Revista MORUS - Utopia e Renascimento, 6, 2009. Dossiê Utopia: gênero e modos de representação

461
MORUS UTOPIA E RENASCIMENTO Número 6 2009

Transcript of Revista MORUS - Utopia e Renascimento, 6, 2009. Dossiê Utopia: gênero e modos de representação

MORUSUTOPIA E RENASCIMENTONúmero 6 2009

II Congresso Internacional de Estudos Utópicos da Revista MORUS - Utopia e Renascimento

O Que É Utopia? Gênero e modos de representação

ANAIS

7, 8, 9 e 10 de junho de 2009Universidade Estadual de Campinas

Brasil

Editor

Co-editores

Grupo de Estudos sobre Renascimento e Utopia

Conselho editorial

Projeto gráfico

Capa

Escolha das imagens das capas

Revisores permanentes

Diagramação

Equipe de apoio neste número

Imagem da capa

Correspondência para

Revista MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Carlos Eduardo Ornelas Berriel

Ana Cláudia Romano Ribeiro Helvio Gomes Moraes Junior

Ana Cláudia R. Ribeiro, Helvio G. Moraes Jr., Yvone Greis, Daniela Spinelli,Ivone Gallo, Emerson Tin, Marina Berriel, Tarsilla C. de Brito, Geraldo Witeze, Juliana de O. Lopes, Laura C. Machado, Milene Baldo, Regina Carpentieri.

Andrea Battistini – Università di Bologna (Itália)Antonio Edimilson M. Rodrigues - UERJ/PUC-RJ/UFF (Brasil)Arrigo Colombo – Università di Lecce (Itália)Bronislaw Baczko – Université de Genève (Suíça)Carlos Antonio Leite Brandão – Faculdade de Arquitetura - UFMG (Brasil)Claude-Gilbert Dubois – Université Michel de Montaigne – Bordeaux 3 (França)Claudio De Boni – Università di Firenze (Itália)Cosimo Quarta – Università di Lecce (Itália)Edgar De Decca – UNICAMP (Brasil)Fátima Vieira – Universidade do Porto (Portugal)Francisco José Calazans Falcon UFRJ/UFF/PUC-RJ (Brasil)Frank Lestringant – Université Paris IV-Sorbonne (França)Jean-Michel Racault – Université de la Réunion (França)Laura Schram Pighi – Università di Bologna (Itália)Leandro Karnal – UNICAMP (Brasil)Lyman Tower Sargent – University of Missouri (EUA)/Royal Holloway e Bedford

New College, University of London (Inglaterra)Nadia Minerva – Università di Bologna (Itália)Peter Kuon - Universidade de Salzburg (Áustria)Raymond Trousson – Université Libre de Bruxelles (Bélgica)Vita Fortunati – Università di Bologna (Itália)

Paula Almozara (e-mail: [email protected])

Ivan Grilo (e-mail: [email protected])

Editoria

Co-editoria

Ana Cláudia R. Ribeiro

Yvone Greis, Daniela Spinelli, Juliana de O. Lopes, Laura C. Machado, Milene Baldo e Stefania Serra.

© Photothèque R. Magritte, “Perspicácia”, licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008.

Prof. Carlos Eduardo Ornelas Berriel, EditorRevista MORUS – Utopia e RenascimentoCaixa Postal 6054 – CEP 13.083-970 Campinas – SP, BrasilBlog: http://revistamorus.blogspot.comE-mail: [email protected]

Índice

ORGANIZADORES

OBJETIVOS, JUSTIFICATIVA E ABRANGÊNCIA

CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DOS TRABALHOS

HISTÓRICO

O PROBLEMA UTÓPICO

PROGRAMMA TEMATICO DEL II CONVEGNO INTERNAZIONALE DI STUDI UTOPICI

PROGRAMME THÉMATIQUE DU II CONGRÈS INTERNATIONAL D'ÉTUDES UTOPIQUES

THEMATIC PROGRAM OF THE 2nd INTERNATIONAL CONGRESS OF UTOPIAN STUDIES

PROGRAMA

DISCURSO DE ABERTURACarlos E. O. Berriel

Da idéia de perfeição como elemento definidor da utopia:As utopias clássicas e a natureza humana

Jean-Michel Racault

Campanella, l'immaginazione utopica al servizio del cesaropapismoCarlos Eduardo Ornelas Berriel

La nuova linea dell'utopiaArrigo Colombo

Crisi delle ideologie e delle forme nella narrativa utopica del NovecentoVita Fortunati

Positivismo e utopia: la religione dell'Umanità di ComteClaudio de Boni

9

10

11

11

12

14

16

18

20

24

29

47

55

61

71

L'utopie comme comble de la fiction à la RenaissanceMarie-Luce Demonet

Utopie et alchimie dans L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez (1610) de François Béroalde de Verville

Laetitia Bontemps

A cidade de Orbe no romance fabuloso de Barthélemy AneauYvone Soares dos Santos Greis

A utopia tupi, segundo MontaigneJosé Alexandrino de Souza Filho

Utopia, terra de hereges? Hilário Franco Jr.

La naissance de l’utopie comme supplément au récit de voyagePeter Kuon

A utopia e a sátiraAna Cláudia Romano Ribeiro

Reminiscências e observação no universo dos viajantes dos séculos XIV e XV

Susani Silveira Lemos França

On the very notion of utopiaCostica Bradatan

Thomas More, utopista malgré luiJorge Bastos da Silva

Cidade utópica e cidade ideal em Francesco Patrizi da ChersoHelvio Gomes Moraes Junior

Novas tecnologias, novas utopiasFátima Vieira

Alotopias de Luciano de SamósataJacyntho Lins Brandão

La utopía gastronómica en la comedia griega antiguaMaria José García Soler

La antiutopía de las Amazonas en el Hipólito de EurípidesHernán Martignone

A possível República de PlatãoCarolina Araújo

79

89

99

117

123

131

139

149

157

167

173

181

193

201

211

221

Livelli del pensiero utopico: antropologia, storia, letteraturaCosimo Quarta

Utopia e socialismoIvone Gallo

Metáforas da utopia no espaço público contemporâneo: evidências línguísticas em português

Margarida Salomão

Administração da diferença, preservação da hegemoniaBenjamin Abdala Jr.

Quando o futuro vira piada: dimensões humorísticas das utopias modernas

Elias Tomé Saliba

Utopias e distopias no campo lingüístico: as concepções e as teorias sobre as afasias

Edwiges Morato

Dante Alighieri e o projeto do vulgar ilustreBruno Dallari

Da dove ricominciare oggi per progettare l'utopia?Adriana Corrado

Do utopismo iluminista ao (anti)utopismo romântico: a crítica romântica da razão utópica

Marcio Seligmann-Silva

Zanzalá, uma utopia brasileiraCristina Meneguello

O eu e o outro nas Lettres chinoises, de VoltaireEmerson Tin

Utopia come scienza escapologicaGianluca Bonaiuti

Entre utopias e distopias: indicações sobre a catástrofeIara Lis Schiavinatto

Das possibilidades de cidades utópicas: os projetos urbanos no espaço do novo mundo

Antônio Edmilson M. Rodrigues

Le mappe dell’utopiaMarianna Forleo

229

245

255

261

271

277

287

295

307

325

337

345

363

369

375

L'utopia cosmopolitica modernaLaura Tundo Ferente

Psicanálise e a vocação iconoclasta das utopiasEdson Luiz André de Souza

Perséfone no espaço. A literatura e a morte dos mitos na ficção científica

Biagio d’Angelo

Em busca das utopias da/na América Latina:identidades, literatura e cultura

Ildney Cavalcanti e Alfredo Cordiviola

Lingue d'utopia. Un contributo essenziale per un assetto armonico

Nadia Minerva

A organização narrativa da imagem e da contra-imagem. Da poética das utopias literárias

Willem Vosskamp

Declinazioni dello spazio abitato in terra d’utopiaCarmelina Imbroscio

ÍNDICE DAS EDIÇÕES DA REVISTA MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

Nº 1, 2004: Cidades utópicas

Nº 2, 2005: A definição do gênero utopia

Nº 3, 2006: O impacto das descobertas geográficas no imaginário europeu

Nº 4, 2007: Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia

Nº 5, 2008: Utopia, Reforma e Contra-Reforma

381

397

405

413

423

435

447

457

458

459

460

461

ORGAniZAdOReS

dO ii cOnGReSSO inTeRnAciOnAL de eSTUdOS UTÓPicOS

dA ReViSTA MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

"O QUe É UTOPiA? GÊneRO e MOdOS de RePReSenTAÇÃO"

coordenador

Carlos Eduardo Ornelas Berriel (DTL/IEL/UNICAMP)

comissão executiva

Ana Cláudia Romano Ribeiro (doutoranda DTL/IEL/UNICAMP)Helvio Gomes Moraes Jr. (doutorando DTL/IEL/UNICAMP)

comissão de Organização

Edgard De Decca (IFCH/UNICAMP)Carlos Antônio Leite Brandão (Arquitetura/UFMG)Edwiges Morato (DL/IEL/UNICAMP)Cláudio De Boni (Dipartimento di Studi Sullo Stato/Università di Firenze)Arrigo Colombo (Centro Interuniversitario di Studi Utopici/Università del Salento)Cosimo Quarta (Centro Interuniversitario di Studi Utopici/Università del Salento)Vita Fortunati (Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia/Bologna)Iara Lis Schiavinatto (Instituto de Artes/UNICAMP)Cristina Meneguello (Departamento de História/IFCH/UNICAMP)Ivone Gallo (Departamento de História /PUC/Campinas)Emerson Tin (FACAMP/Campinas)

instituições Patrocinadoras

Revista MORUS – Utopia e RenascimentoUNICAMP – Universidade Estadual de CampinasInstituto de Estudos da Linguagem/UNICAMPU-TOPOS - Centro de Estudos Utópicos (IEL/UNICAMP)Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária (IEL/UNICAMP)Dipartimento di Studi Sullo Stato/Università di Firenze (Itália)Centro Interuniversitario di Studi Utopici (Università del Salento - Lecce/Itália)Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia (Università de Bologna/Itália)

10

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

OBJeTiVO, JUSTiFicATiVA e ABRAnGÊnciA

Por ocasião do i congresso internacional de estudos Utópicos (“Convegno Internazionale Scienza e Tecnica nell’utopia e nella distopia”), ocorrido em maio de 2007, numa iniciativa conjunta da revista MORUS – Utopia e Renascimento e do Dipartimento di Studi Sullo Stato da Università degli Studi di Firenze (Itália), por determinação de seus participantes, decidiu-se realizar no Brasil um segundo encontro, que é justamente este ii congresso internacional de estudos Utópicos: O que é utopia? Gênero e modos de representação, nos dias 7, 8, 9 e 10 de junho de 2009, no Auditório da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP).

Visa este ii congresso internacional de estudos Utópicos delimitar a natureza literária da Utopia e definir as modalidades de seu conceito enquanto gênero – e mesmo verificar se este projeto é possível. Tal questão leva à avaliação de sua historicidade, sua relação com a experiência da viagem, sua relação com a crítica social, isto é, com a política; a utopia mobiliza o raciocínio filosófico, lingüístico, antropológico, religioso, econômico, ético, todos os campos da arte: o fundamental é transformá-la de assunto em objeto. Trata-se de definir o gênero como ponto de partida e de chegada do pensamento, localizando-o dentro da História concreta, deduzindo-o de forma sintética e afastando o procedimento, mais dissolvente que esclarecedor, de qualificar como utopia qualquer figuração social imaginária.

O tema da Utopia possui grande relevância e tem sido objeto de reflexão privilegiado de muitos pesquisadores das principais universidades no mundo nos últimos anos. Algumas delas dispõem de Centros de Estudos dedicados ao tema da Utopia:

- Society for Utopian Studies (EUA, desde 1975);- Centro Interuniversitario di Studi Utopici (Lecce, Itália, desde 1982);- Utopian Studies Society (Inglaterra, desde 1988);- Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia (Bolonha, Itália, desde 1989);- Literatura e Utopia (UFAL, Brasil, desde 2000);- Ralahine Center for Utopian Studies (Irlanda, desde 2003);- U-TOPUS – Centro de Pesquisa sobre Utopia (UNICAMP, Brasil, desde 2008).

É preciso também ressaltar a existência de revistas acadêmicas dedicadas exclusivamente aos estudos utópicos:

- Utopian Studies Journal (EUA, desde 1988)- MORUS – Utopia e Renascimento (Campinas, Brasil, desde 2004);- E-topia (Portugal, desde 2004);- Spaces of utopia (Portugal, desde 2006);- Rivista di Studi Utopici (Itália, desde 2006);- Utopia and utopianism (Espanha, desde 2006).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

11

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

Este Congresso promoverá o encontro de estudiosos brasileiros com a expressão de ponta da discussão sobre utopia realizada nesses centros e também fora deles, por outros pesquisadores, daí a natureza multilingue do evento. Cabe ressaltar que também é multilingüe a revista Morus – Utopia e Renascimento, o único periódico na área da utopia no Brasil, promotor principal deste congresso.

Os objetivos do ii congresso internacional de estudos Utópicos, de natureza interdisciplinar e multilingüe são, portanto:

1) Delimitar a natureza literária da Utopia e definir as modalidades de sua definição enquanto gênero, verificando se este projeto é possível;

2) Divulgar no Brasil o tema da utopia e das várias linhas de pesquisas a ele relacionadas e representadas pelos pesquisadores que virão a este congresso;

3) Promover o diálogo entre pesquisadores brasileiros e os principais pesquisadores sobre Utopia de universidades européias e americanas, aprofundando os contatos já existentes e possibilitando futuras parcerias;

4) Preencher uma lacuna na bibliografia brasileira sobre o tema utópico com a publicação dos anais deste congresso;

5) Envolver, além de especialistas, discentes dos programas de graduação e pós-graduação das várias disciplinas relacionadas ao tema do congresso: Literatura, Língüística, História, Filosofia, Arquitetura e Artes.

cRiTÉRiOS de SeLeÇÃO dOS TRABALHOS

Foram selecionados os trabalhos que:a) tratam precipuamente do tema do Congresso (i.e., a natureza do gênero utópico); b) têm notória qualidade científica; c) desenvolvem aspectos originais relacionados ao tema do Congresso.

HiSTÓRicO

O ii congresso internacional de estudos Utópicos é decorrência lógica das atividades de pesquisa sobre o fenômeno utópico já realizadas pelos pesquisadores de várias nacionalidades e instituições reunidos no âmbito da revista MORUS – Utopia e Renascimento, editada por Carlos E. O. Berriel, fundada em 2004. Esta publicação conta com um Conselho Editorial composto pelos mais expressivos especialistas na questão utópica no plano internacional. Com periodicidade anual, a revista MORUS está em seu quinto número. Cada volume é dedicado a um dossiê temático, sendo:

Nº 1 - 2004: Cidades utópicas;Nº 2 - 2005: Utopia como gênero literário;Nº 3 - 2006: O impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia;Nº 4 - 2007: Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia;Nº 5 - 2008: Utopia, Reforma e Contra-Reforma.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

12

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

A revista MORUS – Utopia e Renascimento também organizou, juntamente com o Dipartimento di Studi sullo Stato da Università degli Studi di Firenze (Itália), o i congresso internacional de estudos Utópicos sobre o tema “Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia”, realizado nos dias 22 e 23 de maio de 2007, em Florença, e que contou com a participação de pesquisadores de vários países, especialistas no estudo dos problemas utópicos, cujas atas foram publicadas em seu quarto número.

O PROBLeMA UTÓPicO

Poucos gêneros literários nasceram com um registro mais claro do que a utopia. Com data (1516) e autor (Thomas Morus), a Utopia forneceu, no berço, os parâmetros, os procedimentos e o nome deste gênero, que se multiplicou em dezenas de obras em vários países já no século XVI: Alemanha (Wolfaria, de Eberlin, 1521, e os Commentariolus, de Kaspar Stiblin, 1555), Espanha (Relox de Principes, de Antonio de Guevara, 1529), Itália (Mondo Savio e Pazzo, de Doni, 1552, La Città Felice, de Patrizi da Cherso, 1553, La Repubblica Immaginaria, de Ludovico Agostini, 1591), França (com a descrição da abadia de Thélème, no primeiro livro de Gargantua et Pantagruel, de Rabelais, 1532, e de Orbe, em Alector ou le Coq, de Aneau, 1560, ou com a Ilha dos Hermafroditas, atribuída a Artus Thomas, 1605).

As utopias foram, em seu meio milênio de história, interlocutoras contínuas das várias sociedades e teorias políticas correspondentes, sendo a própria utopia, às vezes, uma teoria política e uma proposta de sociedade. As definições pontuais, ainda que úteis e verdadeiras, não esgotam o assunto. O gênero, filho da História, é o ponto. A solução estaria em colocar o problema na perspectiva histórica: desde Thomas Morus, autor do vocábulo, é chamada utopia toda descrição de uma sociedade supostamente perfeita em todos os sentidos, palavra que quer dizer, literalmente, “o que está em nenhum lugar”. Chama-se utópico todo ideal de sociedade humana que se supõe maximamente desejável, mas geralmente considerado impraticável. A explicação mais geral da gênese deste gênero literário segue basicamente a idéia de que a Utopia foi gerada pelo processo burguês de racionalização da vida, próprio do Renascimento. É provável que nenhum dos principais autores das utopias do Renascimento cresse que a sociedade descrita fosse realizável, mas foram movidos pelo desejo de criticar a sociedade de sua época e de propor reformas, cumpridas na sociedade utópica. A utopia nasceu sob uma estrela promissora: representa, como O Príncipe e O Cortesão, um ponto de chegada do Humanismo quattrocentesco, e talvez seu limite: a concepção, construída pela práxis social, de que o homem poderia tomar para si, em suas mãos, seu próprio destino. A existência individual e o viver associado são vistos pelo Humanismo como históricos – humanos – e, portanto plásticos, moldáveis por uma teleologia que, embora sempre existente, chegava então a uma efêmera emancipação. Presidiu a gênese da utopia a crença na perfectibilidade social, sendo que a perfectibilidade humana já era intrínseca à concepção cristã. A utopia indicava que a sociedade era incompleta, e que

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

13

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

essa incompletude possuía uma solução. A formalização literária da completa remissão dos males sociais é, em si, a utopia. O texto que constrói com palavras uma pólis perfeita imagina ser possível a completude social, uma vez aplicados os ditames da Razão. Como alegoria, a utopia formaliza as contradições do momento presente de sua composição e projeta a noção de “eterno”, que é o produto daquela circunstância. O fermento platônico é em si evidente. Portanto, a utopia é a imagem da perfeição social imanente a um momento histórico concreto. A utopia seria também a junção da perspectiva ética com a economia, o que lhe imprime um sentido congenitamente anticapitalista e revolucionário.

Há muito tempo que as utopias são objeto de críticas, o que significa que foram, nesse processo, objeto de avaliação e julgamento: a história das variações valorativas e/ou semânticas da utopia foi minuciosamente estudada por H.G. Funke¹. Como resultado dessas análises, as utopias foram muitas vezes acusadas de promover uma atitude diletante na proposta de uma nova sociedade, por não considerarem as “realidades humanas”, tais como as ambições, o desejo de poder, etc., e estarem defasadas com as conquistas científicas da engenharia social. Também já foi dito que o espírito revolucionário utópico se dissolve por si mesmo, já que numa sociedade perfeita não cabem revoluções nem, portanto, mudanças e progresso².

A natureza da utopia, enquanto forma de representação, tem levado a um extraordinário elenco de problemas, o que evidencia a sua riqueza enquanto objeto privilegiado de estudo. Durante este encontro, portanto, propõe-se uma busca da definição da utopia enquanto gênero, e a averiguação da possibilidade desta definição. Todos os campos de reflexão estão incluídos: História, Filosofia, Literatura, Antropologia, História da Arte, Lingüística, Psicologia, Política, Sociologia, Arquitetura, Urbanismo, Retórica.

Carlos E. O. BerrielEditor da revista MORUS – Utopia e RenascimentoProfessor no Departamento de Teoria Literária/IEL/UNICAMP

¹ FUNKE, H. G. L’évolution sémantique de la notion d’Utopie en français. In: HUDDE, H. et KUON, P. De l’utopie à l’uchronie. Tübingen, 1988, p. 19-37.

² TROUSSON, R. Viaggi in nessun luogo. Storia letteraria del pensiero utopico. Ravenna: Longo, 1992.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

14

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

PROGRAMMA TeMATicO deL ii convegno internazionale di Studi Utopici:Che cos’è l’utopia? Genere e modi di rappresentazione Rivista MORUS – Utopia e Renascimento

Con l’occasione del “Convegno Internazionale Scienza e Tecnica nell’utopia e nella distopia”, che si è tenuto a Firenze dal 22 al 23 maggio 2007, con un’iniziativa congiunta della rivista MORUS – Utopia e Renascimento e del Dipartimento di Studi sullo Stato dell’Università degli Studi di Firenze, a seguito della deliberazione dei suoi partecipanti si è deciso di realizzare in Brasile un secondo incontro, che sarà precisamente il ii convegno internazionale di Studi Utopici: che cos’è l’utopia? Genere e modi di rappresentazione. Il convegno si terrà all’UNICAMP, a Campinas (São Paulo/Brasile), nei giorni 7, 8, 9 e 10 giugno 2009.

Lo scopo di questo ii convegno internazionale di Studi Utopici è quello di delimitare la natura letteraria dell’Utopia e di chiarire le modalità della sua definizione in quanto genere – e anche di verificare la possibilità di un tale progetto. Questo problema ci conduce alla valutazione della sua storicità, del suo rapporto con l’esperienza del viaggio e con la critica sociale, cioè, con la politica; l’utopia coinvolge il pensiero filosofico, linguistico, antropologico, teologico, economico, etico, tutti i campi dell’arte: il fondamentale è trasformarla da soggetto a oggetto. Si tratta di definire il genere come punto di partenza e d’arrivo del pensiero, localizzandolo nella Storia concreta, deducendolo in forma sintetica e allontanando il procedimento più dispersivo che chiarificatore di qualificare come utopia qualsiasi configurazione sociale immaginaria. È questo l’obiettivo che si prefigge questo II Convegno Internazionale.

Le utopie sono state, nel loro mezzo millennio di storia, regolari interlocutrici delle varie società e teorie politiche corrispondenti, in quanto la stessa utopia è stata, qualche volta, una teoria politica e una proposta di società. Le definizioni puntuali, anche se utili e attendibili, non esauriscono il tema. Il genere, figlio della Storia, è la questione fondamentale. La soluzione sarebbe quella di porre il problema nella prospettiva storica: da Thomas More, inventore della parola, è chiamata Utopia quella descrizione di una società che si suppone perfetta in tutti i sensi, parola che vuol dire, in senso letterale, “quello che è in nessun luogo”. È chiamato “utopico” ogni ideale di società umana che si ritiene massimamente desiderabile, però nel genere giudicato impraticabile. La spiegazione più generale della nascita di questo genere letterario si impernia fondamentalmente sull’idea della generazione dell’Utopia, a partire dal processo borghese di razionalizzazione della vita proprio del Rinascimento. È probabile che nessuno dei principali autori delle utopie del Rinascimento credesse che la società descritta fosse realizzabile, però essi sono stati mossi dal desiderio di criticare la società della loro epoca e ci hanno proposto riforme, portate a compimento nella società utopica descritta nelle loro opere. L’utopia è nata sotto una buona

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

15

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

stella: rappresenta, come Il Principe e Il Cortigiano, un punto d’arrivo dell’Umanesimo quattrocentesco, e forse anche il suo limite: la concezione, costruita dalla prassi sociale, secondo la quale l’uomo potrebbe, con le sue stesse mani, costruire il suo destino. L’esistenza individuale e il vivere associato sono stati visti dall’Umanesimo come storici – umani – e, dunque plastici, modellabili da una teleologia che, anche se è sempre esistita, è arrivata allora ad una effimera emancipazione. Ha orientato la genesi dell’utopia la credenza nella perfettibilità sociale, poiché la perfettibilità umana era già intrinseca alla concezione cristiana. L’utopia ha indicato che la società era di fatto incompiuta e che da questa incompiutezza derivava una soluzione. La formalizzazione letteraria della completa remissione dei mali sociali è, in sè, l’utopia. Il testo che costruisce con parole una polis perfetta s’immagina essere la possibile compiutezza sociale, una volta applicati i dettami della Ragione. Come allegoria, l’utopia formalizza le contraddizioni del momento presente nella loro composizione e proietta la nozione di “eterno”, prodotto di quella circostanza. Il seme platonico è in sè evidente. Pertanto, l’utopia è l’immagine della perfezione sociale immanente in un momento storico concreto. L’utopia sarebbe anche la congiunzione della prospettiva etica con l’economia, il che le imprime un senso congenito anticapitalista e rivoluzionario.

È da molto tempo che le utopie sono oggetto di critiche, il che significa che sono state, in questo processo, oggetto di valutazione e giudizio: la storia delle variazioni di valutazioni e/o semantiche dell’utopia è stata studiata in modo particolare da H.G. Funke¹. Come risultato di queste analisi, le utopie sono state spesso accusate di promuovere un atteggiamento dilettantistico nella proposta di una nuova società, per il fatto che non tengono in conto le “realtà umane”, come le ambizioni, il desiderio di potere ecc., e di non essere aggiornate per ciò che concerne le conquiste scientifiche dell’ingegneria sociale. È stato anche detto che lo spirito rivoluzionario utopico si estingue automaticamente, poiché in una società perfetta non c’è posto per rivoluzioni e, quindi, neanche per cambiamenti e progressi².

La natura dell’utopia, in quanto forma di rappresentazione, ci ha portato a una straordinaria complessità di problemi; il che mette in evidenza tutta la sua ricchezza in quanto oggetto privilegiato di studi. Durante questo incontro, dunque, si propone una ricerca della definizione dell’utopia come genere, oltre all’investigazione della possibilità di questa definizione. Tutti i campi di riflessione sono inclusi: Storia, Filosofia, Letteratura, Antropologia, Storia dell’Arte, Linguistica, Psicologia, Politica, Sociologia, Architettura, Urbanistica, Retorica. ¹ FUNKE, H. G. L’évolution

sémantique de la notion d’Utopie en français. In: HUDDE, H. et KUON, P. De l’utopie à l’uchronie. Tübingen, 1988, p. 19-37.

² TROUSSON, R. Viaggi in nessun luogo. Storia letteraria del pensiero utopico. Ravenna: Longo, 1992.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

16

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

PROGRAMMe THÉMATiQUe dU ii congrès international d’Études Utopiques:Qu’est-ce que l’utopie? Genre et modes de représentation Revue MORUS – Utopia e Renascimento

À l’occasion du “Convegno Internazionale Scienza e Tecnica nell’utopia e nella distopia”, qui a eu lieu les 22 et 23 mai 2007 à Florence, dans une iniciative conjointe de la revue MORUS – Utopia e Renascimento et du Dipartimento di Studi Sullo Stato de l’Università degli Studi di Firenze, d’après la décision de ses participants, il a été convenu la réalisation au Brésil d’une seconde rencontre, le ii congrès international d’Études Utopiques: Qu’est-ce que l’utopie? Genre et modes de représentation. Le congrès aura lieu à l’UNICAMP (Campinas/SP/Brésil) les 7, 8, 9 et 10 juin 2009.

Ce ii congrès international d’Études Utopiques vise à délimiter la nature littéraire de l’Utopie et à définir les modalités de sa définition en tant que genre – et même à vérifier si ce projet est-il possible. Telle question nous mène à l’évaluation de son historicité, de son rapport à l’expérience du voyage et à la critique sociale, c’est-à-dire, à la politique; l’utopie mobilise la pensée philosophique, linguistique, anthropologique, religieuse, économique, éthique, tous les champs de l’art, le fondamental étant la transformer de sujet en objet. Il s’agit de définir le genre comme point de départ et d’arrivée de la pensée, ce qui implique le situer dans l’Histoire concrète et le déduire de forme synthétique en s’éloignant du procédé plus dissolvant qu’éclairant, de qualifier comme utopie n’importe quelle représentation sociale imaginaire. Tel est l’objectif de ce II Congrès.

En un démi millénaire d’histoire, les utopies ont été interlocutrices continues des plusieures sociétés et théories politiques correspondantes, en étant l’utopie elle-même, parfois une théorie politique et une proposition de société à la fois. Les définitions ponctuelles, encore qu’utiles et vraies, n’en épuisent pas le thème. Le genre, enfant de l’Histoire, c’est la question. La solution serait poser le problème dans la perspective historique: depuis Thomas Morus, auteur du mot, on désigne Utopie toute description d’une société censée parfaite dans tous les sens, et cela signifiant littéralement, “ce qui est nulle part”. Par le terme “utopique” on comprend tout idéal de société humaine qui se suppose maximalement souhaitable, mais généralement tenue impraticable. L’explication plus générale de la génèse de ce genre littéraire suit surtout l’idée que l’Utopie a été générée par le processus bourgeois de rationalisation de la vie, caractéristique de la Renaissance. Il est probable qu’aucun des principaux auteurs des utopies de la Renaissance n’aient cru que la société décrite ait été réalisable, mais ils ont été mûs par le désir de critiquer la société de son époque et de proposer des réformes, appliquées à la société utopique. L’utopie est née sous une bonne étoile: elle représente, comme Le Prince et Le Courtisan, un point d’arrivée de l’Humanisme quattrocentesco, et peut-être aussi sa limite: la conception, construite par la praxis sociale, selon laquelle l’homme pourrait prendre lui-

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

17

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

même, dans ses mains, sa propre destinée. L’existence individuelle et la vie associée sont vues par l’Humanisme comme étant historiques – humaines – et donc plastiques, moulables par une téléologie qui, même si toujours existante, aboutissait alors à une ephémère émancipation. La croyance en la perfectibilité sociale a présidé à la génèse de l’utopie, la perfectibilité humaine étant intrinsèque à la conception chrétienne. L’utopie indiquait que la société était incomplète, et que cette incomplétude possédait en soi une solution. La formalisation littéraire de la complète remission des maux sociaux est, en soi, l’utopie. Le texte qui construit avec des mots une polis parfaite imagine être possible la complétude sociale, une fois appliquées les coordonnées de la Raison. En tant qu’allégorie, l’utopie formalise les contradictions du moment présent de sa composition et projète la notion de “eternel”, produit des circonstances énoncées ci-dessus. L’influence platonicienne est en soi évidente. Donc, l’utopie est l’image de la perfection sociale inhérente à un moment historique concret. L’utopie serait également la jonction de la perspective éthique avec l’économie, ce qui lui imprime un sens originairement anticapitaliste et révolutionnaire.

Depuis bien longtemps les utopies sont objet de critiques, ce qui signifie qu’elles ont été, dans ce processus, objet d’évaluation et de jugement: l’histoire des variations valoratives et/ou sémantiques de l’utopie a été minutieusement étudiée par H.G. Funke¹. Comme résultat de ces analyses, les utopies ont été plusieurs fois accusées de promouvoir une attitude dilettante dans la proposition d’une nouvelle société pour ne pas considérer les “réalités humaines” telles que les ambitions, la soif de pouvoir, etc., et pour ne pas être à jour par rapport aux conquêtes scientifiques de l’ingénierie sociale. On a aussi affirmé que l’esprit révolutionnaire utopique se dissolve par soi-même, puisque une société parfaite ne comporte ni révolutions ni, par conséquent, de changements ou de progrès².

La nature de l’utopie en tant que forme de représentation a abouti à un extraordinaire ensemble de problèmes, ce qui met en évidence sa richesse en tant qu’objet privilégié d’études. Pendant cette rencontre, on propose donc une quête de la définition de l’utopie en tant que genre, et l’investigation de la possibilité de cette définition. Tous les champs de réflexion y sont contemplés: Histoire, Philosophie, Littérature, Anthropologie, Histoire de l’Art, Linguistique, Psychologie, Politique, Sociologie, Architecture, Urbanisme, Rhétorique.

¹ FUNKE, H. G. L’évolution sémantique de la notion d’Utopie en français. In: HUDDE, H. et KUON, P. De l’utopie à l’uchronie. Tübingen, 1988, p. 19-37.

² TROUSSON, R. Viaggi in nessun luogo. Storia letteraria del pensiero utopico. Ravenna: Longo, 1992.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

18

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

THeMATic PROGRAM OF THe2nd international congress of Utopian Studies:What is Utopia? Genre and Modes of RepresentationRevista Morus – Utopia e Renascimento

On the occasion of the “Convegno Internazionale Scienza e Tecnica nell’utopia e nella distopia”, in May 2007, a congress jointly sponsored by the journal MORUS – Utopia e Renascimento and the Dipartimento di Studi Sullo Stato of the Università degli Studi di Firenze, it was decided, by deliberation of its participants, to organize a second meeting in Brazil, the ii international congress of Utopian Studies: What is Utopia? Genre and Modes of Representation. It will take place at Unicamp (Universidade Estadual de Campinas/SP/Brazil), from June 7-10, 2009.

The aim of the ii international congress of Utopian Studies is to determine the literary nature of utopia and define the modalities of its definition as a genre, as well as to examine the feasibility of such a project. This question leads to the appreciation of its historicity, its relation to the experience of traveling, its relation to social criticism, i.e., to politics: utopia mobilizes philosophical, linguistic, anthropological, religious, economic, and ethical reasoning, as well as all the fields of art: the fundamental aim is to convert it from a subject into an object. It’s a question of defining the genre as the starting point and the final goal of thought, observing it in concrete History, synthetically deducing the genre and eliminating the proceedings (which are rather dissolvent than enlightening), to define any imaginary social representation as utopia. This is the purpose of the II Congress.

Throughout the five centuries of their history, utopian writings have been constant interlocutors of different societies (and corresponding political theories), utopia itself being, sometimes, a political theory and a project of a society. Punctual definitions, although useful and true, do not solve the problem as a whole. Genre, an offspring of History, is the point. The solution could be putting the problem in a historical perspective: since Thomas Morus, who coined the word utopia, every description of any society which is supposedly perfect in every sense is called "utopia". The word literally means “that which is nowhere”. Any ideal of a human society which is supposed to be extremely desirable, but generally considered impracticable, is called “utopian”. The most general explanation of the origins of this literary genre basically follows the idea that Utopia was generated by the bourgeois process of rationalization of life, proper to the Renaissance. Probably none of the main authors of Renaissance utopias believed that the society which they depicted could be established, but, instead, they were moved by the desire to criticize the society of their times and to propose reforms, which were accomplished in the utopian society. Utopia was born under a favorable star: it represents, like The Prince and The Courtesan, a highlight of the Quattrocento Humanism, and maybe its

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

19

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

¹ FUNKE, H. G. L’évolution sémantique de la notion d’Utopie en français. In: HUDDE, H. et KUON, P. De l’utopie à l’uchronie. Tübingen, 1988, p. 19-37.

² TROUSSON, R. Viaggi in nessun luogo. Storia letteraria del pensiero utopico. Ravenna: Longo, 1992.

limit, as well: the concept, built by the social praxis, that man can steer the course of his own destiny. Individual existence and associate living are seen as human and historical by Humanism and, thus, “moldable” by a teleology that, although it had always existed, reached an ephemeral emancipation. The belief in social perfectibility underlay the genesis of utopia, once human perfectibility was already intrinsic to the Christian concept. Utopia showed that society was incomplete and provided a solution to that problem. The literary formalization of the complete remission of social ills is, in itself, utopia. The text that builds a perfect polis with words imagines that social completeness is possible if Reason’s dictates are applied. As an allegory, utopia formalizes the contradictions of the moment of its composition and projects the notion of “eternal”, which is the product of that condition. The platonic ferment is evident in itself. Therefore, utopia is the image of social perfection, immanent to a concrete historical moment. Utopia is also the junction of the ethical perspective and the economy, which gives it a congenitally anti-capitalistic and revolutionary meaning.

Utopias have been an object of criticism for a long time, which means that they were, in this process, an object of evaluation and judgment: the history of evaluative and/or semantical variations of utopia was minutely studied by H. G. Funke¹. As a result of these analyses, utopias were often accused of promoting a dilettante attitude towards the project of a new society, since they did not take into account “human realities”, such as ambitions, lust for power, etc., and for lagging behind scientific achievements of social engineering. It has also been stated that the revolutionary utopian spirit is the cause of its own dissolution, since revolutions, and thus changes and progress, cannot take place in a perfect society².

As a form of representation, the nature of utopia has raised an extraordinary number of issues, which attests its richness as a privileged subject of study. This meeting, thus, aims at looking for a definition of utopia as a genre and to investigate the feasibility of such a definition. The following fields of research are included: History, Philosophy, Literature, Anthropology, History of Art, Linguistics, Psychology, Politics, Sociology, Architecture, Urbanism, and Rhetoric.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Programa do

ii cOnGReSSO inTeRnAciOnAL de eSTUdOS UTÓPicOS:

O QUe É UTOPiA? GÊneRO e MOdOS de RePReSenTAÇÃO

Revista MORUS – Utopia e Renascimento

7, 8, 9 e 10 de junho de 2009

Local: Anfiteatro da Unicamp

ABeRTURA dOS TRABALHOS

Domingo, 7 de junho de 2009 – 17:00

Saudação de:

Reitor Fernando Costa e Vice-Reitor Edgar De Decca (pela UNICAMP)

Carlos Eduardo Ornelas Berriel (Coordenador do Congresso)

Alcir Pécora (Diretor do IEL)

Claudio De Boni, Gianluca Bonaiuti, Cosimo Quarta,

Vita Fortunati, Marie-Luce Demonet

(Representantes de entidades apoiadoras)

conferência inaugural:

Jean-Michel Racault

Université de la Réunion (França)

"De l'idée de perfection comme élément définitionnel de l’utopie:

les utopies classiques et la nature humaine"

21

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

Segunda-feira, 8 de junho de 2009MAnHÃ: Mesa 1: Utopia e História Moderador: edgar de decca

8:30 Carlos Eduardo Ornelas BerrielUNICAMP (Brasil)

Campanella, l'immaginazione utopica al servizio del cesaropapismo

8:50 Arrigo ColomboUniversidade di Lecce (Itália)

La nuova linea dell'utopia

9:10 Vita FortunatiUniversità di Bologna (Itália)

Crisi delle ideologie e delle forme nella narrativa utopica del Novecento

9:30 Claudio De BoniUniversità di Firenze (Itália)

Positivismo e utopia: la religione dell’Umanità di Comte

9:50 Discussão

10:10 Pausa-café

Mesa 2: Utopia e Renascimento francês Moderador: Peter Kuon

10:30 Marie-Luce DemonetCESR (França)

L'utopie comme comble de la fiction à la Renaissance

10:50 Laetitia Bontemps CESR (França)

Utopie et alchimie dans L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez (1610) de François Béroalde de Verville

11:10 Yvone Soares dos Santos GreisUNICAMP (Brasil) e CESR (França)

La ville d'Orbe chez Barthélemy Aneau

11:30 José Alexandrino de Souza Filho UFPB(Brasil)

A utopia tupi, segundo Montaigne

11:50 Discussão

TARde: Mesa 3: conceito de utopia e viagem Moderadora: Marie-Luce demonet

14:30 Hilário Franco Jr.USP (Brasil)

Utopia, terra de hereges?

14:50 Peter Kuon Université de Salzburg (Áustria)

La naissance de l’utopie comme supplément au récit de voyage

15:10 Ana Cláudia Romano RibeiroUNICAMP (Brasil)

A utopia e a sátira

15:30 Susani Silveira Lemos FrançaUNESP (Franca, Brasil)

Reminiscências e observação no universo dos viajantes dos séculos XIV e XV

15:50 Discussão

16:10 Pausa-café

Mesa 4: Variações sobre Morus Moderadora: cristina Meneguello

16:30 Costica BradatanTexas Tech University (EUA)

On the very notion of utopia

16:50 Jorge Bastos da SilvaUniversidade do Porto (Portugal)

Thomas More, utopista malgré lui

17:30 Helvio Gomes Moraes JuniorUNICAMP/UNEMAT(Brasil)

Cidade utópica e cidade ideal em Francesco Patrizi da Cherso

17:50 Fátima VieiraUniversidade do Porto (Portugal)

Novas tecnologias, novas utopias

18:10 Discussão

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

22

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

Terça-feira, 9 de junho de 2009

MAnHÃ: Mesa 5: Fontes antigas da utopia Moderadora: ivone Gallo

8:30 Jacyntho Lins BrandãoUFMG (Brasil)

Alotopias de Luciano de Samósata

8:50 Maria José García Soler Universidad del País Vasco (Espanha)

La utopía gastronómica en la comedia griega antigua

9:10 Hernán MartignoneUniversidad de Buenos Aires (Argentina)

La antiutopía de las Amazonas en el Hipólito de Eurípides

9:30 Carolina AraújoUFRJ (Brasil)

A possível República de Platão

9:50 Discussão

10:10 Pausa-café

Mesa 6: Utopia e política Moderador: carlos e. O. Berriel

10:30 Cosimo Quarta Università di Lecce (Itália)

Livelli del pensiero utopico: antropologia, storia, letteratura

10:50 José Paulo NettoUFRJ (Brasil)

Marx e o conceito negativo de utopia

11:10 Ivone GalloPUC Campinas/UNICAMP (Brasil)

Utopia e socialismo

11:30 Francisco Foot HardmanUNICAMP (Brasil)

Utopias e Distopias Panamericanas: Sousândrade, Miller, Bolaño

11:50 Discussão

TARde: Mesa 7: Utopia e linguagem Moderador: Francisco Foot Hardman

14:30 Margarida SalomãoUFJF (Brasil)

Metáforas da utopia no espaço público contemporâneo: evidências línguísticas em português

14:50 Benjamin Abdala Jr.USP (Brasil)

Administração da diferença, preservação da hegemonia

15:10 Elias Thomé SalibaUSP (Brasil)

Quando o futuro vira piada: dimensões humorísticas das utopias modernas

15:30 Edwiges Morato UNICAMP (Brasil)

Utopias e distopias no campo lingüístico: as concepções e as teorias sobre as afasias

15:50 Bruno DallariPUC (São Paulo, Brasil)

Dante Alighieri e o projeto do vulgar ilustre

16:10 Discussão

16:30 Pausa-café

Mesa 8: desdobramentos do gênero utópico Moderadora: iara Lis Schiavinatto

16:50 Adriana CorradoUniversità Suor Orsola Benincasa (Itália)

Da dove ricominciare oggi per progettare l'utopia?

17:10 Márcio Seligmann-SilvaUNICAMP (Brasil)

O utopismo iluminista e romântico: crise e reinvenção do gênero

17:30 Cristina MeneguelloUNICAMP (Brasil)

Zanzalá, uma utopia brasileira

17:50 Emerson TinFACAMP (Brasil)

O eu e o outro nas Lettres chinoises, de Voltaire

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

23

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

Quarta-feira, 10 de junho de 2009

MAnHÃ: Mesa 9: Utopia e arte Moderador: Alcir Pécora

8:30 Luiz MarquesUNICAMP (Brasil)

A imaginação pictórica da cidade no Renascimento

8:50 Luciano MigliaccioUSP (Brasil)

Utopia e estoicismo no Studiolo del Cardinale Ferdinando de' Medici em Roma: duas pequenas pinturas de Jacopo Zucchi e o mito das Ilhas Afortunadas

9:10 Jens BaumgartenUNIFESP (Brasil)

Uma utopia negativa pós-tridentina: as relações entre o disciplinamento individual e a liberdade estética

9:30 Gianluca BonaiutiUniversità di Firenze (Itália)

Utopia come scienza escapologica

9:50 Iara Lis SchiavinattoUNICAMP (Brasil)

Entre utopias e distopias: indicações sobre a catástrofe

10:10 Discussão

11:20 Pausa-café

Mesa 10: Representações da utopia Moderador: Márcio Seligmann-Silva

8:30 Leandro KarnalUNICAMP (Brasil)

América utópica: representações do Novo Mundo nas crônicas missionárias

8:50 Antônio Edmilson M. RodriguesUERJ/ PUC RJ/ UFF (Brasil)

Das possibilidades de cidades utópicas: os projetos urbanos no espaço do Novo Mundo

9:10 Alcir PécoraUNICAMP (Brasil)

O V império é uma utopia?

9:30 Suzana AlbornozUNISC (Brasil)

A Nova Atlântida, de Francis Bacon (1561-1626), na visão do filósofo da utopia Ernst Bloch (1885-1977)

9:50 Edgar De DeccaUNICAMP (Brasil)

Iluminismo e utopia

10:10 Discussão

TARde: Mesa 11: Utopia e contemporaneidade Moderador: emerson Tin

14:30 Marianna Forleo ISFOL (Itália)

Le mappe dell’utopia

14:50 Laura Tundo Ferente Università del Salento (Itália)

L’utopia cosmopolitica moderna

15:10 Edson Luiz André de SouzaUFRGS (Brasil)

Psicanálise e a vocação iconoclasta das utopias

15:30 Biagio d’AngeloPUC (São Paulo,(Brasil)

Perséfone no espaço. A literatura e a morte dos mitos na ficção científica

15:50 Alfredo CordiviolaUFPE (Brasil)Ildney Cavalcanti UFAL (Brasil)

Em busca das utopias da/na America Latina: identidades, literatura e cultura

16:10 Discussão

16:30 MESA DE ENCERRAMENTO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

24

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

diScURSO de ABeRTURA

Prezados Senhores e Colegas,

Sejam todos bem-vindos. Inicia-se aqui, na Unicamp, o II Congresso Internacional de Estudos Utópicos da Revista Morus – Utopia e Renascimento, com o tema O QUE É UTOPIA? GÊNERO E MODOS DE REPRESENTAÇÃO. Este evento ocorre por determinação dos participantes do “Convegno Internazionale – Scienza e Tecnica nell’utopia e nella distopia”, ocorrido em Florença, Itália, em maio de 2007, numa iniciativa conjunta da Revista Morus e do Departamento de Estudos sobre o Estado da Universidade de Florença, através da pessoa extraordinária do Prof. Claudio De Boni. Este encontro atual de inteligências visa precisamente delimitar a natureza da Utopia e avaliar as modalidades de sua definição enquanto gênero, e verificar se este projeto é possível.

Buscaremos neste encontro avaliar a historicidade da utopia, sua relação com a experiência da viagem, com a crítica social, com a política e também com os outros fenômenos literários; a utopia exige a mobilização do raciocínio filosófico, lingüístico, antropológico, religioso, econômico, ético: o fundamental é transformá-lo de assunto em objeto. Trata-se de definir o gênero como ponto de chegada crítico, localizando-o dentro da História concreta, deduzindo-o de forma sintética. Afinal, definir um gênero é estabelecer o encontro entre a História e as obras.

O Humanismo florentino criou a noção de que o homem, visto então como o indivíduo burguês, era livre para construir sua própria vida. A existência humana terrena deixou de ser concebida como um destino já desenhado, um livro escrito por forças metafísicas e alheias às individualidades, a quem cabia apenas desempenhar o papel de vivê-la. E foi apenas um passo ir da capacidade humana de traçar sua existência individual para idêntica liberdade no plano coletivo; a livre organização do viver associado é o pressuposto genético da utopia.

Há muito tempo que a utopia é alvo de críticas e de aversão, o que significa que foi, neste processo, objeto de avaliação e julgamento. Como resultado destas análises, as utopias foram costumeiramente criticadas como promotoras de uma atitude cega para com as “realidades humanas”, tais como as ambições, o desejo de poder, etc., já que é fácil imaginar uma sociedade ideal quando as realidades concretas não são levadas em consideração. Também já foi dito que o espírito revolucionário utópico se dissolve por si mesmo, já que numa sociedade perfeita não cabem revoluções nem, portanto, mudanças e progresso. Estas indagações, embora pertinentes, estão porém longe de esgotar o assunto; entretanto, servem para nos colocar em posição de alerta contra definições do tema que enveredem pela candura diluente. É tão danoso ao conceito utópico tanto a sua rejeição baseada no desconhecimento quanto a sua utilização sentimental. Para a pensadora Maria Moneti, o que aconteceu com a palavra utopia é similar ao que aconteceu com a palavra filosofia: chegamos a um uso semântico distendido

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

25

ANAIS dO II CONgRESSO INTERNACIONAl dE ESTUdOS UTóPICOS

destas palavras, de forma que não sabemos mais o que exprimimos quando dizemos utopia ou filosofia. Este congresso é uma oportunidade de lutar contra a banalização acima referida, e para a construção de um patrimônio crítico e histórico do gênero utopico.

Quando alguém se pergunta sobre a possível perenidade da forma atual da sociedade, ou se subsiste uma alternativa, está operando no terreno da utopia – está imaginando uma estrutura social cuja efetividade não se deu. Aí está a qualidade humana básica: a teleologia, ver antes o que ainda não aconteceu. A utopia serve claramente para humanizar o homem, dotá-lo da noção de que a História se constrói e se destrói pela exclusiva ação humana, sem interferências metafísicas. Para a disciplina do utopista, o mundo nunca é apenas aquilo que se nos apresenta, mas é também aquilo que não se deixa ver, mesmo atuando sobre a vida humana, para o bem ou para o mal. Então, diante de qualquer forma social, o procedimento utópico capta as possibilidades dissimuladas, o real não efetivado, e a partir dela cria uma forma sensível – a própria utopia - que nos permite ver o invisível, nos habilita a lidar com o apenas insinuado.

É insofismável que somos contemporâneos de uma poderosa ciência desprovida de uma ética suficiente e realmente operante. O desenvolvimento técnico-científico contemporâneo anda com escasso governo quanto às finalidades humanas, havendo um divórcio entre padrão científico e padrão ético. Aí está o problema que interessa à utopia: o que acontece com a vida, ou acontecerá, se as invenções científicas não passarem pelo vestíbulo do consenso moral? Responder a esta pergunta já é em grande parte responder à questão: O que é utopia?

Desde o primeiro momento este trabalho, proposto inicialmente pelos membros da Revista Morus, encontrou o apoio caloroso de pessoas e instituições que se tornaram promotoras e apoiadoras do evento, a começar pelo U-TOPOS – Centro de Estudos sobre Utopia, do IEL-UNICAMP, que reúne a maioria dos principais pesquisadores dos temas utópicos no Brasil. Obtivemos o pronto apoio da Reitoria da Unicamp, na pessoa do Magnífico Reitor Prof. Fernando Costa, aqui representado pelo Vice-Reitor Prof. Edgar De Decca – ele próprio membro da Comissão Organizadora do II Congresso - e do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP através de seu diretor, o Prof. Alcir Pecora, que contribuiu de todas as formas ao seu alcance. Entre as instituições nacionais que deram pleno apoio ao evento estão o Departamento de História do IFCH/UNICAMP, através da Profa. Cristina Meneguello, do Instituto de Artes/UNICAMP, através da Profa. Iara Lis Schiavinatto, do Departamento de História /PUC/Campinas, através da Profa. Ivone Gallo, e da FACAMP/Campinas, através do Prof. Emerson Tin.

As instituições patrocinadoras estrangeiras, que deram sua essencial colaboração e apoio, são o Dipartimento di Studi Sullo Stato da Universidade de Florença, Itália, através de Cláudio De Boni, o Centro Interuniversitario

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

26

MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

di Studi Utopici da Universidade do Salento, de Lecce, Itália, através dos professores Arrigo Colombo e Cosimo Quarta, o Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia da Universidade de Bolonha, Itália, através da Profa. Vita Fortunati, e finalmente a Profa. Marie-Luce Demonet, do Centre d’Études Supérieures de la Renaissance de Tours (França).

É preciso citar ainda a decidida colaboração de dois outros membros da Comissão de Organização, o Prof. Carlos Antônio Leite Brandão, da Faculdade de Arquitetura/UFMG, e da Profa. Edwiges Morato, do DL/IEL/UNICAMP.

Menciono ainda o apoio do Prof. Francisco Foot Hardmann, coordenador da Secretaria de Projetos do IEL-Unicamp, onde atua a eficientíssima Creuza Dias – decisiva para o desvendamento dos mistérios cabalísticos dos órgãos de financiamento.

As entidades financiadoras nacionais compreenderam o sentido e abrangência de nosso congresso, e permitiram com seus recursos que aqui estivéssemos: a própria Reitoria da Unicamp, a CAPES, o CNPq, o FAEPEX e a FAPESP, graças à intervenção de seu Diretor Científico, o Prof. Carlos Henrique Brito Cruz.

Recordo com afeto o apoio dado pelo Jornal da Unicamp, que nos dedicou duas edições organizadas por Álvaro Kassab, e por Stefania Serra. Não posso deixar de agradecer ainda à ajuda essencial de Yvone Greis, de Daniela Spinelli, de Geraldo Witezi, de Juliana Lopes, de Laura Cielavin Machado, de Milene Baldo – meus caríssimos orientandos, e também de Carolina Hebling, Julia Marinho e Erik Martins, orientandos da Prof. Edwiges Morato.

Aceitou com grande generosidade nosso convite para proferir a conferência inaugural o professor emérito da Universidade da Réunion (França), Jean-Michel Racault, um dos mais importantes estudiosos contemporâneos da utopia. Ponho-lhe todos os meus agradecimentos.

E para encerrar, antes de passar a palavra para o vice-reitor e coordenador geral da Universidade, Prof. Edgar De Decca, e aos demais membros desta mesa, quero creditar o essencial da realização deste II Congresso à sua extraordinária Comissão Executiva, Ana Cláudia Romano Ribeiro e Helvio Gomes Moraes Jr. que, mais do que prometia a força humana, carregaram o peso de transformar uma idéia em realidade.

Carlos E. O. Berriel

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Textos

Da idéia de perfeição como elemento definidor da utopia: as utopias clássicas e a natureza humanaJean-Michel RacaultUniversité de La Réunion (França)

Resumo

A articulação do modo utópico, freqüentemente definido como a aspiração realizável ou não a uma sociedade perfeita (considerada independentemente do modo como essa aspiração é formulada literariamente), com o gênero utópico, forma literariamente codificada das representações sociais imaginárias, é uma questão difícil em todos os contextos e em todas as épocas. Particularmente nas utopias ditas "clássicas", que se estendem grosso modo de 1675 a 1795 – da Terre Australe Connue de Foigny a Aline et Valcour de Sade –, em que a codificação literária toma geralmente a forma de um suposto relato de viagem a uma ilha desconhecida, enquanto que a axiologia do modo utópico e sobretudo a noção de perfeição que lhe é normalmente associada são ou ambíguas, ou contestadas pelo roteiro narrativo escolhido.

Gostaríamos de mostrar que nos grandes textos utópicos deste período a aspiração à sociedade perfeita – supondo que podemos definir o que seria uma sociedade perfeita – não é necessariamente um ideal concebido como realizável ou mesmo desejável, mas sim um meio de análise crítica das sociedades existentes, ou uma hipótese heurística para uma experimentação imaginária, ou ainda uma especulação antropológico-teológica sobre "possíveis paralelos".

Mesmo nos autores libertinos ou ateus, a impregnação cristã impõe a idéia de uma natureza humana imperfeita e intangível que entra em conflito com a construção de uma sociedade perfeita. Os textos se dividem em duas categorias: 1) os que, a partir da constatação da imperfeição da natureza humana, buscam um modelo de sociedade apropriado para conter ou utilizar as taras (Veiras, Histoire des Sévarambes) ou para manipular as paixões (Sade); 2) os que, a partir da mesma constatação, inventam uma raça de seres perfeitos para habitar uma sociedade igualmente perfeita (Foigny, Swift).

Neste caso, a utopia perde sua exemplaridade: os hermafroditas de Foigny ou os houyhnhnms de Swift não são mais seres "humanos" propriamente ditos e a perfeição de sua sociedade se revela incompatível com a imperfeição do homem real. Devemos, então, falar de antiutopia? Não, pois as sociedades apresentadas são sociedades perfeitas. Mas é precisamente esta perfeição que os torna ao mesmo tempo fascinantes e terríveis. A inumanidade, em todos os sentidos do termo, não seria a conseqüência lógica de uma aspiração à perfeição no mundo terrestre – aspiração vã ou então essencialmente herética se dermos crédito à Teodicéia de Leibniz, onde a palavra utopia é empregada pela primeira vez em seu sentido genérico?

Palavras-chave

Definição de utopia, perfeição, ideal, utopias clássicas.

Jean-Michel Racault é professor emérito na Universidade da Réunion, comparatista e especialista em século XVIII (e, acessoriamente, em XVII). Seu âmbito de pesquisa compreende as utopias dos séculos XVII e XVIII (sobre as quais escreveu sua tese: L'utopie narrative, 1675-1761. Oxford: The Voltaire Foundation, 1991), literaturas de viagens, poética da insularidade, Bernardin de Saint-Pierre. Algumas de suas obras recentes são: Nulle part et ses environs. Voyages aux confins de l'utopie littéraire classique (Paris: Presses de l'Université de Paris-Sorbonne, 2003), Voyages badins, burlesques et parodiques du 18e siècle (Saint Etienne: Presses de l'Université de Saint-Etienne, 2005), Mémoires du Grand Océan. Des récits de voyages à l'émergence d'une littérature francophone (Paris: Presses de l'Université de Paris-Sorbonne, 2007).

30

jEAN-MIChEl RACAUlT

Objetos privilegiados deste congresso bem como de diversos outros que o precederam¹, os problemas de definição são uma etapa habitual de todo percurso utopológico – o que sugere que esta

tarefa deve ser constantemente retomada. Limitaremo-nos à recapitulação de alguns pontos cruciais como preâmbulo metodológico ao exame dos textos. Desejaria especificamente retomar a articulação entre modo utópico (ou se preferirmos, utopismo), freqüentemente caracterizado como uma aspiração, realizável ou não, a uma sociedade perfeita, e o gênero utópico (ou utopia), forma literariamente codificada das representações sociais imaginárias, o corpus escolhido sendo algumas utopias narrativas ditas “clássicas”. Nesta variedade de utopia surgida em finais do século XVII, a noção de perfeição torna-se problemática, pois não combina com a convicção amplamente difundida no pensamento desta época de que existe um dado intangível, a natureza humana, cuja imperfeição intrínseca representa um obstáculo a todos os sonhos de sociedade perfeita.

Daí decorre a presença, nestes textos, que hoje temos a tendência de ler um tanto ingenuamente como a formulação de um ideal social, como uma crítica progressiva da ordem monárquica ou como uma prefiguração do pensamento iluminista, de muitas ambigüidades, contradições, interrogações religiosas, por vezes derivas inquietantes, que colocam em questão nossa concepção usual da utopia. Neles, a questão da perfeição ou da imperfeição é central, sem que a comunidade perfeita seja necessariamente concebida como um ideal realizável, nem mesmo talvez desejável para o homem tal como ele é. A perfeição utópica aparece então não como um modelo sócio-político, mas como um ponto de vista imaginário tendo como objetivo uma análise das sociedades existentes, ou como uma especulação antropológico-teológica sobre as variáveis hipotéticas da natureza humana. Talvez mesmo a representação de um mundo perfeito que mostram certas utopias clássicas deva ser compreendida como uma advertência potencialmente antiutópica contra os perigos que a idéia de perfeição insidiosamente contém em si².

Não poderíamos determinar uma tipologia das utopias clássicas segundo sua posição frente a estas duas noções dificilmente conciliáveis que são o ideal de perfeição e a realidade da natureza humana? Apoiaremo-nos, para tanto, nos modelos contrastados que as obras de Veiras, Foigny e Swift oferecem. Mas, antes de abordar estes textos, é preciso evocar algumas questões metodológicas.

1 – Preliminares: metodologia, definições, propostas

Lembremo-nos primeiramente do sentido que se deve dar à palavra utopia, especificando que trataremos não de utopismo, mas de utopias. É claro, há algo de utopismo nas utopias, como há algo de trágico nas tragédias e algo de cômico nas comédias, mas a superposição parcial das noções não nos autoriza a confundi-las, pois elas não são de mesma ordem.

O utopismo é um modo do imaginário político, freqüentemente um programa radical de transformação social da realidade existente, mais geralmente um “exercício mental sobre os possíveis laterais”, segundo a fórmula de Raymond Ruyer (1950, p. 9). A utopia é um gênero literário

¹ Ver, por exemplo, Modèles et moyens de la réflexion politique au XVIIIe siècle (volume coletivo, 1973), Le discours utopique (Gandillac e Piron, 1978) e Per una definizione dell’utopia (Minerva, 1992).

² Ver um debate sobre este ponto em Trousson, 1998, p. 147-164. A noção de antiutopia, no entanto, aplicada em geral a textos mais tardios escritos como reação contra as utopias socializantes do século XIX, talvez seja um pouco anacrônica aplicada às utopias clássicas (ver Kumar, 1991).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

31

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

que corresponde à codificação do modo utópico sob uma forma escrita, e mais precisamente narrativa, gênero que, no período que nos concerne (séculos XVII e XVIII), aparenta-se ao mesmo tempo à ficção romanesca e à literatura de viagem³.

Utopismo e utopia baseiam-se num deslocamento em relação ao universo real, do aqui-agora, universo de referência do autor e do leitor. Mas este deslocamento não se situa no mesmo eixo: o tempo para um, o espaço para o outro. O utopismo é uma projeção para fora do presente, uma aspiração a um “mundo melhor” situado no porvir (este porvir podendo muito bem, inclusive, revestir o aspecto paradoxal de um retorno a um passado muito antigo4). A utopia é uma representação – por isso o habitual recurso à descrição –, a representação de um Alhures geograficamente afastado (Terras Austrais, ilhas dos Mares do sul) colocado como simétrico e inverso ao Aqui do mundo de referência, que é europeu em todos os nossos textos5.

As principais características formais e temáticas da utopia-gênero são uma decorrência lógica. Diferente do mundo “outro no porvir” implicado no modo utópico, o mundo “outro no alhures” implicado no gênero utópico é apresentado como atualmente existente no tempo da escrita. Sua representação crível impõe as regras habituais da ficção realista. É necessário, primeiramente, que ele seja coerente e completo: uma utopia é, pelo menos idealmente, uma reconstrução antropológica total comportando instituições, uma estrutura social, uma economia, uma religião, uma língua, etc., sendo cada elemento correlacionado a todos os outros. Outras regras são espaciais ou narratológicas: confrontar o aqui e o alhures exige o recurso à viagem, obrigatoriamente circular, a fim de transmitir ao mundo de partida o testemunho desta forma recolhido. A viagem, por sua vez, predetermina um roteiro, motivos utópicos (tempestades, naufrágios...), personagens recorrentes6. O personagem do viajante (comumente também narrador) projeta por simetria a figura complementar do guia-intérprete-porta-voz da sociedade imaginária. A estrutura dialógica inerente aos personagens justifica assim a importância do diálogo como modo de apresentação e de confrontação dos sistemas políticos, em alternância com o comentário e a descrição; quanto à narração das peripécias, ela intervém sobretudo nos itinerários de ida e de retorno, mas não no seio do quadro utópico, onde normalmente nada acontece.

Devemos integrar à definição de utopia a noção de perfeição? Sem estarem sempre presentes, as palavras perfeição, perfeito ou ideal aparecem freqüentemente (cf. Suvin, 1977, p. 47-69). Uma tipologia das definições segundo sua presença ou ausência seria, sem dúvida, instrutiva; em todo caso, parece que um mundo simplesmente “diferente” não pode ser dito “utópico”, é preciso que ele seja também axiologicamente outro. Seria ainda necessário estender-se sobre o sentido do conceito de perfeição. Em um ensaio muito estimulante, Darko Suvin recusa-o como demasiadamente estático e prefere falar de utopia como comunidade organizada “segundo um princípio mais perfeito do que na sociedade do autor” (1977, p. 57) sem, contudo, notar a incongruência semântica do comparativo de superioridade

³ Entre as obras que em muito contribuíram para impor esta distinção terminológica, ocupa um lugar particular o estudo clássico de Raymond Trousson, Voyages aux Pays de Nulle Part. Histoire littéraire de la pensée utopique (1999). A recente Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme, dirigida por Vita Fortunati e Raymond Trousson, com a colaboração de Paola Spinozzi (2008), traz um título que reafirma a legitimidade desta distinção, contestada ou simplesmente ignorada em vários outros dicionários e obras coletivas recentes.

4 O mito do Jardim do Éden, da Idade do Ouro, o mundo à antiga da écloga ou da pastoral podem assim figurar um porvir ideal por meio de um retrocesso no tempo.

5 Resumimos aqui as observações introdutórias de nosso livro L’utopie narrative en France et en Angleterre, 1675-1761 (1991, p. 3-31).

6 Sobre estes diferentes pontos, ver a comunicação de Vita Fortunati, "Fictional Strategies and Political Messages in Utopias" (1992, p. 17-27 e, particularmente, p. 23).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

32

jEAN-MIChEl RACAUlT

“mais perfeito do que”, já que a noção de perfeição coloca um absoluto excluindo a apreciação relativa. Uma sociedade pode ser melhor que a nossa sem por isso ser dita perfeita.

É preciso, portanto, distinguir a perfeição, que não se compara e até mesmo se isola em sua unicidade – traço, com efeito, característico das sociedades utópicas de Foigny e de Swift, que se apresentam como perfeitas – e a superioridade, que requer confrontação e comparação. É também preciso distinguir a perfeição, que é uma situação estática e anti-histórica por definição não melhorável – conforme a etimologia, o primeiro sentido da palavra é “achèvement” (“perfazer”), segundo Littré – e a perfectibilidade, que implica o percurso, a dimensão do tempo e a dinâmica histórica do progresso. Uma sociedade perfeita não pode se transformar a não ser para rebaixar-se – logo, para deixar de ser perfeita; uma sociedade perfectível permanece evolutiva, ao menos enquanto não atingir seu ponto de perfeição. Assim, poderíamos opor as utopias originalmente “perfeitas”, logo sem História, que existem semelhantes a elas mesmas há uma eternidade (Foigny, Swift), às utopias originalmente “perfectíveis” dotadas de um começo no tempo e, portanto, de uma História, mesmo que limitada ao ato fundador do legislador que as criou (Veiras).

Mas o que é uma sociedade perfeita? E perfeita para quem? Podemos eliminar os julgamentos ao mesmo tempo anacrônicos e mutáveis, cujo único interesse é o de refletir a sucessão de modas intelectuais efêmeras? A recepção crítica das utopias oferece vários exemplos. Thomas More, incensado nos anos 50 como precursor da Revolução de Outubro e profeta da sociedade sem classes do porvir7, foi estigmatizado algumas dezenas de anos mais tarde como o apóstolo do totalitarismo e mesmo o inventor do gulag! Mas mesmo se nos limitamos a lançar um olhar histórico sobre as obras, não é fácil dar um conteúdo objetivo à idéia de perfeição. Algumas destas sociedades são ditas perfeitas, mas para quem? Para seus habitantes? Para o viajante europeu que as descreve? Para o autor do texto utópico? Ou ainda para os leitores? Mas quais? Os de hoje? Ou aqueles que foram, na época, seus destinatários? A isto devem-se acrescentar os julgamentos que se contradizem de um indivíduo a outro e talvez mesmo em nosso foro íntimo. Não apenas, conforme o ditado, “o sonho de um é o pesadelo de outro”, mas ainda a apreciação pessoal pode muito bem apoiar-se simultaneamente em modelos em princípio incompatíveis. Onde está a perfeição? Do lado de Atenas – a aspiração democrática à autonomia individual – ou do lado de Esparta – a nostalgia autoritária de uma comunidade holística?8 A sedução das utopias se deve muitas vezes ao fato delas poderem responder ao mesmo tempo a estas duas orientações, que nos deixam divididos.

Quanto ao rótulo “utopias clássicas”, comum nos nossos textos, ele corresponde ao mesmo tempo a uma periodização, a uma tipologia literária e a uma problemática filosófica9. Este novo tipo de utopia surgiu na França, nos anos 1675, com La Terre Australe connue de Foigny (1676) e a Histoire des Sévarambes de Veiras (1677-79), em seguida difundiu-se na Europa do Iluminismo, às vezes sob a forma do pastiche ou da paródia como nas Gulliver’s Travels de Swift (1726), ou no episódio do Eldorado de Candide

7 L’Utopie anglaise de A. L. Morton [1952], por exemplo, tem um capítulo intitulado “More, o comunista” (1964, p. 48-62).

8 Sobre estes dois pontos ver Chad Walsh, 1977 e Krishan Kumar, 1991, p. 5.

9 Ver análise em Racault, 1991.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

33

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

de Voltaire (1759). Ele perpetuou-se até a época da Revolução Francesa: dois episódios do romance de Sade, Aline et Valcour (1788-1795), se inscrevem neste modelo da utopia clássica e ao mesmo tempo subvertem-no.

O que o diferencia literariamente das utopias anteriores é a estética realista, mais do que a satírica ou a alegórica. Ela implica inserção em uma pseudo-realidade geográfica, imitação dos procedimentos narrativos da literatura de viagem, desenvolvimento quantitativo dos trajetos de ida e volta, e valorização do viajante como personagem. Assim, Foigny dedica às viagens de seu herói Sadeur, repletas de precisões geográficas de aspecto indiscutível, cinco dos quinze capítulos de seu livro, enquanto que em More ou em Campanella a viagem mal é evocada, a ilha de Utopia não sendo nem mesmo situada e a Cidade do Sol, vagamente localizada em Taprobana (Ceilão?), nada além disso.

A questão da perfeição ou da imperfeição está paradoxalmente ligada à especificidade filosófico-religiosa das utopias clássicas. É claro, há algumas utopias cristãs – a mais digna de nota sendo Gaudentio di Lucca, de Simon Berington (1737) – mas a maior parte dos textos traz a marca da dissidência ideológica de seus autores, protestantes ou libertinos, ou spinosistas, ou até ateus; Veiras foi, sem dúvida, um pouco disso tudo. No entanto, no contexto do pessimismo da “crise da consciência européia” (Hazard, 1961), são raros os que colocam em questão a visão agostiniana da imperfeição radical da natureza humana, ou por causa do fardo do pecado original, que nos submete à força das paixões, ou por causa do mal ontológico da individuação; o indivíduo moderno desligado das solidariedades orgânicas da Comunidade vive um tipo de equivalente desta passagem “do mundo fechado ao universo infinito”, que Alexandre Koyré analisou, e resultado da revolução astronômica copérnico-galileana.

Podemos mudar a natureza humana, ou ela é imutável? Em sua Digression sur les Anciens et les Modernes (1688), Fontenelle, adversário da tese da superioridade dos Antigos, se pergunta “se as árvores que antes estavam nos nossos campos eram maiores do que as de hoje” (1994, p. 31), concluindo, evidentemente, pela negativa. Em outros termos, a Natureza – incluindo, é claro, a natureza humana – não mudou e nem pode mudar, o que não exclui a possibilidade de um progresso histórico pela acumulação de conhecimento, desenvolvimento do Iluminismo, melhoria da sociedade, o homem, contudo, permanecendo idêntico a ele mesmo, logo, imperfeito10.

Esta posição corresponde a uma primeira categoria de utopias clássicas que, partindo da constatação da imperfeição humana, esforçam-se ao menos para inventar uma sociedade outra capaz de corrigir seus defeitos e impedir que se tornem piores graças a uma sábia legislação, por exemplo, lidando habilmente com as paixões: é o caso da utopia de Veiras.

Baseando-se na mesma constatação pessimista, outros utopistas, ao contrário, escolhem inventar uma natureza outra que poderia ser uma natureza perfeita, porém não seria mais uma natureza propriamente dita “humana”. É este o caso dos pré-adamitas de Foigny, que, por não descenderem de Adão, não estão, portanto, sujeitos à Queda, ou ainda dos cavalos de Swift, que oferecem todas as características do que poderia ser

10 A tese de Fontenelle do progresso cumulativo no seio de uma natureza humana imutável não supõe, portanto, nenhuma transformação dos homens, mas apenas de seu meio material e intelectual. Ela se opõe a um paradigma então dominante, o do inevitável declínio da Criação e esgotamento progressivo da energia contida na natureza: “Se os Antigos tinham mais espírito do que nós [...] as árvores teriam sido maiores e mais belas; pois se a natureza fosse então mais jovem e mais vigorosa, as árvores, tanto quanto os cérebros dos homens, deveriam manifestar este vigor e esta juventude” (1994, p. 31).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

34

jEAN-MIChEl RACAUlT

uma humanidade perfeita – salvo pelo fato de serem cavalos, e não homens. Modelo, certamente, mas pouco imitável; e pode-se fazer com que o humano e o sobre-humano coabitem sem graves conseqüências?

Não seria necessário pensar a possibilidade de um terceiro tipo de utopias? Trata-se daquelas que, sem negar as imperfeições da natureza humana no plano do indivíduo, integram-nas a um plano explicativo mais global, o da coletividade e do equilíbrio das paixões no seio do corpo social, ou o da espécie e de seu vir-a-ser, ou então o da própria Natureza e dos grandes ciclos que regem seu funcionamento. É, ao que parece, uma das interpretações possíveis dos dois episódios utópicos de Aline et Valcour de Sade, aparentemente opostos, mas na realidade convergentes.

2 – natureza humana e política: a Histoire des Sévarambes

A Histoire des Sévarambes (1677-1679) pode servir de paradigma ao nosso primeiro tipo de utopias clássicas, cujo princípio poderia ser “Já que o homem é, em si, mau, inventemos, então, uma sociedade que detenha seus vícios e o impeça de tornar-se pior”. Oficialmente protestante, na realidade deísta e talvez, secretamente, ateu, Veiras é abertamente anticristão: a história do farsante Stroukaras, que se impõe à credulidade pública por meio de falsos milagres, é uma paródia blasfematória da história de Cristo. Logo, não é no pecado original que se apóia a visão pessimista do homem, mas na força das paixões; por um lado, numa grande desconfiança para com o indivíduo, por outro lado, em certo otimismo institucional corrigindo um pouco esta imagem moral bastante sombria: "Os homens têm, naturalmente, grande inclinação para o vício, e se as boas leis, os bons exemplos e a boa educação não os corrigirem, as sementes defeituosas que neles estão crescerão e se fortificarão" (H.S., III, p. 314-315)11.

Daí o lugar muito importante dedicado à apresentação do sistema político-religioso que dá sua legitimidade ao poder monárquico e funda todo o sistema social. Apesar de a religião dos sévarambes se apresentar como um racionalismo deísta apoiado em um culto solar, esta religião “natural”, na realidade, vem de uma revelação trazida pelo legislador Sévarias, regularmente re-atualizada por um conjunto de cerimônias e de rituais minuciosamente descritos. Ela funda o poder “heliocrático” do soberano, portador do título de Vice-Rei, representante terrestre do monarca teórico, o Sol. Esta religião de Estado, que evoca ao mesmo tempo o império dos Incas segundo Garcilaso de la Vega12 e a metáfora solar sobre a qual repousa o poder de Luís XIV, responde à convicção (que será a mesma de Pierre Bayle) segundo a qual “naturalmente os homens não têm mais religião do que os animais” (V, p. 262) e que é preciso que ela lhes seja inculcada.

Verdadeira ou falsa, pouco importa: o objetivo, puramente utilitário e laico, é manter a ordem social e a unidade do Estado. Protestante, Veiras prega a tolerância religiosa, mas estima que ela deva ser garantida por um poder forte e não a crê de forma alguma incompatível com uma religião de Estado unitária: a religião solar dos sévarambes é suficientemente acolhedora para não ferir nenhuma das crenças privadas, como era em

11 Os trechos de Veiras serão identificados com as iniciais H.S.

12 Sobre as fontes dos Sévarambes, ver Emmanuel Von der Mühll, 1938.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

35

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

More o culto oficial de Mitra. Encontramos até mesmo uma pequena Igreja cristã (protestante?), tolerada pelas autoridades: “uma boa educação freqüentemente corrige e mesmo algumas vezes sufoca as sementes viciosas que os homens têm, e cultiva as que eles têm para a virtude” (H.S., III, p. 316). Confiada a estabelecimentos de Estado, esta educação é coletiva e termina com a cerimônia do Osparenibon, casamento de grupo obrigatório que representa ao mesmo tempo uma entrada para a cidadania e uma garantia contra os impulsos passionais. Ao menos em princípio, pois “a paixão reina por todos os lugares onde existem homens” (H.S., IV, p. 200), e apesar das sábias instituições que os norteiam, os sévarambes não escapam à regra. A paixão amorosa é a mais difícil de conter e a que mais desordem causa individualmente. Ela é o motivo principal de diversas anedotas ou historietas galantes que mostram a impotência das leis para refrear as pulsões individuais, como explica a conclusão das aventuras amorosas de dois casais de jovens, Bemistar, Pansona, Bemiste e Simmadé:

Eis como por vezes o amor faz pouco caso da vigilância dos guardas mais severos e leva os amantes às ações mais arriscadas. Nem todo mundo obedece igualmente às leis, por mais que pareçam doces e razoáveis, e por toda parte encontramos pessoas que não apreendem a severidade, que amam a paixão cega que os leva a violá-las apesar do rigor dos castigos por elas ordenados (H.S., IV, p. 86-87).

Mas as imperfeições da natureza humana podem ser úteis ao legislador se ele souber utilizá-las. Partindo de uma concepção pessimista do homem, herdada do calvinismo e dos moralistas clássicos, Veiras faz delas o motor de seu sistema político. Como todos os homens, os sévarambes são supersticiosos e crédulos, daí os sucessos do falso profeta Stroukaras, que se fazia passar por filho do Sol. O legislador Sévarias utilizará exatamente os mesmos métodos para conquistar o poder, não se diferenciando de seu predecessor a não ser pela pureza proclamada de suas intenções. O que significa que, justo ou injusto, todo poder se funda na manipulação da opinião e na exploração política da superstição. Na origem do Estado utópico há uma impostura, assumida como tal e justificada na perspectiva “maquiavélica” bastante freqüente nos libertinos: os meios importam pouco se os fins são legítimos13.

Quanto ao funcionamento cotidiano do sistema político, ele utiliza em benefício do Estado o orgulho, a ambição e a vaidade, principais paixões dos sévarambes. Estes são mais sensíveis às honras e sanções do que às riquezas materiais, o que os ajuda a aceitar o princípio da comunidade de bens – aqui presente como na maioria das utopias da época – e os implica fortemente no sistema estatal. Ele comporta uma pirâmide hierarquizada de conselhos, de magistraturas e de dignidades oficiais que cada um é convidado a percorrer em um longo cursus honorum. Todos, animados por “uma honesta emulação, que faz com que eles atentem cuidadosamente a todas as suas ações”, se mostram “muito preocupados em amealhar o amor e a estima de todos, pois é este o meio de alcançar os cargos” (H.S., IV, p. 6); habilmente exploradas, as paixões individuais – a vaidade, neste caso – produzem o bem coletivo, de

13 Ver em nosso livro Nulle part et ses environs. Voyage aux confins de l’utopie littéraire classique, 1657-1802 o capítulo “Le récit des origines ou la nécessaire imposture: la fondation de l’État dans la littérature utopique à l’aube des Lumières” (2003, p. 55-71).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

36

jEAN-MIChEl RACAUlT

modo que poderíamos aplicar aos sévarambes o axioma da Fable of the Bees de Mandeville (1714): “Vícios privados, benefícios públicos”.

Conclui-se que a ordem utópica não erradicou as paixões, mesmo que delas tenha se servido para o bem comum. Se há perfeição – mas o termo não é nem um pouco adequado – é no plano coletivo que ela é visível, não no plano dos indivíduos. E, como mostram as histórias inseridas14, a tensão do individual e do coletivo não foi resolvida. Essas anedotas, que tratam de amantes infiéis, de mulheres ambiciosas, de juízes interesseiros, baseiam-se todas no conflito entre a desordem das paixões individuais e a racionalidade da ordem coletiva. É certo que elas terminam em geral com a restauração da ordem, mas foi necessário que esta ordem fosse previamente perturbada. Ela é, portanto, frágil, já que tolera tantas deploráveis exceções e talvez teórica, já que quando consideramos não mais a sociedade, mas os seres que a compõem, é a constatação da desordem que se impõe.

As anedotas são, com efeito, o lugar de emergência privilegiado do indivíduo na utopia. Excepcionalmente os cidadãos escapam de sua pura funcionalidade social para receber um nome e uma identidade. Elas são igualmente a única ocorrência do relato circunstancial no interior do quadro utópico, excetuado o relato de fundação e a tomada de poder do legislador que a termina. A anedota é um micro-relato; alguma coisa aconteceu em um mundo onde, se este mundo fosse realmente perfeito, nada deveria nem mesmo poderia acontecer.

Como sempre nas utopias, a intrusão do indivíduo e do acontecimento em um universo holístico onde se supõe a História acabada só pode fazer com que o conjunto e sua suposta perfeição percam suas cores. A re-emergência final do viajante-narrador como personagem e sua decisão de partida reforçam esta impressão. O leitor havia quase esquecido a presença de Siden, naturalizado sévarambe e, em aparência, completamente integrado à comunidade que o acolhe. Ouvi-lo confessar sua inadaptação, neste país onde os estrangeiros são apenas tolerados, e sua nostalgia da Europa, é, portanto, uma surpresa: "Pois após ter permanecido quase quinze anos neste país, um violento desejo de rever minha pátria tomou meu coração apesar de toda a minha razão" (H.S., V, p. 437).

É sempre à força das paixões que remete o conflito das duas ordens pascalianas da Razão e do Coração, e se o retorno do narrador a seu país pode ser compreendido, já que é narrativamente necessário à transmissão de seu testemunho, ele implica também uma crítica da utopia, ou pelo menos a constatação de uma incompatibilidade pessoal. De quem é a culpa? Da imperfeição do europeu Siden, cuja natureza ruim – a de todos os homens – não foi domada desde a infância por uma educação apropriada? Ou a da ordem utópica, nem um pouco perfeita, já que se conforma com a manipulação e a mentira?

Para Veiras, a política é uma “arte do possível” que busca tirar o melhor de um material imperfeito, o homem, por meios igualmente imperfeitos. Voltando as costas a um ideal de perfeição estranho ao mundo humano, ele parece ter procurado discernir por meio da utopia sévarambe a menos ruim das formas de governo, objetivo nem um pouco “revolucionário”, ao

14 História de Ulisbe e de Bramistas (H.S., II, p. 56-73); História de Bemistar, Bemiste, Simmadé, Ktalipse e Pansona (H.S., IV, p. 43-86); História do matemático, do pintor e do juiz iníquo (H.S., IV, p. 100-124); História de Floristan e Calénis (H.S., IV, p. 218-275); História de Dionistar e Ahinomé (H.S., V, p. 110-209).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

37

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

contrário do que se tem freqüentemente afirmado: o sistema heliocrático não difere do absolutismo de Luís XIV, a não ser pelo emprego de uma margem politicamente aceitável de tolerância religiosa, o que certamente não era de pouco peso alguns anos antes da Revogação do Edito de Nantes.

3 – Fascinação e riscos do sobre-humano: Foigny e Swift

A incompatibilidade entre a ordem utópica perfeita, concebida por uma raça de seres também eles perfeitos, e o homem tal como ele é, encarnado pelo viajante europeu, torna-se a peça essencial do nosso segundo tipo de utopias: partindo da mesma constatação da imperfeição da natureza humana, elas inventam uma natureza outra que não podemos realmente qualificar de “humana”. Podemos examinar conjuntamente os dois mais importantes textos que ilustram esta categoria.

Contemporaneamente aos Sévarambes, La Terre Australe connue (1676)15 relata as aventuras de um homem que poderíamos qualificar de comum – já que é um descendente de Adão e está sujeito às paixões como todos nós – se ele não fosse dotado de uma dupla particularidade. Nascido no mar, considerado responsável pelo naufrágio do navio e, conseqüentemente, pela morte de seus pais e de toda a tripulação, Sadeur inaugura desgraçadamente um destino do tipo do de Jonas, que condena à destruição todos os navios que ele toma. Objeto de “indignação”, este é o termo usado por ele, “pior que uma víbora”, pois, diz, “parecia que eu vivia apenas para causar a morte dos que mais se empenhavam em conservar a minha vida” (T.A., p. 72)16, Sadeur é o representante por excelência da condição humana decaída: esta culpabilidade congênita, profundamente interiorizada ainda que exclua qualquer erro pessoal, deve sem dúvida ser compreendida como o símbolo do pecado original.

A segunda particularidade é anatômica. Ela faz de Sadeur, segundo seus próprios termos, um objeto de “aversão”, um monstro, em suma: nascido com os dois sexos, ele é hermafrodita. Seu destino bizarro o conduzirá à Terra Austral, a seres iguais a ele, porém apenas na aparência. Para os austrais, o hermafrodismo não é anatômico, mas ontológico. É o sinal de uma natureza outra, essencialmente diferente da natureza humana – ou antes, “meio-humana”, diriam os austrais (ou seja, na realidade, animal). A nossa foi irremediavelmente corrompida pela Queda. Os austrais podem se auto-reproduzir – logo, não há neles nem sexualidade, nem dependência, nem desejo – e, sobretudo, sendo completamente isentos de paixões humanas, eles se vêem como seres perfeitos. O narrador ressalta a origem teológica da separação antropológica entre duas naturezas:

Apenas o pecado nos causou horror de nós mesmos e, tendo sujado nossa alma perante Deus, tornou-nos detestáveis. Observando essa gente, diríamos facilmente que Adão não pecou e que eles são o que nós teríamos sido sem aquela queda fatídica (T.A., p. 105).

Foigny sugere sem dizer: seus austrais bissexuados são os descendentes de uma raça pré-adamitas originária de uma primeira criação e, portanto,

15 Consultamos o texto da edição de Frédéric Lachèvre (1968), que apresenta conjuntamente o texto do original e o que foi fortemente censurado na versão publicada em 1692 e serviu de base às edições posteriores (designado a partir de agora por T.A.).

16 A tradução e estudo da utopia de Foigny são os objetos da tese de doutorado de Ana Cláudia R. Ribeiro realizada no Departamento de Teoria Literária (Instituto de Estudos da Linguagem), na Universidade Estadual de Campinas, sob orientação de Carlos Eduardo O. Berriel, a ser defendida em fevereiro de 2010 (N. T.).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

38

jEAN-MIChEl RACAUlT

livre do pecado, tese herética oriunda do esoterismo judeu que se apóia na contradição entre os dois relatos da Criação presentes no Gênesis (I, 27-28; II, 21-25)17.

Não precisamos nos ater ao conteúdo da utopia, que se deduz logicamente das premissas da hipótese teológica. Sob a aparência da fantasia mais gratuita, Foigny reconstrói com extremo rigor o que poderia ser o universo mental e a civilização material de uma humanidade sem pecado, logo sem paixões, que seria, na realidade, uma super-humanidade em ruptura com nossa condição decaída. Libertos das obrigações animais da reprodução sexuada pela auto-suficiência hermafrodita, isentos da angústia da individuação por sua imersão na unidade do corpo social, todos rigorosamente semelhantes e partilhando todos de uma Razão perfeita, os austrais não podem querer algo que a Razão não queira, ou seja, todos querem exatamente a mesma coisa. Logo, o austral age necessariamente em harmonia pré-estabelecida com todos os outros, por infusão espontânea da vontade geral nas vontades particulares: "A palavra ordem lhe é odiosa, faz o que a razão lhe dita; sua razão é sua lei, sua regra, é seu único guia" (T.A., p. 106).

Nenhuma dimensão política nesta sociedade “anárquica” no sentido etimológico, ainda que de modo algum libertária, desprovida de leis, de instituições, de Estado e mesmo de administração. Ela é também desprovida de História: diferente do império sévarambe, a sociedade austral parece existir desde a origem em sua perfeição inumana; não tem fundação, nem herói legislador, nem História, ou pelo menos nenhuma que seja transmissível, já que os Anais são ao mesmo tempo interditos e incompreensíveis, apenas uma repetição do idêntico fixada num eterno presente.

Swift teria lido Foigny?18 Não se pode ter certeza, mas a problemática é surpreendentemente similar na quarta parte das Gulliver’s Travels (1726), salvo pelo aspecto teológico, nunca abordado explicitamente. Esta ausência de referências religiosas, item obrigatório das utopias clássicas, parece confirmar a tese (a priori contestável) de um ateísmo secreto em Swift. Ela se explica, no entanto, muito bem no contexto de A Voyage to the Country of the Houyhnhnms19. Afinal, qual poderia ser a religião de uma sociedade de cavalos? Os cavalos não estando submetidos ao pecado original, evidentemente, talvez um racionalismo deísta análogo ao dos austrais, atitude religiosa da qual Swift sempre foi um firme adversário. Mas a questão assim colocada ressalta, sobretudo, o ridículo da hipótese: não se pode conceber o homem a não ser como pecador, contrariamente ao antropocentrismo otimista da nascente filosofia do Iluminismo, e, em conseqüência, radicalmente imperfeito.

A ficção dos Houynhnms, este povo de cavalos perfeitos cujo nome significa, em sua língua, “a perfeição da natureza” (V.C.H., p. 109), deve ser entendida como a tomada sarcástica ao pé da letra de uma definição otimista do homem como “animal racional” que Swift pretende ridicularizar: os cavalos, assim como os austrais, encarnam esta Razão perfeita que o homem real nunca possuirá. Como em Foigny, ela exclui as paixões e os vícios habituais a toda sociedade humana e sobretudo a mentira, noção incompreensível para seres perfeitos, a não ser por meio de uma perífrase

17 Sobre as fontes bíblicas e esotéricas da Terre Australe connue ver Ronzeaud, 1982.

18 Para um exame detalhado da questão, ver Menziez, 2004.

19 As referências são tiradas da edição bilíngüe de Georges Lamoine (Swift, 1971), aqui indicadas pelas iniciais V.C.H..

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

39

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

canhestra que é, em realidade, uma contradição nos termos: mentir é “dizer a coisa que não é” (V.C.H., p. 109), conforme Gulliver tenta explicar aos cavalos.

Por meio de um outro processo de inversão, o mundo dos cavalos perfeitos projeta como num espelho seu correspondente invertido sob a forma de uma repugnante versão animalizada da raça humana, coisa que Gulliver terminará por admitir, para sua maior vergonha. O yahoo, cujo nome talvez evoque o “Eu detestável” segundo Pascal (yahoo = “the odious I”) deu lugar a múltiplas interpretações – imagem do homem em estado natural, figuração alegórica do homem pecador... – mas a verdadeira questão é sua relação com o homem social real. Dos dois, qual é o pior? Qual deles é a versão degradada do outro? O Mestre Cavalo, lamentavelmente, tem poucas dúvidas, ao final de suas conversas com Gulliver, que a abjeta bestialidade do yahoo é, afinal de contas, menos repugnante do que a perversão moral do homem europeu, que emprega sua “parcela de razão para aperfeiçoar seus vícios naturais e adquirir novos vícios que a natureza não nos havia dado” (V.C.H., p. 161).

As duas utopias, a de Foigny e a de Swift, são muito similares se nos ativermos, como fizemos, aos dados antropológico-teológicos, mesmo diferindo muito na estrutura social (igualdade absoluta na Terra Austral, sociedade de castas entre os cavalos) e a civilização material (relativamente elaborada nos primeiros, arcaica nos segundos). Tão antigas quanto o mundo, sem ato de fundação nem legislador, fixas em uma não-História imóvel, elas também eliminam tudo o que define a condição humana para o pensamento clássico, a saber, a maldição do pecado original e a imperfeição das paixões. Elas são, portanto, povoadas não por homens, mas por raças de seres perfeitos estrangeiros à natureza humana, o que Swift ressalta ironicamente dando-lhes uma identidade eqüina. A concepção cristã da História fundada no esquema Queda-Paixão-Redenção não poderia aplicar-se a eles. Daí a natureza a-religiosa da sociedade eqüina ou, para os austrais, o culto mudo rendido a um Deus Hipotético infinitamente distante percebido como um tipo de déspota sádico “cuja onipotência”, dizem eles, “consiste tanto em destruir-nos quanto em fazer-nos exceler” (T.A., p. 123). Plenos do sentimento interior de sua perfeição (“sabemos que somos muito nobres, muito perfeitos e dignos da eternidade”), os austrais são, todavia, mortais; a tentação da morte voluntária consiste em recuperar sua liberdade, voltando esta contradição contra o ser divino, responsável por ela.

Se a dimensão cristã é, portanto, banida das sociedades utópicas, ela se encontra por assim dizer inscrita no dispositivo narrativo pela função de mediação de dois mundos assegurada pelo viajante-narrador, mediador da Europa e da utopia, mediador também, à semelhança do Cristo, das duas naturezas, a realidade decaída da natureza humana, da qual ele é parte, e a natureza sobre-humana das utopias, cuja perfeição o fascina, mas em cuja altura é impossível viver.

A participação simultânea das duas naturezas faz do viajante um personagem cindido, destinado ora ao trágico, ora ao grotesco, em todo caso, sempre ao dilaceramento interior. A dimensão crística do personagem

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

40

jEAN-MIChEl RACAUlT

Sadeur, cujo destino terrestre se conclui precisamente num 25 de março, “dia da Encarnação do Filho de Deus” (T.A., p. 66), é tornada manifesta por tantos indícios que não se pode mais se satisfazer com a interpretação deísta ainda freqüentemente dada a este texto enigmático20.

Inversamente, Gulliver, recluso no retorno à sua estrebaria, é apenas um Cristo paródico arrebatado pela loucura misantrópica. Querendo-se moralista e mesmo profeta, unindo em si igualmente as duas naturezas – anatomicamente yahoo, mas espiritualmente houyhnhnm, ou esforçando-se para tornar-se houyhnhnm –, depositário da “Revelação” praticamente religiosa recebida dos cavalos perfeitos, Gulliver pensa-se investido de uma missão redentora junto a seus contemporâneos contida nos quatro volumes de suas viagens, uma espécie de nova mensagem evangélica: "Corrigir todos os vícios e todas as loucuras às quais os yahoos estão sujeitos, se sua natureza houvesse sido capaz da menor disposição à virtude e à sabedoria" (V.C.H., p. 71).

Grotesco itinerário, que já sugere os riscos corridos por freqüentar os mundos perfeitos. Mas são eles perfeitos? Seu grau de desenvolvimento material é, antes, modesto, sobretudo em Swift, e podemos julgá-los intelectualmente muito inferiores às sociedades reais: apesar de sua perfeição racional, ou talvez por causa dela, austrais e cavalos são incapazes de compreender noções européias que lhes são estrangeiras tais como o poder, a lei, o Estado, a mentira. Prisioneiros de numa lógica binária do verdadeiro e do falso, o pensamento da complexidade lhes é estranho: eles não conhecem a nuança, a ironia, a hipótese, nem, sobretudo, a ficção. De todas as artes, a do romance seria sem dúvida para eles a mais incompreensível: se há um mundo incapaz de sonhar utopias, este é sem dúvida o dos cavalos ou dos austrais21.

A intolerância com relação à alteridade é uma outra característica destas sociedades ditas perfeitas. O espírito holístico que as anima não se traduz apenas pela absorção do indivíduo no corpo social, mas também pela vontade de erradicação das outras formas de vida. Uma extraordinária agressividade marca as relações dos austrais com os animais ou os povos “meio-humanos” situados em suas fronteiras, contra os quais eles empreendem guerras de extermínio descritas por Foigny como horríveis carnificinas. Em Swift, o debate sobre a aniquilação da raça dos yahoo (“Os yahoos devem ser exterminados da face da terra”, V.C.H., p. 184) se inscreve em um imaginário do genocídio cujas inquietantes implicações foram muito bem analisadas por Claude Rawson (2001, ver principalmente p. 256-310).

É o narrador que, mais ou menos involuntariamente, coloca em evidência a face oculta de uma perfeição que o fascina, mas se revela progressivamente incompatível com sua própria natureza. Acolhido pelos austrais como “irmão” na base de um duplo mal-entendido, biológico e lingüístico (T.A., p. 88), Sadeur logo trai sua natureza “meio-humana” porque faz perguntas incômodas e se comporta escandalosamente, provocando por fim a própria condenação à morte e fuga, limitando-se em sua defesa a atribuir seus “crimes” aos “defeitos que provinham de [sua] natureza” (T.A., p. 151). O caso de Gulliver é ao mesmo tempo patético e grotesco: fascinado

20 Esta leitura – a mesma, sem entrar em detalhes, da excelente monografia de Pierre Ronzeaud (1982) – parece autorizada pelo discurso explícito dos austrais sobre si mesmos, notadamente pelas conversas entre Sadeur e o ancião austral, que comportam uma crítica radical das religiões reveladas resumindo os argumentos habituais do libertinismo erudito. Todavia, ela não leva em conta nem os elementos romanescos ligados ao desenvolvimento da intriga, nem o simbolismo crístico que se vincula ao personagem do viajante-narrador, nem as contradições internas da sociedade austral, de modo que esta aparente apologia do deísmo racionalista pode se inverter em uma crítica de suas insuficiências no plano humano, e, por que não, em uma reabilitação um tanto herética do cristianismo.

21 Esta incapacidade (que é um pouco a de todas as utopias) se deve, por um lado, ao grau de civilização arcaico das sociedades em questão, notadamente a dos cavalos, que “não tem a menor idéia dos livros nem da literatura” (V.C.H., p. 109). Mas ela resulta igualmente de uma concepção totalitária da perfeição colocada não como um horizonte teórico a ser atingido, mas como um estado concretamente realizado e, por isso, inalcançável. Sobre os modelos lógicos que regem o engendramento dos “universos possíveis” e sua sobreposição (imaginar universos possíveis cujos habitantes possam imaginar outros universos possíveis e assim sucessivamente), ver Nozick, 1974 (em particular o capítulo 10, “A Framework for Utopia”, p. 297-334).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

41

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

por uma sociedade que o rejeita, horrorizado pela constatação irrefutável de uma identidade que lhe é odiosa – infelizmente ele é um yahoo – ele mergulha no ódio de si mesmo e de seus semelhantes, consentindo na sentença de expulsão do mundo perfeito que lhe impingem, uma vez que ela é ditada pela Razão. Enviado de volta a seu mundo originário que para ele se tornara abominável, destinado a uma identidade desprezível a seus olhos, Gulliver, vítima da perigosa miragem da perfeição, rende-se à loucura e fracassa em tirar de sua experiência algo que lhe permita mudar seu próprio mundo, conforme ele confessa em sua carta-prefácio.

Tal esperança seria razoável? O corte radical entre as duas naturezas, humana e sobre-humana, se revela incompatível com a finalidade de exemplaridade comumente atribuída às utopias: para quem não é nem pré-adamita, nem cavalo, o modelo não é imitável, sendo inseparável da natureza de seus habitantes. E mesmo para estes a perfeição talvez seja um engano. Por saberem que são mortais e que é impossível “poder amar a si mesmo sem detestar a própria destruição” (T.A., p. 121), os austrais preferem a morte à vida, fato que justificam por um raciocínio irrefutável, tanto que no passado, “alguém” teve que lhes proibir o suicídio geral por meio de um decreto. Mas quem pode ter sido este “alguém” já que não existe Estado? Como conciliar esta decisão imposta e o princípio sagrado (T.A., p. 106) da ausência de qualquer regra? Como, enfim, conciliá-la com a própria existência dos austrais, cuja razão é o único guia, se é precisamente a razão que os conduz a condenarem o próprio fato de existir? E pode-se realmente qualificar de perfeito este universo de uma melancolia fúnebre onde a morte torna-se o único objeto de desejo?

Se acatarmos nossa interpretação do texto como alegoria pascaliana, veremos que La Terre Australe connue não oferece, portanto, nem um modelo a ser imitado – a coisa é impossível –, nem uma crítica da sociedade européia – ela existe, mas, sendo formulada do ponto de vista da perfeição, é pouco pertinente –, nem mesmo uma apologia do racionalismo deísta conforme a vulgata crítica – o discurso explícito vai efetivamente neste sentido, mas o roteiro narrativo sugere uma interpretação completamente diferente. Propomos que se veja em Foigny um exercício de teologia especulativa – poderíamos quase dizer de ficção-teológica, como há uma ficção-científica – e, ao mesmo tempo, uma utopia antropológica na qual seres sobre-humanos de pura razão, abstendo-se de praticar a impura arte da política, viveriam sem Estado nem governo. Há algo de fascinante e de terrível neste quadro do que poderia ser um mundo sem pecado, logo perfeito, mas privado igualmente da dimensão da esperança, da redenção e da salvação. O efeito paradoxal do culto da razão e da crítica da religião tradicional talvez seja reabilitar o cristianismo como, afinal de contas, resposta apropriada à realidade decaída da natureza humana.

*

As utopias clássicas podem, portanto, ser divididas em dois tipos. Na primeira configuração – a da Histoire des Sévarambes – o Estado serve-se da imperfeição da natureza humana voltando-a contra ela mesma a fim

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

42

jEAN-MIChEl RACAUlT

de corrigir tanto quanto possível seus efeitos ruins. No segundo tipo, em Foigny ou em Swift, a dimensão do político é tornada inútil pela natureza racional dos seus habitantes, o que só é possível saindo-se dos limites da condição humana. Todavia, esta perfeição realizada ficticiamente revela-se irrespirável para os seres imperfeitos, não sendo certo que ela possa ser vivida pelos próprios utopianos.

Esta clivagem se prolonga nos textos ulteriores com inflexões específicas. Assim, The Memoirs of Signor Gaudentio di Lucca, de 1737, do padre católico inglês Simon Berignton (1973), é conforme o modelo de Veiras, mas o culto solar nesta obra é visto como uma preparação à revelação cristã que se seguirá, não como um resultado final definitivo. Os megamicros do Icosaméron (1788), de Casanova (1986), retomam os dados de La Terre Australe connue – trata-se de um povo de pré-adamitas andróginos vivendo no antigo Paraíso terrestre, localizado no centro da terra –, mas seu espírito é muito diferente da utopia de Foigny. Encontramos ainda uma superposição bizarra dos dois modelos com os ajaoiens de Fontenelle (1768), que, como os austrais, “talvez não descendam de Adão, já que eles não provam a violência das paixões insensatas” (1970, p. 152)22, mas formam uma sociedade política como os sévarambes.

Podemos parar um instante para concluir sobre os dois episódios utópicos e Aline et Valcour23 (1795), nos quais Sade, que provavelmente leu Veiras e, em todo caso, leu Cleveland, do abade Prévost, retoma ao final do período em questão o modelo da utopia clássica, submetendo-o a diversas modificações e esboçando também sua superação em direção a novas problemáticas. Construídas em díptico, as duas micro-utopias de Butua, reino africano antropófago “cujos costumes e crueldades superam em depravação tudo o que já foi escrito ou dito” (A.V., p. 554), e da ilha de Tamoé, monarquia paternalista de aspecto superficialmente idílico, são aparentemente antagônicos mas em realidade convergentes.

No que concerne ao que ele chama de “perversidade natural do homem” (A.V., p. 658), Sade intensifica o pessimismo clássico, à parte o fato de que para ele as noções morais do bem e do mal perdem seu sentido ao considerarmos o todo e não as partes. A Natureza, da qual a natureza humana é apenas um de seus componentes, não é nem boa nem ruim. Ela se perpetua por um ciclo de geração e de destruição, autorizando a perversão e o crime que ela, conseqüentemente, legitima.

Fundada no despotismo político, no esmagamento dos mais fracos e na escravidão sexual da mulher, a utopia de Butua parece exprimir, além dos fantasmas pessoais de Sade, uma forma extrema da ideologia “feudal” que era a da reação nobiliária às vésperas da Revolução. Esta sociedade já demograficamente bastante enfraquecida corre sem arrependimento para a sua destruição pelo autogenocídio de sua própria população, perspectiva indiferente ao universo, já que o homem é inútil à natureza.

Defendendo o contrário dessas provocações escandalosas, a retórica virtuosa de Tamoé, tão convencional que só se pode julgá-la paródica, exprime praticamente as mesmas idéias. Soberano e legislador de Tamoé, o rei Zamé crê, como Sévarias, que “o homem é fraco” (A.V., p. 637), que o

22 A última página da edição de 1768 dá 1682 como data de conclusão desta obra póstuma.

23 Aline et Valcour ou le roman philosophique (Sade, 1990), cujas citações estão referidas com as iniciais A.V. foi escrito na Bastilha entre 1786 e 1788. O romance foi publicado somente em 1795 sob uma forma modificada que leva em conta os acontecimentos revolucionários.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

43

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

Estado e a religião podem, no entanto, frear seus vícios, que “este estudo [o estudo da natureza humana] é a primeira arte do legislador” (A.V., p. 657), que uma hábil legislação pode deter o gosto perverso da transgressão que incita a transgredir os interditos: ao invés de reprimir o crime, é preciso, portanto, penalizá-lo e considerar apenas a “felicidade geral” resultando do equilíbrio social das paixões e da livre satisfação dos desejos no plano global (A.V., p. 671).

Radicalizando a constatação pessimista da imperfeição da natureza humana, desligada, todavia, de suas raízes teológicas e colocada ao serviço de uma psicologia perversa, Sade reorienta a utopia veirasiana para direções novas: por um lado, antecipando a categoria d’“o Único”, segundo Stirner, uma exaltação extrema dos direitos do indivíduo que ele nomeia “isolismo”, ainda que a despeito da liberdade do outro e mesmo de sua existência; por outro lado, uma visão materialista e holística da natureza onde o funcionamento do todo supera o destino reservado às partes que o constituem.

Se a base antropológica da utopia clássica está sempre presente, a perspectiva é outra: ela anuncia o utopismo de Charles Fourier e o jogo harmônico das paixões, talvez também certo anti-humanismo niilista que pouco se importa com o destino da espécie humana, pois apenas a Natureza conta, e ela “não precisaria nem de nós, nem das classes de formigas ou de moscas” (A.V., p. 589). Mas eis-nos longe da utopia, qualquer que seja o sentido que lhe atribuamos.

Traduzido por Ana Cláudia Romano Ribeiro

Referências

Fontes primárias

BERINGTON, Simon. The Memoirs of Signor Gaudentio di Lucca. London: T. Cooper, 1737. [Reimpressão com introdução de Josephine Grieder, New York and London: Garland, 1973.]

CASANOVA di Seingalt, Giacomo Girolamo. Icosaméron ou Histoire d’Edouard et d’Elisabeth [...]. Prague: Imprimerie de l’École Normale, 1788. [Reimpressão Plan-de-la-Tour: Les Éditions d’Aujourd’hui, 1986.]

FOIGNY, Gabriel de. La Terre Australe Connue, c’est-à-dire la description de ce pays inconnu jusqu’ici, de ses moeurs et de ses coûtumes, par M. Sadeur. Vannes: J. Verneuil [na realidade Genève: Lapierre], 1676. [Reproduzido na edição de Frédéric Lachèvre, in: Les Successeurs de Cyrano de Bergerac. Genève: Slatkine Reprints, 1968.]

FONTENELLE, Bernard. Digression sur les Anciens et les Modernes [1688]. In: Rêveries diverses, opuscules littéraires et philosophiques. Paris: Dejonquères, 1994.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

44

jEAN-MIChEl RACAUlT

FONTENELLE, Bernard [atribuição incerta]. La République des Philosophes ou Histoire des Ajaoiens. Genève: [s.n.], 1768. [Reimpressão Paris: EDHIS, 1970.]

SADE. Aline et Valcour ou le roman philosophique [1795]. In: Oeuvres. Éd. Établie par Michel Delon. Paris: Gallimard, 1990.

SWIFT, Jonathan. A Voyage to the Country of the Houynhnms/Voyage au Pays de Chevaux. Éd. Bilingue de Georges Lamoine. Paris: Aubier-Flammarion, 1971.

VEIRAS, Denis. Histoire des Sévarambes, Peuples qui habitent une partie du troisième Continent communément appelé la Terre Australe. Paris: Claude Barbin e depois Etienne Michalet e o autor, 1677-1679. [Reimpressão fotográfica com prefácio de Raymond Trousson, Genève: Slatkine, 1979.]

Fontes secundárias

[Coletivo]. Modèles et moyens de la réflexion politique au XVIIIe siècle. Actes du colloque de Université Lilloise des Lettres, Sciences Humaines et Arts, du 16 au 19 octobre 1973. Vol. II: Récits de voyages et découvertes du monde. Vol. III: Utopies et voyages imaginaires. Villeneuve-d’Ascq: Publication de L’Université de Lille III, 1978.

FORTUNATI, Vita. "Fictional Strategies and Political Messages in Utopias". MINERVA, N. (org.). Per una definizione dell’utopia. Atti del Convegno Internazionale di Bagni di Lucca, 12-14 settembre 1990. Ravenna: Longo, 1992.

FORTUNATI, Vita; TROUSSON, Raymond (orgs). Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme. Paris: Champion, 2008.

GANDILLAC, Maurice; PIRON, Catherine (org.). Le discours utopique. Actes du Colloque de Cerisy, 23 juillet-1er août 1975. Paris: 10/18, 1978.

HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne, 1680-1715. Paris: Fayard, 1961.

KUMAR, Krishan. Utopia and Anti-Utopia in Moderns Times. London: Blackewell, 1991.

MENZIÈS, Ruth. Les Voyages de Gulliver de Jonathan Swift et la tradition française du voyage imaginaire: parcours intertextuels et identité générique. Thèse dactylographié, Université de La Réunion, 2 vol., 2004.

MINERVA, N. (org.). Per una definizione di utopia. Atti del Convegno Internazionale di Bagni di Lucca, 12-14 settembre 1990. Ravena: Longo, 1992.

MORTON, A. L. L’utopie anglaise [1952]. Trad. J. Vaché. Paris: Maspéro, 1964.

MÜHLL, Emmanuel von der. Denis Veiras et son Histoire des Sévarambes. Paris: Droz, 1938.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

45

dA IdéIA dE PERfEIçãO COMO ElEMENTO dEfINIdOR dA UTOPIA

NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopia. Oxford: Blackwell, 1974.

RACAULT, Jean-Michel. L’utopie narrative en France et en Angleterre (1676-1761). Oxford: The Voltaire Foundation, 1991.

RACAULT, Jean-Michel. Nulle part et ses environs. Voyage aux confins de l’utopie littéraire classique (1657-1802). Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 2003.

RAWSON, Claude. God, Gulliver and Genocide. Barbarism and the European Imagination. Oxford: Oxford University Press, 2001.

RONZEAUD, Pierre. L’Utopie hermaphrodite: La Terre Australe Connue de G. de Foigny. Marseille: Publications du C.M.R. 17, 1981.

RUYER, Raymond. L’Utopie et les utopies. Paris: P.U.F., 1950.

SUVIN, Darko. "Pour une définition de l’utopie comme genre littéraire". In: Pour une poétique de la science-fiction. Études en théorie et en histoire d’un genre littéraire. Montréal: Les Presses de l’Université du Quebéc, 1977.

TROUSSON, Raymond. "L’utopie en procès au siècle des Lumières". In: D’utopie et d’utopistes. Paris: L’Harmattan, 1998.

TROUSSON, Raymond. Voyages au Pays de Nulle Part. Histoire littéraire de la pensée utopique. Bruxelles: Éditions de l’Université Libre de Bruxelles, 1999.

WALSH, Chad. From Utopia to Nightmare [1962]. Westport (Connecticut): Greenwood Press, 1977.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Campanella, l’immaginazione utopica al servizio del cesaropapismoCarlos Eduardo Ornelas BerrielUniversidade Estadual de Campinas

Grupo de Estudos Renascimento e Utopia

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Resumo

Tommaso Campanella è, indubbiamente, l’autore dell’utopia più sintetica e che meglio esprime gli intricati problemi della Riforma e della Controriforma. Questa utopia è anche la sua opera politica più conosciuta, la Civitas Soli, dove egli espone la sua repubblica ideale, basata su un’interpretazione nettamente personale della filosofia della natura di Bernardino Telesio. C’è in essa una polis teocratica e allo stesso tempo aristocraticamente comunista. La sua struttura è ampia, complessa, audace, e per capirla bisogna collegare nozioni funzionali di quel periodo storico – pensiamo alla crisi religiosa, con la riordinazione della Chiesa Cattolica nel processo del Concilio di Trento, alla consolidazione della monarchia spagnola sotto l’assolutismo, alle guerre di religione in Francia, al passaggio del mercantilismo alla manifattura e, infine, pensiamo alla rivoluzione scientifica.

Palavras-chave

Utopia, Controriforma, Riforma, cesaropapismo.

Carlos Eduardo Ornelas Berriel é professor de História Literária no Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/Brasil), onde coordena o projeto Renascimento e Utopia, dirige o U-TOPOS - Centro de Estudos Utópicos e é responsável pela coleção de livros "Work in Progress". Nos últimos anos tem trabalhado principalmente com os seguintes temas: tragédia grega, Renascimento, utopia, relato de viagem, ficção científica e literatura brasileira. Tem se dedicado particularmente à tradução e ao estudo das utopias italianas do Cinquecento e à história do conceito de utopia. É editor da revista MORUS – Utopia e Renascimento. Escreveu Tietê, Tejo e Sena. A obra de Paulo Prado (Campinas: Papirus, 2000) e organizou o volume Mario de Andrade Hoje (São Paulo: Ensaio, 1989).

48

CARlOS EdUARdO ORNElAS BERRIEl

Tommaso Campanella è, indubbiamente, l’autore dell’utopia più sintetica e che meglio esprime gli intricati problemi della Riforma e della Controriforma. Questa utopia è anche la sua opera politica

più conosciuta, la Civitas Soli, dove egli espone la sua repubblica ideale, basata su un’interpretazione nettamente personale della filosofia della natura di Bernardino Telesio. C’è in essa una polis teocratica e allo stesso tempo aristocraticamente comunista. La sua struttura è ampia, complessa, audace, e per capirla bisogna collegare nozioni funzionali di quel periodo storico – pensiamo alla crisi religiosa, con la riordinazione della Chiesa Cattolica nel processo del Concilio di Trento, alla consolidazione della monarchia spagnola sotto l’assolutismo, alle guerre di religione in Francia, al passaggio del mercantilismo alla manifattura e, infine, pensiamo alla rivoluzione scientifica.

Uno degli aspetti più traumatici degli inizi dell’età moderna è l’ostilità della Chiesa relativa alle scoperte scientifiche dei secoli XVI e XVII. Neutrale verso queste scoperte fino al Concilio di Trento, la Chiesa vede nella rivoluzione scientifica una delle matrici generatrici del Protestantesimo, perché era quella la base di un pensiero che emancipava la conoscenza scientifica della cultura religiosa e metteva – a partire dall’umanesimo di Pico della Mirandola e di Erasmo – l’uomo come un analogo di Dio, pienamente capace di stabilire un contatto sufficiente con Dio e con la sua opera, senza l’intervenzione di un intermediario – della Chiesa. Tutto sommato, la rivoluzione scientifica in corso parteva dall’assioma empirico secondo il quale la verità della scienza era ottenuta dai sensi umani, sede dell’esperienza, spostando il criterio della verità scientifica della Rivelazione alla struttura sensitiva materiale dell’uomo. Per conseguenza, la scienza si slega del campo teologico, il che vuol dire, in pratica, che toglie l’autorità della Chiesa in questo ambito.

In principio non c’era un’opposizione, bensì un’emancipazione della ragione nei confronti della fede, però l’opzione cattolica di trasformare in opposizione quello che era soltanto emancipazione ebbe luogo nell’ambito del Concilio tridentino, e produsse gravi conseguenze – essendo la più evidente, la violenta persecuzione agli scienziati, con gli episodi violenti conosciuti da tutti. Occorre che il processo della Riforma sottrae al potere della Chiesa una parte sostanziale dell’Europa, rimanendo senza ambiguità nel circolo cattolico soltanto in Portogallo, Spagna e Italia.

Tra le opzioni fornite dalla realtà di quel momento, prevalse l’alleanza strutturale tra la Chiesa Romana e le metropoli iberiche, alle prese con le difficoltà di colonizzazione e dominio del Nuovo Mondo. In una visione sintetica, dopo la Riforma, l’Europa si divide fondamentalmente in due blocchi: 1) le nazioni cattoliche, che sono allo stesso tempo metropoli delle colonie tropicali e che si pietrificheranno nel regime del patto coloniale, e 2) le nazioni protestanti, sprovvedute ancora di un impero coloniale e che, col passar del tempo, attiveranno le loro economie verso la manifattura – il che le renderà più moderne e aperte per la futura industrializzazione.

La Chiesa tridentina sarà appunto l’espressione del patto con gli stati iberici, del quale dipende e ne fa parte – ovvero, la Chiesa si mescola

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

49

CAMPANEllA, l'IMMAgINAzIONE UTOPICA Al SERvIzIO dEl CESAROPAPISMO

allo stato iberico. Il destino di Roma rimane sottomesso al processo del capitalismo mercantilistico, e la conversione del pagano è l’apporto romano per la costituzione del impero coloniale; gli affreschi del soffitto della Chiesa di Sant’Inazio di Roma illustrano questo fatto. La cosiddetta ostilità cattolica verso le scienze e tecniche ha avuto un ruolo centrale in questo quadro, essendo fomentata dai gesuiti, tra altri settori decisivi della Chiesa. Quello che vogliamo indicare è che c’è stato, consapevolmente, una interferenza dei gesuiti affinché ci fosse la giunzione del destino della Chiesa al patto coloniale, a questa forma particolare del capitalismo mercantilistico iberico, e che porterebbe all’incorporazione di nuovi territori, occupati dalle missioni gesuitiche. E questa opzione portava in sé l’esclusione della manifattura, già conessa alla razionalità borghese, come opzione egemonica per il circuito economico cattolico. Il risultato è una Chiesa Missionaria, gesuitica, contraria alla scienza e attiva nei processi inquisitoriali. Il contrario, il che non è successo, sarebbe una Chiesa razionalistica, che collegherebbe il suo destino a quello della borghesia manifatturiere.

Tutto questo quadro era già maturato quando la Città del Sole è stata scritta (1602). L’opera di Campanella, tutta coerente e rivolta a uno stesso scopo, cercava la ricostruzione del potere della Chiesa, e la riforma tridentina pareva insufficiente non soltanto per la riconduzione del mondo al dominio della Chiesa, ma impropria alla riabilitazione di Roma come entità efficace a questa meta. In questa direzione, Campanella irreggimenta l’immaginazione sociale propria dell’utopia per fare la critica immanente della chiesa tridentina e sostenere una completa revisione dei pressuposti controriformistici. Essenzialmente, Campanella vuole conciliare fede e ragione attraverso la riconduzione della scienza dentro la Chiesa – azione indispensabile per salvaguardarla dall’irrilevanza imminente dinnanzi agli Stati che assorbivano la rivoluzione scientifica, e che in poco tempo sarebbero diventati centri egemonici. Più concretamente: Campanella vuole che l’espressione della fede costruita dalla Controriforma ceda alle costruzioni della rivoluzione scientifica, per, in questo modo, conquistare l’impero del mondo. Questo avrebbe significato un cambiamento radicale della politica della Chiesa, che disegnava nell’alleanza strutturale con le metropoli iberiche il senso più profondo della sua nuova identità. L’impero iberico, per riprodursi, non richiedeva i punti più avanzati della rivoluzione scientifica in corso, e si stabiliva sulla direttiva gesuitica della Propaganda Fide. La filosofia di Bernardino Telesio avrebbe permesso la fusione tra la fede romana e la rivoluzione scientifica, poiché ammetteva l’esistenza del sacro nel mondo, e allo stesso tempo creava le basi filosofiche della scienza moderna. Un’unione intima tra ragione e fede è possibile – il che significa dire che la Chiesa potrebbe allearsi allo sistema manifatturiere moderno, tipico del Nord dell’Europa. L’opzione gesuitica che prevale, però, è tutt’altro. Quello che vuole Campanella, infine, è salvare la Chiesa di se stessa, correggerla della via che aveva preso. Campanella dimostra che il potere temporale della Chiesa non si oppone alle leggi della natura, ma lo trascende. La sua lotta è, invece, contro il luteranesimo, ma questa

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

50

CARlOS EdUARdO ORNElAS BERRIEl

asserzione pecca nella generalità, e non si accorge della sua lotta principale – finalmente, l’antiluteranesimo non lo distingueva delle legioni della Chiesa combattente, nemmeno avrebbe spiegato la sua prigione e tortura nei carceri inquisitoriali. La sua lotta specifica era contro l’opzione vittoriosa dentro la propria Chiesa, che si desiderava trionfante contro le eresie e contro le tenebre primitive, missionaria e apostolica, la versione controriformista della politica coloniale iberica. Il combattimento di Campanella è all’interno della Chiesa, contro la forma adoperata dalla politica tridentina, e sua lotta contro Lutero è di secondo ordine. È questa lotta che indispone contro di lui l’Inquisizione.

Già nella gioventù Campanella legge De rerum natura iuxta propria principia di Bernardino Telesio, e questa influenza sarà perenne e strutturante sul suo pensiero, e determinante per l’elaborazione della Città del Sole. Tutta l’opera telesiana gli si è rivelata coerente e liberatrice. Campanella scopre in Telesio l’esistenza di un metodo razionale di appropriazione della realtà tangibile, una fisica interamente naturalistica e una via per arrivare alla verità mediante l’osservazione della natura. Già come suo discepolo, scrisse nel 1590 la Philosophia sensibus demonstrata, un testo eterodosso che sottolineava il suo allontanamento dalle regole vigenti nella Chiesa. Con Telesio (1509-88) sorge, nel Rinascimento, un naturalesimo rigoroso, che vede nella natura soltanto delle forze naturali, escludenti della metafísica, che devono essere spiegate soltanto per i loro principi intrinsechi. Nella sua opera massima, De rerum natura iuxta propria principia, lui espose la sua convinzione secondo la quale gli uomini possiedono la facoltà di conoscere tutto quello che valga la pena di essere conosciuto della natura. Questo principio filosofico è costituito nei momenti iniziali della manifattura, essendo evidente l’opportunità e la logica storica di queste idee. Il pensamento telesiano deve essere considerato un’espressione del naturalesimo empirico, secondo il quale la natura è un mondo in se stesso, retto da principi intrinseci e che esclude qualsiasi forza metafisica. La natura è completamente indipendente dall’immaginazione oppure dal desiderio dell’ uomo; si sottrae ad ogni arbitrio e deve essere riconosciuta da quel che è. Telesio ha fatto dalla filosofia della natura quello che Machiavelli fece della politica: una sfera di riflessione emancipata dalle altre sfere di pensiero, come la Morale e la Religione. L’obiettivo primordiale di Telesio è quello di riconoscere un’obbiettività nella natura, perchè le proprie cose, quando correttamente osservate, manifestano la loro natura e le loro caratteristiche. Questo principio spiegativo ha validità universale, ossia, la natura è solo una, in tutti i tempi e luoghi. L’uomo possiede la facoltà di conoscere la natura perché lui stesso è natura; i sensi sono efficaci mezzi di conoscenza e l ’uomo come natura è sensibilità. Quindi, quello che la natura rivela coincide con quello che i sensi testimoniano: dunque, la sensibilità è l’auto-rivelazione della natura in quella sua parte che è l’uomo. Sarà questo il principio che Galileo adotterà e sosterrà come tesi fino alle sue ultime conseguenze.

Per Telesio l’azione di Dio non può essere restrita alla spiegazione di un fatto determinato, oppure a un determinato aspetto dell’Universo: Dio deve essere riconosciuto come assolutamente universale e presente in tutti

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

51

CAMPANEllA, l'IMMAgINAzIONE UTOPICA Al SERvIzIO dEl CESAROPAPISMO

gli aspetti dell’universo. Dio è universale come la natura, che da lui avviene e lo esprime in quanto forma e principio.

Secondo Telesio, esistono due anime distinte nell’uomo: 1) uno spirito corporale e mortale, prodotto nel momento stesso della

generazione fisica, essendo lo stesso degli animali e delle piante. Questo spirito esisteva da se stesso, sprovveduto di finalità, essendo la sua prima funzioni la sensazione. Le cose esterne attuano su di lui e lo modificano, e questo spirito è cosciente di questi fatti, preservandoli nella memoria, e

2) un’anima superiore, divina e immortale, infusa da Dio e riservata all’uomo, e che possiede una facoltà diversa di pensiero.

Questo spinge al fatto che l’uomo possieda un doppio desiderio e doppio intelletto: a) soltanto l’uomo ha la facoltà di percepire le cose divine, poiché possiede un’anima superiore; e b) alla stessa forma degli animali, l’uomo percepisce gli oggetti sensoriali, perché possiede lo spirito corporale.

È infatti a causa di questo doppio desiderio e intelletto, e della lotta tra loro, che l’uomo possiede il libero arbitrio. Il ponto di massimo collegamento di Campanella alla fisica di Telesio sta nella accettazione della supremazia della conoscenza sensibile, prodotto dell’anima superiore, dono di Dio. Come Telesio, Campanella considera che l’intelletto è anche sensibilità.

Campanella elaborò, già nelle sue prime opere, un ambizioso e audace progetto. Con la Riforma luterana, si è approfondita la separazione tra potere spirituale e potere temporale, e Campanella si insorge contro questo fatto. Nella sua concezione, il mondo Cristiano avrebbe dovuto conoscere un unico governo, che sarebbe eseguito da un’autorità che fosse allo stesso tempo soberano e sacerdote – logicamente, il papa. Lo stabilimento di una ierocrazia diventa sua causa. L’ideale universalista di Campanella nasce già maturo nelle sue manifestazioni, e il suo primo testo politico mette già le questioni che per mezzo secolo occuperanno la sua mente: lo stato d’innocenza primordiale della natura, la caduta di questa condizione – che portò tutti i mali al mondo – la speranza in una rigenerazione cosmica che riconduca l’umanità al secolo d’oro quando, annulati gli antagonismi, sarà istituita un’unica monarchia ecumenica, sacerdotale e Cristiana, che governerà il mondo in un’età di pace e beatitudine. Sono desideri interamente intrinseci alla concezione dell’universalesimo cattolico; il peccato di Adamo rimane come l’origine della caduta che distrusse l’idilio paradisiaco, e la venuta di Cristo rimane acettata come redenzione, tuttavia, questa redenzione continua in stato potenziale, non essendo subitamente efficace nel piano politico-sociale senza un’efficace collaborazione dell’uomo. Per accelerare il predicato avvento di questo avvenimento aureo, annunciato dalle Scritture, Campanella si coinvolge nella rimozione degli ostacoli costituiti dagli accordi politici internazionali e nella correzione delle deviazioni della Chiesa, che tardava a rinovarsi e purificarsi dagli eccessi per stare all’altezza del governo universale da lui predicato. In termini pratici, Campanella diffende che un potente soberano europeo metta le sue risorse economiche, politiche e militari per rendere possibile la conquista di questa

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

52

CARlOS EdUARdO ORNElAS BERRIEl

monarchia universale e metterla in seguito ai piedi del trono pontifício romano. Campanella propone questa missione primo a Felippe II, re di Spagna (1595) e, 40 anni dopo, al re di Francia Luiggi XIV e al Cardinale Richelieu. La sua proposta di cesaropapismo non è, però, la ripresa della tesi medievale dell’impero universale, il che sarebbe un’interpretazione mistificatrice dell’ambiente storico e intellettuale dell’autore, come viene già detto da Benedetto Croce.

Benché il punto di partenza di Campanella sia la filosofia naturale di Telesio, il suo proprio pensiero aggiunge elementi magici e metafisici che sono completamente estranei all’opera telesiana. Nel corso del suo lavoro, Campanella finisce per trasformare De rerum natura in una specie di cosmogonia teologica, slegata dell’ obiettivo di chiarire i principi autonomi della natura e rivolta alla connessione tra questi principi e i suoi obiettivi teologici. Campanella vede nella natura la ripresentazione di Dio, e nelle forze che la muovono il campo di azione dei miracoli e degli incantesimi dei magi. Così, il suo interesse scientifico è quasi nullo e il suo obiettivo è prendere d’assalto la natura, e non capirla al modo di Telesio.

Campanella compose la Città del Sole per spiegare il suo progetto politico a partire dalla sua teoria. Sua polis filosofica riproduce il disegno razionale di Copernico, configurando il sistema solare con sette zone concentriche e circolari, con il nome dei sette pianeti. Nella concezione originale la Città del Sole occupava tutta la terra, e soltanto più tardi si è ridotta ad una sola città. La vita dei solariani è completamente organizzata dalla ragione, il che significa nella pratica che loro vivono secondo i dettami della metafisica campanelliana: la sua religione è simile a questa metafísica e si differenzia del cristianesimo dalla assenza di Rivelazione, dunque dell’integrazione con il soprannaturale che l’insegnamento razionale esige. Siccome non conobbero la Rivelazione, cioè, la venuta di Cristo, i solariani non credono nella Trinità, ma in un Dio unico, rappresentato dal Sole vivificante. Per Campanella, il cristianesimo “non aggiunge niente alla legge naturale, tranne i sacramenti”, e che per questo “la vera legge è la Cristiana e che, soppressi gli abusi, sarà signora del Mondo”. I solariani, “che seguono soltanto la legge della natura, sono abbastanza vicini al cristianesimo”. Insomma, nella Città del Sole, la fede si rivolge a un Dio creatore, rivelato dallo spettacolo della natura e percepito dalla ragione. La Città del Sole diventa in questo modo la “trovata filosofica per dimostrare che la verità del Vangelo è in conformità con la natura”. I solariani, che vivono secondo la ragione, sono “quasi catecumeni della vita cristiana” inseguendo soltanto la legge della natura.

Nel diffendere i concetti della Città del Sole, Campanella sostiene di voler in quest’opera presentare una repubblica non fondata da Dio, ma dalla filosofia e dalla ragione umana, per dimostrare che la verità del Vangelo è in conformità alla ragione umana. La religione naturale si è fondata, così, sulla ragione e scoperta dalla filosofia. In realtà, Campanella vide nella religione naturale la norma che permette di valutare le religioni storiche, di scegliere tra esse quella vera e ricondurla al suo vero principio, sopprimendo gli abusi deleteri. Giudica così che la religione naturale, che

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

53

CAMPANEllA, l'IMMAgINAzIONE UTOPICA Al SERvIzIO dEl CESAROPAPISMO

è innata, è sempre vera, mentre la religione costruita è imperfetta e può essere falsa. Tuttavia, non considera possibile che la religione innata possa esistere senza la religione costruita. La religione naturale è propria a tutti gli esseri che, essendo originari di Dio, tendono a ritornare da lui. Ci si trova un parallelo con i postulati telesiani riguardanti alla doppia anima degli uomini. Come dicemmo prima, poiché possiede lo spirito corporale della stessa forma degli animali, l’uomo percepisce gli oggetti sensoriali – e è in questo modo che si appropria della religione innata. Invece la religione acquisita, l’unica che possiede merito e valore morale, è esclusiva dagli uomini, perché soltanto l’uomo ha la facoltà di percepire le cose divine dato che possiede un’anima superiore. Vediamo così che, senza l’appropriazione della fisica di Telesio, Campanella non avrebbe costruito la sua religione naturale, e, in conseguenza, la Città del Sole. La religione innata, dunque, non possiede valore tranne per la sua relazione con la religione costruita, di cui costituisce, logicamente, il fondamento.Campanella trova nella religione innata il fondamento e la norma di tutte le religioni positive per promuovere il ritorno del genere umano, diviso in sette religiose diverse, all’unica vera religione. La Città del Sole dimostra che la congiunzione tra fede e ragione, tra Chiesa e manifattura, porterà razionalmente al cesaropapismo. In sintesi, la strada prodotta dalla simbiose romana con le metropoli iberiche, incrementata dall’azione gesuitica, resero fede e ragione poli antagonici e irreconciliabili, e portò come risultato la chiusura della Chiesa al mondo moderno – rinchiusa nel suo particolarismo, avversa all’universalità della ragione scientifica. La Città del Sole è l’esposizione di come potrebbe essere il mondo senza l’alleanza controriformistica della Chiesa con l’Iberia: universalmente cristiano e razionale, e unificato sotto il trono di Pietro. L’utopia di Campanella, essendo l’unione tra ragione scientifica e fede, è per conseguenza un misto di modernità e tradizionalismo. Campanella non è un addetto della Controriforma, bensì un riformatore esoticamente razionale. La Città del Sole è un’utopia peculiare, stonante in rapporto alle espressioni utopiche già comuni, giacché non possiede intenzioni critiche nemmeno satiriche, non propone ipotesi oppure modelli, e non cerca di persuadere, tutt’altro, si constituisce come una previsione scientifica di un avvenimento certo e fatale, destinato a compiersi nel mondo reale quando le congiunzioni saranno propizie. Mette insieme, così, con spaventosa energia, profetismo e filosofia naturale. La sua utopia è una somma di razionalità scientifica e irrazionalità profetica. E forse innesca precocemente la serie delle utopie propositive.

Traduzido por Ana Cláudia Romano Ribeiro

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

La nuova linea dell'utopiaArrigo ColomboUniversidade di Lecce

Centro Interuniversitario di Ricerca sull'Utopia (Itália)

Resumo

Parola e concetto di utopia sono ancora quasi universalmente intesi in senso letterario o, diciamo meglio, come progetto di un autore; progetto fantastico, che presenta una società ideale e perfetta, perciò irreale, impossibile a realizzarsi. Questo è il concetto prevalente nella storia e critica dell’utopia, quindi nella concezione corrente anche dotta. Immaginario, ideale, irreale sono le categorie dominanti. Questa concezione è parziale, e in fondo falsa per la stessa utopia letteraria. Si veda Platone, che impegna gli ultimi decenni della sua vita per la realizzazione del suo progetto; si veda Moro; e molti altri autori, in particolare gl’“ingegneri sociali” dell’800. L’utopia storica parte dal principio che il progetto di un autore non può trasformare la società, ma solo un movimento, una serie di movimenti che lungo la storia la vanno trasformando; ricostruisce così quello che può dirsi il progetto dell’umanità e l’iter della sua realizzazione in corso, la costruzione di una società di giustizia.

Palavras-chave

Utopia letteraria, utopia storica, progetto dell’umanità.

Arrigo Colombo é filósofo e leciona na Universidade de Lecce na Itália. Em 1982, fundou com um grupo de alunos o Centro Interuniversitario di Ricerca sull’Utopia, um grupo de pesquisa que, em quinze anos, inovou radicalmente o sentido da utopia como “projeto da humanidade para sua libertação” e “processo de construção de uma sociedade de justiça”, levando também a uma nova compreensão, altamente positiva, da história humana. Considerando a visão alcançada como uma mensagem para a humanidade, é um dos fundadores, em 1998, do Movimento per la società di giustizia e per la speranza. Suas obras mais importantes são L’utopia. Rifondazione di un’idea e di una storia (Bari: Dedalo, 1997), Il Diavolo. Genesi, storia, orrori di un mito cristiano che avversa la società di giustizia (Bari: Dedalo, 1999), La società amorosa. Appunti a Fourier per una revisione dell'etica amorosa e sessuale (Bari: Dedalo, 2002). Anteriormente publicou Il destino del filosofo (Manduria: Lacaita, 1972) e Le società del futuro. Saggio utopico sulle società postindustriali (Bari: Dedalo, 1978).

56

ARRIgO COlOMBO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

1. La falsità del concetto corrente di utopia

Finora ha prevalso una concezione dell’utopia che la considerava come un progetto mentale e fantastico di città e di stato, invenzione letteraria e filosofica; progetto alieno dalla realtà e dalla storia; progetto ideale e quindi opposto al reale; progetto di una società perfetta e quindi irrealizzabile perché nulla di perfetto può essere realizzato dall’uomo.

Che anzi, secondo molti studiosi, quando si realizzava, quel progetto diventava oppressivo e funesto per l’umanità; proprio perché la sua illusoria perfezione lo rendeva coercitivo; come nel caso del modello sovietico, ritenuto dai più la realizzazione forzata di un’utopia, e che ha funestato per oltre settant’anni l’umanità, coinvolgendo alcune grandi nazioni, come la Russia e la Cina. Questo modello, nella sua forzatura non ha resistito al tempo, e infatti è crollato; e questo crollo è stato visto da quegli studiosi come la fine dell’utopia: «l’utopia è morta» hanno detto e scritto. Ma si sbagliavano perché quel modello non era utopico ma distopico; era l’opposto dell’utopia, una società perversa o un’utopia che si era pervertita nel riflusso del dispotismo che ha dominato per millenni l’umanità.

Questa linea del progetto fantastico e irreale è prevalsa non solo nel pensiero corrente, per cui di una cosa «bella ma impossibile» si dice «è un’utopia»; ma anche nel pensiero dotto, nella maggior parte degli studiosi sia letterati che filosofi o sociologi o politologi.

Questa concezione è falsa per la stessa utopia letteraria e filosofica.La quale non è pura invenzione avulsa dalla realtà e dalla storia. A

cominciare da Platone che, avendo concepito una città retta dalla saggezza, quindi da uomini saggi, o da un principe saggio (come riteneva fosse Dione di Siracusa), compie tre viaggi in Sicilia nell’intento di attuarvelo; e corre pericoli seri, ed è persino venduto schiavo sul mercato di Taranto, dove lo salva il pitagorico Archita che reggeva quella città.

O anche da Thomas More, che è tutt’altro che avulso dalla storia, tanto che dedica la prima parte del suo piccolo prezioso libro ad un’analisi impietosa dell’Inghilterra del suo tempo, l’analisi di una società «iniqua», com’egli dice (1965, p. 240). Cui contrappone il suo progetto di una società di giustizia; e dice chiaramente che l’abolizione della proprietà privata è «la sola e unica via per il pubblico benessere»; per cui, se ad essa non si porrà mano, «graverà sempre sulla parte di gran lunga maggiore e di gran lunga migliore dell’umanità [che è il popolo] il peso dell’indigenza, il fardello angoscioso e inevitabile del dolore» (p. 104).

Certo, nella grande mole di progetti, in quello che nella modernità diventa un genere letterario, il romanzo utopico, vi è di tutto: vi sono progetti puramente fantastici, ludici, satirici, conservatori; o anche bizzarri e perversi. Ma dovremmo considerarlo un fatto marginale, o una degenerazione; non il carattere costitutivo dell’utopia filosofico-letteraria.

Né in tal senso può essere assunta la parola utopia – tanto bistrattata – quasi che il non-luogo fosse appunto un luogo fantastico e irreale; perché

57

lA NUOvA lINEA dEll''UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

il suo senso è quello di una «società che non esiste», o non esiste «ancora», in quanto le società esistenti sono «inique». Mentre essa è la società «buona», giusta, come è spiegato nell’exásticon che sta tra i materiali introduttivi (più che utopia, dovrebbe chiamarsi eutopia); la società che Moro «desidera», anche se «non spera» possa realizzarsi in un’età prossima e prevedibile («desidero, più che spero», p. 246). Ma che in realtà inizierà a costruirsi dopo poco più di un secolo, con la Rivoluzione inglese del lungo Parlamento; più presto di quel che Moro potesse prevedere.

Né può generalizzarsi il carattere di perfezione, sino a dire che l’utopia filosofico-letteraria è per se stessa un progetto perfetto, che costringe nel suo disegno la società, che blocca la storia la quale lì finisce; e che dunque è costrittivo, ma insieme irreale.

La parola «perfetto» compare talora, già in Platone, che parla di una città «compiutamente buona», di una costituzione che sotto l’azione del filosofo «si fa compiuta, perfetta»; ma dice anche «la migliore possibile» (Repubblica, IV, 427e; VI, 499a; IV, 434e). Perché è evidente che per lui perfetta è solo l’idea divina, contemplando la quale il saggio costruisce una città che è necessariamente solo un’approssimazione a quella. Anche se oggi noi diremmo che «la migliore possibile» è espressione eccessiva e presuntuosa.

E lo stesso diremmo per Moro, che già nel titolo parla dell’«ottima forma di stato», e in seguito di una forma tanto felicemente concepita che, «per quanto all’umana congettura è dato presagire, durerà in eterno». E però alla fine farà egli stesso una serie di rilievi e critiche alla costituzione utopiana; la quale è dunque tutt’altro che perfetta.

In realtà queste espressioni devono essere collocate nella tradizione ellenica che è alla ricerca della «costituzione migliore». Se poi la trovi è un altro problema. E del resto la più parte degli autori è consapevole del limite del loro tentativo e progetto.

Anche l’idea di progetto ideale non ha senso, perché l’ideale è solo un termine di tensione e di approssimazione, come in una curva asintotica; ci si approssima ma non può mai raggiungerlo. Non esistono progetti ideali per la loro stessa finitudine umana, e per la situazione individua e storica che li condiziona.

Il principio fraterno evangelico è un ideale e una norma, la più alta e la più comprensiva, «in cui stanno l’intera legge e i profeti»; una norma cui si cercherà di adeguare l’azione, in certa misura. La comunità fraterna evangelica è un ideale e insieme un progetto generalissimo, che si dovrà tradurre in termini concreti; compito cui la società e chiesa cristiana ha mancato, soggiacendo piuttosto al modello gerarchico e imperiale romano in cui si è immessa.

L’idea dell’utopia come progetto «immaginario» compare già nei dizionari del ‘600 e del ‘700, e già s’impone; ma viene poi fortemente divulgata dal Manifesto del partito comunista, nel paragrafo dedicato al «socialismo e

58

ARRIgO COlOMBO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

comunismo critico-utopistici»; alle «utopie sociali» come fantasia e sogno; come escogitazione e invenzione mentale. Anche negl’«ingegneri sociali» – Saint-Simon, Owen, Fourier – di cui gli autori hanno una certa stima; i quali però non avevano compreso che la società non poteva essere trasformata con falansteri o comunità icariane, che la sola vera forza trasformatrice era il proletariato.

2. La nuova linea dell’utopia, il progetto dell’umanità, la costruzione di

una società di giustizia

La nuova linea è quella del progetto dell’umanità; non più né tanto il progetto degli autori, dei «maestri sognatori», come li chiama Miguel Abensour in un suo saggio (Le procès des maîtres rêveurs, 2000); quanto il progetto dell’umanità, progetto di liberazione dal «blocco della società ingiusta» che affligge e deprime l’umanità lungo i millenni: despotismo, guerra, dominio dei popoli, formazione degl’imperi; schiavitù, asservimento della donna, ignoranza sfruttamento espropriazione depressione oppressione del popolo nella povertà e nella dipendenza da parte della ricchezza dei pochi. Progetto di una società di giustizia, di una società fraterna. Progetto elaborato e portato da movimenti di popolo.

Punto di partenza di questa linea può essere considerato il principio posto nello stesso Manifesto, là dove risulta che una società non può essere trasformata dal progetto di un autore, ma solo da un movimento che la vada trasformando dall’interno. Che per gli autori è in quella fase il proletariato operaio.

La linea si sviluppa con alcuni maestri del ‘900. Karl Mannheim anzitutto, il primo a riconoscere – in Utopia e Ideologia, Bonn 1929 – l’utopia come fattore della storia; fattore critico-eversivo, quindi propulsivo; mentre l’ideologia è il fattore di conservazione che giustifica e supporta il potere. Ernst Bloch – in particolare con Il principio speranza, che è anche una raccolta congesta di materiali utopici – va oltre e riconosce l’utopia come il processo stesso della storia; anzi – nel suo materialismo dialettico – come il processo dell’intera evoluzione cosmico-umana che da forme semplici procede verso forme più complesse, fino a raggiungere l’uomo e la società umana, evolvendola poi e liberandola dall’alienazione, dalla contraddizione, su su fino a quella ch’egli chiama con termine ancora anodino «democrazia pura».

L’intuizione blochiana, che alla storia impone lo schema del materialismo storico-dialettico, doveva essere purificata e adempita in un’autentica ricostruzione storica. Ciò che ha fatto la Scuola di Lecce, e che è comparso per la prima volta nel volume L’utopia. Rifondazione di un’idea e di una storia (1997). Dove la ricostruzione parte dalla fase mitica, dei miti utopici; parte dal progetto popolare, che il popolo oppresso dalla società ingiusta tuttavia conserva nella sua coscienza etica, e da essa preme in tre grandi eventi liberatori: la rivolta popolare, i processi di democratizzazione (Atene, la plebe romana, i Comuni medievali), le rivoluzioni moderne.

59

lA NUOvA lINEA dEll''UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

E si sviluppa quindi in due catene di movimenti: i «movimenti religiosi di salvezza» (messianismo ebraico, annunzio evangelico, millenarismo, eterodossia medievale e moderna) in cui si elabora il progetto di una società di giustizia e di una società fraterna. L’altra catena sono i «movimenti rivoluzionari moderni», ivi compresi il movimento operaio e il socialismo, il movimento di pace, il movimento ecologico, i movimenti contemporanei; nei quali inizia e avanza la costruzione di una società di giustizia.

Inizia e avanza attraverso tre modelli che sono tuttora in costruzione e in espansione: il modello democratico coi tre principi di libertà, eguaglianza, sovranità popolare; che parte dalla Rivoluzione inglese del Lungo Parlamento. Il modello di giustizia sociale o di ridistribuzione della ricchezza, che parte dal socialismo e dal movimento operaio. Il modello cosmopolitico, o della comunità planetaria dei popoli, che s’imposta col trattato dell’ONU.

La nuova linea dell’utopia, storica e concreta, realissima, riprende dunque l’idea del «non luogo», della società che non esiste ancora; certo, ma la si sta costruendo. E la sua costruzione non si adempirà mai, nel senso non sarà mai compiuta, perfetta.

Rispetto ad essa la vecchia linea dell’utopia filosofico-letteraria, del progetto degli autori, diventa un momento accessorio, e però ad essa strettamente legato. E non perde nulla del suo ruolo sussidiario, la sua offerta d’idee, di progettazione, di possibili strutture della società di giustizia in costruzione. Almeno quando è il progetto di un autore serio, costruttivo, benefico per l’umanità.

Riferimenti bibliografici

ABENSOUR, M. Le procès des maîtres rêveurs. Arles: Sulliver, 2000.

COLOMBO, A. L’utopia. Rifondazione di un’idea e di una storia. Bari: Dedalo, 1997.

MORE, Thomas. Utopia. In: The Complete Works of St. Thomas More, vol. 4. Edited by E. Surtz and J.H. Hexter. New Haven: Yale University, 1965.

Crisi delle ideologie e delle forme nella narrativa utopica del NovecentoVita FortunatiUniversità di Bologna

Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia (Itália)

Resumo

Ripercorrendo il Novecento dall’inizio alla fine, si vede come esso sia stato attraversato da momenti di alta tensione utopica e da altri di stasi. Si è creduto di essere all’inizio di una nuova era, portatrice di grandi rinnovamenti, ma si è anche stati testimoni di eventi oscuri e carichi di terrore. Proprio in tali periodi si è parlato spesso di fine dell’utopia, della sua morte. Ma come ricorda Bertold Brecht, proprio nei momenti più tragici la progettazione del cambiamento acquista maggiore forza. L’immagine della parabola coglie bene le fasi alterne dell’utopia e dell’utopismo nel corso del Novecento: è una parabola la cui curva segnala un andamento alterno in cui la linea tocca l’apice per poi abbassarsi: a fasi calde ne succedono delle altre fredde in rapporto alle complesse vicende storico politiche dell’Europa e del mondo (Fortunati, 1997, p. 53-58).

Palavras-chave

Utopia nel Novecento, "morte dell'utopia", utopie critiche, utopie imperfette.

Vita Fortunati é professora de Língua e Literatura Inglesa e coordenadora do projeto europeu Interfacing Sciences, Literature and the Humanities. Estudou a reescrita do mito do apocalipse, utopias escritas por mulheres, a obra de Thomas More, Joseph Hall, Robert Burton, Robert Paltock, Jonathan Swift, Jeremy Bentham, William Morris, E.M. Forster, George Orwell, Aldous Huxley. Dirige o Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia da Universidade de Bolonha. Organizou a coleção Forme dell’Utopia, composta por textos primários e críticos, publicada pela editora Longo, de Ravenna. Escreveu La letteratura utopica inglese. Morfologia e grammatica di un genere letterario (Ravenna: Longo, 1979) e organizou Viaggi in utopia (Ravenna: Longo, 1996, com P. Spinozzi), do Dictionary of Literary Utopias (Paris: Champion, 2000, com R. Trousson), de Dall’utopia all’utopismo. Percorsi tematici (Napoli: CUEN, 2003, com R. Trousson, A. Corrado), de Perfezione e Finitudine. La concezione della morte in utopia in età moderna e contemporanea (Torino: Lindau, 2004, com M. Sozzi e P. Spinozzi). Promoveu estudos subre utopia e identidade nacional e cultural (Utopianism/Literary Utopias and National Cultural Identities: a Comparative Perspective, a cura di P. Spinozzi. Bologna: Cotepra, 2001). Recentemente organizou e publicou a Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme (Paris: Champion, 2008, com R. Trousson e a colaboração de P. Spinozzi).

62

vITA fORTUNATI

i-La parabola dell’utopia

Ripercorrendo il Novecento dall’inizio alla fine, si vede come esso sia stato attraversato da momenti di alta tensione utopica e da altri di stasi. Si è creduto di essere all’inizio di una nuova era, portatrice di grandi rinnovamenti, ma si è anche stati testimoni di eventi oscuri e carichi di terrore. Proprio in tali periodi si è parlato spesso di fine dell’utopia, della sua morte. Ma come ricorda Bertold Brecht, proprio nei momenti più tragici la progettazione del cambiamento acquista maggiore forza. L’immagine della parabola coglie bene le fasi alterne dell’utopia e dell’utopismo nel corso del Novecento: è una parabola la cui curva segnala un andamento alterno in cui la linea tocca l’apice per poi abbassarsi: a fasi calde ne succedono delle altre fredde in rapporto alle complesse vicende storico politiche dell’Europa e del mondo (Fortunati, 1997, p. 53-58).

Nel primo decennio del Novecento le avanguardie storiche testimoniano la loro forte tensione nelle sperimentazioni artistiche e nelle progettazioni architettoniche. Il ruolo dell’artista nelle avanguardie, la sua creatività utopica ed in seguito la strumentalizzazione da parte delle ideologie confermano l’ipotesi elaborata negli stessi anni dal sociologo Karl Mannheim. In Ideologie und Utopie (1929) l’atteggiamento utopico si distingue da quello ideologico perché, pur fondandosi su una profonda conoscenza della storia, la trascende per immaginare possibili alternative, mentre l’ideologia tende a consolidare l’ordine costituito. Nella prospettiva di Mannheim l’utopia acquista una forza dirompente, è portatrice di rivoluzione, capace di modificare la realtà.

Sarà proprio questo desiderio di rinnovamento, di rinascita, a spingere i giovani europei ad arruolarsi, come volontari, nella prima guerra mondiale e a fare abbracciare agli intellettuali posizioni interventiste. Il mito della guerra, costruito dalla propaganda retorica delle classi dirigenti europee, si sgretolerà di fronte alla carneficina nelle trincee. Dal senso di disperazione che si diffonde nel primo dopoguerra nascono le grandi anti-utopie europee, che si caratterizzano come lucide prefigurazioni delle società totalitarie. La tragica esperienza della prima guerra mondiale, con il fenomeno della ‘mobilitazione totale’ e con i genocidi, causati dalle armi di distruzioni di massa, rese gli intellettuali consapevoli della pericolosità dell’utopia come modello universale e come espressione aberrante di una ragione dirigista che vuole controllare ogni aspetto della realtà. Il Nazismo, il Fascismo e lo Stalinismo mostreranno le degenerazioni dell’utopia imposta, e mantenuta, attraverso violenti mezzi di coercizione.

Le maggiori anti-utopie del Novecento, When the Sleeper Wakes (1899) di H.G. Wells, Noi di Zamyatin (1922), Brave New World di Aldous Huxley (1932), Glasperlenspiel di Hermann Hesse (1941) e Nineteen Eighty-Four (1949) di George Orwell sono satire spietate del totalitarismo, del materialismo e del consumismo delle società di massa di cui l’America era un esempio. Il primo conflitto mondiale segna la fine dell’esperienza progettuale del primo decennio del secolo; dopo la Grande Guerra, in Europa non vi è spazio per rappresentare l’utopia, ma solo i peggiori mondi

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

63

CRISI dEllE IdEOlOgIE E dEllE fORME NEllA NARRATIvA UTOPICA dEl NOvECENTO

possibili. Persino scrittori come J.R. Tolkien e C.S. Lewis utilizzano la forma allegorica della fantasy per esplorare il conflitto fra diverse etnie e la presenza del male nel genere umano. Le maggiori anti-utopie apparse fra i primi anni del secolo e la seconda guerra mondiale costituiscono per gli scrittori europei i principali modelli di riferimento e di confronto per la revisione del concetto di utopia e di distopia nella seconda metà del Novecento. Come ha rilevato Tom Moylan, “in the twentieth century it has become necessary to destroy utopia in order to save it” (Moylan, 1986, p. 46). L’introspezione psicologica e il relativismo gnoseologico costituiscono i mutamenti più significativi delle forme della narrazione utopica, che sono intimamente correlate alla scoperta del subconscio e alla diffusione delle teorie psicanalitiche.

I profondi mutamenti formali a cui è sottoposto il genere utopico sono dovuti sia al dialogo che gli utopisti instaurano con gli scrittori statunitensi di science fiction, sia all’ibridazione con la cultura popolare, con altri codici espressivi e con i mezzi di comunicazione di massa. In America e in Europa gli anni Sessanta segnano una rinascita della tensione e della progettazione utopica, che raggiunge il suo apice nel 1968. Sono anni di rivolte studentesche ed operaie, dominate da una volontà iconoclasta e dal desiderio di fondare una cultura anti-repressiva e anti-autoritaria. Gli anni Sessanta hanno rappresentato l’apogeo del mito della democrazia, hanno offerto più ampie opportunità di acculturazione, hanno prodotto nuove forme di comunicazione e di cultura di massa. Ma il Novecento è stato testimone anche della degenerazione della democrazia nella società massificata le cui caratteristiche sono l’omologazione e la mancanza di senso critico negli individui. Proprio il livellamento dei gusti e delle aspettative ha provocato l’emergere di leader e di guide che potessero segnalarsi come figure di riferimento e offrire modelli comportamentali.

Con gli anni bui del terrorismo, la caduta del Muro di Berlino nel 1989 e la crisi dei regimi comunisti si è riaperta una stagione fredda e ancora una volta si è parlato di “morte dell’utopia”. Ma il 1989 ha segnato la fine del pensiero utopico o piuttosto la necessità della sua trasformazione? Negli anni successivi l’utopia e la tensione utopica ritornano soprattutto nella scrittura delle femministe, nelle comunità utopiche, nei movimenti pacifisti e nelle ecotopie dimostrando che l’utopista ha appreso la necessità di negoziare le differenze, intese in senso sessuale etnico e culturale.

Nella seconda metà del Novecento l’utopia non è solo un oggetto di studio ampiamente investigato, come dimostrano i numerosi lavori in questo specifico settore, ma diventa anche un modo per dichiarare il proprio posizionamento politico. Da questo punto di vista l’utopia non è mai quindi un oggetto neutro, perché vi è un alto investimento scientifico e personale. Molte utopie si fondano sul pensiero di filosofi che hanno rinnovato il pensiero occidentale: tra le interazioni che ci sono state nella seconda metà del Novecento tra scrittura utopica e pensiero filosofico, vorrei citare l’importanza del pensiero di Bloch e Benjamin. Recuperando il pensiero utopico in chiave messianica, Marc Bloch (1918; 1954-1959) e Walter Benjamin (1977) per esempio hanno dimostrato che utopia e utopismo

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

64

vITA fORTUNATI

non possono essere disgiunti. Se l’utopia rischia costantemente di rimanere intrappolata in canoni troppo rigidi, e soprattutto di rimanere al di fuori del tempo storico, l’utopismo tenta di superarne i limiti perché recupera la storia attraverso la memoria. La ‘memoria emancipatoria’ per Bloch non è un semplice atto di rimembranza, ma è anamnesis, cioè riconoscimento, anagnoris. Tale atto implica giudizio e produce conoscenza. Partendo dal presupposto che fra passato e presente c’è discontinuità, non linearità, il soggetto deve percepire i mutamenti per assumere un atteggiamento critico verso ciò che è stato e ciò che è, e per acquisire una capacità attiva nei confronti del futuro. In questo senso l’utopismo non è regressivo, consolatorio o nostalgico, ma possiede una forza critica propulsiva.

Alla fine del millennio si è manifestato con forza, ancora una volta, il bisogno di trovare nuovi modelli che possano aiutare a comprendere la complessità del mondo che ci circonda: così si riparla di utopia quando ci si sforza di progettare un nuova idea di Europa, di ripensare a come riconfigurare il concetto di identità nazionale. Ma occorre anche valutare le potenzialità e i pericoli del mezzo informatico in una società planetaria in cui le differenze tra Nord e Sud del mondo sono ancora vistose. Così, le nuove progettazioni architettoniche, le “sustainable cities” non sono più situate solo nei paesi ad alto sviluppo industriale, ma anche nelle periferie degradate, nei quartieri decentrati delle megalopoli, nelle shanty towns e nelle favelas.

Chi ha vissuto il Novecento è stato testimone di grandi progressi nelle scienze e innovazioni nella tecnologia: E. Hobsbawm l’ha definito “breve” (1995), perché si è assistito ad un acceleramento sempre più esasperato dei processi storici che nel giro di poche decadi ha contraddetto le premesse dei grandi programmi politici: così, chi ha creduto che la loro attuazione avrebbe portato miglioramenti sociali ha dovuto tragicamente ammettere che avevano invece dato origine a regimi repressivi (Bobbio, 2005). E non potevano che provare un’acuta disillusione gli intellettuali di sinistra che avevano creduto di vedere realizzata l’utopia nel socialismo reale nell’ex Unione Sovietica: proprio il disincanto ha spinto gli utopisti a decostruire l’utopia con sguardo graffiante, per poi ricostruirla attraverso nuove concettualizzazioni.

ii. L’utopia critica: la revisione del genere utopico alla fine degli anni Sessanta

Nonostante alcuni studiosi abbiano definito il Novecento “the graveyard of utopian writing” (Zaki, 1987, p. 120), a partire dalla fine degli anni Sessanta, ed in particolare nelle ultime tre decadi del Novecento, si assiste ad una grande fioritura di scrittura utopica e fantascientifica femminile, soprattutto in nord America¹. Il genere utopico e fantascientifico viene individuato dalle scrittrici femministe sia come strategia privilegiata per decostruire il sistema patriarcale, sia come fertile terreno di sperimentazioni narrative e stilistiche.

Con l’utopia il femminismo ha in comune non solo la volontà di criticare, decostruire lo status quo, ma soprattutto la volontà di prefigurare

¹ Per una vasta bibliografia dei racconti e dei romanzi più significativi della narrativa utopica femminile si rinvia a “Utopia e fantascienza delle donne: cronologia delle opere fondamentali”, in O. Palusci, 1990, p. 169-179.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

65

CRISI dEllE IdEOlOgIE E dEllE fORME NEllA NARRATIvA UTOPICA dEl NOvECENTO

un mondo radicalmente differente da quello attuale: un mondo cioè non più strutturato sulla rigida e tradizionale divisione dei ruoli sessuali, ma capace di dar voce al territorio femminile della differenza. Il pensiero delle donne è profondamente pervaso da un’ampia capacità progettuale che le porta a formulare nuovi schemi concettuali e soprattutto a creare modelli politici alternativi, revisionando vecchi miti per suggerirne dei nuovi. Il progetto femminista non poteva non trovare congeniale il genere dell’utopia, nel quale è connaturata la volontà di rompere gli schemi prestabiliti e soprattutto la capacità di guardare la datità del presente con occhi estranei (Patai, 1983, p. 151).

La scrittura utopica delle donne nelle ultime decadi del Novecento ha infatti dato voce a nuovi modelli utopici auspicabili e desiderabili, perché in essi vengono esaltati i veri valori della cultura femminile: il pacifismo, l’ecologia e la decentralizzazione del potere. L’utopia permette la visualizzazione di situazioni insolite e la sperimentazione di nuovi modelli di comportamento.

Il ripensamento del concetto di utopia operato da scrittrici come Ursula le Guin (Fortunati, 2004, p. 91-102), Joanna Russ, Marge Piercy ha stimolato una ridefinizione del genere, che si è allargato per accogliere il concetto di “critical utopia” (Moylan, 1986), intesa come un’utopia che esamina al suo interno i suoi stessi limiti e prospetta soluzioni alternative, viste però mai come definitive, ma sempre dinamiche e fluide, come orizzonti cui tendere. La componente “metafictional” si esplica non soltanto attraverso una ridiscussione dei limiti formali dell’utopia, ma anche sotto forma di una critica delle caratteristiche tipiche dell’utopia classica, la sua chiusura, il suo dogmatismo, la fissità temporale e la sua intolleranza nei confronti delle diversità. Nell’utopia critica è anche cambiato l’atteggiamento degli abitanti in utopia, non più esecutori passivi di ordini, ma individui attivamente coinvolti nella realizzazione di alternative possibili. Gli abitanti in utopia si sforzano di esplorare le potenzialità umane, le strategie, le tattiche rivoluzionarie per fronteggiare e cambiare una realtà insoddisfacente.

Anche le distopie mutano profondamente, prefigurano un orizzonte di speranza, esprimono un impulso che le classiche antiutopie rifiutavano, perché al di là dell’orizzonte nero non vi era nessuna speranza, solo un nostalgico desiderio di ritorno al passato. Diverso è quindi l’atteggiamento dello scrittore delle antiutopie tradizionali nei confronti dell’utopia rispetto a quello degli scrittori delle distopie critiche, quali per esempio Antarctica (1998) di Kim Stanley Robinson e The Telling (2000) di Ursula Le Guin. Mentre nelle antiutopie classiche lo stato è un’unità egemonica e di potere a cui ci si ribella, nelle nuove distopie sono le corporazioni che assumono il ruolo di dominio e di sfruttamento. Nel film del regista cinese Wong Kar-Wai 2046 (presentato a Cannes nel 2004) e nel romanzo distopico di Ursula Le Guin The Telling sono presenti due diverse modalità di uso della categoria della nostalgia. Il film del regista cinese è sintomatico di una sensibilità diffusa: nostalgia come regressione nostalgica e revival del passato. In The Telling invece la nostalgia è critica, lo sguardo nei confronti del passato diventa forza attiva, perché innesca un discorso critico che parte

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

66

vITA fORTUNATI

sempre dal presente, una memoria che deve essere messa in discussione e mai cristallizzata (Procházka; Pilný, 2005, p. 39-50).

Da un punto di vista formale l’utopia nella seconda metà del Novecento è caratterizzata dalla contaminazione con altri generi letterari, il “romance”, la “fantasy”e “ la “science fiction” solo per citare quelli più affini. L’utopia condivide con altre forme di narrativa post-moderna la fluidità, l’ibridismo: caratteristiche formali adatte a rappresentare le differenze etniche, le diverse preferenze sessuali, e soprattutto la messa in crisi di un sapere neutrale oggettivo e universalizzabile. Proprio l’eliminazione dei confini fra i generi ha visto non solo un proliferare di un genere multiforme, quale il fantastico nelle sue molteplici metamorfosi, ma anche la possibilità di inserire micro-utopie all’interno di romanzi non utopici in senso stretto. Si può dire con Italo Calvino che l’esprit utopique si propaga, si frammenta in campi di energia utopica. Se l’universo utopico appariva dominato da una visione manichea del mondo e dalla presenza di opposizioni binarie, i testi utopici dell’ultimo Novecento presentano universi multipli, in cui vengono messe in discussione differenti concezioni del passato e del presente. Sono quindi testi da leggersi sullo sfondo della crisi del pensiero occidentale, che negli anni Settanta e Ottanta ha visto pensatori quali J. Derrida, M. Foucault, J. Deleuze, L. Irigaray, D. Haraway e G. Anzaldùa (1987) impegnati in un processo di revisione di categorie fondanti quali lo spazio, il tempo, il corpo, la razza. Le potenti figurazioni del cyborg di Donna Haraway (1991), il soggetto nomade di Rosi Braidotti (2002), il queer di Judith Butler e la figura della mestizia si intersecano con i cyborg post-umani di Pat Cardigan e del cyberpunk femminile per suggerire lo scardinamento del Soggetto unitario e riproporre soggetti che attraversano i confini del sé e dell’identità e quelli degli spazi nazionali, geografici, etnici e più in generale culturali della postmodernità. Revisionare i paradigmi della cultura occidentale significa, in utopia, uscire da una prospettiva eurocentrica, per accogliere la marginalità, per dare voce alle culture delle minoranze. E significa anche ipotizzare un sincretismo fra Occidente e Oriente, recuperando forme di religiosità e misticismo che perseguono una visione integrata dell’umano e tuttavia non sono immuni da tendenze all’integralismo o alla mercificazione.

La crisi delle grandi narrazioni ha dimostrato allo scrittore utopico l’impossibilità di assurgere a profeta, di anticipare il corso della storia offrendo speculazioni futurologiche. La forza dell’utopia contemporanea risiede invece nella volontà di articolare una riflessione critica e decostruttiva nei confronti della realtà contemporanea e soprattutto di denunciare le utopie fittizie create dalla società materialistica, consumista ed escapista, come quella statunitense, che esalta e riproduce se stessa pubblicizzando gioielli, banche, turismo disneyano e armi da acquistare come giocattoli.

Nella capacità critica l’utopia contemporanea recupera la linfa vitale di una scrittura dal grande potenziale euristico, una scrittura che fa intravedere ciò che si nasconde dietro la superficie delle cose, che educa ad una nuova percezione del reale. Per concettualizzare nuovi mondi, per proporre “contro narrative”, e quindi nuove visioni alternative della realtà, l’utopia contemporanea usa diversi codici espressivi e mischia elementi

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

67

CRISI dEllE IdEOlOgIE E dEllE fORME NEllA NARRATIvA UTOPICA dEl NOvECENTO

attinti dalla tradizione letteraria “alta” e “bassa”. Il linguaggio verbale diventa plurilinguismo, accoglie la parodia, il pastiche e si intreccia con altri linguaggi, secondo interazioni e sinergie che rendono difficile comprendere quale linguaggio plasmi l’altro. Il linguaggio filmico è emblematico, poiché visualizza sul grande schermo i nodi irrisolti che attraversano tanti testi utopici, instaurando un dialogo intertestuale che coinvolge non solo il Novecento, ma l’intera storia dell’utopia: il dirigismo, l’uniformità e il geometrismo diventano agghiaccianti in Pleasantville (1998) di Gary Ross; The Matrix (1999) di Andy e Larry Wachowski riattualizza 1984 di Orwell, mettendo in scena una dimensione virtuale in cui le menti, assoggettate a un condizionamento pervasivo, non sono più in grado di distinguere la distinzione fra mondo reale e simulato. Infine in Truman Show 1998 di Peter Weir il potere occulto, sprigionato dai mezzi di comunicazione di massa, evoca un mondo che sembra reale e perfetto, ed è invece il prodotto di una mera simulazione.

Utopie critiche (“critical dystopias”), utopie imperfette (“flawed dystopias”): queste nuove definizioni nate dall’attuale vivace dibattito tra gli studiosi di utopia mettono in evidenza come nella nostra contemporaneità vi sia una consapevolezza storica dei pericoli insiti nell’utopia intesa come modello astratto e totalizzante. Si avverte quindi la necessità di proporre utopie “imperfette” nelle quali i suoi abitanti si interroghino sul senso etico del proprio agire, perché essi sanno che le utopie perfette del passato sono sempre state costruite a spese di qualcuno che non era incluso in esse o vi era incluso ad un prezzo altissimo di sofferenza e di sfruttamento. Il nuovo millennio si è aperto con tragici episodi di terrorismo, primo fra tutti l’11 Settembre, e con feroci conflitti tra nazionalismi contrapposti. Questi e altri eventi farebbero pensare di essere di nuovo in una fase fredda dell’utopia e dell’utopismo, ma la recente produzione narrativa mette in luce come vi sia invece ancora bisogno di utopia. Utopia intesa come capacità di interrogarsi criticamente sulla realtà che ci circonda, come educazione all’immaginazione e al desiderio di cambiarla. Leggere e studiare l’utopia può quindi diventare uno stimolo per impegnarsi ad agire concretamente sulla realtà. Noi crediamo che utopia sia soprattutto un modo attraverso cui osservare la realtà e speculare sulle sue potenzialità di mutamento. Quindi, sono certo importanti le proposte che le mentalità utopiche hanno elaborato e potranno elaborare in futuro, ma più importante è capire che l’utopia è un metodo. Esso presuppone innanzitutto uno straniamento, cioè la capacità di vedere il mondo con occhi ‘altri’, di decostruirlo e poi di ricrearne uno alternativo.

Il concetto di utopia come strumento euristico per osservare il mondo continua ad estrinsecare la sua forza nella contemporaneità. Nei paesi post-coloniali esso si carica di potenzialità di mutamento, come dimostra la recente storia del Sud Africa: leggere gli atti della Truth and Reconciliation Commission significa trovare nel concetto di riconciliazione una tensione utopica che, pur non cancellando la memoria storica e tentando mediazioni complesse, sottende un progetto di pace e di ricostruzione di una società, non più basata sulla vendetta².

² Si vedano Soyinka (1999) e Triulzi (2005).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

68

vITA fORTUNATI

Proprio le accezioni che l’utopia e la distopia sono venute assumendo in età contemporanea inducono a ripensare gli spazi ideali del vivere civile. Il concetto di hétérotopie (Foucault, 1984, p. 46-49), formulato da Michel Foucault alla fine degli anni Sessanta, ha aperto nuove prospettive per ridiscutere i rapporti fra lo spazio e il corpo sociale. Con il termine hétérotopie Foucault ripensa le relazioni umane, nelle quali le interazioni sono codificate e gerarchizzate, in termini di “emplacements” e “contre-emplacements”. Foucault pone l’accento sulla capacità degli uomini e dei gruppi sociali di ritagliarsi “des espaces autres” negli “emplacements” in cui vivono e lavorano. L’hétérotopie non si configura come una delimitazione di spazi, ma anzi presuppone la possibilità di entrare e uscire da essi, e mette in primo piano la liminalità, la soglia.

Dai luoghi che Foucalt menziona per illustrare questo concetto, si comprende che l’hétérotopie è uno spazio complesso, perché istituisce rapporti profondi fra l’ordine reale e l’ordine simbolico, fra il soggetto, “son emplacement” e la collettività.

Dell’utopia Foucault valorizza la capacità di configurarsi come spazio mentale, immaginato, dove confluiscono desideri umani e racconti, ma teme la fissità del modello, la sua rigidità, la sua immodificabilità. L’hétérotopie è per definizione una categoria mobile, costituita non solo da una dimensione spaziale, ma anche da una prospettiva temporale: per questo Foucalt parla di hétérochronie. Tuttavia, essa è una categoria problematica perché, anziché semplificare la complessità del reale, come accade in utopia, la rivela. L’hétérotopie giustappone spazi eterogenei, fra loro incompatibili: spazi concentrazionari, come la casa chiusa, la prigione, la caserma, nei quali al caos del reale si contrappone uno spazio ordinato, regolamentato, ma anche i luoghi della memoria, i musei, le biblioteche, i cimiteri. Spazi dalle molteplici sfaccettature, perché abitati dagli uomini.

E non stupisce che nell’hétérotopie, intesa come luogo della complessità, Foucault, comprenda anche la colonia: ripercorrendo la storia della colonizzazione dell’America del Nord da parte degli anglosassoni e dell’America del sud da parte dei Gesuiti, egli coglie la complessa interazione fra la tensione utopica che sottende la loro nascita e gli effetti distopici della loro realizzazione.

Utilizzare il termine hétérotopie oggi significa concettualizzare spazi attraversati da interazioni conflittuali fra classe, etnia e gender. L’hétérotopie della post-modernità riaffronta la questione dell’ordine sociale, grande mito radicato nella mentalità dirigista dell’utopista, perché la riconfigurazione dello spazio non può non tenere conto delle differenze (Siebers, 1994; Hetherington, 1997; Ritter and Vlay, 1998; Ahlback, 2001). Ragionare in termini di ‘differenza’ può essere discriminatorio, come preconizzarono alcune utopie inglesi del secondo Ottocento, nelle quali la suddivisione dello spazio sottendeva una rigida gerarchia sociale e razziale, e come mostrano oggi i mosaici delle grandi metropoli del pianeta. Oppure il concetto di differenza può acquisire una valenza positiva, se implica l’eliminazione dei bipolarismi e delle ghettizzazioni, e valorizza la mobilità del soggetto e dei luoghi di appartenenza. Immaginare spazi del vivere diversificati significa,

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

69

CRISI dEllE IdEOlOgIE E dEllE fORME NEllA NARRATIvA UTOPICA dEl NOvECENTO

utopicamente, pensare ad un luogo che favorisce il confronto, pur non elidendo le differenze.

Vorrei concludere questo mio intervento con questa considerazione. La scrittura distopica contemporanea (mi riferisco ai romanzi di Robinson e della Le Guin), proprio perché sfruttano al massimo le potenzialità della scrittura distopica, finiscono per infondere nella narrativa una nuova linfa vitale utopica. La narrativa distopica possiede quindi non solo una potente valenza euristica, ma induce anche nel lettore una volontà di agire sul presente.

Riferimenti bibliografici

AHLBACK, Pia Maria. Energy, Heterotopia, Dystopia: George Orwell, Michel Foucault and the Twentieth-century Environmental. Abo: Abo Akademi University Press, 2001.

ANZALDÙA, G. Borderlands/La Frontera: The New Mestizia. San Francisco: Spinster/aunt lute, 1987.

BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte (1939). In: Aufsatze, Essays, Vorträge, hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhauser. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977.

BLOCH, Ernst. Geist der Utopie. München/Leipzig: Duncker & Humblot, 1918.

BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1954-1959.

BOBBIO, N. Profilo ideologico del Novecento. Milano: Garzanti, 2005.

BRAIDOTTI, R. In metamorfosi. Verso una teoria materialista del divenire. Milano: Feltrinelli, 2002.

BUTLER, J. Bodies that Matters: on the Discoursive Limits of “Sex”. New York: Routledge,1993.

FORTUNATI, V. "La parabola dell’utopia". In: Paesaggi urbani, città, utopia, progettualità: bilanci del XX secolo, 4-5, Luglio-Ottobre’97. Rimini: Maggioli Editore.

FORTUNATI, V. "Le forme dell’utopia femminile". In: BORDONI, C. (a cura di). Linee d’ombra. Cosenza: Luigi Pellegrini Editore, 2004.

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits 1984. Des espaces autres (conférence au Cercle d’études architecturales, 14 mars 1967). Architecture, Mouvement, Continuité, n° 5, octobre 1984.

HARAWAY, D. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991.

HETHERINGTON, Kevin. The Badlands of Modernity: Heterotopia and Social Ordering. London/New York: Routledge, 1997.

HOBSBAWM, Eric. Il secolo breve. Milano: Rizzoli, 1995.

MOYLAN, Tom. Demand the Impossible. New York and London: Methuen, 1986.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

70

vITA fORTUNATI

PALUSCI, O. Terra di Lei. L’immaginario femminile tra utopia e fantascienza. Pescara: Tracce, 1990.

PATAI, Daphne. "Beyond Defensiveness: Feminist Research Strategies". In: BAN, M.; SMITH, N. D. (eds.). Women and Utopia Critical Interpretations. Virginia: Virginia Polytechnic Institute and State Univ., 1983.

PROCHÁZKA, Martin; PILNÝ, Ondrej (eds.). "Memory, Desire and Utopia: a New Perspective on the Notion of Critical Utopia". In: Time Refigured. Myths, Foundation Texts and Imagined Communities. Prague: Litteraria Pragensia, 2005.

RITTER, Roland; VLAY, Bernd Knaller (eds.). Other Spaces: the Affair of the Heterotopia. Graz: Haus der Architektur, 1998.

SIEBERS, Tobin (ed.). Heterotopia: Postmodern Utopia and the Body Politic. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1994.

SOYINKA, Wole. "Reparations, Truth, and Reconciliation". In: The Burden of Memory, the Muse of Forgiveness. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999.

TRIULZI, Alessandro (a cura di). Dopo la violenza. Costruzioni di memoria nel mondo contemporaneo. Milano : L’ancora, 2005.

ZAKI, H. M. Zaki. "Utopia and Ideology in Daughters of Coral Doen and Contemporary Feminist Utopias". In: Women’s Studies, vol. 14, 1987.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Positivismo e utopia: la religione dell’Umanità di Comte Claudio De BoniUniversità di Firenze (Itália)

Resumo

Parte fra le più discusse del pensiero di Comte, la religione dell’Umanità, col suo insieme di sacerdozio dei sapienti e ritualità per il popolo, assume una luce nuova se la si analizza all’interno di un’aspirazione, quella della società positiva, che nel filosofo francese si colora spesso di atmosfere utopiche. La relazione cercherà anzitutto di ricostruire gli elementi del culto dell’Umanità progettato da Comte, ponendoli poi in collegamento con l’insieme delle sue speranze per il futuro. Ne deriverà una visione complessiva del suo progetto politico e dei suoi protagonisti sociali, in cui la religione gioca un importante ruolo morale ed educativo. La conclusione dovrà accennare alla diffusione internazionale del mito dell’Umanità propagandato dal positivismo, che ha ramificazioni importanti nella cultura francese, in quella anglo-americana e in quella brasiliana.

Palavras-chave

Comte, positivismo, Umanità.

Claudio De Boni é professor de História das Doutrinas Políticas na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Florença. Estuda as utopias enquanto produtos de ideologias políticas, o pensamento político positivista, o debate de idéias políticas no contexto do Risorgimento italiano e o conceito de estado social. Entre suas publicações do tema utopia estão os volumes Uguali e felici, Utopie francesi del secondo Settecento (Messina/Firenze: D'Anna, 1986) e Descrivere il futuro, Scienza e utopia in Francia nell’età del positivismo (Firenze: Firenze Univ. Press, 2003); em outras contribuições suas em revistas e obras coletivas há estudos sobre Morelly, Condorcet, Fourier, Cabet, Bentham e Mantegazza.

72

ClAUdIO dE BONI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Uno dei modi in cui l’utopia dell’età contemporanea si è maggiormente confrontata con la dimensione storica è stato quello dell’ucronia: vale a dire della proiezione in un tempo immaginato, talvolta

declinato al passato e più spesso al futuro, dell’ansia di perfezionamento sociale e morale propria del genere. A tutti i cultori della letteratura utopica è noto come la prima prova sistematica di questa tendenza abbia avuto luce in Francia ancor prima dell’inizio dell’età contemporanea, anzi più di un secolo prima che, sempre in Francia ma su altro contesto rispetto all’utopia vera e propria, il filosofo Charles Renouvier coniasse il termine ucronie. Mi riferisco ovviamente al romanzo di Louis-Sébastien Mercier L’an 2440, che risale al 1770. Oggetto di riflessione meno continua, anche da parte degli storici del pensiero utopico, è invece il fatto che alla costruzione di un utopismo volto al futuro si dedichi nella seconda metà dell’Ottocento, e per una parte talmente significativa da comprendere anzitutto il suo fondatore Auguste Comte, un movimento di pensiero apparentemente lontano da ogni tendenza all’immaginazione quale è il positivismo.

Il primo nodo da affrontare in proposito è proprio quello di stabilire se, e fin dove, possiamo evocare categorie utopistiche a proposito del positivismo. In quanto movimento culturalmente volto all’unificazione delle scienze, artefice del trasferimento alle scienze sociali dei procedimenti razionali e investigativi propri delle scienze della natura, il positivismo ha in effetti un nucleo concettuale che sembrerebbe non aver nulla da spartire con l’immaginazione. Alcuni princìpi cardine elencati nel Cours de philosophie positive (la superiorità dell’intelletto sul sentimento, il carattere dimostrativo e sperimentale dei procedimenti scientifici, la necessità dell’eliminazione dal discorso scientifico di quanto non è scientificamente affrontabile, come le origini prime e i fini ultimi dei fenomeni) stanno lì a ricordarcelo. La prospettiva cambia se prendiamo in considerazione con altrettanta insistenza le parti storiche dello stesso Cours, in particolare nei capitoli conclusivi, e la seconda grande opera comtiana, il Système de politique positive, oltre agli altri scritti del fondatore del positivismo maturati in connessione con la crisi del 1848 e i suoi sviluppi successivi, come il Discours sur l’ensemble du positivisme e il Catéchisme positiviste. In tutti questi scritti (appartenenti all’ultimo Comte, potremmo dire) la pulsione prevalente è quella di fare della conoscenza non solo uno strumento per capire il mondo, ma anche una forza per governarlo e cambiarlo. Proprio all’indagine di tale obiettivo, proiettato nel futuro, possiamo applicare proficuamente categorie che di solito impieghiamo nello studio delle utopie. Più in generale, possiamo considerare che il positivismo, sin dalle pagine del suo fondatore, si caratterizza come movimento e modo di pensare quantomai articolato, in cui l’originaria aspirazione scientifica si arricchisce progressivamente di interpretazioni storiche, progetti politici, disegni etici, architetture sociali.

Naturalmente da tutto ciò non deriva la possibilità di ritagliare nell’opera comtiana la presenza di una vera e propria utopia, nel senso di una sistematica descrizione di una società “altra” collocata in uno spazio o in un tempo immaginari. Ne possiamo tuttavia rintracciare, e in termini quantitativamente abbondanti e qualitativamente rivelatori, la tendenza

73

POSITIvISMO E UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

all’utopismo, vale a dire alla forzatura del dato concreto per comunicare gli elementi fondamentali di un mondo idealizzato del futuro, pacificato, ordinato, in prospettiva capace di assicurare la soddisfazione materiale e morale all’intera umanità. Lo stesso Comte ci autorizza in qualche misura ad affrontare il suo pensiero come il prodotto anche di pulsioni all’immaginazione, quando egli stesso definisce il positivismo come un’utopia. Lo possiamo rilevare in alcuni passaggi del Système de politique positive, soprattutto in quello, appartenente al quarto e ultimo tomo, in cui l’unione sintetica fra ordine e progresso rincorsa dalla politica positiva viene definita dal suo autore un’“utopia convenientemente costruita” (1895, t. IV, p. 274): dove il “convenientemente” sta per assenza di contraddizione rispetto alle verità scientifiche, consapevolezza del processo storico, sistematicità intellettuale, appello al desiderio ma non al puro sogno.

A parte l’impiego testuale della parola utopie da parte di Comte (che, al di là di quanto appena detto, resta abbastanza raro), quello che più conta è tuttavia il fatto che, seppur in termini impliciti, tutta la sua costruzione politica (la società positiva in estensione dal presente al futuro) si presenta come una grande operazione utopistica. È un’impressione che emerge da più punti della lettura dei suoi testi politici. Anzitutto, la società positiva, per quanto estrapolata dalla filosofia della storia che Comte ha già applicato, nel Cours de philosophie positive, per il passato, non è un dato di fatto, ma il frutto di una delineazione progettuale che si muove su un piano analogo a quello dell’immaginazione sociale. Si pensi in particolare all’armonia descritta sul terreno politico fra potere materiale e potere spirituale, sul terreno sociale fra patriziato proprietario e proletariato produttore, sul terreno morale tra famiglie, municipalità, stati, tutti a comporre la grande e armonica dimensione dell’umanità. Come seconda caratteristica dell’utopismo comtiano possiamo ricordare il ruolo dominante assunto nella descrizione della società positiva dal suo sistema etico, che si snoda dal potere spirituale dei filosofi fino alla funzione moralizzatrice della donna in ambito familiare, ed è tale da prefigurare l’atteggiamento educativo, dedito alla trasmissione di segni moralizzatori, come centrale nella società positiva (esattamente come avviene per quasi tutte le utopie). Per ultima analogia possiamo citare il fatto che la società positiva si delinea nell’opera comtiana come una società ideale che, una volta raggiunta (entro un secolo, secondo le speranze del suo autore), non dovrà più essere sostanzialmente modificata e segnerà nei fatti la fine della storia. È vero che Comte è sensibile al tema del progresso oltre a quello dell’ordine; ma è altrettanto vero che nella società positiva il residuo progresso sarà puramente conoscitivo o meramente territoriale, nel senso della conquista progressiva del mondo da parte di una cultura sviluppatasi storicamente dapprima in Occidente, e non qualitativo. Le linee organizzative della società positiva si potranno concepire come delineate una volta per tutte, secondo un’aspirazione di perfezione indefinita e stabile che è ricorrente, come sappiamo, nel genere utopico.

Si è detto che, al pari di molte altre costruzioni utopiche, la società positiva progettata da Comte si caratterizza anzitutto per il suo messaggio morale e per il suo carattere pedagogico. Conseguenza di tale atteggiamento

74

ClAUdIO dE BONI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

è la centralità assunta in questo progetto dal motivo della religione dell’Umanità che, ombreggiata nel Cours, assume un peso strategico crescente nell’evoluzione del pensiero comtiano, fino a diventare l’autentico filo conduttore dei quattro ponderosi tomi che formano il Système de politique positive1. Ricordo che la religione dell’Umanità è il credo proposto da Comte per la società positiva, avente secondo le sue aspettative pochi dogmi (per non incorrere in contraddizioni rispetto alle verità via via rivelate dalla scienza) ma un esteso apparato di culto, e di conseguenza una sistematica organizzazione di tipo ecclesiastico. Forse l’unico “dogma” ricavabile dalla religione dell’Umanità è la dipendenza dell’individuo dagli insiemi collettivi in cui opera, continuazione secondo Comte di una condizione già comprovata dalle scienze biologiche e sociali. Ma la sacralizzazione dell’Umanità come ente collettivo vivente che ne consegue, ha bisogno di essere perfezionata e continuamente ribadita da un consapevole processo educativo rinforzato dal ricorso a riti come l’adorazione dell’Umanità stessa, la santificazione dei suoi elementi meritevoli, l’esercizio pubblico della memoria, la celebrazione dei sacramenti. Tale culto sta tanto a cuore all’ultimo Comte da giustificare la presenza nei suoi scritti e nella sua stessa vita di pulsioni religiose aventi caratteri quasi ossessivi. L’importanza crescente assunta nelle sue opere dal potere spirituale, per il quale tratteggia uno schema organizzativo sempre più particolareggiato; la trasformazione della Société Positiviste (vale a dire il consesso dei suoi discepoli più stretti, sorto nel 1848) in una specie di setta religiosa; l’autoassunzione al suo interno da parte di Comte della funzione di “Grande Prete dell’Umanità”, dotato fra l’altro del potere di ammettere o di espellere adepti; la delineazione di un culto dai sintomi non sempre coordinabili con lo spirito scientifico (tipo quello della Vergine Madre, adattamento del mistero della Madonna alla disperatamente amata Clotilde de Vaux); la progettazione e la realizzazione pratica di un complesso apparato sacramentale; l’insistita ambizione a riscrivere il calendario sono alcuni (nemmeno tutti) dei sintomi di una crescente esaltazione religiosa che costituisce in sede storiografica uno dei nodi più difficilmente spiegabili della stagione positivista.

Già al tempo di Comte l’apparato della religione dell’Umanità costituì uno degli aspetti più controversi della sua dottrina, tanto da essere fra i motivi che provocarono la rottura con il più influente dei suoi discepoli, Émile Littré. Anche oggi è una delle parti più ignorate o più criticate del suo pensiero, che ad alcuni appare il frutto di una deviazione dall’originario impianto scientista del movimento², ad altri la proposta di un assurdo cattolicesimo senza Dio o di una religione incompiuta, incapace di proporsi lo scopo consolatorio della vittoria dell’uomo sulla morte proprio di ogni credo convenzionale³. Ed effettivamente molti degli atteggiamenti dell’ultimo Comte, in merito alla religione dell’Umanità come in merito alla declinazione di segno sempre più conservatore della politica positiva, sono tali da colpire qualsiasi spirito laico, che fa fatica a coordinare le rigidità del culto positivo con la poderosa fede scientifica manifestata in altre parti dallo stesso autore. Credo però che valga tuttora la pena, in sede storica e critica, prendere sul serio la religione dell’Umanità comtiana. La quale ci apparirà

¹ Quanto peso abbia questo motivo lo si può dedurre dal sottotitolo dell’opera: Traité de sociologie instituant la religion de l’Humanité.

² È questa per esempio la posizione prevalente ricavabile dagli scritti di uno dei critici più acuti del pensiero comtiano, Michel Bourdeau, del quale vedi soprattutto Les trois états. Science, théologie et métaphysique chez Auguste Comte (2006).

³ Vedi in proposito i "Préliminaires positivistes" di Michel Houellebecq che aprono l’opera collettiva Auguste Comte aujourd’hui, diretta da Michel Bourdeau, Jean-François Braunstgein e Annie Petit (2003).

75

POSITIvISMO E UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

molto meno un corpo estraneo all’autentica cultura positiva non appena terremo in considerazione il fatto che è convinzione sistematica del suo autore che non possa sussistere alcuna società organizzata senza un credo comune. La parte della sociologia definita da Comte “statica sociale”, che ha il compito di illustrare gli elementi costitutivi di ogni società in quanto tale, è in ciò eloquente. Ogni società organizzata è tale se è costituita alla sua base da un insieme di famiglie cooperanti, se dispone di un potere materiale che distribuisca i compiti produttivi tra le famiglie, e se si basa su una credenza comune costruita e diffusa al proprio interno da un apposito potere spirituale. Quando subentra la “dinamica sociale”, vale a dire il progresso nella storia, le forme in cui questi elementi si manifestano sono destinate inevitabilmente a cambiare: per esempio, le religioni a base teologica dovranno lasciare il campo ad altre modalità di credenza collettiva, perché le loro affermazioni contrastano con l’evoluzione della conoscenza umana. Cosicché, quando illustra gli elementi della società positiva, Comte reputa che il cristianesimo non possa essere una religione adatta al mondo industriale moderno, ma trova naturale non rigettare qualsiasi aspirazione religiosa, bensì costruire il profilo di un nuovo credo organizzato.

Ritengo tuttavia che ci sia un ulteriore senso, strategicamente decisivo, nella cura maniacale che Comte dedica alla prefigurazione della religione dell’Umanità: un senso insito nella sua persistente ricerca di elaborare un linguaggio mediante il quale il filosofo possa parlare alle masse popolari. Questa propensione comtiana assume in origine la veste della divulgazione scientifica: si spiegano in tal modo sia lo stile spesso ripetitivo, con continui riepiloghi ed esemplificazioni, seguito nel Cours, sia la stesura di opere come il Traité philosophique d’astronomie populaire o il Traité élémentaire de géométrie analytique. Poi, a mano a mano che il positivismo diventa una cultura non solo scientifica, ma anche etico-politica, l’interesse di Comte per la comunicazione linguistica, e il ruolo di convertitore dei segni in emozioni assunto nella sua teoria del linguaggio dall’immagine4, lo spingono sulla strada dell’elaborazione di un culto che è anche un codice. Quello che da un lato può apparire un sovraccarico di simboli (i nuovi santi del calendario, il cerimoniale sacramentale, la celebrazione dei morti), dall’altro è la manifestazione di una ricerca espressiva in grado di tradurre in immagini condivisibili e coinvolgenti i legami che ogni uomo deve intrattenere con l’umanità che lo ha preceduto, con quella che lo accompagna nell’esistenza e con quella che lo seguirà. Ed è comunque la testimonianza nel suo autore di una modernissima sensibilità per una comunicazione culturale che, in un mondo industrialmente progredito nel quale anche le classi lavoratrici assumono un’inedita dignità sociale, non può più limitarsi al solo linguaggio verbale su cui si è basata la trasmissione culturale nelle passate società elitarie. Non per nulla i riti del culto dell’Umanità sono volti (ancora in analogia con la letteratura utopica: si pensi, per lo stesso periodo, all’Icaria di Cabet) al coinvolgimento simultaneo di sensi come la vista e l’udito, e non solo all’astratta riflessione razionale.

Per ultimo, una ragione di considerare la religione dell’Umanità in tutta la sua importanza storica e concettuale, e non come la bizzarria di

4 A proposito della teoria positiva (in senso comtiano) del linguaggio, illuminanti sono le pagine a essa dedicate da A. Kremer -Marietti (1982).

76

ClAUdIO dE BONI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

una mente esaltata, sta nel fatto che ad essa è legato molto del successo internazionale, fra Otto e Novecento, del positivismo comtiano. Se è lecito (e credo che lo sia) riportare all’attenzione di un congresso come questo non solo una ricerca definita, ma anche un progetto ancora in gestazione, posso comunicare che è proprio questo l’argomento dell’indagine storiografica alla quale mi sto in questo periodo dedicando. Della proiezione sul terreno utopico della cultura positivista mi sono già interessato per quanto riguarda l’ambito francese del secondo Ottocento5, in cui l’interpretazione scientista del pensiero comtiano operata da Littré e dalla sua rivista “La philosophie positive” è riequilibrata dalla forte adesione all’impianto religioso positivo dei collaboratori della “Revue occidentale” di Pierre Laffitte. Una divaricazione analoga avviene in Gran Bretagna, dove il rifiuto dell’impianto religioso di Comte da parte di un pensatore influente come Stuart Mill non impedisce a scrittrici come Harriet Martineau e George Eliot di manifestare rispetto, se non ammirazione, per la religione dell’Umanità, e a personaggi come George H. Lewes, il primo vero discepolo inglese di Comte, e Frederic Harrison, una specie di apostolo insieme del positivismo e del sindacalismo operaio, di fare della predicazione del filosofo francese proprio il nucleo di una nuova sognata religiosità6. Dall’ambiente anglosassone parte fra l’altro un’ulteriore irradiazione del pensiero religioso comtiano, che si muove da un lato verso gli Stati Uniti d’America (in cui fra l’altro si reincrocia con l’utopia in un’opera come Looking Backward di Edward Bellamy), dall’altro verso l’India colonizzata, in cui un personaggio come Henry Cotton, alto funzionario britannico ma anche tra i fondatori dell’Indian National Congress, vede in un credo umanitario e poco dogmatico come la religione dell’Umanità il luogo di un possibile incontro fra Oriente e Occidente che superi le antiche divisioni religiose.

Ma un po’ in tutto il mondo il successo della cultura positivista è legato per una parte significativa alla nuova mobilitazione morale proposta da Comte, oltre che all’impianto scientista del movimento. Fa forse eccezione proprio il mio paese, in cui si riscontrano tracce deboli della religione dell’Umanità, all’interno di un positivismo italiano motivato più dalla volontà di emancipare la scienza dall’egemonia culturale della chiesa cattolica che dall’intenzione di abbracciare un nuovo sistema di valori etici. Ma non fa certo eccezione il paese che in questo momento mi ospita, il Brasile, giustamente noto come l’autentica patria di adozione del positivismo. Il tempo a disposizione mi impedisce di dilungarmi su questo punto, e comunque non oserei ugualmente addentrarmi in una questione che gran parte del mio uditorio conosce sicuramente più di me. Credo tuttavia di non sbagliare se ricordo che anche in Brasile, a un positivismo “politico” imbevuto di cultura repubblicana la cui testimonianza più significativa è l’inserimento del motto “ordine e progresso” nella bandiera nazionale, si aggiunge un positivismo “religioso” che proprio del discorso di Comte sui culti si nutre. Partendo, per citare qualche nome noto anche ai cultori europei della tradizione comtiana, dall’educatrice Nisia Floresta Brasileira, che più volte ebbe modo di incontrare Comte a Parigi a metà Ottocento, per arrivare ai fondatori della chiesa positivista di Rio de Janeiro Miguel

5 Vedi De Boni, 2003.

6 Molte notizie sulla diffusione dell’impianto religioso comtiano sono in Simon, 1980.

77

POSITIvISMO E UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Lemos e Raymundo Teixeira Mendes, credo siano numerosi i segnali di un’attenzione al positivismo non strumentale ma profonda e autentica. Non è del resto un caso che, un secolo dopo Comte, sarà un brasiliano, l’ambasciatore presso l’Unesco Paulo Carneiro, il maggiore artefice del salvataggio e della riorganizzazione della dimora parigina del filosofo, oggi sede dell’associazione che riunisce studiosi del positivismo di varie provenienze nazionali.

Riferimenti bibliografici

BOURDEAU, Michel. Les trois états. Science, théologie et métaphysique chez Auguste Comte. Paris: Cerf, 2006.

COMTE, A. Système de politique positive. Paris: Larousse, 1895.

DE BONI, C. Descrivere il futuro. Scienza e utopia in Francia nell’età del positivismo. Firenze: Fup, 2003.

HOUELLEBECQ, Michel. "Préliminaires positivistes". In: BOURDEAU, Michel, BRAUNSTEIN, Jean-François, PETIT, Annie (org.). Auguste Comte aujourd’hui. Paris: Kimé, 2003.

KREMER-MARIETTI, A. Le positivisme. Paris: PUF, 1982.

SIMON, W. M. Il positivismo europeo nel XIX secolo. Bologna: Il Mulino, 1980.

L'utopie comme comble de la fiction à la RenaissanceMarie-Luce Demonet Université François Rabelais, Tours

Centre d’Etudes Supérieures de la Renaissance (França)

Resumo

La Renaissance est une période pendant laquelle s'effectue une prise de conscience du fonctionnement de la fiction en tant que création mentale de "mondes possibles". L'invention du genre utopique peut être considérée comme une manifestation de cette conscience, et son exploitation cohérente. La création d'une nouvelle forme de fiction, d'une fiction redoublée en quelque sorte, est marquée par l'organisation des éléments posés dans une relation de vraisemblance interne, et non plus référentielle, par l'invention de personnages hybrides comme des chimères et par une exploitation systématique des relations logiques entre lieux, temps et personnages inspirés par une idée dominante.

Palavras-chave

Fiction à la Renaissance, mondes possibles, utopie.

Marie-Luce Demonet é professora de literatura francesa do Renascimento na Universidade François Rabelais, em Tours. Especialista das relações entre literatura, línguas e teorias semióticas no Renascimento, é membro do Institut Universitaire de France (2005). Publicou vários estudos sobre Montaigne, Pasquier e Rabelais, assim como uma transcrição das obras deste último na internet (1995). Dedica-se ao estudo das transformações do vocabulário intelectual, político e social durante a primeira modernidade européia e das questões de teoria e de estética literárias: relações entre o romance e o estatuto filosófico da ficção, concepção dos signos (escritos, falados, pensados) no início da época clássica. É responsável, desde 2003, pelo programa das Bibliothèques Virtuelles Humanistes do Centre d’Etudes Supérieures de la Renaissance de Tours, que publica na internet obras do século XVI, e desenvolve novas ferramentas informáticas.

80

MARIE-lUCE dEMONET

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Dans Les Voix du signe (1992), où ont été abordées les langues utopiques de la Renaissance, j’ai pu constater à quel point l’apparition des langues était expliquée par une démarche

volontariste, celle de l’arbitrium (volonté motivée par la raison): non pas pour retrouver une langue originelle perdue, mais pour permettre d’améliorer les idiomes existants ou en refonder d’autres, rationnels et efficaces. De même que le caractère non-cratylien de cet “arbitraire” apparaissait alors, de même l’Utopie de More, la “Thélème” de Rabelais ou l’”Orbe” de Barthélemy Aneau¹ me semblent peu fidèles au platonisme de la République. Les raisons de ce rapport nouveau à la volonté, au sensible et à l’imagination peuvent s’expliquer par l’évolution de la fiction à la Renaissance.

L’expression linguistique étant définie à cette époque comme le “signe” de l’âme, la façon dont les humanistes, les philosophes mais aussi les théologiens dits “non-humanistes” considéraient la relation entre les objets mentaux et le vrai est cruciale, puisque ces concepts déterminent le genre d’expression adéquat à l’intention: selon la tripartition de la Rhétorique à Herrenius, ce sont l’histoire véridique (historia), la fable (fabula) et le vraisemblable de la comédie (argumentum), la première se déterminant par l’exclusion de la fiction.

La notion de fiction et d’objet fictif a souvent été abordée par les spécialistes de littérature à propos des arts poétiques et des manuels de rhétorique, alors que leur fondement logique reste négligé: pourtant, les copieux commentaires aristotéliciens écrits ou publiés entre le Moyen Âge tardif et Francisco Suárez montrent que les anciennes disputes médiévales sur la nature, les actes ou la couleur de la Chimère, qui faisaient tant rire Rabelais, avaient été enrichies par des discussions non moins élaborées sur les objets imaginaires (Ashworth, 1985; Biard 1985). Au XVe siècle et à Paris, ces objets étaient aussi dignes de l’attention des métaphysiciens que les futurs contingents (Normore, 1982): ainsi est apparue la distinction – cruciale pour l’utopie – entre des res ficta possibilia et les impossibilia.

L’utopie telle que la pensent More et ses premiers lecteurs est-elle une fiction possible ou impossible ? Les exemples donnés par les représentants de la scolastique tardive, de Pierre d’Ailly aux logiciens de Port-Royal, sont traditionnellement les objets mathématiques ou les comparaisons poétiques comme la “montagne d’or” (fiction possible), d’une part, et les chimères d’autre part, fictions impossibles car elles contiennent une contradiction interne. La fiction impossible serait ce “comble” de la fiction.

Pour Montaigne, l’utopie politique est une chimère, une fiction impossible:

Et certes toutes ces descriptions de police, feintes par art, se trouvent ridicules et ineptes à mettre en practique. Ces grandes et longues altercations de la meilleure forme de societé et des reigles plus commodes à nous attacher, sont altercations propres seulement à l’exercice de nostre esprit; comme il se trouve és arts plusieurs subjects qui ont leur essence en l’agitation et en la dispute, et n’ont aucune vie hors de là. Telle peinture de police seroit de mise en un nouveau monde, mais nous prenons les hommes obligez desjà et

¹ Voir la communication d’Yvone Greis dans ce même numéro.

81

l'UTOPIE COMME COMBlE dE lA fICTION à lA RENAISSANCE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

formez à certaines coustumes; nous ne les engendrons pas comme Pyrrha ou comme Cadmus (1965, III, 9, p. 957).

Montaigne se moquait de ceux qui considéraient avec sérieux de telles “descriptions de police”, notamment les politiques soucieux de réformer les abus au prix de révolutions brutales, ou peut-être ces penseurs de “cités heureuses” comme Patrizi. Homme de ces coutumes qui n’auraient pour mérite que leur ancienneté, il concède toutefois à l’utopie politique un intérêt théorique et rhétorique (la dispute) qui peut utilement exercer nos esprits, à condition que personne ne veuille la réaliser.

Son expression centrale est “feintes par art”, où l’on retrouve le “feindre” de la fiction: s’il n’est pas sûr que sa cible soit l’Utopie de More (dont l’un des titres français est pourtant “Description”), il viserait également Platon et les théoriciens du politique (Machiavel, Bodin), ou encore les commentateurs des Politiques d’Aristote qui s’exerçaient aussi à comparer les trois principaux types de gouvernement (monarchique, aristocratique, démocratique). Son contemporain Francisco Sanches, dans le Quod nihil scitur, radicalise la critique de Montaigne en niant même l’intérêt de l’exercice: prenant Platon au mot, il traite de mensonge la fable politique de la République (Sanches, 1581, p. 11).

L’Utopie de More se situe entre la République de Platon, idéale et idéelle, où la fiction est développée au sein d’un discours philosophique et au service de celui-ci, et l’Histoire véritable de Lucien, auteur que More avait traduit avec son ami Erasme. Elle tient des deux en se réclamant des principes majeurs de la République, la raison et la justice, alors que les habitants des mondes alternatifs peuvent être heureux de leur sort et prétendre également se gouverner selon la raison. More a en effet introduit des éléments qui le distinguent nettement de Platon, notamment la recherche de la vie heureuse. S’il n’apparaît pas dans le titre latin, le principe de plaisir est déployé dans la traduction française de 1550 par Jean Leblond: Le miroer des republicques du monde, & l'exemplaire de vie heureuse (More-Leblond, 1550).

La “scène” utopique

Le texte même de l’Utopie de More ne s’assigne pas un genre déterminé: Guillaume Budé l’appelle simplement “livre”, l’édition de Louvain dit “livre d’or”, liber aureus, celle de Paris 1517 opusculum aureum. L’un des exemples canoniques des fictions possibles était la métaphore de la montagne d’or: le rapprochement entre la montagne et le livre ne manque pas d’être paradoxal puisque, précisément, les Utopiens méprisent les richesses. Mais rien n’empêche d’imaginer un livre en or, même en dehors de toute métaphore et de toute allégorie.

La fin du premier livre de l’Utopie offre cette considération générique en appelant à une “philosophia civilior”, plus civile que la philosophie “scolastique” qui dit les choses trop franchement aux princes, comme si More assimilait cette philosophie d’école à la posture cynique. Le passage qui suit est ainsi traduit – approximativement – par Leblond:

82

MARIE-lUCE dEMONET

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

prenons le cas qu'on joue quelque comedie de Plaute, ou certains serviteurs & flatereaux usent de bourdes & mensonges entre eulx, & tu te presentes devant le pulpitre en habit de philosophe (Alioqui dum agitur quaepiam Plauti comoedia nugantibus inter se vernulis, si tu in proscenium prodeas habitu philosophico), & racomptes ce passaige d'Octavia, ou Senecque dispute avec Nero: te vauldroit il pas mieulx taire que de mesler ta tragedie, avec leur comedie (tragicomoediam)? tu corromps & pervertiz la fable qu'on joue, car tu mesles choses contraires, combien que ce que tu allegues soit meilleur; si tu as entreprins quelque jeu, joue le mieulx que tu pourras, & ne trouble, ne change rien pourtant, sil te vient a la memoire d'une aultre fable qui soit plus belle, & plus elegante (lepidior); ainsi est en la republicque, ainsi en advient au conseil des princes (More-Leblond, 1550, 28r, ponctuation modifiée).

More donne lui-même les termes qui signalent le rapport de l’Utopie à la fiction: un “jeu” (scena) et une “fable”, mais “plus belle, plus élégante” (lepidior). L’appellation générique est d’autant plus réflexive que le récit est supposé vrai, et la description s’adresse à des interlocuteurs réels. More scénographie sa république par la fiction théâtrale, un prosopon comme l’indique la note marginale à l’édition de Paris².

L’embrayeur de cette comparaison est l’équivalent d’une proposition conditionnelle: “Prenons le cas qu’on joue quelque comédie… et tu te présentes”, suivie d’un verbe au conditionnel (“ne vaudrait-il pas mieux”). L’auteur (et le traducteur amplifie) met en abyme cette fiction au carré que constitue la narration utopique par rapport à la narration romanesque, considérée comme fiction “impossible” par les philosophes sérieux. Ceux-ci s’en prenaient aux romans pernicieux les plus lus à leur époque, surtout les Métamorphoses d’Ovide, avant que les Amadis, Pantagruel et l’Astrée ne soit ajoutés à la liste: tous ces “fatras” (sic) étaient déclarés “chimères” (Demonet, 2002a). En revanche, le narrateur de l’Utopie envisage une fable fondée sur des principes politiques les meilleurs possibles, dans un monde le moins mauvais possible compte tenu de la faiblesse humaine. Les expressions “plus belle”, et “plus élégante” soulignent dans la traduction l’appréciation esthétique, qui s’insinue dans la lecture agréable de cette description plaisante et répond à la vie heureuse des Utopiens eux-mêmes.

des républiques “possibles”

Le récit utopique se prétend réel sur le plan référentiel, et vrai sur le plan aléthique grâce à ce fondement de raison revendiqué par le conteur et par le personnage Morus. Le poids de la description est tel qu’il efface toute héroïsation interne à l’utopie: les personnages représentent des idées, des principes et des valeurs. Ils n’ont pas de “caractère” et manquent de cette joyeuse hybridation monstrueuse qui caractérise la fiction comique de Lucien ou de Rabelais. Alors que le personnage de fiction se construit à partir de personnages réels ou livresques par combinaison, comme pour une chimère, en Utopie toute la “police” est chimère. L’Utopie-polis est un objet fictif mental où l’organisation sociale se présente dans sa cohérence et sa motivation comme dans un agencement raisonné de signes. Le seul

² More, 1517, 28r. Le texte révisé par Barthélemy Aneau ne change pas beaucoup le sens: « Prenons le cas qu'on joue quelque comédie de Plaute, où certains serviteurs & gaudisseurs usent de bourdes & mensonges entre eux, et tu te présenteras sur l’échafaud en habit de Philosophe, et récites ce passage de la tragédie d’Octavia, ou Sénèque dispute avec Néron: te vaudroit-il pas mieux taire, que de mêler ta tragédie, avec leur comédie ? Tu corromps & pervertis la fable qu'on joue, car tu mêles choses contraires, combien que ce que tu allègues soit meilleur. Si tu as entrepris quelque jeu, joue le mieux que tu pourras, et ne trouble, ne change rien, en l’autre totale[ment], combien qu’alors il te vient à la mémoire d'une autre fable qui soit plus belle, & plus élégante » (More-Aneau, 1559, p. 27-28, graphies modernisées).

83

l'UTOPIE COMME COMBlE dE lA fICTION à lA RENAISSANCE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

personnage héroïque est fictif (chimérique), et c’est Raphaël Hythloday: il contient, du point de vue de la doxa, une contradiction interne car il est un riche Portugais, féru de grec, mais il distribue ses richesses, méprise l’aristocratie et la Cour, et court le monde. Quentin Skinner a mis en évidence ce que l’Utopie a de dérangeant pour un humaniste bon teint, conservateur, conduit au compromis envers la noblesse héréditaire et assez peu soucieux de partager (2001, p. 304 sqq.). Barthélémy Aneau (dans sa préface de 1559 à l’Utopie, qu’il appelle “feinte narration”) avait bien vu la construction paradoxale du monde utopique (p. 6) avec ses deux “chimères”, l’île elle-même et son organisation, et cet être hétérodoxe qu’est Raphaël.

Les années 1500 marquent un changement important dans la pensée de la fiction. La publication de l’Utopie est à la fois un produit de la réflexion sur la meilleure forme de gouvernement et le témoin d’une évolution récente des mentalités en faveur de la fiction. Les res fictae sont en effet difficilement admises par les auteurs sérieux, notamment par les théologiens, car prétendre ou même dire simplement des objets ou des événements irréels est un mensonge. Même s’il déclare qu’il s’agit de sornettes, le Chancelier ouvre ainsi la possibilité d’une reconnaissance sérieuse non pas d’un genre mais d’un mode de pensée aussi ancien que l’homme même, et correspondant à une faculté humaine: la fiction, portée par l’une des puissances de l’âme, l’imagination.

Autour de l’année 1600, une autre étape est franchie: la relation entre la théorie des mondes possibles et la fiction est effectuée par Francisco Suárez (1597), qui renouvelle et réactive la réflexion issue des trois courants de la scolastique médiévale, les trois principales “viae”. Cette réflexion porte principalement sur:

1) les “étants de raison” (“êtres de raison”) de Thomas d’Aquin, ces entia rationis qui n’ont pas de réalité hors de l’esprit, alors que les entia realia, sont les objets du monde;

2) la modalité du possible juxta mentem scoti, de la tradition scotiste;

3) la notion d’espace imaginaire, issue de la philosophie nominaliste.

On doit à l’éclectisme jésuite la réunion de ces apports hétérogènes qui aident à saisir l’émergence de la notion de fiction au sens où nous l’entendons. Jusqu’à la Renaissance la fiction ne s’exprimait pas par le terme de fictio. Fictio est d’abord un emprunt médiéval à la rhétorique (chez Jean de Garlande) pour devenir un nouveau concept, le point de convergence entre les commentaires de l’Organon d’Aristote (augmenté de la Rhétorique puis de la Poétique), de la Métaphysique et du De Anima. Le genre de l’utopie narrative tel qu’il se dessine à la Renaissance établit un lien entre le dynaton de la Poétique, le possible modal (logique) et le possible de la fiction (métaphysique) (Demonet, 2002b; Chevrolet, 2007).

L’apport platonicien est à cet égard assez faible: si l’on trouve souvent le mot “idée” pour exprimer la pensée d’un monde meilleur ou d’un monde parfait, ce n’est justement pas un mythos, une histoire, que Platon considérerait déjà comme dégradée par rapport à l’idée pure. “Idée”

84

MARIE-lUCE dEMONET

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

a le sens de concept, conceptus, repraesentatio, et on la doit aux commentateurs des textes aristotéliciens.

Jean-Yves Lacroix a récemment analysé le rapport complexe de l’Utopie de More au platonisme et ce qui les sépare (Lacroix, 2007, p. 213 sqq.). Sa position, qui met l’accent sur la liberté de l’action humaine chez More, doit toutefois être complétée avec ce que l’on peut savoir sur la pensée des mondes possibles à la fin du Moyen Âge et sur le nouvel intérêt, dans la tradition métaphysique, pour les êtres de raison et les êtres fictifs. L’utopie franchit grâce à eux la barrière métaphysique qui la sépare des non-existants purs.

Est-il cependant légitime de parler de “mondes possibles” pour la Renaissance, alors que, traditionnellement, on admet que l’expression et la chose ne se trouvent pas avant Leibniz ? Au colloque de Brest sur les mondes possibles en philosophie (2003), Jacob Schmutz a replacé la notion dans l’histoire de la philosophie. Bien que son objectif ne soit pas de traiter la dimension littéraire du problème, cette réflexion historique est fort éclairante pour le genre utopique. L’auteur confirme que l’expression ne se trouve pas chez Duns Scot contrairement à ce que Simo Knuutila pensait: le philosophe dit seulement – mais c’est beaucoup – que le contingent est quelque chose dont l’opposé est possible au moment où il existe; déjà, au XIIIe siècle, Guillaume d’Auvergne avait défini le possible comme une “absence d’empêchement à être” (“privatio prohibitionis sui esse”), par opposition à la chimère qui contient une impossibilité interne (Schmutz, 2003, p. 21).

En résumant les analyses de J. Schmutz, on peut admettre qu’avec Thomas d’Aquin le possible et l’impossible avaient acquis le statut de modalité énonciative; que Duns Scot y avait ajouté le possibile logicum, ce qui permet de dépasser le principe de non-contradiction; que l’expression “secundum imaginationem” apparaît chez Joannes Dullaert ( Jean de Jandun) au XIVe siècle. Nous ajoutons qu’en 1597 paraît la première édition des Disputations métaphysiques de Suárez, dont la 54e est entièrement consacrée aux entia rationis: de son côté, Jacob Schmutz (2003, p. 35-36) a découvert un manuscrit daté de 1585-1589 du même Suárez, resté inédit, où l’on peut lire, pour la première fois sans doute, le sens épistémologique de l’expression “mondes possibles”.

Grâce au principe du “non empêchement à être” associé à la pensée d’un monde possible, on peut affirmer qu’il n’y a pas de bon roi sur terre, nulle part; mais rien n’empêche de concevoir son opposé, qu’il y ait un bon gouvernement quelque part, sur la terre d’Utopie, c’est à dire nulle part. Ce nouveau nulle part, le possible logique le prend en charge secundum imaginationem.

Un nexus d’objets fictifs dans un espace imaginaire

Le début de conscience qu’on pouvait avoir, à la Renaissance, de la notion de mondes possibles, s’appuie sur ce noyau qu’est l’objet fictif (je traduis ainsi le fictum latin) en tant que signe sur le plan logique, même si thomistes et scotistes parlent plutôt de “significations”, de concepts et de “représentations”.

85

l'UTOPIE COMME COMBlE dE lA fICTION à lA RENAISSANCE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Quel que soit le courant doctrinal, l’approche est mentaliste, parce que les disciplines enseignées à l’époque, dans les collèges humanistes, les couvents ou dans les universités, avaient appris à penser le monde à partir des principales facultés de l’âme: perception dans le sens commun, traitement des images dans l’imagination ou la phantasia (les termes ne sont pas exactement synonymes), tri et jugement dans l’intellect, stockage dans la mémoire qui est aussi conçue comme une “imagination”. À cause de la perméabilité entre phantasia et intellect raisonnable, la phantasia devient le pivot cognitif de l’âme.

Cette phantasia produit des phantasmata ou imagines dans l’esprit, d’abord à partir du réel perçu et, même si cette connaissance est faussée, ce sont tout de même des entia realia qui sont connus; puis, grâce à la capacité de combiner des images mémorisées et d’extraire des schémas communs à plusieurs formes, la phantasia et l’intellect agent créent dans l’esprit des “objets mentaux” avec ou sans référent réel, images de singuliers ou universaux. C’est ainsi que les textes scolastiques énumèrent et commentent les exemples canoniques (la montagne d’or, les objets mathématiques, la chimère) auxquels s’ajoutent naturellement les Scylles et les Lestringons des récits de voyage médiévaux. Justement, Hythloday les évoque par contraste pour accentuer la nouveauté que serait une cité idéale:

[…] On trouvera presques en tous lieux des Scilles, des Celenes ravissantz, des Lestrigons mangeurs de peuples, & telles manieres de cruelz monstres, mais de citoiens bien moriginez, & saigement instruictz, on nen trouvera pas par tout (More-Leblond, 1550, 6r ;1517, 5r).

Ces entia rationis dans l’ordre métaphysique sont des signa ficta dans l’ordre de l’énonciation. Mais pourquoi la fiction utopique serait-elle un monde possible, et non pas seulement un monde fictif ? Le dynaton d’Aristote, le “possible”, entretient des rapports complexes avec le fictum. La Disputatio 54 de Suárez fournit une argumentation serrée qui associe le fictif et le possible et je tenterai ici de l’appliquer à l’Utopie. Le fictum est ens rationis: en tant que description scénarisée (représentation mentale organisée en récit), l’Utopie est donc elle aussi ens rationis. Dans la perspective de Suárez, elle n’a pas d’être et doit être comprise par comparaison avec le réel, selon une relatio rationis (I, 8). Cette relation est fondamentale et trace la ligne de partage entre ceux qui interprètent le texte de More comme une pure chimère politique contenant une bonne leçon de morale administrée aux nantis (opinion traditionnellement majoritaire), et ceux qui, comme Quentin Skinner, y voient une force de proposition politique qui n’exclut pas sa mise en œuvre³.

La relatio rationis est une méta-notion émanant de l’imagination secondée par la volonté. S’appuyant sur Aristote, Suárez admet une proportionnalité possible avec l’ens reale, selon une sorte d’habitude (I, 9); mais là où il y a un étant réel (Pierre Gilles, Thomas More)4 et un étant fictif (Hythloday) c’est le fictif qui l’emporte car la relatio rationis est elle-même fictive (VI, 4) (Dolezel, 1998, p. 6-7). En outre, toujours selon Suárez, “les dialecticiens” parlent d’un ens imaginabile (daté du début XVIe siècle

² “Lorsque More présente la description du communisme utopien au livre II, il faut considérer qu’il propose une solution, et la seule possible, aux maux de la société déjà évoqués au livre I. Ce qui indique encore que, en donnant à l’Utopie le titre « le meilleur état de la communauté », il devait bel et bien vouloir dire exactement ce qu’il disait” (Skinner, 2001, p. 367).

4 B. Aneau les appelle dans son introduction « vrays personnages » en les opposant à Hythloday, « personnage feint et introduit expressément sous un nom imposé à plaisir » (1559, p. 6-7).

86

MARIE-lUCE dEMONET

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

selon J. Schmutz), qui a une extension plus large que l’ens possibile, puisqu’il comprend les entia impossibles: ces étants imaginables restent entia rationis toutefois, car l’imagination humaine participe d’une certaine façon de la faculté rationnelle (II, 18). Voilà dépassée l’alternative entre entia possibles et impossibles: l’étant imaginable subsume les deux.

Enfin Suárez (section III) fait intervenir une notion nouvelle, capitale pour les “mondes possibles” et pour l’utopie, le spatium imaginarium, l’espace imaginaire. Il se demande s’il est ens rationis, et donne l’exemple de la succession imaginaire que nous concevons en dehors du temps réel et qui a la même ratio que lui. On voit l’intérêt que présente ce raisonnement pour penser l’utopie en tant que fiction. La conception des ficta comme signes participant proportionnellement de l’ens reale permet de se passer de la notion mimétique de ressemblance, qui marque encore beaucoup de théories de la fiction; le monde de l’utopie est composé d’hommes comme nous, mais leur organisation sociale, leur tolérance ne ressemblent à rien de connu. Ils restent toutefois imaginables car l’analogie proportionnelle construit un rapport, non une identité.

Avec les nominalistes (terministes), le traitement temporel du possible affine encore la pensée de la fiction. Le fictif et le passé rejoignent le futur en tant que possibles “non réalisés”: il n’y aurait pas de différence – métaphysique – entre imaginer un événement ou un état de façon totalement fictive comme dans l’utopie, et l’imaginer existant dans le futur (c’est le progrès), ou dans le passé (c’est l’âge d’or). Si les étants de raison “possibles” permettent effectivement de ne pas limiter la toute-puissance divine, ils autorisent en même temps la toute-puissance du créateur de fiction tout comme la liberté du réformateur politique.

“Si dans un monde possible les hommes dominent leur passion pour les richesses et s’organisent rationnellement, alors la vie est (sera) heureuse”: c’est par une telle formule que nous résumerions le principe utopique dans une proposition hypothétique dont la valeur de vérité tient à la cohérence entre l’antécédent et le conséquent. Le lien s’effectue grâce à ce que la logique stoïcienne appelait la synarthesis, le nexus qui tisse la nécessité à l’intérieur même du vraisemblable, lequel peut être contingent sur un plan référentiel. Or cette propriété du discours conditionnel est aussi une redécouverte de la Renaissance: les scolastiques ne l’ignoraient pas, mais ils n’en faisaient guère que des exercices d’école.

La cause efficiente des Utopiens, c’est la raison et la justice. Le voyageur en visite contemple les effets de cette cause en déchiffrant un espace ordonné. Le nexus est donc beaucoup moins temporel-causal, comme dans le récit romanesque ou historique, que spatial et descriptif: c’est l’ordre vu à l’extérieur qui permet d’inférer l’ordre intérieur, la planification et la méthode. Tout ordre juste doit se voir, par la disposition des maisons, l’emploi du temps, la répartition du travail, la maîtrise du hasard, la communauté des biens. Grâce au présent de description, le voyageur et le lecteur sont visiteurs perpétuels de cet espace imaginaire.

Le comble de la fiction dans l’utopie est l’intégration de ces évolutions logiques et métaphysiques aux possibles de la liberté humaine.

87

l'UTOPIE COMME COMBlE dE lA fICTION à lA RENAISSANCE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Le monde possible de l’utopie permet de dépasser les apories du mensonge, de la non-contradiction et des objets non existants, et ouvre ainsi l’esprit à d’autres scènes, civiles, plaisantes et élégantes, et néanmoins rationnelles, des “tragicomédies” dont la réalisation n’est pas exclue a priori. Dans sa préface à la traduction révisée de l’Utopie, Barthélemy Aneau énonce ce qui semble être une dénégation de la réalité utopique:

Ainsi le prudent Chancelier d’Angleterre S. Thomas Maure sous une feinte narration de la nouuelle île d’Utopie, a voulu figurer une morale République, et très parfaite politique: voire si très parfaite que jamais telle ne fut, ni est, ni par aventure sera.

Aneau semble gloser le très ambigu “sperare” de Thomas More, mais il le fait avec la modalité du possible: en effet l’adverbe “par aventure”, qui signifie “peut-être”, affecte d’une modalité épistémique la projection pessimiste dans le futur et laisse croire, non pas qu’elle puisse atteindre le statut d’étant réel, mais que celui d’ens rationis la pose comme modèle pour de futures républiques. Ainsi, se rapprochant de l’interprétation de Guillaume Budé (confirmée par Quentin Skinner), Aneau encourage les princes à “conformer” leurs républiques à cet Archétype, et à les “imiter le plus pres que possible”, laissant ouvert l’horizon d’une fiction réconciliée avec la politique5.

Références

ASHWORTH, E. J. "Chimeras and Imaginary Objects: A Study in the Post-Medieval Theory of Signification". In: Studies in Post-Medieval Semantics. Londres: Variorum Reprints, 1985, p. 59-79.

BIARD, Joël. "La signification d’objets imaginaires dans quelques textes anglais du XIVe siècle (Guillaume de Heytesbury, Henry Hopton)". In: LEWRY, P. Osmond (éd.). The Rise of British Logic. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1985, p. 265-283.

CAVE, Terence. (éd.) Thomas More’s Utopia in Early Modern Europe. Paratexts and Contexts. Manchester and New York: Manchester University Press, 2008.

CHEVROLET, Teresa. L’idée de fable. Théories de la fiction poétique à la Renaissance. Genève: Droz, 2007.

DEMONET, Marie-Luce. "Les êtres de raison, ou les modes d’être de la littérature". In: KESSLER, E. et McLEAN, I. (éd.). Res et Verba in der Renaissance. Wiesbaden: Harrassowitz Verlag, Wolfenbütteler Abhanlungen zur Renaissanceforschung, 2002a, p. 177-195.

DEMONET, Marie-Luce. "Les mondes possibles des romans renaissants". In: CLÉMENT, M. et MOUNIER, P. (éd). Le Roman français au XVIe siècle, ou le renouveau d’un genre dans le contexte européen (Lyon, 2003). Strasbourg: Presses universitaires de Strasbourg, 2005, p. 121-143.

DEMONET, Marie-Luce. Les Voix du signe. Nature et origine du langage à la Renaissance (1480-1580). Paris: Champion, 1992.

5 Pour une interprétation légèrement différente de ce passage, voir Cave (2008, p. 75-76), où l’auteur penche davantage pour une conception de l’utopie qui penche davantage du côté de la fiction.

88

MARIE-lUCE dEMONET

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

DEMONET, Marie-Luce. "Scolastique française et mondes possibles". In: Au-delà de la Poétique: Aristote et la Renaissance. Actes du colloque de Chicago-Madison (2000), éd. U. Langer. Genève: Droz, 2002b, p. 139-160.

DOLEZEL, Lubomir. Heterocosmica. Fiction and Possible Worlds. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1998.

LACROIX, Jean-Yves. L’Utopia de Thomas More et la tradition platonicienne. Paris: Vrin, 2007.

MONTAIGNE, Michel de. Les Essais (1580-1592), éd. P. Villey. Paris: PUF, 1965.

MORE, Thomas. [Utopia]. Habes candide lector opusculum illud vere aureum Thomae Mori non minus utile quam elegans de optime reipublicae statu deque nova Insula Utopia…, [avec la préface de Budé et les annotations d’Erasme]. Paris: Gilles de Gourmont, 1517. Gallica.

MORE, Thomas. [Utopia]. Libellus vere aureus nec minus salutaris quam festivus de Optimo reip. statu deque nova insula Utopia…. Louvain: T. Mertens, 1516.

MORE, Thomas. La description de l’isle d’Utopie ou est compris le miroer des republicques du monde, & l'exemplaire de vie heureuse: redigé par escript en stille Treselegant de grand'haultesse & majesté par illustre bon & scavant personnage Thomas Morus citoyen de Londre & chancelier d'Angleterre. Avec l'Espistre liminaire composée par Monsieur Bude maistre des requestes du feu Roy Francoys premier de ce nom, traduction de Jean Leblond d’Evreux. Paris: Charles l’Angelier, 1550. Gallica. Transcription et publication en cours sur http://www.bvh.univ-tours.fr.

MORE, Thomas. La Republique d’Utopie, par Thomas Maure,... oeuvre grandement utile & profitable, demonstrant le parfait estat d'une bien ordonnée politique, traduite nouvellement du latin en françoys [par Jean Leblond, revue par Barthélemy Aneau]. Lyon: Jean Saugrain, 1559.

NORMORE, Calvin. "Future contingents". In: The Cambridge History of Late Medieval Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

SANCHES, Francisco. Quod nihil scitur. Lyon: S. Gryphe, 1581.

SCHMUTZ, Jacob. L’héritage des subtils. Cartographie du scotisme de l’âge classique. Etudes Philosophiques, 2002, 124, p. 51-81.

SCHMUTZ, Jacob. "Qui a inventé les mondes possibles?" In: Les Mondes possibles, (Brest, 2003). Cahiers de philosophie de l’Université de Caen n° 42. Caen: Presses Universitaires de Caen, 2006, p. 9-45.

SKINNER, Quentin. Les fondements de la pensée politique moderne. [1996] Paris: Albin Michel, 2001.

SUAREZ, Francisco. Disputationes metaphysicae. Salamanque, 1597; Paris: Michel Sonnius, 1605, texte latin présenté, traduit et annoté par Jean-Paul Coujou. Paris: Vrin, 2001.

Utopie et alchimie dans L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez (1610) de François Béroalde de VervilleLaetitia BontempsUniversité François Rabelais, Tours

Centre d’Etudes Supérieures de la Renaissance (França)

Resumo

Le roman alchimique et baroque L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez du polygraphe François Béroalde de Verville (1556-1626) est un héritier atypique de l’Utopia de Thomas More et des romans de François Rabelais. L’Hermitage d’Honneur – lieu d’institution des princes fortunés et lieu initiatique de la cabale des Orthophiles –, s’érigeant en une nouvelle Thélème, présente des écarts importants par rapport à ses modèles littéraires: peut-on lire, dans ces écarts, une évolution générique de l’utopie ? Puisant librement ses sources dans l’œuvre rabelaisienne et dans les nouvelles orientales (arabes, perses et indiennes) compilées par Christophoro Armeno dans le Peregrinaggio di tre giovani figliuoli del Re di Serendippo (Venise, Michele Tramezzino, 1557), le roman de Béroalde de Verville inscrit ses motifs utopiques dans un paysage et un réseau de significations allégoriques et hermétiques. De la quête de la « dive bouteille » à celle de la nymphe Xyrile (anagramme d’Elyxir), des précepteurs de Gargantua et Pantagruel à Sarmedox (anagramme d’Erasme dox), il s’agit d’analyser les enjeux littéraire, politique et philosophique des transformations alchimiques du modèle utopique à l’œuvre dans le roman béroaldien.

Palavras-chave

Renaissance, Béroalde de Verville, motifs utopiques, alchimie.

Após ter escrito a dissertação Civilisation de la Renaissance para sua maîtrise (CESR, Tours, 2002), Laetitia Bontemps começou a colaborar com o projeto de publicação on-line de uma versão html da Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez (1610) de François Béroalde de Verville (1556-1626), sob a supervisão de Marie-Luce Demonet (http://www.bvh.univ-tours.fr/Epistemon/cornucopie/Cornuc.asp/), sua orientadora de doutorado, para o qual prepara uma edição crítica da Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez em versão xml/TEI. Professeur certifiée em Letras modernas, ela começou a trabalhar no CESR como assistant ingénieur d’étude de Marie-Luce Demonet, participando também da publicação das atas do XLIXe Colloque international d’Études humanistes "Hasard et Providence" (http://umr6576.cesr.univ-tours.fr/publications/HasardetProvidence/index.php/), e da revisão de transcrições para as Bibliothèques virtuelles humanistes (http://www.bvh.univ-tours.fr/).

90

lAETITIA BONTEMPS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Dans L’Idée de la République, poème politique divisé en sept livres, publié en 1584, Béroalde imagine une «Republique universelle», idéale et chrétienne, dont l’harmonie repose sur «l’amitié, la raison,

le debvoir, la justice, la pieté la congnoissance» (1584, f. 1v°-2v°). Pourtant, ce n’est qu’en 1610 que le roman alchimique inachevé dont le titre souligne l’héritage de Lucien, L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez tentera de représenter une société utopique¹. Transposant librement dans un archipel imaginaire la compilation italienne du Peregrinaggio di tre figliuoli del Re di Serendippo de Christoforo Armeno (1557), le roman béroaldien narre la quête alchimique de la nymphe Xyrile (Elixir) qui s’inspire librement de celle de la «dive bouteille» des Quart-Livre et Cinquième Livre². Au cours de leurs quêtes respectives, le narrateur, les princes fortunez et l’Empereur de Glindicée traversent des lieux de perfection qui stimulent leur curiosité, même si le contenu informatif du grand secret sans cesse annoncé n’est jamais révélé. Dans cet archipel imaginaire, les jeux de langage codé, des anagrammes aux énigmes, se multiplient, relançant sans cesse la quête utopique du souverain Bien. D’une île à l’autre, au gré des inventions merveilleuses de la narration, s’agrandit un univers de possibles qui fait de Béroalde un libre imitateur de Thomas More que Barthélemy Aneau qualifiait à juste titre de «tres-subtil ouvrier d’ingenieusement inventer, et de bien dire» (1559)³. De l’Utopia et des romans rabelaisiens, Béroalde semble surtout retenir une liberté d’invention dans la narration d’un voyage initiatique et dans la mise en place d’un univers utopique par sa transparence, ses lieux idéaux d’éducation, de gouvernement, de justice, réservés aux seuls initiés. On se demandera quels sont les liens entre la quête alchimique et les représentations utopiques dans ce roman béroaldien, à travers l’analyse des motifs de l’île Sympsiquée, de l’Hermitage d’honneur, puis des motifs merveilleux contribuant à la représentation d’un univers utopique.

Un archipel alchimique et utopique

Comme l’édition princeps de l’Utopia (1516) ou celle de L’Histoire d’Antangil (1616) sont accompagnées d’une carte, Le Voyage des princes fortunez est illustré par une gravure de Léonard Gaultier4, représentant la topographie fictive du roman sous le titre «Description du Grand Continant de Moso, terres & Isles des Regions d’Enos en l’Ocean Oriental, estant partie en la Zone Torride, & en partie en la Temperee Septentrionale. La ligne Z represente l’Equateur». Cette carte pose différents problèmes. D’abord, elle ne coïncide pas complètement avec les lieux évoqués dans le roman : n’y figurent pas le paradis terrestre, la Perse, la mer rouge, la République fictive de Gaucontaine, etc. Ensuite, grande différence avec l’ouvrage de More, deux romans béroaldiens, Le Voyage des princes fortunez (1610) et La Pucelle d’Orléans (1599) tentent de situer l’archipel fictif dans une géographie réelle : l’île Sympsiquée est notamment située «sur la route de la Taprobane» (1599, f. 102v°), «un peu plus avant que la Mer rouge qui se joint à l’Ocean par un petit col que l’on nomme destroit» (1599, f. 84). Si la Taprobane a pu désigner, dans les cartes géographiques du XVIe siècle,

¹ Le fac-similé des quatre volumes du roman est consultable en ligne sur Gallica [http://gallica.bnf.fr/] ; sa transcription est accessible sur le site internet BVH-Epistemon (en html, encodage xml/TEI en cours) [http://www.bvh.univ-tours.fr/].

² Terence Cave considère que « le Voyage des princes fortunez représente une lecture et une réécriture de l’Insulaire rabelaisien » (Cave, 1999, p. 164).

³ Nous citons d’après du Verdier, 1585, p. 111.

4 Léonard Gaultier (ca. 1561-1635) est également l’auteur des gravures en frontispice du Tableau des riches inventions ou Le Songe de Poliphile et du Voyage des princes fortunez.

91

UTOPIE ET AlChIMIE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

l’île du Sri Lanka puis celle de Sumatra (Cammann, 1967, p. 237), l’océan oriental représenté dans la carte fictive pourrait bien être l’Océan indien, où se déroulaient les contes du Peregrinaggio… de Christoforo Armeno. La carte elle-même présente des royaumes aux noms anagrammatiques aux confins de l’île d’Ofir d’où provient, dans L’Ancien Testament, l’or employé pour la construction du Temple de Salomon (Premier Livre des Rois, 9, 27-28 et 10, 11). D’après Frank Greiner, «[…] Béroalde nous fournit la cartographie de son univers utopique, mais […] le lecteur est invité à se hasarder aux confins de la vérité et de la fiction, à se perdre pour mieux se retrouver tout en savourant les joies troubles de l’erreur et de l’errance» (2000, p. 515-516).

Contrairement à « l’île fantastique » d’Utopie dont on ne peut connaître la situation géographique, l’archipel imaginaire du Voyage des princes fortunez reste lié à l’orient de son texte source, le Peregrinaggio d’Armeno. Dans ce paysage allégorique et alchimique, l’île Sympsiquée nous intéresse plus particulièrement, en tant que réécriture directe de l’île d’Utopie.

Utopie, modèle de Sympsiquée

Cette île occupe une place de prédilection dans deux romans béroaldiens : elle est le lieu imaginaire de la naissance de Jeanne d’Arc dans La Pucelle d'Orleans, et c’est là que s’ouvre le Voyage des princes fortunez avec l’aventure symbolique du prince Fulondes (anagramme de Sel Fondu). Elle est l’île dédiée au personnage mythologique Psyché, qui «rend l’ame tranquile, satisfaicte de ses contentemens» (1599, f. 85v°) grâce à «l’examen de vertu»5. Elle incarne un lieu de perfection, tant au plan de sa topographie qu’à celui de l’organisation de son gouvernement.

Décrite comme un «possible petit reste de l’antique jardin d’Innocence» (1599, f. 85), une sorte de survivance de l’âge d’or, ses habitants sont des êtres exceptionnels, d’abord par le développement alchimique qu’ils connaissent dès leur enfance6, ensuite par leur organisation sociale. Comme l’île d’Utopie est protégée par un rocher, Béroalde invente l’«écueil de Filoé» (anagramme de Folie) contre lequel les personnages échouent avant d’être éventuellement conduits sur l’île utopique. Le narrateur de La Pucelle d'Orleans précise que «peu de Navires abordent en ces lieux, tant pource que cette contrée n’est point familiere, que pour la raison qui ne le veut pas […]» (1599, f. 84): faut-il donc être un peu fou pour accoster en cette nouvelle île utopique, ou bien est-ce la raison qui, se réservant les rivages de Sympsiquée, ne les fait découvrir qu’à de rares sages élus ? L’île d’Utopie se caractérise ensuite par le fait qu’elle est entourée d’une «mer dangereuse», et d’un «pays circonvoisin» (More, 1550, f. 34). Dans Le Voyage des princes fortunez, l’isthme rompu est déplacé au royaume de Sobare (sur la carte, l’isthme apparaît ouvert), et la mer dangereuse sépare le royaume de Maliquee (anagramme d’Alquimee) et l’île d’Ofir ( el dorado» de l’Ancien Testament), suggérant par là que la voie de la fabrication de l’or alchimique est périlleuse. Sympsiquée n’est donc pas protégée par la «mer dangereuse»,

5 Sur l’interprétation du nom Sympsiquée, voir l’introduction de Corinne F. Wilson et Colette H. Winn à leur édition critique de La Pucelle d’Orléans (…), 2008, p. 58-59.

6 Comme le phénix renaissant de ses cendres, l’enfant de Sympsiquée doit d’abord subir l’épreuve de l’œuvre au noir, avant de connaître l’étape de l’œuvre au blanc qui fera de lui un être d’exception (Béroalde de Verville, 1599, f. 120).

92

lAETITIA BONTEMPS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

mais par une «mer calme», une sorte de lagune nommée Philoxène (Sage étranger en grec), qui semble douée d’une intelligence propre qui lui permet de choisir ceux qu’elle admet (1599, f. 85v°). Sont exclus les avares, envieux ou orgueilleux rejetés en la mer de Triscovie (anagramme des Trois vice[s]), et seuls les sages curieux peuvent découvrir l’île en forme de «croissant fermé d’une grande chesne» (1599, f. 89).

L’isolement géographique de Sympsiquée l’apparente clairement à l’île d’Utopie. Comme les Utopiens, les Dames de Sympsiquée réservent un accueil bienveillant à l’égard des rares étrangers parvenus dans le «plus delicieux port du monde». C’est là que le futur père de Jeanne d’Arc, Borandor, devra prouver sa constance en amour pendant cinq ans – durée du séjour de Raphaël Hythlodée dans la capitale utopienne – à Armeliane dont le nom de famille, Areotes, présente une proximité phonétique avec Amaurote7.

Or à Sympsiquée règne une curieuse forme de gouvernement dont le but est d’offrir une harmonie parfaite entre le roi et son peuple. Les insulaires ont un roi qu’ils ne connaissent point et ce roi règne sans le savoir. Les distinctions entre le roi et son peuple sont abolies : sa majesté vit parmi le peuple sans autre honneur, excepté en cas de guerre, où la personne royale peut être nommée pour défendre son royaume. En Sympsiquée, on ne devient pas roi de père en fils, il n’y a pas de lignée royale : le roi est élu par un groupe de douze Dames choisies parmi les plus sages (1599, f. 109-110). Peut-on lire dans cette représentation de gouvernement idéal une condamnation du culte de la personnalité royale, ainsi que des vices bien connus de la cour (hypocrisie, envie, jalousie) ? Parfois le narrateur s’autorise une brève réflexion critique contre les mœurs de son temps : «[…] pres des Rois & des grands, sont le plus souvent les plus ineptes […]» (1610, I, 9, p. 77).

La topographie de Sympsiquée se révèle être une réécriture assez fidèle de l’Utopia, tandis que sa forme de gouvernement représente un idéal d’harmonie entre le roi et ses sujets, et que la perfection alchimique des insulaires est une libre adaptation du motif utopique. Mais c’est dans l’Hermitage d’honneur qu’il sera plus particulièrement question d’éducation, de jeux utopiques et d’initiation alchimique.

Éducation et jeux utopiques dans l’Hermitage d’honneur

L’Hermitage d’honneur est le lieu central de la seconde moitié du Voyage des princes fortunez: c’est là que les personnages se retrouvent pour célébrer le Grand Anniversaire d’Amour pendant une semaine. Décrit comme «le palais de plaisance le plus agreable du monde» (1610, I, 6, p. 53), il se compose en fait de sept palais imités du modèle du Peregrinaggio, d’une architecture composite, bigarrée, dédiés chacun à l’une des sept planètes connues et agencés autour d’un huitième palais central, le Palais des Secrets, invention béroaldienne. Le contexte et les procédés de sa construction sont différents du texte source : c’est le roi de Nabadonce (anagramme d’Abondance) qui fait bâtir par les sages du royaume ce haut lieu dédié

7 Armeliane, future mère de Jeanne d’Arc, est décrite comme « l’un des miracles de l’Isle & de la famille des Areotes illustre en cette contrée » (Béroalde de Verville, 1599, f. 90v°).

93

UTOPIE ET AlChIMIE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

à l’éducation de ses fils8. Ayant construit le «domicile Philosophique» à la manière d’un athanor, le sage Sarmedoxe (anagramme d’Érasme dox) peut « informer une substance susceptible de toutes belles formes » (1610, II, 2, p. 221), autrement dit éduquer les princes fortunez. Sa douce pédagogie s’inspire du traité humaniste d’Érasme De pueris statim ac liberaliter instituendis9 qui condamne notamment les coups donnés aux enfants :

Les trois Princes furent eslevez soigneusement en ce palais […] & les sages y prirent la douce peine, qui avec le temps esclot le contentement, conduisant ces beaux esprits aux sciences selon toutes les liesses de cœur que le soin doucement ordonné peut conceder. La malheureuse contrainte, la rouge fesserie, qui est le desgoustement des esprits, ne s’y est point trouvee : mais toute juste liberté, fournissant de loisir & d’occasions à ces beaux astres levans de s’accomplir en lumieres parfaites (1610, II, 2, p. 222).

L’apprentissage dans la «liesse», sans violence physique, semble complet (exercices de l’esprit et du corps), et mener à une forme de sagesse et de vertu parfaites, «car ce n’est pas tout d’estre scavant, il faut estre sage, et de sage vertueux par effect» (1610, II, 12, p. 230).

Si l’Hermitage d’honneur apparaît comme le lieu d’une éducation utopique par sa pédagogie et la perfection de ses précepteurs comme de leurs élèves, il est aussi un lieu d’initiation secrète, dont l’accès est réservé aux seuls adeptes de la «cabale des Ortofiles», les «fidèles à la règle» en quête de la « sainte extremité, le sacré but, l’heureuse fin de tout», «Ierotermia». L’une des inscriptions de l’Hermitage livre une règle expliquée par Sarmedoxe à l’Empereur de Glindicée : «Quitte, libre & jouyr de ses amours». Sarmedoxe précise que

Ceste Avise est un axiome du souverain bien d’icy bas, lequel consiste en la jouissance de l’honneste plaisir, sans qu’il en puisse ou doive survenir, ou eschoir, de l’incommodité ou du mal. […] les loix sont libertez, & les libertez sont loix aux gens de bien (1610, III, 18, p. 697-698).

L’initiation de l’Empereur de Glindicée s’inscrit dans un lieu où les règles se présentent comme des contraintes idéales ne frustrant ni le plaisir ni la liberté des initiés, un lieu miraculeux où

toutes les maladies sont changees en santé parfaite, les opinions muees en verité, les douleurs transformees en joyes, & les vaines passions faites asseurance permanente & vraye. Et qui plus est, si quelqu’un a perdu sa Maistresse, ou une Dame son serviteur, quelque amitié, inimitié, verité, feintise, ou dissimulation qu’il y ayt entr’eux, on rencontre là les nouvelles certaines de ce qui en est, pour en recevoir utile contentement (1610, III, 2, p. 456)

La Semaine du Grand Anniversaire d’Amour se déroule comme une longue fête initiatrice, ponctuée de chants, de bals, de promenades dans les jardins, de conversations galantes près des fontaines. Au cœur de l’initiation de l’Empereur de Glindicée se trouve encore l’Échiquier des secrets qui se présente comme une immense salle de jeu, composée de soixante-quatre

8 À l’origine, ce sont les princes qui font construire les sept palais pour divertir leur père, chaque palais abritant une princesse conteuse d’une histoire secondaire. Sur la réécriture du Peregrinaggio… dans Le Voyage des princes fortunez, voir Zinguer, 1993, p. 97-128 et El Hafidhi, 1997, p. 228-262.

9 Traité publié à Bâle par Jérôme Froben en 1529.

94

lAETITIA BONTEMPS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

cellules présentant chacune une énigme. Grâce au Plan du Palais des Secrets, fourni en annexe du roman, le lecteur peut facilement suivre le parcours de l’Empereur de Glindicée, et associer les bonnes solutions aux énigmes10. Contrairement aux jeux didactiques utopiens formant au combat des vertus contre les vices (MORE, 1550, f. 42v°), les énigmes de l’Échiquier des Secrets n’ont pas cette portée didactique et ne révèlent pas, non plus, le grand secret pourtant annoncé. D’après Neil Kenny, le paysage allégorique du Voyage des princes fortunez se fragmente «en une multitude d’édifices autonomes, en nombreuses îles dont le rôle est davantage de stimuler la curiosité que de révéler une philosophie» (1991, p. 202-203).

Le lieu alchimique de l’Hermitage d’honneur est le théâtre d’une éducation princière humaniste, formant des sages, savants et vertueux princes. Ce lieu fonctionne comme un cabinet de curiosités qui, par la fête et les jeux, vise à préparer l’esprit à accueillir le Grand Bien. Or ce cabinet de curiosité abonde en inventions qui repoussent les limites du possible dans la fiction.

Transparence utopique et autres inventions utopiques de la fiction

Les personnages du Voyage des princes fortunez évoluent dans un univers caractérisé par une transparence utopique : le recours au merveilleux permet bien souvent de rendre visible l’invisible. Le «somnifere divin», par exemple, est une « invention de Minerve » qui permet de procéder à un examen anatomique complet des parties intérieures du corps sans aucun acte chirurgical11. Pour un médecin comme Béroalde de Verville, voyager à l’intérieur du corps humain et y découvrir aussi bien les parties anatomiques que les preuves physiques des sentiments relève d’un idéal que la fiction permet de réaliser12.

Outre le fait que le portrait de l’être aimé est «gravé» au cœur de l’amant et qu’il peut être vu par d’autres, deux autres «inventions» permettent de rendre visible la sincérité ou la malhonnêteté d’un locuteur : il s’agit du «Miroir de justice» et de la «figure d’argent» que Béroalde emprunte au Peregrinaggio. La propriété de la figure d’argent est telle que : «si quelqu’un parle […], & qu’il deguise ses affaires, ou contrevienne à la verité, la figure rira, & s’il dit vray, elle se tiendra ferme & constante» (1610, II, 13, p. 172). Ainsi l’invention merveilleuse met-elle fin à toute possibilité d’hypocrisie en la dénonçant immédiatement. Le Miroir de justice, quant à lui, permet de rendre noir un coupable avec préméditation, rouge, un coupable sans préméditation, ou d’embellir le teint naturel d’un innocent ou d’un repenti. L’objet merveilleux permet de percevoir immédiatement et à coup sûr la culpabilité ou l’innocence d’un accusé, mais il permet également d’infliger, d’après le narrateur, une « penitence juste », à la mesure du délit ou du crime commis. Après une série de bains rituels donnés au coupable, soit le repentir a lieu et la coloration du coupable disparaît, son teint s’en trouve même embelli, soit «s’il ne s’est repenty, il en devient pire, & on le chasse au loin, ou selon l’enormité du fait on le jette au goufre». En éliminant la nécessité d’un procès, le Miroir de justice offre la possibilité magique de rendre visible

10 Ces énigmes sont bien souvent des réécritures des énigmes latines de Symphosius, éditées dans Aenigmata et griphi veterum ac recentium : cum notis Iosephi Castalionis I. C. in Symposium: adhec Pythagorae symbola. Et Ioan. Aegidii Nuceriensis Adagiorum Gallis vulgarium hac recenti editione auctorum in lepidos & emunctos latinae versiculos aductio, Duaci [Douai], Carolum Boscardum [Charles Boscard], 1604. Voir Luzel, 2001, p. 541-547 et Bontemps, 2008, p. 352-371.

11 Ces vertus sont décrites par un Ambassadeur de Nabadonce : le somnifère divin fait «devenir le cuir du corps, & parties musculeuses exterieures diaphanes comme verre, tellement qu’à travers on peut voir le mouvement des arteres, le coulement du sang, l’operation du poulmon, la diligence du foye, la mesure du batement du cœur, la disposition du cerveau, & tout ce que la doctrine anatomique se vendique pour l’admiration des parties du corps», (Béroalde de Verville, 1610, I, 6, p. 54).

12 L’examen anatomique de Mirepont révèle par exemple la preuve visuelle de sa constance en amour : «Quand ce fut à remarquer le cerveau plus diligemment, nous aperçeusmes beaucoup de nuages descendans au cœur, & dans ce trouble on apercevoit une belle petite image uniquement logee en ceste capacité qui retient les affections. Nos yeux estoient picquez sur ceste nouvelle, & nos entendemens entroient en ce corps pour discerner ce qui s’y faisoit, & n’y peusmes discerner qu’une figure seule, dont il fut jugé qu’il estoit constant» (Béroalde de Verville, 1610, II, 13, p. 333).

95

UTOPIE ET AlChIMIE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

la culpabilité, l’innocence et le repentir. La justice merveilleuse du Voyage des princes fortunez est idéale parce qu’elle apparaît comme immédiate, sans risque d’erreur ni de corruption, elle ne peut être remise en cause, contrairement à la justice que Béroalde affirme avoir connue (on sait qu’il a exercé une brève activité d’avocat13) : «[…] j’ay veu en des petits Baillages, des Juges plus sages qu’aux cours de Parlements […]» (1610, I, 9, p. 77).

Les romans béroaldiens abondent en inventions merveilleuses qui participent à la construction d’un univers utopique, au sens où s’y réalisent une justice qui serait parfaite et des désirs irréalisables, comme celui de communiquer à distance sans décalage temporel entre l’émission et la réception du message. Au sein du Tribunal d’Amour, le recours à la liqueur Emfrone permet de surprendre les amants en pleine conversation galante devant l’ensemble de l’auditoire (1610, III, 6, p. 509), sorte de transparence narrative qui frôle une tentation voyeuriste: les personnages sont surpris in medias res dans un duo intime qui se déroule en pleine séance publique du Tribunal d’Amour. D’autre part, les personnages peuvent choisir leurs rêves grâce au Talisman des songes volontaires, ou choisir d’oublier grâce au Talisman d’oubliance. Il devient possible de communiquer à distance et immédiatement par divers moyens14. Dans Le Voyage des princes fortunez, non seulement les corps peuvent devenir transparents, mais ils peuvent encore s’interchanger, se pétrifier ou se métamorphoser. L’onguent Anastasin redonne vie à une jeune femme qui avait été pétrifiée dans un autre roman béroaldien, L’Histoire d’Herodias, publié en 1600. Le roi Eufransis se livre à une métempsychose grâce au savoir d’un ancien sage (1610, II, 18-21) et grâce au secret de Cavalirée, Vivarambe se métamorphose en Lycambe (1610, I, 18, p. 162). Ces procédés merveilleux construisent un univers où tous les possibles semblent permis pour gommer les imperfections humaines et sociales. À propos des romans de Rabelais et d’Alector de Barthélemy Aneau, Jean Céard conclut un article par une réflexion qui conviendrait également au Voyage des princes fortunez : «[…] l’utopie est une fiction qui se sait fiction, ou, si l’on veut, littérature, et qui peut user de tous les moyens de la fiction, fût-ce l’invraisemblance ou le fantastique» (CÉARD, 1996, p. 67). L’utopie réside alors dans la capacité à inventer un lieu imaginaire où la justice est idéale, les corps transparents, où l’esprit maîtrise l’expression de l’inconscient ou les troubles de la mémoire, où la communication immédiate à distance est possible grâce à des inventions merveilleuses.

L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez apparaît finalement comme une œuvre atypique en marge du genre littéraire de l’utopie, relevant plutôt du genre apparenté du voyage imaginaire analysé par Raymond Trousson, voyage ici alchimique qui présente des éléments utopiques (Trousson, 1975, p. 27-28). La quête du Souverain Bien ou de la nymphe Xyrile s’effectue dans un archipel abondant en lieux de perfection. L’analyse de l’île Sympsiquée montre une réécriture précise de l’espace géographique de l’Utopia et une libre adaptation quant à l’organisation sociale des insulaires. L’Hermitage d’honneur est marqué par une éducation érasmienne et une «toute juste liberté». Les nombreuses inventions merveilleuses contribuent

13 Voir Augereau, 2003, p. 364.

14 De la Taprobane, Axilée communique de vive voix avec Calicut grâce à des tuyaux d’air congelé qui finissent par se détériorer, jusqu’à ce que la communication devienne impossible ; Giféol et Adérite, séparés, communiquent à distance grâce à une bague lunaire qui projette des signes sur la face visible de la lune ; Fonsteland et Lofnis échangent grâce aux bouquets de fleurs dissimulant leur message et leur portrait.

96

lAETITIA BONTEMPS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

à représenter une justice parfaite, un univers sans corruption où les corps sont transparents et peuvent communiquer à distance, immédiatement. De même que Verdun-Louis Saulnier analysait l’impulsion que l’Utopia avait donnée aux romans rabelaisiens (Saulnier, 1963), Le Voyage des princes fortunez pourrait être considéré comme un héritier rabelaisien du texte fondateur du genre utopique. Ainsi, le roman alchimique béroaldien prolonge la diversité du genre utopique au XVIe siècle (Trousson, 1975, p. 62-85) : dans la continuité des romans rabelaisiens, cette fiction stéganographique décrit des communautés comme la cabale des Ortofiles ou les insulaires de Sympsiquée dont les principes d’organisation et d’éducation, représentant un certain idéal, peuvent être considérés comme utopiques.

Carte du Voyage des princes fortunezParis, BnF, RES-Y2-2072,

Reproduction de l’édition critique de La Pucelle d’Orleans. Paris: Editions Champion, 2008, p. 57.

97

UTOPIE ET AlChIMIE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Références

ANEAU, B. Advertissement declaratif de l’œuvre. La Republique d’Utopie, par Thomas Maure, … Traduite nouvellement de Latin en François. Lyon: Jean Saugrain, 1559.

ARMENO, C. Peregrinaggio di tre giovani figliuoli del Re di Serendippo, per opra di M. Christoforo Armeno dalla Persiana nell’ Italiana lingua trapportato. Venise: Michele Tramezzino, 1557.

AUGERAU, L. La Vie intellectuelle à Tours pendant la Ligue (1589-1594). Thèse de doctorat sous la direction de M. Simonin et M.-L. Demonet. Tours: CESR, 2003.

BÉROALDE DE VERVILLE, F. L’Idee de la Republique… En ce poeme est discouru du devoir de chasqu’un, de ce qui conserve la police en son entier, parfait l ’estat, & monstre à tous selon leur qualité & condition le moyen de bien & heureusement vivre en la societé humaine, & se façonner aux bonnes meurs. Paris: Thimothée Joüan, 1584.

BÉROALDE DE VERVILLE, F. La Pucelle d’Orleans... Sous le sujet de cette magnanime Pucelle est representée une Fille vaillante, chaste, scavante & Belle. Paris: Mathieu Guillemot, 1599 [Paris: Éditions Champion, 2008].

BÉROALDE DE VERVILLE, F. L’Histoire d’Herodias, tiree des monumens de l’antiquité. Icy se verront les effais de l’impudence effrenee apres le vice attirans les punitions divines sur les esprits de rebellion. Tours: Sébastien Molin, 1600.

BÉROALDE DE VERVILLE, F. L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez. Paris: Pierre Chevalier et Claude de la Tour, 1610.

BONTEMPS, L. L’Histoire véritable ou Le Voyage des princes fortunez de François Béroalde de Verville (1610): vers une édition critique. Mémoire de Master Recherche « Genèse de l’Europe moderne » option Lettres modernes, sous la direction de Madame le Professeur M.-L. Demonet. Tours: CESR-Université François-Rabelais, 2 vol., 2008.

CAMMANN, S.V.R. Christopher the Armenian and the Three Princes of Serendip. Comparative Literature Studies, University of Maryland at College Park, vol. IV, n. 3, p. 229-258, 1967.

CAVE, T. Pré-histoires. Textes troublés au seuil de la modernité. Genève: Éditions Droz, 1999.

CÉARD, J. "La Fortune de l’Utopie de Thomas More en France au XVIe siècle". In: La Fortuna dell’Utopia di Thomas More nel dibattito politico europeo del ’500. Giornata Luigi Firpo (2 marzo 1995). Florence: Éditions Leo S. Olschki, 1996, p. 43-74.

COLONNA, F. Tableau des riches inventions ou Le Songe de Poliphile. Paris: Mathieu Guillemot, 1600.

DU VERDIER, A. La Bibliothèque… Lyon: Bathélemy Honorat, 1585.

98

lAETITIA BONTEMPS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

EL HAFIDHI-ATTYA, S. Œuvre et grand œuvre. Thèse de doctorat sous la direction de M.-L. Demonet. Université de Clermont-Ferrand, 1997.

GREINER, F. Les Métamorphoses d’Hermès. Tradition alchimique et esthétique littéraire dans la France de l’âge baroque (1583-1646). Paris: Éditions Champion, 2000.

KENNY, N. The Palace of Secrets. Béroalde de Verville and Renaissance Conceptions of Knowledge. Oxford: Clarendon Press, 1991.

LUZEL, V. Le Palais des Curieux de Béroalde de Verville, édition critique et commentée. Thèse de doctorat sous la direction de J. Céard. Université Paris X-Nanterre, 2001.

MORE, T. Description de l’isle d’utopie par Thomas Morus traduite par M. Jehan Le Blond. Paris : Charles Langelier, 1550.

TROUSSON, R. Voyage aux pays de nulle part. Histoire littéraire de la pensée utopique. Bruxelles: Éditions de l’université de Bruxelles, 1975.

SAULNIER, V.-L. "L’Utopie en France: Morus et Rabelais". In: Les Utopies à la Renaissance (Colloque international, avril 1961). Paris – Bruxelles: PUF – Presses universitaires de Bruxelles, 1963, p. 135-162.

ZINGUER, I. "De l’utopie à la science fiction: Le Voyage des princes de Béroalde de Verville. Planète Terre". In: Actes du deuxième colloque international de science-fiction (1985), éd. Jean ÉMELINA et Denise TERREL. Nice: Presses universitaires de Nice, 1986, p. 9-23.

ZINGUER, I. Le Roman stéganamorphique. Paris: Éditions Champion, 1993.

A cidade de Orbe no romance fabuloso de Barthélemy AneauYvone GreisUniversidade Estadual de Campinas

Grupo de Estudos Renascimento e Utopia

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Université François-Rabelais, Tours

Centre d´Etudes Supérieures de la Renaissance (França)

Resumo

Orbe, cidade imaginária concebida por Barthélemy Aneau em sua história fabulosa, Alector ou le coq (1560), não é uma unanimidade como utopia entre aqueles que se dedicam ao estudo desse tema. Se a descrição corográfica, assim como a perfeição de suas edificações, respondem a algumas exigências ou, melhor, a determinados critérios da utopia enquanto gênero literário, os cidadãos Orbitains, no conjunto dos desvios de seu comportamento, estão muito longe de serem considerados modelos para outras sociedades. Como a Inglaterra para Thomas More, seria possível afirmar que a ficção simbólica da cidade de Orbe corresponderia direta e unicamente à narrativa especular da cidade de Lyon, pelo fato de Barthélemy Aneau nela ter vivido uma parte de sua existência? As características da cidade de Orbe não poderiam estar associadas a uma outra realidade geográfica e sociopolítica que o autor poderia ter desejado mascarar?

Palavras-chave

Barthélemy Aneau, Orbe, utopia, Renascimento.

Yvone Soares dos Santos Greis é doutoranda no programa de pós-gradução em História e Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), orientada pelo professor Carlos E. O. Berriel, sob regime de co-tutela pela professora Marie-Luce Demonet, do Centre d'Études Supérieures de la Renaissance (CESR), da Université François Rabelais (Tours, França). Sua pesquisa consiste em traduzir para o português Alector ou le coq, une histoire fabuleuse, de Barthélemy Aneau (1560) e em apresentar um estudo crítico de seu XXIV capítulo, que trata da cidade de Orbe. Participa dos grupos de pesquisa Renascimento e Utopia e do Centro de Estudos sobre Utopia U-TOPOS coordenados pelo prof. Carlos Berriel.

100

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O objetivo deste artigo é analisar o capítulo XXIV de Alector ou le coq: histoire fabuleuse (1560), de Barthélemy Aneau. Primeiramente, serão apresentadas algumas características da cidade de Orbe;

em seguida, algumas reflexões quanto ao seu reconhecimento como gênero utópico; e, em terceiro lugar, as aproximações possíveis desta cidade imaginária com o lugar e tempo de seu autor. Referências a outros capítulos e personagens serão realizadas, sem que se pretenda fazer sua análise detalhada.

i. A cidAde de ORBe

A república de Orbe, cidade imaginária descrita no capítulo XXIV de Alector ou le coq: histoire fabuleuse (1560), é apresentada por seu autor, Barthélemy Aneau¹, sob forma de digressão em relação à narrativa dos acontecimentos já em curso nessa própria cidade. Este distanciamento do próprio lugar constitui o objeto de interesse para este trabalho que, de modo mais pertinente, poderia ser substituído pela noção de evasão².

A história fabulosa³ de Aneau estrutura-se de maneira complexa em duas tramas cruzadas4. O ponto de confluência dessas duas tramas é a cidade de Orbe, onde todos os personagens já se encontram acomodados. Para apresentá-la, é preciso indicar o seu estatuto urbano, isto é, suas características geográficas e a conseqüente distribuição de sua população, bem como a repartição das atividades do povo orbitano ao nível pessoal, político-econômico e social.

Orbe5 é uma designação comum no século XVI tanto para as esferas celestes, quanto para o planeta Terra, mundo ou ainda círculo. Situa-se no centro da Ásia (em Cítia), correspondendo de modo imediato à digressão mencionada por Aneau como cidade de lugar nenhum, ou-topos, em oposição aos topoi bem conhecidos do autor: as cidades de Bourges e Lyon. Essa cidade imaginária corresponde, conforme o afirma Marie-Madeleine Fontaine, ao “cosmos e à terra dos homens”. Orbe pretenderia ser uma síntese dessas duas dimensões no universo?

A arquitetura dessa cidade associa-se sempre à forma circular e nela erguem-se quatro magníficos edifícios públicos (a grande Basílica Dicaste6 ou Palácio Judicial; o Palácio Prytan7; o Hipódromo8; e o Teatro9 e as Arenas) descritos pela ordem de importância de suas respectivas finalidades. Um declarado despojamento, uma ausência de grande ornamentação, faz ressaltar, no interior de cada construção, o essencial do mobiliário: as estátuas, de representação clara e objetiva10, a ordem dos assentos, ou seja, o tipo de lugar a ser ocupado pelos representantes civis e pela própria sociedade. Essas edificações, além do sistema salubre de drenagem das águas e daquele de tratamento dos esgotos, tornam a cidade bonita e limpa11.

É bem provável que tanto os relatos de viagem, que possivelmente inspiraram o capítulo XVIII de Alector, quanto a própria reedição que fizera da Utopia de Morus12 tenham motivado Aneau na criação da cidade de Orbe. Seu plano circular é recorrente nos desenhos de cidades de finais do século XV13 e nas utopias. Outros indícios menos emblemáticos ilustram

¹ Esta nota se encontra no final deste artigo.

² "... qui a este icy mise par forme de digression..." Fim do capítulo XXIV de Alector ou le coq, f. 136 da obra em formato eletrônico disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr. Para fins deste artigo, e para evitar sucessivas repetições, todas as vezes em que o termo folha (f.) for utilizado será para designar qualquer referência à numeração de páginas do documento original em formato eletrônico disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr; L. Firpo se pergunta: “por que esta necessidade de evasão pela geografia?” Ao que responde: “Porque evidentemente, em um mundo conhecido, surgiria instantaneamente o desmentido” (2005, p. 231). Ainda sobre isso, V. L. Saulnier reúne cinco tipos de possibilidades de evasão: a visão edênica, aquela de um paraíso primitivo; o artifício bucólico, facilidade burguesa e fabricada; o tema do bom selvagem; as viagens imaginárias, com estadias maravilhosas num país fantástico; e os delírios quiméricos (1963, p. 137-162).

³ O uso do termo “fabuloso” visa distinguir Alector de um romance de cavalaria. História fabulosa opõe-se de modo simétrico à História verdadeira de Luciano de Samósata. A diferença sendo que a História fabulosa confessa sua mentira para dizer a verdade, enquanto a História Verdadeira vale-se verdadeiramente da mentira para declarar sua verdade. Ambas possuem a mesma natureza. M.-M. Fontaine desenvolve longamente esta noção entre as páginas XL e LXVIII de sua Introdução (in Aneau, 1996).

4 Esta nota se encontra no final deste artigo.

101

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

que o apreço pela forma circular não se limita à forma geral da cidade e de sua Praça Central: relevo e mobiliário também se revestem dessa forma14. As cem ruas em círculos paralelos, portanto concêntricos, remetem à idéia de uma espiral, o que regularia o tráfego, sem perturbar a grande praça.

Cada um dos quatro edifícios mais importantes da cidade de Orbe parece indicar a natureza de necessidades, carências humanas e fraquezas, materiais e morais, a serem supridas ou compensadas: a defesa dos direitos (Basílica Dicaste, ou Palácio da Justiça e prisão, que maior atenção recebe do autor); o aspecto lúdico, os jogos (Hipódromo); a participação do povo da coisa pública (Palácio Prytan); o catártico, a purga das emoções (Teatro e Arenas). Aneau distingue o templo do Deus JOVA, lugar do culto solar15, dos demais edifícios, porém em rápida alusão nesse capítulo XXIV. A casa Vaniah, abrigo dos desprovidos e desalojados da cidade, não é contemplada no conjunto urbanístico apresentado nesse capítulo. A descrição desse templo, que ocupa um lugar de primeira importância na Praça Central, e de suas atividades apresentadas no capítulo XXII, demonstra um particular interesse de Aneau pela questão religiosa16, lugar de certo sincretismo religioso, mas que não será objeto de análise neste artigo. Segundo Garin, Aneau associa utopia arquitetural, habitual no século XVI italiano, e utopia religiosa que serão submersas no conflituoso período do fim desse mesmo século (1963, p. 13-31).

Orbe é protegida por muralhas imensas17 e sua defesa é feita por cavaleiros, torres e sentinelas18, tendo o rio Cloterre como limite da cidade e via fluvial de acesso ao mar19. As portas da cidade20 situadas nos lugares correspondentes aos pontos cardeais referem-se, igualmente, às quatro estações do ano21. Primavera e verão estão situados nos dois quartos superiores; outono e inverno, nos dois quartos inferiores, lidos no sentido anti-horário, isto é da esquerda para a direita22. Cada uma das frações refere-se a uma ordem de qualidades: a primavera, quente e úmida; o verão, quente e seco; o outono e o inverno com essas qualidades invertidas23. É curioso notar que uma mesma cidade reúne condições climáticas bem diferentes por suas estações que, neste caso, são permanentes nos lugares que ocupam.

As frações do território orbitano, simbolicamente, correspondem a cada uma das estações do ano que, em seus respectivos lugares são, portanto, fixas, imutáveis, assim como os pontos cardeais, e representativas das sucessivas etapas percorridas pelo ser humano em seu ciclo natural de vida. Inevitavelmente, as estações do ano variam conforme o movimento de translação da Terra, elas são imutáveis na sua ordem: delas o homem não pode escapar. A possibilidade de transmigração entre as quatro portas da cidade representa a capacidade de o homem poder arbitrar sobre a natureza fixa das coisas, ou seja, revela o homem autárquico, o alcance ou limite de sua ação sobre elas ou sobre as condições que, por natureza, não poderiam sofrer alterações.

Tais condições tornam a cidade imaginária de Orbe um lugar de vida agradável: pela linha harmoniosa de sua arquitetura, seu clima que pode ser temperado pelo homem24, onde se observa a “concordante discórdia dos ventos”25, sua organização social regulada por leis conhecidas de todos26.

5 Esta nota se encontra no final deste artigo.

6 A Basílica Dicaste é o Palácio da Justiça, onde são tomadas as decisões sobre qualquer natureza de causas, civis ou criminais. Dioclès é o Potentat, soberano da justiça, ou seja, o juiz presidente.

7 Palácio sede dos Prytanes, ou seja, dos magistrados eleitos anualmente pelo povo e pelos doze governadores políticos e também do Pritaneu, edifício público e laico que acolhe os cidadãos eméritos da cidade. É a sede do povo.

8 Termo associado ao grego circus. Os modelos mais comuns sendo aqueles de Nero, de Flaminius e o Circus Maximus de Roma.

9 No corpo do texto, estes dois edifícios diferentes parecem se confundir. Os teatros antigos, normalmente, são construídos em semicírculo, destinados às representações cênicas. As arenas, por sua vez ovais, são destinadas aos espetáculos de caça e combate, como acontecerá no último capítulo da história.

10 Cada uma das estátuas corresponde a uma alegoria: à da Justiça; à da Prudência ou Previdência; e à da Fidelidade.

11 "...ainsi toujours et de toutes pars, estoit la ville nette et belle", f. 127 conforme original de Alector ou le coq em formato eletrônico disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr

12 Com alguns retoques, B. Aneau publica, em 1559, uma reedição da tradução da Utopia de Thomas Morus, realizada por Leblond em 1550.

13 Francesco di Giorgio Martini (1439-1501) e Leon Battista Alberti (1404-1472) são dois grandes representantes deste estilo urbanístico.

14 "...qui faisoient egale

102

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Contudo, não se conhece em Orbe um sistema educacional e de saúde, senão pelas condições de saneamento.

Na disposição física e eqüitativa de seu urbanismo, surge nitidamente a questão da hierarquia: os cidadãos orbitanos são livres para migrar de uma área para outra, enquanto os moradores das fronteiras27, os “homens”, são obrigados a trabalhar no campo e a obedecer às atividades de trabalho conforme a ordem das estações. A república orbitana tem sua ordem de estratificação social: os cidadãos são aqueles que pertencem a um “lugar superior” e, portanto, são livres pelo exercício de ir e vir tanto quanto lhes aprouver; os “homens”, para os quais não há nenhuma adjetivação, parecem representar o restante da população, ou, pelo menos, uma faixa dela, já que outras não são mencionadas. Nesta condição, este grupo de “homens” reclamaria um mecanismo de controle de suas ações, no caso, de seus deslocamentos e das conseqüências que deles derivariam. Esta referência à organização social de Orbe apesar de evidenciar um certo distanciamento da rígida hierarquia de ordens vigentes na sociedade francesa da época de Aneau28 não deixa, igualmente, de reconhecê-las. O modelo desta divisão social também se afasta, em certa medida, tanto do modelo que apresenta Patrizi em sua Città felice quanto daquele de Morus em sua Utopia29.

Se as edificações existentes na cidade imaginária republicana de Barthélemy Aneau demonstram equilíbrio em suas formas, dada a disposição geográfica e a excelência em matéria de higiene, nela não se encontra o mesmo modelo de equilíbrio moral: seu povo tem sede de vingança (capítulo I), sua história é manchada por um caso de necrofilia e pela ocorrência de sucessivas mentiras (capítulo VII), pelo abuso de poder por parte de um juiz iníquo (capítulo XXIV)30 e, em seu presente, pelo convívio com a aparição anual da serpente monstruosa (capítulo XXIV) contra a qual está marcado o combate de Alector, a fim de provar sua inocência sobre o assassinato de Noémie (capítulo I). Resumindo, em tudo que se encontra fixo, imóvel, que não dispõe de ânimo próprio, Orbe se faz à imagem da perfeição: uma digressão do mundo real, tendendo a corresponder à imagem de uma cidade utópica. Entretanto, naquilo em que possa haver a interferência humana, onde os critérios subjetivos são aplicados, o povo de Orbe é como o de qualquer outra cidade, movido pela moral contingente de sua história, ou seja, pela ordem de suas paixões, de seus vícios e virtudes, enfim, marcado por seu tempo e lugar.

ii. ORBe, UMA UTOPiA?

No limiar das grandes tensões entre Estados e Igreja, Reforma e Contra-Reforma, processos inquisitórios, perseguições e condenações, não é de todo surpreendente que se forje na literatura um procedimento que, de certa maneira, vai constituir-se no lugar de abrigo, de proteção à liberdade de expressão que se vê cerceada. O gênero utópico encontra sua permissão nesta impossibilidade do exercício da parrhesia31, da crítica da ordem comum das coisas, conforme se encontram dispostas no mundo. O lugar de permissão dessa crítica, portanto, é remetido ao universo

concurrence au clos de la ville; laquelle (comme dict est) estoit en parfaicte rondeur, tousjours peu à peu s’élevant jusques à l’ombilic du Mylieu...", f. 126; "cent petites rues en rondeur tournoiantes …", f. 126; "deux voultes (para a Basilique Dicaste, grifos meus), f. 127, "… un Parquet en demi rond lunaire", f. 128; "une table large de marbre, ronde et polygonale", f. 129; "tout le pourpris du theastre estoit de figure Ovalle", f. 134; "sept cens vingt piedz de contour", f. 135.

15 Observar a mesma importância que tem o Sol tanto na Utopia de Morus, quanto, mais tarde, em 1623, na Cidade do Sol, de T. Campanella. No caso de Alector, o sol, afora representar a simbologia do sistema solar, também poderia ser uma metáfora do culto da verdade pelo símbolo da Luz, ou da Revelação, ainda que não suficientemente clara se de tendência Católica ou Protestante.

16 Esta nota se encontra ao fonal do artigo.

17 58,47 metros de altura por 5, 84 de largura, correspondendo a “de la hauteur de trente toises et de l’espesseur de trois...”, cf. f. 124.

18 “…remparées de dix neuf Gros boulevardz avec leurs Chevaliers et faulses brayes, garnez de tours et sentinelles”, f. 124.

19 De certo modo, este rio “insulariza” a cidade, uma vez que ela está situada no corpo do continente. Esta característica vai ao encontro de algumas outras que servem para qualificar uma cidade, ao menos fisicamente, como utópica.

20 Esta nota se encontra ao final do artigo.

21 Trata-se de um modo peculiar de considerar as estações do ano pela divisão circular. Essa referência já está presente na obra de Aneau chamada Imagination Poétique (1552), versão francesa da Picta poesis.

22 Referência circular

103

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

imaginário, único lugar onde ela não é passível de censura, onde locais conhecidos e determinados podem ser transformados em outros mundos dentro ou fora do mapa-múndi, personagens reais travestidos, seres reais tornados criaturas irreconhecíveis na história real. Toda estrutura especular que reflete, inversamente, a imagem real das coisas no mundo, sobretudo na representação bem sucedida dos desejos, dos anseios humanos, dos ideais sócio-políticos e econômicos justifica a sua denominação como utópica?

A utopia como gênero, ao tomar a experiência histórica como metáfora permite aproximar o real e o imaginário (ilusório), formaliza, através da imagem da Cidade Ideal, o projeto que discute as imperfeições de um tempo e lugar reais e apresenta, satisfatoriamente ou não, propostas à sua superação (Berriel, 2005, p. 5-7). A função do gênero, nas palavras de Simone Goyard-Fabre, é “essencialmente prática, é um convite a modificar, por uma legislação perfeita, o curso da história” (1987).

Se os estudos acerca da temática da utopia são abundantes, o mesmo não pode ser dito sobre Alector e seu autor, menos sobretudo acerca daqueles que versariam sobre a cidade de Orbe. Essa cidade imaginária de Barthélemy Aneau, ainda que tomada como objeto de estudo por seus poucos críticos32, não é uma unanimidade como utopia. Marie-Madeleine Fontaine33 considera Alector ou le coq explicitamente como primeira utopia urbana da literatura francesa. No entanto, essa obra de Aneau não integra o elenco de utopias repertoriadas por Raymond Trousson em Voyages aux pays de nulle part (1999, p. 275)34, nem o da Bibliothèque Nationale de France35, ou ainda, o levantamento das utopias francesas de V. L. Saulnier, que reconhece o desenvolvimento deste gênero na França somente a partir do século XVII36. O objetivo aqui não é o de saber qual grupo reconhece ou não Alector como uma utopia. Importa mais se deter sobre suas características simbólicas e verificar a pertinência de se atribuir o adjetivo utópico a esta construção imaginária de Barthélemy Aneau.

Um dos aspectos contraditórios de Orbe está na oposição entre a perfeição estética urbana e forma de vida, isto é, entre beleza, higiene e harmonia arquitetural e uma aparente felicidade na conformação de cada membro da sociedade ao status quo. A maior atenção dedicada à Basílica Dicaste, por exemplo, bem como a apresentação dos demais edifícios, limita-se essencialmente à descrição de sua função, como se o fim a que se destina constituísse a garantia real de um modo de viver justo e equilibrado, permitindo o exercício ideal da Justiça.

Uma outra contradição consiste, de um lado, no agir dos habitantes em cada fração do território orbitano, onde questões fundamentais da vida associada estariam resolvidas e, de outro, no aspecto repressivo das condutas individuais, como é possível assistir na acusação, defesa e julgamento de Alector, no capítulo II. Ou seja, em cada uma das quatro partes da cidade, os habitantes encontram ali o seu conforto material e moral, pelo proveito que podem tirar das condições oferecidas pelo lugar37. Porém, a repressão de seus delitos, embora sejam julgados da maneira mais equânime possível38, termina com a sentença de Alector numa espécie de medição de forças onde o “bem”, representado pela figura do herói Alector, supera o “mal”,

possivelmente relacionada com a “roda de Isidoro de Sevilha”. Ver De natura rerum, sobre a antiga apresentação circular das estações do ano, conforme as quatro qualidades encadeadas estabelecidas por Isidoro, ou seja, quente, frio, úmido e seco.

23 Aneau teria um interesse particular quanto a isto, com o mostra seu próprio nome. Aneau associa-se às palavras ano e anel, ambos termos que remetem à idéia de circularidade.

24 Tal como na Città felice de Patrizi, as qualidades antagônicas do quente e frio se temperam.

25 “concordante discorde des vents”, f. 126.

26 Esta nota se encontra ao final deste artigo.

27 Trata-se dos moradores das “finages”, que significa "limite externo" (cf. Le Petit Robert). Como as cidades dessa época possuíam portas de controle de entrada e saída, os seus arredores eram lugares considerados de menor prestígio, ali aglomerando parte significativa da população.

28 A oposição que surge nuançada na obra traduz os reais conflitos da França do século XVI, isto é, entre a burguesia da cidade e os camponeses.

29 Esta nota se encontra ao final deste artigo.

30 Referência à punição feita pelo rei persa Cambyse, filho e sucessor de Cyrus, ao juiz iníquo, Sisamnes. Cambyse teria feito descarnar a pele de todos os membros de Sisamnes e com ela coberto o seu trono, além de ter obrigado Otanes, o filho do justiçado, a sentar-se sobre a pele paterna (Heródoto, V, 25).

31 Impossibilidade do dizer verdadeiro. Parrhesia, do gr. paresis [parésia].

104

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

a serpente monstruosa das Arenas. Orbe aproveita-se tanto do trágico acontecimento da morte de Noémie, quanto da coragem do Cavaleiro estrangeiro. Esse caráter oportunista do povo orbitano indica mais uma de suas imperfeições, porém, não manifesto explicitamente no conjunto da história. Para não sacrificar um de seus homens numa luta que lhe custaria a vida, o estrangeiro acusado da morte de sua amada surge como a melhor solução ao problema. Para a surpresa desses habitantes, Alector vence o combate, livra Orbe do grande mal que a aterroriza e é, em razão disso, escolhido, no último capítulo, “rei” da cidade republicana de Orbe, embora não seja assim coroado.

O meio século que distancia Barthélemy Aneau de Thomas Morus não acumula grande volume de obras acerca do gênero utópico na França. Entretanto, a obra de Platão e de Morus já era conhecida de nosso autor, além daquelas de Antonio Francesco Doni 39, de F. Patrizi40, de Francesco di Giorgio Martini e de Filarete41, além da utopia reformada de Kaspar Stiblin42. Alector oferece o testemunho do caráter narrativo e literário de uma obra utópica pela clareza sobre a impossibilidade de realização de uma tal cidade republicana. Essa obra representa para Aneau uma “ficção corográfica” semelhante aos modelos teóricos de alguns filósofos e oradores, como os estóicos e Cícero. A finalidade desta ficção seria a de “colorir a imagem de uma muito excelente polícia da República, certamente não como ela nunca tenha sido, ou seja, em lugar algum, mas tal como em todos os lugares ela deveria ser” (Fontaine, in Aneau, 1996, p. 552).

Do ponto de vista das relações sociais que se operam no exterior das magníficas instituições racionalizadas, Orbe não é utópica, uma vez que seu povo constitui-se de espectadores desorganizados, uma massa informe de gente sem ofícios definidos43. Sob outra perspectiva, como se descobre no capítulo XXII que descreve o tempo de JOVA, a cidade tem que prover com oferendas apresentadas ao tempo tanto os cidadãos meritórios da república domiciliados no Prytan como todo um grupo de desprovidos: órfãos, velhos, viúvas, estrangeiros, deficientes etc. Essa referência que atravessa rapidamente o texto do capítulo XXII parece sugerir que Aneau teria um modelo ideal de repartição e distribuição, pelo menos, dos bens in natura que pudesse atender a todos os segmentos da sociedade orbitana, através de um método mais justo.

Curioso, porém talvez não sem intenção, Franc-Gal, pai de Alector, instaura uma monarquia em Cítia, no capítulo XV, para dali logo se retirar, abandonando sua amada e mãe de seu filho, Priscaraxe, para chegar a uma cidade republicana, ver Alector admitido rei de Orbe e nesta cidade morrer. Sem intenção, pois a ordem dos acontecimentos descreve uma possível vontade ou sonho político de Aneau. O filho, como sucessor natural, continuaria a obra do pai, num outro regime político. Um mundo, um globo, um Orbe, onde formas diferentes de governo pudessem coabitar.

Alguns aspectos utópicos da cidade de Orbe poderiam ser repertoriados da seguinte maneira: uma geografia para onde se pode evadir e nela se situar (Cítia); um lugar que dispõe de elementos perfeitos (edifícios e sistema de saneamento); a arquitetura racionalizada, espaços coerentes

32 A bibliografia crítica por Brigitte Biot (1998) e a de M.-M. Fontaine (1996) separam os críticos de Alector e os de seu autor. Referências críticas e expressas sobre a cidade de Orbe encontram-se difusas nas obras dos autores repertoriados, como Baudrier, J. Gerig, V. L. Saulnier, P. Servet, K. Meerhoff, Bréghot du Lut, além de B. Biot e M.-M. Fontaine.

33 M.-M. Fontaine, Introduction, in Aneau, 1996, p. XIII para a primeira caracterização da obra como uma utopia. Inúmeras outras referências são realizadas ao longo de sua Introdução à organização da obra, no tomo II dedicado às notas, bem como em seu artigo de 1984, p. 550.

34 Entre a primeira obra do repertório, a Utopia de Morus (1516) e a de Ludovico Agostini (1591), não consta nenhuma utopia de origem francesa.

35 Bibliothèque Nationale de France: http://gallica.bnf.fr/html/dossiers/Utopie/

36 "Autrement dit, le genre de l’Utopie ne commence guère, en langue française, avant le milieu du XVIIe siècle" (Saulnier, 1963, p. 139). Embora cite E. Schomann, que teria identificado"un tel Pierre Dubois du XIIIe siècle, sous Philippe le Bel", Saulnier não indica Alector ou le coq, pelo menos neste artigo, como utopia urbana francesa no conjunto daquelas que integram o século XVI. A palavra surge na língua francesa em 1532, pelo emprego particular que Rabelais lhe confere.

37 Cada uma das quatro regiões de Orbe é mais propícia a um determinado tipo de atividade, conforme o interesse inerente ao ciclo de vida do homem: canto, dança, caça, circulação de bens e mercadorias, produção de vinho, culinária, atividade intelectual, composição de

105

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e funções claras; uma racionalização da hierarquia na distribuição dos poderes; as metáforas, oráculos e profecias que fazem transmigrar o mundo real para o campo da imaginação; um tempo remoto e incalculável, embora a narrativa ordene os fatos no decorrer dos dias da semana.

Esses primeiros aspectos conduzem Orbe a conformar-se com o primeiro valor de uma designação utópica, ou seja, ela é negativa, o contrário de alguma coisa e, também, a um segundo nível de valoração, agora positivo, o de reforma ou criação (cf. Saulnier, 1963, p. 143).

Embora seja possível reconhecer algumas características utópicas na obra de Aneau e concordemos em determinados pontos com algumas das análises críticas sobre sua obra, como a de que Alector possa terminar “sobre uma determinação da vontade individual virtuosa de seu autor” (Saulnier, 1963, p. 143), é necessário manter muita cautela, sobretudo porque, neste artigo, não se pretende esgotar um assunto que demanda um estudo minucioso do conjunto da obra.

É agora mais certo afirmar que o modelo da Utopia de Morus enquanto “tratado político”44, bem como a obra de Rabelais (Pantagruel, chap. XXIV e XXXI; Tiers Livre, chap. I), no vasto conjunto de sua simbologia, motivaram Aneau na criação de Alector e na sua conclusão que é a cidade de Orbe. Seria a República o modelo de representação política ideal de Barthélemy Aneau? Seria por demais ingênuo afirmar que sua obra proviria de um gosto particular do autor pela ficção, já que a trama oferece um excelente domínio e fina habilidade de Aneau nesse gênero? Alector revela a sensibilidade de seu criador tanto em relação ao realismo das situações políticas e econômicas, quanto ao caráter das dificuldades impostas pelas condições sociais da França da primeira metade do século XVI. Uma preocupação quase exacerbada pela aplicação dos ditames da Justiça evidencia um questionamento das instituições políticas de seu tempo45.

A narrativa e a elaboração dos personagens em Alector reforçam a força ficcional e declaram a intenção utópica de seu autor: a construção imaginária finge o real de modo verossímil e o projeto implantado discute, numa ordem do irrealizável, os grandes problemas ou as questões que afligem, perturbam ou são objeto de desacordo do autor em seu mundo real. Conforme o seu prefácio46, em 1559, à sua tradução da Utopia de Morus de 1550, uma “narração fingida”, mas que não recusa o princípio de realidade que funda a descrição. Não se trata de perder-se no sonho, ainda que sonho possa existir, mas de oferecer-lhe uma lógica, um princípio organizador, sobre um outro modo de vida: um elemento de extrema simplicidade que é a ordem do cotidiano. Na Utopia de Thomas Morus, esse cotidiano se traduz pelo seu conjunto de cidades, pela organização do Conselho da ilha, o senado, pela repartição das terras, pelo planejamento da economia, pelas funções públicas e religiosas, pelos ofícios, pela organização do trabalho, sua carga horária, pelas instituições educativas, de saúde, esportivas, pelas instâncias jurídicas e diplomáticas e até mesmo pela regulamentação do casamento. Nada há aqui que seja fantasioso, que não seja conhecido na esfera de vida de um homem comum (cf. prefácio de Delcourt in More,

versos e exercício da vida amorosa para citar apenas alguns.

38 Os capítulos II, III e IV são dedicados ao julgamento de Alector. Diócles, o Potentat soberano da Justiça da Basílica Dicaste, procura ouvir acusadores, acusados e testemunhas conforme o exige a balança da Justiça e ainda procede a uma investigação pessoal do crime, além da diligência que solicita à sua polícia.

39 Les mondes célestes, terrestres et infernaux (1558).

40 La città felice (1553).

41 Trattato di architectura (1465).

42 Coropaedia (1555).

43 Quanto a esse conjunto de considerações, M.-M. Fontaine declara sobre a obra de Aneau que, “neste sentido sua utopia não é utópica” e completa sobre o povo que, além de desorganizados e massa informe de ofícios, também seria sem sexo. Contudo, é possível reconhecer um certo papel da mulher na sociedade orbitana nas indicações feitas a Noémie (capítulo I), no depoimento de sua serva Arcane e em relação à prima de Noémie, Calliorhoé, (capítulo III) e, ainda, nas indicações feitas no capítulo XXIV quanto ao comportamento das donzelas nos momentos de premiação dos virtuosos de Orbe.

44 Cf. Charles Sorel, Bibliothèque française e Gabriel Naudé, Bibliothèque politique (Trousson, 1999, p. 10).

45 O termo inclusive, nesse caso, tem algumas implicações. Segundo Biot (1998, p. 71), Aneau teria desenvolvido uma relação muito estreita com o Consulado, mas conflituosa também em outros momentos. Conforme as considerações de Gilles Magniot, “a vontade de criar uma epopéia e uma

106

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

1987, p. 39). Por sua vez, Orbe integra ao mundo objetal perfeito, com seus belos edifícios, ruas, praças, eventos públicos, culto religioso etc, todas aquelas imperfeições da natureza humana, inclusive uma das mais extremas que é a de um assassinato. “Denunciar os males reais, inclinar-se ao aperfeiçoamento, tal é o projeto dos textos utópicos, inclusive o de Alector” (Fontaine, Introdução, in Aneau, 1996, XVII).

Resumindo, a existência, disposição e finalidade das construções em Orbe, ou seja, de seu plano urbanístico e arquitetural, indicam, num primeiro momento, uma cidade que se orgulha dessas condições materiais desenvolvidas, onde é possível manter um certo grau de convivialidade, uma vez que seu povo está satisfeito ou se contenta com a ordem nela estabelecida. De modo menos aparente, talvez resida nesta quantidade sóbria de edificações perfeitas, situadas em tempo e lugar nenhum, uma crítica bem protegida de Barthélemy Aneau quanto às carências das cidades de seu tempo, provavelmente daquelas onde mais conviveu: Bourges e Lyon.

A ficção de Alector e de sua cidade orbitana é, portanto, “como em todo empreendimento romanesco, a deformação voluntária de uma realidade que se toma para sonhar, mas de uma realidade que permanece muito claramente a fonte de tudo” (Fontaine, Introdução, in Aneau, 1996, p. XIX).

iii. cidAde iMAGinÁRiA, cidAdeS ReAiS

Orbe apresenta-se como um diálogo entre o autor de Alector e seu mundo real. Se, generalizando, a França constitui-se no topos a que ele se refere no mundo real, as cidades de Lyon e de Bourges representariam o locus mais imediato de sua criação romanesca.

Aneau viveu cerca de trinta anos47 em Lyon e as aproximações de Orbe com essa cidade são bastante evidentes. Primeiramente, do ponto de vista topográfico, o fato de a cidade de Lyon ser circundada pelos rios Rhône e Saône, cria o aspecto insular48 que caracteriza a maior parte das utopias literárias. A presença desses dois rios, além da muralha que cerca a cidade, projeta a idéia e a imagem de um lugar seguro. A Lyon do tempo de Aneau vive um período de certa prosperidade econômica , mas está longe de ter seus conflitos sociais resolvidos. Nessa época, o verdadeiro Hotel-Dieu, por exemplo, situado na entrada da cidade, asilo, abrigo e alojamento de velhos, doentes, pobres e estrangeiros encontra seu correspondente em Orbe na casa Vaniah50. O modelo de distribuição das oferendas no templo de JOVA testemunha a aspiração de Aneau por um maior equilíbrio social e que se traduzirá de modo mais agudo na crítica aos comerciantes banqueiros presentes em Lyon.

Como em Orbe, com seus portos situados na Porte Valentine, Lyon é uma cidade de intensa atividade mercantil. Feiras são abastecidas com mercadorias vindas de diversas partes do mundo51. Aneau evoca em Alector toda uma gama de profissões que vão dos ofícios associados ao mundo da agricultura52 ao dos banqueiros, como o atesta a figura do personagem Mammon, mentiroso, criminoso e necrófilo, no capítulo VIII. Ou seja, a

cosmologia francesa são talvez um sinal de que Aneau procure agradar o rei”, ou seja, Alector seria um elogio à França e um agrado às autoridades monárquicas de sua época. Ver resenha à edição de Alector de 2003 e o site http://www.lekti-ecriture.com/editeurs/Alector-ou-le-coq.html

46 Ver “Advertissement” de B. Aneau no cabeçalho da segunda edição da tradução francesa de Jean Le Blond (primeira edição, Paris, 1550) para Thomas Morus, La Republique d’Utopie, par Thomas Maure... Oeuvre grandement utile et profitable, demonstrant parfait estat d’une bien ordonnée politique. Traduite nouvellement em Françoys, Lyon, J. Saugrain, 1559, p. 3-6. A reprodução de parte do documento pode ser encontrada na bio-biobliografia de M.-M. Fontaine (in Aneau, 1996, p. 911-912).

47 De 1538-1540, Régent e de 1540-1551 Principal do Collège de la Trinité; Aneau licencia-se do cargo em 1551 ; de 1552 a 1558, vive de suas atividades junto aos impressores da cidade e do dote de sua esposa. Em 1552, Aneau volta a Bourges para seus estudos de Direito; a partir de 1554, instala-se definitivamente em Lyon; e, em 1558, retoma a sua função de Principal no mesmo colégio.

48 Também denominada por Champier, Josse Bade e outros L’Isle Gallique. Ver mapas no fim do artigo.

49 A obra de Aneau Lyon Marchant, 1541, é um elogio à cidade de Lyon, considerada “coração da Europa” pela sua importância em relação a Paris. Nas palavras de François Ier, “o olho do reino”, o que lhe conferia igual status ao da capital.

50 Cf. nota 17 deste artigo.

51 “...des gros bateaux chargez de toute sorte de marchandise, trafiquée de toutes pars du mõde», f. 124.

52 Por exemplo, os fruteiros,

107

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

atenção do autor percorre todos os segmentos da economia da época. A descrição das práticas ilícitas53 desse personagem e de sua total falta de escrúpulo para se obter o que deseja a qualquer custo54 demonstra uma certa crítica de Aneau a esta classe de negociantes pelos seus excessos e desonestidades. Orbe, em Alector, é um lugar privilegiado de proteção dessa crítica, isto é, sobre a classe dos banqueiros na cidade e sobre a sua riqueza acumulada, visto que os “ricos estrangeiros, que pela arrogância e excessos exasperavam os ‘bons lyoneses’ e que por suas práticas bancárias ilícitas, colocavam em dificuldade os pequenos comerciantes que, por sua vez, sentiam-se obrigados a se organizar em companhias para sobrevier” (Biot, 1998, p. X, n. 21).

A indicação desses poucos elementos serve apenas como rápida ilustração da possível proximidade que se poderia estabelecer entre a cidade imaginária de Orbe e a cidade muito real que é Lyon, no século XVI. Afirmar, no entanto, que Orbe corresponde diretamente à cidade que Aneau escolheu para viver não seria de todo prudente, uma vez que as atividades e personagens já mencionados poderiam ser encontrados em qualquer outro lugar real na França. O fato de Aneau não ter se referido a outras práticas comerciais em Orbe, tampouco de não ter mencionado os impressores ou o comércio da seda etc, não invalida uma certa associação com a cidade de Lyon, mas, por outro lado, ainda que o tivesse feito em sua cidade imaginária, isso também não seria suficiente para validá-la55. Outras obras de Aneau, como a Imagination poétique e Lyon marchand oferecem maiores evidências de sua relação com a cidade de Lyon, ressaltando a sua importância e imagem pelo conjunto de mitos, fábulas e alegorias. Em Alector, a porta Valentine de Orbe, que se localiza ao sul, ao indicar a direção de Valença é mais um traço claro dessa aproximação com a cidade lionesa. A julgar por seu domo, o templo de JOVA estaria perto daquele da igreja de Saint-Nizier56, uma espécie de umbigo da cidade. Nesse sentido, o plano cenográfico de Lyon, de 155057, provavelmente tenha influenciado Aneau na ficção corográfica de Orbe.

Outros indícios podem, por outro lado, conduzir esta aproximação da cidade imaginária em Alector com aquela de Bourges. A descrição de Orbe se aproxima mais da topografia desta última do que daquela de Lyon, se compararmos as vistas geográficas. Se em Lyon marchand são evocados dois montes, apenas uma elevação de terra é mencionada em Orbe. A presença das quatro portas da cidade, bem como a existência das Arenas, pode mesmo ser verificada no mapa de J.P. Adam, de 197658, que já demonstrava os limites da cidade entre os séculos III e IV d.C. e a localização de monumentos galo-romanos ou ainda no mapa de Nicolas de Fer, do século XVIII.

Embora Lyon tenha sido considerada l'oeil du royaume por François Ier, além de ter desenvolvido as qualidades e condições mercantis que lhe conferiam posição tão importante quanto aquela de Paris, Bourges, por sua vez, vai afirmar-se, primeiramente, como capital ducal, dada a presença de Jean de Berry e tornar-se-á uma das cidades da arte, ao lado de Dijon e Avignon, com o duque de Borgonha e o papa respectivamente. Posteriormente, do ponto de vista administrativo, são criadas instituições

colhedores de uva, de feno etc.

53 A intensa atividade mercantil em Lyon favorecia esse tipo de prática. De tal modo que, em 1463, foi criado o Tribunal de Conservação dos privilégios das feiras. Ver F. Bayard; P. Cayez, Histoire de Lyon, 1990, p. 116.

54 Mammon, cf. a tradição bíblica, representa o homem fascinado pelo dinheiro. Em Alector, ele vende “tempo” com juro e correção. Esse personagem envenena Thanaise, a donzela que rejeita o seu cortejo, utilizando para isso uma maçã do amor.

55 B. Biot questiona se teria sido “Aneau, um pintor da vida lionesa na primeira metade do século XVI”. Uma tal definição, segundo ela, seria errônea. “Está claro, nosso autor não procura o pitoresco ou ‘a cor local’. Suas referências à cidade e à vida que nela se desenvolve permanecem secas, rápidas e nunca dão conta do formigamento da população nas ruas e na cidade, no momento das feiras, por exemplo, ou da febre industrial dos ateliês dos impressores da rua Mercière. Ele não descreve as estadias na Corte de Lyon, tampouco faz alusão aos círculos de letrados e eruditos que contribuem para o esplendor da cidade e menos ainda às primeiras manifestações da Reforma. Quando se lembra de um episódio histórico que teve nossa cidade como cenário, o faz recorrendo à escrita emblemática, ao jogo de palavras e ao enigma que tornam seu argumento pouco compreensível, a não ser com um esforço de séria decodificação. Enfim, bem mais do que descrever, Aneau joga com a alusão e escolhe, dentre as realidades que ele evoca, aquelas que lhe permitem, sugerir algumas de suas tomadas de posição em relação aos personagens e instituições chaves da cidade, ou de construir um tipo de “mitologia lionesa” (1998, p.

108

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

tradicionais como o Conselho, a Chancelaria, o Tribunal de Contas, segundo o modelo das instâncias do poder real: trata-se do preparo desta cidade pelo duque de Berry ao refúgio de Charles VII. Assim, muito antes da existência de Aneau, sua cidade Natal já havia reunido um conjunto de condições para que a cidade da região do Berry59 viesse a ser a capital da França60. Os fatos históricos deste século que precede o da vida de Aneau, bem como os personagens que o animam podem ter fornecido alguns elementos de base à criação de sua história fabulosa. Mesmo não sendo possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre os grandes personagens da realidade com aqueles de Alector, não é de todo impossível reconhecer algumas coincidências como resultado de uma habilidade do autor em travestir seus personagens, exacerbar suas capacidades físicas, alterar-lhes as idades etc. Para além das possíveis correspondências diretas com a cidade de Lyon, freqüentemente reiteradas por M.-M. Fontaine e Brigitte Biot, a dimensão política e histórica pode vir a constituir-se uma outra via de compreensão de Alector.

A duplicidade é um aspecto que permite insistir no disfarce de personagens reais, seja no nome dos personagens fictícios, seja no seu significado, a começar pela redundância do próprio título, Alector ou o galo; Alector nasce duas vezes; Franc-Gal, pai de Alector, associa seu nome à própria história da França; Priscaraxe, sua mãe, é metade mulher, metade serpente; o Centauro assassino de Noémie é um sagitário de tamanho monstruoso, portanto, metade homem, metade eqüino, que ressurge após a morte; o antigo Archier de Orbe retorna depois da morte, personificado em serpente das Arenas; o hipopótamo Durat é capaz de nadar e voar; o próprio nome do autor composto de duas partes parece sugerir um interesse em mascarar um ser real num outro irreal, cuja desproporção garante a não-identificação, bem como que sua crítica a homens ilustres não possa ser imediatamente identificada.

O impacto de um reino instalado numa pequena cidade que se torna capital de um país, ainda que por curto período, a experiência em seu tempo com uma cidade mercantil, os grandes conflitos provocados pelas questões religiosas, o reflexo das ações dos grandes homens de seu tempo exercem influências no tratamento do imaginário. Barthélemy Aneau pode ter mesclado em Alector vários componentes imaginários, não necessariamente coincidentes no tempo e no espaço, e, assim, ter-se permitido criar, através da figura da ironia, uma narrativa que reúne a comédia e a tragédia, recitar e criticar pessoas e forma de governo, aproveitando-se de materiais estéticos disponíveis para também situá-los numa dimensão fora do real. Bourges dispõe ainda de edifícios emblemáticos, como a Catedral de Saint-Étienne, o palácio Jacques Coeur, o Hôtel Lallemand, l’Hôtel de Eschevins, o Hôtel Cujas61 dentre outros com os quais se poderiam estabelecer relações com a cidade de Orbe, mesmo se sua disposição geográfica não lhe é exatamente coincidente. Quanto aos personagens nela assentados, a imagem de Mammon, que foge de Orbe no momento da perseguição de seu filho Desalethès, associada à imagem de reais banqueiros de Lyon, poderia, em outra perspectiva, referir-se à figura de Jacques Coeur62, tesoureiro de

79, trad. minha).

56 A construção dessa igreja em Lyon data de 1548 ou 1949.

57 Os Arquivos Municipais de Lyon dispõem de uma cópia desse plano, que pode ser acessada pelo site http://www.archives-lyon.fr/old/public/plan-s/04.htm, conforme orientação recebida de sua diretora, Anne-Catherine Marin. Como a qualidade não é de alta resolução, optei pela não reprodução.

58 Cf. reprodução existente na obra de E. Meslé (1983, p. 28). Ver mapa ao fim deste artigo.

59 Berry ou Berri: referência à antiga província histórica da França durante o Antigo Regime, tendo Bourges como capital, mas cuja estrutura administrativa desapareceu com a Revolução Francesa.

60 Bourges torna-se capital da França de 1422 a 1437, quando Charles VII nela se refugia.

61 Para a cronologia desses monumentos: Catedral de Saint-Étienne, século XII, sob Louis VII; Palácio Jacques Cœur, 1443 aproximadamente ; o Hôtel Lallemand, 1490; Hotel des Échevins, fim do século XV; Hotel Cujas, início do século XVI.

62 “Esse foi o grande talento de Jacques Coeur: ter sabido lidar com esse potencial, feito circular mercadorias, emprestado dinheiro, tido a paciência para aguardar os pagamentos e sabido transformar essa paciência em dinheiro.” “Esse era, no plano local, apenas um dos aspectos da atividade do Grande Tesoureiro. No domínio internacional, ele desenvolveu, na França e no exterior, inclusive no Oriente, uma rede de trocas comerciais” (cf. Meslé, 1983, p. 122, n. 20).

63 A cidade de Bourges foi muito expressiva para a alquimia francesa. Um desconhecido monge do século XVI narra em sua obra Patriarchium bituricense um

109

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Charles VII, cuja biografia atesta, além de suas viagens, inclusive ao oriente pelo armador que era, sua desgraça face à Corte. Por sua capacidade de preparar uma poção mágica que envenenará e conduzirá Thanaise à morte, Mammon também poderia ser uma alusão ao mestre Goninus, famoso alquimista de Bourges, em 1522, que, com sua arte, teria ajudado alguns homens a enriquecerem-se e que também foge da cidade depois de um golpe63. Elementos do muito real Gilles de Rais64, homem rico, inescrupuloso e cruel da Bretanha, cuja péssima fama era disseminada em vários lugares do país, também poderiam ser considerados nesse conjunto de tentativas de aproximações entre o mundo imaginário de Orbe e o universo imaginário do tempo que precede Aneau. Para encerrar esta série de ilustrações, Noémie, a amada de Alector, poderia, por sua beleza, ter sua imagem associada àquela de Agnes Sorel, amante de Charles VII, ainda que o destino de suas vidas tenha sido absolutamente distinto65.

Para concluir, se a cidade imaginária de Orbe, no conjunto das características apresentadas neste artigo, revela-se como o lugar ideal em que Barthélemy Aneau pôde sentir-se livre para ordenar e criticar aspectos e personagens de seu mundo concreto, sob a proteção de um simbolismo entregue a múltiplas interpretações, nela também se evidenciam expressões ideais de justiça e equilíbrio, faltantes não apenas no plano das condições materiais de reprodução da vida, ou de sua regulação, pelas Leis, mas igualmente, no plano da tolerância, sobretudo religiosa, e da liberdade de expressão. A ausência de garantia razoável dessa condição fende a própria realidade, exigindo a evasão para um mundo imaginário e fundando, aí, o gênero utópico. Espera-se, pela perspectiva mais próxima da cidade de Bourges e do estudo mais aprofundado de alguns dos personagens mais emblemáticos de seu tempo, contemporâneos, ou não, oferecer diferentes perspectivas desse topos imaginário do autor de Alector.

episódio curioso em torno do mestre Goninus (ou Gonin), perito na arte alquímica e na da feitiçaria, como o foram seu pai e avó, e que teria ajudado alguns homens de seu tempo a enriquecer. O acontecimento se passa em 1522, no subsolo da paróquia de Saint-Ursin. Três amigos estreitam a sua relação com o mestre Goninus a fim de aprender a transmutar os metais em ouro. O mestre vende-lhes algumas instruções de base e, marcado o encontro para o aprendizado, foge com todo o dinheiro. Os três amigos adentram o atelier de Goninus e, na tentativa de realizar a transmutação dos metais, fazem explodir o local. Ninguém sobrevive. Patrick Boucheron, professor de História medieval da universidade Paris I identifica nos Arquivos de Oxford, sob proteção da Sé Apostólica sob Inocêncio VI, em 1254, a existência de um tal Amaury Gonnin d’Azebrouk, o que revela a transmissão das artes ocultas de pai para filho. Informações sobre seu artigo, "Sorciers et alchimistes du XIIIè au XVIè siècles, jusqu’à ‘A Discovery of Witchcraft’ de Reginald Scott 1584", não encontram-se disponíveis na internet.

64 Em 1429, Giles de Rais participa da campanha de Orléans e é nomeado marechal da França por Charles VII, título que lhe confere importante distinção social. Em 1435, ele decide voltar para suas terras na Bretanha e ali levar uma vida tranqüila depois de uma série de fracassos: uma vida de rei e repleta de esplendores. Entre 1432 e 1434, Gilles de Rais afunda-se na luxúria e no abuso, recorre a feiticeiros e alquimistas e faz um pacto com o diabo, visando conservar seus bens e fortuna. Na mesma época, ele começa e realizar os atos que o tornaram célebre: a morte ritualística de crianças em seus castelos. Impossível calcular quantas crianças e jovens teriam sido seqüestrados, estuprados e mortos. Apesar dessas práticas

110

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

LYONIn: N. de Nicolay. Description générale de la ville de Lyon et des anciennes provinces du Lyonnais et du Beaujolais, 1573, publiée et annotée par la Société de Topographie historique de Lyon. Lyon: Imprimerie Mougin-Rusand, 1881.

LYOnFrancesco Valegio, 1625 (?)

Imagens obtidas junto ao site: www2.ac-lyon.fr/../louise/lyon/lyonren.html

terem se perdurado por alguns anos, é um ato considerado violento, na Bretanha, que o conduzirá à prisão: tendo realizado um péssimo negócio com a venda de suas terras, Gilles sitiou a capela de Saint-Étienne-de-Mer-Morte e prendeu Jean le Ferron, irmão de Guillaume le Ferron, este último bispo de Nantes, que qualificou o ato como sacrilégio e motivo para proceder à já desejada prisão. Artigo de Marc-Antoine Bastien, cf. site http://www.hst.ulaval.ca/actint/Diable/DiableWeb/ gilles_de_rais.htm, última atualização feita pelo autor em 29/04/04, © 2003-2004 Marc-Antoine Bastien acessado em 26/06/09.

65 Apresentada à corte, Agnes de Sorel (1420-1450) atrai o rei Charles VII por sua beleza e torna-se a primeira amante oficial do rei. Jacques Coeur, tesoureiro real, é acusado de sua morte, livrando-se, posteriormente da acusação.

111

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

BOURGeS"Vrai pourtraict de la ville de Bourges" par Nicolas de Nicolaÿ, 1567, BM Bourges,

cliché François Lauginie.

In: E. Meslé. Histoire de Bourges, Éd. Horvath Roanne/Le Coteau, 1983, p. 28.

112

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Bibliografia

ANEAU, B. Alector ou le coq. Histoire fabuleuse. Edité par Marie-Madeleine Fontaine, tome I et II. Genève: Droz, 1996.

ANEAU, B. Alector, histoire fabuleuse. Traduicte en françois d'un fragment divers, trouvé non entier mais entrerompu & sans forme de principe. Lyon: P. Fradin, 1560, edição eletrônica disponível no Site da Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr, última consulta realizada em 30 de maio de 2009.

ANEAU, B. Imagination poétique traduicte en vers françois, des latins & grecs, par l'auteur mesme d'iceux. Lyon: M. Bonhomme, 1552, edição eletrônica disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr, última consulta realizada em 30 de maio de 2009.

ANEAU, B. Lyon marchant, satyre Françoise sur la comparaison de Paris, Rohan, Lyon, Orléans et sur les choses mémorables depuys l'an mil cinq cens vingt quatre, soubz allégories et énigmes par personnages mysticques. Jouée au Collège de la Trinité à Lyon, 1541. Par Pierre de Tours, 1542, edição eletrônica disponível no site da Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr, última consulta realizada em 30 de maio de 2009.

BASTIEN, Marc-Antoine. "Gilles de Rais ou l'histoire d'un monstre". In: http://www.hst.ulaval.ca/actint/Diable/DiableWeb/gilles_de_rais.htm, última atualização feita pelo autor em 29/04/04, © 2003-2004 Marc-Antoine Bastien, acessado em 26/06/09.

BAZIN, H. Le collège de la Trinité à Lyon au XVIe siècle. Discours prononcé à la distribution des prix du petit lycée de Saint-Rambert (Lyon). Paris: Imprimerie et Librairie Administrative et classiques Paul Dupont, 1886.

BAYARD, F.; CAYEZ, P. Histoire de Lyon. Lyon: Editions Lyonnaises d'Art et d'Histoire, 2007.

BERRIEL, C. E. O. "Editorial". In: MORUS - Utopia e Renascimento, nº 1, 2004.

BERRIEL, C. E. O. "Editorial". In: MORUS - Utopia e Renascimento, nº 2, 2005.

BIOT, B. Barthelemy Aneau, régent de la Renaissance lyonnaise. Paris: Champion, 2000.

BIOT, B. "De Lyon à Orbe". In: RHR, 47, déc. 1998.

BORDONOVE, G. Jacques Cœur et son temps. Paris: Pygmalion, 1977.

BRASART-DE GROËR, G. Aspects de la propagande religieuse. Genève: Droz, 1957.

CÉARD, J. "La fortune de l’Utopie de Thomas More en France au XVIe siècle". In: La fortuna dell’Utopia di Thomas More nel dibattito politico europeo del ‘500. II giornata Luigi Firpo, 2 marzo 1995. Firenze: Olschki, MCMXCVI.

113

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

CIORANESCO, A. Verbete "Aneau (Barthélemy)?-1561". In: Bibliographie de la Littérature Française du seizieme siècle. Collaboration et préface de V.-L. Saulnier. Paris: Klincksieck, 1959.

CLÉMENT, P. Jacques Cœur et Charles II: l ’administration, les finances, l ’industrie, le commerce, les lettres et les arts au XVe siècles. Étude Historique précédée d’une notice sur la valeur des anciennes monnaies françaises par Pierre Clément. Paris: Librairie Académique Didier Perrin et Cie, 1886.

DEMONET, M.-L. "La singularité lyonnaise, vue d’ailleurs". In: DEFAUX, Gérard (dir.). Langages, Lyon et l ’Illustration de la Langue Française à la Renaissance. Lyon: ENS Éditions, 2003.

FIRPO, L. "A utopia política na contra-reforma". In: MORUS - Utopia e Renascimento, 5, 2008.

FIRPO, L. "Para uma definição de Utopia". In: MORUS - Utopia e Renascimento, 2, 2005.

FONTAINE, M.-M. "Alector, de Barthélemy Aneau, ou les aventures du roman après Rabelais". In: Travaux d’humanisme et Renaissance, CCII, Mélanges sur la littérature de la Renaissance, à la mémoire de V.-L. Saulnier. Préface de P.-G. Castex. Genève: Droz, 1984.

GAFFIOT, Félix. Dictionnaire Latin-Français. Paris: Hachette, 2001.

GARIN, Eugenio. "La cité idéale de la Renaissance italienne". In: Les utopies à la Renaissance. Colloque international (avril 1961). Bruxelles: PUB; Paris: PUF, 1963.

GASCON, R. Grand commerce et vie urbaine au XVIe siècle, tome 2: Lyon et ses marchants (environs de 1520 – environs de 1580). Paris/La Haye: Mouton, 1971.

JOLY, A. & JOLY, H. "Un manuscrit autographe de Barthélémy Aneau". In: Mélanges d’Histoire du Livre et des Bibliothèques offerts à monsieur Frantz Calot. Paris: Librairie d’Argences, 1960.

LAUVERGNAT-GAGNAIRE, C. "Barthélemy Aneau, régent et principal dans la cité. Il rinascimento a Lione". In: POSSENTI, Antonio; MASTRANGELO, Giulia (a cura di). Atti del Congresso Internazionale (Macerata, 6-11 maggio 1985). Roma: Edizioni Dell’Ateneo, 1988.

MAGNIONT, G. Resenha de apresentação da edição de Alector ou le Coq. In: ANEAU, B. Alector ou le coq. Paris: Passages du Nord-ouest, 2003. Disponível no site: http://www.lekti-ecriture.com/editeurs/Alector-ou-le-coq.html

MALENFANT, M.-C. "La lecture critique chez Aneau: théorie et pratique". In: Textes de la Renaissance, sous la direction de Claude Blum. Edition critique publiée par Jean-Claude Moisan avec la collaboration de Marie-Claude Malenfant. Paris: Honoré Champion Editeur, 1997.

MARGOLIN, J.-C. "Barthélemy ANEAU (c. 1505-1561)". In: Anthologie des humanistes européens de la Renaissance. Paris: Gallimard, 2007.

114

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

MEERHOFF, K. "L’imagination en délire: un roman de Barthélemy Aneau au siècle des lumières". In: BELLENGER, Yvone. La littérature et ses avatars: discrédits, déformations et réhabilitations dans l’histoire de la littérature. Paris: Ed. Aux amateurs des livres, 1991.

MESLÉ, E. Histoire de Bourges. Collection Histoires des Villes de France. Le Coteau: Édition Horvath Roanne, 1983.

MORAES Jr., H. G. "Percorrendo a Cidade Feliz". In: MORUS - Utopia e Renascimento, 2, 2005.

MORAES Jr., H. G. "A Cidade feliz: a utopia aristocrática de Francesco Patrizi" [introdução e tradução]. In: MORUS - Utopia e Renascimento, 1, 2004.

MORAES Jr., H. G. "Crítica historiográfica de um ‘platônico-maquiavélico’. Francesco Patrizi da Cherso e os Dialoghi della istoria". Projeto de doutorado apresentado ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, junho, 2004. Documento impresso pelo próprio autor.

MORE, T. L’utopie ou le traité de la meilleure forme de gouvernement. Traduction de Marie Delcourt. Présentation et notes par Simone Goyard-Fabre. Partis: Flammarion, 1987.

RABELAIS, F. Gargantua. Pantagruel, tome I. Paris: Flammarion, 1912.

RIVAUD, D. Les villes et le roi: les municipalités de Bourges, Poitiers et Tours et l ’émergence de l’État moderne (v. 1440- v. 1560). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2007.

SAULNIER, V. L. "L’utopie en France: Morus et Rabelais". In: Les utopies à la Renaissance. Colloque international (avril 1961). Bruxelles: PUB; Paris: PUF, 1963.

SERVET, P. "Barthélemy Aneau lecteur de Rabelais?" In: Travaux d’Humanisme et Renaissance, CCLXXIX – Études Rabelaisiennes, tome XXIX, Droz, 1993.

SERVET, P. "Une figure Lyonnaise de l’Education humaniste: Barthélemy Aneau". In: L’éducation au XVIe siècle. Actes du Colloque du Puy-en-Velay, 13, 14 et 15 1993, 1994.

TROUSSON, R. Voyages aux pays de nulle part: histoire de la pensée utopique. Bruxelles: Éditions de l’Université de Bruxelles, 1999.

VAN TIEGHEM, P. "Aneau (Barthélemy)?-1561". In: TIEGHEM, Philipe Van (dir.). Dictionnaire des littératures, tome A-C. Avec la collaboration de Pierre Josserand. Paris: Quadrige/PUF, 1984.

nOTAS

¹ Não há consenso sobre a data de nascimento de Barthélemy Aneau (lat. Barptolemaus Anulus Biturix), situada ora em 1505, ora em 1510, na cidade de Bourges, França. Aneau freqüenta os cursos dispensados por A. Alciat, jurista e humanista italiano, e por Melchior Wolmar (Wolman?), helenista protestante; chega em Lyon, em 1538, primeiramente como régent, professor de retórica do Collège de la Trinité, hoje, Lycée Ampère, sendo dele nomeado

115

A CIdAdE dE ORBE NO ROMANCE fABUlOSO dE BARThélEMY ANEAU

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Principal, em 1540. Inovador em matéria de pedagogia, Aneau defende o princípio do respeito ao nível de maturidade e de desenvolvimento dos alunos, de uma higiene física, vestimentar e alimentar, a ser rigorosamente observada tanto por aprendizes quanto pelos mestres e de um bom aprendizado da própria língua, no caso, o francês, contra aquele de um latim memorizado e repetitivo. Aqui, a indicação evidente de sua Defesa da Língua Francesa. Como complemento de suas finanças, Aneau trabalha no Atelier de Gryphe, desenvolvendo grande contato com os impressores da época e apreço por eles. Foi responsável também, em 1548, pela organização das festividades em torno da entrada, na cidade de Lyon, de Henri II e Cathérine de Médecis, em 1550; do governador Marechal de Saint-André; e, em 1559, pela festa da paz celebrada pelo Tratado de Cateau Cambrésis. Em 1551, B. Aneau deixa o cargo de Principal para tentar uma cadeira de professor de Direito, em Bourges, porém sem sucesso. Retorna ao Colégio em 1558, que ficara naquele ínterim sob a responsabilidade dos Jesuítas e que, doravante, passam a fazer pressão junto ao Consulado para reaverem o cargo e a acusá-lo de corromper a juventude. A julgar pela ordem dos acontecimentos, Barthélemy Aneau serviu de bode expiatório no dia 5 de junho de 1561, dia de Corpus Christi. Num tempo de graves conflitos religiosos, um suposto incidente causado por um jovem que teria provocado a queda do cibório inflama os ânimos populares, levando-o a ser linchado. O Colégio é tomado pela multidão furiosa. Supõe-se que Aneau teria tentado controlar a situação, acabando por ser capturado e torturado com golpes de espada e pauladas e deixado morto no meio da rua, diante das crianças e demais alunos do Colégio. É difícil afirmar com certeza que Aneau tenha sido favorável às idéias associadas ao movimento da Reforma. Sua aproximação com os protestantes, no entanto, provavelmente criou uma imagem bastante distanciada daquelas preconizadas pelos defensores de uma política e moral religiosa conflitante com a Reforma. Se algum desejo de tolerância existia, isso lhe custou a vida. Sobre o conjunto de suas obras, remeter-se à apresentação bio-bibliográfica realizada por M.-M. Fontaine (In Aneau, tome II, 1996, p. 856-934); Alector também se encontra editado pela editora Passages du Nord Ouest (2003). Suas obras estão disponíveis em formato eletrônico na Bibliothèque Nationale de France, página Gallica http://gallica.bnf.fr; nas BVH - Bibliothèques Virtuelles Humanistes, www.bvh.univ-tours.fr; e na University of Virginia Library, http://www2.lib.virginia.edu/rmds/portfolio/gordon/completed_titles.html.

4 A primeira refere-se a Franc-Gal, pai de Alector, e a segunda ao próprio Alector. O pai descende dos Macróbios, sobreviveu a um dilúvio graças a um hipopótamo voador, cujas asas foram mecanicamente fixadas. Adormecido em Cítia, ele desperta nos braços de uma maravilhosa mulher serpente, chamada Priscaraxe, que ele abandona depois de trinta e dois dias ao descobrir que ela espera um filho dele: o futuro príncipe Alector. Antes de partir, Franc-Gal procura garantir a implantação de uma monarquia ideal, da qual Priscaraxe é eleita rainha e confia-lhe a educação do filho. Inicia-se a procura de um Templo Soberano onde Franc-Gal deve cumprir o seu destino, ali terminando e a sua vida, ou seja, uma longa peregrinação sobre o hipopótamo alado Durat. Sobre esse monstro marinho e aéreo, dotado de velas e tripulação, Franc-Gal vai contornar todo o Atlântico, já conhecido no Renascimento, de Gibraltar em direção ao norte, ladeando as costas americanas, depois o sul da África e todo o contorno do Oceano Índico. Pela ocasião de sua passagem, ele civilizou os povos selvagens, ensinando-lhes as leis. Franc-Gal chega em Targut, na Tartária, onde deve encontrar seu filho Alector. Durante este tempo, Alector nasceu duas vezes: sua mãe, Priscaraxe, deu à luz um ovo transparente como cristal, através do qual ela descobre seu filho, armado de esporas de ouro. Desamparada, ela decide “deixar por conta da Natureza” e choca o ovo sob sua pele. Ao fim de nove dias, Alector rompe a casca do ovo. Vendo-o crescer em beleza e inteligência (habilidade) e vendo também o excessivo interesse do filho por ela, Priscaraxe decide enviá-lo ao mundo para procurar aquele que o ordenará cavaleiro. Alector parte, então, corajosamente de Cítia sobre seu cavalo. Depois de algumas aventuras, encontra o espírito de um cavaleiro morto que lhe prega algumas peças (ele também descende dos Macróbios, mas foi, anteriormente morto pelo próprio Franc-Gal) e o carrega pelo caminho dos ares sobre um escudo. O cavaleiro mágico o deixa cair molemente sobre a grama, como uma rã, perto de Tangut, onde Franc-Gal acabara de ter a premonição de seu encontro. Pai e filho continuam juntos a viagem sobre o hipopótamo. Porém, no alto de um país (região) hiperbóreo, o curioso Alector, encarrapitado nas velas do monstro Durat, é alçado novamente pelo vento e deixado próximo da cidade de Orbe, que é o ponto de convergência do romance. Em Orbe, um ser monstruoso, encarnação da mentira, nasceu da relação de um inescrupuloso banqueiro, vendedor de tempo e dinheiro, e de uma defunta. O bravo Alector, no bosque vizinho, acaba de salvar a bela Noémie da perseguição de um Centauro. É aqui que o romance se inicia. Alector é condenado a enfrentar a serpente nas Arenas (no último capítulo do romance) para provar a sua inocência, pois Noémie morre, vítima do ataque do

116

YvONE SOARES dOS SANTOS gREIS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

centauro (não se sabe se o mesmo anterior ou outro). O combate acontece diante do pai, cujas viagens permitem que eles se encontrem uma segunda vez. Alector vencedor verá seu pai morrer no momento de sua vitória: a alma brilhante de Franc-Fal sobe em direção ao Sol, de onde Alector descende por sua mãe.

5 Orbe, do latin, orbis (ou orbs) refere-se a qualquer natureza de círculo. Chamam-nos a atenção os termos derivados, como Orbitanium (cidade de Sâmnio), cuja sonoridade remete ao nome do povo de Orbe, os orbitanos, ou ainda orbitudo, significando "perda de seus filhos". Haveria alguma relação possível a ser estabelecida entre essas palavras e a escolha feita por Aneau para a cidade imaginária de Orbe e seu povo? Quanto ao gosto desse autor de conferir uma natureza dualista às palavras que designam seus personagens, por exemplo, provavelmente com o propósito de confundir ou de não permitir um acesso imediato ao seu significado, Orbe talvez pudesse referir-se, para além do sentido de círculo ou esfera, a um outro significado mais distante de sua etimologia, ou seja, aquele de urbis (ou urbs), que designa a cidade (cercada com muralha), como se observa na situação corográfica desta cidade. São elementos que merecerão uma reflexão aprofundada em estudo posterior (ver Gaffiot, 2001).

16 O templo de JOVA obedece à escolha geométrica feita pelo autor: em perfeito círculo, erguido em 13 altos pilares, 13 arcos muito espaçosos e uma abertura superior também circular de onde se tem o céu à vista, 13 pórticos de galerias, cujo acesso é feito por quatro lances de escada aos 3º, 7º, 10º e 13º pilares, galerias com janelas de vitrais claros, sendo, portanto, o templo, muito iluminado. Assentos e bancos de cedro, ébano, cipreste e nogueira castanha, estando os bancos mais baixos destinados às mulheres. O interior é ricamente decorado de imagens e estátuas, douradas e prateadas, em gesso, pedra, madeira, ferro, marfim, representando homens e mulheres de virtude, mas também outros seres da natureza, como toda espécie de animais. O representante maior do tempo é o Archier, ou seja, o primeiro Sacerdote, que dispõe de nove ministros. A adoração dos fiéis é feita pela manhã, em silêncio “pelo coração e pela boca”. O ritual implica a leitura de um Salmo, cânticos e oferendas de todo tipo. O sacerdote e os ministros servem-se delas naquilo quanto necessitam e distribuem o restante aos pobres, velhos, doentes, deficientes, viúvas pobres, órfãos da cidade, estrangeiros abrigados no alojamento comum da cidade de Orbe chamado casa Vaniah ("alimentação de Deus, ou divina", em hebraico). O melhor das oferendas é enviado aos cidadãos meritórios da República, pessoas de virtude, que têm sua residência no palácio Prytan.

20 Porta Physe (gr. physis, natural), a leste, conformando-se ao nascer do Sol e referindo-se ao período da juventude, representa a primavera; Porta Thane (gr. thanatos, a morte), situada a oeste, correspondente ao inverno; Porta Valentine (devido à direção de Valença ou a São Valentino, ou ainda, a valens, do latim) designa a porta destinada ao trabalho, sobretudo no campo, ilustrando o verão; e Porte-passant, ao norte, designando o outono e, metaforicamente, o lugar e o tempo de passagem ou transição.

29 Segundo M.-M. Fontaine, “reflexão que desloca, em certa medida, a hierarquia rigorosa das ordens da sociedade tal como ela aparece na Città felice de Patrizi, de natureza platônica, sem falar da Utopia de Morus. Mas, apesar das subdivisões relativamente precisas e numerosas que perpassam as três funções de Dumézil (camponeses, artesãos, comerciantes; guerreiros, magistrados e governantes; e, clero), a Città felice de Patrizi não mantém uma bipolaridade radical, comparável àquela de Aneau, embora mais abertamente declarada, entre uma parte servil e infeliz da cidade e uma outra que goza da felicidade” (Città felice, fol. 14, Venise, 1553). Dumézil desenvolve esse conceito das três funções em sua tese Le festin d'immortalité. Étude de mythologie comparée indo-européenne, apresentada em 1924.

26 "Et au dessoubz estoient affix grandz tableaux de cuyvre, où en lettre fort grosse et de loing lisible, estoient engravées toutes les loix, selon lesquelles reçeües en la Republique d’Orbe les Orbitains se gouveranoient. Et cette raison estoient là affixes ces lois engravées en cuyvre, affin que nul ne prétendist ignorance de droict", f. 128.

A utopia tupi, segundo Montaigne José Alexandrino de Souza FilhoUniversidade Federal da Paraíba (Brasil)

Resumo

O ensaio “Dos canibais” (I, 31), de Michel de Montaigne, sintetiza as principais questões levantadas pelo discurso utópico a partir do século XVI. Como se sabe, a própria Utopia de Morus foi imaginada a partir do relato dos descobridores do Novo Mundo. Montaigne considerava a sociedade ameríndia como a consumação dos mitos antigos, em especial o da Idade do Ouro. Considerava-a próxima da perfeição, por ser uma sociedade organizada sobre princípios simples e regida pelas leis da Natureza. Os homens eram puros por serem precisamente selvagens e não terem sido corrompidos pela civilização. O discurso de Montaigne pretende ser também um exercício de historiografia “simples”, pela coleta de dados feita a partir da experiência e com base em relatos de primeira mão de testemunhas oculares idôneas. Montaigne levanta, ao narrar o episódio da visita de índios à França, questões como justiça social, relatividade cultural e representatividade do poder político, antecipando os desdobramentos que essas questões teriam no pensamento político moderno. A comunicação pretende re-apresentar a contribuição de Montaigne à literatura utópica, ao mesmo tempo em que procura refletir sobre o caráter ficcional desse tipo de discurso, a partir da apresentação de alguns dados novos, de natureza histórica, implicados nesse episódio.

Palavras-chave

Montaigne, ameríndios, Idade do Ouro.

José Alexandrino de Souza Filho é professor de língua e literatura francesas da Universidade Federal da Paraíba. É doutor em literatura francesa pela Université Michel de Montaigne (Bordeaux 3), onde defendeu a tese Civilisation et Barbarie en France au temps de Montaigne, sob orientação do Prof. Claude-Gilbert Dubois.

118

jOSé AlExANdRINO dE SOUzA fIlhO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Ao lado da Utopia de Thomas More, texto fundador do gênero utópico, o ensaio “Dos canibais” (I, 31), de Michel de Montaigne, talvez seja um dos textos renascentistas que melhor representam o

impacto que a descoberta da América provocou nos humanistas europeus, no século XVI. Diversos viajantes descreveram as sociedades ameríndias, alguns tendo tentado mostrar seus aspectos positivos em relação às européias, como o fez, por exemplo, Jean de Léry¹; diversos humanistas enalteceram a figura do selvagem livre, em detrimento dos civilizados presos a uma engrenagem que os escravizava, como o fez, por exemplo, Ronsard²; mas nenhum texto, em âmbito francês, foi tão bem sucedido quanto o de Montaigne em usar a sociedade indígena, no caso, a brasileira, para criticar a sociedade francesa, mostrando quão logicamente absurdas eram determinadas convenções, em particular, a representatividade do poder político nas monarquias, e quão injusta era aquela mesma sociedade que aceitava como natural, pela força dos costumes, certo estado de coisas doravante percebido como inaceitável, graças supostamente à intermediação do olhar estrangeiro.

Como se sabe, Montaigne não escreveu seu ensaio apenas para sugerir reformas na ordem política e social do Estado francês. Um de seus principais objetivos, senão o primeiro, era combater certa idéia, então amplamente difundida e em certo sentido aceita, segundo a qual os povos ditos bárbaros e selvagens eram moral e intelectualmente inferiores aos europeus. O ensaio tinha, portanto, um objetivo político claro: apresentar argumentos em defesa da humanidade dos índios, desmascarando aqueles que pretendiam usar tais argumentos para justificar suas ações criminosas a pretexto de civilização (palavra que ainda não existia)³ e religião. Nesse sentido, Montaigne alcançou plenamente seu objetivo, na medida em que seu ensaio tornou-se talvez o mais conhecido dos Ensaios e teve considerável repercussão.

O ensaio de Montaigne se estrutura a partir de dois eixos complementares: a descrição e exaltação da sociedade indígena e a exaltação daquele que foi posteriormente chamado de “bom selvagem”. Como muitos humanistas, Montaigne vê nas sociedades indígenas brasileiras uma espécie de sobrevivência da Idade do Ouro. Segundo este mito da Antiguidade clássica, difundido primeiramente pelos gregos (Hesíodo, Platão etc.) e posteriormente pelos latinos (Ovídio, Catulo etc.), no começo dos tempos os homens viviam em plena harmonia com a natureza e os animais, gozando de perfeita felicidade numa espécie de paraíso terrestre.

Na comparação entre o modelo literário e a experiência, diz Montaigne, a realidade supera a ficção. Não apenas o modo de organização da sociedade indígena supera o mito da Idade do Ouro como também modelos mais sofisticados, como a República de Platão, e outras “invenções” filosóficas:

Il me desplait que Licurgus et Platon ne l’ayent eüe [la connaissance des hommes du Nouveau Monde]; car il me semble que ce que nous voyons par experience en ces nations là, surpasse, non seulement toutes les peintures dequoy la poësie a embelly l’age doré, et toutes ces inventions à feindre une heureuse condition d’hommes, mais encore la conception et le desir mesme de la philosophie (1999, p. 206).

¹ Histoire d’un voyage faict en la terre du Bresil (1578).

² Discours contre fortune (1560).

³ As palavras correntes no século XVI relacionadas ao conceito de civilização eram civil e civilidade. A palavra civilização surgiu, pela primeira vez, na França, no século XVIII, através de Mirabeau pai (cf. Elias, 1973, p. 58).

119

A UTOPIA TUPI, SEgUNdO MONTAIgNE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Montaigne insiste na comparação com a sociedade ideal imaginada por Platão contrapondo-a à sociedade real, espontânea, não planificada, dos índios brasileiros, com vantagem para esta última. Esta era melhor precisamente porque não possuía a organização e o refinamento daquelas a que chamamos hoje de civilizadas. A famosa enumeração negativa é também a melhor síntese da sociedade indígena. Aos olhos de Montaigne esta pobreza institucional e organizacional é a verdadeira riqueza dessas comunidades; a ausência torna-se vantagem e não deficiência. A sociedade indígena é a sociedade do não, da ausência.

C’est une nation, diroy je à Platon, en laquelle il n’y a aucune espece de trafique, nulle cognoissance de lettres; nulle science de nombres; nul nom de magistrat, ny de superiorité politique; nul usage de service, de richesse ou de pauvreté; nuls contrats; nulle successions; nulles partages; nulles occupations qu’oysives, nul respect de parenté que commum; nuls vestements; nulle agriculture; nul metal; nul usage de vin ou de bled (1999, p. 206).

Comparativamente a outros textos contemporâneos, especialmente os relatos de viagem ao Brasil que André Thevet e Jean de Léry escreveram, a descrição que Montaigne fez da sociedade indígena e seus costumes não constitui propriamente uma novidade. Ele alega, porém, possuir informações de primeira mão, a ele transmitidas por uma testemunha ocular idônea: um empregado seu que teria participado da fundação da França Antártica, sob o comando de Villegagnon. Esta circunstância lhe serve como método historiográfico, pois Montaigne pretende repassar ao leitor informações “puras”, destituídas de preconceitos e falsificações, comuns entre viajantes com veleidades intelectuais ou literárias. A esse método de escrever a história, sugere Montaigne, poder-se-ia chamar de topográfico, ou seja, sua pretensão é tão-somente dar conta da fatia do conhecimento implícita em determinado lugar ou objeto de estudo. Subjacente ao método, como se sabe, está uma crítica dirigida ao cosmógrafo André Thevet, personagem polêmico que era acusado justamente de inventar e mentir “cosmograficamente”, como disse seu desafeto e rival Jean de Léry. Se o empregado foi ou não uma invenção de Montaigne, é uma questão em aberto. Qualquer que seja a resposta, o fato é que é possível encontrar nos livros de Thevet e Léry a maior parte das informações veiculadas por Montaigne 4, exceto a famosa “canção da serpente”, poema citado como exemplo das capacidades poéticas dos índios “selvagens” brasileiros5.

O valor etnográfico do ensaio sobre os canibais é evidentemente menor se comparado ao seu valor ético-político, ou humanitário. A defesa da humanidade dos índios e a capacidade de abertura à alteridade cultural de que Montaigne dá provas no seu ensaio, em especial a questão do canibalismo, são elementos que certamente contribuíram para a repercussão positiva que o mesmo teve ao longo de séculos. Ao lado desses elementos, muito contribuiu a narrativa, no final do ensaio, da visita de índios brasileiros à França.

Investigamos este episódio em detalhes, através de pesquisas feitas em arquivos e bibliotecas da cidade de Bordeaux, bem como pelo cruzamento

4 Este trabalho de cotejo foi realizado por Afonso Arinos de Melo Franco no seu clássico O Índio brasileiro e a Revolução francesa – As origens brasileiras da teoria da bondade natural, p. 113-118.

5 A “canção da serpente” foi apropriada pelo poeta tropicalista Waly Salomão que a recriou com o título de “Cobra Coral”. Publicada no seu último livro de poemas, Tarifa de Embarque (2000), o poema de origem indígena foi transcriado, tendo sido parcialmente traduzido e parcialmente modificado. O poema de Salomão foi musicado por Caetano Veloso no disco Noites do Norte (2000). A “canção da serpente” pode ser considerada o primeiro poema brasileiro. Ver a propósito nosso texto “Montaigne, Waly Salomão e a ‘canção da serpente’”, apresentado na XII Congresso Internacional da Abralic, em junho de 2008, em São Paulo. Ver também nosso livro Projeto “Livraria” de Montaigne – Um passeio ao universo do escritor francês Michel de Montaigne, p. 32-33.

120

jOSé AlExANdRINO dE SOUzA fIlhO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

de diversas fontes bibliográficas da época e atuais6. Chegamos à conclusão que o mesmo foi inventado por Montaigne, a partir de determinados fatos historicamente comprováveis, mas aos quais ele acrescentou elementos ficcionais, de maneira a adequá-los aos fins que pretendia. Chamamos de “conto canibal” o episódio da suposta conversação entre os índios brasileiros e o rei francês.

Não apenas a conversação foi inventada quanto o próprio local em que ela teria supostamente acontecido não correspondem à realidade histórica. Na verdade, Montaigne alterou o local dos fatos, pois houve, de fato, um encontro envolvendo os personagens citados. Mas ele aconteceu em Bordeaux, cidade do escritor, em 1565, durante a entrada real de Charles IX, e não, como Montaigne afirma, em Rouen, em 1562. Não cabe aqui reapresentar em detalhes nossos argumentos e mostrar as incoerências e contradições do texto de Montaigne à luz de documentos da época e de informações especializadas. Tivemos a oportunidade de fazê-lo em artigo da revista Morus (2006), entre outras ocasiões.

Mas uma vez enunciada nossa tese, não poderíamos deixar de apresentar resumidamente seus principais argumentos. De maneira geral, uma pesquisa sobre as circunstâncias históricas implicadas pela narrativa de Montaigne não permite validar o texto de Montaigne à luz dos fatos históricos. Vejamos por quê.

Montaigne afirma que os índios brasileiros conversaram com o rei da França em Rouen “no tempo em que o finado rei Charles IX lá estava” (1999, p. 213, tradução nossa). É possível datar esse suposto encontro através de uma simples pesquisa histórica: 1562 foi o ano em que o rei esteve presente ao cerco da cidade então ocupada pelos protestantes. Ocorre que o cenário era devastador, de acordo com diversos relatos de testemunhas oculares, uma vez que Rouen estava semi-destruída, depois de meses de violentos combates. O cenário real e aquele descrito no ensaio não combinam. Em “Dos canibais” (I, 31), Montaigne diz que os índios foram levados a passear pela cidade a fim de admirarem sua arquitetura e “a forma de uma bela cidade” (1999, p. 213). Em 1562, Rouen estava desfigurada, sua famosa catedral estava em situação deplorável. Essa contradição criou certo embaraço crítico em diversos pesquisadores que investigaram a questão, sobretudo devido à inexistência de outros testemunhos do suposto encontro, afora o de Montaigne.

Aprofundando um pouco mais a pesquisa, deparamo-nos com um conjunto de elementos que reconstituem a verdade histórica e desvelam as artimanhas de Montaigne. Em 1565, o mesmo rei Charles IX fez uma suntuosa entrada em Bordeaux, cidade de Montaigne. Diferentemente de Rouen, em 1562, a entrada de Bordeaux é pródiga em documentos e testemunhos oculares. O exame desse material não deixa dúvidas que o teor da suposta conversação entre os índios e o rei foi inventado por Montaigne.

Montaigne fazia parte do corpo social que desfilou diante do palanque do rei, armado fora dos muros da cidade, em frente ao convento dos Cartuxos, no atual bairro de Quinconces, em Bordeaux. Ele tomou parte

6 Trata-se da nossa tese de doutorado Civilisation et Barbarie en France au temps de Montaigne, defendida em 19/12/2003, na Université Michel de Montaigne, em Bordeaux, sob orientação de Claude-Gilbert Dubois.

121

A UTOPIA TUPI, SEgUNdO MONTAIgNE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

do desfile como membro do Parlamento de Bordeaux, juntamente com seus colegas. Desse desfile participaram também doze “nações estrangeiras”, ou seja, grupos de estrangeiros de várias origens, vestidos com seus trajes típicos. Como as entradas reais francesas imitavam o modelo dos antigos triunfos romanos, esses estrangeiros representavam os povos subjugados pelo rei da França, à semelhança dos antigos imperadores romanos, quando regressavam à Roma trazendo exemplares dos povos subjugados ao Império Romano. Em 1565, em Bordeaux, além de egípcios, turcos, árabes, gregos etc., faziam parte da ala das “nações estrangeiras” três tribos de índios brasileiros. De acordo com um dos relatos da entrada, tratava-se de “americanos, selvagens e brasileiros”7.

A certa altura do desfile, os representantes de cada uma das doze povos subiram no palanque e saudaram o rei, cada um em sua língua nativa, com tradução simultânea para o francês, graças aos intérpretes. Todo o desfile do corpo social foi pormenorizadamente descrito pelo primeiro escrivão do Parlamento de Bordeaux, Jacques de Pontac, que assistiu a tudo desde o palanque8. Em momento algum, ele faz referência a uma suposta conversação que teria havido entre os representantes das tribos indígenas brasileiras e o rei da França. Os outros documentos produzidos em função da entrada tampouco fazem alusão a este suposto fato, mas tão somente ao exótico encontro9.

Outros acontecimentos relativos à entrada aparecem no ensaio de Montaigne, iluminando o palimpsesto do texto. Mencionamos aqui apenas a mercurial de Michel de L’Hospital, pronunciada no Parlamento de Bordeaux alguns dias depois da entrada e à qual Montaigne estava presente, conforme consta dos Registros Secretos daquele Parlamento. A metáfora dos bárbaros usada no começo do discurso de L’Hospital, então chanceler da França, serviu a Montaigne de abertura para o ensaio sobre os canibais10.

Voltando ao encontro entre o rei e os índios, podemos então dizer que Montaigne, testemunha ocular dos fatos, serve-se desse acontecimento para imaginar uma conversação em que põe na boca dos canibais um discurso subversivo. O objetivo era mostrar aos franceses sua própria sociedade vista pela ótica de estrangeiros, de forma a fazer com que eles pudessem percebê-la de outra maneira, sem o condicionamento dos costumes. A primeira “observação canibal” questiona a representatividade do poder político na França, uma vez que ele era exercido por um adolescente (Charles IX tinha então 15 anos). A segunda trata da questão da desigualdade entre as pessoas. Nesse sentido, pode ser entendida como uma denúncia da injustiça social. Mas Montaigne vai além e faz seus canibais se indignarem com a passividade dos menos favorecidos, sugerindo uma espécie de revolta popular; o canibal se pergunta então: por que os mais pobres não pegavam os mais ricos pela gola da camisa e por que não ateavam fogo nos seus palacetes?

Conforme dissemos anteriormente, chamamos o episódio do encontro e da conversação dos índios brasileiros com o rei da França de “conto canibal”. Este elemento aponta para o caráter ficcional do discurso utópico característico desse ensaio de Montaigne.

7 L’entrée du Roy à Bordeaux, fol. A iii (r°).

8 Registre secret du Parlement de Bordeaux (copie Verthamon), Tome 16, p. 579-580.

9 Jouan, 1566, p. 40; La Popelinière, 1581, Livre X, p. 381 ; D’Aubigné, 1612-1620, Tome II, livre quatriesme, chapitre V, p. 227.

10 « Registre secret du Parlement de Bordeaux » (copie Verthamon), Tome 16, p. 610-612.

122

jOSé AlExANdRINO dE SOUzA fIlhO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Gostaríamos de terminar nossa comunicação, apontando para certas semelhanças entre os escritores Thomas More e Michel de Montaigne. Praticamente contemporâneos11, os dois humanistas criaram gêneros literários tipicamente modernos: a utopia e o ensaio. Embora não sejam radicalmente novos, uma vez que têm antecedentes na história literária, os novos gêneros serviram, respectivamente, de porta-voz ao desejo de reforma social e política, e de instrumento de expressão para uma subjetividade crescentemente auto-afirmativa. No caso de Montaigne, poderíamos acrescentar que determinados ensaios, em especial “Dos canibais” (I, 31), também contemplam, em certa medida, o mesmo desejo que animou Morus. Enquanto um “inventou” a utopia o outro “inventou” o “bom selvagem”.

Referências

D’AUBIGNÉ, Agrippa. Histoire universelle. Edité avec une introduction et des notes par André Thierry. Genève: Droz, 1981-1982.

ELIAS, Norbert. La civilisation des mœurs. Paris: Calman-Lévy, 1973.

L’entrée du Roy à Bordeaux, avecques les Carmes Latins qui luy ont esté presentez, & au Chancelier. A Paris, de l’Imprimerie de Thomas Richard, À la Bible d’or, devant le College de Reims, 1565.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O Índio brasileiro e a Revolução francesa. As origens brasileiras da teoria da bondade natural. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

JOUAN, Abel. Recueil et Discours du voyage du roy Charles IX. etc. A Paris, Pour Jean Bonfons Librairie, en la rue neufve nostre Dame, à l’enseigne S. Nicolas. M.D.LXVI.

LA POPELINIERE, Lancelot Voisin de. L’Histoire de France etc. La Rochelle : Abraham Haultin, 1581.

LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Bresil (1578). Texte établi, présenté et annoté par Frank Lestringant. Précédé d’un entretien avec Claude Lévi-Strauss. Paris: Le Livre de Poche, 1994.

MONTAIGNE, Michel de. Les Essais. Edition de Pierre Villey. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.

Registre Secret du Parlement de Bordeaux commençant le 9. Juin 1564 et finissant le 31 Octobre 1565. Recueilli et mis en ordre par les soins de François Martial de Verthamon d’Ambloy. Bordeaux 1770, t. 16.

RONSARD, Pierre. Oeuvres complètes. Edition établie, présentée et annotée par Jean Céard, Daniel Ménager et Michel Simonin. Paris: Gallimard, 1993-1994.

SOUZA FILHO, José Alexandrino de. "A arte do blefe: Montaigne e o mito do bom selvagem". In: MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, 3 , 2006.

SOUZA FILHO, José Alexandrino de. Projeto “Livraria” de Montaigne. Um passeio ao universo do escritor francês Michel de Montaigne. João Pessoa: Editora Universitária, 2007.

11 Quando o inglês é executado por causa de suas convicções ideológicas, em 1535, o francês provavelmente ainda residia em Papessus, em casa de sua ama de leite, próximo ao castelo da família, pois tinha então apenas 2 anos de idade.

Utopia, terra de hereges?Hilário Franco Jr.Universidade de São Paulo (Brasil)

Resumo

Mesmo sob forma interrogativa, o título deste trabalho pode causar estranheza, pois sabidamente Tomás More morreu pela sua fé católica e definiu-se no seu epitáfio como “haereticis molestus”. Ademais, ele atacou o protestantismo no seu Responsio ad Lutherum (1523), aplaudiu a execução de Tomás Müntzer (1525), foi bastante crítico e impositivo em relação à heresia de William Tyndale em obra escrita a pedido do bispo de Londres, A dialogue concerning heresies (1529). No entanto, todo esse envolvimento ardoroso parece ter sido decorrência da ruptura luterana, antes da qual o humanista inglês se caracterizara pela tolerância. Há mesmo, à primeira vista, convergências entre certos pontos fundamentais da Utopia e certas idéias defendidas por seitas heréticas dos séculos anteriores. Como algumas delas pouco tocaram os territórios britânicos, a constatação daquelas convergências torna-se surpreendente e pede sua confirmação (e nesse caso uma explicação) ou sua infirmação.

Palavras-chave

Utopia, heresia, cristianismo, Idade Média.

Hilário Franco Jr. é historiador, fez bacharelado na USP (1976), doutorado na mesma universidade (1982) e pós-doutorado com Jacques Le Goff na École des Hautes Études en Sciences Sociales (1993). Especialista em Idade Média ocidental, seus interesses estão voltados particularmente para a cultura, a sensibilidade coletiva e a mitologia daquele período, bem como para as reflexões teóricas que fundamentam tais pesquisas. Dedica-se também à História Social do Futebol. É autor, entre outros, de Cocanha. Várias faces de uma utopia (Cotia: Ateliê, 1998) e As utopias medievais (São Paulo: Brasiliense, 1992).

124

hIláRIO fRANCO jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Mesmo sob forma interrogativa, o título deste trabalho pode causar estranheza, pois sabidamente Tomás More morreu pela sua fé católica e definiu-se no seu epitáfio como “haereticis molestus”.

Ademais, ele atacou o protestantismo no seu Responsio ad Lutherum (1523), aplaudiu a execução de Tomás Müntzer (1525), foi bastante crítico e impositivo em relação à heresia de William Tyndale em obra escrita a pedido do bispo de Londres, A dialogue concerning heresies (1529)¹. No entanto, todo esse envolvimento ardoroso parece ter sido decorrência da ruptura luterana, antes da qual o humanista inglês se caracterizara pela tolerância. Há mesmo, à primeira vista, convergências entre certos pontos fundamentais da Utopia e certas idéias defendidas por seitas heréticas dos séculos anteriores. Como algumas delas pouco tocaram os territórios britânicos, a constatação daquelas convergências torna-se surpreendente e pede sua confirmação (e nesse caso uma explicação) ou sua infirmação.

De fato, quaisquer que tenham sido os caminhos percorridos, diversas reivindicações heréticas estão presentes na sociedade perfeita imaginada por More². Lembremos uns poucos pontos. Um dos traços mais conhecidos da ilha de Utopia é o comunismo ali praticado e exaltado pelo autor – “minha íntima e inabalável convicção é que as riquezas não poderão ser distribuídas de forma justa e igual e que as coisas humanas não poderão ser administradas de forma feliz se a propriedade privada não for totalmente abolida”³. Ao discutir a genealogia dessa idéia, a erudição insiste com razão nas proclamações semelhantes de Platão (autor citado três vezes por More), mas desconsidera outras raízes profundas dela. Nos séculos XI-XIII, a associação de relativa rigidez social com crescimento demográfico e expansão econômica tinha levado vários grupos, taxados de heréticos também por isso, a conceberem uma distribuição mais igualitária das riquezas.

Os habitantes do castelo de Monteforte, no começo do século XI, orgulhavam-se de que “todos nossos bens são possuídos em comum com todos os homens” (omnem nostram possessionem cum omnibus hominibus communem habemus). Os cátaros dos séculos XII-XIII defendiam que tudo deve ser comum a todos (quod non debet possidere nisi in communi Ecclesia Dei nec potest). Os valdenses dos séculos XII-XV também “tinham tudo em comum” (omnia sibi communia). A acentuada inversão da conjuntura, com a crise demográfico-econômica de fins da Idade Média, gerou a mesma reivindicação por parte de outros grupos, dentre os quais os franciscanos espirituais (nichil habuerunt in proprio nec etiam in communi, quia fuerunt perfecti pauperes in hoc mundo)4. Mais próximos de More estiveram os taboritas que, como os utopianos, praticavam o comunismo de bens, além de um evangelismo absoluto com sacerdócio laico.

A existência deste é natural, já que a Utopia desconhece o sacramento da ordenação. O poder sacerdotal não deriva ali de um bispo, na transmissão contínua que vem desde Cristo, passa pelos apóstolos e através destes aos seus sucessores até o presente histórico. Quando Hitlodeu deixou a ilha, os utopianos estavam dispostos a realizar a eleição de um bispo, mesmo sem ele

¹ O primeiro texto está editado por Louis Martz, Richard Sylvester e Clarence Miller, o segundo por Thomas Lawler, Germain Marc’hadour e Richard Marius, ambos em The Yale Edition of the Complete Works of St Thomas More (More, 1969 e 1981, volumes 5 e 6).

² Não é sem importância lembrar que da biblioteca pessoal do personagem faziam parte importantes heresiólogos do cristianismo primitivo (Tertuliano, Ireneu, Clemente, Inácio) e medieval (Pedro Mártir, o anônimo In valdenses de purgatorio), cf. Prévost, 1969, p. 60, n. 2, nem que nos quatro anos em que viveu na Chartreuse de Londres ele teve acesso a uma biblioteca teológica na qual certamente encontrou outras obras do mesmo tipo.

³ Adeo mihi certe persuadeo, res aequalibi ac iusta aliqua ratione distribui, aut feliciter agi cum rebus mortalium, nisi sublata prorsus proprietate, no posse: Utopia (T) I, p. 104, linhas 15-18; (Q) I, p. 66, linhas 7-9, cf. ainda (T) I, p. 102,104; II, p. 146, 148, 238-242; (Q) I, p. 65-67; II, p. 94, 156-161. Neste ensaio as citações de Utopia são das duas últimas edições publicadas em vida de More: a terceira, abreviada (T), Basiléia, Jean Froben, março de 1518, transcrita por Edward Surtz e Jack Hexter, traduzida por G. C. Richards (More, 1965); a quarta, abreviada (Q), Basiléia, Jean Froben, novembro de 1518, reprodução fac-símile e tradução de André Prévost (More, 1978).

4 Respectivamente, Landolfo Senior, Historia Mediolanensis, II, 27, p. 65, linha 44; Herrores heretiquorum, in: Molinier, 1910, p. 215; Walter Map, 1983, I, 30, p. 126; Bernardo Gui, 2006, IV, 5, vol. I, p. 118.

125

UTOPIA, TERRA dE hEREgES?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

poder receber o caráter sacerdotal de um bispo previamente ordenado5. A razão é simples: o poder sagrado dos sacerdotes utopianos é legitimado pela espontaneidade de sua fé, como em várias comunidades heréticas medievais que negavam validade aos atos de sacerdotes impuros. Dentre elas, a mais próxima de More no tempo e no espírito era a dos valdenses, para quem o caráter sacerdotal não provém da ordenação, e sim da virtude, daí a crítica que fizeram às indulgências três séculos antes de Lutero.

O sacerdócio utopiano não é acompanhado pelo tabu sexual que a Igreja católica impunha ao seu clero desde o século XI. Ali os padres são casados6, prática defendida em princípios do século XII pelos hereges de Soissons, do XIII pelos amaurianos, do XV pelos adamitas7, bem como pelas heresias protestantes que More tanto combateria. Concordância semelhante aconteceu em relação ao sacerdócio feminino, presente no catarismo e no valdismo, nos protestantismos do século XVI. Na sociedade utopiana, as sacerdotisas geralmente eram mulheres velhas e viúvas, da mesma forma que as perfectae no catarismo8.

A Utopia é sacerdotal (como algumas heresias), mas não sacramental (como a maioria delas). Ela ignora o batismo, como as seitas de Aquitânia, Orléans, Arras, Monteforte, Soissons, Pedro de Bruys, Henrique de Le Mans, Arnaldo de Brescia, como os passaginos, amaurianos, cátaros, esperonitas, valdenses e adamitas. A confissão é feita a laicos, da mesma forma que nas comunidades orleanesa, arrasense, petrobrusiana, henricina, arnaldista, esperonita, cátara, valdense e lolarda. A penitência inexiste, como entre os hereges de Orléans, Arras, Henrique de Le Mans, Amauri de Bène e Hugo Speroni. O matrimônio utopiano é rito social, não religioso, que já havia sido rejeitado pelos hereges da Aquitânia, de Orléans, Arras, Monteforte, Châlons-sur-Marne, Henrique de Le Mans e catarismo.

O minimalismo litúrgico utopiano e herege não prejudicava uma das grandes exigências morais de ambos, a de pureza. Na Utopia não há ociosidade, cabarés, tabernas, prostíbulos, ocasião de libertinagem, antros, encontros secretos9. Quase cinco séculos antes os heterodoxos de Monteforte, perto de Turim, tinham proclamado que “louvamos acima de tudo a virgindade” (virginitatem prae ceteris laudamus). O notário flamengo Tanchelmo, morto em 1115, havia duramente combatido o casamento de sacerdotes. A elite religiosa dos cátaros (os bonshommes ou perfecti) frequentemente proclamara seu horror ao casamento: neminem in coniugio posse salvari exercendo opera coniugalia, testemunha um texto; quod matrimonium malum est, afirma outro; quando se carnaliter coniungebant mortaliter peccabant, atesta um terceiro; matrimoniam carnale fuit semper mortale peccatum, avalia mais um relato10.

O católico More ao imaginar a sociedade ideal sem imagens11 colocou-se na linhagem de diversas heresias ocidentais iconoclastas. Foi o caso por volta do ano mil dos leutardianos, nas primeiras décadas do século XI dos hereges da Aquitânia, de Arras, de Monteforte e do Périgord, nos séculos XII-XIII dos cátaros. Para escândalo da Igreja católica, o pároco Pedro de Bruys levantou, provavelmente em 1133, uma fogueira de crucifixos em plena Sexta-feira Santa12. A negação herética da eucaristia estava, ao menos em parte, nessa mesma linha, já que para muitos medievais

5 Utopia (T) II, p. 218, linhas 15-20; (Q) II, p. 142, linhas 22-25.

6 Utopia (T) II, p. 142, linha 25; (Q) II, p. 91, linhas 16-17.

7 Guibert de Nogent, 1981, III, 17, p. 430-431; Garnier de Rochefort, 1926, II, p. 12, linhas 28-30; Cohn, 1981, p. 149, 182-183.

8 Utopia (T) II, p.228, linhas 17-18; (Q) II, p.228, linhas 17-18; Moneta de Cremona, 1743, IV, II, p. 293.

9 Nullus inertiae praetextus, nulla taberna uinaria, nulla ceruisiaria, nusquam lupanar, nulla corruptelae occasio, nullae latebrae, cociliabulum nullum: Utopia (T) II, p. 146, linhas 16-19; (Q) II, p. 93, linha 26; p. 94, linhas 1-2.

10 Respectivamente, Landolfo Senior, II, 27, p. 65, linha 39; Epistola Trajectensis Ecclesiae ad Fridericum episcopum Coloniensem de Tanchelmo seductore, 2, em Acta Sanctorum (1969, junii I, p. 845c); Prepostino de Cremona, 1958, IV, p. 66, linhas 1-2; Herrores heretiquorum (in Molinier, 1910, p. 216); Le registre d’inquisition de Jacques Fournier, évêque de Pamiers (1318-1325), in Duvemoy, 1965, vol. II, p. 500; Raniero Sacconi, 1974, p. 43, linhas 3-4.

11 Nulla deorum effigies in templo conspicitur: Utopia (T) II, p. 232, linha 11; (Q) II, p. 152, linhas 16-17. Diante dos ataques de Tyndale, porém, More defenderá as imagens alegando o lado emocional e pedagógico delas, cf. A dialogue concerning heresies, 1981, I, 3, p. 51-59.

12 Pedro, o Venerável(1968, p. 67, linhas 6-10).

126

hIláRIO fRANCO jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

a hóstia é imagem do Cristo e para o valdismo a missa, na qual ocorre a transubstanciação, fica reduzida apenas a uma rememoração teatralizada da Última Ceia13, como entenderia o calvinismo do qual fora precursor e ao qual aderiria em 1532.

Embora seu catolicismo impossibilitasse aceitar a metempsicose dos cátaros, Tomás More não deixa de atribuir aos utopianos uma prática semelhante à endura (termo occitano para “privação”, “jejum”) daqueles hereges. Esta, surgida em fins do século XIII no sul francês, era uma espécie de suicídio ritual no qual o doente terminal deixava-se morrer por inanição. Na versão da Utopia, quando o doente não tem esperança de cura e para ele viver é duro, está “autorizado a se evadir dessa vida que é um flagelo ou então a permitir que outras pessoas o livrem dela; [alguns] se deixam morrer de fome ou são adormecidos e liberados sem mesmo sentir que morrem. [...] Morrer assim, aconselhado pelos padres, é aos olhos deles ato de santa piedade”14. O ponto de partida da convergência dessas visões é que a alma se encontra sempre na prisão (carcere) de um corpo, seja humano, seja animal15. De fato, More aceita a existência de alma nos animais16, observando contudo que ela não tem a mesma dignidade da alma humana e não está destinada à mesma felicidade que a dos homens17, posição próxima à dos cátaros, para quem a alma passa de corpo em corpo e enquanto estiver alojada em animal encontra-se mais afastada da salvação já que somente o ser humano pode receber o batismo de fogo que salva (consolamentum). Há, entretanto, diferença importante: enquanto os utopianos não estão proibidos de matar animais, o que consideram, porém, tarefa inferior, realizada por gente inferior, os cátaros “perfeitos” estavam absolutamente proibidos de matar, exceto ratos, serpentes e sapos18. Na Idade Média muitos hereges foram executados por não se submeterem à prova de ortodoxia que representava matar uma galinha: foi o que ocorreu, por exemplo, em 1051, em Goslar, ou em 1247, no sul francês19.

Diante disso tudo, não surpreende que a visão pessimista que a Utopia tinha da humanidade (embora Edward Surtz chame a obra de More de “creation of a superlative optimism”)20 fosse a mesma das comunidades heréticas medievais. Por não ver qualquer possibilidade de remissão dos pecados depois da conversão, a seita de Arras foi definida pelo bispo Geraldo de Cambrai como doutrina do desespero (desesperationis foveam corruat). Por acreditarem na maldade inerente à matéria, os cátaros pensavam que o ser humano tinha sido criado não pelo Deus do Bem, e sim pelo Deus do Mal21. Por negarem o crucifixo, vários grupos heréticos negaram a Encarnação e, por conseqüência, o conceito do homem feito à imagem de Deus. Embora no senso comum toda construção utópica seja interpretada como manifestação de otimismo, de confiança nas virtudes humanas, de esperança em futuro melhor, elas revelam justamente o contrário, desencanto com o presente e ceticismo em relação à possibilidade de invertê-lo.

Esse dado transparece, aliás, já no título da obra moreana, seja na sua primeira formulação em latim (Nusquama), seja na definitiva em grego (Utopia). Ambas com o mesmo sentido de inalcançabilidade do espaço descrito – “lugar nenhum”. Não muito diferente, portanto, da sociedade

13 Alain de Lille, De fide catholica contra haereticos sui tempori praesertim Albigenses, II,10, PL 210, col. 386-387.

14 Utopia (T) II, p.186, linhas 5-16; (Q) II, p.120, linhas 8-14.

15 Bozóky, 1980, p. 82, ms V linha 237, ms D linha 220; Utopia (T), II, p.186, linha 12; (Q), II, p.120, linha 9.

16 Utopia (T) II, p.170, linhas 19-20; II, p.138, linhas 13-18; II, p.222, linhas 17-18; (Q) II, p.109, linha 14; II, p.88, linhas 19-22; II, p.145, linhas 20-21.

17 Utopia (T) II, p.222, linhas 18-19; (Q) II, p.145, linhas 21-23.

18 Bernardo Gui, 2006, I, 4, vol. I, p. 24-25; Duvemoy, 1965, vol. III, p. 221.

19 Anselmo de Liège, II, 64, p. 228, linha 26; Duvemoy, vol. I, p. 221.

20 More, 1965, “Introduction. Part II”, p. CLV.

21 Acta Synodi Atrebatensis, 8, PL 142, col.1296 c; Ermengaldo de Béziers, Opusculum contra haereticos, 1, PL 204, col.1235a.

127

UTOPIA, TERRA dE hEREgES?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

sonhada pelos hereges albigenses, que se localizaria em uma terram novam et invisibilem22. Após anunciar seu texto com aquele título revelador do caráter onírico, não propositivo, da sociedade utopiana, Tomás More a poucas páginas do fim do livro I insiste que “as coisas não podem ser todas perfeitas, pois nem todos os homens o são, e não espero ver isso acontecer no futuro”23. O eco prolongado dessa idéia está nas três últimas linhas do livro II, e portanto da obra, que se fecha com uma declaração (do autor, não do personagem que descreve a Utopia) explícita do desalento: “reconheço de boa vontade que existem na república utopiana muitas coisas que eu desejaria ver nas nossas terras, coisas que desejo, mais do que espero”24.

Pode-se, então, atribuir um espírito herético, mesmo que inconsciente, a Tomás More? Qualquer resposta taxativa seria temerária. É preferível pensar em uma nebulosa de religiosidade profunda, não formal, não institucional, da qual faziam parte tanto certas correntes católicas (caso do franciscanismo, pelo qual More se sentia atraído) quanto a maioria das seitas heréticas. O âmago dessa religiosidade no Ocidente foi o mesmo desde o século XI - o evangelismo de Leutardo de Vertus, dos hereges de Arras, do Périgord e de Soissons, de Pedro de Bruys, do catarismo, do valdismo, de Geraldo Segarelli, de Lutero, de Tyndale, da Utopia. Não é mero detalhe More tê-lo considerado o maior motivo da adesão dos utopianos ao cristianismo25. Para ele o evangelismo é forma de humanismo, o humanismo forma de evangelismo, talvez a forma suprema. É pensando nesse denominador comum que More propõe respeito a todas as idéias religiosas (nihil enim sollicitius obseruant quam ne temere quicquam ulla de religione pronuncient) e afirma que na sociedade perfeita existem diversas religiões e tolerância de umas em relação às outras. Quando um utopiano convertido ao cristianismo e excessivamente zeloso critica publicamente as demais crenças e proclama a superioridade da sua fé (nostra modo sacra caeteris anteferret), é julgado, condenado e exilado por desrespeito à tolerância26.

Não é casual que a descrição dos utopianos termine pela religião, pois é este elemento que articula a vida política, econômica, social, cultural e moral da sua sociedade. Mais do que de uma religião, conjunto articulado de crenças e de dogmas, trata-se na verdade da descrição de uma espiritualidade profunda. A mesma que na Idade Média permitira fatos como, em 1226, o de um cátaro de Castelnaudary, no Aude, que ao ficar doente em Narbonne e ao não encontrar perfecti do Toulousain que lhe dessem assistência espiritual adequada, apenas heréticos em quem por alguma razão não confiava, preferiu ingressar no mosteiro cisterciense de Boulbonne27. A espiritualidade dos utopianos é ainda a mesma dos humanistas do século XVI. Tyndale, por exemplo, considerava importante a angústia da fé, argumentando que o fiel deve ter “em si a sensação viva e contínua do mal, a fim de jamais se orgulhar daquilo que, nele, é maior do que ele”, obsessão próxima àquela que os cátaros tinham experimentado em relação à questão do Mal, central na sua cosmovisão28. Em carta de 19 de fevereiro de 1518, portanto posterior ao rompimento com Roma, Lutero afirma ao prior de Erfurt, Johann Lang, que aguardava a anunciada terceira edição da Utopia, que queria ler29 provavelmente por confluência espiritual, embora não dogmática.

22 Pedro des Vaux-de-Cernay, 1926, I,11, p. 11.

23 Nam ut omnia bene sint, fieri non potestat, nisi omnes boni sint, quod ad aliquot abhinc annos adhuc non expecto: (T) I, p. 100, linhas 2-3; (Q) I, p. 61, linhas 23-25.

24 Ita facile confiteor permulta esse in Vtopiensium republica, quae in nostris ciuitatibus optarim uerius, quam sperarim: (T) II, p. 246, linhas 1-2; (Q) II, p. 162, linhas 3-5.

25 Utopia (T) II, p. 218, linhas 5-8; (Q) II, p. 142, linhas 11-14. Se Hitlodeu rejeita a Idade Média ao valorizar a Antiguidade e o Renascimento, como pensa BejczyEJCZY (1994, p. 29-42), temos nisso outra aproximação da obra de More com as heresias medievais que, também elas, negavam seu próprio tempo (aquele que ficaria conhecido como “Idade Média”) repropondo uma volta ao cristianismo antigo.

26 Utopia (T) II, p.226, linhas 15-17, p.216, linhas 7-8, p.218, linhas 23-30; (Q) II, p.148, linhas 19-21, p.140, linhas 24-25, p.143, linhas 6-7 e 10-13.

27 Biblioteca Municipal de Toulouse, ms.609, fol.250v-251r, citado por Duvernoy, 1976, p. 107, n. 9.

28 A citação de Tyndale foi extraída de Prévost, 1969, p. 296. Sobre a importância do Mal no catarismo, além de Duvernoy, 1976, Roquebert, 2001.

29 1930, 60, vol. I, p. 148, linha 15 (cupio videre).

128

hIláRIO fRANCO jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Enfim, é preciso atenção para a espiritualidade profunda do século XVI, bem menos maniqueísta do que o conflito ideológico entre Reformas Protestantes e Reforma Católica parece indicar. Era naquela grande fonte que bebiam os mais importantes pensadores dos dois campos, era dela que saíam santos, místicos, reformadores e hereges. Foi ali que More encontrou material inspirador para uma das obras fundadoras da Modernidade.

Referências

Acta Sanctorum, junii I. Bruxelas: Culture et Civilisation, reed. 1969.

Acta Synodi Atrebatensis.

ALAIN DE LILLE. De fide catholica contra haereticos sui tempori praesertim Albigenses.

ANSELMO DE LIÈGE. Gesta episcoporum Tungrensium, Traiectensium et Leodiensium. Ed. Rudolf Koepke. MGH.SS 7.

BEJCZY, István. L’utopie et le Moyen Age: la purgation de l’histoire. In: Moreana, 31, 1994.

BERNARDO GUI. Manuel de l’inquisiteur. Ed.-trad. Guillaume Mollat. Paris : Les Belles Lettres, 2006.

BOZÓKY, Edina (ed.-trad). Le livre secret des cathares. Interrogatio Iohannis, apocryphe d’origine bogomile. Paris: Beauchesne, 1980.

COHN, Norman. Na senda do milênio: milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média [1957]. Lisboa: Presença, 1981.

DUVEMOY, Jean (ed.). Le registre d’inquisition de Jacques Fournier, évêque de Pamiers (1318-1325). Toulouse : Privat, 1965.

DUVERNOY, Jean. La religion des cathares. Toulouse: Privat, 1976.

ERMENGALDO DE BÉZIERS. Opusculum contra haereticos.

GARNIER DE ROCHEFORT. Contra amaurianos. Ed. Clemens Baeumker. Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters, Münster, 24, 1926.

GUIBERT DE NOGENT. Autobiographie. Ed.-trad. Edmond-René Labande. Paris: Les Belles Lettres, 1981.

LANDOLFO SENIOR. Historia Mediolanensis. Ed. Ludwig Conrad Bethmann e Wilhelm Wattenbach, MGH.SS 8.

LUTERO. Briefwechsel. Weimar : Hermann Böhlaus, 1930 (D. Martin Luthers Werke Kritische Gesamtausgabe).

MOLINIER, Charles (ed.). Herrores heretiquorum. In: "Un texte de Muratori concernant les sectes cathares". Annales du Midi, Toulouse, 22, 1910.

MONETA DE CREMONA. Adversus catharos et valdenses. Ed. Tommaso Agostino Ricchini. Roma: Nicolau e Marco Palearini, 1743.

129

UTOPIA, TERRA dE hEREgES?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

MORE, Thomas. Utopia. In: The Complete Works of St. Thomas More, vol. 4. Ed. by E. Surtz and J.H. Hexter. New Haven: Yale University, 1965.

MORE, Thomas. Translations of Lucian. In: The Complete Works of St. Thomas More, vol. 3, part I. Ed. by Craig R. Thompson. New Haven and London: Yale University Press, 1974.

MORE, Thomas. Responsio ad Lutherum. In: The Complete Works of St. Thomas More, vol. 5. Ed. by Louis Martz, Richard Sylvester e Clarence Miller. New Haven and London: Yale University Press, 1969.

MORE, Thomas. L’Utopie. Présentation, texte original, apparat critique, exegèse, traduction et notes de André Prévost. Paris: Mame, 1978.

MORE, Thomas. A dialogue concerning heresies. In: The Complete Works of St. Thomas More, vol. 6. Ed. by Thomas Lawler, Germain Marc’hadour e Richard Marius. New Haven and London: Yale University Press, 1981.

PEDRO, O VENERÁVEL. Contra petrobrusianos. Ed. James Fearns. Turnhout: Brepols, 1968 (CCCM 10).

PEDRO DES VAUX-DE-CERNAY. Hystoria Albigensis. Ed. Pascal Guébin e Ernest Lyon. Paris : Honoré Champion, 1926.

PREPOSTINO DE CREMONA. Svmma contra haereticos. Ed. Joseph Garvin e James Corbett. Notre Dame (Indiana): University of Notre Dame Press, 1958.

PRÉVOST, André. Thomas More et la crise de la pensée européenne. Lille: Mame, 1969.

RANIERO SACCONI. Summa de catharis et leonistis seu pauperibus de Lugduno. Ed. François Sanjek, Archivum Fratrum Praedicatorum, Roma, 44, 1974.

ROQUEBERT, Michel. La religion cathare. Le Bien, le Mal et le Salut dans l’hérésie médiéval. Paris : Perrin, 2001.

WALTER MAP. De nugis curialium. Ed.-trad. Montague Rhodes James. Oxford: Clarendon, 1983.

La naissance de l’utopie comme supplément au récit de voyagePeter KuonUniversidade de Salzburg (Áustria)

Resumo

De Thomas More à Denis Diderot, l'utopie a pris la forme d'un supplément qui remplit, par une réflexion critique, les vides laissés par les récits de voyage. En effet, dans les récits de voyage, la comparaison entre l'Ancien et le Nouveau Monde tourne, bien souvent, au désavantage des sociétés européennes par rapport aux sociétés plus "primitives", mais plus heureuses. C'est dans ce doute que s'insèrent les premières utopies.

Mon approche jette une nouvelle lumière sur les problèmes méthodologiques de la définition de l'utopie en tant que genre littéraire. Avant d'être roman, l'utopie, du XVIe

au XVIIIe siècle, a été un dialogue philosophique sur l'idée d'une société alternative. Ce lieu, qui n'est pas, reste hypothèse. Ce n'est qu'avec l'Histoire des Sevarambes de Denis Veiras que l'utopie, en se transformant en roman réaliste, commence a prétendre à une réalisation possible. Et ce n'est qu'au moment où elle se veut realité future que se pose le problème de la dystopie.

Palavras-chave

Naissance de l'utopie, récits de voyage, genre littéraire.

Peter Kuon, é professor de filologia romana (literatura italiana e francesa) e diretor do centro universitário "Sciences et Arts" na Universidade de Salzbourg. Suas publicações tratam da utopia do Renascimento ao Iluminismo, da recepção criadora dos grandes clássicos, da literatura do holocausto e da literatura contemporânea em geral. Algumas delas são: Trauma et Texte (éd., Frankfurt/M.: Lang, 2008), Vom Zeugnis zur Fiktion. Repräsentation von Lagerwirklichkeit und Shoa in der französischen Literatur nach 1945 (coéd., Frankfurt/M.: Lang, 2006), Paysages urbains de 1830 à nos jours (coéd., Bordeaux: P.U. de Bordeaux, 2005), Metamorphosen / Metamorfosi (coéd., Frankfurt/M.: Lang, 2005), L'aura dantesca. Metamorfosi intertestuali nei Rerum vulgarium fragmenta di Francesco Petrarca (Firenze: Cesati, 2004), Voci delle pianure (éd., Firenze: Cesati, 2003), Oulipo-Poétiques (éd., Tübingen: Narr, 1999), ‘lo mio maestro e 'l mio autore’. Dante-Rezeption in der Erzählliteratur der Moderne (Frankfurt/M.: Klostermann, 1993), De l'utopie a l'uchronie (coéd., Tuebingen, 1988), Utopischer Etwurf und fiktionale Vermittlung. Studien zum Gattungswandel der literarischen Utopie zwischen Humanismus und Frühaufklärung (Heidelberg: Winter, 1986).

132

PETER kUON

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Le supplément – ce qui est ajouté à une chose déjà complète pour remédier à un manque (cf. Robert, 1972, p. 1716) – renvoie à une dialectique de l’exhaustif et de l’incomplet, du plein et du vide,

du présent et de l’absent. Quel est le manque du Voyage autour du monde, paru en 1771, qui amène Denis Diderot à publier, deux ans plus tard, son Supplément au Voyage de Bougainville? Pour l’identifier, il convient de se reporter au compte rendu du Voyage autour du monde de Bougainville que Diderot avait rédigé pour la Correspondance littéraire de Grimm (in Diderot, 2002, p. 150-157). Cet article, qui donne une vue d’ensemble du livre en retraçant l’itinéraire et en commentant quelques observations du voyageur, interrompt son allure légèrement blasée mais au fond descriptive par une apostrophe violente:

Ah! Monsieur de Bougainville, éloignez votre vaisseau des rives de ces innocents et fortunés Tahitiens; ils sont heureux et vous ne pouvez que nuire à leur bonheur. Ils suivent l’instinct de la nature, et vous allez effacer ce caractère auguste et sacré. Tout est à tous, et vous allez leur porter la funeste distinction du tien et du mien. Leurs femmes et leurs filles sont communes, et vous allez allumer entre eux les fureurs de l’amour et de la jalousie. Ils sont libres et voilà que vous enfouissez dans une bouteille de verre le titre extravagant de leur futur esclavage [et ainsi de suite pendant plusieurs pages] (p. 153).

C’est Diderot qui parle, mais on aura reconnu dans ses paroles les fameux "Adieux du vieillard" du Supplément:

Et toi, chef des brigands qui t’obéissent, écarte promtement ton vaisseau de notre rive. Nous sommes innocents, nous sommes heureux, et tu ne peux que nuire à notre bonheur. Nous suivons le pur instinct de la nature, et tu as tenté d’effacer de nos âmes son caractère. Ici tout est à tous, et tu nous a prêché je ne sais quelle distinction du tien et du mien. Nos filles et nos femmes nous sont communes, tu a partagé ce privilège avec nous, et tu es venu allumer en elles des fureurs inconnues. Elles sont devenues folles dans tes bras, tu es devenu féroce entre les leurs; elles ont commencé à se haïr; vous vous êtes égorgés pour elles, et elles nous sont revenues teintes de votre sang. Nous sommes libres, et voilà que tu as enfoui dans notre terre le titre de notre futur esclavage [et ainsi de suite pendant plusieurs pages] (p. 40).

Or, le vieillard, dont s’inspire le philosophe, apparaît effectivement dans le récit de Bougainville. Il se retire, sans mot dire, au moment où un chef tahitien accueille les officiers français dans sa cabane:

[…] fort éloigné de prendre part à l’espèce d’extase que notre vue causait à tout ce peuple, son air rêveur et soucieux semblait annoncer qu’il craignait que ces jours heureux, écoulés pour lui dans le sein du repos, ne fussent troublé par l’arrivée d’une nouvelle race (1982, p. 230).

Ce moment, l’un des rares où Bougainville quitte la perspective colonialiste, sert de tremplin à l’imagination de Diderot. Dans son compte rendu et, plus tard, dans le Supplément, le philosophe comble le silence du vieillard par un discours qui développe la parole du Tahitien. Bref, ce qui

133

lA NAISSANCE dE l'UTOPIE COMME SUPPléMENT AU RéCIT dE vOYAgE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

manque au récit de voyage, c’est la parole de l’autre. On pourrait objecter que cet autre est le même, que sa parole, loin d’être authentique, n’est qu’une construction européenne. Cela va de soi: nous ne sommes pas encore aux temps du magnétophone et de l’éthnographie moderne. Mais Diderot, en inventant le discours que le vieillard tahitien aurait pu tenir s’il avait disposé des outils rhétoriques et conceptuels des Lumières, fait ce que le voyageur-explorateur moyen ne fait pas: il se place du côté de l’autre pour mettre en question la supériorité du modèle européen exporté à travers le monde au cours de l’aventure coloniale. Cette mise en question présuppose une opération de purification qui élimine du récit de voyage tout ce qui pourrait compromettre la perfection de l’alternative civilisationnelle. Le jeune Orou qui, dans le Supplément, explique à l’aumônier de l’équipage les principes de la vie tahitienne omet, entre autres, l’idolâtrie des Tahitiens, mentionnée par Bougainville, leur culte de la mort, leurs prêtres, leurs sacrifices de victimes humaines, leur cruauté envers les ennemis. Il omet surtout ce que Bougainville n’avait appris qu’après coup:

Nous les avions cru presque égaux entre eux, ou du moins jouissant d’une liberté qui n’était soumise qu’aux lois établies pour le bonheur de tous. Je me trompais; la distinction des rangs est fort marquée à Tahiti, et la disproportion cruelle (Bougainville, 1982, p. 267).

Il faut donc amputer le récit de voyage d’une partie de lui-même et transformer la société réelle qu’il décrit en utopie primitive, avant de pouvoir suppléer à ce qui lui manque, à savoir la réflexion de l’autre dans le même.

La dialectique qui gouverne le Supplément au Voyage de Bougainville n’est-elle pas constitutive de l’utopie moderne? Par la suite, je voudrais démontrer, en m’appuyant sur deux exemples, l’Utopia de Thomas More, et La Città del Sole de Tommaso Campanella, que l’utopie, dès ses débuts, fait fonction d'un supplément qui remplit par la réflexion critique un vide laissé par les récits de voyage. L’apport des récits de voyages à l’utopie, loin d’être purement "ornemental" (Lestringant, 2008, p. 131), serait donc essentiel à la naissance du genre nouveau. Ma conclusion discutera les conséquences de cette approche pour l’histoire littéraire de l’utopie.

La description de l’île des Utopiens fait partie d’une conversation qui, dans la fiction de l’auteur, auvait réuni, en 1515 à Anvers, Thomas More, son ami Pierre Gilles et Raphaël Hythlodée, capitaine de navire portugais. Ce dernier est présenté comme un compagnon d’Amerigo Vespucci "in tribus posterioribus illarum quatuor nauigationum, quae passim iam leguntur" (More, 1978, p. 28). La relation, à laquelle est fait allusion, n’est pas le Mundus Novus, publié à Paris et à Florence en 1503, qui ne parlait que du troisième voyage, mais la seconde lettre de Vespucci, la Lettera delle isole nuovamente trovate de 1504, qui résumait l’ensemble des quatre voyages. Raphaël Hythlodée, poursuit Pierre Gilles, est l’un des vingt-quatre marins qui, au point le plus éloigné de l’expédition, furent abandonnés dans un fort ("ipse in his XXIIII. […] qui ad fines postremae nauigationis in Castello relinquebantur"; More, 1978, 26, cf. Vespucci, 1992, p. 44). C’est ainsi que

134

PETER kUON

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Thomas More, l’auteur, par un habile procédé d’authentification, insère son personnage principal dans un épisode de la lettre de Vespucci, afin de prolonger le récit de voyage véridique (ou pris pour tel) par un autre récit – fictif – qui raconte ce que le premier tait. S’il n’y a, comme l’affirme Pierre Gilles, parmi les mortels personne qui puisse décrire comme lui l’histoire extraordinaire des hommes et des terres inconnues ("Nam nemo uiuit hodie mortalium omnium, qui tantam tibi hominum, terrarumque incognitarum narrare possit historiam"; p. 27), c’est que Raphaël Hythlodée a, pour ainsi dire, épuisé les possibilités de la découverte, en multipliant les voyages le long des côtes et à l’intérieur du nouveau continent et y en découvrant une quantité de peuples civilisés. Cette expérience totale pourrait faire de son récit une véritable somme des découvertes du Nouveau Monde. En réalité, les faits en tant que tels n’intéressent ni Hythlodée ni ses interlocuteurs ni leur auteur. Ils ne sont que matière à réflexion, réservoir d’exemples dans un dialogue qui discute et critique l’organisation sociale de l’Ancien Monde à la lumière des coutumes et usages plus ou moins sages du Nouveau Monde. L’île des Utopiens occupe dans ce cadre argumentatif une place d’exception, parce qu’elle est présentée par Hythlodée comme "optimus reipublicae status" (p. 70).

Dans quelle mesure l’idée d’un gouvernement idéal comble-t-elle un vide du récit de voyage? Ce qui est absent, dans les lettres de Vespucci (tant dans la seconde, qui se limite à décrire l’itinéraire des quatre voyages, que dans la première, qui entre dans les détails des pays découverts pendant le troisième voyage), c’est la description d’un État policé. Les peuples tupis brésiliens que le voyageur met au centre du Mundus Novus (2002, p. 17-25), vivent selon la nature ("Vivunt secundum naturam"), dans une anarchie paisible, sans roi ni État ("Vivunt simul sine rege, sine imperio"), sans argent ni commerce ("Non sunt inter eos mercatore neque commercia rerum"), sans maison de Dieu ni culte religieux, ce qui implique l’absence d’idolâtrie (“Preterea nullum habent templum et nullam tenent legem; neque sunt idolatre"). Il mentionne la douceur du climat et la fécondité du sol, l’hospitalité et la sociabilité des indigènes, leur longévité (jusqu’à l’âge de 150 ans) et l’absence de maladies, la nudité des deux sexes de la naissance à la mort ("Omnes utriusque sexus incedunt nudi, nullam corporis partem operientes. Et uti ex ventre matris prodeunt, si usque ad mortem vadunt"), la communauté des biens et des femmes ("ne habent bona propria, sed omnia communia sunt. […] Tot uxores ducunt, quot volunt"), le mépris de l’or ("affirmabant in mediterraneis magnam esse auri copiam et nihil ab eis estimari vel in pretio haberi"). Cette description, évidemment, idéalisée, bien que traversée de quelques observations gênantes comme l’anthropophagie, l’inceste, le piercing, la volupté, renvoie évidemment au mythe ovidien de l’État d’Or. Mais Vespucci introduit d’autres associations, celle à la philosophie épicurienne ("epicurei potius dici possunt quam stoici"), celle au Paradis terrestre qui, selon lui, devrait se trouver tout proche de l’habitat des tupis ("Et certe, si paradisus terrestris in aliqua sit terre parte, non longe ab illis regionibus distare existimo") et celles aux foules innombrables qui seront sauvées, selon l’Apocalypse (7,9), à la fin des temps ("Tantam in illis

135

lA NAISSANCE dE l'UTOPIE COMME SUPPléMENT AU RéCIT dE vOYAgE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

regionibus gentis multitudinem invenimus, quantam nemo dinumerare poterat ut legitur in apocalipsi"). C’est dans cette approche mythique au Nouveau Monde¹ que Thomas More puise l’idée de construire, avec les hommes apparemment adamiques, nouvellement découverts au Brésil et ailleurs, une société évoluée. Les Utopiens ne connaissent pas le "serpent infernal" ("auverni serpens") de l’orgueil ("superbia"), "chef et père de tous les fléaux" ("omnium princeps parensque pestium"; 1978, p. 160), qui empêche les autres sociétés du monde d’adopter leurs loix. Autrement dit: dans un monde condamné à l’imperfection par le péché d’Adam, une société prélapsaire est pensable, peut-être même désirable, mais irréalisable. Tout le jeu ironique des appellations grecques ne vise qu’à déconstruire la réalité de la "nova insula Utopia" (p. 1). La société utopienne est une hypothèse qui tend aux sociétés européennes un miroir critique.

On retrouve le même rapport entre récit de voyage et utopie dans La Città del Sole de Tommaso Campanella. L’auteur s’appuie sur le journal de bord, paru en 1526, du premier voyage autour du monde par Fernão de Magalhães, rédigé par l’italien Antonio Pigafetta à l’intention du grand maître de l’ordre des hospitaliers et du pape Clément VII (1928, p. 71), pour introduire son utopie dans le récit que fait un capitaine gênois à un chevalier de l’ordre des hospitaliers :

Già t’ho detto come girai il mondo tutto e poi, come arrivai alla Taprobana, et fui forzato metter in Terra, e poi, fuggendo la furia di terrazzani, mi rinselvai, ed uscii in un gran piano proprio sotto l’equinoziale […]. Subito incontrai un gran squadrone d’uomini e donne armate, e molti intendevano la lingua mia, li quali mi condussero alla Città del Sole (1968, p. 407-408).

Le renvoi à Pigafetta ne vise pas tant à authentifier l’utopie qu'à présenter la description de la civilisation hautement développée des Solariens comme point culminant d’un récit de voyage – supprimé dans le texte mais présupposé – qui, tel le journal de Pigafetta, fait le bilan des découvertes du monde. Ce qui stimule l’imagination de Campanella, est, encore une fois, l’observation, faite à plusieurs reprises par les premiers chroniqueurs – Christophe Colon, Amerigo Vespucci, Pierre Martyr d’Anguiera, Antonio Pigafetta (cf. Cro, 1979, p. 94-96) –, d’une affinité entre l’état de nature des peuples nouvellement découverts et le christianisme. Pigafetta répète, en les généralisant, les affirmations de Vespucci sur les tupis brésiliens: "Li popoli di questa terra non sono Cristiani e non adorano cosa alcuna; vivono secondo lo uso della natura e vivono cento venticinque anni e cento quaranta […]" (1928, p. 83). Et il ajoute un pronostic: "Questi popoli facilmente se converterebbono a la fede di Gesù Cristo" (p. 87). La découverte de peuples nouveaux, vivant à l’état de nature, mais prêts à adopter le christianisme, ouvre à Campanella, moine dominicain empreint de messianisme et incarcéré pour avoir anticipée, par une révolte en Calabrie, sur la Providence divine, la double perspective d’une extension universelle et d’une rénovation radicale du christianisme. La conclusion de l’hospitalier, à la fin de La Città del Sole, se fonde sur cette perspective: "[…] io cavo argomento di questa relazione che la vera legge è la cristiana, e che, tolti gli abusi, sarà signora

¹ Qui considère l’encadrement mythique des récits de voyages comme “utopique” (cf. Lestringant, 2008, p. 141), ne ne saurait saisir la nouveauté de la pensée de Thomas More et de ses successeurs qui, justement, transforment les mythes du bonheur hérités de l’Antiquités et du Moyen-Âge en réflexion philosophique et politique.

136

PETER kUON

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

del mondo" (1968, p. 458). Aux habitants du Nouveau Monde, qui au dire des chroniqueurs vivaient paisiblement sans loi, sans propriété, sans vice, sans crime, bref, sans péché originel, reviendrait le rôle providentiel de faire triompher le christianisme en s’avérant, après leur conversion, des chrétiens meilleurs qui montreront aux Européens corrompus, avides d’argent et de pouvoir, le miroir d’une vie authentiquement apostolique. La "renovazione del secolo" (p. 452) imminente prendra son départ de l’évangélisation des communautés du Nouveau Monde qui vivent à l’état de nature.

Dans ce contexte idéologique, La Città del Sole concrétise et discute l’hypothèse d’une société à la fois civilisée et primitive. La cité idéale des Solariens, en se basant sur les principes de la nature, est l’image fidèle d’un ordre divin qui n’a pas été compromis pas la Chute. Elle illustre, par l’allégorisme omniprésent de ses structures, l’idée de l’État que l’homme, en ne faisant usage que de sa raison naturelle, c’est-à-dire sans l’aide de la révélation des Écritures, peut déduire de la Création (cf. Kuon, 1986, p. 166-180). À cet égard, la localisation de la cité du soleil est significative: Campanella la situe sur l’île de Taprobane, l’actuel Sri Lanka, dans une plaine sous l’équateur. Cette localisation, géographiquement fausse, associe la polis idéale, située au milieu du monde, à l’île des Bienheureux de l’Antiquité et au Paradis terrestre chrétien.

Quelle est l’importance du dispositif qu’on vient d’analyser chez More et Campanella pour l’utopie littéraire dans son ensemble? Si le récit de voyage constate l’existence de peuples exotiques vivant paisiblement dans un état de nature édénique, l’utopie met en scène une réflexion souvent dialogique sur la provocation que représente cette découverte pour la civilisation européenne. Aux sociétés corrompues et injustes des descendants d’Adam, l’utopie oppose l’hypothèse d’une société idéale telle qu’elle pourrait être réalisée avec des hommes qui n’auraient pas été chassés du Paradis terrestre. On retrouve encore cette hypothèse dans la Terre australe connue, publié en 1676, de Gabriel de Foigny, où le protagoniste, Sadeur, s’émerveille de l’absence totale de vices et de passions chez les Australiens hermaphrodites: "A voir ces gens, on diroit facilement qu’Adam n’a pas peché en eux, & qu’ils sont ce que nous aurions été sans cette cheute fatale" (1981, p. 104). Il est vrai que l’Histoire des Sévarambes de Denis Veiras, qui ne paraît que deux ans après, introduit un nouveau paradigme, celui de l’utopie réaliste qui propose, sous forme de récit de voyage, non plus une société idéale, mais une société meilleure, à la portée de l’homme tel qu’il est (cf. Kuon 1988, p. 50-53). Dans l’utopie réaliste, à partir de Veiras, la confrontation entre société utopienne et société européenne, en passant du dialogue externe entre voyageur et interlocuteur au dialogue interne entre guide et intrus, se fait moins radical. L’ou-topos n’est plus l’autre du topos, mais un topos autre. Par là, l’utopie perd sa fonction de supplément qui consistait justement à discuter l’altérité absolue. Cette function réapparaît, cependant, tout au long du XVIIIe siècle, dans certains romans qui, tel Gulliver’s Travels de Swift, Le philosophe anglais ou Histoire de Monsieur Cleveland de l’abbé Prévost, Candide de Voltaire, Aline et Valcour de Sade, confrontent leurs protagonistes au cours d’un voyage de formation autour du monde à l’altérité utopienne.

137

lA NAISSANCE dE l'UTOPIE COMME SUPPléMENT AU RéCIT dE vOYAgE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

On sait le rôle important qu’a joué le récit de voyage dans la genèse du roman utopique moderne. Jean-Michel Racault, dans L’utopie narrative en France et en Angleterre, et d’autres avant et après lui ont étudié les divers procédés narratifs et descriptifs que les auteurs, à partir de la fin du XVIIe

siècle, empruntaient aux récits de voyage pour authentifier leur fictions utopiques (cf. Racault, 1991, p. 310-316). Dans ma contribution, je voulais attirer l’attention sur un autre rapport entre utopie littéraire et récit de voyage, en mettant l’accent non pas tant sur la contiguïté formelle des deux genres textuels mais plutôt sur leur antinomie fondamentale. Sous cet angle de vue, l’utopie littéraire moderne naît comme un supplément qui comble le manque de réflexion et d’imagination du récit de voyage, en discutant, sous forme dialogique, l’hypothèse d’une alternative radicale à la civilisation européenne.

Références

BOUGAINVILLE, Louis-Antoine de. Voyage autour du monde par la frégate du Roi La Boudeuse et la flûte L’Étoile. Éd. Par Jacques Proust. Paris: Gallimard, 1982.

CAMPANELLA, Tommaso. La Città del Sole. In: BRUNO, Giordano, CAMPANELLA, Tommaso. Scritti scelti. A cura di Luigi Firpo. Torino: UTET, 1968, p. 405-464.

CRO, Stelio. Tommaso Campanella e i prodromi della civiltà moderna. Hamilton: Symposium Press, 1979.

DIDEROT, Denis. Supplément au Voyage de Bougainville. Édition de Michel Delon. Paris: Gallimard, 2002.

FOIGNY, Gabriel de. La Terre Australe Connue. Avec une préface de Raymond Trousson. Genève: Slatkine Reprints, 1981.

KUON, Peter. Utopischer Entwurf und fiktionale Vermittlung. Studien zum Gattungswandel der literarischen Utopie zwischen Humanismus und Frühaufklärung. Heidelberg: Winter, 1986.

KUON, Peter. "Utopie et anthropologie au siècle des Lumières ou: la crise d’un genre littéraire". In: HUDDE, Hinrich, KUON, Peter (éd.). de l ’Utopie à l’Uchronie. Formes, Signification, Fonctions. Tübingen: Narr, 1988, p. 49-62.

LESTRINGANT, Frank. "Découvertes géographiques et conceptions politico-sociales de l’utopie". In: Vita FORTUNATI, Raymond TROUSSON, Paola SPINOZZI (éd.). Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme. Paris: Champion, 2008, p. 131-150.

MORE, Thomas. L’Utopie. Présentation, texte original, apparat critique, exégèse, traduction et notes par André Prévost. Paris: Mame, 1978.

PIGAFETTA, Antonio. Relazione del primo viaggio intorno al mondo di Antonio Pigafetta seguita de Roteiro d’un pilota genovese. A cura di Camillo Manfroni. Milano: Ed. Alpes, 1928.

138

PETER kUON

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

RACAULT, Jean-Michel. L’utopie narrative en France et en Angleterre: 1675-1765. Oxford: The Voltaire Foundation, 1991.

ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabétique & analogique de la langue française. Paris: S.N.L.-Dictionnaire Le Robert, 1972.

VESPUCCI, Amerigo. Letters of the Four Voyages to the New World. Reprinted in facsimile and translated from the rare original Edition (Florence, 1505-6) by Bernard Quaritch. Hamburg: Wayasbah, 1992.

VESPUCCI, Amerigo. Mundus Novus. Text, Übersetzung und Kommentar von Robert Wallisch. Wien: Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 2002.

A utopia e a sátiraAna Cláudia Romano RibeiroUniversidade Estadual de Campinas

Grupo de Estudos Renascimento e Utopia

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Resumo

A utopia como gênero literário se caracteriza por seu vínculo intrínseco com a história. Daí resulta a descrição, motivada pela experiência histórica, de uma alteridade social, política, econômica e religiosa. Tal descrição, muitos estudiosos têm salientado, é freqüentemente satírica, configurando-se como uma “contrapartida irônica do nosso mundo” (Frye, 1973, p. 229). Não desprovida de humor, ela enfoca com tom mordaz sua atualidade ideológica, apresentando ao leitor uma sociedade com muitos de seus valores alterados, comumente invertidos ou distorcidos, se comparados à sua sociedade, segundo uma clara intenção crítica. Podemos dizer que a utopia segue o preceito horaciano de dizer a verdade rindo (ridentem dicere verum), afinal, solventur risu tabulae, o riso triunfa sobre as mais impenetráveis barreiras e torna palatáveis as mais amargas verdades (Hendrickson, 1927, p. 54-55). Partindo desta reflexão, pretendo apontar algumas relações entre a utopia e a sátira, visando a uma melhor compreensão desta particularidade do gênero literário utópico.

Palavras-chave

Utopia, sátira menipéia, sátira romana.

Ana Cláudia Romano Ribeiro faz seu doutorado no Departamento de Teoria Literária do IEL, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob a orientação do Prof. Carlos E. O. Berriel, com o apoio da CAPES e da FAPESP. Realizou estágio doutoral de um ano na Universidade de Florença (Itália). Seu trabalho consiste na tradução para o português da utopia francesa A Terra Austral conhecida (1676), de Gabriel de Foigny, assim como na elaboração de um estudo crítico. Em seu mestrado, realizado na mesma instituição e sob a mesma orientação, traduziu para o português e estudou a obra de inspiração utópica A Ilha dos Hermafroditas (1605), atribuída a Artus Thomas. É membro do grupo de pesquisa Utopia e Renascimento e do U-TOPUS - Centro de Estudos sobre Utopia, coordenados pelo Prof. Carlos E. O. Berriel. Participou da fundação da revista MORUS – Utopia e Renascimento, que co-edita.

140

ANA CláUdIA ROMANO RIBEIRO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

A utopia como gênero literário se caracteriza por seu vínculo intrínseco com a história. Daí resulta a descrição, motivada pela experiência histórica, de uma alteridade social, política, econômica e religiosa.

Tal descrição, muitos estudiosos têm salientado, é freqüentemente satírica¹, configurando-se como uma “contrapartida irônica do nosso mundo” (Frye, 1973, p. 229). Não desprovida de humor, ela enfoca com tom mordaz sua atualidade ideológica, apresentando ao leitor uma sociedade com muitos de seus valores alterados, comumente invertidos ou distorcidos, se comparados à sua sociedade, segundo uma clara intenção crítica². Podemos dizer que a utopia segue o preceito horaciano de dizer a verdade rindo (ridentem dicere verum), afinal, solventur risu tabulae, o riso triunfa sobre as mais impenetráveis barreiras e torna palatáveis as mais amargas verdades (Hendrickson, 1927, p. 54-55). Partindo desta reflexão, pretendo apontar algumas relações entre a utopia e a sátira, visando a uma melhor compreensão desta particularidade do gênero literário utópico.

Aconteceu com a palavra “utopia” o que já havia ocorrido com a palavra “sátira”, bem mais antiga: uma vulgarização do seu significado e sua conseqüente declinação em formas verbais, adverbiais, adjetivas (cf. Hendrickson, 1927) e em sentidos metafóricos, o que contribuiu para a dificuldade de conceituação de ambas³. A utopia e a sátira podem ser mais rigorosamente apreendidas se recorrermos à sua função de modo ou de gênero.

A modalidade utópica, anterior ao gênero utópico, indica um “exercício mental sobre os possíveis laterais”, segundo a conhecida fórmula de Raymond Ruyer (1950, p. 9). Ela designa uma categoria geral de pensamento que representa toda formulação (não apenas escrita) que permita a visualização de realidades paralelas à realidade efetiva. Assim, por exemplo, podemos falar de “utopismo grego” – e não de “utopia grega” – em Aristófanes, Platão ou Iâmbulo ou de utopismo nas artes e nos movimentos sociais. Da mesma forma, podemos identificar o modo satírico em obras que não pertencem ao gênero da sátira. A modalidade satírica indica um ataque humorado nos campos da moral, da religião, da política ou da literatura, que podemos encontrar expresso em vários gêneros; assim, podemos identificar um espírito satírico em certas passagens de Hesíodo, Homero, ou nas comédias de Aristófanes4, por exemplo5.

O gênero é posterior ao modo. O gênero utópico é a formalização literária do utopismo. Ele encontra condições para nascer como gênero em 1516, com a Utopia de Morus. As obras utópicas – de Morus às distopias atuais – englobam uma quantidade desconcertante de variantes, mas se caracterizam essencialmente por apresentarem a descrição de um alhures em sua totalidade, conhecido graças à viagem de ida e de volta de um viajante, que descreve, narra e reproduz os diálogos travados com um nativo que lhe apresenta este mundo novo, termo de comparação com o mundo do leitor6. A sátira, bem mais antiga, encontra sua primeira formalização literária em Menipo de Gadara (ou de Sinope, séc. IV e III a.C.). Suas obras se perderam, mas encontramos em Diógenes Laércio o registro de alguns de seus títulos. Segundo a tradição, as sátiras menipéias se caracterizavam pelo desrespeito

¹ Ver, por exemplo, Vosskamp, 2009: “As capacidades organizacionais do gênero literário da utopia, que lhe permitem ser distinto de outros gêneros literários, consistem em uma específica mobilização textual de imagens de uma realidade descrita satiricamente e no desenho de imagens conceitualmente contra-factuais e opositivas.”

² É preciso, porém, atentar para a particularidade da atualização do gênero utópico em cada momento histórico, pois nem todas as utopias são sátira ou crítica: A Cidade do Sol, de Campanella, cf. Berriel (ver “Campanella: l'immaginazione utopica al servizio del cesaropapismo”, nestas atas), é uma descrição alegórica de um projeto que visa a mostrar em funcionamento uma cidade (e, em outro manuscrito, um mundo) onde Igreja e Razão estão conciliadas, onde a Igreja não coloca obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, nem da ciência, e onde o supremo governante é também supremo cientista e supremo sacerdote.

³ Segundo Webb, a palavra sátira viria da expressão latina per saturam, que quer dizer “irregularmente”, “indiscriminadamente”, “en masse” (1912, p. 181). Ver outras etimologias em van Rooy, 1965. Sobre a etimologia da palavra utopia, ver Quarta, 2006.

4 Aristófanes opera a justaposição das duas vertentes da sátira: “the wit of the greatest spontaneous satirist of antiquity” e “that conscious ethical satire”, que caracterizará a sátira romana posteriormente (Hendrickson, 1927, p. 50).

141

A UTOPIA E A SáTIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

das tradições literárias vigentes em sua época, no entanto, não encontramos sistematização teórica grega a respeito da sátira menipéia7. Sua forma – e nisso ela assemelha-se à utopia – podia variar consideravelmente. Bakhtin se refere a ela como um “gênero carnavalizado, extraordinariamente flexível e mutável como Proteu, capaz de penetrar em outros gêneros”, de enorme importância para a literatura européia e um dos principais portadores da “cosmovisão carnavalesca na literatura” (1981, p. 96-98)8. Hendrickson (1927, p. 51-52) lembra que o satirista, na tradição grega, participa do campo genérico do cômico-sério9 (spoudogeloion), caracterizado pela mediação do riso (gelon) no tratamento de coisas sérias (spoudaion).

Rego (1989) resume as principais características genéricas da sátira menipéia apresentadas por Bakhtin:

- o hibridismo formal, que leva a uma indefinição genérica (mistura de gêneros, como diálogo filosófico e comédia, de prosa e verso, de diferentes estilos de linguagem, populares e elevados);

- o conteúdo parodístico (em relação a textos clássicos e contemporâneos do autor);

- a grande liberdade de invenção temática e filosófica, que se manifesta na presença do elemento inverossímil (que provoca um efeito fantástico);

- a presença da ambigüidade (que faz com que o leitor hesite em optar pela seriedade ou comicidade do texto);

- e o ponto de vista de um espectador distanciado (o katascopos, que observa o mundo conhecido de uma perspectiva inusitada).

Luciano de Samósata (125-192 d.C.), com seus diálogos e viagens imaginárias, foi o principal transmissor da sátira menipéia, sendo suas obras responsáveis pela ligação entre “a tradição grega da sátira menipéia e seu aproveitamento literário a partir do Renascimento, com as traduções dela feitas por Erasmo e por Thomas More” (Rego, 1989, p. 30), publicadas em 150610.

Bakhtin percebeu que a menipéia freqüentemente incorpora elementos que encontraremos na utopia, como a viagem e a descrição de um alhures, e que nela “o elemento utópico combina-se organicamente com todos os outros elementos” (1981, p. 101). Prefiro inverter os termos da observação de Bakhtin, dizendo que a utopia participa da tradição menipéia, já que nela encontramos os elementos elencados por Rego.

O hibridismo formal da utopia é patente, sendo sua dificuldade de classificação genérica uma questão que lhe é intrínseca. O paradigma moreano tem sido chamado de relato de viagem imaginária, diálogo filosófico, sátira, projeto e tratado, essencialmente. Ele assimila elementos de gêneros como o relato histórico, além de recorrer a personagens históricos e ao uso de informações detalhadas características do relato de viagem real. Sua forma tem sido descrita como uma declamatio, “gênero ao mesmo tempo retórico e filosófico, que se define pelo jogo e pela ficção” (Lestringant, 2006, p. 158), “discurso que versa sobre um tema paradoxal ou passível de manifestar de algum outro modo a sagacidade e a inventiva do autor” (Logan e Adams,1999, p. XIX-XX)11.

5 É nesse sentido que Apuleio (125-180 a.C.) se refere a Xenócrates (400-314 a.C.) como um autor de sátiras (em Florida ii. 20), referindo-se ao espírito satírico de ataque humorado de uma dada situação social.

6 Para uma definição do gênero utópico, ver Racault, 1991, p. 3-31; Trousson, 2005, p. 123-135; Fortunati, 1992, p. 17-27; Dubois, 1968 e Suvin, 1985.

7 Segundo Bakhtin (1981), a sátira menipéia tem raízes no folclore carnavalesco antigo e teria surgido bem antes de Menipo, possivelmente com Antístenes, discípulo de Sócrates e um dos autores dos diálogos socráticos, e Bíon de Borístenes (século III a.C.). Horácio enumera três tipos de composições literárias: odes, iambos e sátiras, que ele chama de bionei sermones, reivindicando para Bíon de Borístenes a origem da sátira.

8 Alguns exemplos da variedade de formas da sátira grega: Bíon de Borístenes serviu-se de um tipo de sermão, Menipo privilegiou o diálogo, paródias de Timon foram escritas em versos hexâmetros, Fênix de Colofon e Cercidas de Megalópolis escreveram iambos e scazons, Arquestratos, possível fonte do motivo do banquete na sátira romana, escreveu diálogos onde o motivo do banquete é central (cf. Hendrickson, 1927, p. 51).

9 O campo da literatura denominado spoudoge/loion incluiria os mimos de Sofron, o gênero do “diálogo de Sócrates”, o gênero da literatura dos simpósios, a primeira memorialística (Íon de Chios, Crítias), panfletos, a poesia bucólica, a sátira menipéia e outros gêneros que nitidamente se opunham aos gêneros sérios como, por exemplo, a epopéia, a tragédia, a história e a retórica clássica (Bakhtin, 1981, p. 92).

142

ANA CláUdIA ROMANO RIBEIRO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Nos dois livros que compõem o texto de Morus, há uma mescla de narrações, comentários e descrições unificados pelo diálogo, que na utopia também é híbrido, pois contém todas essas formas, podendo inclusive assumir em certas passagens um caráter monológico. Mediante a forma dialógica, que deriva diretamente do “diálogo socrático, abstrato e desencarnado, usado por Platão em A República ou As Leis” (Trousson, 1981, p. XI), baseado na concepção de que a verdade possui uma natureza dialógica e pode ser apreendida pelo pensamento humano (Bakhtin, 1981, p. 94), e dos diálogos ciceronianos (Logan e Adams, 1999, p. XXIV), dá-se o confronto entre o mundo real e o utópico. O diálogo é um dos instrumentos mais adequados para ressaltar a contraposição dialética de dois mundos, do ser efetivo e do ser potencial, essência do texto utópico, essencialmente teleológico (porque mostra como as coisas poderiam ser).

Esta variedade formal da Utopia será acrescida, a partir de sua terceira edição (Basiléia, 1518), de um material complementar composto de cartas, do alfabeto utopiano, de versos em latim e em “utopiano” e de um novo mapa da Utopia, elementos que reforçam em muitos modos a autenticidade da terra inventada por Morus. Um deles é a explicação que Morus dá a seu amigo Peter Giles em uma carta, onde diz que seu pequeno livro é apenas a transcrição fiel – inclusive no que diz respeito ao estilo, simples – do relato que lhes fora feito por Rafael Hitlodeu, este, tratado como um personagem tão histórico quanto os dois amigos. Morus parodia aqui uma quantidade de relatos de viagem que começam justamente com a tópica da reprodução de um fato relatado por um viajante.

O conteúdo parodístico se exprime ainda por meio de citações diretas e indiretas a autores antigos (como Heródoto, Platão, Sêneca, Luciano), medievais (como Denis, o Aeropagita, Santo Agostinho e autores de textos heréticos), ou modernos (como Pico della Mirandola e Erasmo), sendo impossível referirmos aqui todos eles12. Ressaltamos a citação de Luciano de Samósata, por sua importância como chave de leitura da utopia13. Ao elencar os autores preferidos dos utopianos, Hitlodeu diz que eles apreciam Luciano por ser “divertido e encantador” (More, 1999, p. 130), qualidades retiradas da segunda frase de Das Histórias verdadeiras numa citação quase literal em que o narrador exprime seu julgamento sobre livros como este seu14. Com esta citação Morus sugere serem os utopianos leitores de Luciano (deste livro em particular) e alude à influência que o espírito, a graça, o humor e, sobretudo, a ironia presentes nas obras luciânicas, podem ter tido em sua formação intelectual e particularmente na composição da Utopia.

A questão da verdade (e do existente) na Utopia também remete a Luciano: há, em ambos, provocação e experimentação da idéia e da verdade. Na carta de Morus a Peter Giles, que em algumas edições é colocada à guisa de prefácio, o narrador Morus diz ser a verdade a única qualidade que almeja em seu livro, ou seja, ele pretende repetir exatamente o que lhe fora contado por Rafael Hitlodeu. Porém, os nomes próprios parecem indicar ao leitor que não acredite numa palavra, pois etimologicamente Hitlodeu é um contador de lorotas, a Utopia não existe em lugar algum, Anidro é

10 Dos diálogos luciânicos, Morus traduziu O Cínico, O Tiranicida, Menipo e Os Afabuladores.

11 Muito praticada no Renascimento e, particularmente, por Morus, durante seu aprendizado de latim, a declamatio, “dispõe de todos os artifícios da retórica, da ironia ao pastiche, da encenação à paródia” e desconcerta o leitor da Utopia que não adota “a distância estética indispensável à inteligência do texto” (Prévost, 1978, p. 37). Segundo Lestringant, “termo ao mesmo tempo mais largo e mais técnico do que aquele de ‘paradoxo’, a declamação tem por objeto o ‘real irreal’. É no espaço movente da declamação, em que a ficção não se sustenta senão denunciada e afirmada ao mesmo tempo, que podemos pôr em fila a Utopia de Morus, o Elogio da Loucura de Erasmo, as navegações de Pantagruel e vários capítulos dos Ensaios de Montaigne, como "Dos canibais" ou "Dos coches" (2006, p. 158).

12 Sobre as referências a autores parodiados ver, por exemplo, as edições da Utopia de Surtz e Hexter (1965), de Delcourt (1987), de Prévost (1978) e de Firpo (1990).

13 A relação profunda da Utopia com a obra de Luciano foi percebida por vários autores: Lewis (1954, que, no entanto, subestima o alcance político da Utopia), Dorsch, em um artigo de 1967, Prévost, em sua magistral tradução e edição crítica da Utopia (1978), e Logan e Adams (1999) fornecem elementos para uma análise literária mais detalhada do recurso à ironia na Utopia. Estudiosos de Luciano como Tichit (1995), Lacaze (2003), Ozanam (2009), Brandão (2007) também são

143

A UTOPIA E A SáTIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

um rio sem água, Ademo é um governante sem povo, apenas para citar algumas das palavras que negam a realidade que elas representam. Essa descrição, permeada de humor e ironia, coloca a Utopia na linhagem da sátira menipéia, que une o burlesco ao sério, atribuindo a um personagem ou a uma situação significados contraditórios que impossibilitam toda interpretação unívoca (Racault, 1991, p. 587).

Morus parodia Luciano, retomando, a seu modo, um procedimento irônico que encontramos em Das histórias verdadeiras: também é por almejar a verdade que o narrador, no início do livro, anuncia que mentirá; porém, ao longo de seu relato, ele enfatizará sistematicamente a veracidade das narrativas inverossímeis que conta. Luciano traz o inverossímil à ficção, rompendo com o postulado aristotélico segundo o qual o poeta descreve fatos que podem acontecer conforme as leis da verossimilhança e da necessidade (Poética 1451a 36-b11).

Morus, à diferença de Luciano, elabora uma ficção que se quer verossímil15; ela é, porém, constituída de elementos inverossímeis, tanto em grandes linhas como no detalhe: pensemos nos já referidos nomes que apontam para a inexistência do que nomeiam, na radical uniformidade geográfica, urbana, arquitetônica e social, no absoluto comunismo de bens, na extrema racionalização e perfeição de todos os aspectos da vida individual e coletiva, na invariabilidade desta perfeição, onde não há lugar para imprevistos nem dissídios, na total regulação, controle e previsão das necessidades. Tais inverossimilhanças, porém, têm como referencial a realidade efetiva, que é para onde o leitor se volta constantemente ao ler a Utopia. Este me parece ser um dos pontos centrais do gênero utópico: a utopia é um instrumento crítico paradoxal, que, ironicamente, age pela descrição de instituições irrealizáveis.

Deste jogo entre verossímil e inverossímil decorre a ambigüidade e a ironia do texto. Situações e valores que na sociedade de Morus seriam inconcebíveis – a igualdade social, a hierarquia política e religiosa reduzida a um mínimo, o comunismo de bens, o divórcio, o desprezo pelos metais preciosos, por exemplo – são apresentados, na Utopia, como racionalmente explicáveis, plausíveis. Alguns diálogos contrapõem com argumentos fortes os prós e os contras de alguns desses elementos: Hitlodeu defende a abolição da propriedade privada, enquanto Morus-personagem a ataca; Hitlodeu não acredita que o filósofo possa ter qualquer influência na política e faça melhor dedicando-se às coisas do espírito, enquanto Morus-personagem está convencido da importância de reformas, ainda que pequenas, que só poderiam ser introduzidas por um filósofo que participasse da política. O cotejo da discussão dos aspectos da sociedade instituída com os da sociedade utópica permite a Morus introduzir, na consciência do leitor, um estranhamento em relação ao mundo conhecido. Este ponto de vista distanciado, na Utopia, portanto, é expresso tanto nas réplicas de Hitlodeu quanto nas de Morus-personagem, na discussão da experiência vivida bem como na descrição de um mundo desconhecido, que resultam na idéia de se pensar o próprio destino, individual e coletivo, como um feixe de possibilidades.

praticamente unânimes em citar Luciano como fonte para Morus.

14 A expressão em grego é ek tou astei/ou te kai cari/entoj. Após ter dito que os letrados de profissão devem, depois de leituras difíceis, relaxar seu espírito com uma pausa para que possam retomar a contento seus esforços, Luciano diz ser aconselhável que essa pausa seja dedicada “a um gênero de leitura que, além de provocar um entretenimento simples, como é o que resulta de uma temática jocosa e divertida” suscita “alguns motivos de reflexão que não desconvêm às musas – algo parecido, suponho, com o que porventura sentirão ao lerem esta minha obra” (1976, p. 17). A tradução de Magueijo, assim como a tradução dessa expressão na tradução brasileira de Camargo e Cipolla atenua a expressão grega acima citada. Mais justas são as traduções italianas de Matteuzzi: “il fascino derivato dall’ironia e dal tono brillante” (1995, p. 253), de Marziano e Verdi (1999, p. 398): “semplice diletto che deriva dalla grazia e dall’arguzia” ou francesas, de Delcourt: “l’esprit et la drôlerie”, de Tichit: “ce qu’il y a de spirituel et de charmant” (1995, p. 26), de Lacaze (2003, p. 229): “l’attrait de l’esprit et de l’humour”.

15 Vai nesse sentido a afirmação de Claude-Gilbert Dubois, para quem o gênero utópico obedece “a uma estética do distanciamento, muito mais do que a uma estética da ilusão” (1968, p. 39).

144

ANA CláUdIA ROMANO RIBEIRO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O fato de a Utopia ser uma continuação da tradição luciânica e menipéia aponta para uma leitura que leve em conta a preferência de Morus pelas “idéias paradoxais, mais aptas que outras a afinar a acuidade do espírito”, conforme o testemunho de Erasmo (apud Prévost, 1978, p. 37). Com efeito, “nada nos garante o caráter assertivo” do título De optimo Republicae statu, deque nova insula Utopia, “que pode ser antes interpretado como mote ou matéria exploratória a ser debatida com argumentos pró e contra, na linha dos filósofos sofistas que More tanto apreciava e, em simultâneo, de acordo com as boas regras da retórica e da dialética, duas disciplinas pertencentes ao trivium humanista” (Serras, 2008, p. 30).

O libellus aureus, contudo, é, conforme diz seu título, “divertido e não menos edificante”, ou seja, tem uma dupla intenção, ligando-se, portanto, não apenas à tradição menipéia, mas também à tradição da sátira romana de função moralizadora. Nesta, o riso serve “apenas como um meio para a denúncia dos vícios da humanidade” (Rego, 1989, p. 34); ele tem por objetivo primordial restaurar uma ordem perdida por meio da denúncia do que está escondido pela hipocrisia. Segundo Van Rooy, o gênero da sátira latina (e o conceito de sátira que se estabeleceu a partir desta tradição) se caracteriza por sua função moral e cívica (1965, p. 91), função que percebemos nos dois livros da Utopia16, cujos diálogos derivam, como dissemos, dos diálogos socráticos, que, segundo Hendrickson, deram “a cor da sátira à instrução moral e à busca da virtude (1927, p. 50)17.

O Livro I indica o padrão moral para a leitura da descrição da Utopia, e é marcado pelo ataque. Nele está bem claro o que é “grotesco” (para usar um termo empregado por Northrop Frye) – as injustiças do sistema penal inglês da época de Morus, o desenvolvimento das enclosures, o ócio de cortesãos, soldados e religiosos, por exemplo – e o que não é grotesco – os exemplos dos virtuosos poliléritos18, dos akorianos19, dos macarenses20. Já o Livro II, apesar de ser mais luciânico, marcado pela ironia, pelo humor e pela graça, apresenta-se também como um contraponto moralista à realidade, especialmente no trecho em que Hitlodeu discorre sobre a moral utopiana, uma mescla de epicurismo e de estoicismo: a felicidade para os utopianos consiste em seguir a inclinação de sua própria natureza, indicada por Deus ou pela voz da razão, que os dirige para a volúpia (ou deleite natural) advinda dos prazeres “bons e honestos”, ou seja, os dirige para a virtude; a virtude consiste, portanto, em viver segundo a natureza21 – é este o destino que Deus deu ao homem.

Percebemos, a esta altura, o quanto o paradigma moreano vincula-se estreitamente à dupla tradição da sátira grega e latina: o paradigma utópico nasce como obra de humanista embebido de tradição antiga, ela é um serio ludere escrito por um moralista em quem a vida contemplativa e os ideais de honestas e utilitas se confrontam permanentemente com a vida política, ela é “um sonho político do Renascimento”22 que se efetiva enquanto criação abstrata, literária, com função de “instrumento crítico”23.

16 A sátira latina parece já haver sido reconhecida enquanto gênero literário em 30-40 a.C., quando Horácio (65-8 a.C.), no segundo livro de suas Sátiras, a ela se refere como tipo, atribuindo sua origem a Lucílio (180-102 a.C.; cf. Hendrickson, 1927). Enio (239-169 a.C.) usou a palavra latina satura para designar sua miscelânea de poemas, mas, segundo Webb “we have had no conclusive evidence that satura was the title employed by these early writers” (1912, p. 178). Varrão (116-27 a.C.), que introduziu a denominação de sátira menipéia, teria escrito 150 sátiras inspiradas em Menipo (satirarum menippearum libri) e outras 4, denominadas apenas satirarum libri, provavelmente inspiradas em Lucílio (180-102 a.C.). Delas, apenas os títulos e alguns fragmentos sobreviveram.

17 Na tradição romana, ela foi formalmente definida por Quintiliano por sua forma “prosimétrica”, ou seja, pela mistura de prosa e verso.

18 A punição com serviços à comunidade.

19 Que renunciam à política expansionista.

20 Que não se preocupam em acumular riquezas.

21 Como dissemos, a moral utopiana tem características do epicurismo e do estoicismo. “Viver segundo a natureza”, fórmula estóica, identifica-se a “viver segundo a razão”, pois para os estóicos a natureza é razão, ou seja, ela é feita de leis que o filósofo pode conhecer por meio de sua observação. Na contemplação da natureza, o filósofo encontra a beatitude. Mas o “viver segundo a natureza” também está presente na doutrina de Epicuro, que diz: “Então quem obedece à natureza, e não às vãs opiniões, a si próprio se basta em todos

145

A UTOPIA E A SáTIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

Fontes primárias

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.

BERGERAC, Cyrano de. Viagem à Lua. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. Posfácio de Jacyntho L. Brandão. São Paulo: Globo, 2007.

EPICURO. Antologia de textos. In: Os Pensadores vol. V. Tradução e notas de Agostinho da Silva. São Paulo: Abril, 1973.

LUCIANO. Uma história verídica. Edição bilíngue. Prefácio, tradução e notas de Custódio Magueijo. Lisboa: Inquérito, [1976?].

LUCIEN. Histoire véritable. Traduction et commentaire de Michel Tichit. Paris: Bertrand-Lacoste, 1995.

LUCIANO. Racconti fantastici. Introduzione di Fulvio Barberis. Traduzione e note di Maurizia Matteuzzi. Milano: Garzanti, 1995.

LUCIANO. Diálogo dos mortos. Org. e trad. Henrique G. Muracho. SP: Palas Athena/Edusp, 1996.

LUCIANO. Dialoghi e storie vere. A cura di Nino Marziano e Giorgio Verdi. Milano: Mursia, 1999.

LUCIEN. Histoires vraies et autres oeuvres. Préface de Paul Demont. Introduction, traduction nouvelle et notes de Guy Lacaze. Paris: Le Livre de Poche, 2003.

LUCIEN. Voyages extraordinaires. Introduction générale et notes de Anne-Marie Ozanam. Paris: Les Belles Lettres, 2009.

LUCIANO. Como se deve escrever a história. Edição bilíngüe. Tradução e ensaio de Jacyntho L. Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009.

MORE, Thomas. Utopia. In: The Complete Works of St. Thomas More, vol. 4. Edited by E. Surtz and J.H. Hexter. New Haven: Yale University, 1965.

MORE, T. L’Utopie. Présentation, texte original, apparat critique, exegèse, traduction et notes de André PRÉVOST. Paris: Mame, 1978.

MORE, Thomas. L’Utopie ou Le Traité de la meilleure forme de gouvernement. Traduction et notes de Marie Delcourt. Présentation et notes par Simone Goyard-Fabre. Paris: Flammarion, 1987.

MORE, Thomas. Utopia (1516). A cura di Luigi Firpo. Napoli: Guida, 1990.

MORE, Thomas. Utopia. Organização G. M. Logan e R. M. Adams. Tradução Jefferson L. Camargo e Marcelo B. Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MORE, Thomas. L’Utopie. Traduit de l’anglais par V. Stouvenel. Revu et annoté par M. Botigelli. Préface de Claude Mazauric. Paris: Librio, 2008.

os casos. Com efeito, para o que é suficiente por natureza, toda a aquisição é riqueza, mas, por comparação com o infinito dos desejos, até a maior riqueza é pobreza” (1973, p. 26). Ou seja, permanecer nos limites da natureza é ter o suficiente, e, ao mesmo tempo, é o cúmulo da riqueza. Para Epicuro, assim como para os utopianos, a doutrina do prazer é regulada pelas virtudes cardeais: a prudência faz com que o homem discirna os prazeres verdadeiros, a força permite que se faça bom uso deles, a temperança impede que se abuse deles e a justiça que se afaste o prazer que possa prejudicar alguém (Delcourt in More, 1987, p. 183). O elogio da volúpia e do prazer cuja satisfação não causa nenhum desprazer é formulado a partir da tradição epicurista, que More conhece pela leitura de Cícero e dos gramáticos antigos, segundo Delcourt, que dizem que, para Epicuro, o prazer está no começo e no fim de toda vida feliz, e que o princípio do bem está no prazer do ventre. As excreções do corpo são um prazer porque aliviam um sofrimento, ou seja, o prazer, nesse caso é ausência de desprazer. O sábio epicurista deve escolher o prazer estável, em repouso, ou seja, o equilíbrio do corpo que consiste em ter saúde e em ter as necessidades físicas satisfeitas. A ausência de desejo é prazer, já que o desejo é privação, logo, é desprazer, dor. A ausência de desejo leva à ausência de desprazeres, à paz, à ataraxia. Segundo a fórmula epicurista, sábio é aquele que, com um pouco de pão e de água, rivaliza de felicidade com Júpiter. Entre os prazeres da alma, os epicuristas citam a amizade. Eles não temem nem os deuses nem a morte. Se os deuses existem, são seres perfeitos e felizes, que não criaram o mundo e que não se preocupam com ele. Quando refletem sobre o bem, os

146

ANA CláUdIA ROMANO RIBEIRO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Fontes secundárias

BAKHTIN, Mikhail. "Particularidades do gênero e temático composicionais das obras de Dostoiévski". In: Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

BERRIEL, Carlos E. O. "Contraddittorietà e storia, materie intrinseche dell'utopia". In: Atas do Convegno Internazionale Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia. Florença, 22 e 23 maggio 2007. MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 4, 2007.

BERRIEL, Carlos E. O. "Campanella: l'immaginazione utopica al servizio del cesaropapismo". In: Atas do II Congresso Internacional de Estudos Utópicos. Universidade Estadual de Campinas, de 7 a 10 de junho de 2009. MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 6, 2009 (em preparação).

BRANHAM, R. Bracht. "Utopian Laughter: Lucian and Thomas More". In: Moreana, 86, jul. 1985, p. 23-43.

CURTIUS, Ernst R. "Gracejo e seriedade na literatura medieval". In: Literatura européia e Idade Média latina. Trad. Paulo Rónai e Teodoro Cabral. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1996.

DORSCH, T.S. "Sir Tomas More and Lucian: an interpretation of Utopia".In: Archiv für das Studium der neueren Sprachen und Literaturen, CCIII, 1967, p. 349-363.

DUBOIS, Claude-Gilbert. Problèmes de l’utopie. Archives de Lettres Modernes, 85, IV, 1968. [Problemas da Utopia. Trad. de Ana Cláudia R. Ribeiro. Campinas: PUBLIEL-UNICAMP, 2009.]

ELLIOTT, R.C. The Shape of Utopia. Studies in a Literary Genre. Chicago and London: University of Chicago Press, 1970.

FORTUNATI, Vita. "Fictional Strategies and Political Messages in Utopias". In: MINERVA, N. (org.). Per una definizione dell’utopia. Atti del Convegno Internazionale di Bagni di Lucca, 12-14 settembre 1990. Ravenna: Longo, 1992.

FORTUNATI, Vita. "L’utopia come genere letterario". In: Dall’utopia al’utopismo. Percorsi tematici. A cura di Vita Fortunati, Raymond Trousson, Adriana Corrado. Napoli: CUEN, 2003.

FRYE, Northrop. "O mythos do inverno: a ironia e a sátira". In: Anatomia da crítica. Trad. Péricles E. da S. Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.

HENDRICKSON, G. L. "Satura Tota Nostra Est". In: Classical Philology, 22, p. 46-60.

LESTRINGANT, Frank. "O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da utopia". In: MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 3, 2006, p. 155-175.

LOGAN e ADAMS. Introdução. In: MORE, Thomas. Utopia. Organização G.M. Logan e R.M. Adams. Tradução Jefferson L. Camargo e Marcelo B. Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

utopianos estão mais próximos do dogma cristão do que de suas fontes antigas.

22 A expressão é de Goyard-Fabre (1987, p. 17).

23 Para Prévost, a utopia "está classificada entre os grandes instrumentos críticos do pensamento. Pertence à linhagem do Organon (Aristóteles), do Novum Instrumentum (Erasmo), do Discours de la méthode (Descartes), da dialética (Hegel), da Relatividade (Einstein). Graças ao instrumento utópico que inventa, Morus dá à análise sócio-econômica e político-social uma precisão antes dele nunca alcançada" (1978, p. 26).

147

A UTOPIA E A SáTIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

QUARTA, Cosimo. "Utopia: gênese de uma palavra-chave". In: MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 3, 2006, p. 35-53.

RACAULT, Jean-Michel. L’utopie narrative en France et en Angleterre (1676-1761). Oxford: The Voltaire Foundation, 1991.

RACAULT, Jean-Michel. Nulle part et ses environs. Voyage aux confins de l’utopie littéraire classique (1657-1802). Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 2003.

REGO, Enylton de Sá. "A sátira menipéia, Luciano e a tradição luciânica". In: O calundu e a panacéia. Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradução luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

RUYER, Raymond. L’Utopie et les utopies. Paris: P.U.F., 1950.

SERRAS, Adelaide Meira. "Utopia, o Pomo de Concórdia Moreano". Via Panorâmica, 1, 2008, p. 28-39. Web http://ler.letras.up.pt.

SUVIN, Darko. "Per una definizione del genere letterario dell’utopia: un pò di semantica storica, un pò di genologia, una proposta e un’argomentazione a difesa". In: Le metamorfosi della fantascienza. Poetica e storia di un genere letterario. Trad. di Lia Guerra. Bologna: Il Mulino, 1985.

TROUSSON, Raymond. Préface. In: FOIGNY, Gabriel de. La Terre Australe Connue. Genève: Slatkine, 1981.

TROUSSON, Raymond. "Utopia e utopismo". In: MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 2, 2005.

VAN ROOY, Charles A. Studies in Classical Satire and Related Literary Theory. Leiden: E.J. Brill, 1965.

VOSSKAMP, Wilhelm. "A organização narrativa da imagem e da contra-imagem na poética das utopias literárias". In: MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 6, 2009 (no prelo).

WEBB, Robert H. "On the Origin of Roman Satire". In: Classical Philology, vol. 7, n. 2, 1912, p. 177-189.

Resumo

Quando refletimos sobre os relatos de viagem de peregrinação medievais que chegaram até nós, podemos notar que observação direta e reminiscências literárias surgem de tal forma articuladas ao ponto de não se fazerem distinguíveis, compondo juntas o arcabouço de valores que proporcionou que os medievais se percebessem e percebessem aqueles com quem aos poucos tomaram contato: os orientais. Num rápido inventário das descrições de povos e lugares que circundavam a Terra Santa, nota-se, à partida, que certa recorrência de imagens está ligada à sobreposição de doutrinas que circulavam desde a Antigüidade e que conduziam as impressões dos viajantes desejosos de encontrar, através da observação direta, matéria para surpreender seus conterrâneos curiosos com as gentes dos lados de lá; umas gentes que ofereciam parâmetros para que os europeus se valorizassem ou depreciassem e, por isso mesmo, poderiam servir como instrumentos para o empenho de moralização que caracterizou os escritos de então. No conjunto desses relatos, aquele de um viajante que talvez não tenha viajado, o Viagens de Jean de Mandeville, chama especial atenção, pois os tópicos e lugares comuns são de tal forma constitutivos desse relato que, melhor que nenhum outro, ele nos permite refletir – e este é o objetivo desta comunicação – sobre como as reminiscências literárias e iconográficas relativas às maravilhas orientais alimentaram a expectativa dos leitores ou ouvintes de então não por um realismo cruamente sincero, mas por descrições do Oriente recheadas de elementos fabulosos, exóticos e até mesmo com padrões morais invertidos em relação aos dos cristãos.

Palavras-chave

Idade Média, relatos de viagem, relatos de peregrinação, Viagens de Jean de Mandeville, Oriente.

Susani Silveira Lemos França é professora de História Medieval da UNESP/Franca, doutora em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa, tradutora e organizadora de Viagens de Jean de Mandeville (Bauru: Edusc, 2007), autora de Os reinos dos cronistas medievais (São Paulo: Annablume, 2006); e organizadora de As cidades no tempo (Org., São Paulo: Olho D’Água, 2005).

Reminiscências e observação no universo dos viajantes dos séculos XIV e XVSusani Silveira Lemos França Universidade Estadual de São Paulo (Franca, Brasil)

150

SUSANI SIlvEIRA lEMOS fRANçA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Embora o tema deste congresso seja Utopia, não partirei deste conceito para pensar o universo dos viajantes medievais, porque minha apresentação está fundada na crença em que uma época diz

tudo o que tem a dizer sobre si própria e o vocabulário que os homens de um tempo usam para se definir é muito mais do que um simples instrumento de comunicação, é antes constituinte do seu modo de ser e de estar no mundo. Portanto, quaisquer pontes conceituais que façamos com outras épocas podem, creio, dizer mais sobre as nossas ambições de similaridade e de unidade do humano do que sobre as especificidades de um tempo.

No que diz respeito aos relatos de viagem dos séculos XIV e XV, e o século XIII pode aqui também ser incluído, é possível notar, diferentemente dos relatos anteriores, o crescente interesse pela diversidade humana, porém, esse crescente interesse não se confunde com a projeção de um mundo melhor, como a que sustenta as utopias quinhentistas e posteriores, pois estamos ainda, nesse contexto, circunscritos a um campo de viagens que melhor se define como de exploração e não de descoberta. Viagens, em outras palavras, de reconhecimento de lugares e gentes que já tinham sido noticiados em fontes livrescas gregas, romanas e medievais, mas que, então, passam a ser conhecidos de própria vista, graças sobretudo à abertura da Ásia aos ocidentais no século XIII e à crescente curiosidade pelos mongóis, conjugadas a uma aspiração de que estes poderiam se aliar aos cristãos em um grande combate contra o Islã (cf. Gadrat, 2005, p. 16; Lacarra, 1999, p. 79).

Não se pode dizer, portanto, que a expectativa de um novo idealizado e projetado como modelo imaginário de uma sociedade futura, tenha sido o móbil das viagens medievais para a Terra Santa e partes do Oriente, mesmo que diversas passagens dos relatos de viagem possam sugerir a possível projeção de uma sociedade ideal ou perfeita, como, por exemplo: as descrições do reino do Preste João, apontado por Jean de Mandeville (2007, p. 230) como um lugar onde vivem “homens de boa fé e religião e leais uns aos outros, não existindo entre eles fraude ou corrupção”; ou as passagens de João de Piano Carpine (2005, p. 41) definindo os tártaros, no século XIII, como “mais obedientes aos seus senhores do que alguns homens que vivem no mundo, sejam religiosos ou seculares, mais os reverenciam e dificilmente mentem para eles” e, além disso, “raramente ou nunca têm choques verbais e jamais passam aos fatos”; ou, ainda, entre tantas outras passagens que poderiam ser arroladas, aquelas sobre o grande reino da China meridional (Mangi), apresentado pelo referido Mandeville (2007, p. 185) como “a melhor terra, a mais bonita e a mais deleitável e abundante em todo tipo de bem ao alcance do homem”, não só pela fecundidade do solo, mas porque ali não havia “pessoas carentes e pedintes”. Os habitantes eram “gentes bonitas, no entanto, muito pálidas”, e havia ali “muito mais mulheres bonitas que em qualquer outro país do ultramar”. Todas essas passagens, que, entre outras, estimularam os projetos de exploração para além dos séculos XIII e XIV¹, inserem-se em um conjunto de referências que, menos do que movidas pela busca de uma sociedade supostamente perfeita alhures – já que os viajantes partem imbuídos do princípio de que a cristandade é superior a qualquer

¹ Segundo Duviols, fizerem-no até o século XVIII (1985, p. 33-41).

151

REMINISCêNCIAS E OBSERvAçãO NO UNIvERSO dOS vIAjANTES dOS SéCUlOS xIv E xv

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

outro arranjo civilizacional –, estão movidas por um persistente empenho de moralização de fundo profundamente religioso, mas voltado ora para o exterior, ora para os próprios cristãos. No primeiro caso, era o afinco para incluir os povos encontrados dentro dos padrões morais cristãos o que movia os viajantes; no segundo, era a insistência para alertar os seus iguais sobre os desvios do caminho das virtudes. Em um e outro caso, no entanto, o referencial são os padrões morais consolidados na cristandade ou a crença na sociedade cristã como a melhor. Referencial, pois, ainda muito preso à idéia de uma sociedade modelada pelos parâmetros da vida além da morte e, por isso mesmo, em que a moral religiosa se sobrepõe à imagem de uma sociedade politicamente bem organizada. Razão pela qual talvez se possa dizer que a insistência crítica de utopistas como Tomas More, Francis Bacon, Tomas Campanella, preocupados em denunciar a fraqueza das instituições e das diretrizes das nações européias, só muito forçadamente poderia ser notada entre os viajantes cristãos medievais.

Não se pode negligenciar, entretanto, que, no contexto dos séculos XIII, XIV e XV, seja notável uma crescente curiosidade² por um “outro mundo” - o que poderia sugerir uma expectativa utópica -, uma curiosidade antes tida como uma tentação pecaminosa, mas que passa gradualmente a ser vista como uma espécie de virtude intelectual (cf. Howard, 1980, p. 106; Chareyron, 2004, p. 25). Mandeville chega mesmo a relacionar – numa passagem que ilustra bem o nível das crenças medievais – o gosto dos ocidentais pelo deslocamento com a configuração geográfico/astronômica a que estavam submetidos, pois, por estarem “no sétimo clima, [...] regido pela Lua, que tem um movimento rápido” e é conhecida como o “planeta de passagem”, tinham “condição e vontade” para se deslocarem e caminharem “por diferentes caminhos em busca de coisas estranhas e das diversidades do mundo, pois a Lua se move ao redor da Terra mais rapidamente que nenhum outro planeta” (2007, p. 157-158). Esse tal gosto pelo deslocamento parecia motivado, no período em questão, justamente pelo gosto por saber do tal “outro mundo”, como bem define Frei Guilherme de Rubruc (2005, p. 120 e 132) em meados do século XIII. Um outro mundo cuja fronteira inicial era tão deslocável quanto o reino mítico do Preste João: para uns, como o citado Rubruc, este outro mundo começava nas terras tártaras, onde, do mesmo modo, João de Pian del Carpine (XIII) se sentiu sem parâmetros de comparação, ao notar que o aspecto dos tártaros era “diferente do de todos os demais homens” (2005, p. 33); para outros, como Jordan Catala Sévérac (XIV), na Índia Menor (2005, p. 275 e 285); para outros, ainda, como Mandeville (XIV), o outro mundo não está demarcado como tal, mas as maravilhas encontradas na viagem parecem ter início quando o mundo que descreve se torna predominantemente insular ³, isto é, nas terras da Índia, toda ela, na sua perspectiva, “dividida em ilhas” e onde havia “muitos povos diferentes” (2007, p. 229). Nessas mesmas imediações, Odorico Pordenone (XIV) sentiu que começava a “perder o rumo”, porque a terra lho tirara (2005, p. 303) ; e até mesmo Marco Polo, célebre viajante reconhecido por seu espírito pouco afeito às “maravilhas” que fascinavam seus contemporâneos e pouco dado a lançar juízos de valor, não se exime, no relato que Rusticello

2 Friedrich Wolfzettel considera que os germes do espírito de curiosidade remontam à época das missões asiáticas dos séculos XIII e XIV (1996, p. 36).

³ Claude Kappler destaca o gosto de Mandeville por descrever um mundo em que o continente é minimizado relativamente às ilhas, justamente por ser nelas que, para os medievais, o maravilhoso atuava mais livremente (1993, p. 36-39).

152

SUSANI SIlvEIRA lEMOS fRANçA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

registra4, de lançar uma ou outra expressão que denuncia que era de um mundo pouco familiar que falava, não só o das terras dos tártaros, mas especialmente o das terras do golfo de Keinan, no mar da Índia, onde havia tanta gente que parecia “outro mundo” (cf. Polo, 1854, l. III, cap. V, p. 358). Este outro mundo, porém, não se configura pela noção de “novo”, antes se delineia a partir da referida noção de desvio dos parâmetros conhecidos. E mais, na construção da imagem do outro mundo, que aos poucos ganha corpo nas narrativas de viagem desses séculos, as reminiscências literárias e o desejo de confirmar conhecimentos multisseculares são fatores decisivos. Reminiscências que, é certo, ainda continuam a alimentar a perspectiva dos viajantes quinhentistas e posteriores nas terras mais distantes e algumas delas sequer supostas pelos sábios geógrafos clássicos, porém, a estranheza e a novidade, que já compunham as duas faces de uma mesma moeda entre os viajantes do final da Idade Média (Gradat, 2005, p. 11-12), passam a alimentar a imaginação sobre lugares mais afortunados.

O impacto da diversidade do “outro mundo” é, a propósito, proclamado em diversos textos. Para não falar do preâmbulo de Rusticello ao livro de Marco Polo ainda no século XIII – no qual destina o livro aos curiosos por “inteirar-se da diversidade de raças da humanidade, e de reinos, domínios e regiões de todas as partes do Oriente” – vale lembrar o do alemão Ludolph de Sudhein, do século XIV, que abre seu relato explicando que desejou escrever “para o prazer do leitor” aquilo que viu “nas cidades, castelos, lugares de oração”, e acrescenta, bem como aquilo que sabia “dos habitantes, seus costumes e as maravilhas que podem divisar aqueles que atravessam o mar” (1997, p. 1032). E mesmo que, ainda no século XV, sejam encontrados relatos, como o de Nompar de Caumont, em que a convenção religiosa se impõe sobre qualquer interesse étnico (cf. Caumont, 1858, p. 3-13), o mesmo tópico da descrição da variedade de “reinos, principados, condados e outras terras” mostra-se presente. Mas é Mandeville que, apesar de declarar a motivação religiosa da sua viagem, termina a narrativa ressaltando sua visita aos mais diversos lugares, que não pôde descrever em sua totalidade, porque, segundo ele, não viu todas as variedades e poderia, se as descrevesse, faltar com a tão almejada verdade e porque o relato se alargaria em demasia, caso tentasse (2007, p. 255).

Todas essas referências são de algum modo indicativas do novo sentido que tiveram as viagens e os registros das mesmas: informar novidades – não com a expectativa de que algo muito melhor haveria alhures – e ser útil aos futuros viajantes. Do século IV ao VII, o interesse por tais deslocamentos estava colado ao seu contributo para o aperfeiçoamento espiritual e o despojamento de interesses profanos (cf. Graboïs, 1998, p. 23-24; Sigal, 1974, p. 6) e, até o século XI, os alvos religiosos, como a veneração de relíquias, a tendência penitencial, o comprometimento missionário ou armado, se impõem, mas, a partir do século XIII, a abertura para o desconhecido inspira até mesmo os viajantes missionários. Frei João de Montecorvino é aquele que mais explicitamente vincula o visto nas terras do oriente a uma forma privilegiada de conhecer: o conhecer do que ainda não se sabe. Escreve ele aos seus irmãos franciscanos, Frei Bartolomeu de São Concórdio e Frei

4 O livro de Polo, Devisement du Monde, ou Livre des Merveilles, ou Il Milione, foi escrito nos Cárceres de Gênova entre 1298 e 1299, tendo sido ditado na prisão ao erudito Rusticello.

153

REMINISCêNCIAS E OBSERvAçãO NO UNIvERSO dOS vIAjANTES dOS SéCUlOS xIv E xv

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Mentilo de Espoleto, que contaria “certas coisas”, porque sabia que tinham “grande zelo pela ciência” e queriam “ter sabedoria e conhecimento de todas as coisas” (2005, p. 253). A utilidade da sua narrativa estava, assim, em poder contribuir para a ampliação dos conhecimentos desses homens já sábios, segundo ele, mas que queriam saber mais, como convinha numa época em que se desenvolvia um tipo de realismo inspirado na idéia de que este mundo é o ponto de apoio necessário para aquele que quer se elevar ao reino de Deus – reino que se encontrava num plano superior5. Como esses viajantes, outros também se comprometem a descrever seu caminho por um território recheado de novidades, mas sem perder de vista seu comprometimento realista e pragmático – um realismo, entretanto, vale destacar, recheado de maravilhoso e de misticismo religioso, como era o medieval. Bertrandon de La Broquière (séc. XV) abre seu relato declarando que, “para incitar e atrair os corações dos nobres homens que desejam ver o mundo”, “assim que pôde recordar”, preparou um livro de suas memórias de viagem, e o fez pensando não apenas no rei ou príncipe cristão que quisesse empreender a conquista de Jerusalém, mas em qualquer nobre que quisesse realizar a viagem (1892, p. 1-2). Odorico Pordenone (2005, p. 283), por sua vez, saiu em viagem, segundo relata, com o alvo de “lucrar alguns frutos de almas”, porém, pelo caminho, ouviu e viu “muitas coisas grandes e maravilhosas” que não pôde deixar de narrar. E tantas coisas estranhas diz ter visto, que nem sequer teve coragem de narrar todas elas, porque, para alguns, considera ele, “pareceriam incríveis, se não as vissem com os próprios olhos” (p. 336).

Se, no entanto, de tantas estranhezas e maravilhas falam esses viajantes, nenhuma delas parece se enquadrar para eles dentro do que se pode chamar uma sociedade imaginária superior à sociedade cristã ou às nações cristãs. Por um lado, porque esta ou estas, a despeito de merecerem retoques, ainda eram exemplares, por outro lado, porque, quando tratamos da produção escrita medieval sobre as viagens – ou da produção escrita medieval em geral –, é vão e inoperante opor real e imaginário, herança e invenção, ou buscar demarcar os conhecimentos provenientes de reminiscências literárias, orais ou iconográficas de conhecimentos provenientes da observação direta6, pois esses conhecimentos compõem de forma indiferenciada o arcabouço dos valores que contribuíram para que os viajantes pensassem os povos encontrados e a si próprios a partir do que julgavam como regras ou desvios de uma sociedade que quiseram propor como modelo, a cristã. Como outros viajantes, portanto, Mandeville, que merece ser aqui destacado porque não viajou – o que poderia sugerir que as terras que descreve são imaginárias ou até utópicas –, não tentou conceber uma sociedade imaginária e, sim, escrever um relato de viagens a partir de textos tomados no seu tempo como confiáveis. Assim, construiu um relato sobre sociedades que, por mais maravilhosas que parecessem, acreditava possíveis e reais dentro de parâmetros de realidade em que o ouvido, o lido e o visto podiam ocupar igual peso.

5 Étienne Gilson explica que o realismo medieval, ainda que herdeiro do aristotélico, se distancia dele por colocar em dúvida o idealismo platônico não em prol de uma ciência voltada para o reino do homem, mas por proporem que o reino de Deus não é deste mundo, apenas tem nele seu apoio (cf. 1989, especialmente p. 245).

6 Maria Jesus Lacarra alerta para como “as categorias de verdaderio, falso, realidade e ficção, literatura e história nunca se mostraram tão inoperantes como quando tentamos aplicá-las” aos livros de viagem (cf. 1999, p. 77).

154

SUSANI SIlvEIRA lEMOS fRANçA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

BROQUIÈRE, B. de la. Le Voyage de Oultremer. Publié et annoté par Ch. Schefer. Paris. Ernert leroux Editeur, 1892.

CARPINE, J. P. del. "História dos Mongóis". In: ____ et al. Crônicas de Viagem. Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Trad. intr. e notas de Ildefonso Silveira e Ary E. Pintarelli. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. (Coleção pensamento franciscano; v. 7)

CAUMONT, N. de. Voyaige d'oultremer en Jhérusalem... l'an 1418. Paris: A. Aubry, 1858.

CHAREYRON, N. Globe-Trotters au Mayen Âge. Paris: Imago, 2004.

DUVIOLS, J.-P. L'Amérique espagnole vue et rêvée. Les livres de voyages de Christophe Colomb à Bougainville. Paris: Editions Promodis, 1985.

FRANÇA, S. S. L. Introdução. In: Viagens de Jean de Mandeville. Bauru: EDUSC, 2007.

GADRAT, C. Une image de l’orient au XIVe siècle. Le Mirabilia descripta de Jordan Catala de Séverac. Paris: École de Chartes, 2005.

GILSON, É. L’esprit de la philosophie medieval. 2ª Ed. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1989.

GRABOÏS, A. Le pèlerin occidental en Terre sainte au Moyen Âge. Paris, Bruxelles: De Boeck & Larcier S. A., 1998.

HOWARD, H. R. Writers & Pilgrims. Medieval Pilgrimage Narratives and their posterity. Berkeley/Los angeles/London: University of California Press/A Quantum Book, 1980.

KAPPLER, C. Monstros, Demônios e Encantamentos no fim da Idade média.Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LACARRA, M. J. "El Libro del Conosçimiento: um viaje alrededor de um mapa". In: Libro del conosçimiento de todos los rrenos et tierras et señorios que son por el mundo, et de lãs señales et armas que han. Zaragoza: Institución “Fernando El Católico” (C.S.I.C.), 1999.

MANDEVILLE, J. As Viagens de Jean de Mandeville. Trad. introd. e notas de Susani Silveira Lemos França. Bauru: Edusc, 2007.

MONTECORVINO, J. de. "Cartas". In: CARPINE, J. P. del et al. Crônicas de Viagem. Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Trad. intr. e notas de Ildefonso Silveira e Ary E. Pintarelli. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. (Coleção pensamento franciscano; v. 7)

POLO, M. Travels of Marco Polo. The translation of Marsden Revised, with a selection of his notes. Edited by Thomas Wright, Esq. M.A F.S.A. Etc. London: Henry G. Bohn, York Street, Convent Garden, 1854.

155

REMINISCêNCIAS E OBSERvAçãO NO UNIvERSO dOS vIAjANTES dOS SéCUlOS xIv E xv

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

PORDENONE, O. de. "Relatório". In: CARPINE, J. P. del et al. Crônicas de Viagem. Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Trad. intr. e notas de Ildefonso Silveira e Ary E. Pintarelli. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. (Coleção pensamento franciscano; v. 7)

RUBRUC, G. de. "Itinerário". In: CARPINE, J. P. del et al. Crônicas de Viagem. Franciscanos no extremo oriente antes de Marco Polo (1245-1330). Trad. intr. e notas de Ildefonso Silveira e Ary E. Pintarelli. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS/EDUSF, 2005. (Coleção pensamento franciscano; v. 7)

SÉVÉRAC, J. C. de. "Les mirabilia descripta de Jordan Catala de Sévérac". In: GADRAT, Christine. Une Image de L’Orient au XIVe siècle. Édition, trad. et commentaire. Paris: École des Chartes, 2005.

SIGAL, P. A. Les marcheurs de Dieu. Paris: Armand Colin, 1974.

SUDHEIN, L. de. Le Chemin de la Terre sainte. Trad. du latin, présenté et annoté par Christiane Deluz. In: RÉGNER-BOHLER, Danielle (Dir.). Croisades et Pèlerinages. Récits, chroniques et voyages em Terre Sainte XIIe-XVIe siècle. Paris: Éditions Robert Laffont S.A., 1997.

WOLFZETTEL, F. Le discours du voyageur. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.

On the very notion of utopiaCostica BradatanTexas Tech University (Estados Unidos)

Resumo

In this paper I seek to explore the possibility of a meaningful relationship between Thomas More’s Weltanschauung, personality and background, on the one hand, and the formation of the concept of utopia, on the other. In some important respects, the ultimate make-up of Utopia reflects several convergent aspects of More’s complex personality: his admiration for St. Augustine, whose De Civitate Dei was one of More’s favorite books and traces of which can be found in Utopia; his being a man of the Renaissance and inhabiting the same intellectual world as that inhabited by Pico della Mirandola, Marsilio Ficino, Erasmus of Rotterdam and others; probably deriving from that, his propensity toward re-creation and re-shaping the existing order of things, from a personal level (as self-reformation) to a much higher level (as cosmopoiesis, to use Giuseppe Mazzotta’s term); the mysterious nature of the whole utopian project, along with the somehow ironical tone in which the book is written. These – and other – aspects make More’s Utopia not only a remarkably rich and complex work of literature, but also, in some oblique way, the testimony of an outstanding effort of self-configuration through writing.

Palavras-chave

Utopia, Thomas More, concept of utopia, St. Augustine.

Costica Bradatan é doutor em Filosofia pela Universidade de Durham (Reino Unido). Atualmente é professor assistente de Humanidades no Honors College na Texas Tech University, além de também já ter lecionado na Cornell University, Miami University, e em várias universidades pela Europa (Inglaterra, Alemanha, Hungria e Romênia). Bradatan tem seus interesses de pesquisas voltados para História da Filosofia Moderna, Filosofia do Leste Europeu, Filosofia da Literatura, Filosofia da Religião e Artes. Seu mais recente trabalho é The Other Bishop Berkeley, an exercise in reenchantment (NY: Fordham University Press, 2006). Também é autor de duas outras obras em língua romena: An Introduction to the History of Romanian Philosophy in the 20th Century (Bucharest, 2000) e Isaac Bernstein’s Diary (Bucharest, 2001; New York/Nijmegen, 2002), além de dezenas de artigos, ensaios, verbetes enciclopédicos, resenhas e traduções de livros. Costica Bradatan é editor-chefe do Janus Head. A Journal of Interdisciplinary Studies in Literature, Continental Philosophy, Phenomenological Psychology, and the Arts (www.janushead.org) e editor virtual de H-Ideas, the intellectual history section of the H-Net – Humanities and Social Science. Online.

158

COSTICA BRAdATAN

In this paper I seek to explore the possibility of a meaningful relationship between Thomas More’s Weltanschauung, character and background, on the one hand, and the nature of his concept of Utopia, on the

other. In some important respects, the ultimate make-up of Utopia reflects several convergent aspects of More’s complex personality: his admiration for St. Augustine, whose De Civitate Dei was one of More’s favorite books and traces of which can be found in Utopia; his profound asceticism, his “temperamental attraction towards monasticism” (Ackroyd, 1999, p. 86) and the “spiritual exercises” he practiced throughout his life; his being a man of the Renaissance and inhabiting the same intellectual world as Pico della Mirandola (whose biography he translated into English), Marsilio Ficino (whom he resembled in more than one way), Erasmus of Rotterdam (with whom he was very close friends) and others; probably deriving from that, his propensity toward re-creation and re-shaping the existing order of things, from a personal level (as moral and intellectual self-improvement) to a much higher level – as cosmopoiesis (to use Giuseppe Mazzotta’s term); the evasive nature of the whole utopian project, along with the somehow ironical and enigmatic tone in which the book is written. These – and other – aspects make Thomas More’s Utopia not only a remarkably rich and complex work of literature, but also, in some oblique way, the testimony of an outstanding effort of self-configuration through writing.

1. Preliminary Remarks

Before getting to the matter at hand, however, I should make a couple of preliminary remarks of a rather methodological nature.

The first remark is about what might be called the “evasiveness” of Utopia: the difficulty in which the reader, however apt, finds itself to come up with a homogeneous interpretation of the book, a unique and unified perspective from which More’s work would make complete sense. No matter how generous the hermeneutic framework is, there is still a sense that this book is designed in such a way as to ultimately evade the reader. The meaning that you seem to find at one level of the work is undermined and dismantled, if not openly mocked, at its next level as you dig deeper into the book’s world¹. For example, as one scholar has recently put it, “while Utopia’s humanist perspective and rhetoric invite us to view Utopian society as an ideal society, the text subverts its own explicit positions and consequently undermines any attempt to capture an ideal” (Yoran, 2009, p. 293-4). The sheer volume of literature that has been produced on Utopia, as well as the disconcerting plurality of interpretations proposed over the last several centuries testify amply to this difficulty. Thus, very much like in the case of Utopia itself, Utopia seems to be quite well protected against incursions from the outside. In either case, to get in you need the assistance of a Utopian guide. You need someone to take care of you and make sure you don’t get lost. Now, if we are to seek assistance and befriend some Utopian insider – in other words, someone who is not of flesh and blood, but a creature of imagination – then, the most appropriate way of engaging

¹ “It is very difficult in Utopia to gauge or determine More’s own opinion upon any particular matter.” (Ackroyd, 1999, p. 177).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

159

ON ThE vERY NOTION Of UTOPIA

in such a relationship would be through imagination itself. Hence not only the important role that a more imaginative hermeneutics will deliberately play throughout my paper, but also – perhaps more importantly – the irremediably tentative, incomplete character of my interpretation.

My second preliminary observation is about a certain criticism that can be leveled against an approach like this that seeks to relate a work of fiction to the personal world of its author: it would be – so this criticism goes – illegitimate to establish relationships between somebody’s self, on the one hand, and the nature of his or her work, on the other hand. These are entities that fall under different ontological categories: the character of an author, his background, the inner workings and configurations of his private self, are “incommensurable”, so to speak, with the type of world he or she creates as an author. To consider them together would be to count apples and oranges.

It would certainly be wrong to count apples and oranges, I hasten to add, but that’s not what I am doing here. The philosophical premise on which my entire approach is based is that there is a fundamental resemblance between the self of an author and the fictional worlds he creates in his works. One’s self is not a “given”, something that one is born with and has to carry with them as long as they live. On the contrary, a self is an ongoing process, a “work in progress”, something one continually creates and re-creates. Alexander Nehamas describes the process quite accurately:

To create a self is to succeed in becoming someone, in becoming a character, that is, someone unusual and distinctive. It is to become an individual… To become an individual is to acquire an uncommon and idiosyncratic character, a set of features and a mode of life that set one apart from the rest of the world (1998, p. 4-5).

In other words, the creation of the self is not unlike the process of literary creation: what is crucial in both cases is the fact that becoming this or that is, ultimately a matter of style; nothing is given, but everything is the result of a process of (aesthetic) fashioning, deliberation and projection. We all aspire to have a “beautiful” self. Therefore, I can be said to be creating a self for myself just as an author creates a character in her books. The fact that the same word (“character”) is used to mean both a “hero” in a work of fiction and the ethical quality of a self is quite telling and is certainly more than a “word game”. Someone who has character is, in an important way, a character himself. Then, to the extent that I am right, it may be said that the self of an author is something he creates in parallel with the creation of his work: the two, part of the same larger process of configuration, are not separated from each other, but they are in continuous communication. They are communicating vessels, as it were. Thus, we can approach a work of fiction from the point of view of its author’s character and worldview above all because the author himself is, to an important extent, a “creation” (if his own), a character, a created self, not unlike the people that populate his works.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

160

COSTICA BRAdATAN

Stephen Greenblatt reaches basically a similar conclusion, even though he argues differently for this type of approach. For him, between the roles that Thomas More play in society (at the court, in his family, in the Tower), on the one hand, and the substance of his literary works (Utopia, in particular), on the other, there is a profound affinity. In an important sense they are the two sides of the same coin: “Social actions are themselves always embedded in systems of public significance, always grasped, even by their makers, in acts of interpretation, while the words that constitute the works of literature…. are by their very nature the manifest assurance of a similar embeddedness” (Greenblatt, 1980, p. 5).

2.The City of God within

We learn from Roper’s Life of More that, “to his great commendation”, More “for some time gave public lectures on St. Augustine’s De Civitate Dei in the church of St. Laurence in the Old Jewry” (Roper, 1947, p. 211). Unfortunately, the content of these lectures has not been preserved, but we do know, however, that Augustine was to have a tremendous influence on More for the rest of his life. Augustine’s works played a major role in his formation as a writer, as a scholar or, simply, as a Catholic. Indeed, most modern biographers tend to emphasize More’s special relationship to Augustine. Richard Marius, to give only one example, notes that St. Augustine was More’s “favorite saint, the writer who more than anyone else influenced the shaping of his mind. He knew Augustine almost by heart, and The City of God is more often quoted in is works than anything else in the Augustinian corpus” (Marius, 1985, p. 26)².

A crucial theological statement that the young Thomas More must have found in De Civitate Dei is that regarding the distinction that St. Augustine draws between “the worldly city” and the "City of God”. He divides human society into two “branches”:

the one consists of those who live by human standards, the other of those who live according to God’s will. I also call these two classes the two cities, speaking allegorically. By two cities I mean two societies of human beings, one of which is predestined to reign with God for all eternity, the other doomed to undergo eternal punishment with the Devil (Augustine, 1972, p. 595).

The most important thing about these two cities is that, although so radically different in nature, they co-exist, exist side by side. However counterintuitive this may sound, sub specie historiae, the “City of God” is not located in some supra-celestial realm, but it is right here, “among us”. The citizens of one city mingle daily with the citizens of the other, they cross paths and rub elbows. St. Augustine talks specifically about the “glorious” Civitas Dei “as it exists in this world of time, a stranger among the ungodly” (1972, p. 5). The metaphor he uses most frequently – and which will subsequently make an important career in the Western theology – is that of the pilgrim: for him “the City of God is on pilgrimage in this world” (p. 45). Living historically means, at its very best, living as a pilgrim.

² Peter Ackroyd makes a similar point. In addition, he aptly notes that More’s admiration for St. Augustine must have been fueled by the same rhetorical tradition to which they both belong: “it is easy to see why he should have been drawn towards the saint even as a young man. Augustine was a rhetorician, a master of Latin prose, but he was also a revered figure of the Church who had imbibed and mastered true classical learning” (Ackroyd, 1999, p. 105).

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

161

ON ThE vERY NOTION Of UTOPIA

Equally importantly, not only physically and spatially are the citizens of the heavenly city in this world and integral part of it, but also, genealogically, they come from this world. They are not aliens, but earthlings, if “chosen by grace”. They haven’t been transplanted here from who knows where; on the contrary, they have always been here; they are “locals”. As a matter of fact, and this something worth paying attention to, they – the “chosen” ones – have their origin in “the same lump” as the “condemned”. They are made out of the same stuff. What ultimately distinguishes the two groups is God’s grace, in one case, and its absence, in the other:

When those two cities started on their course through the succession of birth and death, the first to be born was a citizen of this world, and later appeared one who was a pilgrim and stranger in the world, belonging as he did to the City of God. He was predestined by grace, and chosen grace, by grace a pilgrim below, and by grace a citizen above. As far as he himself is concerned he has his origin from the same lump which was condemned, as a whole lump, at the beginning. But God like a potter… made “out of the same lump one vessel destined for honor, and another for dishonor” (Augustine, 1972, p. 596).

This line of Augustinian thinking is crucial, I think, for understanding some of the key-aspects of Thomas More’s project: what is, exactly, the nature of the society described in Utopia? What’s its relation to the non-Utopian world? What type of project is this? Who are the Utopians? What is exactly Utopia’s relation to More’s England? The Augustinian insight is also crucial for dissipating the host of wrong – sometimes, hilariously wrong – kind of questions that have always surrounded Utopia: What exactly should we do to put Utopia into practice? Is it the first form of Communism? Is More’s book actually a political manifesto? And so on and so forth.

If we decide to use De Civitate Dei as a key to understanding some of the central aspects of More’s book – and, I think, it would be profitable to do so – then Utopia is nowhere other than in the world. Utopia – More’s equivalent of Augustine’s “City of God” – is the significantly better version of the “city of man”, which was the world he knew. Utopia is the world transfigurated. It is no accident, then, that in so many respects Utopia reminds the reader of More’s England: this is something More did deliberately, to show that his Utopia is nowhere to be found but in the historical world. If we leave aside Augustine’s language of grace, election and damnation, then his insight, when applied to understanding More’s work, should mean that the whole utopian project is about self-overcoming. Read in this key, Utopia is not anymore the fantasy of a light-minded humanist who just wanted to “have a laugh” with his friends, but the serious vision of someone who thought that, should we manage to gain access to the deeper and better part of our selves and come to know our genuine potentialities, changing the world into a better place would not be such a big problem.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

162

COSTICA BRAdATAN

Thus, Utopia ceases to be a book about daydreaming and hopes impossible to fulfill and becomes a manifesto of self-overcoming and self-knowledge; it promises access to such a redeeming self-knowledge that would allow us to understand what we can do and, therefore, that it is only up to us to change the world. The world has been for a long time in such a poor shape not because it is impossible to ameliorate, but because we have never really put our minds to doing anything about it. As Constantin Brancusi one said, “things are not difficult to make, what is difficult is putting ourselves in the state of mind to make them”. In the utopian “state of mind to make them”, we might want to add.

In the Book I of Utopia, when Hythlodaeus introduces Utopia and talks about “the kind of things which Plato creates in his republic and which the Utopians actually put in practice in theirs [quae fingit Plato in sua Republica aut ea quae faciunt Vtopiensis in sua]” (More, 1965, p. 101), he offers us – if in an oblique manner – a glimpse into the nature of the Utopian discourse. The things that the Utopian discourse is about look unfamiliar, odd or even “absurd” not because they really are so, but because of our poor perception and corrupted judgment. According to Hythlodaeus, we have been exposed to mediocrity and pettiness of mind for so long that when we see greatness we cannot help looking for flaws in it. To such a corrupted mind Christianity itself will seem Utopian:

if all the things which by the perverse morals of men have come to seem odd are to be dropped as unusual and absurd, we must dissemble almost all the doctrines of Christ. […] The greater part of His teaching is far more different from the morals of mankind than was my discourse. But preachers, crafty men that they are, finding that men grievously disliked to have their morals adjusted to the rule of Christ… accommodated His teaching to men’s morals (More, 1965, p. 101).

Just as in the case of St. Augustine’s De Civitate Dei the two classes of people, the citizens of the “two cities”, are – as we have seen – cut out of “the same lump”, made out of the same stuff, so in More’s Utopia we have the symbolic gesture through which the Utopians were separated from the rest of the world. Initially, what is now Utopia was part of the world, made exactly out of “the same lump” as the rest of the world. It was only later that Utopus – a political potter of sorts – having modeled Utopia into a perfect city, decided that it also has to be physically cut off from the mainland:

the island once was not surrounded by sea. But Utopus, who as conqueror gave the island its name… and who brought the rude and rustic people to such a perfection of culture and humanity as makes them now superior to almost all other mortals, gained a victory at his very first landing. He then ordered the excavation of fifteen miles on the side where the land was connected with the continent and caused the sea to flow around the land (More, 1965, p. 113).

This must have be an extraordinary political gesture, of a quasi-demiurgic nature, which crowns Utopus’ efforts of creating a totally new

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

163

ON ThE vERY NOTION Of UTOPIA

form of human society. The physical act of separation is meant to signify, in a poignant fashion, the irreversible and radical nature of his project.

To conclude, if we use the hint from St. Augustine, the Utopian state is not to be looked for in a world completely different from ours, but right here, under our very nose. For Utopia is, in its essence, nothing other than a better, transfigurated version of our own world. It has always been there, but – caught up as we always are in the web of our alienated self and of its many lies and deceptions – we did not know how to look for it. The Utopian man is not at all an alien, someone from another planet, but the man within, our better self. As St. Augustine would have put it, in the individual man “the base condition comes first, and we have to start with that; but we are not bound to stop at that, and later comes the noble state towards which we may make progress, and in which we may abide, when we have arrived at it” (Augustine, 1972, p. 596). In other words, the Utopian man is someone who has managed to over-come himself. This insight points to a fundamental aspect of More’s project: Utopia cannot be brought about by a political revolution, nor by extraordinary statesmen and even less by technological advancements, but by a process of inner transformation. To become Utopian is to have won a transformative victory over yourself. It is not that “every bad man will become good, but no one will be good who was not bad originally. Yet the sooner a man changes for the better the more quickly will he secure for himself the title belonging to his attainment and will hide his earlier appellations under the later name” (Augustine, 1972, p. 596).

3.Whips, hair shirts and other mortifications

Looking at More’s Utopia through Augustinian lenses can indeed be a good hermeneutical strategy, but one that is helpful up to a point only. As you may recall, earlier in this paper I said “If we leave aside Augustine’s language of grace, election and damnation”. Well, I am not completely sure that we can leave it aside. Read against Augustine’s doctrine of “the two cities”, More’s book easily makes sense, but in Augustine the concepts of predestination, grace, election, and damnation are absolutely central. They inform the system of his theology to such an important extent that if we try to put them aside, the entire system collapses and what we are left with is not Augustine anymore, but something else. In other words, if we consider More’s project outside the theological context of divine grace, then a host of major difficulties emerge. These difficulties seem so hard to overcome that it would not be an exaggeration to say that, at this point, More’s project becomes, finally, Utopian.

More was certainly aware of these difficulties. As a matter of fact, one of the most remarkable things about his book is the fact that he did want to build a “heavenly City” outside the theological context of grace. Considering the “City of God” within the context of grace is, in a sense, the most natural thing to do; doing it outside of it is not only unnatural, but the sign of a remarkably courageous mind. It also testifies to the intense dramatism of More’s religious life.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

164

COSTICA BRAdATAN

The crucial question that More now faced was how to conceptualize this process of self-overcoming using not a theological, but primarily a political vocabulary. In other words, how are we to gain a “transformative victory” over ourselves in the absence of grace? The fact that – in spite of More’s personal deep attachment to Christianity – references to Christ’s figure do not play any significant role is Utopia can be read precisely as an implicit acknowledgment that here he decided to think this transformation in the absence of grace.

Significantly, the types of measures More proposes for triggering in people this “inner transformation” in the absence of grace are expressions of a private life marked, as Peter Ackroyd puts it, by a “temperamental attraction towards monasticism” (1999, p. 86). We know from several sources that More contemplated priesthood to the point of living among monks for a while, as a way of testing his vocation: “he gave himself to devotion and prayer in the Charterhouse of London, religiously living there without vow about four years” (Roper, 1947, p. 211). Harsh as life in Utopia may seem, he subjects Utopians to the same type of treatment he subjected himself to:

His own life of discipline, and his devotion to the Catholic Church, suggests that he was naturally inclined to the imposed order of authority. That’s why Utopia, despite More’s own ironic negations and reservations, remains a powerful vision of existence; it radiates from the center of More’s being and there are aspects of Utopian worship and custom, for example, which are strongly evocative of his own experience in the Charterhouse (Ackroyd, 1999, p. 176).

One of the most frightening things we as modern readers come across in Utopia is the way one’s body is treated (or, rather, mistreated) there. In Utopia the individual human body becomes the target of almost total public control and scrutiny, a site of pressure, suppression and repression, to such a degree that we today would not hesitate using the term “concentration camp” as a better description of the place. For example, one cannot move one’s body beyond prescribed (and quite narrow) limits without prior approval from the governor. Failing to obtain governmental authorization for this type of bodily performance can have the most severe consequences: “If any person gives himself leave to stray out of his territorial limits and is caught without the governor’s certificate, he is treated with contempt, brought back as a runaway (fugitiuo) and severely punished. A rash repetition of the offence entails the sentence of slavery” (More, 1965, p. 147). In a certain sense, then, it may be said that not only do people’s things (houses, cloths, toothbrushes) belong to everybody, but even their bodies are not really theirs. They are public property, if not to be used by others, at least to be watched, controlled, manipulated, punished – in short, abused by others. Yet, in Utopian logic, however limited your access to your body is, that’s something you should not complain about: any Utopian leader would gladly tell you that it is hybris, a sign of superbia, to claim exclusive rights on your body.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

165

ON ThE vERY NOTION Of UTOPIA

However, if we consider this issue from the perspective of More’s personal worldview, it would be wrong to see this kind of bodily treatment in terms of a “sacrifice” that one “has to make” for supposedly higher purposes. As a matter of fact, for him, this is the most appropriate way to treat a body: it seems to have been his deep conviction that the body is a beast of sorts that has to be kept under control at all times, humiliated, disciplined and punished as appropriate. You have to fight your body as one fights a stubborn enemy: constantly, fearlessly, and without any scruples. And fight More did: he was engaged in this battle throughout his life. According to Cresacre More, his great-grandson, when Thomas More “was about eighteen or twentie years olde, finding his bodie by reason of his yeares most rebellious, he sought diligently to tame his unbrideled concupiscence by wonderfull workes of mortification” (quoted in Ackroyd, 1999, p. 69). Thus, even before entering the public scene, long before he had any opportunity to make any real enemies – political or otherwise – in the outside world, he found out that since birth he had been chained to his worst possible enemy: his own body. As such, he took pre-emptive actions: “he secretly wore next his body a shirt of hair… He used also sometimes to punish his body with whips, the cords knotted, which was known only to my wife, his eldest daughter” (Roper, 1947, p. 242). This difficult relationship with his body – and with the world of bodies in general – must have marked not only his existence, but – as some biographers suggest – his entire worldview. Ackroyd, for example, finds in his mature works traces of “what is almost disgust at the body and its functions”. The need for a sense of order is something that permeates both his life and his work. More must have felt it in his “own physical being; he bore its marks in a literal sense, when he put on the hair shirt which chafed his skin” (Ackroyd, 1999, p. 69).

Bibliography

ACKROYD, Peter. The Life of Thomas More. New York: Anchor Books, 1999.

AUGUSTINE, St. City of God. Trans. by Henry Bettenson Harmondsworth. Penguin, 1972.

BAKER-SMITH, Dominic. More’s Utopia. London: Harper & Collins, 1991.

GREENBLATT, Stephen. Renaissance Self-Fashioning: from More to Shakespeare. Chicago: University of Chicago Press, 1980.

HEXTER, J. H. More’s Utopia: The Biography of an Idea. Princeton: Princeton University Press, 1952.

HEXTER. J. H. “The Composition of Utopia”. In: MORE, Thomas. The Complete Works of Thomas More, Vol. 4, (Utopia). Edited by Edward Surtz, S.J. & J.H. Hexter. New Haven: Yale University Press, 1965), p. xv-cxxiv.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

166

COSTICA BRAdATAN

LOGAN, George M. The Meaning of More’s “Utopia”. Princeton: Princeton University Press, 1983.

MARIUS, Ricard. Thomas More. A Biography. New York: Vintage, 1985.

MORE, Thomas. The Utopia of Sir Thomas More including Roper’s Life of More and Letters of More and his Daughter Margaret. New York: Walter J Black, 1947.

MORE, Thomas. Selected Letters. New Haven: Yale University Press, 1961.

MORE, Thomas. The Complete Works of Thomas More, Vol. 4, (Utopia). Edited by Edward Surtz, S.J. & J.H. Hexter. New Haven: Yale University Press, 1965.

NEHAMAS, Alexander. The Art of Living. Socratic Reflections from Plato to Foucault. Berkeley: University of California Press, 1998.

ROPER, William. The Life of Sir Thomas More. In: MORE, Thomas. The Utopia of Sir Thomas More including Roper’s Life of More and Letters of More and his Daughter Margaret. New York: Walter J. Black, 1947, p. 209-280.

YORAN, Hanan. Between Utopia and Dystopia: Erasmus, Thomas More, and the Humanist Republic of Letters. Lanham: Lexington Books, [forthcoming].

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Thomas More, utopista malgré luiJorge Bastos da SilvaUniversidade do Porto (Portugal)

Resumo

Este ensaio tem por objectivo reapreciar o problema da posição de Thomas More na tradição da escrita utópica tomando como ponto de partida a sua situação no contexto dos géneros literários do século XVI. A nossa tese principal é que Utopia não é de todo uma utopia. Interessa-nos o modo como o livro se apresenta enquanto artefacto literário adentro da cultura literária e filosófica do Renascimento, e bem assim as dinâmicas de canonização que fizeram tomá-lo por texto fundador da tradição da utopia literária.

Palavras-chave

Utopia, Thomas More, cânone literário, retórica, paródia.

Jorge Bastos da Silva é Professor Auxiliar do Departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem como principais áreas de investigação a Literatura e a Cultura Inglesas, os Estudos de Tradução e Recepção, e os Estudos sobre a Utopia. Doutorou-se em 2007 com uma tese intitulada A Mundividência Heróica e a Instituição da Literatura. Poética e Política das Letras Inglesas na Época de Addison e de Pope. É ainda autor dos livros O Véu do Templo. Contributo para uma Topologia Romântica (Porto: Porto Editora, 1999), Utopias de Cordel e Textos Afins. Uma Antologia (Vila Nova da Famalicão: Quasi, 2004) e Shakespeare no Romantismo Português. Factos, Problemas, Interpretações (Porto: Campo das Letras, 2005). Co-organizou os volumes Desígnios Augustanos. Estudos sobre a Rainha Ana de Inglaterra e a sua Época (2003, com Fátima Vieira), George Orwell: Perspectivas Contemporâneas (2005, com Fátima Vieira) e Nowhere Somewhere: Writing, Space and the Construction of Utopia (2006, com José Eduardo Reis). É investigador do CETAPS (Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies) e do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

168

jORgE BASTOS dA SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Este ensaio tem por objectivo reapreciar o problema da posição de Thomas More na tradição da escrita utópica tomando como ponto de partida a sua situação no contexto dos géneros literários do século XVI. A nossa tese principal é que Utopia não é de todo uma utopia. Interessa-nos o modo como o livro se apresenta enquanto artefacto literário adentro da cultura literária e filosófica do Renascimento, e bem assim as dinâmicas de canonização que fizeram tomá-lo por texto fundador da tradição da utopia literária.

Temos consciência de que o nosso argumento surge contra uma corrente que leva quase quinhentos anos de escrita de e sobre utopias, mas o nosso intento não é pôr em causa a relevância da tradição utópica, antes compreender com maior clareza de que modo essa tradição foi estabelecida. Com esse propósito, pretendemos considerar a arquitectura global da obra escrita por More – na verdade, considerar o livro publicado por conta de More em 1516 e reeditado por três vezes em 1517 e 1518 –, não a visão da ilha da Utopia atribuída à personagem Rafael Hitlodeu.

Um dado fundamental relativo ao lugar da obra de More no seu tempo prende-se com o facto de ela não corresponder a qualquer dos géneros reconhecidos. No primeiro quartel de Quinhentos não existia um dispositivo de convenções genéricas pelo qual pudesse ser reconhecido o tipo de obra literária constituído pela Utopia de More, ainda que os leitores instruídos identificassem prontamente outros tipos de realizações literárias, como a tragédia, a comédia, a epopeia, o soneto, a elegia, o epigrama, o auto de moralidade, a mascarada, o imaginário pastoril com as suas variantes¹. Não significa isto que a Utopia de More denote falta de consciência das suas qualidades retóricas por parte do autor. Muito pelo contrário. Mas significa que a noção da utopia como género literário distava ainda na história da literatura de ideias, e que, em nosso entender, não era intenção de More firmar essa noção com a sua obra. Não é decerto acidental – e não é despiciendo o facto – que os autores demorassem a explorar as potencialidades desse putativo género novo. De acordo com a bibliografia de utopias britânicas elaborada por Lyman Tower Sargent, o segundo texto da tradição data apenas de 1579 (mais de sessenta anos após a publicação da obra de More, portanto), registando-se somente mais quatro textos até ao final do século XVI (cf. Sargent, 1988, p. 1-3). Os dados concernentes aos outros países europeus não alteram este panorama. Considerações retóricas à parte (iremos a elas dentro em pouco), isto sugere a desadequação (por assim o dizermos) da Utopia de More para o papel de modelo de um género: não só não havia textos reconhecivelmente análogos com os quais a obra se irmanasse aquando da sua vinda a lume, também não houve descendência directa significativa.

Paradoxalmente, a utopia literária é um género realista, já que representa uma situação ficcional recorrendo a uma retórica de verosimilhança: o viajante pretende ter estado na Utopia e fornecer uma descrição fidedigna daquilo que viu. Além disso, as utopias procuram tipicamente persuadir o leitor não apenas de que a sociedade imaginada existe de facto mas também de que ela é boa, de que deve ser seguida

¹ De uma maneira geral, podem consultar-se os textos compilados nas seguintes duas antologias: Vickers, 1999 e Alexander, 2004. Um apanhado sistemático da cultura das Letras à época encontra-se em Marino, 1996, p. 84-150.

169

ThOMAS MORE, UTOPISTA malgré lui

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

como exemplo, e de que as condições de vida lá verificadas são passíveis de efectiva reprodução nas circunstâncias históricas em que o leitor vive. Mas tais características e pressupostos fazem curto-circuito na Utopia de More, que combina técnicas realistas com uma panóplia de estratégias retóricas que chamam a atenção para a sua natureza de artefacto literário. Uma dessas estratégias retóricas é a paródia². (Na medida em que depende do estabelecimento de relações intertextuais, a paródia opera obviamente no texto como uma estratégia auto-reflexiva, não realista.) A Utopia de More é um diálogo filosófico, como os de Platão ou os de Cícero, mas, ao contrário daquele, é um diálogo no qual a noção de autoridade surge deslocada, porquanto a personagem principal é um néscio, uma espécie de bobo (Hitlodeu, “aquele que diz disparates”), em vez da personagem que ostenta o nome de Thomas More. A descripção da Utopia dada por Hitlodeu pode ser lida como uma paródia da República de Platão – ou da especulação político-filosófica em geral – e como uma paródia das histórias de viagem e descoberta que tanto interessavam aos leitores da Renascença. Acresce que há no texto um forte elemento de auto-paródia. Não apenas permite Thomas More que Hitlodeu o desloque do lugar de figura principal do diálogo, o próprio More e os seus amigos (nas cartas inclusas no volume) retratam o homem Thomas More como um influente e prestigiado cidadão de Londres, uma das glórias da sua nação e um dos maiores intelectuais da Europa. Moriae encomium: elogio da sandice, de facto. Como o será o próprio título da obra, considerado em toda a sua extensão, que a designa como um “verdadeiro livro de ouro” – libellus uere aureus (Morvs, 2006, p. 342-343). Tão desbragada ufania deve desde logo alertar-nos para o facto de grande parte do conteúdo da obra ter sido escrito como provocação bem-humorada, como jeu d’esprit. Por outro lado, as cartas de congratulação dos outros humanistas podem ser lidas como paródias das convenções editoriais da época, e bem assim o elogio rasgado dirigido a Henrique VIII no incipit do Livro I enquanto “[...] o invictíssimo rei de Inglaterra, [...] um dos mais prendados em todas as artes de um príncipe egrégio [...]” (Morvs, 2006, p. 389) valerá como paródia do habitual discurso de encómio ao monarca.

Importante é também o facto de a personagem Thomas More declarar que não aceita, seja como desejáveis, seja como praticáveis, para a Europa, todos os aspectos da vida na Utopia que Hitlodeu descreve. É claro que isto se destina a provocar um certo tipo de inquietação, e tem relevância para a questão do género. A Utopia de More é um texto de significação calculadamente indefinida e instável, mas a tradição da utopia – que supostamente se funda na obra moreana – concilia-se mal com esse tipo de indefinição e de instabilidade. Com efeito, as utopias dependem caracteristicamente da ficcionalização de ideias, e os leitores tendem a lê-las para ficarem a saber o que o autor tem a dizer sobre o mundo e quais as suas intenções. Os utopistas combinam a qualidade de pensadores com a qualidade de ficcionistas. O que eles querem dizer importa – o que significa que se espera que queiram dizer alguma coisa, que tenham propostas substantivas a fazer, não que se limitem a inquietar o leitor com o seu engenho.

² Neste ensaio em que apenas esboçamos a nossa tese, sem aduzirmos todos os dados de corroboração pertinentes ao argumento, limitamo-nos a abordar a questão da paródia, que é somente um dos aspectos reveladores da consciência e da intencionalidade autorais relativamente aos tropos empregados. De resto, como nota Wolfgang Müller, “No Renascimento influenciavam-se Retórica e Poética reciprocamente de forma tão intensa, e ligavam-se de modo tão estreito, que as duas disciplinas, tendo efectuado já uma aproximação significativa na Antiguidade, mal podiam ainda distinguir-se” (1993, p. 225, tradução nossa).

170

jORgE BASTOS dA SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O engenho retórico que transparece na Utopia de More obedece justamente a este último propósito: a personagem Thomas More insta-nos no final da obra a encarar com certa reserva aquilo que Hitlodeu conta acerca da sociedade da Utopia, mas não especifica que parte do relato deve ser rejeitada e que parte deve ser acatada como exemplar (cf. Morvs, 2006, p. 672-673); enquanto Hitlodeu, que, como o seu nome sugere, não é merecedor de credibilidade, subsiste um veemente defensor dos valores utopianos. A retórica de indecidibilidade constitutiva do texto deixa o leitor com muito poucas certezas relativamente às intenções do autor, àquilo que ele quer dizer. O leitor confronta-se com a possibilidade de interpretações divergentes, que contudo não se anulam reciprocamente porque são feitas conviver em equilíbrio tenso dentro de um mesmo quadro proposicional e narrativo. No que respeita ao seu conteúdo ideológico ostensivo, a obra de More é, em última instância, uma obra aberta.

No entanto, o livro tem um conteúdo cognitivo que em muito ultrapassa qualquer debate acerca da desejabilidade ou da viabilidade, para os Europeus, de um ou outro aspecto particular do modo de vida utopiano. O livro apresenta-se dominado por uma estrutura retórica que não implica um puro e simples descrédito da imagem da Utopia oferecida por Hitlodeu, antes aponta para o descrédito geral de toda e qualquer visão dogmática e auto-confiante da sociedade humana perfeita. Este aspecto depende da apresentação de Hitlodeu como figura de perfeito humanista do Renascimento, tanto homem de acção como erudito consumado (cf. Morvs, 2006, p. 396-401), e contudo divulgador de coisas mais ou menos absurdas – mais uma vez, portanto, uma paródia. “Há certo método na sua loucura”, poderia dizer-se dele como Polónio diz de Hamlet – mas, presumivelmente, é de loucura em todo o caso que se trata. E, claro está, o que no texto se discute acerca dos conselheiros dos príncipes reflecte ironicamente sobre a figura do próprio Thomas More, já por alturas de 1516 – como aliás a obra regista – homem da confiança do seu rei, uma vez que coloca o problema das possibilidades da acção e bem assim das possibilidades do conhecimento3. Assim, toda a retórica de indecidibilidade corporizada na obra traduz um virtual cepticismo que põe em causa a crença na perfectibilidade dos seres humanos que constitui um pressuposto central da tradição utópica4.

Se estamos certos, então, nesta leitura que parece feita a contrapelo, a Utopia de More não cuida de propor uma nova visão para a sociedade. Diversamente, trata de advertir para os excessos de auto-confiança intelectual em que podem cair as críticas à sociedade e as propostas de mudança, questão tanto mais candente quanto o autor viveu numa época de intensa controvérsia. Esta interpretação da obra permite-nos apreender dois pontos que reputamos importantes.

Em primeiro lugar, não existe incoerência entre a defesa da tolerância religiosa que se encontra em Utopia, aliás atribuída ao fala-barato Hitlodeu, e o papel que More desempenhou, quer como magistrado, quer nos seus escritos polémicos, na sua acção contra os Protestantes. Em nossa opinião, não é explicação satisfatória dizer, como fazem Frank e Fritzie Manuel, que em 1515-16 havia condições intelectuais para brincar com ideias que deixaram

3 Stephen Greenblatt emprega o termo “self-cancellation” a este pretexto, considerando Utopia a par de outras obras de More (cf. 1984, p. 11-73).

4 Sublinhe-se que nos referimos a um cepticismo que abarca as potencialidades da razão e da virtude humanas, terminando, pois, aquém da revelação, que se situa num plano completamente distinto.

171

ThOMAS MORE, UTOPISTA malgré lui

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

de se verificar quando eclodiu a Reforma (cf. Manuel & Manuel, 1979, p. 136-144). Mais pertinente será considerar que, para More, os reformadores tinham pretensões à verdade, querendo subverter as instituições e os valores estabelecidos, porque se presumiam possuidores daquele mesmo tipo de autoridade doutrinal que Utopia desacredita. A prevenção relativa aos excessos de auto-confiança intelectual que se encontra no cerne de Utopia é absolutamente acorde com a atitude de More nas suas polémicas contra Lutero e Tyndale, que entendia estarem a trilhar um caminho de orgulho e por ele serem conduzidos à heresia5.

Em segundo lugar, o estabelecimento da tradição da utopia literária processou-se por meio de uma selecção dos traços constitutivos da Utopia de More que descurou as implicações mais fundas do edifício retórico e, portanto, do significado da obra. E é possível que, tal como a consciência de tais implicações depende de tomarmos a obra como livro, o estabelecimento do género seja em parte explicado por recurso a dados de natureza bibliográfica. No decurso dos séculos XVI e XVII, as sucessivas edições de Utopia não raro omitiram os paratextos, quer quando publicavam o texto latino, quer no caso das traduções em vernáculo. Em alguns casos, até, foi apenas publicado o Livro II6. Parece pois provável que o modo como se apropriaram da obra os editores e os tradutores tenham contribuído para o modo como puderam aproveitá-la, a prazo, os escritores criativos – os utopistas.

Em síntese, dir-se-á que Thomas More pode ter lançado as bases para o estabelecimento da utopia como um género entre os géneros literários, mas da complexa arquitectura retórica da sua obra infere-se que não era essa a sua intenção. Ou melhor, ele produziu um livro que desafiava tanto a categorização como a interpretação definitiva e do qual outros autores puderam selectivamente retirar um modelo para a criação das suas próprias utopias. O narrador exemplar desses autores, na verdade, não é Thomas More mas Rafael Hitlodeu. Aquilo que a obra de More oferece é, assim, ora um modelo, ora uma crítica aplicável a uma tradição particular de escrita utópica. Subsistindo nesse estatuto de ambivalência, Utopia constitui um exemplo maior das dinâmicas da canonização literária e da apropriação intelectual que nenhum escritor, hélas!, consegue controlar.

Referências

ALEXANDER, Gavin (ed.). Sidney’s “The Defence of Poesy” and Selected Renaissance Literary Criticism. London: Penguin, 2004.

CAVE, Terence (ed.). Thomas More’s Utopia in Early Modern Europe: Paratexts and Contexts. Manchester: Manchester University Press, 2008.

GREENBLATT, Stephen. Renaissance Self-Fashioning: From More to Shakespeare. Chicago: University of Chicago Press, 1984 [1980].

5 Um estudo que, adoptando uma perspectiva relativamente rara, se mostra atento à elaboração retórica dos escritos polémicos de More fica a dever-se a Pineas (1968).

6 Sobre estes aspectos das edições renascentistas da obra de More, cf. Cave (2008, p. xii e passim).

172

jORgE BASTOS dA SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

MANUEL, Frank E., e Fritzie P. Manuel. Utopian Thought in the Western World. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1979.

MARINO, Adrian. The Biography of “The Idea of Literature”: From Antiquity to the Baroque. Trad. Virgil Stanciu e Charles M. Carlton. Albany: State University of New York Press, 1996.

MORUS, Thomas. Utopia. Edição crítica de Aires A. Nascimento. Introd. José V. de Pina Martins. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

MÜLLER, Wolfgang G. Ars Rhetorica und Ars Poetica. Zum Verhältnis von Rhetorik und Literatur in der englischen Renaissance. Renaissance-Rhetorik / Renaissance Rhetoric. Hrsg. Heinrich F. Prett. Berlin: Walter de Gruyter, 1993, p. 225-243.

PINEAS, Rainer. Thomas More and Tudor Polemics. Bloomington: Indiana University Press, 1968.

SARGENT, Lyman Tower. British and American Utopian Literature, 1516-1985: An Annotated, Chronological Bibliography. New York: Garland, 1988.

VICKERS, Brian (ed.). English Renaissance Literary Criticism. Oxford: Clarendon Press, 1999.

Cidade utópica e cidade ideal em Francesco Patrizi da ChersoHelvio MoraesUniversidade do Estado de Mato Grosso

Universidade Estadual de Campinas

Grupo de Estudos Renascimento e Utopia

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Resumo

A Cidade Feliz de Francesco Patrizi esquiva-se da rigidez de classificações que tendem a sistematizar a pertença das obras literárias a gêneros específicos. Seus estudiosos se dividem entre os que lhe reconhecem o caráter de uma genuína utopia, os que a ele se mostram reticentes e ainda, de forma mais radical, os que totalmente o negam, conferindo-lhe o status de pequena súmula filosófica. Para muitos autores, o escrito patriziano se aproximaria mais do conceito de cidade ideal, como encontra-se postulado por Mannheim. Este autor considera que tanto o estado de espírito ideológico quanto o utópico estão em "incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorrem". Contudo, mesmo que o estado ideológico transcenda a ordem de coisas existente, projetando mudanças, esta não se vê abalada, pois continua a ser a base sobre a qual tais alterações tendem a concretizar-se. Diversamente, o estado de espírito utópico tende a romper com a ordem vigente. Buscaremos investigar até que ponto A Cidade Feliz traduz esse estado de espírito ideológico, e se é possível perceber instâncias ou sugestões de ruptura em suas entrelinhas.

Palavras-chave

Francesco Patrizi, utopia, cidade utópica, espírito utópico.

Helvio Moraes é professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e bolsista do CNPq. É membro do grupo de pesquisa Renascimento e Utopia e do U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia, sediado no IEL/UNICAMP e dirigidos pelo Prof. Carlos E. O. Berriel. No Departamento de Teoria Literária desta universidade prepara sua tese de doutorado, que prevê o estudo e a tradução dos Diece Dialoghi della Historia de Francesco Patrizi da Cherso, orientada pelo Prof. Carlos E. O. Berriel. Realizou estágio doutoral de um ano na Universidade de Bolonha (Itália). Em seu mestrado, realizado na mesma intituição e sob a mesma orientação, traduziu para o português e estudou A Cidade Feliz, de Francesco Patrizi da Cherso. Participou da fundação da revista MORUS – Utopia e Renascimento, que co-edita.

174

hElvIO MORAES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

“Tendo, nestes dias passados, reduzido, em bela e breve ordem, as ordenações e os estatutos que Aristóteles quer que tenha uma cidade que deva ser feliz, e as concatenado de modo que se possa facilmente perceber sua necessidade,

e as observado pontualmente, embora de forma não muito estrita, para que eu pudesse, em alguma parte, deixar margem ao meu engenho para correr livremente e mostrar um pouco as suas forças, pareceu-me coisa oportuna e conveniente [...]

dedicar este meu empenho [...] a estes que hão de governar cidades e povos.”

Esta passagem da carta dedicatória d’A Cidade Feliz, um pequeno tratado publicado em 1553 pelo filósofo Francesco Patrizi da Cherso, abarca, a meu ver, os pontos principais para discutirmos sua filiação

à série de escritos utópicos que surgem na Itália em meados do Cinquecento. Ao contrário do que o próprio autor afirma, não se trata de uma simples súmula da Política de Aristóteles ou um mero exercício acadêmico, já que este é seu primeiro escrito. O ponto de partida encontra-se, sem dúvida, nos capítulos VII e VIII do segundo livro do tratado aristotélico e no conceito de felicidade que nos é dado na Ética a Nicômaco. Porém, o “deixar margem” para que sua imaginação corra livremente e mostre sua força é justamente o que nos permite vê-lo configurar uma cidade específica, traçando os contornos de seu plano urbanístico e definindo as suas instituições. Um campo é aberto para que outras correntes filosóficas se introduzam neste discurso, ainda que de forma sutil. Elementos herméticos e neoplatônicos são estrategicamente colocados em certas partes da operetta, servindo como pano de fundo a esta “síntese” do pensamento político aristotélico, sem que, no entanto, se excluam mutuamente (esta parece ser uma fase “concordista”). Contudo, penso que mais relevante seja observar que a expressão traduz um dos motivos que levam ao surgimento da utopia: a vontade individual de imaginar novas possibilidades do viver associado, como resultado do crescente processo de racionalização que o Cinquecento herdou da primeira fase do humanismo. O pensamento utópico é um dos pontos de chegada deste processo (cf. Berriel, 2009).

No caso de Patrizi, há também um anseio por ver suas idéias entregues nas mãos de quem as possa compreender e, talvez, colocá-las em prática. Os dois dedicatários de seu escrito eram jovens membros da família Della Rovere, com quem Patrizi tivera contato em seus anos de estudo na universidade de Pádua. São eles os que, tomando-o como guia, poderão “governar cidades e povos”. Os Della Rovere ainda são neste momento, além de outros lugares, governantes de Urbino. Portanto, não é de todo estranho ao relato certo caráter de proposta. De fato, um traço que distingue A Cidade Feliz de outras utopias do período é uma espécie de estímulo à efetivação das idéias que nela são formuladas. Se, de um lado, temos, nos escritos dos outros utopistas, o relato pormenorizado de uma cidade já construída, tendo alcançado um estágio de otimização de seus recursos e de suas instituições (o que lhe confere um forte grau de atemporalidade), A Cidade Feliz mantém-se como proposta e, como tal, salvo certas exigências de caráter geográfico, sustentadas como essenciais a seu perfeito funcionamento, mostra-se mais compatível a um leque de possibilidades de concretização no espaço. Este

175

CIdAdE UTóPICA E CIdAdE IdEAl EM fRANCESCO PATRIzI dA ChERSO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

caráter de proposta redimensiona também o tempo, que passa a ser um futuro não tão longínquo ou pouco plausível como o que encontramos nas entrelinhas das outras utopias. Esta tendência a ser posta em prática, esta impressão de um possível e breve vir-a-ser e, acrescentemos ainda, um choque mais brando contra as instituições vigentes em sua época, nos convidariam a vê-la relacionada à imagem da cidade leonardesca, tão bem analisada por Garin. Segundo o autor, Leonardo busca criar a cidade do homem, “conforme a razão, (...) com casas habitáveis e arejadas, edifícios públicos majestosos e igrejas solenes, para o tempo e para a sociedade em que vive” (Garin, 1975, p. 254, grifos meus), inspirando-se num modo de vida lombardo, ainda feudal e muito diverso do toscano. Da mesma forma, é possível verificar em Patrizi traços da realidade política veneziana, assim como do mito criado em torno da perfeição de suas instituições. O que resulta de ambos projetos é uma configuração política e social de forte teor aristocrático.

Atendo-nos ao caso de Patrizi, é prevista uma classe social que se constitui e se conserva por meio de castas, semelhante àquela das duzentas famílias patrícias que, no mito, detém o poder. Se é possível falarmos de um comunismo na cidade patriziana, sendo este elemento uma das tônicas de escritos utópicos de mais fortuna, ele se dá no interior desta classe, como forma de manter unidas em equilíbrio as famílias que compõem este grupo circunscrito não apenas por meio de uma distribuição igualitária de posses, rendas e honrarias, mas também pela união conjugal dos membros tão somente a elas pertencentes e, por fim, pela instituição de banquetes públicos, “para que a raiz do amor recíproco cresça e chegue à perfeição”.

No topo da hierarquia, originário deste grupo privilegiado, está uma espécie de versão da noção platônica do rei-filósofo, que toda a tradição humanista precedente fizera coincidir com a imagem do doge veneziano, e que Patrizi decididamente acolhe na figura do sumo sacerdote, pois nele encontram-se harmoniosamente representados os ideais de sabedoria, prudência e experiência necessários àquele a quem se confia o governo da cidade. Há uma total interdição à elevação daqueles que se mostrarem precocemente aptos ao governo. Dentre os três valores a que nos referimos, a experiência, segundo o autor, só pode ser identificada nos cidadãos de idade madura. Devido a isto, os jovens, primeiramente, devem ser governados, “a fim de que aprendam a ser regidos estes que hão de reger outros”. Poderão, contudo, participar da vida pública numa espécie de “governo entre pares” realizado em magistraturas inferiores. Como na tradição política veneziana, A Cidade Feliz tende a um tipo de gerontocracia. De fato, insinua-se nas páginas deste pequeno tratado a determinação a uma espécie de paidéia que vai – concomitante ao aprendizado gradual dos fundamentos mais estimados da cidade – eliminando os indícios de uma potencial abertura ao desenvolvimento de uma personalidade mais desabrida. O governante da Cidade Feliz, como o doge veneziano, termina por ser escolhido por se destacar como aquele que melhor personifica os ideais da cidade. Patrizi arquiteta toda uma complexa estrutura que tende à conservação do equilíbrio entre as partes que a integram, uma concepção estática de cidade que,

176

hElvIO MORAES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

obviamente, é um dado característico do gênero utópico mas que, por outro lado, ele deduz da celebrada longevidade das instituições da Serenissima. O filósofo, desta forma, percebe que esta ordem perfeita somente se efetiva na restrição da liberdade individual, ou, talvez, numa noção de liberdade em que ser livre signifique ter à mão todos os requisitos para servir à república, pois tal noção é motivo de louvor entre os humanistas venezianos, que a vêem como um dos fundamentos de sua cidade. A ascensão de um indivíduo a um posto honorífico como o dogado depende exclusivamente de seus méritos pessoais, que consistem na condição de ele ter internalizado, da maneira mais profunda, as aspirações da coletividade.

Assim, esta classe, composta por magistrados, guerreiros e sacerdotes, encontra-se acima de outro grande grupo, formado por camponeses, artesãos e mercadores, que apenas a servem. Este grupo surge nos primeiros capítulos da operetta, à medida que vão sendo construídos os fundamentos da cidade. E uma vez que surge, seguindo os passos de Platão, apenas a partir do que é indispensável à felicidade dos cidadãos, para cada necessidade antevista é elencado um grande número de ocupações, até o ponto em que baste para que a cidade viva de forma autárquica. São, portanto, duas classes que compõem uma sociedade fortemente estratificada, e cujas funções são delimitadas com bastante rigor. A imagem que o filósofo cria para representar a forma como essas classes coexistem em sua cidade é a da ascensão a um monte, onde, no topo, se encontra a felicidade, conceito que se baseia em Aristóteles. Nas palavras de Patrizi, poderá ser feliz somente aquele que viver conforme a virtude perfeita, sem impedimentos, uma vida completa. Os dois últimos termos do conceito, “viver sem impedimentos” e “um vida completa”, são requisitos para a consecução do primeiro, que engloba o exercício das virtudes morais e intelectivas, atributo que caracteriza o cidadão patriziano. Convicto de que nem todos os habitantes da cidade podem se eximir das atividades necessárias à manutenção da vida e do bem-estar comum, Patrizi nega a camponeses, artesãos e mercadores o direito à cidadania, pois, embora possam viver “todo o curso da vida humana”, o cansaço e os aborrecimentos de suas ocupações diárias os impedem de cultivar as virtudes necessárias para se alcançar a felicidade. Podem, contudo, “nivelar e preparar o caminho” para que a classe superior ascenda com mais conforto ao “topo do monte, onde a felicidade plantou o paraíso de suas delícias”. E lá, “não podendo vestir o traje nupcial [a cidade esposa a felicidade], nem se sentar juntamente à mesa com aqueles que o vestem, não serão incluídos entre os convidados, mas servirão neste banquete, uns como cozinheiros, outros como portadores de iguarias, e outros ainda, como servidores da faca e da taça.”

Este tipo de configuração social será sempre caro a Patrizi. Nos Dialoghi della historia, obra que publica em 1560, ele não só se confirma como também se adensa, principalmente nos pontos que se referem à formação de um cidadão ideal, possível governante, aquele que une a experiência histórica ao conhecimento filosófico e, assim, conduz a si mesmo e a seus concidadãos à felicidade, uma espécie de felicidade terrena, entenda-se – o maior bem que se possa esperar encontrar em vida, fim último do viver associado. Mais uma vez, torna-se patente o desprezo do filósofo por um

177

CIdAdE UTóPICA E CIdAdE IdEAl EM fRANCESCO PATRIzI dA ChERSO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

“governo de muitos”, ainda que conceda uma pequena participação destes na administração pública, como forma de “aplacar a parte animosa de seus espíritos” e, mantendo-os na esperança de virem a exercer funções cada vez mais relevantes na república, evitar as sedições. Tais idéias ganham força nas discussões e nos projetos que se desenrolam no interior da Accademia della Fama, uma instituição que reunia vários dos mais importantes intelectuais do Vêneto, mas que, no entanto, teve um período de funcionamento muito breve. Patrizi a freqüenta entre os anos de 1558 e 1560. Um de seus objetivos era a produção e difusão de um saber enciclopédico, por meio de um ambicioso projeto editorial que se baseava largamente no volgarizzamento de textos que se filiavam a várias correntes filosóficas, mas principalmente ao neoplatonismo e ao hermetismo. Além disso, seus intelectuais acolhiam certas idéias vindas de ambientes reformados. Contudo, o que mais nos interessa aqui é notar que havia também o interesse de participar ativamente da vida pública veneziana, por meio da formação de seu corpo administrativo. Vários nobres venezianos (como alguns Contarini, Zeno, Donà, Valier, etc.) freqüentavam as suas reuniões e, mais uma vez, observamos Patrizi às voltas com uma espécie de projeto que busca se efetivar na prática.

Luigi Firpo, em seu estudo sobre a utopia na Contra-Reforma, é contundente em relação ao modelo social proposto por Patrizi: “dele surge uma apologia tardia e reacionária, na qual o impulso mais vivo do utopismo renascentista, a rebelião contra a injustiça social, aparece renegado brutalmente” (Firpo, 1948, p. 84). Admite que tal modelo e, com ele, a utopia de Anton Francesco Doni, se estabelecem como as duas típicas escrituras utópicas do Renascimento italiano, no sentido de que o “racionalismo continua a excogitar formas mais oportunas de convivência organizada”, embora, no caso de Patrizi, este racionalismo se volte para o “benefício de uma minoria exígua, cuja auréola da “operação virtuosa” lhe dá o direito de desfrutar da turba servil dos camponeses, dos artesãos e dos mercadores, privados de qualquer direito civil”. Algo semelhante dirá mais tarde em relação à cidade de Leonardo, como “uma cidade senhoril, de uma aristocracia e de uma burguesia rica, que aspiram à tranquilidade e ao decoro” (Firpo apud Garin, 1975, p. 252).

A este aspecto do pensamento político patriziano parece servir a noção de estado de espírito ideológico, como se encontra postulada por Mannheim. O sociólogo húngaro considera que tanto o estado de espírito ideológico quanto o utópico estejam em "incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorrem". Contudo, mesmo que o estado ideológico transcenda o estado de coisas existente, projetanto mudanças, este não se vê abalado, pois continua a ser a base sobre a qual tais alterações tendem a concretizar-se. Diversamente, o estado de espírito utópico tende a romper com a ordem vigente (Mannheim, 1986, p. 218-219).

Contudo, é preciso ver a cidade patriziana inteiramente vinculada a um período de crises profundas, desde a instabilidade política italiana e a aceleração de seu declínio econômico (obviamente, Veneza incluindo-se neste processo) à questão das reformas religiosas. Daí o surgimento de uma ampla série de escritos que se apresentam como respostas a tais problemas.

178

hElvIO MORAES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

No caso de Veneza, ainda que consiga, admiravelmente, manter-se com firmeza ao longo do conturbado Cinquecento – enfrentando a crescente invasão otomana em seus domínios marítimos, a perda da hegemonia comercial com o oriente e a difícil situação das guerras italianas –, a visão tão otimista que seu mito proporciona é abalada, e a república começa a se reconhecer “como parte do mundo temporal”, conforme Bouwsma (1984, p. 164). Há também uma preocupante cisão no interior de seu patriciado, como culminância de um processo que vinha se desenrolando desde o século anterior: a expansão do território veneziano em terraferma acaba por propiciar o surgimento de uma aristocracia que passa a viver basicamente da atividade agrícola, em contraste com a peculiar forma anterior de uma nobreza mercantil. Em outras palavras, trata-se, segundo Burke (1990, p. 16-7), da crise da transição da imagem do entrepreneur para o rentier.

Portanto, não há mais espaço para a idealização de uma ordem social – no sentido proposto por Mannheim e que podemos observar nos modelos de Alberti e Leonardo –, dada a inexistência de dois elementos a ela obrigatórios: a estabilidade e a permanência prolongada desta ordem. Tanto a elite intelectual quanto a política, das quais Patrizi se faz porta-voz, já dão provas de esgotamento: a primeira, tendo percebido no Vêneto o último refúgio para uma colocação do intelectual de formação humanista (com o advento da promissora atividade editorial na cidade), entra em declínio após as pressões da Igreja pós-tridentina; a segunda, já no início do século seguinte, não conseguirá manter-se como grupo coeso e circunscrito, sendo levada a abrir-se e acolher novos grupos, com interesses divergentes.

A comunidade política que se configura n’A Cidade Feliz, assim como o elemento utópico que a caracteriza, estarão sempre presentes no horizonte intelectual de seu autor. Como vimos, estão em consonância com o ambicioso projeto da Accademia della Fama, e serão abordados em passagens dos Diálogos da História. Mas é possível também observá-los numa dimensão mais pragmática: não é acaso algum a longa estada de Patrizi na corte de Alfonso II em Ferrara (1578-1592), como conselheiro do duque e professor de filosofia platônica. Ferrara ainda mantém certos traços que podemos facilmente identificar em seu trattatello, num momento em que, em Veneza, a facção anti-papista (os giovani), liderada por Leonardo Donà, se fortalece cada vez mais, pondo limites à política da velha oligarquia mercantil. De certa forma, na função de secretário do duque, é o próprio Patrizi quem personifica seu ideal de homem político, aquele que alia conhecimento especulativo e técnico à experiência, para a condução dos assuntos públicos. Seu anseio por ver instituída uma comunidade de sacerdotes sapientes (cf. Vasoli, 1989), em cujas mãos está o destino da cidade, o leva a Roma (1592), na tentativa de difundir o platonismo – que, vimos, está na base de seu projeto –, para torná-lo a filosofia oficial da Igreja. Contudo, sua Nova de universis philosophia, ainda que “corrigida”, foi condenada pelo Index, impedindo de uma vez por todas que as idéias mantidas desde sua juventude se realizassem.

179

CIdAdE UTóPICA E CIdAdE IdEAl EM fRANCESCO PATRIzI dA ChERSO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. “Afinal, o que é utopia?”. In: Jornal da Unicamp, ano XXIII, nº 427, p. 6.

BOUWSMA, William J. Venice and the defense of republican liberty. Renaissance values in the age of the Counter Reformation. Berkeley: University of California Press, 1984.

BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã. Um estudo das elites do século XVII. Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo: Brasiliense, 1990.

FIRPO, Luigi. “L’Utopia politica nella Controriforma”. In: RUSSO, Luigi (org.). Quaderni di "Belfagor". Contributti alla Storia del Concilio di Trento e della Controriforma. Firenze: Vallecchi, 1948.

GARIN, Eugenio. Rinascite e rivoluzioni. Roma: Laterza, 1990.

MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

PATRIZI, Francesco. Della historia diece dialoghi di M. Francesco Patritio ne’ quali si ragiona di tutte le cose appartenenti all’historia, & allo scriverla, & all’osservarla. Venetia, MDLX.

PATRIZI, Francesco. “A Cidade Feliz”. In: MORAES, Helvio. “A Cidade Feliz”: a utopia aristocrática de Francesco Patrizi. Morus – Utopia e Renascimento, n. 1, 2004.

VASOLI, Cesare. Francesco Patrizi da Cherso. Roma: Bulzoni, 1989.

Novas tecnologias, novas utopias*

Fátima VieiraUniversidade do Porto (Portugal)

Resumo

Começarei este meu trabalho falando de um paradigma utópico que, na minha opinião, se encontra emergente na viragem do século XX para o século XXI. Esse paradigma, como então exporei, caracteriza uma nova atitude do homem contemporâneo face à utopia, encontrando reflexos quer na nossa vida quotidiana e no pensamento político quer na própria literatura. O espírito reemergente toma a utopia simultaneamente como ideal e como sonho, isto é, como princípio orientador que, colocado no nosso horizonte, nos indica um caminho a seguir sem contudo nos fazer cair na tentação de o tentarmos realizar. Estamos portanto agora a entrar num quinto período (em relação aos quatro períodos descritos por Baccolini e Moylan) em que o sonho volta a ser acarinhado, tendo o utopista (e ainda bem que assim é) a consciência de que se trata apenas de um sonho.

Nas margens da literatura utópica canónica, a hiperutopia – designação que proponho neste trabalho para alguns sítios da Internet cuja textualidade e organização se fundamentam na tessitura narrativa da hiperficção – contribui para a ressurgência deste entendimento utópico informado pela índole desejante humana. A hiperutopia encerra em si uma renovação do género literário, mais conforme a estes tempos em que os leitores se vão assumindo cada vez mais como internautas, e em que, como premonitoriamente disse Foucault, a imaginação se torna cada vez menos histórica para assumir progressivamente uma feição mais espacial. No espaço virtual da Internet, a hiperutopia assegurará certamente a sobrevivência da utopia literária; até que o desenvolvimento de outras novas tecnologias conduza a mais (re)invenções utópicas.

Palavras-chave

Utopia, hiperutopia, gênero literário.

Fátima Vieira é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde leciona desde 1986. Tendo defendido a sua dissertação de doutoramento em 1998 sobre a obra de William Morris e a tradição de literatura utópica inglesa, Fátima Vieira especializou-se na área dos estudos sobre utopia. É atualmente coordenadora de dois projetos de pesquisa financiados pela FCT e diretora da coleção Biblioteca das Utopias da editora Quasi, bem como de dois periódicos eletrônicos. Como docente, tem trabalhado essencialmente na área da Cultura Inglesa, tanto no nível de graduação, como no de pós-graduação. Fátima Vieira é também membro do Instituto de Estudos Ingleses da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, integrando, desde a fundação, o grupo de pesquisadores que têm se dedicado à tradução e estudo da obra de Shakespeare. No âmbito deste projeto de pesquisa, publicou A Tempestade (Porto: Campo das Letras, 2001). Tem organizado e participado de muitos colóquios nacionais e internacionais, sendo autora de diversos artigos na área dos estudos da utopia, dos estudos culturais e dos estudos shakespearianos. Tem assumido igualmente a responsabilidade da organização de vários volumes de ensaios nestas áreas de estudo.

* Este texto foi publicado originalmente nas Atas do VII Colóquio do Curso de Sociologia, Novas Tecnologias e Imaginário. Braga: Universidade do Minho, 2006, p. 11-27.

182

fáTIMA vIEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O utopismo contemporâneo

Num estudo que publiquei em 2004, “O Utopismo e a Crise da Contemporaneidade: Velhas Receitas para Novos Caminhos", defendi a ideia de que assistimos, nos nossos dias, à reemergência de um espírito que poderemos classificar de utópico. Advoguei, nesse trabalho, a ideia de que muitas vezes não damos conta dessa reemergência essencialmente por três ordens de razão: em primeiro lugar, por este ser um processo ainda muito recente, em relação ao qual não temos a distanciação necessária para avaliar até que ponto é que se poderá desenvolver e se tornar um vector matricial da nossa história; em segundo lugar, porque em virtude do discurso anti-utópico, de raiz popperiana, que, na segunda metade do século XX se tornou dominante quer na prática política quer no campo da ficção (sendo assinalado com as grandes ficções distópicas de George Orwell e de Aldous Huxley), o pensamento utópico, para sobreviver, teve de se esconder atrás de novos rótulos; em terceiro lugar, porque a instauração de uma concepção escatológica da história, de inspiração hegeliana, conduziu à afirmação, no seio da filosofia política contemporânea, de teorias optimistas como a de Francis Fukuyama, que, ao proclamar que chegámos à etapa final da evolução histórica, com a instauração da democracia liberal, assinala por inerência o fim do utopismo.

Defendi ainda, nesse estudo, que a reemergência do pensamento utópico tem vindo a concretizar-se, nas duas últimas décadas, naquilo a que chamei um plano visível e concreto (onde se inscrevem propostas de intervenção em vários campos, essencialmente nos da política, da economia e da educação) e num plano mais diluído da nossa vida social, onde “a índole desejante do modo de ser do homem”, para utilizar a expressão de Fernando Catroga (2003, p. 159), tem vindo a ganhar expressão (estou a pensar, por exemplo, na indústria do entretenimento, nomeadamente no cinema, onde as adaptações de distopias canónicas como As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, ou A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, denotam a necessidade de adequação das obras às expectativas de um público sedento de mensagens optimistas).

Ao dedicar-me, nesse estudo, à análise da reafirmação, no contexto da contemporaneidade, do pensamento utópico, descurei intencionalmente – porque não era esse o meu propósito – a consideração da literatura utópica. E esta é uma distinção fundamental que pretendo aqui precisar, na medida em que procurarei avaliar no presente trabalho de que forma é que esse espírito utópico reemergente tem encontrado reflexo a nível da ficção utópica. Terei, naturalmente, em consideração, o tema deste colóquio, que equaciona a relação de interdependência entre a imaginação utópica e o desenvolvimento tecnológico, mas antes de falar das “novas utopias” que surgem como consequência das “novas tecnologias”, necessitarei de proceder a algumas distinções conceptuais, e passar brevemente em revista o que tem vindo a ser dito, no âmbito da área dos Estudos sobre a Utopia, sobre o utopismo literário contemporâneo. Para a hipótese de trabalho que me proponho examinar, partirei da distinção fundamental, que tão bem definida

183

NOvAS TECNOlOgIAS, NOvAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

tem vindo a ser por investigadores como Lyman Tower Sargent, Raymond Trousson e Vita Fortunati, entre pensamento utópico e utopia literária¹. Entenderei por pensamento utópico toda a forma de idealização social (Sargent chama-lhe “social dreaming”; 2005, p. 109-118) e considerarei a utopia literária no seu sentido mais restrito, como uma forma de cristalização desse pensamento no género literário que encontra a sua referência primeira em Utopia (1516), de Thomas More, e que pressupõe o respeito por um esquema narrativo.

Para compreendermos a novidade da literatura utópica decorrente das novas tecnologias que me proponho hoje abordar, será necessário vermos de que forma é que ela se inscreve na tradição de literatura utópica do século XX. No estudo introdutório ao volume Dark Horizons: Science Fictions and the Dystopian Imagination (2003), Raffaela Baccolini e Tom Moylan expõem de forma clara as variações que, ao longo do século, este género literário foi registando. De acordo com Baccolini e Moylan são discerníveis essencialmente quatro variações no século que nos deu a conhecer o “lado negro” da utopia.

Num primeiro momento do século XX, instala-se aquilo a que Baccolini e Moylan chamam a forma clássica ou canónica do distopismo literário, que encontra os seus melhores exemplos em Nós (1927), de Zamiatin, Admirável Mundo Novo (1931), de Huxley, e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1949), de Orwell.

Um segundo período, que Baccolini e Moylan situam nos anos 60 e 70, é caracterizado por um claro revivalismo da escrita eutópica; nas obras que então publicam, os utopistas exploram imaginativamente lugares melhores do que os reais. Contudo, nessas obras, os utopistas não procuram fornecer aos seus leitores uma fórmula para a instauração da sociedade ideal. São estas, na terminologia proposta por Baccolini e Moylan, utopias críticas (critical utopias) que, embora rejeitem a noção de utopia-programa, conservam a noção de sonho utópico; a relação entre os mundos real e ficcionado é, nestas obras literárias, vista como problemática, e o processo de mudança social é mais claramente equacionado. Contudo, o que mais nitidamente distingue a utopia crítica da ficção eutópica anterior é que os conceitos de diferença e de imperfeição não são totalmente erradicados da sociedade imaginada, pelo que é acentuada a necessidade de se continuar a perspectivar alternativas dinâmicas. A utopia crítica que se afirma nas décadas de 60 e de 70 é, como acentuam Baccolini e Moylan, essencialmente de pendor ecológico, feminista e “New-left”, sendo representada por autores como Ursula Le Guin, Joanna Russ, Marge Piercy e Ernst Callenbach, entre outros.

O terceiro período referido por Baccolini e Moylan situa-se historicamente na década de 80, e traduz-se num fim abrupto das utopias críticas e no ressurgimento, em força, da literatura distópica. Os autores do estudo que temos vindo a ter em consideração atribuem essa mudança ao processo de reestruturação económica coeva, decorrente da implantação de políticas “de direita”, mas também à afirmação do movimento do cyberpunk, (representado por Newromancer, de Gibson), ao “aniversário” de Nineteen

¹ Cf., a título de exemplo, Fortunati & Trousson, 2000.

184

fáTIMA vIEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Eighty-Four, de Orwell, e a uma proliferação de reedições desta obra, em várias línguas, bem como à constatação coeva de que as visões proféticas da instauração de um mundo dominado por um Big Brother parecem estar a ganhar cada vez mais fundamento. Mas deste discurso distópico que ganha consistência na década de 80, terá começado a emergir uma outra forma de distopia.

O quarto período é marcado por essa outra forma de distopia, a que Baccolini e Moylan fazem corresponder o rótulo de distopia crítica, anteriormente proposto por Lyman Sargent². O que distingue as distopias críticas das distopias anteriores é a forma como elas abrem espaço para a expressão da imaginação utópica, ainda que muitas vezes “fora das páginas do texto”; as personagens destas distopias críticas mantêm também uma esperança de feição utópica, quanto mais não seja pela adopção de atitudes de resistência; e os finais dos romances são normalmente ambíguos, deixando em aberto a possibilidade de contestação da lei hegemónica. Este terceiro período, que tem início na viragem da década de 80 para a década de 90, é marcado pelas obras de escritores como Octavia E. Butler, Cadigan, Charnas, Robinson, Piercy e Le Guin. Baccolini e Moylan apontam para dois aspectos das distopias críticas relevantes para o entendimento do distopismo contemporâneo. Realçam, em primeiro lugar, o facto de, através da publicação destas distopias críticas, nós termos vindo a assistir a uma renovação do próprio género literário utópico, que se deixa contaminar por géneros contíguos como, por exemplo, a ficção científica, no caso de Le Guin, e a convenção do diário e do romance epistolar, no caso de Attwood. Note-se que esta contaminação é encarada por Baccolini e Moylan de forma positiva, na medida em que é expandido o potencial criativo da literatura utópica. Baccolini e Moylan realçam, em segundo lugar, o facto de estas distopias críticas não se limitarem a criticar o presente pelo confronto com uma sociedade futura pior do que a sociedade real, mas explorarem também formas de transformação desse real³. Esperam, nesse sentido, associar um efeito catalisador à função crítica que as caracteriza4.

O estudo de Baccolini e de Moylan é sem dúvida importante, pois oferece-nos um quadro analítico das várias inflexões sofridas pela literatura utópica, nas últimas décadas. Tem vindo, de resto, a ser considerado como um texto de referência para a área dos Estudos sobre a Utopia. Mas o que tem este ensaio a ver com o tema que me propus tratar, o da relação entre as novas tecnologias e as novas utopias? A pertinência da consideração deste estudo, no âmbito da minha comunicação, explica-se pela ausência de qualquer referência à reemergência do espírito utópico que mencionei no início deste meu texto. Note-se que o estudo de Baccolini e de Moylan foi publicado há apenas três anos, em 2003, e o último período do desenvolvimento do género literário utópico que descrevem é o das distopias críticas (o quarto período). A tese que me proponho hoje defender é a de que, na última década, as utopias literárias sofreram uma nova inflexão (estamos pois já a entrar num quinto período); e se Baccolini e Moylan não se aperceberam dessa inflexão foi porque não têm estado atentos àquilo que se tem vindo a passar nas margens da literatura canónica.

² Como referem Baccolini e Moylan, em 1993, no XVIII Congresso da Society for Utopian Studies, Lyman Sargent sublinhou a necessidade de se reconsiderar as novas distopias das décadas de 80 e 90 do século XX. Chamando a atenção para a ambiguidade desses textos, Sargent sugeriu que eles passassem a ser classificados como “distopias críticas”. Desde então, diferentes críticos têm utilizado este conceito nos seus estudos.

³ Baccolini e Moylan desenvolvem estas ideias nas p. 1 a 8 do estudo mencionado.

4 Recorro aqui à terminologia proposta por Ruth Levitas em The Concept of Utopia (1990). Segundo Levitas, podemos distinguir na utopia três funções: a função crítica, a função compensatória e a função catalisadora. Esta última é sem dúvida a função mais importante, como Levitas tem vindo a sublinhar, em trabalhos posteriores (ver, por exemplo, Levitas & Sargisson, 2003).

185

NOvAS TECNOlOgIAS, NOvAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

São duas as situações que, na minha perspectiva, têm vindo a ser ignoradas: a primeira é a publicação de utopias literárias em línguas que não a inglesa, onde os sinais de uma revitalização do pensamento utópico são mais do que visíveis; é o caso dos livros A Ilha da Mão Esquerda (1995), do francês Alexandre Jardin, Utopia III (1998), do português Pina Martins, ou ainda Inglaterra, uma Fábula (1999), do argentino Leopoldo Brizuela5. A segunda situação é a que tem vindo a ser impulsionada pelo desenvolvimento das novas tecnologias.

novas tecnologias, novas utopias

Ao referir-me às novas utopias literárias que decorrem do desenvolvimento das novas tecnologias, não estou a pensar em textos que têm como tema os recentes desenvolvimentos tecnológicos, nem tão-pouco a perspectivação da criação de uma sociedade mais perfeita com base na ideia de progresso tecnológico; estou, sim, a referir-me a uma nova forma de utopia literária, a uma evolução do próprio género. Tenho em mente, mais particularmente, as utopias literárias que encontramos publicadas na Internet. Escritas, maioritariamente, em língua inglesa, essas utopias adoptam títulos sugestivos, remetendo-nos para chavões utópicos como os da liberdade, da igualdade, da vitória ou do direito à diferença. Mas se estão escritas em inglês e se se encontram à distância do clique de um rato, por que razão não falam delas Baccolini e Moylan (bem como os outros investigadores da área dos Estudos sobre a utopia)?

A resposta parece-me simples: é que essas utopias literárias, na vastidão das referências sobre a utopia que se encontram na Internet, têm vindo a ser confundidas com algo que, à primeira vista, lhes é semelhante, isto é, com as comunidades virtuais. Dei-me conta da importância das comunidades virtuais quando, há cerca de três anos, um membro do projecto de investigação sobre o utopismo português que coordeno preparou, para a página do nosso sítio, um índice dos recursos electrónicos disponíveis sobre a Utopia6. Visitei então com muito interesse algumas dessas comunidades e constatei, com algum espanto, que muitas delas se encontram mesmo organizadas em grupos. Verifiquei também que, apesar de alguns esforços por parte dos administradores de alguns sítios, ainda persiste bastante confusão entre o que se deve entender por micronação, microestado, comunidade virtual, comunidade ecológica e países imaginários. A informação disponível na chamada “Página das Micronações” dá-nos uma ideia dessa confusão:

Micronações, microestados, países imaginários, contrapaíses, nações não reconhecidas ou Estados efémeros, são termos utilizados para países cuja independência foi declarada por indivíduos ou pequenos grupos (usualmente excêntricos), e que, apesar dos seus esforços, não conseguiram reconhecimento diplomático. Muitos têm apenas um habitante, outros são um pouco maiores. (…) Na maior parte dos casos, os fundadores das Micronações reivindicam a posse de terra que existe na realidade; trata-se frequentemente de pequenas ilhas isoladas, por vezes submersas. Tal como os países reais, algumas destas nações proclamam declarações de independência, adoptam constituições,

5 Publiquei alguns estudos sobre estas obras, onde me debruço sobre o seu carácter revitalizador do género literário utópico. O desenvolvimento dessas considerações não me parece contudo pertinente, no contexto deste trabalho. Para mais informações cf., a título de exemplo, Vieira, 2001 e 2005.

6 Ver www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas.

186

fáTIMA vIEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

procuram reconhecimento diplomático, exibem brasões, emitem selos, passaportes e moeda7.

Muitas das micronações disponíveis na Internet decorrem de brincadeiras entre um grupo de amigos que decidem criar um país imaginário. Apesar de persistir normalmente, na construção dessas comunidades, algum cuidado no que respeita aos fundamentos políticos das micronações, o tom jocoso acaba por persistir. É o caso, por exemplo, do “Império da Pacífica”, fundado por um grupo de amigos e que, como indicava o sítio (entretanto retirado da Internet)8, é um Estado primariamente não territorial (apesar de possuir 240 metros quadrados no interior da cidade do Porto), onde persiste uma Monarquia Constitucional Potencialmente Absolutista. É aliás interessante assinalar o facto de muitas micronações assumirem a forma de uma monarquia, concedendo a quem nelas quiser intervir títulos nobiliárquicos ou cargos no governo. Algumas delas, embora declarem na sua página electrónica oficial estarem disponíveis para receber novos membros, acabam por não o fazer9. Frequentemente, a idealização das micronações surge em resultado de um fenómeno de compensação. A adopção de uma ou mais identidades, nessa lógica de compensação do mundo real, tem aliás suscitado o interesse dos investigadores da área da Sociologia. Contudo, existem micronações que assumem propósitos mais sérios, configurando-se como espaço de debate de questões políticas e promovendo a intervenção organizada contra a lei hegemónica, julgada como injusta. Essas comunidades estão frequentemente ligadas a partidos políticos ou a movimentos associativos.

Mas para além das micronações ou comunidades virtuais, encontramos na Internet sítios com uma feição e objectivos diferentes. Trata-se de sítios que descrevem países imaginários, sendo o cuidado posto na delineação pormenorizada dos sistemas político, económico, social e religioso. São sítios onde os seus autores dão plenas asas à sua imaginação. Quando dei conta da existência desses países imaginários, na Internet, tive de imediato a tentação de os ler como uma nova forma de utopia literária; faltavam-me contudo então os argumentos que poderiam sustentar essa minha interpretação.

O convite para participar neste colóquio reconduziu-me à consideração desses sítios; e o estudo em que me embrenhei entretanto, ao longo destes últimos três anos, no campo da Geografia Humana e, mais recentemente, da Hiperficção10, possibilitou-me a concepção da argumentação que antes me faltava.

da hiperficção à hiperutopia

Para compreendermos a hipótese de trabalho que me proponho hoje examinar, teremos de ter em consideração um novo tipo de literatura cujo florescimento foi proporcionado pelo desenvolvimento das novas tecnologias, nas últimas décadas: a hiperficção. Como explica Rita Estrada,

O conceito de hiperficção surge da conjugação de duas noções: hipertexto

7 http://www.geocities.com/CapitolHill/5111/archival/patsilor.htm - página acedida em 12-12-05.

8 O endereço do Império da Pacífica era http://www.pacifica.co.pt/. O sítio, a que acedi pela última vez em 26-09-2002, tinha disponível também uma versão em inglês.

9 A título de exemplo, refiro o caso de uma antiga mestranda minha que se tentou inscrever numa micronação, tendo sido recusada com base nas suas qualificações. Como fizeram o favor de lhe explicar numa mensagem enviada por e-mail, sendo ela professora e estando a frequentar um curso de mestrado, isto é, sendo uma intelectual, não haveria qualquer ocupação que lhe pudesse vir a ser atribuída no âmbito daquela comunidade virtual.

10 A ideia de associação destes sítios em que são descritos países imaginários com o hipertexto surgiu no seguimento de uma conversa com o meu Colega Manuel Portela, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a quem agradeço a indicação de referências bibliográficas pertinentes.

187

NOvAS TECNOlOgIAS, NOvAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e ficção. Por hipertexto entendemos um agregado de textos interligados por links; estes links podem ser activados pelo leitor que é transportado para outros documentos desse agregado. O hipertexto permite assim uma nova forma de leitura. É este o processo que encontramos na hiperficção: a leitura não se desenvolve de forma linear (leitura tradicional) mas através da activação de links por parte do leitor que escolhe o seu percurso individual de leitura, participando desta maneira na elaboração da própria obra11.

A área dos estudos da cultura digital e das publicações electrónicas encontra-se sem dúvida hoje em expansão. Uma simples busca na Internet revela o imenso interesse que ela tem suscitado, quer nos meios académicos (que têm vindo a dar conta da forma como se vão instaurando novas relações entre autores e leitores) quer no campo das editoras de livros (que vêem abrir-se-lhes as portas a negócios lucrativos). No vastíssimo conjunto de textos que nesta área têm vindo a ser produzidos, encontrei algumas constantes de abordagem temática, que valerá a pena aqui sumariar.

A primeira constante tem a ver com a história do próprio conceito de hipertexto, que nos remete invariavelmente para o artigo que Vannevar Bush publica, em 1945, “As we may think”, e onde descreve a sua ideia de criar máquinas de armazenamento de dados que, ligadas entre si, resolveriam o problema da explosão de informação que se fazia então sentir em diferentes áreas do saber científico. O “memex” – assim baptizou Bush a sua ideia – permitiria ao investigador o acesso a informação mais organizada, e responderia também, de forma mais adequada, às necessidades da nossa mente, que opera por associação de ideias.

A segunda constante prende-se com a invenção da palavra “hipertexto”. Na verdade, se o criador da ideia foi Bush, a responsabilidade pela cunhagem do termo é atribuída a Theodor Nelson, que, nos anos 60, chama a atenção para as infinitas possibilidades de combinação de blocos de texto ligados por links electrónicos. Na análise que faz do conceito, Nelson sublinha o facto de o hipertexto permitir uma escrita não-sequencial e uma leitura diferente por parte de cada leitor, em função do seu interesse. Com as novas possibilidades de publicação electrónica de textos, impõem-se as ideias de leitura multilinear, de anulação das ideias de centro e de margem, e de abolição de toda a forma de hierarquias.

A terceira constante temática prende-se com toda a crítica textual de inspiração pós-estruturalista para a qual os estudos sobre o hipertexto nos remetem, invariavelmente, com especial chamada de atenção, por um lado, para a proposição de Roland Barthes de que todo o processo de leitura implica uma produção de significados e, por outro lado, para a ideia avançada por Michel Foucault de que todos os textos contêm referências a outros textos.

A aposta dos escritores na utilização do hipertexto para a ficção é um fenómeno relativamente novo, como explica Jean Clément12. Na verdade, apenas muito recentemente começaram alguns escritores (primeiro americanos – nova iorquinos, mais precisamente – e depois franceses), a gravar os seus romances em disquetes e CDs, construindo as suas narrativas com base em hiperligações. Navegando na Internet, é-nos hoje

11 http://cetic.ufp.pt/hiperficc.htm. Esta, bem como todas as páginas doravante assinaladas, foram acedidas pela última vez em 12-12-05.

12 http://hypermedia.univ-paris8.fr/jean/articles/allc.htm.

188

fáTIMA vIEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

possível encontrar vários exemplos de hiperficção, tanto a nível da poesia, como a nível da narrativa13. Inevitavelmente, a literatura utópica que nas últimas décadas do século XX tão bem se soube reinventar, deixando-se contaminar por géneros que lhe eram contíguos – como a ficção científica, a autobiografia ou o romance epistolar – mostrou-se permeável à tentação da experimentação literária. O resultado, a meu ver, são os sítios da Internet de que atrás falei e que, na minha opinião, apresentam uma textualidade e uma organização narrativa que determinaram uma evolução do próprio género literário. Da adopção da lógica de construção narrativa da hiperficção, surgiu aquilo a que proponho que chamemos hiperutopia.

Hiperutopia: o exemplo de Bergonia

Bergonia é, a meu ver, um caso exemplar do novo desenvolvimento da utopia literária. Num primeiro contacto, parece ser um sítio comum da Internet, semelhante aos dos sítios oficiais de países reais. Na verdade, se o compararmos com o sítio oficial da Patagónia, poderemos concluir que a organização da informação é muito semelhante14. Se tivermos em conta a tradição de literatura utópica, esta semelhança (que encontramos também a nível do nome de ambos os países – Patagónia e Bergonia) não deverá contudo surpreender-nos. As estratégias de concessão de verosimilhança ao relato utópico remontam à primeira utopia literária, publicada por More em 1516. E, na realidade, as afinidades entre a utopia moreana e Bergonia não ficam por aqui.

De facto, parece-me relevante que notemos que tanto Thomas More como Joe Cometti, o advogado americano que inventou o país da Bergonia, procuram criar um quadro de verosimilhança para que os seus relatos sejam aceites como reais. More constrói a sua narrativa segundo o modelo da literatura de viagens; Cometti inscreve o seu país imaginário na Internet, seguindo muito de perto os modelos de sítios sobre países reais.

Interessará também evocar as analogias que poderemos estabelecer entre a viagem por mar, realizada por Hitlodeu, e a descoberta da ilha da utopia, por um lado, e a metáfora comum da Internet como um mar de informações, onde o utilizador navega – e, navegando entre todo o tipo de informações, reais e irreais, encontra o sítio de um país chamado Bergonia. No mar da Internet, o navegador depara-se então com um país de que não conhecia a existência. E, tal como o marinheiro português, uma vez chegado à ilha da Utopia, explora as ruas, conversa com os habitantes e tenta compreender-lhes os hábitos, o navegador moderno da Internet explora meticulosamente o país imaginário da Bergonia, seguindo um caminho de hiperligações.

A grande diferença que existe entre Utopia e Bergonia consiste no elevado grau de autonomia que esta última utopia concede ao viajante. No relato moreano, o conhecimento que o leitor tem da ilha é mediado por Hitlodeu: é com ele que exploramos a ilha, dependemos dele para saber da organização da sociedade, somos influenciados por ele, umas vezes, e outras vezes distanciamo-nos dele, assumindo uma posição crítica, sobretudo

14 Veja-se, a título de exemplo de hiperficção poética The Body, de Shelley Jackson (www.altx.com.thebody/body/html).

14 Os sítios na Internet da Bergonia e da Patagónia poderão ser encontrados respectivamente nos seguintes endereços: www.bergonia.org e www.nol.hu/cikk/380536.

189

NOvAS TECNOlOgIAS, NOvAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

quando nos damos conta da ratoeira em que More nos fez cair, ao associar no nome do navegador português o nome do arcanjo Rafael e um neologismo que lhe atribui a perícia de a todos distribuir mentiras.

Em Bergonia, o contacto do leitor com o país imaginário é mais directo. A estrutura narrativa, assente em hiperligações, faz com que cada "leitura" do sítio seja irrepetível, já que o leitor se perde num emaranhado de informações que constantemente remetem para mais e mais informações. Para além disso, é uma obra permanentemente em aberto, como informa o próprio Cometti, que há décadas vem trabalhando esta ideia de representação de um país imaginário.

Viajando por Bergonia, o leitor internauta passará obrigatoriamente pelo contacto com os temas comuns da literatura utópica tradicional: Bergonia é uma "República Democrática", composta por 31 regiões, o que justifica aliás a diversidade de línguas e culturas que a caracterizam. O respeito pelo Outro parece ser aliás uma constante desta sociedade, em todos os aspectos: Bergonia é um país de gente cordata e tolerante, uma sociedade que sabe acolher a diferença e torná-la produtiva; o respeito pelo Outro passa também pela vontade de conhecer a cultura do Outro através da sua língua; por isso a sociedade de Bergonia é uma sociedade multilingue. Como era de esperar, a descrição da organização política da Bergonia não é descurada: prevalece no país um socialismo democrático descentralizado, que se pauta por um profundo respeito pelas leis do país. O investimento imaginativo na criação de uma história para a Bergonia passa também pela descrição da revolução que esteve na base da implantação do sistema político agora vigente. Cometti enuncia e explica nesta sua hiperutopia os oito princípios da Revolução que justificam a existência de oito estrelas na bandeira do país. Na coerência dos princípios revolucionários, a economia bergoniana assenta no pressuposto de que todo o trabalhador é proprietário dos meios de produção e dos frutos do seu trabalho. Embora estejam previstas outras soluções mistas, a grande aposta da economia deste país é no sistema cooperativo e as preocupações ecológicas informam também as opções económicas. A lei libertária socialista é o princípio organizador desta sociedade, onde o espírito de tolerância preside à convivência de uma heterogeneidade religiosa invulgar, meticulosamente descrita pelo inventor de Bergonia. O sítio não descura nenhum pormenor da vida da sociedade, descrevendo o quotidiano simples dos seus habitantes, o seu vestuário e habitação, a gastronomia e o tipo de recreações; o tratamento de questões como as da educação, da passagem à idade adulta e do serviço comunitário ocupam também uma grande parte do sítio. A invenção de um passado histórico verosímil levou Cometti até aos tempos pré-históricos, à descrição da evolução das várias línguas bergonianas e mesmo aos traços distintivos de cada raça.

Num festival de imaginação que não acaba nunca – já que Joe Cometti tem vindo a actualizar continuamente o seu sítio –, encontramos pois em Bergonia uma utopia semelhante, nos seus moldes de funcionamento, às utopias literárias tradicionais. Na verdade, tal como no texto moreano o leitor é lançado numa descrição que dilui as fronteiras entre o real e o

190

fáTIMA vIEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

irreal15 , também em Bergonia a imaginação utópica funda-se num estudo sério, por parte do autor, da evolução histórica de diferentes civilizações. Por trás da invenção das múltiplas línguas, religiões, e raças bergonianas encontra-se de facto uma investigação aturada em áreas tão diferentes como as da Antropologia, da História das Religiões, da Linguística, da Sociologia e da Filosofia Política.

Esta oscilação entre referentes inventados e referentes reais cumpre, em Bergonia, tal como de resto na literatura utópica em geral, a função de promoção de uma mensagem política, económica e social bem explícita. De facto, encontramos no sítio uma secção com hiperligações para outros sítios da Internet que, aos olhos do utopista, são relevantes. Trata-se de sítios de natureza variada, tendo contudo todos em comum o facto de descreverem organizações ou associações políticas que existem de facto, e que se afirmam como contestatárias da ordem política e social estabelecida nos Estados Unidos da América. Encontramos pois em Bergonia, de forma bem explícita, a função catalisadora descrita por Ruth Levitas e que, na opinião da socióloga, é a mais importante, na medida em que se afirma como um agente impulsionador da alteração das estruturas sociais. A função crítica da utopia encontra-se implícita na descrição da sociedade bergoniana que, apesar da sua grande diversidade cultural, convive de forma pacífica. No fundo, a função crítica emerge do confronto que o leitor internauta é levado a fazer entre Bergonia e o mundo real, mais especificamente o leitor americano.

Mas também a função compensatória descrita por Ruth Levitas se afirma de forma clara em Bergonia. Na secção do sítio intitulada “About us”, o leitor é posto a par do processo inventivo de Bergonia. As duas epígrafes que coroam essa secção revelam abertamente as intenções utópicas do autor. Na verdade, ao evocar a tão citada (e frequentemente descontextualizada) afirmação de Oscar Wilde de que não vale a pena olharmos para um mapa que não inclua a utopia, Joe Cometti inscreve claramente Bergonia na tradição de literatura utópica. Mas também o texto explicativo das intenções do autor é importante. Joe Cometti enuncia, em primeiro lugar, a ideia de jogo, de brincadeira (“play”) que esteve na base da concepção deste sítio, que ele vem desenvolvendo há já vários anos. O próprio nome do país, que, pela sua sonoridade, nos poderá parecer verosímil, resulta, afinal, como nos revela Cometti, do seu fascínio de infância pela série Super-homem que passava na televisão americana na década de 50, quando Cometti tinha 8 ou 9 anos. Como Cometti explica, Bergonia é o nome de um país da América do Sul onde imperava uma ditadura, e onde Lois Lane, por alguma razão, havia sido feita prisioneira. O Superhomem voou até lá, e num dos seus muitos feitos heróicos libertou a sua amada Lois Lane. Note-se que esta explicação ficcional – quase nonsense – para a escolha de o nome de um país utópico não é dissemelhante das estratégias que levaram Thomas More, no início do século XVI, a criar neologismos que tinham como função denunciar os perigos de se acreditar em invenções. No texto, para além de algumas referências biográficas, o autor evoca também a função de contestação política e a mensagem ecológica que espera conseguir transmitir. Como

15 Sobre o assunto cf. Vieira, 1996.

191

NOvAS TECNOlOgIAS, NOvAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

ele esclarece, foi o seu desgosto em relação à história capitalista que o levou a imaginar um mundo diferente, e a publicitar as suas ideias a nível internacional, recorrendo à Internet.

conclusão

Comecei este meu trabalho falando de um paradigma utópico que, na minha opinião, se encontra emergente na viragem do século XX para o século XXI. Esse paradigma, como então expus, caracteriza uma nova atitude do homem contemporâneo face à utopia, encontrando reflexos quer na nossa vida quotidiana e no pensamento político quer na própria literatura. O espírito reemergente toma a utopia simultaneamente como ideal e como sonho, isto é, como princípio orientador que, colocado no nosso horizonte, nos indica um caminho a seguir sem contudo nos fazer cair na tentação de o tentarmos realizar. Estamos portanto agora a entrar num quinto período (em relação aos quatro períodos descritos por Baccolini e Moylan) em que o sonho volta a ser acarinhado, tendo o utopista (e ainda bem que assim é) a consciência de que se trata apenas de um sonho.

Nas margens da literatura utópica canónica, a hiperutopia – designação que propus neste trabalho para alguns sítios da Internet cuja textualidade e organização se fundamentam na tessitura narrativa da hiperficção – contribui para a ressurgência deste entendimento utópico informado pela índole desejante humana. A hiperutopia encerra em si uma renovação do género literário, mais conforme a estes tempos em que os leitores se vão assumindo cada vez mais como internautas, e em que, como premonitoriamente disse Foucault, a imaginação se torna cada vez menos histórica para assumir progressivamente uma feição mais espacial. No espaço virtual da Internet, a hiperutopia assegurará certamente a sobrevivência da utopia literária; até que o desenvolvimento de outras novas tecnologias conduza a mais (re)invenções utópicas.

Referências

BACCOLINI, Raffaella & Tom MOYLAN (eds). Dark Horizons: Science Fiction and the Dystopian Imagination. London: Routledge, 2003.

CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Lisboa: Quarteto, 2003.

FORTUNATI, Vita & Raymond TROUSSON (eds.). Dictionary of Literary Utopias. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2000.

LEVITAS, Ruth. The Concept of Utopia. London: Phillip Alen, 1990.

LEVITAS, Ruth & SARGISSON, Lucy. "Utopia in Dark Times: Optimism/Pessimism and Utopia/Dystopia". In: BACCOLINI & MOYLAN. (eds), Dark Horizons: Science Fiction and the Dystopian Imagination. London, Routledge, 2003, p. 13-27.

192

fáTIMA vIEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

SARGENT, Lyman Tower. "The Intersection of Utopianism and Communitarianism". In: VIEIRA, Fátima & FREITAS, Marinela (eds.). Utopia Matters: Theory, Politics, Literature and the Arts. Porto: Editora UP, 2005, p. 109-118.

VIEIRA, Fátima. "Os Jogos de Significados e o Significado dos Jogos em Utopia, de Thomas More". In: Revista da Faculdade de Letras do Porto – Línguas e Literaturas Modernas, II Série / XIII, 1996.

VIEIRA, Fátima. "Utopia III, de Pina Martins: o verdadeiro espírito utópico finalmente em Portugal". In: Actas do I Colóquio Internacional de Estudos Anglo-Portugueses. Lisboa: Centro de Estudos Anglo-Portugueses/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2001.

VIEIRA, Fátima. "O Utopismo e a Crise da Contemporaneidade: Velhas Receitas para Novos Caminhos". In: VIEIRA, Fátima & CASTILHO, Teresa (org.). Estilhaços de Sonhos: Espaços de Utopia. Famalicão: Editora Quasi, 2004, p. 32-47.

VIEIRA, Fátima. "A Ilha da Mão Esquerda ou a Utopia do Amor de Alexandre Jardin". In: E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 3, julho 2005, www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas.

Alotopias de Luciano de SamósataJacyntho Lins Brandão Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)

Resumo

Este trabalho examina a técnica dos deslocamentos espaciais em Luciano de Samósata, recurso que lhe permite criticar os hábitos dos homens cultos de seu tempo e o leva a conformar diversas alotopias: o Hades, o Olimpo, a Ilha dos Bem-Aventurados, a lua e outros astros, a cidade em que todos são estrangeiros etc. Examina ainda a relação desses temas com as utopias propriamente ditas.

Palavras-chave

Utopia, alotopia, Luciano de Samósata.

Jacyntho Lins Brandão é professor titular de Língua e Literatura Grega da UFMG. Publicou, entre outros, os seguintes livros: A poética do hipocentauro: literatura e discurso ficcional em Luciano de Samósata (Belo Horizonte: UFMG, 2001); Antiga Musa: arqueologia da ficção (Belo Horizonte: UFMG, 2005); A invenção do romance (Brasília: UnB, 2005).

194

jACYNThO lINS BRANdãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

No segundo livro de Narrativas verdadeiras, Luciano descreve sua chegada e de seus companheiros à ilha dos bem-aventurados, em que diversas características parecem indicar tratar-se de um

lugar “utópico”: a brisa perfumada; rios límpidos, fontes quentes e frias, prados, bosques e aves canoras; e os habitantes que, “propriamente, não têm corpo, mas antes são impalpáveis e sem carne” (pois estão mortos), ao que se acrescenta uma convivência prazerosa, organizada em torno de banquetes, durante os quais eles “se entretêm com música e cantares (...), especialmente com trechos de Homero, o qual está presente em pessoa e se diverte com eles, reclinado ao lado de Ulisses” – mais o fato de que têm relações sexuais às claras, tanto com mulheres quanto com homens, e que “as mulheres são comuns a todos e ninguém tem inveja da do vizinho”, no que – segundo o narrador – “são absolutamente platônicos” (2, 5-19). Esses elementos, ao lado de outros do mesmo tipo¹, são inspirados em descrições tradicionais de locais idílicos, a primeira das quais a ilha dos feácios, na Odisséia, mas, específica e principalmente, neste caso, também a que Jambulo faz das ilhas do Sol: nelas há frutos o ano inteiro, o clima é doce, encontram-se fontes quentes e frias, as mulheres e os filhos são comuns, reinam os mais velhos e os habitantes passam o tempo cantando hinos aos deuses, sobretudo ao maior deles, o Sol, a partir do qual nomeiam sua terra (cf. Diodoro 2, 55-60). Nos três casos, o conhecimento e reconhecimento dos lugares de exceção se deve a viajantes que se aventuraram por regiões inexploradas.

Parece evidente que, em textos assim, se encontram tópoi presentes também nas utopias enquanto gênero inaugurado por Thomas Morus (a narrativa de viagem, a descrição de lugares, homens e sociedades diversas das conhecidas)². Todavia, não se poderia afirmar que se encontrem utopias em Luciano, a não ser de uma perspectiva muito abrangente, uma vez que não se percebe nele o interesse em propor reformas, mesmo que admitidamente impraticáveis e num registro irônico, o que parece distintivo do gênero utópico e dá o tom da própria Utopia de Morus, que assim termina: “Do mesmo modo que não posso concordar com tudo o que foi dito, além do mais por um homem sem dúvida eruditíssimo e, ao mesmo tempo, extremamente entendido nos negócios humanos, facilmente confesso haver uma grande quantidade de coisas na república utopiana que, na realidade, desejaria em nossas cidades mais que disso teria esperança (quae in nostris ciuitatibus optarim uerius quam sperarim; More, 1936, p. 208)”. Se é verdade que a sátira de Luciano tem como objetivo “morder rindo”, como fazia o antigo cão Menipo³, não parece que ele próprio, Luciano, deseje ou espere algo como consequência de sua crítica. Noutros termos, ainda que seja um crítico acérrimo da cultura, Luciano se apresenta como um crítico desiludido, que não espera nada nem “em nada crê” – como aliás já observava Fócio4. Assim, para avaliar as relações de Morus com Luciano e a influência das Narrativas verdadeiras na Utopia, apontada em geral pelos comentadores (Robinson, 1979), deve-se ter em conta que, nas palavras de Marsh, essa “influência (...) mostra-se mais penetrante no tom irônico geral do discurso, um tom que poderia ser descrito como um Luciano temperado com o falar por meias palavras (understatement) britânico” (1998, p. 196).

¹ Cf., por exemplo, Camerotto, 2005.

² Para uma visão geral relativa à Antiguidade, ver Ferguson, 1975.

³ Luciano declara, em Dupla acusação ou os tribunais 33, o processo de criação de seu diálogo cômico: no diálogo filosófico introduziu ele o vitupério, o jambo, o cinismo, mais os poetas cômicos Êupolis e Aristófanes, e, enfim, um dos antigos cães (isto é, cínicos), Menipo, perigoso e dissimulado, pois é “rindo que ao mesmo tempo morde”.

4 Biblioteca 128: Luciano “parece ser dos que não respeitam absolutamente nada, pois, fazendo comédia e brincando com as crenças alheias, ele próprio não define a que honra, a não ser que se diga que sua crença é em nada crer”.

195

AlOTOPIAS dE lUCIANO dE SAMóSATA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Ora, o próprio episódio da ilha dos bem-aventurados contém, se assim o quisermos, uma recusa das “utopias”: dentre os muitos filósofos que lá estavam, só não se encontrava Platão (Pláton dè mónos ou parên), pois, “dizia-se, ele próprio morava na cidade por ele modelada (anaplastheísei hyp’autoû pólei), fazendo uso da constituição (politeíai) e das leis (nómoi) que escreveu” (Narr. verd. 2, 17)5. A par do fato de que se dá a entender que a politéia platônica não tem utilidade para ninguém além do próprio Platão, esse tratamento irônico da República me parece expressivo sobretudo porque Narrativas verdadeiras se abre com a declaração de que seu ponto de partida e paródia são os relatos de “antigos poetas, historiadores e filósofos”, os quais escreveram muitas coisas fabulosas (mythóde), acreditando que passariam por verdades – e a observação de que os bem-aventurados são platônicos em grau superlativo (Platonikótatoi) porque praticam a comunidade de mulheres é indício de que Luciano incluiria o livro do filósofo entre esses mythóde. O que ele, Luciano, declara, num primeiro nível, é que faz o mesmo que poetas (sobretudo Homero, referido pelo nome), historiadores (como Ctésias, Jambulo e Heródoto, também nomeados) e filósofos (não há dúvida de que principalmente Platão), com uma diferença, contudo: “só para não ser o único a não ter parte na liberdade de contar estórias (mythologeîn eleutherías)” – afirma ele – “para a mentira (pseûdos) me voltei, mas uma mentira mais desculpável, pois numa coisa, nisto, serei verdadeiro: dizendo que minto (légon hóti pseúdomai).” Que os poetas mentem é um lugar-comum que remonta pelo menos a Sólon (“muito mentem os aedos” – pollà pseúdontai aoidoí, fr. 29 West) e foi reiterado por Platão (os mitos são “pseûdos em que há também algo verdadeiro” – pseûdos éni kaì alethê, Rep. 377a). Não é, portanto, por simplesmente assumir o pseûdos que Luciano se distingue, nem apenas por incluir na esfera tradicionalmente reservada aos poetas também os historiadores e filósofos, nem ainda por afirmar ao leitor que mente. O que o separa dos demais é declarar, na sequência, que, já que mente, escreve sobre coisas que não testemunhou nem experimentou, nem ao menos ouviu da boca de alguém; mais ainda, e principalmente, escreve sobre coisas “que não existem nem, por princípio, podem existir” (méte hólos ónton méte tèn arkhèn genésthai dynaménon), o que tem como consequência que o leitor “não deve de jeito nenhum crer nelas” (medamôs pisteúein autoîs, Nar. verd. 1, 2-3).

Configura-se assim uma esfera do que não tem a possibilidade ou o poder (dýnamis) de existir – diferentemente da cidade platônica, cuja validade se assenta na possibilidade de existência que justifica por que se deve nela crer. É a esse espaço de ficção (pseûdos) radical que, mais que de alguma forma utópico, chamei em outro trabalho de alotopia (2001). Não quero com isso levantar uma barreira entre os dois procedimentos ficcionais, admitindo que eles têm muitos pontos de contato e mesmo se aproximam de modo especial por três razões: a) tanto nas utopias, quanto nas alotopias de Luciano está em ação o que Carlos Berriel, na proposta deste evento, chamou de “fermento platônico”6; b) as alotopias de Luciano integram a pletora de elementos que, combinados de nova forma, dão origem ao gênero utópico; c) essas alotopias serão exploradas livremente pelos epígonos de

5 Também em Leilão de vidas se afirma que Platão vive na cidade por ele modelada (anaplásas), praticando suas próprias leis. Ver comentários em Georgiadou, Larmour, 1998. p. 196-197.

6 Após Homero, Platão é o autor mais citado ou aludido por Luciano, no que ele não destoa de outros autores da era imperial (cf. Householder Jr., 1941. p. 41; 64).

196

jACYNThO lINS BRANdãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Morus, os quais lançam mão de recursos, procedentes delas, que não se encontram na própria Utopia. Sabe-se como Morus foi não só leitor, como se dedicou a traduzir Luciano, entre 1505 e 1506, o que sugere um pouco da pré-história da Utopia7, um gênero criado não a partir do nada, mas da exata forma como se criam novos gêneros: nas palavras de Todorov, a partir de outros gêneros – ou, diria eu, a partir da “biblioteca” do escritor, valendo recordar que Luciano integrava não só a biblioteca de Morus, como a da própria Utopia, encantando os habitantes do lugar por suas facécias e bom humor (facetiis ac lepore)8. É portanto dessa perspectiva, enquanto parte da própria topologia utópica, que passo a abordar as alotopias luciâncias, ensaiando alguma classificação.

Chamo alotopias o resultado de deslocamentos de personagens e cenas para lugares-outros, visando à critica, sobretudo, da cultura (paidéia) e dos homens cultos (pepaideuménoi), bem como das diferenças sociais. Tais deslocamentos podem ser agrupados em cinco tipos principais: a) as alotopias divinas (como em Assembléia dos deuses, Zeus trágico, Zeus confutado, Caronte); b) as alotopias dos mortos (Diálogos dos mortos, Descida ao Hades, Menipo, além do episódio da ilha dos bem-aventurados acima citado); c) as alotopias extra-terrestres (Icaromenipo, o entrecho da viagem aérea em Narrativas verdadeiras, que comporta principalmente a descrição da Lua e de seus habitantes)9; d) as alotopias sociais, que consistem em dar voz a protagonistas localizados em esferas marginais da sociedade (como acontece em Diálogos das prostitutas, O sonho ou o galo e Saturnálias); e) as alotopias políticas, como no episódio de Narrativas verdadeiras que se passa no interior da baleia, opondo duas cidades em guerra e, sobretudo, na cidade descrita em Hermótimo 22-25. Naturalmente não tenho como examinar aqui cada um desses tipos, o que fiz em certa medida em A poética do hipocentauro, motivo por que desejo não mais que apontar alguns aspectos relativos ao tratamento das diferenças sociais.

Os comentadores concordam que a principal dívida temática de Morus para com Luciano se encontra “na condenação da riqueza”, tendo os utopianos resolvido o problema do roubo – crime punido na Inglaterra com a morte – pela eliminação da propriedade privada (Marsh, 1998, p. 197). De fato, o tema da riqueza, que faz parte da consideração mais geral da diversidade de fortunas, aparece com bastante frequência no corpus lucianeum, constituindo o que Luciano deve, por sua vez, à tradição cínica, tanto que é nos textos que deslocam os filósofos Diógenes, Menipo e Crates para alotopias aéreas ou do Hades que ele se mostra mais recorrente10. A abertura do primeiro dos Diálogos dos mortos é suficiente para mostrar isso. Nela, Diógenes, já no Hades, envia, através de Hermes, que circula entre os dois mundos, a seguinte mensagem a seu colega: “Menipo, se você já zombou o bastante das coisas aí da terra, então venha para cá rir muito mais ainda. Aí seu riso era dúbio pois muitas vezes vinha a pergunta: ‘quem é que sabe o que vem depois da morte?’ Mas aqui você vai rir pra valer e sem parar, como faço eu agora, principalmente quando vir os ricos, os sátrapas e os tiranos humildes assim e desassinalados” (Diál. mortos 1, 1, trad. de M. C. C. Dezotti). No Hades, com efeito, não só a riqueza e o poder são arrebatados

7 As traduções latinas de Morus são: Menippus, seu Necyomantia; Philopseudes, sive Incredulus; Cynicus; e Tyrannicida. Durante sua vida, essas traduções conheceram um número de edições maior que as da Utopia (cf. Morus, 1974).

8 Morus, 1965, p. 182: “Plutarchi libellos habent carissimos, et Luciani quoque facetiis ac lepore capiuntur”. A biblioteca da Utopia, incluindo os livros que a ela legou Hitlodeu no final de sua quarta viagem, constitui uma importante pista dos autores que interferem na criação de Morus: Platão, Aristóteles, Teofrasto, Láscaris, Hesíquio, Dioscórides, Plutarco, Luciano, Aristófanes, Homero, Eurípides, Sófocles, Tucídides, Heródoto, Herodiano, Hipócrates, Galeno. É curiosa a ausência de Diodoro. Frise-se que só Plutarco e Luciano recebem a breve consideração de que estavam entre as obras prediletas dos habitantes de Utopia.

9 Estudei este último caso em Cyrano de Bergerac e a tradição luciânica, in Bergerac, 2007, p. 191-224. Ver também Georgiadou, Larmour, 1998, p. 81-145.

10 Também este é o tema de Caronte, em que estão em cena este deus e Hermes.

197

AlOTOPIAS dE lUCIANO dE SAMóSATA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

dos mortos, como também outros sinais de distinção, tais quais o renome de beldades, atletas, retores e filósofos, que têm de deixar no porto, antes de entrar na barca de Caronte, coroas e adornos, belas cabeleiras, músculos potentes, hábeis figuras de linguagem e raciocínios tortuosos. A riqueza funciona, desse modo, apenas como o ponto de partida para que se projete a mais completa isotimia – algo impossível no reino dos vivos.

Em Menipo ou neciomancia – o diálogo traduzido por Morus – encontramos um elemento a mais. Como nos Diálogos dos mortos, há uma igualação radical, mas introduz-se ainda a idéia de punição dos ricos, que têm de viver no Hades a “mendigar e vender produtos para embalsamar múmias, por total falta de recursos”, “ensinar as primeiras letras” e suportar humilhações e golpes, como escravos (Menipo 17). Mas tal é sua insolência que a Assembléia dos Mortos vota o seguinte decreto: “Já que os ricos cometem muitos atos à margem da lei durante a vida, realizando saques, agindo com violência e humilhando os pobres por todos os meios, pareceu oportuno ao Conselho e ao povo que, tão logo morram, seus corpos recebam castigo igual ao dos demais criminosos, e suas almas, enviadas de novo à vida, se encarnem em burros, até que vivam nessa situação duzentos e cinquenta mil anos, nascendo burros de burros, levando pesadas cargas e arreados pelos pobres, e, depois, a partir de então, se permitirá que morram” (Menipo 20). Portanto, para os ricos, castigo não é a pobreza, mas a imposição do pónos – palavra que em grego significa tanto trabalho quanto sofrimento. Mais ainda: as faltas que cometem são tão graves que, num certo sentido, se mostram indignos até mesmo da morte, sendo a uma vida de trabalho que são efetivamente condenados11.

Finalmente, cumpre examinar uma última abordagem bastante radical do tema – e a que mais se aproximaria de um certo tipo de utopia, já que relativa à vida humana comum: a pólis descrita no Hermótimo, diálogo inteiramente dedicado ao problema da filosofia e de sua divisão em escolas (hairéseis), que leva à conclusão de que “todos os que filosofam lutam pela sombra do asno”, constituindo a única atitude filosófica séria “pensar o comum” (tà koinà phroneîn). Ora, no trecho que aqui interessa, a personagem Licino, que refuta o estóico Hermótimo, apela para a imagem da Virtude como uma “cidade habitada por cidadãos felizes” (pólis tis eudaímonas ékhousa toùs empoliteuoménos), sábios, corajosos, justos, prudentes e faltando pouco para serem deuses. Nessa cidade não há roubos, violência, ambição e os cidadãos vivem em paz e harmonia, por terem eliminado tudo que, nas outras cidades, “desperta dissensões e rivalidades e é causa de traições mútuas”: o ouro, os prazeres, a glória – levando assim “uma vida inteiramente feliz (paneudaímona bíon), com boas leis, igualdade, liberdade e todos os outros bens” (22). Continua o texto:

Um dia, em tempos que já se vão, ouvi um velho contar como se passam lá as coisas. [...] Contava ele, se bem me lembro, entre outras coisas, o seguinte: todos eram adventícios (epélydes) e estrangeiros (xénoi), não havendo ninguém nascido no lugar (authigenés), mas habitavam-na grande número de bárbaros (barbárous), escravos (doúlous), aleijados (amórphous), pessoas

11 Vale lembrar que o problema do trabalho de subsistência é uma preocupação também de Morus na Utopia.

198

jACYNThO lINS BRANdãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

humildes e pobres (mikroùs kaì pénetas); em resumo: quem quisesse podia fazer parte da cidade. De fato, é lei para eles proceder à inscrição não com base na fortuna, situação social, importância ou beleza, nem na família e nobreza dos antepassados, pois tais coisas não valem nada para eles. Basta, para que cada um se torne cidadão, possuir inteligência, paixão pelo bem, capacidade de trabalho, perseverança, um espírito que não ceda nem se deixe abater pelas muitas dificuldades que se deparam no caminho. Assim, todo aquele que revelasse tais qualidades e conseguisse percorrer todo o caminho até a cidade, imediatamente, fosse ele quem fosse, se tornaria cidadão (políten) e igual (isótimon) a todos os outros. E quanto a conceitos como vulgar (kheíron) e nobre (kreítton), eupátrida (eupatrídes) ou plebeu (agennés), escravo (doûlos) ou livre (eleútheros), são coisas que não existem nem são ditas nessa cidade (24, trad. de C. Magueijo, com modificações).

Veja-se como nessa breve alotopia se poderia talvez encontrar um ponto de origem das utopias, pelo número de motivos correlatos: o velho viajante; a vida completamente feliz que levam os cidadãos porque a cidade logrou eliminar o que nas outras desperta dissensões e rivalidades; a igualdade como norma, uma vez que se aboliram todos os critérios de diferenciação: nem nobre, nem vulgar; nem eupátrida, nem plebeu; nem livre, nem escravo – e, principalmente, nem autóctone, nem bárbaro, uma vez que todos são estrangeiros. Vale lembrar que Luciano nasceu nos confins do Império e nunca deixou de sentir-se, se não estrangeiro, efetivamente bárbaro, escrevendo com destreza numa língua (o grego) que contudo não era a sua materna (o aramaico). Pode ser isso que o motiva a desenhar como a melhor das alotopias (ou sua única utopia) uma cidade em que só há estrangeiros – um ponto de vista da maior radicalidade, pois implicaria pensar uma cidade sem critérios de cidadania – no limite: uma cidade justa porque sem cidadãos de direito.

Para terminar, explorando as possibilidades topológicas, perguntaria (na linha do autor do Tratado do sublime)12: como, na Utopia de Morus, os habitantes leriam as alotopias de Luciano depositadas em sua biblioteca? Na qualidade de espelho? É provável que não. Certamente Platão lhes pareceria mais próximo, bem como Jambulo, cuja obra todavia lá não se encontra e constitui um dos pontos de partida para a sátira luciânica. Mas isso não quer dizer que Luciano não tenha uma função, a partir do que poderíamos dizer: ele se leria enquanto parte da “biblioteca” do próprio Morus.

Novo exercício mais ousado: como Luciano leria Morus? É provável que da mesma forma como lê Platão, num registro irônico, já que não o move qualquer espécie de esperança – segundo ele um dos dois maiores tiranos do gênero humano, ao lado do medo13. É por isso que as alotopias do Hades carecem de possibilidade (dýnamis) tanto quanto a cidade feliz (e o mesmo aconteceria com a própria Utopia numa leitura luciânica?), não se podendo dizer, portanto, utópicas, por constituírem antes projeções de alguém que escolheu como crença “em nada crer”, logo, também nada esperar.

12 Do sublime 14, 2.

13 Cf. Alexandre ou o falso profeta 8.

199

AlOTOPIAS dE lUCIANO dE SAMóSATA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

BRANDÃO, Jacyntho Lins. "Cyrano de Bergerac e a tradição luciânica". In: BERGERAC, Cyrano de. Viagem à Lua. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Globo, 2007, p. 191-224.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

CAMEROTTO, Alberto. "Voci e suoni dall’Aldilà: l’utopia musicale dell’Eliseo in Luciano de Samosata (VH II 5-16)". Musica e storia, v. 13, n. 1, 2005, p. 101-129.

FERGUSON, John. Utopias of the Classical World. Ithaca: Cornell University Press, 1975.

GEORGIADOU, Aristoula, LARMOUR, David H. Lucian’s Science Fiction Novel True Histories. Leiden: Brill, 1998.

HOUSEHOLDER JR., Fred Walter. Literary quotation and allusion in Lucian. New York: King’s Crown, 1941.

LUCIANO. Diálogo dos mortos. Tradução e notas de M. C. C. Dezotti. Introdução de J. L. Brandão. São Paulo: Hucitec, 1996.

LUCIANO. Hermótimo. Prefácio, tradução e notas de C. Magueijo. Lisboa: Inquérito, 1986.

MARSH, David. Lucian and the Latins: Humor and Humanism in the Early Renaissance. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1998.

MORE, Thomas. L’Utopie ou traité de la meilleure forme de gouvernement. Texte latin édité par Marie Delcourt. Paris: E. Droz, 1936.

MORUS, Thomas. The Yale Edition of the Complete Works of St. Thomas More. Vol. 4, Utopia. Ed. Edward Surtz, S. J. and J. H. Hexter. New Haven: Yale University Press, 1965.

MORUS, Thomas. The Yale Edition of the Complete Works of St. Thomas More. Vol. 3, Part 1, Translations of Lucian. Ed. Craig R. Thompson. New Haven: Yale University Press, 1974.

ROBINSON, Christopher. Lucian and His Influence in Europe. London: Duckworth, 1979.

La utopía gastronómica en la comedia griega antigua* Maria José García Soler Universidad del País Vasco (Espanha)

Resumo

Durante el último cuarto del siglo V a.C. un grupo de comediógrafos atenienses, un poco anteriores o contemporáneos de Aristófanes reflejan en algunas de sus obras lo que Enzo Degani ha denominado "la versión plebeya de la Edad de Oro", la descripción de un País de Jauja, situado siempre geográfica o cronológicamente lejos de la Atenas contemporánea, en el que el duro trabajo ha dejado de ser necesario, porque todo se produce espontáneamente y la comida abunda por todas partes. Estas obras, de las que conocemos sólo los fragmentos que ha transmitido Ateneo de Náucratis, coinciden en parte con una situación histórica muy conflictiva, como fue la guerra del Peloponeso, que enfrentó a atenienses y espartanos, y sirven a la vez como un instrumento de evasión y de crítica de la realidad.

Palavras-chave

Utopia griega antigua, siglo V a.C , Edad de Oro, País de Jauja, guerra del Peloponeso.

Maria José García Soler é doutora em Filologia Clássica pela Universidad del País Vasco, onde atualmente ocupa a cadeira de Filologia Grega. Publicou, em 2001, o estudo El arte de comer en la antigua Grecia (Madrid: Editorial Biblioteca Nuova, 2001). Sua pesquisa mais recente está direcionada ao tema do humor na literatura grega. Publicou vários artigos e traduções relacionados à alimentação no mundo antigo.

* Este trabajo ha sido realizado en el marco del Proyecto de Investigación FFI2008-01720, financiado por el Ministerio de Ciencia e Innovación.

202

MARíA jOSé gARCíA SOlER

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Aunque el modelo platónico suele ser el predominante, en buena medida por costumbre, desde los comienzos de la literatura griega puede hablarse, si no propiamente de utopía¹, sí del uso de algunos

temas utópicos o de un tratamiento utópico de ciertos temas que proponen un mundo perfecto, ajeno a la realidad, situado en una época lejana o en lugares remotos, con cierta frecuencia asociados al mito o al folklore.

Uno de los motivos utópicos que tiene mayor vitalidad es el del País de Jauja o de Cucaña, que aparece ya desde los comienzos de la literatura griega, con diversas variantes, asociado en ocasiones al mito. En esta categoría se situaría la isla de Esqueria, donde viven los feacios, y en particular el fantástico jardín de Alcínoo, descrito por Homero en el canto VII de la Odisea, la primera tierra bendita de la utopía. Por otra parte, tanto en este poeta como en Hesíodo, aparecen los motivos del Elíseo y las felices Islas de los Bienaventurados y la primera visión de la Raza de Oro (Hesíodo, Los trabajos y los días 108-128), con todo el aparato de imágenes de abundancia espontánea de la naturaleza, longevidad o incluso ausencia de la muerte, que volverá a menudo en las fabulaciones utópicas, en particular en las "utopías etnográficas" helenísticas.

Esta imagen de un mundo feliz, donde reina la abundancia y no hay preocupaciones, se encuentra muy bien representada en una serie de fragmentos de comedia de autores áticos del último tercio del siglo V a.C., entre los años 437 y 400, ligeramente anteriores o contemporáneos de Aristófanes, que Ateneo de Náucratis (s. II d.C.) reúne en una sección bastante amplia de su obra Deipnosofistas (VI 267e-270a²), introduciéndolos en ella como ejemplos de "la vida en los tiempos antiguos", en los tiempos de Crono. Aunque los recoge en principio para ilustrar la ausencia de la esclavitud, sin embargo es tal la cantidad de referencias a la comida y la bebida, que los estudiosos han dado a estos fragmentos la denominación genérica de "utopía gastronómica", lo que E. Degani describe como la "versión plebeya de la aristocrática Edad de Oro".

Un punto en común de estos fragmentos es el alejamiento geográfico o temporal de la Atenas contemporánea, lo que se explica muy bien por la compleja situación histórica por la que atravesaba la ciudad: entre los años 431 y 404 tuvo lugar la guerra del Peloponeso (con el breve intervalo de la Paz de Nicias, del 421 al 414), que enfrentó a atenienses y espartanos, junto con sus respectivos aliados, y acabó con la derrota de Atenas. A lo largo de la guerra el territorio del Ática fue objeto de varias invasiones, que obligaron a la población del campo a trasladarse al interior de las murallas, con todos los problemas derivados del hacinamiento (escasez de recursos, enfermedades, etc.). Por ello no resulta extraño que en la mayor parte de los fragmentos encontremos reflejada una utopía de tipo escapista, que intenta dar la espalda a una realidad desagradable, pero sin abandonar por ello la crítica a la situación política y social.

Estos lugares de felicidad completa, en sus diversas representaciones, se sitúan unas veces en un tiempo pasado, irremediablemente perdido, la edad de Crono (más o menos equivalente a la Edad de Oro), como es el caso de los fragmentos pertenecientes a Los compañeros de Pluto de Cratino y a

¹ De hecho, los estudiosos no se ponen de acuerdo sobre si se puede hablar propiamente de utopía al estudiar la Antigüedad. Algunos hablan de preutopía, con la utilización de motivos de carácter utópico, pero no en el mismo plano que en la literatura utópica que surgirá a partir de la obra de Tomás Moro.

² El pasaje completo en el que se insertan los fragmentos se encuentra recogido en la hoja adjunta [ao final desta comunicação], en traducción de la Dra. Lucía Rodríguez-Noriega Guillén (2006). La referencia PCG corresponde a Poetae Comici Graeci, a cargo de Rudolf Kassel y Colin Austin (1983-2001), que han editado y comentado los fragmentos de los comediógrafos griegos.

203

lA UTOPíA gASTRONóMICA EN lA COMEdIA gRIEgA ANTIgUA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Los anfictiones de Teleclides. El mito de la vida feliz bajo Crono se encuentra, de formas más o menos complejas, en todas las culturas primitivas y puede considerarse la primera manifestación, todavía elemental, de reflexión sobre la precariedad de la existencia, al estar implícita en el mito, junto al recuerdo de la felicidad primordial, la conciencia de una caída del hombre. Tanto en Súmer como en Egipto o en la tradición judeo-cristiana se encuentra esta idea de un paraíso terrestre que existió en un tiempo anterior al de la historia, un lugar bendito donde la proximidad benéfica del dios se traducía en la paz y la abundancia. Si bien en las tradiciones populares este motivo debía de existir con anterioridad, en el mundo griego no alcanza forma poética hasta el mito de las cinco razas de hombres, recogido por Hesíodo en Los trabajos y los días (vv. 106-201). El reinado de Crono coincide con la primera de ellas, la raza de oro (vv. 108-128), cuando los hombres "vivían como dioses" y llevaban una existencia pacífica y sin preocupaciones, sin necesidad de luchar por la supervivencia, porque la tierra les daba sus dones generosamente; no envejecían, sino que la muerte era para ellos algo parecido al sueño.

En otros casos la vida utópica se presenta como algo que se proyecta hacia el futuro, como sucede en los fragmentos de Las fieras de Crates. En esta obra los animales aparecen dotados de inteligencia y habla y su vida social se correspondía con el modelo del estado perfecto de naturaleza. Con ellos se introduce un elemento nuevo, de claro origen filosófico, el vegetarianismo. Aunque no lo podemos saber con seguridad, quizá en los fragmentos recogidos por Ateneo un representante de las fieras prometía una vida extraordinaria si los hombres renunciaban a la carne.

El alejamiento es geográfico en el caso de Los persas de Ferécrates y Los turiopersas de Metágenes, comedias en las que la acción se transporta a lugares famosos por su género de vida lujoso, Persia en el primer caso y una combinación de Persia y las colonias occidentales en el segundo. Para los atenienses de la época la Magna Grecia (donde estaba situada la ciudad de Turios, construida donde anteriormente estuvo Síbaris) y Sicilia representaban el paradigma del lujo y la opulencia, especialmente en el terreno gastronómico: las mesas siracusanas eran famosas por la abundancia y refinamiento de los platos que en ellas se servían y los primeros cocineros profesionales y los primeros autores de recetarios procedían de Sicilia. En cuanto a Persia, ya desde Heródoto era célebre por la riqueza de sus habitantes y la proverbial relajación de sus costumbres. Lo que hace Ferécrates es aprovechar el tópico del lujo oriental para situar allí su país de Jauja, coloreando de exotismo sus imágenes. Hay que señalar además que lo que hace este comediógrafo es introducir un motivo que será muy utilizado sobre todo en la novela utópica, el de la identificación de esta región maravillosa con pueblos bárbaros, aunque, a diferencia de lo que sucederá más tarde con Yambulo o Evémero, en este caso se trata de un pueblo bien conocido con el que los griegos tenían ya una larga relación.

Un caso extremo de alejamiento físico de la realidad lo representan Los mineros de Ferécrates, comedia en la que la acción se traslada a un paraje familiar para los habitantes del Ática, las minas de plata de Laurion, un

204

MARíA jOSé gARCíA SOlER

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

lugar terrible donde los mineros trabajaban en unas condiciones de vida inhumanas. Por efecto de la magia cómica se transforman completamente adoptando la imagen de un Más Allá en el que los muertos pasan el tiempo rodeados de todos los elementos positivos de los que carece la realidad. A través de los túneles de la mina, un personaje desciende hasta el mundo infernal y se encuentra en un paraíso de felicidad, con abundancia de comida, muchachas que alegran el simposio y la duplicación mágica de la bebida.

La idea de colocar el país de Jauja en el Tártaro es original, porque en la concepción de la muerte de los griegos no parece existir, al menos en origen, la idea de una posible vida feliz en el Más Allá: la estancia en el Elíseo o en la Isla de los Bienaventurados se consideraba un privilegio concedido sólo a unos pocos escogidos en virtud de su parentesco con los dioses; en cambio, en el canto XI de la Odisea el Hades es un lugar por el que vagan las almas como sombras sin memoria. Sin embargo, la imagen del banquete en el reino de los muertos no es del todo desconocida y tenemos numerosos ejemplos literarios y en las artes figurativas, donde se observa esta transposición de una práctica social a la vida ultraterrena. Probablemente también el fragmento de Las sirenas de Nicofonte iría en una línea similar al ambientar la acción en el mundo de estos personajes míticos, que estaban asociados con el reino de los muertos.

Otro elemento común a estas representaciones es la existencia de una serie de rasgos tradicionalmente asociados a la Edad de Oro y a las Islas de los Bienaventurados: una naturaleza que generosa y espontáneamente ofrece toda clase de bienes, el automatismo de la comida, la ausencia de trabajo y una vida en general fácil y feliz. La utopía cómica se ve fuertemente influenciada por las tradiciones anteriores, en particular por la descripción de la raza de Oro que aparece en Los trabajos y los días de Hesíodo. Sin embargo, los comediógrafos áticos introducen una forma distinta de ver el mundo, sustituyendo la visión rural de este poeta por una nueva visión "democrática" y urbana. Lo que les interesa no es ya que la tierra ofrezca espontáneamente sus frutos, sino que los bienes se produzcan por sí mismos, los objetos funcionen sin necesidad de que alguien los maneje e incluso que los alimentos se preparen y cocinen por sí mismos. Teleclides en Los anfictiones y Ferécrates en Los mineros dicen que los bocados entraban por sí mismos en las gargantas de los comensales, en el caso del primero tordos asados con tortitas de leche y en el de Ferécrates pasteles de queso; este mismo autor, en Los persas, habla también de ríos de caldo negro que fluyen espontáneamente arrastrando en su corriente panes y pasteles. En Las fieras de Crates son los objetos los que actúan por sí solos con una orden, haciendo que sea innecesario que exista la esclavitud. Aunque también el pan de cebada fermentará sólo y el pescado se asará y condimentará sin necesidad de intervención humana, sin embargo el comediógrafo añade la referencia a otras comodidades de la vida, como tener agua corriente caliente en casa, como en los balnearios, para poder darse un baño a domicilio. Los dos aspectos representan la realización máxima de los deseos de la pobre clase plebeya ateniense, angustiada por la perenne escasez de alimento y por una austeridad similar en su vivienda y en el conforto diario.

205

lA UTOPíA gASTRONóMICA EN lA COMEdIA gRIEgA ANTIgUA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

El motivo del automatismo de los objetos tiene antecedentes literarios desde Homero, que lo asocia a obras realizadas por Hefesto. Así, cuenta que las puertas del Olimpo se abrían y se cerraban solas (Ilíada V 749 y VIII 393) y que había creado unos trípodes que acudían a la sala de banquete de los dioses cuando se los necesitaba, retirándose después (ibid., XVIII 375-377), y unas jóvenes de oro que hacían de ayudantes, "a muchachas vivientes semejantes" (ibid., XVIII 417-420). Sin embargo, en la comedia representa más que un mero motivo literario, que, por lo demás, debió de adquirir un carácter proverbial. Refleja, en cambio, el desprecio por el trabajo manual que se deriva de la valoración restrictiva del trabajo (al que están obligados sólo los pobres), entendido sólo como medio para adquirir riquezas y no como instrumento para edificar una sociedad mejor o para el perfeccionamiento personal. Así, en lugar de postular un mundo éticamente más justo, sin los lujos superfluos de los ricos y las necesidades de los pobres, la felicidad es representada en su aspecto más material, como aspiración del hombre al bienestar económico y la satisfacción gastronómica. De hecho, la hipótesis de la "vida automática" corresponde al ideal ampliamente difundido en época clásica de ocio y de inactividad económica.

A. Giannini (1967) hace notar que los comediógrafos más sensibles a los temas utópico-fantásticos no son precisamente los empeñados en la comedia así llamada "política", como Aristófanes, Eupolis o el mismo Cratino, sino autores como Crates o Ferécrates, que la tradición presentaba como alejados de estos intereses. Sin embargo, a pesar de las diferencias entre unos y otros, su tipo de comedia no es menos político, en el sentido de que refleja una bien precisa realidad histórica. Y no debe pasarse por alto el hecho de que en la comedia del siglo IV el tema utópico ya no existe, porque las circunstancias han cambiado tras la caída de Atenas, y se traslada hacia el relato político del tipo de la Merópide de Teopompo o la Atlántida platónica o hacia la literatura etnográfica sobre el modelo de Éforo.

Como conclusión podemos decir que, si en los primeros reflejos utópicos de la literatura griega se insiste en la generosidad de la tierra y la paz entre los individuos, en la comedia el interés se traslada a la ausencia de trabajo penoso (o más bien hacia un ocio perpetuo) y a los aspectos gastronómicos. Se mantienen las características tradicionales de los ambientes utópicos, pero el puesto central lo ocupan los aspectos materiales, principalmente la comida, con la presentación de grandes banquetes que se celebran en tiempos y lugares inalcanzables o proverbiales por su riqueza, nunca en la Atenas contemporánea. La visión de una vida perfecta, una "utopía de los pobres", tiene el doble efecto de ofrecer una vía de escape de la dura realidad contemporánea al mismo tiempo que supone una crítica contra el sistema que ha llevado a esa situación.

Bibliografia

ATENEO DE NÁUCRATES. Depnosofistas. Trad. de Lucía Rodríguez-Noriega Guillén. Madrid: Editorial Gredos, 2006.

206

MARíA jOSé gARCíA SOlER

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

BALDRY, H. C. "The Idler's Paradise in Attic Comedy". In: G&R 22, 1953, p. 49-60.

BERTELLI. L. "L'utopia". In: CAMBIANO, G; CANFORA, L.; LANZA, D. (eds.). Lo spazio letterario della Grecia antica I1, La produzione e circolazione del testo. La polis. Roma: Salerno, 1992, p. 493-524.

BERTELLI. L. "I sogni della fame: dal mito all'utopia gastronomica". In: LONGO, O.; SCARPI, P. (eds.). Homo edens. Regimi, miti e pratiche dell'alimentazione nella civiltà del Mediterraneo. Actas del Coloquio interuniversitario "Homo edens". Verona 13-15 abril 1987. Milán, 1989, p. 103-4.

CECCARELLI. P. "L'Athènes de Périclès: un "pays de cocagne"? L'idéologie démocratique et l'autómatos bíos dans la comédie ancienne". In: QUCC 54, 1996, p. 109-159.

FARIOLI, M. Mundus alter: Utopie e distopie nella commedia greca antica. Milán: Vita e Pensiero, 2001.

FAUTH, W. "Kulinarisches und Utopisches in der griechischen Komödie". In: WS 7 (n.F.), 1973, p. 39-62.

FERGUSON, J. Utopias in the classical world. London: Thames and Hudson,1975.

GHIDINI TORTORELLI, M. "Miti e utopie nella Grecia antica". In: Annali dell'Istituto Italiano per gli Studi Storici 5, 1976-78, p. 1-126.

GHIDINI TORTORELLI, M. "Modelli utopici nel pensiero greco". In: MATTEUCCI, N. (ed.). L'utopia e le sue forme. Bolonia: Il Mulino, 1982, p. 59-71.

GIANNINI, A. "Mito e utopia nella letteratura greca prima di Platone". In: RIL 101, 1967, p. 101-132.

KASSEL, Rudolf; AUSTIN, Colin. Poetae Comici Graeci. Berlin-New York, 1983-2001.

LANGERBECK, H. "Die Vorstellung vom Schlaraffenland in der alten attischen Komödie". In: Zeitschrift für Volkskunde 59, 1963, p. 203-4.

LENS TUERO, J.; CAMPOS DAROCA, J. Utopías del mundo antiguo: Antología de textos. Madrid: Alianza Editorial, 2000.

LÓPEZ SECO, J. O. "La muerte y la utopía de las Islas de los Bienaventurados en el imaginario griego". In: Fortunatae 6, 1994, p. 43-70.

MELERO, Antonio. "La utopía cómica o los límites de la democracia". In: ESTEFANÍA, D.; DOMÍNGUEZ, M.; AMADO, M. T. Literatura, política y sociedad en el mundo grecolatino: Antecedentes y relaciones con la actualidad. Madrid-Santiago de Compostela: Ediciones Clásicas, 2001, p. 7-25.

PELLEGRINO, M. Utopie e immagini gastronomiche nei frammenti dell'Archaia. Bologna: Pàtron Editore, 2000.

REHRENBÖCK, G. "Das Schlaraffenland im Tartaros. Zur Thematik der Mettales des Komikers Pherekrates". In: WHB 29, 1987, p. 14-25.

207

lA UTOPíA gASTRONóMICA EN lA COMEdIA gRIEgA ANTIgUA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

RÖSLER, W.; ZIMMERMANN, B. Carnevale e utopia nella Grecia antica. Bari: Levante Editori, 1991.

AneXO

Ateneo de náucratis, El banquete de los eruditos Vi 267e-270a(Trad. de Lucía Rodríguez-Noriega Guillén, Madrid: Editorial Gredos, 2006)

La utopía gastronômica en los cómicos

Los poetas de la Comedia antigua, cuando tratam de la vida en los tiempos primitivos, exponen que entonces no había necesidad de esclavos. Cratino, en Los companeros de Pluto [PCG IV, fr. 176]:

En efecto, su rey era Crono en la antiguedad,cuando jugaban a las tabas con los panes y en las palestras se pagabacon panes de cebada eginéticos madurados en el árbol y florecientes en mendrugos.

Crates, a su vez, en Las fieras [PCG IV, fr. 16]:

A - Entonces, nadie tendrá esclavo ni esclava, sino que se servirá a si mismo aunque sea un anciano?B - En absoluto, pues yo haré que todos los objetos caminen.A - ¿Qué provecho les reportará eso, entonces? B - Acudirá alli cada pieza del mobiliario, cuando llame a alguna: “¡Colócate aquí, mesa! ¡Si, tú, prepárate! ¡Amásate, saquito de harina! ¡Llénate, tázon! ¿Dónde está la copa? ¡Ve y lávate! ¡Sube, pan de cebada! La olla tiene que vomitar las acelgas.¡Pescado, camina!”. “Pero es que todavía no estoy cocido por el otro lado”. “¿Qué esperas para darte la vuelta, cubrirte de sal y untar te de aceite?”.

lnmediatamente después, el que toma la palabra replicándo le dice [PCG IV, fr. 17]:

Pues compáralo con esto. Que yo, al contrario, primero voy a llevar los baños calientes a los míos sobre columnas, como a lo largo de la casa de curación, desde el mar, de manera que manarán en la bañera de cada cual, y dirá al agua: “Deteneos”. Justo después vendrá una vasija de perfume por su propio pie, y lo mismo la esponja y las sandalias.

Mejor aún que estos versos, Teleclides, en Los anfictiones [PCG Vll, fr. 1]:

Así pues, os contaré desde el comienzo la vida que yo procuraba a los mortales. En primer lugar, la paz estaba sobre todos como agua sobre la mano.La tierra no producía miedo ni enfermedad, sino que espontáneamente habia lo necesario.Vino, en efecto, manaban todos los torrentes, y los panes de cebada rivalizaban con los de trigo

208

MARíA jOSé gARCíA SOlER

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

por las bocas de los hombres, suplicando que se los tragaran, si les gustaban los más blancos. Los peces, por su parte, iban a las casas, se asaban solos y servían sobre las mesas. Un río de caldo fluía junto a los lechos, haciendo rodar tajadas de carne calientes.Había alíi canales de salsas picantes para quienes las quisieran de manera que reinaba la abundancia para remojar el bocado y tragarlo blando.En pequeñas fuentes había pasteles de cebada espolvoreados con especias, y tordos asados con tortitas de leche entraban volando en la garganta. Al apretujarse las galletas en las mandíbulas se producia un gran clamor. Con trozos de matriz y golosinas jugaban los niños a las tabas, y los hombres eran entonces gruesos, y unos pedazos de gigantes.

¡Por Deméter os digo, compañeros! Si las cosas fueran ese modo, ¿qué necesidad tendríamos de sirvientes? Pero es que los antiguos nos instruían mediante sus poemas, acostumbrándonos a ser autosuficientes, al tiempo que nos regalaban con palabras. Yo, por mi parte dado que, en cuanto - dio la senãl el admirabilísimo Cratino con los versos antes citados, como con una lamparita, también sus sucesores los reelaboraron a imitación suya—, he utilizado el orden de los dramas según fueron representados. Y si no os resulto inoportuno (que por los cínicos no siento ni la más mínima preocupación), citaré también confome a dicho orden lo que dijeron los restantes poetas. Uno de ellos es el muy aticista Ferécrates, que en Los mineros dice [PCG VII, fr. 113]:

A—Todo aquello estaba amalgamado con riqueza, y elaborado con todo tipo de cosas buenas de todas las maneras posibles. Rios llenos de gachas y caldo negrofluían murmurando por los desfiladeros con las cucharas y todo, y trozos de pastel de queso, de manera que el bocado corriese complaciente, espontaneo y aceitoso dentro de las gargantas de los muertos. Morcones y siseantes trozos de morcillase desplegaban a la orilla de los rios, haciendo las veces de molusco.Y había filetes de pescado seco asados, preparados con toda clase de salsas;al lado, costillares y muslos enteros tiernísimos sobre fuentecillas, y menudos bien hervidosque exhalaban un agradabilísimo aroma; tripas de vaca y exquisitas costillas de lechón doradasestaban al alcance de la mano, colocadas sobre pasteles de flor de harina.Y había gachas bien lavadas con leche en jofainas a modo de fuentes, y trozos de calostro cocido.B- ¡Ay de mi!, me vas a matar si continúas aqui entretenidacuando podrías hundirme tal cual en el Tártaro. A- ¿Qué dirá entonces, cuando te enteres de lo que queda? En efecto, tordos asados preparados para un guiso volaban alrededor de las bocas suplicando ser tragados, amontonados bajo ramas de mirto y anémonas. Y las manzanas, hermosas entre las hermosas a la vista, colgaban sobre nuestra cabeza, crecidas de la nada. Y unas muchachas envueltas en mantones de seda, sumamente jóvenes y con las rosas depiladas,

209

lA UTOPíA gASTRONóMICA EN lA COMEdIA gRIEgA ANTIgUA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

sacaban copas llenas de negro vino con olor a flores a través de un embudo para quienes quisieran beber. Y una y otra vez, si alguien comía o bebia de ello, al punto surgía el doble de nuevo desde el principio.

Y en Los persas dice [PCG VII, fr. 137]:

¿Qué necesidad tenemos ya de tus aradores, o de construtores de yugos, o de fabricantes de hoces, o de herreros, o de semilla, o de poner rodrigones?Pues espontáneamente por las encrucijadas ríos de caldo negro con aceitosos pasteles espolvoreados y panes de cebada aquileos fluiran desde las fuentes de Pluto, chorreando abundantemente, para que saquemos líquido de ellos. Y Zeus, haciendo que llueva vino ahumado sobre los tejados, hará las veces de bañero, y desde los techos derivarán canales de racimos de uvasentre pastelillos llenos de queso con puré caliente y papilla de lirios y anémonas. Los árboles de las montañas perderán un follaje de tripas asadas de cabrito, calamares tiernos y tordos hervidos.

¿Por qué habría de citar todavía, además de éstos, los versos de Los que fríen en la sartén del gracioso Aristófanes, pues todos estáis hartos de sus bufonadas? En cuanto mencione los de los Turiopersas de Metágenes, acabaré mil intervención, no sin antes recitar, para gran regocijo, los de Nicofonte, en Las sirenas, obra en la que esta escrito lo siguiente [PCG VII, fr. 21]:

¡Que nieve harina de cebada, llovizne panes y llueva puré! ¡Que el caldo haga rodar por los caminos trozos de carne!¡Que la galleta exija que se la coman!

Pues bien, lo que dice Metágenes es esto [PCG VII, fr. 6]:

El río Cratis nos baja enormes panes de cebada que se han amasado solos,mientras que el otro empuja olas de pasteles de queso, de trozos de carne, y de rayas hervidas que se arremolinan allí mismo. Estos pequeños arroyuelos de aquí manan desde aquel otro lado calamares asados, pagros y langostas, y desde acá, morcillas y recortes de carne; aquí morralla, y allá, además, fritos. Desde arriba, filetes de pescado seco cocidos por sí solos se precipitan a la boca, y otros, junto a los propios dos pies. Y pasteles de flor de harina nadan en circulo a nuestro alrededor.

Sé, por otro lado, que tanto los Turiopersas como el drama de Nicofonte están sin estrenar, motivo por el que se han meneionado en último lugar”.

La antiutopía de las Amazonas en el Hipólito de EurípidesHernán MartignoneUniversidad de Buenos Aires (Argentina)

Resumo

Con apenas cuatro menciones en la tragedia Hipólito de Eurípides, las Amazonas tienen una singular importancia en la construcción tanto de la trama de la obra cuanto del personaje de Hipólito, hijo de una Amazona y del héroe ateniense por antonomasia (Teseo). Nuestra lectura, partiendo del análisis de la pieza en lengua original, propone un cruce entre las menciones explícitas a las doncellas guerreras (vv. 10, 307, 351, 581) y las alusiones que se realizan en el texto (vv. 3, 1082) para profundizar en una interpretación global en clave utópica, tema de nuestro doctorado.

Creemos que hay que leer muchas de las actitudes de Hipólito teniendo en cuenta el bagaje que recibió de su madre y el lugar que ocupa el personaje en el desarrollo dramático como producto de dos sociedades radicalmente opuestas: la ateniense y la amazónica. Los atenienses se ven a sí mismos como la civilización por excelencia, y se representan como tal, mientras que las Amazonas son para ellos la alteridad, lo extranjero, lo bárbaro por definición, y las representan consecuentemente.

Ginecocracia y matriarcado, malas palabras para los griegos, están encarnadas en esas belicosas mujeres que se servían de los hombres solamente para reproducirse y que conservaban a las hembras para entrenarlas en la vida guerrera. Veremos, pues, cómo influye este pueblo en la acción de la tragedia y en el carácter de los personajes, además de analizar la figura de Ártemis, central en el Hipólito, como diosa venerada por las Amazonas.

Palavras-chave

Hipólito, Eurípides, antiutopía, civilización, barbarie.

Hernán Martignone é Licenciado em Letras (voltado para Línguas Clássicas) pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina. É bolsista de doutorado na mesma Universidade e sua tese trata de Deseo y realidad en Hipólito de Eurípides: una lectura en clave utópica. Além disso, ensina Grego Clássico nas Faculdades de Letras e Direito (UBA). Tem dado conferências de divulgação sobre o mundo clássico grego e foi colaborador (2001-2007) na revista Argos de la Asociación Argentina de Estudios Clásicos (AADEC). Participou de diversos congressos nacionais e internacionais de Línguas Clássicas e publicou trabalhos sobre a tragédia Hipólito, bem como resenhas sobre Aristóteles, Sófocles e Hesíodo.

212

hERNáN MARTIgNONE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

En el discurso fúnebre de Pericles, que plantea una verdadera utopía realizada y presente para la sociedad ateniense más allá de los sufrimientos a causa de la guerra del Peloponeso, Tucídides (II, 35-

46) transmite a sus contemporáneos y a la posteridad los valores de la pólis que supieron conseguir tanto quienes la habitan en el siglo V cuanto los que la hicieron libre en el pasado. Ubicada dramáticamente en el año 431 a. C. (tres años antes de la producción del Hipólito), la oración fúnebre toca uno de los tópicos relacionados con nuestro análisis de esta tragedia, el de la autoctonía de los atenienses¹, pero no menciona de hecho a las amazonas, que tendrán una presencia importante en discursos fúnebres posteriores de, por ejemplo, Lisias y Demóstenes. Hay, sin embargo, una frase que puede servir de disparador para abordar la representación de la sociedad amazónica: aquella que expresa el consejo de que la máxima gloria para las mujeres de la ciudad es que entre los hombres se hable de ellas, bien o mal, lo menos posible (II, 45, 2, 3-5). Las amazonas, por su naturaleza tan particular y extraordinaria de guerreras célibes, se presentarían entonces como generadoras constantes, por parte de los varones, de discursos de carácter negativo, de mitos terribles, y por lo tanto como ejemplo de lo que no corresponde hacer, como antimodelo femenino. La guerra es cosa de hombres, como le recuerda Héctor a Andrómaca en la Ilíada (6. 490-3), mientras que el matrimonio y la maternidad constituyen el destino de las mujeres².

Ya en Homero tenemos la primera referencia literaria a las amazonas, presentadas en la Ilíada mediante el ambiguo epíteto a}ntia/neirai en dos ocasiones (3.189 y 6.186). Chantraine (s. v. a!nta, 2) aclara la doble naturaleza de la palabra, compuesta de a}nti y a}nh/r, señalando que puede ser entendida como “qui vaut un homme” (y de ahí su frecuente traducción como “varoniles”) o “ennemie des hommes”³. Para el caso de estas doncellas guerreras, dentro de nuestro análisis, ambas interpretaciones son igualmente válidas, ya que se refuerza el sentido de mujeres con características masculinas pero a la vez opuestas a los hombres, tal como serán presentadas en general, sobre todo en función de su rechazo al matrimonio patriarcal4. Así, trataremos de establecer las relaciones pertinentes entre los rasgos distintivos del pueblo de las amazonas y ciertos aspectos del Hipólito tales como la personalidad de Hipólito, la primacía de Ártemis en esa suerte de religión personal que practica el muchacho y la caracterización inicial de Fedra.

Según veremos, las costumbres que dan forma a la sociedad amazónica se presentan como contrapuestas a las de la sociedad ateniense (o griega en general), por medio de inversiones que conforman una antiutopía (o contrautopía o distopía) en el sentido de que proponen un mundo distinto al conocido aunque, y esencialmente, con características consideradas negativas por quienes las exponen. Frente a la utopía, que plantea una realidad mejor que la que conocemos, la antiutopía pretende por el contrario mostrar lo nefasto que sería un orden diferente del imperante5.

Antes de proceder al estudio propiamente dicho del Hipólito, sin embargo, cabe señalar la pertinencia de la aplicación de las categorías de

¹ Es decir, no haber nacido de un útero. Cf. Tucídides, II, 36.

² Este destino, impuesto por los hombres, está relacionado con el mito fundacional ateniense de Cécrope.

3 Como sostiene Iriarte (2002, p. 149), “De la androginia de estas vírgenes guerreras da cuenta el término a-mazós, que significa ‘sin pecho’, así como el calificativo homérico antiáneira, que puede evocar tanto su calidad de ‘hembras viriles’ como de ‘enemigas del hombre’”. Cf. también Tyrrell (2001 [1984], p. 168-73).

4 O al matrimonio en general: Esquilo, en Suplicantes (v. 287), utiliza para calificarlas el adjetivo a@nandroj, “sin esposo”.

5 Cf. Trousson (1995, p. 35-9 y 54) y Baczko (2005, p. 88), quien afirma: “Las anti-utopías, al igual que las utopías, aportan en especial un valioso testimonio sobre las esperanzas, las angustias y las obsesiones de su propio tiempo”.

213

lA ANTIUTOPíA dE lAS AMAzONAS EN El Hipólito dE EURíPIdES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

análisis de “utopía” y sus derivados (como “antiutopía”) a los textos del mundo antiguo, pertinencia que sigue siendo discutida aún debido a que ese término fue acuñado por Tomás Moro recién en el Renacimiento para titular su obra y su empleo en relación con el mundo antiguo se tornaría, por eso, un anacronismo. Consideramos que dicha cuestión ha sido resuelta y justificada con solvencia por diversos autores, entre los que se destacan Ferguson (1975) y Trousson (1995 [1979], p. 17 y 55-70): el primero, con un señero ensayo que se enfoca en analizar los elementos utópicos en las obras griegas de Homero al helenismo; el segundo, situando el origen de la reflexión sobre la organización política en Grecia y comenzando precisamente por allí al historiar el género utópico6.

Amazonas del siglo V

Según dijimos, las amazonas se presentan desde Homero de manera ambigua, puesto el énfasis ya en su carácter viril, ya en su enemistad con los hombres. Diversos autores, glosados por Stewart (1995, p. 574-5), han creído descubrir que “the notion that Amazons express male anxieties about Athenian patriarchalism to be oversimplified” (Lefkowitz) y que “Herodotos exhibits no trace of hostility toward the Amazons” (Hartog, 2003), contradiciendo principalmente las interpretaciones impulsadas por Tyrrell, Vernant y los estructuralistas en general, quienes entienden que “the Greeks used matriarchy as a tool for conceptualizing, explaining, and validating the polis’s customs, institutions, and values by postulating their opposites and revealing them as absurd”. La postura del propio Stewart (1995, p. 574) apunta a quitarle al mito amazónico su carga de espejo que busca invertir las instituciones y los valores de la sociedad ateniense ya que para él, siguiendo a Lefkowitz, “the myths are centuries older than the Athenian ideal of sex segregation”. Su hipótesis (interesante aunque muy difícil de probar, como él mismo reconoce) es que la importancia atribuida en el siglo V a las amazonas se relaciona con la ley de ciudadanía propuesta por Pericles en 451/450, que el autor liga con la inmigración masiva a Atenas después de las guerras médicas: así las amazonas, que aparecen representadas en el pórtico del ágora y en una gran cantidad de vasos durante el siglo V, expresarían el miedo de los varones atenienses ante la llegada de muchachas extranjeras a la ciudad y ante la imposibilidad de casar a sus hijas con muchachos atenienses, debido a la escasez de ellos a causa de la guerra (Stewart, 1995, p. 589).

Nos interesa trabajar aquí, dado que el Hipólito fue producido en 428 a. C., con fuentes anteriores (próximas) y contemporáneas que sirvan para caracterizar a las amazonas y deducir de dicha caracterización los elementos que pudieron influir en la composición del drama euripideo que nos ocupa7. Esquilo, en primer lugar, realiza dos menciones breves pero significativas: en Suplicantes (v. 287), las describe como “comedoras de carne sin esposo” (“a}na/ndrouj kreobo/rouj”); en Prometeo (v. 416), como “doncellas intrépidas en el combate” (“πarqe/noi, μa/caj a@trestoi”). Ambos pasajes recalcan el rechazo al matrimonio (sobre el que nos detendremos especialmente)

6 Cf. también Pomeroy (1990, p. 135-40) y Carsana, Cioccolo y Schettino (2006, p. 9-10).

7 No obstante, como señala Tyrrell (2001, p. 90) al ubicar el mito en el contexto de la sociedad clásica ateniense, “los lineamientos generales del mito, sus temas y motivos quedaron establecidos durante el período clásico. Aunque, por ejemplo, el dominio de la esfera pública por las amazonas o su antipatía por los bebés varones pudieron ser diversamente imaginados, ambas situaciones coinciden con el mito y son suposiciones de la época clásica”.

214

hERNáN MARTIgNONE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

y su calidad de guerreras, rasgos fundamentales de estas mujeres en el mito. Pero sin duda la fuente primordial en el siglo V es Heródoto (y complementariamente Hipócrates, Sobre los aires, aguas y lugares 17)8, quien acomete (en Historias IV, 110-7) la descripción de los escitas poniéndolos en relación con las amazonas (y, solapadamente, con los griegos). En uno de los pasajes – no casualmente – más citados por la crítica, el historiador hace hablar a las amazonas, quienes dicen a los varones escitas lo siguiente (IV, 114, 10-7):

Nosotras no podríamos convivir con las mujeres de vuestro país, pues no tenemos las mismas costumbres que ellas. Nosotras manejamos arcos, lanzamos venablos y montamos a caballo, y no hemos aprendido las labores propias del sexo femenino. En cambio, las mujeres de vuestro país no llevan a cabo ninguna de las actividades que hemos enumerado, sino que se consagran a las tareas de su sexo y permanecen en su carros, sin salir a cazar ni a hacer ninguna otra cosa. Por lo tanto, no podríamos congeniar con ellas (traducción de Carlos Schrader, 2000).

Se ve aquí una fuerte inversión del papel de las mujeres en la sociedad tal como era concebida por los griegos (y los escitas de Heródoto)9, ya que se dedican a las tareas consideradas masculinas como la cacería y desarrollan muchas actividades en el exterior, mientras que desconocen las labores femeninas. Si Esquilo las presentaba, casi por definición, como célibes, Heródoto (y también Hipócrates) cuenta que las amazonas se casan, pero el tipo de matrimonio que contraen es prácticamente el opuesto exacto al de las mujeres griegas, de ahí que distintos críticos hablen de un rechazo al matrimonio patriarcal: es decir, o no se desposan (Esquilo) o lo hacen sin renunciar al tipo de vida masculino que las caracteriza (Heródoto, cf. Hartog, 2003, p. 214-5). Esta unión que se opone a los principios conyugales griegos feminiza, en definitiva, a los hombres (que ocuparán el lugar que correspondería a las mujeres en la concepción helena) y supone una serie de elementos de inversión que desarrolla Tyrrell (2001, p. 89-127) desde una posición interpretativa muy fuerte10. Estableciendo una comparación con la relación oriente-occidente, el autor afirma:

Por ejemplo, si suprimiésemos de la cultura japonesa todo lo occidental, quedaría mucho que es auténticamente japonés. Sin embargo, en el caso del mito amazónico, este proceso mostrará que, aparte del patriarcado ateniense, la amazona no tiene sustancia. El intento por separar el hecho de la fantasía falló porque, sin las inversiones, no queda nada (Tyrrell, 2001, p. 96).

Esas inversiones o polaridades tienen que ver, entonces, con el intercambio de papeles de hombres y mujeres en el seno del matrimonio, pero también con la relación interior/exterior (que incluye otras como timidez/valor y reposo/movimiento), con el tipo de armas utilizadas por amazonas y griegos, con el control del matrimonio y de la natalidad, con la religión (sus dioses son Ares, Cibeles y Ártemis) y con la ubicación de sus tierras (fuera de Grecia). Más allá de la vehemencia o de la prudencia con que se afirme la diferencia entre una civilización y otra, pocas dudas caben

8 Algunas fuentes tardías importantes son Apolodoro, Biblioteca, II, 5, 9; Estrabón, XI, 5, 1; Diodoro Sículo, III, 52 y ss. Para una lista completa de fuentes, véanse Tyrrell (2001, p. 13, n. 1) y PW I, 1754-71).

9 Aunque, como sugiere con mesura Iriarte (2002, p. 150), “Quizá sea exagerado afirmar que este extraño universo constituye una inversión total de la perspectiva sociológica griega”.

10 Hartog (2003, p. 212) señala que en Estrabón y Diodoro “el esquema de inversión se aplica fácilmente” entre amazonas y griegos, mientras que en Heródoto, al haber tres términos (amazonas, escitas y griegos), “el esquema de inversión tiene pocas posibilidades de aplicarse tal cual: lo que no excluye que en ciertas secuencias el relato comprenda elementos de inversión”.

215

lA ANTIUTOPíA dE lAS AMAzONAS EN El Hipólito dE EURíPIdES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

de que las amazonas invierten en mayor o menor grado los principios que rigen el orden del mundo griego.

el hijo de la amazona

La tragedia Hipólito de Eurípides presenta como personajes masculinos centrales a dos hombres fuertemente relacionados con el mito de las mujeres guerreras: Teseo, héroe ateniense por antonomasia y vencedor de amazonas, e Hipólito, el hijo que tuvo con una de ellas antes de casarse con Fedra (su esposa y madre de sus otros hijos). El conflicto trágico de la obra se desencadena porque Fedra se enamora de Hipólito, caracterizado como joven casto y adorador de la diosa Ártemis, y durante una ausencia de Teseo del hogar la nodriza de Fedra le revela al muchacho el amor de su madrastra. Él se niega, por supuesto, a ceder ante la esposa de su padre, y ella termina suicidándose y dejando escrita en una tablilla la mentira de que Hipólito la ha violado. Teseo, al leerla, condena a su hijo al destierro y lo maldice con una de las plegarias que su padre Poseidón le había concedido, de seguro cumplimiento. Hipólito muere, cuando se marcha exiliado, a causa de la caída de su carro al espantarse los caballos en el momento en que sale del mar un monstruoso toro enviado por el dios del mar.

Cuatro veces (vv. 10, 307, 351, 581) aparece mencionada la palabra 'Amazon en la obra, y en las cuatro oportunidades esa mención pone en relación a la amazona con Hipólito, la señala como su madre, y ese énfasis, como indica Grube (1961, p. 184), hace hincapié en la ilegitimidad de Hipólito11. Además, el hecho de que no se dé el nombre específico de la amazona y se la mencione sólo por la denominación de su pueblo apunta precisamente a reforzar la impronta bárbara y amazónica de esa mujer, como parece sugerir Barrett (1966, p. 157) en su comentario12. Cuatro veces en 1466 versos pueden parecer pocas, pero resultan fundamentales. Así como también la cuestión de la bastardía de Hipólito es en ocasiones soslayada por tener apenas tres apariciones en la tragedia el término no/qoj (“bastardo”, vv. 309, 962 y 1083; cf. Barrett, 1966, p. 363), hay que destacar que en dos ocasiones (vv. 307 y 309; vv. 1082 y 1083, en una invocación de Hipólito a su madre sin usar la palabra 'Amazon), la condición de bastardo y la madre amazona se hallan estrechamente vinculadas tanto por la cercanía en el plano textual cuanto por una razón de sentido profundo.

De acuerdo con la ley de ciudadanía propuesta por Pericles en 451/450 a. C., se tenía por bastardo a todo aquel que hubiera nacido de padre ciudadano pero de madre extranjera (no ateniense). Si bien Fedra es cretense, sus hijos con Teseo son presentados en la obra como legítimos mientras que Hipólito es tenido por bastardo. Puede pensarse que influye aquí el carácter amazónico de su madre – bárbara de bárbaras y por ende representante de la otredad más absoluta para los griegos – para considerar a Hipólito un bastardo y no a los otros hijos de Teseo. Planteado en términos de Ogden (1996, p. 185), el mito de las amazonas “encapsulates a vision of a terrible topsy-turvy world without legitimacy, but at the same time distances it strongly from the world of contemporary Athens, and supports the system of legitimacy” (cf. Iriarte, 2002, p. 131).

11 El énfasis está puesto en la mención de la madre antes que en el patronímico.

12 Stewart (1995, p. 590), cita los versos 306-10 del Hipólito con errores en el número de líneas y en una traducción cuyo origen no especifica, en la que aparece el nombre Hipólita como el de la madre de Hipólito, algo sin ningún tipo de sustento en los manuscritos conservados de la tragedia.

216

hERNáN MARTIgNONE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

He is a freak

El bagaje – por así decir – cultural heredado por Hipólito de su madre ha sido subrayado en diversas ocasiones13. Como señala Winnington-Ingram (1958, p. 176), “Hippolytus is the son of an Amazon (a fact emphasized at salient points in the play); and the poet intends, as has often been suggested, to indicate that it is from his mother that he has inherited his peculiar temperament”. Claramente, Hipólito es un freak, tal como lo define Lucas (1946, p. 68), “because he has no roots in the experience of ancient Greece”, porque es el hijo del héroe ateniense civilizador por excelencia y de una mujer que es exactamente lo contrario de lo que se espera de una griega: una suerte de oxímoron andante, un griego amazónico (y bastardo). El propio Lucas (1946, p. 67), entrando en el debate de si puede leerse un trasfondo órfico en el Hipólito (sobre todo a partir del pasaje de los vv. 952-4), sostiene que las dos características salientes de Hipólito son “his intimacy with Artemis and his passionate devotion to the ideal of chastity”, dos rasgos que no se encuentran en los fragmentos órficos conservados. Lo que no elabora (ni menciona) Lucas es que el culto de Ártemis (junto con el de Ares y el de Cibeles) está íntimamente ligado a la religión de las amazonas, como ha señalado Tyrrell (2001, p. 163) en su fundamental ensayo Las amazonas. Un estudio de los mitos atenienses.

Desde ese lugar podría explicarse la afición de Hipólito por esta deidad, además de que su protección le corresponde, en el culto griego, por ser un efebo, un muchacho en tránsito de la pubertad a la madurez14. Al elegir una vida apartada, que transcurre mayoritariamente cazando en los bosques (vv. 52 y 109) o ejercitando con caballos (vv. 111-2), y al optar por el rechazo del matrimonio (v. 14) y de las responsabilidades de un varón adulto (v. 1017), Hipólito decide en gran medida seguir los pasos de su madre amazona y de su venerada diosa virginal y cazadora15. A la vez, quizás el apartarse de la sociedad en la que debería insertarse tenga que ver también con un sentimiento de vergüenza respecto de su madre, como propone Grube (1961, p. 184-5), o – por qué no – de rencor hacia ella si tenemos en cuenta que, entre las amazonas, era costumbre deshacerse de los hijos varones, ya entregándolos a sus supuestos padres, ya asesinándolos16. Algo de eso podría verse como la causa también de la misoginia de Hipólito, quien además sería rechazado por las amazonas a causa de su castidad, dado que ellas se servían básicamente del hombre “reducido al puro papel reproductor que la polis concede a sus mujeres”17. Bastardo para su padre y para su sociedad, varón para su madre y por lo tanto desechable: Hipólito ha de sentirse excluido de todo lugar que suponga para él una pertenencia y entonces da en frecuentar los bosques, en compañía de otros muchachos y de la invisible presencia de una divinidad que le recuerda, a la vez, que tampoco es un dios18.

Fedra como amazona

A continuación, y habiendo recorrido la construcción de Hipólito como personaje en función de las características de la sociedad amazónica

13 Grube (1961, p. 184-5), Mills (2002, p. 65 y 92-3) e Iriarte (2002, p. 160) entre otros.

14 Cf. Vernant, 1986, p. 21-31. Sobre las características de los efebos y su relación con las amazonas, véase Tyrrell, 2001, p. 140-62.

15 Aristóteles, en De gen. An. 767b 6, señalaba que “ciertamente el que no se parece a sus padres es ya, de alguna manera, un monstruo” (“kai\ ga\r o{ mh\ e}oikw\j toi~j goneu~sin h!dh tro/pon tina\ te/raj e}sti/n”). Ahora bien, parecerse demasiado a la madre, en una sociedad donde se esperaba que la mujer diera hijos lo más parecidos al padre posible (porque era la única forma de que el esposo estuviera seguro de que pertenecía a su linaje), es también indudablemente monstruoso.

16 Tyrrell (2001, p. 90) habla de una “antipatía por los bebés varones”. Cf. también Stewart, 1995, p. 579-80.

17 Cf. Iriarte, 2002, p. 149-50. Acerca de la utopía de un mundo sin mujeres planteada por Hipólito, véase Martignone, 2003, p. 194-202.

18 No obstante, no todo debe intentar justificarse a partir de esa filiación por vía materna. Así, no acordamos por ejemplo con la segunda parte de la afirmación de Mills (2002, p. 65) según la cual las amazonas conforman “a race of women known for their hostility to men and thus sexuality”, ya que su rechazo de los varones no les impide unirse con ellos para procrear, según hemos visto. Creemos que la actitud negadora de Hipólito en cuanto a la sexualidad (expresada sin vueltas en el comienzo de su célebre monólogo) tiene explicación en parte en su devoción a

217

lA ANTIUTOPíA dE lAS AMAzONAS EN El Hipólito dE EURíPIdES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

heredadas de su madre, veremos dos aspectos que han sido en general dejados de lado por los estudiosos en el análisis del Hipólito. En primer lugar, nos centraremos en la caracterización de Fedra como amazona, tal como la presenta Eurípides apenas aparece en escena. Quizás por estar rodeada sólo de mujeres (vv. 293-4), Fedra se siente en una comunidad femenina pura, sin hombres, lo que la lleva a actuar de manera extraña para los estándares, a sentir la posibilidad de liberarse (vv. 201-2). Poco después (vv. 208-11), expresa el deseo de estar en un espacio abierto, en un “prado frondoso”, algo que la crítica suele asociar “con el deseo que ésta siente por frecuentar los mismos lugares que Hipólito” (Miralles, 1986, p. 111, n. 28). No obstante, esa necesidad puede asociarse también con la libertad de movimiento de que gozaban las amazonas. Luego, la nodriza le llama la atención sobre lo inadecuado de sus palabras, a las que califica de “discurso montado (e!pocon) en la locura” (v. 214). Por medio de esa metáfora hípica se introduce en el texto otro elemento que es característico de las amazonas: los caballos. Fedra, después de expresar el anhelo de hallarse en la montaña y el bosque (dominio de Ártemis) cazando (otra actividad amazónica), invoca a la diosa cazadora (v. 228) para que le conceda poder estar domando caballos. Hay, en todo este pasaje, un fuerte componente erótico porque es claro que Fedra está pensando en Hipólito, y la idea de mujeres montando caballos se asocia con el acto sexual19. Al final del pasaje, Fedra volverá a sus cabales, pero ello no quita que se haya comportado como una mujer verdaderamente libre, dueña de sí (fuera de sí, fuera de su “ser mujer griega”): una verdadera amazona.

Fuera de lugar

Nos detendremos ahora en la ubicación espacial del reino de las amazonas, que constituye un verdadero “no lugar” (ou} to/poj) para el imaginario geográfico griego, en el sentido de que se encuentra fuera de los límites del mundo conocido (cf. Stewart, 1995, p. 578). Ogden (1996, p. 183-4) ha puntualizado muy bien una serie de cinco distanciamientos del mundo de las amazonas respecto de la Atenas contemporánea20. El primero de ellos, que nos interesa señalar aquí, es la distancia espacial: si en Homero se encontraban en Licia y en Frigia, a medida que se extendió el mundo conocido “las amazonas tuvieron que irse más lejos” porque “la inversión del cosmos (...) no es admitida en la patria” (Tyrrell, 2001, p. 115). Los límites del mundo habitado son, para Tyrrell (2001, p. 116), “literal y metafóricamente la frontera entre la civilización y el salvajismo”, un lugar poblado “por figuras subhumanas y suprahumanas”, que en Heródoto se expresa en la idea de que “Cuanto más remoto fuese un pueblo, más incivilizado sería”.

En el Hipólito, los límites del mundo (el Ponto y los espacios de Atlas) se mencionan en dos oportunidades (vv. 3 y 1053): la primera, para señalar el alcance del poder de Afrodita; la segunda, para indicar la extensión del odio de Teseo hacia su hijo, ya que se refiere al lugar al que quisiera enviarlo exiliado: fuera del espacio geográfico conocido. El Ponto

Ártemis y en parte –ahora sí en concordancia con Mills (2002, p. 65) – en que Hipólito se juzga superior al común de los mortales.

19 Aristófanes, en Lisístrata (vv. 676-9), establece una directa relación entre la mujer que cabalga, las relaciones sexuales y las amazonas (cf. Henderson, 1991, p. 165).

20 El autor habla de un distanciamiento espacial, de uno temporal, de uno lógico, de uno realizado a través de la oscuridad y de un distanciamiento basado en la incredulidad.

218

hERNáN MARTIgNONE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

(el Mar Negro) marca el límite oriental, la tierra de Cólquide, que es donde – según Esquilo – habitaban las amazonas (Prometeo, v. 415). Es decir que Teseo desea que Hipólito se vaya a la tierra de su madre en la que, según el mito, no sería muy bien tratado21.

conclusiones

Hemos querido mostrar en este trabajo cómo, fundada en una serie de inversiones, la antiutopía de las amazonas se erige como principio constructivo de diversos niveles de la trama y de los personajes del Hipólito de Eurípides, conformando uno de los múltiples aspectos que la utopía, en tanto forma de discurso y de pensamiento, toma en la obra. Así, además de la bastardía, el rechazo del matrimonio y el culto de Ártemis (centrales en la personalidad de Hipólito) pueden entenderse como herencia de su madre amazona, al tiempo que la caracterización inicial de Fedra como mujer desbocada y las menciones a los límites del mundo conocido apuntan también a ese trasfondo amazónico que puede leerse en esta tragedia.

En el contexto de una sociedad como la ateniense – basada en la legitimidad, la autoctonía y el dominio patriarcal –, ser hijo de una amazona es – por lo menos – problemático. Por eso, no parece desacertado afirmar, con Lucas (1946, p. 69), que “Hippolytus is the most pathologically abnormal character in Greek tragedy”.

Bibliografía citada

BACZKO, B. Los imaginarios sociales. Memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005 [1984].

BARRETT, W. Euripides’ Hippolytos (Edited with Introduction and Commentary by). Oxford: Clarendon Press, 1966.

CARSANA, Ch.; CIOCCOLO, S.; SCHETTINO, M. “Pensiero utopico e prassi politica nel mondo antico”. In: Utopia and Utopianism 1, p. 9-45, 2006.

FERGUSON, J. Utopias of the Classical World. Ithaca-New York: Cornell University Press, 1975.

GRUBE, G. The Drama of Euripides. London: Methuen & Co., 1961.

HARTOG, F. El espejo de Heródoto. Ensayo sobre la representación del otro. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003 [1980].

HENDERSON, J. The Maculate Muse. Obscene Language in Attic Comedy. New York-Oxford: Oxford University Press, 1991 [1975].

IRIARTE, A. De Amazonas a ciudadanos. Pretexto ginecocrático y patriarcado en la Grecia Antigua. Madrid: Akal, 2002.

LUCAS, D. “Hippolytus”. In: CQ 40: 3-4, p. 65-9, 1946.

MARTIGNONE, H. “Hipólito 616-650: gunh/ y oi#koj en conflicto”. In: Actas de las Segundas jornadas uruguayas de estudios clásicos. Montevideo: Universidad de la República, p. 194-202, 2003.

21 También le sugiere que vaya a la casa de alguien “que se complace en recibir extranjeros destructores de esposas y que cuidan mal la casa con ella” (vv. 1068-9), algo que sin duda podría encontrar en un lugar muy lejano, donde existieran tan bárbaras costumbres.

219

lA ANTIUTOPíA dE lAS AMAzONAS EN El Hipólito dE EURíPIdES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

MILLS, S. Euripides: Hippolytus. London: Duckworth, 2002.

MIRALLES, C. Eurípides. Hipólito (Texto, Introducción, Nueva Traducción y Notas de). Barcelona: Bosch, 1986.

OGDEN, D. Greek Bastardy in the Classical and Hellenistic Periods. Oxford: Clarendon Press, 1996.

POMEROY, S. Diosas, rameras, esposas y esclavas. Mujeres en la antigüedad clásica. Madrid: Akal, 1990 [1975].

STEWART, A. “Imag(in)ing the Other: Amazons and Ethnicity in Fifth-Century Athens”. In: Poetics Today 16: 4, p. 571-97, 1995.

TROUSSON, R. Historia de la literatura utópica. Viajes a países inexistentes. Barcelona: Península, 1995 [1979].

TYRRELL, W. Las amazonas. Un estudio de los mitos atenienses. España: Fondo de Cultura Económica, 2001 [1984].

VERNANT, J.-P. La muerte en los ojos. Figuras del Otro en la antigua Grecia. Barcelona: Gedisa, 1986.

WINNINGTON-INGRAM, R. “Hyppolitus: A Study in Causation”. In: Entretiens sur l’antiquité classique. Paris: Vandoeuvres-Genève, 1958.

A possível República de PlatãoCarolina Araújo Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)

Resumo

Este trabalho pretende apresentar a República de Platão como uma fonte antiga da tradição utópica, não só por sua proposta de fundar no discurso uma cidade justa, mas também de justificar argumentativamente a legitimidade desse gênero literário/filosófico a partir, principalmente, de considerações sobre a possibilidade de tal forma política. Serve-nos de fio condutor, então, o enfoque platônico do conceito de dýnamis (poder) e seu adjetivo cognato dýnaton (possível) sustentado a partir de dois eixos centrais:

i) O argumento de que o que se desenha com esse discurso fundador de cidades – que chamaremos, apesar do anacronismo, de utópico – é uma estrutura de poder político baseada no poder humano de evitar o erro pelo conhecimento. Se este não é um poder verdadeiramente infalível, isso não revoga a capacidade do discurso de revelar as conseqüências que adviriam dessa hipótese.

ii) O enunciado do texto de que cidade justa aí construída não existe, existiu ou existirá, mas que jaz como modelo para quem quiser tomá-la como referência para suas ações. Essa indicação revela uma lapidação do sentido ordinário de possível, que deixa de se referir à executabilidade prática de todo um sistema, passando a indicar um referencial propriamente metafísico que pode ser realizado em diferentes graus.

Na interseção dessas duas linhas investigativas encontra-se a definição do gênero da filosofia, entendida como o discurso que anseia pela isenção do erro mesmo ciente da sua impossibilidade. Nesse cenário, parece-nos razoável concluir que a República inaugura uma proposta discursiva de ação política definida como filosofia, que servirá de padrão para o gênero utópico que se desenvolverá tempos depois.

Palavras-chave

República, Platão, dýnamis, dýnaton.

Carolina Araújo é doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora adjunta do Departamento de Filosofia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica (PPGLM/UFRJ), além de pesquisadora do Programa de Estudos em Filosofia Antiga (PRAGMA/UFRJ). É autora de Da arte: uma leitura do Górgias de Platão (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008), tradutora, entre outros títulos, de Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica, de Russell Jacoby (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007).

222

CAROlINA ARAújO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O propósito deste texto é o de uma discussão sobre o gênero utópico do discurso a partir de uma fonte que, embora anacrônica, serviu de modelo para a própria constituição do gênero, a República

de Platão. Esse deslocamento temporal dispensa Platão de uma tradição constituída de problemas e respostas de um modo que nos interessa, ou melhor, se podemos dizer que Platão usa o gênero utópico, ele o faz segundo propósitos bem particulares¹, a saber, inserindo esse recurso no campo de investigação que ele inaugura e a que dá o nome de filosofia. Assim, nossa hipótese aqui é de que o gênero utópico não é um modelo para Platão, mas sim um recurso metodológico característico da filosofia e, se a história se encarregou de tornar esse método um modelo, talvez possamos contribuir para a discussão sobre o gênero com algumas lembranças sobre seu uso metodológico. Para fazermos isso, não nos dedicaremos aqui à forma propriamente dita dessa cidade justa, mas antes às referências que Sócrates faz à função desse tipo de discurso, no que lhe parece ser uma grande justificativa para o seu procedimento.

1. distopia, possibilidade e método:

Em uma breve apresentação do que caracteriza o gênero utópico da obra, chama-nos a atenção o modo como, já no primeiro livro, Sócrates levanta a hipótese de uma cidade composta apenas por homens bons (347d), onde as lutas seriam travadas para não se governar. Essa primeira menção a homens e cidades perfeitos é, no entanto, caracterizada pelo próprio Sócrates como uma conclusão precipitada, para a qual seria antes necessário definir o que é a justiça (354b). A insatisfação com as conclusões socráticas faz com que Gláucon abra o segundo livro demandando de Sócrates um elogio muito preciso à justiça, aquele que é capaz de dizer que ela é um bem em si e por suas conseqüências (357c). Porém Gláucon não se limita a uma questão, ele apresenta toda uma imagem argumentativa capaz de cortar pela raiz a possibilidade do tal elogio, uma imagem marcada pelo anel de Giges, um artefato que tem o poder tornar invisível aquele que o possui. Diante do controle sobre a visibilidade e a invisibilidade, Gláucon pode tratar do que seriam o homem totalmente (téleon – 360e) justo e o totalmente injusto: o primeiro, incapaz de tornar visível a sua justiça, e o segundo, capaz de tornar invisíveis todos os seus crimes. Adimanto, irmão de Gláucon, também intervém na formulação do desafio com uma outra imagem argumentativa, a dos deuses flexíveis, que não punem injustiças em troca de benefícios e que, no plano político, legitimam associações de homens que, estando em posição de impor castigos aos criminosos, ao invés disso repartem com eles os lucros de suas ações em troca desse mesmo tipo de benefício.

A sugestão dos irmãos sobre a grande felicidade dos injustos, marcada pelo plano da perfeição – divina, no caso de Adimanto, humana no caso de Gláucon – indica-nos a primeira das estratégias argumentativas platônicas para a sua argumentação: a da antecedência do que chamamos hoje de distopia para a exposição do que seria propriamente a sua forma utópica². Afinal, segue a essa imagem distópica a introdução de dois elementos

¹ O propósito do gênero utópico na República de Platão é questão amplamente debatida nos comentários que o século XX a ela teceu. Inaugurando uma das linhas interpretativas está a posição de Leo Strauss que a vê antes como um ataque irônico às utopias: “A República apresenta a mais ampla e profunda análise do idealismo político já feita (...) Ao fazer-nos ver que a cidade construída de acordo com esse requisito [o de satisfazer a mais alta necessidade do homem] não é possível, ele faz-nos ver os limites essenciais, a natureza, da cidade” (1964, p. 127, 138). A leitura de Strauss, por sua vez, é uma resposta perspicaz ao ataque de Popper à tradição utópica em geral e à República platônica em particular. Assim acusa Popper: “O político platônico compõe cidades, por amor à beleza. Aqui, porém, devo protestar. Não acredito que as vidas humanas possam tornar-se os meios de satisfazer o desejo de auto-expressão de um artista. Devemos antes exigir que cada homem receba o direito, se o desejar, de modelar ele próprio sua vida, enquanto isto não interferir demais com as dos outros. Por muito que eu possa simpatizar com o impulso artístico, sugiro que o artista busque expressar-se com outro material. A política, reclamo, deve sustentar princípios igualitários e individualistas; os sonhos de beleza devem submeter-se à necessidade de auxiliar os homens aflitos, os homens que sofrem injustiças, e à necessidade de construir instituições que sirvam a esses objetivos” (1974, v. 1. p. 181). Este artigo pretende se situar junto a uma série de análises que, discordando dos exageros cometidos por Popper, entendem que o texto não dá suporte à radical ironia defendida por Strauss, as referências a essas análises serão encontradas adiante.

223

A POSSívEl república dE PlATãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

bastante relevantes no diálogo. O primeiro deles é a questão da possibilidade do tal elogio da justiça nos moldes propostos pelos interlocutores. Diz Sócrates, na seqüência, que quanto mais ele acredita nesse discurso distópico, mais aumenta a sua aporia, de modo que salvar a justiça lhe parece ser impossível (dokô gár moi adýnatos eînai – 369b), porém, enquanto puder balbuciar (dynámenon phthéggesthai – 369c) não pode deixar de fazê-lo, sob pena de impiedade. Conclui, afinal, que é preciso resgatá-la do modo que puder (hópos dýnamai – 369c). Referências a essa limitada possibilidade de Sócrates serão recorrentes ao longo de todo o texto, indicando ser inerente ao elogio capaz de definir a justiça uma discussão sobre os limites de sua possibilidade.

O segundo elemento, que segue a essa colocação do problema da possibilidade, não é outro senão a apresentação do método em que se insere – e que justifica – a abordagem propriamente utópica da justiça: a dificuldade de se ver a justiça no homem é análoga à da leitura de um manuscrito em letras pequenas e pode ser superada pela leitura do mesmo texto em caracteres maiores, ou seja, pela sua observação em um âmbito maior, a cidade, isso porque se examinará a semelhança do maior com a forma do menor (tèn toû meízonos homoióteta en têi toû eláttonos idéai episkopoûntes – 369a). Fundar uma cidade no discurso, forma encontrada por Sócrates para responder a Gláucon e Adimanto, é um método investigativo que pretende: i) apresentar a justiça na cidade; ii) apresentar a justiça na alma; iii) a demonstrar a semelhança entre alma e cidade, para, ao fim, iv) definir o que é a justiça em si.

É assim que entendemos como, não só fundada, mas dotada de legislação e educação que a obedeça, a cidade totalmente boa (teleôs agathén – 427e) precisa ainda ser comparada à alma, pois é somente pela concordância de que tal forma está em cada um dos homens (eis héna hékaston tôn anthrópon íon tò eîdos toûto homologêtai – 434d), ou ainda, pela concordância de que é pela forma da justiça que há a semelhança entre cidade e alma (díkaois ára anèr dikaías póleos kat’ autò tò tês dikaiosýnes eîdos oudèn dioísei, all’ hómoios éstai – 435b), que se pode definir a justiça. O que Sócrates parece apontar aqui é que, apesar de seu procedimento ser o da comparação entre duas imagens da justiça, ele só é possível a partir de uma noção prévia do que é a justiça que se faz critério de comparação. Interessa notar que essa metodologia é apresentada pelo próprio Sócrates ao analisar o ato da leitura em 402b, ato esse que ele próprio usou como imagem de sua busca e que, mais adiante, descreve como sendo o reconhecimento das letras onde quer que elas apareçam, em suas imagens, combinações, sejam grandes ou pequenas, onde, para tanto, é sempre necessário um conhecimento prévio das próprias letras. Dada essa necessária anterioridade da forma em relação às imagens, o que nos surpreende é que Sócrates possa concluir em seu procedimento que, pela comparação (par’ állela skopoûntes – 435a) entre as duas imagens – a alma e a cidade –, possamos chegar à forma da justiça.

O método não causa confiança³, o que será causa de toda uma digressão sobre o discurso acerca das formas e sua relação com as imagens, que tem por ponto central duas questões: se essas imagens são possíveis

² Essa oposição entre a imagem distópica e a utopia que a responde, que é, como procuramos demonstrar, componente em nada irrelevante à estrutura argumentativa da obra, torna-se destituída de sentido na tradição interpretativa que considera irônica ou antiutópica a proposta política da República. Essa tradição acaba por se comprometer com uma leitura das alegações de Gláucon e Adimanto comprometida apenas com a questão da alma e não com a da política, como afirma um dos mais fiéis discípulos de Strauss: “Gláucon quer saber qual efeito a justiça e a injustiça, cada uma em si mesma, têm na alma; Adimanto lembra Sócrates que “em si mesma” significa que a consciência, à medida que depende da onisciência dos deuses e o consequente medo da punição, deve ser descontada. (...) A descoberta da cidade no caminho da descoberta da justiça é um tal deslocamento, e é o deslocamento perfeito porque a própria cidade oferece a Gláucon e Adimanto algo nobre que difere do bem que eles querem que seja encontrado na justiça. Torná-los, com Sócrates, co-fundadores da cidade tem o efeito de deslocar tanto o seu interesse quanto a sua questão” (Bernadete, 1992, p. 41, 44-45). Entender que o problema da política e de sua relação com a justiça é o horizonte da discussão desde o livro I, apontado claramente por Trasímaco em sua primeira definição, é comprometer-se com uma interpretação que distingue dois tipos de projeção de noções de justiça em cidades, um em que ela se torna um bem por suas consequências, outro em que ela pode ser boa em si mesma, além dessas consequências.

³ Alguns dos problemas dessa relação são apontados por Williams, no que ele considera ser uma confiança platônica na

224

CAROlINA ARAújO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e se, em sendo possíveis, elas são o melhor (hôs dunatà légetai, apistoît’ án, kaì ei hó ti málista génoito, hôs árist’ án eíe taûta - 450c). A segunda das perguntas não parece, principalmente a Adimanto (471d-e), pertinente ao que se expõe, mas a primeira delas, sobre a possibilidade dessa alma e dessa cidade (hos dýnaton kaì hêi dýnato – 471e), parece cair sobre a cabeça de Sócrates. Quanto a isso cabe uma nota: a questão da possibilidade se refere diretamente à relação entre o discurso e a ação, nos termos de Sócrates, lógos e érgon (473a), mas, indiretamente, à própria metodologia socrática que, partindo de imagens discursivas para se chegar à forma, torna o discurso critério para a ação, supondo uma anterioridade da forma a esse mesmo discurso. Ora, não apenas isso poderia ser arbitrário, o que faria de Sócrates um grande manipulador do discurso em favor de seus interesses, como isso poderia ser incompatível com a ação, o que transformaria o gênero utópico em algo estritamente inútil.

2. Paradigma

Em resposta a Adimanto, a alegação de Sócrates é de que, ao se descobrir o que é a justiça, não se exigirá que o homem justo seja totalmente a ela idêntico, mas que dela se aproxime e dela participe mais do que os outros (hó ti eggýtata autês ei kaì pleîsta tôn állon ekeínes metékhei – 472c). Mais uma vez a justiça é critério de comparação, só que agora não entre duas imagens, mas entre uma imagem e o seu próprio critério, o que a torna especificamente um paradigma, em outras palavras, aquilo para que se olha como referência para a semelhança e de onde, pela identificação dessa semelhança, se é obrigado a concordar acerca da semelhança de todo um lote (anankazómetha kaì perì hemôn autôn homologeîn, hòs àn ekeínois hó ti homoiótatos êi, ten ekeínois moîran homoiotáten héxein – 472d), ou seja, acerca de uma série de conseqüências que se arrolam dessa semelhança primeiramente identificada4. Essa função do paradigma, conclui Sócrates, dispensa a demonstração de como ele pode vir a ser (hín’ apodeíxomen hos dynatà taûta gígnesthai - 472d1-2), tal como as semelhanças identificadas entre duas coisas em comparação não se confundem com nenhuma dessas coisas.

Se entendemos então o paradigma como aquilo que articula entes possíveis e que dispensa a sua própria possibilidade, chama a atenção que Sócrates, na passagem, dê dois exemplos de paradigma: a justiça em si (autò te dikaiosýnen – 472c) e o homem totalmente justo (teléos díkaion – 472c). Se a justiça na alma humana, em sua versão discursiva, era uma imagem da justiça em si, surge agora um desdobramento que parece esclarecer a função da imagem discursiva de Sócrates, ela é, além de imagem, paradigma; claro, paradigma para as semelhanças de um outro gênero de imagens. Compreender essa dupla função, de imagem e paradigma, para a cidade e a alma no discurso passa pelo exemplo que Sócrates apresenta para ilustrar o paradigma, o procedimento do pintor. Diz ele:

Seria o caso de depreciar um bom pintor que, tendo pintado um paradigma do que seja o mais belo homem, tudo atribuindo convenientemente às linhas,

“analogia do significado”, que levaria a situações como: “Se dizemos que ‘F’ é atribuído à cidade apenas porque é atribuído aos homens, já explicamos como o termo pode ser atribuído tanto a cidades quanto a homens, de modo que seguir daí para buscar uma explicação semelhante para como ‘F’ é atribuído aos homens é no mínimo despropositado, já que o fenômeno que, em primeiro lugar, estabeleceu a busca pela analogia, a saber, o fato de que ‘F’ é atribuído tanto a cidades quanto a homens, já havia sido explicado. Se, além disso, a regra para atribuir ‘F’ à cidade é tomada em si mesma como o lógos comum que buscávamos, então temos não apenas um despropósito, como um absurdo, já o lógos comum teria que ser algo como ‘x é F se e apenas se x tem partes constitutivas que são F’, o que leva a um regresso infinito” (2008, p. 256). Williams, no entanto, não se ocupa da digressão que, iniciada no livro V, estende-se até o final do livro VII e, consequentemente, dos argumentos que, apresentados por Sócrates como o longo percurso (504b), sustentariam uma exposição cuja brevidade, no livro IV (435d), bastava a Gláucon. Não sendo essa a ocasião para responder mais detalhadamente outras dificuldades enumeradas por Williams, cogitamos que as diretrizes metodológicas que apontamos possam ser pistas para essa resposta. Ademais, servem-nos de inspiração as considerações de Ferrari que, com argumentos distintos dos que agora se apresentam, insistem no caráter assimétrico da analogia: “Dizer que uma metáfora proporcional é conversível não é garantir que ela produzirá uma metáfora igualmente eficiente em ambas as direções. (...) quando Trasímaco reformula em termos proporcionais a idéia de que o rei é o pastor de seu povo (343b), ele atinge o seu efeito

225

A POSSívEl república dE PlATãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

porém não demonstrando como é possível que tal homem venha a ser? (hos kaì dynatòn genésthai toioûton ándra - 472d).

Sócrates refere-se ao paradigma como a obra do pintor e, pela analogia, à cidade boa como um paradigma construído no discurso (parádeigma epoioûmen lógoi agathês póleos – 472e). À medida que é produto do discurso, a noção de paradigma atrelada ao exemplo do pintor nos faz distinguir os dois casos de paradigma anteriormente mencionados – o da justiça em si e o do homem totalmente justo – como dois gêneros distintos de paradigma, em que só o segundo mantém a analogia com a pintura do belo homem. A justiça em si não é produto do discurso sendo, ao contrário, a sua produtora, o critério que lhe permite essa semelhança. Mas essa noção de critério está, ela mesma, presente no exemplo do pintor, à medida que o mais belo homem pintado é exemplo da definição de paradigma como a referência das semelhanças, ou seja, o mais belo homem pintado é critério para se identificar o lote dos homens que, a ele semelhantes, são belos. A função de ser referência, que unia forma e discurso, agora une discurso e ação5.

Respaldo para essa nossa hipótese encontramos, na República, desde o livro III, na discussão sobre a formação dos juízes, onde Sócrates argumenta que o convívio e a experiência com a injustiça, desde novos, geram nos homens, por semelhança de afecção, paradigma semelhante ao dos perversos (en heautoîs paradeígmata homoiopathê toîs poneroîs – 409b) e, por observarem em si esse paradigma (pròs tà en hautôi paradeígmata aposkopôn – 409c) e não outro do bem (ouk ékhon parádeigma toû toioútou [agathoîs] – 410d), tornam-se capazes de muitas injustiças, crimes e astúcias (ho pollà autòs edikekòs kaì panoûrgós te kaì sophós oiómenos eînai – 410c). Mas, se assim é, estamos aqui tratando de algo de que ainda não tratamos. Falávamos do discurso sobre a justiça na alma como um paradigma para a identificação de semelhanças e lotes, agora falamos do paradigma na alma como um referencial para as ações construído por educação pela semelhança de afecção.

O que se subentende na imagem, portanto, é que, se o discurso sobre a alma perfeitamente justa serve de paradigma para a identificação das semelhanças das almas e se a educação é a formação de paradigmas na alma pelas afecções dessas semelhanças, frutos necessariamente de uma comparação discursiva, o discurso é um processo educativo pelo estabelecimento de semelhanças que, formando um paradigma, resulta necessariamente em ações a ele semelhantes. O discurso, que é comparação de semelhança entre imagem e paradigma, forma paradigma na alma e, por isso, gera ação. Por outro lado, exatamente por formar por semelhança paradigmas na alma, ele permite a comparação das almas – torna-as comparáveis – com o paradigma discursivo da justiça na alma e, enfim, com a forma da justiça.

Essa relação ganha clareza com a definição das formas como o que é em si e a definição do filósofo como amante da sabedoria atrelada a esse ser, em oposição ao filodóxo, amante da opinião ou da aparência, apresentado como aquele que:

sardônico ao lançar uma antiga e nobre metáfora à luz refletida de seu inverso indigno, que o pastor é o rei de seu rebanho (...) Ao que parece, Platão tira vantagem da seqüência em que a analogia é explicada – fazendo com que Sócrates descreva primeiramente a estrutura da cidade e, depois, a da alma correspondente – de modo a evitar a aplicação de suas metáforas proporcionais em ambas as direções” (2005, p. 85, 87).

4 Assim, concorda-se parcialmente com a definição de Vegetti: “O paradigma é portanto um modelo normativo, um ‘critério deontológico ao qual a prática deve tender’ na simultânea certeza da sua desejabilidade imperativa e do caráter apenas aproximado e imperfeito (portanto também instável) de uma possível realização” (2000, p. 121). A parcialidade em questão refere-se à nossa hipótese, apontada no parágrafo seguinte, de dois gêneros de paradigma em oposição à singularidade que essa categoria tem na compreensão de Vegetti.

5 Essa discussão, além de claramente se opor às simplificações de Popper, apontando para como a modelação não implica a violência por ele argumentada, trava um diálogo com algumas conclusões de Burnyeat, que, em primeiro lugar e de maneira semelhante à que apontamos, distingue a cidade fundada no discurso das formas: “Se a descrição da cidade ideal é um exercício de narrativa imaginativa, então é equivocado pensar, com Cornford e Popper, que a cidade ideal pertence a um mundo ideal no sentido do mundo das Formas. Formas não são ficções, e elas não têm uma história a ser contada. Em todo caso, não há uma forma tal como a forma da cidade ideal” (2008, p. 297-298). Não obstante, dada a definição de paradigma com que operamos,

226

CAROlINA ARAújO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

...é privado do conhecimento do que é realmente o ser, não tem na alma nenhum paradigma claro, nem pode, como o pintor, olhar para o mais verdadeiro, sempre a ele se reportando e contemplando de modo a estabelecer, quando for preciso, o mais rigorosamente para nós as noções (nómima) acerca do belo, do justo e do bom e ainda resguardá-los a salvo (484c-d).

É notável que o procedimento do pintor surja novamente associado ao paradigma, mas agora claramente em seu lugar na alma, tal como o exemplo do juiz. É o paradigma que possibilita que esse pintor olhe para o que ele deve olhar e que, assim olhando, produza, para nós, noções do belo, do justo e do bom que, sabemos, têm função de paradigma. Se essas noções são discursos, eles pretendem formar em nós, não filósofos, o mesmo paradigma que o filósofo tem na alma, para que ajamos tal como ele e que possamos, talvez, alcançar essa condição de contemplação do verdadeiro e de produção de discursos6. As ações têm seu paradigma na alma, que é formado pelo discurso, paradigma produzido pelo filósofo-pintor que, tendo na alma um paradigma formado, pode realizar a ação de olhar para o mais verdadeiro. Mas a sucessão de paradigmas não pára aí. Seu desenvolvimento fica claro na declaração socrática de que uma cidade não será feliz se não for pintada por pintores que usem os paradigmas divinos (ouk án pote állos eudaimonéseie pólis, ei mè autèn diagrápseian hoi tôi theíoi paradeígmati khrómenoi zográphoi – 500e).

3. O possível e o discurso

Definidos como pintores de constituição (politéia), os filósofos são legisladores que têm sua função em duas etapas. Em primeiro lugar, purificar sua tela, eliminar os costumes que se oporiam à própria possibilidade de sua função – ou seja, os próprios paradigmas viciosos nas almas dos homens, que tanto arriscavam a formação do juiz – para, em seguida, estabelecer o desenho da constituição. Uma tarefa descrita do seguinte modo:

Então, parece-me, realizando sua função, olharão repetidamente para duas coisas, para a natureza do justo, do belo, do temperante e tudo o mais que assim for, e para aquilo que venham a produzir nos homens, aquilo que misturado e mesclado a partir das ocupações, é o propriamente humano, tendo como testemunho o que Homero chamou de, no homem, a forma divina e semelhante aos deuses (501b).

É claro na passagem que, embora seja indispensável a esses pintores o uso de paradigmas divinos – aqui identificados como a natureza das formas – é parte de sua tarefa também a contemplação do que é o divino no homem, ou ainda, da excelência humana dentro dos limites das suas possibilidades, por semelhança e oposição ao divino. Ora, se entendemos a figura do filósofo como alguém que precisa olhar para o divino e o humano, é preciso concluir a passagem como a constatação da possibilidade humana ou, como diz Sócrates, “o filósofo por convivência com o que divino e ordenado, torna-se divino e ordenado segundo o que é possível ao homem” (500d).

nos afastamos de sua posição de que a inexistência da cidade seja um fato histórico e não de ordem metafísica: “[Sócrates e seus interlocutores] não estão buscando, absurdamente, por um modo de superar os obstáculos metafísicos à realização da perfeição, mas por um modo de superar os obstáculos humanos (sociais e políticos) que até então impediram o estabelecimento de uma cidade que se aproxime do ideal” (Burnyeat, 2008, p. 300). Nesse quesito, voltamos a concordar com Vegetti: “O vácuo, tanto ontológico quanto histórico-prático, que separa o lógos do érgon, o modelo da reprodução, impede que se considere a utopia platônica, ainda que reconhecido o seu caráter projetivo, como um programa político em relação ao qual seja possível indicar local, tempo e modo de realização” (2000, p. 122). O que precisamente nos aproxima de Vegetti e nos afasta de Burnyeat é a noção de ficção e de imaginação deste último: “A cidade ideal é construída em nossa imaginação pelo argumento persuasivo, de tal modo que a persuasão eficiente no mundo da imaginação garanta a possibilidade de eficiência no mundo real” (2008, p. 308). Essas esferas são, no texto platônico, apresentadas pelo termo lógos, e é como discurso propriamente dito que pretendemos compreendê-las.

6 Ao ressaltar duas noções distintas de filósofo apresentadas ao longo da República – uma que o apresenta como detentor do conhecimento e outra que, enfatizando o seu caráter de amante, define-o como alguém que busca esse conhecimento – Morrison conclui, por argumentos distintos, sobre uma função educativa do discurso semelhante à que apresentamos: “Que função teria o retrato socrático da cidade ideal para os governantes-filósofos dessa

227

A POSSívEl república dE PlATãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Somos aqui remetidos à mencionada limitada possibilidade de Sócrates frente à distopia e ao recurso que lhe resta: olhar para o divino e para o humano e ver a si mesmo como alguém que só pode produzir paradigmas discursivos. Mas esse é um passo grande em relação à função do discurso e sua possibilidade, ou seja, o gênero utópico é uma resposta à distopia apresentada por Gláucon e Adimanto precisamente pela demonstração da função paradigmática do discurso, que educa a alma e define necessariamente a ação7. Nesse sentido, embora Platão não use, e nem possa usar a palavra utopia, ele tem um sentido muito claro sobre o lugar da cidade no discurso. Não se trata de uma cidade existente, mas de uma cidade sempre presente, na ação de toda alma justa.

O justo realizará voluntariamente as coisas políticas, na sua polis própria, mas não talvez em sua pátria, a não ser por um acaso divino. Participará da polis no logos, pois em lugar nenhum da terra ela está. Mas no céu como um paradigma para quem quiser vê-la e vendo-a fundá-la para si próprio. Não importa se é ou se será, pois só segundo ela há de agir (592b).

Não há negação de possibilidade da justiça, nem de seu lugar. O que a República faz é estabelecer a função do paradigma e, com ela, a função do discurso para a justiça. Isso nos leva a concluir que há, antes, uma localização da justiça no discurso, na alma, na cidade e na ação, demonstrando que, se a questão da possibilidade de um paradigma se refere não a ele próprio, mas ao que a ele se assemelha, a questão pela possibilidade da justiça em si se refere a essa sua localização. Não há portanto sentido em se falar que Sócrates estaria sendo arbitrário e nem que o discurso utópico é inútil. Se a ação se vincula ao paradigma da alma, que é construído por um paradigma discursivo, que é construído pelo filósofo, que contempla um paradigma divino por comparação nos limites humanos, trata-se de uma discussão sobre possíveis que tem no discurso o seu medium. Antes uma topía do que uma utopia8. Estando no discurso, a justiça é, não só discursiva, mas sempre, a cada ação justa.

Referências

AUGUSTO, M. G. M. “Discurso utópico e ação política: uma reflexão acerca da politéia platônica”. In: Clássica, v.3, 1990, p. 45-66.

BERNADETE, S. Socrates second sailing on Plato’s Republic. Chicago: University of Chicago Press, 1992.

BURNYEAT, M. F. “Utopia and fantasy: the practicability of Plato’s ideally just city”. In: FINE, G. (org). Plato 2: Ethics, politics, religion and the soul. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 297-308.

FERRARI, G. R. F. City and soul in Plato’s Republic. Chicago: University of Chicago Press, 2005.

MORRISON, D. R. “The utopian character of Plato’s ideal city”. In: FERRARI, G. R. F. The Cambridge Companion to Plato’s Republic. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

cidade? Minha resposta é que ela não terá função alguma. (…) [Sócrates] dá à utopia de Platão uma função na conduta de nossa vida cotidiana. Ele mostra um modo de usar a política a serviço da ética. Portanto, Sócrates pretende que o seu retrato de Callipolis ajude pessoas como Gláucon e Adimanto no aqui e agora, fornecendo-lhes um paradigma para viver as suas vidas individuais (...). O modelo da cidade ideal foi útil no projeto socrático da República como um meio de se obter clareza sobre a justiça e o bem na alma (368d–369a). Mas, uma vez que Sócrates tenha obtido isso, o paradigma útil para o cuidado de si não é Callipolis, mas o relato socrático sobre a justiça e o bem na alma” (2007, p. 244, 248, 250). O que nos parece interessante no método de sucessão de paradigmas é a minimização do problema da ambigüidade da noção de filósofo, uma vez que, inserido na seqüência aproximativa, essa ambigüidade se conforma simplesmente como uma proximidade maior ou menor possível aos homens frente a um mesmo referencial. Nesse sentido, é frutífera a imagem de Vegetti: “A República constitui, assim, um ato discursivo de persuasão ético-política, cujos destinatários se colocam, por assim dizer, em círculos concêntricos, e cujos êxitos podem dilatar-se por tempos indefinidamente longos” (2000, p. 139)

7 É imprescindível lembrar o quanto é cara a Ferrari a questão do limite das possibilidades humanas em conjugação com a ação do filósofo: “Callipolis é uma criação, uma criação de Platão, quer ela seja ou não algum dia construída em algum lugar. O demiurgo que construiu os céus era um deus. Quando ele dedicou-se a criar a mais bela incorporação do verdadeiro número e dos verdadeiros movimentos, isso foi construído. Mas Platão é apenas

228

CAROlINA ARAújO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

POPPER. K. R. A sociedade aberta e seus inimigos. 2 v. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP. 1974.

STRAUSS, L. The city and man. Chicago: University of Chicago Press, 1964.

VEGETTI, M. “Beltista eiper dynata: lo statuto dell’ utopia nella Repubblica”. In: PLATONE. La Repubblica. v. IV, libro V. Nápoles: Bibliopolis, 2000. p.107-149.

WILLIAMS, B. "The analogy of city and soul in the Republic". In: FINE, G. (org). Plato 2: Ethics, politics, religion and the soul. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 255-264.

humano; a mais bela cidade que ele pode construir está em um livro” (2005, p. 106), porém Ferrari enfatiza o caráter escrito do discurso, e por conseguinte a figura de Platão como autor, em detrimento de uma oralidade que, também cara a Platão, é marca não só de seu estilo, mas de sua compreensão do que seja o discurso.

8 Nesse sentido, é relevante a indicação das acepções do termo tópos apontada por Augusto: “A primeira destas acepções refere-se à noção de lugar que se ocupa num determinado espaço. Espaço este que pode ser um terreno onde se constrói uma casa, um edifício, onde se faz um jardim, ou ainda, espaço no qual se situa um país, uma região, um território. Neste sentido, tópos envolve não só uma obra, mas também o lugar, a posição que ela ocupa, a ocasião e a oportunidade, o kairós de se fazer uma coisa, passando, assim, de um sentido geográfico para um sentido metafísico. Em um segundo sentido, tópos aparece como um termo pertinente à retórica e à dialética, podendo remeter-nos não apenas aos principais pontos de uma demonstração, mas ao fundamento de um raciocínio e ao objeto ou matéria de um discurso. Aristóteles, na Retórica, usa o termo tópos para falar das partes essenciais da retórica e de um koinòs tópos, de um lugar comum, de tópicos que são comuns a todos” (1990, p. 46). Se podemos operar com essa distinção em uma interpretação que segue bem rumos distintos dos de Augusto (1990), ser-nos-ia possível concluir pelo modo como a República permite, pelo sentido discursivo de tópos, realizar, quanto ao seu sentido geográfico, a transposição ao sentido metafísico.

Livelli del pensiero utopico: antropologia, storia, letteratura.Cosimo QuartaUniversidade de Lecce

Centro Interuniversitario di Ricerca sull'Utopia (Itália)

Resumo

In cui si cercherà di dimostrare come l’utopia sia anzitutto un fenomeno antropologico, in quanto la progettualità costituisce un carattere fondamentale e originario della specie umana, come ci attestano, tra gli altri, i recenti studi di paleoantropologia, al punto che l’uomo può definirsi «sapiens» in quanto «utopicus».

Inoltre, l’utopia si rivela originariamente anche come progetto storico, dal momento che l’uomo, essendo indefinita potenzialità, è proteso incessantemente a divenire quel che ancora non è, ossia ogni autentica esistenza umana è orientata verso il dover essere. Ma poiché l’uomo è un essere sociale, egli, progettando se stesso, progetta anche la storia.

Solo a questo punto, ossia dopo che si è rivelata prima a livello antropologico e poi a livello storico, l’utopia si manifesta a livello letterario, inizialmente in forma mitica, successivamente come progetto filosofico e, infine, come romanzo utopico.

Palavras-chave

Utopia e antropologia, utopia e storia, utopia e letteratura.

Cosimo Quarta é professor de Filosofia da História e Ética Ambiental na Universidade de Lecce (Itália) e co-fundador e diretor do Centro Interuniversitario di Ricerca sull'Utopia. Suas pesquisas, desde o início dedicadas ao pensamento utópico, tratam de problemas da história da utopia (Platão, Morus, Campanella, Andreae, Péguy) e das relações entre utopia e ideal, ideologia, mito, escatologia, milenarismo, futurologia, ciência, ficção científica, ecologia, revoluções, igualdade, paz, não-violência. É autor de inúmeros ensaios e volumes, entre eles: Per una definizione dell’utopia (Napoli: Glaux, 1971), L’utopia platonica (Milano: F. Angeli, 1985), Tommaso Moro. Una reinterpretazione dell’Utopia (Bari: Dedalo, 1990), Il destino della famiglia nell’utopia (Bari: Dedalo, 1991), Thomas More. Testimone della pace e della coscienza (S. Domenico/Fiesole: Cultura della Pace, 1993). Entre seus artigos estão "Homo utopicus" (In: Utopian Studies, 7.2, 1996), "Principio responsabilità versus principio speranza?" (Paradigma, v. 19, n. 57, 2001), "L’utopia: una storia di fraintendimenti" (In: Utopia e rivoluzione. A c. di E. Granito e M. Schiavino. Napoli: La Città del Sole, 2002), "Utopia: gênese de uma palavra-chave" (In: Morus - Utopia e Renascimento, 3, 2006).

230

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Fino a qualche decennio fa, il pensiero utopico, o meglio, il fenomeno “utopia”, veniva fatto coincidere – non solo dalla gente comune, ma anche da gran parte degli studiosi – con la sua forma letteraria e,

in particolare, col progetto filosofico (come, ad esempio, la Repubblica di Platone) o, ancor più, col romanzo utopico che, nella modernità, trova il suo modello originario nell’Utopia di Thomas More. Non a caso, quasi tutte le “storie” dell’utopia prendevano in considerazione solo le opere letterarie. Ma da quando il fenomeno utopico ha cominciato ad essere studiato da punti di vista diversi da quello letterario (cioè sotto il profilo filosofico, politico, sociologico, giuridico, pedagogico, psicologico e via dicendo), ci si è accorti di quanto esso fosse una realtà talmente complessa da richiedere, per una sua più adeguata comprensione, una pluralità di approcci, tra cui quello letterario resta certamente uno dei più importanti e significativi.

In particolare, sono stati alcuni classici recenti del pensiero utopico, come Ideologie und Utopie di Karl Mannheim, Pfade in Utopia di Martin Buber e, soprattutto, Das Prinzip Hoffnung di Ernst Bloch, che hanno messo in evidenza la straordinaria complessità del fenomeno utopico, aprendo la strada a nuovi percorsi di riflessione. Gli studi condotti dai membri del “Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia” dell’Università del Salento si inseriscono in questo nuovo filone di ricerca, che mira a sottolineare il carattere storico dell’utopia, senza tuttavia trascurare l’apporto che i grandi maestri dell’utopia letteraria hanno dato alla comprensione del pensiero utopico. Proprio all’interno di tali ricerche, mi resi conto, alcuni anni fa, che oltre al tradizionale livello letterario e al nuovo livello storico, occorre tener presente di un ulteriore livello del fenomeno utopico, cioè quello antropologico. Su questi tre livelli, tutti, come si vedrà, ugualmente importanti per comprendere l’utopia, verterà il mio discorso. Qui, dunque, si parte dall’assunto che l’utopia, per essere compresa in tutta la sua complessità, deve essere scandagliata in quelli che io ritengo siano i suoi tre livelli o strati fondamentali, e cioè: antropologico, storico e letterario, di cui ora cercherò di tratteggiare le linee essenziali.

Ma prima di trattare dei “livelli” del fenomeno utopico, è opportuno soffermarsi brevemente a delinearne il concetto. E per far questo è necessario partire dalla parola “utopia” che, com’è noto, è un neologismo coniato da Thomas More nel 1516. Ed è egli stesso a chiarirci il senso di tale termine nell’exastichon del “poeta Anemolius”, uno degli scritti preliminari che accompagnarono l’opera di More fin dalla sua prima edizione. Qui è detto che l’isola di Utopia (ou-topia, cioè “non luogo”), chiamata così dagli antichi a causa del suo “isolamento”, cioè perché nessuno la conosceva e quindi nessuno la visitava, in seguito alla conquista di Utopo, essa fu trasformata in uno “stato ottimo”, ossia in una società che aveva istituzioni talmente buone che non solo potevano stare alla pari con la Repubblica di Platone, ma addirittura la superavano, poiché mentre Platone aveva delineato il suo stato solo a parole – cioè era rimasto a livello di progetto – Utopia si presenta invece come una società viva, giusta, compiutamente realizzata, con ottime istituzioni, sicché, ben a ragione, essa può chiamarsi Eutopia, ossia il “luogo del bene”, la polis buona, anzi l’“ottimo stato”, in cui regna sovrana la

231

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

giustizia, la libertà, la cultura, il benessere. More ci dice dunque che Utopia è il progetto della società buona, giusta, virtuosa e fraterna (eu-topia) che ancora non c’è (ou-topia), ma è protesa a realizzarsi.

È appena il caso di ricordare che il concetto di utopia era nato prima della parola, dal momento che lo troviamo già nella Repubblica di Platone, in quel passo in cui Glaucone, riferendosi al discorso svolto in precedenza da Socrate, sottolinea che la realtà della polis delineata da Socrate risiedeva solo “nei discorsi” (en logois), poiché essa, di fatto, non esiste “in nessun luogo della terra” (ghes ghe oudamou). Al che Socrate risponde che “in cielo forse ne esiste un modello (en ourano paradeigma), per chi voglia vederlo e, vedutolo, su quello fondare se stesso” e quindi la polis (Rep., IX, 592ab). Come si vede, in questo brano platonico sono già indicati con chiarezza i diversi elementi concettuali di quel fenomeno che sarebbe poi stato chiamato “utopia”. Anzitutto emergono i due caratteri della razionalità e della progettualità. Cos’è, infatti, una polis delineata soltanto con le parole, se non un progetto di polis, scaturito da una profonda coscienza etica e di ragione? Ma il carattere progettuale è sottolineato anche dall’espressione “in nessun luogo” (oudamou), che More trasformerà, quasi duemila anni dopo, in “utopia”.

E invero, l’essere “in nessun luogo” è proprio del “progetto”, poiché quest’ultimo se fosse in qualche luogo, ossia se fosse realizzato non sarebbe più tale. Ma questi due caratteri (razionalità e progettualità) emergono ancor più chiaramente là dove Socrate parla esplicitamente di “modello” (paradeigma), ossia di un complesso di norme cui attingere per fondare non solo la polis, ma l’uomo giusto. Il fatto poi che il modello sia collocato “in cielo” (en ourano) non significa, secondo un’interpretazione scorretta piuttosto diffusa, che esso abbia la medesima realtà delle “idee” e, in quanto tale, sia irrealizzabile; e ciò sia perché Platone dice chiaramente che è “in cielo” (en ourano), cioè all’interno del mondo fisico, e non nell’iperuranio (dove, appunto, hanno sede le idee) sia perché egli stesso ribadisce più volte che il suo modello di uomo e di stato, non è impossibile, ma solo difficile da realizzare. Come si vede, la realizzabilità è l’altro carattere fondamentale dell‘utopia, che era già presente in Platone, ma sarà sottolineato con maggior forza da More e dal pensiero utopico moderno.

Come si è appena visto, il “modello” delineato da Platone mirava a fondare non solo la polis secondo giustizia, ma anche l’uomo giusto. E ciò non deve sorprendere, sia perché il punto di partenza dell’intero dialogo (cioè il primo libro della Repubblica) era stato proprio il problema della giustizia nei singoli, ossia il problema dell’uomo giusto, sia perché Platone stabilisce e riprende più volte il parallelismo tra stato giusto e uomo giusto, quasi a sottolinearne il nesso inscindibile. In altri termini, Platone, nella Repubblica, afferma a più riprese che un modello di stato non può prescindere da un correlato modello di uomo, se non vuole essere astratto e quindi sterile sul piano della prassi. Da ciò discende che l’utopia, oltre al livello letterario, che è quello più evidente ed è perciò universalmente conosciuto, implica anche due altri livelli di discorso, che sono meno noti del primo, ma non per questo meno importanti: uno riguarda l’ambito storico-politico, mentre

232

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

l’altro concerne la dimensione antropologica. Analizzerò ora questi tre livelli partendo dalla dimensione antropologica, che è quella in genere meno nota, anche perché è meno trattata dagli studiosi.

La dimensione antropologica dell’utopia

Per comprendere la dimensione antropologica dell’utopia è opportuno rifarsi a ciò che le ricerche di paleoantropologia hanno messo in luce riguardo alle origini dell’uomo. Intanto occorre dire che, se si osserva con attenzione il "fenomeno umano", non si fa molta fatica a scorgere che uno degli aspetti peculiari che maggiormente lo caratterizza, rispetto a tutte le altre specie animali, è la coscienza riflessa (Chardin, 1968, p. 217-218)¹, che ha il suo supporto organico nel cervello: un organo che, com'è noto, ha raggiunto nell'uomo un livello di complessità o, se si vuole, di perfezione tale che non ha l'eguale in nessun'altra specie vivente. La crescita, per molti aspetti, straordinaria e complessa della materia cerebrale, cui il bipedismo diede, verosimilmente, un contributo di prim'ordine (ibid., p. 224 et seq.) provocò un mutamento comportamentale che doveva rivelarsi decisivo per la nascita della specie homo. Si tratta, com'è facile intuire, di quella che viene chiamata "duttilità", "versatilità", "flessibilità", ossia dell'acquisizione, da parte dei nostri antenati ominidi, della capacità di rispondere agli stimoli dell'ambiente, non più in maniera univoca o "programmata", ma in maniera flessibile. Così, al comportamento istintuale, che è per sua natura necessario, e perciò fisso e prevedibile, si sostituì o, comunque, si aggiunse un comportamento che, in quanto scaturito da una scelta discreta - fondata cioè su una valutazione individuale della situazione - può definirsi, sia pure in termini ancora molto approssimativi, libero, e quindi largamente imprevedibile.

I paleoantropologi hanno messo in evidenza che "un alto grado di intelligenza è generalmente associato all'indipendenza, all'iniziativa individuale e a una capacità di comportamento nuovo e creativo". Tali condizioni implicano il sorgere di conflitti tra l'individuo e il proprio gruppo. Ma la conflittualità, com'è noto, provoca frustrazione e angoscia, che rendono l'uomo fortemente inquieto. I nostri antenati sperimentarono assai per tempo tale "irrequietezza" o, meglio, inquietudine, che è poi diventata "cronica", nel senso che essa costituisce un carattere peculiare della specie homo sapiens, “non meno della stazione eretta o della fabbricazione di utensili o della parola". Ora, l'inquietudine, che agli inizi dovette apparire come un fatto negativo - poiché rendeva la vita assai più difficile tanto ai singoli quanto ai gruppi - col tempo, rivelò invece il suo aspetto fortemente positivo, dal momento che grazie ad essa l'uomo si sentì fortemente stimolato "ad esplorare e a fare cose che non erano mai state fatte prima”. Sicché, con Pfeiffer, si può concludere che l'inquietudine umana rappresenta "per l'evoluzione culturale ciò che la mutazione genetica rappresenta per l'evoluzione organica, una fonte interna di nuovi modelli di vita, sempre più complessi, la fonte insomma dell'umano splendore" (1973, p. 316-317).

Ma vediamo ora, in concreto, come presumibilmente, secondo

¹ A questo proposito, è opportuno segnalare che recentissime ricerche sul genoma dei primati hanno scoperto alcune importanti sequenze del DNA che differenziano gli esseri umani dagli scimpanzé. Tra tali sequenze – che, com’è noto, costituiscono soltanto meno dell’uno per cento del genoma complessivo che accomuna homo sapiens e scimpanzé – degne di nota per il mio discorso sono: quella che è implicata «nella formazione di una corteccia cerebrale sana»; quella che è coinvolta nella nascita del linguaggio (sequenza che è stata trovata anche «in un fossile di Neanderthal»); quella che «guida l’attività genica nel polso e nel pollice dello sviluppo fetale», che probabilmente è «alla base dei cambiamenti morfologici della mano umana che hanno permesso la destrezza necessaria per creare e usare utensili complessi». Queste elementi, insieme con altre «mutazioni comportamentali e fisiologiche» hanno permesso agli umani «ad adattarsi a circostanze alterate e a migrare verso nuovi ambienti. Per esempio la conquista del fuoco, più di un milione di anni fa, e la rivoluzione agricola, circa 10.000 anni fa, hanno reso disponibili cibi ricchi di amido» con conseguenze importanti sia sul piano alimentare che culturale. (I corsivi sono miei). Cf. Pollard, 2009, p. 46-51.

233

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

gli studi di paleoantropologia più recenti, si svolsero i fatti, cioè in che modo può essere avvenuto il passaggio alla specie homo. In una condizione di penuria - qual era, appunto, quella della savana durante la "stagione secca" - "ciascun animale è di fronte a una scelta di importanza decisiva: cominciare a nutrirsi di cibi di qualità inferiore, come foglie vecchie, semi, steli [...], oppure trovar modo di accedere ad alimenti di qualità superiore, precedentemente fuori portata". Molti elementi inducono a supporre che fu proprio tale "decisione" a causare "la diramazione del lignaggio ominoideo". Nel senso che alcuni gruppi di australopiteci avrebbero imboccato la prima strada che, comportando meno rischi per la sopravvivenza, richiedeva anche meno sforzi; in tal modo, il cervello, non avendo avuto stimoli a svilupparsi, restò, più o meno, com'era. In altre parole, accontentandosi di cibarsi soltanto delle povere cose che erano immediatamente alla loro portata (foglie secche, steli ecc.), tali gruppi inchiodarono se stessi alla loro animalità.

Altri gruppi, invece, che vivevano in zone marginali, ossia nei luoghi più poveri della savana - probabilmente per meglio proteggersi dai predatori - furono spinti a cercare una soluzione diversa, per poter sopravvivere durante i "tempi duri" della "stagione secca". A tale scopo, essi presero "a girovagare [...] in cerca di nuove possibilità di procurarsi alimenti prima fuori portata e assai remunerativi"; come "i tuberi, le radici, i bulbi e altre succose dispense degli esemplari che sfuggono alla siccità" e che noi oggi sappiamo che costituiscono una parte rilevante della “biomassa vegetale totale”. In tal modo, grazie alla loro “versatilità”, “quei nostri progenitori si procurarono da vivere in luoghi dove apparentemente non ce ne era. Sicché si può ragionevolmente supporre che a separare l’homo habilis e a definire la nicchia umana non fu la caccia, non fu la saprofagia, non furono i bastoni da scavo o qualsivoglia altro strumento di per sé, bensì la percezione di possibilità in un ambiente così poco promettente». In questo senso, si può dire che l'individuo della specie homo, già fin dal suo primo apparire, si presenta e caratterizza, fondamentalmente, come "un animale in divenire" ( Johanson; Shreeve, 1991, p. 305-313).

Ma, detto questo, occorre subito rilevare che a far spiccare il "salto" alla specie homo, oltre alla "percezione di possibilità", contribuì anche, in maniera non meno decisiva, un altro fattore: la socialità. Questi due fattori, anzi, furono (e sono) fra loro talmente correlati e interagenti da costituire due aspetti di quella medesima realtà che è il fenomeno umano. Il vivere in società, infatti, stimola la crescita umana sotto un duplice aspetto: da un lato, la società o - per rimanere ai primordi - l'insieme degli individui adulti facenti parte di un gruppo fornisce alle giovani generazioni tutto quello che, sulla base dell'esperienza, viene ritenuto indispensabile o utile per la loro sopravvivenza (abilità, nozioni, strumenti materiali e culturali ecc.); dall'altro, poiché le risorse disponibili erano (e sono) in genere scarse, gli individui, una volta diventati adulti, sono costretti a competere tra loro per appropriarsi di una porzione quanto più è possibile abbondante di risorse, in grado di garantirgli la sopravvivenza non solo per il presente, ma anche per il futuro. E la competizione (come anche l'emulazione), purché non degeneri in lotta fratricida, aguzza l'ingegno, stimola la creatività e innalza quindi il

234

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

livello delle conoscenze umane, arricchendo così quel patrimonio culturale collettivo che, per la specie umana, costituisce il principale acceleratore dei processi evolutivi ( Johanson; Shreeve, 1991, p. 318 et seq.). Così, grazie alla fitta rete di interazioni sociali, ossia alla molteplicità e intensità di incontri-scontri che avvengono tra individui (all'interno di uno stesso gruppo) o tra gruppi diversi, "nel bene e nel male, l'umanità si autoinventa"2. A questo proposito, occorre ricordare che una delle cause che ha determinato il passaggio dall’animalità all’ominizzazione può essere ravvisata nel fatto che gli ominidi, fin dai primordi, si sono imitati maggiormente tra loro, rispetto agli altri primati (cf. Girard, 2008).

Tutto questo costituisce una conferma, anche a livello antropologico, che la specie homo, considerata sia sotto l'aspetto ontogenetico che filogenetico è realmente, scusandomi per il bisticcio, una specie sui generis. Se è vero, infatti, che l'uomo ha in comune con altre specie (e in particolare con i mammiferi sociali) quella che naturalisti ed ecologi hanno chiamato neotenìa - ossia la tendenza degli individui a conservare anche in età adulta tratti comportamentali tipici dell'età giovanile, come la curiosità verso oggetti sconosciuti, l'esplorazione dell'ignoto, il gioco ecc. - è pur vero che nella specie homo tale tendenza, lungi dall'essere un fatto tutto sommato marginale sul piano evolutivo, come è accaduto nelle altre specie "sociali", riveste invece un ruolo di prim'ordine, decisivo. È grazie a tale "difetto", se così può dirsi, ossia a questa apparente "immaturità" comportamentale che l’uomo possiede quella plasticità, versatilità, creatività, libertà, che lo contraddistingue dalle altre specie viventi3. Occorre ricordare, inoltre, che l’umanità allo stato nascente è caratterizzata anche dal nomadismo, un fenomeno, questo, molto importante per il processo di ominizzazione perché, come osserva Rita Levi Montalcini, il cambiare continuamente il proprio ambiente ha stimolato fortemente il cervello e quindi la creatività della specie umana, che veniva chiamata con inusitata frequenza a risolvere nuovi problemi. È stato giustamente osservato che “la creatività può essere il culmine di una lunga tendenza verso lo sviluppo di meccanismi cerebrali sempre più sofisticati che producono comportamenti sempre meno prevedibili”. Certamente “queste capacità possono rendere la psicologia difficile al di là di ogni immaginazione come scienza predittiva, ma rende anche la vita degna di essere vissuta” (Miller, 2002, p. 434).

S'è visto dunque che, per gli antropologi, la specie homo si caratterizza, fin dalle origini, per la sua inquietudine, per la ricerca di nuove possibilità, per la sua attitudine a cercare il cibo là dove apparentemente non ve n'era, dimostrando così la sua capacità di non fermarsi al puro dato sensibile, ossia di andare oltre la percezione immediata, e quindi di pre-vedere quel che ancora non è fisicamente visibile, cioè percepibile dai sensi. L'inquietudine e l'angoscia sono legate, come s'è prima detto, alla scoperta della libertà, alla possibilità di scegliere tra due o più comportamenti. Ma il prevedere - che è un'attitudine propria della ragione - implica la coscienza del tempo, o meglio, la temporalità, la quale, intesa heideggerianamente come avvenire (Sein und Zeit, § 65) rende possibile il progetto, costituisce cioè la conditio sine qua non del progettare. Sullo spazio aperto dalla previsione s'innesta così,

² Johanson; Shreeve, 1991, p. 326. Sull'argomento si veda Alexander, 1989. Sul ruolo e sulle prospettive della socialità in ordine all'evoluzione umana, si veda Chardin, 1968, p. 415-423; anche L'avvenire dell'uomo, passim. E inoltre Sikes, 2003, p. 310-311: «L’intera preistoria degli uomini primitivi si basa sulle decisioni dei singoli o, tutt’al più, di piccoli gruppi formati da non più di una dozzina di persone». Tali gruppi si trovavano spesso ad affrontare non solo «elementi incontrollabili del loro ambiente, come l’emigrazione delle mandrie o l’avanzare e il retrocedere delle calotte di ghiaccio», ma anche «eventi casuali» o «situazioni impreviste».

3 Cf. Montalcini, 1987, p. 222: «I figli dell’uomo differiscono da quelli di altri mammiferi nella lentezza del loro sviluppo somatico e intellettuale, che li rende dipendenti dai genitori o da chi ne fa le veci, per il lungo periodo che decorre dalla nascita alla pubertà. La lentezza della maturazione delle facoltà cerebrali favorisce lo sviluppo di quello stupendo e complesso congegno che è il cervello dell’Homo sapiens, ma la protratta dipendenza dagli adulti lascia un marchio indelebile sulle strutture nervose che presiedono al comportamento dell’individuo, quando, uscito dalla minorità, entrerà a far parte della società umana».

235

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

in modo del tutto naturale, la progettualità, che è un fatto specificamente ed essenzialmente umano. E poiché l'uomo non è un individuo isolato, ma, in quanto coessere, nasce, vive ed opera sempre in un determinato contesto storico-sociale, ecco che il suo progettare si carica di storicità, di socialità, di politicità, caratterizzandosi, immediatamente, come utopico, dal momento che l'utopia può essere definita come il progetto della storia, come progetto e impegno di costruire la "società giusta"; quella società, cioè, in cui a ciascuno venga finalmente riconosciuto il proprio diritto: il diritto dell' uomo, in quanto uomo. Da ciò discende che l'utopicità non è un fatto accidentale e transeunte, ma un carattere essenziale, originario della specie umana.

Come dimostra il fatto che ancor oggi l'uomo si presenta come l'essere che, per sua natura, si protende e proietta verso il suo dover essere. E ciò perché è in gioco l'originaria potenzialità della persona, il suo oscillare tra il nulla e il tutto, la sua capacità di costruire liberamente (e quindi anche sbagliando) quel se stesso che ancora non è. Il progetto di autocostruzione della persona non è una delle tante opzioni, ma costituisce l'opzione fondamentale, poiché solo mediante esso la specie homo attinge quella che viene chiamata dignità umana. Senza il progetto, cui si connette il dover essere e quindi il vincolo etico - che lo obbliga a realizzare, per quanto è possibile pienamente, l'umanità che è in lui - l'uomo decade a bestia. Ciò che rende la vita umana degna di essere vissuta è anzitutto quest'opera di autocostruzione della persona. Un'opera che richiede l'impegno e lo sforzo di tutta una vita, proprio perché l'uomo, in quanto essere finito, è soggetto alla caduta e allo scacco, ma è anche capace, ogni volta, di rialzarsi, per riprendere il cammino lungo e faticoso, ma insieme entusiasmante, dell’autorealizzazione.

Ora, questo impulso a protendersi verso il dover essere, questa tendenza a trascendersi, questa profonda aspirazione a diventare quel che non è ancora fanno, appunto, dell'uomo un essere essenzialmente progettuale, cioè utopico. In altre parole, l'utopicità è un carattere che ha segnato l'uomo in maniera indelebile. Esso è il carattere distintivo per eccellenza, da cui tutti gli altri derivano, compreso, forse, lo stesso attributo di sapiens. La "sapienza", infatti, non è un dono, ma una dura conquista, che l'uomo ha pagato e continua a pagare a caro prezzo. Tuttavia non vi sarebbe sapienza senza il desiderio, o meglio, il bisogno di conoscere, che, come s'è visto, si manifestò già ai primordi dell'umanità, come ricerca di nuove possibilità di cibarsi o come spinta a esplorare ambienti ignoti; certo, con tutti i rischi e le angosce che ciò comportava, ma anche con gli enormi vantaggi che ne derivavano sul piano dello sviluppo cerebrale e, quindi, di quelle capacità creative che sono esclusive degli esseri umani.

Proprio per questa spinta primordiale e incoercibile a sapere, l'uomo dovrebbe definirsi non solo sapiens, ma anche utopicus. L'attributo "sapiens" gli spetta certo di diritto, perché egli non solo sa, ma sa anche di sapere. Tuttavia, una volta pervenuto allo stadio della coscienza riflessa, ossia nel momento in cui diventa homo, egli si scopre profondamente "in-sipiens", nel senso di "nesciens". Nel momento in cui prende coscienza dell'estrema varietà, ricchezza, complessità del mondo che gli si para davanti, l'uomo

236

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

scopre anche l'abisso d'ignoranza in cui si ritrova. Tale scoperta - che slargava enormemente l'orizzonte dell'agire umano, ossia gli spazi per la libertà - dovette gettare quei nostri antenati in una terribile angoscia, da cui probabilmente non sarebbero usciti, se non fosse intervenuta la speranza a sorreggerli, spronandoli a proseguire il lungo cammino appena intrapreso4. Senza lo spirito utopico, che ha come forza propulsiva la speranza e come orizzonte dinamico il futuro, portatore del meglio, l’homo sapiens difficilmente avrebbe retto all'angoscia che questa sua singolarissima e straordinaria condizione gli causava. Del resto, che l’ottimismo sia una caratteristica originaria della nostra specie è stato affermato da diversi studiosi, come, ad esempio, Lionel Tiger, il quale ha addirittura avanzato l’ipotesi di una «biologia della speranza» (cf. 1979). Mentre da una recentissima ricerca, condotta da Matthew Gallagher (Università del Kansas) su un campione di 150 mila persone appartenenti a 140 Paesi del mondo, è emerso che l’ottimismo si presenta come «un fenomeno universale, con poche differenze fra sessi, età e condizione sociale» (Saragosa, 2009, p. 77).

Superata dunque la soglia della coscienza riflessa, il vero sapiente non è più colui che "sa di sapere", bensì colui che "sa di non sapere", secondo l'insegnamento socratico. Poiché solo chi ha coscienza dei limiti del proprio sapere, può aspirare a sapere di più. Ciò che sprona alla ricerca del sapere, infatti, è proprio l'umiltà, mentre la presunzione di sapere, che rappresenta una delle facce del dogmatismo, costituisce un grave ostacolo per la ricerca. E' un fatto d'esperienza comune che quanto più si conosce tanto più si prende coscienza della propria ignoranza o, ciò che è lo stesso, di quanto grande e smisurato sia ancora il dominio dell'ignoto. Ora, questo anelito a sapere di più, questa protensione a superarsi, ad andare oltre il presente e il già noto, non è soltanto una caratteristica dell'uomo storicamente attestatosi (antico, medievale, moderno), ma dell'uomo di sempre, come, del resto, risulta dagli studi di paleoantropologia.

Ma un'ulteriore conferma in tal senso ci viene anche da un'altra delle fonti principali cui ci si può rivolgere per attingere elementi o spunti in grado di aiutarci a capire la natura e il destino dell'uomo, e cioè la religione. Così, se si prende in esame, ad esempio, il racconto biblico della "caduta" (Genesi, 3, 1-7), ci si rende subito conto che l'utopia, in quanto atteggiamento fondamentale dello spirito, guidò l'umanità fin dai suoi primi passi. In quel brano si legge che i nostri progenitori, spinti dal desiderio di diventare quel che ancora non erano (cioè «come Dio» e, in quanto tali, capaci di giudicare da sé ciò che è bene e ciò che è male), non si peritarono di disubbidire al loro Creatore, né li spaventò la minaccia della morte (Genesi, 2, 16-17). Essi avevano avuto in dono da Dio il "giardino di Eden", in cui, se non si fossero lasciati ingannare dal "serpente", avrebbero potuto vivere in uno stato di perenne felicità, sorretti, com'erano, dall'amicizia e dalla grazia divine. Il "serpente" - che, come tutti i mentitori, mescolava le menzogne con qualche brandello di verità - per convincere Eva, aveva detto che se, lei e Adamo, avessero mangiato il frutto dell'albero proibito, non solo non sarebbero morti, ma sarebbero diventati come Dio; e in questo ovviamente li ingannava; mentre diceva il vero quando affermava che, una volta mangiato

4 Sul ruolo della speranza nella storia umana, si veda il classico, monumentale lavoro di Bloch, Das Prinzip Hoffnung (1973). Sull’argomento si vedano inoltre: Moltman, 1969; Gallot, 1971; AA.VV., Decidere per la speranza, 1972; Garaudy, 1976; Bourgeois, 1987; Bodei, 1995; Danielou, Daniel-Rops, Pieper, 1999; Melchiorre, 2000. Si veda anche l’enciclica di Benedetto XVI, Spe salvi, 2007.

237

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

il frutto, i loro occhi si sarebbero aperti e avrebbero conosciuto il bene e il male.

Ora, a indurre Eva a prestare ascolto al "serpente" non fu tanto la mera prospettiva di acquisire, mangiando il frutto, la capacità di decidere, a proprio arbitrio, ciò che è bene e ciò che è male. A questa tentazione, infatti, essi avevano, fino a quel momento, saputo resistere. Ciò che invece fece apparire oltremodo gradevole e appetibile e, quindi, incoercibilmente desiderabile il frutto, fu la menzogna demoniaca secondo cui essi, mangiandone, sarebbero diventati "come Dio". In questo anelito originario a più conoscere per più essere, in quanto trasmodato in volontà di onnipotenza, cioè in orgoglioso atto di ribellione delle creature verso il loro Creatore, il pensiero ebraico-cristiano ha ravvisato il "peccato originale", la suprema hybris. Sarebbe interessante spiegare le ragioni di questo "passaggio", che a noi moderni risulta alquanto ostico. Ma non è questa la sede per farlo.

Ciò che qui mi preme sottolineare è che anche dal racconto biblico ricaviamo che l'uomo si presenta, fin dalle origini, come un essere inquieto e ribelle. Ma inquieto e ribelle perché finito. È la coscienza della propria finitudine, ossia della propria caducità e imperfezione, a provocare infatti la sua inquietudine, a spronarlo a superarsi. Questa protensione dall'essere al dover essere non è altro, in realtà, che un anelito a più essere; ma per l'uomo "essere di più significa in primo luogo sapere di più" (Chardin, 1972, p. 36; 1968, p. 334-335). Solo che tale anelito non potrà mai venire totalmente appagato, proprio a causa della finitudine umana. Perciò l'uomo resta sospeso tra una perfezione ardentemente desiderata e la coscienza di non poterla mai conseguire adeguatamente5. Ed è proprio in questo andare avanti nonostante tutto, in questo non lasciarsi determinare dalla propria finitudine, in questa continua riprogettazione del proprio essere, che l'uomo realizza la sua libertà, la sua natura specificamente umana.

Sulla base del discorso fatto, si può dunque affermare che l'uomo, oltre che "sapiens" è fondamentalmente anche utopicus, un essere cioè che non sta "in nessun luogo", perché lo stare, o meglio, il ristare in qualche luogo, ossia l'indugiare in una qualche forma di narcisistica autocontemplazione, il cullarsi sugli allori, significherebbe interrompere quella tensione e prassi vitale, senza cui lo spirito umano s'ammala e muore.

Utopia e storia

Ma, come si diceva, l'uomo non è un individuo isolato, un atomo sociale, una sorta di monade senza porte né finestre. Egli si caratterizza fondamentalmente come un coessere, ossia come un essere sociale che, progettando e costruendo se stesso, progetta e costruisce anche la storia. In altri termini, l’uomo, come acutamente aveva già osservato Aristotele, si caratterizza come zoon politikon, ossia come quel “vivente”, che ha come spazio d’esistenza suo proprio la polis. In questo senso si può dire che la città è il suo destino. La città, appunto, come spazio strutturato e organizzato per accogliere l’uomo. Se è vero, come afferma Heidegger, che “abitare è il tratto fondamentale dell’essere in conformità del quale i mortali sono” (Heidegger,

5 Come nota Pfeiffer (1973, p. 327-328), «l'evoluzione culturale, come del resto l'evoluzione organica, avviene perché nulla è perfetto. L'evoluzione organica continua perché presto o tardi nella riproduzione della specie interviene una mutazione, un "errore" nella duplicazione dei geni. (La perfezione, la duplicazione senza errori, significherebbe la fine dell'evoluzione e della vita). Allo stesso modo, vi sono sempre degli errori, delle mutazioni sociali nel funzionamento delle leggi e delle istituzioni umane. L'uomo può impegnarsi con tutte le sue forze a fare ciò che facevano i suoi padri e i suoi avi e a credere ciò che essi credevano. E può anche riuscirci per un certo tempo. Ma la sua irrequietezza, che continuamente si autoalimenta, garantisce quel tipo di errore che rende possibile l'evoluzione culturale, e la sopravvivenza».

238

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

1976, p. 96-108)6, allora la città è il luogo deputato all’abitare umano. La città si rivela come uno dei primi bisogni fondamentali dell’uomo, insieme col cibarsi e il vestirsi. Ecco perché la progettazione della città si presenta come un bisogno primordiale dell’umanità.

Una progettazione che arriva molto prima delle utopie letterarie, come ci attestano, ad esempio, gli storici della Grecia antica, secondo i quali “l’impianto urbanistico ortogonale” che diventerà un topos delle utopie letterarie, costituisce “un elemento costante della colonizzazione greca in tutte le sue fasi storiche ed aree geografiche”. E questo si può dire anche per altri principi utopici, come la giustizia, l’eguaglianza, la comunanza dei beni, l’eguaglianza dei sessi ecc.7. Insomma, la progettazione urbanistica, come anche i tentativi di costruire una società secondo giustizia indicano chiaramente che, nel mondo greco (non solo nelle colonie, ma anche nella madre-patria – si pensi, ad esempio, alle vicende politiche ateniesi -), l’utopia fosse radicata, fin dalle origini, nella realtà storica concreta, prima che diventasse un topos letterario, con gli scritti di Ippodamo di Mileto, Falea di Calcedone, Platone, Aristotele, Zenone ecc.

Ma il legame strettissimo tra utopia e storia è presente anche nel mondo latino, il quale nelle storie dell’utopia viene spesso ignorato o trascurato, limitandosi a fare solo qualche fugace riferimento alla quarta egloga di Virgilio. Eppure, basterebbe un rapido sguardo alla storia di Roma, per accorgersi che anche in essa è presente una certa tensione utopica. Già sotto la monarchia, Roma si presenta come una civitas, ossia come una “città di uomini liberi e compartecipi della comunità”, da cui dipende l’“investitura regia”. Più oltre, quando il potere regio (soprattutto durante la dominazione etrusca) diventa dispotico, i cittadini stabilirono di passare “dal monarca vitalizio ad una magistratura suprema temporanea unica o collegiale”, ossia a quello che poi sarebbe stato chiamato consolato, passando così dalla monarchia alla repubblica. Più tardi, quando il patriziato cominciò a discriminare sempre più i plebei, questi ultimi insorsero contro tali ingiustizie, attraverso l’originale strumento della secessione. Protesta che consentì loro di riunirsi in proprie assemblee (concilia tributa), di eleggere i propri capi politici (tribuni plebis) e religiosi (aediles plebis) e, quindi di avanzare proposte che avevano un forte rilievo politico, economico, sociale, giuridico, come l’equa assegnazione dei lotti di terra pubblica, l’alleggerimento del peso dei debiti, la fine dei processi ingiusti e la certezza del diritto attraverso leggi scritte, l’eliminazione della legge che vietava nozze miste tra patrizi e plebei, il diritto di accedere alle diverse cariche pubbliche. Tali istanze – che esprimono chiaramente un forte anelito ad una società più giusta – nel volgere di alcuni decenni (tra il V e i IV secolo a.C.) – furono trasformate in leggi, ossia in realtà istituzionali. E questa tensione utopica è presente nel mondo romano anche nei secoli successivi, solo che qui, per motivi di spazio, non posso trattarne (cf. Burdese, 1972, p. 653-721; Ferrary, 1972, p. 723-804).

Un altro esempio concreto dello stretto legame esistente tra utopia e storia è dato dal mondo ebraico: la terza matrice della cultura e civiltà occidentale, accanto a quella greca e romana. A questo proposito è sufficiente

6 Su questo problema si veda Cesarone, 2008.

7 Sull’argomento si vedano, tra gli altri, Asheri, 1996, p. 883-900; Manfredi, 1996. Anche Lana, 1973; Gilli, 1988.

239

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

rilevare come la tensione utopica – già presente fin dal racconto della Genesi, in cui Adamo ed Eva si trovano, ab origine, collocati nel “giardino di Eden” – percorre tutta la storia dì Israele fin dai primordi, quando Abramo, su esplicito invito di Dio, lascia la propria terra per recarsi in un altro luogo, di cui egli non conosce nemmeno l’esistenza; tale luogo, in quanto sconosciuto si presenta come “non luogo” (ou-topia), mentre in quanto “terra promessa”, ossia come la terra in cui Abramo e la sua discendenza godranno di un futuro di gloria e di benedizione, essa si presenta come il “buon luogo” (eu-topia). Ma di spirito utopico è impregnata l’intera storia d’Israele: da Mosè a Davide, dai profeti ai movimenti apocalittici; una storia caratterizzata dall’attesa del regno messianico, in cui trionferà la pace, la giustizia, la virtù, il benessere e che sfocerà poi nel messaggio evangelico, che con la sua istanza dell’amore del prossimo costituisce il più grande e radicale fenomeno utopico della storia umana, che impregnerà di sé non solo il Medioevo, ma anche l’intera modernità, dove l’utopia, con la sua crescente tensione realizzativa, si lega in maniera così strettamente alla storia come mai era accaduto in passato.

Ecco perché qui si insiste a caratterizzare l'utopia anzitutto come il progetto della storia, ossia come il progetto che gli uomini, di generazione in generazione, elaborano e tentano di realizzare, senza però mai riuscirci fino in fondo, proprio a causa della loro finitudine, che implica l'imperfezione, l'errore, il male. E a questo proposito, mi preme inoltre sottolineare, contro l'opinione corrente, che il progetto utopico non è affatto il frutto di una fantasia sbrigliata, un mero gioco letterario, ma nasce da una profonda coscienza etica, la quale spinge l'uomo a impegnarsi per cambiare lo stato di cose presente, ritenuto ingiusto e insostenibile. Il progetto utopico, quindi, non è solo un modello teorico, ma, in quanto è proteso, per sua natura, alla realizzazione, richiede un forte impegno anche sul piano della prassi. Lungi dall'essere qualcosa di "astratto", esso è estremamente concreto, poiché nasce in un determinato contesto storico ed esprime i bisogni concreti di una determinata società, anche se tali bisogni non sono sempre immediatamente realizzabili, per l'immaturità dei tempi.

L'utopia si caratterizza, dunque, in quanto "progetto", anche come bisogno della storia. Invero, ogni progetto, per sua natura, nasce da un bisogno; ossia dal bisogno di mutare la realtà che, così com'è, risulta carente, inadeguata a soddisfare le esigenze dei singoli o della società in generale. Esigenze che, essendo l'uomo una creatura libera e creativa, si presentano sempre caratterizzate da un certo dinamismo, la cui intensità varia, ovviamente, a seconda dei tempi e dei luoghi. Storicamente è accaduto che le società e le epoche maggiormente dinamiche sono state quelle che hanno espresso un maggior bisogno di progettualità e quindi un maggior bisogno di utopia. In questo senso, si può dire che l'utopia si rivela come il motore della storia. Ecco perché è davvero strano che proprio in una fase storica come la nostra - cioè dinamica e quindi impregnata di spirito utopico forse quante altre mai - si sia parlato – soprattutto dopo il crollo dell’impero sovietico - di fine dell'utopia. Ma ciò è accaduto, come ho già chiarito in altri miei scritti, soprattutto a causa di una serie di equivoci sul concetto di utopia, su cui

240

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

qui non posso soffermarmi. Tuttavia, proprio da quanto si è fin qui detto, è chiaro infatti che l’utopia non potrà mai aver fine, o meglio durerà fino a quando ci sarà l’uomo e la storia, cui è indissolubilmente legata.

Utopia e letteratura

E vengo ora a quello che può essere considerato il terzo livello del pensiero utopico, ossia quello letterario, che, come si diceva, nonostante sia il più “recente” sul piano cronologico rispetto agli altri due, è tuttavia il più noto e studiato. La letteratura utopica si è imposta infatti all’attenzione non solo degli studiosi, ma di gran parte dell’umanità, in primo luogo, perché suo tramite l’utopia ha cominciato a manifestarsi in forme che, sebbene inizialmente si presentavano alquanto nebulose, successivamente sono diventate sempre più chiare e definite. Si può dire che l’utopia letteraria abbia fatto la sua prima apparizione in quel grande e prezioso serbatoio della memoria collettiva costituito dalla produzione mitologica, in cui il progetto utopico resta fondamentalmente «implicito» (cf. Colombo, 1977, p. 78 et seq.), in quanto è ancora confinato e avvolto nel possente e ricco immaginario del pensiero mitico: si pensi ai miti dell’età dell’oro, delle isole felici, delle isole dei beati, in cui compaiono le istanze dell’abbondanza dei beni, della longevità, dell’assenza di malattie, della pace, della giustizia e via dicendo.

In particolare, la letteratura greca trabocca di istanze utopiche, a partire da Omero e passando attraverso Esiodo, Solone, i tragici e, soprattutto, la commedia attica antica, nella quale la tensione utopica si esprime sia nella forma leggera e giocosa dell’utopia gastronomica, ossia degli automata aghatà (che anticipano i racconti sul Paese di Cuccagna), sia nella forma della parodia e satira politica che, già presente in Eupoli (I demi), trova in Aristofane il suo rappresentante più insigne, attraverso opere come Acarnesi, Pace, Lisistrata, Ecclesiazuse, Uccelli. Qui è opportuno sottolineare il fatto che queste commedie non furono solo scritte, ma venivano rappresentate ad un vasto pubblico; il che dimostra che in Grecia il dibattito sull’ariste politeia, ossia sulla “costituzione migliore”, non era tanto un fenomeno elitario riservato a pochi teorici o intellettuali (legislatori, filosofi, urbanisti ecc.), ma un fatto socio-politico di più vasta portata, che coinvolgeva, sia pure indirettamente, anche i ceti popolari.

Solo se inquadrate in un siffatto contesto politico-culturale, si possono comprendere meglio i progetti utopici di Ippodamo di Mileto, di Falea di Calcedone e, soprattutto, di Platone (Repubblica, Politico, Crizia, Leggi), ma anche di Aristotele (Politica, VII, 1325b). Un dibattito - come ci attesta, tra gli altri, lo stesso Aristotele (cf. Politica, II, 7, 1266b) - straordinariamente ricco e stimolante, cui partecipano altri autori, come Antistene (Ciro o della monarchia), Senofonte (Ciropedia), Isocrate (Busiride), il cinico Diogene e lo stoico Zenone, che scrissero entrambi una Politeia, di cui ci rimangono, purtroppo solo alcuni frammenti. In età ellenistica, il dibattito sull’ariste politeia, che aveva tenuto il campo per circa due secoli, cede il posto all’utopia romanzata, o meglio, ai miti utopici, che per altro non erano mai venuti meno

241

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

durante quel dibattito: basti pensare al mito di Atlantide e dell’antica Atene, di cui Platone parla nel Timeo e nel Crizia, oppure alla “Terra di Merope” descritta dallo storico Teopompo di Chio. Nell’età alessandrina, tuttavia, sia per la crisi della polis sia per il dinamismo delle esplorazioni geografiche, cui aveva dato impulso Alessandro (si pensi a Nearco, Onesicrito e, più oltre, Megastene), la tensione utopica si esprime soprattutto attraverso il racconto di viaggi straordinari e di ritrovamento di terre e popoli sconosciuti. In questo contesto si collocano autori come Ecateo di Abdera (Aigyptiakà, Sugli Iperborei), Evemero di Messene (Hierà anagraphé, in cui si parla dell’isola di “Panchaia” ), Giambulo (Heliopolis), Plutarco (De facie in orbe Lunae, in Moralia, 941-45), Dione Crisostomo (Euboico o il Cacciatore, in Orationes, VII), Luciano di Samosata (Vera Historia) (cf. Bertelli, 1982; Tortorelli, 1982; Iacono, 1996).

Qui si potrebbe continuare, passando in rassegna gli scritti utopici presenti nella letteratura latina o in quella medievale, ma ritengo sia sufficiente questa rapida sintesi della letteratura utopica nel mondo greco, per avere un’idea della grande ricchezza di proposte che sono state espresse all’interno dell’utopia letteraria. Un contributo che, con l’evo moderno, a partire dall’Utopia di Thomas More, diventa ancor più importante e decisivo, perché l’esplosiva produzione di romanzi utopici in questo periodo storico attesta, in maniera inoppugnabile, la diffusione pressoché ubiquitaria dello spirito utopico e, quindi, quanto grande e urgente sia stato, negli ultimi secoli, il bisogno di mutamento sociale, o meglio, il bisogno di costruire una società secondo giustizia. Non è un caso, infatti, se questo profondo anelito verso un mondo migliore sia sfociato - anche a causa delle resistenze dei diversi gruppi di potere - in quei grandiosi, straordinari, ma, talvolta, anche tragici eventi che sono le rivoluzioni e, in generale, i movimenti di protesta che hanno caratterizzato l’intera modernità, fino ai nostri giorni. Ed è chiaro che a far crescere in modo imperioso e ubiquitario tale tensione realizzativa che, come si è prima visto, costituisce uno dei caratteri fondamentali della coscienza utopica di ogni tempo, ha dato un contributo di prim’ordine anche l’utopia letteraria, che nella modernità occidentale ha avuto una fioritura particolarmente rigogliosa. E ciò non solo perché, com’è noto, la letteratura ha svolto da sempre, implicitamente o esplicitamente, una funzione politica, ma anche perché essa, come osservava Max Frisch, “produce” l’utopia che l’uomo e la società potrebbero essere diversi (2008, p. 35). Senza dire poi che è stata la letteratura utopica, in particolare con le opere di Platone e di Thomas More, a definire con chiarezza il concetto (ante litteram) di utopia e a dare alla progettualità utopica finalmente un nome proprio.

Ritengo, a questo punto, di aver portato sufficienti ragioni atte a mostrare che l’utopia, per essere adeguatamente intesa in tutta la sua complessità, deve essere studiata ed analizzata tenendo presente i tre livelli fondamentali (e cioè antropologico, storico e letterario) su cui essa si struttura. Solo se si adotta tale approccio ermeneutico l’utopia potrà finalmente essere liberata dagli equivoci e dai fraintendimenti che per secoli l’hanno svisata e banalizzata.

242

COSIMO qUARTA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Riferimenti bibliografici

AA.VV. Decidere per la speranza. Assisi: Cittadella Editrice, 1972.

ALEXANDER, R. "The Evolution of the Human Psyche". In: MELLARS, P.; STRINGER, C. (eds.). The Human Revolution. Princeton: Princeton University Press, 1989.

ASHERI, D. "Colonizzazione e decolonizzazione". In: SETTIS, S. (a cura di). I Greci. Storia Cultura Arte Società, 1. Noi e i Greci. Torino: Einaudi, 1996.

BENEDETTO XVI. Spe salvi. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2007.

BERTELLI, L. "L’utopia greca". In: FIRPO, L. (a cura di). Storia delle idee politiche economiche e sociali, vol. I. Torino: UTET, 1972, p. 463-581.

BLOCH, E. Il principio speranza. Frankfurt a.M.: Garzanti, 1994 [1973].

BODEI, R. Il libro della memoria e della speranza. Bologna: Il Mulino, 1995.

BOURGEOIS, H. La speranza ora e sempre. Brescia: Quareniana, 1987.

BURDESE, A. "Le istituzioni romane". In: FIRPO, L. (a cura di). Storia delle idee politiche economiche e sociali, vol. I. Torino: UTET, 1972.

CESARONE, V. Per una fenomenologia dell’abitare. Genova-Milano: Marietti, 2008.

CHARDIN, P. TEILARD DE. Il fenomeno umano (1938-1940). Milano: Il Saggiatore, 1968, p. 217-218.

CHARDIN, P. TEILARD DE. L'avvenire dell'uomo. Milano: Il Saggiatore, 1972.

COLOMBO, A. L’utopia. Rifondazione di un’idea e di una storia. Bari: Nuova Biblioteca Dedalo, 1997.

DANIELOU, J.; DANIEL-ROPS, H.; PIEPER, J. La speranza. Dono e conquista. Milano: Massimo, 1999.

FERRARY, J. L. "Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana". In: FIRPO, L. (a cura di). Storia delle idee politiche economiche e sociali, vol. I. Torino: UTET, 1972.

FRISCH, M. "Chi ascolta Madre Coraggio", articolo inedito sull’impegno degli scrittori, pubblicato in: Il Sole 24 Ore, 19 ottobre 2008.

GALLOT, J. Il mistero della speranza. Assisi: 1971.

GARAUDY, R. Progetto speranza". Assisi: Cittadella Editrice, 1976.

GHIDINI TORTORELLI, M. "Modelli utopici del pensiero greco". In: MATTEUCCI, N. (a cura di) L’utopia e le sue forme. Bologna: Il Mulino, 1982, p. 59-71.

GILLI, G. A. Origini dell’eguaglianza. Torino: Einaudi, 1988.

GIRARD, R. Portando Clausewitz all’estremo. Milano: Adelphi, 2008.

HEIDEGGER, M. "Costruire, abitare, pensare". In: Saggi e discorsi. Milano: Mursia, 1976.

243

lIvEllI dEl PENSIERO UTOPICO: ANTROPOlOgIA, STORIA, lETTERATURA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

IACONO, A. M. "L’utopia e i Greci". In: SETTIS, S. (a cura di). I Greci. Storia Cultura Arte Società, I, Noi e i Greci, Torino: Einaudi,1996, p. 883-900.

JOHANSON, D.; SHREEVE, J. I figli di Lucy. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1991.

LANA, I. Studi sul pensiero politico classico. Napoli: Guida, 1973.

LEVI MONTALCINI, R. Elogio dell’imperfezione. Milano: Garzanti, 1987.

MANFREDI, V. M. I Greci d’Occidente. Milano: Mondadori Silvestroni, 1996.

MELCHIORRE, V. Sulla speranza. Brescia: Morcelliana, 2000.

MILLER, G. Uomini, donne e code di pavone. Torino: Einaudi, 2002.

MOLTMAN, J. Teologia della speranza. Brescia: Queriniana, 1969.

PFEIFFER, J. E. La nascita dell’uomo. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1973, p. 316-317.

SARAGOSA, A. "Poveri o ricchi, tutti ottimisti con qualche (rara) eccezione". In: Il Venerdì di Repubblica, 19 giugno 2009, p. 77.

SIKES, B. Le sette figlie di Eva. Le comuni origini genetiche dell’umanità. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2003.

TIGER, L. Optimism. The biology of hope. New York: Kodansha, 1979.

Utopia e socialismoIvone GalloPontifícia Universidade Católica de Campinas

Universidade Estadual de Campinas

Grupo de Estudos Renascimento e Utopia

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Resumo

Durante o século XIX, o conceito de utopia assumiu uma conotação negativa no sentido de sonho irrealizável, portanto sem função, desnecessário para um século dominado pela crença na solução científica dos problemas. Dentro da perspectiva de uma reflexão social, notamos a persistência desse sentido em Marx e Engels na interpretação que propuseram para o socialismo francês e inglês contemporâneos, tão combatidos por eles. Os próprios socialistas que se tornavam objeto desta crítica, entretanto, a rebatiam pela proposição de uma ciência no lugar de uma utopia que igualmente condenavam. O nosso objetivo é o de refletir sobre um conceito positivo de utopia para a análise do pensamento de Charles Fourier, que se aparte tanto dos postulados do materialismo histórico quanto daqueles da teoria do conhecimento fundados na clássica oposição entre Utopia e Ciência.

Palavras-chave

Ivone Gallo possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1982), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1992) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2002), com pesquisa no exterior. Atualmente é docente da Faculdade de História da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e pós-doutoranda pelo departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas. Participa como pesquisadora do Grupo Temático Escritas da Violência e do U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia, ambos sediados no IEL/UNICAMP. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: Brasil República, socialismos século XIX, Charles Fourier, milenarismos e utopias, movimentos sociais séculos XIX e XX.

246

IvONE gAllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

A proposta de pensarmos a Utopia enquanto gênero apresenta-se como um grande desafio, sobretudo quando levamos em consideração a totalidade de interpretações agregadas ao conceito

ao longo do tempo e que incluem as dimensões, entre outras, literária, filosófica, psicológica, sociológica e política. Sem relegar a segundo plano as contribuições trazidas por estes domínios, a ênfase na abordagem que proponho recai na interpretação da utopia como gênero à luz da história e, portanto, calçada tanto na sua formulação pelos sujeitos históricos como na recepção que no tempo se faz delas. Essa escolha, entretanto, não elimina os embaraços quanto à complicada relação literatura/história na definição dos campos da ficção/realidade, principalmente em se tratando da abordagem do socialismo chamado utópico, ponto em que se concentra este artigo.

Sem dúvida, o tema das utopias adquiriu uma maior importância com Thomas Morus, no século XVI, que cunhou o termo utopia retomando sob uma nova perspectiva as reflexões de Platão. No contexto dos cercamentos na Inglaterra, Morus criou como um contraponto da realidade um país imaginário, uma ilha, como uma cidade ideal que ele pode ver em imaginação e descrever. A inovação de Morus residiu no fato de estabelecer um problema a partir do jogo ficção/realidade, manobrado com sucesso por meio da comparação do mundo desconhecido com a situação do presente, o que cria uma tensão para o leitor ou ouvinte do relato de Hithlodeus entre o mundo tal qual é e como na verdade deveria ser ou poderia ser/ter sido. As ambivalências do discurso de Morus marcaram profundamente os vários sentidos atribuídos à palavra utopia e ao gênero utópico, porém, a cada aparição na história, vemos acrescentarem-se novos significados à palavra visando expressar um olhar marcado pelo seu próprio tempo, com um foco nos seus ritos, mitos, temores e saídas possíveis e que caracterizam o próprio sentido da utopia. Essas atribuições das utopias, na verdade, já nos levariam a enxergar nelas um elemento ativo positivo bastante marcado, mas o mundo contemporâneo fechou-se em grande parte para esta hipótese de leitura, pois ao simples soar da palavra nota-se a prevalência de um de seus sentidos apenas, o de mera ficção, mas não aquela do tipo crítico positivo, e sim a do devaneio sem compromisso, a que se entregariam somente as figuras patéticas ou mesmo os loucos. Aqui reside o problema nuclear sobre o qual pretendo me debruçar numa abordagem da utopia na perspectiva do pensamento e do movimento social do século XIX na vertente do fourierismo e do marxismo, relação esta capaz de nos confrontar com o seguinte: toda imaginação utópica advém do real do qual visa abalar a legitimidade e apenas se realiza plenamente quando a ele se remete seja como forma concreta adquirida pelo que antes não passava de idéia, seja na simples formulação de idéias que enquanto tal reponham a necessidade de uma reflexão crítica sobre o real. Para o caso específico que nos propusemos a analisar, isto é, entre Fourier e Marx, entre utopia e socialismo forma-se um jogo de espelhos em que um é o outro, faltando-nos apenas definições dos nomes e das coisas.

Convém nos lembrarmos aqui também de que, para o caso do socialismo do século XIX, uma grande matriz é Morelly¹ cuja influência,

¹ Morelly, 1994. A primeira edição teria saído em 1755, sem que se desse a conhecer o autor.

247

UTOPIA E SOCIAlISMO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

inclusive é bastante forte em segmentos da militância fourierista, sobretudo em Villegardelle².

Se partirmos da síntese intentada por Dubois (1968), notamos que no período em que este autor apresenta um balanço da questão, parecia vital a busca de um elo comum que, perpassando todos aqueles níveis de abordagem das utopias, fosse capaz de revelar, de fato, uma estrutura da Utopia apta agora a nos fornecer uma explicação das suas características gerais e mais profundas. Mais do que isto, numa época de total negação dos valores já consolidados, tratava-se, sobretudo, de repor o tema das utopias na perspectiva da sua utilidade ou não como base para as transformações sociais almejadas, caso contrário, inclusive, não se teria como explicar a retomada do tema e das práticas nos anos de 1960 e 1970 de uma maneira tão penetrante.

Do conjunto das reflexões de Dubois depreende-se que a Utopia pertence eminentemente ao campo das idéias, das emoções e da afetividade, e que enquanto imaginação nascida do campo literário e ficcional a ele obrigatoriamente adere suas raízes. No âmbito deste debate que suscita uma polêmica de fôlego, cujo desfecho, inclusive é de difícil solução, sobretudo assim, em tão poucas páginas, acredito, apesar destes obstáculos, que o olhar do historiador talvez possa adicionar mais alguns pontos importantes ao conjunto daqueles já em discussão. Que as utopias mantenham um vínculo estreito com o domínio da imaginação, ninguém seria capaz de negar, porém, junto com isto nasce a suspeita sobre o fato de que suas expressões permaneçam restritas ou possíveis apenas enquanto idéias e que a sua efetividade deva-se mais pela habilidade de uma construção literária astuciosa do que pela capacidade que comportam de realização, ou ainda, pelo fato de residir na própria utopia um real e também um real virtual, como um duplo do real que experimentamos (sua versão corrigida e melhorada). Deste modo, embora os enlevos da imaginação constituam os leitos que embalam as utopias, as formas literárias acabam por constituir-se como uma das suas expressões apropriadas, sendo outras o terreno da práxis onde estão imbricadas ações e idéias. O modo então como os homens fazem a história preserva um elo estreito com o jogo das utopias/distopias. Neste caso, podemos tanto vislumbrar uma tradução do texto para o contexto, como produções de texto que tinham sido anteriormente fabricadas no agir humano, ou ainda, negações recíprocas.

A proposta que apresento é a de interpretação da utopia na sua vinculação, para mim essencial, de tempo-espaço tomando como objeto o debate de Marx e Engels sobre o socialismo utópico, em especial a abordagem por eles do pensamento de Fourier³. Acredito firmemente que uma reflexão sobre a utopia calcada na análise dos seus sentidos dentro de um período histórico permite levantar problemas com relação a uma autonomização das idéias como sistemas ou estruturas sobrepostas ou desligadas da concretude do real e que a ele se ligassem por uma “fabulação prática”, para roubarmos termos retomados por Dubois (1968, p. 38). A partir das grandes matrizes do pensamento que de diferentes formas procuraram abordar esse teorema chamado utopia, a começar por Morus, depois o próprio Dubois, Marx

² Fourierista que publicou uma edição de Morelly em 1841 restabelecendo a verdadeira autoria da obra falsamente atribuída a Diderot. Ver Moraes in Morelly, 1994. Vale ainda lembrar que parece curioso o fato de que um fourierista fizesse publicar uma obra de cunho comunista, pois o próprio Fourier se mostrava cético com relação ao comunismo.

³ A partir das afirmações destes autores inclusive, nota-se a importância da retomada do debate nos anos 1960 a respeito do tema das utopias sobre o qual Dubois elabora questões vitais para uma nova valorização.

248

IvONE gAllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e Engels, Mannheim, Ernest Bloch4, num amplo leque de opções, nos preocupamos em delimitar os campos de possibilidade da encenação da própria história como ficção, enquanto talvez nos esqueçamos das formas da imaginação criativa que, brotando da própria história, tornam-se capazes de informar a realidade objetiva no sentido da sua transformação. Eis a essência da utopia, essa capacidade de sonhar acordado que nos revigora pelo estímulo da esperança diante do incômodo da vida. Evidentemente, que os planos e ideais acerca do real só se tornam comunicáveis a partir de uma linguagem capaz de traduzir o pensamento de forma inteligível5. Por isto mesmo, uma reflexão sobre a construção literária e mais precisamente, sobre sua condição de construção e de suas características, bem como da direção que assume importam para uma reflexão acerca da própria utopia. Tomemos como exemplo então, a fala que se segue capaz de remeter aspectos de teorias socialistas da primeira metade do século XIX para o terreno da ação:

Tenhais fé no amanhã: o velho mundo vai desaparecer com seu caos. O homem degenerado vai se regenerar numa ordem de coisas mais em harmonia com as suas necessidades. Se existirem ainda lágrimas, elas serão menos amargas. Pouco a pouco o contraste aflitivo da opulência e da miséria desaparecerá. Todos recebendo em abundância o alimento espiritual e material, sob o império da justiça e da liberdade, vós vos tratareis por irmãos, e entre vossas mãos os bens que a providência vos terá repartido se multiplicarão (...) trabalhadores, nossos irmãos, levantai-vos! Já soa a hora da liberdade pelo trabalho. Outros depois de nós persistirão na obra da propaganda (...) e nós estamos convencidos de que o ardor do proselitismo deles será muito mais frutuoso logo que um fato prático complete o ensinamento e sirva para recolher e utilizar as convenções esparsas6.

O interesse do exemplo vem justamente do fato de representar uma apropriação, uma tradução pela militância operária de correntes distintas do socialismo de então - o de Fourier e o de Saint-Simon, sobretudo - que numa síntese se mesclaram e dirigiram-se para a realização da utopia na e pela história. A necessidade dos operários em buscar soluções imediatas para os seus problemas resultou na elaboração de inúmeros projetos de comunidades fourieristas para os quais os militantes empreenderam esforços e propagandas no intuito de sua realização em tempo breve. No movimento operário a propaganda tornou-se ato, notamos o abandono da ficção e da linguagem mais elaborada em nome do pragmatismo. Se no material de propaganda ou em falas durante reuniões festivas se abusasse com freqüência da linguagem figurada, mesclada também a elementos de realidade, o recurso a figuras de linguagem não visava outro objetivo que o de estimular, pelo entusiasmo, uma ação7.

Mas aqui cabe uma segunda ordem de reflexões, antes de entrarmos no julgamento de Marx e Engels sobre o socialismo de Fourier. Se a nossa idéia nos antecipa que entre a literatura de Fourier e o movimento operário (o real), existe um descompasso, certamente nos enganamos e, em segundo lugar, se encaramos a literatura de Fourier como a de Morus, incorremos novamente em enganos. Todo estudioso da obra de Fourier se dá conta

4 Todos os autores citados já são suficientemente conhecidos, mas sobre Ernest Bloch tivemos uma edição em português recente (2005-2006). Nele encontramos uma releitura de um Marx utopista no sentido positivo, ponto de vista heterodoxo até pelo resgate no racionalismo marxista de um humanismo. Sobre Bloch há muitas leituras interessantes, entre elas a de Suzana Albornoz (2006), cujo recorte na ética, na moral e no engajamento pressuposto na utopia contribuem para a minha argumentação.

5 Baczko, 1989. Ver p. 17 onde afirma que “utopia is not only imagined and thought; it is made intelligible and communicable in a discourse by which the marging of the idea-images and their integration into a language is accomplished”.

6 Manifesto que acompanha os estatutos da Société Union Industrielle, Paris, 1841. A sociedade congregava operários franceses adeptos de Charles Fourier que vieram ao Brasil estabelecer o Falanstério do Saí (SC), entre 1841-1845. De resto, o tom ameaçador a respeito de uma guerra social, explicitado no documento, em nada faz lembrar aquelas “aspirações instintivas dos operários” mencionadas no Manifesto do Partido Comunista, p. 45.

7 Existem publicações sobre os banquetes falansterianos em que os discípulos de Fourier reuniam-se em datas comemorativas, ou como forma de angariar recursos para a formação de falanstérios ou simplesmente como pretexto para estarem juntos. Nestas publicações constam poemas declamados, como homenagens, brindes ofertados, sempre com menção às expectativas de superação

249

UTOPIA E SOCIAlISMO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

imediatamente de que ele nos fala de um mundo conhecido e o faz de uma forma muito direta. Paris é a Paris conhecida e tomada como exemplo expandido de outras grandes capitais por representar a civilização, modelo de desenvolvimento criticado por ele. O seu texto está plasmado à realidade do momento da qual busca o próprio ser, daí a crítica aos economistas liberais cujas teses mirabolantes que defendem apresentam como resultados as catástrofes sociais, nitidamente desenhadas na época. Daí também a opção de Fourier pela aceitação de uma ciência vinculada não mais a formulações complicadas, mas a coisas simples vindas da experiência, uma ciência aplicada, em oposição à “catarata intelectual”.

Por outro lado, se poderia argumentar em contrário que na escrita de Fourier existe também um retrato do mundo diferente do mundo que é, porém para ele nada ali há de ficção, mas uma realidade de um duplo do real, sua essência, sua consistência, que fora impedida de concretizar-se. Em virtude destas concepções é que existe para Fourier a negação da utopia e a afirmação do pragmatismo, como se ele estivesse a nos lembrar de que o mundo vivido representa uma realidade invertida, desvirtuada. Aqui, novamente vislumbramos a possibilidade de negação, para o caso que analisamos, das teses de um dos maiores expoentes na análise das utopias como foi Karl Mannheim. Para ele, embora exista um reconhecimento de que as ideologias e as utopias não possam ser avaliadas a partir de um absoluto (apenas como idéia anterior), mas ao contrário, a partir do sujeito (o que organiza a idéia a partir da legibilidade de uma determinada realidade), enquanto estados de espírito que são, permanecem no nível da transcendência; aí estaria sua utilidade, na medida em que, distantes da realidade mais imediata seriam efetivas na sua oposição a ela. Para as utopias não haveria então outra chance de sobrevivência que o mundo extrínseco, pois uma vez realizada, a idéia corre o risco de transformar-se em ideologia. Essas teses encontrariam mesmo um problema se confrontadas com os próprios escritos de Morus, para quem a utopia não é o lugar inexistente, mas aquele que será8. Para o caso de Fourier, vale dizer duas coisas: da importância da metafísica na construção do real e na compreensão do sujeito como fabricação coletiva, que por conta do espaço não desenvolveremos aqui, mas que explicam plenamente sua recusa dos antagonismos e sua opção pela confraternização universal como uma saída para a humanidade. A sua opção de construção do sujeito, sobretudo, nos faz entrever a consonância da sua literatura, não como uma representação filtrada do real, mas como o retrato de uma condição humana do momento.

Gostaria agora, antes de continuar, de chamar a atenção para uma comparação aproximativa entre a utopia no século XVI e a utopia no século XIX, pois parece que em ambos os casos aparece discutível um destaque do aspecto meramente ficcional das suas proposições. Em Morus e em Fourier, a ficção (e aqui no seu sentido negativo) parece estar no mundo conhecido, o que nos leva a compreender uma inversão com relação aos modelos interpretativos tradicionalmente aceitos que vêem nas utopias o irreal ou o imaginário em sentido negativo. Uma segunda e última observação seria sobre um olhar geral e panorâmico das utopias na linha

da realidade do momento. Em obras de difusão dos princípios fourieristas para o público, como os Almanach Phalanstèrien ou folhetos como o Calendrier Social as palavras e as imagens tornavam-se instrumentos de sedução e de conversão para a causa. Tudo isto está de acordo com o que livremente chamarei de cultura popular e nada tem com alienação ou falta de consciência. A análise das fontes fourieristas também aponta para o fato de que o socialismo de Charles Fourier não se restringia à pequena burguesia tendo alcançado destaque no movimento operário que conhecia e discutia aspectos fundamentais da teoria de Fourier.

8 Sobre o sentido metafórico utilizado por Morus em seu livro ver o interessante artigo de autoria de Cosimo Quarta, 2006. Neste artigo observa-se a construção inteligente de oposições do tipo loucura/sabedoria, nunquam/Abraxa, ou-topia/eu-topia.

250

IvONE gAllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

temporal que permite vislumbrar, no caso dos socialismos, um abandono da matriz literária em favor de uma reflexão de caráter histórico-filosófico, o que procuraremos analisar daqui por diante nas suas várias implicações.

Na perspectiva do materialismo histórico, o primeiro socialismo é interpretado como socialismo utópico, carregando esta denominação um sentido negativo comparativamente ao comunismo. As teses a respeito destas singulares diferenças foram esboçadas no Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, quando ambos buscavam uma síntese que explicasse um esmorecimento do movimento operário naquele momento. Todavia, em contradição com este ponto de vista, a primeira edição destes manuscritos teria saído em Londres em fevereiro de 1848, justamente coincidindo com ano e mês marcado pela “primavera dos povos”. No prefácio à edição alemã de 1883, Engels explicava que naquele momento em que Marx repousava no seu túmulo em Highgate, sobre o qual já “reverdece a primeira relva”, a história, desde a dissolução da propriedade comum, tinha sido a história da luta de classes (classes exploradoras e classes exploradas), e consolidava as teses iniciais do texto a respeito da missão histórica do proletariado acerca de uma emancipação geral de todas as classes. Mas que proletariado seria este? Certamente, não o proletariado que promovia as revoluções de 48, mas um proletariado evoluído, informado pela ciência e não pela utopia. Enfim, um proletariado imaginado.

Em virtude deste desencontro entre as impressões acerca do movimento social do período de Marx e Engels e a realidade histórica se faz necessária a referência ao Manifesto do Partido Comunista9.

Em janeiro de 1848 uma primeira publicação, em alemão, do então intitulado Manifesto do Partido Comunista aparece em Londres pela Sociedade Educativa para Trabalhadores, sem que os autores se dessem a conhecer. Aliás “os nomes de Karl Marx e Friedrich Engels aparecem pela primeira vez como os autores do texto na edição alemã de 1872, publicada em Leipzig, já com o título de Manifesto Comunista (Kommunistische Manifest)” (cf. Batalha, 1998). O texto, hoje lido como uma síntese primeira do que viria a representar em forma mais elaborada o materialismo histórico em escritos posteriores, suscita ainda múltiplas leituras. De todo modo, convém ressaltar que uma das inquietações dos autores no momento em que se dedicavam à sua confecção, no ano de 1847, era, na interpretação deles, a pasmaceira que assombrava o movimento operário, daí a tentativa do Manifesto de buscar as razões para isto, tanto quanto de apresentar soluções. Na primeira parte do texto o problema é apresentado a partir da caracterização da sociedade atual como dividida entre burgueses e proletários. Uma explicação mais acabada da concepção de classe será fornecida ao longo do texto e é formulada na proposta de que a classe depende para a sua consolidação de duas coisas postas no mesmo grau de importância: o desenvolvimento das forças produtivas (não como algo programado, inclusive) e a centralização política dos meios de produção e bem como da própria produção10. Esta primeira parte garante o desenvolvimento dos argumentos apresentados na seqüência do texto sobre o proletariado e a sua missão histórica de, enquanto

9 A crítica ao socialismo utópico em oposição a um outro socialismo, científico, é desenvolvida também como uma crítica à metafísica elaborada no Anti-Dühring por Engels. Evidentemente, uma crítica ao primeiro socialismo ou mesmo às utopias não estão restritas a estes autores, mas para o caso do socialismo o debate levantado por Marx e Engels demarcou um campo de discussão.

10 Sobre esta interpretação incomum ver Boito, 1998. As referências no Manifesto que permitem chegar a isto estão na p. 25 (edição Alfa-Omega, s/d).

251

UTOPIA E SOCIAlISMO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

classe, submeter a ordem burguesa, transformando o mundo em prol da humanidade inteira. No Manifesto, nota-se a frustração dos autores com relação às expectativas iniciais, pois a classe na qual depositam as esperanças salvacionistas parece não responder às exigências que a tornam de fato sujeito histórico. Na óptica marxista, seria a sua transformação em classe para si, quer dizer, que age conscientemente acerca do seu lugar na sociedade e também do seu papel, portanto, instruída não mais no socialismo, mas no comunismo, como um verdadeiro socialismo (científico e não utópico). Mas, pouco tempo depois da publicação do manuscrito, em janeiro de 1848, estourou na França a revolução de 1848, fato para nós muito importante como ponto de referência se tivermos em mente os motivos levantados no Manifesto para o insucesso de uma revolução proletária: a compreensão do seu papel de classe, a sua organização num partido, por mais livre que se torne para nós a compreensão desta palavra. A explicação do fracasso vem do erro em deixar-se conduzir pela burguesia e a responsabilidade disto se deve, em parte, à adesão desse proletariado ao socialismo de tipo pequeno burguês que cultua a harmonia social embotando a visão da luta de classes. Na tentativa de separar-se desta tradição, Marx pleiteará o comunismo como sendo o socialismo verdadeiro, científico.

O termo ciência opõe-se no materialismo histórico ao termo utopia. O que define o materialismo histórico seria a análise racional das condições materiais da vida de uma determinada sociedade e das formas de produção da mesma, isto é, um enfoque materialista, agnóstico, racional. Na perspectiva materialista, ao inverso da metafísica, o movimento da história se define pelo antagonismo das classes, sendo a luta entre elas o que permite as transformações. A utopia, na visão metafísica, utópica, algo impalpável, imponderável, irreal, arvora-se o direito de construção da realidade. Causas extrínsecas jamais poderiam apresentar-se como motores da vida das sociedades humanas. As teses do materialismo histórico que procuram dar conta desta questão aparecem não apenas no Manifesto, mas no Anti-Dühring e na Teses sobre Feuerbach em que se opera uma crítica a respeito do pensamento que supostamente se configura como base não apenas da filosofia, mas do socialismo. O socialismo crítico utópico é visto no Manifesto como o fruto de uma época em que apenas iniciavam-se as lutas entre burgueses e proletários e, naquele momento, tornaram-se revolucionárias. O estado incipiente da luta de classes explicaria a recusa dos socialistas ao jogo político, à sua pregação, não de classe, mas em benefício de todos. Ao mesmo tempo, Marx está convencido do abandono destes modelos já em 47, fato que progredirá tão logo haja um desenvolvimento histórico capaz de despontar o proletariado como vanguarda. Haveria um descompasso, então, entre a teoria socialista e o movimento operário, este tendendo ao avanço e aquela freando a reação de classe. O socialismo utópico seria o socialismo reacionário, tese esta que já negamos anteriormente quando tratamos do Manifesto da Sociedade União Industrial.

Uma análise da literatura de Marx não oculta que o modelo escolhido por ele mais do que materializar a realidade estabelece, de fato, a sua ficcionalização, uma vez que se rompeu ali a relação entre a palavra

252

IvONE gAllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e a coisa (o operariado e a sua interpretação, expressão). Hoje se poderia fazer esta afirmação com tranqüilidade uma vez que, para os anos trinta, na França, o uso corrente de palavras como operário, proletário, trabalhador se fazia notar, portanto, denunciando pela própria presença na linguagem a sua existência no domínio anterior da experiência (Paris, 1987). Apesar das evidências históricas desta presença no Manifesto, ela é negada.

Entre Marx e Fourier, para concluir, não podemos dizer que seja possível apresentar, como se tem feito, o segundo como o estágio anterior e necessário de um pré-socialismo que, numa linha ascendente levaria ao comunismo do primeiro, como uma ciência capaz de substituir a utopia anterior. Na verdade, por caminhos diferentes ambos pretendiam chegar a um mesmo lugar, isto é, à felicidade geral da humanidade pela extinção das desigualdades sociais, da opressão e da miséria. As suas formas de pensar são muito distintas: Fourier, a partir da metafísica e da analogia, explica as contradições do real que visa superar em nome do amor e da harmonia universal; Marx, busca uma explicação do real a partir das condições objetivas e do antagonismo entre as classes, cuja luta promove o movimento da história. Ao proletariado caberia o papel de emancipação da humanidade e condução das transformações almejadas. Um estudo sobre esta diferença fundamental que resgate o sentido revolucionário da obra de Fourier e do movimento operário fourierista ainda está por ser escrito. Do mesmo modo em que na ciência de Marx e de Fourier se resgate um sentido utópico, negado por ambos, mas necessário para a compreensão do movimento da história. Enfim, isto tudo se torna relevante apenas porque existem sujeitos inconformados e com sua sensibilidade aguçada e capacidade de racionalização que trabalham incansavelmente na formulação de planos capazes de superar a dor coletiva (Fortunati, 2005).

Bibliografia

ALBORNOZ, Suzana. Ética e utopia: ensaio sobre Ernest Bloch. Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da Unisc, 2006.

BACZKO, Bronislaw. Utopian lights. The evolution of the Idea of social progress. New York: Paragon House, 1989.

BATALHA, Claudio. “O Manifesto Comunista e sua recepção no Brasil”. In: Crítica Marxista, v. 1, tomo 6, 1998.

BLOCH, Ernest. O princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. UFRJ, 3 vols., 2005-2006.

BOITO Jr., Armando. “A constituição do proletariado em classe, a propósito do Manifesto Comunista de Marx e Engels”. In: Crítica Marxista, v. I, tomo 6, 1998.

DUBOIS, Claude-Gilbert. Problèmes de l’Utopie. Archives des Lettres Modernes. Paris: Archives des Lettres Modernes, n.85, vol. IV, 1968. [DUBOIS, C-G. Problemas da Utopia. Trad. Ana Cláudia R. Ribeiro. Prefácios de Claude-Gilbert Dubois e Carlos E. O. Berriel. Campinas: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2009.]

253

UTOPIA E SOCIAlISMO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

FORTUNATI, Vita. “Utopia and Melancholy: an Intriguing and Secret Relationship”. In: MORUS - Utopia e Renascimento, Campinas, n. 2, 2005.

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. “Manifesto do Partido Comunista”. In: Obras Escolhidas, vol. 1, São Paulo: Alfa-Omega, s.d.

MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

MORELLY. Código da natureza. Apresentação de João Quartim de Moraes. Tradução de Denise Bottmann. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

PARIS, Robert. “A imagem do operário no século XIX pelo espelho de um Vaudeville”. In: Revista Brasileira de História, vol. 8, n. 15, set. de 1987/fev.1988.

QUARTA, Cosimo. “Utopia: gênese de uma palavra-chave”. In: MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n. 3, 2006, p. 35-53.

Metáforas da utopia no espaço público contemporâneo: evidências lingüísticas em português Margarida SalomãoUniversidade Federal de Juiz de Fora (Brasil)

Resumo

A presente comunicação argumenta que o discurso utópico deve ser definido como discurso metafórico por estruturar-se como compreensão de um domínio conceptual-alvo - [o Presente] - em termos de outro domínio conceptual (seu domínio-fonte), que corresponde à Alternância Utópica (ou Distópica). Um acervo de metáforas conceptuais independentemente motivadas configura semanticamente o discurso. Além disso, o estudo de evidência lexicográfica, pesquisada no discurso jornalístico praticado no Brasil e em Portugal na última década, dá conta da polissemia da Utopia, sendo acepção predominante nos usos verificados o conceito de “projeto político”.

Palavras-chave

Metáfora, discurso utópico, léxico, corpus, polissemia.

Maria Margarida Martins Salomão é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, da qual foi Reitora reeleita de 1998 a 2006. É vinculada à Faculdade de Letras, onde presentemente leciona no curso de Graduação em Letras e no Doutorado em Lingüística. É Doutora em Lingüística pela Universidade da Califórnia, Berkeley, na qual recentemente passou um ano como Pesquisadora Visitante. Introduziu em nosso país a área de pesquisa em Lingüística Cognitiva, sendo atualmente a Presidente da Associação Brasileira de Lingüística Cognitiva, que congrega os pesquisadores brasileiros da área. Como pesquisadora, orientou vinte e duas teses defendidas, tem diversos artigos e capítulos de livros publicados e uma coletânea editada pela UFMG. Seu principal projeto hoje em implantação, nas áreas de Inteligência Artificial e Lingüística Computacional, é o FrameNet Brasil, um projeto de descrição lexicográfica do português do Brasil, vinculado a um projeto mundial sediado em Berkeley, com desenvolvimentos envolvendo o espanhol, o alemão, o francês e o japonês. Também interessada em literatura e tradução, traduziu para o Português os Volumes III e VIII (Primeiros Escritos Psicanalíticos e O chiste e sua relação com o Inconsciente) da Standard Edition da Obra Completa de Freud, editada em português pela Imago. Traduziu ainda para o português Algaravia, de Jorge Semprún, e Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, ambas publicadas no Brasil pela Nova Fronteira. Traduziu do Inglês a tese de doutorado de José Guilherme Merquior Rousseau e Weber: dois ensaios sobre a teoria da legitimidade, publicada no Brasil pela editora Guanabara. Fez também o prefácio à primeira edição do livro Bagagem, de Adélia Prado, publicado pela Imago em 1976. Filiada ao PT, disputou a Prefeitura de Juiz de Fora nas últimas eleições.

256

MARIA MARgARIdA MARTINS SAlOMãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Quero, antes de tudo, agradecer a oportunidade de participar de um empreendimento intelectual tão rico e tão multifacetado: a diversidade das manifestações já trazidas à cena e a paixão com que

muitas delas se formulam testemunham a tempestividade e a relevância desta discussão, na qual vou contribuir não como especialista no tópico, mas como entendo que minha formação como lingüista – e como lingüista cognitivista – possa acrescentar à reflexão que nucleia este Congresso.

É objeto programático deste II Congresso, nas palavras de seu Coordenador, Professor Berriel, “delimitar a natureza literária da utopia e demarcar as modalidades de sua definição como gênero, localizando-o dentro da História concreta”.

Como lingüista, não tenho nenhuma dificuldade em abraçar esta tarefa, com uma pequena ressalva: a mim me parece que o discurso utópico deva antes caracterizar-se como gênero discursivo, não exclusivamente como gênero literário, em que pese a origem literário-filosófica do gênero e sua constante instanciação moderna (na vertente distópica) como narrativa literária. Acompanho o Professor Trousson, em sua manifestação de 1990, traduzida para o Português no número 2 da revista Morus, que reivindica como expressão utópica outros modos do imaginário social, independentemente de sua semiologia.

A caracterização em termos de gênero discursivo facilitaria, por exemplo, a caracterização de narrativas não exclusivamente verbais, narrativas cinematográficas (por exemplo, Blade Runner), como utópicas (ou distópicas). Facilitaria, ainda, que se discutisse o estatuto utópico de concepções urbanísticas ou arquitetônicas (primariamente não-verbais), como as de Lúcio Costa e Niemeyer em Brasília. Permitiria também que se identificasse como utópica a militância ambientalista do Green Peace ou de todos aqueles que lutam para que “um outro mundo seja possível”. Os dados que apresentarei sobre a linguagem favorecem esta posição.

Não me parece, por outro lado, que o acervo de reflexões suscitadas neste esforço de demarcação e delimitação do conceito de Utopia, tenha evoluído para a emergência dos estudos da Utopia como uma ordem discursiva, nos termos de que falava Michel Foucault em 1970. A “indisciplinaridade” que caracteriza, vantajosamente, este Congresso indica que a polissemia do conceito de Utopia é ainda conflito aberto que, talvez, não venha jamais a ser resolvido de forma pacificada, o que é, aliás, o apanágio de certos conceitos tais como os de democracia, liberdade, justiça social, “conceitos essencialmente contestados”, como os chamou o filósofo analítico Walter Gallie, em reunião da Aristotelian Society, no já distante ano de 1956.

A contribuição que pretendo aqui apresentar envolve evidência lexicográfica sobre o uso contemporâneo do lexema utopia no discurso público em Português, tal como praticado por dois importantes jornais no Brasil e em Portugal (os jornais Folha de S. Paulo e Público) no decorrer da última década e tal como tratada pelos métodos atualmente aplicados num campo relativamente recente da lingüística, a chamada lingüística de corpus. Mais de uma intervenção neste Congresso tratou da “vulgarização” (palavra deliciosa...) do conceito de Utopia e é natural que a fortuna simbólica desta metonimização do título da narrativa de Morus tenha levado à sua destecnificação, a usos não-técnicos

257

METáfORAS dA UTOPIA NO ESPAçO PúBlICO CONTEMPORâNEO:

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e nem sancionáveis do termo utopia. Por outro lado, esta difusão do uso é indicativa da recepção que o conceito encontrou na história social recente, o que o torna objeto relevante da discussão que se trava aqui.

Antes, porém de passar à evidência lexicográfica, gostaria de discutir a questão da Utopia tal como também o possibilita a lingüística cognitiva, do ponto de vista das metáforas conceptuais que estruturam o discurso utópico até para poder depois refletir sobre a deriva semântica presente nos usos contemporâneos do lexema utopia.

1. O caráter metafórico do gênero utópico

Uma exploração preliminar do discurso utópico revela que ele se constitui pela tensão entre um presente insuportável e um espaço mental alternativo, que pode ser um outro lugar (preferentemente, uma ilha) ou uma temporalidade futura, cuja afirmação elucida as limitações e as possibilidades de transformação do presente problemático.

Repercuto nesta caracterização as distinções reiteradas por Berriel (e que constam da compreensão de diversos tratadistas) de que “o gênero utópico seja definido em primeiro lugar por uma diferença radical de intencionalidade em relação aos gêneros aparentados”, e que se verifica pela recusa à transcendência. Daí que a temporalidade quando emerge (como distopia ou como forma almejada de sociabilidade (política, feminista, ecológica, tecnológica...)) é sempre temporalidade futura e sempre projeto histórico. Excluídos, por conseqüência ficam todos os “paraísos perdidos”, todas as “idades de ouro”, tanto quanto os cenários regressivos das “arcádias” e das “terras de cocanha’’.

De todo modo, por estruturar-se o discurso utópico como compreensão de um domínio conceptual-alvo - [o Presente] - em termos de outro domínio conceptual (o domínio-fonte), que corresponde à Alternância Utópica (ou Distópica), o discurso utópico se constitui diretamente como discurso metafórico e, nestes termos, interessa profundamente aos estudos cognitivos contemporâneos (antropológicos, lingüísticos, psicológicos, neurobiológicos, e, naturalmente, aos estudos filosóficos). Este conjunto de saberes tem na metáfora conceptual um tema de reflexão prioritário.

Uma pequena excursão. Em contraste às abordagens tradicionais da metáfora e da linguagem figurada como modos especiais da expressão (confinados à estética e à Retórica), os estudos cognitivos ao longo das três últimas décadas têm aduzido um crescente corpo de evidências de que a metaforização é um dos processos mais importantes e mais produtivos da vida cognitiva (no plano mental e no plano social). [Há sobre isso abundante literatura, sendo um dos textos fundadores o livro de Lakoff e Johnson de 1980, Metaphors we live by].

Não admira pois que o discurso utópico se constitua metaforicamente e, mais, que as suas metáforas estruturantes pertençam ao acervo das chamadas “metáforas primárias” (Grady, 1987), ou seja aquelas que conceptualizam as experiências humanas mais básicas, aquelas que são hipostasiadas, pelo seu caráter, como metáforas universais, uma vez que são gerativas das ontologias originárias, dos modelos culturais nuclearmente organizadores da experiência cotidiana. Figuram entre estas metáforas:

258

MARIA MARgARIdA MARTINS SAlOMãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

(i) TEMPO É ESPAÇO(ii) ESTADOS / SITUAÇÕES SÃO LUGARES(iii) MUDANÇA É MOVIMENTO(iv) A VIDA É UMA VIAGEM(v) DIFICULDADES SÃO OBSTÁCULOS AO MOVIMENTO(vi) CAUSAS SÃO FORÇAS.

A combinação de tais metáforas primárias engendra as Metáforas da Utopia, metáforas complexas, que se diferenciarão por seu conteúdo, e que podem integrar-se conceptualmente em formações híbridas, como frequentemente o fazem:

(i) A UTOPIA É UM LUGAR / UMA CIDADE(ii) A UTOPIA É UM TEMPO FUTURO (social ou pessoal)(iii) A UTOPIA É UMA ORDEM SOCIAL (ascética, socialista,

matriarcal...)(iv) A UTOPIA É A LINGUAGEM / A COMUNICAÇÃO

UNIVERSAL(v) A UTOPIA É A TECNÓPOLIS / A ECÓPOLIS ...

O discurso utópico matricial, o de Morus, situa a Utopia num Lugar (numa Ilha) e numa Ordem Social (socialista e ascética). O “encolhimento (físico) do mundo” que ocorre paradoxalmente após o Renascimento e após o progresso técnico-científico (já não há Continente Austral para onde fugir (e, segundo Drummond, nem Minas há mais...)) leva a que a Viagem utópica se desloque para o eixo do Tempo. (Nenhum problema: TEMPO É ESPAÇO e ESTADOS SÃO LUGARES. No mínimo, o peregrino poderá realizar sua jornada de auto-aperfeiçoamento e as sociedades poderão cultivar seus mitos de evolução teleológica).

Não obstante, este “encolhimento do mundo” é também registrado como redução da imaginação utópica como positividade. Não é tanto que o mundo esteja desencantado; pior é que ele esteja assombrado pelo espectro de sua própria inevitabilidade: as distopias contemporâneas (e, entre elas, as arqueologias foucaultianas) mais se apresentam como espelhos aterrorizadores do Presente do que como sua Alternância Temporal (ou Ontológica). A revelação da perversidade constitutiva de toda ordem institucional (que faz as delícias de todo desconstrutivista) é, entretanto, ainda metafórica, como é metafórico o cenário crepuscular de Gotham City.

2. O léxico da utopia em Português

Feitas estas observações sobre a natureza estruturalmente figurativa das versões mais recentes do discurso utópico (ou distópico), o estudo dos usos do lexema utopia nos indicará quais esquemas conceptuais (ou frames) são por ele suscitados no discurso público praticado contemporaneamente em Português.

Escolhemos um corpus de textos jornalísticos, uma vez que é mais provável que as ordens de temas aí tratados requeiram o uso do lexema utopia mais do que os usos conversacionais (de não especialistas...) e, para um conjunto de cinqüenta milhões de tokens, empregamos como ferramenta de busca o software Sketch Engine, desenvolvido na Inglaterra para dar suporte à pesquisa lexicográfica.

259

METáfORAS dA UTOPIA NO ESPAçO PúBlICO CONTEMPORâNEO:

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Neste corpus, registramos 676 instâncias do lexema utopia, distribuídos em seis tipos de usos:

i. Como Nome Próprio (de Boates, Bares, músicas, livros, projetos, grupos). Ex.: O encontro foca a realidade dos africanos em Portugal e insere-se num ciclo promovido pelo Grupo Utopia...

ii. Como narrativa. Ex: ...a história do pequeno índio é uma vibrante e terna homenagem à coexistência dos seres vivos na superfície da terra. Uma simpática utopia, felizmente traduzida para o Português.

iii. Como sonho, desejo, aspiração. Ex: Tudo que é ato é primeiro utopia, desejo. ...Maria del Mar Bonnet confunde-se com o mito e a alma da Catalunha. Sua voz é marcada pelas raízes tradicionais e pela utopia... Naquele lugar é que o povo lançava ao rio suas utopias...

iv. Como projeto impossível. Ex: O ideal seria que toda gente tivesse acesso ao ensino superior, ao doutoramento. Mas isso é uma utopia como a do pleno emprego.

v. Como lugar/ tempo imaginário. Ex: O tempo da promessa será obra de Deus. Virá quando ele entender... A utopia, pelo contrário, é construção da mente humana... Ciberespaço: os mesmos que dizem que já não há lugar para utopias, não se apercebem que estão a construir uma, o ciberespaço, em torno das promessas da internet...

vi. Como projeto político. Ex: ...vale mais ter uma utopia mesmo pervertida, do que não ter nenhuma. Sem ela, os povos não sobrevivem....Voltando ao título deste artigo, não é claro que o crédito educativo represente um movimento em direção à utopia social. Assim a democracia participativa é hoje uma utopia, reclamada por personalidades insuspeitas, tais como o Presidente da República....

A distribuição da freqüência destes usos é interessante: 36% como “projeto político”, 21% como “desejo ou sonho”, 17% como Nome Próprio, 13% como “espaço/tempo imaginário”, 11% como “projeto impossível”, 2% dos usos designam uma narrativa utópica.

Há muitos pontos a destacar aí. Vou me limitar a três. Em primeiro lugar, a exportação do frame da Utopia do discurso originário (lítero-filosófico) para o “vulgar” conserva o traço de contrafactualidade básica desta conceptualização: 45% dos usos replicam esta dimensão, em parte (11%) exacerbada como “projeto impossível”. O uso isoladamente mais freqüente neste corpus releva a dimensão renascentista da História como construção humana: 36% dos usos referenciam, de algum modo, um projeto de transformação política. Apenas 2% dos usos instanciam o frame de gênero discursivo, o que é compreensível, já que trata esta acepção de uma construção técnica, improvável de freqüentar veículos de massa tais como jornais diários.

Assim, no uso lingüístico não especializado, a conceptualização que prevalece é a da utopia histórica (seja da história individual, na qual é desejo e sonho, seja na história social, na qual é projeto de transformação que toma as formas mais variadas – do ciberespaço ao socialismo...). Este fenômeno revela quão fecunda foi a recepção, embora remota, involuntária e inconsciente, da construção utópica no discurso público em Português.

260

MARIA MARgARIdA MARTINS SAlOMãO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

conclusão.

Os resultados lexicográficos que apresento apontam no sentido recomendado pelo Professor Jean-Michel Racault, que, junto a outros, recomenda, no que concerne à demarcação da Utopia como gênero, que se a distinga do utopismo. Os usos lingüísticos comuns examinados em Português (mas não presumo que estudos lexicais em outras línguas importem em diferenças expressivas) demonstram a prevalência do que o professor Racault chama de utopismo como acepção contemporânea mais freqüente.

Se aqui procedêssemos ao levantamento destas versões utopistas haveríamos de nos impressionar com sua diversidade, não inesperada, entretanto, se considerarmos a decadência das utopias tradicionais e a dispersão de ideais formativos que enquadra estes nossos tempos.

Quem trata disso à maravilha é Ítalo Calvino, um autor que não vi aqui citado e que produz em As cidades invisíveis uma paródia fascinante do discurso utópico. No diálogo entre o Viajante-a-Terras-Extraordinárias (ninguém menos que Marco Pólo) e o Imperador (ninguém menos que Gengis Khan), releva Despina entre as cidades visitadas. A Despina é possível chegar ou de navio ou de camelo. Quem chega por terra a vê como um navio; quem chega por mar a vê como um camelo. Comenta o Narrador que cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe.

Estas cidades, agostinianamente invisíveis, requerem a metáfora para poderem ser divisadas e o engenho humano para poderem ser concebidas. E é essa a matéria do discurso utópico.

Referências

CALVINO, I. Le città invisibili. Torino: Einaudi. 1972.

FILLMORE, C. J. "Frames and the semantics of understanding". In: Quaderni di Semantica 6.2, 1985, p. 222-254.

FOUCAULT, M. L’ordre du discours.Paris: Gallimard, 1971.

GALLIE, W. B. "Essentially Contested Concepts". In: Proceedings of the Aristotelian Society, vol. 56, p. 167-198, 1956.

GRADY, J. Foundations of meaning: primary metaphors and primary scenes. Ph.D. dissertation. University of California, Berkeley, 1997.

GRIES, S. e STEFANOWITSCH, A (orgs). Corpora in cognitive linguistics. Berlin: Mouton de Gruyter, 2006.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: Chicago University Press, 1980.

LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh. New York: Basic Books, 1999.

RACAULT, J. M. Entrevista concedida ao Jornal da UNICAMP. Jornal da UNICAMP, Campinas, n. 431, p. 5-7, 2009.

TROUSSON, R. Utopia e utopismo. MORUS – Utopia e Renascimento, Campinas, n.2, 2005, p. 123-135.

Administração da diferença, preservação da hegemoniaBenjamin Abdala Jr.Universidade de São Paulo (Brasil)

Resumo

O ensaio discute questões político-culturais relativas ao processo de globalização, neste momento de crise do capitalismo financeiro e da ideologia neoliberal. São reativadas possíveis soluções anticrises que levam à afirmação – como ocorreu a partir do crack de 1929 – de tendências reguladoras mais democráticas, mas que têm em vista mudar paradigmas para preservar as formulações hegemônicas. No contrafluxo, as articulações comunitárias – como o comunitarismo cultural veiculado pela língua portuguesa – reúnem condições para uma participação ativa, no mundo que se desenha pós-neoliberal.

Palavras-chave

Comunitarismo cultural, literatura comparada, globalização.

Benjamin Abdala Junior é professor da área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH da Universidade de São Paulo. É autor, entre outros títulos, de A escrita neo-realista (São Paulo: Ática, 1981) e Literatura, história e política (São Paulo: Ática, 1989). Entre as coletâneas que organizou ou co-organizou, podem ser mencionadas Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas (São Paulo: SENAC, 2000), Personae: grandes personagens da literatura brasileira (São Paulo: SENAC, 2001), Incertas relações: Brasil e Portugal no século XX (São Paulo: SENAC, 2003), Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas (São Paulo: Boitempo, 2004), Portos flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos (São Paulo: Ateliê, 2004) e Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil (São Paulo: Boitempo, 2006).

262

BENjAMIN ABdAlA jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

nota 1: abertura. Temos argumentado em muitos momentos, desde os finais dos anos 90, que o mundo configura-se cada vez mais como de fronteiras múltiplas e as identidades devem ser vistas no

plural (Abdala Jr., 2002). Em termos de aproximações lingüístico-culturais, impõem-se horizontes plurilíngües e reciprocidades em termos de poder simbólico. E mais: num mundo onde o inglês acabou por se constituir numa espécie de língua franca, é necessário que falemos também em português e outros idiomas, inclusive no campo tecnológico. Em termos lingüísticos, não apenas como língua de cultura, mas também como de ciência.

Neste momento de crack do capitalismo financeiro e de reconfigurações de estratégias, parece-nos imprescindível que a crítica assuma uma atitude mais ativa para criar ou redesenhar, com matização mais forte, tendências de cooperação e solidariedade. E, se possível fazer confluir, para a interlocução comunitária, bases para a ação política na forma de blocos. Blocos politicamente mais eficazes para estabelecer contrapontos à monologia da competitividade que tem marcado o processo globalizador e que chegou a seu paroxismo, enquanto ideologia dominante à escala planetária, na situação anterior ao crack.

Se, entretanto, da economia ao campo cultural, houve efeitos perversos dos modelos articulatórios do capital financeiro, que flexibilizaram fronteiras para impor a sua ordem hegemônica, por outro lado, o efeito reverso do princípio da contradição fez emergir atitudes reativas e esse enfraquecimento favoreceu o fortalecimento de ações comunitárias, pelas brechas dessa política. Nesta nova situação, que se afigura pós-neoliberal, podemos nos permitir o otimismo desta afirmação, as associações comunitárias tornam-se ainda mais urgentes, e envolvem a possibilidade de novas articulações, para além das tradicionais.

Impõe-se e já estão em curso interlocuções entre países e blocos, com a possibilidade de um melhor diálogo, inclusive em relação aos próprios Estados Unidos, na atmosfera de reconfiguração da política capitalista e dos princípios de legitimidade. É evidente que os Estados Unidos procurarão estabelecer novas bases, para que continuem a preservar assimetrias no campo das circulações culturais e a promover a aceitação das formulações discursivas que inculcam e naturalizam seus pressupostos particularistas como universais. Na nova configuração internacional que se esboça, em meio à crise, abre-se, não obstante, a possibilidade de uma abertura mais incisiva e vertical, já que o momento também é de mudança de paradigmas. Isto é, dos escaninhos, em termos de conhecimento, que são as circunscrições pelas quais aprendemos a pensar o mundo.

nota 2: uma literatura comparada prospectiva. Foi decorrência histórica, no Brasil, nos estudos de literatura comparada, a afirmação de um comparatismo que veio das imposições de nosso processo de colonização. Verificar essas bases tem sido uma forma de nos situar diante dos fluxos inclinados à colonização de nosso imaginário. Trata-se de um comparatismo importante e necessário para o nosso autoconhecimento. Nas atitudes de atores culturais

263

AdMINISTRAçãO dA dIfERENçA, PRESERvAçãO dA hEgEMONIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

do passado, podem ser configuradas linhas que são imprescindíveis para a melhor compreensão de nossa atualidade sociocultural. Entretanto, a restrição a esse comparatismo não nos parece suficiente, em termos político-culturais. Temos proposto uma outra forma de comparatismo, para figurar ao lado do primeiro. Um comparatismo prospectivo, pautado por relações comunitárias, um comparatismo da solidariedade, da cooperação. Comparar diante de problemáticas que nos envolvem a todos para nos conhecer naquilo que temos de próprio e em comum. Enlaces comparatistas, tendentes a relações de reciprocidade.

É evidente que qualquer novo recorte que implique ações de ordem política poderá fazer emergir novas formas de hegemonia. Mesmo quando nos empolgamos com o estabelecimento de laços de cooperação, é preciso atentar para hábitos culturais arraigados, que incorporam gestos hegemônicos nas relações entre países e regiões, em situações de aparente reciprocidade. Lembramos, para ilustrar, um comentário do crítico cubano Roberto Fernández Retamar (1995), que afirmava gostar de alguns críticos europeus que, de maneira simpática, diziam que o Caribe era o Mediterrâneo americano, mas que ficaria muito mais satisfeito se eles viessem também a dizer, imaginamos, sem constrangimentos, que o Mediterrâneo é que seria o Caribe europeu...

nota 3: pós-colonialismos. O processo colonial fixou hábitos, repertórios literários e culturais, que vieram dessa experiência histórica e dos contatos entre povos que até então não se conheciam. Se há hoje toda uma inclinação crítica para mudanças de paradigmas, sejam eles filosóficos, estéticos, em relação às áreas do conhecimento, entendemos que essa tendência não pode se naturalizar sobre um rótulo genérico de um “pós”, uma redução ao obsoleto de toda uma experiência que se consubstancia no presente. Pior ainda pode ocorrer em relação às instâncias políticas, onde o “pós”, afeito às condições da mídia e dos produtos moda, procura tudo reduzir a uma tabula rasa, um contínuo presente sem passado. A experiência histórica e suas realizações passam a ser situadas como um repertório passivo, para a estilização sem história, formas petrificadas, restritas a uma espécie de “estado de dicionário”, referência a um conhecido poema de Dummond, desconsiderando-se o processo que as modelizou. “Frequentar o mundo das palavras”¹, implica conhecer esse processo.

A teorização pós-colonial trouxe grande contribuição para a discussão de questões relativas à globalização, aos deslocamentos dos povos e ao processo de americanização do mundo, sob o impacto da mídia e do consumo mercadológico. Em relação às questões político-sociais, entretanto, ela às vezes pode tender a generalizações abstratas. A uma perspectiva crítica desavisada, podem ser igualmente pós-coloniais quaisquer sociedades marcadas pelo colonialismo, sem maior consideração sobre sua historicidade, nivelando países que se emanciparam no período pós-Segunda Guerra Mundial aos que se emanciparam desde o século XIX. Falar de pós-colonialismo, sem consciência dessas especificidades,

¹ Carlos Drummond de Andrade. “Procura da palavra”, de Rosa do povo.

264

BENjAMIN ABdAlA jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

implica nivelar uma cultura como a do Canadá, ou da África do Sul, por exemplo, à complexa situação cultural da Índia – três ex-colônias britânicas. Só uma análise sociocultural do processo histórico pode revelar de que pós-colonialismo se trata. Essa situação se torna ainda mais complexa, se vinculada – como acontece – à ênfase diaspórica dos estudos pós-coloniais. Coloca-se novamente a necessidade de se considerar de onde fala o crítico e os laços socioculturais que acabam por enredar suas formulações discursivas de um sentido político.

São muitos os pós-colonialismos. Há, por exemplo, o pós-colonialismo do ex-colonizador, que encontramos num romance como Os cus de judas, de Lobo Antunes (1979); e, para contrastar, o do ex-colonizado, como em Mayombe, de Pepetela (1982). O primeiro vai desconstruir mitos e fazer de sua memória individual um depoimento que se quer história. Pepetela, numa direção oposta, embala-se por mitos, sem deixar de criticar indivíduos e grupos que se querem mitos, associados a posturas etnocêntricas do passado que se reproduzem no presente. Em Lobo Antunes, enfatiza-se a desconstrução dos mitos e a distopia; em Pepetela, na formação de um novo estado nacional, a construção e a utopia. Há ainda o pós-colonialismo dos colonizadores radicados ou que retornaram à metrópole, e também dos ex-colonizados que para lá migraram. A clara delimitação do chamado locus enunciativo e de sua historicidade parece-nos, pois, imprescindível para uma crítica que pretenda afastar-se da generalidade e repercutir politicamente.

nota 4: mimetismo cultural e relações de poder. Refletir sobre especificidades nacionais implica situá-las num processo de agenciamentos comunitários que tem um solo histórico e relações de poder simbólico. Temos destacado o sentido político de se discutir literatura no âmbito do comunitarismo ibero-afro-americano, mas – voltamos a insistir - as articulações comunitárias podem ser de muitas ordens e politicamente nos parece importante relevar que o mundo atual é de fronteiras múltiplas e identidades plurais, seja numa perspectiva individual, nacional ou dos agrupamentos sociais. São interações que levam à consideração de um complexo cultural híbrido, interativo, onde a cultura brasileira, por exemplo, é multifacética e se alimenta produtivamente de pedaços de muitas culturas, sem deixar de receber os efeitos das assimetrias dos fluxos culturais. Tais considerações, para além das especificidades regionais ou nacionais, tornam necessárias a consideração do repertório enfaticamente híbrido de nossa formação cultural. Na apropriação desse repertório, a consciência dessa historicidade e as relações de poder que ela ensejou, podem contribuir para o afastamento de produções miméticas. Tal sentido crítico contribui para o desenvolvimento de inclinações abertas à criatividade e que às vezes acabam por questionar espartilhos ideológicos e identidades míticas. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o poema “Camões: história, coração, linguagem”, para nos valer mais uma vez de Carlos Drummond de Andrade. Escrito numa situação histórica pós-Revolução dos Cravos, o poema mostra a apropriação de imagens e procedimentos poéticos camonianos. Estabelece

265

AdMINISTRAçãO dA dIfERENçA, PRESERvAçãO dA hEgEMONIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

um diálogo entre marcas da historicidade das leituras de Camões e a da nova situação histórica, democrática, de Portugal:

Dos heróis que cantaste, que restousenão a melodia do teu canto?As armas em ferrugem se desfazem,os barões nos jazigos dizem nada.

Nessa desideologização das apreensões conservadoras, em especial da época salazarista, sem deixar de seguir imagens e ritmos camonianos, o poeta brasileiro termina por afirmar:

Luís, homem estranho, que pelo verboés, mais que amador, o próprio amorlatejante, esquecido, revoltado,submisso, renascente, reflorindoem cem mil corações multiplicado.

A identificação no repertório comum não implica, assim, mimetismo. A distância crítica advém não apenas através da perspectiva de um brasileiro, mas sobretudo de quem estabelece criticamente suas bases poéticas, o que não implica contraditar o repertório da linguagem comunitária. Relevar as relações de poder que envolvem essa circulação é uma forma de se afastar da celebração, seja da mimese ou de um pretenso sincretismo ou do hibridismo, que desconsidera as relações de poder e encaminha atitudes assimilacionistas, tendentes à cultura do colonizador. Não se pode, entretanto, deixar de se considerar devidamente – para além das referências individualizadas como a de Camões - o fato da plasticidade da língua literária portuguesa constituir-se num processo de modelização que vem desde sua formação nos tempos medievais.

nota 5: a cor da pele e a audácia da esperança. Já apontávamos, na situação anterior ao crack, que à flexibilidade da circulação dos produtos culturais, ao ritmo nômade do capital financeiro, que se articula em rede, sempre reduzindo distâncias por velocidade, sempre desdobrável, parecia-nos importante contrapor estratégias contra-hegemônicas, associadas aos comunitarismos supranacionais. Esse processo vertiginoso de estandardização dos produtos culturais, por parte da economia de mercado, não se restringe à estandardização de massa. A hegemonia possui bases amplas, que não deixam de ser mercadológicas. Procura incorporar em suas redes mesmo a contestação de seu próprio sistema. A diferença como administração política e abertura de nicho de mercado.

Noutro sentido, esta incorporação da diferença pode contribuir para a dinamização do sistema: mudar para que as coisas continuem estruturalmente as mesmas. Ou, como aparece no filme O leopardo, de Luchino Visconti, baseado no romance homônimo de Giuseppe Lampedusa: “É preciso que algumas coisas mudem, para que tudo continue na mesma”. As palavras são do Príncipe, personagem histórica baseada no avô do escritor. A emergência

266

BENjAMIN ABdAlA jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

parcial do novo, sob controle político-social das estruturas pré-estabelecidas faz valer sua hegemonia para controlá-lo, ao mesmo tempo em que se beneficia de seus influxos para atualizar suas redes numa nova configuração histórica.

Não há, entretanto, para a crítica empenhada, como fugir dessa situação, sob pena de fechar o seu campo de reflexões em perspectivas isolacionistas. Impõe-se, ao crítico, que ele entre nessas águas, cuidando para não perder a direção de seu projeto e ser cooptado pelo aparente nomadismo dos fluxos, que afinal mostram-se confluentes para as bases hegemônicas. Esta é uma questão política, que se imbrica em rede com a vida sociocultural. Para tanto, tendo em vista a necessidade de uma atitude prospectiva, conforme temos enfatizado, o crítico não pode se limitar exclusivamente à negatividade crítica, embora esta não deixe de ser sempre um contraponto imprescindível. Do ponto de vista político, entendemos, ele deve se embalar por uma espécie de otimismo crítico para dar continuidade, sob novas formas, a gestos, que vieram do passado, com atores imbuídos da esperança de que a vida pudesse ser melhor do que é. Observe-se, nesse sentido, o seguinte fragmento do poema “Coração em África”, do são-tomense Francisco José Tenreiro, que temos reiteradamente apontado quando discutimos a circulação cultural do campo intelectual do após-Guerra, tal como ocorreu no “nó” que imbricou o comunitarismo ibero-afro-americano e o pan-africanismo, já na atmosfera da guerra fria:

(...) de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformese deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das gomas de Pomar vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele dos homens brancos amarelos negros (...).

Tenreiro é um dos atores do campo intelectual dos anos de 1950, para quem “a pretidão do mundo (...) ultrapassa a própria cor da pele dos homens brancos amarelos negros”. Seu poema ilustra não apenas o comunitarismo cultural que se faz pela ibero-afro-américa, pelas similaridades de sua poética com a de Nicolas Guillén, entre outras. Noutras passagens – é um poema longo –, aponta para atitudes libertárias de personalidades negras da África, Caribe e Estados Unidos. É diante dessa afirmação, que sentimo-nos tentados a contextualizar com o momento político atual. A eleição de Barack Obama foi seguramente um golpe no conservadorismo norte-americano que se afirmou desde os tempos do macartismo, à revelia dos princípios estabelecidos na carta da ONU de 1946. Não há dúvida de que seu triunfo representa a ascensão da tendência liberal democrática por sobre a prepotência imperial dos últimos tempos, quando se torna imprescindível se voltar às perspectivas sociais de um estado regulador. Há, não obstante, limites para esse otimismo.

Se Barack Obama (2007) escreveu um livro como A audácia da esperança, comprometido, em parte, com o que Edward Said chamou de o “outro EUA”, as circunstâncias de sua eleição, isto é, suas bases políticas e econômicas associadas às elites desse país, matizam os parâmetros dessa

267

AdMINISTRAçãO dA dIfERENçA, PRESERvAçãO dA hEgEMONIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

“ousadia”. A mídia vem proclamando um renascimento norte-americano (inclusive através da voz do próprio Obama), isto é, um renascimento do “espírito americano”, tradicional discurso dessas elites. Estamos muito longe de um “renascimento negro”, para matizar nosso discurso pela referência à designação do movimento a que se ligou o poeta Langston Hughes. Mais distantes ainda, em sentido amplo – já que a pretidão do mundo “ultrapassa a cor da pele” –, de um renascimento dos excluídos não apenas negros, mas também brancos, amarelos e mestiços. Mestiços, aliás, como o próprio Obama, que só é negro pela marcação racista ainda dominante nos EUA, mesmo para aqueles que dizem “tolerar” a diferença.

nota 6: multiculturalismo e eurocentrismo. Neste momento que se afigura em processo pós-neoliberal, a afirmação de uma tendência mais tolerante, que procura valer-se da estratégia de administrar a diferença, afim, por exemplo, com uma vertente multiculturalista de matização liberal (Shot & Stam, 2006), pode constituir uma maneira mais inteligente e de longo prazo de se preservar e mesmo promover a hegemonia. Estratégia para um capitalismo administrado, um retorno, em nossas bases, dos princípios norteadores do estado liberal, tal como ocorreu com o governo Roosevelt. Seria uma espécie de um novo New Deal, de onde – já que as coisas são misturadas - foi possível surgir, não obstante, a obra de um Caldwell, Hemingway, Dos Passos, Gold, Steinbeck, Faulkner, etc. E também a organização das Nações Unidas e da carta que estabelecia o princípio da autodeterminação dos povos.

O discurso de respeito à diferença que agora se afirma é o da perspectiva liberal do multiculturalismo, que pode tender à guetização dos excluídos, ou à simples tolerância dos incluídos administrados. O pensamento hegemônico norte-americano tem sido avesso à valorização das misturas, ao contrário do que lá vem ocorrendo. O puritanismo religioso, que vem dos tempos coloniais, e sua práxis histórica levaram à afirmação ideológica da imagem tradicionalista de um mundo, onde a mistura foi vista como degradação. Na grande narrativa da formação nacional desse país, inculcada mundialmente pela mídia, desde Hollywood, a missão civilizatória se fez inicialmente contra os que consideravam bárbaros indígenas. Pouco importa as poucas escaramuças dos nativos contra o invasor europeu, da história real, pois quase sempre os indígenas se limitaram a se afastar dos invasores, quando expulsos de suas terras mais férteis. Para essa mídia ideológica, os nativos eram impostores em suas próprias terras e estas eram como se fossem vazias – a “Terra Prometida” ou “Nova Canaã” da simbologia que vem das cruzadas. E a estrutura dessa narrativa fundamentalista, associada ao poder imperial, vem até nossos dias, comutando indígenas por negros, latino-americanos, asiáticos ou árabes. Estes são os “outros” (na designação naturalizada, os “étnicos” são os “outros”), sempre mostrados como agressivos, indisciplinados, incivilizados, etc. Afinam-se, nessa perspectiva ideológica, como mestiços, impuros.

268

BENjAMIN ABdAlA jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Tal eurocentrismo norte-americano pode vir a ser agora atenuado, na nova configuração que se esboça. Fala-se insistentemente na necessidade de “tolerância”: tolerância liberal, uma nova modalidade dos pressupostos de caridade, uma via de mão única, sem reciprocidade. A aproximação dos excluídos, que foi uma das bases fortes da eleição de Obama e que fez a diferença, não é evidentemente relevada. Para além dessa modulação da tolerância, é imprescindível ao pensamento crítico descortinar também as relações de poder envolvidas. Sem a discussão dessas relações, o discurso multicultural que, ao que parece, deve se afirmar ainda mais, não deixará de ser um veículo conceitual de administração da diferença nos quadros do estado liberal, tendo em vista a manutenção da hegemonia norte-americana, vale dizer, de suas elites. Falta a essas inclinações multiculturais de tintas liberais a consideração de vozes simultâneas em tensão, a possibilidade de uma espécie de um áspero concerto polifônico construído pelas diferenças. Logo, uma perspectiva crítica capaz de contraditar formulações discursivas hegemônicas, tendentes ao nivelamento de uma espécie de “branqueamento” eurocêntrico.

Em relação aos países ibero-afro-americanos, a intelectualidade tem visto na diversidade étnica um fator de originalidade e criatividade, ao contrário do que tem ocorrido nos EUA, onde as formulações sobre o hibridismo têm sido historicamente escamoteadas ou restritas, na história mais recente, aos âmbitos acadêmicos. A estratégia das elites “crioulas” tem sido outra: exaltar a integração, sempre tendente ao branqueamento, mascarando a estratificação social, como ocorreu com Gilberto Freyre, entre outros. Um “branqueamento”, também eurocêntrico, apropriado pelas suas esferas políticas.

Impõem-se ao campo intelectual – tanto lá como cá - novas atitudes: politizar seus discursos para além das universidades, articulando laços comunitários e a vida sociocultural com as esferas de poder. Por que restringir-se, à esquerda, a um discurso melancólico falando de ruínas, enquanto o estado é apropriado, à direita, por aqueles que o administram em sua função, com bandeiras otimistas? Impõe-se uma atitude de otimismo crítico, um princípio de juventude que se consubstancie em projetos políticos mais amplos.

nota 7, em conclusão: modo de articulação do capitalismo financeiro e a administração da diferença. Reiteramos, pois, no contraponto ao que naturalizou na atmosfera de concretização utópica do capitalismo financeiro, e seus modos de articulação, que o acesso à rede supranacional se faz num locus enunciativo determinado e ele é fundamental para a crítica. Se na vida universitária, por exemplo, um docente situa-se numa universidade norte-americana, ele não pode desconsiderar o fato de que seu discurso pode estar associado a estratégias hegemônicas desse país. Faz parte do consenso hegemônico, na atualidade, não apenas aceitar, mas promover a capitalização da diferença. Uma diferença que se consubstancie em produtos, desde o da imagem democrática do país hegemônico até a mercadorias mais

269

AdMINISTRAçãO dA dIfERENçA, PRESERvAçãO dA hEgEMONIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

explicitamente comercializáveis. Não se pode esquecer a posição dos Estados Unidos como único país a defender a inserção da cultura como “produto”, na Organização Mundial do Comércio. Para além do produto diretamente comercializável, a hegemonia implica um “reconhecimento” internacional da instituição onde o mencionado crítico trabalha, o que certamente atrairá alunos e docentes, inclusive dos países não-hegemônicos. A partir dessa situação, serão criadas condições para convênios interinstitucionais com esses países, tendentes à preservação da hegemonia. Só uma efetiva reciprocidade entre os atores da comunidade universitária envolvida poderá atenuar essas assimetrias. Isto é, a consciência efetivamente democrática da dimensão política que envolve a pesquisa científica.

Entendemos que os atores de um campo intelectual supranacional, que se pretenderem efetivamente críticos, não podem ignorar relações de pertencimento. Situem-se eles nas esferas do centro ou nas margens (há as margens dos centros e os centros das margens). São laços que levam à vida sociocultural e que não podem ser escamoteados, em função da própria objetividade da crítica. Mesmo quando são adotadas atitudes como se estivessem em situações psicossociais de migrantes, o diálogo não se faz em abstrato, mas com culturas diferentes, provenientes de experiências históricas que têm singularidades e motivações políticas. E estar nos Estados Unidos não é como estar no Brasil ou em qualquer outra parte do planeta, como aparece em certos discursos tendentes à neutralização da diferença e à sublocação do mesmo.

É motivo recorrente, que historicamente tem envolvido o processo de colonização das margens, o relevo de considerações acríticas, dissociadas da situação sociocultural e, sobretudo, de atualidade histórica. Nesse sentido, o crítico não pode se ater à performance narcisista, que seria própria de quem está (apenas) de passagem, e também na apologia de um aparente descompromisso, afinado com o hiper-individualismo da situação que resultou no crack financeiro. Uma situação – é verdade –, que não deixa de apresentar analogias com a dos assim chamados “anos loucos” da década de 1920. Ao adotar posturas afins de uma espécie de relativismo nômade (modo de articulação do capitalismo financeiro), ele acaba por se limitar a resvalar nos obstáculos, sem manter laços situacionais para além do efêmero do discurso da moda. Limitar-se a esses hábitos pode significar delimitação alienante à canalização de cursos monológicos, mesmo que estes venham a se erigir como efêmeras passarelas da sociedade do espetáculo, bem ao gosto das mídias. Uma práxis efetivamente crítica não permanecerá restrita a esses enquadramentos, alheia a laços mais amplos, que envolvam tensas relações dialógicas entre fios discursivos de diversas áreas do conhecimento. Articulações que podem levar a problemáticos nós multidiscursivos, inclinados à discussão das possíveis conexões – sempre colocadas no plural - entre o mundo que se desenha na vida cultural e suas imbricações com o chão das relações político-sociais.

270

BENjAMIN ABdAlA jR.

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

ABDALA JR., Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

ABDALA JR., Benjamim. Camões . Épica e lírica. São Paulo: Editora Scipione, 1993.

ANDRADE, Mario de; TENREIRO, Francisco José. Poesia negra de expressão portuguesa. Ed. fac-similar organizada por Manuel Ferreira. Linda-a-Velha, África Ed., 1982.

LOBO ANTUNES, António. Os cus de judas. Lisboa, Editorial Vega, 1979.

OBAMA, Barack. A audácia da esperança. São Paulo:Larousse do Brasil, 2007.

PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ed. Ática, 1982.

RETAMAR, Roberto Fernández. Para el perfil definitivo del hombre. 2. ed. corrigida e aumentada. La Habana: Letras Cubanas, 1995.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 29. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1986.

SHOT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Quando o futuro vira piada: dimensões humorísticas das utopias modernasElias Thomé SalibaUniversidade de São Paulo (Brasil)

Resumo

A quebra das determinações e o exercício da crítica em relação ao tempo presente, conduziram algumas formulações utópicas modernas pelos caminhos da irreverência humorística. Distinguir algumas dimensões novas nestes caminhos inusitados será o principal objetivo deste trabalho.

Palavras-chave

Utopia, humor, crítica.

Elias Thomé Saliba é professor titular de Teoria da História da Universidade de São Paulo. Seus estudos mais recentes abordam a história do humor no Brasil, envolvendo as diversas linguagens da representação cultural. É autor, entre outros livros, de Raízes do Riso. A representação humorística na história brasileira. Da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio (São Paulo: Cia. das Letras, 2008) e As Utopias Românticas (São Paulo: Estação Liberdade, 2003). Publicou inúmeros artigos sobre teoria da história e história cultural do humor.

272

ElIAS ThOMé SAlIBA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Uma anedota popular da era soviética conta que um ouvinte anônimo liga para a Rádio Armênia, perguntando: “Será possível prever o futuro?” O locutor que comanda o programa responde

rápido: “Sim, não há problema. Sabemos exatamente como vai ser o futuro. O nosso problema é o passado, que está sempre mudando.”

Da mesma forma que o exemplo apresentado, toda anedota é prosaica, efêmera e tida como passageira, restando esquecida e perdida nas fímbrias da memória coletiva. Até Guimarães Rosa reconheceu que “uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrado, foi-se toda a serventia.” Mas não custa começar lembrando que estudos recentes têm mostrado exatamente o contrário: as piadas, verbais ou visuais - como revelações rápidas de um instante de prazer e do riso - mantêm-se por muito mais tempo na nossa memória: por serem lembranças leves, que alegram, elas permanecem por mais tempo do que as pesadas, que deprimem.

Qual é o papel do riso na construção de um futuro político e social? A narrativa humorística é, em seu âmago, alteração de sentido, reversão de significado e, afinal, restituição do elemento de futuro presente na linguagem. No cenário contemporâneo, no qual falharam os grandes projetos políticos de transformação global e as reviravoltas lingüísticas e subjetivistas substituíram os grandes paradigmas das humanidades, os historiadores começam a olhar na direção de uma história cultural do humor, delineando um autêntico programa de pesquisas. Manuais de trotes e de civilidade, escritos apócrifos, livros de piadas, registros e diários parlamentares, pinturas e coleções de anedotas, biografias de humoristas obscuros – é todo um variado espectro de fontes para mostrar o quanto o humor incentivou laços de sociabilidade, sublimou agressões ou ressentimentos, administrou o cinismo ou estilizou a violência. Mas também foi a arma social e política dos impotentes, contribuindo para criar uma cultura da divergência ativa e oculta.

Antes de tudo, é preciso colocar o clássico problema da definição de humor – que hoje se encontra torpedeado de todos os lados pelas pesquisas das várias disciplinas das neurociências. O humor é parte essencial da natureza humana, instrumento a serviço da perpetuação da espécie? Ou um produto cultural mutável no tempo, fluido e historicamente gerado? Apesar das recentes pesquisas na área da neurobiologia responderem afirmativamente à primeira pergunta, as ciências humanas vêm fornecendo respostas importantes para a segunda questão. Como crítico da linguagem, o filósofo Wittgenstein dizia que a verdadeira tarefa do filósofo era “mostrar à mosca a saída do vidro”. O historiador do humor referenda e apenas acrescenta: no cenário atual, é só pelo solavanco mental da anedota que se pode mostrar a saída à mosca.

Qualquer coisa que se diga a respeito das utopias deve começar pelo reconhecimento do quanto o mundo de hoje tornou-se consensualmente antiutópico: as utopias tornaram-se irrelevantes para os satisfeitos, imateriais para os famintos, totalitárias para os intelectuais e cada vez mais perigosas para todos. Mas será que não inflacionamos demais os sentidos da utopia? Se examinássemos com paciência a melancólica lista de todas as atrocidades

273

qUANdO O fUTURO vIRA PIAdA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

do século 20, perceberíamos que a comunidade humana tem mais motivos para temer os defensores de uma agenda étnica, religiosa ou nacionalista do que homens com projetos utópicos. Num ensaio arguto e original, Russell Jacoby propõe a deflação de todos os sentidos atribuídos às idéias utópicas e resolve botar um pouco de ordem na confusão que se estabeleceu em torno do tema. Começa pela distinção entre utopias projetistas e utopias iconoclastas. As utopias projetistas descrevem com o máximo de exatidão o ideal da cidade utópica – mas como nunca indicam os meios para se chegar a tal projeto, acabam por transformar o futuro num ícone da verdade que nos aprisiona e nos restringe ao presente. Da mesma maneira que o grande iniciador desta linhagem – Thomas More – os “projetistas” acreditam num relato fiel e completo do passado, transferindo esta crença ingênua na direção de um futuro pleno de sentido e totalmente delineado. Acabam por enredar-se num sistema lógico fechado, que postula as leis da história e acaba por conduzir aos totalitarismos de todas as espécies.

Já as utopias iconoclastas fazem jus ao nome: seguindo a tradição judaica, que proíbe representar Deus, elas se recusam também a delinear o futuro através de uma imagem. O poeta Paul Celan, que sobreviveu a um campo de concentração nazista e se suicidou aos 49 anos, sublinhou a seguinte frase do Talmude: “Aquele que pronunciar o Nome perderá a sua parte no mundo futuro”. Algo parecido está também definido no Êxodo, quando este se refere à proibição bíblica em relação aos ídolos: “não farás para ti ídolos, nem lhes prestarás culto.” O clássico dos iconoclastas judeus é O Espírito da Utopia, de Ernest Bloch, escrito em 1918 – um livro que ataca a tirania das imagens, explorando a interioridade, a música e a alma. O futuro não pode – e não deve – ser descrito concretamente, ele só pode ser abordado por meio de pistas e parábolas e quase que poderíamos dizer: é possível ouvir o futuro, mas não vê-lo.

Jacoby não esconde sua simpatia pelos utopistas iconoclastas. Na lista dos iconoclastas entram nomes como Walter Benjamin, Theodor Adorno, Gustav Landauer e Ludwig Wittgenstein. Eles não formaram um grupo, mas possuíam algumas afinidades eletivas: como judeus que eram, em sua grande maioria, eles não nomearam nem representaram Deus – e nem inventariaram o futuro. A famosa declaração de Adorno de que “escrever poesia depois de Auschwitz é uma barbárie” deu o que falar – mas a idéia também seria uma parte da sua própria elaboração do tabu sobre as imagens. O absoluto – incluindo a violência absoluta – não pode ser compreendido, ele exige o retraimento ou a recusa – a única atitude que preserva a possibilidade da libertação. Wittgenstein também comparece, pois, de modo análogo, a linguagem também seduz pela ilusão de capturar a verdade: “Sobre aquilo que não podemos falar devemos manter-nos calados” - é a frase com a qual Wittgenstein também encerra o seu famoso Tratactus.

O objetivo desta pequena comunicação é um mapeamento inicial do potencial utópico da produção humorística moderna.

Um mapeamento sumário das possibilidades humorísticas na imaginação utópica moderna deve começar pela constatação de que o melhor filão do utopismo libertário bebeu nas águas do romantismo oitocentista.

274

ElIAS ThOMé SAlIBA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Contrários às imagens do futuro, os pensadores do romantismo buscavam suas pistas na música, na poesia e nos momentos místicos. Como procurei sugerir num pequeno livro sobre o tema (2003), os românticos forjaram suas utopias como esquemas de um tempo futuro que servia como móvel de superação de um presente degradado. O tema do desencanto romântico alimentava as energias utópicas. “Tudo o que era deixou de ser, tudo o que será não é ainda”, diagnosticou Alfred de Musset no seu Confissões de um filho do século. Apesar de descrições utópicas delirantes e não-factíveis, como os falanstérios de Fourier, sugerimos o quanto estas atitudes de exagero imaginativo, às vezes de quase delírio onírico, constituíam partes do projeto utópico romântico. Embora reconhecida a vanidade em lutar com as palavras, esta mobilização de energia imaginativa e poética fazia parte de um luta sutil, mas sem tréguas, para delimitar uma nova comunidade de linguagem e um novo campo de significações. Utilizar-se, como os românticos, da imaginação social, esta arma ofensiva, no espaço simbólico, era marcar pontos na luta para, a longo prazo, sustentar uma atitude não conformista face à sociedade e à história.

Ora, o humor era um destes elementos da crítica da linguagem entre os românticos, pois fazia-se na superfície desta, deslocando os significados estáveis pelo não-senso, tornando-se a arte, por excelência, “das superfícies e das dobras, das singularidades nômades e dos pontos aleatórios – sempre deslocados” (Deleuze, 1971, p. 143). Lembre-se que os próprios autores românticos chegaram a teorizar sobre o humor, como William Hazlitt, ou de uma forma mais extensa sobre a ironia, como Kieerkegaard. Se tormarmos a definição romântica do cômico, expressa no escritos de Hazlitt, de 1819, veremos que o móvel utópico já está presente e a saída cômica parece ser a única diante de uma atitude geral de desencanto e de frustração com o tempo presente. Retomando a célebre observação de Kant, de que o que provoca o riso é “a repentina transformação de uma expectativa tensa em nada”, Hazlitt assinala que o cômico nasce da colisão entre o objeto e nossas expectativas e o ridículo ocorre quando a mesma colisão aparece aumentada por alguma deformidade ou inconveniência, contrariando o costumeiro e o desejável. Aqui teríamos – segundo a argumentação deste autor em 1819 – o grau mais elevado do cômico, pois não se contraria apenas o hábito, mas o próprio sentido das coisas e a razão. O humor serve para verificar a quantidade de verdade que existe em nossos preconceitos favoritos... “O homem é o único animal que chora e ri; pois é o único que percebe a diferença entre o que as coisas são e o que deveriam ser”, concluiu Hazlitt (1942, p. 259-261).

Pode-se perguntar, inclusive, porque não começar a análise do humor romântico exatamente com Kierkegaard, uma espécie de antifilósofo que se multiplicou em inúmeros pseudônimos – e que fez do cômico o guia temático de todos os seus escritos, sobretudo O conceito de ironia. Todas as suas proposições são atrevidas, todos os seus argumentos descambam no chiste e na paródia. Marx provavelmente teria lido com prazer a paródia kierkegaardiana que ousava colocar o humor no interior da tríade dialética: primeiro, o humor transformado em coisa possível, depois o humor

275

qUANdO O fUTURO vIRA PIAdA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

transformado em coisa prática e, por fim, o humor transformado em coisa necessária. Mas Marx se afastaria, irado, quando, nas Migalhas filosóficas, o filósofo dinamarquês propunha a fé como base do conhecimento da História, argumentando, com ironia, que “a fé crê no que não vê. Não crê que a estrela existe, pois isto se vê, mas crê que a estrela veio a ser. O mesmo vale em relação ao acontecimento histórico” (Kierkegaard, 1948, p. 145). Daí a necessidade de suspensão do juízo cognitivo, do deslocamento ou recriação do sentido, base para uma visão humorística do mundo e da história. A obra de Kierkegaard é a escrita que duvida de si mesma, que se instaura e se questiona ao mesmo tempo, buscando demolir o símbolo filosófico da temporalidade, embora sem eliminar o cristianismo da História.

Sob os escritos de Hazlitt ou de Kierkegaard, para ficar nos mais famosos, não se esconderiam laços mais profundos entre o cômico e as utopias? Tomemos, como uma espécie de exercício sugestivo, três exemplos de escritos da época romântica que, dentro de amplo espectro, procuraram, cada um à sua maneira, realizar tal desiderato. O primeiro é a conhecida novela de Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl, publicado em 1814. O segundo registro é a novela de E.T.A. Hoffmann, O pequeno Zacarias chamado Cinábrio. O terceiro registro, bem menos conhecido, foge aos limites ficcionais - é a Ucronia, de Charles Renouvier, livro publicado pela primeira vez em 1857.

Apesar de suas impropriedades, de seu caráter fragmentário e aforístico, os registros cômicos românticos induziram a uma concepção de tempo antitética à concepção de tempo herdada do cristianismo e do Iluminismo e que, por contraponto, mostravam o quanto as utopias projetistas se afastaram desta concepção não linear e fragmentária – na verdade derivada de fontes pagãs ou anti-cristãs. O humor romântico também falava-nos da dissolução dos vínculos sociais, da coisificação das relações sociais e do fracasso da comunicação entre os seres humanos. Figuras com Peter, Cinábrio ou Zacharias eram aquelas singularidades nômades, criadas para expressar, através do riso, a necessidade de superação daquele presente degradado.

Ainda que limitado, o humor romântico constituiu um duro exercício de desesperança porque afinal não queria nada, apenas apressar a derrocada das ilusões sociais em relação ao poder burguês, buscando uma outra temporalidade que não fosse, (como diria Walter Benjamin, bem mais tarde), aquela de um tempo vazio e homogêneo. Fora do tempo cumulativo e dos sentidos estáveis, o humor, aquela epifania da emoção que brilha na simples piada, esforçava-se apenas por “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela brilhava, repentinamente, num momento de perigo na história” (Benjamin, 1985, p. 224).

Talvez, por isto, o próprio Benjamin tenha dito certa vez, que não há melhor começo para o pensamento do que o riso, pois “os espasmos do diafragma oferecem melhores chances para o conhecimento do que os espasmos da alma”.

276

ElIAS ThOMé SAlIBA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

BENJAMIN,Walter. “Sobre o conceito de História”. In: Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CHAMISSO, Adelbert von. A história maravilhosa de Peter Schlemihl. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Estação Liberdade,1989.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Trad. Luiz R. Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1971.

HAZLITT, William. “On Wit and humor”. In: Allen, G. W. e Clark, H. H. Literary Criticism. From Pope to Croce. N.Y.: American Book, 1942.

KIERKEGAARD, Soren. Riens Philosophiques. Trad. Knud Ferlov e Jean Gateau. Paris: Gallimard,1948.

RENOUVIER, Charles. Uchronie (L’Utopie dans l’Histoire). Esquisse historique aprocryphe du développement de la civilisation européenne tel qu’il n’a pas été, tel qu’il aurait pu être (1a ed. 1857). Paris: Fayard, 1988.

SALIBA, Elias T. As Utopias Românticas. 2a. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

Utopias e distopias no campo lingüístico: as concepções e as teorias sobre as afasias Edwiges MoratoUniversidade Estadual de Campinas

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Resumo

Se pensarmos na maneira radical com que os fenômenos da práxis lingüística se colocam como entraves para as utopias lingüísticas clássicas e atuais (como as teses em torno do referencialismo, da competência lingüística inata, da literalidade, da língua primitiva e universal, dos dialetos perfeitos, das línguas fabricadas para uma comunicação eficaz - como o esperanto -, da tradução automática, dos artefatos computacionais criados para síntese de fala ou linguagem artificial, etc.), poderíamos pensar neles como elementos distópicos, ou já seriam eles, em si mesmos, verdadeiras (anti)utopias? Em que medida essa reflexão dialoga com outra, que afirma que uma língua será sempre uma utopia (cf. Marrone, 2004)? Entre o mundo ideal da linguagem adâmica (perfeita, derivada de uma lógica apriorística que nela encontra lugar) e o mundo ideal da linguagem possível (imperfeita, dotada de uma lógica derivada do uso efetivo da língua) trafegam, ambivalentes, as formulações lingüísticas utópicas, entre elas, aquelas atinentes às afasias, foco de nossa reflexão nesta comunicação.

Palavras-chave

Utopia, lingüística, afasia.

Edwiges Morato é professora do Departamento de Lingüística da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Desde 1996 atua na graduação e na pós-graduação, especialmente na área de Neurolingüística. É pesquisadora do CNPq e da FAPESP. Tem graduação em Lingüística, pela Universidade Estadual de Campinas, e em Fonoaudiologia, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Fez seu mestrado (1991) e seu doutorado (1995) em Lingüística, na Universidade Estadual de Campinas, tendo realizado um doutorado-sanduíche na Université de Sorbonne-Nouvelle, Paris III (França), entre 1994 e 1995, sob orientação do Prof. Laurent Danon-Boileau. Fez dois estágios de pós-doutorado no Exterior: o primeiro, entre 2001 e 2002, na Universidade Val-de-Marne, Paris XII (França), sendo recebida pelo Prof. Dominique Maingueneau; o segundo, em 2007, na Universidade de Lyon 2 (França), sendo recebida pela Profa Lorenza Mondada. Em 1986, na Faculdade de Educação da UNICAMP, fez um Curso de Especialização (lato sensu) na área da Educação Especial, coordenado pelas Profas Gilberta Jannuzzi e Ana Luíza Bustamante Smolka. É líder do Grupo de Pesquisa Cognição, Interação e Significação desde 2000. É co-responsável pelo Centro de Convivência de Afásicos (CCA), espaço de pesquisa e assistência a pessoas afásicas ligado ao Laboratório de Neurolingüística desde 1998. Foi, entre 1996 e 1999, Coordenadora de Extensão e Atividades Científicas e, entre 1999 e 2001, Coordenadora Geral de Pós-graduação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Coordenou o Grupo de Trabalho Lingüística e Cognição, da Associação Nacional de Pós-graduação em Letras e Lingüística (ANPOLL) no biênio 2004-2006, e foi secretária da Diretoria da Sociedade Nacional de Neuropsicologia (SBNp) no biênio de 1994-1995. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase nos estudos que envolvem as relações entre linguagem e cognição, atuando principalmente com os seguintes temas: afasia, memória, neurodegenerescência, significação, interação, referenciação, metalinguagem, metaforicidade.

278

EdwIgES MARIA MORATO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Frente à pertinência da linguagem relativamente ao problema da utopia e seus sentidos, esta comunicação é motivada pelo espírito interdisciplinar mais recente que se observa na agenda dos estudos

sobre o tema.Se pensarmos na maneira radical com que os fenômenos da práxis

lingüística colocam-se como verdadeiros entraves para as utopias lingüísticas clássicas e atuais (como as teses em torno do referencialismo, da competência lingüística inata, da literalidade, do universalismo lingüístico, dos dialetos perfeitos, das línguas fabricadas para uma comunicação eficaz, como o esperanto, da tradução automática, dos artefatos computacionais criados para linguagem artificial, etc.), poderíamos pensar neles como elementos distópicos, ou já seriam eles, em si mesmos, verdadeiras (anti)utopias? Em que medida essas questões dialogam com outra, que afirma que uma língua (ou melhor, a descrição e a análise da língua) será sempre uma utopia (cf. Marrone, 2004)?

Poderia a língua fugir do fundo utópico? É a língua um tema dos utopistas, já que toda teoria da língua guarda um fundo utópico e, não raramente, um ideal de língua? Nesse sentido, deixaria todo gramático, todo lingüista de ser, em certa medida, um utopista, ou mesmo um formulador de utopia?

Entre o mundo ideal da linguagem adâmica (perfeita, derivada de uma lógica apriorística que nela encontra lugar) e o mundo ideal da linguagem possível (imperfeita, dotada de uma lógica derivada do uso efetivo da língua) trafegam, ambivalentes, as formulações lingüísticas utópicas¹, entre elas, aquelas atinentes às afasias, foco de nossa reflexão nesta comunicação.

As afasias, alterações de linguagem oral e ou escrita que decorrem de afecções cerebrais mais ou menos circunscritas, enquanto entidades nosológicas, em geral se estabelecem na vida do sujeito cronicamente, como sintoma da existência de uma lesão no cérebro. Até a hora atual, ela não pode ser curada no sentido que se dá à erradicação de uma doença (por ato cirúrgico ou administração de medicamentos, por exemplo). O sujeito afásico convive, pois, a um só tempo, com a história de sua relação com a linguagem pré-mórbida, e com uma afasia de diferentes graus de severidade e diferentes características lingüísticas que chega após o comprometimento neurológico.

No campo dos estudos sobre as afasias é vigente ainda, de um modo ou de outro, uma concepção ideal de língua (ou um ideal de língua), e isso certamente tem a ver com o logocentrismo que marca a tradição cultural ocidental. Lembremos, a propósito, que em 1875, Legroux definia a afasia como a “perversão da faculdade normal de exprimir ou compreender as idéias pelos signos convencionais”.

Não é à toa que a perda da linguagem é um dos piores males de nossa época. Nada pior para uma visão utópica de língua que se deparar com seu “espelho roto e deformado”, para lembrarmos uma expressão de Jorge Luís Borges.

¹ Em seu texto La ricerca della lingua perfetta, Umberto Eco aborda as teses, algumas tidas como científicas e outras nem tanto, que a tradição ocidental construiu em torno da idéia de uma linguagem universal e de uma língua-origem. Perfilam em suas reflexões vários exemplos, como a “pansemiótica cabalística” (o dialeto dantesco na obra De vulgari eloquentia, escrita nos primeiros anos do século XIV), o sonho iluminista de uma língua filosófica ou científica – pura e lógica – que seria diferente das línguas ordinárias (nos termos de Rousseau em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens), ou ainda o esperanto, a utopia babélica, a Neolíngua de George Orwell na obra “1984” (1953), a Gramática de Port-Royal do século XVII e os neo-gramáticos do século XIX, todos organizados em torno da tese de uma língua mãe-original, de uma língua indo-européia utópica ou de uma língua universal que enxerga apenas catástrofe, desgraça e confusão na diversidade lingüística (mas esta idéia, de todo modo, cumpre lembrar, vem mudando).

279

UTOPIAS E dISTOPIAS NO CAMPO lINgüíSTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

É precisamente sobre este tipo bastante particular de perda ou alteração da linguagem oral e/ou escrita que falamos nesta comunicação: a afasia, que afeta em variados graus de severidade, tanto a produção, quanto a compreensão da linguagem, e que decorre de lesões mais ou menos circunscritas no SNC, adquiridas em função, sobretudo, de acidentes vasculares cerebrais (outras distopias...).

Do ponto de vista da Neurologia, o afásico – aquele que tem ou manifesta uma afasia – é um sobrevivente. A afasia – seja qual for seu grau de severidade ou quais forem suas características neurolingüísticas - implica ou impõe sempre outras formas de relação do sujeito com sua linguagem, com o outro, com o mundo. A afasia, desse modo, deixa de ser simplesmente uma questão lingüística, uma questão neuro-cognitiva. Ela se torna uma questão social. Tal como assinalamos em outro trabalho (Morato, 2000),

o estudo do caráter patológico da linguagem, como bem notou Porter (1993), começou não à toa com as afasias, considerada a menos somática das patologias da linguagem, o que acabou conferindo uma orientação organicista e psicológica à questão do pathos.

O uso do termo pathos na semiologia clínica perde a idéia de afecção (qualidade de substância, ou “qualidade do ser de poder ser alterado”, cf. Meyer, 1991/1994) ou de introdução de um algo novo na significação para identificar o pathos na/da linguagem apenas como infortúnio, sofrimento, excesso, distúrbio, desvio, erro, extravagância, excrescência. O pathos se torna algo que – não devendo pertencer ao homem – deve ser diagnosticado, curado, erradicado.

No ambiente descritivista e classificatório herdado das ciências naturais, acabou por fugir aos primeiros estudiosos das afasias que o termo pathos (como em patologia ou em patológico) não quer dizer apenas (um discurso sobre) doença, distúrbio, desequilíbrio; ele também veicula sentidos constitutivos de inumeráveis práticas simbólicas humanas: emoção, temor, paixão, empatia, narrativa, comoção, mobilidade afetiva.

No que interessa à Lingüística, a afasia tem sido definida como a “perda da capacidade de realizar operações metalingüísticas” (cf. Jakobson, 1956/1981). Esta perda diria respeito, mais precisamente, à perda de uma suposta competência lingüística natural e homogênea. Além de inata, despojada das condições de apropriação social da língua, ou precisamente por isso, essa competência é infensa à “qualquer idéia de expropriação”, pois se trata de uma faculdade, “uma dotação mental” (cf. Bourdieu, 1982/1998, p. 42). Em sua discussão sobre os conceitos de competência e de língua legítima (analisada por Morato e Bentes em texto de 2002, publicado na revista Horizontes), Bourdieu destaca os mecanismos pelos quais a língua natural se transforma em língua legítima e critica a definição chomskiana de competência enquanto uma faculdade inata de que os seres humanos seriam biologicamente dotados e da qual simplesmente não podem escapar (por serem inconscientes dela). A crítica que Bourdieu faz a Chomsky em tom de denúncia afirma que se “escamoteia” na teoria gerativista a condição sócio-política da transformação da língua natural em língua legítima².

² Tomemos, a propósito, a seguinte passagem de Bourdieu, na qual o autor procura especificar suas críticas à noção chomskiana de competência: “A competência suficiente para produzir frases suscetíveis de serem compreendidas pode ser inteiramente insuficiente para produzir frases suscetíveis de serem escutadas, frases aptas a serem reconhecidas como admissíveis em quaisquer situações nas quais se pode falar (...) Os locutores desprovidos de competência legítima se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou então, se vêem condenados ao silêncio. Por conseguinte, o que é raro não é a capacidade de falar, inscrita no patrimônio, universal e, portanto, essencialmente não distintiva, mas sim a competência necessária para falar a língua legítima que, por depender do patrimônio social, retraduz distinções sociais na lógica propriamente simbólica dos desvios diferenciais ou, numa palavra, da distinção” (1998, p. 42).

280

EdwIgES MARIA MORATO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Lembrando que a competência relativamente à linguagem tem sido analisada sob outras perspectivas no campo da Lingüística, partindo da premissa de que ela – a competência – sendo um conceito normativo, é antes uma prática do que uma faculdade, Morato e Bentes afirmam:

Ainda que os estudos psicolingüísticos de cunho gerativista tenham "comprovado" uma habilidade natural para a linguagem nos seres humanos, não se pode prognosticar à hora atual qualquer acordo entre os lingüistas sobre os princípios gerais que descrevem essa capacidade. Além disso, como muitos autores têm apontado a partir das críticas iniciais feitas por Dell Hymes, questões de ordem prática se impõem aos gerativistas. Dentre elas, podemos citar questões de variação lingüística ou a ausência de respostas convincentes à questão da aprendizagem, que é abandonada a uma tese evolucionista muito geral que não consegue dar conta da variedade das performances observadas” (cf. Ogien, 2001). Também podemos citar a dificuldade de se fazer com que um programa de tradução automática - potencialmente universal - derive de uma gramática universal.

O estudo da afasia pode nos remeter, pois, tanto a um ideal de língua (a utopia), quanto a uma crítica a ela. As teorizações sobre a afasia não deixam, assim, de revelar uma ambivalência importante, seja no campo das Ciências Médicas, seja no campo da Lingüística. Esta ambivalência se exibe quando estes campos se reportam seja a uma espécie de nostalgia da língua perfeita, o Eldorado lingüístico; seja à crítica às utopias desligadas do mundo empiricamente concreto – que no campo lingüístico seria representada pelas abordagens não-internalistas da linguagem e da mente (chamadas por muitos lingüistas, como Salomão (1999), Marcuschi (2003), Morato (2004), Koch (2004), dentre outros, de perspectiva sócio-cognitiva)³.

De modo mais ou menos implícito, a afasia tem estado no centro de uma verdadeira querela conceitual (e diagnóstica) desde que passou a integrar, a partir do século XIX, o quadro semiológico (na verdade, “sintomatológico”)4 das patologias de linguagem decorrentes de lesão cerebral adquirida (com isso, não seriam afasia os problemas de linguagem decorrentes ou associados a outras entidades nosológicas, como a amnésia, a des-razão, etc.). Aliás, cumpre lembrar, quanto a este ponto, que praticamente toda a semiologia afasiológica (o “teatro nosológico”, nos termos de Foucault, 1963/1977) é prenhe de elementos potencialmente utópicos: anomia, agramatismo, parafasia, confabulação, etc.

Em 1861, o médico e anatomista francês Paul Broca apresenta em um congresso médico um manuscrito no qual define, por meio da descrição de um caso clínico, o que viria a ser cunhado (não por ele, na verdade) como afasia, uma perda isolada da linguagem articulada em decorrência de lesão cerebral adquirida5. Com isso, isto é, com o estudo da afecção da linguagem, esta não se encontra mais “invisível” para os médicos e os cientistas do século XIX: a afecção da linguagem, ou seu sintoma - a função normal perdida - permitiu que a linguagem passasse a ter uma sede corpórea ou uma realidade material sendo, finalmente (assim como já ocorrera com a memória, por exemplo), localizada mais especificamente nas áreas frontais

³ Nessa perspectiva grosso modo é a práxis social que modula e organiza simbolicamente nossa experiência lingüístico-cognitiva, de modo a circunscrever nossa cognição não como um antecedente de nossa atividade interacional ou interpretativa sobre o mundo, mas como derivada dela.

4 Ao apresentar em seu livro O nascimento da clínica (1977) as características da clínica nos séculos XVIII e XIX, Foucault afirma que ela não surge propriamente como um instrumento para descobrir uma verdade ainda desconhecida; ela é, na realidade, uma maneira de dispor da verdade já adquirida e absorvida pela tradição cultural dominante. É, nesse sentido, uma espécie de “teatro nosológico” que está em questão na composição do diagnóstico. Um teatro cujo desfecho o estudante de Medicina desconhece de início.

5 Vejamos a maneira pela qual Broca descrevia seu paciente: “Ele compreendia tudo o que lhe diziam; ele tinha mesmo a orelha muito fina. Mas seja qual fosse a pergunta que lhe dirigiam, ele respondia sempre ´tan tan´, fazendo os mais variados gestos a partir dos quais ele conseguia exprimir a maior parte de suas idéias. Quando seus interlocutores não compreendiam sua mímica, ele ficava imediatamente em cólera, e juntava a seu vocabulário uma palavra de baixo calão, uma só, e precisamente. Tan passava por egoísta, vingativo, mau, e seus amigos, que o detestavam, o acusavam até de ser ladrão” (Broca, 1864, p. 75).

281

UTOPIAS E dISTOPIAS NO CAMPO lINgüíSTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

do cérebro – o lugar ontológico antes reservado à mente – ao pé da terceira circunvolução frontal esquerda, também chamada... área de Broca.

Mais do que descrever as circunstâncias de produção da doença, a questão posta na ocasião era: qual o melhor termo para designar a alteração supostamente isolada da linguagem articulada (um ideal nosológico, por sua vez)? Broca tentou, em 1861, nomear a doença que descrevia a partir da observação de seu famoso paciente Tan Tan como Afemia (e vale lembrar que muito desse caso clínico com o qual se inicia a Afasiologia era totalmente utópico no sentido corrente de utopia, posto que o problema de linguagem era provavelmente o menor dos males de Leborgne – o Tan Tan – amputado e havia mais de 20 anos já institucionalizado no hospital Bicêtre, de Paris).

Porém, Afemia, além de inadequado em relação à etimologia grega, poderia ter vários sentidos; entre outros, o de má reputação ou de infâmia. O termo Alalia, por sua vez, foi recusado por aludir exclusivamente à perda da voz ou à alteração do aparato fonatório, e não propriamente da articulação de palavras e idéias, o que era o caso da doença descrita por Broca. Afrasia, por seu turno, foi um termo recusado pelos antigos afasiólogos pelo fato de que, entre outros motivos de ordem formal, a afecção então em vias de ser nomeada se impunha, sobretudo, sobre a palavra, então unidade de análise da linguagem.

O termo que melhor se ajustou à descrição de Broca foi Afasia, proposto pelo jovem médico Armand Trousseau, em 1864, e finalmente acatado pelo mestre e por toda a comunidade científica, até os dias de hoje. Como observa Dechambre (1877), Trousseau acreditava que havia fabricado um neologismo, mas o fato é que o termo Afasia tem origem bem antiga, sendo encontrado pelo menos duas vezes em Homero, significando mutismo passageiro resultante de uma forte comoção moral. Eurípedes e Platão, dentre outros, também fizeram uso do termo. No mundo clássico, como se observa, a idéia de afasia não era ligada à idéia de doença, propriamente; era ligada à idéia de retórica, à idéia de logos, à idéia de pathos, não apenas de realização motora da fala ou do pensamento que não se materializa.

Na prática médica tradicional, desde o século XIX, a nomeação da doença tem servido de guia aos procedimentos clínicos e diagnósticos que buscam equivaler sintoma e déficit lingüístico (afinal, como supõe o ditado, “uma doença nomeada é uma doença quase curada”); a nomeação busca, sobretudo, a verdade (isto é, a essência) da doença ocultada sob o fato clínico (cf. Foucault, 1963/1977). Este raciocínio é semelhante àquele que leva em consideração que inúmeras descobertas geográficas foram feitas por aventureiros que procuravam o país do ouro, um “não-lugar”. Contudo, poderíamos perguntar, com Lanteri-Laura (1986): seria então o caso de “registrar em nossas cartas geográficas o Eldorado”? Neste caso, a ilusão é proporcional à redução necessária para o diagnóstico, posto que o nome é resultado de “uma operação lógica que permite sintetizar sintomas, transformando-os em doenças”. Neste caso, não existe método ou cura antes da nomeação da doença. Se “nomear é conhecer, o ato de nomeação da doença pressupõe todo o Eldorado” (Rajer, 2009).

282

EdwIgES MARIA MORATO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

As querelas conceituais, semiológicas e diagnósticas operam, de um lado, com aquilo que Foucault (1970/1995) chamou de “vontades de verdade” de uma época ou de um metadiscurso; de outro lado, o que nos parece ser mais ainda mais complexo, derivam, ainda que não de maneira explícita, um jogo epistemológico que pendula entre as formulações lingüísticas classicamente utópicas (tomando-se o sentido corrente de utopia como “aquilo que poderia ser”) e uma crítica a elas, ancorada num domínio empírico – qual seja, o das práticas lingüísticas ordinárias – que nos lembram que de um modo ou de outro estamos sempre mergulhados num estado de afasia, como afirma Freud, autor de uma tese de doutorado, de 1891, intitulada precisamente “A interpretação das afasias”6.

De maneira extremamente sucinta temos, de um lado, na abordagem lingüística do fenômeno afásico, teorizações fortemente inatistas ou fortemente estruturalistas (baseadas em antinomias clássicas como normal versus patológico, produção versus compreensão, sensorial versus motor, linguagem versus pensamento). Remontando ao sentido corrente de utopia, o que se lastima aqui na perda da linguagem são as propriedades lógico-perceptivas de uma língua encerrada em si mesma (este “tesouro depositado na mente das pessoas”, nos termos de Saussure, 1916/1981). Aqui, as afasias são definidas comumente em termos de uma perda ou alteração da capacidade de realizar operações metalingüísticas ( Jakobson, 1954/1981); portanto, da capacidade de representar ou fazer corresponder (e corresponder perfeitamente) as referências da realidade com as categorias da língua que a localizam e permitem que as estampemos como traços em nossas mentes.

Esta posição tende a ser despojada da preocupação com aspectos sócio-culturais atinentes à linguagem e processos afeitos a ela. Como o que é perfeito não pode ser transformado, o afásico jamais poderá recuperar este estado supostamente ideal dos modos de existência da língua preconizados por essas teorizações.

Por outro lado, temos teorizações de cunho fortemente pragmaticista ou interacionista sobre as afasias, que estabelecem um quadro relacional entre o normal e o patológico e que admitem que o estado da linguagem no contexto da afasia constitui um mundo possível de linguagem e de comunicação (prenhe, por sua vez, de vários elementos ditos afásicos: neologismos, repetições, frases incompletas, pausas, titubeios, hesitações, lapsos, digressões, perífrases, dêiticos verbais e não-verbais, circunlóquios, anacolutos, ambigüidades, semioses não-verbais, reformulações constantes, etc.). Negligenciada ou subtraída das concepções idealizadas da linguagem, aqui a possibilidade de o afásico vivenciar características da língua possível (a linguagem pré-mórbida) ocupa o lugar utópico reservado às primeiras teorizações. No caso das afasias, o Eldorado lingüístico passa a ser não mais e apenas a língua-teoria, mas a experiência lingüística do estado pré-mórbido. O movimento utópico que se deixa vislumbrar aqui diz respeito à maneira como se concebe a relação entre aquela língua afetada pela afasia e aquela língua anterior a ela, também esta uma “langue introuvable”.

Em que reside, pois, a dimensão utópica derivada das segundas

6 A propósito, segundo Verdiglione, num prefácio à obra de Freud (1891/1977), a questão da afasia é para este bem mais subversiva que a descoberta nela, por parte de Jakobson, dos princípios da normalidade. Trata-se da “constatação do alcance da afasia o fato de que algo nos escapa”. Para Freud, cumpre lembrar, estudar a afasia representou estudar uma porta de acesso para o inconsciente e para a constatação de um estado afásico permanente e constitutivo da linguagem normal.

283

UTOPIAS E dISTOPIAS NO CAMPO lINgüíSTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

teorizações mencionadas anteriormente? Diríamos que na idéia de comunicação não perfeita, mas possível, situação em que é preciso entrever não uma ruptura, e sim uma continuidade entre o normal e o patológico, entre o pathos associado à afasia e o pathos constitutivo da condição humana; situação em que é preciso deslocar a idéia de competência lingüística chomskiana, tomada como faculdade mental inata, infensa às condições materiais de vida em sociedade, em direção à idéia de uma competência relativamente à linguagem de ordem pragmática que vê a capacidade lingüística como resultante de práticas sócio-cognitivas. A dimensão utópica de que se fala aqui é, então, um projeto de entendimento da língua e suas circunstâncias, que parte de projeto de entendimento dos regimes simbólicos das ações humanas como “projetantes”, e não apenas como racionais ou “sapiens”.

Se identificarmos a afasia não com a perda de um “constructo ideal incontaminado pela realidade” (afetada pela corporalidade da lesão cerebral), mas sim com uma dimensão empírica da qual o homem e suas circunstâncias não estão removidos, ela – a teorização sobre a afasia - não dialogará mais com as utopias derivadas de proposições abstratas (de maneira semelhante ao realizado pelas distopias, cf. Berriel, 2009), mas sim com as experiências humanas concretas7. Afinal, a linguagem a ser “recuperada” pelos afásicos após os comprometimentos derivados da lesão cerebral em geral é aquela que emerge não apesar da afasia, mas em sua presença.

Longe de dialogarem apenas com as concepções utópicas de linguagem, esta espécie de “Eldorado”, o estudo de processos lingüístico-interacionais das afasias (e não meramente os lingüísticos stricto sensu) ajuda-nos a formular perspectivas em que a língua não se encontra descarnada e disjuntada das relações entre linguagem, sujeito e tramas sociais.

O enfoque do estudo da linguagem em situações de uso, em contexto, em práticas discursivas reais, contudo, não deixa de assinalar – como um metadiscurso escatológico/utópico internalizado – o maravilhamento e o espanto dos sujeitos, pesquisadores e afásicos, frente à experiência humana radical que a linguagem sempre implica. Apenas como exemplos-emblema disso, tomemos duas falas de afásicos, quando confrontados com suas dificuldades lingüísticas. O primeiro, um senhor que de profissão era motorista, disse à pesquisadora, quando instado a interpretar um provérbio: “O sentido é para além daquilo que interessa agora, né, mas eu não sei explicar”. Outro, um senhor que de profissão era balaieiro, frente a seu problema de evocação verbal, pergunta, sinceramente intrigado, à sua interlocutora: “Por que, heim, por que as palavras não caem mais do céu?”

Se a “utopia pode também ser considerada como a procura de compensação para algo que está faltando e se busca tenazmente, tanto em termos sociais, quanto pessoais” (Fortunati, 2009), ao que parece, ela não se deixa dizer em linguagem apenas (meta)teórica. Pelo contrário, a utopia – ou o pensamento utópico enquanto crítica e projeto de realidade – se exibe na reposição justamente dos elementos tidos como heteróclitos na fundação da Lingüística como ciência: os sujeitos, a qualidade de suas interações, suas rotinas significativas situadas local e historicamente.

7 Quando se fala em “recuperação da linguagem” no contexto das afasias, o que se recupera? A despeito da evidência empírica representada pela plasticidade cerebral, e o fato de que em boa medida os afásicos podem recuperar parcialmente os padrões de linguagem pré-comprometimento cerebral, certamente ele não há de recuperar a língua idealizada das primeiras teorizações, evocadas nos testes-padrão e baterias diagnósticas metalingüísticas.

284

EdwIgES MARIA MORATO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Bibliografia

BERLINCK, M. T. Psicopatologia fundamental São Paulo: Escuta, 2000.

BERRIEL, C. E. U-TOPOS. Centro de Estudos sobre utopia. IEL. 2009 (www.iel.unicamp.br)

BOURDIEU, P. (1998). A economia das trocas lingüísticas. O que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP.(original de 1982).

DECHAMBRE, A. Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales. Paris: G. Masson, volume V. 1877, 3ª série.

ECO, U. A busca da língua perfeita na cultura européia. Bauru: EDUSC/Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2001.

ELING, P. (Ed.). Reader in the history of aphasia. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1984.

FOREST, D. Histoire des aphasies. Une anatomie de l´expression. Paris: PUF, 2005.

FORTUNATI, V. http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/junho2009/capa431.php

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. (original de 1954)

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. (original de 1963)

FREUD, S. A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1972 (original de 1891).

HÉCAEN, H.; DUBOIS, J. La naissance de la Neuropsychologie du Langage (1825- 1865). Paris: Flammarion, 1969.

JAKOBSON, R. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1981 (original de 1954).

KOCH, I. G. V. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004

LANTERI-LAURA, G. “O empirismo e a semiologia Psiquiátrica”. In: A querela dos diagnósticos. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1989.

MARCUSCHI, L. A. “Do código para a cognição: o processo referencial como atividade cognitiva”. In: Veredas 13, 2003, p. 43-62.

MARRONE, C. Le lingue utopiche. Viterbo: Nuovi Equilibri, 2004.

MEYER, M. O filósofo e as paixões. Esboço de uma história da natureza humana. Porto: Ed. Asa, 1994. (original de 1991).

MORATO, E. M. As querelas da semiologia das afasias. Inédito. 2009.

MORATO, E. M. “O interacionismo no campo lingüístico”. In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à Lingüística. Fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 311-351.

285

UTOPIAS E dISTOPIAS NO CAMPO lINgüíSTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

MORATO, E.M. & BENTES, A.C. “Das intervenções de Bourdieu no campo da lingüística: reflexões sobre competência e língua legítima”. In: Horizontes 20, 2002, p. 31-48.

MORATO, E.M. & BENTES, A.C. “As afasias entre o normal e o patológico: da questão neuro(lingüística) à questão social”. In: LOPES, F. & MOURA (orgs.). Direito à fala. A questão do preconceito lingüístico. Florianópolis: Insular, 2000.

PORTER. R. “’Expressando sua enfermidade’: a linguagem da doença na Inglaterra georgiana”. In: BURKE, Peter & PORTER, Roy (orgs.). Linguagem, indivíduo e sociedade. São Paulo: Editora da UNESP, 1994 (original de1991).

RAJER, F. “A anomia e sua realidade semiológica”. Dissertação de Mestrado. IEL. Campinas: Unicamp, 2009.

SALOMÃO, M. M. “A questão da construção do sentido e a revisão da agenda dos estudos da linguagem”. In: Veredas 3(1), 1999, p. 61-79.

SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1981. (original de 1916).

TOURNON, André. “Ce qui devrait se dire en utopien”. In: Croisements culturels. Michigan Romance Studies, VII, 1987.

Dante Alighieri e o projeto do vulgar ilustreBruno DallariPontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil)

Resumo

No opúsculo Da Eloqüência Vulgar (De Vulgari Eloquentia), escrito em 1305 e não terminado, Dante Alighieri apresenta o projeto do vulgar ilustre. O fundamento do projeto são as considerações de que (1) o latim, embora fosse uma língua superior a todos os respeitos, não se prestava à comunicação pública, então em demanda crescente, e (2) a língua vulgar, falada trivialmente pelas pessoas, era insegura quanto à lógica, limitada quanto ao repertório conceitual e à capacidade expressiva e esteticamente deselegante. Daí o entendimento de que era necessário formular uma língua que, embora recorresse ao repertório da língua vulgar, fosse desenvolvida pautada pelos elementos que faziam do latim uma língua superior. O produto dessa construção seria o vulgar ilustre, um conceito que, ainda hoje, preside a intervenção sobre as línguas e que contém em si um ideal de Homem, que é, em larga medida, o ideal do sujeito contemporâneo.

Palavras-chave

Dante, língua vulgar, latim, vulgar ilustre.

Bruno Bohomoletz de Abreu Dallari é professor do Departamento de Lingüística da PUC-SP desde 1997. Leciona nos cursos de Jornalismo e Relações Internacionais e atua também no curso de pós-graduação lato sensu, como professor e como orientador, nas áreas de Jornalismo Econômico e Jornalismo Internacional. Seu tema de pesquisa original, sobre o qual versaram sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado, realizadas na UNICAMP, foram as concepções lingüísticas de Saussure. A atuação no curso de Relações Internacionais o levou a desenvolver a linha de pesquisa em Políticas Lingüísticas que, atualmente, é o objeto principal de sua atividade de pesquisa. A atuação no curso de Jornalismo o levou a investigações no campo da Análise do Discurso, voltadas sobretudo para a explicação da relação mídia-público.

288

BRUNO dAllARI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Da eloqüência vulgar é um texto inacabado, escrito por Dante Alighieri em torno do ano de 1305, no qual ele postula a necessidade de se instituir uma língua de uso público alternativa

ao latim. Esta língua deveria estar ancorada na língua comum falada pelas pessoas, chamada então de “vulgar”.

O rótulo “vulgar” cobria indiscriminadamente todas as línguas ágrafas européias, num continuum despreocupado em estabelecer delimitações territoriais específicas. A referência do termo é sempre genérica e imprecisa, mesmo quando acompanhada de um adjetivo: vulgar florentino, vulgar provençal, vulgar meridional etc. O vulgar contrastava com línguas fixadas pela escrita, como o grego e o latim. As línguas européias só passaram a ser referidas por nomes – o italiano, o francês, o flamengo – a partir do século XVI, com a generalização do processo de gramatização (cf. Auroux, 1992). Assim, quando se dizia que um texto estava “escrito em vulgar”, ele poderia estar escrito em qualquer das dezenas de línguas não gramatizadas da Europa medieval.

Dante não postulava o emprego da língua vulgar tal como era usada correntemente pelas pessoas. Ela deveria antes ser configurada e estabelecida num patamar superior, incorporando as propriedades lógicas e expressivas que se atribuía ao latim e com a assepsia de diversos elementos considerados indesejáveis numa língua. O produto esperado deste projeto que, num mesmo movimento, afirmava e negava a legitimidade dos falares populares seria o que Dante chamou de “vulgar ilustre”.

O movimento de afastamento do latim em benefício de uma língua reconhecível pelo leigo iletrado poderia sugerir um movimento distópico, pelo esvaziamento de uma idealização e pela adoção de uma atitude aparentemente banalizada diante da língua. Porém, como argumentaremos nesta comunicação, o estabelecimento de uma referência idealizada de como deveria ser esta língua e a elaboração de um roteiro para sua constituição, elencando elementos desejáveis e indesejáveis para sua composição, fazem do vulgar ilustre uma utopia lingüística ainda mais arrojada do que a que estava implicada no status do latim como língua consagrada. Uma utopia tão mais interessante, por estar em vigência até hoje, incorporada às concepções lingüísticas contemporâneas.

1. A transição do latim aos vernáculos

Na cronologia, forçosamente imprecisa, da produção das obras de Dante consta que a redação de Da eloqüência vulgar foi iniciada por volta de 1304 e abandonada no ano seguinte, 1305, quando Dante inicia a escrita da Commedia (que só em 1555 receberia o epíteto “Divina”, de seu editor veneziano). Para Steven Botterill (1996), essa seqüência não é acidental; ao contrário, haveria um nexo entre um texto e outro e o abandono do primeiro teria acontecido em benefício do desenvolvimento do segundo. A Commedia seria a realização do projeto esboçado na Eloqüência Vulgar. Para Botterill, Dante abandona a formulação programática que iniciara para proceder de uma vez à realização do programa que estava elaborando. Nesse

289

dANTE AlIghIERI E O PROjETO dO vUlgAR IlUSTRE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

sentido, Da eloqüência vulgar não só anteciparia, mas, em alguma medida, explicaria a Commedia. A concepção formal da Commedia, mas também alguns componentes da mensagem que ela exprime constariam já, como formulação, da Eloqüência vulgar.

A Commedia é freqüentemente apontada como o texto inaugural do italiano moderno. Essa concepção é inexata ou mesmo equivocada, como veremos mais adiante. Porém, é significativo que Dante tenha se decidido a escrevê-la em vulgar e não em latim, o que representava uma ruptura com a prática estabelecida até aquela época. E, justamente, é dessa passagem, do latim ao vulgar, de como e porquê proceder a ela, que trata Da eloqüência vulgar. O propósito anunciado do texto é prover uma “doutrina da eloqüência em língua vulgar”, estabelecendo os termos para seu uso adequado. Grande parte do texto se dedica a justificar a necessidade e a viabilidade dessa transição, indicando que a opção por não usar o latim não era considerada um gesto trivial, mas um passo temerário na direção de uma língua que poderia arruinar uma mensagem pela sua precariedade lógica e expressiva.

Chama a atenção o fato de que Da eloqüência vulgar, o texto que pioneiramente propõe o uso da língua comum, tenha sido escrito... em latim. Parece paradoxal que Dante não apresentasse, desde logo, uma amostra do que estava propondo. Esse paradoxo é uma amostra da insegurança que suscitava o uso do vulgar. Essa insegurança persistirá longamente. Ela pode ser ilustrada por dois fatos, um pouco anedóticos, mas significativos:

Em 1492, quando Nebrija publicou a Gramatica de la Lengua castellana, a primeira gramática de uma língua vernacular européia moderna, a obra foi recebida com desconfiança pela Rainha Isabel, que tinha estudado latim a partir de um tratado do mesmo Nebrija, seu preceptor. “Para que pode servir um texto em vulgar?”, teria perguntado a rainha a Nebrija. A rainha da Espanha não queria que se usasse o “espanhol”. Ela preferia que se usasse o consagrado latim e não conseguia entender o propósito daquela empreitada.

Mais tarde, já no final do século XVIII, quando o filósofo Immanuel Kant escreve as suas três conhecidas “críticas”, as duas primeiras são escritas em latim e só a última, a Crítica da faculdade de julgar, publicada em 1790, foi escrita em alemão.

A transição do latim para os vernáculos, como língua de registro escrito e de uso culto e informado, foi um longo processo. A resistência se devia a que os vernáculos eram considerados populares demais, bastardos quanto à origem e composição, logicamente confusos e mal-estruturados, desleixados quanto a qualidades de representação e expressão, para se prestarem a usos “elevados”. A noção corrente – e ainda vigente – era que, para que o uso do vernáculo pudesse se tornar aceitável, ele deveria antes ser burilado, asseptizado, transformado, melhorado. Essa transição jamais consistiu em simplesmente adotar o vernáculo como era empregado em sua forma oral corrente. Da eloqüência vulgar é o momento primeiro dessa transição, mas que estabelece, notavelmente, as diretrizes fundamentais que vão orientá-la.

290

BRUNO dAllARI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

De qualquer forma, o projeto do vulgar ilustre não supunha o abandono do latim; ele pretendia criar e ocupar um espaço novo, distinto da oralidade pura popular e da escrita formal em latim: o da escrita vernacular.

2. da oralidade à escrita – estabelecendo uma forma para a língua

O estabelecimento das línguas vernaculares como línguas de uso formal não consistiu na mera transcrição dos falares correntes ou no registro escrito da língua empregada oralmente. Em todos os casos, a língua oral foi assumida como um ponto de partida a ser superado por obra da intervenção visando a modificar a língua, a transformá-la numa outra coisa, a criar uma entidade nova. É o que Dante propõe na Eloqüência vulgar.

A adoção do vulgar não correspondeu à consagração das formas correntes orais e populares. Ao contrário, implicou assumir a língua corrente apenas como matéria-prima a ser trabalhada para a elaboração de uma língua melhor, esta sim digna de ser usada.

O primeiro passo desta intervenção consiste em selecionar as “melhores” formas da língua em detrimento das demais. Essa operação é o que Dante faz na Eloqüência vulgar. Dante passa em revista as formas disponíveis dos vulgares de sua época, as compara fazendo apreciações sobre sua qualidade estética e emite juízos quanto às preferíveis.

A noção de que haveria uma forma superior de se expressar, de que essa forma deveria ser trabalhada e que estaria em contraposição ao modo usual e trivial das pessoas se exprimirem não foi uma criação de Dante. Ela já existia antes, muito particularmente na noção, vigente desde a Antigüidade, de que as liturgias religiosas, mas também as civis, requerem modos formalizados de expressão. Porém, para além desta concepção, havia uma razão para que não se adotasse simplesmente os falares populares: a necessidade de distinção social.

A adoção imediata da língua oral para efeitos formais colocaria a todos num patamar lingüístico e identitário comum – comerciantes, camponeses, clérigos, magistrados, nobres e cavaleiros. A percepção de que a legitimação do emprego do vulgar aproximaria a todos mais do que o devido era também uma motivação importante para que se repelisse o seu uso generalizado.

É assim que a língua institucionalizada passa a ser produto e parte do modo de produção da sociedade de classes, com essa função ao mesmo tempo agregadora e segregadora. O paradoxo é que, se o estabelecimento de um patamar comum lingüístico era considerado indesejável, foi justamente a necessidade de um patamar comum que suscitou a necessidade do vulgar ilustre.

3. Uma língua para o novo espaço público

O contexto histórico da produção da obra de Dante Alighieri é o da emergência do espaço público contemporâneo. Se Dante precisava usar o vulgar era porque queria estabelecer uma interlocução com os seus como quem fala a uma comunidade e não como quem se reporta a uma

291

dANTE AlIghIERI E O PROjETO dO vUlgAR IlUSTRE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

autoridade, que era a suposição dos textos em latim. Era preciso ainda que a sua mensagem pudesse atingir um público que não só não conhecia o latim, mas não era sequer alfabetizado.

Escrita num momento em que a imprensa não havia sido inventada, no qual não havia livros disponíveis, no qual a escrita era usada sobretudo para finalidades técnicas e não leigas e no qual a alfabetização era vista como uma capacitação específica destinada a poucos, a Commedia circulou oralmente, tanto ou mais quanto por escrito. Um viajante visitando Florença, um século mais tarde, surpreendeu trabalhadores analfabetos declamando versos de Dante enquanto trabalhavam (cf. Hale, 1970). A primeira edição impressa da Commedia foi a edição veneziana de 1555. Considerando que Dante terminou de escrevê-la em 1320, é um longo hiato.

A Commedia, segundo Jacques le Goff (1995), foi escrita no contexto da emergência do capitalismo e de uma incipiente burguesia no final da Idade Média, muito particularmente nas cidades italianas, com um efeito perturbador sobre a ordem estabelecida.

A percepção de Dante sobre o seu tempo era a de um mundo instável e de uma sociedade em disrupção e sem coesão, fruto da ganância, do desprezo pelo próximo, das ambições crescentes, da abertura de portas para alguma ascensão social, e, num nível mais amplo, da luta pelo poder. Mesmo a autoridade da Igreja, neste novo cenário, não podia ser dada como certa. O cisma do Oriente tinha colocado em questão a primazia de Roma. Movimentos heréticos eclodiam em diversas partes da Europa e o próprio franciscanismo, que foi, por fim, habilmente absorvido pela Igreja, continha um forte componente crítico aos fundamentos do poder da Igreja.

É neste sentimento de incerteza e de falta de direção que consistiria a “selva escura”, na qual se encontra Dante no início do Inferno. Era preciso que as pessoas adotassem uma perspectiva comum, permeada de ideais elevados, para o estabelecimento de uma sociedade melhor. Le Goff considera o Purgatório como o livro que contém o cerne da mensagem de Dante e o caracteriza como “um tratado sobre os vícios e as virtudes”. Com efeito, ao passar em revista cada um dos pecados, Dante faz uma espécie de preleção moral ao seu interlocutor, leitor ou ouvinte.

A Commedia teria uma missão edificante: conclamar as pessoas a que se comportassem bem e que aderissem ao ideal de uma sociedade organizada e harmoniosa. Para isso, era preciso se dirigir a elas numa linguagem que, ao mesmo tempo, fosse acessível e compreensível, mas que tivesse a solenidade e o encantamento de uma língua percebida como superior.

Estabelecer uma interlocução direta com essa comunidade – de fato, a constituindo – era a razão para não usar o latim. Conferir autoridade, respeitabilidade e envolvimento à mensagem era a razão para não usar a língua oral comum.

As demandas específicas de comunicação que emergiram naquele período serão típicas da sociedade que se desenvolverá em seguida, que ocorre ser a nossa. Nesse sentido, o pioneirismo da Eloqüência vulgar tem a ver com o primeiro momento em que as tensões sociais e políticas resultantes da emergência da burguesia e do advento do capitalismo requerem a

292

BRUNO dAllARI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

constituição de um espaço público configurado como território de diálogo e arena de disputas.

Da eloqüência vulgar, como todos os projetos lingüísticos que se seguirão, versa primeiramente sobre a língua como forma, mas tem, desde logo, como horizonte os sentidos a serem veiculados por ela.

4. efeitos paradoxais de inclusão e exclusão

Ao contrário do que eventualmente se pensa, a adoção do vulgar não foi um vale-tudo, nem uma abertura para que cada um falasse como quisesse, para que cada um usasse “sua própria língua”. Isso estava fora de questão. Pelo contrário, uma vez adotado, o vulgar ilustre circunscreveria um certo domínio do espaço público, que pertenceria por direito aos “bem falantes”.

Um lingüista contemporâneo não pode deixar de observar este aspecto contraditório do projeto do vulgar ilustre: ao mesmo tempo em que "abre" para a língua comum, "fecha" para as formas populares de expressão. Abre inúmeras possibilidades expressivas, mas abre também caminho para o estigma lingüístico, sobre aqueles que "falam mal", que desconhecem ou não sabem usar adequadamente a língua estabelecida. Abre para que certos falantes sintam o complexo e o desconforto de não dominar a "língua culta", que difere da sua língua corrente, e que, no entanto, em tese, é a mesma.

A institucionalização lingüística, da qual a Eloqüência vulgar é a pedra fundamental, interdita e deslegitima certos falares e, com eles, seus falantes. Ela tem um aspecto constitutivamente inclusivo, ao legitimar que a comunicação pública seja feita na língua das pessoas, mas tem um aspecto excludente, ao requerer do falante uma disposição trabalhosa para ascender ao uso da versão elaborada desta língua.

Evidentemente, o texto de Dante, embora traga embutidas essas concepções, não é programaticamente explícito a respeito delas. É apenas o caso de apontar o quanto ele está em consonância com motivações histórico-sociológicas de ordem mais geral: era preciso constituir, linguisticamente, uma comunidade; mas que essa comunidade não fosse mais homogênea do que o desejado, que ela preservasse uma distinção hierárquica entre seus membros.

5. O caráter do projeto – universal e não nacional

Ao longo do texto da Eloqüência Vulgar, sobretudo no segundo livro, Dante procede a uma “coleta” de dados lingüísticos de vários lugares da Itália. No final do primeiro livro, ele caracteriza o resultado almejado como “vulgare latium”, isto é, o vulgar do Lácio. Isso e o fato da Commedia ser assumida como “o primeiro texto em italiano” fazem com que eventualmente se veja a Eloquência vulgar como o projeto de constituição de uma língua nacional italiana.

Esta é uma ilusão retrospectiva. A questão nacional não estava em pauta nesse período, nem estará por muitos séculos a seguir. Se houve quem, como Maquiavel, colocasse como desejável a unificação da Itália sob uma

293

dANTE AlIghIERI E O PROjETO dO vUlgAR IlUSTRE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

mesma entidade política, naquela época, essa era apenas uma perspectiva entre outras. A Lombardia era um reino à parte com vínculos tão ou mais importantes com outras partes da Europa, como a França e a Alemanha, do que os que mantinha com o resto da Itália. O sul da península italiana, particularmente a Sicília, era o centro de uma órbita própria de influência, mais voltada para outras partes do Mediterrâneo, inclusive o mundo árabe, do que para o norte da Itália. Veneza era uma ponte entre Bizâncio e o resto da Europa, sem nenhuma prioridade na relação com a Itália, já que seus principais mercados estavam ao norte. E assim por diante.

Mas, sobretudo, no que diz respeito à Eloqüência vulgar como projeto lingüístico, ela tem características opostas aos projetos de língua nacional, do tipo que floresceu a partir do século XIX. Estes supõem uma forte ancoragem nos falares populares. Na medida em que a língua pretende ser a encarnação de uma Nação e de um Povo (no sentido romântico dos termos, daí as maiúsculas), esses projetos vão valorizar e enaltecer a expressividade natural dos falares populares. Ora, não só o projeto de Dante não reconhecia essa expressividade, como suspeitava dela. Não só não assumia a existência de um Povo italiano, no sentido romântico e nacional do termo, como a língua do povo, no sentido de classes sociais mais baixas, era explicitamente rejeitada como inferior e indesejável. Ao contrário, as fontes empíricas da elaboração do vulgar ilustre, mencionadas por Dante, são todas provenientes de poetas sofisticados, nunca de fontes populares.

O público-alvo do projeto de Dante era socialmente circunscrito aos habitantes das cidades em condições de participar, em alguma medida, do universo da veiculação de idéias e de uma fruição estética mais elaborada. Nem remotamente seu objetivo era prover uma língua comum que viabilizasse a constituição de uma nação. O objetivo, como ele diz expressamente no final do primeiro livro, é elaborar uma língua digna da corte, de ser usada em uma corte.

Desse ponto de vista, o projeto de Dante era assumidamente elitista em seus ideais e em seus fundamentos, o que não o impedia de ser generoso em seus propósitos.

Enquanto concepção, o projeto esboçado em Da eloqüência vulgar se aproxima mais do universalismo de Port Royal – a criação de uma língua com máxima capacidade lógica e expressiva, sem nenhuma injunção naturalista e sem nenhum compromisso em exprimir a alma de um Povo. É uma língua ideal construída, reconhecível por seus usuários como próxima à falada por eles, mas sem um vínculo de pertencimento por parte deles. Os componentes “nacionais”, regionais ou locais de certas formas lingüísticas entram como tecnicalidades do processo de elaboração da nova língua e não como parte do fundamento do projeto dela.

O vulgar ilustre de Dante não pretendia ser “o italiano”, nem mesmo encarnar a italianidade ou sequer manter propriedades inerentemente italianas. A elaboração da nova língua envolvia não só componentes lexicais e gramaticais, mas também recursos retóricos e poéticos. Para esse efeito, Dante recorre, indistintamente, a poetas italianos e não italianos – Guiraut de Borneil, o rei de Navarra, Guido Guinizelli, Cino da Pistoia, Arnaut

294

BRUNO dAllARI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Daniel, Bertran de Born, têm passagens mencionadas como referências sobre atributos lingüísticos desejáveis sem que seja traçada nenhuma linha demarcatória quanto à nacionalidade. Para Dante, todas as fontes são válidas, desde que contribuam para o desenvolvimento de uma língua superior.

6. Uma utopia moderna

A utopia lingüística de Dante é o projeto de uma língua ideal como componente da constituição de um homem ideal e de uma sociedade ideal. A esse respeito, Da eloqüência vulgar é a obra inaugural de uma ideologia lingüística que continua em vigor e que, uma vez estabelecida, jamais deixou de estar em vigor e continua vigente até hoje.

A língua ideal construída é uma referência, um modelo, a materialização da perfeição do espírito, a pautar nossos atos e pensamentos. Não é possível deixar de comparar a nossa imperfeição – da língua que usamos, da sociedade em que vivemos, de cada um de nós próprios individualmente – com a perfeição da língua ideal que encarna os ideais do homem e da sociedade que gostaríamos de ser. Nos sentimos sempre aquém desta língua e do que ela diz que deveríamos ser.

Não é possível deixar de ter uma relação fetichista com essa língua, que se impõe a nós como horizonte inalcançável, a cada vez que temos que escrever um texto ou preparar uma comunicação pública qualquer. É também a angústia de cada aluno, desde a alfabetização, nos seus longos anos de aprendizado e aperfeiçoamento da escrita, quando ele deve "escrever melhor para falar melhor, para ser uma pessoa melhor e para formarmos uma sociedade melhor".

O vulgar ilustre é a nossa utopia lingüística moderna de cada dia.

Referências

AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Ed.Unicamp, 1992.

BOTTERILL, S. Dante: De vulgari eloquentia. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

HALE, J. Renascença. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970.

LE GOFF, J. O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1995.

MONTANELLI, I. & GERVASO, R. Itália: os séculos decisivos. São Paulo: Ibrasa, 1968.

Da dove ricominciare oggi per progettare l’Utopia?Adriana CorradoUniversidade Suor Orsola Benincasa (Nápoles)

Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia (Bolonha, Itália)

Resumo

Alla luce dell’attuale crisi economica mondiale, che ha radici sostanzialmente politiche e sociali, frutto tardivo anche della crisi delle grandi ideologie ottocentesche, ma dovendo pur tuttavia, almeno in quanto studiosa dell’utopia, ricominciare a sperare, sento imperiosa la necessità di aprire un dibattito che possa contribuire in qualche modo a progettare un futuro migliore, anche se temo sia molto lontano.

Palavras-chave

William Godwin, utopia, anarchia.

Adriana Corrado é professora de Inglês e Literatura Comparada na Universidade Suor Orsola Benincasa, em Nápoles. É autora de vários livros, ensaios e artigos, em sua maioria no campo da literatura utópica da novel inglesa gótica. Alguns de seus títulos são: William Godwin illuminista romantico (Napoli: Ed. scientifiche italiane, 1984), Da un'isola all'altra. Il pensiero utopico nella narrativa inglese da Thomas More ad Aldous Huxley (Napoli: Ed. scientifiche italiane, 1988), Mary Shelley, donna e scrittrice. Una rilettura (Napoli: Ed. scientifiche italiane, 2000). Organizou, entre outros: Storie di vampiri nell'Inghilterra dell'Ottocento, (Napoli: Ed. scientifiche italiane, 2002), Dall'utopia all'utopismo. Percorsi tematici (Napoli: CUEN, com Raymond Trousson e Vita Fortunati).

296

AdRIANA CORRAdO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Alla luce dell’attuale crisi economica mondiale, che ha radici sostanzialmente politiche e sociali, frutto tardivo anche della crisi delle grandi ideologie ottocentesche, ma dovendo pur tuttavia,

almeno in quanto studiosa dell’utopia, ricominciare a sperare, sento imperiosa la necessità di aprire un dibattito che possa contribuire in qualche modo a progettare un futuro migliore, anche se temo sia molto lontano.

Vorrei partire quindi da alcune riflessioni sul mio paese, l’Italia nel nostro tempo dove si parla spesso, penso a buon diritto, di crisi della democrazia e di polulismo. C’è chi ventila persino una deriva autoritaria¹ mentre si accenna spesso persino a serie minacce per la tenuta della Costituzione.

Esisterebbe, secondo alcuni, persino un pericolo di “deriva sudamericana” per l’Italia, così dicono da noi, pensate un po’, espressione questa solo oscuramente minacciosa e di cui non riesco a cogliere a pieno il senso, e che ancor meno mi appare chiara proprio qui, in Brasile, in questo democratico paese sud-americano!

Ho anche sentito parlare da parte di autorevoli pensatori, per il caso Italia, di “democrazia autoritaria” o di “dittatura della maggioranza”. Tutte espressioni ricorrenti queste nella quotidianità e che sintetizzano preoccupazioni crescenti, da parte di molti, almeno nel mio paese.

Paese che, dopo una guerra mondiale combattuta dalla parte sbagliata, ed una lacerante guerra civile di Liberazione, la cui eco non si è ancora sedimentata oggi dopo oltre sessanta anni, riuscì ad approvare una Costituzioni tra le più illuminate, tra quelle moderne, ma dove oggi echeggia una paura diffusa che il paese, uno dei più ricchi del mondo², facente parte da sempre del G8 o G14 o G20, possa vedere o stia già subendo un attacco al cuore della democrazia.

Ma forse è l’idea stessa di democrazia che va rivisitata alla luce della contemporaneità, di come cioè, tanto per dire banali ovvietà, si svolgono un po’ dovunque le elezioni politiche, anche nei paesi dichiaratamente e lungamente democratici, dove tutto viene cioè gestito, diretto, manipolato dal potere, o dai potentati economici, se non dai padroni dei mezzi di comunicazioni di massa. E, quindi, il problema Italia mi sembra ben più ampio visto che rischia di allargarsi e coinvolgere anche altri paesi democratici mentre, da più parti e da tempo, si segnalano i pericoli per la natura stessa di questo nostro pianeta, attaccato da irresponsabili forme di sfruttamento dei beni comuni, ovviamente sempre e solo a vantaggio dei più ricchi, paesi o individui che siano.

Ma se persino il concetto di democrazia, valore sommo per ogni progetto politico che volesse vantarsi di contenere una qualche valenza utopica va oggi rivisitato, minacciato come è da forme di pervasivo populismo, da parte di tanti leader alla ribalta mondiale, a chi, se non allo studioso di utopia ed utopismo spetta il compito, ed al tempo stesso il dovere, di agitare le acque, ricominciando a progettare e proporre, che vuol poi dire anche ricominciare a sognare? A vantaggio delle future generazioni almeno.

E che la democrazia indiretta avesse in sé degli evidenti limiti già Wiliam Godwin, il filosofo inglese su cui intendo soffermarmi, lo

¹ Fascismi e totalitarismi sono mali endemici delle società costituite, non ci sarebbe democrazia capace di eliminare per sempre tali virus che restano latenti, pronti a prendere i tratti somatici di Stalin, Mussolini, o Hitler, e ad assumerne altri, in rapide dissolvenze.

² Dove oggi, però, secondo i dati ufficiali più recenti, ci sono almeno 2 milioni e mezzo di poveri!

297

dA dOvE RICOMINCIARE OggI PER PROgETTARE l’UTOPIA?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

aveva scritto a chiare lettere, sin dal 1793. Leggiamo infatti, in Enquiry Concerning Political Justice, la sua opera fondamentale, quanto egli afferma a tale proposito:

La democrazia è un vascello mostruoso e per nulla saggio. Lanciato nel mare delle passioni umane, senza zavorra. Si corre il rischio di perdere la libertà, in questo modello senza limiti, non appena la si ottiene. L’ambizioso non trova nulla, in questo modello delle umane vicende, che ponga dei limiti ai suoi desideri. Deve limitarsi ad abbagliare e ad ingannare la massa, allo scopo di giungere al potere assoluto (1976, p. 487-488)³.

E’ opportuno ricordare che, seppure la democrazia indiretta è tappa indispensabile verso una società equa, e pertanto è auspicabile, bisogna altresì avere ben chiaro, in base a quanto aggiunge Godwin, che “La rappresentanza…seppure un rimedio, o piuttosto un palliativo per certi mali, non è un rimedio tanto valido o completo da autorizzarci ad accettarla come il massimo miglioramento di cui l’ordine sociale sia capace” (ibid., p. 492).

E se non mancano oggi minacce più o meno oscure al cuore della democrazia, e dilaga una crisi economica mondiale, per cui sembra davvero difficile pensare o sognare un’utopia vera e propria, tanto complessi e persino incancreniti sono i vari modelli politico-sociali visibili nel mondo globalizzato, mentre altri, cui pure in passato si aspirava sono miseramente falliti nell’impatto con la storia, non bisogna però dimenticare, per trovare conforto alla nostra azione, in quali contesti ben peggiori sono state pensate le grandi utopie del passato, come quella di More, ad esempio. Contesti assolutamente antidemocratici quelli allorché potere ed assolutismo monarchico sembravano, per quanto paradossale possa sembrare oggi, una luce, l’unica luce cui tendere dopo il buio di secoli di feudalesimo, oppressivo e negatore della dignità dell’uomo non ancora assurto alla consapevolezza di essere portatore di diritti oltre che di doveri. Proprio allora, in quel momento storico dicevo, Thomas More osò pensare e scrivere, inventare ed offrire al mondo civilizzato un sogno per il domani, la sua utopia.

Ed allora, per quanto bui possano essere questi nostri tempi, non possiamo mancare di ricominciare a progettare l’utopia ricordando quanta strada sia stata fatta, da More ad oggi, nel cammino utopico dell’umanità.

Se l’utopia, e debbo per ora usare tale termine in senso generico, è il sogno, la speranza, la promessa della felicità terrena, la meta ultima del vivere individuale e collettivo ed è, quindi, in sé, indefinibile ed altresì ineliminabile, irrinunciabile come lo è il desiderio di ciò che non è reale ma può diventarlo, l’utopismo o utopinianesimo tende invece a sistematizzare, a definire l’indefinibile, a classificare i possibili progetti, ad incanalare i sogni nei binari, ad indicare delle forme, dei modelli seppure racchiusi in minuscole nicchie, che vengono di volta in volta proposti perché siano imitati, spesso piccole cose che, però, nel corso dei secoli dell’età moderna hanno fatto da spinta, da lievito, hanno incoraggiato rivoluzioni, ribellioni, attentati, persino regicidi ed hanno altresì aiutato fasce sempre più numerose di cittadini a prendere coscienza dei propri diritti e costretto, al tempo stesso,

³ Tutte le traduzioni in italiano, da edizioni in altre lingue, sono mie.

298

AdRIANA CORRAdO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

le élite, le classi al potere a confrontarsi con l’idea di giustizia sociale.Se volessimo quindi, in qualche modo, pensare a modelli utopici da

offrire oggi ad un’umanità affannata mi sembra opportuno ricordare che, andando indietro nel tempo, si possono individuare due ben distinti filoni del pensiero utopico, il primo nella tradizione di Thomas More, ed evolutosi poi verso un modello di convivenza sociale più o meno genericamente definibile socialista, ed un secondo filone, più tardivo, iniziato negli anni della Rivoluzione Francese, liberale e radicale. Filone che qualcuno4 esclude, ad esempio, totalmente dall’ambito dell’utopia ma senza il quale, a mio parere, e non solo mio, si corre il rischio di non avere più progetto alcuno intorno a cui lavorare per il futuro.

Se il primo filone dell’utopismo è forse oggi morto, sfociato come è avvenuto in modelli reali e sistemi totalitari, l’altro filone, molto meno unitario, più variegato, che abbraccia diversi progetti utopici, definiti non scientifici dai marxisti, può invece, a mio parere, essere ancora valida fonte di spinte utopiche verso cui tendere, lievito indispensabile per procedere lungo un percorso che si auspica possa farsi utopico.

A dare vita al secondo filone utopico, cui facevo cenno, hanno contribuito, ad esempio, il pensiero di Rousseau da un lato, e la prima ipotesi di modello anarchico, quello cioè messo a punto in Enquiry Concerning Political Justice da William Godwin, quel Godwin che così inizia il suo discorso “ …la storia dell’umanità non è altro che una sequela di crimini” (1976, p. 83).

Fonti utopiche queste cui potremmo, a piene mani, continuare ad attingere, sorgenti o ruscelli tutti tributari dell’utopismo, quella sorta di fiume sotterraneo, carsico diciamo, che irrora, anche quando è sotterraneo, il terreno della speranza da cui sono emersi il pensiero di More e Bacon, ma anche le grandi ideologie ottocentesche e dove, in un luogo imprecisato pure deve esserci un qualche sedimento del pensiero politico di Godwin, filosofo e romanziere, saggista ma altresì vero padre del pensiero anarchico, non quello della deriva violenta di fine Ottocento, ma quello nato dalla Rivoluzione Francese, da quel mettere l’uomo, divenuto cittadino, al centro della società ed a cui poter dare la dignità delle scelte, nella consapevolezza di cosa sia il bene comune.

Nel caso di Godwin si può parlare di modello utopico di democrazia diretta. E se, quindi, la democrazia indiretta ha mostrato fatalmente tutti i suoi limiti come è oggi sotto gli occhi di tutti, è bene rimeditare sulle forme possibili di democrazia diretta di cui il pensiero utopico ha fornito nel tempo preziosi modelli, ben consapevoli, oggi più che mai, che l’utopia va costruita nel pensiero, e diffusa con ardore, come lievito benefico, e non mai pensata come modello attuabile.

La democrazia diretta, che mira alla costruzione di un modello civile di convivenza senza stato, cioè senza alcun tipo di governo, e la cui unica garanzia di sopravvivenza è fornita dagli stessi cittadini, dovrebbe garantire la felicità a tutti attraverso il riconoscimento della loro piena uguaglianza giuridica e sociale.

4 Come fa Karl Popper, ad esempio.

299

dA dOvE RICOMINCIARE OggI PER PROgETTARE l’UTOPIA?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Dato che l’uomo non può che vivere in società5 a Godwin sembra che l’unica forma di aggregazione possibile vada cercata nel modello anarchico, che esalta il singolo nel suo individualismo pur nel rispetto dell’altro, del proprio simile dotato come lui della sola ragione come guida all’azione. L’uomo troverebbe così la sua collocazione ideale in una forma di società spontanea e naturale, secondo un modello quasi arcadico, laddove per arcadico non si intende che precede la civiltà ma che la rifiuta a priori avendone previste tutte le derive negative, i pericoli degenerativi inevitabilmente connessi all’idea del progresso, sfrenato ed inarrestabile, e della ricchezza che ne sgorga come bene unico da perseguire.

Oggi, quindi, oggi più che mai non possiamo smettere di chiederci come tentare di salvare l’uomo proprio dal progresso inarrestabile, e spesso cieco, che già spaventava Godwin, e come dargli o, meglio, restituirgli condizioni di vita accettabili, come impedire cioè che l’industrializzazione dilagante e devastante, ed il trionfo del solo modello capitalista, lo schiacci sotto il peso di ingranaggi aberranti. Come restituirgli pienezza di vita, che vuol dire dignità nel lavoro, parità nei diritti politici e sociali, integrità fisica e psichica, al riparo dai guasti della collettività, ingranaggio impazzito di una distorta visione della modernità?

Se tutto ciò sembra riguardare, in modo allarmante, noi oggi, confinati come siamo in una realtà consolidata, e forse irreversibile qual è quella in gran parte almeno dei paesi occidentali all’inizio del terzo millennio, queste stesse drammatiche problematiche già animavano il vivace dibattito politico-filosofico in Europa, tra fine Seicento e pieno Settecento, allorché i pensatori non cessavano di interrogarsi e discutere su cosa fosse la natura, quale la sua origine, il come e perché del suo esistere, quale rapporto potesse esserci persino con l’idea di un Dio creatore6, dibattito che oppose sempre più radicalmente credenti ed atei, cristiani e naturalisti fino ai tentativi di definire la natura stessa come Dio.

Dibattito questo che lentamente si ampliò concentrandosi sempre più sul tema del ruolo dell’uomo all’interno della natura, se ne fosse cioè centro, motore o destinatario, e come andasse regolata una possibile, equa, equilibrata interazione tra uomo e natura.

Niente di nuovo sotto il sole, oggi come allora mi si potrebbe obiettare.

Ed in parte è proprio così visto che, nell’affrontare il tema del rapporto uomo/natura già Jean Jacques Rousseau, ad esempio, sosteneva che gli uomini nascono liberi e felici mentre questa libertà e felicità vengono inevitabilmente compromessi proprio dal progresso e dalla civiltà che, per nulla, avrebbero collaborato a nobilitare gli uomini, allontanandoli invece della condizione perfetta propria dello stato naturale.

Ma come poter recuperare i valori originari, si chiedeva Rousseau? Intervenendo opportunamente sull’educazione e sulla gestione della vita politico-sociale, ecco la via di salvezza!

Ovviamente anche qui ci troviamo di fronte all’utopia che si esplicita nel ribadire, tra i diritti fondamentali dell’uomo, quello alla felicità che, di fatto, è sostanzialmente invece sempre negato nella realtà.

5 “…gli esseri umani sono adatti alla vita in società” scrive Godwin, che aggiunge: “Senza società, saremmo probabilmente privati del piacere più vivo a cui la nostra natura è sensibile. In società, nessun essere umano che abbia le caratteristiche proprie di un uomo può vivere da solo” (1976, p. 757).

6 “I cieli narrano la gloria di Dio, e il firmamento proclama l’opera delle sue mani” (Salmi, 18-2).

300

AdRIANA CORRAdO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Tornando allo stato di natura si potrebbe, sempre secondo Rousseau, ritrovare l’equilibrio proprio dell’uomo liberandolo da ogni forma di costrizione e cancellando tutte le tracce di diseguaglianza, il che corrisponderebbe al restituirgli la felicità. Con educazione naturale non si intende però un ritorno alla condizione di bruto ma si aspira ad eliminare dalla cultura moderna ciò che soffoca la libera affermazione della personalità del singolo. Non si deve intendere cioè che nello stato di natura si possa dare libero sfogo agli impulsi o passioni individuali ma, invece, mirare e giungere al loro dominio e pieno controllo, garantiti dall’esercizio della ragione.

Quanto alla politica, secondo Rousseau, il potere è assoluto ed indivisibile, appartiene cioè all’intero popolo7 per cui va esercitato in forma di patto, sottoscritto da e tra uomini liberi: “…il potere legislativo appartiene al popolo e non può che appartenere a lui.” (1964, vol. III, p. 335).

Mentre poi l’uomo, che è nato libero, è dovunque in catene per cui bisogna restituirgli la libertà affinché perché possa legarsi liberamente agli altri in un patto sociale, come ci ricorda Rousseau “Ciò che l’uomo perde col contratto sociale” sono le sue parole “è la libertà naturale ed il diritto illimitato a tutto ciò che è necessario per lui; ciò che egli guadagna è la libertà civile e la proprietà di tutto ciò che possiede” (ibid., p. 298-293).

E se, ovviamente, la scelta tra uomo di natura ed uomo civilizzato non si può oggi più neppure pensare allora bisogna avere ben chiari i costi che si pagano per l’integrità dell’uomo, per la sua pienezza e ricchezza naturale con l’inserirsi in società, quali tributi, quali compromessi richieda e comporti la socializzazione per l’essere umano cercando però anche di prospettare una via d’uscita collettiva, per così dire utopica.

Temi questi dibattuti oggi come allora, ma con rinnovato vigore proprio negli anni magici che ruotano intorno alla Rivoluzione Francese, frutto maturo e superbo dell’Illuminismo, prova del successo dello strumento ragione nel dissipare il buio, dipanare ogni ombra o traccia sopravvissuta di oscurantismo di marca medievale, persino ogni ipotesi di fede nella trascendenza mentre tutte le istanze libertarie, individuali e collettive, vi trovavano nuovo vigore e si andavano facendo strada. Alimentando la speranza utopica.

Proprio quelle idee rivoluzionarie, che provenivano da oltremanica, si fecero strada, pur tra sbarramenti, ed andarono a nutrire ed ossigenare anche l’utopismo inglese incanalato da un lato verso un sano riformismo, di cui anche il governo si andava lentamente facendo carico, e dall’altro costruendo proposte politico-sociali totalmente alternative tra le quali emergeva il modello anarchico di Godwin, utopia per eccellenza, almeno a mio parere, nel suo fondarsi sulla capacità propria dell’uomo di farsi costruttore di un futuro migliore, sintesi perfetta di natura e cultura, impedendo al tempo stesso che l’artificio possa avanzare incontrollato, sommergendo del tutto e negando la natura.

Il pensiero di Godwin divenne centrale all’interno di uno sparuto gruppo di pensatori che seppero opporsi con coraggio al sistema, seppure consapevoli dell’inevitabile insuccesso cui le loro idee andavano incontro, il

7 E non è riducibile all’autorità di un solo individuo.

301

dA dOvE RICOMINCIARE OggI PER PROgETTARE l’UTOPIA?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

che condannò alcuni di loro all’esilio, altri al silenzio, altri, come accadde per Godwin, all’oblio.

La sua voce, zittita dal sistema ma sempre tuonante dalle pagine di Philosophical Enquiry Concerning Political Justice, fece comunque anche in seguito dei proseliti, e nutrì il pensiero romantico nel rimettere l’uomo al centro del creato, restituendogli pienezza di sentire anche con la necessaria dose di dolore, che gli è propria.

Grande modello infarcito di utopismo quello di Godwin in cui la fede tutta illuministica nella razionalità lascerebbe persino sperare che, in un qualche tempo futuro, in un futuro utopico, si potesse giungere all’abolizione dello stato, ossia di ogni tipo di governo dato che “Il governo, che doveva mirare ad abolire l’ingiustizia, ha avuto come effetto quello di darle corpo e di perpetuarla” (1976, p. 76), dal che è conseguito che “…la politica è stata separata violentemente dalla morale” (p. 167).

Ed allora, in questa ottica, non si può che tendere ad abolire qualsiasi tipo di governo perché un governo non può che radicarsi sulla supposta differenza tra uomini, tanto che “I ricchi sono in tutti…i paesi direttamente o indirettamente i legislatori dello stato; e di conseguenza stanno costantemente trasformando l’oppressione in sistema” (p. 92).

Ed ancora, sempre Godwin scrive “…le leggi in quasi tutti i paesi sono volgarmente in favore dei ricchi contro i poveri” (p. 93).

Quanto drammaticamente attuali suonano queste parole!Davvero utopico il modello godwiniano che fa affidamento e trova

fondamenta nella perfettibilità dell’uomo8, educato o educabile verso valori comuni o ideali naturalmente condivisibili da tutti:

E’ evidente il fatto che il carattere degli uomini è determinato in tutti i tratti essenziali dalla loro formazione…Usate il linguaggio della verità e della ragione con vostro figlio, e non abbiate timori circa i risultati. Mostrategli come ciò che gli raccomandate è utile e desiderabile, e non temete che lui possa fare altro che desiderarlo (p. 109-111).

E se:

Gli esseri umani sono dotati di natura comune…le cose buone del mondo costituiscono un patrimonio comune a tutti, da cui ogni uomo ha lo stesso diritto di un altro di trarre ciò di cui ha bisogno” (p. 703).

Mentre invece “Vari abusi di incontrovertibile natura sono stati perpetrati nell’amministrazione della proprietà privata” (p. 701).

Condivisione di beni, ovvero abolizione della ricchezza individuale e della proprietà privata, anche quella frutto di eredità, diviene presupposto imprescindibile su cui fondare l’anarchia. Godwin insiste su questo tema in questi termini:

La proprietà è prodotta dal lavoro giornaliero degli uomini che sono vivi in un dato momento. Tutto ciò che i loro antenati hanno lasciato loro in eredità non è altro che un’autorizzazione ammuffita che essi mostrano come titolo per sottrarre a chi sta loro vicino il frutto del lavoro che essi hanno fatto (p. 711).

8 “L’uomo è perfettibile o, in altre parole, suscettibile di continuo miglioramento…Con perfettibile non si vuol dire che l’uomo sia in grado di essere portato fino alla perfezione. Tale parola sembra essere idonea ad esprimere la capacità di progredire e di essere sempre in grado di ulteriori miglioramenti” (Godwin, 1976, p. 140-145).

302

AdRIANA CORRAdO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Proprio su questa ingiustizia, che è contro la natura dell’uomo e dei suoi simili, si fondano invece i governi nel mondo, come ci ricorda Godwin:

…questa ingiustizia, l’ineguale distribuzione della proprietà, l’afferrare avidamente e la natura egoistica dei singoli, vengono visti come principi fondanti del governo, e, così come nasce negli eccessi, il governo richiede e necessita sempre di nuova ingiustizia, nuove punizioni e nuove forme di schiavitù” (p. 718).

Mentre, invece, come sarebbero i cittadini della società anarchica, idealmente utopica ipotizzata da Godwin?

Ogni uomo seguirebbe una dieta frugale, e sana; ogni uomo praticherebbe un esercizio moderato delle sue funzioni fisiche, il che ne renderebbe lieto lo spirito; nessuno sarebbe obnubilato dalla fatica, ma tutti avrebbero modo di coltivare sentimenti amicali e filantropici, e di sguinzagliare le proprie facoltà alla ricerca della crescita intellettuale. In quale grande contrasto sarebbe questa scena se paragonata allo stato presente della società, in cui i contadini ed i lavoratori sono intorpiditi dalla fatica...mentre i loro corpi sono aggrediti da infermità, e trascinati verso una morte prematura? (p. 730).

Tale è la fiducia di Godwin nell’uomo che arriva a sostenere che “I ricchi ed i potenti sono tutt’altro che insensibili all’idea della felicità per tutti, quando questa idea viene prospettata loro con l’evidenza e la gradevolezza a cui essi sono sensibili” (p. 786).

Il suo modello politico-sociale non è, però, come ribadisce Godwin “…l’anarchia come viene intesa usualmente” bensì “…una forma di società ben organizzata, e senza governo” (p. 663). Per cui: “Si deve con convinzione desiderare davvero che ogni uomo sia tanto saggio da governare se stesso, senza bisogno di alcun freno obbligatorio; e, dato che il governo, anche nelle migliori condizioni, non è che un male, ciò a cui si deve tendere è che vi sia tanto poco stato quanto ne consenta la pace generale della società umana” (p. 253).

Quanto ai modelli economici su cui fondare la convivenza cosa suggerisce Godwin? Vorrei ricordare che, in quegli stessi tempi, si andava facendo strada, proprio in quell’Inghilterra tanto avanzata, madre dell’età moderna, accanto alla fede più cieca nel progresso anche la demonizzazione del processo di industrializzazione, già da tempo in atto nel paese. Proprio mentre l’industrializzazione sembrava promettere una soluzione quasi salvifica ai problemi della povertà, delle voci di dissenso già cominciavano a farsi sentire additando l’industria come piovra, avida dissanguatrice di poveri, ridotti ad una valutabilità prettamente economica, unicamente cioè come forza lavoro, merce acquisibile, possibilmente a poco prezzo. Mentre si andava altresì facendo strada, tra molti intellettuali tra cui Godwin, anche l’impossibile sogno di un’economia comunitaria, fondata sulla sola agricoltura.

Il pensiero di Godwin si era andato costituendo a partire dalla

303

dA dOvE RICOMINCIARE OggI PER PROgETTARE l’UTOPIA?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

convergenza tra il pensiero di Rousseau e di d’Holbach, fondandosi cioè da un lato su una incrollabile fede nella naturale bontà dell’uomo9 e dall’altro sul ritenere l’uomo creatura naturale ed, in quanto naturale, anche morale.

Riscattando l’uomo da ogni dualismo o giustapposizione si riscatta anche la natura, la si recupera alla sua pienezza, le si attribuisce persino la capacità di preparare, o meglio, rendere possibile la felicità per gli uomini tutti stante che:

…coloro che vivono in una condizione di uguaglianza, o che sia simile all’uguaglianza, saranno sinceri, ingegnosi e non pavidi nel comportarsi; mentre chi vive laddove una grande differenza di rango tra loro ha avuto la meglio saranno caratterizzati nei comportamenti dalla freddezza, l’indecisione, la timidezza e l’eccesso di prudenza (p. 113).

Godwin pertanto, come altri pensatori in linea con Rousseau nella difesa strenua dell’integrità dell’uomo di natura, non può che auspicare forme di organizzazione politico-sociale fondate sulla sostanziale uguaglianza/parità tra uomini, cittadini, in cui non si manifesti forma alcuna di limitazione e/o coercizione della libertà individuale.

E questo non può che avere uno sbocco nell’anarchia di cui egli si fa voce autorevole nell’Inghilterra del tempo. Non anarchia come disordine, ribadisco, ma anarchismo come frutto evoluto anche del Millenarismo, che aspira cioè ad una profonda rigenerazione della società attraverso il superamento di ogni forma di autoritarismo, per lasciare spazio all’uomo, essere razionale ed eticamente giusto, portatore di valori individuali, nel rispetto di quelli collettivi egalitari.

Se il debito di Godwin verso Rousseau è grande non meno rilevanti, si diceva, sono le tracce del Systeme de la Nature di d’Holbach di cui ritroviamo, in Political Justice, il concetto portante in base al quale l’uomo è natura, ne è frutto, la incarna e ne deve rispettare le leggi, al cui interno si muove ed oltre le quali nulla esiste. L’uomo, che è materia, deve cercare e trovare nella natura anche la felicità10. Felicità del singolo nella collettività, liberata da ogni chimera, come direbbe d’Holbach, persino da ogni vaga aspirazione alla trascendenza, in un naturale perché spontaneo coincidere tra naturale e morale.

Questo fa dell’uomo fisico anche l’uomo morale11.Avendo sin dai tempi in cui scriveva Political Justice risolto il

problema del suo rapporto personale con la rigida e rigorosa fede religiosa della sua gioventù, Godwin riesce facilmente, negando ogni possibile forma di trascendenza12 a seguire d’Holbach quando ribadisce l’idea che l’uomo è lui stesso natura razionale ed, in quanto tale, anche morale13.

Come poi tutto ciò possa accadere, come l’individuo possa cioè passare dallo stato naturale a quello sociale, organizzato e rispettoso dei diritti di tutto e di ognuno, in un contesto in cui sia scomparso lo stato e l’anarchia abbia avuto la meglio, non risulta però ben chiaro negli scritti di Godwin ma si può utopicamente sperare in quanto lui sostiene delegando il realizzarsi del progetto alla fede, tutta illuministica, nella razionalità dell’uomo, che trova le sue radici appunto nell’utopismo settecentesco.

9 Il che lo riscatterebbe persino dalla macchia indelebile del peccato originale, visto che l’ “…uomo…non è in natura immorale”, come dice Godwin (1976, p. 553).

10 “Que l’homme cesse donc de chercher hors du monde qu’il habite, des êtres qui lui procurent un bonheur que la nature lui refuse: qu’il étudie cette nature, qu’il apprenne les lois…qu’il applique les découvertes à son propre bonheur” (1973, vol. I, p. 2).

11 “La nature invite l’homme à s’aimer, à se conserver, à augmenter incessamment la somme de son bonheur…La nature dit a l’homme de consulter sa raison et de la prendre pur guide…La nature dit à l’homme de s’éclairer, de chercher la vérité” (ibid., vol. II, p. 271-272).

12 Eppure quanto profondamente cristiano è il modello proposto da Godwin, che sembra ricalcare proprio i valori evangelici laddove leggiamo: “…né vi era chi dicesse suo quello che possedeva, ma tutto era tra loro comune…non vi era alcuno bisognoso tra loro. Perché quanti possedevano terreni o case, li vendevano, poi, preso il prezzo delle cose vendute…e si distribuiva a ciascuno secondo il suo bisogno”. Da quale utopia comunitaria o comunista sono tratte queste parole se non dagli Atti degli Apostoli?

13 “Se gli uomini non sono accecati da zelo religioso, saranno in grado di scoprire e diffidare dei limiti delle loro guide spirituali” (Godwin, 1976, p. 572).

304

AdRIANA CORRAdO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Tanto che Godwin si spinge a scrivere “Per un essere razionale non vi è altro modo di comportarsi che seguire la giustizia, ed altra forma di appropriarsi di questa norma, se non esercitando la propria razionalità” (p. 200).

Se l’uomo, creatura razionale, nasce puro, e questa è verità per tutti incontestabile, mentre ogni stato, ogni forma possibile di organizzazione politico-sociale, almeno quelle esistenti o esistite nella storia dell’Occidente non può essere in sé che corrotta, a noi irriducibili utopisti non resterebbe che sperare nella suprema forma di utopia, che nasce dalla e nella collettività, appunto la comune anarchica di Godwin.

Secolo davvero lungimirante il Settecento, soprattutto in Inghilterra, dove, mentre si celebra la ragione come elemento comune, aggregante i singoli nella collettività, capace di fare luce, chiarezza di ogni oscurantismo, superstizione, persino fede religiosa ed in grado di portare avanti la ricerca scientifica14, costruendo quasi un nuovo mito, quello del progresso illimitato, si vede anche già serpeggiare tra gli intellettuali una paura forte che tutta questa fede, quasi cieca nel progresso, potesse poi convergere verso un modello unico, capace di soffocare le legittime aspettative del singolo e la sua speranza di piena realizzazione, nella libertà e nella collettività.

Quella che allora era una sorta di intuizione per pochi, un bagliore e non più di tanto, è diventato oggi dato di comune consapevolezza per noi tutti.

L’utopismo moderno, nato con Thomas More, il cui grande modello egalitario e comunista è andato a vanificarsi in tempi a noi vicini, nella sua versione distopica, nei paesi della ex Unione Sovietica, aveva però continuato ad alimentarsi, sotterraneo, soprattutto in Inghilterra, con tutte le sue speranze tra cui un nuovo anelito di natura piena, vera, di spontaneità, di campagna, sì persino di campagna, di vita in campagna a contatto diretto con la natura. Natura che tornava così ad essere vagheggiata in sé, e non come contesto ideale solo per pochi grulli signori di campagna, quasi testimoni inconsapevoli del loro tempo, e di cui la narrativa inglese del Settecento era piena, contrapposti a modelli dinamici e vincenti di nuovi imprenditori, educati alla vita metropolitana, propagandata come modello ideale per cittadini moderni.

Natura e cultura ritornavano così, grazie a questa nuova prospettiva utopica di fine Settecento, ancora una volta ad essere i due poli fondanti, a volte contrapposti, antitetici ma visti come complementari, modelli diversi di vita, pensati e sognati nella speranza di porre nuovamente l’uomo al centro del creato, suo segno più maturo perché essere razionale, ed in quanto tale anche morale, capace cioè di costruire un mondo migliore, alla convergenza tra libertà individuale ed esigenze della collettività.

Lo stesso Godwin, ben consapevole della valenza estremamente utopica del suo modello, affermava:

Indubbiamente, questo tipo di società è assai lontano dai modi di pensare e di agire che oggi hanno la meglio. Un lungo periodo di tempo dovrà probabilmente passare prima che venga messo completamente in pratica. Ciò che abbiamo cercato di sottolineare è che una società di questo tipo è

14 Di cui si pensava di potere trasformare i frutti in tecnologia, al servizio della società, fino alla piena industrializzazione del paese, con un esito allora non ancora prevedibile né programmato ma che, oggi lo si può ben dire, non poteva essere che di tipo capitalistico.

305

dA dOvE RICOMINCIARE OggI PER PROgETTARE l’UTOPIA?

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

gradevole per la ragione, ed è imposta dalla giustizia; e che, di conseguenza, il progresso della scienza della politica e della verità non può che procedere con la sua introduzione (p. 740).

Godwin sottolinea altresì il fatto che tutti gli uomini sarebbero davvero rigenerati qualora tale modello sociale si realizzasse, al punto da arrivare a dire che:

La ricchezza era un tempo quasi l’unico obiettivo da perseguire e come tale appariva alle menti volgari e rozze. D’ora in poi vari fini si divideranno l’attenzione degli uomini, l’amore della libertà, l’amore dell’uguaglianza, la ricerca delle arti e il desiderio della conoscenza. Questi obiettivi non saranno più, come avviene ora, riservati a pochi, ma lentamente saranno resi possibili per tutti. L’amore della libertà spinge, ovviamente, ad un sentimento di unione, alla disponibilità alla solidarietà con l’interesse degli altri…Ogni uomo capirà che il suo sentimento di giustizia e di rettitudine fa eco ai sentimenti dei vicini (p. 794).

Ecco come Godwin si libra nella pura utopia della libertà, terra ideale di un uomo perfettibile e quasi prossimo alla perfezione, razionale e giusto, apostolo della verità, unica guida verso la morale comune, da tutti riconosciuta e rispettata.

L’eterno sogno dell’utopia nutre il modello anarchico di Godwin, suo frutto più compito, e fa dire a me, studiosa di utopia che, proprio in quanto tale, è sommamente utopico ma non per questo da non considerare come modello su cui riflettere, elaborare pensiero comune, verso cui pur sempre ostinatamente tendere.

Bibliografia

CORRADO, A. “La bonté naturelle de l’homme selon Godwin et Rousseau”. In: FORTUNATI, Vita; Raymond TROUSSON (orgs). Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme. Avec la collaboration de Paola Spinozi. Paris: Champion, 2008, p.425-431.

CORRADO, A. Da un’isola all’altra. Il pensiero utopico nella narrativa inglese da Thomas More ad Aldous Huxley. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1988.

CORRADO, A. “Utopia e distopia in William Godwin”. In: Criterio, anno IV, n.3, autunno 1986, p. 195-215.

CORRADO, A. William Godwin illuminista romantico. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1984.

CORRADO, A. “William Godwin e l’utopia della democrazia diretta”. In: SCHIAVONE, Giuseppe (a cura di). La democrazia diretta. Bari: Dedalo, 1997, p. 133-154.

D’HOLBACH, Baron P.H.D. Système de la Nature ou des lois du monde physique et du monde moral, 2 vol. Genève : Slatkine Reprints, 1973.

306

AdRIANA CORRAdO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

FORTUNATI, V.; TROUSSON, R.; CORRADO, A., (a cura di). Dall’utopia all’utopismo. Percorsi tematici. Napoli: CUEN, 2003.

GODWIN, W. Enquiry Concerning Political Justice. London: Penguin, 1976.

ROUSSEAU, J.-J. Le Contrat Sociale. In: Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964.

Do utopismo iluminista ao (anti)utopismo romântico: a crítica romântica da razão utópica*

Márcio Seligmann-Silva Universidade Estadual de Campinas (Brasil)

Resumo

O trabalho apresenta a virada romântica, que ocorreu no final do século XVIII, na tradição da utopia. Para tanto, sem necessariamente se restringir apenas aos textos caracterizados dentro do gênero utopia stricto sensu, ele faz uma leitura da doutrina romântica do indivíduo moderno e mostra a crítica romântica da razão utópica. A proposta é mostrar como tanto as enormes mudanças políticas, com destaque para a Revolução Francesa, como as mudanças econômicas e no campo cultural e das ciências determinaram em grande parte novas modalidades do pensamento utópico e, no limite, levaram à dissolução do utopismo de cunho renascentista. Mostra-se como nesta época mais do que nunca se explicita o elemento distópico que, desde a Antiguidade, estava na base de todo pensamento utópico. No romantismo (com destaque para o primeiro romantismo alemão de Friedrich Schlegel e de Novalis e, posteriormente, para Baudelaire), a crítica do Iluminismo e do pensamento cientificista trouxe consigo uma crítica do modelo da utopia. Por outro lado, a nova realidade social gerou também novas funções para a escrita poética sendo que não podemos esquecer que a “literatura” é uma invenção do final do século XVIII. O texto explora em que medida a literatura, enquanto campo de desdobramento da imaginação (do maravilhoso, do fantástico e do virtual de um modo geral) também assumiu um papel antes reservado às utopias stricto sensu.

Palavras-chave

Crítica da utopia, distopia, primeiro romantismo alemão, biopolítica, fim das utopias.

Márcio Seligmann-Silva possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986), mestrado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo (1991), doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität Berlin (1996), pós-doutorados pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1998, CNPq e 1999, FAPESP), pelo Zentrum Für Literaturforschung Berlim (2002) e pelo Department of German, Yale University (2005). É professor livre-docente de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Projeto Temático FAPESP Escritas da Violência. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária e Literatura Comparada. Atua principalmente nos seguintes temas: romantismo alemão, teoria da tradução, testemunho, literatura e outras artes, teoria estética do século XVIII ao XX e a obra de Walter Benjamin. Entre suas publicações estão Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (São Paulo: Iluminuras/Fapesp, 1999), O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (São Paulo: Editora 34, 2005). Organizou vários livros, entre eles Catástrofe e representação (São Paulo: Escuta, 2000, com A. Nestrovski) e Palavra e imagem, memória e escritura (Chapecó: Argos, 2006).

* Agradeço ao idealizador e organizador deste evento, meu colega Carlos Eduardo Berriel, pelo generoso convite para participar deste evento e desta publicação.

308

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

A história das utopias até o século XVIII pode ser vista como a história de modelos ideais que eram projetados em locais normalmente também ideais, ou então em uma temporalidade outra. Estas eram

na verdade ucronias. Mas, seja nas utopias, seja nas ucronias, ou ainda, quer nas descrições de Eldorados, quer na de Paraísos futuros, de um modo geral dominou nestes textos – desde Platão – a idéia de um modelo. Este poderia servir para melhorar a vida no presente. Como se sabe, a utopia sempre se alimentou da ambigüidade entre ser algo distante (ou-topos) e um lugar feliz (eu-topos). Com Morus, ela passou a representar um programa humanista de reformas (Comparato, 2006, p. 9). Minha intenção nesta intervenção é a de mostrar como no século XVIII e na virada para o século XIX ocorreu uma fratura do projeto utópico. Por um lado, aconteceu aquilo que Reinhart Koselleck chamou de Verzeitlichung der Utopie, ou seja: uma temporalização da utopia (Koselleck, 1985). O futuro e sobretudo uma consciência acerca do futuro penetrou, no século XVIII, as formações utópicas. Além disto, com a revolução romântica surge o que eu chamaria de “a questão do indivíduo”: a partir de finais do século XVIII não podemos mais pensar o todo, a sociedade, seus modelos e a idéia de razão, sem levar em conta o indivíduo moderno. Este foi retratado por Goethe, pelos primeiro românticos alemães, por Balzac, Poe, Baudelaire e tantos outros, como alguém que se sente não tanto acolhido pelo mundo e por uma sociedade que lhe dá moradia e segurança, mas, antes, pelo contrário, ele como que já tem a sua existência determinada a priori pela incapacidade de se sentir em casa. Seu sentimento de estar no mundo é idêntico ao de não se identificar plenamente com este mundo.

Desde a Revolução Francesa esse indivíduo se vê ao mesmo tempo como um potencial agente revolucionário e como um “nada”, um ser solto sem liames mais sólidos com a vida. E mais, o indivíduo romântico aprendeu a recusar os ditames da razão dominante. Ele tem um “burguês” dentro de si, mas também um “revolucionário”: eles nunca se acomodam e se o fazem isto implica uma série de patologias, como o tédio, a melancolia ou a morbidez. O romantismo significou a revolta do individual contra o todo e a esfera estética foi erigida como o principal sistema na sociedade com a função de refletir e apresentar esta revolta do indivíduo contra o todo, seja este pensado como um modelo, um arquétipo, uma cidade ideal ou uma utopia “perfeita”. Do ponto de vista deste indivíduo romântico, portanto, paradoxalmente toda utopia será uma distopia. A única utopia possível seria a capaz de se adaptar a todos indivíduos, o que seria uma contradição absoluta: simultaneamente o reinado do caos e da ordem. Michael Winter (1985) notou traços de utopias “enlouquecidas” – ou seja, calcadas na realização radical dos desejos e pulsões de todos – desde o Renascimento. Seriam utopias caóticas, opostas à geometria das utopias de linhagem platônica. Na verdade, elas remetem a construções como o país de Cocagna, e outros topoi da realização absoluta dos instintos e desejos. Mas não é disto que se trata na era romântica. O indivíduo também vai lutar pelo seu corpo e sua realização integral como indivíduo inclui este corpo. Mas suas “pulsões utópicas” vão mais longe do que esta realização

309

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

do corpo. Na era romântica, aberta no final do século XVIII, assistimos à convivência deste indivíduo insatisfeito com diversas modalidades de pensar o inteiramente outro, antes retratado pelas utopias tradicionais. Mais do que nunca ele vai buscar seus paraísos artificiais. Neste contexto, por um lado observamos uma certa continuidade e até uma febre utópica no século XIX. Esta linhagem seria a que eu gostaria de chamar aqui, por mais paradoxal que pareça, de reformista-revolucionária-burguesa. Ela criou tanto Charles Fourier e Saint-Simon, como, por outro lado, Marx e Engels. Por mais gritantes que sejam as diferenças entre estes autores, suas obras e projetos, todos eles acreditavam em um modelo que poderia redimir a sociedade de suas desigualdades, da pobreza e das penas geradas pelo mundo capitalista. Estes modelos apostaram na utopia como uma racionalização da sociedade. Esta racionalização, no entanto, fatalmente geraria um aprofundamento dos controles sobre o indivíduo. Levaria – e levou, nos casos de tentativa de concretização destes projetos – ao controle da vida, no dizer de Foucault, levaria a uma radicalização da biopolítica.

A política calcada na felicidade, como escreveu Hannah Arendt, necessariamente deságua em uma biopolítica (1988, p. 60). Por outro lado, esta mesma sociedade e este mesmo indivíduo romântico vão exercer sua crítica do presente e desejo de construção de paraísos, utopias e eldorados por outros meios. Agora surge uma nova concepção do campo estético e, dentro dele, o literário, no qual a imaginação (atuando na chave do maravilhoso, do fantástico e do virtual de um modo geral) também assumiu um papel antes reservado às utopias stricto sensu. No campo estético veremos surgir figuras da tradição utópica, mas também das utopias negativas e sobretudo das distopias, ou seja, das construções totais que levam ao massacre do indivíduo – que têm seu antecedente nas obras de Sade. Neste espaço, me concentrarei nesta esta revolução romântica que introduz o indivíduo caracterizado por uma nova consciência temporal e de sua individualidade. Visando contextualizar isto que considero ser um corte na tradição do pensamento utópico, apresentarei alguns exemplos também do elemento distópico das pós-utopias pré e pós-românticas. Este elemento distópico é coetâneo e fruto não só desta nova consciência da individualidade, mas também da biopolítica que se torna aos poucos, desde a Revolução Francesa, o centro da política (Agamben, 2002).

Como exemplo de distopias pré-românticas deve-se mencionar antes de mais nada, já nos anos 1730, o Abbé Prevost que apresentou no seu romance Le philosophe anglois ou Histoire de Monsieur Cleveland, o que pode ser considerada a primeira distopia no seu sentido moderno. Este romance apresenta uma utopia que fracassa. É do conflito entre os indivíduos e a ordem geral que surge a cizânia. Como apontou Michael Winter (1985, p. 91), esta obra mostra como em toda utopia dormita o desejo de controle das emoções. Não por acaso, Platão, de certa forma o fundador desta tradição utópica (ainda que não tenha sido autor de utopias, mas somente do gesto de delinear repúblicas ideais), era um inimigo das emoções, já que as considerava passíveis de afeminar os cidadãos. Prevost apresenta uma idéia que será muito cultuada no final do século pelos românticos: a

310

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

impossibilidade de se submeter os afetos e emoções a idéias e conceitos. Na Nouvelle Héloise de Rousseau, Winter percebe o grande sucessor desta crítica da utopia nesta chave de Prevost. No caso de Rousseau, fica claro como a educação é apenas um meio de internalização das pressões da sociedade total da utopia. Não por acaso, Winter (p. 105) recorda, neste sentido, as analogias entre o panóptico de Bentham (que o denominava de “my own Utopia”) e as sociedades controladas descritas nas utopias, o mesmo valendo para a sociedade milimetricamente controlada do castelo Silling dos 120 dias de Sodoma de Sade (p. 99-101). Com Adorno e Horkheimer (1985), podemos ver na moral amoral e ditatorialmente precisa de Sade uma caricatura exata do modo de pensar burguês e também, podemos acrescentar, utopista. Para Winter, a partir de Sade, é possível se fazer este descolamento entre uma estrutura utópica geometricamente perfeita e a apresentação de uma utopia moral positiva. Agora, este palco e os mesmos atores podem representar os 120 dias de Sodoma. Na verdade, Sade estava se reapropriando no seu romance das cenas infernais da Antiguidade, com seu Tártaro, e da cristandade, com suas representações exemplares dos suplícios nos diversos círculos do inferno – representadas paradigmaticamente nos quadros de Bosch e no texto de Dante. Mas agora o suplício e sua ordem obsessiva e metódica servem de pura fonte de gozo. Não por acaso a teoria do sublime de um Burke estava em moda justamente enquanto Sade escrevia sua obra. É a partir desta virada estética e política, que permite se construir “distopias puras”, que nascerão as ficções científicas com suas encenações do drama prometéico do homem moderno. O homem moderno pensa seu nascimento a partir da culpa de estar no mundo. Sua existência é encarada como sendo tão artificial como a de Frankenstein. Ela é despida de transcendência, é um suplemento, enxerto de vida. A idéia da tecnologia como fonte do terror e do fim do homem – encenada de Frankenstein ao Hall de Stanley Kubrick – é a representação mais clara deste homem artificial que se vê como desprovido de sentido e caminhando para a morte. A tecnologia suplementa a queda e expulsão do paraíso: ela também serve para reconstruir aquele espaço “perfeito”. A tecnologia é uma promessa de redenção do trabalho, da culpa e da morte. Mas suas construções, como a da torre de Babel, serão sempre catastróficas. Representarão a arrogância, a hybris deste homem decaído. No campo político podemos imaginar também que este deslocamento em direção ao sublime e às distopias puras permite a gestação de doutrinas totalitárias que se apresentarão como panacéias universais, como as demais utopias do século XIX, mas que serão escancaradamente distópicas, e a concretização do império do terror sádico como política de Estado. Sade, temos que reconhecer, foi genial ao perceber este potencial da utopia e da razão burguesa.

Antes de apresentar a virada romântica e o que denominei acima de a “questão do indivíduo”, vale a pena nos determos rapidamente num caso especial dentre as utopias do século XVIII, que já anuncia alguns outros aspectos da virada romântica. Refiro-me ao romance do futuro, ou futorológico, de Louis-Sébastien Mercier, L’an 2440, de 1770. Esta

311

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

obra, que foi um best-seller da época, com várias reedições, também tem a característica inusitada de ter crescido em suas edições sucessivas, na medida em que Mercier procurava deixar seu livro profético à altura dos fatos que iam acontecendo. Trata-se de um exercício de recordação do futuro que remete de modo sui generis à formulação benjaminiana, segundo a qual “um acontecimento vivido é finito, [...] o lembrado é ilimitado, porque é apenas a chave para tudo que veio antes e depois dele” (Benjamin, 1974, p. 312). Poderíamos pensar que Mercier lembrava o futuro, afinal, como escreveria depois Friedrich Schlegel, “o historiador é um profeta às avessas”, ou seja, o profeta é aquele que faz a história do futuro, “lembra-se” dele. E na medida em que Mercier intervinha nessa história já publicada, para mantê-la atualizada, ele revelava também em que medida a sua ficção se alimentava da vida. Koselleck considera esta sua obra o primeiro exemplo de uma virada na história das utopias: ela é ficção assumida (no sentido moderno da ficção/literatura) e apresenta o seu autor como um fantasista que simula sua viagem ao futuro. Mercier apresenta a história – com tonalidades autobiográficas devido ao eu-narrador – de uma pessoa que dorme 700 anos e descreve a Paris de 2440. Esta viagem no tempo seria um contraponto ao fato de que no mesmo ano em que Mercier escreveu este romance, o capitão Cook descobrira a Austrália (Koselleck, 1985, p. 2). Àquela altura estava claro que não se teria muito mais para se descobrir na face da Terra. As viagens utópicas teriam agora que se dar no tempo, abrindo janelas no futuro. Da utopia passou-se para a ucronia, afirma Koselleck. Também, evidentemente, o novo relativismo cultural, que se vê de Rousseau a Herder no século XVIII, impregna esta nova modalidade de viagem. A consciência de que o tempo significa uma mudança de contexto e exige uma leitura interpretativa marca também esta obra. O viajante tem que decifrar o “outro”, que, no caso desta obra de Mercier, é o futuro e seus novos hábitos. No texto vemos a realização futura dos projetos urbanísticos do século XVIII. Mercier também prega uma humanização do sistema penal e critica o modelo violento da prisão de seu tempo, com a prática da tortura onipresente (1786, p. 59ss. e 111). A literatura cumpre aí um pouco seu papel de compensadora de uma realidade limitada (Koselleck, 1985, p. 4). Seguindo a idéia então comum de que existe um progresso, a cidade do futuro é o melhoramento da cidade do presente. Neste ponto, também esta utopia inova: ela vê o mundo em movimento, em progresso, e não congelado como nas utopias clássicas (Trousson, 1985, p. 21). Por outro lado, esta sociedade apresentada como melhor e fascinante, é também um estado com traços “totalitários”, no qual a vida é amplamente gerida, como no caso dos casamentos que são coordenados pelo Estado e no papel reservado às mulheres, como submissas e reduzidas à esfera da família e da reprodução (Mercier, 1786, p. 207). A higiene impera na cidade: “A limpeza é o signo o menos equivocado da ordem e da harmonia pública; ela reina em todos lugares” (p. 214)¹. A relação clara que Raymond Trousson percebe desta obra de Mercier com, por um lado, o Discours sur les progrès de l’esprit humain, de Turgot (1750) e, por outro, com a Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, de Condorcet (1795), deixa claro também em

¹ Outro tema biopolítico interessante tratado por Mercier é a questão do abate de animais. Este teria sido levado nesta Paris futurológica para fora das cidades, para não gerar doenças na cidade. Vemos uma defesa acanhada e autocrítica do ato de se comer carne: “Se a natureza nos condenou a comer a carne dos animais, ao menos nos poupamos do espetáculo do trespasse. O ofício de açougueiro é exercido por estrangeiros forçados a se expatriar; eles são protegidos pela lei, mas não classificados entre os cidadãos. Nenhum de nós exerce esta arte sanguinária e cruel; nós tememos que ela acostume insensivelmente nossos irmãos a perder a impressão natural de comiseração; e a piedade, o senhor o sabe, é o presente mais belo, mais digno, que a natureza nos deu” (Mercier, 1786, p. 215). Mercier, em nota, observa que na Índia os banianos não só são vegetarianos como dissuadem os caçadores e pescadores de seus ofícios. O tema da piedade, que Mercier conhecia muito bem de autores como Rousseau, está no coração da biopolítica (cf. Arendt, 1988, p. 47).

312

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

que medida a ficção permite – mesmo que não necessariamente tendo isto como seu fim – delinear um painel crítico do presente e das doutrinas da época. O paraíso sobre a Terra se revela como uma distopia, apesar de que, aos olhos de Mercier e de seus contemporâneos, esse livro era visto ainda como uma utopia positiva. As artes, com destaque evidentemente para o teatro, estão sob o poder do estado e são aplicadas para “formatar” seus cidadãos. É o século XX, com seus totalitarismos e o ápice da estetização da política, que nos ensinou a olhar de modo radicalmente crítico para as utopias. Trousson também acerta ao notar que esta utopia, diferentemente das anteriores, quer-se uma profecia e, portanto, o oposto de uma utopia. Ela quer coincidir com a realidade. Assim Mercier, até a última reedição que ele mesmo prefaciou, em 1799, vai destacar todos os elementos proféticos de sua obra, com destaque, é claro, para a Revolução de 1789 (Trousson, 1985, p. 22). Deste modo, Mercier inaugurou um gesto que se tornaria típico, depois, nos autores de ficção-científica, com seu desejo de antecipar as revoluções, sobretudo técnicas, do futuro. Daí podermos considerar sua obra como o início também, ou o primeiro capítulo, em uma história do futuro. A temporalização da utopia que permitiu este novo passo.

Mas foi sobretudo o abalo na tradição que a Revolução provocou que abriu a possibilidade para esta revolução intelectual. A Revolução, de resto, já trazia em si mesma a figura da inversão da hierarquia entre as idéias e a efetividade e esse aspecto foi retratado em seguida por Hegel nas suas famosas Preleções sobre a filosofia da história com a seguinte imagem: “Desde que o sol encontra-se no firmamento e os planetas giram em torno dele, isso nunca fora visto: que as pessoas se perfilassem sobre a cabeça, ou seja, sobre as idéias [Gedanken], e construíssem a efetividade segundo elas” (apud Mähl, 1985, p. 275). Esta aproximação entre o mundo das idéias e a efetividade abriu as portas ao mesmo tempo para uma despedida dos grandes modelos considerados eternos ou sacros. O “paraíso” poderia acontecer aqui e agora e segundo as condições do momento. Caberia aos homens dar forma a ele, não segundo a cópia de um modelo, mas sim segundo a realidade concreta. O homem passa a ser o criador de seu mundo e de seu destino. Deus já pode morrer.

O “ímpeto revolucionário” alemão, no entanto, teve vários matizes: afinal a revolução pode ser pensada tanto em termos de renovação como também de volta, de restabelecimento de um passado. Vale a pena destacar algumas reflexões contidas nas obras de Novalis e Friedrich Schlegel enfocando tanto a questão da nova visão de temporalidade, que trouxe no seu bojo o aguilhão da utopia, como também a relação desse pensamento utópico com o traçamento dos limites/fronteiras da “identidade alemã” na sua complexa relação com a noção de Europa. Tendo em vista as mudanças de posição de F. Schlegel ao longo de sua vida e obra, terei ainda de me limitar ao período que vai de 1794, ano em que ele escreveu o seu artigo “Sobre as escolas da poesia grega”, a 1804, data de publicação do seu segundo ensaio sobre Lessing. Entre essas duas datas ele passará de uma postura abertamente pró modelo clássico antigo, para um programa que visava repensar a cultura

313

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

alemã a partir do legado da Idade Média e do catolicismo. Novalis, por sua vez, que falecera aos 29 anos em 1801, já havia percorrido as várias estações da inquieta “busca” que marcou a sua obra como um todo, tendo passado do culto amoroso de Sophie, pelo criticismo enquanto construção de uma Idade de Ouro (inspirado no filósofo holandês Hemsterhuis), pela teoria do Idealismo mágico, pelo estudo apaixonado das ciências naturais, pela apologia da Monarquia e do Catolicismo e, finalmente, havia depositado as suas esperanças na Poesia (Kurzke, 1983, p. 263).

Modernidade: dissolução e a busca de uma “pátria”

O romantismo de Novalis e Friedrich Schlegel, portanto, não pode ser reduzido a um programa simples e unitário: fazer isso implicaria ir contra talvez à única das máximas que eles seguiram de modo rigoroso: o princípio da contradição (em oposição ao princípio da não-contradição típico do Iluminismo). “Se se tem o amor pelo absoluto – afirmou Schlegel – e não se pode abandoná-lo: então não resta nenhuma saída senão sempre contradizer-se e conectar extremos que se opõem” (Schlegel, 1967, p. 164). Esse princípio de conexão do que parece inconciliável guiou muitos outros teoremas românticos, sendo o mais conhecido dentre eles a noção de Witz. Aplicando este teorema à questão da utopia temos: o mais intenso culto do sonho utópico só pode existir acompanhado de uma crítica radical de todo e qualquer modelo totalizante de utopia.

Se houve dentro do romantismo uma oscilação entre a “revolução autêntica” e “revolução conservadora” é porque esse movimento é justamente um legítimo filho do seu período de rupturas, guerras e instabilidades. O romantismo nasce da tentativa de se repensar a cultura a partir desses novos dados históricos, ou seja, nasce da tentativa de se criar uma base mínima para a vida diante da onipresença do acaso (a saber: do caos) e da concomitante consciência de que os homens poderiam e deveriam determinar o curso da história com as suas mãos.

É um chavão, mas não posso deixar de recordar já que essa noção é central na filosofia da história romântica, que para Novalis, eu cito, “A filosofia é propriamente nostalgia [Heinweh] – Desejo [Trieb] de estar em casa por toda parte” (Novalis, 1978, p. 675). E ainda, do mesmo autor lemos o que significa para ele este “estar em casa”: “De fato não existe nenhuma felicidade maior do que compreender tudo – estar em casa por toda parte” (p.752). Esse desejo de sentir-se em casa por toda parte é derivado direto do sentimento de alienação dessa geração de intelectuais com relação à sua época. O projeto romântico deve ser compreendido como um plano de estabelecimento dessa nova “casa”: o método da sua construção é uma conseqüência da experiência da revolução (ou seja: da inversão generalizada dos valores e das Instituições): dever-se-ia aproximar o que está distante e distanciar o que está próximo demais. A utopia é – ou deveria ser – o aqui e agora. Como Novalis o formulou:

Antes tudo era aparição do espírito [Geisterscheinung]. Hoje vemos apenas repetição morta que nós não compreendemos. Falta o significado do

314

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

hieróglifo. Vivemos ainda do fruto de épocas melhores. O mundo deve ser romantizado. Assim encontra-se novamente o sentido originário. Romantizar não é nada senão uma potenciação qualitativa. Nessa operação o si-mesmo mais baixo é identificado a um si-mesmo melhor. Assim como nós mesmos somos uma tal potenciação qualitativa. Essa operação ainda é totalmente desconhecida. Na medida em que eu atribuo ao comum um sentido mais elevado, ao usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito uma aparência de infinito eu o romantizo. – Para o mais elevado, desconhecido, místico, infinito a operação é o contrário, – eles são logaritmizados via conexão, – recebem uma expressão corriqueira (1978, p. 334).

Romantizar significa, portanto, projetar a história em um mundo utópico: a saber, realizar essa utopia. Assim F. Schlegel pôde afirmar em um dos fragmentos da revista Athenäum – o órgão veiculador das idéias dos primeiros românticos: “O desejo revolucionário de realizar o reino de Deus é o ponto elástico da formação progressiva e o início da história [Geschichte] moderna. O que não está em nenhuma conexão com o Reino de Deus é nela apenas coisa secundária” (1967, p. 201). Para Schlegel, essa capacidade de realização gradual do reino de Deus era a característica que diferenciaria a modernidade da filosofia Ática (1963, p. 119); uma idéia que, de resto, ele lera em Herder, nas suas Briefe zur Beforderung der Humanität que ele resenhara em 1796 (1967, p.47-56; cf. especialmente p. 49: “Toda literatura torna-se cristianizada...”).

O meio dessa romantização é, para os românticos alemães, justamente, e antes de mais nada, a poesia.

Mas em Novalis nem sempre a poesia teve a precedência como meio de reencantamento do mundo moderno fragmentado e desprovido de sentido. A poesia teve de conquistar na sua obra aos poucos essa posição de veículo privilegiado da romantização do mundo. Antes disso Novalis tivera uma experiência amorosa com Sophie von Kühn – frustrada pela sua morte extremamente precoce – que lhe deixara marcas profundas. Mas o que nos interessa aqui em particular são as demais etapas de seu projeto romântico: a saber, os seus estudos filosóficos e sobretudo o seu ensaio A Cristandade ou Europa de 1799 (mas publicado apenas em 1826). A visão da Europa de Novalis que mais marcou a sua recepção posterior foi sem dúvida a apresentada nesse ensaio. Mas essa recepção não deixou de fazer o seu trabalho de transformação do texto de Novalis: em primeiro lugar, desconectando-o da obra filosófica de Novalis – decerto fragmentária, mas nem por isso menos importante, muito pelo contrário – e, em seguida, quando da publicação, eliminando as passagens que justamente indicavam a distância de Novalis com relação a um simples projeto restaurativo.

A Cristandade ou Europa é uma descrição nostálgica do mundo medieval europeu. Em oposição radical ao estado de guerra europeu no qual Novalis se encontrava, aí ele pintou uma paisagem idealizada de uma Europa em paz e unificada pelo cristianismo. As primeiras palavras do texto deixam claro o seu teor:

315

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Foram belos e resplandecentes tempos, quando a Europa era uma terra cristã, quando Uma Cristandade habitava esse território marcado pelas pessoas; Um grande interesse comunitário ligava as províncias mais distantes desse amplo Reino espiritual. Sem grandes propriedades seculares, Um chefe conduzia e unificava as grandes forças políticas² (1978, p. 732).

Novalis elogia a preocupação da igreja em impedir as manifestações da ciência com as suas descobertas “perigosas e extemporâneas” (p. 733). A Europa teria perdido esse paraíso sobre a terra devido à evolução das relações comerciais que gerou o esfacelamento da Europa. A saída do mundo fechado da comunidade (Gemeinschaft) e a entrada no mundo dos negócios, da prosa da vida que pisa e esmaga a poesia do espiritual, a passagem do homem em perfeita harmonia com o seu meio, para uma nova concepção de homem marcado pela instrumentalização das suas relações, pela busca desenfreada da propriedade e do saber, em suma: marcado pela interiorização da fenda, da separação com a natureza, esse tipo de movimento que descortina um modelo binário de evolução na socialização – de ruptura e queda – era típico da época de Novalis. Novalis com o seu texto, no entanto, queria apresentar um modelo no sentido kantiano, a saber, transcendental, de uma “Idéia reguladora” que poderia estar indicando uma reconciliação desse homem decaído com o seu meio. Assim como no seu texto Glauben und Liebe ele descrevera o mundo da monarquia cavalheiresca como um Ideal no sentido regulador transcendental, do mesmo modo em A Cristandade ou Europa ele descreve o catolicismo como o meio, a única religião, capaz de re-ligar a Europa fragmentada. (Nesse sentido, aliás, não deixa de contar um ponto a favor de sua perspicácia sociológica avant la lettre, o fato de Novalis – assim como posteriormente F. Schlegel – descrever o Protestantismo como a religião típica dessa situação moderna que incentiva a competição e o isolamento entre as pessoas e as nações³). Como afirma Hermann Kurzke comentando o ensaio de Novalis: nesse texto, “a Idade Média é um novo campo de experimentação da positivação do criticismo” (1983, p. 231), ou seja: Novalis procurou projetar na Idade Média um modelo transcendental que deveria guiar as transformações do seu presente. Como no seu chamado “idealismo mágico”, a idéia de Novalis é que existe um potencial revolucionário no mundo que deve ser revelado. A idade de ouro ou a “paz perpétua” podem ser atingidas se esse potencial vier à luz do dia. O papel do poeta/filósofo é o de anunciar essa revolução. Para Novalis a modernidade, o protestantismo e o Iluminismo representaram passos na direção errada, que impediram a manifestação dessa força autêntica. Kurzke nota, portanto, com razão, que Novalis não visava tanto um reencantamento do mundo, mas sobretudo o seu desencantamento (1983, p. 233): ele, na verdade, era um crítico – como todo bom filósofo iluminista – que queria denunciar as falsas soluções: ou ao menos o que lhe parecia assim ser4. A Europa católica ele descreve no seu ensaio como uma “intellectuale Anschauung des politischen Ichs”, “intuição intelectual do eu político”, deixando explícito com o emprego dessa terminologia kantiana e típica do idealismo e do romantismo como um todo, que a sua teoria da histórica passa por uma doutrina transcendental que vê na Europa católica um

² Vale a pena ler a paráfrase irônica dessa visão da Idade Média que Schlelling fez no seu longo poema satírico de 320 versos “Profissão de Fé Epicurista de Heinz Widerpost” de 1799 (em tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, publicada no MAIS!, 18/07/1999, p. 6.)

³ Kurzke cita uma passagem da obra Réflexions sur le protestantisme de Joseph de Maistre, de 1798, que também apresenta o protestantismo como “disolvant universel” (Kurzke, 1983, p. 238).

4 Nem por isso devemos descartar os efeitos conservadores, a saber, reacionários, das idéias de Novalis. Em primeiro lugar porque apesar dele desejar uma “revolução” – espiritual e material – o seu modelo é muito mais anti-revolucionário, já que para ele faria parte da “ordem natural” da história que a situação decadente da Europa seria superada. Em segundo lugar existe uma apologia da guerra, da sua beleza, sendo que o modelo aqui é o das Cruzadas. Kurzke (1983, p.248 s., nota 101) recorda que já Schiller valorizara as Cruzadas como uma força unificadora da Europa no seu livro Geschichte des Dreißigjährigen Kriegs (História da guerra dos trinta anos, 1791-3). Contra a idéia de que a visão política de Novalis leva necessariamente ao quietismo (cf. Faber, 1970, p. 76-80). Não deixa de ser sintomático que Faber retome Novalis sob o signo da revolução de 68; de resto o mesmo se deu nessa época com Walter Benjamin, cuja obra, aliás, foi construída em diálogo com os pensadores de Iena.

316

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Ideal a ser concretizado mas não simplesmente restaurado. Daí a recepção conservadora desse texto já ter iniciado mesmo antes da sua publicação, nas cópias do manuscrito, que suprimiram a frase “Sua [i.e. do cristianismo] forma casual está totalmente aniquilada, o antigo papado está no túmulo e Roma está pela segunda vez em ruínas” (Novalis, 1978, p. 750), frase essa que justamente distanciaria Novalis de qualquer suspeita de apologia da igreja romana de sua própria época (p. 592).

A crítica do mundo moderno marcado pela separação entre o saber e a crença, desdobra também no ensaio de Novalis (p. 740) a crítica romântica da separação das faculdades do nosso ânimo que teria sido ainda mais acelerada pelo Iluminismo e pela filosofia na sua oposição à Religião. Todo o programa romântico tal como ele pode ser lido na Athenäum coloca em questão esse mundo moderno iluminado – como afirma Novalis – pela luz fragmentada e diluidora do Iluminismo (p. 741s.). O programa de instituir uma nova mitologia – comum também a Hölderlin, Schelling e Hegel da época do Mais antigo programa sistemático do Idealismo alemão – não pode, portanto, ser desconectado desse ensaio de Novalis – mesmo que ele vise mais uma Entzauberung/desencantamento do que uma Verzauberung/reencantamento do mundo. Na sua descrição do mundo contemporâneo, a ele fica claro que ele via a necessidade da sua repoetização: “O ódio à Religião [...] transforma a música do universo, infinita e criadora, em um matraquear uniforme de um moinho monstruoso que é impulsionado pela tempestade do acaso e, nadando sobre ela, é um moinho em si, sem arquiteto ou moleiro e na verdade um autêntico perpetuum mobile, um moinho que mói a si mesmo” (p. 741). Na origem desse prédio mal-assombrado está o culto do saber filosófico que o autor localiza na França. Por outro lado, a resposta à crise moderna viria, para Novalis, da Alemanha (p. 744) que caminha, ele afirmou ainda no ensaio Cristandade ou Europa, “à frente dos demais países europeus” com o seu “passo lento, mas seguro”: ao invés de se dedicar à guerra, à especulação e aos partidarismos, ela trilha na direção de uma época elevada da cultura. Por outro lado, deveríamos agradecer aos filósofos já que o percurso realizado por eles era necessário; e mais, segundo nosso autor “A poesia encontra-se [agora] com mais encanto e mais colorida, como um índio enfeitado, diante dos cumes gelados e mortos daquele entendimento de gabinete” (p.746).

Como lemos no conhecido fragmento 116 da Athenäum, a teoria da Modernidade de Schlegel é uma teoria da construção do futuro via estetização da vida. Ele pensou o romance como uma “poesia universal progressiva”, “progressive Universalpoesie”, que une não apenas todos os gêneros, mas também a poesia a filosofia e a retórica. “Apenas ela [i.e. a poesia romântica]”, afirma Schlegel neste mesmo fragmento, “pode tornar-se, como a poesia épica, um espelho do mundo inteiro ao redor, uma imagem da época [...] esta é a sua verdadeira essência, que ela eternamente apenas torna-se, nunca pode ser acabada” (1967, p. 182s.). Reencontramos aqui tanto a temporalização da utopia, como também a sua estetização. É interessante notar, no entanto, que esta estetização, no período e nos autores

317

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

que estamos lendo aqui, não encarna o paradigma clássico. Aqui se tratava antes de um grito de libertação das amarras da razão iluminista. Realizar a utopia significa poetizar o mundo. O lema que será pichado nas ruas pelo mundo afora em 1968, “a imaginação no poder”, é um herdeiro tardio desta tradição primeiro romântica. É verdade que a estetização da política, detectada por Benjamin no nazi-fascismo, conciliava tanto o modelo clássico como o do romantismo conservador, com seu culto da floresta, das brumas do norte, da morte etc. Existem, portanto, diferentes modos de se estetizar a política e de modo algum se deve reduzir a distopia à tentativa de estetizar a sociedade por um viés clássico. Dependendo de qual modalidade de estetização a sociedade elege, no entanto, ela caminha para a distopia (nazi-fascismo, por exemplo) ou não (como no exemplo do caos criativo da revolta estudantil: mas que não pôde se institucionalizar, caso contrario teria ela também abandonado o projeto de temporalização crítica da utopia).

A era romântica se auto-declara como era do criticismo: de insatisfação com seu presente e de constante busca de um mundo acolhedor. A máxima realização da crítica contém em si o gesto da fundação de novas (sempre plurais porque infinitas) utopias: “A crítica mítica é a que põe, divinatória, que determina o valor, ou as Idéias a partir das quais se critica e os autores que devem ser criticados” (Schlegel, 1963, p. 126). O “pôr” a que esta passagem se refere alude ao ato do crítico que deve “pôr” a obra diante do seu próprio Ideal. Ou seja, para os românticos – do mesmo modo como ao poeta cabia a tarefa de recriar a linguagem cotidiana que era vista como insuficiente – nesta crítica divinatória, as obras são vistas como realizações incompletas (cf. parole) – abertas – de um Ideal (cf. langue) e que devem ser aproximadas dele no ato da crítica (i.e. um novo patamar na cadeia de mediuns-de-reflexão). “Apenas o incompleto pode ser compreendido, pode levar-nos mais além”, afirmou Novalis (1978, p. 348). E Schlegel: “Toda crítica é divinatória, completar um projeto é idêntico a completar um fragmento” (1963, p. 49). Daí porque para ele: “O verdadeiro crítico é um autor elevado à segunda potência” (p. 106); ou então: “Toda crítica é potenciada. [...] Só existe crítica onde o absoluto e o empírico são sintetizados” (Schlegel, 1957, p. 75; cf. Benjamin, 1993, p. 76ss.). O crítico intervém, portanto, como um agente de romantização do mundo, de conexão entre o real e o Ideal; o seu mote é a construção do livro único, da “Enciclopédia” ou “Bíblia”, que como modalidades do Livro absoluto estavam no centro da filosofia romântica da linguagem. Como afirmou Schlegel, para o crítico “Toda escrita deve ser sagrada” (1963, p. 212). A crítica é que transforma o texto em escrita sagrada, i.e., em termos mais profanos, conecta cada obra ao seu próprio Ideal, integra o ato fragmentário ao todo-sistêmico. O mundo e suas obras é constantemente recriado pelo ato crítico. A utopia a partir daqui só poderia ser pensada de modo plural, aberto, efêmero. Se sabemos que os utopistas dos séculos XIX e XX desrespeitaram esta máxima romântica, isto significa apenas que eles não compreenderam, ou não quiseram aceitar, a teoria romântica da crítica e do ser como eterno devir.

Neste ponto, fica novamente claro na teoria romântica a função do tempo como concretização tendencial e infinita (nunca acabada) do

318

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Absoluto. A definição do Ideal, portanto, é feita por uma crítica divinatória, i.e. que descreve a obra a vir. “Uma definição da poesia só pode determinar o que ela deve tornar-se”, afirmou Schlegel nos fragmentos da Athenäum (1967, p. 181). Novalis formulou algo semelhante num fragmento de 1798: “uma Idéia não se deixa apanhar numa sentença. [...] A lei do seu progresso deixa-se, no entanto, compor – é a partir dela que o romance deve ser criticado” (1978, p. 359). O mencionado fragmento 116 de Friedrich Schlegel, da Athenäum, executa justamente esta crítica divinatória – só que aí não de um texto, mas sim da História da literatura vista como um Livro único – na medida em que define a poesia romântica como uma “tendência”, realização de um “projeto”: “A poesia romântica está ainda em devir; sim, esta é a sua essência própria, que ela eternamente apenas torne-se e nunca poderá ser completa. Ela não pode ser esgotada por nenhuma teoria e apenas uma crítica divinatória poderia ousar querer caracterizar o seu Ideal” (Schlegel, 1967, p. 183). Mas, como já vimos acima, a crítica não visa um Ideal único (estanque) que abarque a todas as obras singulares: “Deve poder existir um número infinito de Bíblias”, escreveu Schlegel (1963, p. 236), revelando o caráter eminentemente conceitual da sua noção de Bíblia. Não existe um Ideal fechado, mas apenas um sistema de ideais que se articulam na formação do Absoluto como medium-de-reflexão: eterno devir (cf. Benjamin, 1993) A utopia só existe no plural e em constante movimento de auto-reflexão, (auto-)negação. Ela não é subsunção do particular ao geral, do indivíduo ao todo, mas sim movimento constante de choque e negação do todo. O todo é o falso.

Assim o importante fragmento 216 da Athenäum “a Revolução Francesa, a Doutrina da ciência de Fichte e o Meister [Os anos e aprendizagem de Wilhelm Meister] de Goethe são as maiores tendências da época” (“die Französische Revolution, Fichte's Wissenschaftslehre und Goethes Meister sind die größten Tendenzen des Zeitalters”; Schlegel, 1967, p. 198) ganha toda sua importância: o crítico deve tentar perceber no presente os traços de um futuro melhor. Estas tendências são vistas como ideais, ou seja, modelos transcendentais a serem seguidos, mas não como um modelo estanque a ser imitado. A utopia não é sistema, fórmula, conceito fechado, mas antes um caos ativo, ímpeto autodesconstrutivo e construtivo. A busca de tendências muda a cada presente e em cada contexto. O pensador que condena com desdém as tendências de seu presente como sendo “mera moda”, não entendeu nada da modernidade ou da função transcendental da moda. O absoluto só subsiste no efêmero.

É interessante notar como esta concepção romântica também foi aplicada às artes. Como o fragmento 434 da Athenäum deixou claro, F. Schlegel visou antes de mais nada uma crítica das concepções tradicionais de gênero: “As divisões habituais da poesia são apenas madeiramento morto para um horizonte limitado” (1967, p. 252). A continuação deste fragmento afirma novamente que a única tarefa que se pode realizar é uma tentativa de se perceber a “tendência” da poesia. A crítica da razão da poética dos gêneros levada a cabo por Schlegel – na expressão de Peter Szondi (“Kritik der gattungspoetischen Vernunft”) – deu-se através de um processo de

319

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

utilização dos mesmos apenas como “tons” que marcariam as diversas obras poéticas e misturar-se-iam nelas5. Evidentemente, a base para tal superação dos gêneros está dada na modernidade, para este autor, através do romance – ou da poesia romântica – que, como ‘forma progressiva’6, engloba potencialmente todos estes gêneros que são superados e misturados nela. “Todos os tipos de poesia [Dichtarten] clássicos, na sua pureza estrita, são agora risíveis” (Schlegel, 1967, p. 154), afirmou ele em 1797, e no mesmo ano ainda: “Sentido para a individualidade poética tem-se apenas com os modernos” (1957, p. 37). Este olhar para o singular que resume a revolução romântica: ao salvar o individual, ela deu um tiro na tradição das utopias que sempre estipularam um triunfo do todo, de um modelo da razão universal, sobre o indivíduo. A revolução romântica, com sua entronização do autor como criador, desbancou a noção milenar da arte como imitatio. Esta reviravolta implicou, no campo da utopia, o abandono e a crítica radical dos grandes modelos a serem imitados. Como complemento a esta idéia, veja-se esta outra passagem: “Pode-se tanto dizer que existem infinitos tipos de poesia ou que só existe um tipo progressivo. Portanto não existe nenhum” (Schlegel, 1957, p.72). Assim como os românticos afirmaram existir uma Idéia para cada obra, do mesmo modo, portanto, Friedrich Schlegel pôde escrever em 1798: “Cada obra um gênero [Gattung] para si” (p.116). Ou ainda, procurando traduzir este princípio para aplicá-lo em uma crítica da razão utópica, que procurei deduzir aqui da crítica romântica dos gêneros literários: “Cada indivíduo, uma utopia para si.”

desmascarando a hipocrisia da razão utópica humanista/iluminista

Mas a esta versão da vida como ato contínuo de revolução, também corresponde um contraponto mais lúgubre. Ele pode ser vislumbrado tanto na mencionada literatura que apresenta a revolta da técnica e retrata o homem moderno como um Prometeu castigado pelo seu saber – com lemos no casal Mary e Percy Shelley, em Goethe, Blake e tantos outros poetas da época, como também vemos os tons cinzas da reflexão sobre o tempo e o futuro na pena de poetas como Baudelaire que ironizaram até as últimas conseqüências os utopistas e a moral burguesa de sua época. Ele espicaça o que poderíamos chamar de hipocrisia humanista/iluminista que sustenta em grande parte a utopia, assim como outros grandes projetos “civilizadores” do século XIX e da razão da Aufklärung, desde suas origens. Em algumas das linhas mais famosas dos seus Fusées, Baudelaire reflete longamente e de modo amargo sobre os burgueses e utopistas de sua época. Sua intuição de poeta o colocou um século diante dos seus: não por acaso esta passagem fascinou outro melancólico e desiludido com as utopias, Walter Benjamin. Eu cito algumas passagens deste texto:

O mundo vai acabar. A única razão pela qual ele poderia durar está em existir. Como essa razão é fraca, comparada a todas as que anunciam o contrário, e particularmente a esta: o que tem o mundo a fazer doravante sob o céu? – Pois, a supor que ele continuasse a existir materialmente, seria uma existência digna desse nome e do dicionário histórico? Não digo que

5 Cf. Szondi, 1970, p. 192ss., Schlegel, na medida em que tratou a epopéia, a lírica e o drama como tons ou modos, aplicáveis aos diferentes gêneros (romance, sátira, idílio, balada, conto, fábula...), marcou a superação da concepção dos gêneros como entidades estanques, hipostasiadas.

6 Aliás, não propriamente “forma”, mas sim “elemento da poesia”, como fez questão de ressaltar F. Schlegel no seu “Brief über den Roman” (1967, p. 335).

320

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

o mundo será reduzido aos expedientes e à desordem bufa das repúblicas da América do Sul, – que talvez até nós mesmos retornaremos ao estado selvagem, e que iremos, em meio às ruínas herbosas de nossa civilização, procurar nosso pasto, com um fuzil na mão. Não; – pois essa sorte e essas aventuras suporiam ainda uma certa energia vital, eco das primeiras eras. Novo exemplo e novas vítimas das inexoráveis leis morais, pereceremos por onde acreditamos ter vivido. A mecânica nos terá de tal forma americanizado, o progresso terá tão bem atrofiado em nós toda a parte espiritual, que nada em meio aos devaneios sanguinários, sacrílegos ou antinaturais dos utopistas poderá ser comparado a seus resultados positivos. [...]

A imaginação humana pode conceber, sem demasiada dificuldade, repúblicas ou outros estados comunitários, dignos de alguma glória, se forem dirigidos por homens sagrados, por certos aristocratas. Mas não é particularmente por meio de instituições políticas que se manifestará a ruína universal, ou o progresso universal; pois pouco me importa o nome. Será pelo envilecimento dos corações. [...]

E eu, que às vezes sinto em mim o ridículo de um profeta, sei, a meu turno, que jamais terei a caridade de um médico. Perdido neste mundo vil, atropelado pela multidão, sou como um homem esgotado cujo olho, para trás, nos anos profundos, só vê desengano e amargura, e, para frente, uma tempestade que não contém nada de novo, nem ensino nem dor (Baudelaire, 2007, p. 301-305).

Esta tempestade, que Baudelaire coloca diante de nossos olhos, Benjamin a localizaria, em 1940, diante do anjo da história, que caminharia de costas, mirando o amontoar-se de escombros que é a que se resume a história da humanidade. É desta visão da história que vê nela o sempre-igual da destruição que Baudelaire deduz seu “o mundo vai acabar” e Benjamin, ecoando este mesmo mote, já em plena Segunda Guerra Mundial, ainda afirmaria a existência de uma “porta estreita” por onde o inteiramente outro poderia penetrar, como lemos na última das teses benjaminianas sobre o conceito da história (1974a, p.704). Na mesma coletânea de fragmentos, Baudelaire novamente apunhala os utopistas com sua verve:

un impudent utopiste [...] affirma que le plus grand plaisir de l’amour était de former des citoyens pour la patrie.Moi je dis: la volupté unique et suprême de l’amour gît dans la certitude de faire le mal. – Et l’homme et la femme savent de naissance que dans le mal se trouve tout volupté (1975, p.651ss.).

Baudelaire responde à tendência totalizante e biopolítica das utopias, com a sua política demoníaca da individualidade e com a comemoração do gozo no mal: avesso da moral burguesa que sustenta também as utopias. O Frankenstein de Mary Shelley, por sua vez, perfaz a virada da utopia no terror pela via da crítica da ciência e do saber. Como formulou Michael Winter, o utopista – a saber, o cientista – agora se torna o criador do mal. (1985, p. 90) Este mal e terror, por sua vez, provocam gozo nos leitores e, no século XX, nas platéias de cinema. A literatura e as artes se apresentam

321

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

como os campos de reflexão e de possibilidade de uma crítica radical da pulsão utópica/distópica do homem prometéico moderno.

Jules Verne, no seu romance de 1863, não publicado em vida por seu editor Pierre-Jules Hetzel, também fez um panorama de Paris au XXe siècle que apresenta uma sociedade totalmente dominada pela técnica e pela lógica capitalista. Nesta sociedade não existe espaço para as artes, a não ser as que fazem laudas auto-elogiosas àquele mundo. O futuro aparece como limpo e organizado, sem lugar para as emoções e para relacionamentos não lucrativos. Trata-se de uma explicitação crítica daquilo que mais tarde Adorno e Horkheimer chamariam de dialética do Esclarecimento. No mundo futuro desta obra de Verne o Bildungsroman do homem moderno não é mais possível. A arte, que no modelo goetheano servia de “desvio formador”, está sufocada nesta sociedade perfeitamente burocratizada. O homem está reduzido a mero capital humano. A técnica e o lucro guiam o cotidiano de homens tristes, verdadeiros autômatos, com uma vida emocional e sexual desérticas. A sociedade é comparada a uma enorme prisão (Verne, 1994, p. 72). Michel Duffrénoy, o protagonista, é um verdadeiro ET em sua sociedade que despreza tudo o que tem a ver com cultura: ele é professor de latim e encontra-se mais e mais sem um público. Neste mundo de Verne, é como se o homem egoísta, que Rousseau vira triunfar na sociedade urbana de sua época, tivesse conseguido extirpar a última gota de piedade da face da terra (p. 154). A narrativa é do tipo que depois se tornou tradicional e é bem conhecida para os leitores de G. Orwell e A. Huxley, ou para os que viram Matrix: ela conta a história de um indivíduo que consegue manter sua autonomia em meio à aniquilação da individualidade. Trata-se de uma alegoria do indivíduo moderno em meio à sociedade coisificada que o aliena. É memorável o fato do editor de Verne, Hetzel, ter sentido neste livro um certo ar dos escritos de Fourier (Verne, 1994, p. 13). Se é na ficção científica que esta face distópica da tradição utópica vem à luz com mais intensidade, ou seja, justamente no gênero literário que explora as relações entre o homem e a técnica, por outro lado, não é menos verdade que existe uma relação profunda entre a própria ficção científica e o cinema. É como se a técnica cinematográfica permitisse um mergulho ainda maior nas potencialidades distópicas da técnica que este gênero encena. A ambigüidade da técnica é desdobrada no dispositivo cinematográfico. Este se transforma em verdadeiro bisturi, para recordar outra imagem de Benjamin, aplicada por ele para descrever o cinema7, que penetra as carnes do homem moderno, virando do avesso sua pele que cada vez mais é mera roupagem para uma individualidade que se confunde ela mesma com o último prêt-à-porter.

Michael Winter se pergunta se “o utopista é aquele que sempre quer fazer o bem e gera o mal” (1985, p.109). Esta formulação é interessante, mas talvez um pouco inocente, porque pressupõe que poderíamos ter acesso às intenções dos utopistas e, o que seria mais inocente ainda, que estas seriam sempre boas. Por outro lado, como lemos nesta obra de Verne, não se trata mais, a partir da crítica da utopia iniciada no século XVIII por Prevost, de uma sociedade realmente idealizada pelo autor. Antes,

7 O cinema, para Benjamin, é uma técnica que penetra “profundamente as vísceras dessa realidade” como o bisturi de um cirurgião (1985, p. 187).

322

MáRCIO SElIgMANN-SIlvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

estas distopias são representações caricatas do presente do autor. A ficção, como vimos, em Mercier, não retira o compromisso do autor do romance futurológico com o seu presente: muito pelo contrário. É o “golpe de ficção” que permite este mergulho no presente. Mas, por outro lado, não podemos deixar de concordar com Winter quando ele afirma que a utopia só pode ser considerada completa se ela trouxer consigo a sua autocrítica. Neste sentido é importante se diferenciar entre os utopistas sociais e os artistas da utopia: estes últimos sempre foram mais atentos para este momento crítico do gesto utópico. Eles perceberam que a utopia, como todo dispositivo, é ambígua e não existe sem sua face distópica. A arte permite que vislumbremos criticamente aquilo que políticos “utopistas” criaram e criam às custas de milhões de vidas. Mas se o homem romântico tem como seu mito o artista – para Novalis o artista é o ser transcendental8 –, então entendemos melhor porque desde o romantismo é praticamente impossível de se fazer esta distinção entre o utopista social e o artista. Mas isto não nos impede de cobrar mais a crítica da razão utópica, mesmo em uma época que acredita – talvez também inocentemente – que já deixou as utopias para trás.

Campinas, 8 de junho de 2009

Bibliografia

ADORNO, Th.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

ARENDT, Hannah. Da Revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Editora. Ática, 1988.

BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complétes, vol. I. Paris: Gallimard (Bibl. de la Pléiade), 1975.

BAUDELAIRE, Charles. “Projéteis”. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. In: alea volume 9 número 2 julho-dezembro 2007, p. 301-305.

BENJAMIN, Walter. “Zur Kritik der Gewalt”. In: Gesammelte Schriften, org. por R. Tiedemann und H. Schweppenhäuser. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. II: Aufsätze, Essays, Vorträge, 1974.

BENJAMIN, Walter. “Über den Begriff der Geschichte”. In: Gesammelte Schriften, org. por R. Tiedemann und H. Schweppenhäuser. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. I: Abhandlungen, 1974a.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense 1985.

BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Trad. pref. e notas M. Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras/ EDUSP, 1993.

8 “O artista é completamente transcendental” (Novalis, 1978, p. 323); “O artista ergue-se sobre as pessoas, como uma estátua sobre um pedestal” (p. 323). Novalis também afirma que “A poesia é a grande arte da construção da saúde transcendental. O poeta é, portanto, o médico transcendental” (p. 324). Esta junção entre o artista e o médico não deixa de lembrar o modo como o nazismo foi muito bem caracterizado no filme Arquitetura da destruição, de Peter Cohen (1992). O biopolítico revela-se nestas passagens e neste filme como o médico-estético-político. O nazismo visava uma higienização da alma e do corpo alemães, via-se como uma intervenção médica e estética na Gestaltung, formatação, da nação, que se queria pura, ariana (cf. Lacoue-Labarthe e Nancy, 2002). Ou seja, devemos nos aproximar cum granu salis da teoria romântica da poesia e do homem modernos. Nem tudo nela é condizente com a idéia da temporalização crítica da utopia que apresentei aqui. O ovo da serpente do biopolítico, que culminou no nazismo, também se encontra no ninho romântico.

323

dO UTOPISMO IlUMINISTA AO (ANTI)UTOPISMO ROMâNTICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

COMPARATO, Vittor I. Utopía. Léxico de política. Trad. H. Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2006.

FABER, R. Novalis: Die Phantasie an die Macht. Stuttgart, 1970.

KOSELLECK, Reinhart. “Die Verzeitlichung der Utopie”. In: VOSSKAMP, Wilhelm (org.). Utopieforschung. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. I, 1985, p. 1-14.

KURZKE, Hermann. Romantik und Konservatismus. Das “politische” Werk Friedrich von Hardenbergs (Novalis) im Horizont seiner Wirkungsgeschichte. München: Wilhelm Fink Verlag, 1983.

LACOUE-LABARTHE, Philippe e NANCY, Jean-Luc. O mito nazista. Trad. M. Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002.

MÄHL, Hans-Joachim. “Der poetische Staat. Utopie und Utopiereflexion bei den Frühromantikern”. In: VOSSKAMP, Wilhelm (org.). Utopieforschung. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. III, 1985, p. 273-302.

MERCIER, Louis-Sébastien. L’an 2440, 1786.

NOVALIS, Schriften. Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs, org. por Hans-Joachim Mähl e R. Samuel. Stuttgart, vol. II, 1978.

NOVALIS, Schriften. Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs, org. por Hans-Joachim Mähl e R. Samuel. Stuttgart, vol. III, 1987.

SCHLEGEL, Friedrich. Literary Notebooks 1797-1801, ed. Hans Eichner. London: University of London/ The Athlone Press, 1957.

SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Friedrich Schlegel-Ausgabe, org. por E. Behler, Müchen/Paderborn/Wien, vol. XVIII, 1963.

SCHLEGEL, Friedrich. Kritische Friedrich Schlegel-Ausgabe, org. por E. Behler, Müchen/Paderborn/Wien, vol. II, 1967.

SZONDI, Peter. “Friedrich Schlegels Theorie der Dichtarten. Versuch einer Rekonstruktion auf Grund der Fragmente aus dem Nachlass”. In: Euphorion, LXIV, 1970, p. 181-99.

TROUSSON, Raymond. “Utopie, Geschichte, Fortschritt: Das Jahr 2440”. In: VOSSKAMP, Wilhelm (org.). Utopieforschung. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. I, 1985, p. 15-23.

VERNE, Jules. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1994.

WINTER, Michael. “Don Quijote und Frankenstein. Utopie als Utopiekritik: Zur Genese der negativen Utopie”. In: VOSSKAMP, Wilhelm (org.). Utopieforschung. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, vol. I, 1985, p. 86-112.

Zanzalá, uma utopia brasileiraCristina MeneguelloUniversidade Estadual de Campinas

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Resumo

Em 1928, o escritor socialista, poeta e jornalista Afonso Schmidt (1890-1964) iniciou a publicação, no jornal O Estado de São Paulo, de seu romance Zanzalá, no qual descrevia sua cidade natal na Serra do Mar, Cubatão, no ano de 2029. Esta enigmática narrativa, que alia uma utopia urbana futurística de amplas avenidas à uma guerra contra selvagens tribos vizinhas, foi posteriormente publicada como livro (1942). Mais bem conhecido como o autor de Colônia Cecília (1942), que descreve a experiência nacional de uma colônia anarquista entre os anos de 1889 e 1894, o legado de Schmidt, influente jornalista e literato popular, ainda está por ser amplamente estudado. Este artigo objetiva analisar os padrões utópicos presentes em Zanzalá assim como compreender a relação entre o trabalho de Schmidt e os utopismos brasileiros dos séculos XIX e XX.

Palavras-chave

Romance utópico, Afonso Schmidt, Cubatão, urbanismo modernista, autômatos.

Cristina Meneguello é mestre e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, na qual atualmente é docente nos cursos de História e de Arquitetura e Urbanismo, membro do U-TOPOS – Centro de Estudos sobre Utopias do Instituto de Estudos da Linguagem, e diretora associada do Museu Exploratório de Ciências da Unicamp. Realizou parte de seu doutorado na Universidade de Manchester (Reino Unido, 1994-95), pós-doutorado na Universidade de Veneza (IUAV) na Itália, em 2005, e na Universidade de Coimbra, Portugal, em 2008. Seu interesse primordial no tema da utopia recai nas conformações físicas, urbanas e espaciais das propostas utópicas, abrangendo tanto o caráter regular e normatizador das propostas que fazem coincidir a organização do espaço à organização social, quanto a atemporalidade histórica que preside as utopias enquanto gênero, inclusa a literatura de cunho social do século XIX. Atuando também nas áreas de cultura visual, preservação do patrimônio e história da arquitetura e urbanismo, Cristina Meneguello é autora de obras como Poeira de Estrelas: o cinema hollywoodiano na mídia brasileira das décadas de 40 e 50 (Campinas: Unicamp, 1996) e Da Ruína ao edifício: neogótico, reinterpretação e preservação do passado na Inglaterra vitoriana (São Paulo: Annablume, 2000), além de artigos e ensaios que compreendem as áreas de teoria da história, literatura e arquitetura.

326

CRISTINA MENEgUEllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Como seria a vida, no ano de 2029, de uma sociedade isolada na região da atual cidade de Cubatão, ao pé da serra do mar de São Paulo?

Cem anos antes, o romancista e jornalista Afonso Schmidt (Cubatão, 1890 – São Paulo, 1964) escreveu o peculiar romance intitulado Zanzalá, inicialmente publicado na forma de folhetim nas páginas do jornal O Estado de São Paulo, e mais tarde publicado na forma de livro, sobre o qual este breve artigo tratará, caracterizando-o como “romance utópico”.

Quando Schmidt o escreveu, já era jornalista conhecido; trabalhara em jornais do Rio e de São Paulo, publicara livros de poesias, editara jornais operários e viajara pela Europa. Zanzalá, no entanto, marca o momento em que ele passa a circular na grande imprensa e a conquistar um grande número de leitores, requisitos suficientes para ter sido relegado a segundo plano por muitas décadas nos estudos sobre literatura brasileira. Foot Hardman (1996) já apontou há algum tempo como as lentes de 1922, nas análises da literatura nacional, determinaram o foco de tudo o que ocorreu antes e depois, muitas vezes obliterando figuras que não atendem aos critérios auto-suficientes do modernismo literário.

Parece ser este o caso de Schmidt. Ainda que obras recentes tenham buscado dimensionar a sua atuação como romancista, sua obra ainda é tida como “literatura irregular”¹. A despeito de ondas de interesse no autor, sua obra ainda permanece pouco privilegiada nos estudos e biografias literárias; ora ele é visto como um outsider em relação às correntes modernistas, ora visto com desconfiança por ter uma circulação de vendas importante. Isso se dá especialmente a partir da década de 1920, quando o autor ostenta prestígio popular, ou seja, quando cessa a publicação em periódicos anarquistas ou santistas de pouca monta (como o pouco estudado Vésper) e passa a figurar nas páginas do jornalismo de empresas como Folha da Noite e Folha da Manhã, bem como de revistas como A Garoa, Vida Moderna e Arlequim (Paulillo, 2006, p. 21).

A publicação de seus romances na forma de folhetim no Estado de São Paulo, nas décadas de 1930 e 1940, o lançam definitivamente como um escritor popular, posição essa reforçada pela edições do Clube do Livro e da Saraiva (décadas de 1940 e 1950). Nessa crescente importância que Schmidt conquista, Zanzalá permanece de certo modo em segundo plano. O próprio percurso da publicação do romance ajuda a compreender porque essa se constituiu uma das obras menos célebres do autor, muito mais conhecido por Colônia Cecília (1940) ou A marcha (1941). Zanzalá surgiu inicialmente nas páginas do jornal O Estado de São Paulo, em 1928; depois no Suplemento de literatura do mesmo jornal, em 1936; em 1938, foi editado por uma desconhecida editora, Spes, que jamais colocou o livro à venda e por fim, apenas em 1949 (quando o autor já tinha certo reconhecimento, com prêmios literários obtidos no ano de 1942), o romance foi lançado pela Editora Clube do Livro, que, desde 1943, lançava um livro por mês, e o enviava a seus associados pela módica quantia de 7 cruzeiros.

Como toda narrativa definida pelo crivo da utopia, Zanzalá parte de algumas chaves de funcionamento clássicas: – o isolamento e o caráter

¹ Penso aqui em especial no livro Tradição e modernidade: Afonso Schimidt e a literatura paulista (1906/28), de Maria Célia Paulillo (2006), que estuda o período imediatamente anterior à escrita de Zanzalá.

327

zANzAlá, UMA UTOPIA BRASIlEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

insular em que vivem os habitantes de Zanzalá, num vale circundado por altíssimas montanhas; um mundo exterior ameaçador, na figura dos agressivos Caborés; ritos e tradições de uma religião quase mística, de um cristianismo primitivo com traços de espiritismo. Em Zanzalá, mercados centrais distribuem os alimentos e objetos úteis às necessidades diárias – o entreposto faz a distribuição de frutas e legumes, pois a carne estava abolida do consumo e a agricultura atingira altíssimo nível.

Também ali o artesanato da Idade Média renascera, ainda que executado por pequenas máquinas que tinham sua eficiência levada ao máximo; e a ciência é por demasia avançada: o meio de transporte padrão, um misto de navios e aviões, singra o espaço levando viajantes para o turismo em terras longínquas. Por fim, ainda reencontrando as chaves clássicas da narrativa utópica, os elementos inadaptáveis da sociedade eram levados a viver em uma espécie de jardim fechado onde, isolados, criminosos, bêbados, assassinos, ladrões e promíscuos tinham a seu dispor pipas de aguardente, seringas de morfina e vasos cheios de cocaína. Esses exilados, assim, encontravam bem depressa o seu fim.

Parece evidente que Afonso Schmidt conhecia e lera outras utopias ao criar a sua. Em Zanzalá, menciona H. G. Wells de A máquina do tempo (Time machine,1895) e Edward Bellamy de Daqui a cem anos, revendo o futuro (a tradução nacional de Looking backward, 1887). No entanto, Schmidt equivale escritores, poetas e visionários e os considera todos como determinados pelo mesmo impulso criador; Wells e Bellamy são equiparados ao “visionário” Bandarra (1550-1556) e até mesmo à controversa figura de Nostradamus. No início do século XX, uma série de idéias difusas e imprecisas, de imagens utópicas, estavam ao dispor dos romancistas².

Embora não reconhecida em parte alguma do romance por Schmidt, a literatura de difusão brasileira contava com uma tradição em ficções eivadas pela fantasia. Schmidt não necessitou “importar” o gênero de sua estada na Europa nos anos anteriores. A ficção utópica frequentava publicações ou as páginas de jornais, na forma de folhetim, e tinha público cativo. Se considerarmos, na literatura de fins do dezenove, as incursões de Joaquim Manoel de Macedo (Luneta mágica, 1896 ou O fim do mundo de 1902), antecedidas pelo romance histórico futurista Páginas da história do Brasil, escritas no ano 2000 ( Joaquim Felício dos Santos, 1872) ou por O Doutor Benignus, de Emílio Augusto Zaluar, de 1875; ainda, se incluirmos nessa lista imperfeita A rainha do Ignoto de Emília Freitas (1875) e A lanterna mágica de Coelho Neto (1899), é necessário dar-se conta de que existe uma tradição em contos e romances de caráter fantasioso, um “utopismo brasileiro”³. Ainda, nas décadas que antecederam imediatamente a Zanzalá, destaquem-se O reino de Kiato de Rodolpho Teóphilo (1922), o bastante célebre O Presidente negro de Monteiro Lobato, no mesmo ano, A Liga dos Planetas de Albino José Ferreira Coutinho (1923), A Amazônia misteriosa de Gastão Cruls (1925) e Há dez mil séculos de Enéas Lintz (1926). Contemporâneos à descrição da sociedade ao sopé da serra do Mar de Schmidt, o leitor podia encontrar Sua Excelência a Presidente da República do Anno 2500 (de Adalzira Bittencourt, 1929), os contos de Berilo Neves reunidos em A costela de Adão (1929), A

² Elizabeth M. Ginway, “A working model for analyzing third world science fiction: the case of Brazil”: ainda que focada especificamente nas décadas de 1960, 70 e 80 e em questões ligadas a gênero, a autora observa que os parâmetros explicativos gerais aplicados à ficção européia e anglo-americana frequentemente ignoram os mitos culturais de base, importantes para a compreensão da ficção nacional no Brasil, que incluem a idéia de grandeza da nação, da busca pela nacionalidade e do confronto cultura e natureza (2005, p. 467-468).

³ A expressão “utopismo brasileiro” é utilizada aqui na acepção de Alfredo Cordiviola, Ildney Cavalcanti et alli (2006).

328

CRISTINA MENEgUEllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

mulher e o diabo (1931) e Século XXI (1934), e os contos de Humberto de Campos (O monstro e outros contos, 1932 e Sombras que sofrem, 1934). Por fim, o texto de Schmidt dividiu espaço com a enigmática e consistente produção de Menotti Del Picchia, que incluiu República 3000 ou A filha do inca (1930), Kalum, o sangrento (1936) ou Kumunnká (1938) e com Viagem à aurora do mundo, de Érico Veríssimo (1939).

Liberto de uma equivocada excepcionalidade, Zanzalá pode então ser lido e compreendido em suas características específicas, das quais aqui três serão destacadas.

A primeira se refere à projeção espacial de Zanzalá, às suas soluções urbanas muito específicas, que dialogam com o urbanismo modernista das primeiras décadas do século XX; a segunda, à presença do autômato como elemento disruptor da ordem anteriormente estabelecida e à aposta de uma vida futura determinada pela simplicidade, como regra geral para a felicidade; a terceira, ao final trágico, precipitado não pelos autômatos, mas por tipos humanos incivilizados, contemporâneos à época da utopia, que fazem novamente a guerra irromper no espaço idealizado. Essa “utopia” termina distopicamente.

As narrativas utópicas possuem sempre um caráter espacial muito específico, e a descrição arquitetônica dos espaços públicos e coletivos está sempre em diálogo com os pressupostos urbanistas ideais do período em que as utopias se estabelecem. Há um componente utópico nos projetos urbanos, e uma proposta espacial clara nas utopias.

O vale de Zanzalá é um imenso funil, entre desfiladeiros, entrando serra adentro; ao centro, uma pirâmide verde com uma gota de luz ao topo, é um monumento construído pelos homens, a partir de um morro natural, para a comemoração da passagem do ano 2000. Edifícios de setenta andares se espalham pelos recessos da serra; entre eles circulam os meios de transporte, chamados de automóveis por falta de palavra melhor, levando em seu interior famílias vestidas com elegantes maillots.

As casas em Zanzalá são portáteis. Conforme narra o autor, os que desejam mudar-se não têm mais a fazer do que desmanchar a casa em que vivem, enrolar as paredes e o teto, de matéria seca, resistente e levíssima, fazer um feixe de madeiramento, acomodar tudo isso num veículo do serviço público e levar para onde interessar (p. 35 et seq.). No novo local, as casas produzidas de forma seriada serão montadas de forma simples, seguindo os parafusos numerados. Qualquer peça faltante pode ser fornecida pela prefeitura. Em Zanzalá, os grandes edifícios ficam reservados para repartições, museus, escolas e bibliotecas.

Para os leitores dos jornais das décadas de 1920 ou 1930, essas propostas devem ter causado uma impressão não muito diversa daquela dos leitores que compraram a obra editada pelo Círculo do Livro, em 1949. Naquele momento, vigorava o urbanismo de grandes avenidas, de perimetrais e radiais, que primava pela circulação dos meios de transporte como a possibilidade de funcionamento da boa cidade. Assim era nas propostas de Prestes Maia para a cidade de São Paulo, com seus dois sistemas básicos de irradiação da metrópole e da avenida "circular" e do

329

zANzAlá, UMA UTOPIA BRASIlEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

sistema "Y" (Leme, 1989; Toledo, 1996). O Plano de Avenidas, proposto por Prestes Maia e Ulhôa Cintra nas décadas de 1920 e 30 como projeto de sistema viário que estruturou o crescimento de São Paulo ao longo das décadas seguintes, combinava conceitos urbanos em circulação, como o sistema de radiais e perimetrais do alemão Josph Stübben, e o conceito de perímetro de irradiação de francês Eugene Hénard (Anelli, 2007). As belas perspectivas, plantas e cortes que ilustravam o Plano de Avenidas poderiam ter ilustrado as páginas do romance de Schmidt: uma cidade em que as avenidas-boulevares com passeios para os pedestres conviviam com o avanço dos automóveis. Ainda, a concepção urbana expressa no romance é de caráter marcadamente moderno ao adequar a imagem de uma cidade em rápida expansão horizontal, de circulação ágil entre o centro comercial e administrativo, locais de trabalho e áreas residenciais. Efetivado a partir de 1938, o ideário urbano do Plano de Avenidas circula nas ruas de Zanzalá.

Contudo, o “habitar moderno” extravasa o plano urbano e implica um ideal de vida prática. A busca pela praticidade da casa de moradia – o paradigma urbanístico da moradia mínima – em contraposição à importância cênica dada aos edifícios públicos, que coroam grande avenidas, são o signo da boa cidade. Enquanto, conforme adverte o romance, a Europa era um continente em ruínas pós-guerra, e apresentava-se como um grande museu a céu aberto, nasce nas Américas a possibilidade da cidade ideal e racional. Os princípios da cidade boa como saneada e livre das mazelas sociais, definem as práticas dos projetos urbanos modernistas no Brasil, primando pelo saneamento, controle de epidemias, regularização da circulação viária, reforma de portos e melhoramentos das áreas centrais.

Mas, contesta Schmidt, como conciliar a cabana rudimentar e o apartamento ultraconfortável? Em Zanzalá, as soluções de formas de cidade beiram a simplicidade. Como narra o autor, “a humanidade, fatigada da vida nos formigueiros humanos, com vestimentas impróprias, alimentação envenenadora e necessidade contínua de tônicos e excitantes manifestava uma grande saudade da vida simples e natural do seus antepassados” (p. 45). Assim, o signo da felicidade em Zanzalá é dado pela aposta na simplificação da vida.

O percurso até essa simplificação só foi vencido após a etapa da robotização do homem.

Este o segundo ponto aqui indicado: a presença dos robôs, dos autômatos, como os que precipitaram as mudanças violentas rumo ao futuro4. No primeiro capítulo de Zanzalá, sobre o século XX, o autor delineia como em 1926 as revistas da América do Norte haviam publicado uma informação curiosa de que as represas de abastecimento em Washington tinham zeladores que jamais dormiam nem se distraíam, posto que eram robôs. A exposição industrial em Nova York, no mesmo ano, apresentara esses bonecos de carne e osso que falavam e pareciam “um de nós”.

A partir daí, os autômatos foram, seguindo as palavras de Schmidt, a escolha óbvia do século XX para as guerras – "a guerra prática, a preço conveniente". Resistentes aos gases e aos micróbios, fáceis de consertar, esses novos soldados transformariam os hospitais de campanha em depósitos de

4 O tema dos autômatos estava presente em obras influentes como O homem de areia (1816) de Hoffman; Frankenstein (1818), de Mary Shelley ou The Bell-Tower (1855) , de Herman Melville; contemporâneo ao autor, o autômato já era tema real, por exemplo, do cinema. Na década de 1920, o tema dos autômatos ganhou força com o autor tcheco Karel Kapek, que lançou em 1921 sua peça teatral R.U.R (Rossum's Universal Robots). Nela, foi criada a própria palavra “robô” [do tcheco “robota”, significando “trabalho”]. Em 1938, estreou na BBC o curta metragem que adaptava a peça para a TV. Agradeço a Juliana Lopes a indicação de R.U.R..

330

CRISTINA MENEgUEllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

peças e caixas com braços e pernas. “O soldado que não pensa, não sente, não come, se cura em algumas horas, não deixa viúvas nem filhos (p. 18). Em tempos de paz, esses homens de ferro foram iniciados em profissões subalternas, como vendedores de jornais, engraxates, garçons, porteiros etc. Os autômatos femininos tinham formas tão perfeitas que por mais de uma vez iludiram os frequentadores dos bares paulistanos, que as tomavam por belas humanas. Com a intensificação de sua utilização, os autômatos vieram a substituir todos os trabalhadores, banindo o antigo proletariado dos campos e das cidades, fazendo-os ocupar, na escala social, um lugar entre bandoleiros e mendigos, até que, aos milhões, esfarrapados e famintos, mudaram-se para o Oriente.

No romance, o século XX testemunhou, ainda, uma batalha final homens versus autômatos, e a lenta retomada das profissões por parte dos humanos. Em todo esse confronto, sobressai o aprendizado da necessidade da vida simples. Após sua quase destruição, coube à humanidade reinventar-se, e chegar ao estado de simplicidade atravessada por progressos da ciência – como em Zanzalá – mas sem a preponderância ou o domínio da ciência e da tecnologia. O retorno aos temas humanísticos, um tema caro a Schmidt (que já manifestara esse pendor ao criar o equivalente brasileiro ao manifesto do grupo socialista Clarté, como veremos adiante), faz com que, ao falar de seu livro na edição de 1949, tenha apontado que o século XX estava sendo o século da música e o seguinte, o XXI, seria com certeza o século da simplicidade.

“Vivemos saturados de música. O cinema e o rádio levam-na por toda parte. Além da música que se ouve, diante dos aparelhos, há a música que não se ouve e que, nas ondas hertzianas, dia e noite, atravessa o nosso ser, agindo nos planos mais elevados. E cada homem, pela sua constituição, é uma estação radioemissora e receptora”. As mesmas ondas de rádio reabastecem os aeroplanos em pleno céu na Zanzalá do futuro, e fazem as suas máquinas funcionarem. Schmidt parece ter inventado um novo princípio científico, invisível, eficiente, com o qual se escusava de qualquer argumentação cientificamente complexa, para a qual não parecia estar preparado. Outrossim, ciência e tecnologia postas sob controle (como no desmantelamento dos autômatos) permitiam o florescimento do que realmente definia o homem no futuro – a arte, a dança, a contemplação da natureza.

O terceiro e último ponto a ser salientado aqui é a forma distópica como o romance chega a seu desfecho. Os habitantes de Zanzalá têm o seu “outro”. Aqui, retomamos um tema clássico das utopias da transição entre o século XIX e o XX, para o qual o próprio H.G. Wells já havia chamado a atenção: há um outro, selvagem, aterrador, que vive perigosamente ao redor das sociedades felizes. Aguarda o momento certo para predá-la e, quiçá, destruí-la. Em Zanzalá, esse outro são os caborés, povo avesso à civilização, que vive em sobrados de concreto ou cimento armado a que chamam apartamentos. Eles praticam o tiro ao alvo, contam moedas, são anticristãos e buscam uma vida complexa, antiquada, em contraste à simplicidade regente. Eles farão uma expedição à Zanzalá para roubar e

331

zANzAlá, UMA UTOPIA BRASIlEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

matar o único exemplar de cavalo que os pacíficos habitantes possuíam em seu zoológico. O animal, amado pelas crianças, será devorado pelos caborés numa orgia de sangue. O episódio marcará o início da guerra que destruirá Zanzalá, e que será – por mais cruel que pareça a narratriva - de intenso interesse para turistas que habitam o mundo que circunda Zanzalá, e que seguirão para aquela região em aviões lotados partindo do Rio de Janeiro ou de Montevideo.

Os caborés, assim, somos todos nós: carnívoros, avaros, vivendo um século em atraso, ao redor de Zanzalá. A descrição da guerra – não em batalhas isoladas, mas como espetáculo único e contínuo – é um dos pontos altos do romance. “A notícia (...) encheu de curiosidade o país inteiro. (...) É um episódio que lembra ao vivo o fim das civilizações que precederam a nossa. Organizam-se neste momento, por toda parte, imensas caravanas para assisti-la. O governo declarou feriado por uma semana (...) Nada menos de 800 universidades seguem neste momento para o Zanzalá, a fim de que seus alunos possam assistir “in loco” a esse pitoresco espetáculo a que os antigos chamavam de guerra. Trata-se de fazer o possível para que a insurreição não termine até amanhã (...) e que essas cenas características não se interrompam tão depressa. O continente está com inveja do Zanzalá, terra feliz que goza neste momento de um espetáculo que o homem moderno (...) não mais sonhava assistir” (p. 96).

Nos dias de confronto, os entrepostos comerciais de artes registram um retirada recorde de milhares de máquinas fotográficas, papel para filmes, rolos de material para registros cinematográficos. Recém saído da experiência da Grande Guerra, e do jornalismo fotográfico em formato de testemunho, Schmidt retoma o tema da destruição da civilização, mas com traços de mass-media. Zanzalá finda numa guerra-espetáculo.

O caráter lacunar das reflexões aqui apresentadas permite, nesse momento, uma abertura em Y, aos moldes das avenidas modernas, para duas considerações finais distintas.

A primeira conecta-se ao final distópico de Zanzalá no ano 2029, e propõe uma violenta torção rumo a uma projeção do futuro-passado que se detém na Cubatão de setembro de 1980, uma Cubatão que Afonso Schmidt não viveu para presenciar, mas que a nós, historiadores, cabe relembrar. O futuro de Zanzalá, em nosso passado, é a Cubatão que na década de 1980 ficou conhecida como Vale da Morte.

Conforme notícia que lançou o problema como um tema de alcance internacional, o jornal The New York Times abriu sua edição de 19 de setembro de 1980 chamando a atenção para a intensa poluição que atravessava a cidade, e os aterradores casos então comuns de natimortos ou da morte de recém-nascidos, parte deles com deformidades, em níveis muito superiores a qualquer outro local do país.

Cubatão era, na década de 1980, um dos maiores centros petroquímicos da América Latina e uma das comunidades mais poluídas do mundo. Ainda hoje consta nas estatísticas internacionais entre as 35 cidades mais poluídas do planeta. Atravessada por quatro rios mortos e debaixo de uma névoa

332

CRISTINA MENEgUEllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

venenosa, alimentada, diariamente, por 1.000 toneladas de gases tóxicos, Cubatão estava ladeada por 24 grandes indústrias, tais como Companhia Siderúrgica Paulista, Dow Química, DuPont e Union Carbide. O principal envenenador, o dióxido de enxofre, saía na proporção de 4 mil toneladas por mês na atmosfera da cidade. 40 de cada 1.000 crianças nascidas morriam em uma semana, e a grande maioria apresentava malformações congênitas. Um instrumento medidor de poluição, instalado pelas autoridades ainda na década de 1970, antes de quebrar após um ano e meio de uso, revelou que a população estava sendo "molhada" por uma constante chuva de 1.200 partículas por metro quadrado, duas vezes maior do que o valor considerado pela Organização Mundial de Saúde como "excesso mortal". Os números provavam, estatisticamente, que essa atmosfera não poderia favorecer a vida humana. E, na época, viviam em Cubatão 15 mil pessoas.

A descrição dos jornalistas empresta voz à distopia: “Um dos rios mortos de Cubatão está coberto por ondas de espuma de detergentes; um outro fervilha sob o efeito de depósitos químicos e um terceiro é tão quente que seu curso pode ser seguido pela coluna de vapores que se elevam de fétidas áreas de refugos. Peixes, recolhidos nas proximidades do mar, foram encontrados secos e com deformações ósseas, por terem ingerido mercúrio (...). A fumaça que sobe das fileiras de chaminés, azulada, amarela, vermelha, negra e branca, dá ao ar um tom amarelo-cinzento, invadindo as narinas com uma mistura doentia de odores acre. Não há pássaros, borboletas ou insetos de qualquer espécie e, quando chove, especialmente em dias sem vento, as gotas queimam a pele”5. Schmidt não poderia ter concebido tal pesadelo de futuro real.

A segunda consideração final implica a percepção de que, apesar de alguns bons trabalhos esparsos, a literatura de ficção brasileira de fins de século XIX e princípios do XX ainda necessita de pesquisa sistemática e detalhada, que produza novas chaves explicativas para a produção do conto e do romance de traços utópicos, em sua dupla ligação com a experiência socialista e anarquista e com as propostas de nação e brasilidade das décadas de 1920, 1930 e 1940.

O impulso utópico não aclarado em Zanzalá, e que vai ser reencontrado por exemplo em Colônia Cecília, pode residir na atuação de Schmidt, ainda pouco estudada, como militante de esquerda, como membro do partido comunista a partir de 1920 bem como junto ao grupo de esquerda Clarté, que nasce a partir da idéia de uma pacifista “Internacional do Pensamento” . O Clarté, movido pela experiência da Grande Guerra, foi lançado em 1919 por Henri Barbusse, Raymond Lefebvre e Paul Vaillant-Couturier entre outros, e se espalhou por vários países europeus (muitos dos quais se afastaram quando o grupo francês fundador se aproximou da Terceira Internacional a partir da década de 1920).

Na América do Sul, houve influência direta sobre o grupo argentino, que publicou a revista Claridad entre 1921 e 1941 e cujos membros eram em grande parte associados ao partido socialista ou ativistas de esquerda de várias correntes; e sobre o grupo brasileiro, por vezes mencionado como precursor do partido comunista.

5 Tradução de Carlos E. Winther para a reportagem do New York Times (1980).

6 Sou grata a Foot Hardman pela indicação da ligação de Schmidt com o Grupo Clarté, e a Michael Hall pelas indicações posteriores de leitura.

333

zANzAlá, UMA UTOPIA BRASIlEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Afonso Schmidt foi o responsável pelo manifesto do Clarté no Brasil – primeiramente nomeado como grupo Zumbi – reverberando as idéias de Barbusse que tinham grande ida junto à imprensa anarquista e revolucionária. Este “comunismo intelectual” aparentemente não caminhou muito além dos manifestos em si, mas sobre o grupo, em depoimento cedido a Mario da Silva Brito em 1964 e citado por Foot Hardman (2002), Schmidt identificava como companheiros do grupo Edgar Leuenroth, Maximiliano Ricardo, Silvio Floreal, Andrade Cadete, Gigi Damiani, Astrogildo Pereira, Everardo Dias e Raymundo Reis, grande parte evidentemente ligada ao movimento operário, ao sindicalismo e ao anarquismo7. Certamente, a idéia de um socialismo humanista e o trauma da experiência da Guerra em Zanzalá ganham novos contornos a partir dessas afirmações.

Quando Schmidt escreveu este romance utópico ao raiar do século XX, escreveu: “As profecias têm uma utilidade: servem, no futuro, para estudar as aspirações populares da época em que foram escritas. Nada mais. Certo disso, compus estas páginas pensando no bom sorriso dos leitores de amanhã”. Estas palavras têm um travo amargo, ou são de uma zombaria tranquila?

Mais à frente, Schmidt disse de seu Zanzalá: “Felizmente para todos nós, esta novela ficará perdida no mar de escritos que não tiveram a ventura de sobreviver à sua época”. Este breve artigo espera, tão somente, ter contradito essa profecia.

Bibliografia

ANELLI, Renato. “Redes de mobilidade e urbanismo em São Paulo”. In: Arquitextos, n. 82, março 2007. Vitruvius [www.vitruvius.com.br]

BARNSLEY, Godofredo Emerson. São Paulo no anno 2000 ou Regeneração Nacional: Chronica da Sociedade Brasileira Futura. São Paulo: Typ. Brazi de Rothschild, 1909 (1ª ed.).

BELLAMY, Edward. Daqui a cem anos: revendo o futuro [1887]. Trad. Myriam Campello. Rio de Janeiro: Record, 1960.

BITTENCOURT, Adalzira. Sua Excelência a Presidente da República do Anno 2500. [1929]

BOURGUIGNON, Marco A. M.. “Catálogo de Ficção Científica Brasileira”. In: Scarium. Disponível em: http://www.scarium.com.br/catalogo/catalogo.html. Acesso: setembro 2009.

CAMPOS, Humberto de. O monstro e outros contos [1932]. Rio de Janeiro: W.M. Jackson Inc. Editores, 1947.

CAMPOS, Humberto de. Sombras que sofrem [1934]. Rio de Janeiro: W.M. Jackson Inc. Editores, 1945.

KAPEK, Karel. R.U.R. (Rossum's Universal Robots) [1921]. London: Penguin Books, 2004.

7 Foot Hardman (2002) observou também o realismo socialista de Schmidt, em especial em seus poemas “Pequenos Varredores”, “Jardins Fechados” e “Vida Simples”. A publicação do Clarté circulou entre meados de 1921 e janeiro de 1922. O Manifesto pode ser encontrado em Carone (1979) à página 333. Ver também “Os ideais da Clarté”, Clarté no. 1, setembro de 1921, p. 13-15, reproduzido em Pinheiro e Hall (1979) às páginas 247-249.

334

CRISTINA MENEgUEllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

CARONE, E. Movimento operário no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1979.

CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil (1875 – 1950). Belo Horizonte: Editora da UGMG, 2003

CHOAY, Françoise. O urbanismo, utopias e realidade, uma antologia. São Paulo: Perspectiva: São Paulo, 1985.

CORDIVIOLA, Alfredo; SANTOS, Derivaldo; CAVALCANTI, Ildney (Orgs.). Fábulas da iminência – ensaios sobre literatura e utopia. Recife: PPL/UFPE, 2006.

COUTINHO, Albino José Ferreira. A Liga dos Planetas. Porto Alegre: Livraria Americana, 1923 (1ª ed.).

CRULS, Gastão. A Amazônia misteriosa [1925]. São Paulo: Editora Atual, 1957.

DEL PICCHIA, Menotti. República 3000 ou A filha do inca [1930]. São Paulo: Editora Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo - Livraria Martins Editora, 1982.

DEL PICCHIA, Menotti. Kalum, o sangrento [1936]. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948.

DEL PICCHIA, Menotti. Cummunká. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946 (1ª ed.).

FREITAS, Emília. A rainha do Ignoto [1899]. Florianópolis: Editora Mulheres/Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003.

GINWAY, Elizabeth M. “A Working Model for Analyzing Third World Science Fiction: The Case of Brazil”. In: Science Fiction Studies, Vol. 32, No. 3 (Nov., 2005).

GINWAY, Elizabeth. Brazilian science fiction: cultural myths and nationhood in the land of the future. Lewisburg: Bucknell University Press, 2004.

HALL, Michael M. e PINHEIRO, Paulo Sérgio. “The Clarté Group in Brazil”. In: Le mouvement social, no. 111, (Apr. - Jun., 1980).

HARDMAN, Francisco. Foot. “Antigos Modernistas”. In: NOVAES, Adauto. Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

HARDMAN, Francisco. Foot. Nem pátria nem patrão. São Paulo: Unesp, 2002.

LEME, Maria Cristina S. (org.). Urbanismo no Brasil (1895-1965). São Paulo: Studio Nobel, FAU / USP, FUPAM, 1999.

LIMA, VERO DE. A Destruição do Mundo. s/l. Cacique Ltda, 1936 (1ª ed.).

LINTZ, Enéas (Thomaz de Alencar). Há Dez Mil Séculos. Rio de Janeiro: Benjamin Costallat & Miccolis, Editores 1926 (1ª ed.).

LOBATO, Monteiro. O Presidente Negro ou O choque das Raças: Romance americano de 2228 [1922]. São Paulo: Brasiliense,1964.

MACEDO, Joaquim Manoel de. Luneta mágica. São Paulo: Iluminuras, 2007 [1896]

335

zANzAlá, UMA UTOPIA BRASIlEIRA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

MACEDO, Joaquim Manoel de. O fim do mundo [1902]. In: Os Romances da Semana. Rio de Janeiro: F. Brigiuet e Cia, 1937.

MAIA, Francisco Prestes & CINTRA, João Florence de Ulhôa: “Um problema actual: Os grandes melhoramentos de São Paulo.” In: Boletim do Instituto de Engenharia nº 26/27 (vol. VI) outubro de 1924 a março de 1925; nº 28 (vol. VI) março a junho de 1925; nº 29 (vol. VI) julho a outubro de 1925; e nº 31 (vol. VI) março a junho de 1926.

MAIA, Prestes. Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo. São Paulo: PMSP, 1930.

MAIA, Prestes. Os Melhoramentos de São Paulo. São Paulo: PMSP, 1945.

MARTINS, Epaminondas. O outro mundo. s/l. Editora Calvino Filho, 1934 (1ª ed.).

MENEGUELLO, Cristina. “A cidade industrial e seu reverso: as comunidades utópicas da Inglaterra vitoriana”. In: História Questões & Debates, vol. 35, 2001.

MENEGUELLO, Cristina. Da Ruína ao Edifício. São Paulo: Annablume, 2008.

MORAIS, José Manuel (Ed.). O Atlântico tem duas margens: antologia da novíssima ficção científica portuguesa e brasileira. Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

NEVES, Berilo. A Costela de Adão (colêtanea) [1929]. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 1936.

NEVES, Berilo. A mulher e o diabo (coletânea) [1931]. Rio de Janeiro. Ed. A Noite, 1947.

NEVES, Berilo. O Século XXI. São Paulo. Editora Civilização Brasileira, 1934 (1ª ed.).

NETO, Coelho. Lanterna Mágica. Rio de Janeiro: Magalhães, 1899 (1ª ed.).

NEW YORK TIMES. “New Menace in Brazil´s Valley of Death Strikes at Unborn” 19/09/1980 (Tradução de Carlos E. Winther).

PAULILLO, Maria Célia Rua de Almeida. Tradição e modernidade: Afonso Schimidt e a literatura paulista (1906/28). São Paulo: Annablume, 2006.

PEREIRA, Fabiana da Camara Gonçalves. Fantástica margem: o cânone e a ficção científica brasileira. Dissertação de Mestrado. PUC-Rio, Rio deJaneiro, 2005.

PINHEIRO, Paulo Sérgio e HALL. Michael M. (eds.). A classe operária no Brasil 1889-1930: documentos. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1979, vol. I. p. 247-249.

SANTOS, Joaquim Felício dos. Páginas da História do Brasil, escritas no ano 2000 [1868 – 72]. In: Revista da Biblioteca Nacional, 6/junho/1957.

SCHMIDT, Afonso F. A Marcha. Romance da abolição [1940]. São Paulo: Editora Clube do Livro, 1945.

336

CRISTINA MENEgUEllO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

SCHMIDT, Afonso F. Colônia Cecília [1941]. São Paulo: Editora Anchieta, 1942.

SCHMIDT, Afonso F. Zanzalá e Reino do Céu. São Paulo: Editora Clube do Livro, 1949 (1ª ed.).

TEÓPHILO, Rodolfo. O reino de Kiato (no paiz da verdade). São Paulo: Monteiro Lobato & co, 1922. (1ª ed.).

TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996.

WELLS, H.G. A máquina do tempo [1895]. Trad. Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1972.

VERÍSSIMO, Érico. Viagem à aurora do mundo [1939]. In: Obras completas de Érico Veríssimo. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

ZALUAR, Emílio Augusto. O Doutor Benignus [1875]. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994

Resumo

A partir de uma leitura de algumas das Lettres chinoises, indiennes et tartares à Monsieur Paw, par un benedictin, avec plusieurs autres pièces interesantes, de Voltaire, publicadas em Londres em 1776, pretende-se analisar em que medida o autor traça um retrato da sociedade em que vivia, criticando-a pelos olhares que lança a outras culturas (por exemplo, a carta V, que versa sobre as leis e os costumes da China), de modo a concebê-las (ou não) como um modelo (utópico?) em contraposição à França do século XVIII.

Palavras-chave

Utopia, Voltaire, França do XVIII.

Emerson Tin possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), mestrado em Teoria e História Literária pelo Instituto de Estudos da Lin-guagem da UNICAMP (2003), com a dissertação intitulada Familiar del universo: arte epistolar e lugar-comum nas Cartas Familiares (1664), de D. Francisco Manuel de Melo, e doutorado em Teoria e História Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP (2007), com a tese intitulada Em busca do Lobato das cartas: a construção da imagem de Monteiro Lobato diante de seus destinatários. Organizou o livro A arte de escrever cartas (Campinas, Unicamp, 2005). Publicou, jun-tamente com Marisa Lajolo, a coletânea de cartões-postas de Monteiro Lobato à sua noiva Quando o carteiro chegou... Cartões-postais a Purezinha São Paulo, Editora Moderna, 2006) e em 2007, uma Antologia de poesia barroca brasileira, em co-edição da Editora Lazuli e da Companhia Editora Nacional. Atualmente é Professor Assistente III das Faculdades de Campinas (FACAMP).

O eu e o outro nas Lettres chinoises, de Voltaire Emerson TinFaculdades de Campinas

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

338

EMERSON TIN

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Considerando que faço parte de uma mesa intitulada “Desdobramentos do gênero utópico”, sinto-me à vontade para não precisar justificar, em profundidade, a presença aqui de minhas breves reflexões sobre

as Lettres chinoises, indiennes et tartares à Monsieur Paw, par un benedictin, avec plusieurs autres pièces interessantes. As Cartas chinesas – tratarei aqui apenas de algumas das oito primeiras cartas do volume, justamente as que têm a China como o seu objeto principal – não são, certamente, um exemplar do gênero utópico. Contudo, posso dizer, sem medo de errar, que Voltaire, aqui travestido como beneditino, bebeu da mesma fonte que daria origem a toda voga de obras epistolares que o século XVIII viu surgir na esteira das Cartas persas de Montesquieu.

Nesse sentido, o objetivo desta comunicação é traçar alguns pontos de contato que aproximam as Cartas chinesas do gênero utópico. Como bem expuseram os editores da Morus – Utopia e Renascimento,

Tratando de um país longínquo, a utopia possibilita o diálogo com o mundo do viajante, permitindo, através da comparação, a crítica da situação social em seu país de origem: estabelece-se um olhar que coteja a realidade e a obra literária. O viajante tem, na sua essência, uma função mediadora entre dois mundos, e seu depoimento, que é em si a utopia, põe realidade e ficção face a face, esta espelhando aquela, em cujo reflexo aparecem correções, modificações e, especialmente, inversões. A categoria paradigmática da inversão é aqui fundamental (Berriel et al. 2006, p. 6).

Ou seja, pode-se dizer que há, no gênero utópico, uma construção espelhada, em que o olhar do viajante se projeta sobre o que é observado – o outro – sempre tendo como termo de comparação o seu país de origem – a si próprio. Nesse mesmo sentido, e a propósito das Cartas persas de Montesquieu, disse Starobinski:

O primeiro ato da inteligência é libertador. Conhecer, antes de mais nada, é libertar-se daquilo que impede de conhecer, é considerar nulos os preconceitos, as certezas tradicionais, os prestígios. O movimento negador da crítica é libertador; o que importa, em primeiro lugar, é arrancar as máscaras, cobrir de ridículo os fanatismos e as superstições. É o momento da ironia e das Cartas persas. O assombro de Rica e Uzbek obriga os franceses a espantarem-se por sua vez. Esses usos, esses costumes e essas crenças parecem insensatas ao visitante oriental. Mas qual é, para nós, seu sentido e sua razão? É sólido o seu fundamento? A relatividade do sentido e do não-sentido salta à nossa vista. E tomar consciência dessa relatividade é romper as nossas cadeias e deixar de sermos tolos. O possível abre-se para nós: o que está disposto assim poderia ser de outro jeito. Tudo o que respeitamos, tudo o que apelava para a nossa fé, torna-se objeto de um conhecimento separado e, a partir desse momento, livre. O preconceito que nos sujeitava revelou sua verdadeira natureza: imaginário, ou seja, nulo para a razão. Poderemos enfim julgar claramente: o dia começa, acordamos, e os velhos sonhos não escurecem mais a nossa vista. Tendo separado de nós mesmos o que há de mais claro, mais livre e mais inalterável, seremos esse olhar, nada mais que esse olhar, para nos fazermos espectadores do que foi nossa pesada gravidade, nossa vaidosa e tola futilidade. Uma reflexão torna-se possível,

339

O EU E O OUTRO NAS lettres cHinoises, dE vOlTAIRE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

em que a nossa civilização se vê de longe, como se de repente se tivesse tornado estranha a si mesma. Tendo descoberto que as outras civilizações e as outras crenças são, no mesmo grau que a nossa, legítimas, esta tornou-se, por sua vez, outra para si mesma. Não pode mais viver tranquilamente sua certeza tradicional, desde que soube que a certeza das outras não está nem mais nem menos bem fundada. Verdade da qual uma das primeiras consequências é convidar à tolerância (1990, p. 57-60).

Não seria essa “reflexão [...] em que a nossa civilização se vê de longe, como se de repente se tivesse tornado estranha a si mesma” uma possível maneira de caracterizarmos o gênero utópico e seus desdobramentos? Podemos dizer que não é muito diferente disso o enredo construído por Voltaire em sua obra, embora já não tenhamos aqui uma viagem efetivamente realizada. O beneditino, em sua primeira carta enviada ao Sr. Paw, rememora um diálogo que manteve com o Sr. Gervais, dono de um bar na cidade de Romorantin (então capital da Sologne), próxima ao convento de onde provém nosso narrador, sobre o poema Elogio sobre a cidade de Moukden e seus entornos, de autoria do imperador chinês Qianlong (1711-1799), traduzido para o francês pelo jesuíta Jean-Joseph-Marie Amiot (1718-1793) e publicado em Paris em 1770, diálogo que serve de estopim para a série de cartas sobre o longínquo país do Oriente. Assim, é bastante importante lermos o início da primeira carta:

Tomava café no estabelecimento do Sr. Gervais, na cidade de Romorantin, vizinha de meu convento; encontrei sobre seu balcão um pacote de brochuras intitulado: Moukden por Qianlong. “O quê!”, disse-lhe eu, “vós vendeis também livros?” “Sim, meu Reverendo Padre; mas não pude me desfazer desse aí, repeliram-no como se fosse uma comédia nova” “É possível, Sr. Gervais, que alguém seja tão bárbaro numa capital onde há um livreiro e trinta donos de botequim? Sabeis vós quem é esse Qianlong que negligenciam tanto em vosso estabelecimento? Sabei que é o Imperador da China e da Tartária, o Soberano de um país seis vezes maior que a França, seis vezes mais populoso e seis vezes mais rico. Se esse grande Imperador sabe o pouco caso que se faz de seus versos em nossa cidade (como o saberá sem dúvida, pois tudo se sabe), não duvideis de que, em sua justa cólera, ele nos expeça algum exército de quinhentos mil homens a vossos subúrbios (Voltaire, 1776, p. 1).

No início do texto, a comparação entre a China – o país para o qual os olhos do viajante imaginário se voltam – e a França – o seu país de origem – já se estabelece.

Mais adiante, nessa mesma carta, ainda tecendo considerações sobre o poema de Qianlong, o beneditino afirma:

Eis um Imperador mais poderoso que Augusto, mais reverenciado, mais ocupado, que escreve apenas para a instrução e para a felicidade do gênero humano. Sua conduta responde a seus versos; ele expulsou os jesuítas e manteve dessa Companhia dois ou três matemáticos; entretanto, por mais caro que ele deva nos ser, ninguém falou seriamente de seu poema, ninguém o leu e é em vão que o Sr. de Guignes se tenha dado ao trabalho de o

340

EMERSON TIN

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

juntar à história interessante de Gog e de Magog ou dos hunos! Vejo que em nosso pequeno canto do Ocidente nós amamos apenas a ópera cômica e as brochuras (p. 3).

O que se vê aqui? Não é de algum modo o enaltecimento do outro por meio da crítica do que nos é próprio? Enaltecimento que avança para o elogio da modéstia do soberano chinês:

Qianlong, o tártaro-chinês, é o primeiro belo espírito que fez versos em língua tártara. [...]

Qianlong tentou essa grande empresa; ele nela teve êxito e, entretanto, ele dela fala com tanta modéstia quanto nossos pequenos poetas ostentam orgulho e impertinência. “A aplicação e os esforços suprirão”, diz ele, “os talentos que me faltam”. Essa humildade não é tocante em um poeta que pode ordenar que seja admirado sob pena de se perder a vida?

Sua Majestade Imperial se exprime sobre si mesmo com tanta modéstia quanto sobre seus versos; e é isso o que não vi ainda entre nós. Vede como, em lugar de dizer nós fizemos esses versos com nossa certa ciência¹, plena potência e autoridade imperial, ele diz, na p. 34 do prólogo, ou do prefácio do Imperador, “o Império, tendo sido transmitido a minha pequena pessoa, eu não devo nada esquecer para me esforçar de modo a fazer reviver a virtude de meus ancestrais; mas eu temo, com razão, jamais os poder igualar” (p. 4-5).

Os juízos sobre o poema de Qianlong se estendem para a segunda carta, em que o beneditino apresenta as reflexões de Don Ruinard, seu confrade da ordem beneditina, sobre Qianlong. E é aqui, nessa segunda carta, que encontramos o tema da viagem exposto pelo narrador beneditino:

Tenho uma violenta paixão por me instruir em minha juventude; diz-se que isso serve muito quando se é velho. Se eu pudesse viajar, eu faria a volta ao mundo. Eu gostaria de me tornar Mandarim na China como os jesuítas; mas os beneditinos dizem que estão muito bem em suas casas para delas sair. Não podendo então alçar esse vôo, eu leio todas as viagens que me caem nas mãos e a leitura faz sobre mim esse efeito tão comum de me lançar em contínuas incertezas (p. 9).

Se a viagem não pode ser empreendida, que seja feita por meio dos livros. E é por meio deles que o beneditino leva adiante a exaltação da longínqua China e, no avesso do texto, a crítica da sua França de origem. É o que se vê, por exemplo, na quinta carta, que versa “sobre as leis e os costumes da China”:

Tenho dificuldade de me proibir um vivo entusiasmo quando contemplo cento e cinquenta milhões de homens governados por treze mil e seiscentos magistrados divididos em diferentes cortes todas subordinadas a seis cortes superiores, as quais estão elas mesmas sob a inspeção de uma corte suprema. Isso me dá não sei qual idéia dos nove coros de anjos de Santo Tomás de Aquino.

O que me agrada em todas essas cortes chinesas é que nenhuma pode fazer executar à morte o mais vil cidadão na extremidade do Império sem que o

¹ “De notre certaine science”, no original, “era a fórmula das ordenações do rei, na França, antes de 1789” (nota da edição das Oeuvres de Voltaire, 1832, tome XLVIII, Mélanges, Tome XII, p. 190.

341

O EU E O OUTRO NAS lettres cHinoises, dE vOlTAIRE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

processo tenha sido examinado três vezes pelo grande Conselho, ao qual preside o próprio Imperador. Se eu conhecesse da China apenas essa única lei, eu diria: eis o povo mais justo e o mais humano do universo (p. 27-28).

Nada mais diferente da justiça francesa – e, poderíamos dizer, de forma geral, da européia – do século XVIII. Basta lembrarmos da cruel e sangrenta execução de Damiens, levada a cabo em 2 de março de 1757, lembrada por Michel Foucault no início de seu Vigiar e punir, para entendermos o fascínio do beneditino com a justiça chinesa. Ou então a discussão aberta pelo constituinte Jacques-Guillaume Thouret (1746-1794) a 24 de março de 1790 sobre “a nova organização do poder judiciário”. Poder que, como lembra Foucault,

em sua opinião, está “desnaturado” de três maneiras na França. Por uma apropriação privada: vendem-se os ofícios do juiz; transmitem-se por herança; têm valor comercial e a justiça feita é, por isso, onerosa. Por uma confusão entre dois tipos de poder: o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria lei. Enfim pela existência de toda uma série de privilégios que tornam incerto o exercício da justiça: há tribunais, processos, partes litigantes, até delitos que são “privilegiados” e se situam fora do direito comum (1994, p. 73).

Ou ainda as considerações do Marquês de Beccaria (1738-1794) sobre como deveriam ser os julgamentos:

Os julgamentos devem ser públicos; também o devem ser as provas do crime; e a opinião, que é talvez o único liame das sociedades, porá freio à violência e às paixões. O povo dirá: “Nós não somos escravos, porém protegidos pelas leis”. Tal sentimento de segurança, que inspira a coragem, é o mesmo que um tributo para o soberano que tem na sua devida conta os seus legítimos interesses (1983, p. 24).

Disso podemos concluir que nem os julgamentos nem as provas do crime, na época de Beccaria e de Voltaire, eram públicos, e a violência e as paixões dominavam a justiça. É justamente a essa situação que o beneditino se opõe em sua carta ao enaltecer a justiça chinesa. Contudo, é absolutamente necessário notar que o que importa não é saber se, efetivamente, a justiça chinesa funcionava de tal forma, mas sim que essa descrição serve de contraexemplo ao que se vivia na França de então.

Mas a admiração da China não se restringe apenas a elogios. O beneditino censura-lhe alguns dos costumes. Após observar que, apesar de terem música, os chineses “não sabem anotar uma ária, ainda menos cantar em partes”, observa que

eles fizeram obras de uma mecânica prodigiosa, e eles ignoravam as matemáticas. Eles observavam, eles calculavam os eclipses, mas os elementos da astronomia lhes eram desconhecidos.

Seus grandes progressos antigos e sua ignorância presente fazem um contraste do qual é difícil de encontrar a razão. Eu sempre pensei que seu respeito pelos seus ancestrais, que é entre eles uma espécie de religião, era uma paralisia que os impedia de caminhar na carreira das ciências. Eles

342

EMERSON TIN

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

consideram seus antepassados como nós por muito tempo consideramos Aristóteles; nossa submissão a Aristóteles (que não era, todavia, um de nossos ancestrais) foi tão supersticiosa, que mesmo no penúltimo século o Parlamento de Paris proibia, sob pena de morte, que se fosse em Física de uma opinião diferente desse grego de Estagira². Não se ameaça na China de fazer prender os jovens letrados que inventarem novidades nas matemáticas; mas um candidato jamais teria sido mandarim se ele tivesse mostrado gênio demais, como entre nós um bacharel suspeito de heresia correria risco de não ser bispo. O hábito e a indolência se juntavam para manter a ignorância no poder. Hoje os chineses começam a ousar fazer uso de seu espírito, graças a nossos matemáticos da Europa (Voltaire, 1776, p. 30-31).

A despeito das críticas, a quinta carta termina num tom conciliatório, tolerante, arrematada pelo célebre verso sobre a mediania das virtudes, extraído de uma epístola horaciana:

Talvez, Senhor, tenhais vós desprezado demais essa antiga nação; talvez a tenha eu exaltado demais: não poderíamos nós nos reconciliarmos?Entre os vícios se equilibra, e pende,À igual distância, a sólida virtude (p. 31).

O tom é muito semelhante ao do início do verbete “Tolerância”, do Dicionário Filosófico (1764), de Voltaire: “O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza” (1978, p. 290).

Como bem observou Starobinski no trecho citado anteriormente, ao descobrir outras civilizações no mesmo grau legítimas como a nossa, a nossa torna-se outra para si mesma e, diante da instabilidade advinda dessa constatação, uma das primeiras consequências é o convite à tolerância. Talvez esteja aqui uma chave para entendermos o fecho da carta que acabamos de ler.

Uma conclusão a que podemos chegar é a de que, apesar de as Cartas chinesas não serem uma obra representativa do gênero utópico, ao lermos essa e outras obras semelhantes, podemos entender um pouco melhor e – talvez – chegar a uma possível definição desse gênero.

Referências

BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle penne. Parigi: Bobée e Hingray, Libraii, 1828. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=H38uAAAAYAAJ Acesso em: 31 de maio de 2009.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983.

BERRIEL, Carlos Eduardo O. et al. Editorial. In: Morus – Utopia e Renascimento, n. 3, 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 11ª edição, 1994.

² “A decisão é de 1624” [Nota de Voltaire].

3 Est virtus medium vitiorum, & utrimque reductum. A tradução dos versos de Horácio é de Antonio Luiz de Seabra (1846, tomo segundo, p. 62).

343

O EU E O OUTRO NAS lettres cHinoises, dE vOlTAIRE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

HORÁCIO. Satyras e epistolas de Quinto Horacio Flacco. Traduzidas e annotadas por Antonio Luiz de Seabra. Porto: Em Casa de Cruz Coutinho, 1846, tomo segundo. Disponível em: http://books.google.com.br/ books?id=R50WAAAAYAAJ Acesso em: 30 de maio de 2009.

STAROBINSKI, Jean. Montesquieu par lui-même. Images et textes présentés par Jean Starobinski. Paris: Éditions du Seuil, 1953.

STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

VOLTAIRE. Cartas inglesas; Tratado de metafísica; Dicionário filosófico; O filósofo ignorante. Traduções de Marilena de Souza Chauí (et al.) São Paulo: Abril Cultural, 1978.

VOLTAIRE. Lettres chinoises, indiennes et tartares à Monsieur Paw, par un benedictin, avec plusieurs autres pièces interessantes. Londres, 1776. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54071845.r Acesso em: 30 de maio de 2009.

VOLTAIRE. Oeuvres. Avec préfaces, avertissements, notes, etc. par M. Beuchot. Paris: Chez Lefèvre, 1832, tome XLVIII – Mélanges – Tome XII. Disponível em: http://books.google.com.br/books? id=KQ0aAAAAYAAJ Acesso em: 30 de maio de 2009.

Utopia come scienza escapologicaGianluca Bonaiuti Università di Firenze (Itália)

Resumo

Nell'intervento, in cui si definisce il profilo dei futuris contingentibus della tradizione metafisica e teologica alla luce della svolta moderna, si prendono in esame quelle logiche costruttive che presiedono allo sviluppo delle architetture immaginarie dell'età moderna. In particolare quelle costruzioni che dovendo assolvere una funzione politica sono chiamate a risolvere alcuni problemi e snodi teorici della modernità. L'esempio della cosiddetta “architettura della Rivoluzione” presenta il problema di progettare costruzioni che devono rappresentare e riunire una società costitutivamente asinodica, o asinoidale (ovvero: talmente numerosa da non poter essere riunita in uno spazio delimitato, sia esso un'assemblea o un "palazzo"). Il sogno di Sieyès di raccogliere tutta la Francia sotto una stessa cupola, risveglia nelle utopie politiche e architettoniche un'ambizione progettuale inedita e ricca di conseguenze. La linea di esplicitazione di queste "spazializzazioni" futurologiche va però ricercata più indietro nel tempo: nell'immagine rinascimentale e prospettica della città ideale; ma forse ancora prima nella cartografia del paradiso terrestre; dispositivi rappresentativi, entrambi, di un modo di dare conoscenza di fatti e situazioni che non coincidono con il tempo presente. L'idealizzazione del "palazzo pubblico" della città italiana, insieme ad altre componenti caratteristiche della strategia visuale rinascimentale, costituisce un modello di progettazione del futuro che incontrerà presto i "linguaggi" teorici e concettuali dell'utopia moderna e tardo-moderna. Da Campanella a Cernicevski, da Bacon a Tarde, le logiche di costruzione dello spazio “ideale” alimentano un nuovo genere di escursione “escapologica” che ha valenze non solo architettoniche ma perfino politiche. Allo stesso modo, sebbene con un profilo rovesciato, possono essere lette le spazializzazioni negative che affollano la letteratura contemporanea. Sembra, per molti versi, che l'utopia come genere offra solo occasioni di dare nuove versioni infernocentriche del futuro. Alla luce della catastrofe imminente o prossima ventura, infatti, si ipotizzano ucronie negative che diventano veri e propri dispositivi con cui la società contemporanea processa se stessa ed emette un giudizio di condanna rispetto al proprio futuro.

Palavras-chave

Architetture immaginarie, prospettiva, utopia, architettura e politica.

Gianluca Bonaiuti é pesquisador na área de História das doutrinas políticas na Universidade de Florença (Faculdade de Ciências Políticas "Cesare Alfieri"). Ensina Hitória das doutrinas políticas e Teoria dos media nesta faculdade. Fez seu doutorado em Filosofia política junto à Universidade de Pisa. Dedica-se a temas relacionados à teoria política moderna e à teoria da sociedade moderna e contemporânea, com particular atenção voltada para algumas áreas temáticas como, por exemplo, o conceito de "povo". Estudou, entre outros temas, problemáticas espaciais ligadas à discussão sobre a globalização. Suas principais publicações são: Tempo a senso unico. Modernità: da un luogo comune in memoria del futuro (Milano: Mimesis, 1999), La catastrofe e il parassita. Scenari della transizione globale (Milano: Mimesis, 2004, org. com A.Simoncini), Corpo sovrano. Studi sul concetto di popolo (Roma: Meltemi, 2006), além de uma série de artigos sobre o pensamento político entre Otto e Novecento para algumas revistas italianas (Millepiani, Fenomenologia e società, etc.) e volumes coletivos. Dirigiu a edição italiana das obras de Luhmann, Sloterdijk e Groys.

346

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Il mondo migliore, cui il grande stile architettonico dà forma, riproducendone i tratti in forma anticipatrice,

esiste quindi in modo del tutto non mitico, come compito reale vivis ex lapidus, dalle pietre della vita.

E. Bloch

Tutto può essere diversamente – ma io non posso cambiare nulla.

N. Luhmann

Il linguaggio dell’Utopia ha strettamente a che fare con la capacità d’immaginare delle “isole antropogene” capaci di accogliere l’uomo secondo le proprie migliori possibilità. Tali isole costituiscono dei

laboratori per la creazione di spazi la cui complessità di risposte non ha precedenti. Il nome di Utopia viene, anzi, di solito attribuito a una sequenza di tecniche di animazione dello spazio che prova ad intercettare tali possibilità. Anche per questo, non credo vi siano particolari problemi a riconoscere il fatto che ogni volta che si prende in esame l’Utopia si abbia a che fare con un problema che è, innanzitutto, spaziale. Cogliere la logica fondativa dell’Utopia – se si ammette questa premessa – significa prima di tutto comprendere la sintassi spaziale che le è sottesa. Un’adeguata comprensione di tale sintassi, unita ad un’attenta analisi dei concetti e dei termini ch’essa impiega, rende a mio avviso non solo più chiaro il significato delle prime utopie storiche, ma ci permette allo stesso tempo di capire altre due cose molto importanti: la prima, perché l’utopia sia una prestazione teorica, prima che letteraria, solo moderna; la seconda, perché oggi la parola utopia indichi una prospettiva letterariamente attiva ma la cui politicizzazione pare interdetta. Essa resta plausibile da un punto di vista letterario, diventa però implausibile dal punto di vista politico (tanto che, se se ne parla, lo si fa con quel tono malinconico con cui si rievocano i beni perduti). Non intendo, com’è ovvio, avanzare una tesi definitiva sul tramonto dell’Utopia: sarebbe presuntuoso e, tutto sommato, anche inutile. Vorrei però fornire alcuni elementi utili alla comprensione non tanto del declino di un genere politico che ha alimentato riflessioni e commenti per una lunga fase della storia europea (e non solo) moderna, piuttosto del suo trasloco in altre sedi.

1. Moriae Encomium: in prospettiva

Per cogliere alcuni elementi essenziali della costruzione spaziale tipica delle Utopie occorre però fare qualche passo indietro rispetto alla sua formulazione originaria, quella nota a tutti, di Thomas More del 1517. Occorre spostarci nella città di Firenze, e osservare uno dei punti di più chiara esplicitazione dei principi della cosiddetta “prospettiva fiorentina”, uno dei principali contributi che la città simbolo del rinascimento europeo ha dato alla formazione culturale dello stesso. All’inizio del Quattrocento, com’è noto, viene messa a punto a Firenze la prospettiva lineare: la sua invenzione, almeno dal punto di vista architettonico, avviene in un luogo, il portico che

347

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

funge da facciata all’Ospedale degli Innocenti, da alcuni considerata la prima architettura rinascimentale. Vi mette mano Filippo Brunelleschi tra il 1419 e il 1422. Sulla funzione di questo edificio, diremo tra poco. Valga intanto la notazione che si tratta del primo orfanotrofio d’Europa, e che anche in questa specifica funzione svolge un ruolo non di secondo piano. L’intero edificio, però, resta sostanzialmente incomprensibile se non ci si riferisce allo sforzo della città di Firenze, almeno dopo il Duecento, di trasformarsi da Stato comunale, affiancato da un territorio ancora feudale, in uno stato regionale dotato di un comando integrato dal punto di vista territoriale, sia in termini politici che economici. Con una formula astratta, si potrebbe dire che tale sforzo è consistito nel tramutare la pluralità dei luoghi, caratteristica di tutte le societates civilis medievali, in un unico spazio di governo (una segreta trasformazione che con l’invenzione degli stati territoriali conoscerà la forma di maggior successo). Se si osserva l’ordinamento spaziale dell’edificio non è difficile coglierne gli elementi caratterizzanti: come voluto dall’ideologia mercantile della città esso presenta un impianto planimetrico e volumetrico che parla una lingua “netta e chiara” col rigore dell’abaco, un impianto al cui interno il portico realizza l’intercisione della prima concreta piramide visiva della prospettiva moderna con il piano dell’intera città. Dal punto di vista dell’osservatore ciò che conta è il punto di fuga della loggia, quel ritaglio spaziale, cioè, sulla linea d’orizzonte su cui convergono tutte le parallele dell’asse visuale: esso cade esattamente in un punto, sul fondo della campata piena che chiude la serie delle arcate verso nord, in cui si apre la finestrella quadra che, come una sorta di odierna cassa continua, accoglie la “ruota degli innocenti”, il meccanismo che permetteva l’ingresso del neonato all’interno dello Spedale.

Il vertice del primo artificio prospettico moderno coincide in tal modo con un pertugio che immette concretamente da un mondo all’altro, che segna il materiale passaggio da una condizione all’altra, da uno Stato all’altro, dall’anonimità della discendenza naturale all’identità dell’esistenza sociale (Farinelli, 2006, p. 14).

Il segreto politico di questa immagine, capace di un cambio significativo in termini di spazializzazione, è di offrire attraverso l’artificio ottico della prospettiva una seconda chance a coloro che hanno perduta la prima per entrare con pieni diritti, il che vuol dire innanzitutto con un nome, nel consesso sociale. Solo grazie al breve e oscuro tragitto attraverso la ruota la creatura neonata acquisisce quella visibilità che pertiene all’organizzazione del consorzio tra gli uomini: detto altrimenti, il punto di fuga che lo inghiottisce gli permette di acquisire la cittadinanza, che dal punto di vista di questa immagine significa, prima di tutto, che non si abita più un luogo ma lo spazio. La prospettiva, com’è noto agli stessi inventori, è un trucco, un’illusione ottica, un artificio che mira alla verosimiglianza non alla verità (non esiste prospettiva in natura, nel senso che la dimensione degli oggetti non dipende, come postula il principio prospettico, dalla distanza dell’osservatore), il suo significato, però, non si limita alla trasformazione dei lineamenti della figura, ma è un procedimento che ha un profondo carattere

348

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

ontologico, esso muta l’essenza, non gli accidenti ma la sostanza (in modo più appropriato, la natura) di tutto ciò che ricade nel suo ambito, di tutto ciò che esso cattura. Dal punto di vista dell’architettura dello Spedale, il procedimento prospettico reso esplicito integra la vita abbandonata nella vita che vale la pena di essere vissuta (quella della città), costituisce cioè un meccanismo di correzione e risarcimento rispetto alla natura (emendamento e rettificazione), rispetto cioè al risultato immediato dei processi biologici che hanno portato il neonato al mondo. Anche per questa ragione il Portico degli Innocenti può essere considerato uno dei luoghi d’esordio della razionalità moderna.

La prospettiva inaugura il punto di vista spaziale dei moderni. Sarebbe avventato – benché non manchino le prove – ritenere che lo spazio stesso, inteso come metrica lineare, sia un’invenzione moderna. La prospettiva, però, lo è di sicuro: o meglio, lo è a condizione di specificarne l’asse di proiezione. Ed è il procedimento prospettico che insegna a vedere le cose come non sono, in funzione della distanza metrica degli oggetti rispetto al soggetto, con la conseguenza che si comincia a guardare il mondo dal punto di vista spaziale, un punto di vista che ha problemi di misurazione sconosciuti in precedenza. Non del tutto sconosciuti però: gli storici dell’arte concordano nel ritenere che l’invenzione moderna della prospettiva abbia a che fare col modello di proiezione tolemaico. La prospettiva fiorentina non è altro che la copia della tecnica utilizzata da Tolomeo per costruire la mappa del mondo, solo che, e questa è la differenza decisiva, applica il modello di proiezione lungo l’asse orizzontale, laddove Tolomeo la applica in verticale.

È indubbio che tutto questo abbia avuto profonde conseguenze su quelle procedure di osservazione che condizionano l’attribuzione di verità non solo alla rappresentazione iconografica ma più in generale agli ordini discorsivi. A differenza della tradizione cui si attribuisce convenzionalmente il nome di metafisica in cui la sovrapposizione della questione del vero e della questione dell’essere, nelle nuove condizioni comunicative l’attribuzione di verità segue lo sviluppo di criteri specifici rispetto alla semplice indicazione del fatto che si sta parlando di realtà. Si formalizzano criteri che distinguono tra verità e realtà e tra diverse forme di realtà. Con queste procedure di cui la proiezione prospettica inaugura lo sviluppo, si acutizza il problema del rapporto tra realtà e apparenza e della realtà della finzione, che rimane in qualche modo cruciale per tutto il periodo della transizione alla modernità. In modo graduale e non privo di resistenze e attriti, si assiste al lento collasso dell’impianto dell’ontologia tradizionale la quale poggiava sull’idea di un’unica descrizione corretta del mondo in grado di fondare l’autorità e sostenere la gerarchia, con la creazione di distinzioni che siano in grado di guidare l’osservazione con un più elevato grado di tolleranza per la contingenza rispetto all’alternativa tradizionale essere/non essere. In altri termini, così come accade col procedimento prospettico, sorge l’esigenza di una nuova modalità di “raddoppiamento della realtà”, segnato innanzitutto da un incremento del livello di astrazione delle descrizioni del mondo.

Rispetto all’ambito che qui ci riguarda in modo particolare occorre segnalare il cambio di significato di una distinzione tradizionale. Anche

349

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

nella tradizione semantica metafisica si distingueva la realtà delle idee dalla realtà delle cose, dopo di ché, però, tali realtà erano collocate entrambe entro una gradazione dell’unica realtà di riferimento, del mondo come universitas rerum¹. Con la semantica moderna interviene una distinzione con due lati incompatibili, in cui il “raddoppiamento della realtà” viene proiettato all’esterno. Non si ha così più a che fare con cose differenti, piuttosto con differenti “prospettive” sulle cose, che riusciamo a distinguere proprio perché le cose sono sempre le stesse. Il modello guida di tale distinzione è segnato dalla differenza tra immanenza e trascendenza: immanente è il mondo visto dall’interno, trascendente è lo stesso mondo visto da una prospettiva esterna, in primo luogo quella di Dio². La generalizzazione di questo gioco di prospettive si traduce nella differenza cartesiana, poi divenuta caratteristica, tra soggetti e oggetti. Da un lato stanno gli oggetti, per la descrizione dei quali occorre sviluppare nuovi procedimenti di osservazione (ad esempio, la scienza empirica sperimentale, in cui il rimando alla trascendenza diventa superfluo, se non proprio dannoso), dall’altro ci sono i soggetti, i quali non fanno parte in senso proprio del mondo empirico ma sono in grado di osservarlo (distanziamento contingente). Il soggetto si definisce autoreferenzialmente (riflette su se stesso) nella misura in cui mantiene una prospettiva esterna rispetto al mondo degli oggetti con cui si confronta. Ne consegue che la forma moderna di raddoppiamento della realtà si basa in fondo sulla distinzione tra oggetti e osservatori, dove gli osservatori non sono propriamente degli oggetti, piuttosto delle prospettive sugli oggetti e richiedono quindi criteri e procedimenti specificamente circolari³.

La maturazione di queste distinzioni porta ad una nuova autonomia dell’immaginazione, la quale produce mondi propri governati da propri criteri: si ottiene così per la prima volta una separazione netta tra finzione e bugia. La finzione prospettica è creazione di una realtà che non esiste e proprio perché non pretende di mantenere alcuna connessione con la “natura reale” (gli oggetti non rimpiccioliscono “realmente” distanziandosi dall’osservatore) può orientarsi a un proprio sistema di coordinate e di riferimenti in una forma del tutto nuova di “realismo della finzione”. Perché questo dispositivo sia in grado di funzionare come un regime discorsivo riconosciuto occorrerà attendere la stabilizzazione del genere romanzesco che funzionerà come “factual fiction”, come descrizione del tutto realistica di un mondo che non è reale, ed esiste solo nell’immaginazione4. Si tratta così di ottenere un realismo estremamente convenzionale che poggia però su una premessa inconfessata. La giustificazione dell’arbitrarietà dell’osservazione offerta (abbia essa la forma di una finzione iconografica oppure narrativa) si regge sull’ipotesi che chi guarda oppure chi legge non pretendano di osservare il mondo ma l’osservazione dell’autore. Ciò che comincia a caratterizzare l’epoca moderna, dunque, non è tanto la finzione in quanto tale, piuttosto la differenza tra realtà e finzione (oggetti/osservatori), con la corrispondente autonomia da entrambi i lati. Il meccanismo funziona, però, solo a condizione che l’autore scompaia dal testo o dall’immagine, e vi cancelli tutte le tracce della sua attività. Come ha mostrato Foucault, il realismo moderno presuppone l’estromissione dell’autore dall’opera, cioè

¹ Già Platone distingue, tra l’altro, i “discorsi” dalle “cose”, salvo poi ricongiungerli in un quadro semantico unitario grazie al rinvio alla realtà superiore delle idee: cfr. Platone, Sofista. Spetta alla semantica moderna inaugurare una separazione tra cose e parole che disfa l’inerenza reciproca di mondo e linguaggio. Nei termini di Foucault: “d’ora in poi il linguaggio avrà bensì il compito di dire ciò che è, ma non sarà nulla più di ciò che dice” (1966, p. 58). La persistente tendenza a trattare il rapporto tra cose e parole nei termini della distinzione tra linguaggio-oggetto e metalinguaggio rimane in fondo ferma alla stessa distinzione moderna: essa si presta ad una regressione infinita.

² Con una celebre frase del sociologo Niklas Luhmann: “Immanente è quindi tutto ciò che il mondo così com’è offre all’osservazione interna al mondo […]. La trascendenza è lo stesso – visto altrimenti” (Luhmann, 1989, p. 313).

³ L’innovazione epistemologica portata dalla figura del soggetto moderno come osservatore incontra però i limiti a tutti noti: resta infatti l’idea di impianto teologico per cui la garanzia di realtà dell’osservazione stia in un riferimento esterno irriflesso. L’osservatore sta fuori, osserva gli oggetti e l’osservazione di oggetti, ma non l’osservazione di osservazione. Ciò gli garantisce la possibilità di riconoscere la singolarità dei soggetti e delle loro prospettive sul mondo.

4 È noto il richiamo frequente che nei romanzi viene fatto a documenti autentici oppure alla narrazione di testimoni oculari.

350

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

l’autonomia della finzione come livello di realtà a se stante. Senza una tale rimozione si perderebbe l’univocità della distinzione tra realtà e finzione che sta alla base del passaggio tra un lato e l’altro. All’autonomia della “realtà fittizia” corrisponde un’uguale e contraria autonomia della “realtà reale”5. Ed è grazie a questo sdoppiamento che la razionalità conosce una seconda residenza6.

2. escapologia i. La fuga nell’abbondanza

Non è difficile riconoscere che nei primi secoli della modernità l’indirizzo di questa nuova residenza della ragione sia Utopia. Adesso occorre, però, soffermarsi un momento su un punto. Sarebbe interessante considerare, a queste condizioni, l’Utopia di Moro come un esempio, forse il più riuscito e quello di maggior successo, di proto-romanzo, una sorta di Ur-novel (se mi passate il termine) che predispone alcuni dispositivi di costruzione di una finzione che avanza pretese di plausibilità del tutto inedite rispetto al passato. Non è questa, però, la strada che intendo percorrere: sono convinto che se ne potrebbero ricavare molte indicazioni utili sul significato più proprio di espressioni come “letteratura d’evasione” e altro, ma su questo tornerò più avanti7. Ciò che vale la pena di sottolineare, però, è che, forse in modo ancora più esplicito, il dispositivo approntato dal procedimento prospettico, i suoi effetti primari e secondari, coincidano in realtà in modo ancora più evidente con un altro medium di rappresentazione, di cui abbiamo fatto e continuiamo a fare largo uso: la carta geografica. Non si tratta di una scoperta particolarmente sorprendente: i contemporanei, Alberti in primis, lo sanno bene. L’abbiamo ricordato sopra: la prospettiva coincide con l’“orizzontalizzazione” del procedimento di proiezione tolemaica. Il punto di fuga buca la realtà reale proiettandosi parallelo alla superficie terrestre (e non nel cielo come accade nella proiezione cartografica) aprendo l’accesso ad una realtà della finzione che ha una propria autonoma regola di costituzione. Non è un caso, infatti, che Brunelleschi attenda al progetto del Portico degli Innocenti tra il secondo e il terzo decennio del Quattrocento; risale proprio alla fine del primo decennio dello stesso secolo la traduzione dal greco di Jacopo Angelo della Geografia di Tolomeo che era andata, così come buona parte della tradizione classica, perduta per l’Occidente europeo dopo il crollo della parte occidentale dell’Impero Romano.

Sfrutto ancora per un po’ quelle che sono poco più che intuizioni, contenute nei lavori recenti di un geografo italiano, Franco Farinelli. Che cosa sarebbe Utopia, secondo le esplicite indicazioni che ci provengono dall’autore? Utopia è la prima regione terrestre che riceve la propria descrizione a seguito della tensione crescente che si genera tra opinioni cartografiche degli antichi e le scoperte dei marinai che, tra Quattro e Cinquecento, costringono a demolire molte delle concezioni e delle teorie esistenti. L’ipotesi del non-luogo, l’ipotesi di Utopia, è il prodotto di un taglio artificiale che modifica, per quanto di poco, la natura del luogo. Da penisola a isola: tradotto significa che quel che possiamo pensare e rappresentare e di conseguenza se del caso realizzare, dipende non soltanto

5 Che a tale alternativa si possa dare anche il nome di “follia” appare evidente ai lettori del tempo. Moriae Encomium è, com’è noto, il titolo dell’opera di Erasmo da Rotterdam che può letteralmente valere tanto come elogio della follia quanto come elogio di Moro. Una stretta relazione lega l’Elogio di Erasmo e l’Utopia di Moro (che un contemporaneo dei due, Jean Desmarais o Desmaretz, per gli umanisti Paludanus, definirà un “elogio della saggezza”) a partire dal luogo di composizione. L’aspetto che qui interessa sottolineare è che tra saggezza e follia non vi è solamente un rapporto di opposizione e contrasto. La follia erasmiana indica un luogo d’evasione dalla razionalità monologica, una dimensione di alterità che viola il realismo stringente della realtà reale. La possibilità di far coincidere saggezza e finzione, tropo classico della retorica, trova così nuova applicazione.

6 Sappiamo per certo che l’invenzione teorica di questa residenza secondaria che si lascia pensare come paese d’immigrazione per “spiriti” delusi dal proprio tempo è direttamente imparentata con la nascita della filosofia. L’introduzione sovversiva da parte di Platone di un “principio di razionalità” non fondata sull’empiria che apre la possibilità di sottomettere lo stato delle comunità reali all’esame di razionalità nella prospettiva di coloro che sono interessati a parteciparvi. Gli scritti di Platone sulla politica – Politeia, Politikos, Nomoi – hanno mostrato che la città empirica non resiste a un tale esame. A partire da questo esame coloro che sono dotati di spirito possiedono un secondo domicilio nell’universale. Anche per questa ragione Platone, pur non essendo un “utopista”, costituisce il punto di partenza delle Utopie moderne; e la filosofia costituisce il linguaggio preferito da chi intende

351

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

dalla nostra mente ma anche da una struttura concreta di tipo non naturale, al contrario artificiale.

Rappresentare, nel senso dell’Utopia – della non localizzazione naturalistica –, significa da una parte mettere allo scoperto la forma latente di tale struttura, dall’altro modificare la forma e la natura del piano materiale sul quale la rappresentazione si svolge, pur lasciandolo inalterato. Si può parlare esplicitamente di una latenza ridefinita che segna in modo inequivocabile la distanza che separa l’esperimento intellettuale di Moro dalla Politeia platonica8, e da analoghe esperienze che la precedono. Essa non è più riferita al cosmo naturale, né a quello delle idee né alla sua riproduzione nei fenomeni né alla teologia di una natura umana realizzantesi nello Stato. La realtà politica quale se la rappresenta Moro nella sua opera non è la continuazione della realtà fisica con altri mezzi. Al contrario segna l’esperimento di una finzione razionale che è indirizzata criticamente contro la fatticità dell’esistente e così facendo mobilità la possibilità contro la realtà reale (per attenerci alla distinzione di cui sopra) sia pure per dare dei contorni più netti alle realtà in cui viviamo. Con le parole del filosofo Hans Blumenberg:

Nella materializzazione come tratto fondamentale della realtà rientra il fatto che essa, in quanto rischiaramento, mette in campo la scientia possibilium contro ciò che è divenuto ed è presentemente dato (1968/1969, p. 128).

L’esito è una proposta che, pur nell’ottica di un’autorelativizzazione sconosciuta alla tradizione (contingenza), costituisce l’unica possibilità perché la rappresentazione stessa possa aver luogo e “poiché nello specifico – come sottolinea Farinelli – si tratta di una forma urbana, di una città ideale, il piano in questione è quello della tavola, della rappresentazione cartografica o geografica che dir si voglia, della mappa insomma” (2007, p. 102). Si tratterebbe dunque – questo il suggerimento del geografo – di una finzione razionale che replica e anticipa nello stesso tempo la logica della razionalità cartografica. Gli stessi nomi di utopia sembrerebbero provarlo9. Il tratto caratterizzante sarebbe quella dimensione di artificialità che ne segna la separatezza: sarebbe, in altre parole, la sua natura cartografica a renderla un congegno spaziale, nel senso che è lo spazio il prodotto che il piano della tavola, la struttura tabulare che accoglie il disegno, comunica, impartisce dall’interno. Come la prospettiva, essa funzionerebbe come proiezione che corrisponde al punto di vista dell’osservatore, offrendo una descrizione della politica aperta alla contingenza – ed è questo il segreto elemento comune che Utopia condivide col Principe di Machiavelli. La dimensione tabulare va in questo caso presa alla lettera: il topos della tabula rasa costituisce, infatti, un elemento che alimenta il discorso politico ben oltre il semplice esercizio della finzione razionale della carta. Solo nella condizione-zero del dileguare diventa possibile la costruzione di un edificio conoscitivo con ambizioni di sistematicità. Il sapere positivo, come dimostrerà un secolo più tardi la “scienza politica moderna” che prende le mosse dall’esperimento intellettuale hobbesiano, costituisce il

politicizzare questo genere di secessione della razionalità.

7 Tra l’altro diventerebbe chiaro perché oggi di “utopia” si occupano quasi esclusivamente teorici e storici della letteratura, mentre per un “politologo” o per uno “scienziato politico” essa costituisca solamente un episodio famigerato di esercizio dell’immaginazione politica, quasi un esempio negativo di cui non bisogna seguire la traccia.

8 Che un tale equivoco, o se si preferisce un tale errore di prospettiva, possa aver avuto tutto il successo che sappiamo, dipende in buona misura dalle condizioni di ambivalenza e incertezza epistemica in cui si definisce la distinzione moderna tra realtà reale e realtà della finzione, soprattutto in termini di applicabilità generalizzata. Per lunghi tratti della nostra storia politica, e ancora di recente con prese di posizione che intendono avere perfino una portata epocale, con Utopia e con “prospettiva utopica” si sono intese le possibilità “non realizzate” e “non realizzabili” della riflessione politica (un itinerario che si conclude con l’immagine dell’utopia come ciò che non si può realizzare). A partire da questa ridefinizione che non tiene in alcun conto del carattere di necessità in cui s’inscrivono le descrizioni della tradizione vetero-europea, Platone (ma si potrebbe allo stesso titolo parlare della Bibbia o dei Vangeli) diventa il prototipo del messaggio utopico. Ma le applicazioni sono potenzialmente infinite: tale giudizio o qualificazione può estendersi anche all’orizzonte moderno. Una volta che si è aperta la strada, soprattutto nel corso del XIX secolo, alla politicizzazione della realtà, qualunque finalità non concretizzata o non istituzionalizzata diventa utopica. Il “socialismo utopico”

352

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

rovescio di un’empiria svanita. Ciò che è dato dev’essere sottratto in quanto sostrato percettivo prescientifico, perché possa essere rifondato, con la conoscenza razionale, per il tramite di operazioni rigorosamente logiche. Ciò che è scientificamente reale dev’essere dato, dopo la catastrofe del mondo, solo come ricordo. L’immaginazione dell’uomo costituisce lo sfondo a partire dal quale si reinsedia la realtà svuotata (Accarino, 2007, p. 37).

Queste parole pensate per l’esperimento hobbesiano possono riapplicarsi perfettamente a Moro. Indicano, semmai l’avessimo dimenticato, che tutte le costruzioni filosofiche all’origine della modernità intrattengono relazioni con il modello della tabula rasa. Il segreto di questa comunanza va ricercato nell’esigenza, già soddisfatta in sede iconografica dalla prospettiva, di stabilire, in vista della necessità del calcolo, un rigidissimo criterio di equivalenza generale, un criterio, cioè, in grado di riassumere e cancellare all’interno del proprio ambito ogni differenza qualitativa. Quando si riesce a fare questo, si ottiene il risultato di stabilire uno standard che trasforma ogni valore in quantità, ovvero in frazioni di una quantità astratta: nel nostro caso, i luoghi in spazio. Così come la prospettiva costituisce il segreto di una progettazione “spaziale” che dipende da un osservatore, così la carta rende il congegno prospettico operativo10, con la conseguenza non indifferente che, dopo aver colonizzato con la sua misura il territorio11, colonizza anche quello che oggi si chiama l’immaginario delle persone, cioè la nostra maniera di immaginarci e di figurarci il mondo. Che l’Utopia immaginata da Moro costituisca il regno delle equivalenze non va certo ricordato oggi: semmai con Moro si assiste ad un esercizio che resta in bilico tra spazio e luogo. Le cinquantaquattro città dell’isola sono “quasi tutte uguali”. Il “piano di tutte è identico e, per quanto consente la posizione, anche l’aspetto”. Insomma, si tratta di indicazioni sì generiche, che però ci spiegato come nella finzione razionale di Moro, come nella sua peculiare “follia”, sia all’opera un criterio di uniformità e di standard che è la marca spaziale definitiva, la quale subisce qua e là correzioni temperate rispetto al dato naturale. Utopia dunque funziona come una mappa, tanto che, come tutte le mappe, può stare dappertutto, pur non essendo da nessuna parte. Come una carta essa esiste e non esiste insieme, visto che la sua esistenza, frutto di una proiezione artificiale, si limita all’immaginazione cartografica: come tale, ripetiamolo, essa si esercita in quanto congegno spaziale che indica una realtà della finzione di tipo tutt’altro che arbitrario (cfr. Farinelli, 2007, p. 104-105).

Una volta però che si sia stabilita questa connessione occorre chiedersi che cosa indichi una tale mappa. Se Utopia e cartografia condividono un medesimo congegno generatore, che cosa si rappresenta nella sua descrizione? Se essa assolve il compito, tipico dell’età moderna, di produrre immagini dello spazio percorso, di che cosa è immagine? Se, infine, può presentarsi, secondo una funzione tipica della carta geografica, come la scoperta di una grandezza sconosciuta – un continente, un’isola, un popolo ecc. –, diventa allo stesso tempo anche una tecnica che rende disponibili i mezzi per la ripetizione del primo rinvenimento, di che cosa segna la scoperta?

è solo l’esempio più noto e più ricco di effetti. Fino ad arrivare alle utopie novecentesche della democrazia.

9 Con la consueta “immaginazione interpretativa”, il geografo Franco Farinelli suggerisce che i nomi attribuiti da Moro in Utopia riflettano questa intenzione: “Sarebbe bastato dire che i nomi di Utopia sono cartografici, nel senso che designano la natura cartografica del paese cui si riferiscono. Il fiume si chiama Anidro, cioè ‘senz’acqua’, ed è esattamente lo stesso di quello platonico descritto nel mito di Er. Il primo nome che Utopo, nel conquistarla, assegna ad Utopia è Abraxa, che significa ‘su cui non piove’. A sud-est di utopia si trova il paese di Acorî, cioè dei ‘senza regione’. Il principe di Utopia viene chiamato Ademo, cioè ‘senza popolo’, la capitale si chiama Amauroto, che vuol dire ‘appena visibile’, ma che può anche intendersi come qualcosa che si può cancellare. Sicché bisogna bene intendere quel che Moro vuol dire con tali antifrasi quando spiega per lettera a Pierre Gilles che i nomi propri dell’isola affermavano la loro realtà storica proprio nella misura in cui il loro significato ‘corrispondeva a nulla’, nihil significantia: l’espressione non vuol dire che essi non hanno alcun senso, piuttosto che essi significano il nulla, cioè che non si riferiscono a realia, ma a semplici segni grafici, e proprio in tale riferimento esibiscono appunto il loro carattere storicamente determinato, la propria natura moderna, la propria appartenenza all’‘epoca dell’immagine del mondo’, per dirla con Heidegger, cioè all’epoca della riduzione del mondo alla sua immagine, dunque a spazio” (2007, p. 103-104).

10 Come ricorda Luhmann, si ha “talvolta l’impressione che

353

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Si deve a Ernst Bloch la formula di sintesi più efficace per trovare una risposta a questi quesiti: le utopie geografiche hanno la caratteristica di una “ricerca orizzontale del tesoro” (1954, p. 872, trad. modificata). A ben vedere si tratta di una formula, non casualmente escogitata da uno degli ultimi esempi eminenti di progressismo generalizzato, che legge nell’utopia cartografica il segreto di ogni ricerca di un’emigrazione verso Nuovi Mondi12: la dimensione orizzontale di tale ricerca va presa alla lettera, nella misura in cui il bottino non viene cercato né in cielo né “verticalmente sotto i piedi nel suolo di casa” (ib.), ma lontano, in direzione dell’orizzonte, in una dimensione remota che attende di essere “scoperta”. Escapologia indica innanzitutto quell’arsenale di tecniche di alleggerimento, variabili in funzione del luogo e dell’epoca, che indicano una via di fuga dal peso del mondo: laddove la “realtà reale” si presenta in condizioni triviali, gli uomini di cultura possono approntare un kit di strumenti di aggiramento della realtà che si presentano sotto forma immaginaria nella prospettiva mentale. La semantica del tesoro, della caccia e della scoperta del tesoro, e, alla fine, della ricostruzione della mappa che è in grado di riprodurre le tappe di avvicinamento allo stesso, viene elevata da Bloch al rango di una forma del processo del mondo. Per tale ragione essa si anima di una forte tensione per l’anticipazione, tale che la ricerca si trasforma in produzione. Secondo Bloch tale ricerca è strettamente imparentata agli schemi di produzione di immagini e di sogni con cui nella tradizione si proiettava in un indirizzo trascendente la ricchezza che non si poteva raggiungere sulla terra. Ovunque si sia assitito ad una sintesi tra agricoltura, artigianato e scrittura, si può osservare un legame sintomatico tra concezioni di un esistenza post-mortem e di fantasmi di libero accesso a un mondo di abbondanza. Si può parlare a questo proposito di una prima costituzione di “tesori nel cielo”, da cui dipende la ri-stilizzazione dell’esistenza umana in una cassa del tesoro codificata dalla metafisica. Il fantasma del tesoro, proiettato in verticale, segna l’immagine prototipica dei fantasmi del paradiso delle prime civiltà sedentarie, fatte di visioni di pienezza, di piena soddisfazione e di fine della necessità. Se i tesori materiali funzionano come un attrattore per la coscienza e la cultura, è perché essi possono presentarsi come mezzi di alleggerimento della realtà reale. Ad un’esistenza deficitaria può contrapporsi, grazie alla possibile scoperta del tesoro, un’esistenza compensata: l’esempio viene dall’eroe di un racconto anonimo, Fortunatus, pubblicato nel 1509 e poi ripubblicato nel corso dei secoli, cui viene donata una borsa magica che conterrà sempre quaranta monete d’oro del conio del paese in cui di volta in volta si trova. Si tratta di una favola sulla creazione del valore che segna l’inizio di una serie di fantasie d’ingresso verticale del benessere entro vite affaticate. Ma anche la dimensione orizzontale non è sconosciuta: basti ricordare il modello delle Fortunatae Insulae, oppure la precisa “cartografizzazione” del “paradiso terrestre” (cfr. Scafi, 2006). Nell’ottica di Bloch in questo modo si svela il segreto di ogni messianismo, e, si potrebbe aggiungere, di ogni contenuto messianico della politica moderna. Ciò che però ci interessa vedere è che la mappa di Utopia segna un cambio di direzione rispetto a tali proiezioni: ora la ricerca del tesoro

il concetto di Stato sia un prodotto accessorio della carta stampata, che rende possibile diffondere carte geografiche, atlanti ecc., in modo tale che ci si rappresenti come “Stato” un territorio visibile su queste carte geografiche (mentre il signore medievale non poteva farlo e doveva invece attenersi alla rappresentazione di un fascio di diritti)” (Luhmann, 1993, 109-110).

11 Come accade nella Firenze del Brunelleschi, in cui la soluzione spaziale da avvio al primo stato territoriale su scala regionale, poi imitato nelle sue forme, dalle più estese “nazioni” europee, in primo luogo la Francia (cfr. Arrighi, 1994, p. 121-171).

12 Nell’interpretazione di Bloch il modello dell’utopia si è trasmesso a un socialismo di cercatori del tesoro.

354

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

può essere fatta anche su linee orizzontali, come testimonia il marinaio Itlodeo. La fuga nell’abbondanza, di qui in avanti, viene temporalizzata13. Ciò che viene anticipato nel simbolo si realizzerà alla fine della storia e, secondo un’indicazione che viene sempre da Bloch, sarà vera e reale solo come telos raggiunto da tutte le produzioni della società. Ed è questa la ragione per cui il sistema di Bloch, condiviso da alcune “fedi” politiche del XX secolo, piazza la “finzione razionale” della vita ricca all’inizio, ma deve sistemare l’abbondanza reale alla fine, riproducendo la teleologia della vecchia Europa. La terra incognita si trasforma nel nascondiglio di un tesoro, che costituisce l’indirizzo cui “postare” le speranze di una vita che attende di essere migliorata.

3. escapologia ii: La fuga nella rappresentanza

Sarebbe però limitativo circoscrivere la logica cartografica d’Utopia ad una caccia al tesoro con conseguenze sulla società. Vi è un secondo elemento di cui si tratta d’indicare la “scoperta” grazie ai linguaggi della finzione razionalizzata della realtà. Esso tocca da vicino elementi tutt’ora operanti nella teoria politica (e anche nella teoria della società), il che li rende in buona misura poco visibili (oltreché poco tematizzati). Per renderli espliciti occorre nuovamente ripercorrere un itinerario a ritroso, osservando la specificità delle architetture chiave della politica moderna.

Quando, nella Parigi del 1789, il terzo Stato decide di riunirsi il problema dello spazio adatto allo scopo si pone subito. Fino a quel momento i deputati degli Stati Generali si riunivano nella sala comune ai tre Ordini, una sala dominata da un palco dove si ergeva il trono del Re e dove sedeva la Corte. Davanti a questa alta e larga tribuna svettava un gran tavolo dove sedevano i segretari di Stato; al di là di questo, si trovavano i banchi dei deputati. Per il Clero e la Nobiltà, delle panche più o meno imbottite; per il Terzo Stato, di legno semplice. Nessun gradino, dunque. Sembra davvero arduo che un’assemblea di 1200 persone potesse discutere in questo in maniera intelligibile. E infatti il Terzo Stato si auto-costituisce in Assemblea Nazionale senza abbandonare questo locale. Lo fa nell’assoluta confusione di uno spazio ingombro di panche, e che è stato esplicitamente concepito per ascoltare e contemplare, non per dibattere e prendere la parola. Non è un caso che i Francesi, almeno da principio, non avessero alcuna esperienza di un vero dibattito parlamentare (cfr. Brasart, 1988). Per questa ragione i Costituenti dovranno inventare un ordine del giorno, scegliere un luogo fisso dove prendere la parola secondo l’ordine previsto, preparare i lavori organizzando le questioni da dibattere in comitati e commissioni.

Bisogna attendere, però, l’11 ottobre del 1791 perché un deputato, Quatremère de Quincy, richieda e ottenga che alla sala venga data la forma di un cerchio o di un ellisse, in modo tale che ogni membro dell’Assemblea sia sotto lo sguardo di tutti gli altri. Si suggerisce così l’idea di uno spazio egualitario, ma in modo da capire e vedere, senza però essere obbligati a gridare, perché, come osserva uno dei deputati, “un uomo che grida è in una condizione forzata, e, per questa stessa ragione, è portato a diventare

13 Per Bloch ciò vale, d’altra parte, per ogni utopia geografica, si tratti dell’Eldorado o dell’Eden cui mirava, ad esempio, il “viaggio di scoperta” di Colombo: “Bensì in ogni utopia concreta ciò che è scopribile riguarda una presenza rispetto al futuro: una presenza della tendenza conforme a leggi, del contenuto latente della meta nella possibilità obiettivo-reale. E in questo ambito le utopie geografiche furono in modo eminente utopie di strade nuove, di nuove merci e di nuovi beni, anzi di un sogno estremo come quello della scoperta e dell’accesso a un Eden. Per questo aspetto qualunque altra intenzione utopica è anzi debitrice nei confronti di quella delle scoperte geografiche; poiché ognuna di esse al centro della positività sperata ha il topos del paese dell’oro, della terra della felicità” (1954, p. 866).

355

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

violento […] e questa disposizione in cui si trova, la comunica a coloro che l’ascoltano” (Detienne, 2003, p. 19). Alla fine si decide per una sala semi-ellittica: il presidente dell’assemblea al centro, un sistema di gradini semi-circolari che si sviluppano intorno. Resta da scegliere il posizionamento migliore per la tribuna dell’oratore: di fronte all’assemblea ma rivolto verso colui che la presiede. Non è difficile cogliere subito come questo principio della parola posta al centro, tipico dell’eloquenza rivoluzionaria francese, vada profondamente a differenziarsi da quella dei Commons, delle assemblee inglesi dove, almeno a partire dal XVII secolo, ciascuno parla dal suo posto, indirizzandosi al presidente (ib.).

L’attenzione allo spazio dell’assemblea non è prerogativa esclusiva della politica occidentale. Già Simmel, impegnato coi problemi del criterio di unanimità, tra quelle schierate a suo favore aggiungeva, a fianco delle consociazioni territoriali in Germania, delle Cortes aragonesi, della Dieta imperiale polacca, anche il consiglio tribale degli Irochesi (Simmel, 1984, p. 627). Oggi sempre nuovi materiale si accumulano: dal punto di vista di un’antropologia storica si possono osservare gli etiopi Ochollo, dei monti Gamo, le comunità di Cosacchi del XV secolo, perfino le comunità monastiche del Giappone medievale (p. 15 e sg.).

Se l’Assemblea generale costituisce però la scena di un debutto assoluto, lo si deve al fatto che con essa diviene per la prima volta evidente in modo esplicito che la “società” moderna ha una costituzione asinodica: la sua prima caratteristica, e forse la più importante, è il fatto che essa non è più un’entità capace di riunirsi, di entrare in un’assemblea. Lo sforzo dei rivoluzionari di costruire uno spazio adeguato alla formazione di un plenum repubblicano della “società” (che nel 1793, durante la Convenzione, prevederà una sala di riunione contenente settecento seggi per i deputati e mille e quattrocento seduti per il pubblico) mostra che la nazione dei cittadini non è fisicamente riunibile fisicamente in un’assemblea (un problema che nessun parlamento francese precedente, come nessun parlamento inglese si era mai posto). Se è vero che il ritmo del suo sviluppo, come mostra la Rivoluzione, riposa su una misura a due tempi (la decomposizione dei conglomerati sociali in unità complesse individualizzate e la loro ricombinazione all’interno d’insiemi cooperativi), è altrettanto evidente che il cosiddetto “ingresso delle masse nella storia” attiene strettamente a problematiche architettoniche. Tra le risorse esistenti e quelle immaginabili, non esiste struttura che permetta la deliberazione di un popolo-nazione che si presenta come la nuova società. Ciò non ha ovviamente impedito che l’entusiasmo assembleare portasse i modelli degli edifici antichi, destinati alle grandi assemblee, a nuove suggestive rivisitazioni: l’anfiteatro dei greci, il circo o l’arena dei romani, sono soggetti a riprese continue. Così l’idea suggestiva di un’assemblea popolare reale e integrale dovrà trovare una nuova localizzazione: il debutto della “società” di massa, preconizzato nel cambio di destinazione del Terzo Stato, dovrà attendere il 14 luglio 1790 (primo anniversario della presa della Bastiglia) durante la prima Festa della federazione sul Campo di marte a Parigi. Durante questa festa, cui presero parte secondo le testimonianze più di quattrocentomila persone, divenne

356

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

evidente che la “massa”, il “popolo” o la “nazione” non possono esistere in quanto soggetti collettivi che nella misura in cui l’assemblea fisica dei suoi componenti diviene l’oggetto di una messa in scena a regola d’arte – col conseguente sospetto di un’inclusione fittizia delle sue parole d’ordine. Di fronte a questo genere di contenitori di “massa” si profila uno dei problemi strutturali della “società” contemporanea: nello stesso momento in cui di esse si dice che accolgono tutti, e quindi non possono avere che una costituzione acefala e asinodica, si mantiene con forza la domanda di istanze cefaliche e sinodiche. Nel fantasma dell’assemblea generale o centrale della “società” le due istanze convivono e diventano la stessa cosa: spetta alla finzione politica, coi problemi noti a tutti, la ripresa di una funzione della testa attraverso un plenum popolare14. L’arte della sintesi sociale si esercita solo in forma indiretta, e solo a condizione di disporre di tecniche di organizzazione estremamente esplicite.

Ciò che si ottiene così è una densità esemplare – portata all’attenzione degli osservatori grazie ad una sequenza di prese di parola ricche di conseguenze – si compie in nome di un’intenzione costituente. Se già in precedenza abbiamo richiamato l’attenzione sui tratti costruttivi dell’esperienza assembleare come modello esplicativo dell’essere insieme dell’uomo con l’uomo in realtà più complesse ed estese delle linee parentali, ora si tratta di capire in cosa consista il carattere speciale dell’assemblea. La prima risposta e la più semplice può essere la seguente: l’assemblea è il luogo in cui debuttano le volontà individuali, per quanto nella formula ipotetica del contratto, come elementi che contano nella formazione del potere15. Nell’assemblea l’individuo ha la possibilità di non contare solo come numero uno, ma rischia al contempo di essere schiacciato dalle voci altrui. Allora da dove viene questa esemplarità dell’assemblea – quasi una forma di costanza iconica della cultura politica dall’agorà fino a internet – come vettore delle migliori possibilità dell’uomo che condivide lo spazio con altri uomini? Da dove proviene quell’obbligo per il rispetto della deliberazione presa insieme? Non è inutile ricordare in proposito che l’esempio classico non può bastare a fissare la persistenza normativa di questo dispositivo: Atene sarà pure un’invenzione moderna, bisogna però spiegare perché ancora oggi si ricorra all’idealizzazione di una situazione comunicativa per giustificare alcune delle più influenti teorie normative contemporanee16.

Bisognerebbe compattare, a questo punto, materiali molto vari che si vanno accumulando con una certa regolarità. Se si può riconoscere un ruolo determinate alla “logica spaziale” (ma qui intesa in senso largo: spazio, scrive Farinelli è propriamente solo quello moderno, ovvero la misura standard che omogeneizza il calcolo di dimensioni e distanze) nel modellare la forma del sociale più consona ad aggregazioni umane sempre più complesse, occorre raccogliere e sistemare quegli strumenti concettuali che restituiscono al meglio le dinamiche di ordinamento topologico delle conglomerazioni umane. Un esempio su tutti può essere fatto a partire dagli argomenti che fanno cenno ad un problema esplosivo, almeno in forma crescente, legato all’addensamento delle relazioni sociali. Il punto di vista, una volta tanto, potrebbe però non riguardare i fenomeni specifici dell’urbanizzazione

14 Tra gli effetti perversi di questa operazione va ricordato il legame stretto che il “comunicologo” Vilem Flusser stabilisce tra “discorsi d’anfiteatro” e totalitarismo (cfr. Flusser, 1994, p. 27-28). Sloterdijk, commentando il discorso di Talleyrand in occasione della Festa della federazione, sottolinea come in un solo momento si assiste alla nascita del “politico mediatico” dell’era di massa, inteso come showmaster e sceneggiatore del consenso (cfr. 2004, p. 614).

15 Si rammenti che anche in Hobbes l’obbligo di obbedienza alla volontà del sovrano è in rapporto diretto con l’obbligo rispetto alla deliberazione in un’assemblea: “Poiché la maggioranza ha dichiarato un sovrano con voci di consenso, chi dissentiva deve ora consentire con gli altri, deve cioè essere contento di ammettere tutte le azioni che compirà il sovrano, altrimenti verrà giustamente distrutto dagli altri. Infatti, se è entrato volontariamente nell’assemblea di quelli che erano riuniti, con ciò egli ha dichiarato a sufficienza la sua volontà (e quindi tacitamente pattuito) di attenersi a ciò che la maggioranza avrebbe ordinato e quindi, se rifiuta di attenervisi o protesta contro qualche suo decreto, agisce contrariamente al suo patto e, quindi, agisce ingiustamente” (Hobbes, 1651, p. 290-91).

16 L’esempio più semplice lo offre John Rawls con la sua assemblea di uomini senza vista.

357

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

o della crescente prossimità tra elementi differenti: potrebbe al contrario provare a sondare lo statuto di plausibilità di quei luoghi o spazi densi per antonomasia che sono le assemblee. Anche qui, se vogliamo, nulla di nuovo: resta però tutto sommato inindagata la fiducia quasi religiosa che la nostra cultura politica conferisce verso il buon esito atteso dall’interazione strategica tra individui o gruppi in quello spazio recintato speciale che sono le assemblee17. Il fatto che tale fiducia decresca precipitosamente quando si parli di “parlamenti” istituzionali non diminuisce l’impressione a certe forme (controllate) di densità (comunicativa) sia attribuita una particolare aspettativa rispetto alla possibilità di risolvere problemi altrimenti lontani dalla soluzione. Non è un caso, infatti, che nei giochi di simulazione della teoria democratica contemporanea, una scappatoia possibile all’isterilimento e alla crescente chiusura autoreferenziale dei processi decisionali delle istituzioni (e al parallelo dileguamento del potenziale utopico della democrazia nella conformistica revisione political scientist dei paradigmi novecenteschi della stessa) si provi a dare risposta con gli strumenti della deliberazione. Più che a un vero e proprio rigurgito della vocazione parlamentare burkeana (su cui con molto acume ha provocatoriamente portato l’attenzione in anni recenti Alessandro Pizzorno) si tratta di una ripresa di una delle passioni arendtiane della prima ora. Si delibera sempre in spazi stretti, dove parole e discorsi si accumulano e si scontrano senza tregua, con un guadagno di non poco conto: l’eccellenza (e si potrebbe aggiungere: l’attenzione) conquistata in questo modo non manca di essere vincolata strettamente ad una prestazione e, dal momento che conquista il consenso dell’assemblea, può essere ammessa di diritto nel novero delle conquiste democratiche. Le discussioni assembleari accorciano le distanze, ciò facendo alimentano il conflitto, ma tutto sommato, proprio perché la collisione è altamente probabile, diminuisce la possibilità che si scelgano le vie più spicciole, e si passi dalle parole ai “fatti”. Detto altrimenti: il guadagno in termini di procedure non autoritarie, magari imposte altrimenti con la forza, non è cosa da poco. E ciò non in ragione di una presunta maggiore onestà degli attori che si rapportano face to face: come ricorda Hannah Arendt la politica è sempre o quasi sempre menzogna, ovvero verità simulata che mira a convincere. Ciò che si dimentica di ricordare in questa revisione deliberativa della democrazia è la cosa più banale di tutte, ovvero che questi luoghi di addensamento particolare sono innanzitutto luoghi d’elezione e di distinzione, luoghi destinati strutturalmente a minoranze (elette da qualcuno o autoelette, fa lo stesso) che hanno molto più a che fare con sistemi di decisione aristocratici che non con quelli democratici. Non a caso quando ciò diventa palese, come nei parlamenti nazionali, il credito attribuito alla densità deliberativa scema o addirittura crolla, come nel caso italiano.

Sia chiaro: non si tratta di attualizzare critiche al parlamentarismo dell’inizio del XX secolo. Quelle critiche possono essere date per acquisite, e semmai qualcuno ne riproponesse senza correzioni gli argomenti occorre subito alzare la guardia. Si tratta piuttosto di mettere da parte quella fiducia quasi metafisica che ancora si nutre per situazioni idealizzate di

17 A riprova del valore persistente di questa fiducia si potrebbero citare i tentativi di applicare il modello assembleare allo spazio del mondo. Quando si pensa in termini politici, la società si autorappresenta (e si sogna) sempre come una macroassemblea (cfr., ad esempio, Strauss & Falk, 1997, p. 8).

358

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

addensamento (qui si potrebbe anche scrivere: di comunicazione, se il termine non fosse tanto confuso quanto apparentemente evidente) che nel mondo contemporaneo, dietro un’apparenza di critica dell’esistente, alimentano una forma crescente di consenso (e si può perfino sospettare che veicolino forme nuove di autoritarismo, se non altro intellettuale). Le assemblee in quanto luoghi topologici deputati alla deliberazione costituiscono un punto di mediazione aristocratica sulla strada delle decisioni da prendere, sia che si svolgano in un parlamento nazionale, in una società letteraria, in un soviet o in un centro sociale. Il problema semmai a questo punto sarebbe quello di capire come questi individui addensati nell’assemblea siano riconosciuti da tutti coloro che subiscono gli effetti della decisione come veri aristoi, o migliori, se le procedure che li selezionano, oppure le procedure con cui si auto eleggono, sono davvero riconosciute come valide ed efficaci. Una cosa è certa: per nessuno di questi potrebbe essere fatta valere la qualifica di socius e come si può vedere, nuovamente la società è sciolta. A meno di non ridefinire su base allargata i candidati all’assemblea.

In anni recenti il sociologo della scienza Bruno Latour ha proposto il neologismo Dingpolitik (“Politica della cosa”) per qualificare questa sequenza di problemi e temi, e avanzare una proposta di allargamento contraria alle logiche realpolitiche della tradizione. Nel termine Dingpolitik, Latour valorizza il particolare doppio significato che in lingua tedesca ha la parola Ding. Rifacendosi anche a una celeberrima conferenza di Heidegger, Latour ricorda come Ding (così come l’inglese Thing) originariamente designasse un certo tipo di assemblea arcaica. “Prima di indicare un oggetto estromesso dalla sfera politica e posto là oggettivamente e indipendentemente, la Ding o cosa [Thing] ha significato per molti secoli l’istanza che riunisce le persone proprio perché le divide. La stessa etimologia si trova dormiente nel Latino res, nel Greco aitia e nel Francese o Italiano causa” (Latour, 2005, p. 13). Nella proposta di rivitalizzare questa vecchia etimologia, Latour suggerisce che quando ci si riunisce non lo si fa sulla base di un accordo, di un’identità condivisa, di una compatibilità sociale con lo scopo di fondersi, piuttosto perché vi si è costretti dalla divisione delle opinioni e delle preoccupazioni. Ding indica il luogo neutralizzato in cui convergono non solo uomini in disaccordo, ma cose, oggetti, opinioni, innovazioni tecniche e rappresentazioni poste tutte sullo stesso piano. L’obbiettivo è costruire un forum ibrido, in cui le rappresentazioni non hanno la pretesa di essere vere, trasparenti, fedeli. Una cosa infatti è riunirsi; altra cosa è rappresentare agli occhi e alle orecchie di coloro che sono riuniti che cosa è in ballo. Le architetture assembleari classiche sono sempre partite dalla premessa che il “corpo politico” della “società” dovesse trovare accoglienza in un’architettura mentale, che poteva prendere il nome di “bene comune”, “volontà comune” oppure “sfera pubblica”, all’interno della quale collettivamente coloro che erano chiamati a riunirsi, anche solo virtualmente, sarebbero stati dotati di una visione più acuta e di una virtù più alta. Durante l’illuminismo gli architetti hanno preso alla lettera questo genere di visione, disegnando, progettando e talvolta riuscendo a costruire cupole, globi e palazzi finalizzati a una chiara rappresentazione (cfr. Heurtin, 1999). Prima e durante la

359

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Rivoluzione altri costruttori hanno tentato di dare forma a questa “sfera pubblica” che non coinvolgeva più solamente deputati e congressisti, ma anche l’intero popolo o il proletariato o il Volk18.

Da Boullée a Speer, da Pierre Charles L’Enfant al nuovo parlamento scozzese, da John Soane a Norman Foster, agli architetti è sembrato possibile fornire un’interpretazione esatta e letterale di ciò che significa riunirsi col fine di produrre la volontà comune (Latour, 2005, p. 20).

Come se il sogno di Sieyès, fatto prima della Rivoluzione, di costruire un parlamento tanto grande – e tanto virtuale – da essere esteso a tutta la Francia, fino alle province più remote, potesse prendere forma in una costruzione reale. Riunire gli individui sotto la medesima cupola, indipendentemente dalle loro debolezze e deficienze particolari, significa dotare le loro teste di una visione allargata che li mette in grado di comunicare con la ragione. Ma i limiti “spaziali” di queste costruzioni, che amano presentarsi come riedizioni dei “palazzi della ragione”, sono destinati a confinare la stessa democrazia entro il recinto di una concezione monologica del consenso, inteso come reinterpretazione comunicativa del “corpo politico”. Come simulacri del consenso, infatti, tendono a nascondere il fatto che i parlamenti sono solo uno dei macchinari della rappresentazione disponibili, mentre altri, già esistenti, attendono solo di essere riuniti. Il fatto che con essi si sia tentato e si tenti ancora di dare una rappresentazione legittima della “società”, secondo un dispositivo aggiornato della medesima proiezione, più che suggerirci qualcosa sui limiti della rappresentanza-rappresentazione – talmente verbalizzati da suonare oramai banali – ci indica piuttosto la limitata capacità di spiegare di chi continua a preferire un’immagine così semplificata di una totalità che tutti contiene. E sulla strada di queste semplificazioni, non si deve attendere molto per trovare chi è disposto a metterle in pratica, come dimostra la più efficiente tra le soluzioni proposte al problema della mancanza di assemblee, quella che vorrebbe vedere nella democrazia – e nel suo spazio di deliberazione simbolo, il parlamento – un meccanismo esportabile come qualsiasi altra merce. O, peggio ancora – seguendo una provocazione di Peter Sloterdijk19 –, addirittura un congegno autogonfiabile – una specie di scialuppa politica di salvataggio – paracadutabile dietro la linea delle truppe del bene che occupano militarmente un paese.

4. conclusione provvisoria: L’uomo che volò nello spazio dal suo appartamento (escapologia iii?)

Se anche i problemi di spazio fossero risolvibili, rimarrebbero quelli del tempo. Anche lo “spirito dell’utopia” ha bisogno di tempo. Il dilagare della contingenza è in grado di provocare più di una conseguenza, soprattutto se si è sprovvisti della fiducia in un telos che attende solo di essere realizzato. La costruzione dell’Utopia richiede uno sforzo collettivo che si può protrarre di generazione in generazione. Ma non tutti hanno voglia di avere a che fare con questo genere di rinvii: anche l’aspettativa

18 Sulla cosiddetta “architettura della Rivoluzione”, che però cronologicamente precede la Rivoluzione, cfr. Hernandez, 1972 e Philipp, 1994.

19 In occasione di una mostra d’arte, e non solo, del 2005 curata da Bruno Latour e Peter Weibel per il Zentrum für Kunst und Medientechnologie di Karlsruhe (il cui titolo era Making Things Public- Atmospheres of Democracy) Peter Sloterdijk contribuisce al catalogo con un breve scritto dal titolo Dyed-in-the-Wool Citizens. Atmospheric Politics (2005) in cui propone l’aggiornamento delle attrezzature dell’esercito americano con un progetto inedito. La US Force dovrebbe dotarsi, secondo Sloterdijk, di un “parlamento pneumatico” che può essere paracadutato oltre le linee nemiche un istante dopo che le forze liberatrici del Bene abbiano sconfitto le forze del Male. Toccando il terreno questo parlamento dovrebbe essere in grado di aprirsi e autogonfiarsi proprio come i canotti di salvataggio in caso di ammaraggio di un aereo. A quel punto la cupola di plastica potrebbe ospitare immediatamente i delegati del “nuovo popolo liberato”, dando vita a quella democrazia istantanea che rientra negli auspici delle forze oggi in azione sul fronte occidentale. La provocazione è perfino ovvia: trasformando una delle icone della quasi millenaria autolegittimazione politica della civiltà occidentale, il parlamento appunto, in un’infrastruttura facilmente trasportabile e paracadutabile, l’obbiettivo di esportare la democrazia potrebbe diventare un’impresa realizzabile tecnicamente. Il parlamento gonfiabile potrebbe riuscire laddove falliscono le truppe occidentali e i loro collaboratori in materia retorica: offrire una parvenza di legittimità a

360

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

stanca, e, infine, si converte molto spesso in delusione. Abbiamo imparato a diffidare e dunque a riscrivere il senso dell’Utopia anche a partire dalle quote crescenti di aspettative deluse20: alla fine Utopia indica più un luogo irraggiungibile, che la spazializzazione di una nuova possibilità. È dello stesso parere il protagonista dell’installazione di Ilya Kabakov The Man Who Flew into Space from his Apartment. Egli non vuole attendere che il resto della società sia pronto per l’utopia, vuole raggiungerla qui e ora, volando nello spazio cosmico in cui non rimarrà mai più vincolato ad un luogo particolare, a un particolare topos (ou-topos). Intende piuttosto raggiungere un non-luogo, senza peso, volando libero in un cosmo infinito. Per questa ragione egli costruisce un marchingegno in grado di catapultarlo direttamente dal suo letto nello spazio. Ed evidenetemente l’esperimento funziona poiché tutto ciò che si vede nell’installazione è la stanza che egli occupava abitualmente, ora vuota. Ciò che balza all’occhio, però, oltre l’assenza dell’occupante quel luogo, è il fatto che le pareti sono tappezzate di poster sovietici chiamati a comunicare un senso di ottimismo storico. All’interno della stanza si possono vedere il letto e i resti dell’apparecchio di lancio, unitamente agli schizzi tecnici che ne mostrano la progettazione e il funzionamento. Una piccola sezione del tetto, proprio sopra al letto, risulta distrutta. È probabile che l’uomo sia schizzato nello spazio proprio attraverso quel buco, che figura come punto di fuga verticale. I visitatori non possono entrare nella stanza ma possono guardarvi dentro da un piccolo vestibolo. Sulle pareti del vestibolo ci sono i testi che descrivono l’evento dal punto di vista dei vicini e dei conoscenti.

La tentazione di prendere alla lettera l’installazione è grande. Soprattutto se si tiene conto del fatto che l’opera di Kabakov è stata concepita a Mosca nel 1985 ed esposta per la prima volta a New York nel 1988, quasi si trattasse di un presagio del collasso e dell’implosione di quel sistema di società che per decenni, nel corso del XX secolo, ha catturato l’attenzione di molti come il processo d’instaurazione dell’Utopia egualitaria in terra. Prendere alla lettera le opere d’arte, però – lo si sa da molto tempo –, rischia di produrre una autoinganno ancora più grave. Semmai la possiamo osservare come elementi di una segnaletica che ci indica un procedimento di connessione possibile tra tecniche di fuga, rappresentazione dello spazio e possibilità del discorso utopico. Letta in questo modo l’installazione ci dice in modo semplice e provvisorio che in assenza di spazio disponibile, una volta cioè che lo spazio terrestre si è saturato, la terra incognita delle Utopie cartografiche, a partire da quella di Moro, può essere cercata solo al di fuori dell’atmosfera e come progetto singolare e ironico di un cosmonauta illegittimo – ma questo forse è più il segreto dell’arte che di una scienza politica, poiché l’artista è colui che “si appropria, privatizza e spiega le energie utopiche globali per fini privati, senza che in precedenza sia stato selezionato e autorizzato dalla società” (Groys, 2006, p. 5). Davvero, forse, l’unica forma residua di razionalità critica, quella particolare forma di sfida all’improbabilità che per almeno tre secoli ha animato le utopie europee ed extraeuropee, resiste nella forma di una ragione autoironica.

situazioni politiche caotiche e segnate dall’aggressività del più forte. L’anno successivo, colla collaborazione dell’artista Gesa Mueller van der Haegen, Sloterdijk propone una realizzazione del progetto, esibendolo nel foyer del Netherlands Architecture Institute in occasione dell’International Film Festival di Rotterdam.

20 È ancora a decretare le dinamiche di questo scacco: “I conservatori iniziano con la delusione, i progressisti terminano con la delusione, tutti soffrono il tempo e ne convengono. La crisi diventa generale” (Luhmann, 1996, p. 91).

361

UTOPIA COME SCIENzA ESCAPOlOgICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Bibliografia

ACCARINO, B. “‘Tabula constituens’. Tra appropriazione cartografica e geometria politica”. In: B. ACCARINO (a cura). Confini in disordine. Le trasformazioni dello spazio. Roma: Manifestolibri, p. 33-66, 2007.

ARRIGHI, G. The Long Twentieth Century. Money, Power and the Origins of our Time. London: Verso, 1994; trad. it., Il lungo XX secolo. Denaro, potere e le origini del nostro tempo. Milano: Il Saggiatore, 1996.

BLOCH, E. Das Prinzip-Hoffnung. Berlin: Aufbau, 1954; trad. it., Il principio speranza. Milano: Garzanti, 1994.

BLUMENBERG, H. “Wirklichkeitsbegriff und Staatstheorie”. In: Schweizer Monatshefte; 1968/1969, trad. it., “Concetto di realtà e teoria dello stato”. In: ACCARINO, B. Daedalus. Le digressioni del male da Kant a Blumenberg. Milano: Mimesis, pp. 123-146, 2002.

BRASART, P. Paroles de la Révolution. Les assemblées parlamentaires, 1789-1794. Paris: Minerve, 1988.

COMPARATO, V. I. Utopia. Bologna: Il Mulino, 2005.

DETIENNE, M. “Des pratiques d’assemblée aux formes du politique. Pour un comparatisme experimental et constructif entre historiens et anthropologues”. In: DETIENNE, M. (sous la direction de). Qui veut prendre la parole? Paris: Seuil, 2003.

ESPOSITO, E. La memoria sociale. Mezzi per comunicare e modi di dimenticare. Roma-Bari: Laterza, 2001.

FARINELLI, F. “La natura cartografica della città”. In: MARRONE, G., PEZZINI, I. (a cura). Senso e metropoli. Per una semiotica posturbana. Roma: Meltemi, 2006.

FARINELLI, F. L’invenzione della terra. Palermo: Sellerio, 2007.

FIRPO, L. “La città ideale del rinascimento. Urbanistica e società”. In: SCIOLLA, G. C. (a cura di). La città ideale del Rinascimento. Torino: UTET, 1975.

FLUSSER, V. Von der Freiheit des Migranten. Einsprüche gegen den Nationalismus. Benshei, 1994.

FOUCAULT, M. Les Mots et les Choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966; trad. it. Le parole e le cose. Milano: Rizzoli, 1967.

GROYS, B. Ilya Kabakov. The Man Who Flew into Space from his Apartment. London: Afterall Books, 2006.

HERNANDEZ, A. Grundsätze einer Ideengeschichte der französischen Architekturtheorie von 1650-1800. Bâle, 1972.

HEURTIN, J.-P. L’espace public parlamentaire. Essais sur les raisons du législateur. Paris: PUF, 1999.

HOBBES, T. Leviathan, The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiasticall and Civil. London: Andrew Crooke, 1651; trad. it., Leviatano. Milano: Bompiani, 2001.

362

gIANlUCA BONAIUTI

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

LATOUR, B. “From Realpolitik to Dingpolitik, or How to Make Things Public”. In: LATOUR, B., WEIBEL, P (a cura). Making Things Public. Atmospheres of Democracy. MIT Press, p. 4-31, 2005.

LUHMANN, N. Gesellschaftstruktur und Semantik, vol. 3, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993.

LUHMANN, N. Protest. Systemtheorie und soziale Bewegungen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.

MANGANI, G. Cartografia morale. Geografia, persuasione, identità. Modena: Franco Cosimo Panini, 2006.

MÜHLMANN, H. Die Natur der Kulturen. Entwurf einer kulturgenetischen Theorie. Wien: Springer, 1996.

PHILIPP, K. J. (a cura) Revolutionsarchitektur. Transformation und Utopie des Raums in der Französischen Revolution. Brunswick&Wiesbaden, 1994.

SCAFI, A. Mapping Paradise. A History of Heaven on Earth. London: The British Library, 2006; trad. it., Il paradiso in terra. Mappe del giardino dell’Eden. Milano: Bruno Mondadori, 2007.

SIMMEL, G. Philosophie des Geldes. Leipzig: Duncker & Humblot, 1900; trad. it., Filosofia del denaro. Torino: UTET, 1984.

SLOTERDIJK, P. Sphæren III. Schaume. Franfurt am Main: Suhrkamp, 2004.

SLOTERDIJK, P. “Dyed-in-the-Wool Citizens. Atmospheric Politics”. In: LATOUR, B., WEIBEL , P. (a cura). Making Things Public. Atmospheres of Democracy. MIT Press, 2005.

STRAUSS, A. & FALK, R. “For a global people assembly”. In: International Herald Tribune, 14 nov. 1997.

TRÜBY, S. Exit-Architecture. Design between war and peace. Wien-New York: Springer, 2008.

WITTKOWER, R. Architectural Principles in the Age of Humanism. London: Academy, 1962; trad. it., Principi architettonici nell’età dell’Umanesimo. Torino: Einaudi, 1994.

Resumo

Destaca-se a noção de um tipo determinado de evento em dois romances utópicos-distópicos ingleses de fins do Oitocentos, bem como a força imagética destes eventos.

Palavras-chave

Utopia, distopia, catástrofe.

Iara Lis Franco Schiavinatto é graduada em História pela Universidade Estadual de Campinas (1985), mestrado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (1990) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1997). Foi professora RDIDP na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no Departamento de História do campus de Assis de 1988 a 2000, quando se transferiu como professora, RDIDP, efetiva, para Universidade Estadual de Campinas, no Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação. Atuou como professora de História Moderna e História Social da Cultura, na UNESP e, na UNICAMP, em História Social da Cultura e na disciplina de Cultura Moderna & Imagem. É professora dos programas de Pós-graduação em História e em Artes da UNICAMP.

Entre utopias e distopias: indicações sobre a catástrofeIara Lis Franco SchiavinattoUniversidade Estadual de Campinas

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

364

IARA lIS SChIAvINATTO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Quanto mais poderosos são eles, tanto mais refletidos e prudentes devemos ser nós.

H. G. Wells

I

A primeira edição de Utopia de 1516¹ justapunha ao texto a figura da ilha da Utopia, acompanhada de seu alfabeto e um poema em latim. Este conjunto "mapa², poema, alfabeto" conferia uma estranha

realidade à terra e ao texto, ambos ficcionais. O mapa da ilha tanto esboçava a organização racional da sociedade perfeita, sem vícios e maldades, quanto compartilhava um aspecto mais geral da cultura visual da época em torno da novidade - e certo fetiche - do mapa, da sua capacidade de designar e situar o que é distante a qualquer observador e revelar seus segredos, por exemplo, o necessário uso de uma embarcação naval para lá chegar. O mapa, porém, expunha o compromisso com algum indício do real, principalmente diante da experiência da abertura do mundo proporcionada pela expansão marítima e (des)encontro com terras inauditas e reais. Logo, a ilustração descrevia a ilha, tratava especificamente dela, apreendida em uma totalidade e a partir do senso de observação³. Ao mesmo tempo, o mapa talvez facilitasse sua recepção em uma sociedade que, de fato, experienciava o Novo Mundo – seja em suas projeções, desejos, seja na sua recepção e (re)apropriações. Esta imagem no livro Utopia reforçava a materialidade terrestre da ilha Utopia, situando-a no aqui e agora do viajante-observador, estritamente inscrita no plano humano, separando-a irreversivelmente das latitudes celestes. A imagem materializava sua geografia, logo seu significante e significado entranhavam-se na espacialidade e mutuamente adensavam-se. A realidade do mapa associava-se ao texto ficcional em uma espécie de contraponto a Thomas Morus que almejava dizer a verdade, mas, desde logo, advertia o leitor no corpo das palavras, à moda de Rafael Hitlodeu, que contava lorotas. Desta maneira, a imagem coadunava-se à polissemia do texto.

Ocioso mencionar a produção européia de cosmografias, cartografias, riscos e desenhos das cidades ideais, traçados das missões – reduções – jesuíticas nas Américas hispânica e portuguesa, projetos urbanísticos e arquitetônicos, pranchas derivadas das viagens em diários, relatos, memórias, desenhos, ilustrações, gravuras dos corpos e das figuras de governantes, entre os séculos XVI e XIX4, pautados pela utopia e seu congênere especular a distopia. Ou certas produções pictóricas em diálogo com a utopia como o tema da ruína de fins do Setecentos na chave estética do sublime-pitoresco. Neste gênero literário-histórico da utopia e em boa parte de seus estudos, prevalece o textual sobre o visual, no entanto pode-se indicar a partir de fins do século XIX – grosso modo por volta de 1880-90 – uma espécie de expansão imagética, alargada mais e mais pelas historias ilustradas, em quadrinhos, fotografias, pelo cinema e pelo documentário, do discurso utópico – considerando que a utopia e a distopia entremeiam-se. Neste sentido, há uma expansão do gênero utópico no século XX que passa pela visualidade em seus diversos suportes. Em favor desta nossa conversa e

¹ A terceira edição de Utopia em 1518 manteve o mesmo alfabeto da primeira, contudo a imagem era mais elaborada e detalhada com a nítida presença de Rafael Hitlodeu.

² O mapa aqui dialogava com uma tradição medieval cartográfica que levava a terras da mirabilia, sonhadas, perigosas, imaginadas, do passado distante e assim por diante, numa espécie de acervo que hoje nos soa borgeano.

³ Sobre a noção de descrição e observação, ver Alpers, 1999.

4 Ver em especial Sargent, 2000.

365

ENTRE UTOPIAS E dISTOPIAS: INdICAçõES SOBRE A CATáSTROfE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

em razão dos estudos já dedicados à forte presença da utopia no surrealismo, no expressionismo, nas vanguardas históricas no século XX, gostaria de indicar um problema de cunho histórico acerca dessa ampliação imagética permeada pela utopia, ciente de que a utopia é tensionada com a história e ambas variam.

II

A viagem5 no tempo tornou-se uma forma vigorosa, senão hegemônica, das narrativas utópicas do último quartel do Oitocentos como nas obras de Willian Morris, Edward Bellamy e de H. G. Wells. A inovação da viagem no tempo, no gênero da utopia, consagra-se, salvo engano6, em L’An deux mille quatre cent quarante,– un rêve s’il fut jamais (1771) de Louis-Sébastein Mercier que afirma sua dimensão temporal. Com esta inovação, a utopia estreitava seus liames com a história na chave iluminista, pois a sociedade perfeita passava a inserir-se no tempo histórico do futuro, sendo desencadeada pelo presente do narrador-viajante e do leitor. Ao partilhar o mesmo presente, passavam a ter o mesmo futuro. A utopia antecipava o devir, designando-o. Fiada na crença racional do progresso, a utopia prometia a sua realização. Pois o progresso definia o tempo histórico na necessária seqüência passado, presente e futuro, dispostos em uma linearidade causal que, por fim, inseria a sociedade perfeita na história. Desta maneira, a utopia transcendia a sua condição insular e se erigia em uma história universal. Note-se ainda que, em germe e em tese, a perfectibilidade humana e a sociedade perfeita já se encontravam inscritas no presente e sua concretização dar-se-ia no futuro por meio da ação humana. Além disso, a experiência revolucionária dos dois lados do Atlântico entre fins do século XVIII e início do XIX, na qual pontifica a Revolução Francesa, intensificaram esta crença letrada na ação humana racionalizada que intervém no tempo histórico e funda a nova sociedade. Esta noção de progresso vincula-se às ciências e à técnica, presumindo, inclusive, um alto grau de comunicabilidade de seus feitos e projetos, tal qual se vê no escrito otimista de Condorcet7. Um efeito dessa crença no progresso resultou na força e no alcance projetivos da utopia, agora uma proposição a ser efetivada no tempo, porém suas distopias subjacentes se colocavam como realidades possíveis.

Em fins do século XIX, a viagem no tempo atravessa duplo problema utopia-distopia nos romances Notícias de lugar nenhum. Ou uma época de tranqüilidade. Um romance histórico de William Morris (1890) e A Máquina do Tempo de H. G. Wells. (1895)8. Nas duas obras, contudo, há passagens descritivas centradas em tipo de evento histórico específico, daí a sua escolha para este texto. Tal evento ficcional, mas eminentemente histórico, promove uma viragem no enredo e na sociedade, um corte profundo, uma mudança de caráter irreversível – às vezes até mesmo da natureza humana. William Morris dedica todo o capitulo 17 a Como se deu a mudança. O Velho Hammond explica a Guest este mundo novo. Um tanto estranho, porque o narrador, Morris, ao se encontrar no futuro, foi remetido ao passado que lhe é mais caro – se sente, ele mesmo reconhece, no século XIV.

5 A viagem é condição sine qua non do gênero da utopia ao ser a própria fratura espaço-temporal que viabiliza a existência da narrativa utópica e engendra, de imediato, o narrador-explorador-viajante utopiano.

6 Cabe ainda analisar Epigone, histoire du siècle futur (1659), do abade Michel de Pure.

7 Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, de 1795.

8 Para o romance utópico Notícias de Lugar Nenhum utilizo a tradução de Paulo César Castanheira (2002), e para A Máquina do Tempo a tradução de Daniel Piza (2001).

366

IARA lIS SChIAvINATTO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O viajante, intrigado, indaga: como se chegou a ele9? Responde o Velho: A mudança em nada foi pacífica. Antes uma guerra cruel do início ao fim até que a esperança e o prazer lhe dessem fim. O Velho pondera: Seria difícil contar toda a história, talvez impossível: conhecimento, insatisfação, traição, desapontamento, ruína, miséria, desespero10.

Posto, contudo, este novo mundo, aos jovens interessa apenas a história recente. Porque a certeza da paz e da abundância no presente esmaece a importância da história do passado remoto, considerada coisa de velho. A história perde sua grandeza e alguma utilidade em um tempo e numa sociedade melhor possível, alicerçada na razão, na justiça, na tolerância, no governo do bem-comum com reconhecimento de cada um, no trabalho, no prazer, na igualdade. Transportado durante o sono para o futuro, Guest declara conhecer os costumes modernos da ilha, não os contemporâneos, logo se autoproclama alguém de outro planeta, uma espécie de alien. Seu planeta redunda no próprio passado de desigualdade e injustiça, por decorrência uma sociedade moderna, a pior possível, se comparada à do futuro. Aqui, os socialistas, Guest e os do futuro, partilham a esperança na vida comunitária, o desejo, da ordem do instintivo, de igualdade e liberdade, contrários à tirania e ao poder das classes médias, embora variem em sua natureza humana. Este denominador comum permite ao viajante reconhecer os valores humanitários e melhores do futuro. Mas é obrigado a voltar ao seu tempo na medida em que a infelicidade nele se inscreveu e ele pode, então, acrescentar, em seu presente, esperança à sua luta e tornar o sonho, enfim, uma visão.

Este evento de mudança radical define-se pela guerra, fome, pelas greves, pelos lockouts, tumultos, revoltas, corrupção, destruição do sistema de comércio, protesto, manifestações, pilhagem, massacre de uma multidão compacta – segundo a testemunha, eram gritos e gemidos de horror. Diz ele: Não sei como saí da praça, andei sem sentir o solo sob mim, cheio de raiva, terror e desespero. Uma série de sentimentos, correlatos, marca o massacre e o qualificam - terror, pavor, medo. Depois dessa estratégia de luta por parte dos trabalhadores na crise derradeira, marcada pela revolta, pela explosão e violência, há outra, simétrica: o boicote na forma da greve geral, quando as lideranças socialistas oriundas das classes trabalhadoras capitaneiam o movimento. Aí o terror acentua-se, apesar de silencioso, mesmo ausente ou pouco comentado nos jornais. A crise viria e o suspense existente e o terror mal oculto não poderia durar para sempre. Havia uma subversão generalizada e o sistema estava agora caindo aos pedaços. Sua intensidade é assim revelada e todos os historiadores concordam em que nunca houve uma guerra em que houvesse tanta destruição de produtos e de instrumentos para fazê-los como essa guerra civil – acrescenta o Velho. Tratava-se de uma queda de toda a sociedade até as profundezas de uma condição dura como a barbárie, mas desprovida das esperanças e dos prazeres da barbárie. Chegava-se assim ao segundo nascimento da sociedade por obra da tragédia e instaurava-se a autêntica religião da humanidade, tornada livre, feliz, cheia de energia e bela, pois reconcilia arte, trabalho, prazer e necessidade. Aqui o evento vincado pelo terror, horror, pavor, medo, barbárie, insere-se em um processo revolucionário cuja violência necessária emana do instinto humano pautado

9 O tempo aqui é importante. É o passado histórico, por ele idealizado, agora realizado no futuro.

10 Ele prossegue: Os que trabalharam em prol da mudança por perceberem antes dos outros o futuro passaram por todas essas fases de sofrimento e, sem dúvida, durante todo o tempo a maioria dos homens tudo via sem saber o que estava acontecendo, a pensar que era tudo natural, como o alvorecer e o entardecer e, na verdade, era.

367

ENTRE UTOPIAS E dISTOPIAS: INdICAçõES SOBRE A CATáSTROfE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

por virtudes igualmente humanas. Este evento da catástrofe insere-se em uma dialética do tempo histórico. Com a instauração da igualdade e da liberdade, a humanidade então pode repetir-se por eras e mais eras e até esquecer-se do século XIX – presente que impulsiona de fato o escrito. Não se pode, todavia, abrir mão desse evento terrífico, pois é passagem obrigatória, momento capital da mudança e da crise. Este evento-limite carrega em si expectativa, esperança e redenção, mesmo que nem todos saibam disso. Este tipo de evento subordina-se a uma lógica histórica utópica-socialista nos termos de Morris.

Em outra direção, A Máquina do Tempo de H. G. Wells discorre sobre este tipo de evento terrífico, violento, em constante expansão, numa completa inversão, na negativa, do progresso. Ele decorre em parte da ação humana incapaz de deter a exploração de um ser pelo outro a ponto de criar duas novas espécies humanas: os Eloi e os Murlock. Na umbilical e perversa relação entre eles, os Murlocks se alimentam da espécie infantil do Mundo Superior. A passagem da maior catástrofe é narrada tal qual uma espécie de hecatombe em câmera lenta11. O Viajante do Tempo12, depois de ter escapado dos Morlocks em sua Máquina, decide viajar mais além no futuro antes de retornar à sua época. Ele descreve, então, os momentos finais do fenômeno entrópico que consome a vida e as condições de existência na Terra. Ao viajar numa altíssima velocidade, ele, em poucos parágrafos e num efeito visual, descreve rapidamente os acontecimentos que levariam dezenas de milhões de anos em uma lógica invertida da evolução darwinista. A catástrofe aproxima-se da ruína, pois o transcorrer do tempo desemboca na vastidão silenciosa e sombria da Terra. A ruína aqui rememora a própria queda do homem, ela é evidência científica e irrefutável das mazelas humanas. Motivo de meditação acerca do presente. Esta ruína não traz um efeito agradável. Ela advém da natureza e da humanidade e ambos escaparam da alçada da virtude, da razão e da justiça. Ficaram à deriva de suas forças mais profundas, instintivas, mortais, destituídas de moral. Esta ruína constrange, porque é intempestiva e produto da desgraça. É metáfora da caducidade e da finitude13.

A catástrofe adquire uma dimensão real na medida em que se coloca enquanto uma possibilidade, logo uma tendência, no interior da história. Seu efeito de realidade calca-se em sua descrição, no testemunho, na sua inscrição na história, tanto quanto se calca no efeito suscitado no leitor. Este evento evoca a reflexão pela sua contundência, pelo choque e estranhamento14. Solicita que o leitor tome partido, intere-se do ocorrido e deseje afastar-se desse tipo de evento. Seu aspecto mais terrível desponta na medida em que ele se torna um evento em si mesmo, autônomo.

Nas duas obras brevemente comentadas o evento catástrofe e a temporalidade são altamente imagéticos, vincados fortemente pela plasticidade. A sua descrição – pouco geométrica – alude a uma estética do sublime e do pitoresco o que já mostra sua intenção de alvejar o leitor, cutucá-lo. O leitor, por sua vez, tocado por tais imagens que configuram a catástrofe15 – isto não significa a supressão da palavra – é, de imediato, convocado a uma reflexão que não pode ser ingênua sob pena de compactuar

11 Expressão bastante pertinente usada pela estudante Ana Cecília Araki.

12 Consagrado como um tipo de personagem.

13 Em outro romance de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos, a catástrofe é feita do ataque feroz dos marcianos, da fuga dos londrinos, da fumaça negra, dos foguetes de guerra, da destruição de áreas inteiras, da massa de fugitivos, da crueldade do alienígena. A personagem do vigário se indaga - Que pecados cometemos nós? Vê na situação Sodoma e Gomorra, o começo do fim, o grande e terrível dia do Senhor e ainda cita a Bíblia – Quando os homens implorarão as montanhas e os rochedos que desabem sobre eles e os escondam da face d’Aquele que estará assentado no Trono -, e vislumbra nos Marcianos os enviados do Senhor (p. 68). Consulto a 5a. edição da Itatiaia com tradução de Carlos de Souza Ferreira de 2005.

14 O Viajante do Tempo de Wells sofre uma forte perturbação ao ver a carne, o sangue, os Morlocks em sua estranha palidez, o cheiro exalado. O incômodo da cena – que é o próprio instante condensado no lugar – força-o a reflexão, a procurar uma explicação histórica para aquele presente.

15 Tal catástrofe e suas imagens são acompanhadas de forma intrínseca por um rol de sentimentos políticos: esperança, pavor, medo, prazer, justiça que pedem uma análise mais acurada.

368

IARA lIS SChIAvINATTO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

com a própria catástrofe. Ele é convocado em seu livre arbítrio – capacidade, por natureza, humana. Fundamental para Thomas Morus.

Referências

ALPERS, Svetlana. A Arte de Descrever. São Paulo: EDUSP, 1999.MORRIS, William. Notícias de Lugar Nenhum. Ou um época de tranqüilidade.

Um romance utópico. Introdução de Leandro Konder e Mochael Löwy. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

SARGENT, Lyman Tower et alli (eds.). UTOPIA – the search for the Ideal Society in the Western World. The New York Public Library/Oxford University Press, 2000.

WELLS, H. G. A Máquina do Tempo. Trad. Daniel Piza. São Paulo: Nova Alexandria, 2001.

H. G. Wells. A Guerra dos Mundos. Trad. Carlos de Souza Ferreira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.

Resumo

Trata-se de estabelecer, a partir da idéia de cidade ideal, a “construção”, no espaço da Baía da Guanabara, de um “lugar” Rio de Janeiro, através do exame dos dois projetos inaugurais de cidade que se configuram na área do Atlântico Sul como desenhos de cidades ideais renascentistas. Para tanto, partiremos dos conceitos de cidade ideal e de Novo Mundo e tomaremos como referência as diferenças na avaliação da “ocupação” do Novo Mundo feitas por Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil e Visão do Paraíso – e Angel Rama – A cidade das Letras -, onde estão apresentados dois modelos diferenciados de ocupação de lugares: a cidade clássica e a feitoria. O intuito é o de investigar os princípios ordenadores dessas “construções” para avaliar a presença de idéias que se aproximam do pensamento utópico, interpretando essas tentativas como estando inseridas no conjunto de reflexões sobre o vir-a-ser e das possibilidades alternativas aos modelos que se implantam no século XVI, ou seja, a oposição entre “ideal” e “modelo”.

Palavras-chave

Novo Mundo, Rio de Janeiro, cidade utópica, cidade ideal.

Antonio Edmilson Martins Rodrigues é professor dos Departamentos de História da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Professor Aposentado da UFF (Universidade Federal Fluminense) nas áreas de História Moderna e História do Rio de Janeiro. Livre-Docente em História do Brasil (UERJ) e autor de Tempos Modernos: ensaio de história Cultural (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000), junto com Francisco Falcon, e de outros livros referentes à cidade do Rio de Janeiro. Em breve será editado pela Campus um outro livro, também com a co-autoria de Francisco Falcon, intitulado A formação do mundo moderno.

Das possibilidades de cidades utópicas: os projetos urbanos no espaço do Novo MundoAntônio Edmilson Martins Rodrigues Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Brasil)

370

ANTONIO EdMIlSON MARTINS ROdRIgUES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

A minha proposição tentará, no plano geral, discutir as formas de relacionamento entre Europa e Novo Mundo, tendo como pano de fundo a cultura da renascença, em especial, a idéia de utopia e,

como campo privilegiado de experiências, a cidade do Rio de Janeiro.Chama a atenção dos estudiosos a potência da cultura renascentista,

firmada na condição de tomar o homem como sujeito no mundo e seus desdobramentos em termos da arte e da história, especialmente, quando esses novos conhecimentos decorriam de experiências vividas e únicas, não porque fossem experiências individuais, mas porque nelas continham todas as outras tradições anteriores. Disso decorria também a surpresa de notar que o Novo Mundo foi inventado antes de ser descoberto ao mesmo tempo em que essas experiências tomavam corpo e definiam conceitos e teorias sobre o homem, o mundo e a natureza.

Fazia-me espécie, a exclusão quase absoluta dos elementos dessa cultura renascentista na historiografia que pretendia dar conta das explicações relativas ao povoamento e colonização do Novo Mundo. Além dessa exclusão, ficava claro também o menosprezo que ela dava ao mundo ibérico, desvinculando-o totalmente do universo de valores europeus de seu tempo e infantilizando a sua história ao definir esse mundo como ainda marcadamente feudal. Daí decorrem duas situações, entre outras, que merecem atenção: que a presença ibérica na América havia destruído uma cultura tradicional que, se mantida, acabaria por transformar a realidade atual e teria conduzido a América em direção a outro estágio do desenvolvimento; e que as formas de povoamento indicavam que as preocupações ibéricas eram, de um lado, religiosas e, de outro, mercantis, e isso esgotava a condição de avaliação da presença européia e da cultura renascentista na sua passagem pela América.

Mesmo autores do peso de Sérgio Buarque de Holanda, que conhecia muito bem as condições de desenvolvimento da cultura portuguesa, advoga a tese de que as cidades portuguesas construídas na América eram meras feitorias e não ultrapassavam sua orientação mercantil no século XVI.

Foi justamente essa tese que me levou a pesquisar a cidade do Rio de Janeiro, procurando elementos em seu processo de construção que refutassem a tese de feitoria e aproximassem a cidade da cultura renascentista pela via de uma das polêmicas mais interessantes do renascimento que é aquela que permite associar Alberti e Thomas Morus na relação cidade ideal/cidade utópica.

Essas considerações, alicerçadas na idéia mais geral acima apresentada, adquirem sentido quando em sua referência ao espaço e lugar da cidade do Rio de Janeiro permitem considerar:

a. As formas de atuação européia na América, mesmo marcadas por processo de acentuada repressão, representam a afirmação da cultura renascentista na sua versão ibérica, daí decorre que a América é um espaço de experimentação da explosão criativa da cultura do século XVI.

b. A América como campo de experimentação estabelece a idéia de um espaço de complementariedade entre cultura européia e natureza do Novo Mundo que tem como resultado aparente a inserção na América de

371

dAS POSSIBIlIdAdES dE CIdAdES UTóPICAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

dois modos distintos de interpretação do Novo Mundo: um que o pensa como espaço de crítica e acentua seu sentido alegórico como reconstrução de um novo conceito de civilização que se desdobra, por sua vez, em duas tendências, aquela que vê o Novo Mundo como volta ao Paraíso ou ao Jardim das Delícias e a outra que a toma como lugar do futuro; outro que adquire o sentido de demonstração da potência do homem de transformar a natureza e que, com o tempo, toma o sentido de exploração.

c. A cidade do Rio de Janeiro pode ser tomada como um espaço peculiar de ação desses dois modos que acabam por criar uma situação de reciprocidade e dão à cidade uma inserção particular no contexto do sistema colonial português no Novo Mundo.

d. A cidade do Rio de Janeiro será considerada como o lugar singular de constituição de uma sociedade de colonos que projetam sobre o Rio de Janeiro uma forma urbana que atua paralelamente ao sistema de controle do Estado português, produzindo inclusive um processo de acumulação de riquezas por fora do sistema colonial, fazendo a cidade dispor de um grau de autonomia e liberdade distinto da capital da região colonial - Salvador.

e. Ao contrário de Salvador, o Rio de Janeiro é uma cidade aberta para o mundo e, por isso, apresenta-se como receptora das polêmicas do renascimento.

Nesse mesmo plano, vale ainda lembrar a necessidade de recolocar a questão da dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro, no sentido da presença portuguesa e francesa.

No contexto particular, o tema, é óbvio, assume uma configuração também singular. Como a preocupação central é colocar em presença orientações distintas, seria difícil definir a priori mecanismos ou procedimentos, uma vez que os mesmos poderiam já pressupor determinadas direções. Por isso, centrarei a questão no estabelecimento de um caminho crítico orientado pela idéia das formas de representação do Novo Mundo no pensamento e na cultura renascentista através de uma reflexão sobre os sonhos renascentistas. Entretanto, por falta de tempo, ficarei na observação da cidade do Rio de Janeiro como espaço de ação de projetos utópicos.

O exemplo das cidades utópicas é sem dúvida a Ilha da Utopia de Morus. Todo o Livro II, onde se descreve o lugar físico e social da Utopia, é acentuadamente espacial e os princípios morais e éticos decorrem, em seu aspecto de força, do modo de inserção no espaço. No caso de Alberti, há dificuldades de encontrar autores que compartilhem a idéia de que sua produção, de uma amplitude temática imensa, vá além do que especificamente observações pontuais sobre pintura e arquitetura e que, nesse conjunto de reflexões, a construção das cidades ideais apareça fragmentada. A hipótese é que, distinto de Morus, onde a cidade utópica toma forma na Ilha da Utopia, Alberti, pelo seu alto grau de intervenção no cotidiano, apresenta a construção da cidade ideal de forma assistemática.

Entretanto, basta ler com atenção as suas reflexões para se sentir tomado por uma sensação estranha de que a cada passo da leitura, não só o mundo renascentista com todas as suas nuanças ganha forma, mas as situações adquirem a qualidade da construtibilidade e da espacialidade. Para

372

ANTONIO EdMIlSON MARTINS ROdRIgUES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

manter essa leitura interpretativa de Alberti é preciso ultrapassar as visões que dele se construíram, principalmente, a de Giorgio Vassari que o reduz a mero organizador de métodos dos outros. Muitos procuram a sua cidade ideal em desenhos ou projetos, outros em cidades reais que mereceram de Alberti algum tipo de intervenção. Poucos, entretanto, procuram a sua cidade ideal costurando por dentro os seus textos.

No caso de Alberti, é fundamental que se trabalhe com o plural - cidades ideais - pois seu discernimento do mundo e sua perspicácia quanto às relações entre homem e espaço obriga-nos a pensar na multiplicidade de arranjos distintos com relação à cidade. Se a leitura de De re aedificatoria procurar algo mais do que leis para a construção, identificar-se-ão propostas e princípios das cidades ideais e críticas às cidades reais.

A cidade ideal de Alberti está num pequeno comentário que estabelece, por exemplo, a aproximação entre a casa e a cidade; a cidade ideal é igual à casa ideal, o que determina a localização dos critérios de harmonia, beleza, conforto e equilíbrio como pré-requisitos para as cidades ideais. A arquitetura e a pintura são tomadas pelo humanista como chaves para demonstrar a potência do homem em ultrapassar a natureza sem deixar de imitá-la na sua configuração matemática, elaborando, a partir daí, a teoria das proporções.

Da mesma forma, para entender Morus é preciso ultrapassar os lugares comuns de interpretações absolutas e procurar os motivos e os princípios das cidades utópicas em Erasmo, Damião de Góes, no movimento Devotio Moderna, nos relatos dos descobrimentos portugueses e espanhóis e nos debates intelectuais, políticos e diplomáticos da Holanda, não para reduzir suas reflexões a meras descrições daquilo que ouviam, mas para mostrar a força da inventiva individual e o espírito aberto de Morus.

O conhecimento do Novo Mundo acarreta o desenvolvimento da crítica social e desempenha papel importante na produção das cidades ideais e utópicas. Entretanto, a força dessas respostas críticas é maior porque o Novo Mundo foi dado a conhecer e gerou um processo de rediscussão do significado da civilização e da idéia de Europa.

Os relatos das Índias indicam, por vezes, assombro e, por outras, superioridade e desprezo mas, qualquer que seja a atitude, o resultado anuncia contrastes. É essa condição do texto-relato que o faz surgir como intermediário, como um lugar nenhum, e que é diferente em Montaigne e em Córtez. A circulação das informações e as comparações que elas permitem levam tanto à produção do conceito de “guerra justa” como ao conceito de “bom selvagem”, sem que Montaigne ou as autoridades papais tenham estado no Novo Mundo.

Mas além desses conceitos de ordem moral ou econômica, também surgem apreciações que associam modos e costumes ao lugar natural. Algumas relacionando-as através do mito de uma volta da fabulosa “Idade de Ouro”; outras ao projeto de uma troca capaz de fazer a Europa superar suas crises.

Essa segunda forma de relacionar a apreciação é que culmina na produção das cidades ideais e das cidades utópicas, possibilitando agora

373

dAS POSSIBIlIdAdES dE CIdAdES UTóPICAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

uma diferenciação entre elas. As cidades ideais vinculam-se a um projeto de reformas das cidades reais. Seu espaço construtivo não é eqüidistante da cidade real. A cidade ideal convive com a cidade real e funciona como alarme em situações de crise. Essa noção decorre do primeiro humanismo renascentista, anterior ao realismo de Maquiavel, no qual Alberti tem uma presença significativa e que diante das crises opta pela capacidade vigorosa do homem renascentista de superar os seus limites.

Dessa forma, as cidades ideais são imaginadas a partir da dinâmica interna das cidades reais, não necessitando de um elemento externo para adquirir sentido e ganharem forma. Por isso, sua representação imagética tende a associá-las à cultura aristocrática, ao refinamento nobre e à arte no sentido de sua força estética. Entretanto, são essas cidades ideais que se afirmam como modelos para a construção das cidades coloniais na América Ibérica. Os critérios de ordem das cidades ideais têm uma dinâmica assegurada pela geometrização de sua imagem, que é, ao mesmo tempo, o limite de sua característica ideal e também sua fronteira.

As cidades utópicas, ao contrário, constituem-se a partir de um espelho externo para depois voltarem-se para dentro das cidades reais, precisam de um espaço constituído como “alhures” ou “lugar nenhum” para existirem. Por isso, são mais difíceis de serem construídas no imaginário e possuem um ordenamento físico muito mais detalhado. Como já são produções da segunda fase do humanismo, posterior a Maquiavel, as cidades utópicas expressam valores éticos e morais, associando-os ao lugar geográfico, quase todas tendo como elemento comum estarem separadas do mundo real pelo braço de mar ou por um rio, adquirindo a feição de uma “ilha” isolada.

O detalhamento dos costumes, hábitos e instituições é a forma de projetar radicalmente suas críticas ao mundo real, diferenciando-se das cidades ideais, nas quais a estética da cidade gera um prazer capaz de alterar hábitos e produzir novas relações de sociabilidade. Nas cidades utópicas há que se trabalhar, a idéia de produção se mantém presente como ponto de equilíbrio entre os habitantes, já que a propriedade privada foi abolida.

Nas cidades utópicas há um aparente cancelamento do “eu” e os ideais de liberdade e autonomia são regulados pelos preceitos morais contidos em cada um daqueles que habitam as cidades utópicas. Nas cidades ideais mantém-se o “eu” renovado e a noção de sujeito adquire o sentido de criador e planejador. Entretanto, uma leitura atenta das cidades utópicas mostra que o cancelamento do “eu” é um processo de intervenção ativa do sujeito, que ao ser capaz de perceber o desastre, como fim do caminho de grandeza do homem renascentista, propõe uma cura diferente daquela que está presente nas cidades ideais.

Essa cura projetada como cancelamento e/ou intervenção aproxima Morus e Maquiavel. Também, para o florentino, trata-se de superar o desastre que se aproxima e também a cura verifica-se pela produção de uma imagem de intervenção que, no caso de Maquiavel, é a de um “príncipe”, que metaforicamente é a imagem do homem em sua tentativa desesperada de superar o desastre. No caso de Morus é a Ilha da Utopia que se afirma como metáfora da nova cidade/nova humanidade.

374

ANTONIO EdMIlSON MARTINS ROdRIgUES

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

A cidade do Rio de Janeiro marcou o seu território com uma dupla presença de tendências utópicas. De um lado, o projeto da França Antártica, articulado por muitas mãos, e que teve um comandante francês, erudito da Renascença e temeroso com as reformas religiosas, como realizador – Villegagnon. De outro, o sonho de um visionário como Mem de Sá, irmão de Sá de Miranda. A guerra que se estabeleceu na terra carioca resultou na constituição de uma cidade de colonos, ideal e utópica.

Bibliografia

DUBOIS, Claude-Gilbert. O imaginário da renascença. Brasília: Eunb, 1995.

BURKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália. SP: Cia das Letras, 1988.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. RJ: José Olympio, 1936.

RAMA, Angel. A cidade das Letras. SP: Brasiliense, 1982.CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo. SP: Perspectiva, 1986.ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. SP:

Martins Fontes, 1991.RABELAIS, François. Gargantua. SP: Hucitec, 1982.ELLIOT, J. H. O velho mundo e o novo. 1492-1650. Lisboa: Editorial

Querco, 1987.SKINNER, Quentin. Los Fundamentos del Pensamiento Politico Moderno. I.

El Renacimiento. México: FCE, 1985.

Resumo

Le utopie sono rappresentate spesso come mappe, immagini parziali e incerte che utilizzano convenzioni grafiche e in cui le caratteristiche del territorio sono ridotte, selezionate e riprodotte e focalizzandosi solo su alcuni dei livelli di realtà conoscibili. quale è la rappresentazione e l’interpretazione dell’utopia nel passaggio all’era virtuale? Quali le nuove mappe fisiche e mentali?

Palavras-chave

Utopia, mappa, Flatland, Edwin Abbott, era virtuale.

Marianna Forleo trabalha no ISFOL (Istituto per lo Sviluppo della Formazione Professionale dei Lavoratori). Especializou-se na Scuola di Scienze Organizzative S3Studium. Colaborou com Domenico de Masi na Cátedra de Sociologia do Trabalho junto à Universidade La Sapienza, de Roma. Interessa-se pela relação entre utopia e matemática, tendo publicado vários artigos sobre Flatlandia (1884), de Edwin Abbott. Colabora com Bruna Consarelli na Cátedra de História do Pensamento Político junto à Faculdade de Ciências Políticas de Roma 3.

Le mappe dell’utopia. Immagini cartografiche di spazi urbani e rappresentazioni mentali nell’era postmodernaMarianna Forleo Istituto per lo Sviluppo della Formazione Professionale dei Lavoratori (Itália)

376

MARIANNA fORlEO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

La mappa è metafora di conoscenza. Per quanto il più possibile vicina alla realtà è una proiezione imperfetta e approssimativa di un luogo fisico, strumento di orientamento nello spazio. Nelle mappe sono impliciti i vari livelli di realtà che la percezione umana

è in grado di cogliere in uno stesso territorio; una stessa regione, uno stesso luogo possono infatti essere mappati in modo diverso e generare molteplici rappresentazioni: l’unicità e l’identità del territorio si moltiplica e si sfaccetta in relazione alle proprie mappe. E’ quindi importante riconoscere che mappa e territorio sono comunque due entità distinte, fra le quali esiste una relazione di corrispondenza; il territorio reale esiste sempre in maniera indipendente dalla sua mappa, che solo dopo un processo cognitivo con cui si interpreta e si traduce, si fa sì che essa corrisponda al proprio territorio. L’importanza delle mappe è definita dall’importanza dei luoghi, lo spazio fisico da sempre definisce identità e senso all’individuo.

Solo in un caso le mappe coincidono e abbracciano il territorio, ne disegnano i contorni e lo raccontano totalmente: nel caso della descrizione di città fantastiche e inventate che, senza raffigurazione grafica, non avrebbero alcun modo di esistere. Nelle città utopiche infatti le geografie immateriali sono esatte per definizione, nelle loro mappe non sono contemplati filtri né convenzioni grafiche perché delle utopie non esiste la realtà ma solo eventualmente la sua rappresentazione. La mappa nelle città utopiche coincide esattamente con il luogo, come proiezione cartografica di un luogo-che-fisicamente-non-c’è. La rappresentazione delle utopie si pone come uno specchio, testimonianza della loro organizzazione razionale come una proposta di orientamento mentale che tende ad una visione positiva e certa del mondo. Nel rapporto tra l’utopia e il territorio è evidente l’impossibilità di cogliere lo spazio realmente, si ha solo la percezione di poterlo identificare, forse di comprenderlo ma esclusivamente sul piano emozionale, percettivo, mai reale. I livelli di realtà rappresentati quindi sono infiniti e l’identità tra disegno e luogo è totale.

L’utopia che più di tutte rappresenta una mappa in tutte le sue forme è Flatland, a romance of many dimensions, utopia geometrica di Edwin A. Abbott pubblicata a Londra nel 1882. Mi riferisco in particolare a quest’opera utopica perché presenta contemporaneamente due aspetti importanti; da una parte Flatlandia è di per sé una mappa, non c’è alcun passaggio mentale o dimensionale per collassare strutture solide, pur utopiche, su un piano; questa è un Piano essa stessa, come evidente dai disegni dell’autore; il contenente coincide perfettamente con il contenuto; ma il Piano di Flatlandia, la mappa appunto, esplode in uno Spazio sconosciuto improvviso, diventando metafora dello spazio contemporaneo e della condizione postmoderna.

Il racconto è ambientato in un mondo limitato tra due assi cartesiani, un piano infinito su cui giacciono figure geometriche delimitate da contorni luminosi. Quest’utopia nasce come un jeu d’esprit che riassume le istanze filosofico-scientifiche del proprio tempo; il narratore è il quadrato A Square che descrive il popolo del Piano una società piramidale, basata sulla complessità di configurazione delle figure: Al gradino inferiore c’è il Segmento-Donna, totalmente priva di angolo, segno di una intelligenza razionale, al gradino

377

lE MAPPE dEll'UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

successivo ci sono i Triangoli Isosceli, considerati classe inferiore in quanto figure non ancora regolari, quindi i Triangoli Equilateri, che rappresentano la classe media; i Quadrati, che rappresentano la borghesia ei Poligoni regolari che rappresentano la nobiltà. Al vertice dell’organizzazione sociale ci sono i Cerchi, Sommi Sacerdoti e organizzatori di tutte le Arti e le Scienze. Questi detengono il potere e impongono leggi durissime e irrevocabili che garantiscono a Flatlandia un governo oligarchico al riparo da ogni pericolo di rivoluzione, mantenendo la società in una condizione di immobilismo politico. Ai margini della società vi sono le Figure Irregolari, caratterizzate da irrazionalità di forme e di comportamento, imprevedibili, fantasiosi, anarchici.

La struttura fisica di Flatlandia segue così le leggi proprie della geometria piana. Il paese non ha altezza, una luce eterna confonde il giorno e la notte e penetrando nelle case da un punto sconosciuto rende il paese privo di sfumature e chiaroscuri, un mondo senza ombre in cui tutto è definito in maniera netta e inesorabile. Si può così definire il modello di mappa che Flatlandia propone, una rappresentazione dell’Utopia che non ha bisogno di strumenti altri per esistere se non se stessa, la descrizione-rappresentazione. La mappa geometrica del Piano di Flatlandia è chiusa, è uno strumento di controllo del caos esterno, lo spazio circoscritto del Piano non è altro che una bella metafora dello spazio moderno.

Nel periodo in cui Abbott scrive lo “spazio” non è più quello aperto e infinito delle campagne, ma si chiude, si delimita, si circoscrive come negli assi cartesiani; lo spazio é tutto ugualmente neutro ma nell’epoca moderna lo si vuole addomesticare, chiudendolo tra muri e recinti. Lo spazio della società industriale è pieno, è ora una convivenza forzata fra gli individui, lo spazio industriale coincide unicamente con gli spazi limitati chiusi dei reparti delle fabbriche, in cui luogo di lavoro e luogo di vita coincidono; l’unità aristotelica di luogo di tempo e di azione di fine secolo è la stessa della fabbrica inglese e della società del Piano. Flatlandia è ora mappa della modernità.

Flatlandia propone inoltre anche molteplici livelli di lettura e di interpretazione diventando un testo generativo, un momento di passaggio dimensionale ed epistemologico che si rigenera in altre ipotesi, e che dalla costrizione negli assi cartesiani esplode improvvisamente nello Spazio delle tre dimensioni con un nuovo big bang. Nella seconda parte del racconto infatti alcuni elementi di discontinuità e di rottura rispetto alle certezze cartesiane ci inducono a pensare al testo come anticipatorio delle istanze postmoderne. Il passaggio ad una dimensionalità superiore ha luogo nel momento in cui una Sfera interseca il Piano, si rivela al Quadrato prima come un punto e poi come una circonferenza di raggio sempre maggiore e le due figure, una piana e una solida, riescono a comunicare; il Quadrato viene così a conoscenza dell’esistenza di mondi a dimensione diversa da Flatlandia. La Sfera stacca A Square dal piano e lo solleva, in modo che questi possa vedere il suo mondo dall’alto e avere la prova evidente dell’esistenza dello Spazio da cui la Sfera proviene, uno spazio globale che contiene il punto, la linea e la superficie. Il passaggio dal Piano allo Spazio, è una variazione, un salto, un passaggio dimensionale ma anche epistemologico: da una mappa proiettiva Flatlandia diventa una mappa generativa; l’iniziale impossibilità del Quadrato di concepire la terza

378

MARIANNA fORlEO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

dimensione a Flatlandia è nella sua assoluta impossibilità di pre-visione, intesa come acquisizione di categorie mentali utili a decodificare nuovi mondi, a pre-vederli e quindi a vederli, accoglierli. A Square, in un sogno, topos letterario, conosce e comunica con gli abitanti delle singolari realtà del regno del Punto e della Linea, entrambe contenute nel Piano e integrate ad esso ma perfettamente autonome, e la relazione che si instaura tra dimensionalità diverse risulta uno dei passi fondamentali del testo.

L’esplosione e la generatività di Flatlandia è metafora dell’accettazione di una geometria nuova, non-euclidea, attorno a cui all’epoca vi era un acceso dibattito. Nikolaj Lobacevskij e Yànos Bolanj, tra il 1830 e il 1850, costruiscono i primi sistemi di geometrie non euclidee. Nella storia della fisica a partire da Galileo e da Cartesio, da Bacone e da Newton, tutto era stato misurato, quantificabile, suddivisibile secondo l’idea di orientamento, tipica di epoche che vivono nella consapevolezza e nel controllo. Ma la visione del mondo, fin lì caratterizzata da una tendenziale staticità, acquistava dinamicità solo con l’accettazione di nuovi paradigmi, nuovi e destabilizzanti. L’accettazione della geometria non euclidea implicava di prendere nuova posizione rispetto alla geometria classica. Si rendono possibili nuovi punti di vista, occultati dalla geometria classica e la prospettiva relativistica contribuisce in modo fondamentale a erodere la fiducia nella verità assoluta e nella natura assoluta della conoscenza umana.

Con la modernità ormai alle porte l’avanguardia europea del ‘900 cercò di sovvertire l’accademia con la ricerca di nuovi linguaggi come proposte di interpretazione di una nuova realtà.

Dall’inizio del nuovo secolo Strawinskij scompaginò la musica con La saga della primavera, Le Corbusier rivoluzionò l'architettura con il Modello Domino, Joyce decompose il linguaggio letterario con l’Ulisse, Freud scompaginò la psicologia con L'interpretazione dei sogni, e nel 1907 Picasso pone le basi del cubismo con le Damoiselles d’Avignon. In queste opere l’aspetto innovativo e di rottura è pregnante, discusse e contestate dai contemporanei diventano invece i manifesti di una nuova era e definiscono la nascita e l’accettazione di un nuovo paradigma. La società diventa complessa secondo uno schema che, non ancora identificato, non rientra nelle definizione della realtà classica. La stessa rottura e lo stesso contrasto è evidente nel testo di Abbott nel passaggio dal Piano allo Spazio: la sensazione di smarrimento, di inadeguatezza che prova il Quadrato nello scoprire una realtà diversa nella terza dimensione. L’accettazione della terza dimensione da parte del Quadrato e della conseguente relatività dei punti di vista definisce in questo testo una nuova chiave di lettura; la descrizione del mondo del Piano non è più finita, unica, ma plausibile di interpretazioni e di variazioni; un approccio generativo e polifonico, conducendo dalla dimensione della certezza alla dimensione della possibilità, dal testo all’ipertesto e diventando fonte di ulteriori utopie. Nel momento in cui il Quadrato si stacca e va nello Spazio i confini stabiliti dagli assi cartesiani si annullano, perché il mondo tridimensionale abbraccia valori diversi da quelli dominanti nel regno del Piano, definendo improvvisamente una rottura nel testo e nel pensiero; la traslazione del Quadrato nello Spazio è il rifiuto dell’esattezza e dell'oggettività e l’accettazione della relatività dei

379

lE MAPPE dEll'UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

fenomeni di fronte al particolare e al contingente. La semplicità delle strutture della geometria piana lascia ora spazio

a delle strutture complesse di pensiero. La realtà postmoderna è definita dal declino delle tre dimensioni moderne con cui eravamo abituati a misurare l’universo – spazio, tempo e massa – che lasciano il posto a tre nuove forze: velocità, interconnessione e immaterialità. Queste forze ci costringono a rivedere i nostri modi di percepire, analizzare e organizzare noi stessi e i nostri sistemi sociali, non è pensabile delimitare entro strutture formali razionali una realtà che in ogni momento si presenta come autonoma – e integrata; nell’età della comunicazione e della globalizzazione dei mercati e della cultura, l’assenza di fondamenti assoluti del sapere, la frantumazione delle conoscenze legata ai processi di specializzazione, la messa in crisi dei principi tradizionali della razionalità, hanno creato una dimensione di indeterminatezza, di insicurezza e di disagio collettivo, un disorientamento che cerchiamo di rimuovere con le fughe utopiche. Lo spazio postmoderno si riorganizza secondo forme nuove come quelle offerte dai media, dal telefono o dalla rete di internet. A sostenere la delocalizzazione dello spazio, è stata importante anche la proliferazione di luoghi e, soprattutto, non luoghi. Quale mappa propone Flatlandia per una realtà postmoderna?

Il modello suggerito è rappresentato da una struttura reticolare che ingloba il punto la linea la superficie e lo spazio, elementi geometrici interconnessi e rappresentati dai nodi di una rete. La rappresentazione mentale di una grande rete globale presenta anche visivamente un paradigma rispetto alle strutture gerarchiche classiche piramidali, in cui l’elemento fondamentale erano i confini, i limiti. Ora che i confini spaziali non esistono più, sono stati annullati, abbattuti,quelli rimasti non sono importanti, gli elementi fondamentali della realtà, della rete sono le connessioni, sue le maglie; come è evidente nelle conversazioni geometriche di figura a dimensionalità diverse. Il Quadrato che parla con l’abitante del punto, con il re della linea retta e infine con una sfera è esemplare di un modello comunicativo a rete, in cui le connessioni sono più significative delle relazioni stesse, e suggerisce anche un’idea di interdipendenza. Del resto solo dopo aver definito questa interdipendenza, dopo tali conversazioni geometriche, A Square è pronto ad accogliere una nuova realtà e un nuovo paradigma. L’interconnessione è effettivamente elemento fondamentale di una realtà – reale o virtuale – costituita da processi e da links, quindi di integrazione e connessione, che Flatlandia ci aiuta a decifrare. Il concetto di connessione è implicito nel testo e il passaggio dimensionale è a mio avviso solo un framework interpretativo che evidenzia il punto focale del testo: la comunicazione, quindi connessione tra figure di dimensionalità diversa, la loro connessione e integrazione in una globalità totale, chiave di lettura di una condizione postmoderna. Nella società contemporanea, le nuove tecnologie digitali, le reti telematiche e in particolare Internet, vanno considerate a un tempo causa ed effetto della globalizzazione: esse incarnano quella compressione dello spazio e del tempo che segna la riduzione del mondo ad un’unità complessa.

Flatlandia è così un testo a più livelli, è una mappa dell’Utopia e una utopia che diventa una rete, metafora della realtà postmoderna.

380

MARIANNA fORlEO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Bibliografia essenziale

AA. VV. La sfida della complessità. Feltrinelli: Milano, 1995ABBOTT, E. A. Flatland, a Romance of Many Dimensions. Seeley & Co., 1884;

Adelphi (1993).BANCHOFF, T. “From Flatland to Hypergraphics. Interaction with Higher

Dimensions. In: Interdisciplinary Science Reviews, vol. 15, n. 4, 1990.BARROW, J. D. Il mondo dentro il mondo. Milano: Adelphi, 1991.BAUMANN, Z. Modernità liquida. Roma/Bari: Editori Laterza , 2002.BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation. Competizione e integrazione tra media

vecchi e nuovi. Guerini e Associati, 2002. BORGES, J. L. L’Artefice. Milano: Adelphi, 1999.BORGES, J. L. L'Aleph, I due re e i due labirinti. Milano: Feltrinelli, 1983.CONSARELLI, B. “Tempo, spazio, potere: tre categorie interpretative della

modernità”. In: Giornale di Storia Costituzionale, n. 5, 1/2003 .CONSARELLI, B. Gli spazi immaginati. Firenze: Firenze University Press,

2003.CONSARELLI, B. Spazi e politica nella modernità tecnologica. Firenze: Firenze

University Press, 2003.DE MASI, D. “Nulla sarà come prima, il nuovo mondo è un alveare”. In: Telèma,

n.23, 2000/2001.DEWDNEY, A. Il Planiverso. Il computer e un mondo bidimensionale. Torino:

Bollati Boringhieri, 2003.EMMER, M. Mathland. Dal mondo piatto alle ipersuperfici. Torino: Testo &

Immagine, 2004.HENDERSON, L. The Fourth Dimension and the non Euclidean Geometry in

Modern Art. Princeton: Princeton University Press, 1985.HOBSBAWM, E. J. La Rivoluzione Industriale e l'Impero. Torino: Einaudi,

1972.HOFSTADTER, D. R. Goedel, Escher, Bach: un’Eterna Ghirlanda Brillante.

Milano: Adelphi, 1984.IMPERIALE, A. New Flatness: Surface Tension in Digital Architecture. Basel:

Birkhauser, 2000.JAMESON, F. Il Postmoderno, o la logica del tardo capitalismo. Milano: Garzanti,

1996.LEVI, P. L’intelligenza collettiva. per un’antropologia del cyberspazio. Milano:

Feltrinelli, 1998.KANDINSKY, V. Punto Linea Superficie. Milano: Adelphi, 2000.KUHN, T. La Struttura delle Rivoluzioni Scientifiche. Torino: Einaudi, 1978.PIATTELLI PALMARINI, M. “Mappe della realtà e mappe della ragione”. In:

Livelli di realtà. Milano: Feltrinelli, 1984. PAGETTI, C. Il palazzo di cristallo, l ’immaginario scientifico nell’età vittoriana.

Milano: Mondadori, 1991.RIEMANN B. Sulle ipotesi che stanno alla base della geometria ed altri scritti

scientifici e filosofici, a cura di R. Pettoello. Torino: Bollati-Boringhieri, 1994. RUCKER, R. La Quarta Dimensione. Milano: Adelphi, 1994.SODDU, C. L'immagine non euclidea: la rappresentazione prospettica computerizzata

dello spazio-tempo in architettura. Roma: Gangemi, 1987.

L'utopia cosmopolitica modernaLaura Tundo FerenteUniversità del Salento

Centro Interuniversitario di Ricerca sull'Utopia (Itália)

Resumo

L'utopia cosmopolitica moderna, con Montesquieu e Kant allarga lo sguardo sul mondo e si interroga sulla possibilità di una riunificazione dell'umanità a partire dalla comune appartenenza al genere umano e dall'originario comune possesso della Terra. I grandi fattori progressuali del Diritto, dello Stato nazionale, della Pace, della necessità di organizzazioni sovrastatuali tematizzati in questo momento storico sono divenuti i grandi ambiti di discussione politica e morale della seconda metà Novecento a sostegno dell'utopia cosmopolitica.Oggi torniamo a discuterne anche sulla base di nuovi problemi cercando nuove risposte che sorreggano l'utopia di domani.

Palavras-chave

Utopia cosmopolitica, civiltà, pace.

Laura Tundo Ferente é professora associada de Filosofia Moral e Bioética na Faculdade de Ciências da Formação da Universidade de Salento. É membro fundador do Centro Interuniversitario di studi sull'Utopia e de revistas italianas e estrangeiras (Idee, Cahiers Charles Fourier, Rivista di Studi utopici), é docente do Doutorado em Ética e Antropologia, História e Fundação. Em artigos, ensaios, monografias e edições italianas de clássicos, abordou questões morais e ético-políticas: a análise do projeto utópico moderno e das paixões, da condição da mulher e da família, da estrutura da sociedade e da forma da convivência (L'utopia di Fourier. Bari: Dedalo, 1991; Mercier, L'anno 2440. Bari: Dedalo, 1993; Fourier, Il nuovo mondo industriale e societario. Milano: BUR, 2006). Em diversos escritos teóricos e historiográficos aprofundou a ética kantiana, a filosofia da história e o pacifismo kantiano (Kant. Utopia e senso della storia. Bari: Dedalo,1998; Kant, Per la pace perpetua. BUR: Milano 2005). Também estudou a formação e aquisição dos vínculos éticos, sua aplicação, a tradução jurídico-normativa, e a emergência dos princípios éticos historicamente emergentes na ação política, social, econômica, contemporânea (Moralità e storia. Milano: B. Mondadori, 2005). Organizou volumes com outros colegas a respeito de questões de ética aplicada (Etica e società di giustizia (Bari: Dedalo, 2001), Etica della vita. Le nuove frontiere (Bari: Dedalo, 2006).

382

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

1. PremessaLa ricostruzione e l’analisi che proponiamo della concezione utopico-

cosmopolitica presente nell’età moderna ha bisogno di alcune preliminari considerazioni metodologiche relative al campo d’indagine. Sia che la ricerca indaghi la valenza utopica di opere letterarie, narrazioni, resoconti reali o immaginari, sia che si rivolga alle visioni del mondo e alle posizioni intellettuali più avanzate dell’età moderna o alla progettazione intellettuale che si avvia a tradurle in modelli politici non trova alcuna tematizzazione organica, né esposizione sistematica o teorizzazione politica esplicita, dell’ideale cosmopolitico, bensì quasi soltanto cenni, rinvii, la cui portata cosmopolitica resta limitata, parziale. Trova però alcuni segnali interessanti, l’evoluzione di una sensibilità e di una coscienza etica, l’intuizione di alcuni snodi cruciali, come l’attenzione per la pace, che registra un crescendo teorico dal ‘500 alla fine del ‘700. Per gran parte della modernità l’indagine storico-critica deve confrontarsi il più delle volte con affermazioni sporadiche, con riferimenti indiretti, con proposizioni in forma negativa; con rinvii a idee e aspirazioni legate a visioni cosmico-naturali unitarie, a istanze filantropiche; attraversate dal riferimento alla fondamentale unità del genere umano, alla comune razionalità, al diritto di natura, sostenute dalla prospettiva etica della fratellanza. Si tratta allora di individuare via via che emergono e di contestualizzare i fattori costitutivi della concezione utopico-cosmopolitica che andrà maturando lungo la modernità e raggiungerà con i decenni finali del Settecento e con Kant, una tematizzazione esplicita e una finalizzazione puntualmente definita sul piano etico-politico e giuridico. Occorrerà allargare lo sguardo oltre la descrizione del luogo buono che ancora non c’è, delle narrazioni letterarie e dei romanzi utopici, e indirizzarlo verso la declinazione del concetto moderno di universalità, verso la riflessione – ancora pionieristica – del rapporto fra particolarismo e universalismo, includendovi sia la maturazione di più ampie prospettive giuridiche, l’idea di un diritto delle genti capace di soppiantare il mero jus belli, sia la visione progressuale della storia; è in questo bacino che possiamo riconoscere il formarsi dei contenuti di base del cosmopolitismo come visione utopica.

Dal vasto contesto socio-storico e scientifico, dal panorama dell’acquisizione di nuove conoscenze, dal sorgere di movimenti popolari, dalle espressioni filosofiche e giuridiche che ne interpretano le lotte e le aspirazioni, emerge gran parte del tessuto assiologico peculiare dell’ideale cosmopolitico, pur se talvolta commisto a distorsioni: anzitutto il riconoscimento della libertà ed eguaglianza degli uomini come dati di base della loro natura, l’attivazione delle capacità normative della ragione umana in ordine alla convivenza sociale, la scoperta delle declinazioni morale e politica dell’autonomia, la sovranità e il governo democratico dei cambiamenti sociali; più avanti l’avanzata dei diritti e la sua tensione universalistica. In parallelo sul piano storico e teorico il laborioso emergere di questo tessuto di principi etico-politici incrocia le questioni del particolarismo, della diversità, senza riuscire quasi mai a comprenderne il valore, né a impedire il consumarsi delle contraddizioni più violente: imperialismo, conquista, schiavitù, espropriazione; nazionalismo. Vanno dunque cercati

383

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

in questo lungo e intricato percorso i costituenti utopico-moderni dell’idea cosmopolitica e della sua impostazione normativa. In un processo storico e teorico, articolato ma ancora vischioso e problematico, che possiamo dire contiene incoativamente, ma poi gradualmente va dispiegando una visione critico-utopica orientata verso una socialità governata da principi di ragione, tollerante, pacifica, accogliente. L’idea di pace è fra quelle più coltivate in risposta alla conflittualità su base religiosa, alla bellicosa attività di espansione sviluppata in fase moderna dai primi stati nazionali europei, non senza, almeno all’inizio, qualche rischio di ridurla a un filosofema tanto ricorrente quanto generico.

Lungo la modernità apporti di provenienza diversa concorrono dunque a formare il nucleo dell’idea utopico-cosmopolitica, a radunare intorno ad essa materiali di natura morale politica e giuridica; crescono così le premesse per avviare il cammino costruttivo che più nettamente muoverà con le rivoluzioni moderne, con la riflessione pacifista e con Kant. Si forma una consapevolezza etica e una base teorica che consentiranno di pensare il cosmopolitismo come orizzonte prospettico, idea regolativa; come utopia nel senso di proiezione affidata alla progettualità umana, alla processualità della storia, al percorso di disciplinamento/moralizzazione e di umanizzazione.

Con questa nuova configurazione l’idea cosmopolitica si apre a dimensioni molto più ampie e si avvia a intrecciare stabilmente la prassi politica: legando sia l’uguaglianza di tutti i soggetti umani e l’appartenenza a un’unica specie al possesso delle medesime prerogative; sia il godimento e l’esercizio degli stessi diritti alle fondamentali libertà individuali, e all’espressione di una moralità e politicità autonome. La costruzione di comunità socio-politiche nazionali, indipendenti, sovrane, pensate all’inizio come assolute, in forte sviluppo fra Otto e Novecento genera problemi nuovi di non compatibilità o di antiteticità con l’ampiezza della prospettiva cosmopolitica. Un’antitesi che è stata ampiamente riconsiderata ma continua a rimanere centrale pur nei tentativi di ridefinizione.

La fioritura di pensiero morale e politico e le conquiste giuridico-politiche dell’età dei Lumi, selezionano dunque i materiali, individuano i riferimenti concettuali, riconoscono i principi pratici che avviano la trasformazione dell’idea cosmopolitica da incerto ideale razionale in idea normativa capace di progettazione e costruzione storica. La direzione del suo processo costruttivo, che possiamo sintetizzare con Kant nella necessità di rendere quella fondamentale unità di specie e quel comune abitare la terra eticamente e giuridicamente vincolanti, di farne un «compito» storicamente perseguibile, coniuga la sua originaria tensione universalistica di civilizzazione e umanizzazione globale con la diffusione dei diritti e con la solidarietà. Anche per questo si tratta di un processo che resta legato alla presenza degli Stati, principali erogatori e garanti dei diritti. Rispetto ad essi cresce la riflessione circa le forme della relazione fra comunità statuali sovrane, circa le regole giuridiche e politiche utili a preservare la sovranità, scongiurare il ricorrente prodursi di prevaricazioni, stabilire modalità di cooperazione, fini comuni e unità d’azione. Il pensiero pacifista da «vagheggiamento» e «dolce sogno dei filosofi teorici», raggiunge i livelli

384

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

istituzionali prefigurando prospettive di intesa duratura e stabile all’inizio di portata circoscritta, continentale, europea; più oltre, di cooperazione globale. Non si tratta mai, tuttavia, di un processo lineare, unidirezionale, bensì contrastato e denso di problematicità: sul piano teorico il suo sviluppo resta per lungo tempo ancorato a posizioni non incisive, marginali; sul piano della prassi gli corrispondono imperialismi continuamente rinascenti che ne capovolgono il senso, separazioni ideologiche, distorsioni dei modelli di sviluppo, proliferazione di armi sempre più sofisticate in vista di guerre devastanti.

Nella prima modernità l’impeto espansionistico di alcuni stati dell’Europa finanziatori delle imprese di esplorazione innesca un processo molto complesso, in cui l’incontro fra gruppi umani diversi per costumi, religiosità, economie, civiltà, si dispiega insieme a una volontà di appropriazione e di conquista, che non esclude lo scontro sanguinoso ad armi impari. Come già nel caso dell’impero romano, anche in questo momento paradossalmente la strategia di dominio si serve degli stessi vettori che determinano la diffusione di una certa idea cosmopolitica; questa sorta di prossimità dei veicoli e degli strumenti ha costituito da sempre la base dell’ambiguità ed è stata letta come una contiguità tout-court, ignorando precisi ed evidenti fratture e discontinuità.

L’aumento della comunicazione e dell’interazione umana ottenuto con le dominazioni è un esito distorto, la sua pretesa di esportare fattori di progresso e di crescita spirituale ed economica finisce per corrispondere alla distruzione e alla perdita, anche definitiva, di conoscenze stratificate, di civiltà millenarie, di antichi modi di vita, di sapienze e culture. Si consuma così una divaricazione fra la realtà ideale e storica dell’idea cosmopolitica e la strategia fattuale del dominio. Una strategia che procede da una parte introducendo sfruttamento, degradazione e omologazione negli spazi che vengono via via culturalmente ed economicamente svuotati, e dall’altra progettando e costruendo l’architettura delle giustificazioni intellettuali. Prima fra tutte quella della missione civilizzatrice.

L’idea cosmopolitica moderna è infatti profondamente pervasa dalla rappresentazione di sé che la cultura europea ha sempre coltivato – certamente retaggio sia degli imperialismi antichi (ma anche il modello democratico della polis greca è profondamente chiuso e ostracizzante nei confronti dello straniero) sia, pur con qualche distinguo, di quello romano, e anche di quelli dell’età moderna. Tale rappresentazione si condensa nella inquietante vocazione a pensare “l’altro”, colui che si trova al limite dei suoi confini, all’esterno del suo circuito culturale e territoriale, come “barbaro”, estraneo alla sua “civitas” perciò alla “civilitas” e dunque anche all’“humanitas” che queste esprimono. Al suo dispiegarsi, l’universalismo cristiano, che pure nel messaggio di eguaglianza e fraternità contiene il fondamentale nucleo morale del cosmopolitismo, con la sua idea di salvezza (allargata dal popolo eletto a tutte le creature umane) e con la sua tensione al proselitismo, in vista della “respublica cristiana”, ha offerto elementi ulteriori e peculiari. L’“altro” non solo è lungamente guardato con sospetto per la sua diversità, ma si pensa che sia necessario condurlo alla verità e alla

385

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

civiltà, e quando resiste, che vada assoggettato con la forza per il suo bene. Il riconoscimento dell’alterità e del suo legittimo diritto ad esistere con la sua cultura, le sue pratiche, la sua sapienza, è una frontiera della moralità dalla quale la modernità non ha piena consapevolezza sul piano storico e pratico, nonostante sul piano teorico se ne trovi un certo approfondimento in Rousseau e in Hegel. Si tratta di una questione morale di grande valenza, che si estende dal riconoscimento delle differenze culturali a quello delle differenze di genere e delle numerose minoranze, della quale si discuterà ampiamente più tardi. Ci sarà bisogno ancora di una lunga gestazione prima che nella coscienza etica contemporanea si produca uno spazio di affermazione per il riconoscimento dell’altro e per l ’irriducibilità della sua differenza all’interno dell’etica dell’eguaglianza. Un principio morale basilare la cui proclamazione lasciava e lascia sussistere ancora coni d’ombra troppo ampi, primo fra tutti quello che ha avvolto per secoli, e ancora avvolge in tanti luoghi della Terra, la metà femminile dell’umanità.

2. civilizzare come conquistare: la discussione teologico-giuridica moderna di fronte alla prassi del colonialismo.

Per comprendere le implicazioni della missione civilizzatrice che identifica «la civiltà» con la rappresentazione della cultura europea, di grande interesse euristico è la ricostruzione della disputa fra Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda a metà del 1500 all’interno della vicenda complessa e violenta della conquista spagnola delle Americhe. In essa prendono corpo e si presentano gli argomenti teorici e le giustificazioni costanti delle politiche d’intervento/espansione/colonizzazione. Secondo la lezione del teologo Sepúlveda, l’uso della forza nei confronti dei nativi deve considerarsi ammissibile, perché esso contribuisce a garantire all’Impero spagnolo il diritto di imporre la civilizzazione in regioni lontane, abitate da popolazioni che vivono allo stato primitivo e ignorano ciò che occorre alla loro salute e salvezza¹. Da questo dibattito emergeranno le fondamentali motivazioni teoriche, sia sul versante della giustificazione dell’impresa colonizzatrice e dei mezzi utilizzati, sia sul versante opposto, della critica, ma si può anche riconoscere l’uso ambiguo o distorto di idee-cardine come quella di civilizzazione o di legge di natura. E dove Las Casas si esprime con un fervore umanitario più evangelico e meno diplomatico, giudicando duramente le pratiche di conquista, usando toni accesi contro la sete dell’oro, movente che nessuna professione di fede cristiana riesce a occultare, e contro gli eccidi delle popolazioni native, infine segnalando le contraddizioni con l’universalismo della religione e con lo stesso umanesimo della nascente modernità, Sepúlveda, il suo interlocutore, teologo della corte di Carlo V e precettore del giovane Filippo II, interviene portando soccorso dottrinale alle pratiche politico-militari. Alle sue argomentazioni, i pubblicisti spagnoli della Seconda Scolastica frappongono la loro ricerca morale e giuridica per denunciare gli errori di cui la teoria della guerra giusta, in nome del diritto di natura e del sostegno delle Sacre Scritture, si faceva portatrice. Francisco de Vitoria (ma insieme a lui altri giuristi della Scuola di Salamanca,

¹ Sulle implicazioni di questa discussione si veda Wallerstein, 2007.

386

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Covarrubias, De Soto, Banez, i primi a interrogarsi sulle trasformazioni dottrinali conseguenti alla scoperta di mondi e popolazioni nuove e ad aprire il capitolo del diritto delle genti) ricostruiva (De Indis e De jure belli) la lettura del concetto di totus orbis come inseparabile dalla naturalis societas et communicatio come fondamento dell’unità di tutti i popoli; prevedeva la possibilità che un umanesimo supportato dall’universalismo potesse produrre accordo fra i popoli e pace. Per de Vitoria, la communitas orbis governata dallo jus inter omnes gentes, sarà un’autentica respublica generis humanis, le cui pietre miliari egli individua nello jus communicationis e nello jus peregrinandi. Questi pensatori, va detto, scrivono di regole giuridiche in quanto moralisti animati da spirito ecumenico, lo fanno, anche incisivamente, in un contesto linguistico tanto peculiare che risulta impossibile decontestualizzare il loro linguaggio trasportandolo nella contemporaneità senza inficiarne la comprensione; essi hanno a cuore l’evangelizzazione cristiana del nuovo mondo, che non esclude la conquista, perciò non bandiscono mai del tutto la spada (ad esempio contro barbari come Mori ed Ebrei), almeno quanto hanno a cuore l’idea di introdurre regole per la pace. L’elaborazione di uno jus gentium non radicato nello jus naturae, bensì fondato sul principio metafisico dell’amore universale che esige l’unità del genere umano, troverà con Francisco Suarez (De legibus) un più deciso slancio teorico verso regole giuridiche per «dirigere e ordinare» i rapporti fra le nazioni su basi di solidarietà e di concordia. Proprio a partire da queste riflessioni, che diverranno via via più sistematiche con il grande filone del giusnaturalismo moderno, lo jus gladii subirà una erosione progressiva e si avvierà una più corposa e puntuale attenzione politico-utopica alla pace.

Gli esempi di questa attenzione sono costantemente presenti lungo la riflessione moderna, li troviamo nel pacifismo, ispirato ad Agostino, che contempla dunque la possibilità della guerra giusta, dell’Utopia (1516) di T. Moro e in quello più radicale, fondato sul cristianesimo delle origini, di Erasmo da Rotterdam (Querela Pacis, 1517). Anche La Città del Sole (scritta nel 1602 e pubblicata in Germania nel ’23) mantiene l’impostazione di un pacifismo e di un ecumenismo cristiani che si dispiegano entro una città ideale, una terra di fraternità, di armonia, di pace sorretta dallo spirito messianico che anima l’autore. In queste opere utopiche scorre a un tempo un’intenzione politica forte: la critica sociale e politica, una costante strutturale del paradigma utopico, diventa veicolo di un’alternativa politica, in Campanella alternativa all’ideologia imperialista, dominatrice, oppressiva, che come tale non può fare a meno della guerra. Negli stessi anni, in un clima di rinnovati conflitti religiosi Éméric Crucé ritorna con Le Nouveau Cynée sul tema della pace. Per la prima volta si tratta di un ampio e compiuto disegno mirato non in generale a «una nuova società», bensì a convincere tutti i sovrani della Terra – ai quali si rivolge con ricchezza di argomenti – che stabilire e mantenere una condizione di ordine, di governo giusto, e di pace (cui contribuisce la capacità di deterrenza degli arsenali militari) interna e internazionale, universale e permanente, genera «stabilità», «consolida» il ruolo della monarchia e ancor più dello Stato sul piano sociale ed economico; infine, «produce» una «condizione di felicità

387

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e prosperità materiale», esito della liberalizzazione dei commerci e della promozione delle attività produttive socialmente utili. Il nesso fra utopie sociali e politiche e condizione di pace è destinato – come vedremo più avanti – ad ampliarsi sul terreno filosofico, politico e giuridico, a partire da W. Penn, I. C. de Saint-Pierre, G. Bentham. Ma l’aspirazione alla pace non lascia insensibili neppure i fondatori della razionalità e della scienza politica moderna da Descartes (La naissance de la paix, balletto in versi rappresentato nel 1649 alla corte svedese per festeggiare la fine della guerra dei trent’anni e il ventitreesimo compleanno della regina) a F. Bacon, J. Harrington, Leibniz, Wolf, fino a Rousseau e Kant.

3. L’utopia della lingua universale

Su un terreno diverso da quello politico-giuridico ma pervaso anch’esso di istanze etico-cosmopolitiche e utopiche, corrispondenti alle aspirazioni umane a una comunicazione senza barriere, da cui far transitare una relazionalità transnazionale e universale, ritorna nel «Grand siecle», il ‘600, l’attenzione verso il logos come ragione, linguaggio, discorso, declinata in prospettiva universalistica, sia come mezzo di comunicazione che accomuna le élites europee e si frappone alle tendenze nazionalistiche verso la chiusura linguistica/culturale, sia come ricerca di un metodo cognitivo, di una modalità naturale o artificiale per giungere a una lingua comune. Nei due casi è presente una tensione cosmopolitica più o meno ampia e un obiettivo più o meno esplicito di unificazione dell’umanità su basi razionali². La ricerca di un linguaggio universale, è portata avanti da molti studiosi: Joachim Becher (Character pro notitia linguarum universali, 1661) e George Dalgarno (Ars signorum 1661) preparano complesse tavole di corrispondenze terminologiche, come anche John Wilkins il cui Essay toward a Real Character and a Philosophical Language del 1668, è un’articolata e originale ricerca della lingua perfetta attraverso la riduzione delle differenze, considerate contingenti e inessenziali, e attraverso il rinvio a blocchi di immagini mentali universalmente diffuse³. Nella medesima direzione, Leibniz conduce una ricerca epistemologicamente pionieristica che ha alle spalle i progetti enciclopedici del Seicento (l’Accademia di Herborn, la scuola di Alsted, Comenio), ma si propone ambiziosamente di andare oltre l’obiettivo di dar ordine e spingersi a produrre il nuovo. I tentativi di fornire una specie di atlante delle scienze, di sistematizzare tutto il sapere, incrociano il suo specifico interesse per l’elaborazione di un metodo, di una logica, che egli pensa di fondare su due procedimenti: la charatteristica, e l’ars combinatoria. Da una parte, su un «tipo di scrittura» capace di ricondurre le nozioni a una sorta di «alfabeto dei pensieri umani», in cui «tutte le conclusioni che derivano razionalmente dalle nozioni date possono essere scoperte per mezzo di una specie di calcolo, allo stesso modo in cui si risolvono i problemi aritmetici o geometrici». Dall’altra, un’arte, che accogliendo gli sviluppi della logica naturale di Raimondo Lullo senza escludere il sapere cabalistico e magico, punta a una matematizzazione radicale – oltre il tentativo di Athanasius Kircher – della logica e del

² Per Diderot «un idioma comune sarebbe l’unico mezzo atto a stabilire una corrispondenza fra tutte le parti del genere umano e a legarlo in un fronte comune […]. Supponendo un tale idioma fissato e accolto, le nozioni diventerebbero subito stabili; si annullerebbe la distanza dei tempi; i luoghi lontani coinciderebbero; tra tutti i punti abitati dello spazio e della durata si creerebbe una rete di relazioni; tutti gli esseri viventi e pensanti comunicherebbero tra loro». Articolo "Éncyclopédie" in Casini, 1966, p. 199.

³ Per le questioni della lingua perfetta si veda Eco, 1993.

388

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

linguaggio4. I due procedimenti individuati da Leibniz, quello sintetico della combinatoria e quello analitico della matematica, costituiscono il paradigma del metodo logico; in esso sono racchiusi il momento dimostrativo e quello inventivo: l’analisi che conduce alle verità semplici e la sintesi che porta invece alle verità complesse. Si tratta di un interessante tentativo teorico (alla cui adeguata comprensione si è giunti soltanto nel Novecento) di produrre una lingua comune per l’umanità intera che non ha mai cessato di affascinare. Seppure ricorrenti nel tempo, tentativi di produrre lingue artificiali per favorire la comunicazione e le relazioni umane sul piano planetario, per ridurre, fino ad eliminare, una delle grandi fonti di incomprensione, non hanno portato novità risolutive; c’è anzi una nuova valorizzazione della pluralità delle lingue, come patrimonio identitario che contiene la stratificazione delle peculiarità culturali di ciascun gruppo umano, da tutelare e alimentare, anche dov’è minoritario. L’antica esigenza di una lingua comune, più che abbandonata, sembra surrogata in molti modi: dall’uso prevalente di un idioma, un tempo il francese, oggi l’inglese, e con l’aiuto della tecnologia.

4. i materiali introdotti dalla riflessione del Settecento

Le Summae del sapere, la novità del XVIII secolo in cui compaiono definizioni del «cosmopolite», registrano un ristretto ambito di riferimento e una notevole incertezza teorica: con la classica definizione di «cittadino del mondo» accade che si possano affermare cose contrastanti, vi corrispondono sia connotazioni privative, di «colui che non ha dimora fissa, ovvero non è straniero in nessun luogo», ma anche per questo non è un buon cittadino (la voce "Cosmopolite" redatta da de Jaucourt per l’Encyclopédie di Diderot e D’Alembert), o di «colui che non ha patria» (la stessa voce nel Dictionnaire de l’Académie Française, 1762); sia affermazioni classiste e ideologiche. A Londra nel 1751 Fougeret de Montbron pubblica Le cosmopolite ou le citoyen du monde, un’opera che descrive il viaggio del protagonista lungo l’Europa e l’Impero Ottomano e allude a un cosmopolitismo come apertura rispetto alla cittadinanza, il cui senso però non viene esplicitato, mentre si afferma piuttosto la riluttanza a considerarsi a casa propria soltanto quando ci si trova entro i confini del proprio Stato. Risalta l’atteggiamento cinico e scettico di questo genere di cosmopolita aristocratico nei confronti dell’appartenenza politica e il suo pervasivo egoismo: mentre avverte affinità con gli aristocratici del mondo egli riversa sul popolo del suo Stato uno snobismo classista e un disprezzo intellettuale non difficile da trovare anche in altri intellettuali del tempo. L’incertezza teorica rimane alta anche quando al cosmopolita aristocratico si aggiunge il cosmopolita mercante descritto da Raynal, colui che piega a ragioni ideologiche la comune appartenenza, interpretando l’essere abitante del mondo come presupposto per il libero accesso, equivalente a sfruttamento, alle risorse del mondo: «crolli», perisca pure «il mio paese, la contrada, il cittadino e lo straniero», «tutti i luoghi dell’universo per me sono uguali». «Quando avrò devastato, succhiato, estenuato una regione, ne resterà sempre un’altra in cui potrò portare il mio oro e goderne in pace»5.

4 De scientia universali seu calculo philosophico, tr. it. in Barone, 1968, p. 234-235.

5 G.T.F. Raynal, Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes, 1770.

389

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Il ventaglio definitorio è destinato ad ampliarsi sotto altre spinte. Nella fase oscura di lacerazione degli equilibri politico-religiosi e delle persecuzioni dopo la Riforma, in contesti politici liberali come Inghilterra e Olanda, matura la discussione sulla tolleranza che spazia dalla richiesta di libertà di stampa all’invocazione di un pluralismo religioso e politico. J. Milton intraprende, con l’Aeropagitica una battaglia per la «libertà finalizzata a raggiungere la verità»; di essa dice che si trova «frammentata e sparsa ai quattro venti», e che va rintracciata e radunata in ogni sua parte con incessante studio e investigazione e, per questa via, pazientemente «ricomposta»6. Locke, Spinoza, Voltaire approfondiranno la portata politica e religiosa della tolleranza orientandola sempre di più verso la separazione delle diverse sfere di competenza; intanto matura anche un nuovo significato del dialogo scientifico, filosofico, letterario, politico; lo si fonda su una rete di rapporti fra studiosi e pensatori di diversi paesi, sulla trasversalità delle conoscenze rispetto alle credenze e alle confessioni religiose, sul valore dell’accesso al sapere. Pensiamo a Bayle, all’impresa editoriale e culturale di straordinaria apertura cosmopolitica che sono le «Nouvelles de la république des lettres»; all’ideale comunità di intellettuali e di spiriti liberi, ai lettori di tutta l’Europa, cui la rivista si rivolge, considerandoli accomunati dall’amore per la conoscenza, da una fratellanza morale contro ogni pratica censoria o intollerante, da un eguale diritto morale ad appellarsi alla propria coscienza razionale. E al fatto che fino alla fine del Settecento e agli inizi dell’Ottocento la figura de l ’homme de lettres, del philosophe, del dotto, come anche delle societés savantes, non cessa di assumere contorni e ruoli sempre più precisi: di osservazione, analisi, denunzia sociale, critica delle forme istituzionali, difesa dei diritti dell’uomo, impegno a favore dell’umanità. Puntualmente, l’abbé de Mably7 esprime una visione utopica che si ricollega allo stoicismo classico, ricerca la possibilità di sottomettere sentimenti e passioni particolari a sentimenti universalmente umani: con singolare acume pensa che l’amor patrio, seguendo la ragione, «deve obbedire», come a una «virtù superiore», «all’amore per l’umanità». L’attenzione esclusiva del legislatore per il particolare, «per dare maggiore estensione e forza alla patria», senza subordinarlo all’amore per l’umanità può produrre – dice – «comportamenti ciechi e ingiusti» quando non è coniugato con un diritto delle genti più avanzato e più umano di quello degli antichi. In Mably si osserva una ripresa del senso stoico della cosmopolis che muove dal radicamento nella polis, nel suo ideale di unità, proiettato sull’intero genere umano.

È poi nella seconda metà del Settecento, nella visione utopica che possiamo considerare emblematica dell’età moderna, dispiegata da L.-S. Mercier ne L’an 2440 (1770), che l’idea cosmopolitica viene associata a un ricco ventaglio di fattori: alla circolazione delle conoscenze letterarie, filosofiche, scientifiche e tecniche; alla diffusione delle notizie; al propagarsi di un «progresso» unitario (di morale, scienza, cultura e arte) e globale, che «spande ovunque effetti benefici»; alla regolazione dei rapporti pubblici e privati sulla base della legalità; al prevalere del diritto sull’arbitrio e sull’oppressione; all’opzione per la pace nelle politiche degli stati; «all’abolizione della schiavitù da un capo all’altro del globo»; alla

6 Cfr. tr.it., 1987.

7 Entretiens de Phocion, 1763.

390

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

riconversione profonda delle finalità mondane delle istituzioni religiose, ma anche alla possibilità di «spazzare via pregiudizi, costumi, tradizioni barbare e inumane» e sostituirli con «il rispetto del senso della vita». Mi pare si possa dire che in quest’opera di L.-S. Mercier si raccolgano una serie di intuizioni e di elaborazioni intorno all’idea morale dell’unità del genere umano; per la prima volta l’idea guida è che la realizzazione delle aspirazioni utopiche più avanzate è affidata a una filosofia della storia progressuale. Così l’avanzamento utopico dell’umanità si stringe con una visione del progresso, identificato con la stessa direzione della storia umana e si coagula compiutamente uno dei topoi fondamentali della modernità che più avanti andrà assolutizzandosi8.

5. Universalismo e particolarismo

Lemmi come Patrie, la cui portata è ancora del tutto angusta, rivelano riflessioni interessanti: Voltaire osserva in merito come sentimenti indeboliti, sempre meno vivi e intensi connotino il passaggio dalla famiglia al gruppo di famiglie, allo stato/patria; come sia impossibile amare con la stessa tenerezza una famiglia troppo numerosa, che si conosce poco; ma anche quanto sia triste la realtà della condizione umana secondo cui per «essere un buon patriota» si debba «essere nemici di tutti gli uomini»; in realtà, sottolinea, soltanto chi «volesse che la sua patria non fosse mai né più grande né più piccola, né più ricca né più povera, sarebbe cittadino del mondo»9. E ancora L. de Jaucourt, nel medesimo lemma per l’Encyclopédie, definisce il più perfetto patriottismo quello comprensivo «dei diritti del genere umano», «rispettati nei confronti di tutti i popoli del mondo». Comincia a venire in evidenza per un verso il possibile esito irrazionale dell’amor patrio, legato al fanatismo, al particolarismo nazionalista, all’intolleranza religiosa, alla guerra; per altro verso il costituirsi di una sorta di gerarchia di valori che tende a risolvere la contraddizione fra particolare e universale senza esclusioni, piuttosto attraverso graduazioni e complementarità fra amor patrio e fraternità universale fra gli umani.

Ma è probabilmente Montesquieu che ha lavorato in modo più ampio all’osservazione dei popoli, dei costumi, dei climi, delle istituzioni; alla comprensione delle questioni dell’universalità e della differenza. Con L’Esprit des lois10, l’opera che l’aveva occupato a lungo, fin dall’inizio, individua nel principio di universalità il cardine del mondo fisico e di quello umano; secondo regole invariabili – spiega – Dio ha creato e conserva l’universo fisico in modo tale che «ogni diversità non è che uniformità e ogni cambiamento costanza». Il mondo umano, seppure non altrettanto ben governato, ha anch’esso leggi naturali, primitive e invariabili, che uomini limitati e dalla volontà debordante rispetto all’intelletto violano continuamente, la cui universalità si rivela sia nella loro natura, essi hanno infatti per legge la ragione, quella che «governa tutti i popoli della terra», sia nei tentativi di socializzazione e di convivenza dello stato di natura. Più compiutamente, tuttavia, l’originaria universalità razionale della natura umana si mostra attraverso le società umane governate dal diritto

8 Per la discussione della novità della visione utopica/ucronica di Mercier e della filosofia progressuale della storia rinvio al saggio introduttivo “Il secolo, l’uomo, l’opera”, alla traduzione italiana (L’anno 2440, a cura di L.Tundo, 1993).

9 Dictionnaire, 1764.

10 Cfr ed. La Pléiade, II.

391

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

civile, politico, e dal diritto delle genti. Più che a una universalità relativa alla natura fisica, Montesquieu, sulla scorta della riflessione di G. B. Vico, fa riferimento all’universalità spirituale, normativa e assiologica, alla quale sono in grado di elevarsi tutti gli uomini in quanto tali. Più avanti, si fa concreto l’incontro con la particolarità della condizione umana, la descrizione delle sue variegate espressioni, lo stupore di fronte alle molteplici cause che influenzano gli «spiriti e i caratteri»: differenze climatiche, geografiche, nutrizionali, corrispondono a forme politiche e a usanze differenti; a razze diverse corrispondono diversi costumi morali; a epoche storiche diverse, legislazioni diverse. L’idea della particolarità non potrebbe essere più evidente: «La natura e il clima dominano nelle società primitive, le maniere in Cina, le leggi tiranniche in Giappone […], le massime del governo e i costumi antichi connotano Roma»; come tale, la particolarità esprime il génie naturel di ciascun popolo, e sta al legislatore seguire e interpretare lo spirito della nazione senza cambiarlo: «I costumi di un popolo schiavo sono una parte della sua servitù; quelli di un popolo libero sono una parte della sua libertà». E mentre stigmatizza qualsivoglia intervento esterno su quello spirito come «atto di pura potenza», Montesquieu coglie nei particolarismi il rinvio a una universalità della condizione sociale, ovvero alla «natura delle cose». Qui particolarismo e universalismo si presentano con l’eguale forza argomentativa di due principi-chiave che vanno declinati insieme, vanno coniugati con moderazione e prudenza, a partire dall’avversione per le ambizioni espansionistiche dei monarchi, e dallo sviluppo della concezione federalistica e del droit des gens; vanno finalizzati a stabilire regole per l’equilibrio delle potenze in Europa. Quello dell’unificazione politica e morale, in Montesquieu e in altri, come l’Abbé de Saint-Pierre, si conferma un ideale circoscritto, applicabile all’Europa, considerata tutto sommato «une Nation composée de plusieurs», e da punti di vista diversi, naturali e culturali, in grado di affrontare un’esperienza di federazione.

6. La ricerca utopica della pace

Nel lungo percorso di individuazione delle istanze utopiche che compongono la visione cosmopolitica moderna, un’attenzione peculiare merita, come già si diceva, la riflessione sulla pace, che diventa un vero e proprio filone di pensiero, e genera una tradizione teorica che parla in nome della ragione comune degli umani e del primato ad essa accordato quale veicolo per scongiurarne la distruzione. Questa tradizione raduna sia coloro che partono da una visione del mondo assiologicamente sostenuta, principialmente irenica, preoccupata della sofferenza delle popolazioni, delle «miserie e calamità», del dolore, delle «distruzioni», delle «morti»; sia quanti si confrontano sul piano della prassi con gli interessi dei soggetti coinvolti, con la ricerca delle motivazioni che rendono la pace individualmente desiderabile, economicamente vantaggiosa, politicamente e socialmente auspicabile; fermo restando il legittimo ricorso alla guerra contro, ad esempio, i selvaggi o coloro che dell’uso della ragione «si privano volontariamente» compresi i prìncipi aggressori. La riflessione

392

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

dei pensatori pacifisti11 si trova anzitutto di fronte i ricorrenti conflitti religiosi che avevano travagliato l’Europa per più di un secolo, alle guerre di religione per ristabilire il culto pre-riforma, per ottenere pari diritti, per la restituzione dei beni confiscati, rispetto alle quali invoca la tolleranza. A un tempo, si trova di fronte alla spinta espansionistica, necessariamente sostenuta dalla guerra, che connota le politiche degli stati indipendenti; cui si va affiancando la costruzione dell’appartenenza a una comunità, con i suoi costumi e tradizioni, a un’entità giuridico-politica, a una patria, che nella modernità avanzata, e più spesso dopo la Rivoluzione francese, sarà lo Stato nazionale. Il principale e più robusto fattore problematico che fronteggia sia l’idea di pace sia l’idea cosmopolitica è certamente la pratica della guerra, la condizione di conflittualità che caratterizzava profondamente le relazioni fra gli stati: guerre sempre più frequenti, di lunga durata, dispendiose, che impedivano la stabilità politica, minavano la sicurezza, contrastavano ogni pur minima continuità di progresso produttivo ed economico-commerciale, rendevano precario qualsivoglia avanzamento sociale. Ma si va formando anche la dinamica ideologica della separatezza delle appartenenze nazionalistiche, di contro all’universalismo del sentirsi in unità con tutto il genere umano, co-abitanti del luogo unitario e concluso che è la Terra, perciò cittadini del mondo. L’esigenza etico-politica della pace e l’interesse per un suo nuovo approfondimento teorico cresce sulla base di queste motivazioni e produce una rinnovata riflessione utopica che elabora progetti con un impianto argomentativo più ricco e denso di finalità rispetto al lavoro dei pochi intellettuali che si erano in precedenza occupati della pace; costruisce nel tempo una prospettiva teorica che conosciamo come pacifismo giuridico e rende peculiari gli accenti con cui l’idea della pace sarà presentata nel contesto europeo e in seguito declinata insieme all’istanza cosmopolitica. Questo lavoro non mette comunque al riparo gli autori dei progetti di pace dall’irrisione, né risparmia loro l’etichetta di visionari, di sognatori di realtà impossibili e irrealizzabili, gettando su di essi più di un’ombra di irrilevanza e discredito.

Invece, oggi ci interessano i punti di partenza della loro riflessione: la condanna della guerra fra gli Stati (soprattutto in Europa) e le molteplici ragioni con cui è motivata; le eccezioni che sono previste e che appaiono via via deboli e insostenibili; l’analisi accurata e ampia delle cause della guerra; l’idea, all’inizio generica, di salvaguardare valori di libertà e di giustizia, che diventa nel tempo un’idea cardine. C’è poi una originale attenzione all’individuazione dei mezzi per accrescere – attraverso il risanamento economico e la produttività del suolo, il miglioramento dei collegamenti marittimi, fluviali e terrestri, l’intensità dei commerci – le attività di pubblico beneficio, il benessere e la ricchezza; infine risalta la ricerca delle utilità, dei molteplici vantaggi di natura sociale, economica e commerciale, delle ricadute di una durevole condizione di pace – in termini di sicurezza, di stabilità politica, di prestigio dei sovrani, di crescita anche culturale – per i sovrani, per i sudditi e per gli Stati.

Una preoccupazione, anche pervasa da utilitarismo, presente in tutti i progetti di pace, da Crucé a Saint-Pierre a Bentham e Kant, sia pure con peso

11 Ne segnaliamo i più significativi, oltre ad Erasmo da Rotterdam, Querela Pacis (1517) e Éméric Crucé, Le noveau Cynée (1623) cui accennavamo, C. Chappuzeau, De la justice et de la paix, de l’injustice et de la guerre; les miseres et fins luctueuses des guerres civiles et estrangeres ;et qu’il n’y a rien au monde de si desirable que la Paix (1623); J. Bellers, Some Reasons for An European State (1710); W. Penn, An Essay Towards the Present and Future Peace of Europe by Establishment of an European Diet, Parliament or Estates (1693); C. Irenée Castel de Saint-Pierre, Projet pour rendre la paix perpetuelle en Europe (1713-17) con cui interloquirono G.W. Leibniz con una Lettre all’abbé de Saint-Pierre che accompagna le Observazions sur le projet d’une paix perpétuelle de M. l’Abbé de Saint-Pierre (1715), J.-J.Rousseau, che prepara – presumibilmente nel 1758 – sia un Extrait del Projet di Saint-Pierre cui affianca un Jugement, sia un Extrait della Polysynodie con il relativo Jugement, e D’Alembert con l’Éloge de l’abbé de Saint-Pierre (1779). A fine Settecento riprende una nuova fioritura di progetti più marcatamente politicio-giuridici con J. Bentham, A Plan for an Universal and Perpetua Peace e Of War, Condidered in respect of its Cause and Consequences (1786-89); J. Madison, An universal peace (1792); I.Kant, Zum ewigen Frieden (1795); C.-H. de Saint-Simon, A. Tierry, De la reorganization de la societé européenne (1814); W. Ladd, An Essay on a Congress of Nations (1840) W. Jay, War and Peace (1842).

393

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

diverso, è relativa alla libertà di movimento, alla possibilità di comunicare senza confini nazionali, senza interferenze religiose o impedimenti linguistici; alla libertà dei «commerci», alla loro sicurezza (dalle incursioni di «selvaggi», «predoni» e «pirati» dice Crucé), al conseguente «pubblico vantaggio»: la tutela di questa che era già una risorsa economica primaria su cui l’Europa investiva sempre di più e della quale i pensatori pacifisti intuivano il potenziale enorme e irrinunciabile, poteva venire soltanto da «azioni concordate» e finalizzate messe in atto da sovrani e potentati europei in pace fra loro. Solo relazioni internazionali pacifiche e azioni concordate avrebbero potuto, insomma, favorire sia lo sviluppo interno degli stati quello delle relazioni commerciali.

Il grande fine della ricerca pacifista diventa così l’indicazione progettuale dei mezzi, delle condizioni necessarie per rendere possibile la pace; questa ricerca verrà assumendo il profilo di un bagaglio intellettuale di grande interesse per la ricchezza di intuizioni e di argomentazioni, per la lungimirante capacità di superare i pregiudizi del tempo, per gli istituti e le forme organizzative individuate, per le ragioni che sono portate a sostenerne la validità. L’esito di questa ricerca è differente, proprio come differente è l’efficacia delle indicazioni e la loro capacità di rimanere valide nel tempo. Per alcuni (Crucé, Saint-Pierre, Ladd, Jay), il mezzo principe per giungere alla pace è un’autorità sovranazionale nella forma di Unione, di Alleanza, dei sovrani governanti i singoli stati, cui delegare le decisioni intorno all’uso della forza. Una soluzione che punta sulla partecipazione volontaria dei sovrani e sulla condivisione della premessa di non mettere in discussione lo status quo, di «rinunziare» alle controversie territoriali, politico-dinastiche e commerciali presenti e future, di impegnarsi a non ricorrere di «alla via delle armi» all’interno dell’Unione, bensì «alla conciliazione tramite la mediazione degli altri grandi alleati», secondo le parole di Saint-Pierre. Nel caso di comportamenti contrari di uno dei membri, come «negoziare trattati contrari», «fare preparativi di guerra», allora il suo progetto prevede che «l’alleanza si armerà e agirà contro di lui in modo offensivo». Ladd e Jay, in pieno Ottocento, propendono piuttosto per limitare il ruolo dell’Unione a una funzione di indirizzo e di censura; non le conferiscono poteri interventisti e coercitivi, ma la fanno sostenere, sulla scia delle indicazioni kantiane, da una vigilante opinione pubblica.

Altri pensatori, Bellers, Bentham, Kant, Saint-Simon – in molti casi facendo tesoro sia del dibattito critico sviluppatosi intorno al Projet di Saint-Pierre che, ricordiamo, lo impegnò per gran parte del secolo XVIII, per l’intera sua vita, guadagnandogli l’attributo di «sognatore sublime» e che fu discusso da alcuni dei maggiori intellettuali del tempo, sia degli eventi storici cruciali di fine Settecento: l’indipendenza delle colonie americane e la formazione della Federazione degli Stati americani, la Rivoluzione francese e l’ampia affermazione del principio di libertà – elaborano una strategia federalista di approssimazione alla pace, mostrandosi, contrariamente ai primi pacifisti, molto attenti alle condizioni sociali, politiche e istituzionali all’interno degli stati. In tal modo essi aprono un nuovo capitolo nella ricerca dei mezzi per giungere alla pace: quello dell’interazione fra l’organizzazione

394

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

democratico-istituzionale interna degli stati e la pace, che interpreta sul terreno pubblico il rapporto fra giustizia e pace. Non più un generico riferimento alle condizioni di libertà e di giustizia, ma l’indicazione di una Federazione internazionale come sede in cui stati sovrani potessero discutere e risolvere le loro controversie; i suoi presupposti erano sia le Costituzioni sia le condizioni di libertà-autonomia e di eguaglianza-giustizia per i cittadini dello stato.

Fin qui l’utopia pacifista, se si esclude il respiro planetario del progetto di Crucé, si concentra sostanzialmente sul perimetro europeo, il contesto in cui riflettono questi pensatori è quello delle relazioni internazionali fra gli stati europei che avevano conosciuto una storia secolare di guerre e di distruzioni e cominciavano, con alcune personalità precorritrici, a maturare l’attenzione alla pace. Il salto di qualità da una visione legata al contesto europeo a una allargata a quello mondiale, avviene negli stessi anni finali del Settecento con il kantiano Progetto filosofico di Pace Perpetua del 1795.

Rispetto ai precedenti questo progetto ha una inedita portata cosmopolitica e insieme una tensione costruttiva. Si può dire che esso conduca a maturazione l’eredità pacifista e illuministico/cosmopolitica, che scorre nella cultura europea e la alimenta; un’eredità che trova sintesi nell’idea di diffondere in Europa il riconoscimento dei diritti individuati dalla Dichiarazione d’Indipendenza delle colonie americane, dalla Dichiarazione dell’89 e dalle successive Costituzioni. Per l’estensione di questo saggio, non possiamo entrare nei dettagli della ricca articolazione del progetto kantiano (sei articoli preliminari e tre articoli definitivi); possiamo limitarci a coglierne il fulcro nell’idea che essendo la Terra la casa comune degli uomini e date le sue dimensioni limitate è indispensabile giungere, attraverso gli strumenti del diritto, a regolare in modo civile e pacifico sia la convivenza sociale degli uomini, sia le relazioni fra gli stati. Possiamo indicarne anche l ’originale impostazione utopica da cui l’idea di pace emerge come idea regolativa, orizzonte morale, la cui realizzazione appare molto ardua e lontana, ma che presenta tuttavia i caratteri di un dovere da perseguire, di un compito, pur molto elevato, affidato alla crescita del grado di disciplinamento e di moralità degli uomini.

La struttura del progetto kantiano procede dunque dalla necessità di trasformare una società di natura, regno della forza, della guerra e dell’insicurezza, in una società civile governata dal diritto e dalla costruzione dello Stato (di tipo liberal-democratico) retto da una «costituzione repubblicana», che riconosce la libertà dei cittadini, la loro uguaglianza, il concorso di tutti nella formulazione delle leggi, attraverso la elezione dei rappresentanti, senza escludere le donne, per la prima – e unica – volta negli scritti politici kantiani. Come tale, lo stato si propone di garantire e tutelare tutti allo stesso modo assicurando una convivenza pacifica al suo interno. Sul piano internazionale, la medesima esigenza di assicurare condizioni di sicurezza e di pace nelle relazioni fra stati, suggerisce di costituire una stabile alleanza federale: la «Lega dei popoli». La Federazione (di cui Kant apprezza gli esempi storici coevi) è presentata come il «necessario surrogato» dell’ideale razionale puro, dell’imperativo della ragione, vale a dire la Repubblica

395

l’UTOPIA COSMOPOlITICA MOdERNA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

mondiale, la Cosmopoli. La necessità del surrogato rinvia a motivi pratici, di realismo politico, e non teorici, ovvero alla resistenza che opporrebbero gli stati sovrani a una simile trasformazione; la sua cogenza resta dunque debole e non consente a Kant di eliminare del tutto l’oscillazione fra ideale puro della Repubblica mondiale e opzione realistica della Federazione. Infine, il progetto si sviluppa sul piano planetario con il «diritto cosmopolitico». Si tratta di Besuchsrecht, un diritto fondato sul primitivo e originario «diritto di possesso comune della superficie della terra», e limitato all’ospitalità dovuta al visitatore, un vero e proprio «diritto di visita». L’accoglienza ospitale esclude atti di ostilità e di chiusura verso l’ospite, il visitatore, e apre a una relazionalità più libera e agevole, allo sviluppo dei commerci, ma implica una condanna netta e accorata del colonialismo, delle forme di oppressione, sfruttamento, spoliazione da esso storicamente perpetrate e delle guerre cui ha incitato. Pur nella sua inedita apertura prospettica questo terzo articolo definitivo non giunge fino a riconoscere il diritto di permanere nei confini territoriali dopo la visita, ovvero di migrare. Ma il senso del diritto cosmopolitico, lungi dal costituire una «rappresentazione fantastica di menti esaltate» si conferma in Kant come una «necessaria integrazione» del diritto pubblico e di quello internazionale in vista della pace.

Per la prima volta, si parla dell’opinione pubblica, e si individua un ruolo importante di vigilanza critica e di proposta che essa può svolgere nei confronti della politica, delle sue attività e decisioni; si invoca, come aveva già fatto Bentham, l’eliminazione del segreto dall’agire strategico dei rapporti internazionali, giungendo a identificare la trasparenza tout court con la giustizia12.

I progetti utopici di pace ispireranno in più occasioni la formazione di Alleanze fra stati, di Intese su terreni specifici, di Comunità economiche, l’adozione di comportamenti politici cooperativi. Accompagneranno la formazione di una coscienza morale planetaria attenta alla pace. Soprattutto nel ‘900, dopo le drammatiche esperienze delle due guerre mondiali, della crudeltà dei totalitarismi, dell’abisso del genocidio, della insensata corsa agli armamenti nucleari, hanno ispirato la nascita di organismi sovranazionali come la Società delle Nazioni, l’ONU, l’Ue. Pur lontani dall’essere esempi di piena efficacia, connotati anzi da difetti genetici incurabili, dobbiamo considerarli passi fondamentali sulla via della costruzione di relazioni internazionali cooperative e pacifiche. Il percorso storico costruttivo di un cosmopolitismo inteso come progressiva promozione e tutela della pace, dello sviluppo economico e sociale globale, dei diritti di tutti i popoli, di una civilizzazione globale ha nella utopia universalistica e cosmopolitica moderna solidi riferimenti normativi.

Sulle questioni che essi sollevano poi il dibattito è più che mai aperto.

12 Per un approfondimento dell’intero Progetto di Pace Perpetua, per gli articoli preliminari e in particolare per la discussione del secondo articolo definitivo, rinvio a G. Marini, 2007; e per la valenza utopica del progetto, al mio saggio di Introduzione e alle Note alla traduzione italiana di I. Kant, Per la pace perpetua, 2003.

396

lAURA TUNdO fERENTE

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Riferimenti bibliografici

BARONE, F. (a cura di). Scritti di logica. Bologna: Il Mulino, 1968.

CASINI, P. (a cura di). D’Alembert-Diderot. La filosofia dell’ Éncyclopédie. Bari: Laterza, 1966.

ECO, U. La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea, Laterza, Roma-Bari 1993.

MARINI, G. La filosofia cosmopolitica di Kant, a cura di N. De Federicis e M. C Pievatolo. Roma-Bari: Laterza, 2007.

FERENTE, Laura Tundo. “Il secolo, l’uomo, l’opera”. In: MERCIER, L.-S. L’anno 2440. Bari: Dedalo, 1993.

FERENTE, Laura Tundo. Introduzione e note. In: KANT, I. Per la pace perpetua. Milano: BUR, 2003.

WALLERSTEIN, I. La retorica del potere, tr. it. Roma: Fazi, 2007.

Psicanálise e a vocação iconoclasta das utopiasEdson Luiz André de SouzaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Resumo

Neste trabaho procurarei mostrar a vocação histórica das utopias que persegue muito mais a destituição de certas imagens/ideais que nos capturam em suas ideologias paralisantes. É fundamental pensarmos as utopias como ficções que produzem verdades históricas na medida em que suas narrativas cumprem uma função crítica e interpretativa do laço social. Apoio-me neste ponto na interessante distinção feita no recente livro de Russel Jacoby, A imagem imperfeita, no qual faz uma diferença entre as utopias projetistas e as utopias iconoclastas. Penso que a psicanálise tem muito a contribuir neste debate e pretendo trazer algumas reflexões sobre método que aproximam estes dois campos. Partirei de um texto de Yukio Mishima para desenvolver esta reflexão.

Palavras-chave

Psicanálise, utopia, Lacan.

Edson Luiz André de Souza é professor adjunto do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na Pós-Graduação em Psicologia Social e na Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS. Coordena, junto com Maria Cristina Poli, o Laboratorio de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Politica/UFRGS (LAPPAP). Tem desenvolvido trabalhos em torno da articulação entre psicanálise e arte e do tema das utopias. É membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, do GT Psicanalise e Arte vinculado a ANPEPP, da Associação Univesitária de Psicopatologia Fundamental, do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS, PUC-RJ), do Grupo de Pesquisa Sujeito, Sociedade e Política (USP), da Rede de Pesquisa Escritas da Experiência (UERJ), pesquisador do grupo Outrarte - estudos entre arte e psicanálise (IEL/UNICAMP), membro da Society of Utopian Studies (USA) e membro correspondente do grupo de pesquisa Pandora - Psychanalyse et Art (Université de Paris VII, França). Foi professor visitante em 2006 da Deakin University.

398

EdSON lUIz ANdRé dE SOUzA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

É necessário viver a vida ao limite, não segundo os dias, mas segundo a profundidade. Não é preciso fazer o que vem depois, se alguém sente que tem mais

participação no que vem ainda depois, no longínquo, na mais remota distância. Pode-se sonhar enquanto os outros salvam, se esses sonhos são mais reais para alguém do que a

realidade e mais necessários que o pão. Numa palavra: é preciso tornar a mais extrema possibilidade que alguém traz em si o critério de sua vida, pois nossa vida é grande e

acomoda tanto futuro quanto somos capazes de carregar.Rainer Maria Rilke, Cartas do poeta sobre a vida

Você pode dizer o que é um escritor?

Robert Musil, Um problema cultural

Por vezes, colocar perguntas aparentemente tão óbvias pode surpreender ao perceber nosso embaraço na tentativa de encontrar a resposta que pareceria simples. Talvez um escritor seja justamente

aquele que ainda pode ser capaz de formular perguntas como estas. Contudo, não se trata aqui de responder à pergunta de Musil, mas de pensar a partir dela. Ele inicia seu breve texto “Um problema cultural” com a citação que coloco como epígrafe inicial (Musil, 1965). Na argumentação que constrói em seu texto, Musil mostra justamente a tensão entre o trabalho do escritor e a sociedade de seu tempo que hipocritamente o valoriza de uma forma muito curiosa, ou seja, lhe impossibilitando de viver do seu trabalho. O texto de Musil é de uma ironia profunda, pois mostra que os prêmios literários, as recepções oficiais, os cadernos literários da grande imprensa, o glamour das academias estão longe de tocar no cerne da questão que ele nos endereça. Sua vida é o retrato vivo deste cenário trágico, pois morreu na miséria e esquecimento. Como entender que o autor do Homem sem qualidades, um dos grandes romances do século XX, possa ter sido tão cruelmente abandonado pelo seu tempo? Em seu breve texto, que refiro acima, ele ironicamente toca nesta crueldade quando diz “Não é certo que os escritores possam viver do fato que vivamos deles” (Musil, 1965, p. 90).

O que sabemos é que os escritores, com sua energia sempre em excesso, produzem textos que ainda são capazes de fazer vacilar nosso narcisismo obtuso. Aqui penso especialmente em Pierre Fedida quando atribui às palavras o papel de trazer para a linguagem o excesso do sexual (Fedida, 2000, p. 13). Textos com vocação solar, pois correm o risco de se dissolverem no mundo pela força bruta de uma transmissão que aposta no que se perde. O que se perde é justamente a energia (sexual) que nos captura, nos preenche, nos aquece e nos abandona. Um escritor talvez seja como um sol capaz de palavras/vertigens que, ao nos fazer cair, nos permitem sonhar. Georges Bataille insiste nesta via quando define nossa humanidade como “um Deus caído que recorda do céu” (Bataille, 1976, p. 190).

Caídos podemos ainda sonhar e reconstruir com a energia que restou um espaço celeste. Não será justamente esta a vocação utópica de um percurso analítico? O que a psicanálise tem a dizer sobre o tema das utopias? Louis Marin em seu clássico Utopiques insiste nesta relação entre utopia e escrita. Diz ele enfaticamente que a utopia é inicialmente um livro.

399

PSICANálISE E A vOCAçãO ICONOClASTA dAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Queria fazer um outro breve apontamento preliminar e que já trabalhei extensamente em outro artigo (2006, p. 48-60). Trata-se do surpreendente conto de Yukio Mishima “Morte em pleno verão”. Uma mãe perde seus dois filhos afogados no mar enquanto dorme. Desta tragédia uma única testemunha: o filho caçula com seus dois anos de idade. Como sobreviver a esta catástrofe e ao significante mar que evoca este traumático episódio? Esta mulher anos mais tarde tem outro filho e subitamente resolve voltar ao lugar da tragédia. No caminho para praia escuta o filho/testemunha ensinar para a sua nova irmã a palavra proibida: mar. Enunciação libertadora. Podemos pensar a utopia nesta enunciação da palavra “mar” por Katsuo. Ele desenha para todos um outro mar. Aponta outro horizonte, outra possibilidade de olhar. Utopia que, evidente, não antecipa o que deve ser. O dever ser, nada mais é que um imperativo moral que alimenta as ilusões totalitárias, as quais são equivocadamente chamadas de utópicas. A utopia é como uma formação do inconsciente. Aponta, não uma realidade apreensível, mas um princípio ético do dever de testemunhar e o compromisso com a transmissão. Paul Celan insiste que é preciso reaprender a ler. Katsuo ensina a sua irmã Momoko um pouco da dor, materializada no significante “mar”. Sua corajosa função de testemunha, transmite a todos a responsabilidade que temos que ter diante da nossa história. Utopia de uma recuperação de lugares perdidos. Escrita de resolução impossível, pois indica a insuficiência do que poderia ser a última palavra sobre a questão. O impossível é o horizonte, que nos desperta de nossa paralisia. A escrita é uma espécie de fracasso necessário deste percurso. A utopia é, portanto, uma forma de rasura. Funciona como um furo no futuro, um furo no saber, que antecipamos a todo momento. Por isto que, muito freqüentemente, vivemos a catástrofe cotidiana das “coisas que continuam como antes”¹. A utopia é a própria forma da assimetria, do desequilíbrio, da instauração de uma interrupção no contínuo do presente, um sonho que acorda.

O mar se desarma em letras. Vou me deter agora em uma outra letra, que talvez nos ajude a avançar nesta reflexão. Vou propor alguns breves apontamentos que arriscam uma hipótese de pensar o conceito de objeto a desenvolvido por Lacan como utopia. Lacan faz sua primeira elaboração e desenho mais efetivo do objeto a no seminário da angústia (1968). Apresenta neste seminário inúmeras teses das quais vou destacar algumas, iniciando assim um diálogo com o tema das utopias.

1. Diz neste seminário que os objetos a são situados de um lado, como um ponto de alteridade no Outro, ou seja, são construídos a partir do simbólico, mas não são significantes. São objetos não especularizáveis que faltam à imagem. Lacan insiste nesta falta de imagem, nesta invisibilidade em vários momentos. Diz que o objeto a, suporte do desejo no fantasma, não é visível naquilo que o constitui. Aponta também que não há imagem da falta (Lacan, 2004). Ora, é exatamente este o argumento de Fredric Jameson, grande pensador das utopias contemporâneas, ao ressaltar que a função da utopia é paradoxalmente seu fracasso. Ou seja, vale por aquilo que nos aponta do nosso em falta com a imaginação. Sua função seria justamente de apontar o que fica interrompido na construção de uma imagem. Vejamos o

¹ Referência a afirmação de Walter Benjamin “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe” (apud Bloch, 1979, p. 145).

400

EdSON lUIz ANdRé dE SOUzA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

que diz em seu clássico As sementes do tempo: “O que nós não somos capazes de desejar ou de trazer para a figuração narrativa do sonho ou da fantasia utópica é muito mais significativo e sintomático do que os três desejos existentes de fato” ( Jameson, 1997, p. 85). Então, podemos concluir que o discurso utópico não tem por função uma enunciação do desejo. Acrescenta ele:

a vocação da utopia é o fracasso, o seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno de nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite detectar por mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção. Concluímos, portanto, que a utopia mostra aquilo que não podemos imaginar. Só que não o faz pela imaginação concreta, mas sim por meio dos buracos no texto (p. 85).

O objeto a é uma espécie de furo no texto e é em torno das bordas deste orifício que nossa humanidade se instaura.

2. A angústia, diz Lacan, é a tradução subjetiva do objeto a (2004). Objeto a que poderíamos aproximar do Appensé, menção feita na última aula do seminário do sintoma, uma espécie de contra pensar (2005, p. 155). Um objeto cri-cri, que me faz evocar a proposta de Georges Bataille com seu conceito de Informe, ou seja, o objeto a encontraria seu “sentido” como um objeto que serve a desclassificar. Nesta mesma aula, Lacan menciona o Ossobjeto (2005, p. 145), onde fará a diferença entre letra e o significante, resgatando a função da escritura como intrusão. Utopia como escritura, como intrusa, cortando por dentro o fantasma S <> a. Todas as utopias tiveram a função de produzir textos ficcionais anacrônicos ao seu tempo, em um claro sentido provocador ao espírito crítico adormecido de suas épocas.

Aqui cabe uma diferença fundamental entre o que podemos chamar os utópicos projetistas, dos utópicos iconoclastas². Os primeiros se outorgam uma posição prepotente de saber sobre o bem do outro, sobre o objeto que viria organizar a vida e trazer a harmonia e felicidade que tanto queremos. Em geral, estes textos são armadilhas burocráticas definindo as medidas do viver, a espessura do tempo, a horizontalidade do espaço, a forma do desejo. Mas cuidado! Alguns deles o fizeram por uma via da ironia, mas foram muito mal lidos e compreendidos em suas épocas e ainda o são hoje.

3. As utopias, como o objeto a, apontam um não lugar. Como a página em branco que evoca Giorgio Agambem ao falar de Herman Melville e seu “Bartleby” em um belo ensaio que escreve sobre contingência. Menciona um precedente notável da página branca, ao recordar que Aristóteles comparou o entendimento ou o pensamento em potência com uma tabuleta de escrita onde ainda não há nada escrito³. Utopia como causa, como causa de desejo, mas que não diz de seu objeto. Objeto causa do desejo que barra o sujeito, criando assim esta estranha criatura que se constitui por algo do qual lhe é interditado o acesso. Nesta tradição de inspiração utópica, o enigma não é o pensamento, mas a potência do pensar, não propriamente a escrita, mas a folha em branco.

² Ver sobre este ponto Jacoby, 2007.

³ "A mente é, então, não uma coisa, mas um ser de pura potência e a imagem da tabuinha de escrever, sobre a qual nada ainda está escrito, serve precisamente para representar o modo de ser uma pura potência. Toda a potência de ser ou de fazer qualquer coisa é, de fato, para Aristóteles, sempre também potência de não ser ou de não fazer" (Agambem, 2008, p. 26).

401

PSICANálISE E A vOCAçãO ICONOClASTA dAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

4. Folha que pega fogo, pois tem como borda o real. Outra tese importante aparece: o objeto a como objeto sem idéia e também como objeto dejeto. Temos que pensar este objeto sempre em queda, como o que “resiste a ser assimilado em uma função significante. Dejeto que resiste à “significantização” fundamento de todo sujeito de desejo” (Lacan, 2004, p. 204). Podemos ver aqui a riqueza de uma articulação política potente e que capturo na seguinte idéia que encontrei no seminário de Lacan L’insu que sait de l’une- bévue s’aile à mourre4: “Seria ainda excessivo dizer que há real, porque dizê-lo é supor um sentido. O real que existe é ex-sistência” (Lacan, s.d., p. 76).

Em 1960, o poeta Paul Celan encontrou em uma livraria de Paris uma coleção de ensaios sobre o judaísmo publicada em Praga em 1913. Este livro se chamava The santification of the name, de Hugo Bergmann. Celan, que sobrevivera a um campo de concentração nazista e se suicidou aos 49 anos, sublinhou a seguinte frase do Talmud: “Aquele que pronunciar o nome perderá a sua parte no mundo futuro”. Russell Jacoby diz que esta frase sintetiza um axioma dos utopistas iconoclastas, ou seja, sua resistência em representar o futuro. Mas, é preciso deixar claro, acrescenta ele, se o futuro desafia este saber dogmático, não desafia a esperança ( Jacoby, 2007).

Este parece ser o fio condutor da invenção lacaniana do objeto a, ou seja, introduzir uma desordem denunciando a falácia de nossa crença do encontro do objeto e, em certa medida, a falácia de toda relação de objeto. Roger Dadoun, inspirado na teoria psicanalítica, em seu impressionante ensaio Utopia: a comovente racionalidade do inconsciente vai, inclusive, pensar a utopia como formação do inconsciente. Neste sentido invertendo o vetor presente > futuro para presente > passado. Aqui sintoniza com a psicanálise no sentido de que o horizonte se localiza naquilo que podemos recriar em nossas ficções de origem (Dadoun, 2000, p. 34). Este é um ponto fundamental pela sua dimensão política, pois a história só pode ser construída pelas narrações que produz. Estas narrações, sabemos, sofrem muitos imperativos do poder instituído que tenta estabelecer a versões convenientes. Objeto a como obstáculo ao imaginário, seja na direção centrípeta como entrave ao sentido, seja na direção centrífuga, como barreira ao espaço de visão, tal qual atesta o seu caráter não-especular (Lacan, 2004).

A lógica de construção de sentidos arma o sintoma que, no plano do laço social, tem como um dos nomes possíveis o de ideologia. Podemos aqui propor pensar a utopia como ato analítico, como corte, como princípio esperança, utopia como crítica, utopia como suspensão do tempo histórico. Louis Marin insiste em pensar “a utopia como uma crítica da ideologia dominante” (Marin, 1973, p. 10).

O objeto a introduz fissura no discurso e faz frente às estruturas totalizantes. Portanto, objeto a e utopia, apontam para um não-lugar. Não lugar que sustenta uma posição possível para o surgimento de sujeito. Diz Lacan que só há idéia do objeto a que por seus estilhaços (Lacan, 2004).

Para concluir, dois apontamentos, que mostram com precisão o mal-estar que constitui todo sujeito. O primeiro é uma passagem lúcida

4 Lacan joga com uma série de derivações no título deste seminário. Há muitas traduções possíveis. Uma delas seria algo como: “O não-sabido que sabe do equívoco é o amor”

402

EdSON lUIz ANdRé dE SOUzA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

onde Freud ajuda-nos a descolar o pensamento utópico de uma idéia simplificadora de felicidade. Se o princípio do prazer é, em certa medida, nosso princípio esperança (Bloch), não podemos deduzir daí nenhuma garantia de felicidade. Vejamos em Freud:

(...) o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado: todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja “feliz” não se acha incluída no plano da “Criação” (1980, p. 94-95).

O segundo apontamento trata-se de uma reflexão precisa de Lacan sobre utopia5. Tal passagem encontramos na aula do dia 23 de abril de 1969 no Seminário De um Outro ao outro. Nesta aula, Lacan está preocupado em indagar a relação entre forma e pensamento. Sua questão é como dar forma ao que escapa ao pensamento. Diz ele que o pensar se debate entre a norma e sua transgressão. Procuramos mostrar, em nosso texto, o quanto o objeto a e a utopia funcionam como incisões transgressivas. Lacan busca um pensamento que recupere esta força transgressiva. Certamente sempre foi esta a busca dos utopistas: um pensar contra. Diz Lacan:

É lá que a função de pensamento pode tomar algum sentido ao introduzir a noção de liberdade6. Para dizer de forma radical, é o pensamento da utopia que, como seu nome enuncia, é um lugar de lugar nenhum, de não-lugar, é a partir da utopia que o pensamento será livre para desenhar uma reforma possível na norma. Foi assim que na história do pensamento, de Platão a Thomas Morus, as coisas foram apresentadas. Em relação à norma, do lado do real onde ela se estabelece, é somente no campo da utopia que se pode exercer a liberdade de pensamento” (2006, p. 268, itálico nosso).

Que a navegação continue sempre de forma oblíqua, a única possível, na direção do sol. Talvez em algum momento desta travessia, através da linguagem, possamos balbuciar algum esboço de resposta para a pergunta fundamental de Musil e assim nos aproximarmos, quem sabe, do sentido mais radical do que é uma utopia.

Referências

AGAMBEM, Herman. Bartleby, escrita da potência. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.

BATAILLE, Georges. “La limite de l’utile (fragmentos de uma versão abandonado do texto “A Parte Maldita”)”. In: Oeuvres Complètes, Vol. VII. Paris: Gallimard, 1976.

BLOCH, Ernst. Le principe espérance. Paris: Gallimard, 1976.

DADOUN, Roger. “Utopie: l’émouvante rationalité de l’inconscient”. In: BARBANTI, Roberto. L’art au XXe siècle et l ’utopie. Paris: L’Harmattan, 2000.

5 Agradeço a meu aluno Vitor Hugo Triska a indicação preciosa desta passagem.

6 Lacan está se referindo aqui à força transgressiva do pensamento.

403

PSICANálISE E A vOCAçãO ICONOClASTA dAS UTOPIAS

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

FEDIDA, Pierre. Par ou commence le corps humain. Retour sur la regression. Paris: PUF, 2000.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

JACOBY, Russell. Imagem Imperfeita. Pensamento Utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

LACAN, Jacques. Le Séminaire livre X. L’Angoisse. Paris: Seuil, 2004.

LACAN, Jacques. D’un Autre à l’autre. Paris: Seuil, 2006.

LACAN, Jacques. Le Séminaire livre XXIII. Le sinthome. Paris: Seuil, 2005.

LACAN, Jacques. Seminário XXIV. “L’insu que sait de l’une- bévue s’aile à mourre”, inédito, s.d.

MARIN, Louis. Utopiques, jeux d’espaces. Paris: Les Éditions de Minuit, 1973.

MUSIL, Robert. Oeuvres pré-posthumes. Paris: Seuil, 1965.

RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

SOUSA, Edson. "Escritas das utopias: litoral, literal, lutoral". In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 31, 2006.

SOUSA, Edson. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editora, 2007.

Resumo

A ficção científica se apresenta, com uma intensidade sempre maior, como uma forma liminar, onde as ambigüidades da ciência misturam-se com os impasses da literatura. Como em outros textos da produção narrativa contemporânea, a ficção científica joga um papel determinante. Por um lado, os mitos declaram a própria falência; por outro, alegoricamente, a literatura insere, no tecido das próprias páginas, tropos literários como o neutro, a negatividade e o vazio. A escrita da ficção científica das últimas décadas parece exaltar a morte dos mitos do progresso e da ciência. Porém, ao mesmo tempo em que esvazia os mitos, essa literatura pretende reconstituir afirmativamente um novo sujeito. A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. Le Guin (1969) recentemente traduzido no Brasil, testemunha, com outros textos clássicos de Andrei Platonov, Doris Lessing, Stanislaw Lem e Margaret Atwood, a sobrevivência do gesto da literatura, embora declare a morte dos mitos. A literatura, como a mítica figura de Perséfone, aparece como marca do testemunho da angústia da era contemporânea.

Palavras-chave

Ficção científica, mito, literatura, contemporaneidade.

Biagio D'Angelo é professor doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É membro fundador da Associação Peruana de Literatura Comparada e membro da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada) e da ICLA (Associação Internacional de Literatura Comparada) na qual trabalha como Presidente do Comitê Internacional de Estudos Latino-americanos (2007-2010). Dedica-se ao estudo dos seguintes temas: literatura de viagem, mitologias, teoria literária, literatura comparada e literatura em relação com outros meios de comunicação. Foi professor visitante em várias universidades no exterior: UCA Buenos Aires, Nacional de Bogotá, Sorbona de Paris, Universidade Aberta de Lisboa, etc. Entre suas publicações, destacam-se Borges en el centro del universo (Lima: Editorial de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2005), Nuevas cartografías literarias en América Latina. Entre la voz y la letra (Lima: Fondo Editorial Universidad Catolica Sedes Sapientiae, 2007) e Un río de palabras. Ensayos sobre literaturas y culturas amazónicas, organizado com Maria Antonieta Pereira (Lima/Belo Horizonte: Fondo Editorial UCSS, 2007). Em 2008 foi nomeado Presidente da Associação Brasileira de Estudos Americanos (ABEA).

Perséfone no espaço. A literatura e a morte dos mitos na ficção científicaBiagio D’Angelo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil)

406

BIAgIO d'ANgElO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Écrire commence avec le regard d'Orphée, et ce regard est le mouvement du désir qui brise le destin et le souci du chant et, dans cette décision

inspirée de l'insouciance, atteint l'origine, consacre le chant. Mais pour descendre vers cet instant, il a fallu à Orphée déjà la puissance de l'art.

Cela veut dire: l'on écrit que si l'on atteint cet instant vers lequel l'on ne peut toutefois se porter que dans l'espace ouvert par le mouvement

d'écrire. Pour écrire, il faut déjà écrire. (Maurice Blanchot, “Le regard d’Orphée”, L’espace littéraire, p. 225)

A ficção científica se apresenta, com uma intensidade sempre maior, como uma forma liminar, onde as ambigüidades da ciência misturam-se com os impasses da literatura. Como em outros textos

da produção narrativa contemporânea, a ficção científica possui um papel determinante na desconstrução dos mitos. Com efeito, por um lado, os mitos declaram a própria falência; por outro, alegoricamente, a literatura insere, no tecido das próprias páginas, tropos literários como o neutro, a negatividade e o vazio. A escrita da ficção científica das últimas décadas parece exaltar a morte dos mitos do progresso e da ciência. Porém, ao mesmo tempo em que esvazia os mitos, essa literatura pretende reconstituir afirmativamente um novo sujeito. A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. Le Guin, de 1969, mas só recentemente traduzido no Brasil (2008), testemunha, com outros textos clássicos de Andrei Platonov, Doris Lessing, Stanislaw Lem e Margaret Atwood, a sobrevivência do gesto da literatura, embora declare a morte dos mitos. A literatura, como a mítica figura de Perséfone, aparece como marca do testemunho da angústia da era contemporânea.

O papel da ficção científica está, efetivamente, longe de um mero entretenimento burguês e de um produto de uma cultura definida depreciativamente como “de massa”. Na literatura “sci-fi”, o escritor se disfarça de filósofo para procurar novas e extraordinárias fontes de energia, que discutem tanto o valor do mais além, quanto a ameaça de um presente sem sentido. Nessas páginas, tentaremos mostrar a força atual da ficção científica, pois permite repensar questões políticas, econômicas, ecológicas e éticas sob o prisma ficcional do jogo literário. A ficção científica instaura, na desconfiança do processo tecnológico, a ambigüidade da co-presença de tensões utópicas e distópicas. Mestres como Andrei Platónov (autor de um dos mais interessantes contos de “sci-fi”, Efirnyi Trakt, “A estrada do éter”, 1923) ou os controversos irmãos Arkady e Boris Strugatski, na Rússia soviética (com o conto “Piquenique à beira da estrada”, 1971, que se tornou o celebérrimo filme de Andrei Tarkovski, Stalker, 1979), inauguraram a descoberta de uma possibilidade única da ficção científica: um romance espacial interior (que os americanos denominarão inner space fiction, ficção científica interior). A sensibilidade pós-moderna tomará conta do deslocamento do sujeito fragmentado para fazer da ficção científica interiorizada um lance de experimentalismo narrativo. Exemplos de fineza e complexidade narrativas serão as produções de Kurt Vonnegut (Matadouro n. 5, -Slaughterhouse Five-, 1972) e o prêmio Nobel, Doris Lessing¹, que nos anos 70, conforme a leitura de Oriana Palusci, “conduz a sua viagem interior

¹ Referimo-nos principalmente ao relato “Report on the Threatened City” (1971) e aos romances The Four-Gated City (1969), Briefing for a Descent into Hell (1971), The Memoirs of a Survivor (1974) e o ciclo intitulado Canopus in Argos: Archives.

407

PERSéfONE NO ESPAçO. A lITERATURA E A MORTE dOS MITOS NA fICçãO CIENTífICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

rumo a uma concepção anti-realista do romance, atrelada a uma visão catastrófica do futuro que determina a necessidade de servir-se de métodos e expedientes próprios da ‘sci-fi’”(website). O anti-realismo proposto por Lessing reveste-se de uma “função tanto social quanto literária, quando sonda e antecipa a realidade futura, dando novos horizontes à mente humana em expansão” (Palusci, website). Portanto, a ficção científica seria, talvez, uma forma pedagógica de “fazer” literatura e pensar o imaginário, como sugerem Vita Fortunati e Darko Suvin (Rose, 1976, p. 71). A pedagogia literária agregar-se-ia, dessa maneira, com a insuficiência do relato realista:

It is by now commonplace to say that novelists everywhere were breaking the bonds of the realistic novel because what we all see around us becomes daily wilder, more fantastic, incredible... The old “realistic” novel is being changed, too, because of influences from that genre loosely described as space fiction (Lessing, 1979, p. IX).

Darko Suvin concorda em ver na ficção científica uma constante aproximação de natureza cognitiva. Trata-se de uma literatura de um estranho cognitivo, à procura de um novum que permita, mais que profetizar o futuro, compreender a realidade angustiante do tempo presente. Daí a exaltação da viagem e da aventura como estruturas e discursos metafóricos da narração cognitiva. O primeiro apelo cognitivo é reenviar o sujeito à hipótese da verdade. Nos textos de Ursula Le Guin, por exemplo, falar de verdade faz parte do espaço íntimo da estratégia narrativa. Em que sentido? A literatura trabalha e mexe com a verdade, seja essa negada e abjurada ou aceita como possível, seja essa uma verdade única e ideológica, seja essa uma proposta plural e relativista. A ironia, que a literatura fundamenta, brincando com a “verdade das mentiras”, é uma passagem obrigatória em narrativas que se ocupariam de mundos futuríveis e, portanto, inautênticos, porque “por vir”, não presentes, não diretamente vinculados à verdade (ou à mentira) de um presente ficcionalmente representado. É a consciência do narrador que propõe Ursula K. Le Guin² no começo sugestivo d’A mão esquerda da escuridão (1969):

Farei meu relatório como se contasse uma história, pois quando criança aprendi, em meu planeta natal, que a Verdade é uma questão de imaginação. O fato mais concreto pode fraquejar ou triunfar no estilo da narrativa: como a jóia orgânica singular de nossos mares, cujo brilho aumenta quando determinada mulher a usa e, usada por outra, torna-se opaca e perde o valor. Fatos não são mais sólidos, coerentes, perfeitos e reais do que pérolas. Mas ambos são sensíveis.A história não é toda minha, nem narrada apenas por mim. Na verdade, não sei ao certo de quem é; você poderá julgar melhor. Mas é toda uma única história e se, em certos momentos, os fatos parecerem alterar-se com uma voz diferente, ora, você poderá escolher o fato que mais lhe agradar; contudo, nenhum deles é falso, e isto é tudo uma única história (2008, p. 11).

Essa consciência do que é a ficção científica e que emerge do preconceito de um gênero literário considerado, erroneamente, como

² Ursula K. Le Guin, pluripremiada com os reconhecimentos máximos no âmbito da ficção científica, é uma das autoras mais importantes e prolíficas da “sci-fi”. Para Le Guin a ficção científica é uma metáfora estética para enfrentar a atualidade. A insistência de temas que variam do feminismo aos modelos utópicos e distópicos, do pacifismo à ecologia, torna a autora de The Disposessed: an Ambiguous Utopia (1974) uma das vozes mais clássicas do panorama literário das últimas décadas.

408

BIAgIO d'ANgElO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

marginal, é muito bem explicada na indispensável introdução ao romance A mão esquerda da escuridão.

A ficção científica costuma ser descrita, até mesmo definida, como extrapolação³. Espera-se que o escritor de ficção científica pegue uma tendência ou um fenômeno do presente, purifique-o e intensifique-o para efeito dramático e estenda-o para o futuro. “Se isso continuar, eis o que acontecerá”. Faz-se uma previsão. (...) Isto talvez explique por que muitas pessoas, que não lêem ficção científica, a descrevam como “escapismo”, mas, quando questionadas mais a fundo, admitem que não lêem ficção científica porque “é muito deprimente” (Le Guin, 2008, p. 5).

Le Guin insiste sagazmente que um autêntico livro de ficção científica não é um livro sobre o futuro, e, como toda produção artística, é um livro de mentiras (“a única verdade que consigo entender ou expressar define-se, logicamente, como uma mentira”, 2008, p. 8). “A ficção científica”, escreve Le Guin, “não prevê: descreve” (p. 6). A percepção de que a literatura, especialmente aquela que lida de forma indireta e por meio de metáforas com a possibilidade de realidades por vir, não é futurologia, é um dos pilares de entendimento do gênero de “sci-fi”. A ficção científica é, por fim, uma grande metáfora, ou um procedimento alegórico, em que interatuam as “grandes dominantes” da contemporaneidade. As ciências, o processo tecnológico, as “perspectivas relativista e histórica” (Le Guin, 2008, p. 9) participam da estrutura do imaginário da ficção científica, como também sublinha Darko Suvin, numa definição do que é esse gênero literário e esse procedimento alegórico na literatura:

Science Fiction is, then, a literary genre whose necessary and sufficient conditions are the presence and interaction of estrangement and cognition, and whose main formal device is an imaginative framework alternative to the author’s empirical environment (Suvin, in Rose, 1976, p. 62).

A literatura de ficção científica possui grandes nomes que não permitem sua redução a “paraliteratura”, no sentido depreciativo de uma produção literária destinada ao consumo popular, das massas, sem qualquer valor estético. Autores como Stanislaw Lem, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin, e, numa breve fase, também Doris Lessing, enobreceram o gênero, acompanhando, com a reflexão filosófica e madura, o estupor e o brilhantismo da imaginação sobre as relações entre máquina, sujeito e mundos possíveis. Como escreve Ieda Tucherman (website)

As narrativas de ficção-científica oferecem aos críticos da cultura outras inspirações, especialmente o questionamento das fronteiras entre a subjetividade, a tecnociência e as possibilidades de experiências espaços-temporais, assim como importantes antecipações, sobre as questões que hoje precisamos enfrentar já que nosso ambiente é efetivamente dominado pela técnica que é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade do nosso presente e o agente da passagem do nosso ontem ao nosso amanhã.

As metáforas mais utilizadas no imaginário “sci-fi” são, certamente, o tópico da viagem espacial, a configuração de uma sociedade alternativa,

³ É um termo fundamental na história da literatura de ficção científica. “Extrapolação” é um elemento da ficção científica, mas como também afirma Le Guin, não é, de forma alguma, sua essência. A extrapolação é o uso de processos da imaginação, relativos a mundos fictícios, a partir das descobertas ou hipóteses científicas e culturais, particularmente sobre tentativas de aproximação científica ao futuro (astronomia, bioética, medicina, por exemplo). O termo, “Extrapolation”, deu também o título para uma das revistas mais conceituadas do setor, publicada nos Estados Unidos a partir de 1959 e fundada por Thomas Clareson. Atualmente, em 2008, seu diretor é Javier A. Martinez, University of Texas - Brownsville (N. D. A).

409

PERSéfONE NO ESPAçO. A lITERATURA E A MORTE dOS MITOS NA fICçãO CIENTífICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

composta não apenas por humanos, mas também por humanóides, alienígenas, andróides, robôs e máquinas, e, ainda, a biologia, considerada na sua forma mais futurista e, portanto, no imaginário, possível. As novas vidas são metáforas de um futuro próximo, até perigoso, mas também fascinante e discutível. Como conclui Ursula Le Guin, “o futuro, em ficção, é uma metáfora” (2008, p. 9), questionando, assim, o conceito de “sci-fi” em favor de um deslizamento para uma “utopia crítica”4, que não pára de pôr em discussão as capacidades imaginativas da literatura.

(Le Guin) makes use of the vast patrimony involving several cultures: European, American, Indian and Oriental. This cultural syncretism seems to be self-evident in her essay of 1982 with the emblematic title “A Non-Euclidean View of California”, where she defines her utopia as yin, that is, anarchic, pacifist, feminist and ecological, as opposed to the male utopia characterized by the ideas of control, absolute perfection, linearity and the logic of language. Le Guin's utopia does not want to be European, Euclidean or male. Le Guin creates a dialectic dialogue with the Western utopian tradition dominated by a force which wants to control every aspect of reality and, above all, emphasizes the dominating and imperialistic vein which underscores much utopian and science-fiction literature. The utopist who theorizes the future utopian location is dominated by a conquering ‘European’ spirit and by the Euclidean presumption of dictating one’s own laws and of dominating the future from the present. In the Western utopia, there is this blind faith in reason, the single and uncontestable instrument for definitively solving the problems of humanity. This type of conception does not consider that human experience is not only multiple, but that it acquires a particular nature in every single individual. Le Guin, however, does not categorically reject reason; she rejects, in the name of individual liberty, ‘the happiness at all costs’ desired in the classics of Western tradition: a Euro-centric utopia in which the other worlds only exist so that they can be conquered and exploited without any respect for those who already live there. For Le Guin, on the other hand, it is fundamental to think of the future and of utopia as something which does not belong to us because someone else already lives there. Le Guin's utopia, however, is never, unlike many feminist utopias, a separatist utopia, because it is inspired by Taoist philosophy which is based on the balancing of opposites. The need to review the traditional language of utopia is seen in Le Guin's narrative in the importance which she attributes to the active, not passive, role of the reader of her novels: the narrative strategies which Le Guin invents are aimed at arousing, in the reader, a curiosity for exploring alternative worlds (Fortunati/Ramos, website).

A ficção científica, de fato, não pode ser mais pensada como o eterno desejo de uma felicidade que somente realizar-se-á em um futuro esperado mitologicamente. Assim como foi formulada uma “utopia crítica”, é também possível articular uma “ficção científica crítica”, em que o futuro ficcionalizado no gênero de “sci-fi” torna-se um debate aberto sobre os temas mais paradigmáticos da atualidade. A criação de mundos e alternativas possíveis representa, no fundo, o desejo sincero de habitar e viver um mundo melhor. Le Guin, como outros grandes escritores de ficção

4 Trata-se de um termo muito apropriado, proposto pelo pesquisador irlandês Tom Moylan, no importante volume Demand the Impossible. Science Fiction and Utopian Imagination. London: Methuen, 1986.

410

BIAgIO d'ANgElO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

científica, controverte as idéias de controle, perfeição absoluta, linearidade e lógica da linguagem, pois é a própria literatura que atrai essa mesma discussão como natureza ontológica do fenômeno literário.

A literatura, diz Doris Lessing no prefácio a Shikasta, seria como o resultado da “eclosão do nada”. Quando já não se espera mais nada, “a mente humana sente necessidade de se expandir; desta vez na direção das estrelas, das galáxias e quem sabe o que mais” (1982, p. IV). Poderíamos definir essa “eclosão” também como um renascimento da necessidade do mito e, portanto, do papel das religiões na produção estético-literária. Lessing é consciente que as literaturas sagradas do mundo, com grande audácia, souberam interpretar o mundo e o presente dentro de uma lógica nem sempre plenamente compreensível à mente humana. Os mitos são ainda atuais, parece concluir Doris Lessing. Eles oferecem conclusões “lógicas” ou possivelmente aceitáveis para viver, reunindo em si os questionamentos sobre a ciência e a sociedade:

Shikasta, como muitos outros livros do gênero, tem como ponto de partida o Velho Testamento. Costumamos ignorar o Velho Testamento porque Jeová, ou Javé, não pensa ou age como um assistente social. H. G. Wells disse que, quando o homem solta o seu brado insignificante a Deus, pedindo: "dai-me, dai-me, dai-me", é como uma lebre aconchegando-se ao leão em uma noite escura. Ou qualquer coisa assim.As literaturas sagradas de todas as raças e nações têm muito em comum. Podem quase ser encaradas como produtos de uma única mente. É possível que estejamos cometendo um erro ao considerá-las como fósseis estranhos de um passado morto (1982, p. IV).

Nos arquivos “canopianos”, relatados pelo emissário George Sherban, chamado Johor, reúnem-se documentos pessoais, psicológicos e históricos, que têm, na narrativa de Lessing, um duplo valor: por um lado, enfatizar a hipótese de um apocalipse futuro geral e, por outro, sentir a necessidade do resgate histórico e psicológico dos deuses e dos mitos como tentativa de resposta às angústias existenciais. Tanto o apocalipse quanto a nova admissão de mitos cosmogônicos representam a tarefa do fazer literário. Com efeito, a literatura responde à temporalidade, em seus aspectos mais mortíferos, deixando marcas – a marca própria da littera – e questiona a presença do mito e do sagrado na estética como rasura, como ferida propulsora de textos e arquivos, em que as potencialidades do imaginário distópico são repensadas, criticamente, por meio da ironia. Um exemplo é este sugestivo fragmento de Shikasta, de Doris Lessing:

Quando o ambiente me pareceu propício, continuei, dizendo que a causa da crise era uma falha inesperada no alinhamento das estrelas que sustentavam Canopus. Devo registrar aqui que houve uma reação de inquietude – controlada – e de protesto – controlado...

Somos, todos nós, criaturas das estrelas e das suas forças, elas nos fazem, nós as fazemos, somos parte de uma coreografia da qual, de modo nenhum, nunca, podemos pensar em nos separar. Mas, quando os deuses explodem, ou erram, ou se dissolvem em etéreas nuvens de gás, ou se encolhem, se

411

PERSéfONE NO ESPAçO. A lITERATURA E A MORTE dOS MITOS NA fICçãO CIENTífICA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

expandem, ou seja lá o que for que seu destino determine, então, os itens minúsculos da sua substância podem, em sua pequenez, expressar não protesto, o que naturalmente não é próprio da sua posição, mas o reconhecimento da existência da ironia; sim, podem se permitir – sempre com respeito – o mais leve sorriso doloroso de ironia (1982, p. 46).

Esse fragmento de D. Lessing demonstra a equivocidade com a qual se lê a ficção científica, isto é, como uma redução das formas filosóficas da busca das relações entre ciência, pensamento humano e questionamentos existenciais. Os conflitos, postos em evidência pelas distopias da “sci-fi” assumem o valor de “dis-cursos”, na acepção de Maurice Blanchot, um discurso que “pela dupla dissidência do pensamento e da morte, se manifesta como um dis-cursus, curso desunido e interrompido que, pela primeira vez, impõe a idéia do fragmento como coerência” (Blanchot, 1969, p. 2-3).

As propostas da ficção científica nos parecem, pelo contrário, projetos críticos e programáticos, ameaças ou promessas literárias, isto é, culturais, conforme as palavras de Robert Conquest (in Rose, 1976, p. 46): “Science fiction illuminates other fields of literature by contrast. But it may be regarded as in some sort an example: a threat or a promise, depending on how you look at it”.

A ficção científica é, apesar de certos “urubus intelectuais”, que decretam a sua marginalidade, um “dis-curso” descentrado que acompanha o processo literário sempre – afortunadamente – desequilibrado e inconstante. A carência de linearidade nesse processo não desemboca, ao contrário dos mitos, numa falência. Pelo contrário, como diziam os formalistas russos, isso constitui a grande possibilidade de que um fenômeno estético não se cristalize em formas genéricas e em repetições persistentes. A rigidez e a formalidade, o maneirismo e o peso de uma literatura formal, canônica se vêem renovadas pela entrada das formas “populares” que impelem as margens para ganhar uma renovada centralidade nos estudos literários. Obviamente, como declara Robert Scholes, nem todos os trabalhos de ficção científica projetam as preocupações ontológicas da existência humana com outros questionamentos como o ecossistema ou a biosfera. O conhecimento dos movimentos do cosmos extrapola, assim, e gera ficções, afabulações que providenciam os efeitos radicais de prazer do texto, a sublimação e a cognição.

In the most admirable of structural fabulations, a radical discontinuity between the fictional world and our own provides both the means of narrative suspense and of speculation. In the perfect structural fabulation, idea and story are so wedded as to afford us simultaneously the greatest pleasures that fiction provides: sublimation and cognition (Scholes, in Rose, 1976, p. 56).

Se na ficção científica o mito “declina”, renunciando “à felicidade a qualquer preço” – para resumir com U. Le Guin – a literatura de “sci-fi” se propõe como reconfiguração dos processos ameaçadores de conhecimento da morte. Os tempos obscuros que geram a produção da ficção científica não permitem, ao sujeito, se apaziguar na observação da falência dos mitos

412

BIAgIO d'ANgElO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

(e dos mitos utópicos). A literatura que surge como expressão desse sujeito é “persefoniana”. Orfeu canta tristemente, e Perséfone regenera-se “no espaço”, isto é na proposta recente da ficção científica.

A ficção científica não faz parte apenas de um discurso polissêmico, mas do sistema literário tout court. Sem a ficção científica um componente desse sistema ficaria incompleto ou insatisfatório. A sua ambigüidade é a mesma de toda literatura: o constante engano de mostrar o real como real ao interior da estrutura artificial da ficção. Mas para obter esse efeito, necessário às dinâmicas da literatura, e para alcançar sua verossimilhança, a ficção científica não pode perder de vista os aportes dos processos tecnológicos e os debates que derivam das ambigüidades, desta vez, da ciência real. Precisamos da ficção científica não tanto para fixar-nos na caminhada utópica, que enfatiza os sonhos, mas para penetrar no discurso do inner space fiction, que, afinal, é uma viagem alegórica no inner space de cada sujeito.

Bibliografia

BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris: Folio Gallimard, 1998.

BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.

CONQUEST, Robert. “Science Fiction and Literature”. In: ROSE, Mark. Science Fiction: a Collection of Critical Essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1976, p. 32-46.

FORTUNATI, Vita/Iolanda Ramos.“Utopia Re-Interpreted: An Interview with Vita Fortunati”. In: Spaces of Utopia, n. 2, Summer 2006, p. 1-14 <http://ler.letras.up.pt>. Consultado em 15 de outubro de 2008.

LE GUIN, Ursula. A mão esquerda da escuridão. São Paulo: Aleph, 2008.

LESSING, Doris. Re: Colonised Pianet 5 Shikasta. London: Flamingo, 1979. Tradução brasileira: Shikasta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

PALUSCI, Oriana. “Doris Lessing e la fantascienza”. In: http://www.sagarana.net/rivista/numero29/saggio0.html. Consulta feita em Outubro de 2008.

ROSE, Mark. Science Fiction: a Collection of Critical Essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1976.

SCHOLES, Robert. “The Roots of Science Fiction”. In: ROSE, Mark. Science Fiction: a Collection of Critical Essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1976, p. 47-56.

SUVIN, Darko. “On the Poetics of Science Fiction Genre”, In: ROSE, Mark. Science Fiction: a Collection of Critical Essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1976, p. 58-71.

SUVIN, Darko. “As infinitas parabolas de Stanislaw Lem e Solaris”. In: LEM, Stanislaw. Solaris. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, p. 217-228.

TUCHERMAN, Ieda. “A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo”. In: http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/09.shtml. Consultado em 20 de Outubro de 2008.

Em busca das utopias da/na América Latina: identidades, literatura e culturaIldney Cavalcanti Universidade Federal de Alagoas

Grupo Literatura e Utopia

U-TOPOS - Centro de Estudos sobre Utopia (Brasil)

Alfredo CordiviolaUniversidade Federal de Pernambuco

Grupo Literatura e Utopia (Brasil)

Resumo

Nossa proposta é apresentar um panorama de dimensões utópicas relacionadas às identidades, literatura e cultura da/na América Latina, observando alguns eixos temáticos e formais de manifestações de dimensões utópicas na cultura. O estudo partirá da análise de investigações prévias sobre essas dimensões e enfocará eixos recorrentes. Pela diversidade das expressões culturais abordadas, a discussão está centrada numa compreensão do fenômeno utópico em suas várias configurações discursivas e numa perspectiva analítica situada, conforme proposição de Levitas (1990), no trânsito entre formas, funções e conteúdos utópicos.

Palavras-chave

Utopia, América Latina, literatura, cultura.

Ildney Cavalcanti possui graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Federal de Alagoas (1985), Mestrado em Letras (Inglês) pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988) e doutorado em English Studies pela University of Strathclyde, Glasgow (1999). Atualmente é professora adjunta 2 da Universidade Federal de Alagoas, onde atua na Faculdade de Letras. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em estudos de gênero, atuando principalmente nos seguintes temas: estudos de gênero e crítica feminista, estudos culturais, estudos da utopia, e literatura e ensino de inglês.

Alfredo Adolfo Cordiviola é licenciado em Letras pela universidade de Buenos Aires e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. Concluiu o doutorado em Hispanic and Latin American Studies na Universidade de Nottingham, Reino Unido (1998). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Atua na área de Letras, com ênfase nos seguintes temas: literatura hispano-americana colonial, literatura brasileira, literatura hispano-americana, estudos culturais.

414

IldNEY CAvAlCANTI & AlfREdO CORdIvIOlA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

O pensamento sobre a experiência de vivermos em dadas condições, que envolve a reflexão sobre os desejos que essas mesmas condições geram e deixam insatisfeitos, é facilitado pelo aparato crítico do

utopismo, ou dos Estudos da Utopia. Percebendo, juntamente com Ruth Levitas, que “uma vez que a utopia é a expressão da falta, da experiência lacunar em uma sociedade ou cultura, a compreensão das aspirações utópicas geradas por qualquer sociedade é uma parte importante da sua compreensão” (2001, p. 26), o grupo Literatura e Utopia vem desenvolvendo pesquisas interligadas pelo objetivo central de estudar várias tradições, mo(vi)mentos, gêneros e/ou textos literários sob a perspectiva dos Estudos Culturais, observando as utopias e distopias da cultura e as inter-relações entre identidades, literatura, cultura e o fenômeno da utopia.

A busca das configurações utópicas empreendidas pelos integrantes do nosso grupo ocorre na possibilidade da justaposição de quatro compreensões acerca dos diálogos entre as utopias e os textos da cultura¹. A primeira delas, sintetizada brilhantemente por Hélène Cixous ao teorizar a escritura como um espaço alternativo (an elsewhere) da cultura, “onde o desejo faz a ficção existir”², refere-se à percepção de que todo texto literário se configura como intervenção, através da imaginação, como proposta desse outro lugar da/na história. Também nessa direção está o comentário de Harold Bloom, n´O Cânone Ocidental (1994), que “talvez o motivo último da metáfora, ou de se escrever e ler numa linguagem figurativa, seja o desejo de ser diferente, de estar em outro lugar”.

A segunda percepção dessa relação, que dialoga diretamente com a temática desta conferência, está centrada na idéia de que o texto literário pode expressar esse desejo por um outro lugar da cultura através da construção ficcional de um espaço social alternativo, renovando e reconfigurando o gênero das utopias literárias inaugurado por Thomas More. O romance brasileiro A rainha do Ignoto, escrito por Emília Freitas em 1899, se inscreve como re-escritura dessa tradição dando-lhe continuidade formal ao representar uma romântica Terra do Ignoto, situada na Ilha do Nevoeiro, no interior do estado do Ceará, na qual floresce uma sociedade alternativa e separatista, formada por “mulheres paladinas” que, sob o domínio de sua rainha, interferem em situações de opressão de gênero, tecendo, assim, uma contundente crítica ao patriarcado brasileiro do século XIX e antecipando o feminismo separatista das utopias de autoria feminina que floresceriam no século XX no mundo anglófono.

Já a terceira abordagem parte do entendimento que a dimensão utópica pode se caracterizar como um modo, uma modulação da/na escritura, que reutiliza topoi, recicla imagens, reconfigura elementos da tradição utópica de forma metacrítica e catacréstica nos mais variados gêneros. N´O conto da ilha desconhecida, por exemplo, quando o personagem de José Saramago levanta o questionamento emblemático: “Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço”, esse modo é elevado, pois a ilha, espaço do utópico por excelência, adquire contornos através de sua negatividade, exatamente na impossibilidade de seu conhecimento, enquanto se mantém como topos propulsor da busca narrativa, retomando o paradoxal, simbólico

¹ Sobre os modos de se pensar as utopias da cultura, ver também a apresentação de Cordiviola e Cavalcanti ao Fábulas da Iminência (2006).

² "Sorties", em Cixous e Clément, 1996, p. 97.

415

EM BUSCA dAS UTOPIAS dA/NA AMéRICA lATINA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

e primordial esvaziamento (plenitude?) de sentido do termo brilhantemente criado por More.

Finalmente, a quarta percepção a unir literatura ao fenômeno das utopias trata os experimentalismos e as vanguardas historicamente situadas em sua dimensão utópica pelo novum formal ou temático, bem como pelo teor crítico ao contexto, que apresentam. Situados no entre-lugar cultural pela inspiração européia e ideais modernistas brasileiros, os manifestos surgidos no início do século XX na nossa cena literária constituem objetos exemplares para tal perspectiva de observação, por unirem propostas políticas e estéticas de vanguarda num gênero que, por si, já se constrói por elementos utópicos por excelência: formas inovadoras, funções críticas em relação a um dado contexto de produção, conteúdos prospectivos.

Pela diversidade das expressões culturais abordadas pelo grupo, que variam, por exemplo, da observação crítica das reconfigurações meta-utópicas do romance de 30 no Brasil (com o estudo de Calunga, de Jorge de Lima, originalmente publicado em 1935) à análise da re-escritura da Cocanha para um público brasileiro infantil (que tem por objeto a publicação Os limeriques da Cocanha, de Tatiana Belinky), os princípios do nosso trabalho estão inevitavelmente norteados por uma compreensão do fenômeno utópico em suas várias configurações discursivas e, conforme proposição de Levitas (1990), numa perspectiva analítica mais ampla, que acolhe uma definição de utopia como sendo “a expressão do desejo por uma forma melhor de existência”, e situa-se no trânsito entre formas, funções, localizações e conteúdos utópicos.

Partindo dessas justaposições ao propor investigações sobre as dimensões utópicas em relação a questões de identidade, literatura e cultura, o grupo vem se estruturando em cinco linhas ou eixos de organização interligados entre si: utopia, literatura e estudos de gênero; utopia e poesia; utopismos literários em língua portuguesa; utopia e discurso meta-teórico e meta-crítico; e utopias da/na América Latina. A discussão que segue está centrada especificamente nesta última linha e oferece uma reflexão sobre os conteúdos utópicos inscritos a partir das possibilidades advindas do surgimento da (idéia de) América no imaginário do colonizador europeu, tanto em sua dimensão mítica quanto geográfica e historicamente localizada, e sobre as funções dessas discursividades, cujo entrecruzamento se faz teia que promove o surgimento do próprio gênero em foco.

Utopias da/na América Latina

“Há um mundo novo”: essa afirmação percorre do começo ao fim a carta que, muito adequadamente, seria chamada Mundus Novus. Insistente, quase como se fosse uma obsessão ou um mandato, o autor se dedica primeiro a repetir o enunciado (a taxativa afirmação da novidade) e depois a preencher essa condição com notícias particulares e descrições das terras, gentes e céus que ocupam as latitudes ocidentais. Ali onde para o saber antigo não havia nada, ou havia quiçá meras superfícies inabitáveis e perdidas, existe uma imensa quarta parte do mundo, “um continente

416

IldNEY CAvAlCANTI & AlfREdO CORdIvIOlA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

habitado por mais numerosos povos e animais do que na nossa Europa, ou Ásia, ou África”.

Essas terras, “as quais é licito chamar de Novo Mundo: porque nenhuma delas era conhecida dos nossos maiores; porque é coisa novíssima para todos os que ouviram falar delas”, são representadas na carta como repertório inesgotável de diferenças. Diferenças humanas em primeiro lugar, profusamente descritas para o gosto dos ávidos leitores: os indígenas como criaturas libidinosas, que “vivem segundo a natureza e podem ser considerados antes epicuristas do que estóicos” (Vespúcio, 2001, p. 315), devoradores de carne humana, carentes de religião e de lei, donos de boa saúde e de vidas longas, favorecidas pelos benéficos ventos austrais. Em segundo lugar, as diferenças naturais, terrestres e celestes, que, amparadas pelo superlativo, corroboram e potencializam as humanas: a fertilidade dos infinitos vales, as selvas amplíssimas e densas, a multiplicidade de frutos, a abundância de ouro, o clima ameno, uma diversidade de animais jamais sonhada por Plínio, e por último, o céu, “ornado de sinais e figuras especiosíssimos”, onde se revelam “coisas que não estão de acordo com as razões dos filósofos”. Tudo contribui para que, apesar dos hábitos extravagantes dos seus habitantes, o autor não vacile em enfatizar que “se o paraíso terrestre estiver em alguma parte da terra, creio não estar longe daquelas regiões” (p. 319).

Atribuída a Américo Vespúcio, Mundus Novus foi provavelmente escrita por um ou vários autores anônimos que se encarregaram de compilar e sintetizar os saberes dispersos e as notícias difusas que durante uma década haviam sido promovidos pelos territórios situados do outro lado do Atlântico. Na carta a Luis de Santángel, escrita a começos de 1493 enquanto retornava da sua primeira viagem, Colombo já instituíra um modelo para ver e descrever as terras desconhecidas: a natureza pródiga, a promessa renovada de riquezas, a inocência natural do indígena, mas também a presença sempre hostil dos canibais. Esse modelo retorna na carta do doutor Chanca, nas epístolas reunidas por Pietro Mártire da segunda e terceira viagens colombinas, e nas anotações que o próprio Vespúcio fizera na carta de 1502 para Lorenzo de Médici, onde descreve a mesma viagem pelo litoral sul-americano. Mas nenhum desses textos seria tão influente como a Mundus Novus para cristalizar as imagens do novo. Publicada em fins de 1503 ou começos de 1504 em latim, foi rapidamente traduzida e reeditada em toda Europa; para 1506 já eram 22 as edições. No ano seguinte, Martin Waldseemüller e seu círculo de cosmógrafos, influenciados pela carta, elaborariam o célebre mapa em que a palavra “América” aparece por primeira vez. A Cosmographiae Introductio, que acompanhava o mapa, levava como apêndice outra carta de Vespúcio, também apócrifa, conhecida como “Carta a Soderini”, datada em 4 de setembro de 1504, que descreve as quatro viagens supostamente realizadas pelo florentino a partir de 1497. Publicada em Saint Dié como Quatuor navigationes, a obra teria ilustres leitores, que não apenas se interessavam pelas curiosidades e exotismos das terras distantes, mas que também viam nas narrativas a possibilidade de pensar sobre as transformações de um mundo que nunca mais seria como antes. Um desses leitores era Thomas More.

417

EM BUSCA dAS UTOPIAS dA/NA AMéRICA lATINA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Para que More pudesse inventar sua ilha de Utopia foi necessário antes que outros letrados, baseados em informações precisas e em especulações imaginárias, inventassem cartas que condensavam as curiosidades e os ecos que emanavam de longe. E também foi necessário que outros leitores, baseados naquelas invenções e no compêndio do saber geográfico da época, inventassem um mapa que outorgava definitivamente um lugar para as novas terras. Uma franja estreita e longa de terra, balizada por rios, que limita com a “terra ultra incognita”, e que está simplesmente identificada com uma única palavra, America. More leu Vespúcio, e provavelmente também a primeira Década do De orbe novo (1511), onde Pietro Mártire relembrava a feliz existência dos indígenas de La Española, livres de intolerâncias e de toda propriedade privada, entre outros textos que se multiplicavam na época sobre América.

Nas repercussões provocadas por essas invenções e aparições ultra-marinhas, fica em evidência que as explorações atlânticas dependiam fundamentalmente da palavra para poder tomar forma e se disseminar pelos círculos europeus. São os relatos das viagens, e as leituras desses relatos, que possibilitam, de More a Montaigne, a crítica do presente e a projeção de novas formas de convivência, que são imaginadas contra o pano de fundo das disputas e guerras de religião européias. Se essa rede de leituras, interpretações e aplicações fornece definições e sentidos para a novidade distante, e cria espelhos invertidos para examinar aquilo que é imediato e urgente, é porque está se estabelecendo uma nova ordem mundial que possibilita que tudo isso aconteça nesse mesmo momento. A criação do circuito comercial atlântico, que vincula as cidades e entrepostos das costas européias, americanas e africanas, modela as formas de um mundo moderno que vai se construindo, como lembram Walter Mignolo e Anibal Quijano (2003), no exercício da colonialidade do poder e das respostas geradas a partir da diferença colonial. Se a modernidade, no século XVI, surge através da expansão européia, que impõe a divisão entre locais de enunciação que emitem verdades e representações, e locais enunciados que são descritos pelo discurso etnográfico e as representações do exotismo, e se a modernidade está intrinsecamente vinculada ao projeto colonizador não como suplemento ou desvio, mas como condição de possibilidade, é porque “América” se situa como objeto de conhecimento no centro das reflexões. “America”, o solitário nome próprio que referenciava o mapa de Waldseemüller, o continente situado além da zona tórrida de Vespúcio, e as terras felizes de Rafael Hitlodeu, surgem no horizonte do discurso como invenções que falam de si e do outro, que falam de si através do outro. Tal é a função da utopia como instrumento narrativo em plena eclosão das navegações renascentistas.

Independentemente do estatuto de tais relatos (a crônica de um suposto testemunho ocular em Vespúcio, a condensação das novidades do saber em Waldseemüller, a ficção em More), os três textos precisam postular um outro espaço que é inventado como alteridade absoluta, e que, enquanto tal, é pensado como o lugar mais propício para projetar as fantasias e visões críticas suscitadas pelo tempo presente. A quarta parte do mundo, a ilha longínqua situada à margem do mundo conhecido, do outro lado da temida

418

IldNEY CAvAlCANTI & AlfREdO CORdIvIOlA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

linha do equador, conformam encruzilhadas onde se torna indistinto aquilo que se apresenta como verdadeiro ou como imaginário. Rafael Hitlodeu acompanha Vespúcio nas suas navegações, e quando se afasta dele chega por acaso nas costas de Utopia; Waldeseemüller elabora seus cálculos e desenha as novas formas do orbe a partir de uma carta apócrifa; Vespúcio, ou os autores anônimos que invocam seu nome, movidos pelo afã de satisfazer demandas prementes, escrevem aquilo que o público quer ler. Nessa equívoca genealogia, corresponde aos textos de Vespúcio colocar em circulação dois campos de significações associados com a idéia de um mundo novo, que seriam retomados e reforçados pela cartografia de Saint Dié e pelas ficções reformistas do chanceler inglês, entre muitos outros. Esses campos de significações criam uma dicotomia que se manifesta no espaço e que se configura através das hipóteses que oferecem as terras distantes. Por um lado, a possibilidade, o futuro, a esperança de um novo começo para a humanidade. Por outro, o reino da barbárie e da desagregação, as “vastas solidões eternamente devoradas por um céu de fogo” (More, 1999, p. 22). Ambas as interpretações, que aparecem invertidas no texto de More e lado a lado na carta de Vespúcio, atravessariam a história do continente americano como promessa e como sombra, e refletiriam visões conflitantes produzidas tanto na Europa como na América. A utopia, e sua negação, conformam discursos que serão considerados pertinentes e úteis nas mais diversas circunstâncias históricas, seja como instrumento político de transformação, seja como imagem em negativo das teorizações e especulações feitas à distância.

Poderíamos assim traçar duas grandes linhas de sentido que descrevem o continente com as cores da promessa ou da fatalidade. Na primeira, América serve para redefinir e atualizar os mitos clássicos das cidades fantásticas, dos Eldorados e das idades de Ouro, das Ilhas Afortunadas e das Amazonas à fonte da juventude e às sete cidades de Cibola, os mitos funcionam como forças propulsoras de expedições e de sonhos que, mesmo fracassando nos seus objetivos principais, vão ampliando as fronteiras do conhecido e atribuindo outros significados ao território. E mesmo com decepções pontuais e confirmações de que as cidades douradas eram tão evanescentes como uma miragem, os mitos não desaparecem, mas adquirem novas significações que garantem sua vigência muito além do primeiro século da conquista. Na era das repúblicas independentes, quando as migrações massivas do século XIX se tornam um dos eixos da globalização alavancada pelas transformações tecnológicas e pela expansão do imperialismo, as sucessivas evocações do país do futuro e da terra de oportunidades darão novas possibilidades para que América se constitua como espaço ideal para a realização das comunidades inspiradas pelos ideais libertários do socialismo utópico. As propostas de Fourier e de Saint-Simon encontram no continente campos propícios que, do Texas ao Rio da Prata, pretendem instaurar comunidades experimentais; apesar de efêmeras e mal-sucedidas na grande maioria dos casos, conseguem postular modelos alternativos de produção baseados em princípios de igualdade e de propriedade coletiva que, a seu modo, serviam para denunciar os vícios do sistema capitalista.

419

EM BUSCA dAS UTOPIAS dA/NA AMéRICA lATINA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Se a miséria econômica na Europa e a ausência de mão de obra qualificada e a visão do imigrante como agente civilizador na América eram fatores concretos que impulsionavam estes projetos, há também um componente utópico fundamental na escolha das terras de suposta promissão onde se fundaram as colônias, e no isolamento que as caracteriza e que, em muitos casos, apressa a decadência e a dissolução dos assentamentos.

América também é vista como terra de promissão pelos projetos evangelizadores que, nos dois primeiros séculos da colônia, imaginam o indígena como a nova encarnação do cristianismo primitivo. No milenarismo franciscano postulado por um Jerónimo de Mendieta no final do século XVI, as comunidades indígenas da Nova Espanha tuteladas pelos frades mendicantes representam a última oportunidade para a salvação coletiva, uma oportunidade que está em perpétuo risco de dissipação diante das epidemias e dos interesses contrários dos colonos e da coroa, mais preocupados na exploração das riquezas do que na redenção das almas. Essa também tinha sido a visão de Bartolomé de Las Casas ao criar a efêmera comuna da Vera Paz, como alternativa de convivência pacífica entre europeus e americanos. Em meados do século, o bispo de Michoacán Vasco de Quiroga funda os chamados Hospitales-Pueblo com a intenção de criar um estado cristão baseado na autonomia e na harmonia social. Leitor de More, Quiroga aplica na sua república de índios algumas das normas que regulamentavam a vida dos utopianos, como por exemplo a ausência de propriedade privada, a distribuição coletiva de alimentos, a organização baseada na família patriarcal, e a divisão rotativa das tarefas quotidianas. Todos esses casos surgem a partir de uma reflexão sobre as condições e a licitude da conquista, e pretendiam, como depois os jesuítas nas suas reduções do Paraguai, afastar os indígenas das perniciosas condições de vida que a ordem imperial espanhola tinha imposto. Mais ou menos realistas, essas utopias teocêntricas aspiravam a cumprir a missão primeira que, segundo uma visão providencial da história, estava prevista pela divindade, a evangelização do indígena, a única razão que poderia justificar a presença européia no continente.

Mas, por outro lado, contrariando essa visão do continente como hipotético espaço de harmonia e felicidade, há outra perspectiva que insiste em ver a América como terra de perdição e de desesperança. Nos textos dos navegantes, a figura que sintetiza essa visão negativa é a do canibal, presente na alusão da primeira carta de Colombo e nas afirmações de Vespúcio. A antropofagia e a barbárie atribuída aos indígenas do caribe e do litoral sul-americano adquirem novos tons na descrição que Hernán Cortés apresenta dos sacrifícios humanos realizados na grandiosa Tenochtitlán, e no cuidadoso detalhamento das práticas idolátricas que os missionários se encarregam de anotar nas suas histórias e tratados. Mas são as gravuras de Theodore de Bry, inspiradas pela célebre narrativa de Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás, as que parecem impressionar definitivamente a imaginação européia com cenas de corpos despedaçados e festins diabólicos. Nessa distopia bárbara, os indígenas, longe de serem as criaturas inocentes e predispostas a recriar o cristianismo primitivo, são o Outro absoluto, que torna toda equivalência impossível e toda sujeição justa e necessária. Essa percepção do homem

420

IldNEY CAvAlCANTI & AlfREdO CORdIvIOlA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

americano cria as bases para a hierarquização das diferenças étnicas e culturais. A pretensa superioridade étnica das nações européias, que parte do confronto com estas imagens criadas no século XVI, é legitimada no período colonial através dos apologistas da dominação espanhola, como Sepúlveda, e se confirma depois mediante a aplicação do arsenal conceitual cientificista e “universal” do discurso ilustrado, que multiplica taxonomias e nomenclaturas a partir da divisão do mundo em centros que formulam o saber e periferias que se oferecem como mudos e classificáveis objetos de estudo. Uma linha de pensamento ancorada no determinismo geográfico, com notórios expoentes que vão de Buffon e Cornelius De Paw a Hegel, sentencia a inferioridade e a decadência irreversível da população americana, com argumentos que depois seriam retomados pelos discursos racistas que fundam a antropologia do século XIX. Nessa que Antonello Gerbi (1996) denominou a “disputa pelo Novo Mundo”, postula-se a superioridade étnica e epistemológica européia, mas também surgem as possibilidades de contestação que, em autores como o equatoriano Eugenio de Santa Cruz y Espejo ou nas influentes páginas de Humboldt, não apenas invertem a imagem negativa, mas também fundamentam uma diferença americana pensada como caminho de autonomia e de emancipação.

Diante das condenas do destino e das fatalidades da miscigenação, alguns pensadores encontram precisamente na utopia a chave que explica a diferença americana e projeta um modelo desiderativo para entender os passados e construir os futuros possíveis. Em Ultima Thule (1958) o mexicano Alfonso Reyes analisou a força utópica e a perduração dos mitos que aludiam a uma terra de plenitude e felicidade na configuração do imaginário americano. Mitos que, sempre atuais e sempre presentes, não se reduzem a meras fantasias de conquistadores ou de utopistas extraviados, mas que acabam retornando e são capazes de alimentar, em sucessivos momentos históricos que vão das lutas pela independência à conformação dos estados nacionais, os desejos de transformação cristalizados, por exemplo, nas utopias andinas que anunciam a restauração incaica no final do período colonial, na Pátria Grande de Bolívar, na Nossa América de Martí, na raça cósmica de José Vasconcelos, na utopia permanente de Henríquez Ureña, na Nova Roma de Darcy Ribeiro.

Condensação das insatisfações e fantasmagorias do devir histórico, a utopia conserva no pensamento latino-americano a função de revelar todas as tensões entre aquilo que é e aquilo que poderia ou deveria ser. Depreciada pelos teóricos do fim da história, que entendiam a utopia como falácia ou como ensaio totalitário, a palavra criada por More volta a recuperar sua vigência entre nós. Ponte entre a nostalgia e o desconhecido, entre a virtualidade e a impossibilidade, entre o ilusório e o programático, a pulsão utópica continua presente de múltiplas e contraditórias formas na realidade que nos toca viver, porque oferece, mesmo quando parece fracassar ou é postergada, a ocasião de reafirmar o desejo e a obrigação de criar mundos mais felizes. Que tal objetivo pareça remoto nas atuais circunstâncias latino-americanas, longe de diminuir sua importância, reforça o valor desse desejo como ferramenta para lidar com o conturbado futuro que nos aguarda.

421

EM BUSCA dAS UTOPIAS dA/NA AMéRICA lATINA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Referências

BELINKY, Tatiana. Os limeriques da Cocanha. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2007.

BLOOM, Harold. The Western Canon. New York: Harcourt Brace & Co., 1994.

CORDIVIOLA, Alfredo e CAVALCANTI, Ildney. Apresentação. In: Fábulas da Iminência. Recife: PPL/UFPE, 2006.

CIXOUS, Hélène e CLÉMENT, Catherine. The Newly Born Woman. London: Tauris, 1996.

FREITAS, Emília. A rainha do ignoto. 3ª. ed. revisada, editoras Mulheres & EDUNISC, 2003.

LEVITAS, Ruth. The concept of utopia. Hempstead: Phillip Allan, 1990.

LEVITAS, Ruth. “For utopia: the (limits of the) utopian function in late capitalist society”. In: GOODWIN, Barbara (ed). The Philosophy of Utopia. London: Frank Cass, 2001.

GERBI, Antonello. O Novo Mundo. História de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Cia das Letras, 1996.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

REYES, Alfonso. “Ultima Thule” (1942). In: Obras completas, vol XI. México: Fondo de Cultura Económica, 1958.

VESPÚCIO, Américo. “Mundus Novus”. In: AMADO, Janaína & FIGUEIREDO, Luis Carlos (orgs.). Brasil 1500. Quarenta documentos. Brasília: UNB, 2001, p. 307-327.

Resumo

La riflessione sulla lingua è infatti un elemento essenziale della creazione utopica ed è legata al tipo di società, di costumi e di assetto politico descritti. Parte essenziale della filosofia utopica, la teoria del linguaggio appare come una costruzione coerente con l'insieme del sistema immaginato, a tal punto che può servire come punto di partenza per una definizione più precisa e pertinente del paradigma. Da Thomas More a Gabriel de Foigny, da Denis Veiras a Orwell, tutti gli scrittori utopici che hanno proposto una lingua nuova, ne hanno fatto lo specchio della loro visione del mondo.

Palavras-chave

Lingua utopica, società utopica.

Nadia Minerva é professora de Língua e Literatura Francesa na Universidade de Bolonha. É autora de vários estudos sobre demonologia no século XVIII, como Il diavolo. Eclissi e metamorfosi nel secolo dei Lumi (Revanna: Longo, 1990), e ainda sobre magia e esoterismo. No campo utópico, estudou os temas recorrentes, as mutações do gênero e interferências com gêneros afins e os aspectos míticos e fantásticos em autores franceses como G. de Foigny, D. Veiras, C. Gilbert, Fontenelle, S. Tyssot de Patot, Morelly, Jaunez e Sponville, L. de Geoffroy e G. Tarde. Entre suas publicações sobre utopia estão Utopia e... Amici e nemici del genere utopico nella letteratura francese (Ravenna: Longo, 1995), Jules Verne aux confins de l'utopie (Paris: L'Harmattan, 2001) e como organizadora, Per una definizione dell’utopia (Ravenna: Longo, 1992) e Viaggi in utopia (Ravenna: Longo, 1996). Redigiu 40 verbetes para o Dictionary of literary utopias (Paris: Champion, 2001) e colaborou na Histoire transnationale de l'utopie et de l'utopisme (Paris: Champion, 2008).

Lingue d'utopia. Un contributo essenziale per un assetto armonicoNadia MinervaUniversità di Bologna

Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia (Itália)

424

NAdIA MINERvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

“Une utopie qui ne règle pas la question du langage de la société qu’elle organise reste un roman”¹

Il pensiero linguistico dell’utopia si caratterizza soprattutto per la sua coerenza con il sistema che lo ospita. Il codice linguistico, spesso opaco, col quale si confronta il viaggiatore è simbolo dell’alterità. Già Thomas More² aveva proposto una lingua ideale; anche se le indicazioni sull’idioma di Utopia sono rare e frammentarie, vi scorgiamo comunque le tracce della perfezione. L’umanista More – in linea con il suo tempo per il culto dell’antichità classica – la fa discendere dal greco, di cui conserva tracce: la spiccata propensione di More per i termini coniati sul greco si afferma con assoluta costanza nei nomi di luogo, di persona e di pubblico ufficio. Ma More non va oltre. Anche altri tratti della lingua utopiana riflettono il clima rinascimentale quanto alla concezione dell’ideale linguistico. In primo luogo, Itlodeo dice della lingua di Utopia che è ricca, armoniosa, fedele interprete del pensiero: oltre all’ideale di armonia che ha animato le discussioni sulla lingua perfetta e oltre alla grande opera di arricchimento lessicale che si deve al Cinquecento, rimarchiamo l’idea di adeguatezza delle parole alle idee, la trasparenza cioè tra significante e significato. In secondo luogo, l’utopiano è una lingua agglutinante che ricorre sistematicamente alla derivazione lessicale per formare parole nuove. L’uso di suffissi e prefissi conferisce alla lingua maggiore logicità e semplicità, qualità spesso associate alla perfezione linguistica (Yaguello, 1984, p. 150). Molte altre lingue utopiche saranno agglutinanti dopo More, ad esempio quelle immaginate da Veiras nell’Histoire des Sevarambes (1677), da Casanova nell’Icosameron (1788) e da Orwell in 1984. Non bisogna poi sottovalutare il fatto che la lingua di Utopia non è la lingua naturale e spontanea di quel territorio, ma è stata introdotta in sostituzione di un’altra parlata prima delle grandi riforme di Utopo. Come per l’ambiente geografico e per le istituzioni, anche in materia linguistica si è girato pagina e le ragioni simboliche sono evidenti: la lingua è segno di appartenenza a un mondo altro, a un’era e ad un’umanità nuove e, osserva André Robinet, non esiste utopia in senso proprio “sans recherche des signes nouveaux” (1978, p. 249). Già con l’utopia moreana è all’opera, quindi, il rispecchiamento tra il simbolismo geografico e storico della fondazione (il taglio dell’istmo, il prima: Abraxa, e il dopo: Utopia) e il simbolismo linguistico.

La riflessione sulla lingua è – come si vede – un risvolto essenziale della creazione utopica, un imperativo strutturale inerente al genere. “Il n’est pas [...] d’anthropologie utopienne ou de civilisation utopienne sans création d’un langage utopien nouveau”, constata Pierre Ronzeaud (1981, p. 271-272). Nella costruzione coerente e coesa del mondo immaginato, l’universo linguistico è legato alla pianificazione utopica da un rapporto armonico, “analogico”, “in modo tale – argomenta Caterina Marrone – che la struttura della società rispecchi quella della lingua, delle leggi, del pensiero e dei costumi in una lunga e continua concatenazione. Nel mondo dell’utopia infatti nulla viene lasciato al caso, tutto è motivato, tutto appare legato iconicamente: lingua, comportamenti umani, configurazione dell’ambiente, religione,

¹ Robinet, 1978, p. 249.

² Utile, sulla questione linguistica in Thomas More, lo studio di Jean-MicheL Racault: “La question des langues dans l’Utopie de Thomas More” (2006). Il critico adotta un punto di vista originale rispetto agli studi sui codici descritti nelle utopie: l’allargamento dell’analisi a tutte le forme di scambio linguistico presenti nell’utopia intesa come testo letterario (p. 102).

425

lINgUE d'UTOPIA. UN CONTRIBUTO ESSENzIAlE PER UN ASSETTO ARMONICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

diritto e ogni cosa circondi l’uomo utopico” (1995, p. 25). La lingua nuova forgiata per l’uomo nuovo “corrisponde” al tipo di società, di costumi, di ambiente e di assetto politico descritti e l’isomorfismo delle lingue utopiche con le altre componenti socio-ambientali (ibid.) contribuisce alla perfetta simbiosi di tutti i motivi, sociali, etici e antropologici della costruzione utopica. In utopia, osserva Michèle Duchet, la lingua è lo specchio di una società proposta come modello e lo svelamento del sistema linguistico è uno dei modi di esistenza della città (1978, p. 161 e 163). L’utopista-demiurgo ne fa un’ulteriore manifestazione di armonia e perfezione. Su questo binario si sviluppa il pensiero linguistico dell’utopia. E poiché la “regola” vige nell’immaginario utopico quanto in quello distopico, si pensi alla neolingua di 1984 (ulteriore mezzo di una epurazione intellettuale che passa attraverso la soppressione di tutto quello che può mettere in pericolo l'onnipotenza di uno stato totalitario), perfettamente coerente con i tre paradossi orwelliani: l’ignoranza è forza, la guerra è pace, la schiavitù è libertà. In questa visione rovesciata, il fine della neolingua – artificialmente forgiata per domare le menti – è quello di rendere impossibile ogni forma di pensiero dissidente.

In modo analogo, ma grazie al condizionamento psicologico, funziona lo Stato Mondiale di Brave New World; Huxley immagina una società in cui la censura è perfettamente interiorizzata e i tabù linguistici assimilati: la lingua epurata non permette l’espressione dei sentimenti antisociali e delle passioni violente. “Enchaîner la langue, c’est enchaîner la pensée. Appauvrir le vocabulaire et en ruiner la polysémie, c’est assurer son contrôle”, scrive Raymond Trousson (2005, p. 10). Al servizio del potere, la manipolazione linguistica sottomette il pensiero individuale alla norma.

“Nos langues sont l’ouvrage des hommes et les hommes sont menteurs”³

Per tutti gli utopisti-linguisti, la lingua perfetta riflette ciò che l’uomo è nel pensiero, nella morale, nei sentimenti e ciò che fa nella sua attività interattiva con l’ambiente e la società (Marrone, 1995, p. 33). Nella pianificazione del suo cosmo, l’utopista attribuisce alla sua “rivoluzione” linguistica il ruolo di colmare una lacuna: nessuna lingua conosciuta è esente da imprecisioni e carenze espressive, e nessuna lingua dice la verità. A causa della sua imperfezione, il linguaggio turba la conoscenza, falsifica la comunicazione, distorce le relazioni umane. Errori, vuoti, menzogne... saranno sanati dalla lingua perfetta, la lingua che non sbaglia e che non inganna. Nel discorso utopico l’innovazione linguistica è dunque indispensabile affinché l’utopia sia coerente con sé stessa (Ronzeaud, 1981, p. 278). I Gulliver’s Travels di Johnatan Swift sono esemplari, pur nella stringatezza delle riflessioni sulla lingua perfetta. Per questo pensatore, come del resto per molti altri, tratto irrinunciabile della perfezione e dell’armonia uomo/istituzioni è la trasparenza. Se era l’arbitrarietà e l’infondatezza del nome rispetto alle cose ad aver reso possibile la menzogna, l’illusione e l’inganno, l’utopista vi pone rimedio supponendo che per mezzo della lingua si riesca ad esprimere il pensiero in modo chiaro, privo di errori e, ciò che più conta, non ci sia scarto o distonia tra realtà, idee e lingua. Per ³ Rousseau, 1975, p. 475.

426

NAdIA MINERvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

la filosofia del paese dei cavalli saggi, la ragione, la verità e il bene sono inscindibile tra loro, cosicché il protagonista del romanzo non riesce a far intendere il significato delle parole “dubitare”, “non credere”, “mentire”, “rappresentare falsamente”. Poiché gli scopi della parola sono informare sui fatti e la comprensione reciproca, dire la cosa che non è frustra questi scopi lasciando in uno stato peggiore dell’ignoranza. Se le parole descrivono – per la perfetta corrispondenza tra significante e significato – le cose che designano (“Houyhnhnm” significa “cavallo” e etimologicamente “perfezione della natura”), la lingua, tuttavia, riesce a esprimere soltanto i bisogni fondamentali e rifiuta di rappresentare l’ignoto, anche quando questo si manifesta: ad esempio, la nave di Gulliver4. A forza di trasparenza, si finisce per negare la realtà delle cose, soprattutto quando queste non conformi al presunto bene sociale. L’intolleranza linguistica è il segno dell’intolleranza dell’utopia swiftiana.

“Razionalità priva di ombre e altre componenti esprimono purezza di intenti, rettitudine d’animo e libertà dalle passioni che vincolano e costringono il raziocinio umano” (Marrone, 1995, p. 35). Si può estendere a tutti i sistemi linguistici di utopia, questa analisi di Caterina Marrone relativa alla lingua di 1984: un razionalismo pragmatico propugna l’ideale della visibilità assoluta. “Un mondo privo di ombre, il cui doppio è una lingua trasparente, senza i possibili veli dell’ambiguità e le pieghe incontrollabili dell’indeterminatezza” (p. 37).

***

Pur nella comune fedeltà a questi ideali di trasparenza e di armonia tra codice linguistico e mondo di cui è l’espressione, le strade percorse dagli utopisti divergono quando questi indicano le caratteristiche dei loro idiomi ideali. La linea apparentemente uniforme dell’immaginario linguistico dell’utopia si è divaricata su due direttrici, l’una di carattere più scientifico, l’altra dichiaratamente “emozionale”, secondo due approcci al linguaggio radicalmente opposti. Emergono, come osserva Marina Yaguello, “ici une intelligence, une compréhension rationnelle, analytique, logique visant à organiser le monde, utopique-constructive. Là une appréhension intuitive, instinctive, spontanée, globalisante, sensuelle, primitive, fantasmatique, pulsionnelle, hystérique...” (1984, p. 44). Non manca tuttavia, come vedremo, il filone che vuole conciliare i due ambiti: lingua/espressione del pensiero, lingua/espressione delle passioni, dimensione razionale e dimensione istintiva del linguaggio, cartesianesimo e sensismo. La conciliazione consiste nell’invenzione di una lingua che sia insieme razionale e passionale: logica, astratta e logicizzante, ma anche sensuale, che si parla e che si ascolta con tutto il corpo. Ne è esempio la lingua sinestetica dell’Icosameron di Giacomo Casanova (1788), che coinvolge sfere sensoriali diverse.

La grammatica della ragione

Per illustrare questa prima opzione, scelgo, tra i molti, il caso dell’Histoire des Sevarambes (1677-79) di Denis Veiras (Denis Vairasse

4 Sulla lingua dei Gulliver’s Travels, si veda R. Menzies, “L’échec des utopies linguistiques chez Foigny et Swift: écueil ou éloge de l’imperfection?” (2005).

427

lINgUE d'UTOPIA. UN CONTRIBUTO ESSENzIAlE PER UN ASSETTO ARMONICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

D’Allais, secondo una diversa grafia). L’ideale linguistico di quest’ultimo è una risposta all’arbitrarietà della formazione e della significazione delle lingue naturali5. Come quella di Utopia, anche la lingua dei Sevarambes è una lingua riformata, a partire dall’idioma parlato dei rozzi Stroukarambes prima dell’arrivo del grande legislatore Sevarias. Anch’essa è agglutinante, ma il suo impatto sul lettore è ben maggiore per la minuzia con cui Veiras ne smonta i meccanismi. Nell’Histoire des Sevarambes infatti tutto un capitolo (parte II, tomo III, p. 309-365) le è consacrato dall’utopista-grammatico (del resto, già il sottotitolo dell’opera lo annunciava), con lo stesso spirito analitico che lo aveva guidato nella composizione della sua grammatica: a Veiras ne dobbiamo infatti una (1681) che ha attirato l’attenzione dei linguisti per le sue proposte innovative. Qui non vi è più nulla di generico o di non approfondito (come in Thomas More). La restituzione da parte del narratore della lingua dei Sevarambes è “metodica”, enumerativa, anatomizzante, come lo era stata la grande rettificazione linguistica svolta da Sevarias e quella di Veiras nella sua Grammaire méthodique.

A detta di Veiras (ibid., p. 309 e sgg.), la lingua dei Sevarambes eccelle per bellezza e per vantaggi su tutte le altre lingue, sia asiatiche, sia europee. Convinto che “la politesse des mœurs produit ordinairement celle des langues, et surtout quand elles ont des fondements naturels”, fin dall’inizio del suo regno Sevarias volle far corrispondere ai costumi dei suoi popoli, costumi che sarebbero presto divenuti dolci e perfettamente regolati, una lingua conforme alla loro indole. L’interesse principale degli sviluppi linguistici di Veiras consiste nell’iscrizione insistita della lingua in ambito socio-politico. E, in effetti, essa è la rappresentazione in miniatura del mondo sevarambo, di tutte le sue strutture (cfr. Leibacher-Ouvrard, 1989, p. 30). Sevarias prende per base la lingua dei Stroukarambes, “salvandone” gli aspetti migliori, affinandola e arricchendola. “Ces aditions furent fort grandes car comme les Stoukarambes estoient avant lui des peuples grossiers, ils avoient peu de termes, parce qu’ils n’avoient que peu de notions, ce qui rendoit leur langue fort bornée, quoy que d’ailleurs elle fust douce & methodique, & capable d’accroissement & de politesse” (ibid., p. 312-313). La ricchezza della lingua è infatti una peculiarità del sistema linguistico di Veiras e colpisce – perché sembra scostarsi da una linea frequente in utopia – il fatto che Veiras tessa un vero e proprio elogio della sinonimia. Il rapporto univoco significato/significante sembrerebbe un tratto più confacente alla lingua utopica, pertinente alla trasparenza, privata di ogni ambiguità. Ricordiamoci che molti linguisti – già dal Seicento e nel Settecento – negano la perfetta sinonimia: esiste sempre un scarto, benché lieve, tra sinonimi apparenti e questo è garanzia di esattezza e di logicità della lingua. Ma Veiras sembra preferire la ricchezza espressiva alla precisione e all’univocità lessicale. I sinonimi fanno della lingua sevaramba un mezzo espressivo particolarmente adatto alla poesia (ibid., p. 343).

Veiras è attento alle qualità eufoniche della sua lingua e, quel che più conta, alla congruità tra suono e significato: “Hence – arguisce Knowlson – the language is based not upon a descriptive, but upon an onomatopoeic principle, according to which a given meaning is assigned to a combination

5 Cfr. Knowlson, 1963, p. 275. Sulla lingua dell’utopia di Veiras, si vedano anche: Pons, 1930, p. 589-607; Seeber, 1945, p. 586-597; Cornelius, 1965; Pons, 1978, p. 720-735.

428

NAdIA MINERvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

of sounds, because they appear to convey something of the nature of the object or idea represented” (1963, p. 275). La lingua dei Sevarambes, già nel suo impianto fonetico, segue l’ordine della natura; questo significa per Veiras il rispetto nella descrizione linguistica delle priorità delle emissioni sonore nell’organo fonatorio: dalle posteriori (“gutturales”) alle anteriori (“labiales”). Ma significa anche che i suoni sono stati adattati alla natura delle cose che intendono esprimere; ognuno di essi ha il suo uso e la sua caratteristica particolare: “Les uns ont un air de dignité & de gravité, les autres sont doux, & mignons. Il y en a qui servent à exprimer les choses basses et méprisables, & d’autres les grandes & relevées, selon leur position, leur arrangement & leur quantité” (Veiras, 1677-79, p. 318-319); Lo stesso ordine è osservato per le consonanti. Il metodo di questo sistema fonetico risiede nella sua conformità con la natura, instauratrice di una simmetria perfetta (cfr. Swiggers, 1987). Il suo principio fondamentale è l’iconicità (p. 125): come abbiamo visto, il suono riflette la natura delle cose, e anche la struttura sillabica è studiata per rispondere a questa esigenza. Per rendere vocalmente la ricchezza del reale e del pensiero occorre un vasto sistema di suoni; di qui l’abbondanza di fonemi: 10 suoni vocalici, 30 consonantici, 30 dittonghi e trittonghi, i quali producono una grande varietà di suoni. A questi si aggiungono gli effetti della prosodia, toni e inflessione della voce. Ancor più netto è il carattere metodico in ambito morfologico, dove l’agglutinazione, la derivazione e un complesso sistema combinatorio, oltre ad assolvere le consuete funzioni grammaticali, bandiscono ogni indeterminatezza e ogni oscurità. La moltiplicazione dei procedimenti morfologici permette persino di esprimere la maggior parte dei sentimenti: l’odio, la collera, il disprezzo, l’amore, la stima e il rispetto (Veiras, 1677-79, p. 330). L’ossessione di Veiras è la trasparenza: l’orrore per la polisemia lo porta alla proliferazione delle marche per distinguere i possibili significati. Come osserva Lise Leibacher-Ouvrard, i termini ricorrenti del suo discorso sulla lingua sono: articuler, différent, distinct e distinguer (1989, p. 32).

Qualità maggiore di una grammatica è per Veiras la chiarezza e la naturalezza; ecco il titolo per esteso della sua grammatica: Grammaire methodique contenant en abregé les principes de cet art et les regles les plus necessaires de la langue françoise dans un ordre clair et naturel6. Nella costruzione del sistema, tutto è regolato da un meccanismo analitico che non lascia nulla al caso. Il rigore delle agglutinazioni e delle flessioni conferisce a questa lingua semplicità, organicità, sistematicità e una grande armonia.

La lingua inventata appare, per il suo aspetto sistematico, come il segno di una razionalità onnipotente. La lingua dei Sevarambes, capolavoro di costruzione razionale (Swiggers, 1985, p. 166-175), offre un esempio dello spirito metodico e sistematico delle utopie. Le riforme linguistiche intraprese in utopia, dall’Histoire des Sevarambes a 1984, dall’Icosameron ai Gulliver’s Travels, riposano su un progetto razionale o sul simulacro di un modello strutturale unico al quale sarebbero riducibili tutti i rapporti umani. L’utopia rimette in causa l’arbitrarietà del segno, erige a principio il sogno di un linguaggio poroso alla materia del mondo o l’ideale di un Verbo armonioso, trasparente.

6 Sulle grammatiche di Veiras, si veda: P. Swiggers, “Vairasse d’Allais et sa grammaire française à l’usage des Anglais” (1984, p. 221-224).

429

lINgUE d'UTOPIA. UN CONTRIBUTO ESSENzIAlE PER UN ASSETTO ARMONICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

La grammatica delle passioni7

Nel sottosuolo di Giacomo Casanova (1788) vivono i Megamicri, un popolo il cui nome allude alla grandezza del loro spirito e alla piccolezza del loro corpo. Sono nudi e piccoli come l’uomo primordiale degli Empires du Soleil di Cyrano de Bergerac, androgini come quest’ultimo e come gli Australiani della Terre Australe connue di Foigny, colorati come i popoli dai mille colori del Blazing World de Margareth Cavendish, vegetariani e pacifici come il popolo felice descritto da Morelly nella Basiliade, esenti da malattie e dall’invecchiamento come i Mercuriani del Chevalier de Béthune (Relation du Monde de Mercure); come questi ultimi non dormono mai. Costruiscono le loro città sotto terra, come i Groenlandesi di Tyssot de Patot (La Vie, les avantures et le voyage de Groenland du R. P. cordelier Pierre de Mésange), praticano l’incesto come i Tahitiani di Diderot (Supplément au voyage de Bougainville), come le coppie fondatrici dell’Histoire des Galligènes di Tiphaigne de la Roche e della Basiliade (ma anche come la coppia primordiale della Genesi)...

La lingua megamicra è angelica, una melodia divina8. È universalmente parlata nel sottosuolo, “cantante”, armoniosa di natura, tonale; è composta da sei vocali e non ha consonanti il cui suono rude ferirebbe il sensibile udito dei Megamicri. È caratterizzata dalla precisione matematica che regge il suo sistema (modello perfetto di una lingua ordinata e costruita secondo le regole della ragione) e dalla ricchezza del vocabolario. Così, apprendiamo che in questa lingua fatta di suoni e di toni, la combinazione dei loro 42 monogrammi formerebbe 1.722 bigrammi, 34.440 trigrammi, 111.30 tetragrammi, 4.253.340 pentagrammi... (II, p. 96-97). La produzione linguistica potrebbe essere illimitata – ci viene detto – se i Megamicri non avessero una spiccata propensione per l’ordine, l’eleganza e la regolarità, per cui la consistenza reale del loro patrimonio lessicale è frutto di una selezione illuminata.

Il megamicro è una lingua agglutinante: le declinazioni, i verbi e i loro paradigmi si formano a partire da parole semplici. Gli articoli, i sinonimi, gli omonimi che turbano la regolarità, la trasparenza e la precisione della lingua non esistono (II, p. 91-99). L’univocità semantica è un baluardo contro l’ambiguità del segno. Secondo Claude-Gilbert Dubois, la trasparenza è la qualità principale delle lingue utopiche, nelle quali “le fonctionnement sémantique tend à instaurer la monosémie. Le mot n’a qu’un sens: aucune confusion, aucune superposition, aucun dérapage [...] n’est possible. Il s’ensuit une qualité maîtresse de ces langues, appelée la ‘transparence’ ou la ‘clarté’” (1988, p. 12)9.

L’uniformità e la regolarità linguistiche sono speculari della natura del mondo dei Megamicri e della loro conformazione fisica: il paesaggio, l’architettura, il tempo, la meteorologia, la durata della vita sono misurati, scanditi e fissati con minuzia (II, p. 103 e sgg.). L’uguaglianza è il tratto che caratterizza il mondo dei Megamicri: le regioni, le città e le campagne sono identiche. L’unità, magistralmente metaforizzata dall’androginia, si replica nella lingua.

7 Per un’analisi più dettagliata dell’idee linguistiche espresse da Casanova nell’Icosameron, rinvio al mio: “Tons, gestes, couleurs: la langue divine selon Casanova (Icosameron, 1788)” (2005).

8 Sul carattere “divino” della lingua dei Megamicri, mi permetto di rinviare al mio studio “Origine des langues et langue des origines dans la pensée utopique (XVIIe-XVIIIe siècles)” (2008), nel quale ho riflettuto sul filone primitivistico delle lingue utopiche e sulle speculazioni relative alla lingua originaria, alla natura e alla funzione del linguaggio e mostrato come un capitolo importante della linguistica utopica sia stato scritto da Cyrano de Bergerac e da Giacomo Casanova che riprendono i motivi della lingua adamitica, del cinese, del linguaggio musicale e dell’espressione non verbale.

9 Sulla (presunta) trasparenza delle lingue utopiche, cf. Pellandra, 1986.

430

NAdIA MINERvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Ma l’originalità dell’invenzione linguistica di Casanova consiste soprattutto nell’ibridazione dei codici: sensibile agli aspetti soprasegmentali e extralinguistici della comunicazione, Casanova ha costruito un modello semiotico complesso che utilizza più mezzi espressivi contemporaneamente: i suoni vocalici, i toni, le pause, le cesure, i gesti, lo sguardo e la fisionomia del locutore. Tutto questo conferisce alla lingua dei Megamicri una ricchezza e un’efficacia sconosciute agli idiomi della superficie (II, p. 97).

Infatti, la seconda lingua dei Megamicri – che essi chiamano “muta” – è il linguaggio gestuale. La terza lingua è la danza, comunicazione non verbale che esprime la gioia. La combinazione voce cantante/danza è l’espressione della purezza dei sentimenti, della verità: la lingua dei Megamicri è la voce dell’anima la cui verità non è offuscata da alcuna mediazione falsificatrice.

Quanto al tema del linguaggio musicale, questo è frequente in utopia: lo incontriamo nei viaggi lunari di Godwin e di Cyrano de Bergerac, nel Viaggio sotterraneo di Nicolas Klimius di Holberg. La musica conferisce alla lingua megamicra una fluidità che esprime direttamente le sensazioni e che va dritta all’anima. La musica ha tutto il vigore necessario per rappresentare perfettamente la natura e per esprimere pienamente il pensiero. Con la sua armonia, stabilisce un contatto diretto e immediato tra esterno e interno; essa può dire l’indicibile pienezza dell’anima. Meglio ancora la esprime, se si allea all’espressione corporale. La lingua del corpo, il linguaggio gestuale, combinandosi nella conversazione corrente con la voce cantante diventa danza, il più completo e perfetto mezzo espressivo, perché è rappresentazione non mediata della purezza dei sentimenti, di una verità liberata dalle insidie della menzogna e dell’adulazione. La lingua dei Megamicri è sinestetica: è percepita grazie al concorso di tutti i sensi. La percezione epidermica dei suoni è infatti il sesto senso di cui la natura ha dotato i Megamicri.

Ogni mediazione è un travestimento, una frode. La parola può essere menzognera, ma il corpo non può mentire. Nell’atto di comunicazione, esso è totalmente impegnato, tanto nell’espressione quanto nella ricezione: Casanova mette l’accento sugli strumenti ricettivi dell’interazione, l’udito, certo, ma anche la pelle: “Le canal qui conduit à leur âme la divine harmonie de leur musique est, outre celui de l’ouïe, toute la peau qui couvre leur corps, au point que ceux qui sont décorés de toges, de manteaux, d’exomides, s’en dépouillent souvent pour jouir entièrement de sa beauté, et pour lui ouvrir tous les chemins qui peuvent la faire aller en droiture à leur âme” (II, p. 99). La comunicazione si fa grazie al concorso di tutti i sensi. Questo totale dispiegamento delle facoltà sensoriali e questa esteriorizzazione del pensiero e delle passioni sono ulteriori manifestazioni della visibilità assoluta che regna nel mondo dei Megamicri: nel sottosuolo casanoviano non fa mai buio, non esistono terre sconosciute, mari, deserti o regioni incolte.

Il sincretismo linguistico – che induce Casanova a far ricorso a numerosi miti linguistici – è in perfetta sintonia con il sincretismo utopico. L’avventuriero coniuga le teorie del linguaggio più eterogenee che hanno animato il dibattito sulla lingua perfetta dei secoli XVII e XVIII. Il suo progetto ha l’ambizione di garantire una comunicazione autentica e senza

431

lINgUE d'UTOPIA. UN CONTRIBUTO ESSENzIAlE PER UN ASSETTO ARMONICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

veli e un’interazione pienamente gratificante. Per far questo, ha inventato una lingua coerente con le caratteristiche geologiche e ambientali, con la natura fisica e psichica dei Megamicri. Per il consueto simbolismo, la lingua è precisa, trasparente, ricca di potenzialità espressive, e l’adeguazione del nuovo codice ai bisogni comunicativi dei locutori è completa.

Alla razionalità assoluta dei teorici delle lingue perfette, Casanova oppone un’esuberanza e una sovrapposizione delle notazioni linguistiche, alle quali è affidato il compito di esprimere l’intensità delle sensazioni e delle emozioni. È così che Casanova opera la conciliazione tra la dimensione razionale e la dimensione istintuale del linguaggio: la lingua dei Megamicri è logica e sincera, ma anche sensuale, udita, percepita e proferita con tutto il corpo. Il simbolismo linguistico dell’utopia trova qui un’ulteriore conferma: questa lingua è la sola che possa convenire all’incontinenza emozionale dei Megamicri, ai trasporti dell’entusiasmo, alla voluttà, al parossismo dei sensi descritti da Casanova in varie occasioni. Questa lingua esprime le passioni e causa, nello stesso tempo, l’estasi di tutti i sensi.

Conclusione

La teoria del linguaggio è un aspetto essenziale della filosofia utopica per il forte simbolismo di cui si carica la lingua: una società-modello è inconcepibile senza un coerente quadro linguistico, anch’esso perfetto. Specularità della lingua, motivazione del segno, parallelismo tra pensiero e lingua sono i principali topoi che circolano nella letteratura utopica. Questa fedeltà della lingua alle categorie del pensiero riflette un razionalismo linguistico che si manifesta nei caratteri comuni delle architetture linguistiche delle utopie: armonia e regolarità, caratteri che rispondono a una volontà di ordinare in modo chiaro la realtà, di arginare il caos, di bandire l’arbitrario. Ora, sappiamo che armonia e regolarità sono parole-chiave nell’universo utopico e a queste contribuisce grandemente il codice espressivo, che sembra, più che discenderne, contribuire a instaurarle. La lingua, oltre ad essere il riflesso e il collante della società, per molti utopisti sembra essere, di essa, il supporto più efficace.

Tali concezioni del linguaggio testimoniano in modo più largo lo sguardo della finzione utopica sul mondo e i suoi segni, sui rapporti umani, la religione o la politica. L’analisi degli ideali linguistici illustrati nelle utopie trova un chiaro riscontro nella stretta conformità con le consuete modalità compositive dei paesi di nessun luogo. Come per la narrazione, la dimensione simbolica e anche didattica del linguaggio architetturale dell’utopia costituisce dunque un asse di riflessione non trascurabile.

432

NAdIA MINERvA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Riferimenti bibliografici

CASANOVA, G. Icosameron ou Histoire d’Edouard et d’Elisabeth qui passèrent quatre-vingt un ans chez les Mégamicres, habitans aborigènes du Protocosme dans l’intérieur de notre globe. Spoleto: Argentieri, 1928, edizione che riproduce l’originale (Prague: Imprimerie de l’École Normale, s.d. [1788]).

CORNELIUS, P. Languages in 17th and Early 18th Century Imaginary Voyages. Genève: Droz, 1965.

DUBOIS, C.-G. "Mythologie des langues et utopie de la langue unique". In: Eidolon 34, octobre 1988.

DUCHET, M. “Langue et société chez les Sévarambes de Denis Veiras”. In: Modèles et moyens de la réflexion politique au XVIIIe siècle. Lille: Publications de l’Université, 1978, II.

KNOWLSON, J. R. “The Ideal Languages of Veiras, Foigny and Tyssot de Patot”. In: Journal of the History of Ideas, April-June 1963.

LEIBACHER-OUVRARD, L. Libertinage et utopies sous le règne de Louis XIV. Genève-Paris: Librairie Droz, 1989.

MARRONE, C. Le lingue utopiche. Roma: Melusina Editrice, 1995.

MENZIES, R. “L’échec des utopies linguistiques chez Foigny et Swift: écueil ou éloge de l’imperfection?”. In: Travaux et Documents – Université de la Réunion, Uglossies, F. SYLVOS (éd.), n. 23, 2005, p. 31-44.

MINERVA, N. “Tons, gestes, couleurs: la langue divine selon Casanova (Icosameron, 1788)”. In: Travaux et Documents – Université de la Réunion, Uglossies, F. SYLVOS (éd.), n. 23, 2005, p. 79-95.

MINERVA, N. “Origine des langues et langue des origines dans la pensée utopique (XVIIe-XVIIIe siècles)”. In: Francofonia, n°55, autunno 2008, p. 81-96

PELLANDRA, Carla, "Transparences trompeuses: les cosmogonies linguistiques de Foigny et de Veiras". In: C. Imbroscio (éd.). Requiem pour l’utopie? Pisa: La Goliardica, 1986, p. 55-71.

PONS, É. "Les langues imaginaires dans le voyage utopique: les grammairiens Vairasse et Foigny". In: Revue de littérature comparée, 1930.

PONS, É. “Les langues imaginaires dans les utopies de l’âge classique”. In: Critique, n. 387-388, 1978.

RACAULT, Jean-Michel. “La question des langues dans l’Utopie de Thomas More”. In: Morus - Utopia e Renascimento, n. 3, 2006, p. 101-112.

ROBINET, A. Le langage à l’âge classique. Paris: Klincksieck, 1978.

RONZEAUD, P. L’utopie hermaphrodite. Marseille: Éditions di C.M.R., 1981.

ROUSSEAU, J.-J. “Lettre à Monsieur de Beaumont”. In: Du contrat social et autres œuvres politiques. Paris: Garnier, 1975.

433

lINgUE d'UTOPIA. UN CONTRIBUTO ESSENzIAlE PER UN ASSETTO ARMONICO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

SEEBER, E. D. “Ideal Languages in the French and English Imaginary Voyage”. In: PMLA, 1945, n. 60.

TROUSSON, R. “Avant-propos”. In: Travaux et Documents – Université de la Réunion, Uglossies, F. SYLVOS (éd.), n. 23, 2005.

SWIGGERS, P. “Vairasse d’Allais et sa grammaire française à l’usage des Anglais”. In: Le français moderne, n. 3-4, 52e année, octobre 1984.

SWIGGERS, P. “La langue des Sévarambes”. In: S. AUROUX et alii (dir.). La linguistique fantastique. Paris: Denoël, 1985.

SWIGGERS, P. “La description de la langue des Sevarambes chez Denis Vairasse D’Allais: grammaire et fiction”. In: Lingua e stile, XII/1, marzo 1987.

VEIRAS, D. Histoire des Sevarambes, peuples qui habitent une partie du troisiéme continent communément appellé la Terre Australe. Paris: Claude Barbin, 1677-79.

VEIRAS, D. Grammaire méthodique, contenant en abrégé les principes de cet art et les règles les plus nécessaires de la langue française dans un ordre clair et naturel. Ouvrage fort utile à toutes sortes de gens. Paris: chez l'auteur, 1681.

YAGUELLO, M. Les fous du langage. Des langues imaginaires et de leurs inventeurs. Paris: Seuil, 1984.

A organização narrativa da imagem e da contra-imagem.Da poética das utopias literárias¹Wilhelm VosskampUniversität zu Köln (Alemanha)

Resumo

Utopias literárias são um meio de comunicação escrita de uma forma específica de comunicação cultural. Sem refletir sobre seu caráter mediático e sua comunicabilidade mediática, não é possível escrever uma poética e uma história das utopias literárias adequadas. Em um encontro organizado dentro do projeto de pesquisa “A função das utopias literárias”, no Centro de Pesquisas Interdisciplinares da Universidade de Bielefild, perguntaram a Niklas Luhmann o que lhe interessava mais na história das utopias, e ele respondeu: o papel dos livros impressos. Sem a mediação do livro, não teria havido a distribuição das utopias “clássicas” do período do Renascimento (como modelos de utopias), sem a mediação do filme, não haveria o boom da ficção científica, e sem a internet, também não haveria nenhuma utopia da aldeia global do cyber espaço. As relações entre utopia e o meio escrito (e o pictórico) têm sido investigadas rudimentarmente; é suficientemente significativo o fato de que as próprias mídias foram e ainda são locações da projeção utópica (ou apocalíptica).

Palavras-chave

Imagem, contra-imagem, poética das utopias literárias, meio de comunicação.

Wilhelm Vosskamp é professor de Literatura Alemã na Universidade de Köln (Alemanha). De 1972 a 1982 dirigiu o Centro de Pesquisa da Universidade de Bielefeld e nele atuou como professor. Desde 1987 tem dirigido o Centro de Pesquisa da Universidade de Köln. Foi convidado como guest professor e fellow em várias instituições, tanto na Alemanha quanto em outros países. Além disso, tem prestado serviços diversos à comunidade intelectual. Desde 1994 está na Academia de Ciências de Berlin-Brandenburg. Suas publicações apresentam uma perspectiva histórica que concerne ao século XVII, ao classicismo, ao Iluminismo, ao século XIX, indo até os estudos sobre os meios de comunicação hodiernos. Especializou-se nos gêneros da poesia e da novel, abrangendo teoria literária e ciência, do classicismo de Weimar à literatura contemporânea. Contribuiu para inúmeras edições recentes das obras de Goethe, edita a revista Germanistik e a série de livros Communicato.

¹ Este artigo foi originalmente publicado em inglês com o título “The Narrative Staging of Image and Counter-Image: On the Poetics of Literary Utopias” em KAUL, Susanne. Literature and Science. Author’s Colloquium with Lars Gustafsson. Bielefeld: Aisthesis, 2007, p. 59-72, e traduzido para o português com a autorização do autor (N. da T.)

436

wIlhElM vOSSkAMP

[Man ist] an Orten sicherer, wo grössere Unordnung herrscht. Dort kann man seine Hoffnung in eine

Ordnung setzen, die es noch nicht gibt².L. Gustafsson, Ein Vormittag in Schweden,

München, 1998.

Utopias literárias são o meio de comunicação escrita de uma forma específica de comunicação cultural. Sem refletir sobre seu caráter mediático e sua comunicabilidade mediática, não é possível escrever

uma poética e uma história das utopias literárias adequadas. Em uma atividade do projeto de pesquisa “A função das utopias literárias”, no Centro de Pesquisas Interdisciplinares da Universidade de Bielefeld, perguntaram a Niklas Luhmann o que mais lhe interessava na história das utopias, e ele respondeu: o papel dos livros impressos. Sem a mediação do livro, não teria havido a distribuição das utopias “clássicas” do período do Renascimento (como modelos de utopias), sem a mediação do filme, não haveria o boom da ficção científica, e sem a internet, também não haveria nenhuma utopia da “aldeia global” no cyber espaço. As relações entre utopia e o meio escrito (e pictórico) têm sido investigadas rudimentarmente; é suficientemente significativo o fato de que as próprias mídias foram e ainda são locações da projeção utópica (ou apocalíptica).

i. Utopia e ficção

Supondo que gêneros literários são formas históricas de comunicação moldadas por um conjunto de elementos do discurso institucional, encontramos similaridades que podemos agrupar em famílias (Familienähnlichkeiten) e em constantes dominantes específicas quanto à expectativa textual e do leitor. A cristalização e institucionalização das utopias – aqui entendidas no sentido de um gênero da “utopia literária” – encoraja a interação complementar entre diferentes expectativas literárias e extraliterárias historicamente determinadas, por um lado, e por outro, dos processos autorais intrínsecos ao trabalho literário (que também o determinam). Características e estruturas recorrentes, bem como o quanto há de identificação e de reflexo de si mesmo baseados em preconceitos históricos, são fundamentais (cf. Vosskamp, 1977, p. 27-42 e 1977a, p. 655-658). Gustafsson fala de tradições utópicas (do que se entende por “utopia literária”). Neste processo, têm papel decisivo a seleção abstrata (em um estoque contemporâneo de convenções históricas) e o modo como estas tradições (das quais se escolhe alguns elementos) são novamente combinadas em uma ficção, referindo-se ao que está para além da realidade, cumprindo assim sua função. Em cada período histórico há algumas formas artísticas e literárias que não podem ser completamente atribuídas a estruturas sociais e a problemas estruturais, mas que – como assinalou Niklas Luhmann – têm sido reproduzidas e têm influenciado as pré-condições de evoluções futuras. É preciso atentar para este fator catalisador. Em outras palavras: a grande variedade de formas artísticas é sempre maior do que a função social que

² “[Estamos] mais seguros nos lugares onde há uma desordem maior. Nestes [lugares] podemos investir nossa esperança numa ordem que ainda não existe.” L. Gustafsson. Uma manhã na Suécia. Munique: Carl Hanser, 1998 (citação traduzida por Christian Greis).

437

A ORgANIzAçãO NARRATIvA dA IMAgEM E dA CONTRA-IMAgEM

se pode relacionar a elas – com as utopias literárias acontece o mesmo. A formação de séries dentro do gênero da “utopia literária” só é possível por causa de sua estabilidade, no sentido do reconhecimento e da flexibilidade simultâneos tornados possíveis pela recorrência, que garante a possibilidade da aceitação e inclusão na mesma proporção que a rejeição e a exclusão. As capacidades organizacionais do gênero literário utópico, que lhe permitem ser distinto de outros gêneros literários, consistem em uma específica mobilização textual de imagens de uma realidade descrita satiricamente e no desenho de imagens conceitualmente contrafactuais e opositivas³. Utopias literárias são simultaneamente narrativas e imagéticas. O desenho das imagens opositivas como espaços insulares ou como projeções em um tempo futuro se vincula crítica, implícita ou explicitamente, à situação social da época em que são produzidas. Esta “iniciação do processo de comparação crítica” (Stockinger, 1981, p. 98) é o modo de comunicação específico das utopias literárias. Utopias estão, portanto, mais diretamente conectadas com contextos históricos do que outros textos literários ficcionais4.

Investigando a história das utopias literárias na Europa do ponto de vista de seu estatuto ficcional, é possível observar quatro características tipológicas ideais centrais. Estas características envolvem estratégias textuais bem como potencial semântico. Elas concernem a: 1) um impulso de negação (no sentido da diferença crítica das concepções utópicas, em contraste com suas respectivas realidades sociais); 2) uma construção literária de contra-imagens e antecipações (no sentido de antecipar o futuro); 3) uma principal dicotomização do conjuntivo e do indicativo, no sentido de uma categoria de possibilidades (“Se há um sentido para a realidade, deve também haver um sentido para o possível”5); e, finalmente, 4) a uma inter-relação entre a história das utopias e sua implícita e explícita (auto) crítica. Obviamente, não poderei discutir todos estes aspectos nesta comunicação, por isso, tecerei apenas alguns comentários acerca das utopias espaciais e temporais e dos problemas de autocrítica no âmbito do gênero utópico.

ii. Utopias espaciais e temporais

O princípio poético central e dominante de todas as utopias literárias – que L. Gustafsson sempre assinalou – é a negação. Sem uma fundamental operação de negação que atua sobre suas respectivas realidades pré-existentes, a imagem opositiva utópica alternativa (algo como um sistema social “outro” imaginado) não pode ser construída por meio de operações lógicas. Primeiramente, uma (particular) capacidade de negação própria das utopias permite sua construção racional, capaz de reagir à realidade. Mas L. Gustafsson ressaltou que a suposição segundo a qual uma nova sociedade seria estabelecida por meio de uma radical descontinuidade, um raptus na dinâmica normal da sociedade, permite, de fato, marcar o começo de um novo período, mas não descrever seu progresso (Gustafsson, 1982, p. 290-292). Darko Suvin fala de uma

construção verbal de uma sociedade concreta quase-humana, onde as instituições sociopolíticas, normas e relações pessoais são estruturadas

3 Sobre isto, ver Stockinger, 1981, p. 5 e seg. e, em Kuon, 1986 ver principalmente a “Introdução”.

4 Utopias literárias já eram entendidas como uma forma ficcional independente na primeira metade do século XVIII, cf. podemos ler no verbete “paraíso dos loucos” (Schlaraffenland) de Johann Heinrich Zedlers em seu Universal-Lexicon, vol. 34, 1742, p. 83.

5 Cf. Musil, 1987, p. 16-18. Ver também Seel, 2001, p. 747. Sobre as tipologias em geral, ver Vosskamp, 1990, p. 273-283.

438

wIlhElM vOSSkAMP

segundo um princípio mais perfeito do que o que rege a sociedade do autor; esta construção se baseia na alienação, que resulta de uma hipótese histórica alternativa (1979, p. 76).

Gustafsson acrescenta uma importante observação: antes que a nova construção utópica seja possível é preciso que haja um vácuo/um vazio: é preciso que o utopista (autor da utopia) preencha o vazio criado anteriormente por ele mesmo por meio da negação. A visão de uma utopia consiste em, primeiramente, abrir uma brecha na imaginação para depois fechá-la. (Este problema do vazio, do nulo, tem um papel importante nos escritos de Gustafsson. Ele cita freqüentemente Frederico de Tours: videtur mihi nihil aliquid esse6).

O princípio da negação da realidade histórica e a construção verbal opositiva assim criada podem ser claramente vistos na instância das utopias espaciais do Renascimento. A Utopia de Thomas Morus (1516)7 trabalha de modo exemplar com um potencial negativista, que pode ser descrito segundo seus aspectos tanto formais quanto temáticos. O título da obra de Morus já anuncia este potencial: “U-topia” (não-lugar). Isto significa não apenas a violação de expectativas topográficas e a interpretação potencial que está em tomar o “não-lugar” por um “lugar de felicidade” (eutopia) também, mas implica, além disso, uma referência ao lugar histórico real. As 54 cidades-estado utopianas poderiam lembrar ao leitor do século XVI os 52 ducados, juntamente com Wales e Londres da Inglaterra daquele tempo (cf. Erzgräber, 1980, p. 35). Essa discrepância em comparação com a realidade social é uma pré-condição para a concepção de construções ordenadas e racionais. Ao lado de uma seleção restrita e de uma capacidade de abstração estrategicamente aplicada à realidade histórica, o desenho de um estado utópico foi desenvolvido segundo regras geométricas. O “quase quadrado” plano da cidade de Amaurotum na Ilha de Utopia não é menos característico disso do que a circular Cidade do Sol (Civitas solis) de Campanella, formada por sete anéis concêntricos8.

A geometria racional do espaço corresponde à organização judiciosa da existência humana coletiva, que só é possível mediante uma estrita regulamentação das paixões por parte de todos os que dela tomam parte. O estado racional utópico procede de uma simetria, da harmonia entre os interesses individuais e coletivos (sociais); apenas deste modo o viver associado livre de conflitos torna-se possível. A organização racional de uma sociedade que existe sob o impulso de ordenar orienta a si mesma em oposição à regulamentação tradicional e às estruturas sociais características dos inícios do período moderno em geral.

A “velha” estrutura social hierárquica de classes não combinava mais com as novas relações sociais de poder; faltavam, em geral, “novos” pontos de orientação políticos regulamentados, a fragmentação política correspondia a incertas relações legais (Dülmen, 1968, p. 9).

A utopia de Thomas Morus respondeu a esta constelação de problemas posto que a desordem era vista como a maior ameaça. O tempo permanece imóvel em utopias perfeitas e geometrizadas, onde a narração é substituída

6 O nada me parece ser alguma coisa (Trad. Matías S. F. Robbio).

7 Edição alemã em Heinisch, 1960.

8 Ver Vosskamp, 1990.

439

A ORgANIzAçãO NARRATIvA dA IMAgEM E dA CONTRA-IMAgEM

pela descrição, reportagem e diálogo. A história narrativa utópica procurou banir a História por meio de imagens. O disciplinamento das paixões humanas tornou sua imperfeição aparente; uma redução ao ser humano definido em seu gênero apontou, em contraste, para o único, individual. O método da generalização pela negação permitiu uma construção abstraída da realidade, assim como a censura potencialmente rica do que foi negado (cf. Vosskamp, 1983, p. 32-5).

Dessa forma um elemento central e geral das utopias tornou-se visível: a oposição entre ordem e contingência. Subjetividade humana, paixões, amor, infelicidade, “história” são inestimáveis, momentos incalculáveis que devem ser subjugados por causa da compulsão de ordenar. O leitor de utopias deve ser convencido, por meio de técnicas retóricas e representações imagéticas (por exemplo, mapas, projetos e planos arquiteturais), de que a contingência pode ser removida e que o acidental e as vicissitudes devem ser banidos em prol de uma “felicidade” durável.

A utopia de Thomas Morus ofereceu uma construção de significado material em oposição à sociedade hierárquica, ricamente complexa e ultrapassada dos inícios do período moderno. O meio tradicional de construção de sentido, a religião, é – apesar do jogo de citações de motivos individuais cristãos e instituições (como a vida no claustro) – substituído por uma forma de literatura cuja característica primária constitui uma complexa mistura de elementos discursivos variados: literários, expositivos e também principalmente científicos (jurisprudência, teoria política e econômica). Morus sintetizou estes elementos em seu próprio texto, especificamente pessoal, como uma ordem possível, racional, uma réplica à história (cf. Vosskamp, 1982a, p. 183-196). Tais pensamentos ordenadores dominaram utopias futuras, como demonstram a Civitas Solis de Campanella, a Nova Atlantis de Francis Bacon ou Christianopolis, de Johann Valentin Andreae (cf. 1999). O ordenamento excessivo destas utopias pode ser entendido como uma resposta à conjuntura da era moderna percebida como desordenada.

Isso também é verdade para um tipo de utopia espacial que evita a concretização institucional da existência social comum, mantendo um espaço para a fantasia estética no reino natural, por meio da mediação do amor e do verso: a poesia arcádica. Significativamente, em paralelo à Utopia de Thomas More, um protótipo da poesia arcádica de inícios da era moderna originado durante o Renascimento, que tomou como ponto de partida a Arcadia de Jacopo Sannazaro. O sucesso desta obra em sua época – ao todo foram editados 117 exemplares – permite que se torne visível a expectativa de um modelo complementando o protótipo sócio-utópico de Thomas Morus (cf. Grimm, 1982, p. 82-100). Até mesmo na tradição bucólica antiga, a “política” permaneceu presente, “refletida em seu oposto, na natureza” (Garber, 1982, p. 37-81)9.

Esta negação crítico-construtiva e o estabelecimento da ordem serão substituídos por um outro princípio dominante, o da antecipação, permitindo assim a aparição do gênero literário da utopia temporal, devido, em primeira instância, a alterações na concepção do sujeito que emergem em finais do século XVII e início do XVIII. Num momento histórico em

9 Ver também Garber, 2000, p. 73-116.

440

wIlhElM vOSSkAMP

que a pressuposta correspondência entre demandas subjetivas e necessidade social, existente nas utopias sociais dos séculos XVI e XVII e ainda nas honráveis repúblicas do século XVIII (ver Insel Felsenburg, de Johann Gottfried Schnabel, ed. de 1979), foi reconhecida como uma ilusão que se devia a uma nova concepção de sujeito, a resposta à questão da felicidade também teve que mudar. Ao invés de uma assumida simetria entre sujeito e sociedade, a partir disso e desde então, a tensão e a polaridade entre sujeito e sociedade tornou-se uma questão central (cf. Jean-Jaques Rousseau). A ordenação estatal da felicidade de sujeitos disciplinados havia perdido seus atrativos. Aquela concepção da felicidade anteriormente desenvolvida segundo a qual “o homem emancipa-se a si mesmo, por sua própria força, das variações da felicidade, e pode ele próprio criar os requisitos para esta felicidade [...] Então, quando a variação ou mudança começam a poder ser vistas como progressos duráveis ou como um processo de aperfeiçoamento em direção a um objetivo positivo” (cf. Winter, 1983, p. 62 e seg.), utopias reivindicando uma felicidade estática devem ter sido julgadas enfadonhas. Formulando terminologicamente: o ideal de perfeição (perfectio) foi substituído pelo de melhoramento (perfectibilité). O ótimo consiste agora na otimização: a perfeição foi absorvida no processo de aperfeiçoamento (cf. Vosskamp, 1984, p. 89 e seg.).

A mudança da experiência aludida aqui foi chamada de “Verzeichtlichung/cronologização da experiência por Reinhart Koselleck (1982, p. 1-14). Trata-se de uma pré-condição para a mudança de paradigma do ideal da perfeição para o do melhoramento. Na transição de uma sociedade corporativa para outra, orientada funcionalmente, a cronologização se deixa determinar pela tensa relação entre experiência e expectativa. Expectativas modernas não poderiam mais derivar da experiência histórica, elas deveriam, em grande parte, extrapolar os ditames do futuro.

Koselleck, em conseqüência, falou de uma “compulsão utópica”, posto que impulsos temporais entraram na experiência histórica, alterando assim fundamentalmente o termo “história”. Além disso, deu-se não apenas uma aceleração contínua da história, mas também uma aceleração de novas expectativas utópicas. Esta despertada necessidade de futuro dificilmente pode ser satisfeita; a (contra-factual) antecipação da futuridade ademais incita o desejo (ao menos em longo termo e aproximativamente) de sua realização10.

O caráter das utopias como uma réplica à história foi, deste modo, fundamentalmente alterado. Se as utopias ordenadas do Renascimento tentaram banir a história por meio do estrito disciplinamento individual, as utopias temporais oferecem concepções segundo as quais o sujeito individual pode desenvolver e aperfeiçoar a si mesmo com uma visada para o futuro, sendo fornecidos objetivos que podem ser progressivamente atingidos. O imperativo utópico da contínua necessidade de melhoramento, contudo, ainda manifesta aqui o gesto disciplinador das utopias tradicionais ordenadoras.

Na história das utopias literárias dos inícios da era moderna, uma transição do tipo da utopia espacial perfeita (no sentido de perfectio),

10 Podemos apenas aludir à concepção de um possível progresso e à crença em uma possível realização futura, conectada com a secularização da escatologia judaica e cristã. Em seu traçado da história das utopias, Ernst Bloch tratou deste problema e opôs a utopia ordenadora à utopia temporal, de feição transgressora, escatológica e revolucionária (cf. 1959, parte IV, e Vosskamp, 1986, p. 316-29).

441

A ORgANIzAçãO NARRATIvA dA IMAgEM E dA CONTRA-IMAgEM

freqüentemente ordenada insularmente, à utopia cronológica do melhoramento (no sentido de perfectibilité), localizada no futuro, pode ser paradigmaticamente lida em L’An 2440 (1770), de Sébastien Mercier.

Este exemplo torna os problemas e possibilidades de uma utopia literária temporal, de caráter antecipatório, particularmente evidentes. O narrador fictício, que cai num sono profundo em 1770 e sonha consigo mesmo no ano 2440, na verdade permanece em Paris, mas em uma Paris completamente mudada: o governo é perfeito, o tecido social se mantém intacto, o comércio doméstico foi aperfeiçoado, a capacidade de trabalho aumentada, a metrópole não tem maus odores, nem desordem, barulho ou clamor. A humanidade finalmente tornou-se virtuosa e, além disso, determinada por um moralismo (privado), tornado público para que a tensão entre um modernismo característico interno e externo possa ser removida. Desta forma, um estado tido como ideal é projetado no futuro, sem que se visualize o processo de desenvolvimento que levou a esta nova situação. A locação onde se dá a projeção também permanece a mesma, estabelecendo-se uma conexão com a tradição das primeiras utopias espaciais11.

Se considerarmos o conceito de progresso sobre o qual Mercier se baseia, por saltar de 1770 a 2440 em sua utopia, veremos que ele só pode ser fracamente construído. Todavia, vários pontos característicos no texto demonstram que Mercier tem bastante firme em seu espírito o caráter processual e dinâmico do progresso da história e o problema da antecipação:

Falta-nos aperfeiçoar muitas coisas. Saímos da barbárie, onde estávamos mergulhados; no início algumas cabeças foram esclarecidas, mas a nação em sua maioria permanecia inconseqüente e pueril. Pouco a pouco os espíritos foram se formando. Resta-nos fazer mais do que fizemos, mal estamos no meio da escada. Paciência e resignação fazem tudo, mas tenho medo que o melhor absoluto não seja deste mundo. Todavia, é buscando-o, penso, que tornaremos as coisas ao menos suportáveis (1971, p. 232).

O fato de que o dirigente do progresso esteja apenas a meio caminho de atingir o cúmulo de seu poder refere-se, por um lado, ao incompleto progresso da história e enfatiza, por outro lado, a essencial busca individual pelo melhoramento.

Utopias temporais têm que desempenhar uma dupla transformação: a transição da velha para a nova sociedade e a contínua alteração da nova sociedade. Com seu salto para o futuro, Mercier torna evidente a transformação da velha sociedade em nova, enquanto a permanente necessidade da nova sociedade por mudanças apenas contingentemente se faz visível. Resta perguntar – e isto está entre as fundamentais antinomias das utopias temporais – se uma utopia temporal que continuamente “ultrapassa a si mesma” pode ser visualizada em sua forma narrativa. Ou isso é apenas possível em uma “história sem fim”? Aqui também se torna claro que cada estipulação essencial de objetivos utópicos aparentemente implica num imobilismo ao menos contingente, enquanto que a completa explicitação do objetivo deve necessariamente culminar em uma filosofia de idéias reguladoras (Vosskamp, 1984, p. 95).

11 Ver também Fohrmann, 1983, p. 105-124.

442

wIlhElM vOSSkAMP

iii.Utopia e a crítica das utopias

A utopia temporal de Mercier atrai nossa atenção para um fenômeno central da poética das utopias literárias: além de uma principal crítica radical das utopias (Utopieverdacht), uma principal suspeita contra as utopias (cf. Joachim Fest) no horizonte do final do chamado “socialismo real” no início dos anos 90, e uma continuidade da oposição estética contra tendências totalitárias nas próprias utopias, existe uma inter-relação entre as utopias e sua crítica que é de fato constitutiva na história das utopias e determina sua tradição européia desde o início dos tempos modernos até agora.

O ponto de partida de Mercier é a dialética da perfectibilité e da corruptibilité reminiscentes de Rousseau, na qual tanto o progresso quanto o retrocesso são abordados – significativamente, em uma nota de rodapé a respeito do abuso da tecnologia de armamentos, em rápido desenvolvimento. O esquema do progresso é, portanto, reversível (Vosskamp, 1984, p. 95). Regressão é o avesso de uma utopia iluminista do progresso, o sonho da futuridade torna-se um pesadelo. Isso já se encontra indicado no século XVIII pela recepção alemã do livro de Mercier. Em Das Jahr 2240. Zum zweiten Mal geträumt. Ein Traum deren es wohl träumerisch gegeben hat (Leipzig, 1783), de Karl Heinrich Wachsmuths, está expressa uma visão crítica radical e profundamente pessimista do progresso, na qual perspectivas para o progresso são expostas como enganos ópticos e ilusões futurísticas facilmente perceptíveis12.

Tais inversões satíricas no sentido de uma utopia crítica radical podem ser observadas como presença contínua desde Gargantua e Pantagruel, de Rabelais (publicado pela primeira vez em 1534) e Gulliver’s Travels, de Swift (1726). A visão otimista do “homem econômico” de Daniel Defoe, que é feliz em uma ilha (1719), logo seria parodiada por Swift, sete anos depois, e em 1770, em seu Robinson Krusoe, Johann Carl Wezel produziu uma das mais agudas rejeições do modelo da utopia robinsoniana que se torna corrompido em um estado de loucos, concluindo com uma perspectiva apocalíptica e completa destruição: sic transit gloria mundi, lê-se na conclusão do romance13.

A crítica da utopia realmente fundamental para a história e autogeração das utopias literárias se instala no momento histórico em que a dicotomia entre sujeito e sistema (o particular e o geral) é revelada por Jean Jacques Rousseau, quando uma crítica aplicada generalizada e radical do próprio desenho utópico sistêmico – para além de qualquer sátira utópica tradicional – é realizada. Isto pode ser brevemente elucidado com o Wilhelm Meisters Wanderjahre (1821/29), de Goethe.

Em segundo lugar, devemos lembrar a discussão utópica em Wilhelm Meisters Wanderjahre (1821/29). Goethe já tinha demonstrado em Wilhelm Meisters Lehrjahre (1795) que a utopia subjetiva educacional de Wilhelm não poderia concordar com a forte utopia social da sociedade. A catástrofe de Mignon e Harfner representa marginalização e morte no sentido de uma subjetividade radical. Em Wanderjahre[n], Goethe agudiza esta crítica utópica. Ele projeta quatro modelos utópicos (o distrito do tio, a província

12 Cf. Jaumann, 1982, p. 316-332, e também Jaumann, 1990, p. 217-241.

13 Ver conclusão do romance e também Braungart, 1991, p. 74-76.

443

A ORgANIzAçãO NARRATIvA dA IMAgEM E dA CONTRA-IMAgEM

pedagógica, a utopia americana e a concepção do vagabundo doméstico europeu) que lembram as tradições e os predecessores das utopias sociais (espaciais). Todos os quatro modelos de utopias conduzem o impulso da auto-realização individual para segundo plano, em favor de uma discussão e crítica de conceitos utópicos sociais (cf. Vosskamp, 1982b, p. 236 e seg.).

A utopia educacional da província pedagógica repõe o postulado individualista da completa aculturação do sujeito individual tal como o Lehrjahre já havia formulado. Em lugar de um aperfeiçoamento contínuo em direção ao homo universale, durante o qual erros e acidentes têm um papel determinante no processo de aprendizado, a província pedagógica desenvolveu um sistema estritamente racional de organização pedagógica, caracterizado pelo ceticismo em relação ao poder da imaginação poética.

Na utopia do vagabundo, o indivíduo solitário retirou-se ainda mais em relação às instituições do que havia sido o caso na província pedagógica.

Finalmente, sob a direção de Odoardos (governador de um ducado territorial alemão dotado de “poderes legais ilimitados”), o plano de povoamento europeu lembra as tendências hostis ao sujeito características das utopias sociais “clássicas” do Renascimento. Uma completa institucionalização é estabelecida com a polícia; intelecto e violência criam uma utopia da razão instrumental, cujos mecanismos de exclusão (a palavra “liquidar” aparece repetidamente) confirmam o caráter negativo desta concepção (Vosskamp, 1982b, p. 240).

Em Wanderjahre[n] Goethe manteve grande distância em relação a seu modelo autocrático. Seu uso de referências irônicas transforma a utopia em crítica da utopia.

Mas a mais aguda articulação da utopia literária crítica no século XVIII deve ser encontrada nos textos de Donatien-Alphonse-François Marquês de Sade. Em Les cent-vingt Journées de Sodome ou l’École du Libertinage (1785) a utopia da libertinagem é representada como um sistema de ordenamentos e aprisionamentos, conforme Piranesi pintou em sua horrível visão, bem como em outros textos e imagens até o século XX. A utopia libertina de Sade é a encarnação daquele terror de ordenar expressado na crítica radical da utopia. Michel Foucault viu o pan-óptico benthaniano como uma “utopia do perfeito aprisionamento”. Esta estrutura pan-óptica é para Foucault o princípio da fundação do disciplinamento por meio de sistemas sociais. Tais estruturas pan-ópticas foram descritas por Sade. Michael Winter sugere que elas transformaram “a estrutura arquitetônica em estrutura mental”: “a ordem das coisas é acabada de dentro para fora, sem nenhuma conexão com a realidade. A bela simetria das coisas torna-se, neste processo, uma simetria do mal” (Winter, 1982, p. 102).

Em Sade, o pensamento utópico é desmascarado em sua funcionalidade. O impulso em direção à sistematização é uma precondição para o regramento do mundo (cf. Horkheimer e Adorno, 1947). Sade também deixa isso claro no princípio segundo o qual o pensamento utópico, em relação a seus métodos, desde o início, não se dirige à humanidade, mas baseia-se, antes, em uma dialética cujas origens Marx, Horkheimer

444

wIlhElM vOSSkAMP

e Theodor W. Adorno convincentemente encontraram no Iluminismo. A instrumentalização do raciocínio utópico em Sade é uma provocação dirigida ao leitor, dificilmente ultrapassável. O ideal da ordem torna-se um terrorismo da ordem quando os sistemas utópicos negam a identidade e a integridade individuais.

Nesse sentido, em Sade alcança-se o ponto em que utopia e crítica da utopia coincidem: uma posição de onde as “utopias negativas” do século XX (Zamjatin, Orwell, Huxley) de fato representam um desafio para elas mesmas (Vosskamp, 1996, p. 1931-1951). A descoberta de Rousseau segundo a qual os interesses do sujeito e da sociedade não podem harmonizar-se se o sujeito em sua singularidade for levado a sério, leva, em Sade, à descoberta de uma fundamental dialética utópica. Dado o sistema-terrorismo das utopias e a instrumentalização de seu raciocínio utópico, é possível que a singularidade do sujeito seja, por fim, preservada?

Esta questão determina a poética das utopias literárias até o presente. A crítica da utopia leva a visões do excesso dos modelos utópicos herdados (cf. Bohrer e Scheel, 2001); é um requisito para a possibilidade de um sistema literário aberto com menos “densidade utópica” (Lars Gustafsson) e a precondição para uma auto-utopização, no sentido do potencial específico das utopias para a regeneração e alteração do ser.

A história das utopias literárias está ligada à sua própria crítica, que a determina. Esta é também sua função real, como espelho dos processos históricos e sociais. Ou, formulado de outro modo: a autopoiesis da utopia é constituída por uma dialética incompleta da utopia e da crítica da utopia, que se instauram mediante uma permanente auto-reflexão.

Traduzido por Ana Cláudia Romano Ribeiro

Referências

ANDREAE, J.V. Christianopolis. Introdução e trad. Edward H. Thompson. Dordrecht: Kluwer, 1999.

BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt: Suhrkamp, 1959.

BOHRER, Karl H. e SCHEEL, Kurt (eds.). Zukunft denken. Nach den Utopien. Merkur, 55, 2001.

BRAUNGART, Wolfgang. "Apokalypse und Utopie". In: KAISER, Gerhard R. (ed.). Poesie der Apokalypse. Würzburg: Könighausen & Neumann, 1991.

DÜLMEN, Richard von. "Die Formierung der europäischen Gesellschaft in der Frühem Neuzeit". In: Geschichte und Gesellschaft, 7, 1968, p. 9.

ERZGRÄBER, Willi. Utopie und Anti-Utopie in der englischen Literatur: Morus, Mores, Wells, Huxley, Orwell. München: Fink, 1980, p. 35.

FOHRMANN, Jürgen. "Utopie und Untergang. L.S. Merciers L’An 2440 (1770)". In: BERGHAHN, Klaus L. e SEEBER, Hans U. Literarische Utopien von Morus bis zur Gegenwart. Königsstein/Taunus: Athenäum, 1983.

445

A ORgANIzAçãO NARRATIvA dA IMAgEM E dA CONTRA-IMAgEM

GARBER, Klaus. "Arkadien und Gesellschaft". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. 2. Stuttgart: Metzler, 1982.

GARBER, Klaus. "The Utopia and the Green World: Critic and Anticipation in Pastoral Poetry". In: REINHART, Max (ed.). Imperiled Heritage: Tradition, History and Utopia in Early Modern German Literature. Burlington: Ashgate, 2000.

GRIMM, Reinhold R. "Arcadia und Utopie. Interferenzen im neuzeitlichen Hirtenroman". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. 2. Stuttgart: Metzler, 1982.

GUSTAFSSON, Lars. "Negation als Spiegel. Utopie aus epistemologischer Sicht". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. I. Stuttgart: Metzler, 1982.

HEINISCH, J. (ed.). Der utopische Staat. Reinbek: Rowohlt, 1960.

HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W. Dialektik der Aufklärung. Ed. orig. Amsterdam, 1947.

JAUMANN, Herbert. Epílogo a MERCIER, Louis-Sébastien. Das Jahr zwey tausend vier hundert und vierzig. Ein Traum aller Träume. Trad. Christian F. Weisse, London, 1772. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1982.

JAUMANN, Herbert. "Die deutsche Rezeption von Merciers L’An 2440. Ein Kapitel über Fortschrittsskepsis als Utopiekritik in der späten Aufklärung". In: ZIMMERMANN, Harro (ed.). Der deutsche Roman der Spätaufklärung. Fiktion und Wirlichkeit. Heildelberg: Winter, 1990.

KOSELLECK, Reinhart. "Die Verzeitlichung der Utopie". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. 3. Stuttgart: Metzler, 1982.

KUON, Peter. Utopischer Entwurf und fiktionale Vermittlung. Studien zum Gattungswandel der literarischen Utopie zwischen Humanismus und Frühaufklärung. Heidelberg: Winter, 1986.

MERCIER, Louis-Sébastien. L’An deux mille quatre cents quarante. Rêve s’il en fût jamais. Bordeaux: Ducros, 1971.

MUSIL, Robert. Der Mann ohne Eigenschaften. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1987.

SCHNABEL, Johann Gottfried. Insel Felsenburg. Ed. Volker Meid e Ingeborg Springer-Strand. Stuttgart: Reclam, 1979.

SEEL, Martin. "Drei Regeln für Utopisten". In: Zukunft denken. Nach den Utopien. Merkur, 55, 2001.

STOCKINGER, Ludwig. Ficta Respublica. Gattungsgeschichtliche Untersuchungen zur utopischen Erzählung in der deutschen Literatur des frühen 18. Jahrhuderts. Tübingen: Niemeyer, 1981.

SUVIN, Darko. Poetik der Science Fiction. Zur Theorie und Geschichte einer literarischen Gattung. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1979.

446

wIlhElM vOSSkAMP

VOSSKAMP, Wilhelm. "Gattungen als literarisch-soziale Institutionen". In: HINCK, Walter (ed.). Textsortenlehre. Gattungsgeschichte. Heildelberg: Walter Hinck, 1977.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Gattungsgeschichte". In: Reallexikon der deutschen Literaturwissenchaft. Berlin u.a., 1977a, vol. 1.

VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie. 3 vol. Stuttgart: Metzler, 1982.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Thomas Morus’ Utopia: Zur Konstituierung eines gattungsgeschichtlichen Prototyps". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. 2. Stuttgart: Metzler, 1982a.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Utopie und Utopiekritik in Goethes Wilhelm Meisters Lehrjahre und Wilhelm Meisters Wanderjahre". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. 3. Stuttgart: Metzler, 1982b.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Literaturgeschichte als Funktionsgeschichte der Literatur (am Beispiel der frühneuzeitlichen Utopie)". In: KRAMER, Thomas (ed.). Literatur und Sprache im historischen Prozess. Tübingen: Niemeyer, 1983, vol. 1.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Fortschreitende Vollkommenheit. Der Übergang von der Raum zur Zeitutopie im 18. Jahrhundert". In: WIEHN, Erhard R. (ed.). 1984 und danach. Utopie, Realität, Perspektiven. Konstanz: Universitätsverlag, 1984.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Grundrisse einer besseren Welt. Messianismus und Geschichte der Utopie bei Ernst Bloch". In: MOSES, Stéphane; SCHÖNE, Albrecht. Juden in der deutschen Literatur. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1986.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Utopie als Antwort auf Geschichte. Zur Typologie literarischer Utopien in der Neuzeit". In: EGGERT, Hartmut; PROFITLICH, Ulrich; SCHERPE, Klaus R. Geschichte als Literatur. Formen und Grenzen der Repräsentation von Vergangenheit. Stuttgart: Metzler, 1990.

VOSSKAMP, Wilhelm. "Utopie". In: RICKLEFS, Ulfert (ed.). Fischer Lexikon Literatur. Frankfurt/Main: Fischer, 1996.

WINTER, Michael. "Don Quichote und Frankenstein. Utopie als Utopiekritik: Zur Genese der negativen Utopie". In: VOSSKAMP, Wilhelm (ed.). Utopieforschung. Interdisziplinäre Studien zur neuzeitlichen Utopie, vol. 3. Stuttgart: Metzler, 1982.

WINTER, Michael. "Lebensläuf aus der Retorte. Glück und Utopie". In:Zeitschrift für Literaturwissenschaft und Linguistik, 50, 1983.

ZEDLERS, Johann Heinrich. "Schlaraffenland" (“Paraíso dos loucos”). In: Grosses vollständiges Universal-Lexicon aller Wissenschafften und Künste…, Halle und Leipzig: J.H. Zedler, vol. 34. 1742.

Resumo

Il tema dello spazio è sempre stato considerato importante nelle utopie letterarie, ma lo si è solitamente studiato in relazione alla descrizione, preponderante – in questi testi - rispetto alla narrazione propriamente detta. È invece interessante esaminare la dimensione spazio/visuale dell’altrove utopico organizzato per vedere come assetto urbanistico e architettura siano, in esso, oltre che simboli, veri e propri attanti, con funzione che qui abbiamo definito “performativa”. Vi sono in utopia, cioè, luoghi, edifici, pratiche (legate sempre alla dimensione spaziale), che non solo rappresentano alcuni princìpi fondanti della collettività utopica, ma che anche realizzano tali princìpi. Ci sono spazi che ospitano il potere, ma che anche lo esercitano; luoghi che rappresentano il benessere materiale della collettività, ma che anche lo distribuiscono, ecc. Fondamentale il tema dello sguardo: che attraversa lo spazio del privato, che veglia e sorveglia, che insinua il germe distopico nell’altrove ideale.

Palavras-chave

Utopia, spazio, sguardo.

Carmelina Imbroscio é professora de Literatura francesa na Universidade de Bolonha. Pesquisa literatura utópica e colabora com numerosas publicações do Centro Interdipartimentale di ricerca sull’Utopia da Universidade de Bolonha (a mais recente é "Utopie et rêve/Utopie et uchronie", in Histoire transnationale de l’utopie littéraire et de l’utopisme, a cura di V. Fortunati e R. Trousson, Paris: Champion, 2008). Atua também em outras áreas de pesquisa, como a doença mental nos tratados de medicina e nas obras teatrais do século XVIII e a literatura fantástica do século XIX. Entre os vários estudos sobre estes temas estão Le malattie dell’anima tra scienza e pregiudizio. Letteratura medica e letteratura parodica nel Settecento francese (Bologna: CLUEB, 2002); "Il vizio è nell'aria... Le metafore della corruzione e il teatro francese del Settecento", in Dibattito sul teatro. Voci, opinioni, interpretazioni, a cura di C. Dente (Pisa: ETS, 2006) e "L’île dans la littérature fantastique. Présence et signification de l’insolite", in Des îles en archipel, a cura di C. Imbroscio, N. Minerva, P. Oppici (Bern [et al.]: Peter Lang, 2008).

Declinazioni dello spazio abitato in terra d'utopiaCarmelina ImbroscioUniversità di Bologna

Centro Interdipartimentale di Ricerca sull’Utopia (Itália)

448

CARMElINA IMBROSCIO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Il tema della spazialità nella narrativa utopica è rilevante: le utopie raccontate si aprono il più delle volte con un viaggio per mare che conduce in un altrove ignoto al mondo “civilizzato” e alle carte

nautiche (pensiamo alla maggior parte dei Voyages imaginaires pubblicati tra il 1787 e il 1789 da Charles Garnier). Quando le conquiste scientifiche aprono l’esplorazione dello spazio verticale col pallone aerostatico le cose non mutano. Faranno eccezione i viaggi nell’altrove temporale inaugurati, a mezzo sogno, da Mercier (L’an 2440, del 1771) e sviluppati a partire dall’Ottocento mediante il ricorso alla tecnologia (v. The Time Machine di George Wells e, nel Novecento, i vari romanzi ucronici di René Barjavel, tra cui Le voyageur imprudent). Ma anche quando il viaggio non si compie nello spazio, la dimensione spazio/visuale torna ad essere protagonista al momento dell’approdo in terra d’utopia: lo è nella presentazione del luogo ideale, che insiste sulla conformazione del suolo, su topografia e toponomastica delle città, su urbanistica e architettura, sulla descrizione dell’abbigliamento degli “utopiani”, delle loro pratiche rituali, ecc. Il tempo interviene a giustificare la nascita di quell’esperienza alternativa: si ricordano i grandi fondatori, le modalità e le circostanze di fondazione, le ascendenze nobilitanti (le immacolate società preadamitiche), ma poi l’occhio del visitatore e la facoltà immaginativa del lettore sono impegnate nel percorrere in orizzontale le meraviglie dell’altrove utopico.

Si potrebbe paradossalmente osservare che l’u-topia, il non-luogo, è sovradeterminata proprio come luogo. Molto si è detto della conseguenza che ciò comporta in termini di ridondanza descrittiva, col rischio frequente che la narrazione ne soffra, il suo impianto risulti statico e la riuscita letteraria mediocre. Complesso ambito in cui operano i “jeux d’espaces” (spazi del luogo vagheggiato, spazi della scrittura, spazi dell’immaginazione…) di cui parla Louis Marin (1973), l’utopia letteraria rischia la deriva del suo potenziale sovversivo proprio (seppur non solo) a causa della sua progettualità spaziale: questa comporta per il pensatore/autore utopico una così precisa definizione che l’altrove, liberato dalle scorie soffocanti della vecchia civiltà, presenta una mappa altrettanto (se non ancor più) claustrofobica.

Della maniacale organizzazione dello spazio urbano in utopia¹, della sua distribuzione razionale e simmetrica funzionale al modello sociale proposto, si è molto parlato, cogliendo, di ciò, il carattere normativo e coercitivo. Tanto che spesso gli scrittori hanno sentito il bisogno di liberare l’immaginazione utopica dai lacci delle sue isotopie. Non per nulla, in Espèces d’espaces, Georges Perec sogna dell’incontro con uno spazio “a-fonctionnel”: “Un espace sans fonction. Non pas ‘sans fonction précise’, mais précisément sans fonction” (1974). E Marco Polo, ne Le città invisibili di Calvino, racconta al Kublai Kan di immaginare la città perfetta, mai incontrata nei suoi viaggi, come “fatta di frammenti mescolati con il resto, d’istanti separati da intervalli, di segnali che uno manda e non sa chi li raccoglie […] discontinua nello spazio e nel tempo, ora più rada, ora più densa” (1978, p. 169).

Vorrei qui invece parlare di specifiche funzioni dei “prodotti spaziali” in terra d’utopia; pur non trascurando la loro dimensione temporale, o

¹ Si tratta naturalmente delle utopie urbane. Altri sono i modelli di quelle arcaiche, patriarcali e primitiviste, ispirate al mito del Paradiso Terrestre o dell’Età dell’Oro.

449

dEClINAzIONI dEllO SPAzIO ABITATO IN TERRA d’UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

meglio spaziotemporale. Si tratta di quegli elementi “visivi” architettonici, ornamentali, urbanistici, che rendono abitato lo spazio e che intrattengono comunque col tempo un rapporto legato alla durata della loro progettazione/realizzazione e alla loro successiva permanenza sul territorio.

L’urbanistica e l’architettura hanno un rapporto speciale con lo spazio abitato:

les déplacements du corps et même son maintien en place ne se laissent ni dire, ni penser, ni même à la limite éprouver, sans quelque référence, au moins allusive, aux points, lignes, surfaces, volumes, distances, inscrits sur un espace détaché de la référence […] au corps propre (Ricoeur, 2003, p. 185).

È il punto di vista di Ricœur che attribuisce all’architettura, nella dimensione spaziale, il ruolo che il récit ha nella dimensione temporale: quella funzione “configurante” di uno spazio informale che traccia le dimensioni dell’abitare (il dentro e il fuori, le delimitazioni, ecc.) consentendo la “rifigurazione” dello spazio umano².

Fondamentali nel nostro vivere collettivo quotidiano, l’architettura e l’urbanistica assumono funzioni ancor più importanti nella città utopica. Se secondo Henri Lefebvre (cfr. 1974), noto studioso dell’odierna sociologia urbana, lo spazio è sempre “politico” e in quanto tale deve rappresentare i valori della società che lo abita, a maggior ragione, lo spazio edificato delle nostre città ideali è portatore di significati. Già nei progetti urbanistici di Leonardo da Vinci, del Filarete, nelle città ideali di Thomas More, e poi di Anton Francesco Doni, di Patrizi da Cherso e di altri umanisti, il valore simbolico della progettualità spaziale è altissimo, tanto da rappresentare luci ed ombre dell’utopia, da esserne insieme principio costitutivo e germe distruttivo. Ne è principio constitutivo perché la città utopica nella quale ci accompagna il visitatore/narratore è subito presentata nel suo assetto topografico: che essa sia a pianta ortogonale (vedi i progetti di Ippodamo da Mileto, le città della stessa Utopia, Christianopolis³…), ellittica come la traiettoria solare (il progetto di Ledoux per la città industriale di Chaux), circolare e concentrica (come, ad esempio, Sforzinda del Filarete, la Città del Sole di Campanella), sul suo impianto si costruiscono gli elementi visuali portanti della sua ideologia: la rete viaria a scacchi o a raggiera, le abitazioni private essenziali, spesso tutte uguali, distribuite secondo precise simmetrie, gli edifici pubblici, laici o religiosi di grandiose dimensioni e di importante fattura, sempre collocati in posizione rilevante, l’iconografia a finalità pedagogica… Una “mappa” perfetta che introduce un perfetto assetto politico-sociale. Ma regolarità, geometrie ripetitive, allineamenti, evocano anche chiusura, livellamento, annullamento delle individualità, repressione; lo si intuisce nelle puntigliose utopie che gli autori vorrebbero positive, lo si denuncia apertamente nelle distopie, lo si è verificato nelle utopie realizzate della nostra modernità.

Fondamentalement […] la conception utopique repose sur un modèle géométrique et distributif susceptible d’être appliqué en tout lieu possible et qui n’est donc prévu pour aucun lieu particulier. […] L’espace ne rentre

² Si veda anche, sempre di Ricœur, Temps et Récit (1991) e "Architecture et narrativité" (1998). Rinvio inoltre all’interessante saggio “L’esquisse d’une herméneutique de l’espace chez Paul Ricœur”, di Marc-Antoine Vallée (2007).

³ È la città capitale in Reipublicae Christianopolitanae descriptio, di Johann Valentin Andreae (1619).

450

CARMElINA IMBROSCIO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

pas dans les catégories utopiques; il n’est ni déformable, ni transportable, ni multipliable; il est terriblement fini, concret, divisible, prêt au lotissement.Le temps en revanche constitue le vecteur irrésistible de l’utopie (Borsi, 1997, p. 14).

Giudizio più implacabile sulla portata “mortifera” del modello spaziale non poteva essere espresso. Eppure il suo primato in utopia è innegabile. L’atto di fondazione è sempre un atto spaziale, il fondatore è geografo, cartografo, ingegnere, architetto: basti pensare ad Utopus che taglia l’istmo della penisola di Abraxa per fondare la sua società alternativa. Nel bene e nel male “le modèle spatial et éternel, fixé dans la rigidité de la pierre et du cadre bâti, l’emporterait sur le domaine temporel de la décision, de la délibération” (Massin, 1996, p. 15); ma forse sarebbe più corretto dire che anche nel modello spaziale, predominante in utopia, si iscrivono, così come nel modello temporale, decisione e deliberazione; anzi che la fondazione del luogo costituisce il primo atto deliberativo.

Se il fare predomina sul descrivere, l’essere sul dire, ci troviamo di fronte ad un uso speciale del concetto di spazialità. Prima di approfondirne la definizione vorrei trovare rinforzo nella seguente considerazione di Starobinski:

Tout se passe comme si les grandes notions de l’égalité selon la nature ou de l’égalité selon la loi trouvaient immédiatement leur expression spatiale par la règle et le compas. La géométrie est le langage de la raison dans l'univers des signes (1979, p. 49-50, il corsivo è mio).

Il contesto è qui la Rivoluzione francese, ma il transfert in terra d’utopia è assolutamente lecito. La “geometria” urbana dell’altrove utopico non descrive il progetto politico, ma è il progetto politico, trasferito immediatamente in atto. L’immaginario utopico utilizza quindi, per la definizione del suo altrove ideale, elementi di natura spazio/visuale (architettonici, urbanistici, figurativi) che hanno natura performativa. Il termine, preso a prestito dalla linguistica, rende bene la natura di quello spazio urbano “costruito” che non è descrizione, né constatazione, ma azione4.

Un altro contesto del termine ispira analogie: quello delle “arti performative” (teatro, danza, musica); anche quando ricorriamo alla più corretta definizione, in italiano, di “arti sceniche”, l’affinità permane. Se si immagina una città utopica non visualizziamo forse una complessa scenografia? Non si parla forse di qualità “visionarie” dello scrittore/utopista? Gli esempi sono tanti, davvero troppi da citare; esistono ricchi atlanti di luoghi immaginari e di cartografie utopiche, planimetrie delle città ideali rinascimentali, illustrazioni di tecnologie urbane avveniristiche, cartoni, tavole, bozzetti di monumenti (pensiamo nel Settecento a Boullée e a Ledoux). Tra le tante citazioni possibili dalle utopie narrate, qualche noto passaggio dal “prototipo”:

Chi ha visto una città, le conosce tutte, tanto si rassomigliano in ogni particolare, per quanto è concesso dalla natura del terreno. Ne descriverò

4 Il titolo dell’opera con la quale John Austin introduce la nozione di enunciato performativo, How to do things with words (1962), si potrebbe nel nostro caso parafrasare in Come fare le cose con lo spazio…

451

dEClINAzIONI dEllO SPAzIO ABITATO IN TERRA d’UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

pertanto una qualsiasi […]. Amauroto, dunque, è posta sul dolce pendio di un’altura e ha una pianta pressoché quadrata […]. La città è cinta da mura alte e spesse […]. Le strade principali sono tracciate giudiziosamente, tenendo conto sia della comodità dei trasporti, sia del riparo dai venti; le case, tutt’altro che dimesse, si vedono affiancate in lunga serie per intere contrade, con le facciate rivolte a quelle delle case di fronte […]. Non c’è casa che non abbia una porta che dà sulla strada e un’altra a tergo per accedere al giardino; esse sono a due battenti: basta una spinta della mano ad aprirle e poi si richiudono da sole, sicché chiunque può entrare, in modo che non c’è ombra di proprietà privata (More, 1979, p. 174,176-177).

Se non bastasse la qualità “scenica” dell’altrove utopico si aggiunga – scena nella scena – tutta la ritualità che sempre vi si compie, sia essa civile o religiosa5.

Visualità non solo simbolica quindi in utopia, ma anche performativa. Sebbene – come si è visto – quest’ultima valenza sia connaturata all’intento stesso di dare corpo all’idealità utopica (e in questo “incarnarsi” del progetto nello spazio sta anche la nascita fusionale dello spaziotempo), alcuni esempi più pregnanti ne renderanno meglio conto.

Uno spazio d’utopia a forte valenza performativa è, ad esempio, il granaio collettivo (in alcuni casi anche le mense pubbliche). Presente in numerosissime narrazioni o in progetti, il granaio, che sorge in posizione rilevante nell’assetto urbano; è certo pregno di valenza simbolica: è il segno dell’ideale egualitario, della raggiunta agiatezza economica della comunità, del principio del comunismo distributivo, ma attua anche ciò a cui allude: è al granaio che si attinge per sconfiggere le carestie e per garantire a tutti il benessere materiale che il sistema promette. E come il granaio, i luoghi pubblici in genere, che si ergono imponenti nella mappa urbana, non solo sono simbolo del primato del collettivo, ma fanno essi stessi opera di collettivizzazione.

Il collettivismo deve basarsi sulla trasparenza, principio fondamentale in terra d’utopia. Non solo essa allude all’abbattimento delle barriere dell’individualismo a vantaggio della comunità che, sola, garantisce felicità, ma mette in atto quanto promette; la trasparenza “fa trasparenza” nella vita degli utopiani. Può essere la nudità: quella cui Thomas More pensa di sottoporre i giovani promessi sposi, perché si possano reciprocamente valutare e liberamente scegliere, quella che Campanella immagina per i suoi atleti, maschi e femmine, sempre perché la collettività possa ben valutare i soggetti atti alla procreazione; o quella dei felici e puri abitanti di isole incontaminate dalla nostra società, per i quali la liberazione dagli abiti è segno di uguaglianza e di innocenza (v., ad esempio, la Tahiti del Supplément au voyage de Bougainville di Diderot, 1796).

La trasparenza è anche quella che attraversa i luoghi edificati: case che guardano l’una verso l’altra, porte aperte (v. Utopia di Thomas More), finestre che si affacciano sugli interni altrui, pareti di vetro. La trasparenza rivela, illumina, ma anche vìola:

5 Rinvio alla voce "Rites" di Nadia Minerva in Dictionary of Literary Utopias (2000), p. 534-538.

452

CARMElINA IMBROSCIO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

Le verre est tout d’abord transparent. Dans une société gouvernée par la raison, personne n’a rien à cacher. […] La transparence de l’architecture manifeste l’immédiateté retrouvée d’un monde dans lequel aucune mauvaise action n’est plus possible, en raison de la surveillance mutuelle qu’exercent ses habitants les uns sur les autres. […] En plaçant l’existence de chacun sous le regard des autres, l’architecture en verre semble indiquer la voie d’une possible conciliation entre les registres de l’individuel et du collectif (Riot-Sarcey et al., 2002, p. 135).

Anche l’urbanista Anthony Vidler (cfr. 1992, p. 217-226)6 – che ha dedicato molti studi alle “deformazioni” dello spazio e al perturbante in architettura – rileva l’ambiguità della trasparenza: ideale di purezza, trionfo dei Lumi, presupposto di socializzazione, operazione di bonifica, iniziale espressione (per gli urbanisti moderni, ma anche per i nostri utopisti) del riscatto dal buio, dall’umido e dal malsano, ha finito per essere un’insostenibile messa a nudo dell’interiorità, che costringe l’individuo, braccato, a collocarsi in un contesto di discontinuità tra spazio intimo e spazio esteriore. Vidler denuncia, nella nostra modernità, l’architettura della claustrofobia e la città dell'agorafobia nelle quali non possiamo non riconoscere i caratteri già presenti nel dispositivo utopico (anche in questo caso precorritore e premonitore), dove lo spazio “claustrato” (isola, cinta muraria…) è compresente con lo spazio “illimitato” (piazze, edifici pubblici, templi). Nella Terre Australe connue (1676) di Foigny la “Maison d’Élévation” o Hab - edificio pubblico che domina ognuno dei diversi agglomerati urbani che sorgono in questo altrove - “est toute bâtie de pierres diaphanes et transparentes, que nous pourrions comparer à notre plus fin cristal de roche” (1990, p. 72). In Noi di Zamjàtin (1922) D-503, abitante di una tecnologica quanto inquietante società del III millennio, racconta nel suo diario:

[…] nei nostri muri trasparenti, che sembrano tessuti di aria scintillante, noi viviamo sempre in vista di tutti, sempre lavati dalla luce. Non abbiamo da nascondere nulla l’un l’altro. Ciò facilita il pesante ed elevato compito dei Guardiani (1984, p. 31).

Trasparenze pragmatiche e performative, quindi, che in un gioco incrociato di sguardi senza barriere spaziali, da privato a privato, da pubblico a privato, dicono e insieme realizzano l’abdicazione all’individualità.

Il controllo diviene inquietante quando si fa “occhio”: gli schermi e i manifesti del Big Brother orwelliano (“Il Grande Fratello ti vede”…), la postazione centrale del carceriere nel Panopticon radiocentrico di Jeremy Bentham, dalla quale “uno” può vedere “tutti e tutto”, la Casa del Direttore della Saline Royale di Arc-et-Senans (progettata nel Settecento da Ledoux7) non sono solo simboli spaziali di sorveglianza, segni del potere che tutto vede, ma sono luoghi “che vedono” (ad Arc-et Senans la Casa del Direttore porta sul frontone un grande occhio d’ispezione).

Questo bisogno di trasparenza relazionale riguarda anche la lingua d’utopia. La società utopica si organizza sul rifiuto delle interpretazioni, strumenti ingannevoli e infidi della vecchia società, nell’intento di accedere

6 Rinvio anche a Emmanuel Alloa, “Architectures de la transparence” (2008).

7 Sulla natura ancien régime dell’architettura di Ledoux, che tende a realizzare, mediante il lavoro sullo spazio, l’armonia sociale di cui il monarca è garante in nome di Dio, invito a leggere Fabien Gaveau, “Surveillance et police en utopie: De la tournée au regard” (2008, p. 85-96).

453

dEClINAzIONI dEllO SPAzIO ABITATO IN TERRA d’UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

ad una conoscenza primaria, semplice, univoca delle cose. Le lingue di molte utopie saranno quindi universali e aprioristiche e avranno l’ambizione di realizzare l’identità tra significante e significato:

L’utopie est fondée sur la pratique de l’analogie, puisqu’entre les mots et les choses il y a une parfaite identité, dans un système de similitudes qui ne détache pas le mot de la chose et rend la notion de représentation impensable (Chouquer, 2008, p. 363-385).

Si può a buon titolo sostenere che il rifiuto del concetto di rappresentazione concerna anche gli elementi spazio/visuali dell’utopia organizzata i quali, contrariamente ai simboli spaziali dell’architettura e dell’urbanistica “civilizzate”, mirano all’identificazione tra il significare e l’essere. Naturalmente contraddizioni e ambiguità non mancano (d’altronde la stessa nozione di utopia ne è costellata): l’intento educativo/pedagogico del progetto è tale che simboli, metafore, allegorie, ritualizzazioni espunte finiscono per rientrare a pieno titolo nell’assetto societario dell’altrove utopico.

È un esempio di questa commistione l’utopia ottocentesca La ville nouvelle di Duveyrier (1803-1866, vol. VIII, p. 315-344); La Parigi a venire è una città antropomorfa “maschile” al centro della quale sorge il Tempio/femme, luogo dell’amore vivente consacrato, secondo la fede sansimoniana dell’autore, alla grande Sacerdotessa dell’Avvenire. Il “corpo” della città, adagiato lungo la Senna, ospita sul capo una ricca chioma di alberi, lungo il suo braccio e la sua gamba destra sorgono fabbriche e centri commerciali, lungo il fianco sinistro, invece si insediano i luoghi del sapere, le banche, le case di riposo, gli alberghi. Nel petto del colosso palpita il Tempio/donna le cui vesti scintillanti sono modellate da terrazze e scalinate. La gioia del popolo si manifesta con musiche, colori, danze, voli in palloni aerostatici che permettono di ammirare dall’alto tutta la magnificenza del colosso adagiato. L’amore universale infine trionfa in un’umanità rinnovata. Le qualità performative di tale assetto urbano sono evidenti: l’impianto visionario del progetto, il delirio onirico che regge il racconto, fanno della città un tutto palpitante, in cui si confondono segni e essenze, in una multicolore e variegata scenografia che ne attraversa “il corpo”, facendolo vibrare di gioia; l’antropomorfizzazione dei luoghi fa sì che essi “incarnino” la loro funzione: essi non allegorizzano o metaforizzano, sono.

**

A conclusione di questa riflessione, non si può che ribadire l’estrema importanza dello spazio nella progettualità utopica; peccato che in essa – per presunzione o per timore di contaminazione - la dialettica del “dentro” e del “fuori” si radicalizzi, decretando il più delle volte l’asfissìa del progetto stesso (come la decreta, in termini temporali, il rifiuto della perfettibilità). Viene in mente la bella concezione dinamica di Bachelard:

Le dedans et le dehors ne sont pas laissés à leur opposition géométrique. […] L’extérieur n’est-il pas une intimité ancienne perdue dans l’ombre de

454

CARMElINA IMBROSCIO

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

la mémoire? […] La nuit sans bornes cesse d’être un espace vide (1994, p. 206).

Il tema dello spazio, forse un po’ trascurato nell’ambito delle scienze letterarie del secolo scorso, torna oggi ad essere oggetto di attenzione in termini di geocritica, geopoetiche, cartografie immaginarie, paesaggi letterari…. La sua imprescindibile complicità col dato temporale è stata codificata dalla cronotopìa bachtiniana8 e la sua attualità , nel moderno vivere civile, è innegabile, anche se è sempre presente l’inquietante rischio che l’espansione della dimensione spaziale si attui a detrimento di quella temporale; che, in altri termini, il vivere “orizzontalmente” faccia perdere di vista la direttrice “verticale” dell’esistere: da un lato la memoria, dall’altro la progettualità. “L’époque actuelle serait peut-être plutôt l’époque de l’espace” osserva Michel Foucault “ Nous sommes à l’époque du simultané, nous sommes à l’époque de la juxtaposition, à l’époque du proche et du lointain, du côte à côte, du dispersé (1984, p. 46).

Ancora una paradossale analogia: il nostro tempo, che rifiuta le utopie, condivide tuttavia con esse l’ipertrofia della dimensione spaziale; “habitants acharnés de l’espace” definisce Foucault i contemporanei, e allo stesso modo definiremmo noi gli “utopiani”. Dove sta, di fronte a questa palese contraddizione, il punto d’incontro tra moderna spazialità e spazi dell’altrove utopico? Forse la risposta ce la suggerisce lo stesso Foucault, sempre in “Des espaces autres”, individuando spazi che definisce “hétérotopies”: luoghi reali, ma altri rispetto al nostro quotidiano, “une espèce de contestation à la fois mythique et réelle de l’espace où nous vivons” (ibid.). Sarebbero tali prigioni, case di riposo, cimiteri, treni, navi, albergo del viaggio di nozze, giardini, spiagge, teatro, cinema (che in bidimensionalità ci propone la realtà tridimensionale…); ma potremmo aggiungere il grande fratello televisivo o le varie isole dei famosi: nicchie di altrove nella nostra normale dimensione spaziale. Tante e tali sono le declinazioni possibili delle eterotopie che inevitabilmente esse finiscono per contaminare il reale… Innocenti e necessari spazi di alterità o di evasione, esse possono divenire dettami del costume contemporaneo, stereotipi della nostra “civiltà” che imbrigliano la fluidità del vivere nella griglia di tante piccole utopie, di tanti spazi interstiziali, alternativi e illusori, spacciati per modelli normativi. Ancora spazi performativi, quindi; secondo accezioni che si confondono (d’altronde nulla è più “imbrogliato”, contraddittorio e ambiguo dell’ideale utopico): luoghi in cui “si recita” la realtà (arti performative), spazi scenici che si spacciano per realtà, nei quali si celebra una realtà distorta e alternativa che sfida il “vivere vero”, una realtà parallela, appunto mitica e utopica (ma quanto distante dal “principio della speranza” di Bloch!), per questo nostro tempo senza memoria storica e senza autentiche tensioni utopiche.

Riferimenti bibliografici

ALLOA, Emmanuel. "Architectures de la transparence". In: Appareil (rivista on-line), n. 1, 2008 [http://revues.mshparisnord.org/appareil/index.php?id=138].

8 D’altronde già Henri Bergson sottolineava la “confusione” dei dati spaziotemporali. Nel suo Essai sur les données immédiates de la conscience (1889) “spazializza” il tempo, ritenendo possibile il concetto di durata temporale solo a livello di coscienza individuale.

455

dEClINAzIONI dEllO SPAzIO ABITATO IN TERRA d’UTOPIA

MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace (1957). Paris: PUF, 1994.

BORSI, Franco. Architecture et utopie. Paris: Hazan, 1997.

CALVINO, Italo. Le città invisibili (1972). Torino: Einaudi, 1978.

CHOUQUER, Gérard. "Le privilège d’insularité. Libres réflexions sur l’espace et le temps de l’utopie et de la Modernité". In: CHOUQUER, G. & DAUMAS, J.-C. (éds.). Autour de Ledoux: architecture, ville et utopie. Actes du Colloque international à la Saline royale d’Arc-en-Senans, le 25, 26 et 27 octobre 2006. Besançon: Presses Univ. de Franche-Comté, 2008.

DUVEYRIER, Charles. "La ville nouvelle, ou le Paris des Saint-Simoniens". In: Paris, ou le livre des cent-et-un, 1803-1866, 15 vol.

FOIGNY, Gabriel de. La Terre Australe connue (1676). Paris: S.T.F.M., 1990.

FOUCAULT, Michel. “Des espaces autres” (1967). In: Architecture, Mouvement, Continuité, n. 5, 1984.

GAVEAU, Fabien. "Surveillance et police en utopie: De la tournée au regard". In: Autour de Ledoux: architecture, ville et utopie, a cura di G. Chouquer e J.-Cl.. Daumas. Besançon: Presses Universitaires de Franche-Comté, 2008.

LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Éditions Anthropos, 1974.

MARIN, Louis. Utopiques. Jeux d’espaces. Paris: Éditions de Minuit, 1973.

MASSIN, Marianne. L’Utopie victime de ses topiques ou Le double triomphe de l’espace et des arts appliqués sur les beaux-arts. La Rochelle: Rumeur des Âges, 1996.

MINERVA, Nadia. “Rites”. In: Dictionary of Literary Utopias, a cura di V. Fortunati e R. Trousson. Paris: Champion, 2000, p. 534-538.

MORE, Thomas. Utopia (1516). Napoli: Guida, 1979.

PEREC, Georges. Espèces d’Espaces. (“D’un espace inutile”). Paris: Galilée, 1974.

RICOEUR, Paul. La mémoire, l ’histoire, l ’oubli. Paris: Seuil, 2003.

RICOEUR, Paul. Temps et Récit. Paris: Seuil, 1991, 3 vol.

RICOEUR, Paul. "Architecture et narrativité". In: Urbanisme, n. 303, 1998.

PICON, A. “Maisons de verre”. In: RIOT-SARCEY, Michèle; BOUCHET, Thomas; PICON, Antoine. Dictionnaire des utopies. Paris: Larousse, 2002.

STAROBINSKI, Jean. Les emblèmes de la raison. Paris: Flammarion, 1979.

VALLÉE, Marc-Antoine. “L’esquisse d’une herméneutique de l’espace chez Paul Ricœur”. In: Lindaraja, n. 14, 2007.

VIDLER, Anthony. “Transparency”. In: The Architectural Uncanny: Essays in the Modern Unhomely. Cambridge/Mass.: MIT Press, 1992.

457MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

ÍNDICE DAS EDIÇÕES DA REVISTA MORUS - UTOPIA E RENASCIMENTO

Nº 1, 2004: Cidades utópicas

Progetti utopici ed architettonici: La città ideale nell'Italia del RinascimentoVita Fortunati

L'utopie au XVI e siècle comme idéal de rénovation et come gel de la métamorphoseClaude-Gilbert Dubois

La cité, l'architecture et les arts en UtopieRaymond Trousson

De uma definição a outra: sobre alguns prefaciadores franceses da Utopia de Thomas MoreNadia Minerva

A cidade perfeita e a ficção do conselho: O Livro I da Utopia de MorusRicardo Hiroyuki Shibata

Percursos de aproximação de A Tempestade, de William Shakespeare, à literatura utópicaFátima Vieira

La Basiliade nello sviluppo dell'opera di MorellyClaudio De Boni

A Cidade Feliz: a utopia aristocrática de Francesco PatriziHelvio Gomes Moraes Junior

Uma utopia plebéia do Cinquecento: Mondo Savio e PazzoCarlos Eduardo Ornelas Berriel

A Ilha dos Hermafroditas em seu ambiente históricoAna Cláudia Romano Ribeiro

Formação e caráter da utopia italiana no RenascimentoCarlo Curcio

458 MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

nº 2, 2005: Utopia como gênero literário

O que é natureza? O que é natural? Shakespeare como filósofo da HistóriaAgnes Heller

Percorrendo a Cidade Feliz: Uma leitura da utopia patrizianaHelvio Gomes Moraes Jr.

A invenção do campo disciplinar da Arquitetura: contribuições e contraposições renascentistasCarlos Antônio Leite Brandão

Quale ilatiano per l'Europa Futura?Laura Schram Pighi

dossiê: Utopia como gênero literário

O Elogio dos Garamantes de Mambrino Roseo (1543)Tradução e apresentação de Carlos E. O. Berriel

Utopia e utopismoRaymond Trousson

Utopia and melancholy: an intriguing and secret relationshipVita Fortunati

What is a Utopia?Lyman Tower Sargent

Utopia e modernidadeFrancisco Calazans Falcon

L'utopia come progetto e processo storico: dall'età antica all'alto MedioevoCosimo Quarta

O sentido do gênero literário utópico no século da Ilha dos HermafroditasAna Cláudia Romano Ribeiro

Para uma definição de "utopia"Luigi Firpo

459MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

nº 3, 2006: O impacto das descobertas geográficas no imaginário europeu

Le “Jardin des délices” de Jérôme Bosh: une utopie du désir sublimé Claude-Gilbert Dubois

Utopia: gênese de uma palavra-chaveCosimo Quarta

Formas da utopia: as muitas formas e a tensão única em direção à sociedade de justiçaArrigo Colombo

Strategie della finzione nelle utopie del Cinquecento europeu. Sulla ricezione dell'Utopia di Thomas More nei testi di Eberlin von Günzburg, Antonio Brucioli, Anton Francesco Doni, Kaspar Stiblin e Tommaso CampanellaChristian Rivoletti

Utopie, dystopie et histoireCarlos Eduardo Ornelas Berriel

La question des langues dans l'Utopie de Thomas MoreJean-Michel Racault

No sertão do Maranhão, o império das Américas. Planos racionais de povoamento nos roteiros de viagem do Grão-Pará e Mara-nhão do século XVIIIMaris Lúcia Abaurre Gnerre

dossiê: O impacto da descoberta do novo Mundo na cultura européia

Dois exploradores em cotejo: os novos mundos de Colombo e GalileuAndrea Battistini

O impacto das descobertas geográficas na concepção política e social da utopiaFrank Lestringant

Filosofi, utopisti, selvaggiMaria Moneti Codignola

Il viaggio di Bougainville, le riflessioni di Diderot e l'utopia della felicità secondo naturaClaudio De Boni

América renascentista, um ensaio: as experiências modernas no espaço da Baía da Guanabara. A dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre utopias e ideais Antonio Edmilson Martins Rodrigues

A arte do blefe: Montaigne e o “mito do bom selvagem” José Alexandrino de Souza Filho

O andrógino, o hermafrodita, o canibal e o selvagem: habitantes de terras utópicasAna Cláudia Romano Ribeiro

La Laguna de los Xarayes. Un lugar en la geografia maravillosa de SudaméricaMaria de Fátima Costa

As Cartas Iroquesas de Jean-Henri Maubert de Gouverst (1752)Emerson Tin

O mito americano: utopias e viagens imaginárias desde a RenascençaRaymond Trousson

Resenhas

Ciudades en Utopia. En torno a un estudio de la ciudad ideal, de Hanno-Walter KruftPablo Diener

Utopia em várias perspectivasSusana Souto Silva

460 MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

nº 4, 2007: Scienza e tecnica nell’utopia e nella distopia

Science sans conscience n’est que ruine de l’âme: bonheur, sciences et techniques en UtopieRaymond Trousson

Razionalità utopica e razionalità scientificaCosimo Quarta

Contraddittorietà e Storia: materie intrinseche dell’utopiaCarlos Berriel

Scienza, tecnica e idea di progresso nell’Utopia di Thomas MoreChristian Rivoletti

Immagini della scienza e della natura nelle utopie di Patrizi e di BaconeHelvio Gomes Moraes Jr.

Scienza e tecnica nella Terre Australe Connue (1676), di Gabriel de FoignyAna Cláudia Romano Ribeiro

Eutopias e Distopias da CiênciaLyman Tower Sargent

Utopie et Science dans la pensée de Charles FourierIvone Gallo

L’empirisme dans les utopies et les sciences sociales au 18e siècleAlexandra Sippel

Flatlandia. Testo e ipertesto nelle utopie matematicheMarianna Forleo

Memorie politiche dal sottosuolo. La monadologia utopica di Gabriel TardeGianluca Bonaiuti

Positivismo e utopia: il caso italiano di Paolo MantegazzaClaudio De Boni

Os Sertões come poetica delle rovine: Euclides da Cunha e l’immaginario distopico nella cultura brasiliana di fine OttocentoFrancisco Foot Hardman

La scienza-tecnologia come fattore dell’utopia. Per il benessere, la crescita, l’unificazione e pacificazione dell’umanitàArrigo Colombo

Verso una felicità razionale: città e tecnica dall’utopismo del Movimento Moderno alla distopia di Eugenij ZamjàtinMargherita Fontanella

Building dystopiaNathaniel Coleman

L’ipermercato dei sogni: tecnologia e utopia nei parchi di divertimento a temaSimona Sangiorgi

Lo sguardo di Windows. La seduzione della tecnologia nel pensiero di Ivan IllichPaolo Coluccia

The technological sublime in the novels of Menotti del PicchiaGilson e Marilda Queluz

The industrialization of the kibbutz: utopia and practiceHenri Near

Ecologismo: a primeira utopia planetáriaArthur Soffiati

Machinery and technicism as means of mythologization of utopian and antiutopian narrative in the romantic and wellsian fictionAleksandr Golozubov

Samuel Butler e lo “spirito” della MacchinaBeatrice Battaglia

Science as a defense against totalitarianism in George Orwell’s Nineteen Eighty-fourDaniel Ogden

Biotere, scienza e nuove tecnologie in Woman on the Edge of Time (1976) di Marge PiercyBrunella Casalini

Two technological dystopias: Le Monde tel qu’il sera and Alpha Ralpha BoulevardMaria Monteiro

William Gibson e Pat Cadigan: il cyborg e le nuove configurazioni del corpo in una prospettiva comparata Vita Fortunati e Eleonora Federici

461MORUS - Utopia e Renascimento, n. 6, 2009

nº 5, 2008: Utopia, Reforma e Contra-Reforma

dossiê: A utopia na contra-Reforma

A utopia política na Contra-ReformaLuigi Firpo

O corpo físico e político da cidade ideal no Cinquecento europeuChristian Rivoletti

Campanella, a cidade historiadaMaria Moneti Codignola

Campanella: a consciência possível da Contra-Reforma. Considerações sobre o Appendice della politica detta La Città del Sole di fra’ Tommaso Campanella. Dialogo poetico (1602)Carlos Eduardo Ornelas Berriel

Entreprise missionnaire et utopisme à travers quelques lettres de la mission jésuite du Brésil (1549-1570)Martine Thiébaut

Huguenotes em Utopia ou o gênero utópico e a Reforma (séculos XVI-XVIII)Frank Lestringant

Precipícios cristãos e oráculos austrais: uma análise da questão religiosa na utopia de Gabriel de FoignyAna Cláudia Romano Ribeiro

estudos

L’utopie festive: fêtes, cérémonies et célébrations de L’utopie de More à l’Histoire des Sévarambes de VeirasJean-Michel Racault

A “Festa Brasileira” ou o Teatro do “Bom Selvagem”: um estudo sobre o papel do índio brasileiro na entrada de Henrique II em Rouen em 1550José Alexandrino de Souza Filho

O novo sentido da utopia: a construção de uma sociedade de justiçaArrigo Colombo

Dalla morte di un’utopia alla nascita di un mito: l’esperienza anabattista di Münster nelle sue rivisitazioni letterarieCarmelina Imbroscio

A ars historica em debate nos Dialoghi della Historia de Francesco PatriziHelvio Moraes

Utopia e contro-utopia nella Storia dei Galligeni di Tiphaigne de la RochePaolo Coluccia

L’utopia di fronte ai problemi della famiglia e della donna nel fra Sette e OttocentoLaura Tundo Ferente

As bibliotecas utopianasMaria do Rosário Monteiro

Utopie e processi di modernizzazione della Turchia attraverso il paradigma storico-letterarioLucia C. Antonazzo