. Os planos de ter uma tarde romântica com um desconhecido, o cara que poderiaser a metade de sua laranja, esverdeavam na mesma velocidade com que ela começava a perdero encanto pelo príncipe do Pombal.

Então, por que o destino o colocou em meu caminho?Enquanto Ana insistia em buscar uma lógica para seu destino, o “destino” insistia em se

embriagar.Sem muitos argumentos contra a celebração que tanto o animava, compraram uma

garrafa de vodca e refrigerantes.– Os destilados dão um efeito mais rápido e custam muito menos que cerveja. –

Explicou o sábio encarregando-se de levar as duas sacolas, depois de confirmar o evidente.Uzias abriu o portãozinho para moradores quando chegaram ao Pombal. Entraram no

segundo bloco e subiram as escadas até o terceiro andar, pois não havia elevador.– Você mora sozinho? – Perguntou depois que ele abriu a porta.– Moro com um primo e mais dois camaradas. O apê tem apenas 50 metros quadrados,

mas é que nem coração de mãe, sabe?Ela balançou a cabeça e abriu um sorrisinho amarelo, permitindo o arrependimento

dominá-la por inteira. Onde estava com a cabeça para ir à casa de um biriteiro e ex-drogado deapelido Cuzão, um cara que dividia a caixa de sapatos onde morava com outros três homensigual a um estudante que não tem onde cair morto. Tudo bem que ela também não tinha; e talvezsua condição fosse até pior que a dele, mas mesmo assim sentiu-se humilhada por desprover decondições (ou do direito) de escolher alguém um pouco mais sofisticado.

Sentou-se no sofá da sala e observou o apartamento, enquanto seu amigo preparava asbebidas em uma minúscula cozinha logo ao lado. Havia dois colchões encostados na parede,onde deduziu dormirem os outros moradores. Duas portas logo à frente da sala davam para obanheiro e mais um quarto: “a suíte presidencial do palácio” - riu consigo mesma ao pensarassim - resumiam o cubículo por inteiro. Ela não conseguia imaginar quatro homens adultosmorando ali. O apartamento apresentava cheiro de urina e suor. No chão pairava uma atmosferadensa de pelos, e por todo lado via pó e sujeira, latas de cerveja e caixas de pizza.

– Estamos sozinhos? – Perguntou quando Uzias trouxe as bebidas.– Parece que sim, princesa.Ana se aproximou decidida a beijá-lo e descobrir por fim o sabor dos lábios dele.

Tencionava mostrar-lhe que no mundo existia mais diversão e prazeres que um copo de birita.Encarou-o com os olhos em chamas quando ele apoiou os copos no engradado de cerveja queservia como mesa. Desfrutou a tensão desse momento, antes do beijo, onde seus olhos seestudavam curiosos. Sentia-se como uma fera faminta, um vulcão prestes a explodir.

– Você acha que eu sou atraente? Você me deseja? – Perguntou antes de conduzir a mãodele até seus seios, com os lábios entreabertos, prontos para beijá-lo.

A pergunta e as mãos de Uzias no seio dela o deixaram desconfortável, mas mesmoassim ele respondeu confiante, dissimulando o embaraço, com o galanteio barato que fez Ana serender facilmente.

– Oh, princesa! Quem não desejaria você?Decidida a se entregar e recuperar o tempo que esteve sem um homem, a esquecer-se do

rancor (e amor) por Antônio - e principalmente levar um pai para Tomás - Ana avançou o sinal eo puxou contra si para beijá-lo, mas Uzias a deteve.

– Princesa, não me leva a mal – declarou sem fazer rodeios: – mas eu sou impotente!– Você é O QUE? – Sobressaltada e confusa, mesmo tendo o escutado perfeitamente, ela

iterou. – Impotente? Entendi direito?– Foram as drogas, sabe? Não sei o que aconteceu comigo. Tentei algumas vezes com

outras mulheres... Não funciono mais, estou estragado!– Você nunca procurou um médico?– Que médico, que nada princesa! O que um otário desses pode me falar que eu já não

sei? Maltratei pra cacete minha cachola e meu corpo; essa é só uma parcela do preço...Ana não se deu por derrotada. Precisava levar um pai para Tomás de qualquer jeito e

não estava disposta a perder candidatos em potencial sem antes averiguá-los com critério.Persistente, tornou a puxá-lo com firmeza e o beijou na boca. Cada vez que separavam os lábios,Ana dizia algo sensual e provocante. Uzias correspondia o beijo e as carícias, soltando grunhidosabafados. Em meio ao confronto do desafio sexual, deitou-a no sofá e acariciou lhe o corpo comdelicadeza. Abriu os botões da blusa dela de forma pausada, parecendo apreciar o momento. MasAna estava com pressa de conhecê-lo intimamente, e por isso meteu a mão atrevida dentro dacalça dele, avançando o sinal. Assombrou-se de forma alarmante ao sentir o membro flácido deUzias, e veloz, puxou sua mão para fora como se tivesse levado um choque.

Sem saber o que fazer, seu primeiro impulso foi tentar recompor-se. Ajeitou-se no sofá e

fechou o botão da blusa, sem conseguir dizer uma palavra. Por mais que Uzias tivesse contadocom antecedência que era impotente, Ana sentiu vontade de chorar. Inconscientementeacreditava que a culpa de não ter conseguido excitá-lo era inteiramente dela. Os perversospensamentos voltavam à tona para derrubá-la e puni-la por mais esse fracasso. Sentia-se feia epouco atraente; estava ficando velha e rancorosa. Foi rejeitada pelo próprio marido e trocada poruma garota mais jovem.

De alguma forma, dentro dessa confusão de lembranças e sentimentos, o fato de tercortado indiretamente o dedo da Rita de Cássia a reanimou. Estava prestes a chorar quandosorriu.

– Eu avisei que isso não iria dar certo... Amigos? – Uzias quebrou o silêncio e estendeua mão como se quisesse selar um pacto.

– Amigos! – Ana apertou a mão dele, pegou sua bebida e a levantou para cima. – Vamosbrindar. Hoje é dia de celebração!

Tinham esvaziado meia garrafa de vodca quando alguém meteu a chave na porta.Um homem corpulento, ao redor dos trinta e poucos anos, com a barba escura suja de

cimento e os olhos penetrantes como agulhas, entrou no apartamento trazendo um estojo pesadode ferramentas. Ana ficou maravilhada com o tamanho do indivíduo. Ele parece um guarda-roupa de solteiro! Do jeito que estava vulnerável, era capaz de se apaixonar por guarda-roupas,mesas, armários e tudo que tivesse um artigo masculino antes do substantivo. Além de estarcarente, buscava um homem que servisse de modelo ao filho. Seria formidável se esse Hérculesque entrava pela porta com a barba respingada de cimento fosse um candidato à altura de suaspretensões. O homem acabava de chegar do trabalho; era forte, corpulento, e não tinha qualqueraliança à vista.

– Ana, esse é o meu primo Damião! Damião, essa é a minha amiga Ana!Escutou ser apresentada como “amiga” e se perguntou se Uzias já teria contado algo

sobre a tarde em que se conheceram. Amiga da onde? Ah, minha amiga do bar, aquela quevomitou com cheiro de linguiça!

Estava maravilhada com o homem de barbas para se permitir derrotar por pensamentosde autoflagelação. Ora bolas, quem nunca vomitou na vida? O Uzias como bom ex-drogado, jádeve ter colocado coisas piores de dentro do corpo para fora. Para reconfortar-se ainda mais,pensou: Pelo menos não sou impotente! Existe mulher impotente? Ah sei lá, só sei que eu nãosou! Era uma tática que dava certo. Cada vez que se colocava para baixo, reduzindo-se amigalhas, buscava pessoas mais desgraçadas e com menos sorte que ela.

Damião se sentou ao lado de Ana e os ajudou a liquidar a garrafa de vodca. Seguiram atéo cair da noite, contando anedotas e trivialidades do cotidiano. Ana descobriu uma forma de estarmais íntima de Damião ao passar o cigarro que fumava para ele. Com o simples ato, trocava nãoapenas saliva por tabela, mas também confiança e olhares. Se ele não fosse besta, perceberia suaspistas e insinuações.

Ao cair da noite Uzias foi para o quarto, deixando Ana e Damião sozinhos. Ana estavatão à vontade que esqueceu o tempo. Quando olhou para o relógio soube imediatamente quedeveria correr para casa, pois Tomás estava sozinho, sem a mínima ideia de seu paradeiro. Aoavisar Damião que iria embora, escutou a voz travada. A língua se enrolou dentro da própriaboca e sentiu-se ridícula por estar bêbada na presença de um homem extremamente charmoso.

Parecendo não se importar com o fato da bebedeira, muito ao contrário, Damião a puxoucontra ele e a beijou na boca abruptamente, de forma tão desesperada que parecia que o mundo

estava por terminar. Embora alta da bebida e ao mesmo tempo deslumbrada com sua aventuraventurosa, sabia que precisava ir embora.

Damião a levou até a parada, caminhando com ela de mãos dadas. Enquanto esperavamo ônibus, os beijos alucinados prosseguiram em um ritmo de tirar o fôlego e chamar a atenção dequem passava por ali. Quando Ana subiu na condução, sentou no primeiro banco do veículo eacenou pela janela, sentindo a boca queimar. Seu queixo estava assado devido a barba deDamião que a roçou sem piedade por mais de meia hora consecutiva. Embriagada e eufórica,notou-se nas nuvens. Havia beijado dois homens diferentes em um único dia; isso era um méritopara alguém que até então se sentia derrotada. Antônio era passado. Em breve daria um jeito defazê-lo saber que havia encontrado um amor de verdade. Um homem em tamanho GG. Tomásteria um pai para se espelhar e aprender. Ele não seria um pobre perdido criado embaixo das asasda mãe.

Capítulo 9 O fogo que Damião despertou em Ana, logo no início, apagou-se rapidamente. Damião

era rápido na cama, apresentava ejaculação precoce e apesar de ser um homem gigante, exibiaum pênis ridiculamente pequeno. Ele não a procurava com frequência e alegava que mulheresque se prezam não devem pedir sexo ao homem. Ana se sentia pouco a vontade de se insinuar eacostumou-se a esperar pacientemente por alguma iniciativa que partisse dele, mas depois doterceiro mês juntos, uma iniciativa por parte de Damião era uma ação cada vez mais rara. Comofaltava tempo para chegar ao clímax quando faziam amor (nas poucas vezes que tinhamrelações), Ana representava o prazer que não sentia, de forma teatral. Quando percebeu quebuscava complacer apenas ao prazer dele, sem coragem de ensiná-lo onde tocá-la, como fazê-lo,e ainda, com medo de pedir-lhe que não fosse tão breve, o desejo sexual esfriou. Conformou-secom a ideia de ter a companhia de Damião por perto e contar com algum auxílio financeirodentro de casa; de Tomás ter a imagem de um homem forte para se espelhar e crescer, mas emrelação ao sexo, não mantinha mais expectativas. Achou irônica a própria conjectura: O sexo fazparte da vida do matrimônio, mas em geral, os solteiros transam muito mais que os casados.

Damião amava Ana que ainda amava Antônio que amava Rita. Confuso? Embora um

pouco rude, Damião costumava fazer declarações à Ana, dizendo que gostaria de ficar com elapara sempre. Ana se enternecia, mas pensava: “Por que não é Antônio que me diz essas palavrase que deseja ficar comigo até a morte?” Como não tinha opções e desejava desesperadamenteque Tomás tivesse um pai (ainda que suplente), jurou a si mesma que respeitaria Damião daforma que ele merecia. Jamais iria traí-lo e faria das tripas coração para esquecer definitivamenteo marido infiel.

Fazia três, quatro, cinco meses que moravam juntos? Ela perdera a noção do tempo.Fatos recentes em sua vida pareciam ter já mais de um século. Tinha a impressão de estar há anoscom Damião, enquanto parecia que Antônio ainda não havia partido.

Embora a influência positiva que Damião gerava dentro da própria casa, Tomás nãoconseguia confiar nele. Conhecia Tomás melhor que ninguém. Ele era genioso e necessitava serdomado como uma fera, mas o tempo o amansaria. Ana se esforçava para fazer vista grossa eignorar as queixas do filho, pois sabia que Damião era um homem bom, ainda que um poucorude.

Damião era cristão praticante e zelava pela moral e a decência, assim como protegia onome de Deus acima de tudo. Certas atitudes de Damião irritavam Ana de uma maneira bastantegritante: seu machismo indolente, as partidas insuportáveis de futebol na televisão, amesquinharia, o fanatismo pelas “coisas certas”... Mas dissimulava o desagrado ajustandosempre a importância maior que era ter um homem dentro de casa.

Começavam a fazer amigos em comum, como Madalena e o marido dela. Cuzão seguiavisitando-os com assiduidade, assim como suas vizinhas também não deixaram de aparecerdesde que se separara de Antônio. As pessoas do grupo que frequentavam a casa de Anacoincidiam em aspectos como: situação de trabalho esporádico, pouco estudo e muita birita.Entre o grupo de amigos existiam solteiros e casados. O problema era que, vez por outra, davabriga. Às vezes porque um solteiro se engraçava com a mulher do outro, ou porque o outro seengraçava com a mulher de alguém, mas na maioria das vezes ninguém se engraçava com

ninguém, era apenas suspeita de bêbado levada a cabo. Sempre havia um agente de rixa, equando não havia eles o encontravam; fossem por mulheres, brincadeiras ou pequenassacanagens (que costumavam causar graça no começo da noite, mas ofender no final). Pretextospequenos ou grandes. Relevantes ou bobos. Depois de certa quantidade de álcool, a briga estavaarmada. Ana não refletia apenas sobre a irracionalidade de tudo isso, mas também sobre a faltade motivos que levavam casais, amigos e conhecidos, homens e mulheres; a brigarem uns comos outros, depois de terem passado horas rindo. Em um momento eram os melhores amigos domundo, no outro tentavam se matar. Em uma hora riam as gargalhadas, na outra choravam aosprantos. Taquicardia e letargia. Anorexia e um sapo no estômago. Se Ana fumava apenas trêscigarros em um dia normal, quando se potencializava com a bebida, fumava pelo menos dezvezes mais. Sentia os efeitos relaxantes do álcool logo no primeiro trago, mas depois, mesmotendo a sede saciada, não conseguia parar de beber. Queria mais dessa felicidade que a fazia verseus problemas tão sem importância. Ria e chorava. Sentia-se feliz e deprimida. Amava a vida etinha vontade de dançar, assim como, ao passar dos limites, odiava-se e pensava em morrer.Todas as sextas-feiras alguém terminava vomitando no banheiro, e não raras foram às vezes a serela a protagonista. Acordava no dia seguinte jurando em nome de Deus não voltar a beber, masalguns dias depois de passada a ressaca, na primeira oportunidade, tornava a repetir e bebianovamente.

Embora a maioria dos amigos não tivesse fome nem mesmo para engolir um grão deervilha quando enchiam a cara, Damião era o único que mastigava e bebia ao mesmo tempo. Anajamais o escutou dizer que não tinha apetite. Na verdade, o único apetite que lhe faltava era osexual, refletiu um pouco desiludida. Entre eles qualquer motivo era razão suficiente paracomemorar com vodca: o dente de lente do filho que caíra, um novo serviço, a compra de umsapato, o começo ou o término de um relacionamento... Sempre encontravam um nascimentopara celebrar ou um falecimento para homenagear. Na falta de boas razões comemoravamtambém as desgraças. Tocavam a vida dia após dia sem muitas expectativas, sem esperar umamudança radical no destino ou algo extraordinário do futuro. E assim seguiam as sextas, e àsvezes sábados também. Tal qual o cotidiano existencial: Rindo e chorando. Caindo e levantando.Socorrendo e sendo socorridos. Comemorando ou lamentando... Mas sempre bebendo.

Depois de fazer compras na feira, Ana resolveu não pegar a condução, e voltar para

casa a pé. Passou por frente da IURD e viu a maravilhosa igreja abarrotada de fieis. O cultoainda não havia começado. Na calçada, uma mulher com os cabelos compridos, repartidos aomeio, usando saia comprida e blusa fechada até o pescoço, entregava papeis da igreja econvidava os transeuntes que por ali passavam a procurarem a igreja, discursando sobre osproblemas comuns da humanidade: dependência de drogas, falta de amor e dinheiro,desemprego, infelicidade... Com a promessa e a garantia absoluta de que a igreja IURD resolviaqualquer “mal”, o convite da beata era quase uma coação. Ana se deteve por um instante eestudou a mulher, recordando-se de um passado não tão distante. Por onde andaria aquelagente? Estariam ainda no mesmo templo exorcizando meninas perversas? Perguntou-se,pensando em entrar ali apenas por curiosidade. Mas ao invés de entrar, simplesmente olhou aigreja pelo lado de fora, contemplando a beleza opulenta do lugar.

Caminhando ainda pela calçada, frente à igreja, escutou uma voz tremendamentefamiliar chamar por seu nome:

– Ana?Ela se virou e seus olhos brilharam quando viu Antônio. Seu ex-marido havia

emagrecido e os cabelos demonstravam o triplo da quantidade de fios brancos desde a última vezque estiveram juntos.

– Uau! Quanto tempo! – Ela disse, sem saber ao certo como reagir, vendo-se novamentecom treze anos, reconhecendo a mesma fascinação de quando era uma menina. – Como vocêestá?

– Bem, muito bem! E você? – Ele também parecia admirado e feliz por vê-la.– Eu estou ótima! – Ana procurou a garota de Antônio com os olhos, com medo de ser

reconhecida. Por mais que cabeção estivesse morto e não existisse mais chance de ser vinculadaà tramoia, havia a possibilidade de Rita reconhecê-la como a “mulher do currículo que nãovoltou”; associar a visita mentirosa ao crime, e então implicá-la. A polícia investigaria desdeoutro ponto de vista e a encontraria no final do quebra cabeças, percebendo que o vandalismofora obra encomendada por uma mulher traída e despeitada. Fazia todo sentido! No primeirointerrogatório que sofresse, abriria o jogo inteiro, de uma vez só.

Ao seguir essa linha de pensamento, estremeceu.– Como está o Tomás? – Antônio perguntou sem notar a aflição que se apoderou dela.– Ele está bem! – Contestou de forma cortante, sendo ainda mais seca depois: – Mas...

Eu preciso ir embora! Foi bom ver você. Adeus.Antônio se adiantou e a segurou pelo braço, delicadamente. Ana viu tristeza nos olhos

dele quando o escutou perguntar:– Ana? Você ainda não me perdoou, não é? Se você soubesse o quanto eu lamento; o

quanto me arrependo...– Como? Arrependido? – Ela se surpreendeu ao ponto de esquecer Rita e sua situação

criminal. – Onde está sua esposa? – Perguntou, tentando não mostrar desdém quando pronuncioua palavra “esposa”. – Você não está feliz?

– Nós não estamos mais juntos... Eu a deixei. – Ele fez uma pausa. Parecia desesperadoao mesmo tempo em que a encarava com carinho. – Eu sinto muita saudade de casa e de você!

Ana podia ser estúpida em muitos aspectos, ela mesma concluiu. Estava cansada de malinterpretar palavras e os sentimentos das pessoas, principalmente Antônio, o homem queacreditava conhecer tão bem. Eles não estão mais juntos? O que ele quer dizer com esse negóciode “lamento”? Antônio está com saudades de mim? Será que ele acha que seremos amantes?

Buscando desconsiderar tudo que ouviu, disse de forma despretensiosa apenas para ver areação dele:

– Fiquei sabendo que sua esposa está grávida... Você a deixou mesmo assim?Antônio soltou o braço dela, passou a mãos pelos cabelos e começou a encaracolá-los,

como comumente fazia quando ficava nervoso.– Rita não estava mais grávida quando rompemos. Ela perdeu o bebê depois de ter sido

assaltada! Foi algo terrível...Ana percebeu que o ex-marido não desconfiava de nada. Graças a Deus! O panaca

contava sobre o assalto e a perda do bastardinho sem ter a mínima ideia sobre sua participaçãodireta nisso. A informação de que Rita perdera o bebê já era esperada. Que mulher no mundopoderia ter um dedo “amputado” grosseiramente e seguir com uma gravidez recente, ilesa?

Frente à declaração e livre de desconfianças, percebendo que Antônio esperava porqualquer reação de repulsa ou curiosidade, representou um autêntico assombro:

– Oh, isso é terrível, meu Deus! Eu sinto muito... Um assalto? Que calamidade! Nãoestamos mais seguros em lugar nenhum dessa cidade. Esse país é um grande cocô!

– Parece que estamos dentro de uma guerra; prontos para matar ou morrer! – Ele fez

uma pausa, observando Ana com seus olhos tristes, e voltou a tocá-la no braço. Em seguida,colocou para trás uma mecha de cabelos que caía na frente da face dela, e confessou: – Ana, nãopense que eu deixei a Rita só porque ela perdeu o bebê, não foi isso. Você deve ter todas asrazões para me achar um crápula, para pensar que se tive a disposição para abandonar você enosso filho, então, poderia muito bem fazer o mesmo com Rita. – Assumindo um ar de decepção,Antônio prosseguiu falando mais baixo, quase como se contasse um segredo: – Depois de servítima desse assalto covarde e ter perdido o bebê, Rita voltou com o ex-namorado, pai do filhoque ela esperava.

– Como assim, voltou com o namorado? Vocês não viviam como marido e mulher? –Ana se fez de desentendida através de uma perfeita representação de inocência. Apesar de nãogostar da menção do nome “Rita” (preferia que Antônio usasse “aquilo” para se referir a amante,ou apenas “ela”, como se a piranhazinha não tivesse nome próprio), desfrutou de cada palavraque ouviu. Lembrou-se de quando ligou para a fedelha através de um orelhão, e a pirralha encheua boca para falar que Antônio era seu marido. Quem disse que não há justiça nesse mundo? Anafoi abandonada por Antônio. Antônio foi abandonado por Rita. Nada mal, certo? Refletiu,fazendo o impossível para não rir. Já sequer escutava o que Antônio dizia. Mais uma palavra epoderia explodir em uma gargalhada maldosa.

– Ela tinha uma relação com um homem casado que a dispensou quando soube dagravidez. – Ele continuava a contar a história, e Ana tentou acompanhá-lo. Já havia perdido umbom pedaço quando parou para pensar nas casualidades e consequências dessa narrativa.Antônio dizia nesse momento: – Foi mais ou menos a época em que eu a conheci. Quando elamentiu dizendo que teríamos um filho, resolvi assumir a relação e terminar com você. – Antônioviu os olhos plácidos de Ana ganharem chamas. Com receio de prosseguir, falou com uma vozde arrependimento: – Desculpa, Ana! Se você não quiser saber sobre toda essa confusão em queme meti, entendo... Sei que fui um tremendo filho da puta com você!

Ana deveria uma vez mais dissimular comoção com a desgraça dele, ou pelo menosmostrar não estar ofendida por ter sido abandonada e traída devido a uma mulher grávida deoutro. Desejava saber o que havia acontecido, embora por dentro, ainda sentisse vontade desoltar uma gargalhada ou um foguete. Ela o encarou nos olhos marejados e entristecidos,entendendo o motivo de ele ter emagrecido e adquirido tantos fios brancos na pequena fração detempo transcorrida. Aqui se faz aqui se paga, miserável! A justiça pode ser cega, mas não éjumenta (não sempre)!

Esperando que Antônio seguisse confiando-lhe os destaques de sua desgraça, mostroucamaradagem e conivência ao abraçá-lo:

– Pobre Antônio; que tragédia! Você pode me contar tudo! Também fiz minhastrapalhadas quando o persegui no seu trabalho... Lembra? Meu Deus! Estava tão fora de mim!Quando penso o quanto o envergonhei com aquelas cenas, estremeço.

– Não! – Ele objetou firmemente – Você estava tentando proteger o que era seu. Aocontrário de mim que joguei tudo fora!

Nesse momento, o culto na igreja começou. A voz do pastor bradou majestosa atravésdo microfone, e eles escutaram os gritos dos fieis. Afastaram-se duas esquinas em silêncio eentraram em uma lanchonete. Enquanto Antônio tomou um café com leite, Ana pediu umacerveja.

– Não sabia que você bebia! – Observou, admirado.– Socialmente – Ela respondeu sorrindo e enfatizou: – Apenas socialmente!Antônio lhe devolveu o sorriso, e depois de fazer uma pausa acariciando as pequeninas

mãos que segurou com carinho, continuou:– Esperei fazer a coisa certa quando assumi o bebê de Rita. Quer dizer... Nosso bebê... a

criança que achei ser minha.Ana se lembrou do rosto de menina que encontrou na concessionária, notando que

Antônio a poupava de certos detalhes, como por exemplo: a idade de Rita (a pouca idade, querdizer). Atuava como se Rita fosse de fato uma “mulher” e não alguém com idade para ser suafilha. Deveria manter o silêncio e dissimular total desconhecimento para não levantar suspeitas, eainda, ficar indiferente enquanto era acariciada nas mãos. Estava uma pilha de nervos, emboraplainasse um mar de serenidade e compreensão em suas dissimuladas atitudes.

– Como você soube que o bebê não era seu?– Pela própria confissão dela que acabou abrindo o jogo. Rita namorava um cara casado

que se desesperou quando soube da gravidez. Ao meu entender, ela só queria um homem queassumisse o filho que esperava. Por outro lado, se eu puder ser bem sincero, acho que ela atétentou começar algo novo e verdadeiro comigo...

– E então, foi assaltada...– Os bandidos que atacaram Rita, serraram-lhe o anular para pegar o anel que ela usava.

Tentaram tirá-lo a força, mas como ela havia inchado por causa da gravidez, e o anel não saia,acabaram cortando o dedo da coitada.

– Oh, meu Deus! Que horror! Eu nem imagino o que teria feito se estivesse no lugardela! – Ana abriu a boca tão grande, deixando ao mesmo tempo os olhos tão pequenos, quedilatou a jugular. – Serraram o dedo da pobrezinha! Que mundo animal!

Antônio balançou a cabeça, concordando tristemente.– Bem... não preciso entrar em detalhes aqui... Sem ter mais o bebê na barriga,

traumatizada pela violência, vitimada por bandidos, e sem poder encontrar-se com seu amante àsescondidas, ela enlouqueceu e acabou confessando que de fato o bebê não era meu. – Antôniofez uma pausa e beijou as mãos de Ana, como quem beija um santo. – Ana, não quero entrar empormenores e fazê-la participar disso. Se você quer um resumo do que aconteceu: Eu era obabaca perfeito. Pronto! Ela me deu um chute na bunda depois que perdeu o bebê e voltou para oamante; ou quer dizer, nesse caso, eu nem sei se o amante não era eu.

Dessa vez, Ana ficou realmente sobressaltada. Rita perdeu um dedo e a vida que estavadentro dela por minha culpa. Antônio iria descobrir que o filho não era dele de uma forma ou deoutra. Rita não amava Antônio, só queria um pai para o filho, assim como eu não amo Damião,mas quis um pai para Tomás. A tortura de seus pensamentos voltou a remoê-la nesse instante.Rita era tão vítima de um homem quanto ela, buscando proteger somente a “cria”, enquantolutava para permanecer ao lado de quem amava às escondidas, tendo tudo e nada ao mesmotempo. Quando Ana descobriu que Antônio a traía, também lutou para ficar com ele. Mesmosabendo que não era mais desejada, passou por cima do orgulho e do amor próprio. Tê-lo ao seulado e poder amá-lo foi mais importante do que ter respeito por si mesma e fazer o que era certo.O outro lado de seu arrependimento dizia que Rita merecia parte da tortura infligida. Ela rouboumeu homem, destruiu minha vida e mereceu pagar. Apesar de que se eu pudesse voltar notempo, não cometeria esse crime. Se eu fosse menos impaciente e tivesse conseguido esperar,tenho certeza que Antônio teria voltado para mim assim que soube do bastardo que Rita levavano ventre...

– Ana, eu também sei que você está vivendo com um homem em nossa casa...Ela levou um susto com o rumo que os próprios pensamentos tomaram. Por um instante

começou a imaginar a vida novamente ao lado de Antônio, esquecendo-se completamente de

Damião.– Ora, e o que você imaginou? Que eu ficaria o resto da minha vida sofrendo sozinha?– Não, claro que não! Eu não agi certo, e sei disso. Fui egoísta, e reconheço que atuei

feito um irresponsável. Não previ as consequências ao abandonar você e Tomás. Não estoucobrando nada aqui, tenha certeza disso! Você não sabe quantas vezes pensei em procurá-ladesde que me dei conta da bobagem que fiz... Mas tudo terminou tão mal; eu fui tão canalha comvocê, que sempre que pensava em me aproximar, acovardava-me ao mesmo tempo.

– O que você está querendo dizer aqui? Está me pedindo um perdão por ter sido umcafajeste?

– Mais do que isso! Ana... – Ele fez uma pausa e a fitou, inseguro em sugerir: – Sepudéssemos tentar novamente...

O coração de Ana golpeou ligeiro dentro do peito. Ela disfarçou a tremedeira eembaraço, olhando para o copo vazio. Como se não estivesse extremamente surpresa, pediu outracerveja antes de prosseguir a conversa. Não estava preparada nem em sonhos para essemomento. E se ele soubesse o que fiz? Será que ainda me enxergaria como sua ex-esposa,inocente e abandonada?

Aproveitando-se da oportunidade (a primeira até então) onde era vista como vítima,frisou pausadamente:

– Estou vivendo com um homem decente que jamais me trocaria por outra mulher. Vocêacha que posso correr o risco de trocar meu namorado fiel por um ex-marido traidor?

Antônio balançou a cabeça em sinal afirmativo, e fez uma faceta imaculada. Ademonstração brincalhona, expondo silenciosamente que jamais voltaria a cometer o mesmoerro, brilhava em seus olhos arrependidos.

– Não só pode, como deve! Desse erro tirei doutorado, e sei que jamais voltarei acometê-lo. Podemos tentar... O que você acha?

Assim que a garçonete deixou a cerveja, Ana o agarrou pela gola da camisa, entrando noespírito do jogo de forma combativa:

– Vamos tentar, mas dessa vez, se você me deixar por outra, acabo com sua raça!Com uma expressão que mostrava concordar com todas as exigências, ele a beijou na

boca. Damião exercia simbolicamente o papel do marido, e Antônio, que oficialmente ainda

era o marido, exercia o papel de amante. Nas folgas que Ana tinha durante a semana, dizia emcasa que precisava trabalhar, mas ficava com Antônio, na casa que ele comprou para viver comRita.

Os meses passavam, enquanto Ana levava uma vida dupla. Antônio pedia para verTomás, mas ela negava, alegando que deveriam esperar o momento certo. Segundo suasobservações, fazia pouco tempo que Tomás e Damião haviam começado a se dar bem. Ana nãoqueria confundir seu filho, e sequer sabia como explicar o fato de ter virado amante do pai dele.Podia sentir que Tomás começava a gostar de Damião, pois já os flagrara fumando, cozinhando,e até rindo juntos. Tomás levou muito tempo para se acostumar com a ideia de ter outro homemna casa, e principalmente, aceitá-lo. A volta de Antônio (justamente quando o garoto começava aviver pacificamente com Damião) poderia ser um caos. “Reapresentaria” o filho ao pai quandoestivesse preparada, tanto para romper com Damião quanto para enfrentar o questionamento eresistência de Tomás a retomar o status quo.

Ana continuava achando Damião charmoso e interessante. Divertia-se com ele e com o

grupo das sextas-feiras, bebendo. E depois com Antônio, recuperando-se da bebedeira,transando. Possuía tudo o que precisava: Damião, a imagem de homem perfeita para o filho seespelhar; e Antônio, o homem que a esperava durante a semana para saciar e satisfazer sua fomede amor, melhor e de forma mais ardente do que na época em que estavam casados.

Damião

A lacônica históriaDe um homem

Sem barbas

5ª Intenção

Capítulo 10

Damião Ribeiro Dias nasceu no município de Alexânia, Goiás. Filho malquisto deAraci Ribeiro Dias e Benedito Dias, o mais jovem entre dois irmãos homens. Sua mãeidentificava-se com o primeiro filho. Seu pai preferia o filho do meio. Damião, o terceiro filho docasal, sobrou de fora no amor desses pais. Como era o caçula da família, fora acostumado adesempenhar os serviços da casa que ninguém gostava de fazer. Servia como empregado para ospais e os irmãos, que se aproveitavam dele por ter sido o último a chegar.

Damião nasceu com pouco mais de cinco quilos e quase matou sua progenitora aonascer (fato que agravou a antipatia da mãe por ele). Quando completou seis anos, os irmãos, umcom oito e outro com nove anos, eram um palmo de altura menores que ele. Fosse pela inveja daaltura do caçula, ou partidários ao desprezo (ou a falta de amor) que presenciavam por parte damãe, os irmãos e o próprio pai de Damião acostumaram-se a menosprezá-lo também. Damião eragrande, gordo, bastante desengonçado (provavelmente devido ao seu tamanho), e a família diziaque era feio. Sua mãe dirigia a ele a alcunha constante de: “Rolho de poça” e os irmãosraramente o tratavam pelo nome, referindo-se apenas com apelidos: Balofo, baleia,hipopótamo... Acostumados a infligir lhe castigos violentos, os irmãos o amarravam com fios,queimavam lhe a planta dos pés com cigarros e o socavam nos rins e no estômago até nocauteá-lo. Os pais costumavam bater nos filhos com varas, mas somente Damião era amarrado com fiode cobre ao lado da cama por horas, quando devia pagar castigo por alguma travessura maisséria. Sua mãe era beata da igreja. O pai trabalhava como eletricista, mas também era membroativo da paróquia, onde prestava serviços voluntários e exercia a liderança do grupo que pregavaa moral no bairro, exaltando São Francisco de Assis como modelo de cristão e seguidor doevangelho de Jesus. O sonho da mãe de Damião era ver um dos filhos se tornar padre. Com omedo de escolher o filho errado (e que este rebento pudesse se desgarrar de sua missão), decidiupreparar os três filhos para servir a Deus. Se algum deles debandasse por motivos de força maior,ainda havia duas possibilidades de realizar seu sonho. Aos doze anos, o filho mais velho epreferido de Araci, foi o primeiro a jurar que não colocaria nunca mais os pés em uma igreja,mesmo com a beata, sua mãe, tendo-o baixo ameaça de expulsá-lo de casa. No ano seguinte, foio filho do meio que abandonou a igreja, alegando não ter vocação. Damião era a últimaesperança de uma mãe fiel e desesperada.

Para fazê-la feliz e provar seu valor, Damião estava disposto a se tornar padre e servir aDeus. Participava das reuniões sobre a moral que o pai pregava na comunidade e passou afrequentar rigorosamente a igreja. Quando completou dez anos, começou a trabalhar comoauxiliar do padre Edilson Alves dos Santos na paróquia, um religioso rigoroso, que proibia asmulheres de entrarem na sacristia de saia curta, criticava as que usavam calça; condenava ohomossexualismo categoricamente e zelava pela moral e os bons costumes dos povos.

Damião começou a participar dos encontros vocacionais das congregações como ouvintee acostumou-se a ter longas conversas com o padre sobre sua vocação. Escutava o padre contarcom saudosismo sobre os tempos da faculdade; sobre as pequenas dificuldades que tivera aoestudar filosofia, e os maravilhosos ensinamentos que descobriu através da teologia.

O padre Edilson beirava quase os sessenta anos. Levava com ele cabelos brancos, umrosto gentil e uma proeminência adiposa ao redor da cintura. O padre fora transferido de outraparóquia fazia alguns anos, após uma denúncia de pedofilia pela família de um de seus antigos

coroinhas, mas seguiu jurando inocência, alegando ter sido vítima de uma conspiração diabólica.Quando assumiu a Paróquia do Imaculado coração de Maria, em Goiás, comportara-se demaneira impecável desde então. Cada vez que pensava acossar um menino, trancava-se em seuquarto e açoitava as próprias costas até sangrarem, decidido a nunca mais cair nas armadilhas datentação. O diabo não voltaria a ter sucesso com sua fraqueza jamais.

Assumir a paróquia do Imaculado coração de Maria fora considerado por ele umadádiva, concedida diretamente pela mão do Criador, que olhava por ele e zelava. Fora agraciadocom a oportunidade de recomeçar a vida em uma nova comunidade, longe das investigações doVaticano e sem ser reconhecido pelos equívocos do passado (baixo o juízo da nova comunidadeque não tinha qualquer conhecimento a respeito desse escândalo). Aborrecia-se com o fato deseu antigo rebanho não ter reconhecido nele um ser humano por trás da batina; não somentepadre, mas alguém falível, feito de carne e osso, propenso a cair nas tentações do mundo. Foracondenado por sua antiga comunidade e transferido, ameaçado de linchamento, depois de suaigreja ter sido apedrejada por fieis. Considerava-os ingratos, pois havia ajudado inúmeraspessoas carentes de várias formas e acolhido-as como um pai, mas em sua primeira falha, seurebanho virou-lhe as costas. Sequer tentaram entendê-lo ou brindaram-lhe uma oportunidade dedefesa.

Apenas Deus, em toda sua sabedoria e misericórdia, estendeu novamente a mãoprotetora em sua direção ao oferecer-lhe uma nova paróquia e uma segunda chance. O padre nãoera apenas mais um filho de Deus entre tantos bilhões de ovelhinhas no mundo, mas o filho;observado e cuidado diretamente por Ele. Por isso sentia-se especial. Era o escolhido!

De alguma forma muito perturbadora, Damião despertava os instintos dos quais o velhoreligioso tanto lutava para esconder. Através das confissões do menino, o padre soube que ele eramaltratado em casa; que sofria com a culpa por ter nascido gordo, e lutava bravamente para sernotado (apesar do seu tamanho gigante). Sua autoestima era um frangalho despedaçado emmuitas partes, que andava por aí perdida, sem nunca ter visto sequer a sombra de um dedo que oprotegesse; sem nunca ter sentido o calor de um abraço ou conhecido o prazer de ser tratado comamabilidade. Por ter sido tratado a vida inteira como fraco, bobo e inútil, desconhecia seutamanho e força. Desesperado para ser acolhido pelo amor de sua família, acatava ordens commuita subordinação, na incumbência continua de agradar. Seus irmãos o treinavam para servir.Seus pais o treinavam para servir. A igreja o treinava para servir. Então, dedicava-se com muitahumildade a aprender a ser um servidor, sem nunca reclamar por isso.

O sonho de Damião era ser coroinha; assim realizaria não somente o próprio desejo deservir a Deus de corpo e alma, como também, tornar-se-ia motivo de orgulho para sua devotamãezinha. Após meses dedicando-se como auxiliar da igreja, o padre prometeu subi-lo ao altar econsagrá-lo. Alguns dias antes da cerimônia marcada para o segundo domingo de agosto,Damião foi convocado para uma conversa sobre Vocação.

O padre o conduziu para trás da sacristia, na casinha que fora levantada para ele vivercom o dinheiro e a ajuda dos fieis.

– Você quer mesmo ser coroinha, meu filho? – O religioso perguntou, sentando-se sobrea cama de ferro, instalada logo abaixo de um crucifixo pendurado na parede.

– Sim, padre! É tudo que eu mais quero!– Venha aqui! – Ele o chamou dando dois tapinhas no colchão fino da cama. – Eu

poderia lhe ensinar latim; assim quando você for à Universidade já estará dez passos na frentedos demais estudantes.

Damião assentiu com a cabeça, sentando-se ao lado de seu protetor. Contaria à mãe

sobre a novidade nem bem chegasse a casa, convicto de que ela se orgulharia como nunca.O padre pousou uma mão na perna do garoto, e com a outra, acariciou-o na face.– Você sabe que para chegar a ser coroinha precisará passar por algumas provas, não é?

– Ele adquiriu uma expressão mais circunspecta ao dizer isso: – Sei que você realmente temvocação, mas será que é capaz de aguentar dores sem reclamar?

– Sim, padre! – Como costume, Damião respondeu rápido e decidido em sua missão deagradar e servir. – Farei tudo que for necessário!

– Então, tire sua roupa e sente aqui no meu colo. – O padre ordenou em tom seríssimo,manifestando a importância do ato.

Solícito a atender sem hesitar, Damião obedeceu no mesmo instante. Cinco segundosdepois, estava completamente nu.

– O que vamos fazer agora se chama a “prática da penetração” e deve ficar somenteentre nós e Deus! Você entendeu bem? – O religioso se assegurou que o garoto era capaz deseguir suas coordenadas sem esmorecer. – O amor é discreto; não pode ser contado paraninguém! Você quer ser amado?

– Sim, padre! – O garoto contestou convicto, esperando do fundo de seu coração que opadre tivesse tanta confiança nele quanto ele tinha no padre.

Damião se sentiu envergonhado e nervoso nas primeiras vezes. Não queria contrariar o

padre ou negar-se a fazer o que ele pedia; por isso disfarçava seus temores em relação aos testesde vocação que lhe eram aplicados, obedecendo. Quando se mostrava receoso, o padre oconvencia de maneira carinhosa de não haver maldade no amor. Damião chorou várias noites,escondido; insatisfeito pelo que fazia às escondidas com seu tutor. Precisava acreditarincondicionalmente no ato, sem envergonhar-se ou duvidar dele. O padre era seu protetor santo,o amigo que jamais o degradaria. Muito ao contrário de desconfiar do religioso, era suaobrigação sentir-se honrado pela oportunidade de ser tão íntimo dele. Os dois estavam com “asportas do paraíso abertas”; o padre lhe garantiu. Convencido da pureza nos testes de vocação, aideia de que praticava o pecado o abandonou.

Convicto de que sua mãe ficaria orgulhosa, Damião quebrou o “pacto do silêncio”travado com o padre e contou a ela o que faziam atrás da sacristia: “Mamãe, sou a mulher dopadre!”. Pronunciou, altivamente. Mas sua mãe, horrorizada, chamou a polícia. Os vexatóriosexames que foi obrigado a fazer em seguida alegaram abuso sexual. “Vítima de abuso sexual?”.Meu Deus! Como o povo em sua infinita ignorância pagã, pode decretar um veredicto desses?Chorava o garoto e esperneava, convicto de não ter sido vítima de nada ruim, a não ser da faltade entendimento dos seus, que não estavam preparados para entender sobre o verdadeiro amorcasto.

O padre estava com seus dias contados. Mas ao contrário de ser expulso da igreja econdenado à prisão, foi novamente transferido para celebrar missas em capelas, na região ruralda cidade de Alexânia.

Durante o decorrer dos meses seguidos, o pai de Damião não lhe dirigiu a palavra. Amãe havia denunciado o padre, mas sua inconformidade por nenhum de seus filhos ser clérigo nofuturo, resultava transparente. Além de ter seus sonhos desfeitos, ela ainda teria que conviverpara sempre com a sujeira e o pecado de um dos filhos. Os irmãos de Damião, que ao princípio,juraram descer a porrada no padre, esqueceram logo da comiseração que sentiram pelo caçula,para adotar-lhe um novo apelido: “Arrombado”. Do “arrombado” ao “viadinho”, todos osapelidos giravam em torno da homossexualidade em termos pejorativos.

Embora forte como um pequeno touro, Damião foi tão domesticado, inferiorizado eridicularizado a vida inteira que acabou por desconhecer o próprio tamanho. Não sabia utilizarsua força e acabava sendo dominado por quem quer que fosse.

Contrariado com a reviravolta que sua vida dera, Damião perdera a oportunidade de sercoroinha, a proteção do padre e o orgulho que a mãe deveria sentir por ele. Tudo isso em umaúnica vez. Acreditava que essa desgraça fora consequência de sua boca grande que falou demais,mesmo quando seu amigo, o velho padre, exigira silêncio, ordenando que guardassem entre eleso segredo de Deus. Inconformado pelo caos gerado após a denúncia, sentia-se um traidor: Quemal o pobre fez? O que ele está pensando de mim agora? Deve achar que sou infiel... Que nãosei guardar um segredo... Aborrecido com a atitude da comunidade que desejava linchar osacerdote depois que a notícia vazou, temendo pela segurança dele, investigou o paradeiro de seuprotetor e foi atrás dele.

Damião fugiu de casa após descobrir que o padre fora transferido para a zona rural da

cidade. Levou consigo apenas duas mudas de roupas, algumas moedas, a Bíblia encadernada emcouro, uma água de colônia barata (presente de sua mãe no último Natal) e o sapato (quecostumava usar aos domingos na igreja) dentro da mochila. Chegou ao destino depois de ganharduas caronas com caminhoneiros. Os poucos quilômetros que lhe restaram, caminhou a pé,apressado e ofegante, em uma marcha ininterrupta. Ao reencontrar o padre, pediu-lhe perdão dejoelhos e chorou sem parar. O padre ficou comovido pela lealdade de seu pupilo nem bem o viu.Com os olhos cheios de lágrimas, pousou a mão enrugada sobre a cabeça do garoto, controlandoas lágrimas para não caírem, e o perdoou imediatamente.

Depois de um sermão sobre: “A perversão do homossexualismo”, o padre contou apobre biografia de Damião aos fieis, referindo-se a ele como um menino de rua, órfão de pai emãe. Pediu ajuda da comunidade, alegando que a criatura estava desamparada no mundo e nãotinha condições de sobreviver sem a solidariedade dos irmãos.

Logo, uma família de agricultores que desenvolvia a produção de leite tipo B, gado decorte e feno, adotou-o “parcialmente”, oferecendo ao garoto: casa, comida e um salário mínimo,em troca de serviços. Damião dormia no lado de fora do casarão, onde o casal proprietáriomorava junto com os cinco filhos, em um galpão de madeira com luz elétrica e um colchãoimprovisado. Fazia serviços pequenos, pois embora forte e saudável, esquecia-se das coisas comfacilidade; era pouco sociável, extremamente desajeitado e cumpria ordens pela metade. Aspessoas acreditavam que ele fosse débil mental.

Antes de ordenhar as vacas, Damião deixava os tetos limpos e secos. Estimulava osanimais para evitar que o leite ficasse retido no úbere; descartava os primeiros jatos quepoderiam estar contaminados, e procurava ser cuidadoso e limpo quando desempenhava seutrabalho. Quando sobrava tempo, mantinha a área de fenação livre de paus, pedras, tocos, cupins,valetas, e tudo que mais se interpusesse no caminho. Apesar de ser um serviço pesado, nãorequeria muita astúcia; apenas dedicação e força (e isso ele tinha de sobra).

Perto de Damião completar três anos na fazenda, aconteceu uma verdadeira tragédia: ocorpo do padre foi encontrado em um dos matagais da região, com uma chave de fenda enterradana jugular. Ajoelhado em uma pedra, com as calças descidas até os tornozelos, o cadáver jazeudesbotado pela manhã.

O assassino não foi descoberto e Damião se viu obrigado a lutar contra a tristeza e fúriaque o abateram, em uma dor angustiante, porém completamente silenciosa, sem qualquer ombroamigo que o amparasse.

Depois do assassinato de seu mentor, Damião permaneceu mais cinco anos na fazenda,

tentando rescindir a falta que o padre fez em sua vida. Naqueles últimos anos, o velho padre foraseu confidente, amigo e amante; a única pessoa no mundo que o entendeu, um pai de verdade.

Damião refletia com certo despeito e curiosidade sobre o crime, enquanto esquivava-seda polícia e dos comentários maliciosos do povo. Provavelmente o padre tinha sido assassinadodevido a um flagrante, talvez por um novo pupilo a quem ele orientava e Damião desconhecia aidentidade (alguma pessoa incapaz de ultrapassar as barreiras do amor). Quem sabe ainda o paide algum adolescente que preferiu trucidar o padre a trazer a baila o nome de um familiarviolado.

Imediatamente após o atentado, a polícia encontrou no quarto do padre um diário quedescrevia algumas improbidades cometidas ao longo da vida com muitos meninos; e ainda, umaespécie de manual, intitulada nos arquivos policiais como o “manual do padre pedófilo”, oupopularmente: “O diário do pecado”. Nele o religioso expôs as fórmulas que acreditava serem“eficazes” para conquistar crianças e seduzi-las, longe de quaisquer suspeitas.

Damião vivia em uma forma de vida precária. Alimentava-se de enlatados, torresmos e

pratos feitos em qualquer boca de porco. Às vezes comia na casa de famílias da região ouparticipava de churrascos em comemorações a festividades locais e nacionais (quando raramenteera convidado). No dia a dia utilizava a simplória cozinha externa da fazenda para fritar ovos,linguiça ou cozinhar qualquer coisa morta ou enlatada, rápida e barata. Banhava-se quase nunca,mas preocupava-se em estar barbeado e sem comida entre os dentes. Tomava pinga com homensmais velhos quando podia pagar ou lhe era oferecido. Fumava um cigarro de corda às cincohoras da manhã, quando acordava, antes mesmo de desjejuar. E tocava sua vida mecanicamente,sem ambições materiais ou sentimentais, isento tanto de inimizades quanto afeição. Acostumou-se a ser duro como pedra e frio como gelo, de forma natural. “Não sentir” era parte de suaessência vazia.

Ainda muito jovem, quando finalmente estreitou laços com alguns trabalhadores dafazenda, foi levado ao “Matilde bonita”, um puteiro com bebidas caras e mulheres feias. Sendo odia de pagamento, todos estavam com dinheiro no bolso, inclusive Damião que pagou uns tragospara uma mulher com pelos que lhe escapavam para fora do nariz. A energúmena cheirava amorcilha, e sentou-se no colo do rapaz grandalhão sem ser convidada, exalando um odorcompletamente desconhecido, tanto por cima quanto por baixo, depois de mostrar seu copovazio.

Essa foi a primeira vez que Damião viu uma mulher nua, e a imagem o assustou muitomais que o esperado. Achou o órgão sexual feminino horrível e ao mesmo tempo interessante.Tão sedutor quanto desprezível. O inferno cabeludo e fedorento estava ali, no meio das pernasdaquela desconhecida.

A anedota que provocava tanta graça nos homens: “A mulher é o único bicho queconsegue sangrar por sete dias e não morrer”, causou-lhe náuseas quando percebeu de onde essesangue saía. Damião não se considerava homossexual, ao contrário, sentia ojeriza por eles.Enxergava-se homem com H maiúsculo, embora jamais tivesse se interessado pelo corpo oucoração de uma mulher. Tampouco pensava na relação que experimentou com o padre comoalgo “estranho” entre dois homens (na verdade, um homem e um garoto), mas sim como umenvolvimento puro e indescritivelmente superior; um amor sagrado e secreto, comungado porduas criaturas especiais em uma terra de anormais.

Depois de algum tempo, e com certa relutância, Damião se acostumou a relacionar-secom prostitutas, pedindo sempre que elas ficassem de costas para ele. Substituía o desejo quesentia por alguns garotos da região, surrando-os pelos menores motivos.

Ao completar maior idade, Damião foi flagrado por um companheiro de trabalho

aliciando o filho de onze anos do patrão. Para a sorte do menino, o homem que dera o flagranteberrou de longe e assustou Damião antes de ele ter conseguido machucar o rapaz. Ainda com ascalças baixas, como o diabo foge da cruz, Damião escapou ziguezagueando a fazenda, sem saberpara onde correr, buscando um refúgio que o tragasse por inteiro. Naquele momento, foi como seo mundo caísse sobre sua cabeça. Descobriu que estava louco. Jamais poderia ter sidoimprudente ao ponto de mexer com o filho do chefe, de forma tão explícita e vulgar.

Damião começou a analisar o filho do patrão quando ele sequer tinha oito anos ainda.Não havia planejado pegá-lo a força, e nem mesmo sentido qualquer espécie de atração pelacriatura; mas inesperadamente viu-se provocado, diante de uma ocasião perfeita para atuar. Oinfeliz surgira com um monte de perguntas cretinas, tentando medir sua inteligência (ou burrice),de forma abusada:

“Damião, por que o cabrito caga redondo e a vaca espalhado?”“Por que as vacas têm quatro estômagos?”“Por que a minhoca caga terra, Damião?”Essa, embora muito enfadado, sentiu-se obrigado a responder:“Ora, porque ela come terra!”“E por que você caga merda, então?”.O garoto soltou uma gargalhada imediata, caçoando de forma tão violenta que chegou a

curvar o corpo de tanto rir.“Você tem o mesmo nome de um dos irmãos santos protetores das crianças, sabia

Damião?”. Dessa vez o garoto não fez chacota, mas Damião já estava até o pescoço de tantoabuso. Teve certeza que o moleque tentava inferiorizá-lo igual seus irmãos costumavam fazer,elaborando perguntas das quais ele não tinha resposta, apenas no intuito de envergonhá-lo. Nãoaguentou escutar o significado do próprio nome pela boca de um fedelho arrogante que achavasaber tudo. Sem pensar duas vezes, agarrou a matraca pelas costas e o prensou contra a parede.Com o ataque inesperado, o garoto começou a gritar e debater-se, chamando a atenção de umtrabalhador que passava por ali. Apavorado, Damião libertou o menino e correu quanto pôde,ainda de calças baixas. Escondeu-se na relva por um tempo até controlar o desespero, sem sabero que fazer a seguir.

Só descobriu que alguém chamara a polícia quando escutou o som das sirenes vindo delonge.

Ajudado pelo espírito protetor do padre Edilson (como acreditava ter acontecido),conseguiu sair da mata sem ser visto e enfiar-se sorrateiramente na boleia de um caminhãocarregado de carne, prestes a partir.

Já na estrada, adormeceu na primeira hora, mas acordou em seguida, totalmentecongelado. Achou que iria morrer de frio durante as cinco horas intermináveis de viagem, antesde chegar a Brasília.

Em Brasília, sem dinheiro, amigos, e carteira de trabalho, viu-se perdido. Nem mesmo

a segunda via dos documentos poderia tirar; e provavelmente a essa altura dos acontecimentos,figurava como foragido nos arquivos policiais.

Na cidade desconhecida, Damião dormiu de baixo do teto de uma escola desativada naCeilândia, junto com alguns mendigos; na maioria, negros e nordestinos, que cederam umcobertor e espaço no canto do pátio para ele. Ao pegar seu lugar para dormir, certificou-se de nãocolocar seu cobertor em cima das fezes de pessoas que evacuavam ali mesmo. Nas primeirasnoites, escutou casais de mendigos fazendo amor; assistiu brigas com facas, foices e pedaços demadeira, e viu gente defecar ao seu lado. Entre urina e ratos, sujeira e excrementos, lixo ebarulho, as noites ao relento foram seus piores pesadelos.

Por mais que estivesse acostumado a viver precariamente, Damião considerou aquelesmendigos, a espécie mais imunda e inferior que existe no mundo. Compartilhar com eles, aindaque fosse somente o mesmo ar, era humilhantemente insultuoso. Os pés dos mendigos deixavamà mostra um cascão áspero, cheio de feridas e pulgas vermelhas, nas solas dos pés e até mesmonas mãos, e exalavam um cheiro que ele jamais conhecera.

A maioria dos sem teto provinha do nordeste; homens e mulheres, famílias e crianças,expelidos de suas urbes atrás do sonho de uma vida melhor. Buscavam empregos eoportunidades, mas acabavam por entrar na estatística dos indigentes, desempregados emiseráveis, aumentando a criminalidade de Brasília.

Sem educação escolar, experiência profissional ou oportunidades de trabalho, cometiamde pequenos a grandes delitos. Com o estômago vazio, às vezes o chefe de uma família acabavapreso por furtar uma lata de leite em pó ou um baguete. Moradores de Brasília sentiam medodeles, e na região de Ceilândia, engravatados reclamavam do cheiro e do barulho que osmendigos produziam, alegando que eles atrapalhavam e impediam a prática de esportes naquelelocal; que eram vagabundos e não queriam trabalhar, que invadiam Brasília apenas para poluirvisualmente o aspecto perfeito da cidade. Os donos da cidade falavam e exigiam providênciaspor parte do governo, sem saber que a maioria dos desabrigados que habitavam Ceilândiabuscava melhor qualidade de vida através de trabalho duro, mas eram impedidos de provarem oseu valor pela falta de oportunidade e preconceito.

Incomodado por escutar histórias terríveis de gente que morria de fome e mendigos queeram queimados vivos na madrugada por delinquentes (playboys) de Brasília, Damião decidiuque não iria fazer parte dessa miserável estatística. Na semana seguinte ao chegar a Brasília,depois de percorrer a cidade a pé, ainda com a mesma roupa, conseguiu um “bico” em uma obra.O mestre da construção o olhou um pouco indeciso. Damião estava imundo e fedia como umbueiro, mas era jovem e luzia forte feito mil cavalos. Ao dizer que não tinha experiência na área,mas que estava disposto a trabalhar no que fosse preciso, o encarregado o colocou para ajudar ospedreiros. Damião era um dos poucos entre os homens com a pele clara e com todos os dentes naboca.

Voltou no dia seguinte, depois de ter tomado um banho de gato no tanque do colégio. Naobra, mexeu argamassa, levou e trouxe carrinhos cheios de tijolos mais de duzentas vezes nomesmo dia. Resultou fácil trabalhar para os homens trabalharem com ele, pois costumava falarpouco, não arrumava encrencas, acatava ordens com facilidade, e não perturbava as mulheresque passavam por ali com piadinhas infames.

Damião viveu os dois primeiros meses entre os mendigos. Empregado ainda que

ilegalmente, pois não tinha documentos (e o encarregado jamais lhe pedira a carteira detrabalho), seguiu dia após dia economizando. Tomava “banho de gato” embaixo da torneira efazia a barba no tanque do colégio, que outrora fora usado pelas crianças para lavar as mãos.Comia e falava pouco. Isolava-se em seu canto e misturava-se entre os mendigos somente

quando era convidado para uma sopa ou outra refeição que cozinhavam ali mesmo. Damiãotambém abria mão do silêncio para pedir algo emprestado, como: uma faca, um pouco de sal oupapel higiênico.

Embora recebesse a humanidade daqueles que tinham ainda menos que ele para dividir,execrava esse povo de ninguém, as bocas sem dentes, os pés encravados de bichos, as mãospretas, o sotaque arrastado, os olhares de derrota, o fedor do próprio corpo, a esperança e ocontentamento por conseguirem sobreviver dia após dia aos trancos e barrancos, em condiçõesprecárias até para um rato. O simples fato de respirarem, sorrirem, e principalmente estarem alicopulando no mesmo lugar onde defecavam, eram fatores fortes o suficiente para jamaisconquistarem sua simpatia e solidariedade.

Sem poder aguentar mais a agonia que lhe causava dormir e viver entre os indigentes,alugou por uma bagatela imperdível um barraco caindo aos pedaços na Ceilândia. Os donos - umcasal com quatro filhos pequenos - mudaram-se para uma casa maior na mesma rua.Desesperados para alugarem o mais rápido possível a antiga morada, facilitaram o contrato deboca para Damião dispensando papeis e documentos, com a condição de receberem o pagamentosempre em dia. O casebre de madeira era coberto com telhado de Brasilit, em uma construçãomuito mal feita e irregular. Possuía pouco mais de trinta metros quadrados e um banheiro dealvenaria sem pintura nos fundos, separado da casa. A família deixou na cozinha do casebre umfogão de duas bocas enferrujado (mas ainda utilizável) e uma pia com balcão de pinus, com amadeira tão gasta que chegava mesmo a esfarelar-se. Também deixaram o chuveiro de alumíniono banheiro - onde a água caia em torturantes conta-gotas - e uma mesinha de madeira paraquatro lugares, sem as cadeiras. Era praticamente um barraco semimobiliado (como disse o donono momento de apresentar o imóvel). A pavimentação da rua encontrava-se extremamenteesburacada, deteriorada pelas chuvas regulares de verão. Há tempos o prefeito prometia umrecapeamento geral nas ruas daquela zona, mas enquanto nenhuma providência (ademais depromessas) era tomada, os buracos que eram pequenos iam ficando cada vez maiores.

Ceilândia surgira em decorrência de um plano essencialmente simples (ainda queatrevido) que presumia acabar com as invasões da cidade: Transferir mais de oitenta milmoradores de muitas favelas para a cidade satélite. Assim, Vila do IAPI, Vila Tenório, VilaEsperança, Vila Bernardo Sayão e Morro do Querosene passaram a ocupar quarteirões e maisquarteirões dessa região de Brasília, passando a formar a cidade mais populosa do DistritoFederal. A violência que veio a seguir na Ceilândia foi resultado do crescimento e da gritantedesigualdade social vivida ali.

Tendo como base a história de Ceilândia e a intenção dos políticos de fazer uma cidade,os moradores do local, misturados entre pobres e classe média, defendiam com orgulho o fato deviverem na cidade brasileira que possuí o Eixo Monumental de Brasília (a avenida mais larga domundo).

Aos olhos de Damião, Ceilândia era “o lugar escolhido a dedo por Deus para ter luzprópria e brilhar entre contrastes e diferenças”. Ao longo das semanas, depois de bem instaladono casebre, percebeu a separação dos grupos que transitavam pela cidade satélite: brancos paraum lado, negros para o outro, e uma quantidade assombrosa de imigrantes nordestinos comgrandes famílias circulando unidos entre ruas e vielas, para lá e para cá. A cidade era imensa,subdividida em diversos bairros, composta de barracos, puxadinhos, casas de madeira, lotesmuito pequenos, casas muito grudadas, em um contraste entre as bonitas casas de alvenaria, osprédios e condomínios da região, estabelecimentos comerciais e indústrias. Sem esquecer aindado símbolo da Caixa d'Água e a Casa do Cantador, que para Damião, estavam entre as grandes

maravilhas do mundo (pelo menos, do mundo dele). Nas noites de Ceilândia, havia festa comforró e gafieira, gritaria, barulho e música até altas horas da noite. Damião não se incomodavacom a algazarra, sempre que o deixassem em paz e não tentassem fazer amizade com ele.

Antes de se instalar definitivamente no barraco, um sábado perto do meio-dia, Damiãopassou pela antiga escola onde viveu com os mendigos. Sabia que nos fins de semana,principalmente, dormiam em sono profundo devido à ressaca, enquanto outros zanzavam emzonas diferentes da cidade buscando emprego, pedindo esmolas ou estudando algum local paraassaltar.

Ainda estavam em julho, em um inverno de aproximadamente quinze graus durante odia e cinco à noite, e por isso Damião precisava de uma manta que pudesse aquecê-lo durante asnoites de frio. Olhou com repúdio pelos contornos do pátio escolar quando chegou ali, negando-se a admitir que por um bom tempo dividira com esses excomungados de Deus o mesmoambiente sórdido de pecado e sujeira. Lixo e fedor, peste e moscas, pés descalços e sujos,entulhos e uma atmosfera cinza decoravam o ambiente por inteiro, como se também fossemmoradores permanentes do colégio, vizinhos daqueles miseráveis que ainda dormiam em plenomeio-dia. Negando-se a permanecer mais que o necessário, pegou o primeiro cobertor que viu nafrente, agarrando também um colchão com o pano esburacado e encardido de caruncho, cujodono não estava. Roubou alguns utensílios de cozinha: um facão, uma frigideira e uma colher depau, entre os pertences da mulher que costumava fazer bofe e sopa, com os restos desprezadospor feiras e açougues. Nem sempre os mendigos tinham uma panela de comida em cima dagrelha metida no fogaréu, mas durante as noites de inverno, com o estômago vazio ou não,sentavam-se ao lado do fogo formando um círculo ruidoso, empoleirados lado a lado no intuitode se aquecer. Damião lamentou ter apenas duas mãos e não poder levar tudo que lhe seria útil.Além do cobertor, do colchão e da faca de cozinha, colocou sal, fósforos, e um descascador deverduras no saco preto de plástico. Depois de pegar tudo que pôde, saiu carregado, ignorando umcandango magricela feito um varapau, que acabara de acordar e gritava: “Ladrão!” “Filho daputa traiçoeiro!” “Volta aqui, excomungado!”, mas acovardado demais para agir, deixou o ladrãoir embora.

No primeiro domingo no barraco, Damião misturou-se com discrição entre o povo quefestejava qualquer coisa em seu bairro. Observou as mulheres dançarem com suas saias curtas edecotes longos, suando incessantemente, embora fizesse frio. Os homens com peixeiras no cósda calça e garrafa de cerveja na mão engatavam-se na dança, esfregando-se feito cachorrosexcitados por um osso de boi nas companheiras de dança e nas mulheres que passavam peloaperto da multidão. Os bailarinos no cio acompanhavam ebriamente o ritmo da música, com umadas mãos em cima do traseiro das damas, tentando passar a marcha - da primeira direto para aquinta – em um ritual parecido as preliminares de um acasalamento animal. Damião achouvulgar o jeito com que se esfregavam e a forma como as mulheres se depravavam dançando compernas abertas, vestindo saias tamanho de um toco, mostrando decotes escandalosos queprotegiam os mamilos, mas não o restante inteiro das mamas. Para Damião, no entanto, se asmulheres eram oferecidas, os homens por sua vez não passavam de tolos. Com a certeza deserem conquistadores de importante caça, não percebiam que suas conquistas não passavam deexemplares arregaçados, exibidos, feios como um canhão. Mercadoria muito usada e descartável,impróprias para motivos de gabação.

Pediu a segunda dose de Dreher na barraca de tragos e seguiu observando o povo suartestosterona, rebolando traseiros grandes e barrigas flácidas. Quando terminou de beber seuconhaque, avistou um jovem vulgar na casa dos treze ou quatorze anos, parado ao lado da

barraca de maçã do amor. Com short jeans e camisa colorida - onde tinha amarrada em um nó aponta final do tecido barato que vestia - o transvestido parecia estar a trabalho. Misteriosamente,Damião não conseguiu desgrudar os olhos do rapaz. Sequer escutava mais a música ou reparavano xote dos casais que dançavam por todos os lados. Ninguém (nem ele mesmo) - tãoconcentrado que ficou em observar o garoto - pode sentir o cheiro de suas intenções nessemomento.

Mantendo-se um pouco afastado da barraca de maçã do amor, caminhou discretamenteaté ser notado por seu alvo de fascínio, e fez sinal para o pivete se aproximar.

Equilibrando-se no salto alto sem muito traquejo, o rapaz foi direto ao assunto:– Oi, meu bem! Quer se divertir? Eu cobro vinte reais por um programa e só transo com

camisinha!Damião sentiu uma espécie de calor furioso dominá-lo ao escutar a voz afeminada do

moleque vibrar através de sua boca com brilho. Olhou para o rapaz, disfarçando o desejo deenforcá-lo com as próprias mãos. Ora, que atrevimento! Ser chamado por um infeliz desses demeu bem. Observou com curiosidade as pernas de gazelas à vista ainda marcadas pelas cicatrizesda infância, finas como dois palitos, tentando equilibrarem-se em saltos altos de mulher,enquanto explodia bolas rosadas de chiclete fora da boca. Levava na face uma expressãodestemida ao mesmo tempo em que se fazia sedutor. Os olhos eram grandes, levementeampliados pela ajuda de rímel e os lábios dissimulavam volume com a ajuda de um brilho oleosolevemente purpurinado.

Sentindo uma cólera estranhamente excitante e incontrolável, que se confundia entrerepúdio e fascínio, Damião se permitiu atrair sinistramente. Sem hesitar, concordou com o preçoestipulado pelo garoto e o convidou para ir até sua casa, exigindo que fossem separados, e queele caminhasse pelo menos vinte passos atrás.

Quando chegaram ao barraco, ofereceu um pouco de pinga ao travesti, mas ele recusou.Depois de derrubar um gole de cachaça goela abaixo, Damião sentou-se ao lado de seuconvidado e tornou a estudá-lo, sem pronunciar qualquer palavra. Parecia que o moleque haviaperdido o tom desafiador das ruas. Longe de seu habitat natural, a gazela maquiada pareciavulnerável, mostrando um semblante mais compassivo e ligeiramente trepidante. O garoto nãoera uma criança, mas ainda não tinha entrado na adolescência completamente. Antes de seradulto, já havia escolhido o caminho do pecado, prostituindo-se vulgarmente na cama comoutros homens, pensou Damião, entendendo que essa criatura não era pura como uma criança, epor isso não tinha valor algum.

Lembrou-se das palavras no diário do padre que a imprensa tratou de divulgar aos quatroventos:

“Apresentar-se frente uma criança sempre como dominador. Ser carinhoso e nãoapressado. Nunca fazer perguntas, mas apresentar certezas. Os garotos carentes, órfãos e pobres,são alvos simples...”.

Ao refletir sobre as anotações de seu falecido mentor, constatou que não as necessitariano momento. O garoto sentado ao seu lado já não era um menino; não era puro, tampoucoinocente. Não havia necessidade de ser carinhoso. Ninguém sentiria a falta se o infelizdesaparecesse da face da terra para sempre. Os pensamentos o excitaram ao ponto de arrancar-lhe um sorriso.

Mas antes do trabalho, decidiu divertir-se um pouco... Alguns dias depois da festa na Ceilândia, um corpo de criança foi encontrado atrás do

camping de Brasília, no setor noroeste, jogado em uma cova com mais de um metro deprofundidade. O cadáver sem roupas, possuía mais de quarenta perfurações no tronco porfacadas, evidências de abuso sexual e estupro.

Damião chegou atrasado e se desculpou com o encarregado da obra. Inventou uma

mentira e prometeu cobrir a falta ficando até mais tarde. Trabalhou sem arrependimentos até ocair da noite. Ao lembrar a forma como violou o garoto, sentiu o corpo estremecer de êxtase.Embora a adrenalina que lhe causou a violência e o arrebatamento de ter, pela primeira vez,sangue nas mãos, jurou a si mesmo que dali por diante seria prudente, e de preferência, deixariaos crimes dos pecadores nas mãos de Deus. Não desejava passar o resto dos dias na prisão pormatar um viadinho infeliz. Existia o medo de ser descoberto (o terrível medo que o abalou ao tero corpo sem vida nas mãos e a casa banhada em sangue). Foi penoso desfazer-se de um cadáverna madrugada, ainda que pesasse pouco mais de trinta quilos. A possibilidade de ser flagrado nolocal do crime, no meio do caminho ou onde desovou o corpo, era um risco altamente torturante;antes, durante, e depois do acontecimento. Carregar o cadáver nas costas pelo longo caminho atéo camping, cavar o buraco e limpar os vestígios, resultou uma tarefa verdadeiramente esgotante.O encanto de matar um pecador fora mais intenso quando habitava somente pensamentos, masquando o pôs em prática, o pavor de ser descoberto o trouxe a uma realidade mortificante eaterrorizadora.

Nas semanas que decorreram o assassinato, Damião caminhou pelo bairro em estadoquase paranoico. Temia ser agarrado pela polícia ou que um investigador o esperasse em suaporta. Desconfiava inclusive de vizinhos que pudessem ter visto o travesti entrar em seu barracoàquela noite. A única possibilidade de ser relacionado com o crime seria através de umatestemunha, pois tudo indicava que o infeliz se prostituía porque era órfão ou morava na rua; enesse caso, ninguém reclamaria o sumiço dele. Era menos um João ninguém no mundo!

Damião só voltou a respirar aliviado no final do terceiro mês após o assassinato; e sóentão começou a frequentar novamente a igreja e conversar com Deus. Em rezas silenciosas,explicara suas razões ao tirar a vida do garoto promíscuo. Sua consciência era ausente de culpa,uma vez que agira motivado apenas por desígnios fieis de combate ao pecado.

Deus o perdoou e o entendeu; teve certeza disso, pois no dia em que fez sua segundaconfissão no genuflexório, um pombo branco entrou pela janela da igreja, emitindo em suaaparição um significado divino. Estava absolvido aos olhos do Criador e livre das suspeitas doshomens. Isso era tudo o que importava.

Nos anos que seguiram em Brasília, Damião trabalhou em várias obras como ajudante

de pedreiro, sem nunca ter ficado mais que uma semana sem trabalho de uma troca para outra.Cada vez que uma obra acabava, outra surgia. Ele não tinha ambições que o colocassem muitoalém de uma modesta sobrevivência, pois continuava sem documentos e não pensava arriscar sualiberdade, correndo atrás deles.

Para evitar problemas pela falta de documentação, pagava a vista o que comprava efugia das prestações; mantinha o aluguel em dia, evitava hospitais, não se matriculava emnenhum curso e nem se inscrevia em nada. Escapava de confusões, pessoas e empregos que lheexigiam carteira de trabalho. Embora introvertido, vez por outra aceitava o convite de algumcompanheiro para tomar algo, ir a um clube ou prostíbulo de quinta, ou derrubar um engradadode cerveja no aniversário de alguém. Pela falta do que fazer, quando não tinha serviço oumesmo, pelo ócio no final de semana, acostumou-se a frequentar regularmente diversas igrejas,

de várias religiões, situadas nas proximidades.No decorrer do tempo tentou se relacionar com algumas mulheres, mas constantemente

chegava à conclusão de que elas o aborreciam. Não podia suportá-las mais que algumas horas enunca sem beber antes. Sentia repulsa pela forma como elas mexiam repetidamente nos cabelos,desembaraçando-os com a ponta dos dedos ou esticando-os para um lado do ombro. Irritava-sepela atenção que pediam, pela forma como esperavam mimos e gentilezas, pela voz delicada, osgestos sutis, os olhos molhados, constantemente prontos para chorar frente à mínima ofensa.Achava repugnante a menstruação, o corrimento, o cheiro de peixe entre as pernas delas, ascurvas que as varizes tomavam em suas pernas, a consistência desprezível da flacidez, e todo odemais que ainda exalava, apresentava e as caracterizava como “sexo frágil”. Como algo tão feioe fétido poderia ser frágil? Tudo que ele podia, e sentia-se disposto a oferecer para as poucasmulheres que conhecia, era uns tragos de pinga e um pouco de sexo, sem prazer e sem orgasmo.

Com a vida um pouco mais organizada - se assim se pode dizer - Damião recuperou opeso de outrora e ganhou alguns extras, proporcionalmente distribuídos para sua altura. Oscolegas de trabalho o chamavam de: “gigante branco”.

Afastado de qualquer confusão e com a sorte de estar sempre empregado no decorrer dosúltimos anos em Brasília, os problemas não tardaram a encontrá-lo, ou ao contrário: Damião osencontrou. Sentia-se tão aborrecido com uma loja de tecidos inaugurada por um casal denordestinos homossexuais, na esquina de sua casa, que não conseguia dormir.

Os dois homens eram relativamente jovens, na casa dos trinta anos. Evanílson usavabigode estilo Freddie Mercury e tinha o cabelo impecavelmente negro, sempre lambuzado de gel,aparentando ser mais velho do que a idade real. Falava pouco e tinha cara de escassos amigos.Vestia comumente calça jeans e camiseta. Quem o via, jamais diria que o mesmo fosse gay, eisso tanto surpreendia Damião como o irritava (pois deduzia que ele era o “marido” na relaçãocom o outro). Já esse outro, Mirosmar da Silva, andava com um rebolado saracoteado, forçava-separa falar em uma voz fina e mantinha trejeitos femininos e escandalosamente forçados, metidoora em calças largas espalhafatosas e floridas, ora em calças tão apertadas que dificultavamdobrar uma perna ou sentar-se. Se não fosse por Mirosmar, homossexualmente assumido,declarado e orgulhoso de sua sexualidade, ninguém diria que Evanílson era gay e que os doisformavam um casal, pois Evanílson era cabra muito macho em aparência e postura. Seu parceiroMirosmar delineava as sobrancelhas e usava uma corrente de prata ao redor do pescoço. Falavacom uma voz estridente e afeminada, tão alta que chamava a atenção de quem passava por ali.Não fazia a mínima questão de esconder quem era e do que gostava; muito pelo contrário,provocava as pessoas deliberadamente com um tom sarcástico, principalmente quando eraobservado por olhos curiosos por mais de cinco segundos.

Cada vez que retornava do trabalho, Damião passava pela frente da loja e os via desde arua. Às vezes, acariciavam-se por detrás do balcão, outras, riam às gargalhadas e faziambrincadeiras com clientes das quais, pelo tom de liberdade, causavam arrepios em Damião. Aloja possuía duas portas grandes e deixava na calçada várias espécies de tecidos de tipos e coresvariados. Em certas ocasiões, Damião parava na frente da loja para tocar uma malha ou perguntaro preço de algum tecido, tudo no intuito de estimular a revolta que sentia ao ser atendido por umdos afeminados. Chegou a comprar flanela na época de festa junina para confeccionar umacamisa jeca, sem jamais tê-la feita, e até mesmo dois metros de malha fria, alegando ser umpresente para a irmã. Em outras circunstâncias, passava pela loja apenas para cumprimentá-los,aceitando os sequilhos que o casal lhe oferecia. Tomava café e perguntava pelos negócios comum interesse mal fingido. Sem alguma razão especifica para estabelecer uma conversa,

costumava falar sobre o tempo ou outras amenidades com uma superficial, forçada e dissimuladaamizade.

Sentia-se fascinado pelos nordestinos, e suas noites de sono pesado, transformaram-seem constantes insônias, pesadelos e despertares noturnos. Quando acordava no meio damadrugada, espiava pela janela de seu barraco na direção da loja, procurando uma fresta abertaonde pudesse espiar algo da intimidade daqueles homens que viviam como casados. O casalvivia no piso superior do negócio, recentemente reformado, no segundo andar da loja demadeira. As tentativas de Damião por invadir a privacidade dos nordestinos com seus olhoscuriosos de vizinho, resultaram um fracasso. Assim que encerravam o expediente, depois dearrumar os tecidos, varrer os retalhos espalhados pelo chão e colocar para dentro as amostras dospanos que ficavam na calçada, eles fechavam a loja e desapareciam até o outro dia de manhã,quando recomeçavam a rotina outra vez. Entre a fascinação e a curiosidade para saber mais sobreo casal, tão pecaminoso e ao mesmo tempo, tão contraditoriamente discreto, o ódio de Damiãoaumentava de forma gradativa.

Em alguma das noites que passara em claro espionando pela janela de seu barraco,

Damião se lembrou da época em que sonhava ser padre, e do encargo e obstáculos que teriaenfrentado se tivesse conseguido realizar seu sonho. E então, descobriu a causa de sua insônia:Aquelas duas ovelhas desgarradas do nordeste dependiam dele para serem desviadas do caminhoescuro até o inferno. Era sua missão!

Convencido de que poderia salvá-los do homossexualismo, procurou-os para umaconversa sem mais delongas, com o propósito de falar abertamente sobre a “enfermidade”.Depois de tanto tempo comendo sequilhos e fazendo vista grossa frente à sem-vergonhice dosnordestinos (que inclusive já o tinham como “amigo”), era hora de colocar as cartas à mesa efalar de homem para homem.

Antes de entrar na loja, deu umas batidas com a sola da bota na porta de entrada, paradeixar a lama que a chuva da noite anterior produziu, do lado de fora do estabelecimento. Estavaorgulhoso de si mesmo pelo nobre motivo que o levava até ali, e mais ainda por relevar seuspreconceitos, submetendo-se a difícil tarefa de tratar o casal como “iguais”.

Enquanto julgava que era um mestre em disfarces por sua autêntica discrição, o casal denordestinos começava a desconfiar das intenções daquele gigante branco que os visitava comregularidade.

– Boa tarde, gente!– Tarde, amigo! – O casal trocou uma mirada cúmplice. Haviam apostado que logo

Damião os visitaria para falar sobre a chuva, sobre o tempo ou reclamar da lama, minutos antesdo mesmo chegar.

– Que lama, né? – Exclamou ainda batendo os pés na soleira, sem ver o casal se cutucarpor debaixo da mesa, segurando uma risada sarcástica. Para os nordestinos, Damião traziaenergias estranhas e obscuras cada vez que aparecia. Frequentava a loja sempre com algumadesculpa esfarrapada, e embora fizesse milhões de perguntas sobre tecidos, parecia não terqualquer interesse real sobre o assunto. Duas ou três vezes comprara um pedaço de panoqualquer com alguma escusa, em outras, apenas acariciava os tecidos e jogava conversa fora,com a mirada perdida no ambiente, os pés inquietos e o sorriso forçado.

Damião se adiantou e, dessa vez, falou sem rodeios:– Olha aqui! Eu vou falar francamente – encarou-os com ar de censura e reprovação,

encorajado pelo sermão de um padre duas noites antes: “Se você não afronta é porque concorda!

É cúmplice da sacanagem! Devemos lutar contra a sem-vergonhice de homossexuais viveremcomo marido e mulher! Se não fizermos nada, o mundo será dominado por essa praga...”.Lembrando-se das palavras de sabedoria do devoto, prosseguiu em um tom ainda mais criterioso:– Vocês vivem em pecado e isso não é bom aos olhos de Deus! Acredito que ninguém pediu paranascer assim... Doente! – Vendo que os dois o olhavam com desconfiança, parecendodescontentes com a conversa, pigarreou um pouco e emendou em seu discurso: – Deus é justo eperfeito; ele não criou os gays: Vocês se inventaram! – E em tom de solidariedade, segredoucompreensivo: – Tenho certeza que é complicado ser diferente!

Tendo permanecido em silêncio, o casal se entreolhou com uma ruga sisuda entre assobrancelhas.

Durante os últimos meses haviam imaginado os motivos das visitas de Damião, semjamais terem suposto que um sermão sobre sexualidade era ensaiado por esse homem, queparecia ter os pensamentos mais curtos que a ponta de um batom.

Mirosmar da Silva, o assumidamente afeminado e mais despachado entre eles, absorveucom esmero a mensagem antes de retrucar, deglutindo palavra por palavra com grande apetite.Ficou incrédulo frente à audácia do troglodita que vomitava ignorância em sua casa, dissertandoem nome de Deus e da Bíblia. Ora, essa besta quadrada que mal sabia falar, incompetente pararomper os obstáculos da própria língua, incapaz de se sobrepor ao preconceito de um tempo ondetudo aquilo que não se conhecia era considerado sacanagem e pecado - simplesmente porque aspessoas não tinham conhecimento - fazia-se agora um homem sábio, montado em razões que asabedoria desconhece, para mexer com a vida de quem está quieto e feliz. Oferecia salvaçãocomo se fosse poderoso o suficiente para isso, simplesmente porque leu o livro da pedra.

Impaciente, porém controlado, Mirosmar o contradisse em uma voz que saiu ainda maisfina do que habitualmente empregava:

– Oxe, homem! Você está exigindo para nós sermos “iguais” nesse mundo de“diferentes”, é? Que conversa é essa? Homossexualidade é nata. Doença é o seu preconceito! Ese é mesmo verdade que Deus condena o homossexualismo, ele é outro afetado moralmente, umsímbolo para incitar ignorantes como você a praticarem uma imbecilidade infundada! –Indignado, olhou para o parceiro como se sua expressão de enfado dissesse: “Você acredita napetulância desse bundão?”. Mas Evanílson tinha sua vigilância destinada exclusivamente aointruso, fuzilando o gigante com sua mirada fria e afiada feito lâmina.

Damião tentou fazer novamente uso da palavra no instante em que a pequena pausa sefez, mas foi interrompido depressa por Mirosmar:

– Toda anta é preconceituosa e ignorante; você nunca viu isso, não? O preconceito éuma praga que nenhum professor ensina, qualquer um pode aprendê-lo sozinho. Mas você já viu,por exemplo, alguém ser médico sem ter frequentado uma boa universidade? Não, né? Aeducação boa custa caro, mas a merda vem de graça! Racismo, preconceito, intolerância,discriminação... Pessoas como você, que têm o cérebro pouco desenvolvido para habilidadesrealmente extraordinárias, aprendem tudo isso depressa, chega a ser contagioso como umaepidemia que se propaga com o vento!

Engolindo o ódio, Damião sentiu-se disposto a ignorar os insultos que ouviu dohomossexual para dar vida a sua missão:

– Conheço uma igreja que tem a cura para essa viadagem. Gostaria de levar vocês doisaté lá! Quero ser o guia espiritual de vocês e mostrar o caminho da salvação... Vocês não estãoperdidos por completo, eu juro! Ainda há misericórdia! – Proferiu tais palavras como seoferecesse a cura para um câncer maligno. E antes que tivesse resposta, continuou: – Falei com o

padre e ele fará a reversão! Mas devemos ir logo, pois vocês já estão em um caminho muitoperigoso. Um caminho que em breve não terá mais volta...

– Exorcismo? – Averiguou Mirosmar, zombeteiro.– Não, reversão!– Benzedura, exorcismo, reversão, simpatia, descarrego... Se extraterrestres existem, e

estão nos observando, eles certamente rolam de rir do ser humano e essa necessidade deexpelirem sua maldade através de unguentos, pé de coelho, hóstias, fumacinhas sagradas, ave-marias... No mundo inteiro a religião coloca o homem contra o homem, estimulando o ódionatural que já existe dentro dele. Manipulando acéfalos como você, que vivem em nome deacabar com o pecado; não o pecado da crueldade e injustiça, mas o pecado de amarmos uns aosoutros como iguais.

Evanílson enrolou os bigodes, sentindo o rosto queimar de cólera. Acariciou a peixeirapor debaixo do balcão com o desejo de passá-la no bucho do abusado. Sorveu a situação com umaborrecimento que crescia veloz. Não dialogaria de forma alguma com esse cretino, comoMirosmar vinha fazendo, sequer para brincar com a situação. Trocou um olhar com seucompanheiro que ria nesse momento, encarando Damião de forma sarcástica.

Sem poder aguentar mais, falou em voz alta, levantando-se em um pulo inesperado:– Oxente, seu fio da moléstia! Você acha que nossos ouvidos são pinicos?Damião se surpreendeu com a reação do homem, dando um passo para trás.Mirosmar interveio, levantando-se também:– Não se aperreie não, Evanílson! – Falou em uma conversa bilateral, como se Damião

não estivesse ali: – A igrejinha dele está preocupada com as bibas faz tempo, tudo porqueaqueles homens em cima do palco, usando vestidinhos, não podem casar! Ora, não entendo: Porque esses desgracentos que nem mulheres podem ter se preocupam com o matrimônio dosoutros? Será vontade de molhar o brioco, é? – E soltando um sorriso debochado, completou: –Seu padreco não transa, meu fio! E os anormais aqui somos nós, por quê? – Dirigindo-seexclusivamente ao companheiro, indagou: – Pode um bicho feio desses vir até aqui para nosoferecer um exorcismo?

– Vocês não querem compreender! – Gritou Damião, enfurecendo-se agora ainda maisque antes. O afeminado era articulado e usou as palavras de uma forma que o intimidou. Estavapreparado para revidar, mas o casal não lhe deu a vez. Para mostrar que não era intolerante e nemmais um fanático de igreja, escutou os malditos hereges. Acreditava que se fosse paciente obastante, encontraria a forma ideal de convertê-los; afinal, essa era sua missão.

Evanílson prosseguiu sarcástico, percebendo que o agastamento do homem começava aaumentar de forma evidente:

– A igreja faz rebu com o tema da homossexualidade só para ficar livre dos escândalosde pedofilia! Por que não existe reversão aos padrecos pedófilos, hein? Ou para osestelionatários e sangue sungas? Ou aos evangélicos lavadores de cérebro? A esmagadoramaioria dos molestadores de crianças são os heterossexuais! Tem exorcismo para eles tambémna sua igreja?

Damião ruborizou de raiva.Sentindo-se atacado e ultrajado de forma covarde, bradou categoricamente:– Não vim aqui propor salvação para a humanidade, mas para a sacanagem de vocês!– Ah, meu querido! Sim! Por favor! Salve a sacanagem! Deixe-a viver e ser feliz! O

mundo já está chato demais com tantos pregadores de ressurreição e apocalipse. – Os homossexuais são uma praga para a humanidade! Uma ameaça ao conceito sagrado

da família...– Não, meu lindo! A praga da humanidade é a “moral”! Principalmente quando cai na

ideia de fanáticos e jegues como você! Ninguém sabe de onde a moral veio nem para onde vai,mas todo mundo quer falar em nome dela para parecer melhor que os demais; escarafunchando avida alheia, metendo o nariz onde não são chamados na procura constante de mais umaimoralidade! Tem muito machista reprimido na sua igreja, louco para levar um pelo toba e nãosabe como assumir isso! Indecência é a repressão! – Disse de forma determinante, perdendo afeminilidade habitual para assumir um tom feroz. Os olhos estavam injetados de raiva e aomesmo tempo de ironia. Encontrava-se disposto a dar uma lição no homem plantado a sua frente,igual cansou de fazer em Pernambuco, antes de chegar à cidade de Brasília.

Mais disposto agora a participar da gozação do que furar a artéria do atrevido, Evanílsonlevou a provocação adiante:

– Vixi, é bem certo isso! Eles tiram o deles da reta para colocar na dos outros! Oxe,palavrinha malacafenta essa tal de moral, viu! Deixa todo mundo meio abestado! – Olhandomuito seriamente para Damião, Evanílson perguntou em seguida: – Você sabe onde eu passo amoral? – Em pé, para que seu espectador pudesse vê-lo nitidamente, apertou o pênis bruscamentecom a mão bem aberta e disse em tom de escárnio: – Aqui, óh! Eu passo na vara!

Mirosmar explodiu em uma gargalhada enquanto Damião ruborizou ainda mais, tanto deraiva quanto vergonha. Evanílson continuou com a mão no pênis por alguns segundos, encarandoDamião diretamente nos olhos. Depois se sentou, sorvendo com prazer a face escandalizada domachista. Estava preparado para uma briga com facão se Damião fornecesse uma pequenamostra de músculos que fosse. Mostraria ao intrometido quem era o “pirobo” ali, colocando opinta-brava para correr à base do muque; ou na pior das hipóteses, abrindo-lhe o bucho com apeixeira.

Depois de controlar o riso e desejando não perder a diversão, Mirosmar prosseguiu:– Rapaz, por que sua igreja não faz esses movimentos de “reversão” para erradicar a

fome e a miséria no mundo? Não tem muito miserento dando sopa por aí, não? Malditas igrejasque condenam a camisinha e o aborto, enquanto cresce o número da natalidade de maismiseráveis; enquanto mulheres morrem operadas em açougues! Depois o povo quer discutirainda a tal da “ética”! Em países onde pobres fazem filhos como coelhos, a ética não existe!

– Era só o que me faltava – Evanílson prosseguiu em seguida, deixando novamenteDamião sem oportunidade de falar: – parece que quanto mais o mundo gira, mais abestalhadas aspessoas ficam... Há alguns séculos, a homossexualidade era totalmente tolerada e praticada, semreprimendas ou caçadas. – Ainda sentado, notou como os olhos do hostil lançavam fogo contraeles. Preparando-se antecipadamente para um possível enfrentamento corporal, continuou aprovocação: – São bestas como você que deixam nosso mundo mais intolerante e improdutivo!Na tradição Judaico-cristã, teólogos e estudiosos da Bíblia continuam a discordar das seispassagens na Bíblia, que têm sido usadas para condenar o homossexualismo.

Damião engoliu o pouco de saliva que restava na boca seca. O clima se armava contraele. As condições eram desfavoráveis, dado que estava em território alheio e não tinhaconhecimento sobre as informações que escutava; e nem outras, para usar ao seu favor.Tampouco permitiria ser insultado por dois gays, que o venciam tanto em astúcia, quanto emargumentos que inventavam com muita propriedade.

Antes que os viados caíssem em novas gargalhadas, proferiu em alto e bom som:– Olha aqui, seus “cabeças chatas” de merda, a igreja católica não admite que se façam

comparações entre a união de pessoas do mesmo sexo e o matrimônio no sentido cristão do

termo! Tudo isso aí que vocês estão dizendo não passa de blasfêmia e heresia. Com que direitoduas bichonas como vocês falam da Bíblia, retorcendo as palavras dela, assim?

Mirosmar segurou Evanílson pelo pulso e o apertou, pois sabia que se a carruagemcontinuasse a correr dessa forma, a peixeira seria usada.

– Fio duma rapariga, avisa lá pro padreco com quem você costuma relinchar, que SãoSergio, São Baco, São Sebastiao, entre outros santos menos reprimidos, também eramhomossexuais! Se Deus criou tudo no universo, então, também inventou as mulas como você eas “bichas” como nós! – Ele se levantou, cruzou os braços na frente do peito e o desafiou com acabeça erguida e uma mirada desafiadora. Com a paciência esgotada, disse quase em um grito: –Pior do que o homossexualismo é a homofobia, meu fio! Desrespeito é apontar ohomossexualismo como doença; é pessoas se acharem no direito de atacar outras que não agemcomo a igreja determina! Vocês reverenciam a heterossexualidade como se não existissesacanagem das feias nesse meio. Gritam em nome de Deus e de deuses, sempre com o dedoempinado, apontando-o no nariz dos outros, ditando regras e mais regras, ordenando que omundo inteiro pense exatamente como sua manada espera! – Com a voz alterada, e sempaciência para seguir a delonga com o homem besta, finalizou a conversa com uma ordemtaxativa, muito abruptamente: – E agora, rale daqui e não volte nunca mais! Sua presença não ébem vinda!

Damião engoliu em seco. Fechou a mão em punho, louco para saltar por cima do balcãoe colocar palavra por palavra de volta na boca do afeminado. Sua voz saiu trêmula quando disse:

– Vocês são hereges sujos! Duas bichonas velhas e nojentas! Não sei por que perdi meutempo tentando ajudar dois arrombados como vocês! Espero que queimem no inferno e voltempara o lugar de onde nunca deveriam ter saído!

– Que Deus ouça suas preces! – Respondeu Mirosmar sarcasticamente – A gentetambém espera!

Evanílson levantou da banqueta, posicionando-se ao lado do parceiro e encaroudesafiadoramente os olhos de Damião. Com um olho no gigante branco e outro na peixeira logoabaixo do balcão, perguntou em tom de ameaça, arregaçando as mangas da camisa:

– Você é idiota? Não escutou? Vá rezar sua ladainha em outra freguesia! – Ordenou. –Nunca mais apareça aqui ou o bicho vai pegar pro seu lado, entendeu?

O rosto de Damião se transformou em uma máscara borrada de aversão. Jamais poderiasupor que um dia, ao tentar fazer o bem, seria ameaçado e constrangido por duas bibas tãoastutas. Se não tivesse problemas com a polícia, teria deixado sua fúria assassina falar mais alto.

Indignado por não poder fazer justiça e arrancar respeito dos homossexuais queinsultavam a ele, a igreja, e o santo nome de Deus, engoliu cada desaforo como se tragasseamargas doses de veneno. Resistiu a mirada de seus inimigos por alguns segundos mais. Depois,balançou a cabeça negativamente e cuspiu no chão, abandonando o local.

Na semana que comemorava o aniversário de Ceilândia, Damião já tinha a vingança

preparada. Os moradores haviam saído cedo de suas casas a caminho da grande festa, deixando obairro e a rua deserta.

A música vinha de longe. A rua escura ficava ligeiramente iluminada somente quando osfogos de artifício explodiam no céu.

Certo de que seus inimigos participavam da festança, frente à escuridão da casa porvolta das 20 horas, Damião agiu veloz. Rondou o estabelecimento e fumou um cigarro na frenteda loja de tecidos, olhando para todos os lados nervosamente. Sem ver alma viva no lugarejo,

muniu-se de coragem e entusiasmo ao refletir sobre a nobre causa de deixar dois trastes em umaeira sem beira. Após dar um pontapé na porta da loja, viu com assombro a mesma balançar todaa estrutura sem abrir-se. Sentiu o coração disparado. Tornou a correr os olhos por todo arredorpara certificar-se que não era visto, e acendeu outro cigarro. Quando novos fogos explodiram nocéu, aproveitou o estrondo para meter novamente o pé na porta e mascarar o barulho. Dessa vez,impulsionado com toda sua força, a porta foi abaixo. Sem mais tempo a perder com precauções,entrou apressado na loja. Tirou uma vela do bolso, riscou um palito de fósforo e acendeu o toco.Agarrou um pedaço de pano por cima dos inúmeros tecidos, para em seguida colocar fogo naponta dele. Fez o mesmo na pilha de tecidos no outro canto, observando extasiado as chamas sedesenvolverem depressa. Menos de dois minutos depois, favorecido pelo material inflamável dointerior e das próprias paredes de madeira, a loja estava praticamente em labaredas.

Com o coração ainda palpitante e as mãos trêmulas, deu-se por satisfeito. “Um trabalhorápido, limpo e eficiente!”. Precisava desaparecer dali antes que algum verme o visse. Decidido acomemorar sua façanha, correu em direção à folia, enquanto deixava o calor das labaredas atrásde si atuar.

Por casualidade, encontrou alguns colegas da obra assim que chegou à festa. Em um

grupo de quatro homens, compraram uma garrafa de vodca que durou pouco mais de uma hora.Quando a primeira garrafa terminou, dividiram outra. Estavam muito animados, dançando commulheres desconhecidas que se deixavam embalar; e insultando outras, que se faziam difíceis.

Eram mais de cinco horas da manhã quando a festa deu os primeiros ares de término. Derepente a música foi cortada e as barracas começaram a fechar. Assim como os festeiros, quecomeçaram a deixar o local pouco a pouco, a escuridão cedia lugar aos primeiros traços da luz dosol que aparecia no horizonte. Damião se despediu dos colegas e tomou o caminho de casa.Cambaleava e tropeçava com os próprios pés a cada dez passos, sem poder manter-se em linhareta. Fedia a álcool e sua roupa estava imunda, manchada de suor, bebida e sujeira. Levava ocabelo desgrenhado, barba de dois dias e olhos pesados. Ao iniciar a subida da rua que dava parao barraco, deparou com um carro de bombeiros frente à loja incendiada. Um aglomerado decuriosos que voltava da festa - e nesse instante bisbilhotava e lamentava a desgraça dosmoradores afetados pelo fogo - contemplava a destruição. Por infelicidade, quatros casas demadeira, coladas ao lado da loja, também foram incendiadas. Parecia que os bombeiros haviamterminado o trabalho de toda uma noite somente naquele momento. Estava tão bêbado edespreocupado, que esquecera o crime cometido horas antes. O pandemônio dos moradores, océu pintado de preto e o cheiro de fumaça quase intragável, fizeram-no lembrar-se de tudo navelocidade de um flash. Ao ver Evanílson ajudar Mirasmar (esse parecendo estar em choque),caminhar até a ambulância, o efeito da bebedeira passou quase que milagrosamente, fazendo-ocaminhar em passos lentos e precavidos.

Convicto de que ninguém o vira incendiar a loja, controlou a respiração e caminhou decabeça erguida entre os bombeiros, vizinhos e policiais, adotando uma postura tranquila de nãodever nada a ninguém. Esforçou-se ao máximo para não trocar os pés e conseguir passar pelogentio como um morador mais que voltava da festa.

Em um movimento involuntário do corpo, baixou a cabeça quando viu o casal dehomossexuais parado na porta aberta da ambulância. E então, escutou Evanílson gritar atrás desi:

– POLÍCIA! FOI AQUELE CABRA DA PESTE, FIO DUMA LAZARENTA ALI!O nordestino continuou com o dedo apontado em direção a Damião quando ele virou a

cabeça para trás. Sem saber o que fazer e traído novamente pelo próprio corpo, acelerou ospassos e começou a correr o mais rápido que pode.

Com o passar dos últimos anos, aprendera a conhecer Ceilândia como ninguém. Correupor mais de vinte minutos seguidos sem olhar para trás. Pulou muros e entrou em vielas,ultrapassou cercados; invadiu casas e matagais até perder o barulho das sirenes policiais emalgum lugar do espaço.

Encontrou o colégio abandonado onde viviam os mendigos, e constatou que o númerode desabrigados havia triplicado. Sentia-se exausto e condenou sua burrice, socando a cabeçacom os punhos fechados. Tudo que possuía estava no barraco alugado. Outra vez, teria quedeixar seus pertences para trás e recomeçar a vida em outro lugar apenas com a roupa do corpo.Amaldiçoou os viados, culpando-os por sua desgraça. Entre o conflito desesperador que o afligia,o ódio pelo casal era ainda maior do que tudo. Triste e preocupado com o rumo dosacontecimentos de sua vida, Damião adormeceu entre as fezes dos mendigos, no único espaçodesocupado que encontrou.

Ao acordar, já depois do meio-dia, tomou uma decisão. Damião conheceu quase todo o país no decorrer dos anos seguintes. Viajou de

caminhão por vários lugares entre estados, municípios e cidades. Como uma espécie de imã, osproblemas o perseguiam onde quer que fosse. Quando conseguia montar moradia fixa, láestavam os pais de algum garoto em sua porta, acusando-o de pederastia, pedofilia ou efebofilia(palavra que conheceu no jornal, quando seus atos ainda não tinham autoria reconhecida).

Na cidade de São Paulo, a comunidade quase o lixou por ter metido um garoto de dezanos dentro da caixa de sapatos em que vivia, com o pretexto de ensiná-lo a jogar truco. No Pará,suspeito principal de ter seduzido um menor, foi capturado pela polícia, mas fugiu pela janela dobanheiro da delegacia antes que os policiais tivessem tempo de associá-lo aos outros crimes.

No Rio de Janeiro era procurado pela polícia por ter enganado vários meninos carentesque viviam próximo à favela da Rocinha. Damião dizia ser pastor e induzia às crianças pobres dazona a escutar seus contos. Alimentava a cabeça das mesmas com histórias milagrosas de amor eesperança. Jogava futebol e bolinha de gude com elas. Levava doces, construía pipas, pagavalanches, distribuía beijos e abraços. Quando adquiria a confiança dos meninos, introduziaassuntos relacionados ao sexo e aos órgãos genitais, para logo pedir que lhe fizessem sexo oral.Em troca, prometia aos garotos conversar pessoalmente com Deus e apressar os presentes quemereciam ganhar; entre eles: bicicletas e bolas de futebol.

Ao engodar um menino com sua lábia afiada e conseguir o que desejava, Damiãocostumava se tranquilizar por algum período. Preocupava-se somente com seu trabalho e tomarumas canas vez por outras, esquecido de sua perversão sexual (a qual considerava pura), maslamentavelmente ilegal. Não chamava atenção e passava despercebido pelas pessoas por mais deum ano, jurando nesses períodos pela alma do padre falecido, que jamais voltaria a tocar em umacriança. Às vezes conseguia passar até dois anos longe de confusão, mas logo um adolescente davizinhança lhe deixava excitado, ou um viado o irritava. Por três vezes avistara um grupo dehomossexuais transitando pela calçada, desde o alto da obra onde trabalhava. Nas trêsoportunidades, alguém do grupo saiu com a cabeça sangrando, acertada por um tijolo caído docéu. O encarregado o entendeu da última vez, pois como fora visto por um colega quando o tijolo“caiu” de sua mão, teve que reconhecer o “acidente”. Das duas primeiras vezes se fez dedesentendido e alegou não ter ideia de como os tijolos poderiam ter caído. Divertia-se com aspequenas maldades que fazia contra os gays, mas a ideia de voltar a assassinar um deles estava

totalmente fora de questionamento. Preferia colocar o pé na frente deles quando os encontravacaminhando na rua e vê-los tropeçar ou cair; jogar-lhes tijolos na cabeça e atirar pedras nascostas, do que voltar a assassinar. Quando encontrava um gay solitário em seu caminho, batia demão cheia na cara dele e continuava caminhando como se nada tivesse acontecido.

Depois de ser descoberto e ficar conhecido como o “falso padre” do Rio de Janeiro,chegou a Minas Gerais. Na cidade de Belo Horizonte por mais que tivesse buscadoincessantemente, não conseguiu emprego. Emagreceu de forma drástica ao ponto de perder ascalças, quando a sorte finalmente lhe voltou a sorrir. Trabalhou como ajudante de gesseiro paraum homem jovem e tatuado, chamado Uzias, conhecido pela alcunha de: Cuzão. O serviço erafácil, porém pagava uma miséria, mas Damião tinha a vantagem de poder dormir na fábrica ondeproduziam o gesso e economizar no aluguel. A amizade entre os dois resultou, para o espanto deDamião, fácil e rápida. Uzias tinha apenas um cliente, e quando este forrou os tetos da sala e osquartos com gesso para embutir a iluminação, esconder ferragens e iluminar vigas, os doishomens ficaram sem trabalho. O gesso é um material caro e considerado de luxo. Embora dessetodo o requinte no interior das residências, as pessoas se limitavam devido ao preço. Uzias vinhalutando desde que saíra da cadeia, quase dois anos antes, para manter o pequeno negócio aberto.Trabalhar com gesso fora uma tradição na família do homem tatuado e um oficio herdado porseu pai. Era tudo que sabia fazer e não se via trabalhando com outra coisa. A fábrica tambémfora deixada como herança quando seu pai faleceu.

Ao enfrentar a primeira crise com a fábrica de gesso anos antes, e não ter dinheirosequer para pagar metade das contas, Uzias entrou em um esquema de drogas e começou avender maconha. Com o dinheiro fácil e a ambição por ganhar mais, receptou quilos de maconhae cocaína. Trabalhava não só com usuários, mas também revendia a pequenos traficantes. Onegócio começou a crescer e prosperar, e o dinheiro entrou como água pela janela. Uzias fumavamaconha desde muito jovem, mas jamais tinha se dado ao luxo de cheirar pó. Ao ver-se montadono dinheiro e com um trabalho lucrativo, passou a cheirar cocaína com notas de cem reais. Mas onegócio veio abaixo quando um dos principais traficantes do esquema (que cumpria pena portráfico em regime semiaberto), planejou invadir uma favela na região noroeste de BeloHorizonte. A polícia (que já monitorava essa base de operação há meses) apreendeu armas, umveículo blindado, meia tonelada de maconha, quatro quilos de cocaína e dois de crack. Naoperação, bandidos foram presos em flagrante, inclusive Uzias, que acabou arrastado comocúmplice no negócio do tráfico. Como era réu primário, não tinha antecedentes criminais,possuía apenas quatro buchas de maconha no bolso quando o encontraram, e não resistiu aprisão, foi enquadrado no artigo 33 e condenado a um ano e oito meses de reclusão em regimefechado. Após cumprir pena e viver um inferno durante esse tempo de reclusão, jurou a simesmo que jamais seria arrastado novamente. O tráfico era coisa do passado.

Uzias sequer conseguiu pagar a última semana de trabalho de Damião, pois aindadeveria saldar o fornecedor do material e acertar as despesas de água e luz atrasadas. Damiãocontinuou morando na fábrica enquanto buscava trabalho nas construções. Uzias seguiabuscando clientes, sem êxito. Chegou a pensar em vender o automóvel, mas o necessitava paratrabalhar com gesso. No final de duas semanas caçando trabalho, o resultado foi frustrante. Nãohavia dinheiro nem para comer e ambos se encontravam em situação desesperante. Uzias tinhaprometido a si mesmo que jamais voltaria a cometer algo ilegal, e que preferia se matar antes devoltar para uma prisão. Porém, encontrava-se em uma situação de urgência. Se encontrasse oparceiro certo para cometer um assalto bem sucedido, teriam dinheiro e ganhariam tempo pararestabelecer o negócio com gesso.

Ao conversar com Damião e propor um assalto em um posto de gasolina, colocou todosos argumentos para convencê-lo.

– Não temos armas, como faríamos isso? – Perguntou Damião, impreciso.Como se Uzias já esperasse pela pergunta, tirou de uma sacola algo envolto por um

pano. Quando desembrulhou, deixou à vista dois revólveres calibre 38.– Uau! Que tetéias! – Damião pareceu uma criança impressionada diante de um

brinquedo luxuoso. – Onde você conseguiu isso?– Quem tem amigos tem tudo! Mas e aí, topa fazer o serviço ou não?– Você está brincando comigo? É claro que topo! Sempre sonhei em usar uma joia

dessas!Uzias percebeu o olhar de fascinação do companheiro enquanto ele manuseava a arma.

Cauteloso, acrescentou categórico:– Ok! Mas o trato é ninguém sair ferido, certo? As armas serão apenas ilustrativas. Dirigiram até o bairro Minaslândia, Região Norte de Belo Horizonte. Eram 22 horas

quando estacionaram o Fiat 147 branco, frente à loja de conveniências do posto. Os doisbandidos usavam roupas de uso corrente e bonés que lhe tampavam parte dos olhos. Enquanto osdois frentistas conversavam no lado de fora, Damião rendia a balconista com o revólverapontado na testa dela, no lado de dentro.

Uzias se ocupava em mandar os dois clientes da loja deitarem no chão de boca parabaixo ao mesmo tempo em que cuidava da porta. Damião abriu o caixa e colocou notas e moedasdentro de uma sacola plástica forrada. O serviço durou menos de dois minutos. Prestes a sair,Damião tornou a observar a balconista que trancava a respiração enquanto lágrimas de medobrotavam em sua face. Percebeu por debaixo do gorro que ela usava cabelos curtos, raspados nanuca. Desconfiado, engatilhou a arma.

– Você é lésbica? – Perguntou encarando-a com raiva, esquecendo-se de proteger o rostocom a aba do boné.

Ela começou a tremer. Dominado por um estranho fascínio de usar uma arma depotência, disparou. A decepção ficou estampada em seu rosto quando notou que a arma estavasem balas. Não houve estouro ou fumaça, nem pólvora nas mãos ou sangue. Apenas o gritoinfinito da garota ameaçada, na certeza de que a morte havia batido em sua porta e a levarianaquele segundo. O momento ficou marcado por um revólver sem balas.

Uzias chegou por trás dele e o puxou com violência.– Vamos embora, porra! – Gritou, em um brado autoritário e urgente.Os dois abandonaram o lugar saindo de costas: Damião na frente, e Uzias logo atrás

dele. Quando Uzias ligou o carro, saiu cavando pneus. Dirigia alucinado enquanto Damiãocontava o dinheiro no saco. Haviam arrecadado 347 reais em notas e ao redor de 60 reais mais,em moedas.

– Você está louco, velho? – Uzias perguntou enfurecido, ao mesmo tempo em quepisava o pé no fundo do acelerador. – Que merda de papo foi aquele de “lésbica”?

Damião o olhou com desprezo.– Por que meu revólver estava sem balas?– Ora, você deveria me agradecer por isso! Se a arma estivesse carregada, a essa altura

você poderia se considerar um assassino! – Gritou, incrédulo.Damião o ignorou. Não tinha nada para agradecer. Uzias não sabia, mas desde que

matara o jovem travesti na Ceilândia com quarenta facadas, já era um assassino. A recordação fê-lo estremecer por um súbito pânico. Foi um ato arriscado, realizado de cabeça quente. Estavacego de ódio àquela noite porque o pirralho, pintado feito uma puta, chamou-o de “meu bem”.Lembrou-se ainda das incontáveis semanas em que o medo de ser preso o perseguiu, temendoque a polícia pudesse chegar ao seu trabalho ou bater na porta de sua casa a qualquer instante,acusando-o de assassino. Passaria o resto da vida na prisão por ter matado um depravado, e issoo atormentava muito mais do que o ato em si.

No dia seguinte, Damião e Uzias assistiram pela TV uma breve notícia sobre o assalto.

A balconista estava de costas enquanto dava testemunho sobre o crime, e acrescentava que oassaltante havia questionado sua sexualidade. A reportagem era sobre o crime organizado emMinas Gerais, a promessa de reforço policial em toda região e a captura sem demora dosassaltantes. Em seguida, as imagens das câmeras de segurança do posto de gasolina mostraram orosto de Damião no momento exato em que ele apontava o revólver na testa da balconista.

Os dois estavam prestes a comemorar quando viram a imagem. Imediatamente,entenderam que seriam presos.

– Você é um completo idiota! – Uzias afirmou quando viu a imagem da câmeramostrando o rosto do comparsa. – Você teria atirado na garota se a arma não tivessedescarregada! Como pode fazer isso? Estaríamos fodidos agora!

Outra vez, um calafrio estremeceu os ossos de Damião. Ele sabia que Cuzão estavacerto, e que se o revólver tivesse balas no momento do assalto, teria atirado na lésbica do posto.

– Eu só queria brincar com ela...– Uma ova! – Uzias gritou. – Você teria matado a infeliz se a arma estivesse carregada!Sem tempo para discutir, fecharam a fábrica depois de carregar o Fiat 147 com o

necessário. Abandonaram o local com a pretensão de começar a vida no Paraná. Damião sabiaque já era procurado pela polícia. Morria de medo de acabar na prisão, e ainda, ser reconhecidopelos crimes anteriores. Não se considerava um bandido, apenas reconhecia que a vida tinha sidoingrata com ele. Era um homem bom e devoto, descrevia a si mesmo, trabalhador e honrado,ainda que, talvez, as pessoas e a polícia não entendessem assim. Não merecia terminar seus diasem uma prisão cheia de bandidos perigosos. Estava disposto a se fixar em uma nova cidade erefazer a vida de outra forma. Jurou a si mesmo que se afastaria dos problemas e crimes.Afogaria o ódio que levava dentro de si, rezando pelos pecadores, e jamais voltaria a agredi-los.Deixaria os meninos em paz e levaria, tanto o segredo de ser pederasta quanto a relação quetivera com o padre, ao túmulo. Seria um novo homem e voltaria novamente a dormir em paz.

Reflexionou sobre os próprios pesares. A polícia buscava um homem magro, solteiro,sem nome e sem barbas.

Era chegado o momento de se estabelecer em um lugar que lhe desse emprego e umamulher, uma esposa de verdade que o afastasse das suspeitas policias de pederastia. Quando aencontrasse, estaria novamente livre, pronto para viver como um homem de bem.

Decidiu-se. O primeiro passo para a mudança e o nascimento do “Santo Damião”, seriadisfarçar o rosto branco, deixando a barba crescer. Outro passo importante para se livrar dosproblemas seria deixar meninos e homossexuais em paz. Enquanto isso, trataria de achar umamulher para viver, não importava quem fosse.

Tomás

Jogos infantis

6ª Intenção

Capítulo 11

Naquela semana, Molambo não apareceu e nem os amigos beberrões de Ana e Damião,como de costume. Após a “regra da descarga” e saber que deveriam racionar também o papelhigiênico (pois Damião começou a fiscalizar o tamanho de papel que usavam para se limparem),Tomás deixou de falar com ele.

A decisão de virar-lhe a cara não foi difícil de ser tomada, afinal, fora arrastado pelaorelha por Damião, do seu quarto ao banheiro, onde o padrasto mostrou através dos papéisusados na lixeira, que Tomás era esbanjador. Chamou-o de gastador e abusado repetidas vezes,criticando enfaticamente o desperdício de papel. Furioso, porque (de acordo com suas própriaspalavras), Tomás não dava valor ao dinheiro, ensinou o menino a limpar-se com economia,alegando que duas folhas de papel eram suficientes. E enfatizou que tomassem cuidado, pois apartir desse momento ele fiscalizaria pessoalmente o desperdício na casa, e quem não cumprisseas regras estaria em maus lençóis.

Por pouco Tomás não riu na cara dele. E teria rido, na verdade, se o barbudo nãoestivesse espumando pela boca, com aquela cara que só cachorros bravos ou loucos costumamfazer. Mas enquanto Damião espumava e ditava regras, Tomás disfarçava com uma expressãoobediente seus pensamentos:

O idiota já é o puxador de descargas oficial da casa, e se não bastasse, agora tambémvigia o papel higiênico usado! Oh vontade de mexer em bosta! Como minha mãe suporta essecheirador de merda?

A rotina de Tomás resumia-se em dormir e acordar, ir para escola, roubar cigarros,assaltar um ou dois reais da carteira do padrasto quando a mesma dispunha de algumas notasmais, chutar cachorros na rua e pensar em Molambo. Damião tentou algumas vezes reaproximar-se de Tomás, convidando-o para a sessão de filmes e oferecendo-lhe cigarro, mas o enteado pordentro do quarto - com a porta fechada à chave - fez de conta não escutá-lo, ignorando-o porcompleto. Tomás passou a comer apenas quando estava sozinho. Negava-se a sentar com suamãe quando Damião estava junto, inventando sempre alguma desculpa. Retornava na madrugadapara beliscar algo às escondidas, mas muitas vezes não encontrava nada para comer, pois obarbudo não perdera o costume de lamber as panelas; e sua mãe, que ultimamente vivia com acabeça na lua, não se lembrava de deixar-lhe algo. Por mais que tentasse, não a entendia. Por queela aturava esse bruto? Talvez sua mãe estivesse com o homem de barbas somente porque elepagava a conta da água. Tomás pensava que se tivesse dinheiro, poderia assumir essaresponsabilidade, e então, expulsar o encarregado da merda para sempre de suas vidas.

Entravam na terceira semana após o episódio com a descarga e o papel higiênico, eassim como sua mãe, Tomás também estava seguindo as regras à risca. Fazia poucas semanasque se acostumara a tomar banho regularmente, mas cada vez que estava no chuveiro, o padrastogritava do lado de fora para ele não demorar; algumas vezes o berro vinha antes mesmo de teralcançado o sabonete. Quando ele gritava, Tomás saía da forma que estava, tendo ou nãoterminado. No dia que escutou o primeiro grito, terminou o banho apenas tendo molhado o corpocom água. No segundo, chegou a passar o sabonete no rosto; e no terceiro, quando não fez nemcoisa nem outra, desistiu por completo de lavar-se. Decidiu que tomaria banho apenas às sextas-feiras ao meio-dia, quando voltasse da escola, pois estaria sozinho em casa, sem ninguém paracontrolá-lo; e se Molambo chegasse, estaria limpo para recebê-la.

Quando a sexta-feira chegou novamente, Tomás fez o que se havia proposto. Chegou daescola, largou a mochila no quarto, pegou uma cueca e foi direto para o banheiro. Aproveitouque estava sozinho em casa para deixar a água morninha, que caía com pouca força, escorrer porcima do corpo antes de começar a se ensaboar. Depois de tirar a espuma e desligar o chuveiro,secou-se com a toalha e vestiu a cueca limpa. Procurou um pouco de perfume, mas nãoencontrou nada. Imaginou que Damião só tinha barbas para não precisar gastar com gilete eloção. Que típico para um miserável como ele: Deixar a barba crescer e aparar com a tesoura.Deveria ser mais uma tática econômica, afinal, usar a tesoura para aparar a peruca que usava nacara era de graça.

Sentiu-se faminto quando finalmente terminou de usar o banheiro, lembrando que nãohavia comido desde à tarde do dia anterior. Estendeu a toalha usada no varal dentro do banheiro,e não se importou com o chão que ficou encharcado de água.

Pensava em fazer algo para comer, mas quando abriu a porta, deu de cara com Damiãoparado no lado de fora e levou um susto tremendo. Viu o padrasto encará-lo seriamente com osbraços cruzados em cima do peito. A barba suja de cimento e a expressão fria no rosto, atravésda fúria contida nos olhos castanhos, deixavam-no ainda mais intimidante.

– É isso que você está fazendo agora? Você pensa que pode me enganar? Eu chego maiscedo em casa para almoçar enquanto você fica aqui se divertindo, moleque? – Damião berroucom o dedo em riste para o enteado.

– O que foi que eu fiz dessa vez?– Não se faça de idiota! Quanto tempo você estava aí se emperiquitando?Tomás sentiu ódio de si mesmo por estar morrendo de medo e deixou transparecer

claramente.– Tava o que?– Se embonecando! Você acha mesmo que me engana? – Ele pegou Tomás pelo braço e

o sacudiu duas vezes. – Você acha que eu não sei do seu segredinho?Tomás se lembrou de Molambo, da cola que cheirara, do dinheiro que roubou da carteira

de Damião e da vizinha que ameaçou contar a sua mãe sobre o cachorro que chutara. As ideiasestavam embaralhadas, fervendo a toda potência sem que ele pudesse deduzir o que era afinalque o homem de barbas sabia. Na pior das hipóteses, se ele havia descoberto os 16 reaisescondidos (dinheiro desviado da carteira dele), provavelmente estaria em maus lençóis. Mas nãoseria besta em se entregar de graça, sem saber o que de fato o homem de barbas sabia. Frente àfúria ameaçadora do olhar que enfrentava, repetiu a pergunta:

– Sabe o que, hein?O padrasto fechou os olhos e soltou um sorrisinho cínico, balançando a cabeça de um

lado ao outro, lentamente.– Seu viadinho de merda! Sua mãe não vê que você é um boiola, mas a mim você não

engana!Por não saber o que dizer ou fazer, baixou a cabeça, fixando o olhar nos pés brancos,

ainda molhados, sentindo-se impotente para retrucar o brutamontes.– Venha aqui, eu preparei algo enquanto você se embonecava! – Damião alçou a orelha

direita de Tomás, arrastando-o até a sala. – Ajoelha aí! – Ordenou.Tomás viu muitos grãozinhos de milhos em cima de um papelão, antes que Damião o

curvasse de joelhos sobre eles. Seu coração bateu agitado dentro do peito, mas, impotente,precisou engolir a grande mescla entre raiva e vergonha que sentiu. Desejou gritar, pedir ajudar,chamar sua mãe... mas de acordo com ela, o homem de barbas o estava “educando”. Fosse lá o

que pretendia fazer, os métodos do brutamontes estavam dentro da tal cartilha educacional.Humilhado, começou a chorar baixinho.

Entre soluços, pediu:– Deixa pelo menos eu colocar uma bermuda. – Sentiu-se ridículo por estar ajoelhado de

cara com a parede, apenas de cueca, mostrando sua magreza para o estranho que o educava comoum pai tirano.

– Você está com vergonha? Levante agora! – Damião ordenou com um berro.Tomás obedeceu, tentando ignorar a dor que os grãos provocaram. Levantou-se, notando

que o milho agira depressa: seus joelhos já estavam vermelhos e marcados. Sem encarar opadrasto, que continuou parado frente a ele impedindo-lhe a passagem, estremeceu quando oescutou dizer:

– Tire a cueca!– Que?– Você é retardado? Não consegue me ouvir?– Mas...Damião arrancou com força a cueca que Tomás usava. O enteado tentou resistir; relutou

segurando-a no corpo, mas por pouco tempo. Quando ficou inteiramente nu, cobriu seu pêniscom as mãos. Diminuído, sem poder mais esconder a tristeza que trancara dentro de si, o chorosurgiu como uma explosão irregular de lágrimas, soluços e respiração descompassada. Lembrou-se da vez que levou uma surra do pai porque assou o gato no forno, e da forma como controlou omedo, apanhando dele sem derramar uma lágrima. Como conseguira ser tão valente com o pai,se com o homem de barbas seu corpo tremia dos pés a cabeça?

– Aprenda a ser homem, rapaz! Você sabe por que está chorando feito uma menina, né?Tomás soluçou uma vez mais e levantou a cabeça, acreditando que o padrasto lera seus

pensamentos. Porque você é um idiota covarde, talvez?– Não, não sei.– Porque sua mãe fez de você um viadinho! Eu vou consertá-lo nem que seja à base de

pontapés! Você vai tentar me enganar de novo? Vai mentir para mim?– Não, eu juro... Nunca mais! – Respondeu de cabeça baixa, esforçando-se para

controlar as lágrimas que saiam de dentro dele sem autorização.Agora, vê se me libera de uma vez, porcão!– Tira as mãos daí! – Damião desferiu um tapa nas mãos de Tomás que cobriam o órgão

genital desprotegido.Damião soltou uma gargalhada alta e demorada quando viu o enteado completamente

nu, chegando a colocar uma mão na barriga, como se as risadas lhe causassem algum tipo de dorcômica. Tomás voltou a se cobrir com as duas mãos, abafando o choro dentro de si, mas comuma tremedeira incontrolável nas pernas.

O padrasto apontou um dedo na direção dele, e ainda rindo, disse:– É isso que você tem no meio das pernas? Era isso que você estava escondendo? – Ao

perguntar isso, soltou mais uma gargalhada. – É melhor mesmo você esconder essa mixaria! Eagora, de joelhos. Cara na parede! Vamo, vamo, vamo! – Damião bateu palmas como se estivesseenxotando galinhas e Tomás virou-se de costas, ajoelhando-se sobre os grãos de milho. De ondeestava, aproveitou a posição para rezar, pedindo a Deus que um meteoro caísse na cabeça dohomem de barbas. Os joelhos começaram a doer ainda mais e ele tentou se mexer com discrição,aproveitando-se do momento em que o padrasto fritava algo na cozinha. Discretamente, começoua afastar os milhos, deixando os joelhos apoiados somente em cima do papelão. O alívio foi

imediato.Tomás escutou Damião mastigar a comida, viu uma lagartixa passear pela parede,

observou as teias de aranha no teto, uma bituca de cigarro e a grossa camada de poeira embaixodo sofá verde. Contou de 1 até 100, vagarosamente, e tornou a repetir a conta mais quatro oucinco vezes para matar o tempo. A única ideia que o animou foi pensar que sua mãe poderiachegar a qualquer momento e dar de cara com a cena. O que diria o homem de barbas? O queela diria? Enquanto se distraia com pensamentos, percebeu que a mesinha da televisão eraarrastada.

– Hei, moleque, vem aqui!Tomás apenas virou a cabeça para trás, receoso. Percebeu que os olhos de Damião

haviam perdido a agressividade de momento antes, retomando o tamanho real.– O castigo de hoje vai ser curto. Pode sentar aqui! Pegue um desses – Estendeu o maço

de cigarros, mas Tomás continuou ajoelhado sobre o jornal, com a cabeça ligeiramente voltadana direção do padrasto. – Venha, não precisa ter medo. Tudo que faço é para seu bem. Estouapenas transmitindo um pouco da educação que eu mesmo recebi. Ou você acha que eu não seicomo é ser criança? – Ele imitou algo parecido com um sorriso e continuou: – Você tem muitasorte! Sabia disso? Deveria agradecer a Deus por não lhe faltar nada em casa, ter comida todosos dias na mesa, um teto para morar, estar na escola... – Dando uma tragada no cigarro,prosseguiu altivamente: – Se eu tivesse tido sua oportunidade, hoje poderia ser dotô; andar comcarro do ano, viajar por esse mundão afora. Mas não; claro que não! Eu não tive chance de ir àescola, e precisei ralar desde cedo para colocar comida na minha mesa. Aprendi desde jovem adar valor às coisas. Para mim, nada veio de graça, rapaz! Tive que trabalhar para conseguir meupróprio pão. Eu conheço melhor que ninguém o valor do dinheiro. – Ele olhou Tomás para tercerteza que o garoto lhe prestava atenção, e então continuou: – Cheguei a ficar dois diasajoelhado no milho; apanhei muito com varinha de marmelo, ganhei tanto tapa na cara, dentro decasa e na rua, que cheguei a perder as contas. E você acha que alguém gosta de apanhar? Deganhar com o dedo de todo mundo na cara, dizendo o que devemos fazer e o que não podemosfazer? Não! É claro que não. Mas hoje vejo que as surras me ensinaram a ser gente. A vida édura, Tomás! Você tem uma boa chance de aprender, mas isso é escolha sua. Enquanto você nãofor dono do seu próprio nariz, deve aprender a dançar conforme a música. Quando tiveroportunidade de mandar, vai exigir que obedeçam você, compreendeu? Não esqueça que vocêainda tem salvação! E um dia vai me agradecer por isso.

Por mais que Tomás estivesse com raiva, não pode deixar de escutar o padrasto.Salvação... salvação... salvação de que? Eu não tenho salvação e as crianças não são a

salvação de nada! Bonito nas crianças são os sonhos, mas os sonhos bonitos morrem quandoelas crescem. Os adultos de hoje são as crianças de ontem. Nada mudou, e se mudou, foi parapior. O barbudo também foi uma criança um dia. Quem poderia dizer que ele já teve sonhos?Quem disse que um dia, quando criança, ele seria a salvação de algo? Será que ele apanhoumesmo? Daria tudo para ver isso! Ele teve que trabalhar a vida inteira, desde pequeno, e o queele tem? Um vídeo cassete e uma televisão velha... Mas sequer uma gilete! Ah não, quando eutiver a idade dele, terei o mundo aos meus pés, e se Deus quiser, mostrarei ao homem de barbasquem manda aqui...

– Venha logo, garoto! O filme já começou!Tomás levantou devagar. Quando ficou em pé, massageou os joelhos suavemente

sentindo a aspereza deixada pelo milho em sua pele. Pensou em caminhar até o quarto e vestir abermuda, mas não queria que o homem de barbas o chamasse de “viadinho” outra vez. Talvez os

homens fiquem nus uns na frente dos outros, pensou, inseguro. Com timidez, sentou-se no cantodireito do sofá e aceitou o cigarro. Damião permaneceu calado enquanto assistia ao filme,vidrado nas cenas de pornografia, com uma mão enfiada por debaixo do calção.

Quando Ana chegou, perto do anoitecer, a paz reinava na casa. Tomás e Damião

preparavam bolinhos de arroz na cozinha enquanto a rádio tocava uma antiga canção dosBeatles.

Embora sem fome, Tomás empurrou três ou quatro bolinhos goela abaixo quando os

primeiros saíram do óleo quente. Estava tão ansioso que perdera a monstruosa fome que sentira,mas comeu assim mesmo.

Após acabar o filme que assistiram juntos, Damião deu mais uma aula sobre “educação”e contou outra parte dura de sua infância. Tomás se perguntou quanto tempo duraria aquelaconversa, preocupado consigo mesmo, ainda desprovido de roupa, temendo que alguém pudessechegar. O padrasto retomara a parte de suas lembranças onde dizia que hoje seria dotô se tivesseestudado. Que lengalenga infinita! Tomás refletia enquanto o escutava falar: Ué, mas por quetodo mundo que não estudou acredita que poderia ter sido alguém melhor? Parece que osadultos adoram colocar as próprias desgraças como exemplo para outros...

Quando Damião avisou que receberiam visitas, Tomás correu para o quarto, vestiu umacalça jeans, e ajudou Damião a preparar bolinhos.

Foi-se o tempo em que ele odiou as noites de cerveja, pois percebera que nessas noitestodos ficavam felizes, sobretudo sua mãe e o padrasto. Como ninguém reparava nele, podiaroubar cigarros, ir e vir do quarto sem ser notado, afanar dinheiro na carteira de Damião; e omais importante: podia acreditar que Molambo chegaria.

Procurou o dinheiro que havia escondido no forro do colchão, separou uma parte, ecorreu até à venda para comprar um maço de Derby. Estava acostumado a comprar esse mesmocigarro para Damião, e o homem da venda já o conhecia.

Quando voltou para casa, os pais de Molambo e outro casal haviam acabado de chegar,enquanto sua mãe despontava da cozinha com um prato de polenta frita nas mãos.

Cumprimentou a todos com um sorriso atípico, procurando sua amada com os olhos.– Molambo está no seu quarto, querido! – Avisou Ana, sabendo que o menino ficaria

feliz com a notícia.Ele balançou a cabeça sem sorrir, segurando a vontade de correr até o quarto, vendo o

homem de barbas brindar com o pai de Molambo, batendo os copos de cerveja um no outro. Molambo estava de costas para ele debruçada na janela, fumando um cigarro. Vestia

minissaia azul e uma blusa que deixava parte de suas costas à vista. Parecia ainda mais alta que aúltima vez que a vira; notou, enquanto admirava os cabelos cor de fogo soltos, colocados porcima do ombro direito.

Ao fechar a porta atrás de si, Molambo se virou para ele.– Oi! – Ela o saudou com polidez, abrindo um sorriso.– Por que você sumiu?– Eu não sumi! Continuei lá onde estava!– Ah, você entendeu... – Tomás corou ao ver o sorriso maroto naqueles lábios divinos.

Ao perceber que seus olhos fuzilavam os seios de Molambo, envergonhou-se e desviou a miradaindiscreta para a cicatriz dela, disfarçando sua falta de graça.

– Como você está? – Ela perguntou.Tomás pensou por um instante antes de responder a essa simples indagação cordial,

composta de três palavras. Percebeu que jamais alguém, fora sua mãe, fizera essa pergunta paraele antes. Como você está? Escutava os adultos investigando uns aos outros, mas nuncaperguntavam para ele. Os adultos acham que as crianças estão sempre bem, é logico! Ou nãoperguntam para não precisar escutar a resposta.

Ele tornou a refletir. Eu estou bem?Estou louco por você, posso beijá-la agora? Quase morri de saudades! Você se vestiu

assim para mim?– Tudo ótimo. E você? – Respondeu simplesmente.– Ah, vou levando...– “Levando” por quê? Aconteceu alguma coisa? – Inquiriu, temendo de antemão a

réplica. Fosse lá o que a menina tivesse ou precisasse, ele não poderia ajudá-la. Observou a simesmo; ainda não sabia o que fazer com as próprias mãos, onde colocá-las, o melhor momentode sorrir... Como poderia aconselhar alguém?

Molambo jogou a bituca de cigarro pela janela, depois pegou o travesseiro da cama deTomás e sentou no chão, com as pernas recolhidas em posição de borboleta e o travesseiro nocolo. Fitou o amigo com uma expressão que dizia: Falo ou não falo?

Ao lado de Molambo, Tomás se sentia adulto. Ela o tratava como alguém confiável, enesse momento, estava prestes a confiar-lhe um problema. Ainda que não tivesse as respostas ouque pudesse ajudá-la, estava disposto a seguir representando seu papel. Desejavadesesperadamente crescer, provar seu valor e ser essa pessoa confiável que Molambo achava queele era.

Sentou-se no chão, de frente para Maria Molambo, quando percebeu que estava vidradona calcinha da garota. Molambo colocara um travesseiro no colo, mas uma passagem encobertaproporcionava visão de sua intimidade. Constrangido, piscou os olhos repetidas vezes, como sealgo tivesse entrado neles. Sem saber o que fazer, desviou o olhar da calcinha e se levantoudepressa com a desculpa de acender um cigarro.

– Você quer um? – Abriu o maço de cigarros e o estendeu.– Não, obrigada, acabei de fumar. Você tem alguma coisa nos olhos?– Acho que entrou um mosquito, sei lá... – Mudando de assunto depressa, perguntou: –

E então, por que você está triste?Ela passou a mão pela marca na testa e deixou escapar um suspiro.– Perdi meu emprego lá no bingo... Eu tinha feito algumas prestações e consegui

liquidar algumas contas com o dinheiro que recebi, mas não foi suficiente. Acabei ficandoendividada e sem grana! Minha vó é aposentada e ganha esse salário mínimo ridículo... Nãotenho coragem de pedir dinheiro emprestado, nem a ela e nem aos meus pais.

Tomás franziu a testa. Logo em seguida, como se tivesse lhe ocorrido uma grande ideia,sugeriu:

– Por que você não fala com as pessoas para quem deve e pede um tempo maior parapagar? Ou devolve o que comprou?

– Ah, isso não funciona no meu caso. Estou devendo para lojas; comprei roupas esapatos para trabalhar vestida decentemente, e agora não tenho trabalho!

– E... Você vai para a cadeia se não pagar essas dívidas?Molambo soltou uma gargalhada. Achou que Tomás estava brincando com a situação

para diverti-la.

Vendo que Molambo ria como se tivesse escutado uma piada, ele riu também. Pelaprimeira vez na vida, fizera alguém sorrir de verdade. A sensação foi indescritível.

– Tenho uma ideia! – Articulou, apaixonado demais para conter os ânimos. – Minha mãefaz as melhores geleias do mundo; você já sabe disso, né?

– Não, na verdade sequer sabia que ela fazia geleias...Tomás a pegou pela mão e a conduziu à cozinha. Passaram pelo pessoal barulhento da

sala, que não percebeu a presença deles. Somente Ana levantou um olhar para logo em seguidaperdê-lo na conversa que seguia. O ambiente estava carregado de fumaça e a pia repleta comgarrafas de cerveja vazias.

– Olha aqui! – Tomás subiu em uma cadeira, abriu o armário e puxou uma compota delaranja. Depois de pegar uma colherzinha na gaveta, abriu o vidro e respirou fundo com o narizmetido no vidro. Colocou a colher dentro da geleia e tirou uma generosa porção. Molambo abriua boca e deixou que Tomás a servisse, fazendo um aviãozinho infantil. Saboreou o doce emsilêncio enquanto produzia uma expressão de deleite e prazer.

– Uau! É deliciosa!– Eu não falei?Com o vidro e a colher na mão, retornaram ao quarto.Tomás a viu comer como se estivesse faminta.– Você quer? – Molambo estendeu uma colher cheia na direção dele.Depois de engolir a porção de geleia, ele disse com entusiasmo comedido:– Minha mãe vendia geleias, e por muito tempo ganhou um bom dinheiro com elas.

Estava pensando... Temos mais de trinta compotas para começar um negócio. Podemos começara vendê-las amanhã mesmo. Se vendermos tudo, dou uma parte para você. Com o dinheiro queganharmos, podemos comprar frutas e fazer nossas próprias geleias. O que você acha?

Molambo parou de comer por um instante.– Ah, não sei, você acha que conseguimos? Eu preciso de pelo menos sessenta reais para

pagar uma prestação semana que vem.– Acho que é a única opção que você tem. Se não conseguirmos vendê-las, pelo menos

você não perderá nada.Ela seguiu meditativa.– Você acha que sua mãe nos dará as geleias?– Eu tenho certeza! Conheço alguns lugares que ela vendia, e podemos começar por lá.

Agora seremos dois para percorrer mais lugares e fazer mais clientes. Se tudo der certo, para nãotermos que gastar com os vidros, podemos começar pedindo na vizinhança!

– E quem fará as geleias?– Ora, nós! Eu conheço todas as receitas de minha mãe e podemos aprender outras

também! Sempre dá para fazer geleia barata usando as frutas da estação.– Sério? Você sabe mesmo cozinhar?– Não, cozinhar eu não sei, mas eu ajudo minha mãe na cozinha desde que era pequeno.

Tenho certeza que conseguiremos vendê-las! – Disse, invadido imediatamente por sensaçõesconflitantes: se Molambo recusasse a proposta, sentir-se-ia um completo idiota, porém, se aaceitasse, seria um verdadeiro gênio. Ele cruzou os dedos por detrás das costas esperando umaresposta positiva.

Ao ver o entusiasmo de Tomás, Molambo se deixou contagiar também.– Ok! Amanhã de manhã estarei aqui com minha mochila e tentaremos! Como você

mesmo disse, o que eu tenho a perder, não é mesmo?

Tomás reprimiu o brado de júbilo dentro de si, assim como a vontade de correr até ela ebeijá-la na boca.

Dez minutos depois que as visitas foram embora, Damião já estava jogado na cama.

Tomás passou pela frente do quarto e o viu deitado ainda com o tênis nos pés, de barriga paracima, roncando alto. O porco sequer escova os dentes! Como minha mãe beija um cavalo dessesna boca?

Ana ainda estava na cozinha organizando as garrafas quando o filho chegou por trásdela:

– Se vocês tomassem cerveja em latinha, pelo menos eu poderia vender as latas!Ela levou um susto ao vê-lo, virando-se para trás em uma volta rápida.– Oi querido; não sabia que você estava aí! – Ela tornou a se virar e esvaziou um

cinzeiro repleto de bitucas no lixeiro ao lado da pia. – Cerveja em latinha é muito caro, Tomás!Ora, mas se você quiser, vidros também podem ser vendidos, mas já aviso que o pessoal dareciclagem paga uma miséria por quilo. Você tem que levar muito peso até eles, e talvez, opagamento não pague nem o dinheiro da condução.

– É, mas se vocês bebessem em lata... Do jeito que bebem, eu teria muita latinha e poucopeso!

– Só falta daqui a pouco você querer uma carroça! – Ela soltou uma gargalhada,lembrando quando Damião lhe contou sobre Tomás querer ser engraxate. – Você precisa estudar,rapaz! Se eu tivesse estudado, não precisaria limpar a casa de ninguém! E muito menos teria queescutar meu próprio filho fazendo planos para limpar sapatos ou vender lixo.

– É, a senhora sabe que temos duas chances para ser ricos, né? Quando nascemos ouquando casamos! A senhora nasceu pobretona, pelo menos, poderia ter casado bem.

Ana não soube se deveria rir ou não. Constantemente, ficava perplexa com oscomentários do filho.

– Para seu conhecimento, nasci rica, mas meu pai foi embora e nos deixou na miséria.Nem lembro a cara dele...

– Meu pai também nos deixou na miséria!– Nós não éramos ricos quando seu pai estava aqui!– E nem miseráveis!Ana parou com a limpeza para olhar o filho seriamente:– Filho, você acha que está na miséria?Tomás não titubeou:– Claro, mãe! Que vida a senhora acha que levamos? A geladeira está sempre vazia e

não podemos sequer tomar banho, puxar a descarga ou nos limpar direito! Isso quando a luz ou aágua não estão cortadas...

Mesmo reconhecendo que Tomás estava certo, Ana o achou ingrato. – Você fala isso porque nunca viu uma criança de rua. Enquanto você reclama sobre

nossa geladeira, eles reclamam sobre a barriga vazia!– Daqui a pouco a senhora vai me dizer que não posso reclamar sobre meu tênis furado

porque nunca vi crianças sem pés! – Disse, cansado das desculpas que sua mãe lhe dava,justificando a condição deles através de condições piores.

Ana arregalou os olhos, ainda mais atrapalhada, sem entender como Tomás chegava aessas conclusões. Estava cada vez mais preocupada com as reclamações dele:

– E não é verdade?

– Sim, é verdade, mas a senhora se conforma com pouco!– Não, eu me conformo com o que tenho, é diferente!– Espero que a senhora saiba o que está fazendo.– Por acaso você está me dando conselhos, moleque?– Sim, estou, mas se a senhora acha que é muito generoso da minha parte, posso vendê-

los. – Disse isso e sorriu, tentando quebrar o gelo da conversa. Vendo que sua mãe amolecia,perguntou trocando de assunto: – Posso vender as geleias que estão no armário? Já falei com aMolambo; se conseguirmos vender as compotas, dou uma parte do dinheiro para a senhora.

Ao escutar isso, Ana lembrou a si mesma preparando geleias, e do enorme prazer que otrabalho artesanal sempre lhe proporcionou. Recordou os velhos tempos onde tudo em sua vidaera tão florido e perfumado quanto as frutas que usava para fazer as compotas. Era um bompresságio, pensou. As geleias voltariam a reinar na casa, ao mesmo tempo em que Antônioestava por regressar. Seria uma grande surpresa para Tomás, mas por hora, deveria segurar alíngua dentro da boca.

– Vocês querem começar um negócio com as geleias?– Sim, eu mesmo vou preparar tudo aqui, e se der certo, prometo comprar o próximo

botijão de gás! O que a senhora acha?– Oh, querido, eu acho o máximo! Molambo chegou ao outro dia, na manhã de sábado como combinado. Vestia bermuda

e uma regata amarela. Tomás abriu a porta de casa quando ela ainda se preparava para bater.Estava ansioso e não conseguiu pregar o olho durante a noite, tal era sua expectativa de vendergeleias ao lado de Molambo.

Percorreram o bairro atrás da antiga freguesia de Ana. No primeiro mercado, Tomás seapresentou dizendo ser o filho da “mulher das geleias”, e acabou por conquistar a simpatia dacomerciante que pediu logo cinco compotas. No segundo mercado, o merceeiro era um homemjovem e simpático, e antes que Tomás pudesse se apresentar, Molambo tomou a iniciativa eofereceu as compotas. Explicou a qualidade do produto, os preços e comprometeu-se com ohomem ao dizer que voltariam semanalmente. Ao final, ofereceu-lhe um sorriso através da bocaenorme, completa por dentes brancos e perfeitos. O merceeiro sem qualquer chance contra osorriso esplêndido da garota, perguntou:

– Posso experimentar?– Claro! – Ela tirou uma compota da mochila enquanto o homem pegou ao lado do

freezer, em cima do balcão, uma colherzinha de plástico para sorvete.Depois de levar uma colher cheia de geleia à boca, o comerciante a saboreou por dois ou

três segundos, parecendo genuinamente encantado com o doce. Tomás viu através da expressãodaquele rosto, o mesmo prazer que encontrava em seus delírios, quando sonhava acordado eimaginava pessoas entrando e saindo de sua casa, enlouquecidos com a geleia de sua mãe.

– Parabéns! É realmente deliciosa! Quantas compotas vocês ainda tem?Tomás ficou expectante. Fazia apenas vinte minutos que tinham saído de casa e quase

todas as compotas estavam ali, com exceção das cinco que haviam vendido no primeiro mercado.– Bastante ainda! Estou morta de cansaço por causa do peso dessa mochila! – Molambo

mentiu, como se estivesse trabalhando há semanas com o peso nas costas. Tomás a fitouintrigado, sem entender que conversa era essa.

– Oh, coitadinha! Coloquem tudo aqui no balcão e vamos conferir.Depois de esvaziarem a mochila, contaram 32 compotas. O homem acercou a

calculadora entre eles de forma que todos pudessem olhar. Fixaram o valor de quatro reais porvidro e o merceeiro multiplicou esse número por 30. Tirou do caixa vinte reais e puxou dacarteira uma nota de cem.

– Compro as trinta compotas, mas duas delas ganho de brinde, certo?Tomás que nunca vira uma nota de cem reais antes, sentiu o impulso de pular e arrancar

o dinheiro da mão do homem antes que ele mudasse de opinião. Seus olhos brilharam sem poderacreditar naquela sorte. Só pode ser Molambo! Não teve dúvidas.

Molambo empurrou duas compotas para frente e disse:– Posso saber o que você fará com tantas geleias?Tomás temeu que o homem desistisse do negócio com essa lengalenga. Tudo que queria

era pegar o dinheiro e desaparecer dali.– Vou levar mel, queijos e salames da minha fazendinha para vender em Curitiba no

final de semana. As geleias de vocês irão comigo também. Se eu ganhar um real em cima decada vidro já serão trinta e cinco reais de lucro. – Disse, parecendo satisfeito com o negócio, massem tirar os olhos fascinados de cima de Molambo.

– Trinta reais! – Molambo o corrigiu.– Trinta e cinco! – Ele reafirmou: – Eu ganhei duas, você lembra? Essa que abri, levarei

para casa, a outra, venderei junto com as trinta que comprei por cinco reais.Ela soltou uma gargalhada e bateu com a mão na frente da testa.– Ai, é claro; como sou burra!O homem entregou o dinheiro a Molambo e ela prometeu que voltariam com uma nova

remessa em breve. Depois de fecharem a mochila vazia, saíram do local desejando ao merceeiroboa sorte.

Tomás ainda trancava a respiração, temendo que qualquer movimento errado, faria ohomem pedir o dinheiro de volta.

Como se estivessem pensando a mesma coisa, afastados poucos metros da vista domercado, Tomás e Molambo pularam de alegria, decididos a comemorar.

– Eu ainda não consigo acreditar! – Ele confessou, enquanto se aproveitava da situação eentusiasmo para abraçar Molambo.

– E agora, o que faremos? – Ela quis saber.– Acho que você já deve pegar parte do dinheiro para pagar sua dívida. Podemos

caminhar pela minha rua e pedir vidros às vizinhas. Depois de lavar tudo, vamos aosupermercado e compramos frutas. Minha mãe está em casa e nos ajudará!

– Ai, Tomás... Eu não sei nem como agradecer por tudo que você está fazendo por mim!– Molambo se curvou um pouco até chegar à altura do amigo e o beijou no rosto. – Tudo graçasa “melhor geleia do mundo!”.

Tomás corou, mas conseguiu retribuir o carinho através de um sorriso. Ocultou a cobiçaexasperada de beijá-la nos lábios e o estranho desejo de acariciar a cicatriz dela, fazendo umapirueta na rua.

Bateram palmas nas casas e pediram vidros. Tomás se sentia aliviado apenas quando avizinha era desconhecida, pois as conhecidas o odiavam. Ora fosse porque ele chutava osanimais delas, ora porque falavam que sua mãe não sabia educá-lo, e ele as enfrentava commalcriação. Intrometiam-se em sua vida desde que era pequeno e sabia que o chamavamsarcasticamente de: filho de rato: tudo porque nascera pouco maior que um camundongo. Teriaque ser humilde e sujeitar-se a falar com aquelas mulheres que detestava. A pequena confiançaque possuía era o fato de estar acompanhado de Molambo, uma garota linda e educada.

Já na primeira casa, ao perceber que não havia ninguém no local, sentiu-se tentado auma travessura. A casa não tinha muro e ficava nos fundos de um terreno cheio com grama alta.Na varanda estavam penduradas diversas gaiolas de passarinhos. Molambo batia na porta comtoques leves, quando Tomás se afastou às gaiolas. Uma pequenina ave negra se debatia contra asparedes de seu cubículo quando ele se aproximou. O pássaro se assustou por culpa dele, umespião em sua morada. Seguro do que fazia, Tomás abriu a portinhola. Afastou-sesorrateiramente, esperando que a mesma fugisse antes que alguém o visse. A intenção de Tomásera provocar a vizinha quando ela voltasse ao lar e não encontrasse o passarinho, mas foisurpreendido por Molambo logo atrás dele, que se aproximou com curiosidade. Tomás temeuque ela o recriminasse, mas ao contrário disso, Molambo se acercou da gaiola e colocou a mãopor dentro da abertura. O passarinho se debatia na grade, mas ela conseguiu pegá-lo enquanto elea bicava nos dedos, desesperado. Com o pássaro nas mãos, ela o olhou de forma carinhosa esorriu. Baixou os braços quase até o chão e em seguida os impulsionou para cima, observando opássaro voar até se perder entre as árvores distantes, na imensidão do céu ensolarado. Tomásficou boquiaberto, pensando que Molambo também era vítima da língua de suas vizinhas.

Percebendo que ela também adorava uma sacanagem, insinuou:– E aí, vamos soltar os outros?Sem responder, seguiram abrindo as gaiolas e libertando os pássaros.Tomás se sentiu excitado demais. Estava louco para soltar uma gargalhada, sem poder

acreditar que o amor de sua vida compactuava com suas molecagens. Quando abriram a décima eúltima gaiola, afastaram-se da casa correndo, antes de sofrerem um flagrante por algumfofoqueiro de plantão. Tomás sabia que a vizinha ficaria enfurecida quando retornasse, e isso eramotivo suficiente para deixá-lo extasiado. Estava ao ponto de convidar Molambo para chutaralguns cachorros da rua, quando ainda ofegante, depois da apreensão experimentada, escutou-adizer:

– Passarinho em gaiola não canta, lamenta! Você nunca ouviu isso, Tomás? Ninguémtem o direito de enclausurar a beleza só para si, né? Imagine você, ter uma perna e não poderandar... Bem, acho que fizemos nossa boa ação do dia. Não me conformo com quem prende umbicho que voa... Malditos egoístas, donos do mundo!

Molambo parecia inconformada e ao mesmo tempo satisfeita. Aquilo que Tomásconsiderava um ato vândalo soava como algo glorioso e gratificante para ela. Ele se calou pornão saber o que dizer. Logo ele havia feito uma boa ação? Como?

Quando chegaram à casa ao lado, Molambo acariciou um dos cachorros vira-latas davizinhança que Tomás tanto detestava.

– Passa a mão nele; olha como é lindo! – Ofereceu, e depois disse com uma voz infantil,falando diretamente com o animal: – Você é fofo demais, sabia disso?

Tomás sorriu amarelo e se aproximou do cachorro. Fez um esforço sobrenatural paraacariciá-lo e mostrar para Molambo que também era um cara legal. Entendeu nesse momentoque ela não estava de sacanagem com a vizinha ao soltar os passarinhos da gaiola; ela querialibertá-los da prisão. Empenhando-se para demonstrar que também compactuava o amor aosbichos, ajoelhou-se ao lado dela e forçou um novo sorriso maroto, mas ao chegar com a mãoperto do animal para acariciá-lo, o cachorro começou a rosnar e levantou rapidamente,colocando-se em guarda, latindo de forma feroz contra ele. Tomás ficou sem graça,envergonhado por ter sido rejeitado por um vira-lata pulguento. Molambo soltou uma gargalhadaao ver a reação do animal e o temor de seu amigo, sem saber quem estava mais assustado comquem.

Tomás se levantou, disfarçando o constrangimento e a vontade de dar um pontapé nobicho. Reconsiderou a ideia de convidar Molambo a chutá-los, com a certeza de que tal ofertaeliminaria qualquer chance de conquistá-la.

– Os cachorros não são sociáveis com todo mundo. É uma questão de afinidade,entende? – Ela tentou tranquilizá-lo, sem dar muita importância ao assunto. – Antes de passar amão em um animal, você deve sentir se ele quer ser tocado. É o bicho que faz esse favor a você,e não o contrário.

Tomás suspirou, pensando no que dizer.– Que estranho! – Ele se fez de desentendido – Brinco com os cachorros da rua desde

que sou pequeno. Nunca tive problemas com nenhum deles, juro!– É assim mesmo, bobo, não liga! Eles têm mais medo da gente do que a gente deles.Tomás temeu que Molambo quisesse acariciar todos os sarnentos da rua, e ele tivesse

que fazer o mesmo, sendo rejeitado por cada um deles. Ela perceberia que aquele cachorro nãoera um caso isolado, e que de fato, todos os animais o odiavam. O pensamento o deixouapreensivo.

Passaram mais de meia hora percorrendo a rua, de casa em casa, e por sorte, Molambonão voltou a pedir que ele tocasse em mais nenhum animal. Quando retornaram, estavam com asduas mochilas cheias de vidros.

Ana tinha acabado de lavar uma pilha de roupas no tanque quando os viu entrar pelo

portão. Largou um balde de roupas que iria estender e caminhou até eles. Com uma expressãocarinhosa, disse:

– Eu sei que é difícil vender geleias, mas vocês desistiram muito cedo! – Ana deu umbeijo em Molambo e depois abraçou o filho, como se quisesse consolá-lo.

– Mãe, já vendemos tudo!Ana soltou uma risadinha incrédula.– Se vocês quiserem, podemos dar uma volta depois do almoço e tentar vendê-las em

alguns lugares que conheço.Tomás olhou impaciente para Molambo, envergonhado por sua mãe parecer tão

mentecapta e mostrou a nota verde de cem reais, que sozinha, falava tudo.Ana colocou a mão na frente da boca, mostrando-se visivelmente surpresa. Levou os

dois para perto de si e os abraçou com o orgulho estampado nos olhos.– Não acredito! Como vocês conseguiram? Só pode ter sido um milagre!Depois de explicar a venda no segundo mercado e deixar Ana ainda mais boquiaberta,

tomaram café com leite e broinhas de fubá.– Uau, que sorte! Vocês estão de parabéns! – Ela imaginou como Antônio ficaria

orgulhoso ao saber da proeza do filho. Aquilo era uma amostra aplicada de que Tomás haviaamadurecido. Estava apaixonado por uma garota mais velha e conseguira vender toda a geleia doarmário. Talvez Antônio volte antes do previsto para casa. Refletiu, animada com a ideia,esquecendo-se de que ainda deveria resolver sua história com Damião e explicar-se de umaforma que não o magoasse. Ele jamais poderia saber que ela o enganava com o ex-marido.Damião não era o tipo de homem que aceitaria uma traição sem guerrear.

Fizeram chimarrão e puseram-se a lavar os vidros. Descartaram as tampas enferrujadas eamassadas. Depois de uma prévia lavada no tanque, colocaram os vidros e as tampas de molhoem água quente e detergente para retirar o resto de rótulos e carimbos de validade, e Ana osensinou como esterilizar os vidros. Colocou um pano limpo dobrado no fundo da panela e

depositou os vidros abertos, sem tampas, com cuidado sobre ele. Em seguida, encheu a panela deágua e os deixou ferver em fogo alto.

– Eu acho que dá muito trabalho esterilizar os vidros, além de ficarem em tamanhosdiferentes. Temos que dar um preço à compota de acordo com o tamanho, entenderam? Vocêspodem comprar os vidros no atacado assim que tiverem um dinheirinho sobrando! – Afirmoucom voz de experiência.

Tomás e Molambo foram ao supermercado e voltaram com as mochilas e duas sacolascheias de frutas. Enquanto esperavam os vidros secarem, começaram a descascar frutas epreparar uma nova remessa de geleias.

Tomás se sentia radiante trabalhando ao lado das duas mulheres que amava. Cuidou dasmínimas atitudes, rogando a si mesmo para não cometer nenhuma bobagem. Fez o impossívelpara mostrar sua maturidade precoce e impressionar ambas de alguma maneira. Um fio derealidade, de repente, cruzou seus pensamentos. Alarmado, dirigiu-se à mãe na primeiraoportunidade que encontrou, sem interromper a conversa das duas:

– Mãe, onde está o Damião?– Na casa do Cu... – Ela interrompeu a frase antes de prosseguir. – Uzias... Ele está na

casa do Uzias!– E quando ele volta?Com a pergunta do filho no ar, Ana se lembrou de que Damião voltaria antes do almoço

e não havia preparado algo para ele comer.– Oh, meu Deus! – Colocou a mão na testa suada. – Esqueci o almoço!Molambo percebeu a aflição de Ana e sentiu-se culpada por tê-la entretido com as

geleias.– Você quer ajuda? Podemos fazer algo rápido...Ana respondeu em tom de brincadeira, embora fosse notável sua apreensão:– Ora, tempero para comida de pobre é a fome! E Damião pode esperar um pouco.Tomás se irritou com a reação da mãe, mas antes de interromper a conversa delas,

procurou medir as palavras para não chateá-la na frente de Molambo e atiçar um sermãoqualquer:

– Por que ele não almoça na casa do primo dele ou na rua?Ana estava parada na frente da geladeira aberta, sem saber o que cozinhar. Prometera a

Damião fritar bifes nesse sábado, mas esquecera-se de tirá-los do congelador. Decidiu fazeromelete e arroz, pois era a solução mais rápida. Tirou oito ovos da geladeira antes de responder:

– Ah, sei lá! Ele gosta de comer em casa.– E por que ele não faz a própria comida, então?– Por que as mulheres devem cuidar de seus homens, entendeu agora? – Respondeu a

Tomás, mas deu uma olhadinha para Molambo, jogando-lhe uma insinuação.Molambo não entendeu que a indireta se dirigia a ela, mas rebateu a afirmação,

contrariada:– Mas em que século vivemos? – Ela forçou um sorriso ao perguntar, tentando não

parecer rude ou invasiva. – Desculpa, mas eu não concordo que as mulheres devem cuidar dosmaridos adotando uma posição materna, como se eles fossem seus filhos. Acho que é por issoque tem muito casamento que vai pro beleléu. As mulheres agem como se fossem as mães dosmaridos, e os maridos, sem perceberem que são filhos, atuam como se fossem pais delas.

Ana recordou os anos de casada ao lado de Antônio. Considerava-se a esposa perfeita;cozinhava, passava e lavava. Seu marido jamais precisou levantar um garfo da mesa. Porém,

enquanto servia de Amélia e julgava desempenhar seu papel com excelência e perfeição, Antôniodeclarou que estava infeliz e a traiu com uma menina. Somente quando se tornara a amante domarido, a relação voltou a funcionar e o fogo do começo reacendeu. Ela o visitava como umaespécie de namorada. Era ele quem a servia e a esperava com a comida pronta. Talvez Molamboestivesse certa, mas não admitiria isso para uma jovem inexperiente.

– E você, o que sabe sobre casamentos? – Perguntou, mostrando-se contrariada.Molambo a encarou com um sorriso juvenil ao afirmar:– Ora, sei muito! Vi a relação dos meus avós, dos meus tios, dos meus pais e dos pais

dos meus amigos! Se a esposa ideal fosse a boa Amélia, não haveria tantos divórcios e nemhomens ciscando em terrenos onde a Amélia passa longe!

– O problema dos homens é que eles são machistas! E nós mulheres, acidentalmente,acabamos por alimentar esse machismo ensinado por nossa sogra ao nosso marido, econtinuamos repassando-o aos nossos filhos homens. – Ana anuiu, percebendo o quanto eradifícil concordar com uma garota de apenas 18 anos.

– Não, o problema das mulheres é permitir que os homens as tratem como empregadas!São elas que facilitam o machismo, e pior, têm algumas tolas que ainda gostam! – Molamboafirmou e revirou os olhos para cima. – Acho que o machismo está equilibrado com a ignorância:quanto mais ignorante é um homem, mais machista ele é!

Ana soltou uma gargalhada; comparou Antônio e Damião, atingindo a lógica naspalavras de Molambo. Percebeu que Tomás poderia aprender mais com Molambo sobrecomportamento do que com Damião. E em absoluto silêncio, refletiu sobre: “os homensciscarem nos terrenos onde a Amélia passa longe”, deixando de bater os ovos no pirex. Pareciaque Molambo se referia especificamente a Antônio, mas como poderia saber? Lembrou-se docaso de seu ex-marido com a garotinha de vinte e poucos anos, percebendo que ainda sentia osmesmos ciúmes de antes. O que Molambo dizia ia de encontro com todas as traições e nada tinhaque ver com ela de forma isolada. Sorriu e voltou a mexer os ovos. Preparava-se para colocar oarroz no fogo quando Damião chegou. Molambo brincava com Tomás com uma casca de laranjana boca e os dois riam, entretidos em um mundo à parte.

Damião estava suado. Trazia um baguete de pão embaixo do braço, onde a rodelaamarelada de suor na região da axila enfeitava a camisa. A barba estava ainda respingada decimento, e por debaixo das unhas pairava a sujeira negra. Assim que abriu a porta e entrou, eleescutou as risadas. Aproximou-se da cozinha e notou o clima suave que pairava no ar. Ter visitasem casa, mesmo sendo a filha de um amigo, sem ter sido avisado com antecedência, irritou-o detal forma que ele não soube dissimular. As risadas e a alegria da família unida o deixaram aindamais aborrecido. Desde que morava ali, raras foram às vezes que riram juntos. Por que é quejusto quando ele não estava, todos sorriam e conversavam felizes? Perguntou-se, com a pulgaatrás da orelha, sentindo uma desconfiança desagradável dominá-lo.

Damião jogou o pão em cima da mesa e cumprimentou Molambo grosseiramente.Tomás fechou a cara quando o viu, sabendo que com o homem de barbas em casa, deveriampermanecer em silêncio para não irritá-lo, e cuidar de cada passo, inclusive da descarga, daspiadas e do humor. Tudo ficaria chato e aborrecido. Uma atmosfera pesada daria lugar ao climade felicidade. Por sorte, sua mãe estava presente, pensou. Mas de uma forma ou de outra, nãosabia até que ponto isso significava uma vantagem. Tomás já estava acostumado com as regrasque o barbão colocara na casa; seu único receio era que Molambo as conhecesse.

Ana lavou as mãos na pia e as enxugou no avental, depois caminhou até Damião e lhedeu um beijo no rosto.

– Você chegou cedo. Tudo bem? – Estava prestes a contar sobre o sucesso que Tomás eMolambo tiveram com as geleias, mas calou-se ao perceber a estranha atitude dele.

Damião continuou parado, observando Molambo e Tomás cortarem frutas na mesarepleta de cascas. Ele não se preocupou em devolver o beijo de Ana, respondê-la ou mudar suaexpressão de estranheza. Dominado pelos ciúmes, tampouco pôde deixar de observar que Tomássequer o cumprimentou, controlando a vontade de arrancá-lo daquela atividade boiola dedescascar frutas, abaixo do chinelo. Ana estava ali para incentivar o filho no serviço de viados. Aculpa era dela.

Alguns meses antes, quando Cuzão a levou até o apartamento onde moravam e aapresentou, Ana estava bêbada como um recém-aposentado que, perdido na vida, bate ponto embares. Desde o primeiro momento, Damião soube que ela era uma mulher desfrutável e à toa.Uzias tinha contado que ela vomitara no bar diante de outros pinguços, enquanto dançava comum estranho, e ao mesmo tempo, dava mole para ele. Cuzão voltou ao bar no intuito de arrastá-laaté o apartamento e apresentá-la para Damião, sabendo que ela era uma mulher fácil. Foi simplesencontrá-la, mas o que Uzias não esperava era que ela se oferecesse para deitar com ele, umhomem que viu apenas uma vez na vida. A sorte de Cuzão é que ele não funcionava(sexualmente falando) quando bebia, e alegou ser impotente. O importante era arranjar umamulher para Damião, colocando em dúvida qualquer pessoa que o reconhecesse, já que aindaeram fugitivos da polícia, e o retrato dele estava por todos os lados com uma recompensa de doismil reais para quem o entregasse. Damião se lembrou como fora fácil conquistar Ana e beijá-lana mesma noite em que a conhecera. Provavelmente a teria levado para a cama também, masnaquele primeiro encontro, ela precisava voltar para cuidar do pirralho mimado. A contra gosto eatuando brilhantemente, convenceu-a de que estava apaixonado. Na segunda vez que seencontraram, falou sobre amor à primeira vista e outras babaquices que a fizeram derreter comouma mulher tola. Na mesma noite, como ela havia aparecido sem avisar e tinha muita gente nacasa, convidou-a para passear. Entre um galanteio e outro, arrastou-a para o matagal do bairro.Ela relutou um pouco e dissimulou o desejo que sentia, negando-se a deitar de costas, mas elesabia que era uma representação, pois podia sentir o fogo que segregava dela. Deitou-a no chão ea virou com a boca para baixo; beijou-a nas costas e a acariciou, explodindo de prazer ao obteruma visão total das nádegas dela, ao mesmo tempo em que não precisava olhá-la nos olhosenquanto a possuía. Pela primeira vez na vida, sentiu-se excitado de verdade por uma mulher.Não era ela em si, mas o ambiente, o perigo de serem flagrados por alguém, o mato, a posição, aaudácia... Ela sussurrava que não queria fazer amor daquela forma, mas não o impedia. Damiãosentiu a calcinha dela completamente molhada. O fato de ela negar, mesmo querendo, também oexcitou, fazendo-o continuar o ato até invadi-la por completo. Quando acabaram, Ana queriamais, porém, ele se recusou. Já não havia dado o bastante? Um pouco envergonhado, fingiupreocupação, dizendo que já era tarde e que Ana deveria voltar para casa antes de perder oultimo ônibus. Enquanto ele desfrutava de uma vergonha penosa por ter acabado de transar comela, ao mesmo tempo, deliciava-se por tê-la submetido ao ambiente escuro e vulgar, como sefossem adolescentes que davam a primeira transa.

A hipócrita “mãe de família” que via na cozinha nesse exato momento, que falava sobrerespeito e buscava desesperadamente alguém para educar o filho dela, era apenas uma mulherabandonada pelo marido; a mesma que deixou arrastar-se para o mato à procura do gozo, e quese contorcera feito uma vadia embaixo de um estranho. Nenhum outro homem se sujeitariaaceitá-la como esposa e assumir seu filho problemático.

Damião se sentia uma fera por não poder educar Tomás à sua maneira. Como não podia

confessar diante de todos que esse clima de alegria na casa o fazia ter náuseas, e que morria devontade de esbofetear Tomás por estar fazendo o trabalho de uma garota, procurou deixar claroque estava de mau humor e que desaprovava categoricamente que um homem fizesse o trabalhode mulheres. Quase não conseguiu segurar o desejo de dar um tapa por trás da cabeça de Tomás,que seguiu cortando frutas como se não o visse.

Ofendido, aproximou-se do enteado e parou ao lado dele:– Você aprendeu a descascar frutas, foi? O que fará depois, um curso de manicure?Tomás fez de conta não ouvi-lo e continuou descascando uma laranja, rezando para

Molambo pensar que aquilo era apenas uma brincadeira do Satanás. Sabia que se o respondesse asituação pioraria.

Ana e Molambo se entreolharam. Molambo ficou incômoda enquanto Ana sesurpreendeu com a atitude de Damião com um ponto de interrogação cravado na testa. Era assimque ele falava com seu filho? Algumas atitudes de Damião começavam a saturá-la. Ademais,estava ansiosa para voltar com Antônio de uma vez por todas e recomeçar a vida com o pai deTomás.

Tomás permaneceu indiferente, com a cabeça baixa, e a atenção focada apenas na frutaque tinha nas mãos.

– Olhe para mim quando estou falando com você! – Damião mandou, encolerizado, sempoder se controlar mais.

Com uma sobrancelha levantada e uma expressão na face que indicava poucos amigos,Ana deixou a comida no fogo e se virou. Damião permanecia intimidando o garoto com suabrutalidade fria de macho.

– Quem você pensa que é para chegar aqui ciscando de galo com meu filho? – Indagou,controlando-se para não explodir a raiva e transformar o momento em baixaria.

Damião moveu a cabeça lentamente em direção a ela, incrédulo por estar sendodesafiado e contrariado na presença de outros. Para mostrar sua autoridade, falou ainda mais altoque a mulher:

– Sou o homem dessa casa e enquanto eu estiver aqui, quem manda sou eu!Ana quase não acreditou nessas palavras. Se não fizesse algo nesse momento, poderia

ser tarde demais. Esperava que Damião cumprisse com o papel de pai onde Antônio falhou,cuidando e protegendo seu filho, respeitando-o e fazendo-se respeitar, mas jamais com agressõesou abaixo do medo.

Sua voz saiu ainda mais furiosa quando disse:– Pois você está muito enganado! Vá mandar no seu próprio filho quando tiver um! O

mesmo serve para essa casa. Para a sua informação: aqui não tem cacique! E se alguém mandaaqui, esse alguém ainda sou eu!

Pela primeira vez durante a tensão, Tomás tomou coragem e levantou a cabeça.Enxergou Molambo mais pálida que o habitual, submergida na situação, enquanto a comidaqueimava nas panelas. Quando o cheiro de queimado eclodiu, Molambo saiu de seu torpor ecorreu até o fogão, tirou as panelas do fogo e abriu a janela, sem dizer nada.

Damião ficou roxo de raiva e sua boca começou a tremer. O tamanho de seus olhosdiminuiu e ele voltou toda a atenção para Ana, uma mulher que considerava medíocre e ingrata.Não permitiria ser humilhado dessa maneira. Mas de repente, amargando todo seu ódio, escutouseu anjo da guarda aconselhá-lo: “Você deve permanecer longe de confusão!”. Damião conheciaa si mesmo e quão violento poderia se tornar se fosse provocado. Todo cuidado era pouco comseu temperamento explosivo. Deveria usar a cabeça e ser mais inteligente que seus instintos

ferozes. Passando a mão pelos cabelos, buscou se controlar, mas as últimas palavras de Anaainda retumbavam em sua cabeça. Olhou para seus expectadores, que aguardavam um novomovimento no jogo. Se ele retrocedesse, seria considerado um galo que perde na rinha. A únicasolução que encontrou foi jogar com a vulnerabilidade de Ana. Sabia que ela estava louca porele. Sentiu-se disposto a brincar com os sentimentos dela, até escutar um pedido de perdão efazer mãe e filho saberem definitivamente quem mandava ali.

– Ah é, a casa é sua? É isso que você tem para me dizer? Pois então eu vou embora! Enão adianta chorar depois, porque no momento que eu sair por aquela porta não volto mais.Nunca mais coloco meus pés aqui na “sua casa”, entendeu? – Enfatizou as últimas palavras paracomovê-la, certo de que Ana cairia aos prantos e se arrependeria.

O coração de Tomás disparou.Vai, Vai, Vai, Vai... Satã!Blefando, Damião esperou alguns segundos e tomou o rumo à porta quando Ana o

deteve:– Espera!Esse era o momento onde ela pediria perdão, teve certeza. Sem dar-se volta, ele parou.– O que você quer?– Olha para mim! – Ana pediu quase em súplica. Depois de acender um cigarro,

lentamente, ele se virou.Ela estendeu a mão direita na direção dele.– Vamos ser amigos pelo menos?Damião abriu os olhos alarmados, esquecendo-se completamente de Tomás e Molambo.

Estava incrédulo com a reação passiva de Ana, aceitando a separação de forma tão rápida, semlutar por ele.

– Amigos? – Repetiu cuspindo saliva, ignorando a mão dela estendida no ar. – Você éidiota ou o que? Acredita mesmo que pode sobreviver sem minha ajuda e ainda cuidar dessefedelho?

Ana o olhou, desconcertada. Céus, quem é esse homem? Damião estava fora de si.Falava e atuava de uma forma que ela jamais havia visto antes, mas a agressividade dele não aintimidou, muito pelo contrário. Ela recolheu de volta a mão, recordando do pacote de salsicha, osaco de feijão e algumas poucas vezes que Damião levou comida para dentro de casa. Notou quedesde que acertara a conta de água atrasada, ele estava diferente, embutido de poder. O que falouera certo: Ela não poderia manter a casa sozinha, mas o que Damião não sabia era que em breveAntônio, o marido legítimo, estaria de volta. O que Damião faria se soubesse que era enganadopor outro homem e que este homem era seu ex-marido? Perguntou-se, considerando a situaçãoperigosa e ao mesmo tempo cômica.

– Eu vou sobreviver. Não se preocupe!Temendo perder as estribeiras e acertar um murro na fuça petulante de Ana, Damião

saiu feito um meteoro pela porta da sala.Tomás teve vontade de beijar sua mãe e pular pela casa. Ficou fascinado pela situação e

não pode acreditar que estava livre para sempre do homem de barbas. Não esperou que seria tãorápido e fácil.

– Poxa! – Molambo bradou – Você é uma mulher de coragem! Por um instante acheique ele iria bater em você!

Tomás não aguentou a felicidade e correu até a mãe, fazendo a cadeira em que estavasentado cair para trás.

Ana, ainda ofegante, abraçou Tomás e tentou sorrir para reconfortá-lo.– Tomás! Você o odiava tanto assim?– Mais do que a senhora imagina! – Respondeu sem hesitar.Molambo interrompeu a conversa, percebendo que o homem havia saído sem tirar nada

da casa, nem mesmo uma cueca ou a escova de dentes.– Desculpem ser estraga prazeres, mas vocês sabem que ele vai voltar, não é mesmo? Damião caminhou sem rumo, com um cigarro na mão, inalando fumaça de forma

ininterrupta. Seu estômago roncava de fome, mas ele só conseguia pensar em Ana e na formacomo ela o humilhara. Não deixaria barato aquela história. Ela ainda voltaria rastejando,suplicando para reatarem a relação; e depois que voltassem, trataria de fazer da vida dela uminferno. Lembrou-se de Tomás cortando as malditas frutas como se fosse uma garota, e seucorpo inteiro estremeceu de cólera.

No princípio, assim que foi viver com Ana e conheceu melhor Tomás, sentiu uma leveatração pelo garoto, que se tornou mais forte com o passar do tempo. Com a intenção de ganharsua confiança, passou a levar guloseimas sempre que podia e convidá-lo para assistir filmespornográficos. Tomás era ingênuo e bobalhão, acreditaria em tudo que dissesse ou fizesse eacataria suas ordens sem pestanejar. Estava muito próximo de atingir seu objetivo e seduzirTomás de uma forma que o garoto jamais viesse a delatá-lo; muito ao contrário disso, estavaprestes a obter a confiança total de Tomás, assim como ele mesmo, o “Santo Damião”, um diateve no falecido padre. Odiava ter que deitar com Ana cada noite e sentir as mãos dela em seucorpo, tanto quanto sua pele ou o cheiro de seus cabelos. Detestava ter que tocá-la; e por isso,passou a fazê-lo raramente. A última vez que haviam tido relações fazia mais de dois meses, emum ato exaustivo que durara vinte segundos.

Perdido em pensamentos por causa de Ana, a estúpida mulher que transformava Tomásem um condenado homossexual, Damião entrou em um bar. Pediu um trago de cachaça e oderrubou em dois grandes goles de uma única vez. Não podia acreditar que fora chutado por umaperdedora como Ana, e ainda, que estava arrasado por causa de uma mulher que julgava ser maisesperta e valente que ele. Ele iria se vingar da humilhação através de quem ela mais amava, eseria o pequeno Tomás. Quando ele colocasse as mãos em cima do fedelho, nem ela e nem opirralho esqueceriam o “poderoso Damião” jamais.

Damião estava por pedir mais um trago, mas percebeu que o dinheiro que tinha no bolsopagava apenas uma dose. Jogou o dinheiro em cima do balcão do bar e saiu, tomando a direçãodo apartamento de Uzias, com a intenção de entrar na primeira igreja que encontrasse paraabandonar antes seus demônios por lá.

Teria uma longa caminhada a pé, mas achou que caminhar seria bom para esfriar a

cabeça e esquecer o desejo que sentia de voltar novamente na casa e esmagar com os pés, cadaum deles. Cruzou por uma praça antiga e viu algumas pessoas sentadas nos bancos. As muretasda praça estavam em frangalhos, escondidas pelo mato e corroídas pela humidade. Observou umidoso jogar milho aos pombos, sentado em um dos bancos, um grupo de jovens conversando, emais afastado: dois homens com trejeitos afeminados, conversando com o rosto muito próximoum do outro. Ao ver o casal, o sentido de precaução e prudência foi desativado em seu cérebro.Sentia-se perseguido pela homossexualidade. Onde quer que fosse, esbarrava com ela parainfernizar sua vida. Ficou bestificado quando um dos homens ajeitou o cabelo do outro comcarícias. Como se estivesse em uma espécie de transe, agarrou uma pedra no chão, decidido a

extravasar sua cólera no alvo certo, mas seu tamanho descomunal foi notado pelos dois homens.Eles se levantaram ao perceber o desconhecido prestes a atirar-lhes uma pedra, e em um ato dereflexo, protegeram-se jogando o corpo para o lado. A pedra passou por cima da cabeça de umdeles e por pouco não o atingiu.

Damião viu quando um dos homens se recompôs do assombro, tirou a camiseta em umúnico puxão deixando os músculos à mostra, e trotou apressado na direção dele para enfrentá-lo,enquanto o outro parecia entorpecido pelo susto.

– O que o maldito puto está fazendo? Viado também tem músculos, é? – PerguntouDamião ironicamente, soltando uma risadinha sinistra. Com os olhos injetados de raiva, tirou acamiseta e a jogou para um lado. Endureceu o peitoral e bíceps, pisou forte e correu de encontroao homossexual. Por trás das costas, sua mão direita já estava fechada em punho, e iria impactá-la com toda sua força contra o rosto do gay. Quando ficaram muito próximos um do outro,Damião lançou o peso do braço diretamente na face do inimigo. Como o homem era mais baixoque ele, precisou dar um gancho de baixo para cima para tentar acertá-lo no queixo. O golpeseria perfeito para deslocar a mandíbula, mas quando ele jogou o braço para cima no ar, o gay sedesviou rápido, fazendo-o perder o equilíbrio. Damião foi golpeado nas costas com umacotovelada que o fez desabar, dando-lhe tempo apenas para proteger a boca antes de tumbar nochão. Estava prestes a se levantar quando o homem o chutou com a bota de couro pesada nomeio da face. O pontapé acertou o nariz e parte da boca, fazendo o sangue surgir imediatamente.Ainda mais furioso, levantou-se rápido, colocando-se outra vez em posição de ataque. Seu narizestava fraturado e o inchaço apareceu camuflado pelo sangue que corria da boca.

Damião foi cercado pelo outro homossexual, que se posicionou logo atrás dele:– Podexá! Eu cuido dessa besta sozinho! – Afirmou ao companheiro sem tirar os olhos

do gigante.– Eu não sabia que no curso de balé ensinavam as meninas a lutarem! – Ele voltou a

provocá-lo.Damião estralou os dedos das mãos de uma forma agressiva. Em seguida, partiu para

cima do homossexual com impulso e o golpeou no estômago com a própria cabeça. Seuoponente foi jogado contra o chão, onde permaneceu, retorcendo-se de dor, sem conseguirrespirar. Depois que subiu nas costas do homem caído, fechou novamente a mão em punho paragolpeá-lo na cabeça. Sua mão estava no ar quando alguém o agarrou com uma chave de braço eele sentiu o pescoço ser puxado para trás, apertado impetuosamente. Damião levou um pontapénos testículos que fez sua visão escurecer por uma fração de segundos intermináveis. Outro péalcançou com violência o lado de seu ouvido e ele sequer pôde ver de onde veio. Encolhido nochão, tentou apenas defender a cabeça com os braços na frente dela. Seus olhos enxergavamsomente o chão da praça ao redor dele. Entrou em pânico quando viu que estava cercado por pelomenos dez pares de botas de couro e coturnos negros que seguiram desferindo chutes e golpes detodas as formas. Captou várias vozes através do ouvido esquerdo que ainda podia escutar:

– É mais um maldito homofóbico! Vamos matar esse filho da puta!Damião não entendeu de onde os homens saíram e nem como chegaram até ali, mas

havia juntado muita gente na briga para defender o casal. Ele não cogitou em nenhum momentoa desventura de provocar uma briga justamente no bairro onde os homossexuais eram a maioria.

Damião estava cercado e sangrando por várias partes do corpo. Levantou a cabeça e viucom pouca nitidez o bando de homens com calça de couro e correntes de prata ao redor dopescoço e da cintura. Pediu ajuda ao seu padre protetor em pensamento, com a certeza de queteria suas preces atendidas. Sentia-se como um vingador do pecado. Ele era o “Santo Damião” e

tinha uma missão especial: defender a moral dos heterossexuais contra a sacanagem dos gays.Novamente encorajado pela força de seus pensamentos, gritou no fio da voz que ainda lhesobrava:

– Vocês são filhos do pecado e vão queimar no inferno, bando de boiolas! A AIDS é ocastigo divino de Deus para vocês! – Ao dizer isso, tentou se levantar, mas levou um chutecerteiro entre os olhos.

Juntou mais gente ao redor e curiosos chegaram de toda parte. Mesmo respirando comdificuldade e sem poder enxergar direito, Damião tentou se arrastar pelo chão e escapar do centroda roda. O grupo formou um círculo ao redor dele e dificultou ao público (que aumentava a cadasegundo) ver o que estava acontecendo. Um dos homossexuais abriu o zíper da calça, apontou noalvo e disparou urina em cima do inimigo ferido. Ao perceber que tomava um banho de xixi,Damião começou a gritar, enquanto cada qual do grupo fazia o mesmo. Tendo seu corpo ecabeça como mira, os homens começaram a urinar nele.

– Cadê o machão, agora? – O homossexual com quem Damião havia brigado, járecuperado da cabeçada no estômago, perguntou em tom desafiador: – E aí, frangão! Você aindavai jogar pedras nas pessoas?

Antes de abandonar o desconhecido, cada homem cuspiu pelo menos uma vez no corpoesparramado que tinham em vista, acertando catarro no rosto, na cabeça, e no corpo urinado dogigante branco.

Damião teve a certeza que iria morrer. Ao seu redor ainda podia discernir uma plateia deespectadores. Escutava de todos os lados sussurros e palavras que não podia compreender. Sentiaque estava em frangalhos, pois respirava com dificuldade e quase não conseguia enxergar de umolho. Mesmo ferido, tinha a consciência de que precisava sair dali antes que a polícia chegasse.Arrastou-se até uma arvore e agarrou o tronco, apoiando-se lentamente até conseguir levantar.Seu rosto estava duas vezes maior devido as pancadas que levou no rosto, os lábios cortados, e onariz, provavelmente, quebrado. A audição fora prejudicada e um zumbido insuportável cantavaem seus tímpanos. O olho direito estava praticamente fechado, e suas mãos, depois de terem sidopisoteadas, estavam em carne viva. Desejou gritar aos curiosos que fossem embora e cuidassemde suas vidas, mas não teve voz.

Profundamente humilhado, não conseguiu levantar a cabeça para mirar seu público nosolhos. Sentiu uma onda de medo ao pensar que os homossexuais ainda estivessem presentesentre os curiosos, e que pudessem atacá-lo novamente. Tentou respirar, pressionando um lado dacostela com ajuda das mãos machucadas. O fôlego voltou pouco a pouco e ele começou acaminhar, mancando de uma perna com dificuldade. Os curiosos abriram espaço para ele pegar acamiseta no chão.

Com o zumbido nos ouvidos, mancando de uma perna, molhado e fedendo a urina,cuspiu um dente e afastou-se sem olhar para trás.

Capítulo 12 Tomás passou o fim de semana com Molambo e os pais dela. Passearam no shopping e

almoçaram em um fast-food na praça de alimentação. O pai de Molambo assistiu futebol em umatela gigante tomando um café, enquanto eles olharam vitrines de roupas e sapatos por mais deduas horas. Tomás se sentia bem com a família de Molambo. Escutou-se, inclusive, fazendoalgumas piadas inocentes, e tomou gosto de repeti-las quando percebeu que a família achavagraça de suas brincadeiras. Comeram algodão doce e compraram pipoca antes de entrar nocinema. Tomás ficou tão maravilhado com a tela gigante, que mal pôde prestar atenção nacomédia que viram. O filme no cinema tinha outro sabor e até a pipoca parecia mais gostosa.Saboreou uma fascinante sensação de dividir o mesmo filme com pessoas totalmentedesconhecidas, que riam alto e sincronizadamente em cada cena engraçada. Maravilhado,desejou que esse dia não terminasse jamais.

Quase duas semanas transcorreram desde que Damião partira. A semana fora

produtiva, e com a ajuda de sua mãe e Molambo, haviam conseguido vender mais duas remessasde geleias. Molambo providenciou duas placas e colocou, tanto na frente da casa dela quanto nade Ana, os dizeres: “Vendemos geleia caseira, a melhor do mundo!”. Tomás acreditava queMolambo trazia sorte aos negócios. Mas é claro, ela era linda e poderosa, a grande: “RainhaMaria Molambo”. Sentia-se de bem com a vida. O homem de barbas estava fora do caminho, epor incrível que pudesse lhe parecer, sua mãe sorria e seus olhos estavam outra vez iluminados.

Ana estava na cozinha enchendo compotas quando Tomás chegou esbaforido. Sequer

fechou a porta, e já gritou desde a sala, antes de largar a mochila pelo caminho:– Mãe, mãe, onde a senhora está?Ana respondeu da cozinha, logo ao lado dele:– Jesus, o que aconteceu, menino? Estou aqui!Ele correu até ela com a prova que fizera dois dias antes, na mão:– Olha, mãe! – Quase esfregou o prova no rosto dela, tamanha era sua euforia: – Tirei

oito na prova de matemática!Ana arregalou os olhos e arrancou a prova da mão de Tomás. A boca ainda estava aberta

quando terminou de examinar o documento.– Oh, meu Deus! Você conseguiu! Você conseguiu! – Ela gritou e pulou de mãos dadas

com o filho, explodindo de alegria. – Eu sabia, meu amor! Querer é poder! Como vocêconseguiu?

Tomás se sentiu um pouco envergonhado. Havia copiado três respostas do melhor alunoda sala, mas não podia confessar isso a ela. Mesmo assim, sentia-se orgulhoso por ter conseguidoacertar uma questão inteira absolutamente sozinho.

– Ah, mãe, sei lá, conseguindo... O que importa é o resultado: Os fins justificam osmeios! – Ele escutara essa frase no colégio e gostou de reproduzi-la.

Ela colocou a prova na porta da geladeira e a fixou com imãs.– Você está coberto de razão! O importante é que você conseguiu e eu estou muito

orgulhosa do meu menino! Hoje vamos fazer cachorro-quente para comemorar; o que você acha?Tomás adorou a ideia. Depois de lavar as mãos, sentou-se para almoçar.

Ana não conseguiu deixar de sorrir. Era notável a felicidade no rosto do filho, e deduziuque por causa dela - da felicidade - o pequeno começava a melhorar na escola. Eles não haviamconversado absolutamente nada sobre Damião desde que ele fora embora. Seu coração estavaapertado desde que ele partira naquela tarde; temia ter sido injusta e precipitada. Sentia pena dele(ainda que tivesse presenciado seu destemperamento), pois acreditava que ele era um homembom e merecia ser feliz com alguém.

Antônio esperava ansiosamente para voltar para casa e ela também. Ana contara aomarido que Damião havia ido embora, mas que ainda precisava de um tempo para conversar comTomás e contar que planejavam reatar o casamento. Não queria apressar a volta do ex-marido,pois Damião ainda voltaria para pegar os poucos pertences que deixara na casa. Temia umconfrontamento; e pior: que Damião chegasse a desconfiar que ela o traía com o marido. Anaconhecia a dor de uma traição melhor que ninguém: Isso seria uma humilhação desnecessáriapara o ex-namorado.

Enquanto Tomás comia com um apetite devorador, ela puxou uma cadeira ao lado dele esentou-se, iniciando o assunto de forma despretensiosa:

– Você não sente falta do Damião, né?Tomás a olhou com o rabo dos olhos e largou os talheres. Em seguida, perguntou

desconfiado:– Ah, mãe, vai dizer que ele está aqui?– Você gostaria?– É claro que não, mãe! – Respondeu imediatamente. Nesse momento, invejou

Molambo ao lembrar-se dos pais maravilhosos que ela tinha, enquanto para ele restava convivercom um homem sem educação. Não conseguia se imaginar ao lado do homem de barbas noshopping e assistir um filme que não fosse pornográfico com ele.

– E o seu pai?– Que? – Sobressaltou-se, sem entender a pergunta.– Você tem saudades do seu pai?Tomás pensou um pouco, em silêncio. Refletiu sobre o que sentiu quando o pai perdeu

um dedo por sua culpa; jamais pedira perdão por isso, e provavelmente, jamais o faria.Comparou Damião, sempre de barba e unhas sujas, cheio de regras, comendo feito um porco àmesa. Lembrou quando ele o castigou sem razão e o envergonhou, fazendo-o permanecer nu,ajoelhado em cima dos grãos de milho. Em certo momento, acreditou que o homem de barbasqueria ajudá-lo em seu amadurecimento e chegou quase a gostar dele, mas depois, começou asentir medo e aversão. Como poderia gostar do homem de barbas se o temia? E ainda tinha asoutras questões que repudiava, como quando ele o afrontava de forma estranha e ameaçadora; asnoites de bebedeira, o comportamento rude, a comida mastigada na boca aberta, as regras paracagar. Tudo em Damião era repulsivo. Ao princípio, gostou de ver os filmes pornográficos; eraalgo novo e proibido, mas perdera a graça quando viu o barbudo se tocar. Várias conjecturas ecomparações entre Damião e seu pai os separavam entre claro e escuro. Enquanto seu pai viveuna casa, tratou-o dignamente; fazia elogios e brincadeiras, aturava com muita paciência asmalcriações que perpetrava. Não criava regras absurdas e não invadia sua privacidade. Mesmotendo recebido todo seu desprezo, o pai afagava seus cabelos e buscava estar perto dele. Tomásretribuiu o afeto que recebeu comendo um dedo do pai e assando o gato que ganhou dele noforno. Esse pensamento fez seus olhos lacrimejarem. Como pudera ter sido tão egoísta? Pensavasomente em si mesmo e sofria com o ciúme que sentia pela mãe, culpando o pai constantemente.Tomás disfarçou a lágrima que quase caiu, esfregando as mãos nos olhos.

Tornou a pensar no padrasto. Damião o ofendia e o amedrontava com sua estupidez ebrutalidade. O homem exigia “respeito”, mas agia colocando medo nas pessoas. Ele não erarespeitado, mas sim, temido. Ridicularizava os demais e acreditava que as pessoas não estavamao alcance dele, tanto em força, quanto em experiência e sabedoria.

Tomás fitou sua mãe que o esperava, pacientemente, refletir, sem ter a mínima ideiapara onde os pensamentos dele o conduziam. Depois de suspirar, respondeu:

– Sim! Quer dizer... Acho que sinto saudades do meu pai!Ana abriu os olhos até levantar as sobrancelhas e formar uma linha de expressão no

meio da testa, tamanha foi sua surpresa. Começava a se preocupar pela demora em receber umaresposta. Acreditou por um instante que a contestação seria negativa, e nesse caso, estariaperdida. Como submeter o filho as suas confusões amorosas?

Se soubesse que Antônio voltaria para casa, teria o esperado sozinha, sem envolver-secom Damião. No começo, queria provocar ciúmes em Antônio com um amante; estava sozinha ecarente, com um filho pré-adolescente para criar. Necessitava um homem por perto e agiu rápido.Acreditou piamente que Damião instruiria o filho e o tornaria um homem de valor, mas aocontrário disso, Tomás o repudiava. Preocupada tão somente com a educação que o filho poderiater ao lado de um homem vigoroso como Damião, não escutou as reclamações do pequeno etampouco deu importância quando o viu infeliz. Burra, eu sou burra demais! Fiz tudo, ou, quasetudo, em nome de Tomás e do meu casamento, mas nunca parei para perguntar sobre asvontades e desejos dele. Pela primeira vez, ao refletir sobre as reclamações do filho e lembrar aforma como Damião falara naquela tarde, começou a entender que a rejeição do filho não eratotalmente injustificada. Tomás admitiu sentir saudades do pai, no entanto, jamais pronunciarauma única palavra antes. Observou, aflita, quando uma lágrima nos olhos dele quase caiu. Nessemomento, pensou em abraçá-lo, mas como Tomás havia disfarçado a lágrima esfregando osolhos, preferiu deixá-lo tranquilo. Mas por que ele chorou? Ana ficou feliz com a resposta querecebera, mas ao mesmo tempo, preocupada. Uma ruguinha insistente de inquietação seapoderou dela.

– Tomás, o Damião bateu em você alguma vez?Ele levantou a cabeça e a encarou, pasmado.– Não, nunca!Ana pareceu duvidar.– Você tem certeza?Tomás estava disposto a ocultar o terror que algumas vezes sentiu ao lado dele: o dia em

que ele o deixou despido em cima do milho, todas às vezes que fora chamado de “bichinha”,“viadinho”... À tarde em que saiu correndo de casa, sem calçado, porque Damião quase oagrediu. Se ele foi embora para sempre, não tenho porque contar nada. Está tudo acabado!Decidiu e fez-se de desentendido, tornando a negar.

– Não, mãe! Ele não fez nada.Ana o estudou, cuidadosamente. Deduziu que algo havia acontecido entre eles, mas não

podia arrancar a informação do filho. Talvez fosse implicância sua, pensou, mas sabia que cedoou tarde a verdade bateria na porta.

Tomás segurou a mão de sua mãe e a sacudiu em brincadeira, levando a mão direita delapara cima e para baixo.

– Mãe, porque você perguntou se eu sinto saudades do meu pai?Ela voltou a si e sorriu. Sentia que a vida tornava a cintilar fortuna à sua família. Tudo

seria como antes, ou ainda, muito melhor.

– Eu encontrei o seu pai outro dia, caminhando pelo centro.– Verdade? Em carne e osso? Ele ainda existe? – Perguntou surpreso. Desde que seu pai

fora embora era como se ele tivesse deixado de viver na face da terra. Concluía que se ele nãopodia vê-lo, o pai deixava automaticamente de existir.

Ana soltou uma gargalhada.– Claro que ele existe, ou o que você pensa? Que ele criou asas e voou para outro

planeta?Tomás não sabia o que ele realmente pensava.– Ah, sei lá! – Deu de ombros, achando a própria pergunta ridícula – Ele vai voltar a

morar aqui?Dessa vez, Ana sentiu o coração disparar e perdeu o sorriso, sem poder dissimular que

fora pega desprevenida. Meu Deus, como as crianças são diretas! Ela havia pensado seriamenteno decorrer do ultimo mês em como pedir a Damião que fosse embora, e na melhor forma dereaproximar Tomás de Antônio. De repente, uma pequena discussão fizera Damião deixá-la porconta própria, e na primeira conversa com o filho, ele a perguntava sobre uma reconciliação como marido. Estava tudo fácil demais...

Ana não podia admitir tão depressa que voltaria com Antônio por medo que Tomás aconsiderasse uma mulher promíscua e volúvel, que andava de mão em mão. Chocada com opensamento, respondeu:

– Não, que absurdo! – Mas arrependeu-se da resposta que saiu de sua boca de formamais categórica do que desejava, e tentou consertá-la: – Quer dizer... Talvez, um dia... Vocêgostaria?

Outra vez, Tomás se lembrou dos pais de Molambo e da harmonia entre eles. Ele queriaque o pai voltasse? Não conseguia responder, mas sabia que desejava uma família igual deMolambo.

– A senhora quer? – Ele devolveu a pergunta.Ao ver que Tomás vacilava e considerava a possibilidade de forma positiva, Ana

arriscou dizer:– Só se você quiser!– E ele quer?Essa era uma pergunta que ela não esperava.– Não conversamos sobre isso – Mentiu.Ele virou os olhos para cima e bufou:– Então, por que vocês não conversam primeiro?– Hein?– Claro, mãe! Como a senhora pode me perguntar se eu quero que ele volte se ainda nem

sabe se ELE quer voltar?Ana voltou a dar uma gargalhada. Uma vez mais, o pequeno a superava. E estava

coberto de razão... Era o terceiro sábado que Tomás acordava sem a presença do homem de barbas em

sua casa. Levantou da cama, passou pelo quarto da mãe, viu a porta dela aberta e a camaarrumada. Caminhou até a cozinha e encontrou a mesa posta com o café da manhã. Apertou agarrafa térmica, encheu meia xícara de café e a completou com leite frio. Lembrou que a mãenão trabalharia mais aos sábados, mas então, onde ela estava? Provavelmente em alguma vizinhaou no supermercado, pensou. Pegou duas fatias de pão, atolou margarina em uma das partes e

esmagou uma contra a outra.Pegou o pão, a xícara de café e sentou no sofá verde da sala. Deveria encontrar-se com

Molambo depois do meio-dia para entregar algumas encomendas de geleias para quatromercados. Olhou para o relógio na cômoda e viu que ainda não eram dez horas, desejando mataro tempo que restava. O que poderia fazer? Fumar um cigarro sempre ajudava, mas ele não tinha.Desde que Damião fora embora, sua mãe não tinha fumado e nem bebido uma gota de álcool.Prometeu a si mesmo que se ela parasse de fumar, ele também pararia. Sua mãe estava maisdisposta e corada, os olhos brilhavam e o bom humor dela havia voltado. A casa voltou a estarlimpa e desimpregnada. O banheiro ficou livre de regras. Mãe e filho passaram as últimassemanas conversando, fazendo geleias, cozinhando juntos. Estavam mais próximos do quenunca.

Tomás colocou a xícara vazia em cima da pia na cozinha e voltou ao quarto para pegaruma roupa e tomar banho. Pensou no que vestir e decidiu colocar a mesma camiseta nova queusou no shopping. Lembrou-se de Molambo e da roupa que ela vestiu: minissaia e blusa branca,com um suspensório que lhe dava um ar de colegial. Estava linda, e por onde passavam, osgarotos mexiam com ela enquanto as garotas a olhavam atravessado. Tomás percebeu quemulheres observam mulheres com muita curiosidade e interesse, principalmente as bonitonascomo Molambo. Ele chegou a comentar com ela quando, pela quarta vez, uma garota qualquerparou para olhá-la. Molambo lhe dissera que as mulheres olham para outras mulheres porquenunca estão satisfeitas com elas mesmas. O cabelo, a roupa, a cor do esmalte, o sapato de outrassão sempre mais atraentes, e com essas observações, elas imaginam como é ter algo que não têm.“Mulher é o bicho mais estranho que existe!”.

O orgulho de estar perto de Molambo o dominava. Estar ao lado de uma mulher bonitaera chamar atenção por tabela, e não podia deixar de imaginar que o observavam também. Tomásestava perdidamente apaixonado por Molambo, mas não podia confessar seu amor. Sentia medode afastá-la para sempre ou que ela risse sobre seus sentimentos. Ela era linda e inteligente, maisvelha que ele, mais alta, tinha uma família bacana... O que ela poderia esperar de um derrotado?Ponderou. Ainda era cedo, tanto para se declarar, como para desistir de seus sentimentos.Esperaria o momento certo, acreditando que nada é impossível. Não gostava da escola, mas seesforçaria para sair dela com um diploma. Molambo já tinha o segundo grau enquanto ele nãotinha sequer a quinta série. Era uma vergonha, reconheceu. Cada vez que Tomás estava com ela,na posição de um bom amigo, seu coração batia descompassado e sentia-se verdadeiramentefeliz. Mas quando pensava no quanto gostaria de tê-la como namorada, e quem sabe um dia,casar-se com ela, sua felicidade era substituída por tristeza, pois voltava a chocar-se com todas asdiferenças e distâncias entre eles.

Contentar-se-ia com a amizade dela e esqueceria o resto por enquanto; decidiu, só porenquanto...

Pegou uma cueca, a camiseta nova e saiu do quarto. Estava no corredor quando parou

abruptamente. Damião havia acabado de entrar pela porta da sala. Tomás pensou em voltar parao quarto correndo e se esconder, mas era tarde demais; o homem estava apenas alguns passosdele. Ficou paralisado ao ver a face de Damião deformada, reparando em um hematoma enorme,arroxeado embaixo de um olho e o nariz torto. Damião parecia ter perdido peso e sua testa estavamarcada com uma grossa casca de ferida com mais de seis centímetros.

Meu Deus! O capeta foi atropelado por um ônibus!Damião fechou a porta sorrateiramente e parou ao ver Tomás. Seus olhos estavam frios

como sempre, mas a expressão neles era ainda mais dura. Deu alguns passos, sem dizer nenhumapalavra ou sorrir, e Tomás percebeu que ele mancava.

– Cadê sua mãe, pirralho? – Perguntou de maneira bruta.Tomás engoliu saliva e respondeu baixinho:– Não sei.– Ela não está em casa? Foi trabalhar?– Não sei! – Tornou a responder, dessa vez, um pouco mais alto.– É claro que ela foi trabalhar, idiota! Onde mais ela poderia estar? – Bufou e sorriu de

forma estranha. – Você é tão burro que não consegue responder uma simples pergunta. Estamossozinhos, então?

Tomás sentiu um leve mal estar ao ver a falta de um dente frontal no sorriso desfiguradode Damião.

Damião esperou que Ana o procurasse na casa de Uzias, mas ela não apareceu.

Durante as três semanas após o episódio com os homossexuais, fez repouso no apartamento deCuzão e recebera cuidado pelas mãos do amigo. Não podia ir ao hospital e tampouco tinhacondições para pagar um médico particular. Tudo que pode fazer foi limpar as feridas, tomaranalgésicos e anti-inflamatórios que encontrou, esperar os ossos cicatrizarem naturalmente edormir de forma exaustiva. O nariz quebrado deixou de doer, mas seguia torto e inchado. Aindatinha dificuldade para respirar depois da surra que levou, e não conseguia dobrar a perna. Passouos dias desfrutando de uma dor terrível que o atingia principalmente no pulmão, como se umafaca o rasgasse por dentro. Uzias ficou chocado quando o encontrou no apartamento, mais quenada, pelo corte na testa e o nariz torto. Ao amigo mentiu e contou que foi atacado covardementepor um grupo de skinheads pelas costas, depois de ter brigado com Ana e saído de casa. Damiãonão pôde trabalhar durante esses dias. Uzias teve que sustentá-lo e pagar os remédios com opouco que ganhava trabalhando como zelador de um prédio. Haviam discutido sobre a situaçãona noite anterior e Uzias o mandou voltar para casa de Ana, lembrando-o que ainda eramfugitivos e a cara de Damião configurava nos registros policiais e nos retratos de busca. Damiãoquase não conseguiu dormir à noite anterior. Perdera o trabalho que tinha na construção e nãopodia viver às costas de um homem, mesmo que fosse Uzias. Deveria voltar para Ana,representar uma saudade que não sentia e pedir desculpas, mesmo convicto de não ter feito nada.Necessitava enganá-la para poder ficar tranquilo, vivendo na casa. Ela podia ter sido orgulhosa enão tê-lo procurado, mas sabia que era boba o bastante para cair na lábia dele e ceder. QuandoAna estivesse novamente em suas mãos, iria fazê-la comer o pão que o diabo amassou.

Olhou para Tomás e sorriu de forma mal-intencionada. Voltou até a porta da sala e afechou com chave. Depois, baixou a cortina da janela. Era hora de dar uma lição no viadinho.

Ana não aguentou a ansiedade de contar para Antônio que tivera uma boa conversa

com Tomás. Poderia ter ligado do orelhão para o celular dele, mas precisava ver pessoalmente areação do marido ao lhe dar a notícia. Em breve ele voltaria para casa. Em breve eles seriamnovamente uma família. Em breve tentariam refazer o passado sem tantos erros. Ana deixou ocafé pronto logo de manhã, tomou banho e vestiu-se. Tomás ainda estava dormindo quando elasaiu.

Antônio estava de pijama e segurava uma xícara de café na mão quando abriu a porta dacasa. Ele deixou a xícara na mesa e voltou para abraçar a mulher. Apertou-a tão forte que chegoua levantá-la dois centímetros do chão.

– Isso tudo é saudade? – Ela perguntou rindo e depois o beijou.– Não, isso tudo é amor! – Antônio devolveu o sorriso sem soltá-la de seus braços e a

conduziu no ritmo de uma canção. No ambiente, Chico Buarque cantava através de um CD.– Então, preciso ficar mais tempo longe! – Ela replicou em um tom brincalhão, enquanto

se deixava abraçar pelo marido que a conduzia suavemente, embalado pela música.Ana se sentia nas nuvens. Antônio a amava mais que antes e isso foi tudo o que sempre

desejou. “Há males que vem para bem!” disse a si mesma. Antônio precisou ter uma amante paradescobrir que amava a esposa. Seu único remorso era Rita de Cássia ter perdido um dedo noenrolado triângulo amoroso mal resolvido, no qual estava indiretamente envolvida. Porém, seRita não tivesse perdido o dedo, talvez não tivesse perdido o bebê; talvez não tivesse ficadolouca, e talvez, Antônio ainda estivesse com ela. Definitivamente, os males vêm para bem. Eramelhor não se arrepender de seus atos e acreditar que tudo é uma questão de fatalidade oudestino, pensou. Aconteceu porque teve que acontecer e ponto final! Ela não pagou para obandido cortar um dedo da mulher, apenas para aplicar-lhe um susto. Não era inteiramenteculpada. Ademais, o que era a falta de um dedo para quem ainda tinha outros nove? Era melhorparar de se remoer com pensamentos do passado.

Antônio serviu Ana com uma xícara de café e sentou ao lado dela à mesa. Estavainquieto desde que soubera que Damião fora embora. Achava completamente absurda a situaçãoque enfrentavam. Tornara-se amante da esposa, mesmo sendo ele o marido e o homem quem elaamava. Não havia mais espaço para uma terceira pessoa na relação. Sem aguentar a ansiedade,foi direto ao ponto:

– E então? São três semanas já... Quando vou poder voltar para minha casa, hein?Ana sorriu e fez um ar misterioso.– Eu conversei com Tomás ontem...– E o que ele disse? – Antônio prendeu a respiração e a deixou escapar em seguida, de

forma pesada.– Ele disse... é... disse... – Ana começou a brincar com a situação.– Para com o suspense e fala logo! – Vendo que Ana zombava dele, apertou-a na barriga

duas vezes. – Posso colocar essa casa à venda e começar a fazer minhas malas?– Calma! Uma coisa de cada vez! Tomás disse que sente saudades! Mas não quero que

você chegue de mala e cuia do nada. Vamos conversar com ele antes.Os olhos de Antônio ficaram levemente iluminados. Fazia muito tempo que não via o

filho e estava ansioso para encontrar-se com ele. O tempo separado da família mostrou-lhe quenem as travessuras de Tomás, nem o fato de ter perdido um dedo a causa do filho, e nem todo odesgosto que sentiu no último ano, quando ainda estava com eles, foram capazes de apagar seusentimento paterno. A saudade que sentiu do lar deixava-o mais impaciente. Tinha contas aacertar com Tomás por sua omissão e estava disposto a ser mais persistente dessa vez, preparadopara lutar pelo amor do filho e ansioso por reencontrá-lo.

– E... ele está bem?– Sim, faz muito tempo que não o vejo tão feliz!– É por causa dessa menina, será? Como ela se chama mesmo? Molambo?– Por causa dela também... Mas acho que ele ficou ainda mais contente porque Damião

foi embora. Ontem, quando conversamos, achei que ele queria me contar algo...– Como assim, um segredo?– Não, eu perguntei se ele sentia falta de Damião com o pretexto de falar sobre você. Ele

pensou muito tempo, mas foi categórico ao dizer que não queria que Damião voltasse nunca

mais. Parece que está aliviado.– Ah, Ana, mas isso é normal! Acho que ele também ficou aliviado quando eu fui

embora de casa...– Não, mas dessa vez é diferente! Tomás tem medo... Várias vezes ele me disse que

achava Damião repulsivo e que estava infeliz. Na última vez que brigamos, Damião e eu, eleprovocou Tomás agressivamente, só porque o menino estava descascando frutas. Você lembracomo Tomás é malcriado e genioso, não? – Antônio balançou a cabeça afirmativamente elevantou a mão onde faltava um membro. Se havia algo no mundo que conhecia bem era o gêniodo filho. – Pois Damião gritou com ele, de dedo na cara, e Tomás sequer foi capaz de levantar acabeça.

– Que? Ana, você acha que o Damião batia nele?– Não sei... eu perguntei, mas ele negou. Mesmo assim fiquei desconfiada.– Você percebeu alguma coisa estranha enquanto ele morou lá? Como é esse tal de

Damião?Ela sabia que Damião não tinha documentos, nem emprego fixo e seu único familiar,

vivo, era Uzias (era o que ele dizia). Sabia também que Damião sofria de ejaculação precoce, erapéssimo de cama e apresentava pouco interesse por sexo, embora se considerasse um garanhão.Era agressivo, machista e alcoólatra, embora, esta última característica, não a admitisse.Lembrou-se do filho fumando, dos terrores noturnos e da vez que Tomás tentou dizer qualquercoisa, mas no lugar disso, apenas chorou. Recordou da primeira vez que teve relações comDamião no meio do matagal e de sua excitação; da forma como ele a possuiu com vigor,fazendo-a gozar mais de três vezes. Naquela noite ele foi sensacional, ousado e tão vigoroso quea fez pedir mais. Lamentavelmente, fora a única vez; a única boa experiência comparada aorestante das relações sexuais que tiveram depois. Na cama, ele era um verdadeiro fracasso.Normalmente, cheirava a suor, tinha mau hálito, e embora cansasse de dizer que a amava, era umhomem indiferente e frio. A reflexão sobre Damião fez seu estômago embrulhar. Não podiacontar para Antônio o que realmente achava sobre o ex-namorado. Onde eu estava com acabeça? De repente, falar sobre ele e descrevê-lo mentalmente, pareceu um tormento. Minhasburradas são sempre maiores quando estou desesperada... Ela tinha que dividir algo com omarido e disse:

– Uma vez ele fechou a mão para bater em Tomás...Antônio moveu a cabeça para trás, sobressaltado.– De mão fechada? Para dar um soco no menino? – Ele viu a vergonha estampada no

rosto da esposa e não aguentou segurar a pergunta: – Ana! Que tipo de homem você colocoudentro de casa?

– Ele é um homem bom, mas às vezes é muito temperamental, sabe?Antônio sabia pouco de Damião. Evitava perguntar sobre o namorado da esposa por

receio de saber o que não queria. Foi ele quem saiu de casa, assim como também quem pediupara voltar. Na época que conheceu Rita, ficou louco por ela. Era uma garota jovem e tãoatrevida quanto Ana quando a conheceu. De alguma forma encontrou na amante, característicasda esposa. Mas, como toda fugaz paixão de carnaval, foi rápida e passageira. Rita já estavagrávida quando se conheceram, mas o fez acreditar que a criança que esperava era dele, quandoainda estava acesa a chama dessa paixão. Ele teve certeza que poderia ser feliz ao lado daquelagarota, e nesse momento, teria feito qualquer loucura.

Jamais esqueceria o mal que causou à Ana. Ela o procurou várias vezes tentando levá-lode volta para casa, negando-se com unhas e dentes assinar o divórcio. Rastejou, ajoelhou-se, caiu

e perdeu parte de sua dignidade durante o processo de separação. Ele a humilhou. Deixou-a empéssimos lençóis; não a procurou, não perguntou pelo filho e sequer despediu-se dele. Nãoajudou financeiramente, e pouco pensou na família que largou.

Damião veio depois. Ana estava sozinha e desimpedida; podia namorar quem quisesse.Quando ele a encontrou e pediu para voltar, já sabia da existência de um novo homem na vida daesposa. O mínimo que podia fazer era ser paciente. Não era apenas o ciúme, mas de algumamaneira, Damião lhe caía muito mal. Ele segurou as tantas indagações que tinha a respeito dohomem, e ao contrário disso, sugeriu muito decidido:

– Vamos lá agora!– Que? Agora? Mas eu não avisei nada. Aliás, Tomás sequer sabe onde eu estou!– Vou tomar banho e saímos, ok?Ana gostou da ideia, mas ao mesmo tempo, temeu que estivessem sendo precipitados.

Ainda não fazia sequer 24 horas que havia conversado com Tomás... E por isso, tornou a pedir:– É melhor esperarmos. Não sabemos como ele pode reagir!Antônio parou na frente da porta antes de entrar no banheiro, e disse:– Ora, não sabemos por que ainda não tentamos. Vamos descobrir essa reação agora

mesmo!

Tomás observou o homem deformado trancar a porta da sala e fechar as cortinas.Em pânico, correu para o quarto, depois de atirar no chão do corredor a muda de roupa

que segurava nas mãos. Tentou pular a janela, mas o homem agarrou-lhe pelos cabelos e o trouxede volta ao interior antes que conseguisse saltar. Jogado no chão com brutalidade, tombou emcima do cotovelo e soltou um grito de dor.

Encarou Damião nos olhos, segurando as lágrimas e esforçando-se para sustentar amirada no rosto deformado que via, e então berrou com toda sua força:

– MINHA MÃE MANDOU VOCÊ EMBORA! NÓS NÃO QUEREMOS VOCÊAQUI!

Damião levantou um dedo no ar e ordenou, em um tom furioso e autoritário:– Cala-boca, pirralho! Fecha essa matraca que eu não quero sua opinião! É bom você

começar a se comportar melhor e fazer o que eu quero, ou quem vai embora daqui é você!O quarto ficou escuro depois que Damião fechou a janela e puxou a cortina. Ele acendeu

a luz no exato momento em que o pequeno se levantou, fazendo ambos se espreitaram. O gigantebloqueou a porta e Tomás percebeu que não teria chance de sair, sem ideia do que o diabotencionava fazer.

Dar-lhe uma surra? Colocá-lo de castigo?Abominou as lágrimas que lhe vieram ao rosto nesse momento. Os soluços insistentes e

a tremedeira involuntária de seu corpo delatavam seu medo e impotência; reconheceu que erafraco demais para lutar contra o homem gigante.

Desconhecia a si mesmo. Apesar de sua estatura franzina e magreza, não costumavatemer a nada e a ninguém. Já havia levado uma surra de cinta do pai e suportado a dor e avergonha com bravura, sem derramar uma lágrima...

Na ocasião, pelo menos, meu pai teve razões de sobra para me surrar, mas o que essehomem tem contra mim?

– Para sua informação – comunicou ele muito convicto, contemplando o menino comapetite nos olhos: – eu resolvi voltar; e dessa vez, definitivamente! Você não queria aprender aser homem? Hoje vou ensinar algo que você jamais esquecerá. – Fez uma pausa, e dessa vez,

seus olhos ficaram inexpressivos. O homem levantou um dedo no ar e avisou de formaameaçadora: – Se você contar uma só palavra para sua mãe, eu acabo com a raça dela e com asua! Você entendeu, pirralho?

O sorriso de malícia nos olhos e uma expressão ameaçadora por trás da face deformadado inimigo conseguiram deixar a tremedeira de Tomás em um ritmo constante. Damião pareciadivertir-se com a situação. Assustado, Tomás empurrou as costas contra a parede, afastando-seaté não poder mais, em uma tentativa inútil de derrubá-la, como se o peso de seu corpo pudessemover a barreira que o separava da liberdade. Em uma ação inconsciente, continuavaempurrando-a com as costas atreladas a ela, vendo-se, como em um passe de mágica,desaparecer do lugar.

O homem de barbas fechou a porta do quarto e abriu um sorriso com apenas metade daboca, desfrutando com prazer todo o medo que o rapaz sentia. Ansioso, tirou a camiseta em umúnico puxão e baixou as calças até os pés. Em seguida, livrou-se da roupa presa em seustornozelos e as jogou para um canto, sem desgrudar os olhos do enteado.

Damião se lembrou da relação que tivera com o padre. Naquele tempo, as coisas fluíramcom facilidade e naturalmente. Havia tentado conquistar Tomás com filmes, cigarros e umasincera amizade, mas ele era teimoso demais para ter cedido sem relutância, ponderou. Ostempos eram outros.

Tomás arregalou os olhos, sem conseguir coordenar as ideias e o ritmo acelerado docoração.

– O que você está fazendo? – Perguntou com agonia ao ver o homem nu.– Nós vamos fazer uma brincadeira, um jogo infantil...O menino pulou por cima da cama e empurrou-o, mas Damião o abateu em um piscar

de olhos usando apenas uma das mãos. Tomás começou a gritar quando se deu conta do queestava para acontecer.

Entre socos e pontapés, que acertava aleatoriamente, sua roupa era arrancada do corpo.– Espera! – Tomás exigiu, parando de repente de relutar. Damião cedeu um pouco e o

garoto aproveitou o momento para pedir: – Por favor, não rasga a minha roupa! Deixa que eutiro!

Damião parou de apertá-lo e o soltou, achando que o pequeno finalmente resignava-se.Permaneceu muito próximo de Tomás e o encarou de forma perversa, sentindo a respiraçãoofegante do menino em seu rosto.

– Você é uma bichinha mesmo! Está preocupado em estragar esse trapo velho, é?Sem responder, Tomás começou a abrir a bermuda, aterrorizado com o corpo do homem

excitado que o esperava diante dos olhos. Antes que pudesse abrir o segundo botão da bermuda,agarrou a pesada Bíblia que estava ao seu lado, e sem perder tempo, espatifou-a no nariz deDamião. O gigante foi pego desprevenido ao ser atingido novamente no nariz quebrado.Colocando a mão na frente da face, sentiu o sangue quente descer de sua narina. Tomás nãoperdeu tempo; abriu a porta do quarto e correu pelo corredor até à porta da sala. Estava com amão na chave, mas Damião chegou atrás dele em uma fração de segundos. Sabia que o homemde barbas o mataria nesse momento. Damião, nu e ensanguentado, levantou-o no ar e o jogoucontra a parede. O garoto desabou no outro lado da sala, sem saber se estava morto ou vivo.Damião partiu novamente para cima do enteado e o levantou do chão pelos cabelos. Tomáscontinuou gritando, e dessa vez, conseguiu liberar um grito ainda mais forte:

– POLÍCIA! ALGUÉM CHAME A POLÍCIA! – Gritou duas vezes na esperança de quealguma vizinha o escutasse, antes que Damião o acertasse com um tapa certeiro em cima da

boca.– Fecha essa matraca ou vai ser ainda pior para você, fedelho!Damião fez Tomás se ajoelhar na frente do sofá. O garoto não conseguiu mais relutar e

curvou-se; seu braço doía de tal forma que podia jurar que estava quebrado.A esperança de escapar ileso da situação estava morta, quando escutou um barulho na

porta da sala. Damião se assustou ao ouvir o som da chave e largou Tomás quando a porta foiescancarada e invadida por um estranho. Ana estava ao lado dele.

Antônio ficou petrificado. Um homem saído de um filme de terror, nu e deforme

agarrava seu filho. “Cacete, mas que merda é essa?” Perguntou-se com perplexidade, entre ódio erepúdio, sentindo que, inconscientemente, sua mão fechava em punho. Ele não era idiota,dispensava explicações para sentir as más intenções do demente. A partir desse momento, nãoresponderia por si.

– P-a-i? –Tomás murmurou, deslumbrado ao ver a salvação que jamais teria esperadodiante de seus olhos.

Ana ficou pálida; suas pernas tremeram e o coração disparado dentro do peito a deixousem reação, possibilitando apenas que as lágrimas caíssem por seu rosto e a fúria a dominassepor completo. Motivado por uma aversão que jamais sentira antes na vida, Antônio partiu paracima do monstro. Damião ainda estava baixo o efeito de ter sido flagrado de maneira tãoimprópria; e sem tempo de reagir, recebeu um soco certeiro no nariz. Ele soltou um urro abafado,contorcendo-se de dor. O nariz há poucos dias havia sido quebrado, instantes antes foramachucado por Tomás, e agora, novamente. Vendo a impotência do monstro, Antônio seguiudesferindo golpes, acertando inclusive a ferida estampada na testa dele. Defendendo-se com osbraços na frente do rosto, Damião se levantou, ignorando a dor no nariz e nas costelas, natentativa de agarrar o adversário de qualquer jeito. Ambos caíram abraçados entre incessantesgolpes, mas Damião ganhou vantagem quando subiu na barriga de Antônio e conseguiu apertar-lhe o pescoço.

Ana vestiu Tomás com a bermuda jogada no chão e o tirou da casa em alta

velocidade, correndo porta afora quando os dois homens começaram a lutar. Do orelhão, perto decasa, ligou para a polícia e pediu urgência. Estava tão nervosa que precisou discar o número trêsvezes. Tomás estava a dois passos atrás da mãe, perdido no assombro que a situação o brindara eno próprio medo, completamente arrebatado com o que havia acabado de acontecer, e o quepoderia ter acontecido se os pais não tivessem chegado naquele momento. Ele engoliu o medo,controlando tanto a dor no braço quanto a tremedeira.

Damião era o demônio, e ele não deixaria seu pai sozinho com a besta. Antônio se debatia no chão, tentando arrancar o pesado músculo que circundava seu

pescoço. Chutou duas vezes para trás, sem efeito. Na terceira tentativa, acertou Damião nostestículos, mas não causou qualquer impacto. Em um único movimento, acertou uma cotoveladanas costelas de Damião. Somente com esse golpe, o brutamontes o largou e ele voltou a respirar,puxando ar de maneira suplantada para dentro dos pulmões. Recuperava ainda o discernimento eo fôlego quando viu Damião segurar a costela no lado direito com as duas mãos, com umaterrível expressão de dor através de seu rosto desfigurado. Pelo hematoma na face, era evidenteque o homem estava machucado e que tanto o nariz quanto a costela eram seus pontos fracos. Osangue fresco que encontrou no nariz de Damião deveria ter sido obra de Tomás, deduziu

enquanto ainda recobrava o ar, mas o resto das feridas eram frutos de algum acontecimentorecente.

Damião se recuperou mais rápido da dor nas costelas do que Antônio em recuperar o ar.Levantou-se emitindo grunhidos, mas de forma rápida. Antes que Antônio pudesse se defender,recebeu um pontapé nas partes baixas. Considerava o duelo desigual. Como poderia lutar comum homem muito mais jovem e forte que ele, e ainda por cima, sem roupas? Era a verdadeiravisão do inferno. Damião se acercou, puxou Antônio e voltou a meter-lhe uma chave de braços.Antônio lutou bravamente para se desvencilhar, mas quanto mais acertava o homem peludo, masforte ele retornava. Damião seguiu apertando o pescoço de seu adversário com ainda maisenergia. Antônio não conseguiu se mover; seu rosto passou da cor vermelha à azulada. MeuDeus, ele vai me matar!

De repente, uma voz infantil irrompeu a atmosfera do lugar:– Larga meu pai, Satã!Tomás ordenou autoritário, dessa vez, armado. Damião o fitou sobressaltado pelo

atrevimento, mas no mesmo segundo o ignorou e continuou apertando seu rival. Tomás levantoua chave de fenda e a segurou firmemente com toda a força de suas duas mãos. Decidido,arremeteu a ferramenta nas costas de Damião, sentindo que lhe perfurava a pele. A ferramentafoi cravada na parte posterior do ombro, arrancando dele um grito assombroso. Ferido, ele caiupara o lado, lutando para arrancar o instrumento de sua omoplata.

Tomás ajudou o pai a se levantar. Antônio tossiu algumas vezes e inalou ar,profundamente, tentando recuperar o fôlego. Apoiou as mãos nos joelhos e seguiu respirando,mas com o olhar em Damião, vendo o homem se levantar. Antônio fechou a mão, preparado parase defender ou atacar, conforme mandasse a situação.

– Você é o pai do Tomás? – Ele balbuciou, ofegante.– Sou o pai de Tomás e marido de Ana! – Ele o espreitou de forma desafiadora, e

acrescentou: – Você vai sair da vida da minha família para sempre, entendeu? Eu vou denunciá-lo por pederastia... Eu vou colocá-lo atrás das grades, seu filho da puta!

Damião soltou uma gargalhada.– Tal pai, tal filho! Dois imbecis! – Ele fez uma pausa forçada para respirar, e como se

estivesse desconfiado de algo, inquiriu: – O que você está fazendo aqui?– Isso não é problema seu!– Você e a Ana estão juntos? – De repente, tudo pareceu ficar claro, e ele perdeu as

palavras. – Ah! Ana... Ana... ora... que putona... Você está comendo essa vagabunda?– Eu esperava tudo de você, – Ana irrompeu a porta da sala e interferiu na discussão: –

menos que fosse um maldito pedófilo! Quer um conselho? É bom começar a rezar, pois se vocêencostou um dedo da sua sujeira no meu filho, eu vou atrás de você nem que seja no inferno!

Os olhos de Damião ficaram injetados de cólera. Estava furioso por ter sido enganado,pronto para atacar a traidora. Finalmente conheceria o gosto de arrebentar o rosto de uma mulher,mas escutou o barulho ensurdecedor de sirenes romper de longe. A cólera estampada nos olhosdele se transformou em pânico. Apavorado, correu em direção ao corredor, tencionando pularuma das janelas do quarto, mas Antônio o impediu colocando-se no caminho. Damião retornoupara a porta da sala, sem tempo para uma nova briga, decidido a fugir pela porta da frente. Antesde ter tempo de cruzar o quintal, a casa já estava cercada.

Ele recuou novamente, sem saber o que fazer. Tencionou esconder-se dentro da casa,mas Antônio bloqueou a passagem e o empurrou. Precisou retroceder uma vez mais.Desesperado para escapar, saiu pelo quintal, mas os meganhas o dominaram em seguida.

Foram precisos três homens para segurá-lo. Damião seguiu se debatendo, mesmo semforças. O mais jovem dos policiais que o algemou, mostrou-se visivelmente enojado com a nudezdo homem, espantado pela deformidade no rosto dele, pelo sangue que pingava do nariz eescorria pela omoplata ferida. O policial recém-formado e pouco experiente teve a sensação deestar dentro de um filme bizarro.

– Quer dizer então, que você abusa de criancinhas, é? – Perguntou o outro, que mantevea mão em cima do revólver na cintura, sem tirá-la do coldre. Ana explicou a situação pelotelefone e os policiais estavam a par de tudo.

Damião permaneceu em silêncio.– Acho que a rapaziada do presídio vai gostar de você! – Disse o policial com um tom

de sarcasmo. Depois, dirigiu a palavra ao colega e solicitou: – Pega luvas para gente; esse caraestá sangrando!

Damião estremeceu por dentro. Era informação pública e corrente o que os presosfaziam com pedófilos nas prisões brasileiras. Eu não sou um pedófilo! Mas, como poderiaexplicar isso?

– Cadê sua roupa, cidadão? Onde estão seus documentos?– Você está um nojo, cara! – Acrescentou um dos policiais, enquanto calçava luvas de

procedimento em látex – Nessa profissão a gente vê de tudo, só me faltava essa! Um marmanjoaprontando em casa de família; e ainda por cima, pelado! Então o seu lance é mexer comgarotinhos, né?

Damião sabia que não tinha documentos e fora pego no flagra, o que não deixariadúvidas quanto suas inclinações pederastas. Provavelmente, Ana estaria disposta a depor contraele. Sabia melhor que ninguém que era procurado em outros estados por vários crimes. A polícianão tardaria em lhe tomar as digitais e descobrir quem era. Mandariam sua foto para odepartamento policial de outras cidades, e muito em breve, seria associado ao primeiro delito quecometeu em Goiás, com o incêndio criminoso de Brasília, ao falso padre pedófilo no Rio deJaneiro, ao assalto ao posto de Minas Gerais... Estava em maus lençóis e sabia disso. Com sorte,não seria associado ao assassinato do travesti adolescente.

Em uma tentativa desesperada, tentou subornar os policiais com dinheiro que não tinha:– Escutem, que tal negociarmos? Eu posso molhar a mão de vocês? Não é assim que se

fala? – Disse, percebendo que absorvia a atenção deles. Esperançoso, continuou: – Dois mil?Dois mil na mão para vocês dividirem e eu posso ir embora, que tal? – Ofereceu uma vez mais,enquanto era conduzido até a viatura e assistia um terceiro policial entrar na casa de Ana paraouvir a família.

Os dois se entreolharam e pararam por um segundo.– Você tem dois mil?– Claro! – Mentiu Damião com brilho nos olhos, acreditando que se os homens o

liberassem, poderia fugir deles para sempre, sem pagar o dinheiro proposto e sem encostar os pésna prisão. Ainda não sabiam quem ele era, e a bobagem que acontecera nessa manhã poderiafacilmente ser esquecida. Dois mil reais era uma quantia irresistível. Eles cederiam, teve certeza,e dali para frente, trataria de ser um novo homem; mas dessa vez, para valer. – Mil pra cada um,o que vocês acham?

Os policiais tornaram a cruzar olhares de cumplicidade e Damião sentiu um fio deesperança. Todo mundo conhece a corrupção policial; autoridades negociam com traficantes ebandidos o tempo inteiro e se vendem por muito menos que a quantia proposta. Por quehaveriam de recusar? Damião ponderou, sem arrependimentos, apenas com a esperança de dias

melhores, convicto de que precisaria fugir novamente para ficar livre dos policiais, que comcerteza, o cobrariam.

– Então, além de mexer com criancinhas, você gosta de subornar policiais?Damião empalideceu.– Seu caso está cada vez mais complicado, amigo! – O outro policial acrescentou com

um sorriso cínico: – Pedofilia e corrupção ativa... Quanto tempo de pena dá isso, Jorge? – Osdois policiais soltaram uma risadinha irônica, e logo em seguida, recobraram a cara de poucosamigos. – Cara, parece que você não tem dinheiro nem para se vestir, quanto mais para subornaruma autoridade! Quer uma dica? Tente isso com o juiz, quem sabe ele aceita, mas você vai terque aumentar essa oferta cem vezes.

– Agora, é melhor você fechar o bico, conselho de amigo! – O policial tornou a dizer.Em um tom ainda mais brusco, inquiriu: – Cadê sua roupa, marmanjo? Você acha que faz partedo serviço policial segurar homem pelado?

– Não senhor! – Damião respondeu com muita humildade e submissão. Sentiu-se idiotapor ter feito a proposta e tragou um líquido amargo feito fel, garganta abaixo – Está lá dentro dacasa.

– A senhora pode nos entregar a roupa desse cidadão? – Pediu o policial à Ana, queterminava de conversar com um dos policiais na porta de casa.

Ela correu para procurar a roupa de Damião. Sentia-se culpada por tudo que haviaacontecido com Tomás, extremamente envergonhada pela nudez e violência frente a sua casa,justamente quando o marido voltava ao lar, indignada consigo mesma por não ter suspeitado deDamião jamais. Nesse momento entendeu que odiava Damião, mas que ao mesmo tempo,compadecia-se dele. Ódio e compaixão, juntos, eram sentimentos que ela jamais havia sentido.Esse dia estaria marcado para sempre em sua vida por uma cena de violência e covardia.

Quando Ana se aproximou para entregar a roupa, Damião gritou, alterado, ao mesmotempo em que lutou para se livrar dos policiais que o seguravam pelo braço:

– Vagabunda! Você estava com esse velhote às minhas costas, né? Você vai pagar caro,vadia!

Amedrontada com a possibilidade que Damião pudesse escapar, ela o ignorou e virou ascostas. Com brutalidade, os policiais o imobilizaram em um piscar de olhos.

– Camarada, é bom você calar a boca. Coloque-se no seu lugar, cidadão! Nós vamosacrescentar na sua ficha ainda: Resistência à prisão!

A visão de Damião escureceu por completo. Por uma fração de poucos segundos, sequerconseguiu caminhar devido ao torpor de estar algemado, com a vizinhança inteira de olhosacesos em sua nudez, acusado de pedofilia. Imaginou o futuro desgraçado que teria pela frente.Um dos policiais tentou baixar sua cabeça para enfiá-lo na parte de trás da viatura, mas ele serecusou e permaneceu imóvel. Damião deu a última olhada para casa que um dia fora sua.

Completamente humilhado, viu a família que destroçou sua vida reunida na porta deentrada da casa, assistindo o espetáculo de camarote. Ele sabia que não seria capaz de perdoar.Em seu íntimo, não conseguia dizer a quem odiava mais: se a Ana, a puta traidora, ou o diaboafeminado, Tomás.

Um dia eu voltarei e os farei pagar!Foi seu último pensamento antes de ter a cabeça empurrada para dentro do veículo. Foi preciso alguns minutos depois que as viaturas se afastaram, para a família

conseguir se livrar da curiosidade dos vizinhos e fechar a porta de casa.

Ana correu e abraçou o filho.– Tomás, você pode me perdoar, querido? – Ela o soltou e escondeu a face entre as

mãos, soluçando. – Meu Deus, onde eu estava com a cabeça quando coloquei esse homem aquidentro?

Antônio se ajoelhou ao lado do pequeno e perguntou com o máximo de cuidado:– Tomás, esse homem já maltratou você antes?Embora, toda a situação de desespero e violência que vivenciara pouco antes, Tomás

estava relativamente plácido. Se não fosse pelo resto de adrenalina e excitação que ainda corriaem seu sangue, já estaria na rua vendendo geleias.

Ele segurou a vontade que sentiu em abraçar o pai, o homem que salvara sua vida; masao contrário de parecer sentimentalista, preferiu se comportar como “homem”. Com uma reaçãoarticulada, porém, completamente inesperada pelos pais, disse:

– Poxa, pai! A gente colocou o barbudo pra correr, não foi?Antônio ficou assombrado. Não sabia o que dizer sobre a situação, pois ainda tremia, e o

ar não havia lhe voltado por inteiro. Era como se tivesse acabado de sair de uma montanha russaem um parque de diversões, que de “diversão” não tinha nada. Tomás no entanto, não parecia umfio de cabelo abalado. Ana tirou as mãos da frente do rosto e franziu a testa, sem entender areação do garoto.

Ao ver a perplexidade nas faces dos pais, Tomás resolveu quebrar o bloco de gelo:– Hei, relaxem! Esse cara nunca tocou um dedo em mim!– Mas, vocês estavam sem roupas... – Ana tentou argumentar; receber algum

esclarecimento que apaziguasse a aflição que sentia, mas foi interrompida pelo filho:– Mãe, esse cara é loucão! Deixa isso pra lá, o importante é que nada aconteceu, não é?Antônio e Ana trocaram um olhar de cumplicidade, deixando escapar um suspiro. Ana

ainda estava perplexa. Por mais que a resposta do filho fosse reconfortante, necessitava obterrespostas. O que importava era o bem estar e a integridade física do garoto. Tomás afirmava queestava bem e nada havia acontecido, pelo menos “nada” para ele.

– Tomás, você está falando a verdade? – Seu pai interferiu, tão surpreendido pelacordialidade com que era contestado quanto pela reação positiva do filho frente à agressão quesofrera. Atitude que deixava tanto ele quanto Ana, parecendo histéricos por nada. Ele tornou aperguntar uma vez mais: – Não aconteceu nada mesmo? Nunca?

– Nunca, pai! Pelo contrário! Até que ele foi um cara maneiro por um tempo; podeacreditar! – Mentiu, com a intenção de ter essa história enterrada para sempre e nunca mais ouviro nome de Damião.

Ao ver que os pais ainda seguiam investigando e não se convenciam, completou comuma voz jovial e feliz:

– Pai, você vai voltar a morar com a gente? Vocês estão namorando?Antônio olhou para Ana, buscando o aval dela, e a viu sorrir.– Namorando? – Ela deu uma risada e aperfeiçoou a sentença: – Eu ainda sou casada

com seu pai, você lembra?Tomás sentiu uma onda de euforia que jamais havia experimentado antes. Ele teria uma

família igual de Maria Molambo e mal podia conter a ansiedade de contar tudo para ela.Como se a situação não fosse inesperada e já esperasse o retorno do pai, inquiriu:– Então, cadê suas malas?Antônio não podia acreditar que Tomás o aceitava de volta, e ainda, parecia feliz com a

situação, mesmo depois de tudo que havia passado. Se o filho que era a principal vítima estava

animado, por que ele não conseguiria? Meditou por um instante, e com um ar levementemisterioso, perguntou:

– A pergunta é: Cadê a sua mala?Tomás não entendeu a pergunta, e Ana tampouco. Ambos esperaram a resposta, fitando-

o de imediato.– Ué, como assim? Eu não tenho malas! – Respondeu, inocentemente.Antônio prosseguiu por alguns segundos com o mistério e depois sugeriu:– O que vocês acham de irmos morar na outra casa? – Propôs, decidido a afastá-los das

más recordações que essa casa deixaria após tudo isso.Ana gostou da ideia. A casa em que Antônio morava era mais ampla, mais nova e

melhor localizada. Ela poderia viver com o fantasma que Rita de Cássia havia deixado por lá. Epor que não? Já tinha dormido, deitado e rolado, na cama que um dia fora da outra.

– Sério? Uma nova casa? – Tomás indagou.– Bem, vocês não precisam dizer nada agora! Vamos tomar um sorvete e depois

podemos ir até lá para você conhecê-la, mas é claro..., se a sua mãe quiser!Ana permaneceu em silêncio, porém a expressão em sua face deixava evidente que a

proposta fora aprovada.– Eu vou deixar a decisão para Tomás!O menino pensou por um instante, entusiasmado com o novo rumo que sua vida tomava,

sem poder acreditar que cabia a ele tomar uma decisão para a família.– Uau! Sério? Então vamos mudar!– Mas você nem viu a casa ainda!– Ah, pai, se a minha mãe está com essa cara de tola, só pode ser uma casa melhor, né?Os pais deram gargalhadas e Tomás também achou graça sobre o que dissera. De

repente, Antônio perdeu a vergonha e animou-se em pedir:– E aí, ganho um abraço ou não?Tomás não pensou sequer por um instante e levantou de braços abertos, do seu jeito um

pouco tímido, permitindo-se dar e receber as saudações. Muitas lembranças passaram por suacabeça, mas decidido, resolveu deixar o passado atrás, como tinha que ser. Nada de desculpas,perdões e choradeira. Dali para frente seriam apenas os três, tentando formar uma família deverdade. As malcriações e desentendimentos logo seriam esquecidos, substituídos por diasmelhores.

Conversavam outros temas, quando Tomás consultou o relógio e percebeu que já

estava atrasado para seu encontro com Molambo.Em um tom brincalhão, avisou:– Agora eu preciso cuidar dos negócios, crianças!

Capítulo 13

Antônio tornara-se chefe do almoxarifado na empresa onde trabalhava, e ao contráriodos velhos tempos; voltar para casa era a maior satisfação do dia. A antiga casa fora vendida poruma bagatela e fazia mais de cinco meses que viviam na casa nova. Desde então, Ana haviaabandonado o serviço de faxina e começara a prestar serviços a idosos, duas vezes por semana,servindo de acompanhante em suas casas. O serviço era tranquilo, pouco cansativo e lheproporcionava muito prazer.

Dividia seu tempo ainda entre fazer geleias (que Tomás e Molambo vendiam) com aulasde corte e costura. A placa: “Vendemos geleia caseira, a melhor do mundo!” fora transferida parafrente da casa nova. Os clientes antigos permaneceram e novos surgiram. Vendiam geleiasavulsas, em pacotes, para mercadinhos e supermercados. Faziam encomendas de cestas de caféda manhã com pão fresco, frasquinhos de geleias com vários sabores, sucos naturais e frutas daestação. Vendiam cestas decoradas de geleias para presente, assim como cestas com geleias eflores, cestas com geleias e chocolate, frutas e geleias, ou, de acordo com a sugestão do cliente.Ana deixou algumas cestas de geleias armadas para amostra e Molambo criou um catálogo dereferência. O próximo passo da garota seria criar um site, que já vinha estudando com a ajuda deum amigo, chamado: “Geleia da mama, a melhor do mundo! Aqui você encomenda a cestaideal para adoçar a vida de alguém!”.

Tomás estava animado com seu décimo quarto aniversário. Os pais haviam preparado

uma festinha e ele estava ansioso pela chegada de Molambo e os pais dela. Aos treze anos nãopodia pensar em pedi-la em namoro, mas com quatorze... Tudo era diferente. Havia controlado apaixão que sentiu por Molambo desde o primeiro momento em que a viu e se comportado bematé então. Desde os três meses que antecederam seu aniversário, Tomás não pensou em outracoisa que não fosse declarar seu amor à “mulher de cabelos vermelhos”. Finalmente, haviachegado o grande momento.

A casa estava cheia. Antônio levou alguns colegas do trabalho; Ana convidara três dasantigas vizinhas que eram suas amigas, e claro, Maria Molambo com os pais e a avó delaestavam presentes fazia tempo. Já tinham cantado os parabéns, cortado o bolo de brigadeiro, enesse momento, seguiam conversando na sala, comendo pastéis de frango com catupiry que Anaacabara de fritar.

Ana entrou na cozinha para pegar mais guardanapos quando viu Tomás e Molambo napequena área de serviço, fumando um cigarro, encostados lado a lado na janela de vidro. Aprimeira intenção que teve foi brigar com o garoto e repreendê-lo, mas surpreendeu a si mesmaquando caminhou até eles e perguntou:

– Hei, vocês dois aí, alguém tem um cigarrinho para mim?Tomás levou um susto quando a viu, mas disfarçou seu nervosismo, tanto por estar

prestes a dizer a Molambo que desejava casar-se com ela quanto pela mãe tê-lo flagradofumando. Os tempos eram outros, pensou; desde que sua mãe deixara de beber, não podia maisenganá-la facilmente. Molambo estendeu um cigarro do maço e Ana o acendeu em seguida.Depois de dar a primeira tragada, com muita vontade, soltou a fumaça e disse:

– Oh, isso ainda vai nos matar!Molambo deu de ombros e Tomás permaneceu em silêncio.

– E quem não sabe? – A garota respondeu.Ana se juntou a eles na janela e os três continuaram fumando, enquanto olhavam para o

céu e fingiam admirar as estrelas, em um estranho constrangimento.Tomás havia jurado a si mesmo que se sua mãe deixasse de fumar, ele também o faria,

mas Molambo ainda era fumante e isso era um problema para ele. Temia que se dissesse para elaque não fumaria mais, ela o chamaria de “crianção”. Agora, por causa dele, sua mãe não deixariade fumar também, e essa ideia o desagradava. Embutido de uma coragem, que raras vezescostumava acontecer, ele fez uma provocação amistosa:

– Aposto três notas de um real como vocês não conseguem parar de fumar!Molambo soltou uma risadinha.– 1 real? O que a gente faz com um real? E por que três notas?– O importante não é o que fazer com o dinheiro, mas sim, quem vai ficar com uma nota

dessas.Ana deu mais uma tragada do cigarro antes de interferir:– Para mim é fácil, eu já estou há meses sem fumar!– Ah, mas e por que fumou agora, então? – Tomás a contradisse de imediato, deixando-a

sem resposta. Logo, inalou a fumaça do cigarro que ainda tinha na mão e o atirou pela janela.– Eu sou o primeiro a deixar!Ana o olhou com admiração, e no mesmo momento, jogou para longe o toco de cigarro

que ainda fumava.– Segunda!Molambo não gostava de ficar de fora em nenhum desafio. Por isso tirou o maço de

cigarros do bolso, amassou-o com as mãos e o atirou pela janela.– Terceira!– Vida nova? – Tomás perguntou, prometendo a si mesmo que jamais voltaria a colocar

um cigarro na boca.As duas mulheres de sua vida se entreolharam de forma curiosa e suspeita, mas não

demoraram em acrescentar:– Vida nova!Ana sorriu orgulhosa e os deixou a sós, convicta de que seu filho era uma maravilhosa:

“caixinha de surpresas”.Sem perceber que Antônio se engraçava com uma das vizinhas, Ana voltou à cozinha

para fritar mais pastéis. Nem por um instante duvidaria de seu marido e das intenções dele,afinal, a garota com quem ele conversava tinha pouco mais de vinte e cinco anos...

Sozinho com Molambo, Tomás resolveu ir direto ao ponto. Respirou fundo várias

vezes e tomou ar, criando coragem para começar a declaração de amor que havia ensaiado.Estava a ponto de relembrar Molambo quando se conheceram e contar como se apaixonou porela no mesmo instante em que a viu, quando a mãe dela os interrompeu:

– Filha, o João está lá fora esperando por você!Tomás pôde ver como os olhos de sua amada adquiriram uma luz intensa.– João? Quem é o João? – Perguntou, enciumado.Sem ver que Tomás empalidecia, Molambo correu até a sala, agarrou sua bolsa e voltou

em menos de dez segundos à área de serviço.– Vem, Tomás, vamos lá fora! – Ela o agarrou pela mão e o arrastou às pressas para fora

de casa.

Na frente da calçada, um Golf azul estava estacionado. Tomás viu um homemencorpado, vestido em estilo esportivo, com camiseta de nylon, calça jeans larga e tênis Adidas,encostado na porta do automóvel.

Ficou paralisado quando viu Molambo abraçá-lo, e em seguida lhe dar um beijo na boca.– Tomás, vem aqui! Quero que você conheça o João, meu namorado!Tomás sentiu os joelhos tremerem, mas antes que pudesse reagir, o homem se

aproximou dele e passou a mão algumas vezes em cima de sua cabeça, com muita intimidade,bagunçando seus cabelos.

– Você que é o grande Tomás? – João perguntou, deixando o pequeno na dúvida quantoà colocação da palavra “grande” na frase – Feliz aniversário, moleque! Molambo fala muito bemde você!

Ele sentiu um embrulho no estômago, sem conseguir digerir a informação de que MariaMolambo namorava alguém.

– Obrigado! – Conseguiu por fim dizer em tom seco e reservado, sentindo vontade dematar o homem que roubava sua mulher na maior cara de pau. – Nunca escutei nada sobre você!

Molambo sentiu a hostilidade do amigo e se aproximou, interferindo:– Liga não João, o Tomás é meio tímido quando não conhece alguém direito, mas posso

garantir que ele é um fofo! Desamarra essa cara! – Molambo pediu, surpresa com a birra doamigo. Em seguida, completou: – O João trabalha na IURD como obreiro, mas já está fazendocurso para pastor. Tenho certeza que já mencionei isso... Vai, Tomás! A culpa é sua de nãoprestar atenção quando eu falo!

O garoto deu de ombros, fingindo indiferença, ao mesmo tempo em que sentia o sangueescapar de seu corpo. Engoliu em seco e tragou o ódio preso em sua garganta, desfazendo-se emindiferença:

– Segurança? IURD? Nunca ouvi falar nada sobre isso. Tomás ainda estava entorpecido quando o homem arrancou o carro, levando com ele a

mulher de sua vida.Ao retornar de seu torpor, deu a volta na casa e caminhou até chegar atrás da janela na

área de serviço, onde pouco antes, ele, a mãe, e Molambo, fizeram a aposta para deixar de fumar.Mesmo na escuridão, depois de uma curta caçada, encontrou o maço de cigarros que Molamboatirou pela janela. Desamassou um cigarro, alisou-o com a ponta dos dedos e o acendeu com acaixa de fósforos que ainda levava no bolso, ignorando os gritos de seus pais que brigavam nasala, e ignorando também o motivo pelo qual eles gritavam um com outro.

Permaneceu escondido atrás da casa, sentado na grama. Perdido em pensamentos eembriagado por um sentimento amargo de ódio, sentia-se traído.

Como voltarei a encarar Molambo nos olhos? Maria Molambo, essa desgraçada,traidora!

Talvez devesse esperar, refletiu, quatorze anos não eram suficientes para ela. Molamboqueria um homem com carro, emprego estável, de barba e bigode; um homem feito. Um babacacom dinheiro! Sabia que ainda levaria muito tempo até ser a pessoa, o homem que elanecessitava e merecia. Mas tempo era algo que lhe sobrava; poderia esperar, ou na pior dashipóteses, considerando que o tal João tivesse aparecido na vida de Molambo para ficar, aindapoderia recorrer à famosa favela da Batrac e contratar ajuda especializada.

A imagem de João espancado, violentado, ferido de alguma maneira o confortou. Sepudesse mandar matá-lo, muito melhor.

Sorriu, satisfeito, reconfortado por esperanças e levantou-se de seu esconderijo paracomprar mais cigarros.

Afinal, ainda não era maduro suficiente para cumprir uma promessa...

Epílogo Fazia mais de seis meses que Damião aguardava sentença na casa de custódia de

Londrina. Após ser violentado sexualmente por nove detentos e ameaçado de morte pelos trêspresos que dividiam com ele a mesma cela, foi separado dos demais e colocado em uma celaindividual de 2,5 metros de largura por 4 metros de comprimento, no centro de observaçãocriminalística.

Trancado em uma fortaleza cercada de muros, sistema de segurança com circuito devídeo monitorado, guaritas externas para policiais militares e internas para agentespenitenciários, ele não tinha a mínima possibilidade de fugir. As visitas se realizavam aossábados e domingos, mas sequer Uzias o procurou. Ele não tinha ninguém,

Emagrecera mais de vinte quilos, fruto da depressão que lhe abateu nas primeirassemanas de carceragem frente ao isolamento e à violência que recebia. No pátio de banho parasol, com seu uniforme azul e sandálias de borracha, isolava-se em um canto e lia a Bíblia, a únicacompanhia que tivera até então e que preenchia sua rotina solitária.

Damião foi reconhecido por todos os crimes do passado, menos sobre o assassinato dotravesti, que por falta de provas, fora arquivado. Lembrava-se poucas vezes de Tomás e Ana, e ofazia a propósito. Evitava recordar aquela família maldita. Não queria mais sentir ódio da mulherque o enganou e do menino que não o respeitou jamais. Entretanto, a imagem do jovem travestique matara em Ceilândia não saía de sua cabeça. Noite após noite, o fantasma do meninolevitava em sua cela para atormentá-lo, fazendo-o tremer; forçando-o a permanecer desperto atéamanhecer o novo dia.

Ele era um fantasma ou um anjo, Damião não sabia, porém entendia que havia ajudado otravesti a encontrar o caminho do paraíso. O único crime pelo qual não fora incriminado na vidadesordeira que teve, fazia-lhe companhia constante em sua memória, dia após dia, noite apósnoite.

Em nenhum momento, mesmo baixo a tortura da solidão, o iminente processo que olevaria a longos anos de encarceramento, os estupros, as ameaças de morte que sofria e asassombrações que voltavam todas as noites para torturá-lo, Damião se arrependeu de seuscrimes.

Fim(Das Primeiras Más Intenções).

V

D

Conheça as outras obras da autora Geyme Lechner Mannes...

eneno delas é um romance intenso e cruel, de amor e ódio, desafetosfamiliares e paixões obsessivas. Ambientado no Brasil do início dos

anos 50, Roberta Barreto é pedida em casamento por Luciano Hoffmann no mesmo dia em queseu pai a estupra.

A menina inocente da Bahia foge para o Rio de Janeiro, onde nasce uma escritora decidida e,ao mesmo tempo, estranha. Em meio a sonhos de amor naufragados, ambição e suicídios, ashistórias de Roberta e Daniel se juntam, fazendo uma esposa traída jogar de forma sórdida eviolenta para não perder o marido.

Entre vítimas e vilões, onde ninguém é totalmente inocente ou culpado, mulherescompletamente diferentes cruzam os mesmos caminhos provando que amor e ódio caminhamjuntos.

iário de um amoral:Niki Kraut narra suas memórias fora do campo de futebol, antes e

depois de jogar para o Bayern de Munique. Seus desafetos e amores, relações e escândalos, sãodescritos por ele mesmo, sem medo de chocar o público.

Sua primeira mulher o abandona para ir atrás de um homem sem rosto com quem sonhanoites a fio. A segunda tenta exorcizá-lo. A terceira escreve um livro calunioso a seu respeito. Aquarta tenta matá-lo.

Niki Kraut não é o mais bonito dos homens ou o melhor sucedido, mas possui um imãirresistível para as mulheres, tanto para que o amem quanto para que o odeiem.

“Milão ou Madrid, não importa, desde que seja na Itália!”Desajeitado com palavras, sentimentos e relações amorosas, Niki Kraut não consegue

gostar de ninguém por mais de três meses, tampouco ser fiel.

I

matura e escandalosa:Margarete é uma jovem rica que se apaixona pelo filho do jardineiro.

Eloquente, pode ser tão madura quanto louca. Tão discreta quanto escandalosa. Edir é um rapazpobre que a repudia. Os opostos aqui só estão atraídos por um dos lados, o lado de Margarete,que com um golpe certeiro acaba por seduzir o empregado: Não pelo amor, mas pelo dinheiro.Edir é flechado pela lança poderosa da cobiça. Será que ela criou o monstro nele ou esse monstrojá vivia ali, adormecido?

Determinada e ao mesmo tempo insegura, sincera e dissimulada. Margarete mudará asambições de um garoto até levá-lo às raias da loucura.

Do amor ao ódio adolescente Imatura e escandalosa escandaliza!