Revista de Letras 5 - UTAD

270
Volume 11, Número 1, Dezembro de 2000 Revista de Letras 5 Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro ^t ^ o ' < '''^»-, Vila Real

Transcript of Revista de Letras 5 - UTAD

Volume 11, Número 1, Dezembro de 2000

Revista de Letras 5

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

t̂̂

o'<'''̂ »-, Vila Real

UNIVERSIDADE DE TlUS-OS-MONTES E ALTO DOURO

ANAIS DA UTAD

REVISTA DE LETRAS 5

• • • •

VILA REAL

REVISTA 0[ LETRAS Rcvista dl: Lctras i cd. Uni\'c rsidad~ de Tnis-os- l'vlontcs cAito Domu. Sec~ao de Lctras: argo 1. Esteves Rei cCarlosAssulH;,io. - N°S (2000) · . - Vila Real: UTAD. 2002- . - (ExtT3-scril.') . - I\nais da UTAD. - Vol. 1 L N"l Dczcmhro de 2000. - Contcm bibliografi a. -period ic idade irrt:b'l.llar

ISSN:1J87 I -0635 ISBN: 972-069-451-5 D.l.: PT( 147868/00)

I. Rei , Jose. Esteves, 1 ~49- ,arg.,' II.Assum;iio. Carlos, 1959-. argo ' Ill. UOlwrsidadc de Tnis-os-Montes e Alto Domo. Scc~a(l de Letras. cd. lit !

I. Linguist icu - - jPcri6dicosj " 2. Litcratmo. - - iPcri6dicosi ; 3. Didictica -- IPcriodicosl

CDU: 8 (05) 3702 (05)

Editor: Imprcssao c acabarnentu

Tnagem. 150 exemplnfcs

Sl.'ctor Editoria l Servit;os Graficus da Utad

Ap'\I1ado 206 5001 Vi la Rt:al -POrIU!!al-Codcx -

, Indice

EditOlial

Corrup!;ao, clientelismo. cabritismo. boy(sismo) ou os estere6tipos do nosso tempo Mario Vilet" ....... .... ........ ... .... ............. ...... ...... ...... ...... .......... 3-38

A Mi ssiona<;ao oa raiz da difusao do Humanismo ~ das "Artes de Gramiuica" - 0 Brasil de Anch ieta Al1uulell Ti:)ITe~i ...................... ... ........ .. ................................ 3c)-4~

o tra<;o disti ntivo "tenso", da perspecriva fonologica generativista, e sua apJica<;ao aos estudos

do portugues dialec tal Rui Dias Guinwrcies ... ... ........... ..... ........ ........... .... .... ......... 49· j6

Language alld Time as a Narrati l'e Dimellsion ,

in A lvaro Cardoso Gomes's as Rios Inumeraveis hI' Mil,on A-f. Azel 'edo ...... .... .. .... ........ ..................... .. .......... 57-68 ..

Propuestas para una modelizaci6n del uso expresivo de la voz

Angd Rodrigue Br(/\'o ..... , .. .............. .... .... .... ....... .... ..... ... 69-92

La Maladie qui pourrit dt: I'interieur: La Montagne Magique et Antonio Lobo Antunes Susan Gassler-Cnrrierre .................... ..... ......... ....... ... .... .. 93-1 04

o pader da palavra na cria\=3o do mundo e a lusofonia na inven<;ao do novo mundo: Cont.ribui~ao da Radiofonia na Defesa da Lingua Portuguesa Juare= Caesar Malta Sob,'cira ......... .. ......... .... ... ... ....... 105-//4

Eva, Garrer e 0 romantismo ellfopeu •

AII'LJrD l\1al1l1el Machado .. ............. ... ........... .... .. ... ....... .. 115- 128

Filinto revolucionario Ft!l*IlUlldo /1. T Aloreira ............. ............. ........ .. .. ........ ... 129-138

Vergilio Ferreira eo 0 deve-e-haver Jose Leon Machado .. .. ................................................... 139-172

"A Universidade: a derrota de um3 vi t61'ia no 'diario de um meLo academico' Pantos de Vista" Maria ria AssllIu,:iio Morais A1ollfeiro ........ ...... ... " ......... 173-182

Gargantua: A imagimu;:ao no camico rabelaisiano Armindo T. Mesquiw ...... ... ......... ..... .... ............. ........ ... ... 193-198

Idenlidade e Art" Portuguesa nos S';cu1os XIX e XX L"cilia VerdelJ", da Costa .......... ................... .............. . 199-210

Les enjeux discursifs du Jangage politiquement conect Christian BOIX ............. .. ............... ............. ... ........... ...... 211-224

Quando a autor se transforma em personagem: Camoes e a literatura contemponinea 4 1<" ·'/R . 00-0'4 . II£( I lal gm f( a (111/0.\ ................ ...... .. .... .. . ....... , . ........... _ _ ) - _ _ ,

A Ret6rica no secu la XVllI , em Portugal: a antecipa<;ao do futuro

.lose Esteves Rei .... .... , .... , .... ... ........... ...... ..... .......... ......... 235-248

As rciac;oes da Jiteratura com a vida : Alguns problemas enfrentados pelos profess ores de portuglles M. Fcitinw M. Alhuquerque ... ............ ........... ................ ]49-]56

A investigac;ao sobre 0 ensino e a aprendizagem de Linguas Segundas e Estrangeiras: breve descri~ao

e caracteriZ3((aO de alguns instrument os para observavao de aulas .lose Manuel C. Belo ............. ............ ......... " ......... ....... ]j7-]74

Revista de Letras - UTAD

nOS. 2000. pp. 3 - 38

Revista de Lelras n05

Corrup,>ao, cIienteIismo, cabritismo, boy(sismo) OU os estereotipos do nossotempo

D. Apresenta,>ao do tema

Mario Vilela Universidade do Porto

D.I. Se definir uma lingua. num dado momento da sua historia, so e possivel dentro de wna detetminada perspectiva, como, por exemplo, lingua e cultura, lingua e sociedade, lingua e historia, lingua e conhecimento, lingua e aprendizagem, lingua e desenvolvimento, mais dificil se toma definir 0 lexico de uma lingua I ,caso nao se tenha qualquer suporte que perspective a dimensao do lexica que queremos abranger na amilise. A lingua, embora seja conservadora por natureza, altera-se e 0 seu estudo teni de ser feito num dado momenta da sua historia. Por exemplo, no portugues actual de M0'>ambique ocorrem algumas palavras que, para nos (falante do portugues europeu), ou se tomaram intransparentes, ou nos deixam sem saber qual a "leitura" monossernizada. No primeiro caso, temos, por exemplo, cabritisl11o, que, para quem nao estiver inserido no ambiente, fica totalmente fora do possivel sentido / significado da palavra. No segundo caso, estnttura e enquadrado podem ter leituras que nos impedem a desambiguiza<;ao2 . No portugues europeu, surgiu, na mesma area, a palavra boy, que, para quem nao estiver "enquadrado", fica bern fora do valor atribufdo a palavra. Nesta area da lingua encontramos dois tet mos nucleares: corntpfiio efavoritismo, se bern que 0 primeiro seja 0 mais englobante. Os tenflOS que estao proximos do primeiro sao: cunha, pecuiato, (pagamento de) iuvas, aliciamento; incluem-se em favoritismo, boye boysisl11o, ciientelismo e (homens do) apareiho, (falta de) transparencia, crise (dajusti<;a), padrinho, compadrio , mordomia, nepotismo. Abrangendo os dois conjuntos, temos sistema e esquema e boysismo. Envolvendo todo este conteudo, hi! ainda, alem de pagamento de iuvas, desvio de fundos e branqueamento de dinheiro sujo .

D. 2. Vamos tentar analisar urn dorninio de experiencia, que hoje (como ontem) esta na ordem do dia, de fonna a poder congra<;ar 0 que se designa como perspectiva<;ao estruturalista do Iexico com a perspectiva<;ao da Iingufstica cognitiva.

Pretendemos assim mostrar, com palavras que todos encontramos, dia-a-dia, nos "media", por urn Iado, que a ciencia pode conlIibuir para wn melhor conhecimento

3

Revista de Letras n05

do mundo e, por outra lado, mostrar como a analise do significado so e possivel se tivennos em conta areas do conhecimento e da lingua mais ou menos bern delirnitadas, sem contudo deixar de integrar 0 enciclopedico (0 mundo designado) na analise.

Faremos uma breve explanac;iio da chamada analise semica e da designada analise "cognitiva", passando depois ao tratamento dos tennos que tern a ver com "corrupc;iio". Quer num caso, quer noutro, nunca deixamos de ter presente textos autenticos e resultados de inqueritos.

1. 0 texico e 0 estudo do texico

o lexico de uma lingua, que podemos indicar de urn modo generico como 0

lexico geral ou comum, envolve vanos subconjuntos, em maior ou menor grau, partilbado por todos os falantes e compreende ainda os lexicos de especialidade, os que estiio ligados a uma ciencia (astronomia, quimica), a ciencia e recnica (infonmitica), aos oficios (mecanico, serralheiro), a actividades varias (jardinagem e desporto), etc. Mas as fronteiras entre os subconjuntos do texico geral entre si e entre 0 lexico geral e os lexicos de especialidade sao fluidas, havendo mesmo migrac;6es de urn dominic para outro, como, por exemplo, as migrac;6es entre a lingua comum e os dominios de especialidade, como alinguajuridica (peculato), a lingua politica (boy oujobsfor boys), a lingua economica (cliente e clientelismo), a lingua da vida social (mordomia, nepotismo, luvas, padrinho), a lingua da quimica (branqueamento), a linguafilosofica (esquema e sistema), etc. Tambem 0 lexico sofre diferencia<;:6es diacronicas (as marcas da historia: veja-se a historia de nepotismo), diatopicas ou espaciais e diastraticas (influencias dos estratos horizontais, mas ainda aqui ha fronteiras moveis: sentidos ou conotac;6es que regressam, valores tidos como proprios de estratos inferiores passam para 0 vocabuhirio comum)3 . Mesmo palavras que estavam na peri feria do lexico geral, como nomes proprios (ademarismo (br.), soarismo, guterrismo)4 ,palavras virtuais (em que uma palavra caida no esquecimento, pode regressar, como clientelismo), palavras estrangeiras, sejam emprestimos puros (boysisI1W, boys, Kremlingate, Angolagate) ou decalques semanticos (javoritismo), etc., entram directamente no texico gera!.

Creio que 0 lexico que podemos designar como "0 lexico da corrupc;iio" pode servir de exemplo a todos os possiveis universos do lexico, quer nos situemos no dominio do lingulstico, 0 das rela<;:6es internas entre as palavras (rela<;:6es tanto sintagmaticas como paradigmaticas), quer no dominic do referencial, a sua extensiio e intensiio, a denota<;:iio e a fluidez instavel das conotac;6es.

Quer defendamos que 0 significado apenas pode ser apreendido em enunciados, ou que 0 significado so pode ser encontrado atraves da sintaxe, ou ainda que os lexemas tern urn significado invariante5 ,qualquer analise tern de serplausive!. Por exemplo, podemos definir por inclusao, encontrando 0 valor generico (ou denotativo) dos lexemas, seguindo 0 chamado modelo mistorelico da defini<;:ao (genera proximo

4

Revista de Letras n05

e diferen"a especffica), ou seja indicar 0 genero ou classe geral de que se desprende o denotado da palavra a definir e, depois, apresentar as diferen"as que 0 separam dos outros lexemas que pertencem ao mesmo genero. Mas em celtas palavras nao e facil definir de modo "enciclopedico" 0 seu contelido: no caso das palavras ditas abstractas, como e 0 conjunto de palavras que vamos analisar·. Depois, 0 canicter fiuido dos tra"os semicos deixa-nos na dlivida da validade emrela"ao a dado referente ou designado.

I. 1.J\(chamada)anrilisesentica

J\ chamada analise sentica (a proposta por Coseriu, Pottier e Greimas), na descri"ao do significado lexical, serve-se das no,,6es "serna" (tra"o minima de contelido, distintivo ou nao), "semema" (conjunto dos semas de urn lexema, ou 0

conjunto dos semas de uma acep"ao no caso de uma palavra polissentica), arquissemema (0 conjunto dos semas comuns a vanos sememas) e arquilexema (a realiza"ao lexical de urn arquissemema), serve-se ainda de campo lexical, 0 conjunto lexical que partilha urna zona comum de significado. Inserem-se tambem na anrilise em semas 0 ponto de vista onomasiol6gico (perspectiva"ao pr6xima da dos campos lexicais) e 0 ponto de vista semasiol6gico (cfr. Mririo Vilela 1994: 32-49)

Por defini"ao, 0 serna nao e urn tra"o referencial, mas sim urn tra"o de contedlido dentro de dado conjunto. Se pretendennos verificar 0 estaruto dos semas, devemos ter presente que os semas nao podem ser confundidos com os chan1ados noemas6 . Os semas podem dividir-se (cfr. Pottier) em semas denotativos (e estes, em especificos e genericos) e conotativos (ou virtuais). Pottier chama semantema ao conjunto dos semas especfficos, classema ao conjunto dos semas genericos e virtuema ao conjunto virtual constiruido porpossiveis semas conotativos 7 . J\ distin"ao semas especfficos, semas genericos, introduz, por meio dos semas genericos, uma dimensao sintactica na anrilise sentica. Os semas especificos operam no interior de urn campo lexical, os semas gem!ricos, sendo de carricter muito geral, de narureza sintactico-semantica, operam em unidades que sao comuns a diferentes con juntos lexicais, consistindo em subcategoriza,,6es semiinticas aplicaveis em semantica texrual8 . Como delirnitar os conjuntos lexicais? Quais sao os semas que permanecem pertinentes, se acrescentannos outros lexemas ao conjunto? 0 conjunto e delintitado com base conceprual, onomasiol6gica e a partir dai ha a possibilidade de urn alargamento mais ou menos extens09 .

E quanta it escolha dos semas? Nao sera algo subjectivo? Mantendo-nos ainda numa area pr6xima da que analisamos, compare-se saldo e promor;iio: 0 que os distingue? Trata-se de "redu,,6es" vrilidas para qualquer cliente? E se comparannos estes termos com desconto: aqui temos uma ·'redu"ao" valida apenas para alguns clientes? Persiste urn serna comum que sera traduzivel por "redu"ao de pre"os".

Mas qual a narureza dos semas? Na maior parte dos cas os analisados, serviram-

5

Revista de Letras n05

se os semanticistas de conjuntos arquetfpicos onde 0 conteudo esta bern estruturado, e em que os tra~os semicos servem tambem como predicados ou propriedades dos referentes. E se sainnos desses conjuntos?

Como semanticistas, pretendemos fazer 0 levantamento de tra~os para estabelecer as rela~oes entre os lexemas (rela<;iio de significa~iio), como lexicografos queremos analisar a rela9iio entre as palavras e as coisas (rela<;iio de designa<;50).

I. 2. Teoria do prototipo e estereotipo

Surgiu, a dado momento, a teoria do prototipo e do estereotipo que tenta conigir o que estava (estaria mesmo?) mal nas explica90es anteriores. A teoria do prototipo e do estereotipo provem de duas direc90es diferentes: ada psicologia (E. Rosch) e da filosofia da linguagem (H. Putnam). 0 ponto nuclear, que a opoe as teorias chissicas, eo problema da categoriza9ao. Esse sera urn problema de natureza filosofica, que pode serfOllllulado do seguinte modo:

- sobre que criterios se pode decidir a perten9a de urn objecto a uma categoria?

E a esta pergunta corresponde a seguinte interroga9iio lingufstica: - quais sao os principios que regem 0 reagrupamento (dos denotados) numa

mesma categoria designada por urn nome?

Das categorias passa-se ao senti do lexical. Mas aqui estamos perante uma semantica referencial em que a dimensiio filosofica se aproxima(ni) do linguistico. Estereotipo e prototipo convergem, pois ambos os conceitos perspectivam a categoriza<;ao sob 0 prisma da tipicidade 10 . A teoria do estereotipo / prototipo recusa 0 modelo designado por "modelo das condi90es necessanas e suficientes" II . Na versao "standard"12 trata-se a categoriza9iio sob dois aspectos:

- (i) a dimensiio horizontal: estrutura intema das categOlias 13 - (ii) a dimensao vertical: estrutura9ao entre categorias 14

o tenno estereotipo 15 como e usado actualmente na linguistica deve-se a H. Putnam (filosofia da linguagem), que propos para suprir as deficiencias das teorias tradicionais esta no<;50 (a de estereotipo) para descrever os nomes de especies naturais e de artefactosl 6 . 0 estereotipo - estamos perante urn sentido tecnico do termo - e a descri950 de urn membro normal da classe natural, apresentando as caracterfsticas que lhes estiio associadas. Estas caracterfsticas podem serverdadeiras ou falsas (cren9as, representa90es culturais )17 . 0 estereotipo e ponanto uma ideia convencional, por vezes, inexacta, mas que corresponde it imagem social pmtilhada acerca do significado/sentido da unidade lexical. Os estereotipos opoem-se aos conhecimentos especializados dos "experts".

Ha cOITespondencia entre 0 estereotipo e 0 prototipo, pois ambos reunem os

6

Revista de Letras n0 5

tra<;:os centrais da categoria (OS dados semanticos mais salientes) e descrevem positivamente (de modo nao opositivo ou diferencial) 0 conteudo da palavra ou expressao. Contudo, as perspectivas (liferem: 0 estere6tipo descreve as conven<;:6es sociais e apoia-se numa teoria sociolingufstica, ao passo que 0 prot6tipo descreve a organiza<;:iio cognitiva das categorias e provem de uma perspectiva psicolinguistica. Mas, na maioria dos casos, estere6tipos e prot6tipos coincidem: os dados semiinticos mais importantes do ponto de vista social sao tambem os mais importantes do ponto de vista cognitivo.

Mas a convergencia das duas teorias faz-nos con'er 0 risco de encobrir a especificidade do estere6tipo. Para Putnam, 0 estere6tipo serve mais para mostrar o uso efectivo da palavra do que para dar a significa<;:iio.lnscreve-se numa dimensiio pragmatica da aquisi<;:ao das palavras. Afinal, 0 mesmo objectivo das defini<;:6es lexicograficas. Os estere6tipos tomam-se visiveis nas fraseologias, onde os tra<;os mais salientes se patenteiam. Nas compara<;:6es congeladas, por exemplo, livre COI1W

um passarinho (acentua-se 0 tra<;o: /voar/), comer como um passarinho, leve como UI11 passaro, ser!lm passarinho (/fnigiU). Os estere6tipos diferem de uma civiliza<;:ao para outra 18 : veja-se 0 caso de serpente, macaco, tigre, rato, etc., em <Iiversas comunidades linguisticas.

Conclusiio: os mentos destas teOlias (prot6tipo e estere6tipo) sao 0 de vir por de novo em discussao a semantica (lexical), a de trazer para a li<;a uma semantica referencial global integrando os dados sociais e psicolinguisticos. A dimensao pragmatica e cognitiva destes modelos explica 0 seu sucesso. Aproveitaremos sobretudo a no<;:iio de estere6tipo - no sentido que Ihe e dado por Anscombre e Kleiber - para explorar alguns dos proverbios que andam a volta dos termos que estamos a questionar.

-2. Dominio de experiencia "CORRUP<;:AO"

2. 1. Contributo para a analise semica

Tennos como corrup<;iio, (pagamento de) luvas, branqueamento de dinheiro / capita is, compadrio, mordomia, aliciamento, cunha, peculato, javoritismo, nepotismo, boysismo / boy, cabritismo, traftco de infiuencias, a que se vern juntando organiza<;:iio ocu/ta, desvio de jundos, esquema, sistema e, possivelrnente, outros, parecem traduzir aquilo a poderiamos chamar, se nao "campo lexical", pelo menos uma area de experiencia, quepoderemos sintetizar no seguinte texto:

«A corrupriio est a na conttaface do Poder e a reciproca tambem e verdadeira: 0

Poder est.<i na contraface da corrupr;Cio. Tanto vale ser nos regimes totaJilarios. onde nao se presta can las a ninguem e tudo e fechado nas maos dos que concentram em si lodos as poderes do Estado, como nos regimes democraticos. nos quais a exercicio da liberdade. os mecanismos das instituic;oes e a trallsparencia da

7

Revista de Letras n05

administra~ao deveriam ser antidoto para a prfitica de roubalheiras e de favorecimentos. a verdade e que 0 virus da corruprQo se espalha por toda a parte com uma intensidade impressionante ... . As estatfsticas das Na~6es Unidas mostram­nos, pais por pais, 0 quanto e grave esse problema [corrup,ao 1 mundial e dao-nos ideia do que poderia ser feito em beneficio das popula~6es se os recursos que sao tirados de fonna espuria dos cofres do Estado, ou 0 que este paga a mais para favorecer as politicos e as ninhadas de protegidos que gravitam em torno deles, fossem aplicados com correc~ao e honestidade.» (Gomes da Costa - A praga da corrup,ao, in: A Vo: de Tr6s-os-MoJlles, 28.12,C)()19 .

Dentro da coerencia textual, este texto apresenta urn conjunto de tennos que nos ajuda a situar a area de experiencia que designarnos como CORRUPGA.020 : express5es como ninhada de protegidos, !avorecimentos, roubalheiras, virus, transparencia. Os termos que nos propomos tratar e que mencionamos anterionnente, it excepc;:ao de aliciamento, tern subjacentemente todos urn semema Jigado a urn valor inicial do lexema que deixaria estas palavras fora da area que estamos a tratar. Talvezja 0 semema de corrup,tio ['compra da consciencia'] seja tao antigo como 0 semema ['putrefacc;:ao']: nos dicionanos deportugues, mesmo os mais antigos, registam os dois valores21 . De qualquer modo, parece haver uma passagem do "concreto" (materia orgfurica, agua, ar, textos; pessoas e instituic;:5es), para 0 "abstracto", envolvendo este segundo semema (que nos lexemas que tern uma realizac;:ao como verba corresponde ao complemento directo) os costumes, 0

gosto, as consciencias. A melhor definic;:ao, alias definic;:iio compendiadora das demais, e a de Alain Rey, que podemos resumir em: «compra das consciencias» e «apodrecimento de materia orgfurica»22 . Notamos inclusivamente a manutenc;:ao do valor do lexema nos ultimos duzentos anos. A documentac;:ao mais elaborada de uma das realizac;:5es do lexema e a seguinte:

8

"CORROMPER - I. Indica a,ao-processo. I. Com sujeito causativa e com seu complemento expresso por nome concreto nao animado, significa t017wr podre, estragar, decompor: A umidade corrompe a materia organica: 0 calor corrompeu a carne. 2. Com sujeito agentel causativo e com complemento, apagavel, expresso pornome humano, significa: 2. 1. pervel1el; depravm; vidal': Era ele quem sustentava e corrompia os estudantes (BB, 106); Aigulls ( ) acusaram-no de corromper a mocidade (HF, 28); 0 lu.n/ria convmpe a cria/ura humona (SE, 83); a poder absolu/o corrompe (FSP - 2.8.55, 4). 2. 2. subomal; pei/G/; comprar: Aigulls comel'ciantes corrompem os jiscais; 0 candidato habituau-se a corromper as autol'idades para obter 0 que que}: II. Indica processo, na fonna pronominal: I. Com sujeito paciente expresso por nome concreto nao-animado, significa apodrecel; adulterar-se, estragar-se: 0 sal preserva a came de se corromper; A materia organica se cOl'rompera na umidade. 2. Com sujeito paciente expresso por nome humano, significa pelve11er-se. depravar-se: Os pais tem, as ve.::es, medo de arriscar que seus Ji/has se corrompam (Lessa-O, 27): sua sabia simplicidade ( ) mmca se corrompe em vulgaridade (Lima-O, 48)) (Francisco da Silva Borba - Diciondrio

Grama/ical de Verbos do POl1ugues COIl/empordneo do Brasil, SP: UNESP, 1990)23

Os sinonimos apresentados nos dicionririos por ,

nos Revista de Letras n05

compulsados, para corrupr,;iio, sao peitar, suborl1m; depravm; pervertel; vicim; c0111prar, para 0

semema ['comprar a consciencia'] e adulterm; conta111inm; estragm; decomp01; apodrecel; gastm; aiterm', para 0 semema ['apodrecer'],

Em aliciar temos tambem dois sememas bern nftidos ['seduzir'] e ['subomar', 'peitar']24 :

«no exercfcio privado da medicina, a tarde, as clinicos podem receitar remedios para os quais receberam aliciamento, coisa que ja nao teriam direito de fazer caso, de manha, numa lUogencia hospitalar, passero uma receita para 0 mesma doente. Compreende-se. assim, que 0 Ministerio Publico reconhece a existencia de aliciamentos e, alem do roais que as considera legais e pennitidos ... No exercfcio de vanas profissoes ocorrem, sem duvida, fen6menos de aliciameJllo» (Francisco Jose Viegas - Uma questao de etica geral, in: IN, 14. 12'<lO)

Luvas, pelo que surge nos dicionririos25 , tern (ou tinha) apenas urn valor teenico, ao contrano do que acontece hoje, cujo 0 sentido e assim apresentado:

<<luvas (De luva) s. f. pI. Recompensa que se da como retribuic;ao de servic;o prestado, ou como incentivo» (Aurelio, 1986).

o valor que integra 0 lexema luvas no campo lexical CORRup<;Ao deduz-se claramente do seguinte extracto:

«Urn ex-ministro e antigo "brac;o direito" do Presidente Jacques Chirac esta preso ern Paris por financiamento oculto do seu partido, 0 RPR. Tn~s tesoureiros confessam queos respectivos partidos polfticos partilharam as "/uvas" das fraudes do RPR nos concursos para obras publicas.») «Interrogado durante 48 horas. 0

antigo agente secreto Roussin nao proferiu uma unica palavra. a seu siIencio e hoje a linica protec<rao que resta a Chirac no imenso escanda10 de "[uvas" de milhoes de contos, em que as acusac;6es contra 0 antigo "maire" de Paris se tornam mais precisas.» (Ana Navarro Pedro, P,iblico, 3. 12.00, 21 ) «Falcone, actualmente preso em Paris, sobreviveu e prosperou neste ramo de neg6cio [venda de armas .. ] muito especial grar;as "as '/uvas' que pagou a tada a gente durante varios allOs, beneficiando de impunidade total"" (Ana Navarro Pedro, P,iblico, IO. I 0.01)

" Sirven pagou salanos fal sos a pedido de altas individualidades, distribuiu "Iuvas", corrompeu homens de Estado." (Alfred Sirven .. , Publico, 23.1.01)

Poder-se-a dizer que nestes tres lexemas - corrupr,;iio, aliciamento, luvas -estamos em presenc;a de "conupc;ao" em que 0 ponto de partida e 0 de quem beneficia. Isto e, temos duas entidades: 0 CORRUPTOR e 0 CORROMPIDO, mas 0 trajecto comec;a no CORRUPTOR. 0 DINHEIRO - os fundos - constitui a entidade que faz 0 trajecto. Tambem peculato('desvio de fundos publicos em

-beneficio proprio') se insere nesta vertente de CORRUP<;AO. Vejam-se a definic;ao e as documentac;6es seguintes:

«Peculato ... Delito que consiste en el hurto de caudales del erario, hecho par aquel [Aurelio (1986) chama-Ihe: funciomirio publico] a qui en est. confiada su administraciom. (DLE)

9

Revista de Letras n05

«peculato (Do lat. peculatu, de pecu, . gado' ~ em cena epoca. foi 0 gada a base da fortuna) S. m. Delito praticado pelo funcionano publico que, tendo em raziio do cargo, a posse de dinheiro, valor, ou qualquer outro movel, publico ou particular, deles se apropria a u os desvia. em proveito proprio au alheio. ou que. embora nao tenha posse desses bens, os subtrai ou concorre para que sejam subtraidos, usando das facilidades que seu cargo proporciona: "uma vez definitivamente rasgado 0

antigo veu de hipocrisia que, sob a nefando regimen extinto, encobria os pecculatos. os subornos. as depredac;oes e as tranquibernias do governo. a todo s os contribuintes e hoje dado contemplar a ilibada e inconcussa pureza de cada urn dos ministros" (Rarnalho Ortigao, Ulrimas Fa'1Jas, pp. 75-76) (Allrelio)

«0 erano publico ted side utilizada para pagar obras em residencias do presidente da Camara do Marco de Canavezes, Avelino Ferreira Torres, e ate publici dade de urn candidato a presidencia do Govemo de S. Tome e Principe, de acorda com acusac;ao do MinisH~rio PUblico. 0 autarca do PP incorre, so pelo crime de pecuialo, numa pena de prisao que pode b: ate oito anos . ... As amnistias e a carencia de indfcios sustentados levol! a extin\=ao do procedimento criminal de autos que passavam pela corruprtio passiva. falsificartio de docllmenlos e oulras Si/llG foeS de peculalo e

peclIlaro de lISO.» (P,ib l ico , 22. 11 .2000, 6)

-Se a CORRUP<;:AO river como ponto de partida quem concede as "favores" -o CORRUPTO -, esta area temarica apresenta urn lexema abrangente -favoritismo -, que, par sua vez compreendera clientelismo, Ilepotismo e compadrio . Ou seja, favoritismo ('protec<;ao com parcialidade a alguem' )26 , clientelismo ('protec<;ao com parcialidade a alguem que esta pr6ximo politicamente de quem protege')27 , nepotismo ('protec<;ao injusta a familiares')28 e compadrio Cprotec<;ao excessiva e injusta de amigos' )29 , Tambern padrinho (no sentido de 'beneficia obtido por for<;a da protec<;ao') se insere neste domini030 . E frequente a ocorrencia nos media de textas falando defavoritismo:

iO

«Ma semana para a Republica. Seria diffcil inventar uma que causa sse mais danos ao Govemo, ao sistema politico e ao pais. As dificuldades de aprova9ao do On;:amento sao benignas, quando comparadas com as questoes de moralidade publica surgidas a prop6sito de alegadas medidas de favoritismo , assim como as revela~oes de interesses pessoaJ e financeiro de membros do govemo em empresas de capitais publicos em vias de privatiz3\=a.o .... Podem os governantes fazer de conta, critical' a vulgaridade na televisiio, inaugurar obras •... , desprezar os que se inquietam e prometer dindida isen\=ao: nada fara com que se dissolva 0 clima de su spei~ao criado. Ha au nao corn(p~'iio? Hei au 1Uio favoritismo? Hd au nao decisoes que beneficianl uns em delrinzento de Ol.ttros? Bci ou nao refariJes especiais entre os poiflicos e agentes economicos? Hei OU mio "ineu/os entre dirigentes po/fticos, geslores de empresas publicas Pl'iVClli:dveis e empresas reprivati:,adas?

.. . » (Ant6nio Barreto - Furnos, PLibiico, 29.10.(0)

de clientelismo: «0 cancro e uma doenc;a terrfvel. Urna vez instal ado, destr6i progressivamente 0

normal e saudavel funcionamento do organismo. j:i que a dissemina<rao de celulas doentes leva a que tadas as fum;6es que se processariam nomlalmente fiquem

Revista de Letras n05

afectadas e. em ultima instancia, fazem com que 0 colapso final surja. 0 clientelismo e como 0 cancro. Representa a desorganiza~ao, 0 mau funcionamento. 0

enfraquecimento progressivo das estruturas, finalmente 0 colapso . devido a incompetencia. Vern isto a prop6sito da demissao recente de urn dirigente da area da sattde do Norte, que disse em voz alta. de fonna natural . aquilo que muitos sabem e 56 dizem em voz baixa .... Ao reconhecer em publico que a clientelismo existe na

• area da saude, prestou urn irnportante servi~o . ... E preciso dizer claramente que. se o dientelismo e condemivel. na area da saude ele pade tomar-se perigoso. No Portugal p6s-revolu~ao de Abril, a vaga clientelar na saude iniciou-se logo no PREC. mas agravou-se de forma escandalosa e lamentavel nos govemos "laranja". prosseguindo com os ventos "rosa" da prirneira equipa ministerial ... ») (Jose Cotter

-a cancro clientelar a fun~ao presidencial, in: PliblieD, 17.1.01) de padrinho, com referencia directa ou indirecta 11 Mafia e seus tentaculos:

«Prudentino e apontado na imprensa transalpina como urn dos principais "padrinhos" do contrabando de cigarros ... Do seu mandata de captura constavam ainda acusa~6es de associa~ao mafiosa e homicidios .... 0 "cappo" acabaria por ser capturado pelas autoridades policiais .. » (0 encanto dos cigaITos 10uros, Pliblico, 3 l.l 2.00).

«Urn desconhecido com 0 nome infeliz de Feliciano Barreiras teve a ideia de chamar a Jorge Sampaio a "cabe\a do po/vo socialis ta·· .... . E cabe\a do polvo e a chefia maxima da Mafia, 0 capo di tutti capi, 0 patrao-mor, 0 assassino dos assassinos, a rnanda-chuva.) (Clara Ferreira Alves. Revista do Expresso, 1.12.2000)

«Alguern do interior do PS serviu 0 'polvo' de bandeja. Se 0 caso da Funda~ao [para a Preven~iio e Seguran,a] teve esta dirnellsiio toda e porque foi alguem da fanulia que, nurn acto de vingan~a, apresentou aquila como se fosse uma coisa

tenebrosa •• (Armando Vara, Comercio do Porlo, 25 . 1.0 I)

A CORRUPc;:Ao partindo de quem beneficial ou de outrem surge lexicaIizada

pOl' cunha ( 'influencia indevida exercida em favor de alguem (pelo proprio I por

outrem' )3 1 ,ocorre nOllllalmente enquadrada na expressao meter (uma) cllnha. 0

disfarce da corrup«ao surge em branqueqmento, integrado em branqueamenlO de capita is / dinheiro e relacionado com as express6es ocasionais - servindo-se do

lexema "gate" tornado como elemento fonnativo - e com valor bern marcado como

Kremlingate e Angolagate: «Mais revelas;oes na venda de annas e branqueamento de dillheiro entre Paris

e Luanda. Escftndalo frallco-angolano [titulo]. a escandalo envolve 0 filho de urn ex-chefe de Estado, urn antigo presidente do BERD [Banco Europeu para a Reconstru~ao e Desenvolvimento1. urn ex-ministro do Interior, 0 russo Gaidamak. agentes secretos quanto baste e mercadores de canh6es. Todos aparecem em documentos ligados a uma fraude de branqueamento de dinheiro entre a Francra e Angola .. .. Alguns dos protagonistas do "Kremlillgale" tinbam responsabilidades no reescalonamento da divida de Angola a Russia) (Ana Navarro Pedro, Pliblico, 9.12.2000,20)

<~O filho de Miterrand. de 54 anos, clama inocencia das suspeitas de envolvimento ern (rafteo de armas e branqueamento de dinheiro em neg6cios envolvendo a Francra. Angola e a Russia no inicio dos anos 90~> (Ana Navarro Pedro, em Paris, Pziblieo. IO.IO.OI)

I 1

Revista de Letras n05

«Urn processo de cOlTUp~ao com hist6rias que s6 pareciam possiveis nos piores romances de cordel come~ou ontem em Paris, num pequeno capitulo do tentacular escalldalo ELF. Urn antigo ministro sedutor: Roland Dumas, sedu::.ido peJo dinheiro. Uma conesa manipuladora .. . Primeiros ministros canvocados como testemwlhas de moraJidade . .. E 0 protagonist a do esdi.ndalo, Alfred Sirven. homem-cofre dos piores segredos de cotn1~ao, fugido POl' terras asiaticas ... Ora tudo isto acaba em julgamento par urn par de sapatos de 300 contos. Como se este pomlenor fosse destinado a desviar a aten<;ao da opiniao publica dos muitos e rnuitos milh6es de contos desaparecidos da antiga companhia petrolifera Elf, sem se saber como, nem em que bolsos.» (Dumas e Elfno banco dos reus. PLiblico, 23.1.01)

<<AngoJagate. Jean-Christophe Miterrand, .. esta a ser alvo de urna investiga~ao a trafteo de annas com Angola e de branqueamento de capitais no infcio dos anos

90.» (P,iblico, 23.1.01)

Outras express6es surgem com 0 mesmo valor, como desvio de fundos: (Ao que tudo indica. 0 ex-govemador civil [do Algarve, Cabrita Neto] desviou

filll do.< que justificou com subsidios inexistentes» (Publico, 25. 1.0 I) -Envolvido na CORRUP<;AO estiio, entre outras coisas, dinheiro sujo,jundos, o tacho, as mordomias32 , etc.:

« ... Roland Dumas . . . esta hoje. aos 78 anos, no banco dos reus por causa de sapatos mandados fazer a medida e pagos com 0 dinheiro "sujo" da sua arnante.» (Roland Dumas "0 sedutor", Publico. 23 .1.01). A isto chama-se, simplesmente, corrupfiio . Urn pais em que 0 govemo corrompe as " lobbies" que se the op6em e em que estao disponiveis para a neg6cio, e urn pais que percleu a no~ao de vergonha. Va. homenageiem 13 os despedidos do MAl, fa,am-lhes jantares de desagravo. deem-lhes condecora~6es, falfam-nos comendadores e gestares de algum "tacha" publico alternativo. Mas fa~arn-no, ao menDS, lange da vista e lange da nausea.» (Miguel de Sousa Tavares - Ninguem mais tern vergonha?, P,iblico, 29.12.00, 9)

<<lsto depois de se saber que a dita fllndaliao esta povoada de amigos e assessores .... A este Governo ja nao chegava multiplicar institutos aut6nomos e dislribuir mordomias. Ja nao bastava ter colocado todos as "hoys" que tinha a mao na administra,iio publica. Ainda Ihe faltava criar funda,oes. com gente de confian,a

• ao camando, dinheiro do Estado nos cofres e missao mal definida. E a desvergonha total.» (Jose Manuel Fernandes, Editorial, P,/biico. 2.1 2.2000)

Vma expressao que foi alavanca na argumentac;:ao eleitoral de Antonio Guterres - no jobs for boys - que se tornou depois arma de arremesso dos adversarios contra Guterres e boys ficou com toflo 0 valor da expressao e entra tambem no dominic semantico de CORRUP<;AO, como substituto de afilhado, amigos, assessores, os beneficiarios das mordomias:

12

«Guterres convidou [para a govemo], sem quaisquer 1imita~6es, os sellS amigos. aqueles em quem pessoalmente depositava confian~a, cometendo a proeza inedita de ter metade do Governo formada por independentes. Quase s6 0 padre Melicias ficou de fora. 0 aparelho do PS foi ignorado. 0 primeiro-ministro pode afinnar, perante a escandalo geral- e como se arrependeria de ler pronunciado essa frase! -. que nao haveda "jobsfor boys" . ... Sem afrontar Mario Soares nem Jorge Sampaio, usando pezinhos de Hi, Ant6nio Guterres teve pretensao de fazer do PS urn partido

Revista de Letras nOS

diferente: mais pragmatico, menos marcado pela ideologia, mnis aberto ao mercado, mais pr6ximo do conceito cristao da solidariedade do que do princfpio socialista da igualdade .. .. Guterres tentou ... encontraruma "terceira via" que pennitisse acntalizar o partido sem afrontar os "ortodoxos·. 0 CERCO a Guterres significa, pois, que este projecto pode ter os dias contados. » (Jose Antonio Saraiva. Expresso, 23. J 2.2000. pg. 3)

«Quando a cidade esperava que a constituic;ao da empresa municipal de obras publicas servisse para minorar au inverter a descoordena<;D.o. a falta de planeamento e os constantes atrasos que caracterizam as diversas obras no Porto, a referida empresa serve mais para a gestao socialista se preocupar em distribuir os habituais 'jobs' pelos inurneros 'boys' que existem oa C§.mara Municipal do Porto", ataca Sergio Vieira») (Empresas municipais s6 servem para dar 'Jobs" aos "bo.vs", in: Pllblico, 19.01.200 I ). «E, se duvidas houvesse, elas estariam definitivamente dissipadas com o conhecimenw de que a celebre fundaC;3o cIiada pelos "boys" do Ministerio da Administrac;ao Interna, entre outras relevantes actividades da sua curta e dispendiosa existencia, nao dispensa de fmanciar urn congresso da ASP - a associa9ao sindical da Polfcia que teoricamente se lhe opoe. Nao e a primeira vez que vejo governos a financiar s indicatos, centrais sindicais. associacroes patronais ou movimentos ecoiogistas. A isto chama-se. simplesmente. COITIlpcrao. Um pais em que 0 govemo corl'Ompe os " lobbies" que se lhe opaem e em que estao disponiveis para 0 neg6cio, e urn pais que perdeu a n0930 de vergonhu. Va, homenageiem la os despedidos do MAl, fac;am- Ihes jantares de desagravo. deem-lhes condecoracroes. fa<;anl-nos comendadores e gestores de algum "tacho" publico alternativo, Mas fa9am-no, ao men os, longe da vista e longe da nausea.» (Miguel de Sousa Tavares - Ninguem mais tern vergonha?Pziblieo, 29.12.00, 9)

«0 poeta [Manuel Alegre I que toda a vida lutOl! pela liberdade, engrossou esta semana 0 cora dos "boys" socialistas de Coimbra para defender 0 indefensave1. A libe3rdade de expressao e de crftica nao pode ser sacrificada em nome de quaisquer teorias conspirativas .. » (Pliblico, 27.1.01)

Se mordomias, tacho, dinheiro sujo, surgem como os elementos que resultam -

da CORRUPC;:AO, sistema, esquema, bo),sismo lexicalizam 0 processo tornado ideologia ou 0 «meio caminho andado» para ter acesso ao produto da cOITup<;ao. Se boysismo tern urn semema unico, 0 "sistema politico-partidano" que favorece os elementos do partido:

«0 govemador civil de Bragancra eo director dos servicros de saude do Porto demitiram-se em Dezembro por responderem a perguntas de jomalistas. Ao faze-Io, revelaram como haviam exorbitado as funcroes de Estado ao servi90 do "boysismo" e (defieas par(iddrias» (Eduardo Cintra Torres, P,lblieo, 26.12.2000, pg. 33)

ja sistema33 apresenta polissemias bern complicadas. Os sememas mais claTOs de sistema detectaveis na lingua comum restringem-se ao seguinte: 'conjunto de reg! as, princfpios relacionados entre si' e 'modo ou meio de fazer algo' 34 . 0 primeiro semema, que atraves do respectivo adjectivo situa 0 dominio em que se insere, detecta-se em:

«0 sistema eSHi completarnente podre. [tftulo] Cimrgiao Manuel Antunes lanc;a

I3

Revista de Letras n05

Iivro polemico sobre sjtua~ao e gestao do Servi~o N acional de saude [subtitulo] . .... No nosso sistema de sQiide a produtividade do trabalho dos medicos e na maior parte das cireunstfincias baixissima» (PLlblico. 14.1.0 I)

«Ma semana para a Republica. Seria dificil inventar uma que causasse mais danos ao Governo, ao sistema politico e ao pais» (Ant6nio Barreto - Furnos. PLlblico.

29.10.00) , Eo segundo semema que esta mais presente na lingua com urn, e numa -das suas subdivis5es entrana area da CORRUPC;:AO. Os dominios onde

essas ocorrencias ocorrem sao os da politica e dos politicos, das v<irias manifesta~5es sociais organizadas, onde se destaca 0 futebol:

~(Mnito importante: 0 processo de Antonio Saleiro foi arqujvado em tennos que levantam duvidas ao procurador geral da Republica, que, por isso, chamou a si 0

processo e pediu esclarecimentos ao proeurador adjunto de Beja. Mais importante: Daniel Sanches, 0 todo-poderoso magistrado do Ministerio Publico que sucessivamente dirigiu 0 SIS, 0 SEF e, agora, 0 Deprutamento Central de lnvestiga<;ao e Ac<;iio Penal (DClAP), a j6ia da coroa da investiga<;iio criminal. vai abandonar 0

servi~o publico e abra~ar uma carreira no sector bancario a convite do seu velho antigo Dias Loureiro. 0 sistema nas suas profundezas move-se . ... Sabe-se que os custos enonnes da poHtica estao a contaminor 0 sistema. 0 financiamento dos partidos, 0 financiamento de eandidaturas, que reina 0 imperio da comissao ou da sobrefaclurarao de obras e campanhas publieilarias, que se entra na politica remediado e se sai com uma fortuna de 15 ou 20 milh6es de contos mas se consegue chegar a lado nenhum . . .. 0 problema esta no exeesso de ineficacia do sistema no seu todo. no exeesso de convic~ao que reina na classe dominante de que a prisao, par atavismo historico. se apliea as classes baixas e nao as que deeretam a cultura dominante. 0 problema esta 110 arqllivamento do proprio sistema que esta em c"rso.» (Eduardo Damaso - Arquivar 0 sistema, P,/biico, 13.01.0 I)

«Do "cocktail" explosiv~ em que se transformaram as rela~6es entre govern antes

e ex-governantes, onde ja nada e passivel de ser diseutido com base na

racionalidade, .. .. , retem-se uma frase deliciosa que produziu Jose Junqueira quando aeusou Manuel Maria Canilho de ler passado uns anos sentado "0 mesa do Or{:amento·' . Proveniente a senten\a de urn distinto membro do sistema, neste momento ele pr6prio ocupando urn cargo no GovenlO. 0 de seeretano de est ado da Administra~ao Portmiria explicasse ate ao ultimo ponnenor 0 que significa estar "selltado it mesa do On;amelllo''', (Ana Sa Lopes, P,/blico, 23.12.2000,6)

Os lexemas que ajudam a criar a coerencia textual em relac;iio a CORRUPc;:Ao e it inserC;ao de sistema nesse dominio situam-se na mesma area: sobrefaclura,ao, selltar-se it mesa do or,amento de Estado, comissoes, cOl1tamina,Cio, etc. No dominic do futebol, dada a relevancia que 0 fen6meno tern para a maior parte da comunidade, 0 desdobramento semico do semema emquestao nao pode ser mais claro 0 seu lugar na area que vimos tratando:

14

«Jose Roquette . . . . , definiu. anteontem a noite . .... 0 "sistema iJlstalado no futebol portugues". A questao do ressurgimento do sistema foi eoloeada pelo actual presidente leonino. Dias da Cunha, no final do jogo com 0 Beira Mar ... Jose

, Raquette surgiu a leneiro para dizer 0 que, no seu entender, significa sistema: "£ 11111

Revista de Letras nOS

conjunro de mails Juibitos instalados que, quando repetidos mlfilOS GilDS, fonzom · se 111uiTO dlf(ceis de erradicar e transformam-se em verdadeiras insritui(oes" . ... Raquette lembrou que, htl cerca de dais anos. 0 Sporting entregou na Liga ... um projecto que visava a profissionaliza'l3.o dos arbitros. "Eram as linhas correctas para romper com as maus habitos e desinstalar certas pessoas, pais 0 sistema lambem lem roslos» (A Bola, 17. 11. (0)

«0 tema e complexo, sem dlivida, e tambem sem definilfao. e pela sua actualidade tem merecido vauas amHises nos liltimos dias. Corn as devidas reservas de quem se assume como urn simples "homem de balneano". mas que tenta perceber tudo 0 que envolve 0 fenomeno do desporto-rei, tambem vou abordar 0 famoso "sistema". Mais do os eITOS impulados aDs arbitros. 0 que mais me impressiona e a sistematica lavagem de opiniiio e imagens que sao desenvolvidas na comunica9aO social, por intennedio de profissionais que informam a defini9iio de lances consoante a camisola que vestem .... Se nao querem que se fale em "sistema", entao que nao nos deem raz6es para pensar que ele existe» (Vitor Damas - Que sistema? Expresso, 18. 11. (0)

«0 sistema e uma palavra dofuteboles [autor] que apareceu. criou raizes na bola indigena e veio para fiear. a siste11Ul esta associ ado a eorrela(fao de poderes entre os dirigentes dos clubes e quem tern a responsabiIidade de orientar os destinos da arbitragem. 0 sistema visa 0 arbitro - a capaeidade de 0 eonclicionar, de 0 coagir, de o tornar sensivel e vulneravel a faetores ex6genos, euja ::,ona venl1elha (autor] adquire a forma de cOITII~ao. a sistema tern um grande defeito: regula favoritismos em fun<;iio da for<;a do poder.» Rui Santos - 0 sistema. A Bola , 29.11.00)

«Se a eoisa nao engrena, se 0 ponto de lan9a nao Ihe aeerta nem de bieo, a defesa pareee trans parente e 0 medio perdeu a n09aO do " ioia" e nem sobe nem desee, pois logo havera quem desculpe os resultados negativos com a retoriea do sistema. Se 0 arbitro se engasga .... nao ha que saber: 0 si stema esta em funcionamento .... 0 sistema nao e urn sistema. A dijerellra do artigo TOrna tudo claro ... » (Vitor Serpa - 0 sistema, Expresso, 11. II. 00)

-Como concIusao da amilise semica do campo lexical CORRUP<;AO vamos tentar fazer uma amilise em tetIllOS de tra«os opositivos os varios lexemas do campo:

CcJfiU~O: - 'compra Ivenda da consciencia", 'putrefac«ao de materia organica

---

'compra I venda da consciencia': da parte de quem corrompe: "envolve dinheiro escondido[ contas secretas]", "pode envolver partilha de poder"

- da parte de quem se corrompe: - "concessao indevida de beneficios pecunifuios" - .. partilha de poder" e/ou "acesso facilitado em concursos publicos" - "prejudica outrem [entidade publica ou privada]"

15

Revista de Letras n05

-Favortismo I favorecimento:

"venda da consciencia" - "concessao indevida de favores I beneffcios materiais ou profissionais" - "da parte de quem beneficia nao implica compra da consciencia" - "da parte de quem concede implica 'injusti<;a' para com outrem" - "da parte de quem concede nao implica qualquer liga~ao familiar ou ideol6gica

ao beneficiado"

-----

---

Clientelismo35 : "venda da consciencia" "concessao indevida de favores I beneffcios materiais ou profissionais" "da parte de quem beneficia nao implica compra da consciencia" "da parte de quem concede implica 'injustic;a' para com outrem" "da parte de quem concede implica ligac;ao ideol6gica ao beneficiado"

Compadrio: "venda da consciencia" "concessao indevida de favores I beneffcios materiais ou profissionais" "da parte de quem beneficia nao implica compra da consciencia" "da parte de quem concede implica 'injusti<;a' para com outrem"

- "da parte de quem concede implica ligac;ao de proximidade social ao beneficiado"

-----

Nepotismo: "venda da consciencia" "concessao indevida de favores I beneffcios materiais ou profissionais" "da parte de quem beneficia nao implica compra da consciencia" "da parte de quem concede implica 'injustic;a' para com outrem" "da concede' familiar ao beneficiado" ---

-----

---

16

"venda da consciencia" "concessao indevida de favores I beneficios profissionais" "da parte de quem beneficia nao implica compra da consciencia" "da parte de quem concede implica 'injustic;a' para com outrem" "da parte de quem concede implica Iigac;ao politica partidana ao beneficiado"

"venda da consciencia" «ausencia de corruptor»

Cabritismo:

"aproveitamento indevido de benesses sociais e politicas"

Revista de Lelras nOS

- "proximidade do poder por parte de quem beneficia" - "um dos nomes da corrup~ao em Mo~ambique"

- "venda da consciencia" "ausencia de corruptor"

PecuIato:

"aproveitamento indevido de dinheiros publicos" "proximidade do poder da parte de quem beneficia"

Luvas (pagamento de): - "compra da consciencia" ou "pagamento de servi~os" - "compra da consciencia" - "dinheiro oculto usado pelo CORRUPTOR para comprar 0

CORROMPIDO» - «impedimento de transparencia em actos publicos» - "fuga it fiscalidade legal"

Cunha (meter uma): - "compra da consciencia"

--

--

--

"influencia exercida sobre quem tern poder de decidir" "uso de interposta pessoa influente" "envolvimento de injusti~a para com outrem"

Aliciamento: "compra da consciencia" "uso de dinheiro I promessas vantajosas" "obten~ao de algo injusto em si mesmo"

Desvio de fundos: "venda da consciencia" "uso de dinheiro pertencente a outrem (Estado I Empresa)"

Branqueamento (de dinheirol capitais): "venda I compra da consciencia" "tentativa de legalizar bens ilicitamente obtidos[ dinheiro sujo]"

Dinheiro sujo: dinheiro obtido no trmco de dJ'oga I venda de armas dinheiro obtido ilegalmente

Tacho: - "fJUto da compra I venda da consciencia"

"emprego publico com ordenado superior ao merecido obtido de fOlllla clandestina e/ou algo escandalosa"

17

Revista de Le(ras n05

---

--

Mordomia: ["beneffcios obtidos por forr;:a do dinheiro"] ou "beneffcios indevidos obtidos pela proximidade do poder" "fruto da venda da consciencia"

Trafico de influencias: "compra e venda da consciencia" "troca ilfcita de concess6es"

Esquema:

- "processo simplificado de obter as coisas" - "atalho para urn alvo" - "aproveitarnento de meios simples para tornear as dificuldades" - "aproveitarnento de truques para tornar a verdade a nossa verdade"

--

Nacional porreirismo:

"processo simplificado de obter as coisas" "deixar correr nacional',36

Sistema (fora de uso anaf6rico e com artigo definido):

- "organizu£ao oculta" - "utilizar;:ao de meios ilicitos para converter 0 estado de coisas em favor de

a1guem"

18

- "compra de consciencias"

--

---

---

Boysismo: uvenda cia consciencia" "processo de premiar / reforr;:ar 0 poder dentro do partido" "concessao de tachos / favores"

Angolagate!Kremlingate: "venda / compra da consciencia" "utiliza«ao de dinheiro sujo para ganhar mais dinheiro" "processo clandestino de legalizar 0 ilegal"

Polv037 :

"venda da consciencia" "associar;:ao secreta" "envolvimento em neg6cios sujos"

Revista de Letras n05

2. 2. Connibuto para uma amilise cogniti va

Ao tentarrnos analisar semicamente CORRUPC;:AO, fizemos ja uma aproxima<;ao a textos autenticos, nao s6 para documentar a nos sa analise como tambem para detectannos os "estere6tipos" - os tra<;os partilhados pelos membros da nossa comunidade linguistica. Iremos agora refor<;ar alguns t6picos - sempre com apoio em textos autenticos (imprensa escrita) - que fomos citando como documenta<;ao. de cadalexema do grupo de palavras em analise, como a (i)moralidade, a (falta de) isenr;iio, suspeir;iio, estado da justir;a, eleitoralismo, promiscuidade, incompatibilidades, (falta de) etica; passaremos depois ao proverbios construidos com bases nos tennos que vimos analisando e, em seguida, a analise de alguns inqw!ritos feito a uma universo de 100 pessoas (a quem pedimos para elaborarem en unci ados com as palavras que estao em cima da mesa). Finalmente, por nao podellllos reflectir em ponnenor sobre as possiveis imagens mentais de todas as palavras, ficar-nos-emos por corrupr;iio, cunha, luvas e branqueamento.

2.2. J. Envolvimento de palavras da mesma situa<;ao comunicativa

Como ja referimos, M palavras que se situam no mesmo dominio de experiencia, tais como transparencia (ou a sua falta) - para esc onder a CORRUPc;:Ao -, suspeir;iio, incompatibilidades. 0 levantamento destes lexemas e feito nao s6 por causa das palavras em si, mas sobretudo por causa do seu enquadramento no (con)texto - a coerencia textual obriga 0 escrevente a dar uma continuidade de sentido ao seu escrito:

«Ma semana para a Republica. Seria dificil inventar uma que causasse mais danos ao Govemo, ao sistema politico e ao pais. As dificuldades de aprova930 do Or'ramento sao benignas. quando comparadas com as questoes de moralidade pI/blicG surgidas a prop6sito de alegadas medidas de favoritismo, assim como as revela'roes de illleresses pessoa/ efinanceiro de membros do governo em empresas capitais publicos em vias de privatiza'rao .... Podem os govern antes fazer de conta, criticar a vulgaddade na televisao, inaugurar obras, ... , desprezaros que se inquietam e pro meter candida isenc;iio: nada fani com que se dissolva 0 clima de suspeir;iio criado. Ha ou nao corrupr;iio? Ha ou nao javorilismo? Ha au DaD decisoes que beneficiam uns em detrimento de outros? Hd. ou nao re/ar;6es especiais entre os politicos e agentes econ6micos? Hd. ou nao vfnculos entre dirigentes polfticos, gestores de empresas publicas privatizaveis e empresas reprivatizadas? ... » (Antonio Barreto - Furnos, PLiblico, 29.lOJ)(»

«Na semana passada, quando urna pequena rnultidiio aplaudiu 0 hornem [Manuel Subtill que acabara de "sequestrar" a RTP, IOrnou-se claro 0 sentimento publico acerca do estado da justir;a. Tomou-se claro que a convic'rao geral e que os poderosos se escapam sempre enquanto as prisoes se enchern dos fracos. Casos como 0 este [arquivamento do caso Saleiro] nao contribuem para alterareste estado de revolta latente» (lose Manuel Femandes - Urn hist6riaexernplar, PUblico, 10.1.01)

, «E CERTO que uma vaia [na entrega por Guterres e loao Soares dos premios].

19

Revista de Letras nOS

ainda que monumental, na final do Masters Cup nao se campara a urn celebre feriado de Camaval que provocou a ira dos portugueses contra Cavaco Silva. Mas que 11 mil pessoas se sin tam incomodadas por ver Ant6nio Guterres e Joao Soares a entregar uma ta~a nao pode ser mais significativQ na actual conjuntura. A relapio dos ponugueses com a po/{tica em geral e pessima e com os socialistas, em particular, come~a a entrar pela senda da expedi~ao puniti va ... Vam e Patnio esquecem 0 valor simb6lico e real que teve em 1994 e 1995 a demarcac;ao feita por Guterres de urn cavaquismo que usava e abusava de uma ulrrapassagem do lei pela esquerda e pela direita sempre com 0 argumento da "flexibilizac;ao" e da "agilizac;ao" de rnecanisrnos que impediam de fazer obra eel ere e eficaz .... Agora, Vara e Patrao vern dizer ao pais que estao agora a seT alvo de uma campanha ... e sublinharque acham o mais nonnal do mundo transferir obriga<;6es que sao do Estado para uma funda~ao privada . .. Por fim, dois pequenos "pomlenores". No mesmo fim-de-semana. urn dirigente da Admini stra~ao Regional de Saude do Norte vern assumir que, em crrcunstancias curricll iares iguais, preferira sempre urn tecmeo que seja do PS do que uma pessoa de outro partido ... Por fim, 0 estatuto dos deputados. Poucos paises europells terao tanta legisla9fio sobre transpare,lcia como Portugal. A fortaleza vai do regime juridico das ineompatibilidades ate ao registo de interesses e deposito da declarariio de rendimelltos, sucessivas interven~oes no diploma do financiamento partidiido, uma pomposa comissiio de erica. etc. Mas poucos palses terao urn sistema tao confuso e ineficaz. Por culpa exdusiva do PSD e do PS, que rnoldaram os sueessivos "pacotes" de f liea a sombra das suas conveniencias ou, pelo menos. de algumas das sua mais inf]uentes personalidades, a transparencia esta lange de ser urn cotpO de leis daras. Legislaram sempre ao sabor de calenddl'ias

eleitarais . . . » (Eduardo Damaso, PI/biica, 4.12.00)

Ha outros itens lexicais que apontam no mesmo senti do, como, por exemplo, desmobiliza~ao civica, a prop6sito da absten~ao nas presidenciais:

«Tern vindo progressivamente a sobrepor-se aos interesses e projectos colectivos ou de equipa protagonismos individuais. ambi90es menores. haas de pader gratuitas e mesmo chocantes para 0 born senso e a sentido do dever do camum dos cidadfios. Isto afasta as pessoas da causa piiblica, desmotiva-as a participar. pTovoca desmobiliza~iio cfvica. reduz a capacidade entica, incentiva 0 individualismo e enfraquece arede social e culntral cia vida colectiva.» (Gomes Fernandes - Participa~ao

civica,in: IN, 17.01.01).

Desl11obiliza~ao civica, absten~ao pOl' parte dos votantes e cizentisl110 por ,

parte de quemmanda e nao decide. E este 0 contexto em que se explica 0 "estere6tipo" de detenninada classe, detenninadas entidades, nuclearizam a culpabiliza"ao do mal­estat· e da deseltifica"ao no campo da cidadania. Os proverbios levam-nos pat'a uma interpreta~ao da natureza humana, para os "scripts" da sua actua"ao; os inqueritos indicam-nos quem sao os utentes e actantes neste "estado de coisas" que designamos como CORRUP<;:AO.

20

Revista de Letras n05

2. 2. 2. Proverbios

Os proverbios sao textos onde as cren<;as colectivas explicam e classificam, por meio de estrategias rftmicas- assonancias, quiasrnos, alitera<;5es -, do recurso it metifora e a reinterpreta,,5es semantico-pragmaticass, a natureza das coisas38 . Trata­se de enunciados nao episodicos, remetendo para urn estado de coisas geral, habitual e con'ente39 ,onde a contingencia, a factualidade estao exclufdas40 . Se podemos dizer que «quem anda:i chuva molha-se», ou seja, quem anda na vida publica com muita visibilidade (sobretudo, polfticae desportiva), esti sujeito a 6dios de estima<;ao. Eis os proverbios referentes ao dorninio por nos tratado:

o cabrito come onde esta amarrado Ern tempo, lugar e sazao, 0 dar e corrupr;iio Aqueles que se vendem nao vale a pena comprd-los Quem se pode vender, nao deve ser comprado Quem nao tern padrinho morre pagao Quem tem padrinhos nao morre mouro Quem tern padrinhos, nao morre na cadeia Honra sem honra e alcaide de aldeia e padrinho de boda Por via do compadre, quer fazer a filha madre M ordomia sem comedoria e coisa de pouca valia A pior cunha e a do mesmo pau Corn cunhas se racham pedras Nao ha melhor cunha do que a do mesmo pau Se nao fossem as cunhas, nao se rachavam paus

Apenas 0 proverbio mo<;ambicano «0 cabrito corne onde esta amarrado» e que serve de base a uma das palavras base no dorninio da CORRUP<;Ao: alias foi este proverbio que desencadeou 0 tratamento deste tema41 . Os demais proverbios enquadram-se tamrem nessa area, mas de modo diferente. Vamos examinarproverbio porproverbio ever 0 seu sentido. Todos os proverbios mencionados se enquadrarn na estrutura habitual dos textos deste genero:

todos eles apresentam urna estrutura bimembre as estruturas sao as habituais: se ... (entao} ... e ambas proposi<;5es na fonnanegativa

[Se nao fossem as cunhas, nao se rachavam paus) - quem .... , (entao) .... [uma forma proposicional negativa ou as duas] Quem se pode vender, nao deve ser comprado Quem nao tem padrinho morre pagao Quem tempadrinhos nao morTe mouro Quem tern padrinhos, nao morre na cadeia

21

Revista de Letras nOS

Verificamos que as duas estruturas (se .... enta~ e quem ..... , entao) sao convertiveis uma na outra sem altera«ao do conteudo e da for«a argumentativa. As restantes realiza«Oes proverbiais:

Honra sem honra e aJcaide de aldeia e padrinho de boda Por via do compadre, quer fazer a fiIha madre Mordomia sem comedoria e coisa de pouca valia A pior cunha e a do mesmo pau Com cunhas se racham pedras o cabrito come onde esta amarrado Em tempo, lugar e sazao, 0 dar e corrup,iio Aqueles que se vendem nao vale a pena comprd-Ios

Embora sUljam na fOllna de enunciados genericos correspondem, no seu todo, as formas anteriores e facilmente encontraremos fonnas de realiza«ao na fonna argumentativa identica a das anteriores, tanto mais que urn desses enunciados (aqueles que se vendem niio vale a pena comprd-Ios) textualiza 0 mesmo conteudo e com as mesmas unidades lexicas. Isto e, 0 tra«o "valor universal e nao episodico" esta presente e 0 valor de topico argumentativo e evidente. 0 outro topico (tambem) tido como essencial no texto proverbial - a metaforicidade - e clara, no caso de cunha, cabrito, compadre, mordomia e padrinho: pode haver uma leitura literal (composicional) e uma leitura metaforica (a proverbial). Nos restantes casos, 0 valor sentencial generalizante e igualmente suficiente para dar peso de "topos" argumentativo. Vender e comprar, cunha e padrinho, compadre e mordomia, dare corrup,iio, tern uma leitura figurada bern linear. Os proverbios tem tanto de verifica«ao-descri«ao dos factos, como de norma de actua«ao em ordem a sobrevivencia.

? 2.3. Sensibilidade dos falantes relativamente ao lexico da CORRup<;Ao _.

Pedi a cerca de cem estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (3° ana de Portuguesiingies e Portugues /Alemao), - em 8/9.1.2001 - para produzirem, por escrito, dez frases usando os lexemas corrup,iio, branqueamento, javoritismo, mordomia, padrinho, sistema, esquema, transparencia, cunha, luvas, polvo. Nao dei qualquerinfonna«ao sobre 0 significado ou sobre a finalidade, e a ordena«ao seria da sua responsabilidade (apenas pedi para numerar os enunciados pela ordem com que surgissem espontaneamente na sua mente). ExpJiquei apenas que, para cada palavra, podiam apresentar exemplos do lexema na variante nome, verba ou adjectivo, caso existissem na lingua como tais. Fomeci para cada lexema uma ficha onde cabiam os dez enunciados. Como verifiquei que as respostas eram coincidentes, tirei aleatoriamente, apenas textos de cinco estudantes inquiridos. Ha entradas com as quais os estudantes nao conseguiram fazer qualquer enunciado ou

22

Revista de Letras n05

menos do que 0 mimero de enunciados pedidos. Pedi ainda para nao assinarem, indicando apenas 0 nome de baptismo. Eis os exemplos:

a)colTu~o

Tfuria: I . A corrup,iio reina entre os advogados 2. Considero aquele politico corruplo

, 3. E ilegal corrompero arbilro de futebol 4. Foste corruplo ao aceitar 0 subomo 5. A corrup,iio nao devia existir 6. 0 PoUrico perdeu todas as suas qualidades a partir do momento em que foi corruplo 7. 0 arbilro nunc a se deve deixar corromperpor uma equipa de futebol 8. A corrup,iio e urn vicio, uma doen<;:a do capitalisl1lo

Patricia: 1. Os poUticos sao uns corruplos 2. A corrup,iio alimenta a bois a de muita gente neste pais 3. A corrup,iio nao compensa , 4. E preciso corrompera corrup,iio 5. A tristeza corrompe a alma 6. 0 alcool e a droga corrompem a imagem deste pais 7. A corrup,iio nao traz quaisquer beneficios 8. Os corruptos sao os primeiros a abandonar 0 barco 9. A corrup,iio deve ser punida 10. A corrup,iio existe por existirem homens

Ana: 1.0 pais esta a ser corrompido pelos politicos 2. A corrup,iio e, muitas vezes, utilizada como meio de atingir os fins desejados 3. Ele tentou corromper a Joana 4. A Sofia tern consciencia de toda esta corrup,iio 5.0 Paulo esta a tentar vencer toda a corrup,iio existente no seu partido 6. A Andrei a corrompeu 0 sentido da palavra 7. Os politicos parecem nao saber recorrer a outro meio, senao a corrup,iio 8. A palavra con-up,iio pode ter van os significados 9. A viloria foi corrompida 10. A corrupr;iio politica tern de ter urn fim

Tiago Con-eia: I. 0 poder corrompe, 0 poder absoluto corrompe absolutamente 2. 0 Mundo e uma gigantesca teia de corruptos e corrompidos

23

Revista de Letras n05

24

3. Urn dos tracros mais inmnsecos do homem eo sercorrupto 4. A corrupr;ao como acto significa a corrosao interior tanto daquele que corrompe como daquele que se deixa corromper 5. Ha varios tipos de corrupr;ao. A Pi or? De certeza a corrupr;ao mora! 6. A corrupcrao existe desde os infcios do Mundo 7. Aqueles que se dizem incorruptos mentem. Nao encontraram foi 0 seu precro 8. A incorruptibilidade existe apenas como conceito abstracto. Ninguem a pratica 9. S6 os seres corruptos se conseguem integrar na Sociedade corrupta e corruptive! de hoje 10. Corrompe-me e eu agradecer-te-ei

Silvia: I. Infelizmente, a corrupr;ao e uma realidade com a qual nos deparamos no dia­a-dia 2. Nonnalmente tomamos os politicos como paradigma da corrupcrao 3. A busca do poder econ6mico ou politico e 0 que nOI"Inalmente conduz a

-corrupr;ao 4. Os Jactos foram totalmente corrompidos 5. A corrupr;ao e algo que nos choca profundamente 6. Advogados corruptos e 0 que niio falta

, 7. E tentador, por vezes, corromper os Jactos a nosso favor 8. Fala-se muito de corrupr;ao, mas por vezes nao vemos em n6s os mesmos defeitos

Diana: 1. A corrupr;ao deve ser combatida 2. A corrupcriio e uma forma de poder 3. Nao podemos corromper os va/ores essel1ciais 4. 0 meio politico esta cada vez mais corrompido 5. A corrupcrao implica subomo 6. A classe medica portuguesa est<1 a ser acusada de corrupr;ao 7. A tentativa de os governantes de corromper os direitos e as liberdades individuais deve ser punida 8. 0 assedio dafuncionciria ao seu patriio e uma forma de corrupr;ao porque implica contrapartidas 9. Os hom ens que corrompem a dignidade da mulher sao cobardes 10. A corrupr;iio e uma forma de atingir !,-ucesso ou dinheiro indignamente

Revista de Letras n05

Vamos apenas salientar quem con'ompe e quem e con'ompido e verificar quais sao os meios usados na corrup<;ao. Os CORRUPTORES sao:

- equipa de futebol - capitalismo ---

uisteza aIcool droga politicos pessoa humana (2) poder (2) govemantes

Os CORRUPTOSI CORROMPIDOS sao:

---

-

advogados (2 ) politicos (8)

arbitro (2) futebol (2) c\asse medica pais (2) partidos politicos

Os MEIOS usados sao: subomo

- assedio - poder (I + 1 +)

-Caracteriza<;ao da CORRUP<;:AO:

--

• •

VIeJO

doen<;a: corrosao interior forma de poder fOima indigna (de obtero poder) alma

Semema exterior ao nosso campo: - faetos (2) b)mordomia T§nia: I. Ter criada e uma mordomia Ana: I. Elaesta habituada a tertodaagente a fazeros seus desejos, quemordomia !

25

Revista de Letras nOS

2. Ele cresceu no meio de vririas mordomias Patricia: I. Nao se faz nada neste emprego: e uma autentica l11ordOl11ia 2. Al11ordomia e urn lema na vida de muita gente Silvia: I. De eerto que a mordomia sabe bern 2. Nem toda a gente se sente it vontade com mordomias Diana: I. Ter mais do que uma empregada e usufruir de grande l11ordomia 2. Antigamente ter urn televisor era uma l11ordol11ia para poueos

Veri fie amos que a earaeteriza"ao de mordomia e de 'privilegio·. 'Iuxo?, sem qualquer liga"ao com CORRUP<;Ao.

26

c) padrinho I apadrinhar: Ana: apenas 0 sentido religioso e administrativo Tiinia: apenas 0 sentido religioso e administrativo Patricia: apenas 0 sentido religioso e administrativo Silvia: I . Os padrinhos sao os nossos segundos pais 2. 0 padrinho e 0 cabecilha da Mafia Tiago Correia: I. Quem hoje nao tiver padrinhos poueas possibilidades tern de singrar 2. Urn dos pre-requisitos para se poder ser advogado e ter urn Sa Carneiro como padrinho 3. 0 Papa apadrinhou a Cerim6nia de Abertura do Jubileu 2000

-No dominic de CORRUP<;AO surge: milia 'quem tern padrinbos morre na cadeia"

d) polvo: Ana: usa apenas 0 denotado "alimento" Tania: usa apenas 0 denotado "alimento" Patricia: usa apenas 0 denotado "alimento" Tiago Correia: 0 polI'o da Mafia estende os seus tentaculos por todo 0 Mundo Silvia: I . alimento .., alimento _. 3. '0 polvo' era uma serie de televisao relacionada com a mafia

Revista de Letras n05

Diana: I. Detesto polvo! 2. 0 polvo ataca asfixiando a presa atraves dos seus tentaculos 3. 0 polvo tern muitas fonnas de subterfUgio

o lexema paiva ocolTe associado coma "mafia" (2)

e) favoritismo: Ana: apenas usa 0 sentido etimologico ('favorecer' , 'dar favor a') Tilnia: I . Nessa vota<;ao 0 javarilisma foi 0 principal criterio 2. Nao te deixes levar pelojavarilisma Panicia: apenas 0 sentido etimologico (favorecer, dar favor a, ser favorito) Tiago COlTeia: apenas 0 sentido etimologico (favorecer, dar favor a, ser favorito Silvia. 0 javal'ilisma e muito interessante quando se aplica a nos Diana: I. 0 seu favoritismo e notorio, com certeza vai ganhar 2. Nao devemos usufruir do javari/isma para humilhar os outros concorrentes 3. 0 Javarilisma e sempre discutfvel em tennos paliticos

Embora favoritismo ocorram no seu semema desligado de CORRup<;AO, na linica vez em que se insere nesse dorninio, inclui 0 mundo politico.

f) Compadrio: Silvia: Na politica e tudo urn compadria

Mais uma vez e 0 mundo politico que concretiza compadrio no linico enunciado realizado pelos cinco estudantes.

g) luvas: Ana: (apenas 0 sentido literal e normal) Tiinia: I. (0 sentido literal e nOllnal) 2. Serve-te que nern uma luva Patricia: (apenas 0 sentido literal e nOllnal) Tiago Correia: Aquando da assinatura do contrato, Figo recebeu 100 mil contos

de luvas Diana: senti do concreto

27

Revista de Letras nOS

g) cunha: Ana: 1. A Andreia teve uma cunha para ir trabalhar no banco Tilnia: 1. Se nao tiveres cunhas ficas desempregada 2. Prefiro subir na minha profissao sem recorrer a cunhas 3. Considero 0 merito pessoal mais importante que cunhas Panicia: 1. Para trabalhar na Camara s6 com uma cunha 2. Durante 0 passeio saiu-me a cunha do sapato Tiago Correia: cunhar moeda Diana: 1. S6 arranjou aquele emprego porque conhece 0 "senhor cunha" 2. As cunhas hoje em dia sao essenciais para 0 sucesso laboral 3. As cunhas sao uma forma de promo<,:ao rapida com habilita<;5es minimas

Cunha, no seu semema 'venda da consciencia' esta bern presente.

h) boy: Ana: Ele quer ser urn delivery-boy Tania: {<.lobsfor the boys» Panicia: nao da exemplos Tiago Correia: Adecada de 90 assistiu ao aparecimento de urn novo facto social:

as jobs for boys Silvia: "lobs for the boys": slogan do PS Diana: 1. No jobs for the boys 2. Ele e apenas urn boy, nao tern maturidade 3. Vai ligar e pedir uma pizza, 0 boy traz a casa

Como verificamos, 0 no jobs for the boy (que ocorre quatro vezes nos cinco estudantes seleccionados) e bern conhecido.

28

i) esquema: Ana: I . S6 consigo estudar por meio de esquemas 2. 0 esquema da fabrica esta bern montado 3. Vou esquematizar-te 0 problema Tilnia: I. Estas completamente fora do esquema da sociedade 2. Nao percebi 0 esquema do quadro

Revista de Lelras nOS

Patricia: I. Preparamos urn esquemLl para este trabalho 2. A aula esta a ser demasiado esquemcitica: nao ha 0 desenvolvimento

profundo dos assuntos Diana: I . Esse esquenw esta muito born 2. Ele arquitectou urn esquenw muito inovador para a sua empresa 3. Esta prodU(rao obedece a urn esquenw muito moroso

Esquema, no seu semema enquadravel em CORRup<;:Ao, apenas QCorre uma vez.

j) sistema: Ana: I. 0 siste111Ll de cartas e muito eficiente 2. A minha mae instalou urn novo sistema hifornuitico no computador Tfulia: I. Sinto que sou uma pedra no sistema 2. Esse sistema de estudo nao e produtivo 3. 0 sistema de governo nao fundona Patricia: o sistema politico tern muitas incoerencias Diana: nao refere qualquer exemplo Muitos estudantes - entre os 95 nao seleccionados nesta amostra - fazem, em

sistel1w, referencia ao futebol e mesmo a alguns dos seus (ultimos) protagonistas.

k) transparencia: Tfulia: I. A politica deve mostrar-se transparente aos olhos do povo 2. A transparencio eleitoral esclarece os eleitores 3. A agua e totalmente transparente Ana: I. A tral1sparencia da agua deixa-o perplexo 2. Aquele vidro nao e transparel1te Patricia: I . Gosto de pessoas com transparencia moral 2. A transparencia do cortinado possibilitou-me uma melhor visao do crime Tiago Correia: AAdministra~ao PUblica e tudo menos transparente. A opacidade

rema Sflvia: Uso transparencias na minha aula Diana: nao traz exemplos

29

Revista de Letras n05

Transparencia ocorre no seu semema mais comurnmente usado (em que a agua e vieiro sao os exemplares prototipicos, mais 0 primeiro do que 0 segundo) e 0 valor "abstracto" (aplicado a alma) e ha uma ocorrencia na area de experiencia que vimos -tratando: a CORRUP<;AO.

I) branqueamento: Ana: I. Aquele gang foi preso por fazer branqueamento 2. Como conseguiste branqueara blusa? Tilnia:

• I. E considerado ilegal branquear dinheiro, porque oculta provas de uma

possivel fraude 2. Essa empresa vive it custa de sucessivos branqueamentos de dinheiro Patricia: Os ladroes fizeram urn branqueamento do dinheiro Tiago Correia: 0 branqueamento por parte de NATO do sinelroma dos Balds

e prototipico das organiza~6es mundiais Diana: Nao da exemplos

Em branqueamento ha enuneiados no seu semema 'tomar braneo' (J) e no seu semema incluido em CORRUP<;Ao: "dinheiro" (3) e "sfnelroma dos Balds". Como CORRUPTORES oeorrem: gang, Jaelr6es, empresa, NATO.

30

Revista de Letras nOS

NOTAS

I «0 lexico e, provavelmente, 0 sector da lingua em que as representa)oes colectivas deixam ,

mais vestfgios. E a parte da lingua mais sensfvel as mentaLidades.» (Elisete Almeida e Michel Maillard 2000: 10),

~ Sobre 0 portugues de Moc;ambique faremos, brevemente. urn estudo ponnenorizado sobre cabritismo. estrutura, quadro, etc. Mestrandos da Universidade Pedag6gica de Maputo estao a e laborar a sua disserta~ao de Mestrado precisamente sobre 0 lexico do portugues de · Mo<;ambique.

J 0 caso da palavra restaurarao com a sentido que Ihe e dado actualmente no dominio da industria hoteleira e demonstrativo das mutac;oes impostas ao lexico.

4 E e interessante verificar que ha nomes que nao se prestam a " ismos" (como Paulo Portas, que apenas pode ser Paulo das Feiras), ou Marcelo Rebelo de Sousa (cujo "ismo" estii travado par aquele que, suponho, foi seu padrinho: Marcelo e marcelismo) , au Santana Lopes (0 que daria sat n)tanismo!! !).

, «Ies mots ont un sens en langue»( Lehmann! Martin-BerthetI998: 15). 6 Ou primitivos semanticos: entidades mfnimas nao analisaveis, entidades metalingufsticas

ou cognitivas, tidas como universais. ' R. Martin 1983 (caps. lII e IV) caracteriza os tra,os conotalivos como tra<;os subjectivos,

nao socializados. Raslier (1987: 43) admite tamMm. ao lade dos semas por ele designados inerentes, os semas virtuai s. conotativos, por ele designados como aferentes.

' Cfr. Rastier 1987 (cap. 11). ' Pottier ( 1980: 169) procura restringir as condi<;6es para a admissibilidade de lexemas: «Le

seme est Ie trait distinctif semantique d ' un serneme. relativement a un petit ensemble de tem1es reel1ement clisponibJes et vraisemblablement utilisables chez Ie locuteur dans une circonstance donnee de communication»

lO 0 chamado modelo das condicroes necess3.rias e suficientes pode resumir-se no seguinte : a pergunta "como se categoriza?". as teorias classicas respondem do seguinte modo: o s

membros de uma mesma classe ou categoria partilham as mesmas propriedades e 0 criterio da perten,a a categoria est. ligada a posse destas propriedades.

Isto e. para que "x" pertenc;a a uma categoria e necess:irio e suficiente que "x" possua os atributos comuns a esta categoria. Por outras palavras, 0 sentido de uma palavra sera constitufdo pelas condicroes que deve cumprir um referente para ser denominado por esta palavra. Este modelo de sentido lexical encontra-se nas concepcroes classicas do senti do: definic;ao do sentido referendal, defini~ao por inclusao (defini~ao suficiente). analise componencial (desde que se interprete os semas como tra~os referenciais). Nenhum estruturalista puro aplicou este modelo.

I ! Dao como razoes para essa recusa os seguintes motivos:

-0 modelo estipula que as fronteiras entre as categorias sao nftidas, mas isto nao acontece sempre :

- 0 modelo da a Huslio de a categoria ser homogenea, ora os membros de uma categoria nao sao equivalentes: pois ha uma certa hierarquia entre os membros;

-0 modelo conduz a defini<;6es "analfticas". isto e, composta de propriedades sempre verdadeiras. Exclui propriedades que nao se verificam sempre.

l ' CIi·. Kleiber 1990 (cap. II) IJ A categorizac;ao interior das categorias nao repousaja sobre as propriedades paI1ilhadas.

mas sobre 0 grau de semelhanc;a com 0 melhor exemplo (exemplar) ou melhor representante da categoria, 0 chamado prot6tipo. A categoria assim obtida constitui urn conjunto ·'flou"f'fuzzy". Com 0 andar do tempo a teoria do prot6tipo altera-se, em que 0 prot6tipo deixa de ser urn exemplo concreto para se tomar semelhante a urna imagem mental, abstracta, condensando urn

3 1

Revista de Letras n05

conjunto de propriedades ou atributos (proto)-tipicosda categoria. Em que urn trac;o. porexemplo, [voar], poderia ser urn atributo prototipico de pardal. as membros de urna mesma categoria nao terao de partilhar lodos as mesrnas propriedades (nem lodos os passaros voam). mas estao ligados por "parecen,a de familia" (expressao vinda de Wittgenstein), parecen,a que nao obriga a que todos os rnembros possuam pelo menos urn atributo comurn. Os tra\os prototipicos da categoria sao determinados por testes junto dos utentes e apoiados na frequencia. A categoriza~ao e assirn levada para os processos cognitivos corn base no principio da confronta9ao. 0 prot6tipo e urn conceito de semantica cognitiva, pais descreve 0 funcionamento e a organiz39ao do espirito humano. Ao exigir-se 3 indica9ao dos tra\os tipicos, a analise toma­se mais maleavel, nao opondo, mas antes define pela positiva.

!4 A hierarquia vertical das categorias corresponde it estrutura interna da categoria numa dimensao vertical. Urn objecto pode estar disposto em categorias diferentes e ser detenninado de diferentes modos. Alhis, este principio de deterrnina':rao eraja usado nas teorias anteriores: inclusao, hiponimia. etc. Rosch distingue tres niveis: (i) nivel superordenado, (ii) mvel de base e (iv) nivel suborrnnado. 0 prototipo aplica-se ao nivel de base, que representa 0 nivel mais usado e eo mnis saliente do ponto de vista cognitivo: percepc;ao de uma similaridade global e de identifica,lio nipida.

15 Estere6tipo e uma das imagens de marca do nosso tempo e foi usado pela primeira vez, num dos sentidos que hoje encontramos, por W. Lippmann (Public Opinion, New York: Harcourt & Brace, 1922). Para situarmos melhor esse senti do originario de estereotipo, deixo algumas breves defini90es:

" Sterotyping: the use of stereotypes when judging others. Stereotypes are societally shared beliefs about the characteristics (such as personaly TRAITS, expected behaviors. or personal VALUES) that are perceived to be true of social groups and their members .... People often use their stereotypes as HEURISTICS or short-cuts, rather than going though more effortful PERSON PERCEPTION processes in which each individual i s judged on his or her own merits ... Stereotypes are generally considered as abstract mental representations of social groups - group SCHEMAS or group PROTOTyPES . . .. It is commonly assumed that stereotypes are developed and maintened because they serve a functional value, helping the individual meet important psychological needs .... Stereotypes may be incorporated into ideology of a social group. and may be reflected in the LANGUAGE of culture . ... Stereotypes also serve the basic function of disambiguating, simplifying, infonning, and enriching perception of the social environment through the process of SOCIAL CATEGORIZATION ... Stereotypes may also be fomled in some cases as a result of perceptual SALIENCE ... » (Charles G Stangor 1995). Temos imagens das coisas e das pessoas que sao fruto da nossa experiencia. e temos outras imagens que nos advem da nossa integrac;ao nurn dado grupo social: estas uitimas, que nao provern do nosso conhecimento. constituem 0 estereotipo. a estereotipo e uma representa<;ao (muito simplificada) que temos de nos e dos outros, representa~ao reproduzivel nos diferentes contextos

• da vida. E assim um elemento da estrutura das representac;oes, que inclui as cren<;as partilhadas pelos membros de urn gropo ou duma categoria social; que contero infonna'roes sobre juizos de valor e sobre situa90es. as estereotipos envolvem varios elementos. como sao a unifonniza9no. a sirnpiifica<;ao, (algurna) pertinencia, valoremotivo e (urn) conteudo. Os estere6tipos p31tem de uma dada "hist6ria". tomando 0 universal pelo particular, a parte pelo todo~ confundem 0 inato eo adquirido. Para melhor compreensao do problema vde Fischer 1987

16 H. Putnanl 1975/1990, 1985 !7 Desenvolveu a sua ideia com Iimiio. que compreende os trac;os I pele amarelal, Isabor

acido. etc. 0 trac;o Ipele amarelal. descrevendo urn limao tipico, nao sera verdadeiro para urn membro atfpico (por exemplo, urn limao verde. sendo ainda tirono. esse trac;o nao e verdadeiro).

" Cfr. A. Desporte e F. Martin-Berthet 1995 e Vilela 1999 e 2000.

32

Revista de Letras n05

19 0 italico e meu neste texto e em lodos os textos, a men os que se diga 0 contnirio. 20 Quando nos reportamos a "conup~ao" como area de experiencia (ou campo lexical ),

escreveremos com maitiscula. :!I «Conuptus, a, urn. Causa peitada, conupta, ou gastada Cic.» «Corrumpo, is. rupi , ruptum.

Corromper peitar, gastar. Cic.».« COlTIlptio, onis f. AcolTIlp<;am» (Bento Pereira 1772) «CORROMPER, v. at alterar 0 estado da coisa que est. boa, perfeita v. g. "a estagna<;ao

corrompe as aguas. & Perverter, v. g. as costumes & Subornar, peitar, 0 jlliz, 0 guarda, sentinella. -... » «CORRUP<;:AO, f. f. 0 estado da coisa corrupta, ou corrompida v. g. "a corrup<;ao da carne marta", das aguas enxarcadas. & Altera~ao do que e recto , e born, em mao. e depravado v. g. "a cOIDlp~ao do gosto, dos costumes, do seculo" & prevarica<fao v. g. "do juiz" & Das palavras; altera<;iio ... » (Rafael Bluteau 1789)

«(Corromper, v. tr .... Alterar ° estado da causa que esta boa, perfeita~ a saude, fo~as

physicas, etc . ... & Perverter moralmente; depravar .. . costumes, a sanctidade da alma .. & Subomar, peitar: v. g., 0 juiz, 0 guarda, a senti nella & Seduzir, induzir ao mal: ... »

«Corrompido ..... subornado, peitado: 0 regedofcorrompido (Lus. 8,96)>> «Corrup<;iio ... ACcr30 de corromper. de produzir a putrefaq:ao: & 0 estado da coisa conupta, ou corrompida: a came, as aguas, .. & fig. Alteracrao do e recto e born, em mau e depravado: v. g. a conu~ao do gosto. dos costumes, do seculo & Deprava~lio, en'O: .. . & fig. Ac~lio e effeito de corromper, peitar. & Prevarica<;iio, v. g. do juiz, & Subomo , corrup<;iio eleitora!' & Conup<;iio das palavras, altera<;iio; adultera<;iio ... »(Antonio de Moraes Silva - 1889 e 1891

«Corrup~o ... s. f. AC<flio de corromper, de produzir a putrefac~ao~ estado das coisas conuptas: A conup<;iio da came. A corrup,iio do ar. II Adultera<;iio: A conup<;iio de um texto, de uma lingua. II Deprava<fao, perversao~ desmoraliza\iio: A corru~ao dos costumes.// Subomo: Empregou a conu~ao para ser eleito deputado. /I Prevarica<fao: Acusou de corrup~lio os ministros.» (F. J. CaldasAulete [1913]

«Corromper (Do lat. corrumpere) V. t. d. I. Tomar padre, estragar, decompor: 0 calor corrompe certos alimentos. 2. Alterar, adulterar: Corrompeu 0 texto. adaptando-o ao que pretendia. 3. Perverter, depravar, viciar: As mas influencias corromperam-no. 4. Subomar, peitar, comprar: Corrompendo a testemunha, obteve depoimento falso. P. 5. Apodrecer, adulterar-se. 6. Perverter­se, depravar-se, viciar-se» (Aurelio)

«Corrup<;iio (Do lat. corruptione) s. f. I. Ato ou efeito de corromper; decomposi<;iio, putrefa<;iio. 2. Devassidao, deprava<;iio, perversiio. 3. Subomo, peita ... » (Aurelio 1986)

« Corrompido, depravado, pervcrtido. «Quando numa causa se introduziu algum vicio. ou se perturbou a ordem e hannonia de seus principios, diz-se que se corrompeo. Por esta mudan\a passa a cousa, de boa que era. a ser rna em seu genera, e entao se diz que esta depravada . Quando a perturba<;ao e tal que quasi pefde 0 antigo sef, diz-se que se perverteo. 0 mesmo acontece na ordem morah)«Corromper, peitar, subomar, seduzir, violar, alterar, deformar, falsificar, depravar, viciar, apodrentar, estragan)« Corrup~o, contamina\iio, fedor, infec~ao, imrnundicia. sordicia , contagio, peste , podridlio, altera'1lio, prevaricacraa. suborno , estupro, abuso, corruptela»( J. -I. Roquette 1858)

«Corromper .. v. tr. Causar comlp<;iio, podridiio a.ll Estragar, infectar.ll Depfavar; viciar.ll lnduzir ao mall caminho; peitar; subomar» (Corrup~o ... s . f. Estado do que se corrompe; adultera<fao; podridao. II Dissolu'riio; de vassidao; perversao'// Suborno; venalidade )) «Corruptivel ... Susceptivel de corrup<;iio; venai.» (Fernando Mendes 1904)

:!:! «La definitionjuridique de la corruption est necessairement compliqut!e, puisqu 'il s 'agit de donner aux juges les moyens de qualifier avec precision l' achat desastreux des consciences. Corruption est encore lie dans nos esprits a corrompre .. . Le verbe corntmpere possede une fa mle ... corruplunz: c' est cette fonne qui donne Ie nom corruptio, de maruere systematique. Si Ie latin etait oublie. nous dirions corrompemellt OU corrompage ... Corrompre, en latin c'est

33

Revista de Letras n05

"cassercompletement" - et dans corrompre, il y a rompre -c'est-a-dire "aneantir", puis Haneantir"', puis "deteriorer". En ancien fran(fais. on disait corrompre une fem me pour "seduire, debaucher" et on pensait que r on en rompait rame. eet emploi mora] (ou immoral) est plus ancien que I"usage materiel du verbe, qui correspond it "pourrir"'. Mais il s' agil toujours pour corrompre de frure passer de la purete a I'impurete. Le rapport entre putrefaction et conuption morale est parfaitement traduit par In langue familiere, qui affirme d'un corrornpll qu'il est un pourri, voire un riPOIl. D·ailleurs. au moyen age. on di sait eleganunent d'une charogne que c'etait une corruption .... II faut bien admmetre que la matiere vivante et la conscience humaine ont en commun cette faiblesse: elles sont corruptibles.» (Alain Rey 1996)

::3 Os textos ocorrem diariamente e envoI vern diferentes partes do pais e do mundo: «A Policialudiciriria de Coimbra deteve seis empresanos de Lisboa e dois funcionanos da AJf'andega de Bragan<;a, entre eles 0 chefe da delega<;ao. Henrique Cardoso Vieira. Suspeitos da pnitica dos crimes de corrup(Qo [crimes econ6micos?], faisifica(fao de docurnentos. contrabando e associartao criminosa» (Pliblico, 2.1 .01)

• «A corruproo e a fraude sao tao endemicas rna Asia] que sera preciso. pelo menDs, umn

gera~ iio para as erraclicar. No entanto, a sociedade civil esta cada vez mms vigilante, e os bans velhos tempos das contas bancdrias secretas com milh5es de d6lares podem estar a acabar

• para os lideres do SudoesteAsiatico» (John Aglionby - A Asia estaa mudar. in PLiblico 2. 1.01)

~4Cfr. «aliciar (Do lat. *alliciare, por allicere) V. t. d. 1. Atrair a si; seduzir, atrair: Aliciou 0

amigo, fazendo-o cienle do segredo . ... 2. Peitar. subomar: Aliciou testemunhas para deporem a seu favor. 3. Atrair. angariar: ... » (Au relio 1986)

~s <<luvas (De luva) s. f. pI. Recompensa que se da como retribuirtao de servi~o prestado. ou como incentivo. 2 Soma paga pelo inquilin~ ao senhOlio na ocasiao da assinatura do contralo de loca<;ao dum predio. independentemente do alugue\ mensal que tera de pagar: "Dificil jii est. sendo ... deixar 0 apartamento que ocupo, cujo dono, que me exigiu luvas para entrar, s6 falta exigir-me luvas para sair" (Fernando Sabino - Medo em Nova Iorque. A cidade vazia, p. 23 1) 3. lur. Valor do aviamento que se cobra no ato da venda ou da transferencia de estabelecimento comercial ou industrial.» (A urelio 1986).

::6 «Favoritismo, s. m. a mirno. favor, e protec~ao do poderoso para com 0 favorito. & 0 costume que tern os principes, e poderosos de abandonar os seus negocios entregando-os ao favorito. & Dominio. influencia dos favoritos. & Protec~aso escandalosa dos governos em favor de amigos e apaniguados em em offens. aos principios do direito, da justi<;a, da moralidade publica.» (Antonio de Moraes Silva 1891) «Favoritismo ' " s. m. Preferencia dispensada a pess6a favorita . II auxilio arbitrario. desauendendo clireitos adquiridos, protec~ao injusta; patronato» (Fernando Mendes 1904). «Favoritismo S. m. 1. Prefen! ncia dada a favorito. 2. Prote~iio

com parcialidade» (Aurelio). « (de favorito) m. Preferencia dada al favor sabre el merito 0 la equidad, especial mente cuando aquelle es habitual 0 predominante» (DLE)

" Aurelio (1986) ignora clientelismo. «(dellat. Cliens, -entis) com. Persona que e sti bajo la

protecci6n 0 tutela de otra. 11 2. Persona que utiliza con asiduidad los servicios de un

profesional 0 empresa . Por ext. parroquiano, persona que acostumbra comprar en

una misma tienda II Por ext., persona que compra en un e stablecimiento 0 utiliza sus

servicios (DLE). Clientela « (Dellat. Clie ntela) F. clientelism o 1/ 2 . Conjunto de los

c lientes de una persona 0 de un e stablecimiento» (DLE). Clientelismo «01. Protecci6n, amparo con que los poderosos patrocinam a los que se acogen a ellos.» (DLE)

~8 «Nepotismo (De nepote ) m. Desmeclida preferencia que algnos dan a sus parientes para las concesiones 0 empJeos publicos» (DLE) e «Nepote (Del it. lIepote) m. Pariente y privado del papa» (DLE)

" «Compadrice s. f. compadrio» (Aurelio), «Compadrio S. m. I . Condi <;ao de compadres;

34

Revista de Letras n05

rel~H;6es entre compadres; compaternidade, compadrado, compadresco. 2. CordiaHdade. intimidade. 3. Prote\ao excessiva, ou injusta.)) (Aurelio). Compadre «(Dellat. Compater, -tris) (DLE): Compadrear «(De compadre) intr. Hacer 0 tener amistad, generalmente con fines poco ilcitos» (DLE): Cmpadreo « (De compadrear) m. Compadrage, uni6nde personas para ayudarse mutuamente. Suele tener valor desprctivo» (DLE). Cornpradraje «(De compadre) m. Union 0

concierto de varias personas para alabarse 0 ayudarse mutuamenle. U. en sent. Peyorativo» (DLE). Compadrazgo: «m . Conexion 0 afinidad que contrae con los padres de una criatura el padrifio que la saca de la pila 0 asisle a la confirmacion.!! 2. Compadraje» (DLE)

JO «Padrifio Dellat. * patrinus, de pater. patris) . . . ... // 5. Fig. lnfluencias deque uno dispone por relaciones 0 maistades, para conseguir algo 0 desnvolverse en la vida» (DLE). Aurelio 1986 (apenas acrescenta: 'protector').

" «cunha (Do lat.cunea) I . Pe9a de ferro ou de madeira. em forma de diedro s6lido, bastante agudo. que se introduz em uma brecha para fender pedras, madeira, etc., para servir de cal\o e para finnar ou ajustar certas coisas. 2 .... » (Aurelio 1986) «cuila ( DE cuno) f. Pieza de madera o metal temtinada en angulo diedro muy agudo. Sirve para hender 0 dividir cueIpOs solidos, para ajustar. 0 apretar uno con otTO, para calzarlos 0 para nenar alguna raja 0 hueco. II 2 Cualquier objeto que se emplea para estos mismos fines. 1/3. Piedra de empedrar labrada en forma de piramide tlUncada. 1/4. Recipiente de poca altura y forma adecuada para recoger la orina y el excremento del enfermo que no puede abandonar el lecho. 1/ 5. Fig. Palanca. influencia a favor de alguien.// . .. » (DLE)

«Palanca (del lat. p(h)aJanga, y este del gr. Phalanez. garrote) Barra inflexible. recta. angular o curva, que se apoya y puede girar sobre un punto, y sirve para transmitir una fuerza. 1/ 2. Pertiga 0 palo de que se sirven lod palanquines para Ilevar entre dos un grande peso.//3. Fig. Valimiento, intercesion poderosa 0 influencia que se emplea para lograr algt'in fin . /I .... » (DLE)

" «s. f. I. Cargo ou ofieio de mordomo (l), mordomado. 2. Bras. Vantagens tais como moradia. condUlfaO. criadagem, alimentalfao. etc., proporcionadas pelo empregador (privado ou publico) certos executivos, e que lhes aumenta indirectamente os honorarios ou salarios sem aumento do imposto sobre renda. 3. Brs. Pop. Bem-estar, conforto: regalia» (AurelioI986) (Executivo «(Do ingl. executive) S. m. Diretor ou alto funcionario que atua ua area financeira, comercial , administrativa au tecnica de uma empresa)} (Aurelio 1986)

~3 a lexema esquema pade em cenos usos enquadrar-se neste ambito. mas parece tel' um valor mais abrangente e apontar como "estere6tipo" para 'processo simples, pouco claro mas livre de sobressaltos. para se atingir urn fim':

«as brasileiros sao 0 melhor do Brasil. Gente boa e pacifica. Nada conflituosa, descontrafda . •

Prefere 0 "esquema" ao enfrentamento, 0 ardil ao conflito (descendem dos portugueses . . . ). A parte a miseria extrema que leva muitos ao roubo. dao ate mostras de urn civismo surpreendente em muitas coisas.» (Fernando Veludo - Rio de Janeiro, Fugas, P,iblico,30.12.00)

.\4 Sistema aIem dos sememas que apresentamos. abrange outros sememas diferenciados segundo os dominios de aplicalfao: sistema solar, sistema respiratorio, sistema de caordenadas. sistema linguistico, etc. Veja-se uma defini\ao dada POl' Humberto Eco: «Entende-se par sistema todas as possibilidades proporeionadas por uma dada lingua natural» (P,iblico, 27.1.0 I)

)'; Clientelismo distingue-se de corporarivismo: pais 0 primeiro implica " liga't3o ideol6gica ou partidfu-ia" e 0 "beneficia concedido" e injusto. 0 segundo implica uma ligalffio meramente profissionai e nao pressupoe necessariamente "injustilfa" (<< Mau corporativismo e, sem duvida, o sacrificio do interesse gerai a interesses particulaTes, e a recusa em afastar do seio de urna institui'tao os que prevar.icam gravemente, e a recusa a abertura da profissao .. a novos membros, e a manllten~ao secreta dos codigos. dos procedimentos e das regras ... » (. Jose Miguel Judice - Corporativismo: 0 born e 0 mall . PLtblico. 2.1.01)

35

Revista de Letras n05

.16 «0 Estado nao pode deixar de fi scalizar, pi/ofar e controlar a realidade desportiva ,

portuguesa. E que urn discurso que de a sensa<;5.o de deixal' alldar, de urn possfvelnacional porreirismo. pode levar-nos a desconfian<;as quase gritames» (Femando Seara - 0 poder e 0

desporto. in A Bola. 2.2.0 I )[it. do aut or] . Fal.-se tambem do cin~elltismo dos politicos, tratando­se tambem aqui do "deixa ancial''' .

.H «Policia Judiciaria de Faro puxa tentaculos do "po lvo" do Toubo e de fal sifica<;ao de viaturas ... tern vindo a investigar os contomos de urn "poivo" a portuguesa da DGV - que levou it identifica<tao da meia centena de vitimas. agora acusadas pelo tribunal. Este caso nao esta apenas ligado a falsifica<;ao de cartas de condu<;ao. porque estende os sellS tentacuLos ao roubo, falsifica<;iio e importa,iio ilegal de veiculos» (Publico, 2. 2. 01)

38 «Tout comme les mythes, les proverbes sont des croyances collectives, et representent un mode de connaissance subjectif - sans distance entre Ie sujet et r objet - face it un mode de coruutissance objective qui coexiste parallelement au precedent. 11 s' agit dans les deuz cas de verite etemelles, immediate, et fondant sou vent souvent des pratiques exemplaires» (J.-Cl. Anscombre 2000: 26)

" Kuroda 1973: 88 '" Cfr. Kleiber 2000: 4 I. 4 1 Trata-se de urn ditado/proverbio mo<;ambicano - creio que originmo de uma das linguas

bantu do Norte -, em que a imagem do cabrito preso a uma arvore. come 0 que apanha nas imedia<;oes do tronco onde esta ligado. Dai. 0 pavo crioll a imagem de 0 "polftico", a pessoa ligada ao "poder". comer tudo 0 que estii a volta da ru-vore do poder. Louren<;o Lindonde

, (Nampula) fom eceu-me varias abona<;6es. que fornecem mesmo a defini <; ao de cabritismo; « E nesta ocasiao que os pais e encarregados de educa<;ao fazem contas it vida par causa das exigSncias cada vez mais subtis feitas pelos professores aos seus aiunos, numa manifesta<;ao de que 0 cabrito come onde esta amarrado» ( Notfcias, 6. 11 .97). «0 cabritislllo do Estado sabre o investimento da economia das empresas da Pais leva ao abismo parcial au total da sua produ<;iio» (TYM.l6.1.2001 )

«Pacheco prometeu ... encetar uma luta tenaz contra a corrup~ao . vulgannente conhecida por cabritismo.(. .. ) E convidou a popula<;ao a denunciar aqueles que praticam 0 cabritismo» (Savalla. 15. 12.200 I).

36

Revista de Letras n05

Bibliografia (DICIONAIliOS):

AULETE (F. J. Caldas Aulete) - Diccionario COl7temporaneo da Lingua Portugueza, Lisboa: Livr. de A. M. Pereira, s. d. [1913]

, AURELIO (Novo Dicionario Aurelio da Lingua Portuguesa), 9' ed. Rio de

Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. BENTO PEREIRA - Prosodia ill Vocabularium Bilillgue. Latinum. et Lusitallum,

Eborae, 1772 BLUTEAU, Rafael, refoIluado e acrescentado por Antonio de Moraes Silva -

Diccionario da Lingua Portugueza, 2 vols., Lisboa, 1789 BORBA, Francisco da Silva - Diciomirio Gramatical de Verbos do Portugues

Contemporiineo do Brasil, SP: UNESP, 1990 DLE = Dicionario General Ilustrado de la Lengua Espanola, Prologos de Don

Ramon Menendez Pidal y Don Samuel Gili Gaya, Barcelona: VOX, 1990 [foi 0 melhor diciomlrio para as defini<;6es que tanto sao vaJidas para 0 espanhol como para 0 portugues]

MENDES, Fernando - Diccionario da Lingua Portugueza, Lisboa: Joao Romano Tones, 1904

MORAES (Antonio de Moraes Silva)- Diccionario da Lingua Portugueza, Rio de Janeiro: Edit.- Empreza Litteraria Fluminense, 1889 (vol. I) e 1891 (vol.I1)

ROQUETTE, J. - L - Diccionario da Lingua Portugueza e Diccionario Poetico e de Epithetos, Pariz, 1858

REY, Alain - Le reveille-mots. Une saison d' election, Paris: Ed. du Seuil, 1996

Bibliografia (teorica): ALMEIDA, Elisete e MAILLARD, Michel- 0 Feminino nas Lfnguas, Culturas

e Literaturas, Centro METAGRAM, Madeira, 2000 ANSCOMBRE, J .-C!. 2000 - «Parole proverbiale et structures metriques»,

Langages, 139, 6-26 DES PORTE, A. e MARTIN-BERTHET, F. - «Stereotypes compares: noms

d'animaux en fran9ais eten espagno1», Cahiers de Lexicoiogie, 66, 1995: 115-135 ...

FISCHER, Gustave-Nicolas - Les concepts!ondamentaux en psychologie social, PUlis: Dunod, 1987

KLEmER, Georges - La semantique du prototype. Categories et sens lexical, Paris, PUF, 1990

KLEmER, G. 2000 - «Sur Ie sens dans 1es proverbes», Langages, 139,39-58 KURODA, S. Y. 1973 - <<I..e jugementcategorique et Ie jugement thetique: exemp1es

tires de la syntaxe japonaise», Lngages, 30, pp. 81-110 LEHMANN, Alise e MARTIN-BERTEHT, Fran90ise - Introduction a la

lexicologie. Semantique et l11orphologie, Paris, Dunod, 1998

37

Revista de Letras nOS

MARI1N, Robert - Inference, antonymie et paraphrase, Paris: Klincksieck, 1976 MARTIN, Robert - Pour une logique du sens, Paris, PUF, 1983 LIPPMANN, W. - Public Opinion, New York: Harcourt & Brace, 1922 POTTIER, Bernard - «Semantique et noemique», in: Annuario de estudios

filol6gicos, Universidad de Extramadura, 1980 PUTNAM, H. - «Is semantics possible?», in: Mind, Language and Reality,

Cambridge University Press, 1975, 132-152 (trad. Fr. - La Definition, Centres d'etudes du lexique, Paris, Larousse, 1990: 292-304) e «Signification, reference et stereotypes», in: Philosophie, n° 5, 1985: 21-44).

PUTNAM, H. 1975a - "The meaning of meaning", in Language, Mind, and Knowledge, K. Gunderson and G. Maxwell (eds.), vol., Minneapolis: University of Minnesota Press (Repr. 1987, in Mind, Language and ReaIit6y, Philosophocal Papers, voL 2, 215-271, Cambridge: Cambridge Univfersity Press

PUTNAM, H. - Represelllation et rea lite, Paris: Seuil, 1990 PUTNAM, H.- Le realisme a visage humain, Paris: Seuil, 1994 RASTIER, F. - Semantique interpretative, Paris: PUF, 1987 STANGOR, Charles G. - «Stereotyping and Stereotypes», in: The Blackwell

Encyclopedia of Social Psychology, ed. by Antony S. R. MANSTEAD and Miles HEWESTONE, Oxford: Basil Blackwell, 1995

VILELA, Mario - Estudos de lexicologia, Coimbra: Aimedina, 1994 VILELA, Mario - «0 seguro morreu de velho: contributo para uma abordagem

cognitiva», in Actas do I" Congresso Intemacional de linguistica Cognitiva, Mario Vilela eF:itima Silva (eds.), Fac. de Letras da UP, 1999,289-314

VILELA, Mario -<<MulticulturaIidade e tradu.;;ao no ensino de uma lingua estrangeira», in: VI 10rnadas de Tradu.;;ao. Tradw;;ao, discursos e saberes, Porto: Isai, 2000: 59-70

VILELA, Mario - «0 ensino da lingua (portuguesa) naencruzilhada das nonnas», in: Revista do GELNE. Grupo de Estudos Lingiiisticos do Nordeste, Anno 1, n02 (1999): 91-104

VILELA, Mario - «Estereotipo e os estereotipos na lingua portuguesa actuai», in Revista Galega de Filo!ox(a, 1,2000: 11-33

38

Revista de Lelras - UTAD

n"5.2000, pp.39-48

Revista de Letras n05

A Missiona~ao na raiz da difusao do Humanismo e das "Artes de Gramatica" - 0 Brasil de Anchieta

Amadeu Torres Universidade do Minho/u. Cat6lica POltuguesa

1. Esta epigrafe, suficiente a um primeiro relance, pOe em destaque dois factores que, parecendo naturalmente causas, sao na verdade efeitos de dois outros que os precederam ou os motivaram e se chamam Descobrimentos e Missionac;ao, 0 par verdadeiramente originante do par em questao, que deve considerar-se sirnplesmente originado. Isto sem se entrar em disquisic;6es peregrinas sobre se a sememica de «descobrir» tenl de pospor-se 11 de «achar» ou a de «ir ao encontro de», futilidades analiticas de urn final de secuIo em que certa hist6ria se comporta com excessive melindre quanta ao seu estatuto de ciencia em situac;ao num espac;o-tempo e coordenadas mentais epistemol6gica e helllleneuticamente indeslocaveis.

Alem disso, porque susceptivel de ambiguidade terminol6gica, acresce que o humanismo a que me reporto nao aponta de irnediato para 0 movimento renovador das letras cliissicas, com raizes pr6ximas em Dante, Petrarca, Lourenc;o Valla e outros, cujo esplendor iluminou a !tilia do Quattrocento e irradiou depois por toda a Europa. Este humanismo e coevo da Expansao ultramarina, mas nao causa dela. o humanismo que, tal como a gramaticogrnfia, estaheleceu pontes entre 0 dito velho Continente e os restantes e aquele que foi levado sobretudo pela missionac;ao e do qual a Gramtitica Latina l do P. Manuel Alvares, safda dos prelos na Lisboa de 1572 e hoje com bastante mais de 500 edic;6es em todo 0 mundo, ficou a ser acabado testemunho. Urn humanismo, enfim, em cuja apropriac;ao, desde a escola de La Laguna, em Tenerife, onde nascera em 1534 e na qual nao faltava 0 latim, ate as humanidades no coh~gio das Artes em Coimbra desde 1548 e na Casa do Noviciado da Companhia de Jesus, nao longe daquela entrou em 1551 , Jose de Anchieta2 se foi aperfeic;oando; e continuou a praticar, ao trocar a cidade do Mondego pela leccionac;ao na Baia e em Piratininga, humanismo esse, caldeado de saber e virtude, que a Ratio Studiorum3 de 1599 consagraria e cujas caracteristicas nao sen! ocioso aflorar, louvado que foi por altas figuras do pensamento, como Montaigne, Descartes, Bacon ou Goethe.

De facto, como ja noutra ocasiao acentuei, <<ua grande querela renascentista entre ciceronianos e eclecticos, desencadeada com 0 De hominibus doc/is dialogus de Paolo Cortesi em 1490 e prolongada para aMm da meia centUria de Quinhentos, emergem tres obras de outros tantos vultos eminentes cujo influxo nao s6 ajudaria a

39

Revista de Letras n05

superar a fac,<ao dos literatos fOllnalizantes, humanizando-a pelaintegra,<ao dapietas na latinitas, mas acabaria por tra"ar novos rumos pedagogic os de largo a\cance numa Europa religiosarnente em conflitos e interrogando-se, espiritualmente sobressaltada perante a descoberta de civiliza,<oes meio desconhecidas ou jamais sonhadas.

«Sao elas 0 Ciceronianus (1528) de Erasmo, 0 De disciplinis (1531) de Luis Vives e 0 De transitu helenismi ad Chistianismum (1535), de Guilhenne Bude. A primeira, ridiculizando 0 vezo imitativo dos tulianos obstinados, a -macaquea,<ao do Arpinate no dizer de Angelo Policiano, propunba 0 modelo de urn Cfcero cristiio, de estilo compOsito vivificado pela fe e nao alheado do adomo retorico; a segunda, censurando a corrup"ao das artes por contamina"oes dialecticas e 0

escrupulo daqueles que em seus escritos se abstinham zelosarnente de empregar tellnos inexistentes em Marco Tulio, alvitrava uma refollna geral dos estudos, de cunho erasmiano; a terceira, precedida do opusculo De Philologia (1532) em que o culto das letras fora interpretado como 0 atrio da filosofia e da teologia, explicava 'comment Ie couroIll1ement de la philologie c' est la coIll1aissance des verires etemelles, qui sont toutes contenues dans la doctrine du Christ' »4 .

o ciceronianismo, formalmente pagao - e ja noutro lado 0 sublinhei - recebe desta feita, atraves de urn triunviriato excepcional de paraninfos, urn apelido eclesial segundo a tipifica~ao preconizada pelo roterdames, enquanto por outro lado, e sem prejufzo de conteudo, a corrente nizzoliana ter"ava allnas por urn maior acrisolamento expressional, fixando-se numa posi,<ao «nem simplesmente ciceroniana nem simplesmente erasmica, antes aceitando daquela a imita~ao, agora equilibrada, e desta a originalidade criadora, nurna sintese de mimese-poiese que dando em parte razao a Erasmo, mais interpretativa que declaradamente, tambem em parte 0 intenta ultrapassar na pelfei~ao do estilo»5 .

Tal ec\ectismo, ou tulianismo moderado, privilegiando Cicero adentro de uma tematica perspectivada, cristianizada e lexicalmente aberta, vai escalar os seculos, assumido em especial pela Ratio Studiorul11 dos filhos de Loyola promulgada por circular de 8 de Janeiro de 1599, apos ter vindo a lume emNapoles, no ano anterior, na sua redac,<ao final.

Bastam breves excertos para 0 confirmar. Ou~a-se 0 que a mesma recomenda aos professores de Retorica: «0 estilo, embora admitida a comparticipa~ao dos mais cotados historiadores e poetas, deve adquirir-se quase exclusivamente a partir de Cicero»; e os de Humanidades: «Nas prelec"oes quotidianas, entre os oradores exponha-se Cicero quase em exc\usivo [ ... J; entre os poetas, principalmente VrrgHio»6 .

o humanismo inaciano e, porem, muito mais complexo. Ao espiritualismo, ao zelo e disponibilidade apost6licas aquem ou alem fronteiras da Europa, it militiincia esc\arecida da fe, a honra de arauto de uma Cristandade carecida de renova"iio e de missiona~ao so podia aspirar 0 candidato resolvido a avan~a.r nos caminhos

40

Revista de Letras n05 •

ingremes da sabedoria e da virtude. Epoca de disrurbios morais, religiosos, sociais, dominada por extraordimiria actividade intelectual, requeria inteligencias argutas e vontades decididas a regenerac;:ao da sociedade atraves da iluminac;:ao das inteligencias e modelac;:ao das almas.

Em recente encontro na Universidade de Cornillas algm:m se expressou nesta bela sfntese: «Ia pedagogia adaptable y dimimica de la Ratio pretendia unir virtud con letras, la vida con la ciencia y la conducta con el saber» 7 .

Na verdade, 0 nucleo desta nova familia queria-o Imicio de Loyola «constituido por homens verdadeiramente doutos» e resolutamente votados a espiritualidade e a santificac;:ao, como se Ie nas Constituil;oes e reaparece, pedagogicamente ordenado, na Ratio atque institutio studiorum, onde a organica da Universidade de Paris e Lovaina, as escolas dos Illuaos da Vida Comum, a Universidade de Estrasburgo sob a refonna de Joao Sturm, ao menos por algo coincidente, eo Concilio Tridentino deixaram trac;:os modelares8 .

No plano executivo e a luz destes ideais de urn humanismo espirituaimente cristocentrico e intelectualmente pujante, multiplicam-se rapidamente as casas de fOllnac;:ao e os colegios, que 0 labormissionano espalhara pelos Continente. Portugal e das primeiras nac;:6es a beneficiar, a partir de 1540, por convite oportuno de D. Joao III; e foi em Lisboa que em 5 de Janeiro de 1542, trocando a habitac;:ao em que haviam morado no Rossio pelo mosteiro de Santo Antiio, os Jesuftas entram de posse da primeira casa propria em todo 0 mundo, assim como, ao fundarem em Coimbra, em 1547, 0 Colegio de Jesus, este se tomou a escolaprinceps em absoluto do humanismo inaciano,ja que 0 colegio de Messina so abriria as suas portas urn ano depois.

Seguem-se em 155 I 0 CoJegio do Espfrito Santo em Evora, que em 1553 ja ministra aulas publicas e em I de Novembro de 1559 se transforma em Universidade, quatro anos depois da tomada de posse do Colegio das Artes coimbrao por parte da Companhia de Jesus, que em 1600, tres anos apos a morte de Anchieta,ja contava com 236 colegios distribuidos por todo 0 mundo e 8272 membros9 .

Pois e 0 mesmo Jose de Anchieta, urn desses membros mais ilustres que, autor tambem de poesias em portugues, castelhano, tupi e ate plurilingues, estabelece pioneirissimamente, entre Portugal e 0 Brasil, a ponte cultural de urn humanismo renascentistarevitalizado cujos pilares assentaram em dois poemas heroicos de notavel envergadura: 0 De gestis Mendi de Saa (1563, Coimbra; 1958 e 1970, Rio de Janeiro; 1984 e 1986, S. Paulo), em 3 cantos de 3.054 hexametros do gosto de Virgflio; e 0 De Beata Virgine Matre Dei Maria (1663, 1665, Lisboa; e mais 5 ou 6 vezes ate 1980, inclusive na traduc;:ao vemacula), em 5 cantos de 2.893 disticos elegiacos ao gosto de Ovidio IO .

41

Revista de Letras nOS

2. Mas a missionac;ao que os Descobrimentos Oliginaram lanc;ou, ainda por obra e grac;a de Anchieta, uma segunda ponte por sobre 0 Atlantico, a da gramaticografia, com 0 seu renomado compendio dedicado it lingua Tupi, desta feita dando inicio a um emprego erudito e contrastivo da lingua portuguesa como vefculo intercultural ll . Eo seu exemplol2 , e nao menos a consciencia mission ana geral, sob 0 impulso do apostolado, da necessidade da aprendizagem das linguas nativas, frutificaram de tal modo que dali a alguns anos se mUltiplicavam as gramaticas de OUtr05 idiomas indfgenas do Novo Mundo, meio obviamente eficaz de entrar em contacto com esses povos. Registou-o, num dos seus livros de viagens, 0 naturalista Alexandre de Humboldt (1769-1859), iIluao do lingulsta, quando observou que «as Ifnguas americanas tern uma estrutura tao afastada do latim que os jesultas. Que providenciaram com 0 maximo esmero a tudo 0 que pudesse favorecer os seus centros de fOllllac;ao missionana, introduziram, para uso dos nov os conversos, em vez do castelhano, algumas linguas fndias mais ricas, sistematizadas e difundidas» na Nova Espanha, geograficamente zebrada de plurilinguismo e pluriculturalismol3 .

Retomando as terras do Cruzeiro do Sui e ao «exemplo» de Anchieta, repare­se como outros Ihe seguiram na peugadal4 ,jesultas ou nao:

Fr. Boaventura de S. Antonio, Arte da lingua dos ArOlis, mss. (1697); id., Vocabulario do idiol1Ul Sacaca, mss. de 400 f6ls. (1697);

Fr. Joao de Jesus, Confessionario de lingua Arod, mss. (1718); id., Arte para os que principiam a lingua Arod, mss (1718); id., Vocabulario da lingua geral, mss. (1718);

P. Luis Vicencio Marniani, Arte de grammatica da lingua bra silica da na~am Kiriri [ ... ], missionario [Jesu{ta]nas aldeias da dita na~iio, Lisboa, Miguel Deslandes, 1699.

Se daqui passamos a idiomas africanos de Angola e Moc;ambique, os compendios grarnaticais continuam a aparecer:

P. Pedro Augusto Dias, Arle da lingua de Angola [ ... ], Lisboa, Miguel Deslandes, 1697;

P. Domingos Vieira Baiao, Elementos de gramatica Canguela. ldioma falado na regiiio do Cubango, provincia de Angola. Segundo os estudos ... do P. L. Lecomte. Coligidos e coordenados por ... , Lisboa, Centro de Est. Filol6gicos, sid. [210 pp, iL mapa] ;

P. LUIs Cancela, Elementos para 0 estudo do Kimbundo, Malange, C.S.SP., Missao Cat6lica, 1920;

Fr. Bernardo Maria de Cannecatim, Collec~iio de Observar;i5es grammalicais sobre a lingua bunda, ou angolense, a que se junta um dicciondrio abreviado da lingua congueza, ao qual acresce UI1Ul quarta columna que contem os lermos da lingua bunda identicos 011 similhantes a lingua congueza, Lisboa, Imprensa Regia, 1805;

42

Revista de Leu"Us nOS

que Roberto Nobili, (1577 -1656), jesufta italiano ao servis:o do Padroado portugues ,

na India, ministrou as primeiras bases, com 0 domfnio perfeito que alcans:ou do sanscrito, que viria a ser a chave desse comparatismo donde brotou, com Franz Bopp (1816) e outros, a Iingufsticva hist6rica dotada de estatuto de cientificidade. Sem 0 contributo de Nobili, ao qual se ajuntaram os de Sassetti e William Jones, nao conseguiria Frederico Schlegel essa pujante sfntese que intitulou Ueber die Sprache und die Weisheit der Indier (1808).

Quando Hervas y Panduro (1735-1809), jesufta espanhol exilado na Itilla, publicou os 6 vols. do seu Catalogo delle lingue conosciute e notizia delle loro affinitil e diversita (Cesena, 1784),0 ide610go frances Volney em seu Discours sur tilude philosophique des IGllgues, perante as amiIises e reflexoes daquele

, sobre cerca de 300 lfnguas da America, Europa e Asia, sente-se assaltado de viva admiras:ao em face de tao numerosos e variados materiais preparados pelos missionarios cuja riqueza de noyoes e factos linguisticos claramente louva, embora critique a sua posis:ao teo16gica quanta a confusao dos idiomas a partir de Babel.

Sob 0 influxo de Hervas y Panduro aparecem em BerIim, de 1908 a 1916, os 4 vols. do Mithridates de Johann Christoph Adelung (1732-1806), 0 ultimo dos quais por interven9ao de Johann Severin Vater. 0 seu subtftulo - oder allgemmeine Sprachenkunde sugere a aplicas:ao que Adelung faz a mais de 500 Ifnguas e dialectos exemplificados na tradus:ao do Pater Noster, com 0 objectiv~ de sublinhar ao contnirio de Panduro e outros eruditos, a unidade antropo16gica e linguistico-tipol6gica do Continente americana e dos idiomas em geral, teorias que, como observa acertadamente Gerda Hassler16 , nao iniciaram a elabora9ao de uma metodologia da lingufstica-hist6rico comparativa. «Esta fue elaborada a partir de las linguas indoeuropeas, mucho mas conocidas en su historia y variedad contemporanea. Pero la observaci6n de las lenguas del Nuevo Mundo contribuy6 a introducirun exotismo, no solamente te6rico sino empfrico en las teOlias lingufsticas. No sobrepasan la preparaci6n de una metodologfa comparativa que llega a ser hist6rica, pero Haman la atenci6n sobre problemas como universales linguisticos y particularidades tipoI6gicas». Enfim, duas colectaneas vastfssimas que nao entrando no paradigma da linguistica hist6rico-comparativa, como bern remata Gerda Hassler, prepararam a superas:ilo dos seus limites, provocando, ademais, 0 interesse por Iinguajares primitivos que, doutra forma, se encontravam votados ao esquecimento.

Eis 0 percurso a que nos conduziu a Arte de gramdtica da Lingua mais usada na costa do Brasil, que nao obstante empregar 0 portugues como idiom a veicular, apresenta de rnistura, talvez para abreviar explicas:6es, muitos tell nos latinos e ate exempIificas:6es rapidas. Seguindo de perto a gran1atica latina e decerto as portuguesas de Fernilo de Oliveira (1536) e Joilo de Barros (1540), nao olvida os contrastes ou divergencias, as 8 partes do discurso e 0 predominio do uso, visto nada estar escrito. Mas a «ratio» vai-lhe abrindo trilhos na floresta de formas,

44

Revista de Leu"Us nOS

que Roberto Nobili, (1577 -1656), jesufta italiano ao servis:o do Padroado portugues ,

na India, ministrou as primeiras bases, com 0 domfnio perfeito que alcans:ou do sanscrito, que viria a ser a chave desse comparatismo donde brotou, com Franz Bopp (1816) e outros, a Iingufsticva hist6rica dotada de estatuto de cientificidade. Sem 0 contributo de Nobili, ao qual se ajuntaram os de Sassetti e William Jones, nao conseguiria Frederico Schlegel essa pujante sfntese que intitulou Ueber die Sprache und die Weisheit der Indier (1808).

Quando Hervas y Panduro (1735-1809), jesufta espanhol exilado na Itilla, publicou os 6 vols. do seu Catalogo delle lingue conosciute e notizia delle loro affinitil e diversita (Cesena, 1784),0 ide610go frances Volney em seu Discours sur tilude philosophique des IGllgues, perante as amiIises e reflexoes daquele

, sobre cerca de 300 lfnguas da America, Europa e Asia, sente-se assaltado de viva admiras:ao em face de tao numerosos e variados materiais preparados pelos missionarios cuja riqueza de noyoes e factos linguisticos claramente louva, embora critique a sua posis:ao teo16gica quanta a confusao dos idiomas a partir de Babel.

Sob 0 influxo de Hervas y Panduro aparecem em BerIim, de 1908 a 1916, os 4 vols. do Mithridates de Johann Christoph Adelung (1732-1806), 0 ultimo dos quais por interven9ao de Johann Severin Vater. 0 seu subtftulo - oder allgemmeine Sprachenkunde sugere a aplicas:ao que Adelung faz a mais de 500 Ifnguas e dialectos exemplificados na tradus:ao do Pater Noster, com 0 objectiv~ de sublinhar ao contnirio de Panduro e outros eruditos, a unidade antropo16gica e linguistico-tipol6gica do Continente americana e dos idiomas em geral, teorias que, como observa acertadamente Gerda Hassler16 , nao iniciaram a elabora9ao de uma metodologia da lingufstica-hist6rico comparativa. «Esta fue elaborada a partir de las linguas indoeuropeas, mucho mas conocidas en su historia y variedad contemporanea. Pero la observaci6n de las lenguas del Nuevo Mundo contribuy6 a introducirun exotismo, no solamente te6rico sino empfrico en las teOlias lingufsticas. No sobrepasan la preparaci6n de una metodologfa comparativa que llega a ser hist6rica, pero Haman la atenci6n sobre problemas como universales linguisticos y particularidades tipoI6gicas». Enfim, duas colectaneas vastfssimas que nao entrando no paradigma da linguistica hist6rico-comparativa, como bern remata Gerda Hassler, prepararam a superas:ilo dos seus limites, provocando, ademais, 0 interesse por Iinguajares primitivos que, doutra forma, se encontravam votados ao esquecimento.

Eis 0 percurso a que nos conduziu a Arte de gramdtica da Lingua mais usada na costa do Brasil, que nao obstante empregar 0 portugues como idiom a veicular, apresenta de rnistura, talvez para abreviar explicas:6es, muitos tell nos latinos e ate exempIificas:6es rapidas. Seguindo de perto a gran1atica latina e decerto as portuguesas de Fernilo de Oliveira (1536) e Joilo de Barros (1540), nao olvida os contrastes ou divergencias, as 8 partes do discurso e 0 predominio do uso, visto nada estar escrito. Mas a «ratio» vai-lhe abrindo trilhos na floresta de formas,

44

Revista de Letras n05

contetidos e expressoes. A laia de epifonema, nao resisto a transcrever 0 comentario de Francisco

Gonz:ilez Luis, da Urtiversidade de La Laguna, telTa natal de Anchleta. Apesar de ter visto «en la lengua de los indios demasiado latin, pero no mas que cualquier otro gramatico de su epoca, resulta evidente tambien que con tal descripci6n del tupf su contribuci6n aI patrimortio cultural de la humartidad est-i fuera de dudas, incluso para quienes,llevados por ciertos recelos ante semejantes obras de reJigiosos y misioneros, califican estas gramaticas de artificiales y de no reflejar el pensamiento y la culrura indfgenas. Por el contrario, el material que ofrece el arte anchletana del tupf se muestra tan genuino y autentico que no podrfan superarlo rti siquiera los metodos Jingufsticos modernos 0 los recursos actuales. Su Gramatica sin rtingtin tipo de planteamientos teoricos responde a las exigencias pedag6gicas y didacticas requeridas e trata de describir simplemente las reglas lingufsticas a partir del uso cotidiano de la lengua indfgena. Sus principaJes meritos residen precisamente en haberse convertido en el primero y eficaz instrumento de aprendizaje de la lengua india y en haber iniciado la tradici6n gramatical de uno de los mas importantes grupos lingtiisticos de America del Sur,la del Tupi-guararti» 17

45

Revista de Letras n05

NOT AS

1 Cfr. Emilio Springhetti, «Storia e fortuna della Gramatica di Emmanuele Alvares, S. J.». in Humanilas, Faculdade de Letras, Coimbra, XIIJ-XN, 1961-62, pp. 283-304; Amadeu Torres, Gramdtica e Linguistica, Faculdade de Filosofia da Universidade Cat61ica Portuguesa, Braga, 1998, pp. 83-102.

2 Cfr. «El Beato Padre Jose de Anchieta, S. J. (1534-1597), poeta epico latino, apostol del Brasi]'., in Per{icil, X (12 I -127), Salamanca, Colegio San Estanislau, 1979, pp. 7-60 (estudo de Patricio de Fuentes y de Valbuena).

3 Cfr. Eusebio Gil (ed.), EI sislema educalivo de la Companhia de Jesus, la "Ratio Sludiorum ". Madrid, Universidad Pontificia de Comillas, 1992, passim; yd. tambemJose del Rey Fajardo, cit. na nt. 9.

4Cfr. Amaden Torres, GramLitica e lingulslica, cit., pp. 85-87; Jean Plattard, Guillaume BlIde el les origines de I' humanisme jralll;ais, Paris, 1923, p. 33; Marie-Madeleine de la Garanderie Chislianisme elielfres projanes, II, Paris. pp. 160 ss.

5 Cfr. Amadeu Torres. Noese e crise na epistologrqfia latina goisiana, II - Damiiio de G6is na mundividellcia do Renascimento, Paris, Centro Cultural Portugues, 1982, p . 125.

6 Cfr. Ratio atque institutio studiorum, Rorua, 1832; e Francisco Rodrigues, A jmmar;iio intelecluai do Jesuila, Porto, Livr. Magalhaes e Moniz, 1917, pp. 123-124, nt . I: «Stylus (quamquam probatissimi etiam historici et poetae delibantur) ex uno fere Cicerone desumendus esb>; « .. .In quotidianis praelectionibus explicetur ex oratoribus unus fere Cicero [ ... ]; ex poetis praecipue Vrrgilius».

7 Cfr. Carmen Labrador, «Estudio rust6rico-pedag6gico», in Eusebio Gil, o. c. na nt. 3, pp. 17-58. 8 Cfr. Francisco Rodrigues, o. C., pp. 9-1Oe 122. 9 Cfr. Jose del Rey Fajardo, S. J., «La implantaci6n del Ratio Studiorum en la Provincia del

Nuevo Reino de Granada», in Revista P0I1uguesa de Filosofia, LV (3), Braga, 1999, pp. 275-313.

10 Crr. Armando Cardoso, De gestis Mendi de Saa, IntrodU(;iio, versao e notas, Edi<;6es Loyola, Sao Paulo, 1986; id., Poerna da Bem-Aventurada Virgem Maria Mae de Deus, I-II, Siio Paulo, 1980.Em 1997, por ocasiao do IV centenano da morte do Beato Jose de Ancrueta, Paulo Roberto Pereira, prof. da Universidade Federal do Rio de Janeiro, alem do Caui/ago da Exposir;iio Comemorativa das obras daquele na Biblioteca Nacional, publicou nova edi<;ao fac-similada do De gestis Mendi de Saa, com Introdu~iio sua e Apresenta<;iio do academico Eduardo Portella, sob 0 patrocinio do Ministerio da Cultura.

II Cfr. Arte de gramcitica da L{nglla mais "soda no costa do Brasil, do P. Jose de Ancrueta, com Apresenta<;ao de Carlos Drummond e Aditarnentos de P. Armando Cardoso, S. J., Xl.° vol. das Obras Compielas, Edi<;6es Loyola, Sao Paulo, 1990.Esta 7'. edi<;ao .0 a melhor ate hoje saida dos prelos, nao s6 pela autoridade do apresentador como dos aditamentos do grande perito das obras ancruetanas, Armando Cardoso: a!em do fac-simile do texto original de 1595 e outros anexos, enriquecem-na uma leitura mais actualizada para os nao iniciados e urn indice analitico.

12 Repare-se que, embora apenas publicada em 1595 (Ant6nio de Mariz, Coimbra), a Granuitica de Ancrueta ja fazia de compendio nas aulas de lingua tupi, no Co!egio da Baia, em 1556; e quatro anos ap6s, 0 P. Luis da Gra tomava 0 seu estudo obrigat6rio, sendo ele mesmo professor da cadeira (vd. «Apresenta<;ao» de Carlos Drummond, o. c. na nt II, p. 9).

13 Cfr. Del Orinoco al Ama:.onas. Viaje a las regiones equinociales del Nuevo Continente. Barcelona, 1982, p. 97.

14 Cfr. Diogo Barbosa Machado. Bibliolheca Llisilana, 4 vols. na ed. de 1965-1967 da Atlfintida Editora, passim: Simao Cardoso, Historiogr~fia gramalicai (1500-1920), Porto. Fac. de

46

Revista de Letras n05

Letras. 1982. pp. 226-234: Telmo Verdelho.As origens da gromaticografia e do lexicografia latillo-porlllgllesas. Univ. deAveiro. INlC. 1995, pp. 375-377 e 509-512: Nazare do Ceu Braz da Fonseca, Historiografia Iingu(stica do seculo XVIl: as ullidades de relm;iio na produ~'iio

• gramatical portuguesa. Univ. de Evora tese de doutormnento [dactilografado1 2001, passim.

15 Cft'. Simao Cardoso. I. c. na nt. anterior, assim como Maria do Ceu Bras da Fonseca. 16 Cfr. " Las lenguas del Nuevo Mundo en las teorias linguisticas del siglo XVIII», in AClas del

Congreso Inrernaciol1al de Historiografia linguistica - Nebrija V Centellario. II, Universidad de Murcia, 1994, pp. 115-125.

17 efr. Francisco Gonzalez Luis. «La gramatica de la lengua tupf de Jose de Anchieta y su dependencia de la gramatica latina», inAclas cit. na nt. 16, pp. 10 1- 114.

47

Revista de Letras nOS

48

Revista de Letras n05

Re~rndeLe~-UTAJ)

n05. 2000, pp. 49 - 56

o tra~o distintivo "tenso", da perspectiva fonol6gica generativista, e sua aplica~o aos estudos do portugues dialectal

Rui Dias Guimaraes Universidade de TdlS-OS-Montes e Alto Douro

as estudus em/unologia apresentam alguma dificilldade em relapia ao porlugues dialectal. Conftmde-se muitas ve~es variante com fonema dialectal. A representa\'iio da varia{,ilo linguis/ica. e are de Olilms linguas como par exemplo 0 mirandh, sellle algum embarGf,;o quanlO ii cldssica ma1ri~ fo nalogiea do ponugues padriio. A perspectiva generativista (em praticamente resolvida 0 problema da represe1lla{,iio das cunsoan1es dia/eclais. Poderemos

representar algumas vogais dialectais do pOl1ugues com a introdu{'iia do 1rO(;0 distintivo [+/ - te"sol comum ao ingies da matri~ de Chamsl,y e Halle (1968). I

INTRODU<;:AO

o problema do estudo fonol6gico, considerando sobretudo a fonologia da corrente funcionalista, que radica em Trubetzkoy (1939) e se desenvolveu posteriollnente com Andre Martinet (1949, 1960) e cuja representa<;iio em Portugal tern em Jorge Morais Barbosa 0 seu expoente, com algumas inova<;6es introduzidas no Centro de Lingufstica da Universidade de Lisboa - provavelmente a radicarem em Lindley Cintra -, pode afinnar-se que torna posslvel, a nfvel da varia<;ao dialectal do Portugues, e da lingua mirandesa, realizar trabalbo de investiga<;iio de urn modo mais ou menos nonnalizado quanto a representa<;ao fonetica e fonol6gica.

Se quisennos, contudo, aplicar outras teorias ou correntes lingufsticas diferentes, nomeadanlente a fonologia da perspectiva generativista, tendo por base a c1assica matriz fonol6gica apresentada por Maria Helena Mira Mateus e a radicar em Chomsky e Halle (1968), 0 problema do estudo fonol6gico, ainda que praticamente eficaz quanta as consoantes, experimenta algumas dificuldades quanta as vogais dialectais.

49

Revista de Letras nOS

Iremos, por hipotese, considerar, dentro da matriz origimlria de Chomsky e Halle (1968) urn ou ontro tra~o distintivo que nos possibilite realizar trabalhos, dentro da perspecti va generativista, mas que inclua, por exemplo, os dialectos setentrionais, e, dentro deles, os dialectos transmontanos e alto-rninhotos e os dialectos baixo-minhotos-durienses-beir6es.

1. PORTUGUES PADRAO

A) TRA<;OS D1STINTIVOS ARTICULATORIOS (CHOMSKY E HALLE, 1968, adaptados ao portugues porM. H. MlRAMATEUS(perspectiva generativista), , Aplicavel ao portugues padriio.

MATRIZ FONOLOGICA DAS VOGAIS E SEMIVOGAIS '

• 1 e Ea=:>ou •

J W

sil:ibico + + + + + + + • -consonantico - • • • • • • • •

soante + + + + + + + + + alto + - - • • - + + + baixo • • + + + + • • -recuado - - • + + + + • + arredondado - • - • + + + • +

Os tra<;os incluidos na classica matriz fonologica por Maria Helena Mira Mateus (1974) demonstram aplicabilidade ao portugues padrao. Fieam, contudo, excluidas algumas vogais do ponugues dia1ectal ou do mirandes (nao variantes), sem possihilidade de representa~ao e classifica~ao.

B) TRA<;OS DISTINTIVOS ARTICULATORIOS DAS CONSOANTES (CHOMSKY E HALLE, 1968, adaptados ao portugues porM. H. MIRA MATEUS (perspectiva generativista), • Aplicavel ao portugues padriio parte do portugues dialectal.

MATRIZ DAS CONSOANTES OCLUSIVAS, AFRICADAS, FRICATIVAS E LiQUIDAS '

-pbtdkgfmnjlfvszsz f31ArR

soante • • • • • - • + + + • • • • • • • • • + + + anterior +++ + ++ • + + ++++ + + + • • ++ + + coronal • • - • - - • + + + • • + + + + ++ + - + •

recuado - • - - + + - • - • • • • • • • • • - • • + distribuido • - + + - • + +

50

Revista de Letras nOS

lateral

nasal vozeado estridente

-- - - -- --++---------+++ - + - + - + - + + +- + -+ - + + + ++ ++ - -- ---+ - --++++++++- ---

2. PORTUGuES PADRAO E DIALECTAL

A) TRACOS DISTINTIYOS ARTICULATORIOS DA S YOGAIS (CHOMSKY E HALLE, 1968) adaptados ao portugues por M. H. MIRA MA TEUS (1974) acrescentada do tra~o ''tenso'' retirado

por nos da matriz originaria (CHOMSKY E HALLE, 1968). Aplicavel ao ponugues padrao pane

do portugues dialectal 6 •

APLICAYEL AO PORTUGUES PADRAO E D1ALECTOS TRANSMONTANOS E ALTO MINHOTOS

(CHOMSKY E HALLE. 1968 com 0 tra~o "tenso")

MATRIZ DAS YOGA IS E SEMIYOGAIS (OU SEMICONSOANTES) DO PORTUGUES PADRAO E DIALECTAL

• • •

1 t ee i3EaaCX:Jooo •• u u .

u J W

c c

sil:ibico + + + + + + + + + + + + + + + + - -consonantico - - - - - - - - - - - - - - - - - -soante + + + + + + + + + + + + + + + + + + alto + + - - + - - - - - - - - + + + + + baixo - - - + - + + + - + + - - - - - - -recuado - + - - + - + ++ + + + + + + + - + arredondado - - - - - - - - - + + + + + + + - + ., tenso - + - + - - + - - + - + + + - - -nasal

51

Revista de Letras nOS

B) TRAC;:OS DISTlNTlVOS ARTICULATORIOS DAS CONSOANTES (CHOMSKY E HALLE. 1968)

adaptados 30 portugues porM. H. MlRAMATEUS (perspectiv3 generativista) 7 . Aplicavel ao

portugues padrao e parte do portugues dialectal.

MATRIZ DAS CONSOANTES OCLUSIVAS. AFRICADAS. FRICATIVAS E LiQUIDAS

- -pbtdkgfmnjlfvszsz f3 3 IArR

----------_._.,-------

soante • • • • • • • + + + • • • • • • • • • + ++ + anterior +++ + • • • + + • + + + + + + • • • + • + •

coronal • · + + • • + • + • • • + + + + + + + + • + •

recuado • • • • + + • • • • • • • • • • • • • • • • + distribuido • • + + • • + + •

lateral • • • • • • • + + • •

nasal • • • • • • • + + + vozeado • + • + • + • + + + . + • + • + • + + + + ++ estridente • • • • • • + • • • ++ + + + + +++ • • • •

52

Revista de Letras nOS

CONCLUSOES

Tendo em aten~ao exclusivamente a perspectiva fono16gica generativista, e recorrendo a fame originma dos tra~os distintivos definidos fundamentalmente em tennos articulat6rios que descrevem propriedades acusticas ao nivel segmental. baseando-nos em Sound Pattern of Eng/ish. Chomsky e Halle (1968) e tendo em atenc;iio a sua aplica<;iio ao portugues em Aspectos da Fonologia Portuguesa, M;l. H. Mira Mateus (1974) e conceitos explanados em Fonelica Fon%gia e MO/f%gio do Portllgues. M' H. Mira Mateus (1990), tambem baseados em Chomsky e Halle (1968), podemos concluir que, recorrendo it matriz originaria de Chomsky e Halle (1968) e possivel retirar dessa mattiz, il semelban<;a de outros tra,os distintivos, mais urn

tra<;o para as vogais, 0 trac;o [+1- tenso]. Deste modo,julgamos IOmar possivel representar mais vogais do portugues dialectal, nomeadamente dos dialectos transmontanos e alto-minhotos e do mirandes. Nas consoantes, basta s6 inc1uir a consoante africada dorsopalatal sonora como [ + vOleada) e [+ estridente) para que representar algumas zonas mais arcaicas do portugues europeu e da vanante brasileira. Nas vogais, a variedade dialectal do ingles tambem recorre ao

trac;o [+1- tenso].

as tra<;os da matriz fonol6gica das consoantes sao mais abrangentes e possibilitam, para aJem do portugues padriio. registar tarnbem fonemas do portugues dialectal. nomeadamente as consoantes africadas surdas e as fricativas sonoras tambem caracteristicas do galego e dos dialectos transmontanos e alto-minhotos. 0 problema persiste em rela<;ao a africada dorsopalatal sonora, que radica ja no portugues antigo e que algumas regi6es mantem (ainda que muito rara no portugues europeu) mas que 0 Brasil mantem em variar;ao diat6pica. Mira Mateus considera­a variante desprovida de valor fonol6gico por resultar de uma palataliza<;ao antes de [i) .

Por outro lado, a representa<;3.o fonetica e fonol6gica da perspectiva funcionalista, que radica em Trubetzkoy (1939) com posteIiores desenvolvimentos em Andre Martinet (1949, 1960) e Jorge Morais Barbosa (1965) quanto a tres graus de abertura das vogais, e tam bern adapta\oes realizadas no Centro de Linguistica da Universidade de Lisboa representa 0

portugues padriio e 0 portugues dialectal, tendo em aten~ao a arquitectura Iinguistica do diassislema portugues, incluindo tambem a coexistencia de sistemas na dinanuca da dialectica unidade/variedade das Iinguas vivas.

Por estas razoes apresentadas, estamos em crer que seria vantajoso incluir 0 tra~o [+1 - tenso] para as vogais e considerar a consoante africada dorsopalataI sonora como [+ vozeada]

e [+ estIidente). tendo em aten<;iio a realiza,iio de trabalhos fonetico-fonol6gicos na area dos dialectos transmontanos e alto-minhotos. ou mesmo areas diferentes. possibilitando mai s abertura a trabalhos de varia'Jao lingufstica. segundo a perspectiva te6rica generativista. confrontando-a com a funcionalista, partindo do concreto para 0 abstracto. da realidade exislente de vanos particulares para a generalizar;ao, tendo sempre em linha de conta 0 diassistema da lingua portuguesa. Qutra perspectiva seria a de estabelecer regras fono16gicas derivacionais para 0 portugues dialectal.

53

Revista de Letras n(lS

NOTAS

I Para 0 tenno "fonema", a terrninologia do generativista apHca "segmento·'. Usamos ambos para melhor entendimento. reconhecendo a tenninoiogia de cada corrente linguistica. ~ Tra~os distintivos definidod fundamentalmente em telIIlOS articulat6rios que descrevem propriedades acusticas ao nivel segmental. Baseado em Sound Pa1tem of English, Chomsky e Halle (1968) e Aspectos de Fon%gia Portuguesa de M' Helena Mira Mateus (1974) . .1 MIRA MATEUS, M' H., FOlletica, Falla/agio e Morf%gia do Portugues, Lisboa. Universidade Aberta, 1990, p. 328. " Tra<ros distintivos definidos fundamental mente em termos articulat6rios que descrevem propriedades acusticas ao nivel segmental. Baseado em Sound Pattern of English, Chomsky e Halle (1968) eAspectos do Fon%gio Portl/gllesa, M' H. Mira Mateus (1974). 5 Tra~os distintivos definidos fundamentalmente em termos articulat6rios que descrevem propriedades aeustieas a mvel segmental. Baseado em Sound Pettem of English, Chomsky e Halle (1968) e Aspeclos de Fon%gia Portuguesa. Maria Helena Mira Mateus (1974)

' Retiramos de Chomsky e Halle (1968) 0 tra<;o "tenso" [ +/-tenso 1 que aereseent:irnos, com a devida venia, a proposta de Maria Helena Mira Mateus (1974). Este tra<;o e relativo aos

movimentos suplementares. as sons das vogais [ + tens ] sao produzidos mms nitidos, precisos, distintos e mais breves ou menos relax ados. Implicam um esfor~o muscular maior do que para outras vogais. Toma-se possivel c1assificar algumas vogais de outros dialectos (au variantes) portugueses para alem do dialecto paddio. Acrescentamos a consoante africada dorsopalatal sonora caracteristica de zonas geolinguisticas brasileiras.

1 Maria Helena Mira Mateus, op. cit., p. 342, em rela<;iio as afrieadas sonoras [tfl e [d3l variantes dialectais sobretudo para 0 portugues do Brasil, considera que nao e necessario representa-las fonologicamente.

54

Revista de Letras nOS . , RE:FERENOASBffiUOGRAFlCAS

BARBOSA, Jorge Morais, lntrodw;iio a Fonetica e MOifologia do Portugues, Coimbra, Almedina, 1994.

, - Etudes de phonologie portuguaise, Lisboa, Junta de Investiga<;iio do ,

Ultramar - Centro de Estudos Politicos e Sociais, 1965 (2' ed.) Evora, Universidade, 1983.

CHOMSKY, N. e M. HALLE, The Sound Pettern of English, New York Harper Row, 1968. COSERIU, E., Lecciones de Linguistica Generale, Madrid, Gredos, 1986 (I' ed.: Torino, 1973). DELGADO MARTINS, M. R., Ouvir Faiar: Introdu ,iio a Fonerica do Portugues, Lisboa, Carrrinho, 1988. FARIA, I.; E. PEDRO, I. DUARTE, C. GOUVEIA, bUrodu,iio a Lingu(stica Gerai e Portuguesa,

Lisboa, Caminho, 1996. JAKOB SON., Essais de Linguistique Generaie, Paris, Ed. Minuit, 1963. MARTINET, A., Elements de Linguistique Generale, Pmis,Armand Colin, 1960. MATEUS, M. H. M., Aspectos da Fonoiogia Portuguesa, Lisboa, Centro de Estudos Filol6gicos, 1975 (2' ed. aumentada, Lisboa, INIC, 1982).

- FOlUitica, Fonologia e MOifologia do Portugues, Lisboa, Universidade Aberta, 1990. MOUTINHO, Lurdes de Castro, Uma Introdu,iio ao Estudo da Fonetica e Fonologia do Portugues, Lisboa, Phitano Editora, 2000. RIO-TORTO, Gra<;a Maria, Fonetica, Fonologia e Moifologia do Portugues, Coimbra, Ed. Colibri, 1998. TRUBETZKOY, N. S., «Grundzuge der Phonologie» in Travaux du Cercle Linguistique de Prague, 7, Praga, 1939 (trad. francesa: Principes de Phol1ologie, Paris, Klincksieck, 1949).

55

Revista de Letras nOS

56

Revista de Letras· UTAD nOS. 2{)()(), pp. 57 - 68

Revista de Letras n05

Language and Time as a Narrative Dimension , in Alvaro Cardoso Gomes's Os Rios IlIItmeraveis

... y soiie que ell ofro estado I1U1S lisonjero me vi. Calderon, La vida es sueiio

by Milton M, Azevedo University of California, Berkeley

In 1500 a Portuguese fleet crossed the Atlantic and arrived in Brazil. l Alvaro Cardoso Gomes's novel, Os Rios inwneraveis (Rio de Janeiro, Topbooks, 1997) contributes to the celebrations and countercelebrations of the fifth centennial of that deed with a pungent bird's eye view of a sample of the events that shaped Brazil's history from 1500 to 1964.2 Rios is a book of books: works from Brazilian and international literature provide inspiration for its nine sections, appropriately called Livros, each consisting of four titled sections, totalling thirty-six units in which language and time are skillfully handled to create a continuous narrative}

The significance of time as an organizing element is underscored by the novel's chronological structure, in which nine historic moments provide a representative view of the development of Brazil's ethnic composition and social relations. The title's reference to rivers foreshadows the design of a finely structured roman fleuve in which each unit is related to the others by a ubiquitous protagonist who first appears in Livro i, "A Terra de Vera Cruz", as a Portuguese exile named Fernao Matias Ribeiro (a surname meaning 'stream' or 'creek' and thus evocative of the title). Sent to Brazil in 1500 to serve out an exile sentence, he reappears with a slightly modified name in different places and times, by means of a series of metamorphoses which metaphorically stand for the cultural changes that have shaped Brazil through five centuries. Although, as the author points out, "each metamorphosis ... has a meaning of its own" ("Posfacio," 425), metamorphosis functions as a device that aIlows the protagonist to take up a variety of roles without demanding undue suspension of disbelief from the reader. The passing of time is handled by subtle transitions such as fade-out techniques or dream-like passages which facilitate changing scenarios and connecting one Livro to another, thus validating metamorphosis as a mechanism for moving the action along.

Whilst the novel's chronological design handles time as an organizing device, temporal perspective is reinforced as language is adjusted to evoke the diction of each period. An archaic tone is set in Livro I, which highlights the relations between Portuguese colonizers, the original inhabitants, and the environment. At the outset,

57

Revista de Letras n05

the fleet chaplain, Father Gon<,;alo de Sousa, who is also Ferullo Ribeiro's uncle, narrates the progress of the expedition in a manner reminiscent of a sixteenth century chronicler:

... .. leixamos Beh!m com uma esquadra de 13 caravelas .. . pais queria 0

Senhor D. Manuel que a quanto antes tornassem os portugueses posse das terras ... que tambem nenhuma na<;ao da Europa houvera entao descoberto . . . . (21).

This sty Ie includes a variety of archaic words and constructions, such as leixar, abantesma, houvera descoberto, mui calmas, assaz nos agradou, polo miUdo, a galinha (which in contemporary Portuguese would be deixar,fantasma, tivesse descoberto, muito calmas, muito nos agradou, pelo mil/do, uma galinha). The evocation of archaic diction is further reinforced when Ferullo Ribeiro carries out the mission assigned to him by Father Gon<,;alo as part of his penalty. Rather than build a fort or town, he has been ordered perhaps as an allegory of the paperwork generated by colonial bureaucracies to write a report about the new land's fauna and flora:

"Esta nova terra . .. e mw vasta e fremosa, e os prodigios que aqui se encontram hao-de encantar it maravilha a Nosso Senhor, EI-Rei D. Manuel. ... Quanto it flora, foi-me dado ver a mor de quantas arvores existe na Terra . .. . Tnda das plantas uteis desta terra, ha que referir a ybirajuba. a ybiracunhii e a ybiracGl'G . . . . A ybiracunhii assi a chamam, porque se assemelha em tudo a mulher na pnitica do arnor. e dela se servem as gentios quando em casa tern as mulheres co 'as regras ou em estado de prenhez." (44-47).

Again, archaisms such as mui,fremosa, mar, inda, assim, co' as (for muito, formosa, maiOl; ainda, assim, com as) keep up the illusion of an old-fashioned diction. In addition, strategically located indigenous terms evoke the perspective of a sixteenth-century writer trying to come to terms with the novelty around him. There is also graphic symbolism in the old-fashioned spelling of indigenous words that are nowadays part of the lexicon of Brazilian Portuguese, such as iwera pemma (standard ivirapema < Tupy iN rei pema, 'woven stick'), cauym (st. cauim < Tupy ka 'wi, 'fermented drink'), or mussurana (st. mur;:urana 'rope for tying prisoners' < Tupy mw;u'rana, 'like the mur;:u' or a fresh water eel).4 Such graphic representation defarniliarizes those words and helps the reader recapture the sense of novelty they likely held for sixteenth-century readers dazzled by words borrowed from Indian languages.

By contrast, the Indians' speech is crafted in a dictionreminiscent of romantic novels (such as Jose deAlencar's novel 0 Guarani), thus endowing the characters with a lofty literary dignity,5 as in the following dialogue between Fernao Ribeiro, who now calls himselfCaguara, and Nheengatanduera, a warrior he has (not without deceit) captured and is about to kill:

58

Revista de Letras nOS

-Nheengatanduera tern que mOlTer e ser comido por gran guerreiro. Do contnirio, sua alma sera por todo 0 sempre infeliz. - Sou Caguara, gran guerreiro maracaja. Vend-te e hei de comer-te pera vingar osmeus. (64)

Having killed his prisoner, Ribeiro has his new Indian identity confinned by Caiuby, a chieftain who renames him Jaguarussu ('Big Tiger'):

Findo 0 banquete. Caiuby veio te mi e, co· 0 dente de a besta. riscou-me a pele com tal forcra que leixou a ferida e disse-me: ~Caguara olio e mais Caguara. Depois de matar 0 guerreiro Nheeogatanduera,

e Jaguarassu. (66)

The last paragraph of Livro I suggests we are moving into a kind of dreamland, as Ribeiro meets in the woods "a copia das mais fremosas donzelas jamais vistas polos olhos meus" (67) and is led into a magic lagoon: "levaram-me pera 0 fundo das aguas" (67). This event is reiterated in Livro II, 2, "A Lagoa dos Manatis", where he is transmuted into a manatee living ill"WU sonho dentro de outro sonho" (84), a kind of edenic lake bottom where he is haunted by premonitions of tragic times, "urn tempo de sangue, de trevas" (84). Contrary to J. C. Paes's assessment that "the mythical love of the manatee with the Indian woman, in Livro II ... may be seen as a kind of divertissement' ("Prefacio", 14), the manateee episode is indeed crucial to the novel's structure, as we will see further on.

As the narrative advances we realize an increasingly stronger element of parody which, far from being merely a source of humor, constitutes a powerful instrument of social criticism. In Livro IFemao Ribeiro initially appears as a willful young man endowed with a sense of honor, but as he adopts the ways of the Indians and joins them in war, he reveals himself as treacherous and mendacious. Was he already like that or has his adoption of native customs contributed to change him? Though the ruse he employed for capturing an Indian warrior suggests a less than pristine character, the individuals he successively metamorphoses into tum out to be increasingly reprehensible they are either gullible, or deceitful, or tyrannical, or pusillanimous, and their collective persona projects a deplorable image of the homo brasiliensis brought about by the colonization process.

Inspiration for Livro lIf, "Esplendor deAntalataquituxe", comes from the historic episode of Quilombo de Palmares, an escaped slaves' community that thrived in the Palmares region (between the present-day states of Pernambuco and Alagoas) from about 1590 to 1694, when it was destroyed by the colonial government. In this chapter Ribeiro reappears as Matias, a rebel slave leader who sadistically murders Dona Nhanha, the plantation owner he had seduced and held captive to his sexual prowess. He then leads his companions to a hamlet of runaway slaves named Antalataquituxe, seizes power, conquers other escaped slaves' villages, changes his name to Matulu, and has himself crowned king of the fantastic kingdom of

59

Revista de Letras n05

Antalataquituxe. Besides underscoring the Church's complicity with the powers that be, this narrative turn questions the myth of quilombos as utopian egalitarian communities, as Matias's contempt for his founer companions, now his subjects, soon becomes apparent:

... .. Matulu comec;ou por baixar decrelOS; num deles. proibia aos cjdadaos de Antalataquituxe andarem nus ou vestidos apenas de tangas e peles de animais; noutro, instituiu 0 Cristianismo como religiao oficial ... noutro, detenninou que a Coroa cobrasse impostos sobre mercadorias e mantivesse o monopolio da explorac;ao do oiro e pedras preciosas. De inicio, houve muitos protestos, e gropes revoltosos chegaram a tentar incendiar a Casa da Cobranc;a, mas, ao reagir severamente. mandando enforcar os sedi[ci]osos, Matulu, de pronto, restaurou a ordem." (149)

Parody intensifies in Livro IV, "Rebeliao em Vila Rica," which retells the histOlic events of the Inconjidencia Mineira, the ill-fated conspiracy to free Brazil from Portugal that took place in Minas Gerais around 17896 It becomes increasingly clear that whilst Ribeiro comes across in a negative light, other characters fare no better. Thus the unpractical intellectuals playing revolutionaries worry more about preserving ideological purity than debating crucial issues, as when, in reply to a proposal to discuss securing support from military units, a poet suggests that

.. . deverfamos por antes em discussao a questao da bandeira e das insignias da nova na,ao. 0 problema das corpora<;6es militares pode ser adiado para uma pr6ximareuniao. (181 )

Cognizant readers will notice the parallel between would-be revolutionaries, concerned with issues like flag design rather than strategy, and the behavior of the esquerdafestiva or "merry left" of the sixties and seventies, divided into antagonistic factions fighting each other over ideological purity.

The romanticism-inspired ideas cherished by Brazilian intelligentsia in the late nineteeth century provide the theme for Livlv V, "A Queda da Casa de Creek." In this parody of Edgar Allan Poe's "The Fall ofthe House of Usher", three law students and poets in Sao Paulo meet an enigmatic self-styled nobleman, Lord Mathias Creek, who invites them to supper in his lugubrious mansion. Though narrated with total seriousness by one of the students, the text contains clues that things are not quite what they seem. Thus, when Lord Creek offers his guests what appears to be an exotic drink, the narrator's wild imagination sees it as "algo vicioso, como 0 sono propiciado pelo l<iudano, a carne de mulheres acicatadas pela voltipia, e a cor, 0

sangue dos tisicos" (210). Later on, however, it is revealed the drink was merely ordinary sugar cane brandy dyed with currant juice ("aguardente ordinaria com groselha", 238). FUlthennore, despite his supposed education, Lord Creek cannot maintain a forn1al speech register and mixes second and third verb forms:

60

"Convido-vos a cearem comigo nesta sexta feira" (205): "Benvindos sejam ao solar dos Creek. cavalheiros . . .. Por favor. assentai-vos." (208)

Revista de Letras n05

Again we must differ fromJ. C. Paes's view ("Prefacio", 14) that "Lord Creek's prank with the Byronian young men in Sao Paulo ... may be seen as a kind of diveI1issemenf'. In fact, this jocular LivlV is a crucial element in Cardoso Gomes's critique of Brazilian intelligentsia, represented by student poets living out a bookish culture infO! med by uncritically borrowed European ideas. This trend, which neither began nor ended in the romantic period, was noticed in the 30's by French social scientist Claude Levi-Strauss, then a professor at the University of Sao Paulo's newly­created Faculdade de Filosofia, Ciencias e LeU'as:

Nos etudiants voulaient tout savoir; dans quelque domaine que ce rut. seule Ia theorie la plus recente leur semblait meriter d' etre retenue. BIases de lous Ies festins intellectuels du passe, qu'ils oe connaissaient d"ai11eurs que par oUI-dire puisqu'ils ne lisaient pas les oeuvres originales. ils conservaient un enthousiasme toujours disponible pour les plats nouveaux. . . . idees el doctrines n' offraient pas a leurs yeux un interet intrinseque. iI s les consideraient camme des instruments de prestige dont il fallait s' assurer la

primeur. (Tristes Tropiques. 86)

Livro VI, HE 0 sertao vai virar mar," focuses on the rebellion located in the region of Canudos in the northeastern state of Bahia (1893-1897),7 Ribeiro reappears as a mysterious civilian camp-follower who abjectly allows himself to be slapped around by Colonel Moreira Cesar, the comanding officer of the ill-fated third expedition against the rebels. Ribeiro disappears amidst the army's rout and reappears like a ghost in the hamlet of Canudos, where he rapes Santinha, the rebels' priestess­like virgin, and ultimately strangles Conselheiro, the rebellion leader. This is a serious Livro, with hardly a touch of comedy, in which blunt language recreates the pressures of combat,

. .. uma figura mirrada, montando a cavalo. comec;ou a distribuir pranchadas com 0 sabre, enquanto berra va:

-Seus cabroes! Filhos da puta ! Em ordem ! (258)

and the clipped diction of an interrogation evokes the tension of a court-martial: - Dificil explicar-lhe, Excelencia. - Intimo-o a explicar-se, Major Cunha Matos. 0 senhor esta diante dum Tribunal Militar' - Ouvia somente a urn certo Ribeiro. - Ribeiro?

- Sim, Excelencia. (263)

The twentieth century is introduced in Livro VII, "0 Filho do Cao", where the protagonist appears as Matias Fernando Ribeiro, alias Fernando Ciio (,Devil'), a leader of cangaceiros, the rural bandits of the Brazilian Northeast 8 The first section, "Urn liderrevolucionano", parodies the ideologically-inspired attempts of the sixties and seventies to glorify cangaceiros as revolutionaries with a social

• conscIence:

6 1

Revista de Leu'as n05

· .. sempre fora Matias bern detade inteleetualmente . ... em seus discursos . · . se eneontram eeos das leses de Thomas Morus sobre uma soeiedade baseada na comunhao de bens . .. . 0 rastilho inflamado de sua palavra ... frutificou nas ligas camponesas em AI.goas, Sergipe e norte da Bahia. (304-

305)

In the following section, "Lua Cheia," however, a mock interview with an old rehabilitated bandit, exposes cangaceiros as robbers and murderers who plundered not only the rich landowners but also everyone who had anything worth stealing:

A gente roubava de todo mundo. de rico. de remediade. S6 nao roubava de pobre porque nlio pagava a pena. Mas nunc. vi e le [Fernando Clio I e nem ninguem dar nada para os pobres. (309)

In Livro VIII, "A Nova Ordem," the protagonist turns into a high class prostitute named Fernanda Ribeiro, who climbs socially as the mistress of the supreme leader of the Alian,a Unionista Brasileira, a parody of the short-lived fascist A,iio Integralista Brasileira (1932-1937). The tone is downright facetious from beginning, with the official greeting Zane!, peifolmed with a raised right aull to the sound of clicking heels, mocking the Integralista greetingAnaue!. supposedly of indigenous origin, and patterned after fascist greetings then in vogue in Europe. As the high officials of the Alian,a Unionista plot in a whorehouse to take over the government, it becomes apparent that while some are concerned with sex and others with glory, few are actually willing to fight, let alone die for their cause. The supreme leader's main concern is Fernanda, who looms larger than life as his visions of power become entangled with lustful dreams:

· .. a multidao fica fora do Palacio. sempre gritando 'Lane! Zane!" .. .. 0 Chefe Supremo .. . se debnH;a sobre a deusa, a sua deusa ... e a possui. ele tambem urn deus, e 0 semen Ihe sai em eatadupas do penis, ganha a janela e banha a multidao que 0 colhe como se fosse 0 mana e agradece aos Ceus a dadi va, e o semen cobre toda a extensao da patna . .. (3 77)

The bitterest tableau comes in Livro IX. "Brasil Postal", set in 1964, where the protagonist reappears as Dr. Fernando Matias Ribeiro, an upper-middle class gentleman and non-practicing lawyer whose otherwise empty life revolves around collecting postcards through which he perceives the outside world. He devotes a large part of his time to his duties as chainnan of the Socied£Ule Brasileira do Cal1iio­Postal or SBCP, which is eventually challenged by a splinter group, the Sociedade do Cartiio Postal do Brasil or SCP do B, par'odying the Tweedledum-Tweedledee rivalry between the Partido Comunista Brasileiro (PCB) and its mirror-image, the Partido COl11unista do Brasil (PC do B). While the gentlemen discuss their postcard collections, the military coup that will usher in two decades of military dictatorship takes place outside Ribeiro's apm trnent, symbolically located on the then fashionable Avenida Sao Luis in downtown Sao Paulo. Toward the end of this Livro Ribeiro

62

Revista de Letras nOS

falls asleep, and as the scenario changes from a busy twentieth-century city to a primitive jungle, we start receding in time amidst an anachronistic medley of images that produce a stream of consciousness effect:

"Nao quero dormir ainda: prefiro gozar 0 instante de plenitude. que anula tempo e espa~o e que me remete para este oasis de sonho e fantasia; volto a sentir 0 frescor da brisa, 0 ar das montanhas, a gelidez de aguas, 0 perfume das flores que se mescla ao odor fulvo das feras. Rufdo de buzinas, luzes fluorescentes, urn aviao ganha as alluras, cortando ao meio 0 tope da nau que invade 0 porto e deixa urn rastro de espuma numa das avenidas da cidade. Mato ralo, cerrados, a campina, savanas, onde 0 olhar se perde, pasmm bois, e 0 sol invade a pupila das aves, as plantarroes de cafe, algodao, tlocos de paineira flutuando no ar. HOI1ensias. margaridas. roseirais, chor6es namorando lagos, taboas, vit6rias regias, a boca de umjacare dentro da qual desliza uma piroga com urn fndio tocando a inubia . .. . E as palpebras me pesam. embalado pela voz das coisas. Sonho, entao, que mergulho nas aguas desta lagoa, atraido por urn canto, e a imemorial distancia cola-se-me a came, como se eu fosse 0 desaguadouro de inumernveis rios. que vern correndo desde 0 infcio dos tempos. sou os rios, sou 0 tempo que se desmancha, sou ... "

- Femao! Femao! Abro os ollios e deparo Pero Lopes Gedeao. que me estende algumas

vestes. -Acord., Femao, que os nossos estao a chegar! (421 -422)

A semantic analysis of this passage along the lines of Chafe (1970) reveals the narrator's passivity either as the subject of non-action verbs that express a process over which he has no control (dormil; gozm; senti!; sonhar) or as the object of an action (distdncia co/a-se-me it carne). Actions, in turn, are performed by objects (aviiio ganha as alturas, deixa um rastro, invade 0 porto; desliza uma piroga; o sol invade), or animals (pastam bois), or other humans (U/11 indio tocando a intibia). A key word is the verb mergulhar, which although it may used to indicate a volitional action (diving), in this context (mergulho nas dguas desta lagoa) is more aptly interpreted as a passive process (sinking) which the narrator does not control, and which establishes a link with what was told in Livro I, section 2, "A Lagoa dos Manatis:"

'· ... urn dia e morre a luz e nascem as trevas onde 0 corpo obtuso penetra. e as borbulhas envolvem-no ... e lange. muito longe, ficam 0 azul. 0 farfalhar da copa dos coqueiros e anovidade sempre crescente do uni verso de rufdo e cores ... - um dia, mergulhei nas aguas desta lagoa ... " (81)

Our suspicions are thus confirmed: it was all a dream that began when Femiio Matias Ribeiro waded into the magical lagoon (67,81) the importance of which becomes apparent as it provides both the entry and exit points of the entire structure of Rios as an oneiric construct. Furthemlore, the manatee is symbolically crucial: as a mammal, it has something in common with humans, and by living in two worlds,

63

Revista de Letras n05

water and land, it bridges the world of the colonizer and that of the colonized. As Ribeiro is metamorphosed into a manatee he sheds his European identity to become a kind of tel1ius quid "minha forma infonne (nem peixe, nem animal de pelo", 82) - and later seduces Princess Mana, an Indian virgin. This seduction, like those celebrated in ancient mythology (Zeus disguising as a bull to seduce Europa, or as a swan to ravish Leda), yields a hybrid being, thus beginning a process of mestizaje that carries the seeds of destruction of Indian ethnicity.

Basic to the novel's structure is the adroit manipulation of an ample variety of registers, ranging from archaic epistolary prose to the hifalutin babble of a romantic poetaster to the intimate, cwming style of an ambitious woman of pleasure. In addition to such essentially written registers, there is the skillful handling of oral registers to convey a plausible impression of orality, which is one of the strongest features not only of R ios but also of other of Cardoso Gomes's works, notably 0 Sonho da Terra, analyzed elsewhere.9 This is notto say that the dialogues read as transcriptions of real life conversations, but rather that they sound plausible because they are carefully crafted literQlY representations of speech. Choice of the precise register and tenor for each speaker is complemented by apt mixing of the dialogue lines that create the effect of many voices sounding simultaneously. Instances of this technique are the depictions oftwo conspirators' meetings, namely the innefectual plotters of the Inconfidencia Mineira in "Libertas quae sera tamen" (Livro IV, 3) and the bumbling high officials of the AJianc;:a Unionista Brasileira in "Operac;:ao Delta" (Livro VIII, 3). In either case conversation fragments are mixed up throughout, creating an effect of confusion that both underscores the lack of a unified sense of purpose and challenges us to read closely to build an orderly sequence. Mixing dialogue lines is also used in "Legiao" (Livro VI, 2) to combine the tense atmosphere of two scenarios, namely a battlefield in which troops are routed while trying to storm Canudos, and the subsequent court martial in which a field officer is required to account for the army's defeat. Here again an unpredictable combination of voices compels the reader to unravel and connect the apparently disparate dialogue lines. This polyphonic construction, in a truly Bahktininan sense, places the reader in the middle of a conversation over which he has no control, and leads him to assume a participatory role to make sense out of apparent conversational chaos.

When Fernao Ribeiro wakes up he finds himself back in the sixteenth century, which he has actually never left. A year has gone by, his exile has ended, a Portuguese ship is about to cast anchor and he is due to return home. It was all a dream, and a hilarious one at that. And yet, laugh as we may at the blundering characters' antics, our viewpoint as readers is inevitably redefined as that of a dreamer who has been "imagining the future" (Lodge 1992, 135). As this happens, our perception of those five hundred years of Brazilian civilization perceived, through the many voices of Rios, acquires a prophetic, rather than historic outlook as it is restructured in an ironic perspective (Brait 1996,56-72). For not only are we aware that the Rios

64

Revista de Letras nOS

vision of five hundred years of Brazil's history is anything but enthusiastic, we also cannot fail to realize that, through manipulation of time and language, Rios has held in front of us a two-way mirror that combines the dreamer's view of the future with our pri vileged knowledge of the past. Since the scenarios depicted are historically real, we must take Rios as a bitterly critical intepretation of the past, a view that looms all the more disturbing as it implies a negative assessment of a colonization process that has entailed unreflective adoption of contradictory cultural values, Whilst Riosunfolds before us as a brilliant example of ridendwn castigat nwres exploited to the fullest, comparable to other contemporary masterpieces of satire,l 0 we become aware that such a disquieting parody is a mosaic of reality, and find little comfort in the realization that it reflects what our human condition has wrought.

65

Revista de Letras n05

NOTES

l. This article developed from of a paper presented at the Twenty-Third Annual Symposium on Portuguese Traditions at the Urtiversity of California, Los Angeles, on April 15 , 2000.

2. Alvaro Cardoso Gomess fiction works include the novels A Mum/lw do China (co-authored with Ricardo Daunt Neto; Sao Paulo, T. A. Queiroz, 1982), 0 SOllllo do Terra (Sao Paulo. L & R, 1982), Quodros do Paixao (Sao Paulo, Global, 1984), A Cidade Pl'Oibido (Sao Paulo. Modema, 1997); the volumes of stories A Teia de Aranha (Sao Paulo, Atica. 1978). 0 Sell/wrdos PO/'cos (Sao Paulo, Modema. 1979), Objero l1ao ldentiflcado (Sao Paulo, Com! Arte, 1981), and the volume of poems 0 Sereno Cristal (Sao Paulo. Delphos, 1981). Cardoso Gomes has also published twenty books and many scholarly articles of literary criticism. He retired as a Full Professor of Portuguese Literature at the Urtiversidade de Sao Paulo in 1999.

3. Cardoso Gomes's "Posjdcio" (pp. 425-428) characterizes the novel as "inspired by other books and even by movies, "which are also a kind of reality" and as "an involuntary parody of Virginia Woolf's Or/ando" (425).The analysis of the sources of RiDS - those mentioned in the "Posfacio" and others that can be glimpsed from the text- would be an interesting research topic. All translations of quoted passages are mine.

4. Etymologies are taken from Diciondrio Aurelio Eletrimico, version 2.6 (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira. 1996). based on Aurelio Buarque de Holanda Ferreira's Novo Dicionario da Lingua Portuguesa.

5. This practice contrasts with the pidginized speech used by Indian characters in Cardoso Gomess novel . 0 SOl1ho do Terra, Chapters 30-32.

6. Vila Rica (nowadays Ouro Preto) was the colortial capital of the Minas Gerais region. "Rebeliao em Vila Rica" is also the title of a movie from the 50's in which a student rebellion paraphrases the main events of the 1789 conspiracy.

7. The basic account of the Canudos rebellion is still Euclides da Cunha's Os Sertoes (critical •

edition by Walnice Nogueira GaMio, Sao Paulo: Editora Atica, 1998). Infom1ation on Canudos as well as on cangaceiros (see Note 8) may be found in the site www.openline.com.br/ fsatiro/quirino

8. As a social phenomenon. cQl1gaceiros date back to the late eighteenth-century and climaxed in the first three decades of the twentieth century. It ended in 1939 when the last major bandit, Cristiano Gomes da Silva, alias Corisco 'Lightrting·. was killed by a police patrol. See Chandler, Billy 1.. The Balldit King: Lampiao oj Bra~il (College Station, Texas A&M Urtiversity Press, 1978), Doria, Carlos Alberto, 0 Cangw;o (3d ed., Sao Paulo, Brasiliense. 1982), and Queiroz. Maria Isaura Pereira de, Histaria do Canga,o (4th ed. Sao Paulo: Global, 1986).

9. See Azevedo. Milton M., "Vernacular Speech as a Social Marker in Alvaro Cardoso Gomes' o Sonho do Terra." HomellQgem a Alexandrino Severino: Essays 011 the Portuguese Speaking World. Edited by Margo Milleret and Marshall C. Eakin. Austin. TX: Host Publications, 1993, 99-113.

10. There come to Irtind, among others, A David Lodge Trilogy: Changing Places, Small World, Nice Work, by David Lodge ( London, Penguin. 1993), and El amante bilingiie, by Juan Marse (Barcelona, Planeta, 1990).

66

Revista de Letras nOS

REFERENCES

Bahktin, Mikhail M. 1987. The Dialogic lmagilwtiol1. Translated by Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin, Texas: University of Texas Press.

Brait, Beth. 1996. Ironia em perspectiva polifonica. Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas.

Chafe, Wallace. 1970. Meaning and the Structure of Language. Chicago: The University of Chicago Press.

Lodge, David. 1992. The Art of Fiction. London and New York: Penguin Books. Levi-Strauss, Claude. 1955. Tristes tropiques. Paris: Union Generale d'Editions.

67

Revista de Letras -mAD nOS. 2000. pp. 69 - 92

Revista de Letras n05

Propuestas para una modelizacion del uso expresivo de la voz

, Angel Rodriguez Bravo.

Universidad Aut6noma de Barcelona.

Resumen:

En este articulo se pastula una clara separaci6n conceptual entre la infOlmaci6n oral que depende directamente del sistema de la lengua (expresi6n lingulstica). de la informaci6n que depende de los rasgos de la voz que se encabalgan al sistema ligiiistico para transmitir sensaciones expresivas primarias como emocion, energia, agradabilidad, desagradabilidad, caracteristicas fisicas del locutor.etc .(expresion fOlloestesica). Una vez fundamentada esta diferenciaci6n irucial. se desarrolla un modele teorico que explica el funcionamiento de la ex.presion fonoestesica. En este modele se revisan las bases fisiol6gicas y acusticas que explican la producci6n del sonido de Ia voz, se estudian los parametros acusticos fundamentaies del habla y. finalmente, se exponen los conceptos y las tecnicas que explican de que manera puede ejercer cualquier orador el control expresivo sabre el sanido de su vaz.

1.Introduccion

Rablar de la voz supone, sin duda, estar haciendo referencia al sistema expresivo mas cotidiano, completo y complejo que usa el ser humano. EI habla es un objeto de estudio del que ya se han ocupado disciplinas como la ret6rica, el arte dramatico, el canto, la fisiologia, la grarmitica 0 la lingilistica. No obstante, la aparici6n de los medios de comunicaci6n audiovisual y el reciente desarrollo de potentes instlUmentos infonmiticos, han abierto una perspectiva radicalmente nueva para el estudio del sOiudo de la voz.

Roy el sonido de una voz puede ser tratado como si fuese un objeto fisico: es posible empaquetarlo, transportarlo, venderlo, comprarlo y escucharlo una 0 mil veces con absoluta independencia del locutor. Y no solo eso, sino que los actuales conocimientos de acustica, deelectr6nica y de infonmitica permiten analizary manipulm'

69

Revista de Letras n05

el habla, llegando incluso a producirla y a comprenderla parcialmente en los modemos sistemas de sfntesis, 0 de reconocimiento. Pero, paradojicamente, este nuevo saber tambien ha puesto de manifiesto nuevas facetas de nuestra ignorancia sobre la expresion oral humana.

La sistematizacion chisica del habla basada en un alfabeto cerrado de signos que representan a las unidades sonoras mfnimas, que luego se articulan en dos ni veles (palabras y frases) para transportar informaciones semanticas complejas, se ha revelado como extremadamente insuficiente cuando se trata de instruir a una maquina para que esta sea capaz de hablar, 0 de reconocer el habla. Los reiterados intentos de procesar automaticarnente el discurso oral humane basados en el reconocirniento de un ntimero finito y simple de unidades sonoras han demostrado que la expresion oral es muchfsimo mas rica y compleja de 10 que se imagino en las primeras etapas de la lingiifstica aplicada. Programar una maquina para que reconozca y procese una serie detenninada de sonidos articulados no supone actualmente ningtin problema teenico insalvable si los sonidos pelluanecen estables. Es decir, si las fOI1nas sonoras que hemos ensefiado reconocer a la maquina vuelven a repetirse exactamente del mismo modo cada vez que han de ser reconocidas. Pero, logicarnente, el gran problema actual para el procesamiento automatico del habla natural es su variabilidad

• expreslva. Cualquiera de los sonidos simples 0 complejos que aprendemos a reconocer

y a articular para comunicamos oralmente se altera constantemente en funci6n del contexto, del estado emocional, de la situaci6n comunicativa y de las caracteristicas fisiologicas y culturales del locutor. Cualquier palabra simple, por ejemplo (CASAl, puede llegar a ser enunciada y reconocida por un hablante nonnal con un ntimero de presentaciones sonoras extremadamente extenso: dependiendo de las caracteristicas fisiol6gicas del locutor que la pronuncie, seglin ellocutor sea de una region geogr3fica u otra, dependiendo de la actitud emocional del locutor, segtin el contexte sonoro en el que se articule, en funcion de la voluntad descriptiva del locutor, etc. Para que todas estas posibilidades sonoras de la misma palabra puedan ser procesadas por un sistema infO! matico es imprescindible que sean fonnalizadas con precision. Asf, las recientes aplicaciones tecnologicas del habla nos esmn llevando a la necesidad de estudiar a que se deben, como se producen, que expresan y como son las variaciones sonoras de los discursos orales naturales; haciendonos redescubrir su extraordinaria riqueza expresiva y obligandonos a sistematizarla de un modo mucho mas concreto y preciso de 10 que habfamos hecho nunca los estudiosos de la comunicacion oral.

2. Expresion lingiiistica, expresion paralingilistica y expresion fonoestesica.

Puesto que queremos ocupamos del conocimiento y la fOllnalizaci6n de la variabilidad expresiva del habla, nuestra primera necesidad objetiva es delimitar con

70

Revista de Letras n05

la mayor precision posible este fenomeno. Es el caso de esas fonnas de hacer sonar una afilllladon que hacen que el

receptor entienda justamente 10 contrario de 10 que expresa el texto Iingiiistico. Como sabe ellector, resulta imposible transcribir a la escritura ese tipo de informaci6n sonora sin hacer alguna aclaracion respecto al modo en que ha side enunciada la frase. EI siguiente ejemplo Iiterario puede ilustrar a que nos referimos:

Armando la mir6 y Ie dijo - Mtirchate y haz 10 que quieras. Pero el sonido de su voz expresaba con c1aridad la decepci6n y el

profundo reproche a la idea de que ella se marchara.

La modema ingenieria dellenguaje ha puesto de manifiesto con gran c1aridad que en el habla se entrelazan,junto aI uso de la lengua, otros sistemas expresivos que enriquecen y complican cualquier comunicacion oral. La descripcion y el estudio de este fenomeno separando 10 estrictamente lingiifstico, es decir 10 que en el habla esta directamente vinculado aI texto escrito (Cfr. Saussure, 1980: 31-32) de todos aquellos fen6menos sonoros que expresan aspectos descriptivos, emocionales, 0 enfaticos que son independientes de la eslrUctura de la lengua, ha side tratado ya extensamente desde hace varias decadas. Los nombres que los distintos estudiosos han asignado a este tipo de rasgos sonoros es muy diverso; se les ha Ilamado: ''facto res ecto ­semdnticos" (Moles 1976: 236), "rasgosjonoeslilisticos" (Leon y Martin, 1969), "expresividad sonora" (Ullmann 1977: 122), "indiciosfisiognomicos" (Jakobson y Halle 1980: 26); "rasgos paralingiiisticos" (Lyons 1980: 61 ); "expresion jonoeslesica" (Rodriguez Bravo, 1989: 39), "paralenguaje" Poyatos (1994: 129-131). Las ultimas cOlTientes actuales estan optando por hablar de "rasgos lingiiisticos" para hacer referenda a los aspectos sonoros que no difieren de 10 escrito, de " rasgos paralingiiisticos" cuando se trata de infollllaciones sonoras no Iingiiisticas que afiaden informacion al texto escrito y de rasgos "extralingiifsticos" cuando nos referimos a los rasgos sonoras del habla que aportan infO! maci6n sobre el estado del locutor (efr. Speech and Emotion, 2000).

Actualmente, podemos afinnar que hay un acuerdo claro entre los estudiosos de la comunicaci6n oral sobre la necesidad de separar conceptualmente la infonnaci6n estrictamente Iingiifstica de otros sistemas expresivos de origen fisiol6gico, psicol6gico o cultural que se mezclan con la lengua hablada. No obstante, no existe todavia una postura comun entre los investigadores sobre cual es el modele id6neo para enfrentamos a esa fenomenologfa.

A mi modo de ver, es insuficiente hablar de rasgos paralingiiisticos y extralingii(sticos para proponer un modele que explique toda la expresividad sonora de la voz. Considero que es necesmio agrupar bajo un unico concepto a todos los

71

Revista de Letras nOS

rasgos no lingiifsticos que utilizamos en nuestra expresi6n oral, para enfrentarnos, despues, a este concepto estudiandolo como un sistema complejo en el que se articulan distintas funciones expresivas bien diferenciadas que interacruan con la infmmaci6n semantica de la lengua. Tampoco me parece adecuado tomar el concepto de lengua como eje unieo para acotar el dominio de este sistema expresivo. De hecho, la expresi6n "paralingiiistica" del ser humano es sin ninguna duda muy anterior ala existencia misma de la lengua, aunque se entrelace y se confunda con ella. La comunicaci6n de actitudes como el bienestar, la agresividad, el decaimiento 0 el rechazo utilizando los sonidos de la voz, no solo provienen de un estadio protolingiifstico, sino que ni siquiera es un patrimonio exclusivo del homo sapiens.

En consecuencia con estas reflexiones, prefiero adoptar para este sistema expresivo que comunica aspectos descriptivos, emocionales 0 enfaticos mediante rasgos sonoros la denominaci6n de expresi6n fonoestesica. Definiendo expresi6n

fonoestesica como la expresividad sonora transmitida mediante los rasgos de la voz que comunican acusticamente informaci6n sobre el gesto, la actitud, el estado emocional, el caracter, el aspecto fisico, y el contexto de un emisor; 0 bien sobre la forma, el tamano, la textura, el tipo de movimiento, etc., de aquello que describe oralmente el emisor. Estos rasgos sonoros no pertenecen a las fm mas Iexicas ni a las founas gramaticales, ni son tampoco utiles para identificar fonemas 0 diferenciar unas estructuras lingiifsticas de otras (Cfr. Rodriguez Bravo, 1989: 32-47).

El vocablo "fonoestesica" nos parece adecuado para nombrar este tipo de expresi6n sonora, en tanto que recoge en una sola palabra dos conceptos fundamentales que la describen con exactitud: la raiz "fono" proveniente del griego "PHONEO", que significa emitir la voz; y la raiz "estes" del griego "AISTHESIS", que expresa: "sensaci6n" 0 "tener la percepci6n de". En suma, al nombrar la expresi6n fonoestesica estamos hablando de la capacidad para expresar y percibir sensaciones a traves del sonido de la voz en su estadio mas basico y primario.

Es importante senalar aquf que el camcter signico de la expresi6n fonoestesica es claramente distinto del de la expresi6n lingilistica. La expresi6n fonoestesica utiliza los sonidos de la voz como founas perceptibles vinculadas ffsicamente a algun fen6meno objetivo del que emana su sentido. Es decir, la informaci6n que transmite la expresi6n fonoestesica proviene de founas sonoras motivadas que acruan para el receptor como fndices de la realidad misma (Cfr. Peirce, 1987). Es el caso, por ejemplo, delreconocimiento de la rabia en un orador porque siempre que un hablante experimenta esa emocion aumenta la intensidad de la voz, hace duros los ataques consonanticos, aumenta la velocidad de locuci6n y reduce la duraci6n de las pausas y la de los sonidos vocalicos (Cfr. Rodriguez Bravo y Cols.: 1999) Contrariamente, en la expresi6n Iingiifstica utilizamos las estructuras sonoras de la voz como fonnas elegidas arbitrariamente para ser asociadas a un senti do deteuninado (Cfr. Saussure, 1980). Es 10 que ocurre, por ejemplo, cuando solicitamos cualquier objeto haciendo sonar su nombre. Cuando decimos, pongamos por caso: "alc6nzame el cuchillo".

72

Revista de Letras nOS

En este tipo de situaciones no existe ninguna vinculacion ffsica directa entre el sonido de la voz del orador y aquello que se esta comunicando al oyente. EI sonido de la palabra "clichillo" ni tiene ningtin tipo de vinculacion acustica directa con el objeto cortante en cuestion. En cambio, el sonido de la rabia sf que depende directamente del estado psicologico y de la fisiologfa del aparato fonador de quien habla. 0 sea, existe una conexi on ffsico-acustica directa entre la fuente que produce el sonido, en este caso el propio orador, y la informacion que un oyente es capaz de obtener de esa fuente.

Podrfa ocumr, tambien, que quien pide el cuchillo este furioso. En ese caso reconoceriamos inmediatamente la rabia al escuchar la voz, pero la diferencia esencial est<i en que mientras el sonido de la rabia va a ser reconocible independientemente de que la frase que dice el orador sea "alcanzame el cllchillo" 0 "ya no quiero nuis pan"; un cambio de texto de este tipo modificaria profundamente la infonnacion transrnitida acusticamente a traves del sistema lingilistico. Asf, mientras la expresion fonoestesica es altamente dependiente del emisor y tiende a ser independiente del texto, con la expresion lingiifstica ocurre justamente 10 contrario, depende del texto y tiende a ser independiente del ernisor.

3. Funciones de la expresi6n fonoestesica.

Deciamos un poco mas arriba. que la expresi6nJonoestesica actua como un sistema complejo que articula diferentes funciones expresivas. Al hacer esta afumacion, nos refelimos a que al hablar. con independencia del texto lingiifstico, es decir. con independencia de 10 que se pueda estaf diciendo. el orador transrnite en el sonido de la voz infOl maciones sobre su propia edad y estado de salud. sobre su personalidad. su estado emocional y su contexto social, asf como sobre las caracteristicas fisicas de aquello que esta siendo objeto de su elocucion.

Entendemos que todas estas inforrnaciones son objetivamente observables y que interactUan entre sf. configurando un sistema de campos semanticos que se superponen a los contenidos de la lengua y que evolucionan paralela y sincronicamente con ellos matizandolos. precisandolos o. en ocasiones. incluso alterando radicalmente su sentido.

Una vez definido y acotado el concepto de expresi6n Jonoestesica. intentaremos explicarcomo se configura este sistema acustico-expresivo abordandolo desde una perspectiva funcionalista.

Desde este punto de vista. para analizar como actUa la expresion fonoestesica proponemos una taxonomia de cinco funciones expresivas. establecida a partir de los distintos tipos de infOlwacion que es capaz de procesar e interpretar el receptor de una comunicacion oral rnientras escucha la voz del ernisor:

73

Revisla de Letras nOS

Funcion idiogrtiflca (expresa caracteristicas fisiologicas) Funcion afectiva (expresa el estado emocional) E. Fonoestesica Funcion sintomtitica (expresa los estados patologicos) FUllcion encuadrativa (expresa el entorno social) Funcwn emptitica (establece relaciones de imitacion sonora)

Revisemos ahora con mas de detalle cada una de estas cinco funciones :

Funcwn idiogrtifica: identificamos esta funcion cuando los rasgos sonoros de la voz aportan al oyente infO! macion sobre el aspecto ffsico del orador y sobre el tipo humano al que pertenece. Es el caso, porejemplo, de laidentificacion del sexo, la edad, 0 el aspecto a traves del sonido de la voz. Depende de los componentes fisiologicos que configuran la laringe, lafonna de la cavidad bucal, el tipo de estructura de la dentadura, el tamafio y las caracteristicas del craneo etc. Funcwn afectiva: esta funcion actua cuando el sonido del habla aporta al oyente informacion sobre la actitud y el estado emocional del locutor. Un ejemplo claro es el reconocimiento sonoro de alegrfa 0 de tristeza en la voz de quien nos habla. Depende, logicarnente, de la vivencia emocional que pueda estar experimentando el orador en el momento de la construccion de su discurso. Esta vivencia afecta a toda su tonicidadmuscular, ala energfa con la que emite la voz, ala duracion y la velocidad de las locuciones, etc. FUllcion sintomtitica: utilizamos y reconocemos esta funcion cuando la voz proporciona al receptor informacion sobre la existencia de trastornos en la salud 0

en la psicologfa del locutor. Esta funcion expresiva esta asociada a 10 que enmedicina se denominan disfonfas 0 disodeas y se caracterizan a partir de la comparacion con las capacidades acusticas medias de los hablantes sanos (Cfr. Prater, R.I. y Swift, R.W., 1986). Se diferencia entre disfonfas psfquicas (tartamudeo, contracciones espasm6dicas de la gIotis, etc.) y las disfonfas orgamcas (afonfa, diplofonfa, dicrotismo, etc.). Patologfas psfquicas como la depresion 0 la esquizofrenia, son tambien reconocibles en el sonido del habla. FUllcwn ellcuadrativa: la funcion encuadrativa se desencadena cuando las fOIlnas sonoras de la voz transmiten al oyente informacion sobre los distintos grupos sociales, culturales, etnicos, geograficos, etc. en los que se puede encuadrar al locutor. Esta funcion esta vinculada a determinadas desviaciones de la fonna de emitir los sonidos del habla que son caracterfsticas y comunes entre los miembros de detenninados grupos a los que pertenece el orador. Un ejemplo claro es 10 que se suele denominar como "acento regional", y que pennite identificar con facilidad el origen geografico del hablante.

74

Revista de Letras nOS

FUllcWIl emptitica: esta funcion queda configurada cuando 105 matices sonoros de la voz aportan al receptor infommcion sonora sobre aquello que describe el locutor. Se desencadena en las situaciones en que el orador, al hablar de algo extemo a sf mismo, construye el sonido de su voz desalTollando intuitivamente un proceso de identificacion 0 de imitacion de 10 descrito 0 nombrado. Actua, por ejemplo, cuando un locutor nan'a la velocidad de los movimientos de una carrera aumentando su propia velocidad de locucion, 0 cuando explica la potencia y la energfa de un gesto haciendo sonar su voz con mucha mas fuerza.

Las funciones de la expresion fonoestesica estan propuestas y desarrolladas aquf esencialmente desde la perspectiva del receptor y se han ido revelando en gran medida a partir de las necesidades de las nuevas tecnologfas del habla. No obstante, tambien es evidente que un orador consciente y experimentado 0 adecuadamente entrenado, puede y debe serperfectamente capaz de manejar voluntariamente estas capacidades expresivas de su voz. En consecuencia, el desarrollo de un conocimiento sistematico sobre esta dimension expresiva del habla resultara doblemente util ya que sera igualmente aplicable tanto desde una perspectiva estrictamente tecnologica como desde el punto de vista de las tecnicas de locucion, persuasion oral, eficacia comunicativa, etc.

Para llevar los planteamientos anterlores hasta su aplicacion real, es necesario hacerun trabajo de fOllllalizacion y parametrizacion. Es decir, necesitarnos estudiar y describir con la suficiente precision en que partes del habla, de que modo y con que caractetisticas acusticas se configuran los rasgos sonoros que articulan el sistema de la expresion fonoestesica. Esta es, sin duda, una tarea diffcil, en la que se esta trabajando desde diferentes perspectivas y que todavia no esta resuelta; no obstante, es perfectamente posible plantear una serie de elementos fundamentales que asienten las bases para una fOJIllalizacion completa del sistema expresivo oral.

A continuacion expondremos esta fundamentacion planteandola desde el principia, es decir, revisando el proceso desde la produccion misma del sonido de la voz.

4. La produccion de la voz.

La voz se genera en la laringe a partir de una serle de obstrucciones sucesivas que se producen en el esfinter glotico. Para emitir el sonido de la voz cerramos la laringe y ejercemos a la vez una presion aerea en su parte inferior (presion subglotica) desde los pulmones. Esta presion neumatica se debe al esfuerzo simultaneo que hacen 105 musculos qne envuelven la caja tonicica (basicamente el diafragma y los musculos intercostales) aJ presionar sobre los pulmones. La presion intema del aire en los pulmones aumenta progresivamente hasta que la fuerza que ejercemos para mantener la laringe cerrada resulta insuficiente y el aire la abre saliendo hacia la cavidad bucal.

75

Revista de Letras nOS

Cuando el aire consigue salir, la presion que ha obligado al esfinter glotico a abrirse disminuye filpidamente, con 10 que la fuerza de abduccion de la laringe supera la fuerza de la presion subglotica. Como consecuencia, la laringe vuelve a cerrarse y se inicia de nuevo el proceso anterior: aumento de la presion en los pulmones, apertura de la laringe, bajada de presion, nueva apertura de la laringe ... etc.

Puesto que todo objeto que vibra a mas de 17 oscilaciones pOl' segundo genera un sonido, cuando cualquier laringe humana supera esta frecuencia de oscilacion se produce el fenomeno sonoro que llamamos voz. De hecho elmimero minima de oscilaciones pOl' segundo que se producen en una laringe humana normal esta en torno a las 60. Dicho de otro modo, las voces humanas mas graves que solemos percibir estan producidas por laringes cuyo esfinter glotico esta abriendose y cemlndose unas 60 veces por segundo. Una voz masculina normal suele estar generada por una vibracion laringea que oscila entre los 60 y los 200 ciclos pOI' segundo; y una voz femenina por una vibracion que se extiende entre los 200 y los 350 ciclos pOI' segundo.

Una vez que la laringe produce esta vibraci6n, el sonido entra en la cavidad bucal y queda modulado pOI' ella. Es decir, el hueco de la boca y el de la nariz acttian como cajas de resonancia modificando la vibracion inicial y basica que generamos en la laringe, modulando sus caracteristicas acusticas. Si tenemos en cuenta las posibilidades de movilidad y la extraordinaria versatilidad de los volumenes de nuestra boca, podremos hacernos una primera idea de cual es nuestra capacidad para alterar y controlar la voz.

La concepcion de la voz como una vibraci6n sonora que es el resultado de la oscilacion elastica y regular de unos pliegues situados en la laringe, que luego se modifica al entrar en el tracto vocal (cavidad bucal y nasal), pennite que nos aproximemos al sonido del habla desde una perspectiva acustica. Asi, si el sonido del habla es una senal sonora que proviene de la relacion dinamica entre la laringe y el tracto vocal del ser humano, podemos enfrentarnos a esta senal entendiendola como el instrumento que conecta al hablante con el oyente. Es decir podemos y debemos estudiar esta senal acustica interpretandola ala vez:

I) Como un vestigio del orador que nos indica cuales han sido las modificaciones que se han producido en su laringe y su tracto vocal para expresarse;

2) Como un mensaje que procesa el oyente para obtener infollnaci6n sobre el estado, el contexto y la voluntad expresiva del hablante.

5. Las dimensiones basicas de la voz: acustica y fisiologfa.

Si seguimos avanzando en la concepcion de la voz como un sistema fisico que conecta el estado y la voluntad expresiva del orador, con la capacidad del

76

Revista de Letras n05

oyente para reconocer ese estado y esa voluntad expresiva de quien habla, llegamos sin muchos problemas a la conclusi6n de que en el sistema fisico que conecta emisor y receptor estin muchas de las claves de la expresi6n fonoestesica. AI no interponerse en este sistema una codificaci6n arbitrara, las fmmas del sonido actuan como un conector ffsico directo entre emisor y receptor. En consecuencia, la fOlmalizaci6n acustica de los sonidos del habla tiene para la expresi6n fonoestesica un cankter especialmente clarificador.

Pero comencemos ya a desarrollar esa fOflualizaci6n acustica de la expresi6n fonoestesica desde su etapa inicial.

Puesto que el punto de partida de las formas sonoras de la voz es el vibrador laringeo, iniciaremos esta fmmalizaci6n estudiando las dimensiones acusticas mas simples de la voz sobre las que acnia directamente la laringe. Es decir, estudiando los conceptos de intensidad, tonG y timbre.

5.1. La intensidad en la voz.

Perceptivamente el concepto de intensidad esta asociado ala sensaci6n de energia 0 fuerza con que se oye el sonido; concretamente en este caso, al grado de fuerza con la que escuchamos la voz. Diremos, pues, que una voz es tanto mas intensa cuanto mas fuerte este sonando. Un grito es una voz emitida con gran intensidad. Un susurro es una voz emitida con intensidad muy debi!.

Desde el punto de vista fisiol6gico, el orador ejerce el control de la intensidad actuando sobre los musculos que envuelven la caja toracica. AI aumentar fuertemente el esfuerzo muscular de compresi6n del t6rax, este se transfollna en el interior de los pulmones en una subida mayor y mas rapida de la presi6n subgl6tica y, en consecuencia, el flujo de aire que va a salir por la laringe cuando esta se abra sera mucho mayor. Esa acci6n muscular del locutor se traduce fisicamente en oscilaciones de Ia laringe que son tanto mas amplias cuanto mayor es la presi6n de aire producida en el intetior de la caja toracica. Es decir, la mayor presi6n intema de los pulmones obliga a una expulsi6n de gran cantidad de aire por unidad de tiempo a traves de la laringe, 10 cual obliga a que las paredes de la laringe se separen mucho en cada oscilaci6n.

Desde un punto de vista acustico, la sensaci6n de intensidad del sonido que produce cualquier cuerpo vibrante esta asociada ala amplitud de sus oscilaciones. Pensemos por ejemplo en c6mo responde una barra metalica al golpearla con un martillo: si la fuerza con que aplicamos el golpe es grande, la barra de metal vibra alejandose mucho de su centro de reposo (gran amplitud vibratotia), 10 cual hara que Ia intensidad con la que suena el martillazo sea muy fuerte; en cambio, cuando golpeamos Ia barra de metal con poca fuerza esta va a sonar debilmente, es decir, con poca intensidad, precisamente porque la poca energia del golpe del martillo

77

Revista de Letras nOS

hace que la barra oscile alejandose muy poco de su centro natural de reposo (baja amplitud vibratoria). Puesto que la variacion de la sensacion de intensidad depende ffsicamente de la amplitud en las oscilaciones del cuerpo vibrante, en el caso de la laringe, cuanto mas se alejan entre sf las par'edes del esffnter glotico al oscilar abriendose y cerrandose, mayor es la intensidad de la voz.

Dicho de otro modo, el sonido de una voz sera tanto mas intense cuanto mayor sea la abertura del esffnter glotico que seamos capaces de eonseguir aumentando la presion intema de los pulmones (presion subglotica). Asi, a mayor tension de los musculos que comprimen la caja toracica mas amplitud de las oscilaciones del esfinter glotico, 10 cual genera mas intensidad; y viceversa.

La medida objetiva de la intensidad es extremadamente compleja yplantea problemas desde el punto de vista perceptiv~ (Cfr. Rodriguez Bravo, 1998: 100-107). La unidad mas utilizada en el ambito de la audicion es el decibelio (dB). En realidad, el decibelio es una unidad para medir la presion ejercida por las moleculas del aire al vibrar que ha side adaptada matematicamente a la percepcion humana. La energfa de la voz en una conversacion interpersonal en condiciones ambientales nO! males y con una distancia entre los interlocutores entre 50 y \ 00 cm. suele estar emitida con una intensidad que oscila entre 40 y 60 dB. La intensidad maxima que puede producir una voz humana esta en tome a los 110 dB.

5.2. EI tono en la voz.

EI tono esrn asociado perceptivamente a la sensacion auditiva de "aguda" 0

"grave" al escuchar un sonido. Desde el punto de vista fisico-acustico la variacion de la sensacion auditiva de tono depende del numero de oscilaciones por segundo del cuerpo vibrante que esrn generando el sonido. En el caso de la voz, del numero de veces que se cierra y se abre durante un segundo la laringe del orador. Cuanto mayor es el numero de veces por segundo (mayor frecuencia) la sensacion sonora es mas aguda. Y cuando el ntimero de oscilaciones por segundo de la\aringe disminuye (menor frecuencia) la sensacion sonora que produce la voz es mas grave.

La forma de controlar el tono desde el punto de vista fisiologico es incrementando la tension laringea de cien'e mient:ras vibran los pliegues vocales que configuran el esfinter glotieo. Cuanto mayor sea la tension de eierre que aplique ala laringe un orador, el aire de los pulmones tendra mayor difieultad para abrirel esfinter larfngeo y salir. En el momenta que la salida de aire se consigue, la mayor tension de eierre hace que los pliegues voeales se abran menos y durante menos tiempo. Viene a ser algo asi como cuando intentamos abrir una puesta mientras alguien empuja desde el otro lado para eerrarla. En esa situacion abrimos menos la puerta y al soltar'la se cierra de golpe. EI aumento de la tension de eierre en la laringe mientras exhalamos aire desde los pulmones hace, entonces, que los pliegues vocales se abran y se cielTen mas nipidamente y, portanto, en mas ocasiones por segundo. Es decir,

78

Revista de Letras nOS

aumenta la frecuencia de oscilacion del esffnter glotico y, en consecuencia, el tone de voz se vuelve mas agudo. Este fenomeno acrua tanto de fOllna directa como inversa. 010 que es 10 mismo: a mayor tension la voz suena mas aguda y a menor tension

, suena mas grave.

La unidad de medida ffsica de la frecuencia esta asociada al numero de oscilaciones de un cuerpo por unidad de tiempo. Concretamente al numero de oscilaciones que tiene un cuerpo en un segundo. La unidad se denomina Hertz (Hz). Una frecuencia de I Hz. hace referencia a un cuerpo vibrante que oscila una vez cada segundo. Para hablar, por ejemplo, de una voz cuya laringe se abre y se cierra 150 veces por segundo, diremos que es una voz cuya frecuencia fundamental es de 150Hz.

Vemos, pues, que el fenomeno fisiologico y acustico del cual depende la sensacion auditiva del tone de una voz es el numero de oscilaciones por segundo a que vibra laringe del locutor durante la emision. Para hacer referencia a este fenomeno de la voz suele manejarse el concepto de "frecuenciafimdamentar'. La frecuencia fundamental es uno de los parametros esenciales del sonido de la voz, tanto para comprender el funcionannento de la expresion fonoestesica, como el funcionamiento del habla en su sentido mas amplio. Un poco mas abajo, cuando desarrollemos el apartado sobre el timbre, volveremos a insistir sobre este concepto para explicarlo con miis detalle.

5.3. EI timbre en la voz.

Perceptivamente, el concepto de timbre esta asociado a la sensacion de complejidad del sonido. Cuando dos sonidos que provienen de fuentes sonoras distintas son percibidos por el oido humane como sonidos con matices diferentes, y en una medicion de precision se comprueba que tienen el mismo tone y la misma intensidad, decimos que se diferencian en el timbre. Es el caso, pOI' ejemplo, de la capacidad que tenemos para distinguir entre el sonido de un clarinete y el de un saxofon, a pesar de que ambos esten emitiendo exactamente la misma nota y a la misma intensidad. La diferencia auditiva que percibimos, entonces, entre estos dos instrumentos no proviene del tone ni de la intensidad sino del timbre.

Antes de hablar del timbre en la voz nos aproximaremos acusticamente al fenomeno del timbre revisando la logica de producci6n global del sonido de los instrumentos de viento.

Este tipo de instrumentos estan configurados por un vibrador basico (los labios del trompetista en la boquilla de la trompeta, la lengtieta en la boquilla del saxo o del clarinete, el bisel en la flauta, etc.) y una caja de resonancia. En el vibrador se produce el sonido b<isico inicial, que suele denominarse frecuencia fundamental (FO). Una vez generado el sonido inicial, este entra en la caja de resonancia y rebota en ella produciendose asi nuevas vibraciones, es decir, nuevas frecuencias que se afiaden

79

Revista de Letras nOS

a la fundamental configurando un sonido complejo. Las fmmas diferentes entre las cajas de resonancia de los distintos instrumentos es 10 que hace que las frecuencias que se aiiaden a la fundamental sean distintas en cada caso y, en consecuencia, que configuren timbres distintos, aunque la frecuenciafundamental de partida sea la misma.

En el caso de la voz, el sistema de pmduccion responde exactamente a la misma logica que los instrumentos de viento. La laringe acllia como un vibrador que genera el sonido basico simple 0 frecuencia fundamental (FO). Y esta frecuencia fundamental entra luego en la doble caja de resonancia configurada por las cavidades bucal y nasal, pmduciendose las nuevas vibraciones que configuran la complejidad del sonido.

Ellector habra reparado en que para el caso de la voz hemos hablado de "doble caja de resonancia"; es decir, hemos hecho referencia de manera diferenciada al resonador bucal y al resonador nasal. Esta estructura de doble resonancia nos peunite explicar el timbre como un fenomeno vinculado a la percepcion de la complejidad sonora. Si consideramos que en la laringe se produce una frecuencia inicial 0 fundamental que denorninamos FO, y que las cavidades bucal y nasal actuan como un tuba resonante en forma de "P' que afiade respectivamente dos frecuencias secundatias distintas, que podemos denominar como Fl en el caso de la abertura del tuba horizontal inferior (resonador bucal), y como F2 en el caso del tuba superior (resonador nasal); nos encontramos con que el resultado final al escuchar una voz es en realidad:

FO + FI + F2

Es decir, al oir una voz estamos escuchando sirnult:ineamente la frecuencia fundamental directamente generada por la laringe FO, pem tambien oimos las frecuencias secundarias Fl y F2 que han sido afiadidas en los dos resonadores del tracto vocal.

Por ejemplo, las laringes de dos cantantes pueden estar sonando con la misma intensidad y emitiendo lamisma nota, es decir, pueden estar genemndo sendas frecuencias fundamentales identicas, pem cuando pasen por los tractos vocales respectivos (resonador bucal y resonador nasal), el sonido de las voces va a quedar matizado adquiriendo resonancias distintas. Jgual que ocurre en los instrumentos de viento, estas diferencias dependen de la distinta founa de los resonadores, 0 10 que es 10 mismo: de las distintas caracteristicas de cada tracto vocal. A partir de este momento, las voces van a ser percibidas con un timbre diferente.

Nos encontramos, pues, que la sensacion timbrica es la capacidad para percibir los matices que comporta la superposicion de distintas frecuencias simples al configurar una frecuencia compleja.

Es importante aclarar que en ciertos ambitos todavia es posible encontrar definiciones que consideran el timbre de la voz como un rasgo acustico invatiable.

80

Revista de Letras nOS

Nada mas lejos de la realidad. En tanto que los resonadores nasal y bucal son modificables tanto en grado de tensi6n muscular, como en fonna y tarnano (podemos abrir y cerrar los labios, redondearlos, nasalizar, palatalizar, guturalizar, etc.), es evidente que resulta perfectamente posible alterar el timbre de cualquier voz. De hecho, la modificaci6n del timbre de la voz, no solo es posible, sino que es un acto absolutarnente cotidiano. Cualquier variaci6n vocalica es, en realidad, una variaci6n tfmbrica.

6. Los usos expresivos de la intensidad.

La intensidad es el parametro acustico de la voz mas facilmente controlable y racionalizable por un locutor en el ambito de la expresi6n oral.

No obstante, la mediaci6n tecnica, tan habitual actualmente, introduce un problema adicional importante en el estudio de las funciones expresivas de la intensidad de la voz. Para poder desarrollar analisis acusticos objetivos sobre las caracteristicas del sonido es necesario realizar grabaciones 6pticas 0 electromagneticas; este proceso introduce siempre manipulaciones recnicas de la intensidad alterando el nivel inicial. La interposici6n de esos instrurnentos tecnicos dificulta la observacion objetiva de la intensidad de voz que produce originaIrnente el orad or. Y esta es una dificultad que se extiende, ademas, al estudio de la recepcion, puesto que en la experimentacion perceptiva suelen utilizarse, tarnbien, voces grabadas que necesariamente han de ser amplificadas para su audici6n.

Por otra parte, la manipulacion tecnica de la intensidad tambien introduce una influencia expresiva importante en la locucion que queda asociada a La deL tratarniento fisiologico de La intensidad que hace eL propio orador y que puede ser manipulada conscientemente.

En consecuencia con estas tres observaciones, en el estudio de Los valores expresivos de la intensidad es necesario diferenciarmuy claramente entre tres ambitos distintos de tratamiento: el tratamiento fonologico, que depende exclusivamente del aparato fonador humano; La posicion locutor-microfono, que depende de la distancia fisica entre ellocutor y el micrOfono que capta su voz; y el tratamiento tecnico, que depende del niveL de amplificacion artificial con que es tratada la voz.

En este articulo no entraremos en la influencia expresiva de la mediacion (para una ampliacion sobre este tema consuLtar Rodriguez Bravo, 1998: 116-120) y nos dedicaremos a revisar con mas detalle las funciones expresivas que puede conseguir un orador tratando fisiologicanlente la intensidad de su voz.

6.1. En la relaci6n entre interlocutores.

Uno de Los efectos expresivos mas interesantes que puede general' un orador mediante la manipulacion fisioL6gica de su intensidad es el de sucesivos cambios en

81

Revista de Letras n05

la relacion existente entre emisor y receptor. EI origen de este efecto expresivo esm en la relacion natural que existe entre

la intensidad de voz utilizada por dos hablantes en una comunicacion interpersonal y la distancia a la que se sinian el uno del otro. L6gicamente, a mayor distancia tambien mayor intensidad. Es decir, existe una relacion directamente proporcional de la distancia entre interlocutores con la intensidad que estos utilizan para comunicarse

, entre sl.

Si tenemos en cuenta que la di stancia a la que se sinian dos interlocutores mientras hablan viene detenninada por el tipo de relacion personal que existe entre ellos (efr. Knapp, L.M., 1985: 122) podemos establecer una conexion logica entre esto tres fenomenos. Es decir: que la intensidad utilizada pOl' los interlocutores en una conversacion interpersonal detelJnina la distancia ffsica que hay entre ellos y, en consecuencia, tambien el tipo de relacion interpersonal que los vincula.

Para seguir con esta reflexion utilizaremos como ejemplo un contexto comunicativo radiofonico, en el que emisor y receptor no esmn en contacto real sino Unicamente sonora. En este ambito nos va aresultar extraordinariamente util el control racional y voluntario de la intensidad de nuestra voz cuando estemos actuando como locutores. Segun uti lice ellocutor una intensidad u otra al emitir su voz frente al microfono, sus oyentes van a tener la sensacion de que entre ellos y ellocutor existe un tipo de relacion personal diferente. Es decir, el oyente va a sentir que ellocutor esm muy proximo a el, que suena como si fuese su amigo, 0 bien que suena como si fuese un extrafio que se ubica ffsica y psicologicamente alejado.

Siguiendo este criterio, podemos establecer una tipologfa de 4 categOlias en funcion del nivel de intensidad sonora que utiliza ellocutor, ya que cada una de estos niveles de intensidad esm asociado a una distancia ffsica y expresa un tipo de relacion personal distinto entre interlocutores. Las categOlias son las siguientes:

Intensidad intima: Se utiliza cuando entre los interlocutores hay de a a 0,5 metros de distancia. Expresa una relacion personal muy estrecha e intima.

llltellsidad personal: Se utiliza cuando entre los interlocutores hay de 0,5 a 1,5 metros de distancia. Expresa una relacion personal de amistad y confianza.

lntensidad social: Se utiliza cuando entre los interlocutores hay de 1,5 a 3 metros de distancia. Expresa una relacion exclusivamente formal y esponidica, totalmente exenta de confianza.

lntensidad publica: Se utiliza cuando entre los interlocutores hay mas de 3 metros de distancia. Expresa la actitud de pregonar, es caracteristica de los discursos diligidos a un grupo amplio de receptores (conferencia, clase, discurso politico, etc.).

82

Revista de Letras nOS

EI conocimiento y el dominio de estos cuatro niveles de intensidad de la voz pellnite controlar el tipo de relaci6n que el OI'ador establece con su audiencia. Este es un recurso muy habitual, aunque usado generalmente de una fOIma solamente intuitiva, por los locutores de radio profesionales. Es habitual, por ejemplo, que en los programas nocturnos ellocutor 0 la locutora sugiera a traves de la intensidad de su voz una relaci6n intima con los oyentes. En los musicales de tarde se suele recurrir ala intensidad personal. Y esa actitud tan fOllnal y distante que es caracteristica de la locuci6n infollnativa se consigue recurriendo a la intensidad social. Finalmente, el uso de la intensidad pLiblica suele quedar restringida a situaciones puntuales, por ejemplo los musicales en los que ellocutor habla a su audiencia como si estuviese situado encima de un escenario en el que van a producirse actuaciones en directo. Mediante la intensidad de la voz se reconstruye, entonees, la sensaci6n de que el orador esta fisicamente lejos del publico.

6.2. En los estados emocionales:

Hemos comprobado experimental mente que el tratamiento fonol6gico de la intensidad de la voz tiene un papel detenninante para construir e identificar]a expresi6n de las actitudes emocionales de los hablantes (Cfr. Rodtiguez Bravo y cols., 1999: 159- 166). Asi, la intensidad con la que se emite el di scurso oral es unos de los rasgos sonoros que utiliza el orador para expresar acusticamente agresividad, tristeza, tensi6n, etc.

Si bien, es cierto que este tipo de conocimiento tiene un origen esencialmente fenomenol6gico y, en consecuencia, podemos desctibir c6mo ocurren las cosas pero no sabemos muy bien por que; tam bien es cierto que podemos dar a este tipo de saber un caracter productivo, utilizandolo en nuestra forma de expresarnos. Por ejemplo, si hemos observado que la tristeza esta asociada sistematicamente a una intensidad baja de la VOZ, es evidente que uno de los recursos basicos para expresar la tristeza sera controlando de forma voluntaria y consciente este parametro a 10 largo del discurso oral.

Eso mismo OClliTe con la agresividad y la c61era. Estos estados emocionales esmn asociados a una intensidad muy alta de la voz, por 10 que una for lIla de sugerirlos es incrementando conscientemente la intensidad.

Es impoltante, no obstante, tener en cuenta que en el ambito de la expresi6n emocional del discurso oral, cada una de las emociones altera sirnulraneamente otros parametros del sonido de la VOZ, por 10 que selia un error pensar que la intensidad es la unica variable significativa. Asi, ciertamente la tristeza genera una intensidad de la voz muy baja, pero tambien un tono muy grave en descenso lento y homogeneo, una veloeidad de locuci6n lenta, pausas muy lar'gas, inflexiones tonales poco acusadas y perdida de brillo en el timbre de la voz.

Vemos, pues, que no hay que confundir las dimensiones acusticas basicas

83

Revisla de Letras n05

de la voz: tono, inlensidad y limbre, con el concepto de aelilud sonora. Hacer referencia a la aetitud sonora supone estar hablando de un conjunto de manipulaciones de estos tres panimetros globalmente orientadas a conseguir determinada expresividad emocional con el sonido de la voz. Dicho de otro modo, no tiene sentido, por ejemplo, hablar de emitir la voz con un tone triste. EI tone es grave 0 agudo, y oscila entre los 18 y los 20.000 Hz. si es audible, pero nunca es alegre 0 triste. Es la conjunci6n de un tono grave, una intensidad debil, una entonaci6n muy regular y decendente, un timbre de voz mate, una velocidad de locuci6n lenta, etc., 10 que hace que la voz tenga sonido triste. Y a este conjunto de alteraciones de los rasgos sonoras de la voz es 10 que debemos nombrar como actitud sonora triste.

6.3. En la descripci6n.

La manipulaci6n fonol6gica de la intensidad de la voz es tambien un recurso muy habitual en la descripci6n oral de elementos extemos allocutor. Este tipo de relaci6n entre el nivel de intensidad de la voz y larealidad descrita (jill1cion e111patiea) se desarrolla en basicamente en dos sentidos: a) Expresando el tamQ/l0 mediante la intensidad y b) sel1alando los elementos mas importantes de entre todo aquello que deseribimos mediante la intensidad.

Respecto a la expresi6n sonora del tamafio, solemos establecer una relaci6n directamente proporcional entre la intensidad de la voz y el tamafio del objeto descrito. As! tendemos a describir los objetos grandes con una intensidad fuerte en nuestra voz:

« .. . y de repente salio del agua un pez enorme enganehado al sedal) J.

Nunca nombrarfamos al «pez enomle» en esta frase con una voz muy debil, sino todo 10 contrario, tendemos siempre a oralizar las palabras utilizadas para nombrar el objeto de gran tamano con una intensidad bastante mas fuerte que en el resto de la frase . Invitamos allector a que experimente con la intensidad de su voz para comprobar el sorprendente efecto de incoberencia que se produce cuando oralizamos aumentativos con una intensidad debil asociada a un tono de voz agudo, 0 diminutivos con intensidad fuerte asociada a tone grave.

Por otra parte, al estructurar oralmente una frase, ellocutor tiende a indiCa!· mediante la intensidad de su voz cuales son las palabras que consideramos mas importantes de la misma. Es decir, al hablar senalamos acusticamente mediante un aumento de intensidad que diferenciara alguna 0 alguna de las palabras de las demas, que es 10 esencial de cada una de nuestras frases. A esta forma de senalizar el di scurso oral se la denomina aeel1to de foealizacioll 0, tambien, aeento de insisitencia 0 acento enfatico (Cfr. Gil, J., 1990: 132). Volviendo ala afinnaci6n

84

Revista de Letras nOS

anterior. Es perfectamente posible focalizarun mismo texto de varias fonnas distintas, dando de este modo una importancia distinta a ciertas partes de la frase cada vez

• • que esta se pronuncla. Ellector puede experimentar el efecto expresivo de la focalizacion sonora,

por ejemplo, interpretando en voz alta la siguiente frase con la unica diferencia de hacerrecaer en cada lectura un aumento de la intensidad en la palabra escrita en negrita.

« Estaba solo en el estudio de mi casa y me semia cansado » « Esraba solo en el esrudio de mi casa y me sentia cansado »

Inmediatamente comprobara que se produce un claro efecto expresivo que otorga el protagonismo de la idea expresada al hecho de "estar solo" en la plimera interpretacion, mientras que en la segunda 10 expresivanlente importante pasara a ser el hecho de "sentirse cansado".

En un anaJisis mas minucioso seria necesario observar que eillamado «acento de jocalizaciol1» suele ser el resultado de una combinacion entre un incremento del tono y la intensidad y el a1argamiento de los fonemas vocalicos.

7. Los usos expresivos del tono.

La utilizacion que hace el ser humano de las variaciones en el tono de su voz es considerablemente compleja, por 10 que en este apartado sera necesario revisar algunos conceptos nuevos que nos pellnitiran sistematizar globalmente la actuacion de este parametro basico en sus distintos niveles expresivos.

Ahora, para aproximarnos a la expresividad oral que depende de manipulacion del tona de la voz por parte del orador, estableceremos una clasificacion en dos grandes ambitos que dependen de los objetivos comunicativos del locutor: a) cuando el objetivo es la descripcion sonora, b) cuando el objetivo es la construccion de personajes 0 de actitudes emocionales.

7.1. Cuando el objetivo es la descripcion sonora.

En nuestra memoria auditiva esm fijada de fomla muy clara la variabilidad que sufre el tonG de cualquier sonido dependiendo de la ubicacion y el movimiento de la fuente sonora que 10 produce. Nos estamos refiriendo a las variaciones que percibimos cuando cualquierfuente sonora se aleja, 0 se acerca, de nosotros mientras esm emitiendo sonido. Todo a1ejamiento de la fuente se traduce en el sonido en una caida de su intensidad y en una atenuacion de las frecuencias graves. Y al contrario, el acercamiento de la fuente sonora se traduce auditivamente en el aumento progresivo

85

Revista de Letras n05

de la intensidad y en un incremento de la percepcion de las frecuencias graves de poca intensidad, que antes quedaban atenuadas por la distancia.

Estos patrones sonoros nos pemliten describir acusticamente de forma intuitiva y sin ningtln tipo de problemas los movimientos de un objeto que se aleja 0

que se acerca mediante la manipulacion consciente del tono de la voz, aplicando el modelo general siguiente: a mayor lejania del objeto, este sen! descrito con un tono de voz mas agudo y menor intensidad. Y viceversa, cuanto mas cerca este el objeto que queremos desclibir, ffi<is grave debeni sera el tono de la voz del orador y mayor su intensidad. Si nos restringimos exclusivamente al tono, el modelo general podria representarse con las siguientes ecuaciones expresivas:

[solo tonos agudos] = EFECTO DE I .BANIA [tonos agudos] + [tonos graves] = EFECTO DE PROXIMIDAD

La explicacion de este fenomeno recae en el efecto de filtro acustico del aire, que atenua las frecuencias de menor energia del espectro de cualquier sonido, es decir, los tonos mas graves, y disrninuye la intensidad. Este efecto aumenta cnanto mas grande es la distancia entre fuente sonora y receptor, y disminuye a medida que fuente sonora y receptor se acercan.

LOgicamente, el uso consciente y racional de este recurso de manipulacion del tono pellnite describir mediante el sonido de la voz acercamientos y alejamientos a medida que explicamos verbaimente una situacion.

En clase, suelo proponer a mis alumnos unjuego sonoro que ilustra muy c\aramente este fenomeno. EI juego consiste en pedirles que describan la trayectoria de un cohete que sube hacia el cielo y se aleja hasta perderse de vista, haciendo sonar una unica vocal de manera continuada, por ejemplo: « aaaalUl )). Despues de cada intento de algtln estudiante pregunto al resto del grupo si la descripcion sonora ya les parece adecuada, 0 si les parece mejorable. Si la consideran mejorable les invito a que hagan un nuevo intento con las correcciones correspondientes. Tras unos tres 0 cuatro ensayos y sin mas orientaciones que las aquf descritas, el grupo IIega siempre a la conclusion de que la fomla correcta de hacer la descripcion es haciendo sonar la vocal continuadamente, cada vez con tono mas agudo y disminuyendo progresivamente la intensidad.

Invitamos al lector a que experimente con su propia voz este juego. a a que oraIice, por ejemplo, el siguiente texto, de modo que a medida que avanza en la interpretacion sonora vaya disminuyendose la intensidad y subiendo el tono:

86

« aquella luz estaba muy cerca, pareda que iba a caer encil11£l de nosotros, pero luego empez6 a alejarse poco a poco, lental11ente, muy iental11ente, y se fue hacienda cada vez mas pequeT1a, mas pequeT1a, hasta que se perdi6 en el cielo entre las estrellas )).

Revista de Leu'as nOS

La coherencia entre la descripci6n lingiifstica del alejamiento del objeto descrito, el tone ascendente y la intensidad descendente producen un intenso efecto perceptivo de que el sonido de la descripci6n es el adecuado. Resulta tambien muy interesante inveltir el proceso y aplicar a este mismo discurso el modele sonora del a1ejamiento. En este caso comprobaremos un fuelte efecto de incoherencia entre la expresi6n fonoestesica y el contenido semantico del texto.

Existe tambien una relaci6n anal6gica entre los tonos agudos y los colores e1aros, y entre los tonos graves y los colores oscuros. Asf la descripci6n de una situaci6n luminosa se percibe sistematicamente como mucho mejor explicada fonoestesicamente cuando ellocutor la hace usando un registro mas agudo. Y viceversa: la descripci6n de situaciones oscuras se perciben como mejor descritas cuando ellocutor usa los registros mas graves de su voz. En este caso las ecuaciones expresivas que relacionan tono y efecto perceptivo serian las siguientes:

[Tonos altos (agudos)] = EFECTO DE LUMINOSIDAD [Tonos bajos (graves)] = EFECTO DE OSCURIDAD.

Ellectorpuede comprobar por sf mismo que segun se interprete la frase que proponemos mas abajo con tono grave y entonaci6n muy homogenea 0 con tone agudo y entonaci6n muy variada, se producici respectivamente un intense efecto de adecuaci6n 0 de inadecuaci6n sonora.

« Era una /loche cerrada, oscura como un tunel interminable. EI miedo se me agarraba al cuello y no me dajaba respirar))

7.2. Cuando el objetivo es la construcci6n de personajes 0 de actitudes emocionales.

Tal como adelantabamos un poco mas alTiba, antes de avanzar mas sobre las posibilidades de manipulaci6n del tono de la voz en este telTeno expresivo revisaremos algunos conceptos sobre el tone de la voz humana que nos ayudaran a comprender mucho mejor como se estructuran los mecanismos expresivos del discurso oral. Concretamente, revisaremos los conceptos de: extension tonal, de tesilura, de entonacion y de lana modulador.

Veamos, en primer lugar, cum es la definici6n concreta de cada uno de estos conceptos. La extension tonal es la gama de tonos que es capaz de emitir una locutora 0 un locutor forzando su voz al maximo tanto hacia los graves como hacia los agudos. La extensi6n de una voz masculina puede oscilar, por ejemplo, entre 70 y 800 Hz, Y una femenina puede hacerlo entre 250 y 1300. La tesitura es la gama de tonos que una voz emite con comodidad y sin ningun tipo de esfuerzo. Es decir, la gama de tonos de uso habirual. La tesitura suele ser bastante

87

Revista de Letras n05

mas reducida que la extension tonal, no obstante, cuanto mas educada y entrenada este una voz mas se aproximaran en ella tesitura y extension tonal. La entollacwn es el conjunto de variaciones controladas del tono que se producen a medida que se construye el discurso oral. Su funcion expresiva es esencialmente sintactica, es decir, de ordenacion y estructuracion del discurso oral.

En el diagrama se puede observar una representacion grafica de como se organizan estas tres categorfas tonales. Toda voz dispone de una gam a de posibilidades tonales (extension tonal) que no suele estar aprovechada en su totalidad; dentro de esa gama se situa una franja tonal bastante mas reducida que se usa habitualmente y en la que el orador se siente comodo (tesitura). Finalmente, en el interior de la franja de la tesitura es donde se mueven las variaciones tonales que utilizamos para estructurar sintacticamente el discurso sonoro verbal (entonacion). En el gnifico,la evolucion de la entonacion esta representada por la linea curva mas oscura. Es impOltante introducir tambien aquf el concepto de fono moduladar. EI tona modlllador es el punto de la extension tonal que utilizamos de forma inconsciente como eje central de referencia para tada nuestra construccion de fOllnas tonales. La entonacion oscila siempre en tomo a un tono modulador. En el grafico anterior, el tono modulador esta representado par una linea discontinua de puntos y rayas. Estadisticamente,la frecuencia de este tono se aproxima a la media aritrnetica de todos las frecuencias ernitidas a 10 largo de un discurso. EI tonG modulador es un punto de referencia acustica extremadamente util para el control expresivo de la voz.

Aclarados ya estos conceptos previos que nos permiten estudiar estructuralmente como organizamos el tonG para expresamos con el sonido de la voz, pasaremos a revisar como conseguimos cargar las fOBnas tonales de sentido

• expreslvo. La situacion de la tesitura de cualquier locutor puede ser alterada a voluntad,

a partir de un cierto entrenamiento, de modo que una rnisma fOllna tonal pueda situarse en una zona mas alta 0 mas baja de la extension. Este tipo de manipulacion tiene un gran rendirniento expresivo tanto en el control voluntario de la expresion emocional como en la construccion de personajes desde al sonido de la voz.

Asf, las entonaciones construidas enla parte mas baja de la extension tonal sugieren d.ramatismo, personajes de mayor edad, situaciones tragicas, etc. (bajos y barftonos se asocian en el bel canto a ancianos y villanos). Por el contrario, las entonaciones construidas en la zona alta de nuestra extension tonal sugieren, personajes anifiados 0 jovenes, situaciones de mucha tension emocional, etc. (en el bel canto las voces mas agudas, tenor y soprano, se asocian a los heroes jovenes de la obra).

De hecho, existe muy poca fOllnalizacion en el campo de los sonidos de la voz asociados a la personalidad, ya sea esta exclusivamente dramiitica 0 psicologica.

88

Revista d~ Letras n05

Es cielto que el alte dramatico puede dar cuenta de una larga tradicion en este senti do, pero esta ha generado muy poca literatura al respecto. En este sentido una obra de referencia obJigada es la Stanislavky (Cfr. Stanislavsky, 1980).

Creemos que es importante recordar de nuevo que al hablar de la expresividad de la voz estamos haciendo referencia a un sistema global en el que siempre interacruan los tres panimetros basicos articulando fomlas complejas. Esta perspectiva sistemica es la que hace posible discriminar, por ejemplo, el caracter sonoro de una voz infantil del de una voz de anciano: ambas se construyen basicamente con un tone agudo, pero mientras que las voces infantiles desde el punto de vista tfmbrico son muy armonicas y brillantes, una voz de anciano tiende a ser extremadamente inannonica y mate.

Del mismo modo, para expresar las actitudes emocionales, la estructuracion acustica de la voz combina la ubicacion de la globalidad del discurso en la tesitura con unas detelll1.inadas fomms caracterfsticas de la entonacion. As!, emociones como la alegria, el miedo y la rabia tienden a situarse en la zona alta de la tesitura del orador, en cambio, la nisteza y el deseo tienden a ser construidas globalmente enla zona baja. Pero para construir el sonido de la alegrfa 0 de la tristeza en la voz no bastara con subir 0 bajar el tone modulador en nuestra tesitura, ya que cada una de estas emociones genera una estructura entonativa completamente d.iferente. Mientras el sonido de la alegria se construye con grandes variaciones tonales y de intensidad en el interior de cada grupo fonico, el sonido de la nisteza es extraord.inariamente monotone y practicamente carece de variaciones de tone y de intensidad, al margen de un progresivo y leve descenso (Cfr. Rodriguez Bravo y Cols., 1999: 159-166; Iriondo, I., Rodriguez Bravo, A. y Cois., 2000: 161-167).

8. Los usos expresivos del timbre.

En la manipulacion fonologica del timbre por parte del locutor podemos encontrar basicamente dos campos expresivos que resultan faciles de describir formalmente y, en consecuencia tambien de manejar: la construccion dramatica de personajes y la descripcion de texturas.

Cuando imitamos acusticamente a alguien, de forma intuitiva colocamos nuestro aparato fonador (lengua, labios, mandfbulas, velo del paladar, etc.) de la misma forma que suele hacerlo la persona im.itada. De este modo conseguimos que nuestra voz suene de un modo similar a la del im.itado. Dicho deotra forma, construimos un personaje que intenta parecerse acusticamente a quien queremos emular.

Al colocar nuestro aparato fonador en actitud de im.itacion cambiando la postura de los labios, la boca.la lengua. etc .• 10 que estamos haciendo es modificar voluntariamente la fomla de nuestros resonadores naturales para transforlllaria el otra distinta. Es decir, estamos alterando de fomla consciente el timbre de nuestra voz.

89

Revista de Letras n05

Por supuesto, en la construcci6n de una imitaci6n sonora tambien entra en juego el tono,la intensidad y el ritrno de locuci6n, construyendo un estilo son oro global (Cfr Montoya, 1999: 174-178). Probablemente, los rasgos timbricos de la imitaci6n son los menos conocidos, pero no pOl' ella son los menos importantes. La nasalizaci6n (predominio de laresonancia nasal sobre la bucal), por ejemplo, serfa un ejemplo muy claro de un rasgo timbrico expresivamente muy claro y, ala vez, facil de utilizar. Un timbre muy nasal en la voz es un rasgo que tiende a otorgar al locutor elementos de personalidad negativos (poca inteligencia, incultura, mala educaci6n, etc.).

Para hablar sobre la descripci6n de texturas hare de nuevo referencia a uno de los juegos sonoros que suelo utilizar en mis c1ases. Esta vez,la propuesta consiste en proponer a los estudiantes que escuchen con atencion las caracteristicas de dos sonidos que voy a emitir con objeto de que puedan decinne cual de ellos les parece que describe mejor una superficie completamente lisa y brillante y cual una superficie aspera y lUgosa. A continuaci6n emito durante algunos segundos la vocal «aaaaa)) de la forma mas armonica de que soy capaz; luego emito «aaaaa)) pOl' segunda vez, pero ahora rompiendo mi voz de modo que suene muy carraspeante y mezclada con ruido de aire. Cuando pregunto cUlil de las dos fOIInas de hacer sonar describe mejor la superficie lisa y cualla rugosa, la respuesta es siempre, absolutamente sin ninguna excepci6n y sea cual sea el mimero de estudiantes, que la emision annonica se corresponde con la superficie lisa y la inaunonica con la aspera.

Es evidente que la experiencia nos peunite afu mar que la construccion de la voz de un modo inarmonico (carraspeante, roto) al hacer una descripcion sugiera una textura aspera y rugosa de 10 descrito y, por el contrario, que la emisi6n de la voz con un sonido arm6nico sugiere texruras lisas y blillantes. Del mismo modo que las superficies regulares y homogeneas tienen un aspecto visualliso y llano, los sonidos que organizan su espectro de una fOilIla ordenada producen sensaci6n auditiva de annorua y regularidad.

9. Discusion y prospectiva.

Aunque este articulo no se ha presentado con la estructura chisica de una memoria de investigacion, en el se articulan parte de los resultados obtenidos en cuatro proyectos de investigacion consecutivos que centrados en el estudio de la expresividad oral, cuyas memorias esrnn referenciadas en la bibliograffacitada. Hemos considerado que una forma de presentacion mas didactica que cientffica, pennitiria comunicar con mayor eficacia el alcance real de esta linea de investigacion y sus posibilidades de aplicaci6n practica y tecnica.

EI sonido de la voz parece ser hoy un objeto de estudio exclusivo de la lingiiistica y la ingenieria del habla, no obstante, ninguno de estos dos campos de estudio ha sido todavia capaz de resolver el problema de la variabilidad expresiva.

90

Revista de Letras nOS

En este senti do, pensamos que la teona de la comunicacion en su perspectiva de investigacion aplicada, es decir, la comunicologia, en tanto que centra sus panldigmas en mejorar el rendimiento real de las comunicaciones en las que participa el ser humano, puede dar soluciones nuevas y eficientes a este problema. En esta linea es en la que debe enmarcarse este articulo.

Evidentemente, las propuestas que hemos presentado aqui son lirnitadas y no resuelven en su globalidad el problema de la variabilidad expresiva del habla. No obstante, consideramos que asientan unos fundamentos tanto conceptuales como empfricos que pueden ser un punto de apoyo importante, tanto para posteriores estudios, como para el entrenamiento, la experimentacion y el aprendizaje en el dominio expresivo de la voz.

La investigacion en este campo todavia esta completamente abierta y tendran que desarrollarse aun numerosos trabajos de investigacion antes de conseguir una modelizacion que sea capaz de recubrir y explicar todas las posibilidades de la expresi6n fonoesresica. Sera necesario, ademas, abrir una linea de trabajo que estudie la interaccion entre la informacion que emana de la expresion fonoestesica (que hasta este momento solo hemos estudiado aisladamente) con la estructura Iinglifstica. Es decir, una linea de investigacion que se encargue de estudiar como se articulan e interactuan los diferentes campos semanticos que evolucionan paralelamente en el habla.

91

Revista de Letras nOS ,

BmLIOGRAFIA:

GIL FERNANDEZ, J: Los sonidos dellenguaje. Ed. Sfntesis S.A, Madrid, 1990. IRIONDO, I; RODRIGUEZ BRAVO, A Y Cols.: "Validalon of an acouslical!

modelling of emotional expression in Spanish using speech syntesis techniques." en Proceeding of the ISCA Workshop on Speech and Emotion, pp.: 161-167. Queens's University, Belfast, 5 al7 de Septiembre del 2000.

JAKOSON, R; HALLE, M.: Fundamentos dellenguaje.Ayuso-Puma, Madrid, 1980.

KNAPP, M.L.: La comunicacion no verbal. EI cuerpo y el entorno. Paid6s, Barcelona, 1982.

LYONS, J.: Semantica. Teide, Barcelona, 1980. LEON, P.; MARTIN, P.: Proll~gomenes a I'etude des estructure intonatives.

Marcel Didier, Montreal, Paris y Bruselas, 1969. MOLES, A: Teorfa de la informacion y percepcion estetica. Jucar, Madrid,

1976. MONTOYA N.: El uso de la voz en la publicidad audiovisual dirigida a los

ninos y su eficacia persuasiva. Tesis doctoraL Dto. de Comunicaci6n Audiovisual y Publicidad, Universidad Aut6nomade Barcelona, 1999.

PEIRCE, CH.S.: Obra logico semiotica. Taurus Ediciones, Madrid, 1987. POYATOS, F.: La comunicacion no verbal I; Cultura lenguaje y conversacion.

Ediciones Istmo, Madrid, 1994 PRA:rIER, R.I. Y SWIFI; RW.: Manual de terapeutica de la voz. Salvat Editores,

Barcelona, 1986. RODRIGUEZ BRAVO, A Y Cols.: "Modelizaci6n aCL/stica de 10 expresi6n

emocional en el espailo/" en Procesamiento del Lenguaje Natural n° 25, pp. 159-16, SEPLN, Ediciones de la Universidad de Lerida, 1999.

RODRIGUEZ BRAVO, A: La dimension sonora dellenguaje audiovisuaL Paid6s, Barcelona, 1998.

RODRIGUEZ BRAVO, A: La construccion de una voz radiofonica. Tesis doctoral. Dto. de Comunicaci6n Audiovisual y Publicidad, UniversidadAut6noma de Barcelona, 1989.

SAUSSURE, F.: Curso de lingiiistica generaL Akal Editor, Madrid, 1980. SPEECH AND EMOTION: Proceeding of the ISCA Workshop, Queens University,

Belfast, September 5-7, 2000. STANISLAVSKY, Co: La construccion del personaje. Alianza Editorial S.A,

Madrid, 11980. ULLMANN, S.: Lenguaje y estilo. Aguilar, Madrid, 1977.

92

Revista de Letras - UTAD

nOS , 2000, pp. 93 - 104

Revista de Letras nOS

La Maladie qui pourrit de l'interieur: La Montagne Magique et Antonio Lobo Antunes

Susan Gasster-Carrierre University of Michigan

eet article tentera d' etablir certains paralleles entre la figure de la maladie chez Ant6nio Lobo Antunes et lLz Montagne magique de Thomas Mann, tout en cedant la priOIite it ce dernier que je viens de decouvrir, et qui fut, effectivement la source d'inspiration pour ces ret1exions. II faut admettre de prime abord que Thomas Mann appartient it I' ecole de romanciers qui creait ce que Henry James appelait « loose, baggy monsters, » ces romans du dix-neuvieme debut du vingtieme siecles, qui racontent surtout une histoire, creent des personnages dits « en trois dimensions» ou, comme Andre Mal.raux Ie disait de Dostoievsky, faisaient dialoguer les lobes de leur cerveau. Lobo Antunes, appartenant it une autre epoque, imbu de situations esthetiques et sociales tres differentes, nous propose un monde romanesque eclate et probIematique.

En abordant I' reuvre de Lobo Antunes pour la prentiere fois, on est assailli par la densite langagiere et syntaxique, la complexite de la narration qui fait I' effet d'un plongeon it travers les profondeurs plutotque d'une sensation de linearite. La quantite de metaphores contribue it cette densite, exigeant un effort de visualisation ou une dislocation de l'imagination pour les inregrer it la trame : (e.g. dans Le Retour des Caravelles, parlantde la mere du proxenete de I.' Hotel I' Apotre des Indes,« un creur de carte it jouer entre les arcs de chapelle de ses sourcils grisonnants, et dans les pupilles Ie reflet de pieces d' eau pleines de crocodiles » (p. 47), « au son de plaintes de jeune mariee des grues (i. e. dans Ie port de Lisbonne)>> (p. 33), « je I' ai vu pousser une porte ... et disparaitre it !'interieur comme un bonbon completement suce »(L'Ordre IUlturel deschoses, p. 61) ; « il me semble entendre lerire brusque et orgueilleusement libre des Luchaz, . .. comme la trompette de Dizzie Gillespie, jaillissant du silence avec l'irnpetuosite d' une artere qui se rompt. » (Le Cui de Judas, p. 205) Mais aussi etonnant est la presence du monde physique, voire physiologique, et surtout la presence du corps malade.

lei seulement trois ceuvres de r auteur vont nous retenir, Le Cui de Judas, La Nature des choses et Le R etour des cara velles, surtout, Le Cui de Judas et Ie Retour des caravelles, c' est it dire ceux qui traitent plus directement de la fin du colonialisme portugais en Afrique. Dans ces ceuvres, la decadence morale d 'une societe qui essaie de s'imposerpar la force sur un monde qU'elle ne connait ni ne respecte, un monde en meme temps cache et ineluctable, se traduitpresque toujours

93

Revista de Letras nOS

par des metaphores de la malaelie du corps: (I' avian « agitant les ailes avec I' anxiete d'un asthmatique qui cherche de I' air, » (p. 109) un joueur d' echecs au Mozambique qui avance un pion « interrogateur et reticent pareil au doigt qui tate, craintif, un bouton infecte. » (p. 62) « Je me reveille Ie matin avec une sciatique it l'ame. »(p. 127) (Le Cui de Judas)

Le titre, L'Ordre nature! des chases me semble etre en meme temps une triste ironie, tellement nous avons affaire it l'histoire humaine, et non pas it« un ordre nature!. » Au sUlplus, on pourrait interpreter que Lobo Antunes accuse une contradiction dans Ie sens au ce qui est « I' ordre naturel des choses » au Portugal n' a rien it voir avec ]' experience de ceux qui vivent ailleurs. La grand-mere (mane ?)

dans Ie roman dit, « On appellera roman ce que j' ai ecrit dans rna tete habitee d'une epouvante dont je ne parle pas et que quelqu' un, une annee au une autre, repetera pourmoi, suivant en cela], ordre naturel des chases, tout comme Benfica se repetera dans ces rues et dans ces immeubles sans destin, alors sans rides ni cheveux gris . .. » (p. 332)

Le roman offre deux personnages nes du colonialisme africain, une jeune fille malade du diabete et son pere qui devient de plus en plus fou it partir de son experience en Afrique du Sud et au Mozambique. A l'instar du pMnomene plus amplement developpe dans Le Retour des caravelles, ici on dit que Iolanda a une maladie qui « la pourrit de dedans. » (p. 262) Les parents du garc;on dont elle est eprise disent qu 'il ne peut pas s' approcher d' elle paree qu' elle est anivee malade du Mozambique, et« ils ant peur que (il) pourrisse aussi du diabete. »Pour peu que I' on connaisse Ie diabete, il n' est pas du tout contagieux, et lie it]' ex-colonie dans Ie texte, il revele pleinement son aspect metaphorique. Iolanda, en retJechissant it sa vie et pourquoi elle est tellement malade et isoIee des autres se elit « . .. si mes parents n'avait pas emigre en Afrique ... (je serais nee) d'une autre mere quelconque sans eliabete, sans haleine de fleurs, sans injections d'insuline, sans la honte de rna malaelie qui m'isole des autres, qui m'empeche de manger des glaces ... et d'avoir des enfants. » (p. 272) Le pere de la diabetique nous raconte l'histoire de son mariage au Mozambique, de sa femme devenue folie, et de sa fille abandonnee dans lamaison pendant que sa mere regardait par la fenetre les chalutiers dans Ie port. La lumiere que la narration projette sur cette histoire est tellement oblique que presque tout reste dans r ombre. On ne voit que Ie pere en train d' abandonner it son tourla mere folie dans l'asile itl'epoque de la liberation du Mozambique. II s'en va en laissant derriere lui « Ie puanteur des campements des Noirs, » (p. 103) les mines au il travaillait, Ie climatmalsain,les geckos, et la H!volution qui reprend tout: «au eliable tout c;a. »(p. 106) Si, comme sa fille, i1 ne regrette pas I' Afrique, Ie mal est fait. Quaud iI revient au Portugal i1 « vole sous la terre » eomme du temps ou il travaillait dans les mines, se promenant avec son casque de mineur, la lampe allumee, pioche it lamain. Trois victimes malades du colonialisme, dont une pouniede l'interieurpar ce sang qui charrie peut-etre Ie trop-plein de la vegetation des tropiques africaines

94

Revista de Letras n05

avec son haleine de fleurs, la mere catatonique, et Ie pere dement. Ce sont juste des traces ou des epiphenomenes dans I' enoJ"lne fresque de

l'Ordre naturei des chases. Lobo Antunes s 'adresse davantage dans ce roman it la situation de la dictature au Portugal et it la desintegration des families de la petite bourgeoisie qu' aux conditions en Afrique. Le Cui de Judas, dont Ie sujet plincipal est Ie colonialisme, rejoint neanmoins La Nature des chases sur la question du regime fasciste. Le narrateur de Le Cui de Judas remarque souvent sur la corruption du regime de Salazar qui envoie it lamort en Afrique uniquement ceux qui n' ont pas de liens avec Ie pouvoir. n perore, dans son imagination , « si vous me Ie pennettez, dites-moi pOUl'quoi les fils de vos ministres et de vos eunuques, de vos eunuques rninistres et de vos rninistres eunuques, et de vos mini eunuques et de vos eunistres ne viennent pas foutre leur gueule sur ce sable comme nous .. . » (p. 116) (Nous signalons encore ici Ie vocabulaire sexuel/physique de la metaphore du narrateur.) Le narrateur d€crit avec amertume les fanfaronnades patriotiques de I'Estado Novo pour encourager Ie peuple it continuer la guene pendant quatorze ans, lui meme comparant les gran des navigations du quinzieme et du seizieme siecles avaux les «eunuques » du regime de Salazar. L' image des descendants est non seulement de la decadence morale des chefs, mais dans Ie sens concret de «de-chom, : Ie narrateur dit que les descendants de r epoque heroi'que portugaise maintenant en Afrique disparaissent par morceaux : «une cheville, un bras, un bout de tripe, .. » dechires par les annes de la guene coloniale. La Nature des chases nous offre un monde renfelllle sur lui meme, des spira!es de personnages, et comme nous r avons commenre, la guene coloniale reste plutot en coulisse. Nous voyons en direct, quoi que de fac;on hallucinatoire, la repression politique it l' interieur du pays: la torture de Jorge, par exemple est racontre a plusieurs reprises et toujours sans que Ie lecteur entende ce que la P.l. D. E. veut de lui. II est clair qu'ils ont deja attrape ses compagnons de complot. Finalement nous lisons une description de la torture par chocs electriques, insupportable dans son detail physique, qui fait hurler it notre personnage la «confession» attendue. Elle n'a rien de politique; c'est Ie resume de toutes les tristesses et hontes personnelles de sa famille. On peut voir dans cette miserable confession de Jorge: !'impuissance de son pere, I' adultere de sa mere, sa sreur illegitimeenfennee dans Ie grenier, et d'autres desolations, les elements d'une societe en pleine degenerescence. D' ailleurs, Ie texte etablit un rapprochement entre Ie Portugal pris dans la repression interne impitoyable et insensee et les cruautes et ]' obstination de la guene coloniale. Les deux menent a des absurdites politiques representees dans Ie style de Lobo Antunes par des visions de maladie et de la souffrance du corps.

« La maladie » attrapee en Afrique par Ie nan-ateur dans Le Cui de Judas est quasiment la matiere primaire du roman. L'reuvre est composee par Ie long recit de toute la nuit coupe par des phrases adressees a la femme (qui ne repond jamais), des commentaires sur leur situation de « drague » dans un bar, et la description de

95

Revista de Letras n0 5

son corps a eIle. Le roman nous pennet de comprendre dans tous les details I'incapacite du narrateur de se reconstituer, de se refaire une vie apres son retour « du trou panni. » Le texte oscille entre Ie present et les images de I' Afrique auxquelles il n' echappe jamais. n n'y a pas vraiment de difference entre la souffrance des Noirs et des Blancs, ses compagnons de guerre, sauf que les scenes plus individualisees sont avec les soldats, par la force des choses: Ie soldat qui a marchi' sur une mine, Ie soldat qui s' est tire une balle dans la tete, et qui Ie hantent. Nous voyons egalement les Noirs qui attendent de creuser leur tombe avant d'etre fusilles, (p. 157), les enfants qui se promenent comme des fant6mes avec leur ventre ballonne. Seule Sophie, qui l' accueille dans son lit, (p. 166-167) et Ie soba, (p. 43) rnis en place par les Portugais, se detachent de la generalite de I'horreur qui pousse Ie narrateur a s' ecrier,« QU'a-t-on fait de mon peuple, Qu'a-t-on fait de nous, assis la, en attente, dans ce paysage sans mer, prisonniers de trois rangs de barbeles, dans un pays qui ne nous appartientpas .. . »(p. 63)

Le narrateur qui nous a fait comprendre au long du recit qu 'il ne peut vivre nonnalement avec I'horreur de ses souvenirs en revient a la fin a une image ironique de sante: les depistages de maladies tropicales que l' on a fait faire aux soldats avant de les rapatrier. La Mere patrie semble refuser toute participation a la ponnirure qui monte de I' Angola et du Mozambique vers elle: «On nous examinait la pisse, la merde, Ie sang pour que nous n'infections pas Ie Pays de notre panique de la mort, du souvenir du gar"on blond couvert d'un linge, de I' infmnier assis sur la piste les intestins dans ses mains ... »(p. 204)

Justement Ie monologue du narrateur, Ie silence «ironique» de la femme, isolent davantage notre personnage. C' est assis sur la cuvette des we qu'il se souvient de Sophie, se regardant dans la glace de son appartement (p.l68-169), aussi loin que possible de la misere et de la promiscuite du Mozambique. Le recit laisse en blanc la naissance de sa deuxieme fille, et I' echec de son mariage; il faut extrapoler qu' a la racine de ces malheurs et echecs gisent les images de I' Afrique dont il n' arrive pas a se debarrasser. Au petit matin, apres la nuit qu' il a passee avec la femme silencieuse, Ie narrateur dit, « De sorte que, s'il vous plait, ... expulsez vers Ie couloir I' odeurpestilentielle et odieuse et cmelle de la guerre et inventez une paix diaphane d' enfance pour nos corps devastes. » (p.191) Ou bien, « Quelques fois, vous savez,je me reveille au milieu de la nuit assis sur les draps, entierement eveille, et il me semble entendre venu de la salle de bains, ou du couloir, ou du salon, ou des !its superposes des filles, I' appel bleme des defunts dans leur cercueil de plomb, la medaille d'identification que nous portions au cou posee sur la langue ala maniere d'une hostie. » (p.205)

Le Retour des caravelles, par contre, nous plonge dans Ie monde baroque de personnages sur deux continents et des deux epoques de l'histoire du Portugal, donc, pas du tout un sentiment de solitude devant un desastre ou un crime de dimensions historiques. Tous vont, certes, a vau I' eau, mais dans Ie grouillement

96

Revista de Letras n<J5

plus ou moins cocasse ou desolant du ressac de cet empire etabli dans la gloire et ramene dans la honte et la pouniture. C' est I 'homrne « prenomrne LUIs» qui donne Ie ton, bien sur, trimbalant Ie cadavre de son pere dans Ie cercueil, ou il pourrit lentement. Tout autour, Ie monde est domine par la chair en decomposition, ou dans un etat de delabrement moral.

A la fin du roman, Lobo Antunes laisse tomber tout ce monde en ebullition pour se concentrer sur Luis, qui ecrit au fur et a mesure son poeme epique. Apres avoir traine a Lisbonne pendant un certain temps, il finit par etre loge avec d'autres « retomados » dans un hapitaJ pour phtisiques reaffecte a leur usage. A force d' etre traites comme des tuberculeux, les « retomados » att! apent la maladie; ils sontobliges de porter avec eux des eprouvettes et des bassins pour recueillir les filets de sang et meme des lambeaux de poumons qu' ils expectorent.

C' est ici que les deux mondes romanesques, celui de Thomas Mann et celui de Le Retour des caravelles manifestent des paralleles interessants, evidemrnent par leur mise en scene de smwtoria pour tuberculeux mais plusieurs autres sens. Du premier coup d'rei!, nous voyons dans les deux romans une petite societe en chaises longues, preoccupee ou occupee a prendre leur temperature et it discuter de leurs radiographies. Chez Lobo Antunes, ils pOitent avec eux leur eprouvette it crachats sanguinolents; chez Thomas Mann Ie premier signe de lamaladie que Joaquimmontre a Hans Castorp est ce flacon teint en bleu pour cacher la couleur des expectorations.

Ce qui me semble encore plus significatif dans les mondes de maladie chez les deux ecrivains est leur aspect de contagion plutat que de guerison. Hans Castorp arrive au sanatorium Berghof, croit-il, en bonne sante pourrendre visite it son cousin Joaquim qui est malade. Le docteur Krokovsky lui dit, quasiment en guise de bienvenue, « Je n' ai jamais rencontre un homrne absolument bien portant. » (p. 24) EffectivementHans Castorp se met volontairement au regime des malades des son arrivee, repas, repos, petites promenades, Peu apres Ie medecin en cheflui trouve une «tache humide » au poumon. De la meme fa"on, on installe les « retomados » dans Ie sanatorium d' ou r on a evacueIes malades. Mais on n' avait pas transfere les infinniers, et ils traitent les nouveaux residents comrne des tuberculeux. (p. 256 ) Ainsi, « Des I' aube, un concert de racJements de gorge et de bronchites couvrait les piaillements des oiseaux du jardin. » (p. 256)

Or, Ie sanatorium Berghof est un lieu de luxe, avec des repas copieux et frequents, prepares par les meilleurs chefs, les chaises longues d'une comrnodite inouie; les « retomados » a force de ne manger que de la soupe de poulet et de tousser deviennentpresque transparents. Hans Castorp reste sur la montagne magi que sept annres. Son cousin est deja mortet lui, de toute evidence, gueri. Effectivement, il y a beaucoup de « pensionnaires »comrne lui qui ne sont pas presses de rejoindre « Ie plat pays. » Le Berghofleur offre un abandon delicieux du monde contemporain, volontairement decide. Le sanatorium de Le Retour des caravelles n' offre pas de possibilite de guerison, non pas a cause de la seduction de ses confOIts, mais parce

97

Revista de Letras I{'5

que la maladie qui ronge de l'interieur va litteralement les faire disparaitre. Settembrini, tuberculeux revolutionnaire et liberal, essaie de rappeler Hans

Castorp a l'ordre. Illui adresse toujours la parole sous forme d'« ingenieur, »en evoquant Ie travail noble d'un homme capable de construire un bateau. L' ennemi ideologique de Settembrini est Naphta, qui nie la realite du monde et de la science « ... 11 laquelle il ne croyait pas .... l'homme etait absolument libre d'y croire ou de ne pas y croire. Elle etait une fois, comme toutes les autres mais plus stupide et plus malfaisante que toute autre .... L'idee d' un monde materiel existant en soi, n' etait -elle pas la plus ridicule de toutes les contradictions » (p. 746). L' ennemi charnel, aux yeux de Settembrini, est la Russe, Mme Chauchat. Il dresse pour Hans Castorp la distinction entre la civilisation (ou plutot la non-civilisation) de l' Asie, (p. 269) ou l' espace tellement enonne fait oublier Ie temps, et la civilisation occidentale faite de luttes politiques, de praxis, d' humanisme. II s' emporte contre Ie laisser-aller moral et physique de la belle Russe. Meme Hans Castorp fait la reflexion que « sa maladie (i.e. de Mme Chauchat) etait, sinon completement, du moins pour une bonne part, de nature morale, » que sa nonchalance et sa tuberculose ne forlIlait qu 'une seule nature. (p. 253) C est justement sa demarche feutree, sa maniere indolente de porter la tete qui l·attirent. Le vieux qui couche avec Iolanda dans La Nature des choses ressentit egalement la sednction de son infirmite: « ... ta maladie me surprend, Iolanda, avec ses tremblements, ses evanouissements, ses sueurs ... etintense communication avec la mort qui te vieillit en dedans, comme si tes organes ... se decomposaient sous la victorieuse jeunesse de la peau. » (pp. 50-51)

Hans Castorp, appele a comprendre et a interpreter sa passion, evoque l' amour insense dn soldat don Jose pour Carmen, la tzigane, dans Ie conte de Merimee. Il semble possible de faire un rapprochement entre Ie Portugal perdant de plus en plus Ie sens de sa « mission » des siecles de l' exploration et de la navigation, affamant et opprimant les Africains sous sa « tutelle, » comme Hans Castorp s' eloigne de cette mission d'ingenieur pour laquelle i1 a fait des etudes. Au debut il essaie de s' opposer 11 Settembrini avec des relents de romantisme, affirmant que la maladie est un etat superieur de l' etre humain. (pp. 228; 323) Mais finalement il accepte que son amour pour Mme Chauchat emane du fait de se soumettre au principe de la maladie, et que c'est pour cela qu'il est reste au sanatorium. « rai tout oubHe, rompu avec tout ... mes parents et ma profession ... » (p. 661) Pendant ce temps la vie« du plat pays » n' existe pas pour lui; il ne sait rien de ce qui se passe dans Ie monde de la plaine. Vne visite au Berghof de son cousin James, apres des annees presque sans contact avec Hans Castorp, nous fait prendre pleinement conscience de la qualite morbi de du sanatori um, selon Settembrini, « l' aristocratie du tombeau.» (p.636) Castorp ne pose aucune question au sujet de la famille, des evenements dans Ie monde. A l'instar de Hans Castorp des son arrivee comme visiteur, James estprie de suivre Ie regime du sanatorium, et de passer 11 une consultation avec Ie docteur Behrens. Le

98

Revista de Letras nOS

lendemain d'une conversation assez pointue sur la desintegration d'un cadavre, Ie cousin James quitte lamontagne sans annoncer son depart it personne. La visite sert it mettre en exergue la distance que Ie sanatorium etablit entre « Ie principe de la Vie » et« la morbidite. » I

Ace sujet, on poun'ait compareI' un aspect de Le Retour des caravelles, l'implantation en pleine Lisbonne de ces « pounis » et depayses, dont les installations sont completement insolites, meme avant que la ville ne les logent dans l'hopital. Nous avons deja evoque dans la premiere partie de cette etude la presentation que donne Lobo Antunes d'une societe portugaise sui generis et debilitee par la guerre et la dictature. La configuration d' une « societe » au Mozambique que donne Ie narrateur de Le Cui de Judas, a peine esquissee, mais honifiante, c'est de ces planteurs restes dans la brousse, en train de vivre leur Montagne magique, c'est a dire, de nier tout contact avec les nialites d'une guerre civile que Ie Portugal ne peut pas gagner. (p.125) lis disent aux soldats, « Si vous n' etiez pas la, nous nettoyerions tous ces noirs d' ici dans un clin d'ceil. »2 A I'hOtel de luxe OU I'on loge un groupe de « retomados, » les choses tombent dans Ie plus grand desordre: toutes les femmes se font des robes elegantes avec les rideaux et les des sus de lits. La femme revenue avec sa machine 11 coudre (etrien d'autre) annonce 11 son mari, «On m 'a invitee a un mechouli de chat dans la salle de bains dessus .... Tu veux venir ? » (p. 75) L'hotel de Fran~ois Xavier est raconte par Lobo Antunes de fa~on a nous faire comprendre encore mieux la degradation des « retomados, » Ies mille pattes qui se promenent dans tous Ies sens, les scarabees morts, les lezards atones, Ies huit families revenues de I' Afrique logees dans une seule piece, la muHitresse tout de suite recmtee pour travailler dans la rue en bas. (p.46)

Dans deux sens differents, Ie temps est 11 la base des deux romans; sur la montagne magique, il est pour ainsi dire inexistant. (Dans Le Cui de Judas il est egalement question d' un temps qui engouffre les personnages enferrnes derriere les barbeles du Mozambique, inactifs, revivant des I' aube de chaque jour une repetition de celui de Ia veille, transis de peur, sans autre activite que de se masturber et de se chamailler.) Sur la montagne, Ie non-temps est sans angoisse. On dit tout de suite it Hans Castorp que Ie temps la haut se compte dans sa me sure minimum par les semaines. Les saisons ne correspondent pas aux nOlllles du pays plat: il neige autant en ete qu' en hiver, les joumees chaudes suivent immediatement les joumees de gele. Ce n'est que les grandes fetes qui marquent l'annee, mais pour les pensionnaires c 'est « toujours la meme annee, » et ponctuee par les repas et les repos, la meme joumee. Le temps et I' espace se confondent.

Le temps se confond chez Lobo Antunes, de fa~on heroi'que/anti-heroi'que. Les noms des personnages qui evoquent les siecles des navigations, des explorations et des decouvertes brouillent Ie temps. Pour commencer, bien sur, « l'homme pninomme Luis »; Ie proxenete qui dirige les prostituees it L'Hotell' Apotre des lndes, Fran~ois Xavier qui s'illumine avec des ampoules derriere la tete pour rappeler

99

Revista de Letras n05

sa beatification (p. 250); Luis qui regarde sa starue sur une place publique, Diogo Cao train ant ses cuites sur deux continents, Cervantes qui joue aux cartes dans la cale de la caravelle, et la scene cocasse ou Vasco da Gama et Ie roy Manoe! se promenant dans la vieille Ford se font jeter en prison faute de presenter les documents requis pour la voirure. (pp. 202-203) Luis attend ses appareils electromenagers qui doivent arriver dans une caravelle qui n' en finit plus de tarder. Des phrases melangent les deux epoques sans aucune indication de temps historique : «Tandis que Sa Majeste, gonflant les veines de son cou, soufflait dans r appareil a liqueurs, Vasco da Gama n' eut me me pas besoin de prendre ses lunettes dans la poche de son gilet pour remarquer la marure d'une caravelle qui avait jete J' ancre dans Ie Tage et baisse ses pavillons en attendant que Ie vent se levat.. .(p. 203). L"homme qui a vendu sa jeune femme pour un billet d' avion en direction du Portugalla retrouve quelques mois plus tard vieillie comme si elle etait quelqu'un d'une autre planete. (p. 123) Le couple a vecu si longtemps en Guinee que Ie temps n 'a pas de sens: seulement Ie monsieur s' en rend compte en regardant la laideur de sa femme, et en luttant contre les faiblesses de son propre corps. Surtout la photographie de leur mariage qui s' estompe de plus en plus lui rappelle que Ie temps a passe. La photo incarne ce temps qui n'existe pas pour ceux qui Ie vivent, comrne les bomes kilometres pour ceux qui revent a autre chose en conduisant, et voient tout a coup combien de route ils ont faite en elant ailleurs.

De certains cotes la clinique Berghof a un aspect sinistre. Les deux docteurs eux memes avec leurs cosrumes complementaires, Behrens avec ses moustaches et ses mains de la taille de « pattes, » presque tou jours notees comme des epithetes homeriques,la blancheur du docteur Krokovsky et ses dents jaunes. Le lecteur n' est jamais sur des mobiles du docteur Behrens, que Settembrini denonce rondement et appele Rhadarnante, Ie gardien de I' enfer. (p.67) L'Italien Ie voit des sa premiere conversation avec Hans Castorp comme un homme qui met la maladie au service de sa bourse. Mais nous ne sommes pas non plus persuades de la sante morale ou sociale de ceux qui I' ecoutent, quasiment sans exception, « des enfants gates » la societe d'une bourgeoisie crepusculaire. II y en a qui anivent au Berghof dans un etat de maladie deja fort avance, mais cette constatation ne fait que suggerer que la tuberculose sert a Thomas Mann comrne metaphore pour la decadence de toute cette societe europeenne. Seul J oaquim se trouve vraiment malade contre son gre et son desir de mener une vie active. C' est lui qui a Ie sens de la vie, ]' esthetique de la discipline, et la pudeur du militaire. Pour Ie reste, nous nous trouvons face a face avec des gens qui mangent des quantites incroyables de nourrirure fine, passent les heures reglementaires couches dans leurs chaises longues douillettes et menent au fond une vie mondaine. C' est d' ailleurs pendant les heures de repas que r on emporte les malades qui sont morts, de sorte que les pensionnaires toujours bons vivants ne se genent pas a la vue d'un cercueil.

Par contre, les morts du sanatorium ou est loge I'honune prenomme Luis

100

Revista de Letras nOS

devieTUlent tellement nombreux que]' on est oblige de les ranger un peu pmtout: «La phtisie decimait des pavilions entiers, et les corps, enveloppes dans des couvertures numerotees, attendaient les ciseaux de I' autopsie, non seulement sur les tables de marbre ou I' on depe~ait les defunts mais jusque sur les marches qui menaient a la cave ... pele-mele avec les journaux et les cafards ... » (p. 262) Bient6t ce sont les infinniers et les medecins qui sont contarnines. Au fur et it mesure que Lobo Antunes approche de la fin de son roman, ses « retornados » mal nourris et exsangues deviennent de plus en plus transparents: ils se confondent presque avec les aquarelles des mUfS. (p. 259) Ils ont un aspect de civilisation qui s' eteint sous Ie po ids de son propre ctelabrement.

Les deux romans fini ssent avec des references importantes ala musique: Hans Castorp ecoute avec Ie gramophone du Berghof des morceaux d' opera qui r aident it mettre en place ses emotions vis it vis de Mme Chauchat et de son frere mort. On pourrait dire qu'il se sert de la culture et de I' humanisme occidentaux pour sortir de ses steppes asiatiques, et voir clair en lui-meme. Dans Ie roman de Lobo Antunes un fIGtiste qui fait partie des« comploteurs cherchant la restauration de I'independance du Portugal » (pp. 259-260) joue tous Ies dimanches apres midi au sanatorium. Comme Ie fluti ste qui mnena d' abord les rats et puis les enfants du village de Hmnlin dans Ie conte folklorique, il amene les rapatries tuberculeux au bord de la mer it ]' aube pour attendre Ie roy Sebastien.

Nous avons deja vu Sebastien a deux replises dans Ie roman, d' abord au moment de son depart pour Ie Maroc, « portant une at mure en bronze et un heaume empanache» (dans un decordu vingtieme siecle) et (p. 197) « Sebastien, ce cretin bon 11 rien qui se promenait toujours en sandales et portait une boucle d' oreille en su~ant continuellement un joint de haschisch, avait ete poignarde dans un quarrier de drogues du Maroc pour avoir vole a un pede anglais du nom d' Oscm' Wilde un petit sac de marijuana. » Le dernier paragraphe rend clair aux lecteurs r allusion a un my the moribond, difficile it saigner completement it mort, entretenu par Ie fluti ste, dans la chair malade de ses residents du sanatorium. C' est une image de desolation dans I' attente, avec, autour des colons malades, des pecheurs, des pique-niqueurs­des gens normaux qui vivent sans attendre Sebastien et qui ... « ... regardaient d' un air stupefait notre bande de mouettes toussantes, en robe de chmnbre, perchees sur les gouvemails et sur les helices en attendant, au son d' une flute que les visceres de la mer rendaient muette, les hennissements d'un cheval imaginaire. » (p. 67)

LaMontagne l11agique avance egalement vers une apotheose de la societe qu'il represente: tout comme Lobo Antunes qui isole pour ainsi dire l'homme pn!nomme Luis a la fin, ou tout au moins regroupe ses personnages, Thomas Mann nous laisse avec Hans Castorp, pris dans la fange et la destruction du champ de bataille de la Grande Guerre.

II serait possible de voir dans Ie texte de Thomas Mann tout simplement les louanges de ce personnage qui a pris Ie chemin de la vie apres sept annees passees

101

Revista de Letras nOS

dans la decadence, i'idolatlie de la maladie, l"inertie, et surtout l'envoutement de Mme Chauchat, sa colonne dorsale, sa langue « desossee. » D' autant plus que dans les joutes entre Settembrini et Naphta, peu a peu, nous commen~ons a discelller une preference pour les idees de celui-lii, son engagement avec la societe et Ie progres scientifique, Or, il estdifficile de voir la Premiere Guerre mondiale comme un triomphe du Progres, ni de l'humanisme, ni du rationalisrne, et surtout pas a travers Ie vocabulaire et les images dont use Thomas Mann pour decrire cette scene de carnage, Parlant de Hans Castorp sur Ie champ de bataille: «II tombe. Non, il s' est jete a plat ventre, parce qu' un chien infelllal accourt, un grand obus brisant, un atroce pain de sucre des tenebres. II est etendu, Ie visage dans la boue fraiche ... Le produit d'une science devenue barbare, chargee de ce qu'il y a depire, ... penetre a trente pas de lui obliquement dans Ie sol comme Ie diable en personne, y explose avec un effroyable exces de force ... » (p. 771) et souleve des morceaux d'humanite. AltelllativementMann parle du virile courage de cette jeunesse, mais il finit par une sorte de priere qui pourrait se comprendre comme un rapprochement entre «I' aristocratie de la mort» de la montagne magique, et la guerre. «De cette fete de la mOlt, elle aussi, de cette mauvaise fievre qui incendie a l'entourle ciel de ce soir pluvieux, i'amour s'elevera-t-iJ unjour ? » (p. 772)

Sachant que Mann a commence Ie livre en 1912 et I' a tenrune apres la Premiere Guerre mondiale, il semble que la societe occidentale dans laquelle Settembrini voyait I' avenir de l'humanite et la fin des souffrances humaine n' aitpas si vite atteint les beautes esperees. Au lieu de laisser dans un temps depasse la maladie de la decadence de la societe occidentale, elle a simplement pris une autre forllle, celie de la destruction confuse, gratuite, insensee. Par contre, la fin du Le Retour des caravelles. avec ses ex-colons malades groupes sur la plage semble annoncer un avenir meilleurpour Ie Portugal, gueri de i' attente de son my the.

102

Revista de Letras n05

LOBO S, Ant6nio : Ie Cui de Judas (trad. Pierre Uglise-costa). Paris: Editions Metailie. 1997.

L'Ordre naturel des chases. (trad. Genevieve Liebrisch) Christian Bourgeois, ed. Collection Points. 1994.

Ie Retour des Caravelles. (trad. Michelle Giudicelle et Kleiman, 0.) Christian Bourgeois, ed. Collection 10/ 18. 1990.

JORGE, Lidia. Le Rivage des munnures. (trad. Genvieve Leibrich) Paris: Ed. Metaille. 1989

MANN, Thomas. La Montagne magique. (trad. Maurice Betz) Fayard, 1961. Remerciements: r ai fais la connaissance de Ia litterature contemporaine du Portugal

en ecoutant une conference de Mme Anabela Oliveira it Paris ill, en 1998, que je remercie pour son appui et pour ses suggestions bibliographiques.

Susan Gasster-Carrien'e e professora de frances e espanhol na Faculdade de Artes e Letras da Universidade de Michigan (Estados Unidos). A sua area principal de investigac;:iio e 0 romance franc6fono do Oeste Africano. Publicou nesse ambito Le Roman de Moeurs e Le Journal fluime dans Ie roman Jrancophone de I'AJrique de l'Ouest e Le Corps Victime sobre a anorexia como revolta interiorizada contra 0 colonialismo, urn estudo sobre a narra<;:ao nos romances de Mongo Beti e Squatting the 20 ieme arrondissement acerca da evoluc;:ao da presen<;:a africana em Paris.

103

Revista de Letras n05

NOTAS 1 A cet egard, un film catalan recent (1999) d'Agusti Villaronga. EI Mar. utilise un sanatorium

de tuberculeux comme metaphore pour la contamination de Ia cruaute et de la violence de la guerre ci vile en Espagne et ses liens avec I'Eglise Catholique, Taus les personnages. amis d'enfance pendant la guerre, se retrouvent. adultes. dans Ie sanatorium, malades « de l'interieur}) chacun de sa fac;on.

2 NOlons ici Ie roman de Lidia Jorge, Le Munnure des rivages au il est question en detai1 de la societe portugaise en Angola. groupee autour de I'h6tel Stella Maris, Nous y voyons la decadence. Ie racisme. la violence insensee qui regnent dans cette colonie vers la fin de Ia guerre de liberation, Mais il y a egalement un refus absolu de reconnaitre les realites de la guerre en brousse, et bien qu' evoque a distance, elles naus rapprochent de Ia vie de « prisonniers de trois rangs de barbeles }) decrite par Ie narrateur de Le Cui de Judas.

104

Revista de Letras - UTAD nOS. 2000, pp. 105 - I 14

Revista de Letras nOS

o poder da paIavra na cria~ao do mundo e a lusofonia na inven~ao do novo mundo:

Contribui~ao da Radiofonia na Defesa da Lingua Portuguesa

Juarez Caesar Malta Sobreira Universidae Federal de Pernambuco

Esta escrito no Livro dos Livros que no infcio era 0 Verbo, palavra que ao ser encamada fOIlnou 0 homem e 0 mundo. Com esta metafora bfbIica. suporte de toda uma filosofia da Iinguagem, temos ante n6s 0 indicativo do poder criador da palavra.

Na tradi<;ao judaica existe uma corrente mistica muito conhecida dos antigos portugueses. Trata-se da Cabala que e, na verdade, a ciencia do poder das palavras. Os sabios cabaIistas afinnavam. com total propriedade, que a palavra criou os mundos e sao seus sustentaculos, tal como lemos na BibIia: "E Deus disse: Fa<;a-se a luz" e a , luz foi feita . E, deste modo. escJarecedor que 0 mundo se fez pelo poder e pel a intennedia<;ao das palavras.

Assim se expressou Umberto Eco, afumando: "Primeiro, fala Deus, que criando o ceu e a ten'll diz 'Fa<;a-se a luz.' S6 depois desta fala divina 'foi feitaa luz. (Genesis. 1-34). A cria<;ao advem por urn ate da fala, e s6 nomeando as coisas que vai criando Deus Ihes confereo seu estatuto ontol6gico: 'E [DeusJ chamou a luz Diae as trevas Noite [ ... J. E chamou Deus ao fumamento Ceu' ."J

Segundo os cabalistas. 0 som das palavras estao estreitamente unidos nao s6 ,

ao significado das mesmas, mas tambem estao estreitamento ligados a coisa em si. E o que os psicanalistas, na melhor tradi<;ao lingufstica, chamam de significado e significante. Isso porque a cabala "altera, descombina, decomp6e e recombina a superffcie do texto e a pr6pria estrutura sintagmatica, concluindo esses atomos lingtifsticos que sao as letras singulares do alfabeto, urn processo de recria<;ao lingiifsticacontfnua". afinna Eco.2

A cria<;ao do mundo tern como suporte a palavra. Este e urn paradigma definitivo. Segundo os psicanalistas que fingem ler Freud lendo Lacan, s6 existe aquilo que tern nome. Pelo menos nisso eles quase tern razao, pelo menos desde 0

ponto de vistametaffsico, setivessem dito que s6 existe aquilo que tern letras, confonne esta escrito no Sefer Yetzir<i, 0 cabalfstico Livro da Cria<;iio:

"As villte e duas let/'as que formam 0 vigor apos terel11 sido postas em

105

Revista de Letras nOS

ordem e estabelecidas por Deus, Ele combinou-as, pesou-as, mudou-as e fonl1ou com elas todos as seres que existem, e todas as coisas que devertio serf armadas no futuro."3

Deste modo, como aprendemos com a ,poesia iluminada de Jorge Luis Borges, todo 0 rio Nilo esta contido na palavra Nilo Tambem Fernando Pessoa conhecia o valor transcriador da palavra, como demonstrou ao largo de toda sua obra, especiaImente em "Mensagem". 5

Por outro lado, a Filosofia tern dado sua contribuic;ao ao tema, pois S6crates afinnou, em "Cnitilo", que a paIavra e a coisa fonnarn uma s6 unidade. 0 nome e 0

nomeado (a coisa) tern uma mesma natureza, comparti!ham da mesma reaIidade, na afirmac;ao de Cratilo:

"Yesto es muy simple: el que conoce los nombres, canace tambi<!n las cosas." [Socrates responde}: "Quiza, Cratilo, sea esto 10 que quieres decir: que, quando alguien canace que es elnombre (y este es exactamente como la cosa), conocera tambien la cosa, puesto que es semejante al nombre.,,6

• E neste sentido, que devemos entender a importiincia da palavra, especiaImente

da palavra veiculada atraves do seu mais poderoso meio de divulgac;ao, que e 0

radio. A palavra, som articulado que sustenta uma significac;ao, e desde tempos

imemoriais, 0 vinculo que une os homens. Antes de mais nada, 0 homem para constituir-se em sociedade, deve proceder 0 intercambio das paIavras.

Dentre os diversos meios de comunicac;ao de massa, 0 radio e 0 maior e mais importante difusor da paIavra posto que e ela (a palavra) -e nao a imagem como na televisao, ou as letras, como na imprensa - 0 suporte e 0 vinculo da mensagem.

Assim, 0 radio se tomou urn poderoso meio de divulgac;ao da palavra. Por isso sua missao assume uma importancia de caracter civilizat6rio, 0 que !he confere urn status tanto politico quanta pedag6gico. Eleva-se a condic;ao de elemento educador da sociedade, considerando-se a educac;ao em seu sentido lato, isto e, enquanto formac;ao plena do cidadao.

o radio e intermedilirio entre os fatos que acontecem no dia-a-dia e 0

conhecimento dos mesmos porparte do publico em geral, especialmente voltado para sua missao infonuativa. Por ser assim, este meio de comunicac;ao tern uma imensa responsabilidade na " fonnac;ao estetica e idiomatica" do cidadao, como afinnou Mauro Guimaraes, director do Jomal do Brasil.

o nidio tern uma ligac;ao directa com as populac;6es, especialmente aqueJas que nao tern acesso a outros meios de comunicac;ao de massa, como a televisao e os jomais. Tanto a televisao quanta jomais erevistas exigem uma atenc;ao concentrada na medida em que e necessario olhar para eles, enquanto 0 radio pode ser escutado

106

Revista de Letras n05

enquanto se dirige 0 automovel, ou se toma uma ducha, ou mesmo as escuras no quarto de domur, ou enquanto se exerce actividades laborais. Assim 0 radio tern a vantagem de ser comparlheiro do homem em quaisquer momentos de sua vida.

Ademais, 0 radio e urn fiel aliado quando ocolre falta de energia pois 0 mesmo continua funcionando onde e quando os demais meios de comunica«ao sofrem interrup«ao. A rapidez com que se produz a noticia, atraves do radio, coloca-o na vanguarda do jornalismo pois os jornais e as revistas nao podem divulgar 0 fato em cima da h~ra, e a televisao para fazer 0 mesmo necessita de um complexo aparato tecnologico e humane muito mais amplo que 0 radio.

Mas, em contrapartida, 0 radio nao pode contar com 0 suporte auxiliar da imagem. Entretanto, esta lacuna e compensada atraves do recursos criativo da palavra e neste particular a lingua portuguesa e das mais ricas e variadas. 0 universo vocabular da ultima e mais preciosa flor do Lacio possibilita aos cuItores da palavra falada uma quanti dade extraordinana de recursos linguisticos par'a ensejar, no ouvinte os mais variados sentimentos e evocar as mais diferentes imagens que a alma humana pode conceber.

Devemos ressaltar que 0 radio e urn instrumento poderoso na difusao da lingua portuguesa porque ele possibilita ao cidadao comum ampliar seu vocabulario e assim dominar melbor 0 seu idioma. Aliada a esta fun«ao - por assim dizer ­pedagogica, a radio tarnbem possibilita ao trabalhador estar a par dos principais acontecimentos da sua cidade, do seu estado, do seu pais e mesmo do mundo. Isto e importante na medida em que 0 mundo globalizado exige que as pessoas estejam bem- infonlladas e 0 trabalbador de baixa renda nao Ie jornais ou revistas, e muitas vezes nao tern tempo de assistir aos telejornais.

o radio constitui-se em meioinfonnativo muito mais agil que outros meios de comunica«ao e, ao mesmo tempo, cobre areas mais proximas ao ouvinte. Por isso 0

radio alcan«a 0 ouvinte com a noticia no exacto momento em que ela acontece. Desse modo pode oferecer urn noticiario sobre a realidade daquele que 0

escuta. Dai porque a fun«ao precipua do radio, especialmente do radiojornalismo, e servir a popula«ao. Por ser agil, imediato e por estar mais proxima do ouvinte, 0

• radio tambem serve de caixa de ressonancia para os anseios da popula«ao. E por este motivo que 0 sucesso de muitos apresentadores de radio os leva a assumir cargos electivos, como e 0 caso de diversos parlamentares brasileiros, especialmente aqueles oriundos de cidades do interior.

Por se tratar· de urn servi«o publico, para 0 qual e necessario receber concessao governamental, 0 radio tambem e moeda forte na politica. Para conseguir aprovar 0

projecto que estabelecia em cinco anos 0 mandato presidencial, 0 ex-presidente Jose Sarney distribuiu a torto e a direito concess6es de radios. Entretanto, apos instaladas as radios nao podem representar os interesses dos poderosos de cada dia porque a i sen~ao e a sua moeda mais valiosa. Caso venha a cair no descredito ante a popula~ao, perde audiencia e com ela os patrocinios publicitarios que garantem

107

Revista de Letras n05

sua sobrevivencia. , E esta a compreensao da radiojomalista Maria Elisa Porchat, da Radio Jovem

Pan, de Sao Paulo, que afinI1ou:

"Aforfa e 0 poder do radio surpreendem a todo momento. A informafiio repercute defonna instantdnea, directa e imediatamente. Um ouve,fala para 0 outro e todos acompanham 0 fato, num aicancc espa11l0so. A consciencia disso Ii fundamental nas actividades do jornalismo. A consciencia e a capacidade que tem de a/ingir todas asfaixas do publico, de mobilizar e agitar a cidade; de unir e politizar a populafiio."7

No que conceme a urn congresso da natureza deste, no qual tenho a honra de representar 0 Brasil e no qual nossos innaos lus6fonos de Angola, Cabo Verde, Guine Bissau, Sao Tome e Principe, Moc,;ambique, Macau e Timor Loro-Sae (Timor Sol-Nascente), alem de representantes da "Diaspora Portuguesa" no Canada, nos Estados Unidos, em Luxemburgo e na Franc,;a, e de especial importilncia sublinhar 0

papel dos radios da defesa, promoc,;ao e difusao da lingua portuguesa. ,

Em relac,;ao ao Brasil, 0 C6digo de Etica do Jomalista estabelece, como responsabilidade profissional do jomalista, no capitulo III, artigo 17, que: "0 jornalista deve preservar a lingua e a cultura nacionais." Fica, portanto, detenninado que a profissao de jomalista e urn dos sustentaculos de preservac,;ao da nossa lingua portuguesa e da cultura a ela relacionada.

Devido ao fato de que 0 radio e som, a lingua portuguesa precisa ser dominada , pelos profissionais da radiofonia. E de todos sabido que os ouvintes nao gostam de ouvir teses ou urn linguajar empolado, pseudoerudito, pomposo. Mas 0 portugues bern falado, criativo, com boa pronuncia, e urn idioma agradavel aos ouvidos. A sonoridade vibcitil, a doc,;ura e a suavidade dos vocabulos, a musicalidade encontrada nas diferentes pronuncias e sotaques nascidos nas diversas manifestac,;6es nacionais e regionais, fazem do portugues uma lingua afavel e boa de ser escutada.

Mas nao devemos esquecer que, embora encantados com sua doce pronuncia, o portugues e uma lingua culta e diffcil de ser falada com toda correcc,;ao. Desse modo, 0 radio deve evitar 0 uso de uma linguagem inacessfvel. Pelo contrano, 0

radiojomalista tern 0 dever pro fissional de procurar falar urn portugues que seja ao mesmo tempo correcto e acessfvel 11 maioria das pessoas, procurando pronunciar de fonna nftida e "limp a" as palavras que utiliza.

Como afirma Porchat: "Mais do que uma bela voz, 0 locutor precisa ter urn conhecimento tecnico, que se adquire com esforc,;o e treinamento. Entretanto, para o locutor de radiojomalismo, nada Ii mais importante do que transmitir seguram;a, crenc;a na informac;ao que le.,,8

Alguns metodos podem ajudar a locuc,;ao, tais como utilizar os recursos da gestualidade pois eles auxiliam a expressao oral. 0 tom deve ser convincente, pois

108

Revista de Letras nOS

s6 consegue passar seguran«a a quem ouve aquele que acredita no que est! dizendo. Segundo Maria Jose de Carvalho, professora de Dic~ao e Ret6rica, "0 locutor

deve sempre imaginar um ouvinte activo, interlocutor. ( .. . ) Fale sempre com um ouvinte em particular e nao com 0 conjunto de ouvintes. Ele se sentira um amigo, 0

que e fundamental para quem ouve nidio."9 Quanto it voz, 0 locutor deve controlar a respira~ao pois as tomadas de folego

devem ocorrer nos momentos adequados. A inspira«ao deve ser suave e silenciosa, e a expira«ao, lenta e regular. A voz deve ser entonada de modo firme e descontraido, buscando ser agradavel aos ouvidos sem contudo perder a finneza.

Porem, pairando sobre toda a tecnica encontra-se a linguagem. Todo 0

processo radiof6nico baseia-se na linguagem e 0 radiojomalista deve saber lidar e valorizar as palavras, utilizando uma linguagem correcta pOl'que:

A comunicar;ii.o no radio e limitada, por contar apenas com 0 som. 0 que requer uma compensar;ii.o na lingua gem nela empregada , em contrapartida, 0 rtidio leva a vantagem de estar em toda parte. Esse aicance impoe um c011lpr011lisso cultural, nU111 sentido amplo, e pro11love a valoriza!;iio da nossa lingua, de modo particular.! 0

Para encontrar 0 ponto de equilibrio entre 0 portugues ciassico e 0 portugues falado nas ruas, em diversas regi6es de um mesmo pais, e necessario ter em mente que 0 idioma e um ser vivo, em constante muta~ao. As linguas vivem sofrem diariamente processos de modifica~ao e acomoda«ao de neologismos, estrangeirismos, girias e incorpora«ao de termos tecnicos.

Nesse sentido, 0 radio e tanto infonnativo quanta fom1ativo nao s6 de opini6es quanta de incorpora«ao de novos vocabulos it lingua falada nas ruas. "Dai a dificuldade de encontrar a variedade regional e social da lingua que melhor desempenhe, harmonicamente, essas fun«6es", afinna Edith Pimentel Pinto, professora de Lingua Portuguesa da Universidade de Sao PaUlo.!! Esta docente afinua, em depoimento a Maria Elisa Porchat, que:

"Nesses dias de predominio do oral sobre 0 escrito, 0 radio tem penetrar;ii.o muito maior do que a imprensa. Alem disso representa, para 0 analfabeto, o mais importante vefculo de integrar;ii.o social. Por ser 0 aparelho mais portatil e mais barato que 0 da TV, pode acompanhar 0 trabalhador em sua actividade - a dona-de-casa, a costureira, 0 meciinico, 0 marceneiro, todos tem, atraves do radio, a informar;iio, 0 prazer da nnisica, 0 calor da voz l1u111al1a ." 12

a radio deve compensar a falta de imagem atraves do som, de modo que atraves da palavra 0 ouvinte consiga "ver" a imagem evocada atraves dos vocabulos

109

Revisla de Letras n0 5

utilizados pelo locutor. Aimagina<;ao desempenha, portanto, importante papel na comunica<;ao entre 0 radio e 0 ouvinte.

Leve-se em considera<;ao que a escuta pode ser realizada enquanto oouvinte desempenha outras actividades, de modo que 0 radio deve oferecer uma riqueza sonora variada para manter a aten<;:ao do seu ouvinte. Este e mais um motivo para que a Iinguagem do radio seja rica, cati vante, facil, objectiva e, sobretudo, agradavel aos ouvidos.

o radio e um aparelho que pode ser transportado para todos os lugares e acompanhar a pessoas em quase todas as actividades laborais, tanto na cidade quanta no campo. Tambem funciona independente do abastecimento electrico ja qne os pequenos aparelhos funcionam it pilha. Alem do mais e acessfvel as pessoas de baixa renda, aos analfabetos e aos que sao privados de visao. As pessoas costumam escutar 0 radio a todos os momentos, desde 0 momenta em que se acorda ate a hora de se deitar e donnir.

Por ter uma penetra<;ao tao grande, muito maior que os meios de comunica<;:ao impressos Gomais e revistas) e mesmo do que a televisao (que imp6e certa imobilidade e acuidade visual concentrada), os profissionais de radiodifusao devem ter consciencia da impoItincia social e instrutiva que possuem.

Neste sentido, deve primarporutilizarnma linguagem limpida, clara, precisa, nftida e simples. Mas tambem a Iinguagem utilizada no radio deve ser rica e variada, objectivando aumentar 0 universo vocabular dos ouvintes. Deve ser ainda repetitiva pois radio e repeti<;ao pois os ouvintes conectam e desconectam-se continuamente. o radialista deve empregar ainda uma linguagem forte, concisa, correcta, invocativa e agradavel.

Seu portugues deve ser correcto, mas \lao pedante, sem abdicar da espontaneidade mas sem cair na vulgaridade nem empobrecimento da linguagem. Trata-se, portanto, de um desafio que s6 com 0 tempo 0 born profissional de radiodifusao consegue veneer. Neste mesmo sentido, afirma Maria Elisa Porchat:

Nossa linguagem sera espontt'inea, como se jala, e CO/Tecta, como se escreve. Para isto, adoptaremos do coloquial a injormalidade e a jo/'l;a das expressoes, sem as girias e expressoes vulgares, da linguagem escrita tomaremos a explora,iio dos recursos linguisticos, a busca do tenno exacto, 0 poder de sintese e a obediencia gramatical, eliminando 0

supbjluo e a ajectar;iio. 13

Para contribuir com a defesa e difusao do nosso pr6prio idioma, deve-se evitar as palavras estrangeiras. As palavras em outros idiomas podem ser usadas quando nao houver vocabulo correspondente em portugues, mesmo assim e recomendavel que se traduza seu significado.

E quanta ao poder de sfntese pr6prio do labor radiof6nico, e recomendado

110

Revista de Letras nOS

que se diga 0 maximo com 0 minimo de palavras. Isto e. 0 redactor de textos que serao lidos pelo locutor deve enxugar a frase. deixando apenas 0 que for essencial ao entendimento e a estrutura gramatica!.

Ainda assim. e recomendado precisao nas palavras utilizadas procurando 0

tenno mais adequado para exprirnir a ideia ou a noticia que esta sendo veiculado. Mas e importante variar 0 vocabulario. fugindo dos lugares-comuns, das palavras estereotipadas, dos jargoes e dos "chavoes".

Segundo 0 dicionarista Antonio Houaiss, a variac;ao vocabular no radio e positiva porque 0 ouvinte vai incorporar novas palavras (mesmo sem as utilizar no seu quotidiano) ao seu universo vocabular. Assim, " 0 ouvinte aos poucos vai compreendendo 0 que significa aquela expressao e vai incorpora-la, quando nao ao seu vocabulario activo, ao seu vocabulario passivo. Isto e cumprir uma rnissao de alta releviincia didactica", alem de cumprir a vocac;ao infollnativa do radio, afinna 0

mestreHouaiss. 14

Temos, portanto, como rnissao do locutor radiof6nico a valoriza<;ao da linguagem e 0 enriquecimento do vocabulario porque "a linguagem con·ecta. alem de ser urn dever do comunicador, toma a frase mais nitida e e mais agradavel do ponto de vista sonoro." IS

Afinal de contas, radio e som. E 0 som deve ser 0 mais agradavel e 0 mais perfeito possive!. Por isso 0 locutor deve dirigir-se aos ouvinte como se estivesse falando com cada urn deles pessoaImente, de maneira individual, de maneira natural, informal e usando uma linguagem simples e correcta, para assim poder cumprir sua voca<;ao de. ao infonuar, fom1ar os cidadaos.

Devemos recordar 0 depoimento de Maria Jose de Carvalho, sobre a imensa riqueza da lingua portuguesa. Disse esta ex-professora da Universidade de Sao Paulo. a prop6sito dos criticos do nosso bela idioma:

, HE preciso acabar com esse preconceito de que a portugues If uma lingua feia. que nao exprime isso au aquila. 0 que acontece If que as pessoas naa rem a que dize r e poem a culpa na /{ngua. 0 portuglles e Ilma lingua riqllissima em sinonimos, pode Ter dez palavras para exprimir Ilma coisa, mas as pessoas fazem 0 contrario: usam Ilma (pa/avra) para exprimirdez (coisas). "16

Senhoras e senhores. gostariamos de fmalizar nossa interven<;ao neste Congt-esso Intemacional de Radiodifusao em Defesa daLfngua Portuguesa afirmando. com 0 poeta, que a lingua portuguesa e rninha e a nossa patria comum.

Cumpre, portanto. defende-Ia com amor e devo<;ao e, ao mesmo tempo. expandir seu universo cliando e recriando expressoes para manter a ultima e mais bela flor do Lacio como urn dos idiomas mais falados do nosso planeta.

, E neste sentido que urge mantennos com as na<;6es lus6fonas da Europa. da

II I

Revista de Letras nOS , ,

America, da Africa e da Asia, as mais estreitas rela~5es de coopera~ao e de comunhao pois, sendo a lingua portuguesa nossa patria comum, cabe a nos, os lusofonos, defende-Ia e expandi-Ia pois elarepresenta uma na~ao idiomatica e uma cultura composta porvarias na~5es e por diferentes culturas.

A Portugal devemos agradecer a heran~a idiomatica que nos legou. Devemos recordar, com gratidao, que foi este pafs - pequeno em temtorio, gigante em espmto - que inventou 0 mundo moderno quando, com a intrepidez dos seus valorosos navegantes, desafiou os mares, esquadrinhou 0 mundo e semeou 0 fOl1noso idioma lusitano em terras de todos os continentes.

Gra~as a tal espmto gigante, Portugallegou aos povos do Brasil, de Angola, de Cabo Verde, de Guine Bissau, de Macau, de Goa, de Mo~ambique, de Sao Tome e Principe, de Timor Lora-Sae, bern como aos filhos da Diaspora Portuguesa, o mais importante elemento civilizatorio: 0 idioma - e, com ele, a cultura.

112

Viva para sempre a nobre lingua e a brava gente portuguesa! Viva para sempre todos os povos e todas as na<;5es lusofonas!

- Vida longa e livre ao nosso irmao mais novo, 0 Timor Lora-Sae!

Revista de Letras n05

Notas

I Umberto ECO, A Procura da Linguagem Perfeiu'l. Lisboa: Presen~a, 1996, p. 23. Em defesa da criatividade e da verdade, devo confessar que a inser~ao desta cita~ao de Umberto Eco e uma interpola~ao feita a posteriori no texto da conferencia. S6 tive acesso ao livro citado apos 0 Congresso, ao visitar a biblioteca do Prof. Dr. Rui Dias Guimaraes. Minha conferencia, cujo texto foi lido e distribuido aos congressistas, come~a com a mesma metafora com que Umberto Eco inicia 0 primeiro capitulo do seu livro La Ricerca della Lingua Perfetta (Roma-Bari: Gius. Laterza & Figli, 1993). As demais cita~6es do citado livro tern mesmo objetivo: expandir e aprofundar 0 texto da conferencia.

" 0 . 4? - p. CIt., p. _. 'Sepher Yezirah, II, 2. Rio de Janeiro: Renes, 1978, pp. 25-26. 4 Jorge Luis BORGES, em celebre poema intitulado HE1 Golem", redigido em 1958,

escreveu: Si (como el griego afuma en el Cnitilo) El nombre es arquetipo de la cosa, En las letras de rosa esta la rosa Y todo el Nilo en la palabra Nilo." 5E screveu Fernando PESSOA (Mensagem e Oulros Poemas Afins. Mira-Sintra:

Publica~6es Europa-America, sId, p. 138): "Glosam, secretos, altos motes Dados no idioma do Misterio­Soldados nao, mas sacerdotes Do Quinto Imperio"

, °PLATON, Didlogos - II: Gorgias, Melllixel1o, Eutidel11o, Menon, Crdtilo. Madrid:

Gredos, 1987, p. 453. Sobre este importante dialogo socnitico, a fil6sofa Eva Vicente TEMINO escreveu 0 inedito e excelente ensaio El Crdtilo 0 La Exaclirud de los Nombres (El Lenguaje Como Modo de Conocimiento), texto que estamos traduzindo pois urge publica-lo.

' Maria Elisa PORCHAT, Manuel de Radiojomalismo ]ovem Pan. Sao Paulo: ,

Atica, 1993, p. 35. 'Idem, op. cit., p. 87. 9 Idem, op. cit., p. 89. IOIdem, op. cit., p. 93. IIIdem, op. cit., p. 95. 11Idem, ibidem. 13Id., op. cit., p. 100. 14Idem, op. cit., p. 109.

113

Revista de Letras nOS

15 Idem, op. cit., p. 114. l6In idem, op. cit., p. 148.

114

Revista de Letras - UTAD n"5. 2000, pp. 115 - 128

Revista de Letras n05

E~, Garrett e 0 rornantismo europeu

, Alvaro Manuel Machado

Universidade Nova de Lisboa

Agora que ja acabamos de comemorar 0 bicentenano do nascimento de Almeida Garrett e que come<;amos a comemorar 0 centenano da morte de E<;a de Queiros, vern a proposito, creio, relacionar os dois com 0 romantismo europeu em geral, tentando, depois dum aprofundamento mais teorico dos fundamentos do romantismo garrettiano, analisar, ainda que de maneira esquematica, a heran<;a romantica e mais propriamente garretiana em E<;a.

Note-se, desde ja, que na complexa e sempre contraditoria rela<;ao entre Romantismo e Realismo ao longo da obra de E<;a, particularrnente na fase que vai dos textos dispersos de Prosas bdrbaras a Os Maias, avulta a heran<;a de vanos elementos genelicos do romantismo europeu e, especificamente, de elementos organicos herd ados do romantismo garrettiano. Para compreender esta heran<;a, poderemos partir duma mais ponnenorizada analise da rela<;ao de Garrett com 0

romantismo europeu em geral, sublinhando, it partida, que tanto Garrett como E<;a se recusaram a fazer literatura por "receita". Ou seja : ambos passararn por periodos literfuios em que "escolas" literanas, na sua plenitude doutrinana, predominaram (Garrett para 0 Romantismo, E<;a para 0 Realismo), mas nem urn nem 0 outro, por mais empenhados que tenham estado ocasionalmente nessa afirrna<;ao doutrin:iria, seguirarn it risca os receituanos da cria<;ao literaria de moda. Bern pelo conn'ano: mesmo quando a esses receitu:irios parecianl aderir, logo punharn em causa qualquer especie de codigo de subserviencia douuinaria, cultivando, em contrapartida, a arnbiguidade como sendo a propria essencia de toda a verdadeira cria<;ao estetica.

L Fundarnentos teorico-criticos do rornantismo europeu em Garrett

Passando para uma breve reflexao teorico-critica sobre Garrett e os fundarnentos do romantismo europeu que a Gera<;ao de E<;a, a celebre Gera<;iio de 70, de uma maneira ou de outra herdou, nao podemos deixar de nos interrogar : 0

que ficou ate hoje de esteticamente insubstituivel e perduravel num romallfico que se tomou urn cldssico como Almeida Garrett? Interroga<;iio que conduz directamente

115

Revista de Letras n05

a uma outra: 0 que ha de intemporalrnente original na sua obra? E esta inten'oga"ao, pOl' sua vez, leva-nos a uma questao primacial, embora generic a, que tambem poderiamos aplicar a E"a : como ler Garrett hoje para altim dos modelos literanos ... ,,-que 0 marcaram, naClOnalS e estrangeIros, seus contemporaneos au nao, sem que esse para altim tome os seus textos meras abstrac"oes descontextualizadas?

Como especialista do Romantismo mas tambem de Literatura Comparada, adopto uma perspectiva comparativista que, sem ser, espero, rigida, nao deixe de se submeter a certos pressupostos teolicos especificos, 0 primeiro dos quais e 0 da analise unicamente de modelos estrangeiros. E nesse sentido, nao posso deixar de distinguir (como, alias, tenho vindo a fazer desde h<i vanos anos I) I1wdelo produtor de modelo de referencia. Enquanto que 0 modelo de referencia tem uma rela"ao explicita com modas literanas, culturais e ideologicas, fazendo parte daquilo que se podera cIassificar genericamente de historia das mentalidades e implicando leituras circunstanciais demitifica"ao liteciria ou mesmo certas fom1as de imagologia (imagens do estrangeiro), 0 modelo produtor provoca implicitamente a prodw;ao textual em si mesma, alimenta a imaginano do autor, transfigurando-o, atravessa 0 seu texto para 0 tomar estruturalmente outro, levando a contextualiza"ao nacional da sua estrutura estranha, estrangeira. Para focam10s 0 caso de E"a, diriamos que Zola e um modelo de referencia, inserindo-se num peIiodo doutrinano do Realismo aplicado ao romance (sobretudo com a primeira versao d'O crime do Padre Amaro), enquanto que Flaubert foi nitidamente urn modelo produtor, atravessando 0

imaginano queirosiano e culminando n' Os Maias, romance que e, a vanos nfveis diegeticos, uma transfigura"ao de L' education sentimentale.

Ora, para voltanflos a Garrett, na tentativa de compreender 0 essencial da heran"a garrettiana em E«a, e sem fazer urn fastidioso e, alias, absurdo, inlitil inventario dos modelos literanos estrangeiros na obra ganettiana, devemos sobretudo detectar, em sintese, aqueles que levam Garrett a aceitar ou a recusar os codigos basicos do Romantismo na EW'opa desde 0 periodo pre-romantico ate meados do seculo XIX. Ou seja : analisar a sua consciencia dum paradigma romantic a em'opeu que fosse, nao a recusa in limine da heran.,a chissica greco-latina (de que Garrett, afinal, atraves de todas as experiencias esreticas, sempre se confessou defensor), mas sim a cria"ao dum "genero misto", como ele proprio propos, que trouxesse a Portugal novas ideias esteticas de concilia"ao do antigo com 0 moderno, sempre recorrendo as fontes literanas nacionais. Ou melhor : sempre acabando por fazer 0 percurso de regresso aos modelos nacionais arquetipicos - antes de mais, desde 0 inicio, Camoes, mas tambemBernardin1 Ribeiro, que nao deixa de aflorar na sua poesia Ifrica e em Viagens na minlw terra. Este nacionalismo literano que acompanha, em termos gerais, 0 nacionalismo da doutIina liberal, acaba par marcar decisivamente a obra garrettiana, muito para a1em de todos os modelos literlliios estrangeiros, fazendo coincidir, atraves das proprias contradi"oes, liberdade ideologica com liberdade estetica.

Numa aprecia"ao global, aqui inevitavelmente esquematica, da obra e da

I 16

Revista de Letras nOS

personalidade de Garrett, 0 que prevalece, desde a primeira fase, atraves de todos os sobressaltos ideol6gicos e estetico-culturais, e, sem duvida, a sua racionalidade inmnseca, de raiz. A este prop6sito, Ofelia Pai va Monteiro, que, como se sabe, e a grande obreira dos estudos garrettianos em Portugal com essa obra-prima da investiga~iio cientifica, exemplrumente acual, que eAformar;iio deAlmeida Garrett. Experiencia e criar;iio, nota com extrema pertimicia:

[ ... } jamais Garrett, em nome da sensibilidade ou dos anelos do esp[rito [. .. }, se demitiu das claridades da raziio e do dinamismo extrovertor do empenhamento humanittirio para refugiar-se no uni­verso fanttistico do sonho ou nessoutro, vibrante e alienador tambem, da paixiio.{ ... } 0 seu humanismo exige defacto a vigiliincia constal1-te dos "desregramentos" do eu, e como tal siio tomados os deUrios da imaginar;iio, os turbi/hoes passionais, os enlanguescimentos inermes. Afaculdade-mestra do homem permanece para ele a razao (em nome da qual condena os proprios desvarios racionais), potencia luminosa a que imagina~ao e vontade devem submeter-se, se se pretender salvaguardar a dignidade humona.2

Assim, equacionar 0 problema dos modelos Iitenirios estrangeiros na obra de Garrett, irnplica, fo~osrunente, partir desta premissa de prevalecente racionalidade humanista e liberal, herdada directarnente do I1urninismo frances, a qual vai, mais tarde, repercutir-se na fonna~ao de E~a e, ern geral, da maiorparte dos membros da Gera9ao de 70. E aqui, claro, poderirunos explorar longrunente 0 significado das marcas estetico-ideol6gicas de urn Rousseau ou, sobretudo, de urn Voltaire desde 0

periodo de fonna9ao de Garren, 0 que nao farei, como e 6bvio, porque essa foi materia runplrunente e profundrunente abordada par Ofelia Paiva Monteiro narefelida obra.

Ern contrapartida, talvez seja ainda razoavelrnente explonivel, como intr6ito te6rico a analise geral da fun9iio dos modelos Iiter:irios estrangeiros, a questao de urn conceito de "sentirnento" versus "sentimentalismo" que se aplique a obra de Garrett (e que e mesmo fulcral na estetica romantica garrettiana, como 0 sera na estetica queirosiana) a partir das teorias do romantismo alemao inicial, sobretudo as de Friedrich Schlegel. Nao sendo, nem pretendendo ser, especialista do romantismo alemao, parece-me, todavia, que se torna indispensavel reflectir pelo menos nesse conceito que F. Schlegel exp5e nUlll texto de 1800 intitulado "Carta sobre 0 romance" a prop6sito do que significa IUmantico e comparando Jean Paul a Laurence Sterne. Diz Schlegel, dirigindo-se a uma arniga imagin:iria, Amalia (intrusao da divaga~ao ficcionista na teoria da literatura), texto publicado na celebre revistaAtheniium:

11 7

Revista de Letras nOS

[ ... J A minha amiga censurou tambem, num gesto de quase rejeir;ao, Jean Paul pOl' ele ser "sentimental".

Quem dera que fosse no sentido em que eu entendo a palavra, e tenho de entende-Ia, de acordo com a sua origem e a sua natureza. Pois, segundo 0 meu ponto de vista e 0 meu uso linguistico, romantico e precisamente aquilo que nos apresenta um assunto "sentimental" numa forma ''jantastica .. 3

E mais adiante:

o significado de "sentimental" tem ainda um outro elemento que caracteriza especiJicamente a tendencia da poesia romantica pOI' contraste com a antiga: nele nao se leva em coma a

• diferenr;a entre ilusao e verdade, entre 0 ludico e 0 serio. E esta a grande diferenr;a.4

hnp6e-se urn esclarecimento, seguindo, alias, 0 do especialista Joao Barrento na versao portuguesa do texto : 0 tenno "sentimental" nao devera ser aqui entendido no sentido habitual e ainda menos no de "sentimentalismo" doentio, m6rbido (como no Werther de Goethe), mas sim no sentido preponderantemente espiritual e mesmo de ironia, de jogo intelectual, psicol6gico, sendo-o s6 secundariamente no de emcx,:ao e de espontaneidade. Tambem 0 tenno "fOIIllaJantcistica" tera a ver, segundo Joao Barrento, nao com 0 genero fantastico (cultivado por E. T. A. Hoffmann, por exemplo), mas sim com uma "imagina<;ao poetica"S .

Ora, sabe-se que a origem do adjectivo "sentimental" e inglesa6 e que se fixa a nivel da produ<;ao narrativa emA Sentimental JOu/71ey through France and Italy by M/: Yorick de Laurence Sterne (1768), modelo fundamental para 0 Garrett de Viagens na minha terra. 0 que significa que, neste caso preciso, os romanticos alemaes retomaram a nivel te6rico algumas das ideias dos pn:-romanticos ingJeses, embora as tenham exposto mais sistematicamente, isto para aJem do facto de ter havido umainfluencia declarada de Sterne em Jean Paul7 .

Centrando-se numa nova consciencia do tempo, entre 0 que ja se perdeu para sempre e 0 que nunca vira a realizar-se, 0 elemento sentimental, sem passar peJa (impossivel) plenitude do presente, e propriamente 0 principaJ elemento desencadeador do espilito romantico nas suas fontes pre-romanticas (veja-se, alias, o desenvolvimento desta tendencia no Rousseau de La nouvelle Heloise, seguindo a li<;ao de Richardson), elemento que, mais tarde, Flaubert retomara emL 'education sentimentale (e 0 nosso E<;a tambem, nao semrecorrer a Garrett, n' Os Maias) .

Deste modo, a questao que, numa abordagem te6rica inicial e generica, se poderia por quanta a este elemento fulcral na obra garrettiana herdado por E<;a, seria a seguinte : 0 seu conceito, tao fiutuante mas que acaba por se concretizar, de

lIS

Revista de Letras n05

romantismo derivaria antes de mais durn conceito de "sentimento" proveniente quer dos pre-romanticos ingleses (Sterne sobretudo) quer das ideias de Schlegel? Mas, de facto, 0 que entende Garrett por romantismo?

Como e 6bvio, nao poderemos aqui aprofundar a questao. Todavia, alguns pontos de referencia basicos penni tern, genericamente, estabelecer matizes que revelam urna subtil evoluc;:ao. Lembremo-nos de que, em 1822, no prefacio it primeira edic;:ao de Catao, Garrett fala de "genero romiintico de que Shakespeare foi 0

criador entre os seus", para exaltar 0 "genero misto" que, segundo ele, "principalmente se deve a Voltaire e a Ducis"g E, enquanto no prefacio a terceira edic;:ao de Catao (1839) Garrett diz (repetindo 0 que ja afimlara no prefacio de Camoes) que nao e "classico nem romantico,,9 ,s6 utiliza 0 termo "romantismo" no sentido literal em 1845, no prefacio 11 qUaJta edic;:ao de Cat[lO, livrmdo-se de cair "nas extravagiincias e exagerac;:5es desse romantismo efemero que ja vai passando na Europa e que ap6s si traz a ineviravel reacc;:ao que taJ11bem ja em Franc;:a se sente" I 0

Sem duvida: atraves de todas estas (e muitas outras) referencias dispersas (diria mesmo a-sistematicas, contrariamente as de Herculano) ao Rommtismo em geral, 0 que fica e uma radical e repetida reacc;:ao contra modas (e modelos que nelas se trmsfOl maram, pela pr6pria vulgarizac;:ao do livro e da leitura), essas modas que levam a excessos da linguagem, a delirios da imaginac;:ao e, sobretudo, it ret6rica sentimentalista, a essas tais "satumais da escola ultra-romiintica" de que fala Garrett em 1843, numa nota do texto de apresentac;:ao "Ao Conservat6rio Real" de Frei Lu[s de Sousa I I . E assim, nas suas atitudes esteticas prevalece, em nome sobretudo dessa racionalidade herdada do lluminismo frances, atras referida, mas tambem da sua fomJac;:ao classica, a ideia durn equilIbrio constante, mas urn equilIbrio encontrado apenas pel a intuic;:ao, diria mesmo pelo genio, do criador individual - 0 que, paradoxahnente, nao deixa de ser romantico ... A esse individualismo estetico, no interior da pr6pria exaltac;:ao do "sentimento" contra a ret6rica do "sentimentalismo", acrescenta-se 0 processo de nacionalizac;:ao de alguns dos plincipais modelos litermos europeus entre flnais do seculo XVllle a primeira metade do seculo XIX.

2. Nacionalizat;ao de modelos em Garrett e Et;a : imaginario do Norte e imaginario do SuI

De que maneira se process a areferida "nacionalizac;:ao" desses modelos? Antes de mais, recusando 0 Romantismo como estetica da libertac;:ao de modelos e codigos herdados do Classicismo, em geral, e mesmo do neoclassicismo do seculo XVIII, apesar de algumas (raras) criticas a rigidez fomJal dos arcades I 2 . Essa recusa leva, sobretudo, como ja foi referido, a urn nacionalismo litermo rigorosamente individualista em que os modelos estrangeiros do periodo pre-romantico e do Romantismo, quer os modelos ditos produtores quer os de referencia, assumem igualmente val ores e fun~5es nacionais, ou seja, sao historicamente contextualizados

119

Revista de Lelras n0 5

e so interessam como taL Nesse sentido, para citannos urn companheiro de E"a na Gera"ao de 70, Teofilo Braga, digamos que ele tern razao quando diz que Garrett e incapaz de compreender 0 significado profundo do conceito (que se tomou sagrado para os comparativistas) de Weltliteratur de Goethe, datado de 1827. Teofi1o, a proposito do "genero misto" (alias de origem goethiana) defendido por Garrett desde o inicio da sua obra, escreve em Garrett e 0 Romantismo :

[ ... J 0 pensamento superior de Goethe, que pregava 0 universalismo na arte. nao fora pOI' ele ainda compreendido. Filia nesse "genero misto" Corneille. Ducis e Schillel; dando-Ihe pOI' Jundador Voltaire. Que heterogeneas alianr;as!13

De facto, estas "heterogenas alian"as" sao frequentes na obra de Garrett e, nao banindo nunc a a heran"a ci<issica, servem quase sempre para, num impulso nacionalista, atacar alguns modelos e modas europeus ou minirniza-los, sobretudo os provenientes de Paris, atitude herdada pelo E"a tardio, 0 E"a do celebre texto "0 francesismo". Assinale-se, porexemplo, ainda nos tempos d' 0 Chronista, revista fundada por Garrett em 1827, a atitude de galofobia radical, manifestada no texto publicado no primeiro mimero, intitulado "Estudo de literatura estrangeira. - Influencia dela em Portugal, principalmente da francesa. - Modo de rectificar essa influencia". Ai, Garrett insurge-se contra "os milhares de tradu,,6es francesas, pela maior parte indigestas. Vulgarizou-se esta lingua entre nos, tomou-se por molde e exemplar para tudo; a nossa perdeu-se, e 0 modo, 0 espfrito, 0 genio, tudo 0 que era nacional desapareceu [ ... J." A proposta de Garrett para salvar a Ifngua e a literatura portuguesas seria a de "estudar tambem a [literaturaJ das outras na,,6es cuitas, combina-las umas com as outras, sem fazer escola de nenhuma, aproveitando de todas, mas sem delir ou confundir 0 caracter da nossa propria e nacional,,14 .

Ora, foi justamente is so que Garrett fez dos modelos literarios estrangeiros que adoptou. E fe-Io dividindo as literaturas ocidentais, bern a maneira de Madame de Stael (que ele, no entanto, nao deixa de criticar), em literaturas do Norte e literaturas do SuL Da mesma maneira como, num contexto finissecular, 0 fara E«a mais tarde, desde Prosas bcirbaras.

Assim, desde novo, Garrett acha Ossian-Macpherson incompatfvel com os "dulcfssimos e risonhos dimas de Portugal" 15 E no prefacio a Lirica de loao Minimo (1829) exp6e claramente a sua teoria de incompatibilidade do SuI com 0

Norte, lamentando urn certo romantismo "de importa"ao" (que para E"a, como para Garrett, sera sobretudo 0 frances) :

120

Revista de Letras nOS

Que e dos poetas portugueses de hoje? Que se niio pode chamar poetas a esses fazedores de poemas e romances - enfronhados em romal1licos

. [. . .]. Poetasque comer;am ou ode, ou seja 0 que for, sem invocar musas nem Apolo - ate creio que nem Apolo nem musas reconhecem os excomungados.

E a isto chama-se romantico, e diz-se que e importar;iio de Madame de Stael e do ascetico ChateaubriClnd, que nos estragaram a nossa poesia do Sui com estas sensaborias do Norte. 16

Em suma : poden! dizer-se que, de certo modo, a partilha Norte-SuI leva Garrett a uma grande prudencia ou mesmo a recusa da maioria dos principais modelos do romantismo europeu e it proclamac;ao dum nacionalismo liter:irio (com predominancia da heranc;:a cIassica tipica dos paises do Sul) que se poderia considerar uma especie de dogmatismo estetico. E por isso mesmo, vanos desses modelos nao chegam a passar do estatuto de modelos de referencia, na aceP'<ao que atnis explicitei.

Efectivamente, desde 0 "ascetico" Chateaubriand, inspirac;ao breve de juventude, citado em 1819 no prefacio a pec;a de teatro inacabadaAtala (obra postuma) a Victor Hugo, que so aparece como modele ideal na referencia em carta a Jose Gomes Monteiro de 183317 a proposito d' 0 Arco de Sant'Ana (mas este romance historico pouco ou nada tern aver estruturalmente com a obra de Hugo ai aludida, Notre Dame de Paris) para depois, em 1839, ser condiderado umromantico de "delirios grotescos" 18 , pas sando por Goethe, Walter Scott, Schiller ou 0 proprio Byron (significativo no inicio mas visto sobretudo como mite literfuio, defensor heroico da heranc;a cultural sagrada da Grecia antiga) - nenhum destes autores deixou marcas profundas, duradoiras como modelos produtores de texto na obra de Garrett. Eles nao ultrapassaram 0 nivel das referencias mais ou menos circunstanciais, frequentemente ironicas ou mesmo satfricas, como, por exemp]o, em Viagens l1a minha terra, sobretudo quanto aos "figurin~s franceses", tao criticados tambem por Ec;a, mau grado 0 seu inevimvel, quase fatidico "francesismo" :

Ora bem: vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eugene Sue, de Vitor Hugo, e recorta a gente, de cada £1m deles, asfiguras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel cor da moda, verde, pardo, azul -como fa zem as raparigas inglesas aosseus dlbuns e scrapbooks, forma com elas os grupos e situar;oes que the parece; niioimporta que sejam mais ou menos disparatados. Depois, vai-se as cronicas, tiram-se £Ins poucos de nomes e palavroes velhos; com os nomes crismam-se os figuroes; comos palavroes iluminam-se ... (estilo de pintoI' pinta-monos)

E aqui estd como nos fazemos a nossa literatura original 19 ,

Apesar desta distancia critica e nacionalista perante alguns dos principais modelos literfuios que representam 0 paradigma romantico europeu, podemos dizer

121

Revista de Letras nOS

que restam ainda, na fase final da sua obra, naquelas que sao, quanto a rnim, as suas criac;oes mais decisivas para a primeira gera<;:ao do Romantismo em Portugal (e para alguns componentes da Gera<;:ao de 70, incluindo E<;:a), Viagens na minha terra e Folhas caidas, tres modelos produtores importantes: dois pre-romanticos, , Laurence Sterne e Xavier de Maistre, e urn romantico, Lamartine. E perante eles (muito mais do que, porexemplo, no inicio da sua obra, perante Byron em Camoes) que Garrett activa em plenitude os seus proprios processos criadores, devidamente contextualizados, nao se verificando entao qualquer especie de irnita<;:ao de estilo em yoga, codificada por modas mais ou menos romanticas comrecep<;:ao significativa em Portugal. Nesta fase derradeira da cria<;:ao garrettiana, a leitura do Outro, do estrangeiro, e plena recria<;:ao de si mesmo. Recria<;:ao hidica, ironica, de auto-ironia romantica, note-se, sobretudo nas Viagens, pelo proprio facto (alem, claro, das estrategias narrativas) de Garrett dar, de certo modo, uma falsa pista ao citar em epfgrafe 0 Xavier de Maistre de Voyage autour de ma chambre (1794) quando, na verdade, e 0 Laurence Sterne de A Sentimental Journey (1768) que prevalece como modelo intertextual. Isto nao s6 par ser uma anti-narrativa de viagem (0 que, obviamente, pode tambem servir para caracterizar Voyage autour de rna chambre) mas porque, enquanto 0 escritor frances e essencialmente urn moralista ("certitude d' etre utile", como diz desde as primeiras linhas do primeiro capftul020 ), Sterne e, como Garrett, mais ecletico e tambem mais contraditorio, nao poe lirnites rigidos ao seu "sentimento" nem, por outro lado, ou melhor, paralelamente, ao estatuto do autor-narrador. E assim alterna, como Sterne, narra<;ao de cenas datadas e situadas no espa<;:o com passagens de reflexao deambulante, instantes de encontros e desencontros consigo mesmo e, sobretudo, arte da auto-ironia sentimental, retomando a li<;:ao do bobo do rei Claudio, padrasto de Hamlet, na tragedia de urn Shakespeare que aqui ja nao segue "incultas devesas" (como Garrett dissera ainda em 1830 no prefacio a 2" edi<;:ao de Catao21 ), antes se torna pretexto para tragi-comedia em que Sterne e explicitamente citado e integrado na narrativa:

Estou com 0 meu amigo Yorick, 0 ajuizadissimo bobo de el-rei da Dinamarca,o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tao elegante pena; estou sim. "Toda a minha vida - diz ele - tenho andado apaixonado, ja par esta, ja par aquela princesa, e assim hei-de ir. espero, ate morrer{..}" [ ... ] Yorick tem razao [ ... j 0 cora,ao humano e como 0 estomago humano: nita pode estar vazio[ ... j.22

Quanto a Lamartine (esse mesmo Lamartine mais tarde resgatado por Antero e caricaturado por E<;:a ao evocar 0 "rumor das saias de Elvira" da poesia ultra­romantica), como modelo produtor de Folhas caidas, muito se disse ja. A rnim parece-me sobretudo sintomatico que Garrett tenha, nos ultimos anos da sua vida, ao escrever Folhas caidas, consagrado Lamartine, sem duvida lido muito antes,

122

Revista de Letras n05

mas entiio desprezado ou mal compreendido, em favor do "amavel" Casimir Delavigne23 . Nao se trata so duma influencia confessada, como, pOl' exemplo, no poema "Voz e aroma", que Garrett diz, em nota, ser "uma reminiscencia de Lamartine,,24 Trata-se, para alem disso, da libertac;iio definitiva, in extremis, dos canones classicos, atraves da originalissirna fusao do lirismo fntimo lamartiniano com a propria heranc;a primeira do lil1smo camoniano. 0 ciclo garrettiano estava, assim, fechado, abrindo-se para urn romantismo outro que, nao tendo acabado em Garrett, Antero e Ec;a vao genialmente retomar. Ec;a, desde Prosas bcirbaras, exaltando urn romantismo do Norte, sobretudo 0 alemao, que se contrap5e as suavidades da luz da cidade do SuI, Lisboa, sempre mitificada mas tambem sempre caricaturada.

3. Heran~ garrettiana em ~ : modelos estrangeiros e regresso as origens

Retorno agora, apos terprivilegiado Garrett como fundador do Romantismo em Portugal, algumas ideias a que fragmentariamente ja aludi sobre a heranc;a dos varios romantismos europeus em Ec;a a partir do proprio conceito de romantismo garrettiano e dos seus modelos.

Se e verdade, como diz George Steiner no seu mais recente livro, Errata, ensaio e, simultaneamente, como e dito no subtitulo, "narrativa dum pensamento", que "a "teoria" nao passa de impaciencia da intuic;ao,,25 , teorizar sobre os modelos estrangeiros na obra de Garrett e a sua heran~a em Ec;a so nos podera levar a conjecturas mais ou menos intuitivas, pelo proprio facto de que nao se ambiciona (nem, alias, se deve procurar) encontrar provas concretas de filiac;ao ou influencia directa. Trata-se antes de tentaresclarecer afinidades possiveis, confluencias decisivas, que iluminem textos e tambem todo urn percurso criativo portugues e pessoal, inscrito em pleno romantismo europeu e mais tarde transposto, por Ec;a, para 0 imaginario finissecular.

Modelo como ideal ou como codigo, como parodia ou como deriva~ao do imaginario pessoal, como desafio ou como instituic;ao - tudo isto e muito mais foram as varias e contraditorias atitudes de Garrett perante modelos literarios do paradigma romiintico europeu, como 0 foram as atitudes nao menos contraditorias de Ec;a perante 0 legado desse Romantismo e perante 0 proprio Realismo que em cerra altura defendeu. Em ultima anaJise, Garrett sempre negou todos esses modelos, mesmo quando se Ihes confessava devedor, num jogo de mascaras do eu criador e do eu vivencial, sendo a mascara, afinal, como muito justamente diz Jose-Augusto Fran~a, "um tema unico, modulado em toda a sua obra,,26. E nesse sentido ludico de oculta~iio, de des-Ieitura que a mascara irnplica, ate relativamente aos grandes modelos literarios estrangeiros, pelo desafio e pela auto-ironia, esta, creio, urn dos elementos mais modemos da obra de Garrett. E esta tarnbem a propria mitologianacional que, de maneira diversa, marcou decisivamente Garrett e Ec;a, este atraves do proprio mito do estrangeirado, ironicamente cultivado em toda a sua obra.

123

Revista de Letras n05

Ora, e precisamente nessa ironia culminando numa complexa auto-ironia que esta 0 mais significativo legado de Garrett em B;a, sobretudo quanta aos modelos do romantismo europeu relidos por B;a no final do seculo XIX. Lembremos que os dois Carlos (0 de Viagens e 0 d'Os Maias) sao ambos produtos duma educa<;:ao romantic a ironicamente assumida, alimentando-se de miragens do amor mais do que dum amor realmente vivido. Entregando-se tambem a miragem dum pais que anlbos idealizavam para depois a ele renunciarem como projecto comunitario, fechando-se no egotismo e no dandismo.

Lembremos ainda a ambiguidade essencial da atitude de E<;:a, como a de Garrett, perante 0 fen6meno do Romantismo em geral, ati tude oscilando entre a oposi<;:ao doutrinliria, de facto muito circunstancial, e aquilo a que Carlos Reis, em Estudos queirosialws, chama "as sedu<;:oes romantic as que, recusando por principio os protocolos do Ultra-Romantismo, trazem de novo a superficie valores de reminiscencia juvenil, renovados tambem pelo diaJogo com correntes esteticas tardo­romantic as e ja de envolvirnento finissecular,,27 .

Lembremos, enfun, e sobretudo, a critica, comum a Garrett e E<;:a, da ret6Iica da linguagem romantica e da concomitante imita<;:ao servil de modelos estrangeiros, sobretudo os franceses. Assim, se quisenllos resumir a modemidade garrettiana a nivel de linguagem, teremos de fazer notar que urn dos grandes legados de Garrett, patente em E<;:a, e, sem duvida, 0 seu despojamento estilistico em pleno periodo romantico, particulannente em Viagens na minha terra. Nesse sentido, lembremos o que B;a disse sobre Stendhal, autor quase desconhecido pelos nossos romanticos, na carta em frances para a Revue Universelie, datada de 1884 e que serve de prefacio a 0 mandarim:

Si par hasard on lisait en Portugal Stendhal on ne pourrait jamais Ie gouter: ce qui chez lui est exactitude, nOlls Ie considthuions sterilite. Des idees justes, exprimees dans une forme sabre, ne nous interessent guere: ce qui nous charme, ce sont des emotions excessives traduites avec un grand faste plastique de langage.28

Concluo, sintetizando : nao hli duvida de que estas palavras, ao implicarem uma critica ao Romantismo em Portugal (esse Romantismo que, ao fim e ao cabo, para la do Realismo de escola, E<;:a herdou de GaJ.Tett), poderiam aplicaJ.·-se com justeza it heran<;:a do que ficou como original modernidade de GalTett em pleno contexto europeu. Uma modemidade de linguagem patente no neo-romantismo de A cidade e as sen'as, legado, quanta a mim evidente, do imaginlirio garrettiano de Viagens na minha terra. Esse neo-romantismo propoe, afinal, nao s6 regresso a terra, longe da grande urbe estrangeira decadente, mas tambem 0 regresso a modelos litecirios universais que estiio para la de toda a especie de modas. a regresso aqueles modelos que fundamentam a civiliza<;:uo ocidental, como Homero e Cervantes, tantas

124

Revista de Letras nOS

vezes refeIidos por GruTett como modelos supremos - modelos cujo exemplo e 0

tinico caIninho para ascender a esse "Castelo da Gra-Ventura" que e nao s6 a plenitude da vida idealizada mas tambem. paralelrunente. toda a fonna imperecfvel de cria<;:iio

, . estetIca.

125

Revista de Letras n0 5

NOTAS

1 Cf. Alvaro Manuel Machado, Les romantismes GU Portugal. ModeJes etrangers et oriellfations nationaies. Paris. Fondation Calouste Gulbenkian. 1986. Cf. tambem : Do Romantismo aos r01'namismos em Portugal. Ellsaios de tipologia comparativista, Lisboa, Ed. Presen,a, 1996.

:2 Ofelia Milheiro Caldas Paiva Monteiro, A formarrio de Almeida Garrell. E>..periencia e criarao , Coimbra, Centro de Estudos Romanicos. 1971 , vol. II, pp. 175-176.

3 F. Schlegel, "Que significa romantico? (1800)" . in Joao Barrento, Literatura alemii. rextos e COillextos ( 1700-1900). 0 seculo XVIll , vol. I, Lisboa. Ed. Presen,a, 1989. p. 246. Cf. tarnbem a tradu,ao francesa: in Ph. Lacoue-Labarthe!J. L. Nancy, L ·absohtlitlliraire. Theorie de la litteratllre du t'oman/isme allemand, Paris, Ed. du Seuil, 1978, pp. 32 1-329.

4 Id. , p.248. 5 Cf. id., p. 246. nota 3. 6 Frenais. 0 primeiro tradutor de Sterne para frances, diz no prefacio a sua traduc;ao. datada de

1770: uLe mot Anglais Sentimental n' a pu se rendre en Franc;ais par aucune expression qui pOt y repondre, et on r a laisse subsister. Peut-etre trouvera-t-on en li sant qu 'il meriterait de passer dans notre langue."

7 cr. Ph. Chasles, Litteratllre allemande. Paris, AmlOnd Colin, 1909. 8 Almeida Garrett , "Carta a urn antigo". prefacio II I ' ed. de 1822 de Catao. 7' ed. in Obms

completas sob a direc,ao de Jacinto do Prado Coelho, Teatm i , Lisboa, Pm'ceria A. M. Pereira, 1972, p. 44.

9 Id. , p. 65. 10 Id.,p.67. I I Almeida Garrett. "Ao Conservat6rio Real", Nota E. in Frei Luis de Sousa , ed. de Maria Joao

Brilhante, Lisboa, Ed. Comunical'ao, 1982, p. 65. 12 Veja-se, por exemplo, "Bosquejo da hist6ria da poesia e lingua portuguesa" , preambulo a

Pamaso Lusitano Oil Poesia Selee/as de Auctores Porwguezes antigos e nwdernos, Paris. em casa de J . P. Aillaud, 1826-1827,2 vols., vol. 1, pp. XX a UGII.

13 Te6filo Braga, Garrett e 0 Romalllismo, Porto, Liv. Chardron, 1903, pp. 284-285. 14 OChronista, n° 1, 4 de MarI'o de 1827,pp.15-17. 15 Almeida Garrett. Dona Branca , in Obras compietas (ed. em 2 vols.). Lisboa. Empresa da

Hist6ria de Portugal, 1904, vol. I , p. 323, nota C. 16 Almeida Garrett , "Prefa,ao" a Lirica de Joao Minimo, in id., ibid .. pp. 44-45. 17 cr. Obms completas, ed. cit. , vol. II , p. 790. 18 Prospecto (an6nimo) anunciando aedi c; ao das Obms compietas de Garrett ( 1871). Cf. Obms

compietas, ed. cit., vol. II, p. 397 a. 19 Almeida Garrett, Vragens na minha terra, ed. ctitica, Lisboa, Sa da Costa, 1954, pp. 38-39. 20 Xavier de Maistre, Voyage autourde rna chambre, in Oeuvres cornpil!les, Plan- de- La-Tour ,

(Var), Editions d' Aujourd'hui , s. d., p. 27. 2 1 Almeida Garrett, Catao, ed. cit, p. 56. 22 Almeida Garrett, Vragens na minha terra, ed. cit. , pp. 81-82. 23 Cf. Francisco Gomes de Amorim, Garett. Memorias biographicas .... Lisboalmprensa Nacional,

188 1- 1884, vol. Ill , p. 458. Cf. ainda 0 Chronista, 1827, artigo de Garrett sobre Casimir Delavigne. n° 6, p. 127.

24 Almeida Garrett , Fa/has caidas, in Obras completas, ed. cit., vol I. nota B, p. 190. 25 Cf. ed. francesa de Errata. Recit d 'wle pense., Paris. Gallimard, 1998, p. 17.

26 Jose-Augusto Fmnc;a, 0 Romamismo em Porlllga l. Esrudo de/acros socioculturais. Lisboa,

126

Revista de Letras nOS

Livros Horizonte, s. d. , [1975- 1977], ed. em 3 vols., vol. I, p. 276. 27 Carlos Reis. "E'1a de Queiros e 0 Romantismo·'. in Estudos queiros;mzos. Ellsaios sobre Efa

de QI/eiros e a Sl/a obm, Lisboa, Ed. Presem;a, 1999, p . 33. 28 Ec;a de Queir6s, 0 Mandari"" in ed. Obms campletas de E,'a de Queiro~, Porto, Lena &

Irmao Editores. 1966, vol. J, pp. 1433-34.

127

Revista de Letras nOS

128

Revista de Letras nOS

Revista de Lelms - UTAD

n05,2000,pp.129-1 38

Filinto revolucioniirio

Fernando A. T. Moreira Universidade de Tras-os-Montes eAlto Douro

Filinto ofrece fa mas singular contradicci6n entre ef esp[rito revolucionario de sus ideas y ef amor fanatico que siempr7 tuvo a fa tradition literaria a La pureza de fa fengua.

Quando se ouve falar de Filinto Elfsio, quando 0 poeta e objecto de referencias em manuais escolares, hist6rias da literatura ou nos poucos estudos que, especificamente, Ihe sao dedicados, 0 que se diz ou escreve reporta-se, quase exclusivamente, a um Francisco Manuel enquanto homem da coisa literana ou estrenuo poeta defensor da pureza da lingua portuguesa. S6 de raspao h:i referencia a um Filinto mentor de ideias, de um conjunto de ideias que campeariam, a pouco e pouco, por um Portugal um tanto avesso as novidades ideol6gicas e as profundas transfOlma<;6es sociais e polfticas que a segunda metade do seculo XVIII pas em andamento.

Contraditoriamente, alguns dos estudiosos mais atentos da vida e personaIidade do Padre Francisco Manuel do Nascimento, reportando-se it presen<;a do poeta em Fran<;a, nos anos da Revolw;:ao, veem-no «cego como um morcego»2 perante a vitalidade da civiliza<;iio francesa pre e p6s-revoluciom\ria, ou entao declaram-no «absorto e inerte»3 face as grandes convuls6es que it sua volta se desenrolavam. Sao, naturalmente, excessivas estas conclus6es pelo caracter perempt6rio como colocam a questao; contrariando estas vis6es, parece-nos que uma frase feliz de Nuno Daupias d'Alcochete coloca bern a problematica que pretendemos abordar:

o poeta acolheu a Revofw;{io como uma aurora de liberdade, mas criticou-Ihe igualmente os excessos.4

Sem procurar preencher semanticamente 0 a1cance destas afir ma<;6es, Dominique Lecloux deixou algumas pistas de interesse atinentes ao papel de Filinto no trespasse dos ideais da Revolu<;i'io Francesa para a realidade portuguesa, pistas com as quais concordamos e que vieram alargar urn espa<;o que pertence, por direito

129

Revista de Letras nQ 5

proprio ao poeta5

Nao pretendendo ir mais longe no estabelecimento, [eito ate hoje, do modo como Filinto "viveu" 0 perfodo revolucionario em Fran~a, sempre adiantamos que, nessa materia, se tern mais treslido do que lido muita da literatura produzida pelo poeta. Digarno-lo frontalmente: estamos perante uma materia ainda por desbravar e que, porventura, urge estabelecer para melhor conhecimento do discurso politico em Portugal na segunda metade do seculo XVll, principios do seculo seguinte.

POl'que viveu muitos anos em Fran~a e durante 0 perfodo revolucionario, alguns cliticos exigem a Francisco Manuel uma presen~a mais actuante, terao desejado que fosse urn homem de ac~ao, coisa que, manifestamente, ele nao era nem 0 fora em Portugal antes de se exilar fugindo a Inquisi~ao. Mas, se nao era urn homem de ac~ao, era homem da palavra e, por isso, 0 Santo Offcio 0 perseguiu ate no exfiio, facto de que se queixa6 . E urna realidade incontomavel que Filinto foi urn observador atento do processo revolucionario frances e plasmou, em muitos dos seus textos, uma adesao efectiva e afectiva, logo comprometida, com os seus ideais mais nobres 7 . E nossa fume convi~ao que 0 conhecimento destes textos, em Portugal (pelo menos de alguns deles), assim como a doutrina~ao trazida por aqueles que 0

visitararn no seu exilio, foi responsavel, em larga percentagem, pela inviabiliza~ao peunanente do seu regresso. Estamos a falar de urn homem que celebrou efusivarnente a emblematica tomada da Bastilha8 , a queda do poder sacerdotal em Fran~a9 ,que aplaude a decisao daAssembleia Nacional francesaque aboliu os privilegios ciassistas, que criticou os esfor~os contra-revolucionarios chefiados pela poderosaInglaterralO . Mas, se e celto que louvou 0 ideario revolucion:irio, tambem e verdade que nao aderiu aos desmandos excessivos entao praticados e daf a sua mudan~a de Paris para Haia no perfodo mais conturbado, politica e socialmente, da Revolu~ao entre 1792 e 1796.

Da rela~ao de Francisco Manuel com a Fran~a daremos conta em ocasiao oportuna. Neste momento interessa-nos verificar de que modo e que Filinto, vivendo (e participando) mergu!hado no caldo revolucionario, direccionou essa sua vivencia e que tipo de discurso, a partir daf, construiu.

Diga-se, desde ja, que Filinto vive, transporta e dirige essas suas convic~6es para Portugal, isto e, ele "ve" e reclarna urn Portugal livre, onde pudesse escrever, falar e pensar em liberdade; a Revolu~ao foi 0 tuba de ensaio que penllitiu a Francisco Manuel materializar, no seu discurso, urnalinguagem revolucionaria patente em muitos dos seus textos e notas, uma linguagem que e, essencialmente, de liberdade e que transportara consigo, embrionariamente, para Fran~a. Recordemos aqui que a independencia daAmerica e os seus herois Washington e B. Franklin !he mereceram versos enfaticos de regozijoll . Adiantemos, tambem, a sua postura anti-esclavagista, em versos que nao resistimos a citar pela sua beleza e porque indiciadores de uma celta postura de visionario do proprio poeta de uma acto que os Portugueses protagonizarian1 entre os primeiros: a aboli~ao da escravatura,

130

Revista de Letras n05

Eis j6 Cabral descobres Os Brasis nao buscados E, aos Povos, que Ie hospedam, 19naro do vindouro, os grilhoes lan(as, 12

Terao sido versos como estes que levaram 0 seu primeiro bi6grafo, 0 frances· Alexandre Sane, a escrever que

On devorait en secret les ouvrages de Manoel, et depuis la revolution, surtout, il n' est point de Portugais qui, se trouvant a Paris, n 'ait regarde comme une bonne fortune, et comme une sorte de devoiJ; de lui rendre visite. 13

Umas palavras que atestarn a considerac;:ao tida para com FiJinto enquanto referencia politica, avidamente procurado por concidadaos tambem eles de costas voltadas ao poder politico em Portugal; e de Francisco Manuel, enquanto mentor de uma gerac;:ao, no plano politico, que falamos. E 0 poeta nao desiludia os que 0

procuravam, desfiando, nos seus textos, todo urn vocabulano libertfuio que pennite uma not6ria proximidade com os princfpios liberais que brevemente viriam a triunfar.

Exemplifiquemos 0 que ficou dito com excertos retirados de uma epistola escrita em plena efervescencia revolucionana, em 29 de Novembro de 1791, que, par si mesma,justificaria para Filinto 0 epfteto de revoluciomirio. Registemos, antes de mais, que este texto foi legalmenteproibido de circular em Portugal pelo Intendente

• Diogo Inacio Pina Manique 0 qual arnea~ou com 0 degredo em Africa todo aquele que tivesse em seu poder urn exemplar desta epfstola e nao 0 entregasse as autoridades. Sem papas na lingua, Francisco Manuel afronta directamente 0

Intendente, esse «viI algoz da candida verdade», e a acc;:lio por ele protagonizada, as persegui<;:6es, a devassa pessoaJ, a coac<;:ao policiaJ, a censura:

Debaide entao povoas as Jronteiras De esfaimados maisins, pousas vexames Na Cidade, na Aideia, nos caminhos, Levantas tribuna is devassadores Da palavra, atributo inato do homem. Como se a livre voz, que nos e dada Para entreter comercio de aima a aima, Navegando nas asas do ar corrente, Da plena boca aos 6vidos ouvidos Fora campeche ou sordido tabaco, Mercancia de cauto contrabando

131

Revista de Letras n05

Em vao proJanas 0 sagrado selo Das Cartas, que reclamam violadas o publico Jo ra I, publico asilo.14

Arenga sobre a liberdade natural do hornern, responsavel s6 perante a sociedade, ( ... ) o Homem, que nasceu para ser livre Livre em suas acr,;i5es, em seus conceitos, E livre em bargante derramd-los, Quanto it social Ventura nao empecemJ 5

defende a liberdade de irnprensa, conseguida em Fran«a,

Oh Franr,;a ilustre, das Nar,;oes Rainha, Tu sacudiste 0 vergonhoso encargo, Que it imprensa abaJava 0 claro grito: Tu a remiste, ela hoje te libertaJ6

exalta a independencia norte-americana, filmada na sua Constitui«ao e exemplo a • segurr

AmericaJeliz! Nar,;ao briosa Que rompeste os grilhoes do cativeiro ( ... ) Oh ditosos! Oh bons Americanos, Porque 0 tao venturoso exemplo vosso, As protectoras asas despregando, Nao visita, e empenhado nao consola, Com seu voo, os imperios desastrosos, As miserandas gentes oprimidas DaJradesca rate tirana, e nescia.17

Na Revolu«ao Francesa, Francisco Manuel consagra 0 triunfo de Rousseau, o "Rousseau imorta)" 18 que deu «( ... ) a regra,! Com que os Homens se iguaJam» 19 , urn Rousseau que

131

( .. . ) aos homens apontaste o rumo de ser livres, de sa homens .. . E111 que pese aos tiranos.20

Revista de Letras nOS

Alias, sem negar os ensinamentos de Voltaire, de Mercier e dos enciclopedistas em geral, e em Jean-Jacques Rousseau, na sua li<;ao, que Filinto se filia, numa clara amostra de que 0 racionalismo voltairiano the seria insuficiente - a paixao e a emo<;ao de Rousseau (conciliadas, e certo, com a Razao), esse decifrador das leis da Natureza, esse propagandista dos valores da Liberdade e da Igualdade entre os homens, batiam mais fundo nos ideais do nos so poeta. Jean-Jacques e 0

«bom Rousseau», 0 transportador da «tocha da Verdade», 0 «pavor da tyranna iniquidade» que guia os povos e ensina os reis no sentido da Liberdade21

Filinto partilhava, afinal, das afinidades da Constituinte que erigiu uma estritua ao autor do Emile e da ConvenC;ao que colocou os restos mortais do escritor no Panteao. Proclamando a soberania do povo em 1789, a Assembleia Constituinte frances a ultrapassava os outros fil6sofos e consagrava Rousseau cujos princfpios ideol6gicos se encontram maiormente exarados na Dec1ara<;iio dos Direitos do Hornern enos actos dos convencionais; proclamando a 19ualdade com a Liberdade, os revolucionanos sao sobretudo fieis ao espfrito do Cont/'at Social, obra que Marat comentava em publico.

o revolucionano Filinto e um rousseauniano convicto, os seus ideais politicos plasmam-se nas reflexoes de Rousseau, 0 seu sentido liberuirio anda de mao dada, por isso, com a diguidade humana. Alicerc;ado nestas convic<;oes, Francisco Manuel acredita na sua propaga<;ao para a sua Patria, tarefa para a qual tambem contribuiu, 11 sua rnaneira, acreditando que a Raziio triunfaria sobre 0 fanatismo e a tirania; para ele, a Fran<;a, transportando 0 «Tricolor Despeito dos Tiranos»22 abre 0 carninho, desafiadoramente, para a luta contra os despotas, contra a opressao fradesca. Seria, alias, esta briga contra 0 poder dos frades que concentrou parte do discurso politico de Filinto, numa sequencia ja iniciada antes do seu exJ1io, beneficiando da "abertura" de Pombal. Conhecedor do meio eclesiastico, ciente dos seus vicios, 0 poeta escreveu sobre os frades 0 que 0 diabo nao tera dito da cruz. Daremos um exemplo singelo, mas elucidativo do modo como ele via essa «rale maldita»23 :

Cristo morreu ha mil, e tantos anos; Foi descido da Cruz, logo enterrado: Mas tequi de pedir 11110 tem cessado Par 0 sepulcro dele os Franciscanos.

Tornou Cristo a surgir entre os humanos, Subiu da terra aos Ceus. la esta sentado: E inda. a sat/de dele sepultado. Bebem (0 saco 0 paga) estes maganos

E cuida quem lhes da a sua esmola, Que eles a gas/am em jwu;ao tao pia?

133

Revista de Letras nOS

Quanto vos enganais, oh gente tola!

o altar 11101; com dois cotos se alumia; Eo frade . co' a putinha, que 0 consola, Gasta de noire 0 que lhe dais de dia .24

Apontado como herege e por isso exilado, Filinto encontrou, na marcha da Revolu<,ao 0 cadinho ideal para a evolu<,ao do seu pensamento e tarnbem para uma certa radicalizac;ao; perseguido como hen~tico e Iibertino em 1778, ap6s 1789 seria tambem revolucionano, urn estatuto que fez por merecer enquanto cantor da Liberdade, defensor dos direitos do homem, opositor da escravatura e pela oportunidade do seu sentido de visionano contra os males do colonialismo. Niio sendo urn politico, sequer urn homem de acc;iio, e, no entanto, urn mentor de ideias, urn guia, e os seus textos reflectem uma preocupac;iio social e traduzem urn pensamento politico decisivo para a fOlInac;ao de gerac;6es vindouras; estamos ate a referir-nos a textos que, sendo mais forte a vertente pessoal como quando ataca virulentamente o fanatismo religioso ou 0 poder temporal dos frades, emanam sempre urn desejo de liberdade, meta essencial a cumprir; deixemos urn exemplo:

Quem JOIjarci na nossa Elysia (Oh Pcitria, Oh Pcitria. que soubeste ambos os jugos Sacudil; do Hespanhol. do Mouro, e dar-te Claro nome!) quem Jorjarci os raios De livre ideia. que de Deos vem livre. E livre a Deos. de si. raziio so deve. Raios. que assustem pcillidos Tyranllos ?25

E pelas raz6es apontadas que falamos de urn Filinto revolucionano, umFilinto que teve uma quota parte de responsabilidade significativa junto daqueles que protagonizariam a Revoluc;iio Liberal e cujo discurso encontra nos ensinamentos do poeta urn referente essenciaL

Filinto revolucionano? Claro que sim, qnanto mais niio fosse porque assim era visto pelo poderpolitico-religioso do Portugal mariano. Como se comprova este sentimento? Atente-se apenas numa notaicomentano colocada it margem de urn decreta real de 21 de Maio de 1796, autorizando 0 regresso do poeta mas que nunca chegou a ser oficialmente produzido; foi encontrado, significativamente, em documentos da Patriarcal de Lisboa e Je-se nessa anotac;iio:

134

Este clerigo [Filinto ] fugiu quando jci havia ordem do Santo Ojfcio para 0 prender por libertino: era cura. ou cousa que 0

Revista de Letras n05

va lha, das Chagas de Lisboa. Depois se disse que estava na assemblea de Fran,a da revolu,iio. Se agora vem If para ensinar 0 que la de mais aprendeu la. 26

Et pour cause! ...

135

Revista de Letras n05

NOTAS

I PELAYO, M. Menendez - Historia de las ideas esteticas ell EspOl1a, in Enciclop¢d.ia Universal Hustrada. T. XXXVII. Espasa Calpe. S. A. Ed .• s.!d ..

, Cf. OLAVO. Carlos -A vida ama/'gLirada de Fililllo £I(sio, Lisboa. Liv Ed. Guimariies & Ca .. 1944. p. 188.

~ SILVA, J. Pereira da - Filinto Elfsio e a slia epocQ, Rio de Janeiro. Companhia Impressora, 189I,p.30.

4 ALCOCHETE. N. Daupias d' - Bourgeoisie pombaline et Noblesse liberale aLi PartLigal. Lisboa. F. C. G.1969. p. 20.

~ LECLOUX, Dominique - Un exile temoill de la Revolution Frmu;aise: Filinto Elfsio, in A Recepc;fio da Revolu\i30 Francesa em Portugal e no Brasil. Porto, Universidade do Porto, 1992.

6 Francisco Manuel refere numa nota inscrita no Tomo VI, p. 176, a tentativa, por parte da Inquisi<;ao, de ° atrair a Portugal nestes termos: Veio de Lisboa lIJn Lobo (F amWar) hci 25 onos, bem amestrado por meltS inimigos, inclllcar-me, que pal1isse com ele para Portugal, que nada tillha que lemel: Eu fi ':. como 0 Cabritinho: Mastre-me pata branca(scilieet) a 1l1quisi~iio destrufda.

7 Referenciemos, como primeiro exempl0, uma ode significativamente intitulada Ode it Liberdnde. declicnda ao Marques de Bombelles, embaixador frances que esteve acreditado em Portugal nos anos de 1786-88, estadia da qual nos da conta num diario (BOMBELLES, Marquis de ­JOllrllal d'un ambassadeur de France aLi Portugal (1786-88), Paris, 1979.

, S Cf. ELiSIO. Filinto - Obras Completas, Paris.A. Bobee, 1817-19, T. Ill, p. 283-4. Q Idem, p. 283: Essa Sphynge sacerdotal. que enigmas / Propullha aos Povos, acertoll em -Fran~a / C'o Edipo, que as soltau; que lhe den nwrte, / Pelos BOilS desejada. 10 Sao vados os remoques que dirige ao chanceler brit§nico da epoca, George Pitt que chefiou

a coUgac;ao de paises europeus que se opunham a Franc;a revolucionana. Chemos urn exemplo em que Filinto lou va a Republica franca e critica os reis seus opositores: Quando estenda a Repllblica dOllS braros: / Un! que abarque Vienna, outro Bellgala. /Onde ireis escol1der­vas? Que Pitts astwos / Vos salvariio as thronos?

Cf. op. cit. , Torno Ill, p. 282. II Idem. Tomo V. p. 103: Soltiio-se os pendoes livres / Ao teu si:udo Deena, / Phil6soplIO

Franklin, que arrebataste / Aos Ceos 0 Raio. 0 Sceptro a Tyranl1ia (, .. ) De ham·a e valor annado, / Washington. alii te ergues, / E aD Congresso indeciso a ie abonas.

" Cf. ELislO. Filinto - op. cit.. T. V, p. 100. ,

B SANE, Alexandre - Poesie Iyrique portugaise ou choix des odes de Francisco Manoe/, Paris. Chez Cerioux Jeune, 1808, p. XXXIV,

, " Cf. ELiSIO. Filinto - op, cit.. T. V. p. 425. 15 Idem. J6 Ibidem. p. 431. 17 Idem. p.429-430. 18 Ibidem, p. 199. " Idem. " Ibidem. " Idem, T. IV, p. 176. ~.:! Ibidem, p. 143. '.1 Idem, T. V, p. 200.

04 Ibidem. T. IV. p. 149.

136

Revista de Letras n05

" Idem, T. Y, p. 433. ~6 Este decreta foi puhlicado POI' Francisco Mattins de Carvalho no jomal 0 Conimbricense. n°

5153 , Mar~ode 1897.

137

Revista de Leu·as n05

BIBLIOGRAFIA

ALCOCHETE, Nuno Daupias d' - Bourgeoisie pombaline et Noblesse liberale au Portugal, Lisboa, F. C. G., 1969.

ELISIO, Filinto - Obras Completas, Paris, A . Bobee. 1817-19 LECLOUX, Dominique - "Un exile remoin de la Revolution Fran<;:aise: Filillto Elfsio",

in A Recep"iio da Revolu"iio Francesa em Portugal e no Brasil, Porto, Universidade do Porto, 1992.

OLAVO, Carlos - A vida amargurada de Filinto Elisio, Lisboa, Livraria Editora Guimaraes & Ca., 1944.

PELAYO, M. Menendez y - "Hist6ria de las ideas esteticas en Espana", in Enciclopedia Universal Ilustrada, T. XXXVII, Espasa Calpe, S. A. Ed., s.l d ..

• SANE, Alexandre - Poesie LYlyque Portugaise ou Choix des Odes de Francisco

Manoel, Paris, Chez Cerioux Jeune, 1808. SILVA, 1. Pereira da - Filinto Elfsio e a sua epoca , Rio de Janeiro, Companhia

Impressora, 1891.

Jomal 0 Conimbricense, n° 5153, Mar<;:o de 1897.

138

Revista de Letras· UTAD

nOS. 2000, pp. 139 · 172

Revista de Letras nOS

Vergilio Ferreira e 0 deve-e-haver

Jose Leon Machado Universidade de Tras-os-Montes e Alto Douro

Vergflio Ferreira publicou entre J 981 e 1994 nove volumes de di:irio a que pas 0 titulo geral de Conta-Corrente. Os textos contidos nesses volumes vao desde Fevereiro de 1969, altura em que iniciou a sua escrita, ate Dezembro de 1992, altura em que pretensamente tera abandonado 0 genero. Os volumes subdividem-se em duas series: a primeira, que nao tern subtftulo especffico, constitufda por cinco volumes; e a /lava serie, composta por quatro volumes e iniciada em 1989, tres anos depois de ter decidido interromper a primeira serie.

A publica~ao do di:irio de Vergflio Ferreira foi, nos anos 80-90, uma das poucas tempestades na bonan~osa comunidade liter:iria p6s 25 de Abril. Depois das exacerbadas polemic as dos anos 50 e 60, a literatura portuguesa cafra no marasmo, os escritores deixararn de tomar partido por ideais estetico-liter:irios, para se dedicarem exclusivamente a escrita dos seus livros, fazendo, pelo menos publicamente, t:ibuarasa do que os oulros iam escrevendo e publicando.

Ora Vergflio Ferreira, homem atento ao que 0 rodeava do ponto de vista polftico, social, estetico e literario, veio com 0 seu diario agitar a comunidade portuguesa pensante, criando focos de conflito por urn lado e manifesta~6es de apoio por outro.

Pretendemos com este ensaio estudar a rela<;ao do autor de Conta-Corrente

com os seus leitores. Come~aremos por expor as opini6es de VergHio Ferreira acerca da concep<;ao de di:irio, falando em seguida da questao da intimidade, dos problemas resultantes da publica~ao do di:irio e da opiniao dos Ieitores acerca do mesmo.

1. Concep~o de diario

VergHio Ferreira confessa ter feito v:irias tentativas de escrever 0 di:irio ao longo da sua vida. Refere duas pelo menos, de que viria a desistir. Vma e de 1944: «Tern piada.Afinal a tineta de escrever urn di:irio deu-me ha muito mais tempo do que eu supunha. Ontem fomos a Fontane1as e tive de remexer em papeis velhos. E nao e que vou dar com v:irias tentativas do di:irio de 44? Sao trinta e tal folhas na minha letra ja entao somftica. Com coment:irios, reflex6es puxadas a filosofia, versos e tudo» (I, III, 1980: 171).1

A outra e de 1967: «ha nove anos, comecei urn di:irio. Mais urn, dentre os

139

Revista de Letras n05

muitos de que desisti. Vou por aqui 0 que escrevi, para ver 0 que escrevi: "Escrevo •

e ou<;o uns coros russos. Gravei-os em Evora, falei de1es onde? (Foi em Estrela Polar.) Inicio estas paginas marcado do seu sinal. Nostalgia de urna plenitude perdida, duma belezajamais a reencontrar. Possivelmente 0 meu destine - uma tensao entre dois absolutos imposslveis (quais?). E nesse "entre", nessa tensao, 0 sobressalto e a fadiga, a excita<;ao e 0 marasmo, os instantes iluminados e a vii meciinica do dia-a­dia, com as suas infantilidades, pequenas vergonhas, sonhos mesquinhos» (l, I, 1975: 239).

Em 1969, 0 autor decide nova tentativa. Esta leva-Io-a a persistir na continuidade, nao sem muitas duvidas pelo meio: «Fiz cinquenta e tres anos ba dias ( ... ). E entao lembrei-me: e se eu tentasse uma vez mais 0 registo diana do que me foi afectando? ( ... ) Serei agora capaz? Tento. Seguro-me ao argumento de que me da prazer ler os registos dos outros. Leem-se sempre com curiosidade. Urn motivo para insistir- satisfazer a curiosidade dos outros» (1, I, 1969: 11) .

• E portanto ao entrar na terceira idade que 0 autor tentara manifestar as suas

vivencias atraves do diano. Confessa nunca ter side capaz de 0 fazer najuventude por pud~r, falta de coragem. 0 romance, onde ele desgastou a sua necessidade de manifestar a interioridade, tern a vantagem de nao se dar a cara: «Urn romance e urn biombo: a gente despe-se por detras» (Ibidem). 0 diario e como despir-se em publico.

o autor identifica 0 diario que teria escrito mas nao escreveu com a epistolografia trocada com os amigos: «0 meu "diano" esta nas centenas de cartas aos amigos. ( ... ) Em todo 0 caso, essas mesmas falsas. Excepto talvez quando sobre questiies "serias". E ainda aiba quase sempre urn disfarce ou 0 tempero do gracejo» (1 , I, 1969: 11). 0 autor nao acredita na veracidade, na sinceridade, na autenticidade radical da escrita. Mesmo quando pretende escrever-se a si pr6prio, 0 autor cria subterrugios que remetem para a fic<;ao. A rela<;ao da realidade com a tentativa da escrita da mesma e parcial.

Vergflio Ferreira tern consciencia de que a diferen<;a entre diario e fic<;ao e muito tenue. Conta ele que a Bertrand enviara urn dos volumes da Conta-Corrente a urn premio de fic<;ao. Houve grande controversia no juri sobre se na fic<;ao se poderia incluir urn diano. 0 escritor responde que sim e acrescenta que «urn romance s6 muito raramente e pura constru<;ao imaginativa. E nao precisa de ser urn romance "realista"» (1, Iv, 1982: 113). Em seu entender, «a irnportiincia de urn romance esta nos seus valores esteticos e humanos. 0 resto e bisbilhotice. Ora com urn diana passa-se exactamente 0 mesmo» (Ibidem).

o autor conta ter escrito algumas linhas do romance que tinha em maos. «Enquanto escrevia», diz, «perguntava-me porque e que me nao deixava ir levando porumaescrita abertae livre como a escrita diarfstica. Mas nao 0 conseguia. Ha portanto urn enigma para mim entre os dois modos de esc rever. De urn lado, a facilidade da escrita e de quem a Ie. Do outro, uma escrita travada com a travagem

140

Revista de Letras n05

ainda que a poesia foi uma tineta dajuventude. Depois a comichao passou-Ihe: «So de vez em quando na velhice eu voltei a coc;ar-me. Estou sem comichao e e provavel que ela nao volte» (Ibidem).

o autor pergunta avanc;ando em seguida uma resposta: «Que vern a ser urn diano? Para mim e urn passatempo do genero da epistolografia. Saco mais largo do que 0 proprio romance, ele aguenta tudo como a vida quotidiana. Porque uma vida, mesmo a de urn genio, nao e apenas genial. Desde que a gente se levanta ate que se deita, passa por nos toda a sorte de ideias e de acidentes. Os tipos historicos seleccionaram so 0 que fosse historico; os filosofos, 0 que fosse filosofia. Eu que nao sou nada, selecciono tudo» (1, V, 1984: 28). Confessa que de vez em quando !he vern «0 proposito de ser grave. 0 grave disso e 0 pensa-Io. A minha vida e um ferro-ve!ho, tudo me ca vem parar. E um diana e isso - 0 registo do que me calha e me ca!ha registar. Que 0 registe mas 0 esquec;a quem me Ie. E ten! cumprido 0 seu destino» (Ibidem).

Vergt1io Ferreira serve-se de vanas express5es para depreciar 0 diano.2 DeJas se depreende urn evidente menosprezo pelo genero. Menosprezo este que pode nao ser totalmente sincero, pois nao se compreenderia que, tendo-o 0 autar em pouca conta, 0 continuasse cultivar. Para salvaguardar-se perante um leitor mais exigente, Vergt1io Ferreira prefere depreciar 0 diana antes que 0 mesmo lei tor 0 faqa por si. Ha, todavia, certa carga de sinceridade no mesmo menosprezo, em especial quando 0 autor contrap5e 0 diana ao romance. Nesse aspecto, considera-o muito abaixo.

Sera por isso que se recusara a autografar os volumes da Conta-Corrente: «veio aqui urn sujeito com urn rebanho de fi!hos, Conta-ColTente III em punho para eu !he apor urn autografo. Deve ser 0 mesmo que eu sei ja ca ter vindo ha dias. Vinha da Ericeira. E tive assim pena de 0 ter decepcionado. Mas e assim. Autografo no diano, nao. Disse-Ihe que trouxesse outro livro e que Ihe faria a vontade» (1, IV, 1983: 331).

As ideias de Vergflio Ferreira acerca do diario sao contraditorias. Ora 0 considera literatura (porque !he convinha, uma vez que estava em causa 0 premio), ora 0 considera urn genero menor. Prevalece nOIlllalmente a segunda ideia: «Tenho

• imenso a dizer - e nada tenho a dizer. A valer a pena dizer. E necessano libertar-me disto, voltar it literatura» (1, I, 1974: 193).0 diana funciona como urna especie de caixote para onde se deitam as ideias avulsas: «ficou-me 0 habito de despejar para este caixote as ideias que vern ter comigo e nao tern destino» (1, II, 1977: 10).

Sendo a literatura dos anos 70-90 essencialmente fragmentaria, facilmente se explicara a sua inclinaqao pela escrita diaristica: <<Nos somos do tempo do fragmento, da anotaqao avulsa do que nos niio fatigue a paciencia e aos leitores, porque nada na vida hoje e consistente, encadeado no seu tado, segura da sua sistematica aplicada a uma seguranqa do pensar, ou seja da nossa "verdade"» (2, II, 1990: 20 I).

Enquanto a inspiraqiio para 0 romance nao chega, 0 autor vai <<iargando estas

142

Revista de Letras n05

notas em bruto, menos exercfcio de escrita que trabalho manual» (I, I, 1976: 347). A escrita do romance assemelha-se a uma obsessao e 0 diario parece funcionar como urn impedimento it realiza«ao do mesmo: «Tenho de me habituar it ideia de que nao conseguirei mais escrever. ( ... ) Resta esta coisa men or que e urn diario.

, Devo da-Io por encerrado este ano. Nao e excitante a eXpel1encia. E urn modo de se ser pequeno com iilibi. Nao: ou 0 romance, ou acabou. Mas como YOU depois respeitar-me 0 meu pouco? Tenho de voltar ao romance, tenho de voltar ao romance» (l, I, 1976: 385).

Urn diano, para 0 autor, tern qualitativamente «uma "dimensao" menor que urn romance» (I, IV, 1983: 347). Numa outra passagem, falando dos seus males de saude e da impossibilidade de nao poder trabalhar, acrescenta: «Valem-me estas merdilhices diarfsticas para ir fazendo de "escritor". Mas eu queria erafazer avan«ar o romance» (2, I, 1989: (36), TeI1ninado 0 romance, 0 escritorpergunta-se: «Que irei escrever depois? Tenho estes "salvados" da derrocada para entreteI» (2, I, 1989: 289).

Vergflio Ferreira, no volume V da Conta-Corrente, transcreve urn dialogo com a esposa. Depois de tel' side publicado 0 romance Para Sempre, ela pergunta­Ihe 0 que andava a escrever. Ele diz-Ihe que come«ara dois romances, mas tinha desistido de ambos, uma vez que era diffcil escrever urn novo romance. 0 diano era uma «boa solu«ao de recurso». A esposa recomenda-Ihe enta~ que se dedique ao ensaio. Tinha urn, tambem encalhado. E tellninou dizendo: «So 0 diano. Cabe la tudo. Mesmo 0 lixo de circunstancia» (1, V, 1984: 42).

Nos momentos de pausa, 0 escritor dedica-se ao diano. Estes momentos, sao, porem, diminutos, uma vez que consegue manterpraticamente sem grandes intervalos a escrita de romances e de ensaios. Nem sempre, portanto, 0 diano funciona como «solu«ao de recurso», mas mais como urn complemento. Diz 0 autor: «~YOU atrombar enfim ao romance, com as escorralhas interval ares desta diarice» (2, IV, 1992: 67).

, E para 0 autorum alfvio sentir 0 impulso para a escritaficcional e a possibilidade

de a sobrepor a escrita do diana: «Hoje sinto-me melhor. E aproveito para vir dize-10 aqui, antes que me sinta pior. Melhor em que? Nao sei. No sentir-me em mirn sem hospedes a ocuparem-me 0 espa«o interior. No respirar e 0 ar entrar-me todo dentro. No ser perfeitamente natural 0 estar a viver. E ainda, pela primeira vez desde ha muito tempo, no ser obvio pensar em escrever. Nao estas aparas de escrita, mas o romance ja encalhado ha uma vida» (2, IV, 1992: 20).

AIem de ser uma escrita intervalar nos momentos em que a inspira«ao nao puxa para 0 romance ou para 0 ensaio, 0 diario surge com varias fun~5es. Vma delas releva da autobiografia, a necessidade que 0 escritor tern de contal' a sua propria vida: «Como me vai ser diffcil preencher este suplemento de biografia. Dia a dia, e cada vez mais, 0 sentir-se a gente nula. E sentir af nulo tambem tudo 0 que nos calhou fazer. Sera a pessoal medida outra? Mais vaJida? Somente 0 que irrita e nada

143

Revista de Letras n05

ter para a preencher» (1, I, 1975: 254). o diario, por outro lado, tern urna fun«ao purgativa: «Tenho-me esquecido de

vir aqui purgar-me urn pouco» (2, I, 1989: 261) . Tern a fun«ao de depOsito daquil0 que nao cabe nos restantes escritos, deposito

de pensamentos, reflex6es, sentimentos, memorias, queixas: «Absorvido como estive com 0 romance, nao vim para aqui despejar 0 que se me amontoou na mente e no sistema nervoso de problemas e excita«oes desenvolvidas no estoiro em serie dos comunismos de Leste» (2, II, 1990: 19); «E que escorrer para aqui? De vez em quando ocorrem-me ideias, observa~oes nao de todo destitufdas. Mas nao as anoto e esque«o-as» (2, IV, 1992: 67). 0 diario e 0 contentoI' onde 0 escritor despeja os sobejos de si proprio (cf. 2, IV, 1992: 34).

Muitas vezes Vergtlio Ferreira nao sabe 0 que escrevere so 0 faz por obriga<;:ao: «Hoje e 0 ultimo dia do ana e ha que vir aqui portanto assinar 0 ponto. So mesmo por isso venho. Porque de facto, que tenho eu a dizer? Olho atras 0 ano que passou e e como se ja tivesse passado antes de passaro Tudo corre rapidamente sem uma pausa que se demore» (I , IV, 1982: 177).

o diario e uma forma de prolongar 0 quotidiano pela escrita: «E agora ha que criar arotina, ganhar de novo 0 impulso para estas garatujas, esfor<;:ar-me urn pouco por descobrir no quotidiano 0 que se intervala ao banal e e banal ja sem 0 ser, porque revelado enta~ em qualquer lado imprevisto. No fundo, ha que reinventar 0

interesse para seja 0 que for. Porque 0 interesse nao esta bern nas coisas, mesmo interessantes, mas na qualidade de nos que a enfrenta» (I, V, 1984: 9-10).

Por outro lado, 0 diario e uma forma de conversar consigo proprio e com urn leitor virtual: «Absorvido a dactilografar 0 romance, nem me lembro de vir aqui ao paleio. Trabalho, trabalho. No fundo para deixar meio livro copiado antes de ir a Fran<;:a. E tanto que cavaquear» (2, II, 1990: 13). A rela«ao com os leitores surge duas paginas mais 11 frente: «Tenho vivido numa absor«ao total com a copia do romance e nada mais tenho sido em literatura fora disso. E venho aqui assinar 0 ponto para me nao julgarem muito faltoso» (2, II, 1990: IS). 0 autor, ao contrario dos tfpicos autores de diarios, nao so sabe que aIguem 0 vai Ier, como em certa medida dialoga com os possiveis Ieitores.

o diario funciona como urna especie de digestivo para depois de urna refei<;:ao pesada que e, por exemplo, a escrita do romance: «Aqui me venho desfazer em escrita, enquanto me nao visita de novo a fic«ao em forma humilde de conto ou novela. E assim aproveito 0 regime de dieta para mastigar 0 que me nao fa<;:a mal e facilite a digestao. Cavaqueira, pois, inconsequente» (2, 11, 1990: 26-27). Escrever o diario e uma forma de espairecer: «Largo 0 longo ensaio em que me YOU espojando e volta aqui para espairecer» (2, II, 1990: 273) . No balan~o do ano de 1990, diz: "Continuarei esta diarice, ainda que mediocralhada, para puro divertissment de me desentorpecen> (2, II, 1990: 399).

Muitas vezes 0 registo diarfstico resulta do receio de perder a capacidade da

144

Revista de Letras n05

escrita: «como estou portanto no desemprego, venho aqui com mais freguencia para nao perder 0 jeito ao dedo. Para dizer 0 que? Ninharias, merdilhices, nada» (2, II, 1990: 35). Enquanto escreve 0 diano, 0 autor descansa da canseira do romance: «aqui esm como nesta escrita desenfastiada, eu pr6prio dei exercicio it minha perna ligeira, descansada assim a outra, mais grave no seu pe de chumbo» (2, II, 1990: 67).

Escrever 0 diano e prolongar a memoria das coisas. Vergluo Ferreira escreve o diano <<para chatear 0 tempo e nao 0 deixar cobrir de morte» 0 que Ihe aconteceu (2, II, 1990: 225). Nao e por acaso que 0 autor identifica 0 diana com 0 registo do sumano no liceu (ef. 2, II, 1990: 164) ou com uma acta lavrada apos uma reuniao (ef. 2, II, 1990: 165; 2, ill, 1991: 124). Tanto 0 sumano como a acta tern a funC;ao de relembrar 0 acontecido.

A ansiedade derivada do impulso da escrita, porque muitas vezes a vontade do romance nao vern, resolve-se no diano. 0 autor necessita de escrever, nao importa o que: «Preciso de ESCREVER. E ha que nao desperdi<;ar tinta e cora<;ao ern palhadas para a (minha) necessidade mental, como muita merdfcula salpicada neste escrito» (2, ill, 1991: 231). Reconhece, todavia, que 0 diano e uma forma de desperdic;ar energias.

A escrita do diario, ao contrano da dos restantes generas, nao requer dernasiado do autor, por se manifestarpela facilidade (cf. 2, ill, 1991: 188). Sai ao sabor da pena e nao exige grande esfor<;o ao cerebro: «Sinto-me sobretudo totalmente consurnido na rninha substiincia de ser pens ante e estas mesmas linhas chilras que escrevo as extraio nao ja do cerebra, mas dos intestinos ou de qualquer parte mais vii de rnim» (2, II, 1990: 376). No diario, ao contrano do romance, 0 jacto da escrita «nao exige muitas travagens ou mudan9as de direc9aO» (2, II, 1990: 388).

A preocupa9ao em contar 0 que vai acontecendo e a fidelidade aos ponnenores nao e 0 mais importante para 0 autor. Muitas vezes nao tern nada para dizer. Nessas alturas escreve por obriga9ao, por habito: «Quando me sento a secretana, quase por obrigac;ao, para continuar este diano, raro tenho alguma coisa para dizer. Mas reflicto entao que 0 que importa num "Diano" nao e aquilo que acontece mas a maneira como se faz acontecer. E entao continuo - e acaba por acontecer realmente» (I, II, 1977: 14). Nao sendo 0 diano umlivra de memorias, 0 autorreconhece que nao tern que registar 0 mais importante: «Registo 0 que me calha, ao sabor da disposiC;ao, do vagar que tenho para isso, da necessidade de nao deixar grandes espac;os vazios. Mas quem ler ha-de julgar que, se eu registo urn facto, e porque ele me foi irnportante. Nao foi. Coisas muito importantes ficaram em tinta, coisas sern interesse ficaram em escrita. Assirn isto nao sao memorias, mas acasos ou caprichos» (I, ill, 1980: 58) A mesma ideia e veiculada pela seguinte passagem: «Nao diarizo

• tudo 0 que me e importante, mas so 0 que me vai calhando. E urn registo casual de impressoes, nao urn registo "historico". Pas sou-me, por exemplo, 0 registo do "28 de Setembro" em 74, que por acaso vivi. Da Grecia, ainda, nao levando 0 cademo

145

Revista de Leu·as nOS

de apontamentos, quase nada registei. E houve milhentas coisas que era de» (I,ll, 1981: 304).

o autor tern consciencia do desprendimento gradativo do mero registo dos factos para algo mais do que isso. Ha urn caminhar, um aperfei~oar dianstico: «Pouco a pouco fui deixando de registar 0 que vai acontecendo. No I ° volume, isto era mesmo urn livro de contas, de deve-e-haver, porque nao tencionava publica-Io. Mudada a inten~ao, houve que dar-Ihe uns toques de legibilidade. Mas 0 "facto" dominou. No 2° interveio a inten~ao "literaria". E, neste 3°, tern predominado a "reflexao", tipo ensaio partido em bocadinhos» (1 , 1lI, 1980: 83). 0 exc1usivo registo dos factos nao cativa os leitores e aproxima 0 diana de uma mera agenda: <<oao ha so que registar os factos. Ha que dar-Ihes uma volta, mostrar-Ihes qualquer lado imprevisto, fazer de qualquer modo que 0 leitor se surpreenda. Assim ele sera novo na sua banalidade e sera outro por se-Io» (I,ll, 1981 : 267).

Em rela~ao ao diano, 0 autor conc1ui que 0 que realmente importa e 0 exercicio de escrever. Pergunta-se, todavia, para que. Sugere a resposta atraves de uma analogia: «Quem deve saber responder sao os tipos que no campo de desporto ao pe de rninha casa em Lisboa, todos os fins-de-semana se esfalfam em correrias e aos saltos e regressam a casa estoirados e feli zes. Se Ihes fizennos a pergunta, olhariam para nos com um sorriso de piedade. Para que? Ora essa. Para esbater as gorduras, estar' "em forma", combater 0 sedentarismo, estar bern disposto para a estucha da semana que se segue. Nao e curioso? Estafar'em-se para a estafa seguinte estafar menos» (2, IV, 1992: 128-129). E ele, para que escreve as ridicularias do diano? «Para nadID>, diz, «para evitar que 0 sebo se me instale nas circunvolu~6es cerebrais. Para nao perder 0 jeito e dar a pena como os futebolistas nos treinos ao dar a perna. Mas tanto como me custaja fazer acontecer seja 0 que for. E mesmo tentar que aconte~a. De vez em quando a cabe~a diz-me acaba la com isso. E e 0

que fas:o» (2, IV, 1992: 129). o diario e uma fOlllla de 0 autor desvelar -se. Foi, porem, descobrindo que,

ao publicar os primeiros volumes e face a reac~ao do publico, tinha de deter 0

impulso de desnudamento interior. No terceiro volume da Coma-Corrente, primeira serie, diz: «Ah, a vontade que tenho hoje de desabafar. No come~o desta aventura diarista, era de tomeira aberta. Hoje, se a abro, e para dentro» (I, 1lI, 1980: 80). 0 autor furta-se it descri~ao do seu estado de espfrito e compara 0 diario a uma casa de banho, pois e Ia que uma pessoa se encerra para chorm': «Nao e por acaso que, mesmo em fanulia, quando a vontade do choro e de mais, a gente se tranca na casa

-de banho. Eo sftio proprio para todas as inferioridades. Hoje, apetecia-me imenso ser inferior. Mas nada feito. Perdi ha imenso tempo a inclina~ao para a lagrima. A chatice e nao ter perdido a inclina~ao para essa inc1ina~ao. Tenho uma tristeza irnensa na garganta. Mas so me resta engoli-Ia.» (Ibidem).

o diario perde assim a sua fun~ao purgativa, uma vez que 0 autor e incapaz de se revelar totalmente nas suas paginas. Dedica-se entao as reflexoes, que nao

146

I

Revista de Letras n()5

implicam tantos riscos: «Estamos em Melo desde quarta-feira e isso e de assinalar. Mas registo 0 facto urn pouco a margem do que insensivelmente vai sendo usual neste volume de Canto-Corrente. Acontecimentos e "confiss6es" foram para 0

primeiro. 0 segundo encarreirou-se para arranjos mais litenirios. E este para "reflex6es"» (I, ill, 1980: 89).

o diana apresenta-se segundo tres possiveis fomms: pode ser urn reposit6rio de conjissoes, urn reposit6rio de arranjos literarios e umreposit6rio de rejlexoes. Estas ultimas, embora dependentes do intelecto, nao poem em risco a interioridade do autor, desvelando os sentimentos mais intimos; tao somente ideias, pontos de vista. E dai a sua aceitabilidade por parte do autor. 0 afastamento e progressivo:

, <<Insensivelmente, as anota~6es neste registo vao-me saindo impessoais. Eo toleravel neste caso, embora menos estimulante para 0 leitor» (I, ill, 1980: 92).

Vma outra founa a que Vergtlio Ferreira se refere e 0 diana como biografia: «Ser ainda biografia quando a vida e concessiva nos anos que nos prolonga, como e diffcil. Porque 0 que e nounal no seu estigma e a biografia teuninar quando nao tetlllina a vida no seu tempo de 0 sen> (2, II, 1990: 335).

o autor desejaria escrever um diario que fosse bern mais do que simples reflexo de um homem vulgar, com as suas manias, os seus preconceitos: «de repente veio-me a ideia eliminar drasticamente deste escrito tudo 0 que e ridiculo e menor e maledicente e mesquinho e vulgar. Recuperar sempre em mirn 0 homem responsavei e um pouco acima do apelo rasteiro da mediocridade da vida. Reassumir em mim a responsabilidade do que e grave e muito mais do que os interesses da miseria moral e humana. Dar voz apenas ao que fale a linguagem do homem - nao do indivfduo enrodi!hado em mediocralhice. Compreender enfim 0 que significa a dignidade. De repente veio-me aideia. Como aguenta-Ia na enxurrada do que e inferior?» (I, ill, 1981: 214).

Reconhece que a imagem que da de si no diana nao e a melhor: «Passadismo, pessimismo, passividade, pieguice. Tudo tet mos que nao sao exemplares e estao ja catalogados entre os motivos de se tervergonha» (1, V, 1985: 497). Sendo entao 0

diana uma fot rna redutora da escrita literana, Vergtlio Ferreira pergunta-se por que razao, tendo deixado de 0 escrever durante algum tempo (1986-1988), regressou a ele: «Porque voltei afinal com esta intensidade a este escrito fUtil e devastador da minha "imagem"? Nao sei. Gostava bern de saber para 0 meu estatuto de animal raciona\» (2, I, 1989: 198).

Tenta, porem, descobrir algumas raz6es: «Ha em primeiro lugar este prazer de disparar em escrita sem ter de dar satisfa~6es aos que !he exigem um destino,

• porque 0 nao tem. E 0 prazerpuro, sem regras nemlimites codificaveis nem vantagens

, literanas publicas para !he condicionarem 0 triinsito. E 0 prazer de escrever a propria escrita, de ser ela a existir por si como efeito do que em mim exige e 0 resto ser 0

objecto casual que a luz ilumina» (2, I, 1989: 198). Outra razao e 0 recordar pela escrita gentes que passaram, momentos vividos,

147

I

Revista de Letras nOS

«entusiasmos, amarguras, horas de urn sentir fugitivo no fugitivo do que acontece» (2, I, 1989: 199). Porvezes toma-o 0 desejo de gravarno difuio a imagem daqueles que passaram pela sua vida «e estao mortos na memoria e seria born fazer retomar a vida e recuperarem aqui, ate onde fosse possivel, a etemidade que foram e tao breve se extinguiu» (Ibidem) . Sao «camaradas de infancia, arnigos de adolesd!ncia, professores do liceu, da universidade. Mortos ou ainda vivos na sua morte que e a memoria dos que tambem VaG morrer, urn momento me fascina a ideia de os fazer durar aqui para ao menos a inutilidade de urn nome, uma articula<;:ao de sons sem senti do ou com 0 so sentido de uma coisa ou esptScie como os sons que dizem uma pedra ou um cao» (Ibidem).

Num tom depreciativo, comenta 0 autor em Mar<;:o de 1990 que «estao rnuito em voga os diarios» (2, II, 1990: 72). Conta em seguida 0 caso de urn mestre de Anatomia que na primeira aula dizia aos alunos que, para ser-se urn born anatomista, «se devia ser porco e ter born golpe de vista. E para exernplificar 0 preceito, mergulhava urn dedo no rabo do cadaver e passava-o depois pelos labios. Convidou enta~ urn aluno a repetir a proeza. E 0 aluno mergulhou 0 dedo no morto e lambuzou a boca com ele» (Ibidem). 0 rnestre comentou: «- 0 senhor la porco e. Mas nao tern born golpe de vista» (Ibidem). Para VergI1io Feneira, escrever dianos pOl'que 0

exemplo de deteIluinado escritor 0 induz, nao e razoavel. 0 mestre de Anatomia <<IIletera realmente 0 dedo no cadaver mas 0 que passara pelos liibios era urn Dutro

dedo. E eo que me ocorre quase sempre quando leio urn novo diarista. Ele conta banaIidades ou recorda<;:6es pessollis da juventude ou infilncia. Mas ignora que essas coisas sao apenas lamentaveis ou ridiculas, se nao forem Dutra coisa ao passarern i1 , escrita.» (2, II, 1990: 73). Nao basta escrever urn diano. E necessario fazer dele algo que ele a partida nao e: literatw·a.

VergI1io Ferreira encerra a primeira serie da Conta-Corrente em 1985. Estara tres anos sem escrever 0 diario. A motiva<;:ao aparente que 0 leva a retomar a escrita do mesmo em 1989 foi a oferta da editora Metailie de urn grande livro em branco: «Tenho escrito estas ninharias nurn cartapacio que me ofereceu no Natal passado a Ed. Metailie, em branco, para eu 0 preencher. E foi essa oferta que me levou a regressar as minhoquices» (2, I, 1989: 283). Confessa que, se Ihe nao tivessem oferecido 0 livro, provavelmente nunca mais se «entreteria com estas bugigangas» e fixar-se-ia «apenas em coisas serias e com eleva<;:ao» (Ibidem).

o autor prefere as folhas sollas ao livro da Metailie por serem mais cornodas de manobrar. Guarda-as numa pasta, juntamente com as dos «pensamentos» e as do romance: «E agora, acabado este calhama<;:o oferecido pela Metailie, volto as minhas folhas sollas que pesam so uma de cada vez. Mas terei agora na pasta tres variedades de folhas, consoante 0 seu destine: as deste diano, as dos "pensamentos" (alias haja varias semanas que nao "penso") e as do romance - de que devo em breve pedir reforma. De todo 0 modo, este monstro de grandes folhas cartonadas vai para 0 deposito. Que ai descanse e me de descanso» (2, I, 1989: 284).

148

Revista de Letras nOS

Em Fevereiro de 1989, pouco depois de ter recaido no vicio, 0 autor faz questao de avisar que aescrita que iniciou <<nao e a continua<;:ao de Conla-Corrente. o di:irio acabou no volume V. 0 que aqui vai sao escorralhas do acontecer di:irio, pois que as "reflex5es" vao no outro livro que escrevo tambem paralelamente a este e ao romance» (2,1. 1989: 19). A razao parece evidente: «Preciso de escrever e nem sempre estou disponivel. Entao des~o a estes paraiipomena, que e urn lixo nem talvez aproveitavel como adubo do resto. Podia fazer gimistica, fazer 0 meu cross com vistas cardiacas. Da trabalho. E ve-se menos. POltantO - escrevo. Escrevo

• realmente como queria Marco Aurelio: eis emaut6n. E urn vicio como fumar. E e urn modo de aproveitar este livro em branco enviado pel a editora francesa "La Metaillie". Ponto final» (Ibidem).

o livro oferecido pela editora era-lbe em certa medida inc6modo: «escrever nestas folhas largas como as de urn Atlas e espessas como se comprometidas ja com a eternidade, obriga-me a manobras dificeis de manuseio e a uma grafia mais desgrenhada que os cabelos de uma Furia. E isto e inc6modo para 0 trabalho fisico e para 0 floreteio das ideias. De modo que estou contente porque hoje acaba a chatice. Esta e a ultima pagina a lavrar e finda a lavra pas so-me para as rninhas folhas ja consuetudimirias com que me entendo desde a rninhaidade adulta de escriba» (ibidem). Avisa, contudo, que nao vai parar de escrever 0 di:irio: «nao mais largarei estas aparas de escrita senao quando - nao a morte, que nao e capaz, mas 0 Padre Etemo me tirar suavemente a caneta das unhas» (Ibidem).

Dois anos depois,ja nao esta assim tao certo disso: «Tenho ainda meio ano a lavrar diarice. Pensava eu que levaria a tarefa ate it morte. Assim mesmo, teatralmente como nos grandes amores - ate it morte. Mas a rninha instala<;ao nervosa recusa-se tenninantemente. E se se recusa a esta coisa raquitica que e 0 di:irio imagine-se 0

que nao acontecera com a escrita a serio. Sin to-me mal. Cansado excitado espesso» (2,IV, 1992:135).

Eduardo Prado Coelbo, referindo-se especificamente ao prirneiro volume de Conta-Corrente, diz que 0 diana de Vergilio Ferreira, «esfarelado de escrita, disperso de cria~ao, reactivo de emo<;:ao, solto, acentrado, urbano, ferninino, plural, perdido, fUtil e n6mada - sera sempre penoso e incomodativo para 0 seu autar. Porque ele e a escrita possivel que se previne e defende da esc rita que se receia impossive!» (Coelho, 1984: 75).

2. A questao da intimidade

Ainda Vergilio Ferreira nao tinha publicado nenhurn volume da Conca-Corrente e ja sentia a pressao do leitor: «Extremamente dificil continuar este di:irio. Sempre 0

lei tor ao lado, a espiar. Que me leiam urn romance, nao me perturba. Mas nao que me leiam a mim» (I, I, 1973: 148). Considera que «toda a confissao literaria se defende com 0 intennediano artificio. Mas num diana subentende-se que nada hayed

149

Revista de Letras n05

de pemleio. E nilo efacil confessanno-nos sem essa defesa» (Ibidem). Da 0 exemplo de Fernando Pessoa: «e dificil imagina-lo a dizer em seu nome tudo 0 que diz por interposto lilismo. Ate 0 Livro do Desassossego, de que li 0 publicado, sendo de urn heterorumo, mas parecendo mais de Pessoa, defende-se com a literatura que se convenciona isola-Io» (Ibidem) . OUlrOS exemplos que 0 escritor cta silo as conjissoes totais 11 Andre Gide e Rousseau. No entanto, «a conjissiio declarada arranca-se pelaousailia, ao seu autor-e distancia-o» (Ibidem).

Podera 0 autor, sem deixar de ser sincer~, evitar 0 refUgio no confessionalismo e abster-se de revelar a sua intimidade alraves da escrita diaristica? Inicialmente imaginou 0 iliano como anticonfessional. Reconhece, todavia, que nao conseguiu evitar cair no confessionalismo: «resvalei. Bons deuses, "dei 0 fianco"» (1, I, 1974: 182). Coloca a hipotese de isso se dever it necessidade de desabafar. 0 diarista, porem, descreve 0 que sente, como a angustia e a perturba~ilo mental, «mas nilo a "filosofia" ilisso, mesmo a psicologia» (Ibidem). A iliferente e muitas vezes oposta visiio do problema emotivo intriga 0 escritor: «Em certos ilias, 0 que nos visita e a iniliferem;:a, 0 riiliculo dos outros dias emocionados; noutros, 0 sentir e tiio intense que se atinge urn limite de taralhouco» (I, I, 1974: 182-183).

o iliano como uma forIlla de revelar 0 que !he vai no interior e mais ou menos constante ao longo do primeiro volume da Coma-Corrente, 0 que nilo compraz 0

escritor, pois considera que «0 desejo de "desabafar" nilo e propriamente urn desejo sublime» (I, I, 1976: 373).

o autor compara, num sentido pejorativ~, a escrita do iliano a uma confissilo ao sacerdote: <<fIa ja ilias que nilo venho ao confesso. E que e que houve a confessar? Rouve na ter\,a a vinda a Lisboa e urn banquete ern casa do Gilo ... » (2, IV, 1992: 73-74); «Agora e raro vir aqui e "confessar-me"» (I, IV, 1982: 70). Quando is so acontece, nilo Ihe apetece nem falar do acontecer poUtico nem do quotidiano. 0 problema nao esta na possibilidade de os rnesmos terem perilido 0 interesse para 0

escritor, <<1Tlas porque simplesmente perderanl interesse para que os fa\,a interessar» (Ibidem).

Urn dos argumentos que Vergflio Ferreira invoca para deixar de escrever 0 diana deriva do facto de considerar que, mesmo escrevendo 0 que realmente aconteceu, 0 que realmente pensou e sentiu, esta de certo modo a «inventa-Io, vive-10 emfic\,ao, em artiffcio» (I, I, 1976: 318). Admite que a vidadupla e cansativae so apenas ada «recria\,ao, tern interesse e a possibilidade de ser a verdadeira» (I, I, 1976: 318). 0 autor constata que so e activo quando descreve a passividade da vida real.

Isto remete para a questiio da sinceridade e da autenticidade. Ate que ponto e que 0 escritor esta a ser sincero, ate que ponto esta a ser autentico? «Que verdade existe nisto que eu conto como se a tivesse?», pergunta ele (1, ill, 1980: 152). De tudo 0 que escreveu, 0 diana nilo eo mais revelador de si proprio: «Pensando-rne no que fui nos varios romances ja escritos, nos ensaios, nas cartas aos amigos,

150

Revista de Letras nOS

mesmo nalgurna acidental versalhada e enfim nesta COl1ta-Correnfe,julgo que onde fui mais autentico foijustamente na "fic"ao", como opostamente 0 fui menos nas cartas e no diano» (Ibidem).

Explica 0 aparente paradoxo do seguinte modo: «A "fic,>ao" - ja 0 disse­lan,>a uma cortina disso mesmo 11 nossa volta e defendidos por ela dizemos tudo. Nao porque 0 determinemos dizer (0 que logo 0 invalidaria), mas porque 0 dizemos sem querer - e e exactarnente por isso que 0 cntico ou 0 psicanalista e quem melhor o pode determinar» (I, III, 1980: 152-153). Pelo contnirio, «quem escreve uma carta ou urn diano sabe que se pressup6e que se vai dizer a verdade. E isso mobiliza logo em nos toda uma estrategia de defesa. Mesmo que digamos de nos as pi ores inffunias - ou sobretudo se. Se urn individuo confessa pendores para 0 incesto ou homossexualidade ou trai~ao 11 patria, etc., sabe que 0 leitor duvida seja verdade, porque tais coisas se nao confessam, criando nele, pois, a duvida sobre se ele nao estara a fingir, a carregar a nota por exibicionismo, por gosto de escfindalo, por pretensiosismo de marginal, por petulfincia, por gosto de destacar-se servindo-se da anti-sociabilidade» (Ibidem). Neste senti do, «se quem assim se confessa, fala de facto verdade, sabe que pelo seu excesso tal verdade nao sera como tal aceite, sabe, enfim, que "com a verdade nos engana". Mas no caso da "fic,>ao" e ja mais acreditavel que com 0 engano nos diga a verdade» (Ibidem).

Vergilio Ferreira considera que «no simples e "nonnaI" confessionalismo diarista,justamente por se pressupor que 0 que se conta e verdade, 0 autor de um diana selecciona 0 que ha-de contar e sobretudo tempera a sua "confissao" com aquilo que a tom a a seus olhos aceitavel para os outros» (I, III, 1980: 153).0 autor de um diano procura evitar as lamenta,>oes, «a nao ser que as corrija de ironia ou as tome excessivas para logo 0 parecerem e 0 leitor seja levado a duvidar da sinceridade, ou as aperte ate a urn fio de breve melancolia, discreto e melodioso, ou as trave; desprendendo-se em breves e nipidas anota,>Oes em que se nao diga tudo e a sugestllo predornine, ou pe,>a previamente desculpa delas, ou se exiba declaradamente queixoso, entregando-se rasgadamente 11 compaixao do leitor, etc.» (Ibidem).

Considera ainda que «ninguem pode exibir-se em auto-elogio ou em autocomprazirnento a nao ser com processos identicos ou com urn desplante assurnido que desanne 0 lei tor ou com urn orgulho forte que obrigue a reflectir sobre se nao havera razao para isso, ou com uma altivez de desprezo que decerto vai irritar mas nao provocar 0 ridiculo, etc. E isto mesmo no que diz respeito a qualquer "confissao"» (1, III, 1980: 153). Para VergfIio Fen'eira, 0 diarista, mais do que 0 ficcionista, «control a os meios e modo de expressar-se para que essa confissao - que sabe ira julgar-se "verdadeira" - seja aquilo que ele quer que seja, Ihe nao escape a urn dominio situado entre a verdade e 0 artificio, entre a implicita certeza do que 0

julgarao "verdadeiro" e 0 que dessa verdade ele pretende condicionar» (Ibidem).

Urn diarista, por mais que 0 tente, nunca podeni ser totalmente objectivo, autentico, sincero. Isto porque «a uma ex acta verdade ninguem no-Ia conhece, nem

151

Revista de Letras n05

mesmo ou sobretudo quem vive intimamente connosco. A nossa exacta verdade s6 pode conhece-Ja 0 travesseiro. Mas como a verdade inteira de qualquer homem e hedionda, 0 proprio travesseiro sabe muito pouco. Mas nos pr6prios nao sabemos muito mais» (l, III, J 980: J53). Dez anos mais tarde, ao reflectir na mesma problematica, dira que «e-se todo no que se escreve, se de facto se e todo. E sendo-se todo, e-se verdadeiro para si, vive-se 0 que se escreve desde 0 fundo da pessoa que se e. Nao se exija de urn autor que seja original mas que 0 seja desde as origens. 0 resto e com os outros, aqueles cuja func;:ao e tambem serem por si» (2, II, 1990: 335).

o diana nao e, para Verg1ll0 Ferreira, a melhor fonna de revelar 0 que realmente se e por dentro. Chega a perguntar: «Porque escrevo? Porque e que a parte seria do que sou dificilmente passa para este dhirio?» (1, I, 1976: 332). A resposta da-a alguns volumes mais it frente: «0 homem e urn hip6crita e urn fiteiro. Quer-se urn para 0 publico e os compinchas despachados; e e outro para 0 usa do traseiro ou da casa de banho. E eu proprio, que you pela melancolia e mais desgra.;:as inconfessaveis, tome aqui urn ar desafrontado e de pilheria para melhor ser gramado e nao me

• atirarem pedradas» (1, V, 1984: 15). E a ideiado que o publico leitorpodera pensar que, afinal, impede que 0 autor tome uma atitude perante a escrita diaristica verdadeiramente sincera. Esse publico esta constantemente presente. 0 autor sente a necessidade de expulsar «0 publico it espreita destes mesmos escritos de "confidencia". Porque desde que pensei na publicac;:ao do diano, pensei logo no publico implicito a essa publica~iio» (2, II, 1990: 18).

Vefg11io Ferreira afirrna nao se comprazer na auto-analise: <<nao sinto a atrac~ao de me conhecer ou de conhecer os outros» (l, V, 1985: 536); «1amais tentei analisar­me, are porque a famigerada "psicologia" e urn logro, urn desprop6sito e urn entrerem feminino» (2, III, 1991: 35). Acha, todavia, curio so que alguns dos seus leitores lamentem que 0 escritor nao aprofunde 0 conhecimento de si pr6prio e 0 diga. «Sao os que falam em fun~ao dos modelos classicos que vern de Montaigne, Gide, Pessoa, etc.» (I, V, 1985: 536). Por outro lado, esses leitores, se 0 escritor se desnudasse, seriam os primeiros a arrepiar-se: «N6s toleramos 0 desnudamento mas nos bern outros, nos que estao distantes de n6s, naqueles em quem nos nao podemos investir o nosso decoro, a nossa discri~ao. Mas se se trata de urn conhecido ou mesmo que possa se-lo par estar vivo e pecto de n6s, ja nos confrangemos de mal-estar. De todo 0 modo, 0 risco nao existe comigo, porque nada em mim me seduz para me contemplar e dizer em nudez» (l, V, 1985: 536-537). Pensar-se a si pr6prio como foco de absor~ao parece-lhe insensato: «Eu nao sou nada e nao tenho, pois, significa~ao nenhuma. Mas fora desta vida, nada mais existe. 0 resto e passatempo de desocupados, futil tricot de senhoras da provincia» (l, V, 1985: 537}».

No entender de Eduardo Prado Coelho, «0 sujeito que Vergilio Ferreira procura eo nao-perrnutavel. Esta para alem do 16gico e do psicologico» (Coelho, 1984: 70).

152

Revista de Letras nOS

Acada passo, 0 autor de Coma-Corrente, revendo 0 que escreveu, atenta que nao tern falado de si proprio: «E de repente reparo que mal tenho falado de mim. Ora. Dizer 0 que? Como quem subiu a uma montanha foi parando para desfrutar a paisagem e chegado ao alto a admira largamente, e a tarde desce cansado sem ja reparar em nada e deseja e chegar 0 mais depressa a casa ... » (I, III, 1981: 296). Faz questiio de distinguir 0 falar de si proprio da lamUria de si proprio, especialrnente a doen~a, 0 malestar fisico e psiquico: «Ocorre-me a ideia que, exceptuada a lamUria., mal tenho falado de mim neste "Suplemento". Coisa estranha» (2, I, 1989: 266). Procura possiveis explica~6es: «A velhice que se estereotipa numa certa frieza de existir. 0 facto de este volume nao ter a obriga9ao de ser diana e nao haver no meu ombro quem me espie 0 comportamento de urn born diarista que mete sempre confissao. 0 tel' 0 cavemame de mimja vazio. 0 tel' deixado de ser interessante, para la do desinteressante que ja era. 0 ter todos os meus sentimentos passados a ferro e serem agora lisos como cartas de jogar» (Ibidem).

o escritor deseja 0 total isolamento interior: <Niver no esquecimento dos outros a absor~ao inteira em mim. Urn viver duplo e impossive\. Mas tao dificil crial' 0

resguardo de uma absoluta vida interior. Ser esquecido para de mim me lembrar» (I, V, 1985: 538). Isto leva-o a parafrasear Santo Agostinho: «Passo a vida a andar pOI' fora de mim e quando regresso ha urn imenso rufdo a calar. Este mesmo diana foi urn erro pelo acrescimo desse ruido» (Ibidem). Luis Mourao, no seu estudo sobre a primeira serie de Conta-Corrente, refere que, «tal como no intimo mais intimo de Sto Agostinho nao estava 0 sujeito mas Deus, tambem no intimo mais intimo de VergIlio Ferreira nao esta ele mas 0 escritol'» (Mourao, 1990: 79).

Ha uma contradi~ao entre 0 desabafar e a impossibilidade de 0 fazer: «aqui ,

estou eu "desabafar". E uma agressao aos outros e uma agressao a mim. Aos outros e evidente. A mim, porque detesto (e nao 0 sei) falar do que me e pessoa\. Nao e 0

"individuo" que me importa, mas 0 "homem"» (2, III, 1991: 35). E neste senti do que urn diana a Amiellhe e incompreensivel, pouco decente e desinteressante, «a nao

, serpara coscuvilhice comadreira» (Ibidem). E-lhe impossivel falar verdadeiramente de si proprio, uma vez que se desconhece: «Sei la como sou. Interrogo-me e sobre o que sou, ou seja 0 que sao os outros enquanto hornens, adentro da sua condi9aO, do tempo que lhes calhou e do destino que lhes coube» (Ibidem). Reconhece, todavia., que prevaricou urn pouco no diario, tentando, em contrapartida, «atenuar 0

confessionalismo com a estrategia da ironia que da com uma mao 0 que tira com a outra» (Ibidem).

Uma vez que e impossivel revelar a sua propria interioridade atraves da escrita diaristica, 0 que the resta e a lamuria: «Torno este papel em maos, num absoluto vazio de ideias. Mas ha 0 impulso desesperado a escrita que e a fOllna mais plausivel de vencer a minha queda. E 0 modo mais imediato dessa forma plausivel e desatar em lamUria. Ja escrevi mnito em defesa do queixume e melancolia e 0 mais instrumental da decadencia e vencidismo» (I, V, 1984: 278). No entanto, mesmo para a lamuria,

153

Revista de Letras nOS

uma especie de auto-censura trava-lhe a escrita: «0 pudor ergue a voz e submeto­me it sua razao» (Ibidem).

No fim do primeiro volume de Conta-Corrente, 0 autorinterroga-se se devera ou nao continual' a escrever 0 diano. «A continuar, so optando pelo registo do que transcende os limites pessoais» (I, I, 1976: 392). Isto para evitar expor-se demasiado: «ha que optar por uma imagem de nos e nao da-la do direito e do avesso» (Ibidem). Pergunta que imagem escolheu para si. «Eu devo ser pequeno», responde em seguida. Confessar-se pequeno «pode ser urn acto de grandeza. Para ser pequeno nao e por fon;a ser -se mesquinho. E so a mesquinhez e pequena no ser -se pequeno au grande. Escolhi-me nos meus livros uma cecta dimensao. Em que medida essa dimensao se mantem neste escrito ocasional? Bern sei que mesmo os grandes cheirarn mal, se se nao lavarn e tern gases intestinais. Mas se nao foi por ai que se escolherarn para as outros, porque hao-de faltar ao comprOlnisso?» (Ibidem).

Quase no fim do volume V da Conta-Corrente, e portanto numa altura em que decidiu deixar de escrever 0 diana, 0 autorreflecte na mesma problematica: «Neste escrito diaristico, que felizmente esm a acabar, muitas vezes "dou 0 flanco", descaindo em anota«oes men ores, de interesse corriqueiro. E penso enta~ que 0 ser maior au menor depende sempre da alma que se tern, daquilo que de nos avan«a para aquilo que se diz» (I, V, 1985: 535-536). Para 0 autor, as anotGl;:i5es menores sao aquelas em que fala do comezinho da vida, das indisposi«oes fisicas, do tempo, do quotidiano caseiro, daquilo enfim que caracteriza urn diana intimo. Embora deprecie essa faceta e insista que Conta-Corrente nao e au nao pretende ser urn diano intimo, a verdade e que uma boa percentagem de textos que a compoem partilharn das caracterfsticas do mesmo.

No entanto, a designa«ao de diario intimo (do vocabulo latina intimus, superlativo correspondente ao comparativo interior) nao se ajusta inteiramente it Coma-Corrente de VergI1io Ferreira, uma vez que 0 autor se decidiu pela publica«ao. o diana deixa de ser, como nos diz Michel Gilot, «un dialogue avec soi», para se transfonnar num dialogo «de soi aves I' autre» (Gilot, 1978: 21). Sendo urn homem do seu tempo, 0 autor reconhece que nao pode fechar-se em si proprio e abre-se ao exterior. J ackes Chocheyras e da opiniao que 0 diario moderno se volta tendencialmente para 0 dialogo com 0 publico (cf. Chocheyras, 1978: 2 I 9). Veremos a breve trecho que 0 diaIogo de Vergilio Ferreira com os leitores nao foi de todo pacifico.

3. A puhlica\;ao do diario

DecIara Vergilio Ferreira que, quando iniciou a escrita de Conta-Corrente, nao pensou de imediato na sua publica«ao. Nos come«os do ana de 1978 acabou por se decidir a publicar 0 primeiro volume: «Pus-me a rever Conta-Corrente I pal'a urn projecto de publica«ao que nunca tive em mente quando 0 fui alinhando. E

154

Revista de Letras n05

temperada a coisa aqui e ali, engole-se» (I, II, 1978: 160). No entanto, face as mticas negativas de alguns amigos a quem cedeu 0 original

para leitura, 0 escritor foi protelando ate que se pas sou urn ano sobre 0 projecto de publica<;:1io. Em Fevereiro do ano seguinte, confessa: «De vez em quando vern-me a tenta<;:ao de publicaI' Conta-Corrente I. E I<i you ler cheio de compreens1io. Mas

• qual que? A segunda folha lida a compreensiio esgotou-se» (1, II, 1979: 246). a que 0 faz hesitar e 0 cheiro illtenso a intimidade. A solu<;:ao estaria numa <<lavagem . a agulheta. Talvez que com uma pitada de sal>,3 (Ibidem). Pergunta: «Mas quem niio cheira a intimidade? a homem s6 e viavel, para efeitos de maus cheiros, quando reduzido estritamente a uma ideia. au a urn sfmbolo. a pr6prio fil6sofo ja tern cheiro. Perfeitamente inodoro, s6 talvez 0 matematico. a homem puro e 0 do a1garismo. S6 numa equa<;:ao matematica e que nao ha tripas nem SUOI'>' (I , II, 1979: 246-247).

a autor reconhece que na revisiio do volume I cortou e emendou imenso: «Vi provas do primeiro volume deste Conta-Corrente. Meu Deus. a que eu cortei. E quanta creme refrescante eu pus no meu corar, ou seja, quanto emendei para atenuar a vergonha» (I, III, 1980: 91). Considera, todavia, que «amelhor forma de atenuar uma vergonha e asswni-la. E e isto ja tao sabido que, quando anotamos a alguem as suas asneiras, a forllla mais corrente de nos responder e queJoi assim mesmo que quisJazer. Ficai pois sabendo, 6 cnticos soezes:Joi assim que eu quis fazel'>' (1 , III, 1980: 91) .

• As vezes, a opiniao do escritor ap6s a revisao e de certo modo favoravel: «Tenninei ontem a revisao das primeiras provas do 2° volume de Conta-Corrente. Ha coisas comestfvei s. Mesmo na versalhada que todavia, em muitos casos, nao largou ainda as saias de quem a gerou. Mas, de vez em quando, la vai pelo seu pe» (l , III, 1980: 167).

Mas a opiniao do escritor e, em geral, desfavoravel: «Dentro de algum tempo VaG sair os dois primeiros volumes deste diano. E e altura de retomar 0 problema

-sobre 0 que ele me significa. E mau 0 diano,ja 0 disse, e utilir-me cobrindo ja de vergonha para adiantar servi<;:o. Ressentimentos mal disfar<;:ados, confidencias, indiscri<;:6es, rna-lingua, falta de sentido das conveniencias, ridicularias, infantilidades chala<;:as - de tudo por la M» (I, III, 1980: 176). Acrescenta ainda que, de todos os generos literanos que cultiva, 0 diana nem por isso e 0 mais verdadeiro. a usa de nomes fictfcios ou iniciais de nomes que nao correspondem aos nomes reais «e uma falsifica<;:ao inteiramente consciente e deliberada» (Ibidem) . a problema esta na falsifica<;:iio semiconsciente, «a que resulta de urn arranjo que de a1gurn modo nos componha» (Ibidem) . E insiste no facto de que «0 unico genero literlirio que nos da ern verdade e a fic<;:iio. Pessoa disse que "fingir" e conhecer-se"» (I, III, 1980: 176-177).

A espera em rela<;:ao a saida da tipografia da Conta-Corrente angustia 0 escritor mais do que qualquer outro Iivro que tenha publicado: «Estiio para sair os dois volumes desta Conta-Corrente. E sinto-me como urn animal no pressentimento

155

Revista de Letras n05

de urn cataclismo. Megalomania talvez. Mas bendita seja, se 0 foJ'» (I, III, 1981: 214).

Aquando da revisao das provas da Conta-Corrente III, comenta Vergflio Ferreira: «Entre outras eoisas notei, como outras vezes notei, que me repetia muito. Deixei fiear. Isto porque, em primeiro lugar, como em certas mlisicas arabes e no nos so fado, seu parente, ou no mar ou na natureza, ha diferen~as na igualdade; em segundo lugar, a repeti9ao tern que ver ou pode ter com as obsess5es psicanaliticas e eu nao posso opor-me a que a ciencia se cumpra» (I, IV, 1982: 129). A sua principal preocupa~ao foi observar em que medida 0 novo volume «se distanciava dos outros» (Ibidem). «Em pouca», acrescenta. Quanto ama-lfngua, esta «absteve­se 0 seu tanto - e estara decerto, neste volume IV, de quarentena» (Ibidem).

o autor nao deixa, contudo, de amea9ar os eriticos: «Mas nao me desafiem. Nao me provoquem. Sou de indole pacifica nao me devem ter posto muito sal na boca quando melevararn ao baptismo. Mas chateia-me que se abuse» (I,IV, 1982: 129). Esta posi9aO de contra-ataque deve-se a recep9ao negativa dos dois primeiros volumes porparte de alguns cnticos que os consideraram como urn ajuste de contos. «Nao sabia», diz ele. «Se a coisa era de ajustar, fiquei de contas atrasadas. Olha urn "ajuste". Onde isso me levaria, eu que fui urn pushing-ball de todos os aprendizes do soco. Foi uma festa. Nao, ajuste nao» (Ibidem). Quando muito e urn desabafo: «Fui foi desabafando 0 meu pouco a medida que ia levando, e so se estava em dias de nao quererir ao parafso pela paciencia. Que noutros dias ia aproveitando para alguns meritos» (I, IV, 1982: 129-130).As contas finais foram positivas: «Ficou-me que chegue para poder ir regalar-me no alem a ouvir alalide. Mas se nao desabafasse uma vez ou outra, 0 proprio Deus Padre me chamaria trouxa. E descontava-me nos ganhos» (l,IV, 1982: 130).

Os volumes VaG sendo preparados para publiea~ao e 0 autor reve os originais ora com enfado, ora com certa comisera~ao por si proprio, ora com certa bonomia: «Vou entregar a Bertrand 0 quarto volume desta Conta-Corrente. E tenho passado o dia todo (e yOU passar mais alguns dias) a reler a habilidade para a entrega» (I, V, 1984: 264). Procurou equilibrar a escrita para nao enfastiar demasiado 0 Ieitor: «De vez em quando 0 lado sisudo de mim alastra demais por trechos de ensaio. Mas , logo depois 0 sol abre e desanuvio-me em ligeireza e literatura de consumo. E 0 que mais me agrada - esta mistura do macambUzio com 0 laracheiro. Para nao haver so paleio nem catadura de filosofia. Nao estou a desgostar» (Ibidem).

Os volumes sao cada vez mais espessos (0 primeiro volume saiu com 394 paginas, 0 segundo com 342, oterceiro com452, 0 quruto com 483 e 0 quinto com 584, todos em letra milida) e 0 autor pergunta-se se is so nao desmotivara 0 leitor: «Haven! paciencia em quem me ler? Leitor amigo, nao desanimes. Eu fico inconfoID1ado. E tu com algum acrescimo no teu ser espiritual. Pelo menos com a dita virtude da paciencia» (I , V, 1984: 264).

o escritor passa dias seguidos a reler 0 que escrevera: «Ontem e hoje estive

156

Revista de Letras nOS

a reler 0 mastodonte do Conla-Corrente 4 com vistas 11 sua publica<;ao. A Bertrand deu-me luz verde para avan<;ar e af you eu. Olhos ja ba<;os, cabe<;a como urn cepo ao fim de varias horas de (re)leitura. Ora bern: e que tal? Nao fiquei muito descontente» (1, V, 1984: 265). 0 que mais 0 aboneceu foram as constantes repeti<;oes. Desculpa-as, todavia, mais uma vez com 0 fado: «como na repeti<;ao ha sempre varia<;oes como no fado, regra geral deixei ficar. Ha tambem, com 0 desejo de evitar 0 vulgar e aned6tico, urn bocado de sisudez» (Ibidem).

Poe a hip6tese de, se 0 novo volume for uma chatice para 0 leitorde hoje, talvez 0 de anumhii 0 venha a ler. Isto porque «M la materia de proveito e exemplo. Nao estou a larachar. Ha. Hoje e que a coisa se ve mal, porque os livros fOlIllarn enxunada. E quando a enxunada passar, ver-se-a 0 que ela arrastou e nao» (1, V, 1984: 265). Nao admite, por outro lado, que tambem este podera ir no enxurro, uma vez que «e livro muito pesado. E com 0 muito que nele pus ainda pesa mais. E ninguem me diga 0 contrario. Arraso-o» (1, V, 1984: 265).

A questao da repeti<;ao leva 0 autor a decidir deixar de escrever 0 dhirio: «Passei os ultirnos dias abancado as provas de Conta-Corrente4. Faltarnetade do volume. Chateou-me uma vez mais que me tivesse repetido. Mas como ja anotei algures, a repeti<;ao inclui sempre algurna varia<;iio. E e urn indicativo das rninhas obsessoes para a psicanalise se cumprir. Mas acabou-se. A coisa agora esta por pouco definitivamente. E nao volto a repetir-me» (1, V, 1985: 407). Mesmo assirn, antes de tellllinar 0 ultimo volume da primeira serie que 0 levou a urn intenegno de tres anos na escrita diarfstica, ainda escreveu cerca de duzentas paginas, onde as repeti<;5es sao de algum modo frequentes.

A conec<;iio do volume quatro continua e, a prop6sito disso, 0 autor vai dando a opiniiio sobre 0 trabalho realizado: «Viemosjara Fontanelas, trouxe comigo o resto das segundas provas de Conta-Corrente . Trabalho monstruoso como trabalho que foi e como materia desse trabalho. Textos de teoriza<;ao urn pouco extensos, varia retomada de motivos, menos textos do fait-divers ou anedotario para tornar a leitura mais distractiva. E 0 todo num calharna<;o. Logo, menos fortuna de leitorado e de comercio. Acabou-se. Falla s6 este volume para a empresa se consumar» (1, V, 1985: 466).

Vergflio Feneira intenompe entao a escrita do diario entre 1986-1988, recome<;ando em Janeiro de 1989. Decidiu entregar as primeiras paginas a Serafirn Fen·eira para dactilografar: «Ontem veio ai 0 Serafim Ferreira que me vai dactilografar o monstrozinho da nova Conta-Correme-I (nova serie) dos ultimos dois anos. Nao tenciono publica-Ia. Mas ha a vantagem de ficar 1egivel para 0 caso de sim. E como se ve, YOU continuar. Ate que pelo menos urn novo romance se me abra - e como esta sendo diffcil. Porque s6 nele me sinto ser ell» (2, ill, 1991: 10). A hip6tese de publica<;iio, embora remota, nao esm exclufda da vontade do autor.

Quando recebeu as paginas de volta, pos-se a Ie-las: «Era texto que ainda nao lera e de que mal me recordava ao escreve-Io. Eisso e para mim a fonnamais

157

Revista de Letras n05

eficiente de saber como funciona» (2, III, 1991: 47). A opiniao que tern, embora positiva, e de certo modo desfavonivel a publicacrao: «Ora bern, como e que? Razoavelmente. Cheguei mesmo a rir-me de algumas minhas larachas ja esquecidas e que eram, pois, como se fossem de outro. Assim me tomou a insensatez da sua publicacrao. Mas travei logo» (Ibidem). As raz6es vemja da serie da Con/a-Corrente anteliol', mas que 0 autor menosprezou: «Ha ali algum "ajuste de contas" excessivo e portanto mal ajustado. E repeticr5es sobretudo na embirra9ao com 0 comunismo. Logo, para 0 deposito do lixo postumo. A nao ser que ainda tresvarie. Alias, piadas e coisas assim menores podem prejudicar-me a periclitante reputa,.ao» (2, m, 1991: 47-48).0 escritor, daf a urn ano, iria realmente tresvariar.

Entretanto, vai continuando a leitura das paginas dactilografadas e dando-nos conta do que pensa sobre elas: «tenho-me desunhado a ler as folhas que 0 Serafim Ferreira me trouxe da Coma-Corrente. E nao e que de vez em quando me pus a rir alto? Ja me nao lembrava do que tinha escrito e era assim como se fosse outro a escreve-Io. Mas havia la boa pi ada, se me peIlnitem» (2, m, 1991: 67).

, As paginas dactilografadas estiveram guard ados no bau mais de urn ano. E

enta~ que 0 escritor se decide a publica-las em dois volumes: «vou mesmo alijar a carga dos dois volumes desta Conta-Corrente de segundas vias. Talvez abafe urn pouco a berraria que pOl' af vai, com urn genio pOl' quilometro quadrado» (2, IV, 1992: 38).

o escritor ve-se na necessidade de reler novamente 0 que ele chama «0 monstrozinho do 10 volume da Coma-Corrente (nova serie)>> (2, IV, 1992: 59). Sao cerca de oitocentas paginas, 0 que 0 leva a dizer que e horrendo. Deixara, todavia, «ao criterio comercial da Bertrand 0 dividi-Io em dois volumes, como 0 outro que tinha uma mulher de 100 quilos e quis troca-Ia num banco por duas de 50» (Ibidem). «Em todo 0 caso», acrescenta, «para nao desmanchar a unidade dos volumes antecedentes, por mim ia pelo monstro. 0 piol' naturalmente e 0 pre90 do mesmo tamanho» (Ibidem).

Em 1992, e editado 0 livro Pensar. Face a uma crftica de Eduardo Prado Coelho, 0 escritor decide - mais uma vez - nao pub Ii car os novos volumes de Conta-Corrente: «A hesitacrao sobre se publicaria estas merdilhices diarfsticas pas sou-me. Foi 0 caso de que 0 Prado Coelho publicou urn bela texto sobre 0

Pensar e nele sublinhou a minha enfennidade de me entregar as ninharias dos "anteriores" diarios. lao Lourencro mo dissera. Mas porque 0 pessoal nao graduado gostou, eu fraquejei» (2, Iv, 1992: 112). Posta momentaneamente de parte a ideia de publicacrao, 0 escritor decide, todavia, persistir na escrita diaristica: «Naturalmente, YOU continual' a despejar 0 meu lixo para aqui. Tambem YOU todos os dias a casa de banho. Mas sao miserias para dentro de portas» (2, IV, 1992: 112).

Cinco meses depois, 0 escritor conta que entregou «0 monstrozinho da Coma­Corrente suplementaI» ao lose Maria Caetano, patrao-mor da Bertrand, e que ele gostou muito: «em face disso, insistiu em avan9rumos ja para a publicacrao. E num

158

Revista de Letras nOS

intervalo inesperado de mim, disse que sim, pois. Na verdade, para que queria eu para aqui 0 trambolho? Dei 0 meu nihil obstat inquisitorial e querem crer? fiquei imensamente aliviado. E mesmo obliquamente contente» (2, IV, 1992: 209-210). Reconhece, porem, que ficani «com algumas n6doas no ffsico». 0 que, diz ele, de forma alguma 0 incomoda, por ja ter muitas. Alguns dias depois, demonstra certa preocupa<;ao: «entreguei 0 diana para publica<;iio e sinto como nunca que ele me vai estragar a "imagem" que me custou tanto a compoI'» (2, IV, 1992: 217).

o escritor autoriza a publica<;iio do livro - que afinal saira em quatro volumes, que sao os que perfazem a nova serie da Coma-Corrente -, acabando por avisar: «Pronto, saia 0 livro. Mas agora, findo este ano, que ja agoniza, nem que 0 Universo me pedisse de joelhos continua la isso. Acabou» (2, IV, 1992: 21 OJ. Faz questiio de ressal var que, se alguma reflexao lhe «passar ainda pela cabe<;a, talvez a passe a ferro -para um novo Pensa,.,> (Ibidem). Quanto ao diano, «este lixo orgiinico, que e quase inqualificavel como 0 lixo at6mico - nunca mais. Vao ver como tenho palavra como nunca tive. Porque enfim a vergonha e para se usar e talvez me nao fique mal» (Ibidem). Ha que dar lugar aos outros: «0 diarismo esta a pegar entre nos, como e pr6prio da tolice, que pega sempre. Oun'os que se avenham. Fiz 0 que pude, agora outros que se arranjem. You Ie-los a eles, que e mais divertido» (Ibidem).

4. A opiniao dos outros acerca de Conta-Correllte

Ha quatro reac<;6es distintas it leirura dos vanos volumes do diana de VergI1io Ferreira, derivando quer do mvel culrural dos leitores, quer da rela<;ao que tem com o escritor. Ha os arnigos ligados it literatura que tern uma opiniao negativa do diario e procuram dissuadi-lo de 0 publicar: sao, por exemplo, Almeida Faria, Helder Godinho, Eduardo Prado Coelho e Eduardo Louren<;o. Embora Vergflio Ferreira considere que eles tem razao, nao lhes dara ouvidos. Hu os arnigos, tambem ligados it literatura, que terao uma opiniao favoravel: 0 Rogerio, a Maria Alzira Seixo, 0

Eugenio Lisboa, a Maria da GI6ria Padrao, entre outros. Ha depois 0 comum dos leitores, ora amigos, ora desconhecidos, que afinnam ter sido 0 diario a melhor coisa que 0 autor escrevera ate entao. E por fun aqueles que nao gostaram de forma alguma do diana e 0 atacam na imprensa, apodando 0 autor de narcisista e pedante. VergI1io Ferreira refere-se a todas estas reac<;6es, ora concordando, ora discordando, ora se indignando. Passamos a expo-las.

A primeira reac<;iio foi registada no segundo volume de Conta-Corrente, ainda 0 primeiro nao tinha sido publicado. Diz 0 autor: <<Acontece ainda que 0 Rogerio ontem me disse que esta a ler 0 Conta-Corrente 1 com grande interesse. Assim, pois, continuemos. Paralelamente com 0 romance e outras actividades. Se tudo 0

mais falhar e houver urn leitor para isto,ja valeu a pena. Ao menos i1udi-me comigo, como se ainda escrevesse» (I, II, 1977: 10).

Urn ano depois, refere que Almeida Faria <deu as primeiras cento e dezanove

159

Revista de Letras nOS

folhas dactilografadas» da Canto-Corrente II e nao gostou. «Achou como 0 Helder Godinho, que e urn texto demasiado intimo, directo, particular, para ser publicado pelo menos em vida» (I, II, 1975: 192). Vergflio Ferreira confess a que e afinal aquilo que ele proprio pensa. Urn escritor «pode confessar-se em poesia e mesmo no romance, porque tudo is so e "fic<;:ao"; e a "fingir"; a arte liteniria desce uma cortina sobre tudo 0 que se disser. Mas urn diano subentende que nao M cortina nenhuma. Ora h;L A diferen<;:a e que na Iiteratura se convencionou a conven<;:ao. Mas eu, mesmo que nao queira, tambem aderi a esse convenio. Posta de parte portanto, a ideia de publicar. A ver agora como me desembara<;:o da Bertrand a quem prometera 0 Iivro» (I, n, 1975: 192). Numa nota derodape posterior e colocada na altura em que 0 volume seria definitivamente publicado, acrescenta: «Nao me desembaracei. E 0 Iivro aqui esta. Que H. Godinho e A. Faria me perdoem» (Ibidem).

Enquanto nao envia a Canto-Corrente a editora para publica<;:ao, 0 autor, quer face a opiniao dos arnigos quer face aquilo que ele proprio pensa, vai hesitando eo interesse afrouxa: «Creio que perdi 0 interesse por isto. Nao foi bern pelo que me disse 0 A. Faria, oH. Godinho, ou eu proprio no interior demim» (I,ll, 1975: 195). Chega a conclusao de que «a unica imagem verdadeira que urn artista dri de si e a que orienta a suaobra» (Ibidem). Em seu entender, a confissao «constroi uma aparencia de nao querer fingir. E porque se nao quer fingir, opta-se pelo que 0 garanta - ou seja pela auto-acusa<;:ao. Ninguem acreditaria em quem se dissesse born, honesto, superior. Ninguem acredita em quem se disser "bestial" - toda a gente acredita em quem se disser uma "besta". 0 dizermal e urn aval da veracidade, pelo pressuposto de que ninguem iria dizer mal de si, se nao fosse verdade. 0 que e fraqueza em nos oculta-se. Se se confessa, e porque e ex acto. E e essa convic<;:ao do proprio que se confessa que 0 faz confessar. A fic<;:ao insinua-se af. Simultaneamente se e assim fraco e mentiroso» (Ibidem).

As duvidas do autor em publicar acentuam-se, nao tanto devido ao facto da pretensa pobreza do diano, mas mais pelo receio de que 0 conteudo crie reac<;:6es desagradriveis: «Dei a Maria da Gloria os dois pacotes de provas dos dois volumes do diririo. E ela,ji quase de pe no estribo do comboio de regresso, telefona-me a dizer que num breve e salteado folbear da papelada, ficou entusiasmadfssima com 0 que leu. Gostei, pois. Mas Ii the disse que 0 meu receio ou pavor da recep<;:ao a coisa nao era de ordem "estetica" mas "etica". Falbei resumidamente 0 sentido das , conveniencias. E mal congenito, nada a fazer. Se eu fosse diplomata, arrasavam-nos opals. Mas enfim. Valha-me aestetica» (1, ill, 19SI: 2IS).

A opiniao favonivel de Maria da Gloria Padrao leva 0 autor a reflectir seriamente na recep<;:ao publica de Canto-Corrente: «M. G. P. leu em provas os dois volumes deste diano e anuncia-me trovoada. "Vao insulta-Io", etc. Mas diz que fiz bern. Acto corajoso, diz ela, e auto-revelador, sem 0 veu da fic<;:ao, apesar de eu dizer da fic<;:ao que e reveladora» (I, III, 19SI: 223). 0 autor, no entanto, parece nao temer; atrai-o «0 apelo do risco, a vertigem do abismo, 0 estrangulamento do

160

Revista de Letras nOS

"parece bern", 0 gosto do desmancha-prazeres e a1 0 prazer da autocontemplac;ao pelos olhos veneradores dos outros, all/ite ell avant, a seduc;ao do deitar abaixo, eu incluido, e repor tudo no (quase zero) -eu incluido ainda» (1, m, 1981 : 223-224).

A Maria da Piedade, uma amiga do escritor, confessa-lbe ter lido 0 primeiro volume do diano «com entusiasmo e "fossanguice" ate chegar ao fim» (I, ill, 1981: 227). 0 escritor pergunta-lbe se nao se escandalizou. Ela diz que nao: «Delirei com o livro. Vai ser urn sucesso» (Ibidem) . Todavia, 0 receio peullanece: «a Maria da Glolia, que tambem gostou muito e ja leu os dois volumes, diz-me "voce vai lixar­se"» (Ibidem). 0 receio nao e tanto pela «porrada» que possa levar da cnrica, mas antes <<por nao estar ja em condi<;:6es de arrear». Reconhece nao ter idade para isso: «Com 65 ja no passiv~ (fa<;:o-os depois de amanha), adornado ja de uma condecora<;:ao que me figura de "personalidade", com antigos alunos ja em altas esferas sociais, nao e bonito par-me a pancada nos jomais. You ter de engolir em seco ou comer e calar, como e proprio de quem tern educa<;:ao. Mas quanta me custa» (I, m, 1981: 228).

, E uma tentac;ao a que dificilrnente conseguira resistir: «Ah, "molbar a sopa",

reconduzir ao seu lugar de res-de-chao uns malandrotes al<;ados a arranha-ceus. Mas tenho de ter paciencia. Tenho de ter compostura. Viver 0 resto da vida com a condecora<;:ao ao pesco<;:o. Ceus! Pesa-me ela agora bern mais do que uma canga. Mas urn boi tambem nao dacoices. E a minha actividade vital sinto-a e na ponta do calcanhar. E ai esta como ser "ilustre" e ser desgra<;:ado» (I, m, 1981: 228).

Urn dos amigos de quem Vergflio Ferreira mais preza a opiniao e Eduardo Lourenc;o. A opiniao deste acerca de Conta-Corrente evoluira. De urn entusiasmo inicial, passara a censura que se manifesta sempre que VergI1io Ferreira publica urn novo volume.

o escritor toma a iniciativa de lbe oferecer 0 primeiro volume: «Mandei hoje a Conta-Corrente 1 ao Eduardo Louren<;:o. Aver se a rima continua. Ou se e -oxala - dissonante. Em rela<;:ao a consonancia dos outros» (1, m, 1981 : 233). Urn mes depois, recebe carta do amigo a falar sobre a Coma-Corrente I: «0 que mais me impressionou (e agradou) foi ele lamentar que me nao tivesse posto bern nu. Meter fundo a sonda, diz ele, par portanto tudo ca fora. Nao pus. Foi born. Receava que tivesse side desbocado» (I, m, 1981: 259).

Vergilio Ferreira entende que a Conta-Corrente, embora sendo urn diano, nao e, todavia, urn diana intimo. Simplesmente porque ele nao deseja desnudar-se perante quem 0 Ie. Considera mesmo que a nudez pura e impossivel, uma vez que, «mesmo os que se poem nus», vestem-se «precisamente com essa nudez» (I , m, 1981: 259). Para 0 escritor, «a nudez que se exibe e um vestuano de outro modo. A verdadeira nudez nao seria apenas monstruosa mas sobretudo impossivel. A nudez sem impossivel e a que nao pretende ser nudez, ou seja a que se nao exibe, mas aquela que e surpreendida por descuido quando uma porta ficou aberta» (Ibidem).

161

Revista de Letras nOS

o escritor espanta-se de que 0 primeiro volume da Canto-Corrente tenha side bern recebido pelo publico leitor. Num tom de certo modo jocoso, diz em , Janeiro de 1981: «E boa. Afinal esta Canto-Corrente esta sendo bern aceite pelos que ja a leram. Porque e urn born livro ou porque a "Iarachice" e a coisa do mundo "mais bern partilhada"?Voltaire escreveu uma biblioteca e pouco ligava ao Candide. Erasmo, idem, e pouco ligava ao Elogio do Loucura. Mas foi 0 que menos tinhan1 em apre<;o que mais em apre<;o foi tide pela posteridade. Vou adrnitir a serio que you tel' "posteridade"» (I, III, 1981 : 235).

Vma semana depois, escreve: «De modo que 0 anuncio de Canto-Corrente /, ja noticiado nos jornais e nos cafes, esta a despertar uma grande efervesd:ncia. As pessoas a quemja dei 0 livro morderam nele com avidez. Leitura digestiva, relembran<;:a de uma experiencia colectiva, prazer comadreiro de maledicencia. Ha la de tudo» (I , III, 1981: 239). E da 0 exemplo da opiniao de farniliares e amigos que leram e gostaram: «Ainda ha pouco 0 Lauro Antonio me dizia ao telefone que certos trechos eram "estupendos". 0 Gilo anda a ler tambem a Canto-Corrente Ie diz-me a mesmo coisa. "Nos teus romances es as vezes muito complicado. Isto le­se melhor." E esta? Entao anda urn homem uma vida inteira 11 procura de ser melhor eo melhor era 0 quejulgava 0 pior?» (Ibidem ).

o escritor come<;a a nao gostar do entusiasmo generalizado pela Conta­Corrente: «Fiz todos os ca\Culos possiveis para acertar no alvo e 0 alvo acerta-se e disparando de costas? Hi, sem duvida, exemplos ilustres. Voltaire, ja 0 di sse, menosprezava 0 Candide e foi 0 que sobretudo ficou. Erasmo brincalhou com 0

Elogio do Loucura e quase ninguem lhe Ie mais nada. E eu que escrevi coisas boas (e verdade!) you ser lido e pelas historias do Flic ereferencias meteorologicas? Reflecti eu em mil coisas, Ii bibliotecas de saber e afinal foi tempo perdido? E de se ficar encavacado» (I, III, 1981: 239-240).

, E a partir daqui que Vergflio Ferreira tera uma posi<;:ao fortemente adversa a

propria escrita diarfstica, nao se cansando de afirmar que 0 importante e a fic<;ao e que essa e que tern urn valor intrinseco.

Vicente Jorge Silva, numa conversa sobre Conta-Corrente I que tivera com o escritor, diz-Ihe que hli <<uma questao parapsiquilitrica a resolver» (1, III, 1981: 244) quanto ao seu mundo afectivo. 0 cineasta Geada, na mesma conversa, diz-lhe que no diana M «muito de ressentimento» (Ibidem). Verg11io Ferreira confessa que esta «mais ou menos de acordo, porque a psiquiatria a resolvi com 0 desabafo; e 0

ressentimento tambem. E que no fundo estou-me razoavelmente nas tintas para 0

livro, porque me desprendi dele e do que la esta e nem uma nem outra coisaja me pertencem» (Ibidem ). Alias, nao esta nada preocupado com a reac<;:ao de quem 0

ler: «0 que disserem dele - e vao decerto arrear-lhe duro - nao e comigo mas com urn tipo que ja larguei atras. Com outros livros leva-me tempo a desprender-me deles. Com este sinto-me urn estranho. Deve talvez ser por isso que nao autografei exemplar nenhum. E a pouca gente 0 oferech> (Ibidem ).

162

Revista de Letras n05

Sendo a Conta-Corrente, de todas as obras que escreveu, a que esta mais proxima do escritorpela inerencia da propria escrita autobiognifica, 0 escritor toma uma atitude de distanciamento que, cremos, serve em certa media para se defender, quer da opiniiio dos outros, quer de si proprio, numa tentativa de convencer e convencer-se de que 0 diana e mera excrescencia do seu trabalho literano.

Apesar disso, 0 escritor vai dando pmmenores da recepc;:iio aos volumes publicados, facto que leva a pensar que a distanciayiio em relac;:lio ao diana nlio e tanta como 0 escritor parece desejar fazer crer.

Diz ele no dia 20 de Fevereiro de 1981, quando 0 primeiro volume da Con ta­Corrente estava ja nas livrarias: «0 Conta-Corrente Ivai excitando aqui e alem uma leitura "escandalosa". Ha dias foi urn tipo do Norte, creio que "catolico progressista", que me disse por carta coisas alarmistas. Que eu fora "injusto" para com 0 Mario Sacramento. Que nlio entendera a revoluc;:iio em 74. E coisas assim. Escrevi-Ihe a explicar. E la disse que a pessoa de quem mais mal digo, sou eu; e que do Sacramento 0 "mal", que podia ter dito nao 0 disse - nem digo» (I, ill, 1981 : 254). Refere ainda nesse dia que 0 Alc;:ada Baptista Ihe telefona para elogiar a coragem de il1lelectual assurnida em Conta-Corrente. VergHio Ferreira fica confundido: «No meio destas opinioes desencontradas ja nao sei bern onde tenho a cabec;:a. au talvez saiba. Esta (ainda) no sftio onde sempre a tive. Mas a reacc;:ao mais curiosa, ate ver, foi a de urn amigo que se surpreendeu pela "censura" paralela a oficial e que me foi tesourando razoavelmente como a outra» (Ibidem).

Eduardo Prado Coelho, numa conversa telefonica, infonna 0 escritor de que «alguns leitores foram lendo 0 livro com a irritac;:ao que pertence a discordiincia de ideias e adjacencias. Mas a certa altura, em face, creio, do modo de me dizer e do que nesse dizer digo, foram entrando no domfnio, digamos, da "simpatia"» (I, ill, 1981: 256). VergHio Ferreira considera que, «para haver simpatia assirn espontiinea, deve la haver muita desgrac;:a a dar ajuda. E suficiente discric;:ao para nlio dar enjoo. De qualquer modo estou comovido e creio que ja ganhei 0 dia. Como e que pode haver simpatia, se tudo em rnim diz que nao? Devo estar mais humano. au talvez que ja 0 estivesse mas ninguem sabia» (Ibidem).

Urn artigo de Eduardo Prado Coelho sobre Conla.-Corrente levara 0 escritor a dizer: «E. P. Coelho foi gentil, pondo 11 rninha volta uma muralha de defesa contra os inevitaveis ataques ideologicos. Ora. Vao atirar as bombas por cima. Esperemos que sejam de Carnaval, que e a epoca em que estamos. Mais do que isso reparei queE. Prado Coelho insiste em demonstrar-me que eu estou atascado em motivos

• de psicanalise, embora eu a nao promova 11 importiincia que tern . E possive!. Mas continuo caturra como sempre» (1, ill, 1981: 266). A explicac;:ao psicanalftica nao compraz 0 escritor por Ihe parecer demasiado redutora. Diz ele a seguir: «ha dois ramos culturais do BOSSO tempo em que nao consigo penetrar: urn e esse; 0 outro e o da cabala, esoterismo, toda essa "selva obscura" em que nlio rompo caminho» (Ibidem).

163

Revista de Letras nOS

Verg:t1io Ferreira nao concorda com algumas observa~6es do artigo de Eduardo Prado Coelho. Considera, todavia, que nao deve entrar em polemica com 0 autor do artigo, uma vez que foi urn acto de simpatia: «As discordancias sao de esquecer. Por exemplo, a de que eu tenho a obsessao de ter uma obsessao. Oh, se fosse. au que 0 Eduardo Louren<;o me "fascina". Nao e exacto. Admiro 0 Eduardo, mas a fascina<;;ao e de outra ordem de grandeza. E a grandeza nessa ordem pode nao ser muito grande. A fascina<;ao tern normaImente que ver com 0 estranho, 0 intrigante, 0 romanesco, 0 incomum para a nossa dimensao» (1, ill, 1981: 275).

Isso nao significa que, numregisto do mesmo dia, nao insista num dos pontos polemicos do artigo: «Mas quanta ao ter eu a obsessao de ter uma obsessao, E. Prado Coelho reparou nas minhas repeti<;6es - que sao muitas, decerto. E se a psicamilise tambem funcionasse af? Se 0 repetir fosse urn indicio de se estar "obcecado"?» (1, ill, 1981: 276). Refere no entanto que houve uma anota .. ao de Eduardo Prado Coelho que the tocou particularmente: «foi 0 dizer que 0 diario revelava inesperadamente a minha "fragilidade". Que bern me soube! Sou realmente e escandalosarnente fragil. Mas como e que isso foi "inesperado"? Como diabo se admite generalizadamente que eu sou altivo, distante pedamfssimo e outras calamidades? Sou fragil, 0 insensatos. Nada ha, alias, que mais me irrite are it histeria do que a pimponice de seja quem for. Mas somos todos tao frageis!» (Ibidem).

A recep .. ao de uma carta de Eugenio Lisboa a falar sobre a Coma-Corrente leva 0 autor a tecer alguns comentanos acerca da pertinencia de se considerar a escrita diaristica como uma escrita inferior em rela<;ao ao romance. Eugenio Lisboa diz-Ihe na carta que e urn disparate achar a Coma-Corrente uma obra menor. Comenta Verg:t1io Ferreira: «eu nao a acho uma obra menor - julgo e que e menor a sua dimensao. Jarnais urn born diano chegara ao myel de urn born romance» (1 , ill, 1981: 365). 0 autor coloca 0 problema na facilidade: «Se eu pudesse escrever urn born romance com a "facilidade" com que se escreve urn diano. au talvez que tudo seja em mim uma megalomania. Nem urn s61eitor me nao gabou a prosa diarista. Mas muitos deles me torcem 0 nariz aos romances. Donde eu devesse talvez ficar­me por estes servicinhos leves e desistir de empresas de outro vulto» (Ibidem).

, Desistir seria 0 mesmo que entregar as annas no meio de uma batalha: «E 0 desistes» (Ibidem).

Num artigo publicado no jomal 0 Tempo do dia 30 de Julho de 1981, Antonio Quadros faz uma recensao it Coma-Corrente. Vergilio Ferreira resume 0 artigo deste modo: «0 que diz e que as referencias polfticas sao vaJidas e 0 resto nao justificava a sua publica .. ao» (I, III, 1981: 379). Comenta em seguida: <<Nao discuto. Eu proprio hesitei muito sobre tal publica .. ao e uma das raz6es (uma ... ) por que nao autografei 0 Iivro a ninguem e que a julgo urn livro marginal. A. Quadros admite que a minha imagem se altere - e eu proprio 0 admiti e receei» (Ibidem). Nao concorda, todavia, quando Antonio Quadros 0 acusa de renegar a dominante existencialista. Isso «e falsfssimo . Com todos os atTanjos que se quiserem a tematica existencia1

164

Revista de Letras nOS

nunc a mais, desde Mudanr,;a, deixou de estm' presente no que escrevo. Mas e justamente a prop6sito de Mudmu;a que A. Q. adianta 0 seu juizo» (Ibidem) .

Mes e meio depois de ter sido publicado 0 primeiro volume de Conta­Corrente e ja praticamente esgotado, 0 autor escreve: «Dizem-me de todo olado: Coma-Corrente J e muito born. Sinal de que 0 II nao e tao born e este sen! muito pior. Mas e a mesma razao por que os 20s em quaiquerproeza nunca sao lembrados. Esgotada a admira<;:ao com os los, os outros ficam sem nada. Mesmo que suem mais. 0 remedio nisto e mudar de proeza. Assim, se se e 0 segundo numa volta de bicicleta, 0 melhor e ser 0 primeiro numa volta ao pe-coxinho» (I, III, 1981: 273). o tom depreciativo em rela<;:ao ao diario e evidente. Uma semana ap6s, escreve este apontamento: «Continua a efervescencia provocada por este diano. Espero nao sejam os rumores que precedem um terramoto. Urn livro, irnagine-se, feito quase de "restos", sobras do que poderiam ser ensaios ou trechos de romances. Em todo o caso, entendo. Do peru do Natal, 0 que sempre me soube melhor nao foi 0 que se come a meia-noite, mas 0 que sobra para 0 almo<;:o do dia seguinte. Tern men os aparato,ja esta posto em fatias. E estafrio» (1, III, 1981: 280).

Joao Palma-Ferreira, numa conversa com 0 escritor, diz-lbe que, com a publica<;:ao da Conta-Corrente, «lixou 0 Torga», uma vez que era uma «habilidade s6 dele» (1 , III, 1981: 280). Comenta Vergflio Fen'eira: «S6 se porsero diano uma courela pequena. Se ela e grande, da para van os postos de trabalho. Mas e capaz de ser pequena. Assim, s6 trabalhando-se a meias. Como no fumador "crava". "Eu fumo e tu cospes." Tu cavas e eu tenho sobre a enxada ideias gerais» (I , III, 1981 : 281).

As reac<;:6es negativas 11 Coma-Corrente come<;:am a aparecer e inicia-se uma guerra que Vergflio Ferreira levara ate 11 morte, em 1996. Uma das mais destemperadas fora publicada em 0 Jomal, que levou 0 escritor a rir-se 11 gargalhada: «Ah! Ah! Ah! Delicioso. Ha quanta tempo eu me nao ria assim de gosto. Mas e urn riso amargo, porque disfar<;:ar? 0 Jomal, que tern mostrado sempre um grande zelo pela minba boa reputa<;:ao, transcreve uma fala do Arnaldo Matos, esse gigante da politic a nacional, sobre 0 meu diano» (1, III, 1981: 291).0 que Arnaldo Matos diz eo seguinte: «A Conta-Corrente do senhor VergIlio Ferreira e urn exemplo acabado de fraude intelectual e de manipula<;:ao ideol6gica ( ... ), e aret6rica da mediocridade, a originalidade da banalidade, 0 reaccionarismo primano de uma certa pequena burguesia nacionai, a afuma<;:ao enfatuada da irresponsabilidade de urn escritor e da impunidade social e politica a que ele se julga com direito, na sua qualidade de imortal das letras» (Ibidem).

Oaf a dias, 0 escritor recebe mais «uma cartaignominiosa» do lei tor do Norte a falm' da Coma-Corrente. Para Vergflio Fen'eira, «a explica<;:ao da sua grosseria esta em que se trata de urn "cat6lico progressista". Sao terriveis estas criaturas. Com dois mil anos de mau porte, querem lavar logo tudo em dois dias. E a melhor for rna de apresentarem curriculo e cobrirem de injUrias quem esm debaixo de fogo»

165

Revista de Letras n05

(I, Ill, 1981: 300). Esta catta leva 0 escritor a reflectir na inescrut<ivel mudan«a de opini6es: «Agora 0 que e curio so e que 0 meu di:ir:io, depois de explodir em entusiasmo na direita e agora olhado por ela em frieza e suspei«ao. Afinal, nao era bern 0 que julgavam e desejavam que fosse. La que se cubra de oprobrio a KGB, va que va; mas nao a PIDE.A censura de la; nao a de ca. 0 Brejnev; nao 0 Salazar. E assim por diante. Mas eu disse-o no livro: e-se homem onde se leve mais porrada. Ca a you levando como estava escrito» (Ibidem).

Uma das causas darecep«ao negativa de Conta-Corrente e a faceta politica da mesma. Ora os comunistas, ora os que de certo modo estavam conotados com o regime anterior ao 25 de Abril, nao perdoam 0 tom depreciativo com que 0 autor muitas vezes se lhes refere.

Maria Alzira Seixo era uma das amigas que the criticava 0 antipecismo (Cf. I, Ill, 1981: 394). SerafimFerreirafala-lhe do seu desagrado em rela«ao a Co11la­Corrente e preve a hipotese de se relerem os seus livros numa optica para pior (Cf. I, Ill, 1981: 305). A onda de indigl1a~iio causada pela publica«ao do di:ir:io continua: «Ontem 0 Jomal de Letras, Artes e Ideias ("ideias" - santo Deus!) trazia urn depoimento de urn cineasta, Fernando Lopes, em que 0 nosso homem das fitas chama "verrinoso" e "chato literato" a urn tipo "que da pelo nome de VE"» (I, Ill, 1981: 327).

Em Maio de 1981, 0 escritor confinna que a Conta-Corrente realmente «chocou as pessoas. Umas por me acharem "corajoso"; outras por me julgarem "inconveniente". Creio que se fui uma coisa e outra foi por me considerar it margem do meu tempo. Afinal nao estava. Nao passei despercebido. Todos, portanto, me traziam debaixo de olho. Julgava eu que nao devia nada a ninguem e podia por isso falar it vontade. Devia. 0 erro esteve em que 0 favor de me admitirem existente nunca se tinha manifestado para eu saber. Assim fui em gloria e em crime onde eu estava apenas em ignorancia» ( I, Ill. 1981: 337).

Seis meses depois, infonna que 0 arrean~o continua: «Desta vez, ao que me dizem, foi urn pobre litera neo-realeiro numa conferencia insultuosa em certa folha hebdomadaria. Nao vi. Nao me interessa ver. Tem-se atacado muito 0 "anticomunismo prim:ir:io". Mas nada se disse ainda do pro-comunismo prim:ir:io, que e muito mais numeroso» (1, Ill, 1981: 418).

Confonne vai relatando na Conta-Corrente, VergHio Ferreira diz que algumas pessoas ficaram of en did as com certas referencias nos volumes que ia publicando. Nao porque dissesse mentiras, mas porque as pessoas nao gostavam que fossem lembradas as suas mazelas. Foi 0 caso de uma certa figura intelectual, que 0 autor nao identifica, se mostrar indignada por the ser apontado « no di:ir:io certo desvio de honestidade ideologica» (I, Iv; 1983: 380). VergHio Ferreira minirniza 0 que escreveu: «Aquilo que eu aponto, e que era, bons deuses, uma coisinha de nada, ele nao 0

negou. Indignou-se foi por eu dizer 0 que ele tinha feito. Porque e assim: la fazer 0

que se fa<;:a, esm muito bern; 0 que nao esta bern e dizer-se que se fez 0 que se fez.

166

Revista de Letras n05

Curiosa dan<;a, nao e verdade? Li que se fa<;a uma maroteira, acabou-se; mas nao ,

que se diga que se fez. E a logica dos que caem sob a al<;ada da policia. Mas eu nem tenho vocaC;ao para polfcia. Disse 0 que me disseram e que toda a gente sabia. Mas mesmo assim. Como se no dizer-se, a malanillice se ampliasse ate it mentira dela» (Ibidem).

, E no entanto a estes dizeres de nada que 0 autor atribuini 0 facto de nao ter

ganho 0 premio daAPE com 0 romance Para Sempre: «E de repente ponho-me a· pensar: quem te mandou a ti ter piadas na COil/a-Corrente? Ora. Ja Quintiliano referia (sem aplauso) e Camacho repetia (com aplauso): perca-se 0 amigo, mas salve-se 0 desabafo (prepositum potius amicum quam dictum perdendi) . Desabafei. Mas quilhei-me» (1, V, 1984: 83). E ao mesmo facto que uma amiga atribui a causa de 0 Antonio Jose Saraiva Ihe ter eliminado 0 nome na nova edi<;ao da Hist6ria de Literatura Porruguesa public ada pel a POlto Editora (Cf. 1, V, 1985: 335).

Confessa 0 escritor que estivera com 0 Vasco Gra<;a Moura e este lhe desaprovara a persistencia da ma-lfngua no diano. Refere ainda que, para 0 Eduardo Louren<;o, embora aquilo tivesse piada, era-Ihe inferior» (Cf. I, IV, 1983: 289).

Face as reacc;6es negativas, 0 escritor decide «apagar as pegadas dos outros» (I, III, 1981: 218). Nao 0 conseguiu totalmente e em cada novo volume que era publicado instalava-se a polemica, cada vez mais esbatida, e certo, mas capaz de fazerreagir 0 escritor nos volumes seguintes. Exemplo disso e areac<;iio ao espavento de «urn Quiterio cozinheiro, entendido em vinhos e petiscos que disse que Conta­Corrente e uma obra de uma pessoa odienta, vaidosa, umbiguista e zoila» (2, IV, 1992: 39).

VergHio Ferreira prepara para publica<;ao 0 volume III da Conta-Corrente e entrega-a ao Gilo, seu filho, para ler e fazer uma primeira apreciac;ao. Diz-lhe 0 filho que «aquilo e so pinheiros, sexo emorte» (I,IV, 1983: 283). «Uma chalice», comenta o pai. 0 filho contrap6e: «Nao, nao, le-se bern» (Ibidem). Os amigos que entretanto leem 0 novo volume conlinuam a censurar-lhe «a ma-lfnguae os restos de bHis que escorreram ainda para a Conta-Corrente III» (I , IV, 1983: 295). Urn deles confessou-Ihe mesmo que era uma inferioridade sua. 0 escritor, com certa versatilidade, considera que, se 0 que diz no diario e uma inferioridade, entao e porque ele e superior. 0 ter-se mostrado inferior foi, par outro lado, ter-se mostTado humilde: «So por humildade, com efeito, eu desci a uma posi<;ao inferior, que era 0

sftio onde me iJ manava ao objecto do meu mal-dizer. E justamente, so par petulancia eu me punha mais acima. 0 que quer dizer que eu fui mal-educado por educa<;ao» (I, IV, 1983: 295-296).

Conta 0 autor que uma amiga!he escrevera a dizer que leu n'es vezes 0 volume III da Conta-Corrente e concluiu que 0 autor era l1!uito desgra,ado. Vergflio Feneira fica surpreendido: «Como e que diabo isso se percebeu? E eu que tinha feito todos os esforc;os para parecer que andava contente» ( I, IV, 1983: 304).

167

Revista de Letras n05

Daqui deriva uma questiio de sinceridade: 0 autor procurou esconder 0 que realmente Ihe ia no espfrito; os leitores afinal descobriram aquilo que 0 autor pretendia nao dizer.

Daf a dias, refere que recebeu U111a bela carta de Eugenio Lisboa a falar da Conta-Corrente III. 0 que da catta mais 0 sensibilizou nao foi propriamente 0

dizer bem, mas 0 bem desse dizer: «0 bern desse dizer foi sobretudo 0 dizer que entremeado ao dizer grande, verificara ter-Ihe agradado 0 meu dizer pequeno. Sempre 0 supus, embora com receio, e daf 0 ter ficado aliviado corn a confirrna<;:ao do Eugenio Lisboa» (I, IV, 1983: 315). A ideia de escrever 0 diario e de certo modo uma tentativa de mostrar que urn escritor e urn homem como os outros: «Eu pensei que a varia<;:ao de escala estimularia a leitura e sobretudo mostrava como urn escritor e tarnbem urn homem vulgar como 0 vulgat· da humanidade. E a dimensao do pequeno pode nao ser tao pequena como isso. Intercala-Ia ao maior pode dar ainda urn saldo que se veja. 0 Eugenio Lisboa disse que deu. 6ptimo. Assim, pois, ganhei 0 dia» (Ibidem).

Esse dizer pequeno, que e uma constante em todos os volumes de Conta­Corrente, irrita 0 escritor quando os leitores 0 consideram grande. Urn mes depois de ter recebido a carta de Eugenio Lisboa, conta 0 escritor que urn sujeito desconhecido 0 fora procurar e the disse que gostava dos seus livros. Na conversa que se iniciou, diz-Ihe 0 desconhecido: «- 0 senhor e mais profundo no diana do que nos romances. Mas os romances sao mais complicados» (1, IV, 1983: 355). VergI1io Ferreira perguntou: «- Ese essa "complica"ao" fosse justarnente 0 sinal da "profundeza"?» (Ibidem). 0 desconhecido insistiu: «- Seja como for, os seus comentanos do diano la os you entendendo. Se calhar, 0 senhor devia tarnbem fazer comentanos nos romances para a gente entender melhof» (Ibidem).

Alguns anos mais tarde, conta 0 autor que foi a casa do Vasco, 0 seu amigo pintor, e que the falou sobre a situa<;:ao do romance na actualidade. Acrescenta: «apenas consegui que de vez [ern] quando me dissesse, para me reconfortar, que a Conta-Corrente isso e que era adminivel e que a relia sem cessar» (2, II, 1990: 113).

o escritor lamenta que a tinica coisa que the «atiram 11 cara constantemente como 0 mais legfvel e a Conta-Corrente» (2, II, 1990: 116). Ele pr6prio, quando a rell!, e de imediato «apanhado pelo impulso 11 leitura» (Ibidem ). «Mas que e que isso quer dizer?», pergunta. «0 mais saboroso numa refei"ao e nOlll1almente a sobremesa - que tern sempre urn lugar no estomago, mesmo depois de repleto. Vamos concluir que e 0 melhor dela? da refei<;:ao? Alias, para quem fuma, 0 melhor de tudo e 0

cigarro. Vamos concluir que a exceli:ncia da refei<;:ao e 0 seu fumo» (2, II, 1990: I 16).

No ntimero comemorativo do decimo attiversano do Jamal de Letras foram publicados dois trechos da nova serie da Conta-Corrente. Conta 0 escritor que «muita gente gostou. As pessoas querem e comida rapida, ideias rapidas, prosa

168

Revista de LetIlls n05

degradar-se» (Coelho, 1984: 68).

Urna contradi<;iio se depreende: 0 diana de Vergilio Ferreira, quando este 0

edira, deixa de pertencer ao dominio intimo, privado, e passa a pertencer ao dominio publico. 0 escritor, ao decidir-se pela edi<;ao, exp6s-se as consequencias de urn publico lei tor por urn lade pouco habituado a escrita diaristica, nurn pais onde a tradi<;iio desse genera literano na~ era significativa, por outro de urn publico lei tor eivado de preconceitos polfticos e sociais que 0 depreciararn.

170

Revista de Letras nOS

Notas

I As citac;oes referentes aos volumes da COHtCl-COrrel1te tern a seguinte configura~ao: 0

primeiro numero ( lou 2) refere-se it primeira ou segunda serle; a numerac;ao romana refere­se ao numero do volume (L II, III. etc.); a data refere-se ao ana a que se reporta a extracto e nao ao ano em que foi publicado 0 volume; 0 ultimo numero refere-se it pagina.

2 Cruxote do lixo (2, IV, 1992: 232), eSle cruxote (I , II , 1977: 10), servicinhos ligeiros (I, II, 1977: 9), assinaro ponto (I , J, 1974: 214: I , Ill, 1981: 392: I, IV, 1982: 177: 2, II. 1990: 15: 2, II, 1990: 372; 2, IV, 1992: 26). esta coisa menor que e urn diano (1.1. 1976: 385), estas garatujas (1, V, 1984: 10). esta escrita leve (I , V. 1985: 544), esta merdilhice diaristica (2. 1, 1989: 23; 2, IV, 1992: 131), este vano garatujar (2. I, 1989: 52), a minh. reza (2, 1, 1989: 258), ninharias, merdilhiees. nada (2, II, 1990: 35), estas merdilhiees (2, II, 1990: 40). esta lixarada diaristica (2, II, 1990: 225), urna prosa menos que prosaica (2, II. 1990: 350). minhoquices diaristieas (2, J, 1989: 279). esta eserita deslassada (2, II. 1990: 336), esta frivolidade de garatujas (2, II. 1990: 398). 0 earrego da Conta-Corren/e (2, III, 1991: II ). estas aparas de escrita (2, IV, 1992: 20). este contentor municipal (2. IV, 1992: 34), as escorralhas intervalares desta diariee (2. IV. 1992: 67), estas ninharias diaristieas. residuos, desperdieios (2, IV, 1992: 212), etc.

3 Em nota de rodupe,ja 0 primeiro volume tinha sido publicado e 0 autor preparava a edi~ao do segundo. infonna: «Foi 0 que se fez. Ou tentow, (I. II, 1979: 246)

171

Revista de Letras n05

BIDLIOGRAFIA

CH OCHEYRAS, J ac kes (1978), «Place du journal dans la Ii tterature modeme», emloumal lntime et ses Formes Litteraires, Geneve, Librairie Droz.

COELHO, Eduardo Prado (1984), «Entre a Apari~ao e 0 Desgaste», em A Medinica dos Fluidos, Lisboa, IN-CM.

FERREIRA, Vergflio (1980), Conta-Corrente I, Amadora, Bettrand. FERREIRA, Vergflio (1981), Conta-Corrente 11, Amadora, Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1983), Conta-Corrente ill, Amadora, Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1986), Coma-Corrente N, Amadora, Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1987), Conta-Corrente V, Amadora, Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1992), Pensar, Venda Nova, Bertrand. FERREIRA, Vergt1io (1993), Conta-Corrente - nova serie L Venda Nova, Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1993), Conta-Corrente - nova serie 11, Venda Nova,

Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1994), Conta-Corrente - nova serie ill, Venda Nova,

Bertrand. FERREIRA, Vergflio (1994), Conta-Corrente - nova serie IV, Venda Nova,

Bertrand. GILOT, Michel (1978), «Quelques pas vers Ie journal intime», em loumal lmime

et ses F01711es Litteraires, Geneve, Librairie Droz. LEJEUNE, Philippe (1975), Le Pacte Autobiographique, Paris, Editions du Seuil. MOURAo, Luis (1990), Coma-Corrente 6 - Ensaio sobre 0 Didrio de Vergflio

Ferreira, Sintra, Camara Municipal de Sintra.

172

Revista de Letras - UTAD nO 5.2000. pp. 173 - 182

Revista de Letras n05

"A Universidade: a derrota de uma vit6ria no 'dhirio de urn meio academico' POlltos de Vista"

Maria da Assun~ao Morais Monteiro

Universidade de Tnis-os -Montes eAlto Douro

Pontos de Vista} e urn pequeno romance de Filipe Martins, urn jovem natural de Casteloes de Cepeda, concelho de Paredes, que nasceu em 4 de Novembro de 1977. Frequentou 0 Curso de Engenharia Fisica na Universidade de Aveiro, de 1996 a 1998, mas acabou por mudar de curso. Actualmente e aluno de Cine-Video na Escola Superior Artistica do Porto.

Apesar da sua juventude, Filipe Martins ja recebeu alguns galard6es, podendo citar-se como exemplo 0 primeiro premio no concurso "Idiossincrasias" com a hist6ria "0 meu verdadeiro mundo", em 1993, que posterionnente foi inclufda em Quatro Amani1as, obra constitufda por qualro pequenas hist6rias, publicada em 1995, e com a qual fez a sua estreia literana. Actualmente faz parte da Associac;:ao de Escritores, Jomalistas e Artistas do Vale do Sousa e tern participado desde 1996 na colectfinea Encol1tr 'Artes - Colectanea de Textos e Autores do Vale de Sousa.

Pontos de Vista resulta da experiencia pessoal de Filipe Martins como estudante universitano em Aveiro. Nesta obra, como refere no paratexto intitulado "Nota do autor", 0 livro foi escrito durante a sua estadia naquela cidade, motivada pe1a entrada na Universidade, onde foi colocado no Curso de Engenharia, com apenas dezoito anos. Trata-se, pois, de uma producrao de urn autor muito jovem, que, comecrando por fazer "uma especie de di<irio dissimulado", acabou por escrever uma obra de ficcrao que e urn "diano de urn meio academico", segundo palavras do Autor (p.?).

Sendo uma obra que retrata 0 meio academico, pelo menos algumas facetas desse meio academico, a linguagem em determinadas passagens reflecte com alguma fidelidade a fOlllla de expressao mais livre dos estudantes e outros jovens, mediante o recurso a linguagem familiar, a giria e ao caJao. Merece todavia destaque 0 facto de Filipe Martins, exceptuando esses casos, revelar urn cui dado muito grande com a linguagem e se exprimir atraves de umaescrita fluente, de facil1eitura, bern estruturada e pontuada. Saliente-se no entanto que, a certa altura, quando 0 Autor pretende sugerir a embriaguez de uma das personagens e 0 seu estado mental de confusao, recon'e a urn tipo de escrita sem paragrafos e travessoes para indicar as falas das personagens, sem ponlos finai s, servindo-se apenas de vfrgulas que assinalam as pausas, como se 0 texto brotasse instintivamente, sem ordenacrao 16gica consciente (pp. 128-129), fazendo-nos lembrar, salvaguardando as devidas diferencras, as

173

Revista de Letras n05

rupturas de pontua<;:ao e de sintaxe que encontramos na escrita de Jose Saramago . • E ainda de referir que se trata de uma obra variada, on de nao fait am cartas-

-bi!hetes das "vizinhas" para os vizinhos e vice-versa, dois poemas escritos por uma das personagens, e onde sao abordados temas da sociedade actual como 0 referendo sobre 0 aborto, 0 problema da sua (nao)legaliza<;:ao, a op<;:ao por (nao )pratica-Io, outras quest5es como a das praxes e dos compOltamentos estudantis, a vida noctuma, problemas como 0 alcool em excesso, a angustia, a solidao, 0 maior ou menor consumo de tabaco e/ou droga, a gravidez nao desejada, 0 suicidio.

***

Em POl1tos de Vista, encontramos uma pequena amostra do dia a dia da vida de alguns estudantes, daf 0 recurso a expressao "diano de urn meio academico". Existe a preocupa<;:ao de registar quotidianamente os factos, no entanto, no que diz respeito it recnica de constru<;:ao do diillio, a obra afasta-se do perfil do texto diarfstico.

o diana e 0 registo quotidiano, em primeira pessoa, dos eventos ocorridos nurn passado recente, assumindo 0 sujeito da enuncia<;:ao uma posi<;:iio de centralidade

• em rela<;:ao a esses factos narrados. E, assim, depositario de confidencias, de opini6es, de alegrias, tristezas, obsess6es e tantas outras vivencias respeitantes ao sujeito que as registou. No difuio, geralmente coincidem 0 autor, 0 narrador e a personagem, ainda que, em alguns casos, no relata possam ser inclufdos outros eventos exteriores ao sujeito, mas que !he dizemrespeito, quer de forma directa, quer indirecta, e que

• o diarista nao quis deixar de assinalar. E, pois, urn conjunto fragmentado de textos, articulados cronologicamente, atraves da referencialidade temporal que, em geral, e tambem acompanhada por urna localiza<;:ao espacial. As ocorrencias sao, assim, situadas no espa<;:o e no tempo, testemunhando 0 dia a dia do seu autor. A este nivel, a obra, ainda que Filipe Martins tenha falado de "diano de urn meio academico", nao obedece as caracteristicas do texto diarfstico, pois falta-lhe, nomeadamente, a coincidencia do autor, narrador e personagem e a referencialidade espacial e temporal.

Ainda que possa termuitos apontamentos que sao fluto da vivencia quotidiana de urn jovem universitario, nao se trata de urn difuio e, nesse aspecto, corroboramos a opiniao do Autor, quando este se refere a uma "hist6ria de ficcrao", "uma especie de difuio dissimulado". Em Pontos de Vista nao Ita, como existe no difuio, identidade do autor, do narrador e da personagem, ja que encontramos vanos narradores e 0

relata e feito nao em fun<;:ao da 6ptica do diarista, mas de vfuios pontos de vista, isto e, atraves dos o!hos "de mentes nele inseridas", de modo "amelhor levar a cabo a ( ... ) tarefa de demlncia" pretendida.

174

Revista de Letras n05

., .. ,. * ••••• •

A obra 6 dedicada a Ciitia Morais' , a autora dos dois poemas nela contidos. Note-se que, no texto ficcional, a autoria dos poemas 6 atribuida a uma personagem com 0 mesmo nome, Catia, que, em alguns passos, assume cumulativamente a ftmt;:ao de narradora.

Pontos de Vista esta dividido em trinta e seis partes, sendo cada uma delas introduzida apenas por urn numero, sem ter a ele associada qualquer outra indica~ao de capitulo ou parte. Emcada urn dos capitulos (6 assim que vamos designarcada uma dessas partes numeradas, para melhor possibilidade de referencia) existe uma voz diferente da anterior a fazer a narra~ao dos eventos, 0 que confere ao texto uma maior variedade de pontos de vista. Assim, a voz narradora oscila entre 0 Berto (estudante universitario que inicia 0 relato quando esta no segundo ano da sua estadia na "Veneza de Portugal"), a Catia (estudante universitana, vizinha do pn!dio) e 0

Nuno (amigo do Berto que vai passar alguns dias a Aveiro e fica instalado no seu apartamento). S6 11 medida que 0 leitor progride na leitura da obra 6 que descobre a autoria da voz narradora em cada urn dos capitulos. A sua surpresa e total, na passagem do primeiro para 0 segundo capitulo, quando 0 lei tor, ainda nao conhecedar desse tipo de mudan~a, e mesmo levado a fazer uma pausa de reflexao para verificar se a frase dita no feminino nao sera uma gralha no texto, ja que 0 relato, que no primeiro capitulo era da responsabilidade de alguem que se exprimia no masculino, no inicio do segundo capitulo passa a ser feito, de repente e sem 0 lei tor esperar, par alguem que fala no feminino. Vejamos como tellnina e como se inicia cada urn dos capitulos:

"e eu apago, agora, 0 meu cigarro, atento 11 tua expressao indefesa ( ... ). «Boa noite.,," (tim do capitulo primeiro, p. 22)

"Estou apaixonada. Garanto-te que estou completamente enfeiti~ada" (inicio do capitulo segundo, p. 23 ) , E ainda de salientar que estes narradores, sendo personagens, quando falam

em primeira pessoa dirigem-se a outras personagens da obra, enquanto no capitulo seis (p. 39-43), 0 narrador se dirige a urn "Voce" desconhecido (''Voce deve estar a perguntar 0 que fa~o eu num comboio a esta hora da noite"), a lembrar-nos a escrita de Almeida Garrett, em Viagens no minha terra, pel a comunica~ao narrativa instaurada entre 0 narrador eo narratano.

A mudan~a de voz narradora e uma forma cliativa que Filipe Martins encontrou de provocar expectativa no lei tor e de diversificar 0 relato e a maneira de perspectivar deteI minados factos.

o modo como 0 Autor constr6i a obra cativa a aten~ao do leitor, que, no final

175

Revista de Letras nOS

de cada capitulo, fica em suspenso na expectativa de saber qual 0 proximo narrador. Em alguns capitulos e mesmo confrontado com uma constrw,ao narrativa a fazer­nos pensar no leixa-pren da poesia medieval, ou na forma popular de cantar it desgarrada,ja que 0 relata interrompido no final do capitulo e retomado no infcio do seguinte, mas por uma voz diferente, a de outra personagern que assume 0 estatuto de narrador desse capitulo. Ha, porern, que salvaguardar 0 facto de Pontos de Vista ser urn texto narrativo, enquanto os textos medievais em que 0 leixa-pren aparece e a desgarrada popular sao rnanifestac;oes em poesia. Vejarnos como exemplo a passagern ern que Catia, a narradora do capitulo dez, conta no final desse capitulo:

"hoje, a hora do almoc;o, ao regressar da universidade, entrei no predio e, subitarnente, laestavaele ... " (p. 64)

No inicio do capitulo onze, 0 narrador, Berto, retoma 0 relata neste ponto e, em func;ao da sua optica pessoal, conta 0 que se passou a seguir, fazendo avanc;ar a

-ac<;;ao:

"Faltava, sensivelmente, um quarto de hora para as duas da tarde quando aconteceu: Eu estava a espera do elevador ( ... ) quando entrou uma miuda desconhecida. Inicialrnente, nao me passou pela cabe<;;a que pudesse ser uma das vizinhas, de modo que nao me exaltei minimamente." (p. 65)

Algo de semelhante sucede no capitulo seguinte, tal como em outros. 0 mais sugestivo e 0 final do capitUlo trinta e cinco, que termina com a narradora Catia a contar:

"Abro a minha boIs a, remexo por baixo da agenda, vasculho entre os papeis rabiscados de poemas, e tiro ... " (p. 170)

No inicio do capitulo trinta e seis, Berto continua:

..... e tira uns oculos. Reconhec;o-os de imediato: sao os oculos escuros do Gil." (p. 171)

Esta estraregia narrativa utilizada por Filipe Martins quebra 0 ritrno da narrac;ao e chama a atenc;ao do leitor, impedindo-o de continuar embalado na inercia do relata e obrigando-o constantemente a comec;ar de novo aquilo que, afinal, nao passa de uma continuac;ao do que estava a ser contado. Esta fonna de narrarprovoca expectativa no leitor e, ao rnesmo tempo, desperta a sua curiosidade acerca de

• • • quem e a personagem que Va! contar 0 que se passa a segmr. o romance, segundo palavras do seu autor, e "uma historia de amor ... "; comec;a

e tennina ern tome do "prirneiro beijo". Note-se que 0 primeiro beijo de que se fala

176

Revista de Letras nOS

no infcio e dado na infancia, na escola, a uma menina da qual 0 narrador ja nao recorda 0 nome. Todavia, lembra-se de outros aspectos que deixaram marcas na crian"a de entiio:

"Nao me lembra 0 nome dela, mas retenho, minuciosamente, os sons, as cores, 0 sitio, todo 0 cenuno da imagem, os outros miudos a correrem em redor, 0 odor da escola, a cor de telha do pavilhao que nos fazia sombra, os gritos estridentes dos nossos colegas, 0 choro das meninas, 0 chamamento distante dos professores, e tudo isso como pano de fundo para mim e ela, juntos, olhos nos olhos num contexto de nacar, 0 calafiio momentiineo, a azia nervosa, 0 sorriso tremulo, as express6es ingenuas, a desconfian9a... mas tambem a excita9ao genufna, 0 desconhecido, a seria cumplicidade, a importancia do acto e ... 0 beijo, 0 tao venerado e interdito toque carnal." (p. 17)

A obra termina com duas frases, escritas em paragrafos diferentes, nas quais se fala do "primeiro beijo", agora 0 primeiro de uma rela"ao que come9a, aparentemente redentora para 0 nanador Belto. Este beijo indicia uma rela9aO pura, capaz de 0 ajudar a continuar a escrever 0 "Iivro em branco" no qual regista 0 seu quotidiano, livro que e, metaforicamente, 0 reflexo da vida que passa, urna vida que nem sempre e aproveitada da melhor fOlma.

Berto, que vive entre estados de espirito de angustia, solidao, ins6nia, depressao, no momento em que troca olhares com Catia, renasce para a vida, com~a a descobrir a alegria de crian9a. Alias, diga-se que Catia e referida, num momento anterior, como a1guem que tern uns olhos capazes de ressuscitar a crian9a que havia nele, de the devolver 0 seu "primeiro beijo", simbolizando esse beijo todo urn tempo pass ado, de felicidade, de pureza e alegria, dos quais 0 seu espirito conturbado tanto precisa no momenta da aC9ao:

"aqueles olhos parecem querer resgatar-me de tudo isso, oferecer-me urn temo c1assicismo que me tern confOltado desde 0 inicio da noite, ressuscitar a minha crian9a, devolver-me 0 meu primeiro beijo." (p. 124) , E por isso que, no final da obra, fica uma mensagem de esperan9a, contida

nas duas ultimas frases:

"Inclino-me para ela. Beijo-a. o meu primeiro beijo." (p. 171)

o romance apresenta, assim, 0 inicio de "uma hist6ria de amor ... ", mas mostra tambemmuitos outros problemas, alguns de fOlma muito oportuna, como sejam os excessos e comportamentos heterodoxos dos estudantes universitfuios e a questao

177

Revista de Letras n05

da passagem do Ensino Secundfuio para 0 Ensino Superior. Vejamos mais de perto a questiio do excesso e heterodoxia de

comportamentos de alguns estudantes universitanos e, em seguida a questiio da entrada na Universidade.

***

Na obra e feita a apresentac;ao de uma serie de atitudes e comportamentos que sao, na generalidade, aceites no meio estudantil, mas que, numa perspectiva diferente da de alguns desses estudantes, sao encarados como excessivos e heterodox os. Encontramos, por exemplo, uma voz crftica, a do Nuno (que nao e aluno da Universidade), que considera que a capa de estudante, designada por "trajes de aspecto vampiresco", "parece oferecer imunidade geral a massa estudantil

• por mais anti-cultural que seja 0 seu comportamento"(p. 57). E essa voz crftica que qualifica de "intervenc;6es infelizes por parte de futuros engenheiros" as atitudes dos veteranos que gritavam aos "caloiros indefesos a vomita.r pelos cantos a porta dos bares que bebessem mais ainda, cuspindo-lhes a humilha~iio a cara" (p. 57).

A voz crftica do Nuno, sendo a mais claramente expressa, nao e a unica; existem outros pontos de vista. Berto, por exemplo faz uma crftica a alguns comportamentos, ainda que de forma muito velada, ao considerarque "foi incrfvel, foi bela, foi genial a barbaridade" (p. 26) que ele e 0 Gil fizeram depois de sairem do autocarro que os "trouxe da discoteca as seis horas em ponto, bebados como cachos", quando ainda iam a casa de urn deles, 0 Gil, "fumar urn charro". Note-se que, apesar de qualificar a "barbaridade" com adjectiv~s euf6ricos, nao deixa de se referir ao acto em si considerando-o como uma "barbaridade". Esse acto, que em nada dignifica quem 0 praticou, consistiu em 0 Gil forjar urn ataque epileptico, no cafe onde estavam a tomar 0 pequeno almoc;o, para depois sarrem de 1<i e nao pagarem a despesa. A situac;ao agrava-se ainda mais pelo facto de, alguns minutos

• mais ta.rde, correrem "pela avenida abaixo em estridentes gargalhadas de festejo". E de salientar, porem, que este narrador nao deixa de referir que sente uma "forc;a demonfaca que controla qualquer demente marginal" (note-se como a escolha de vocabulos como 0 adjectiv~ "demonfaca" e 0 substantivo "demente" qualificado de marginal sugerem a perturbaC;ao e 0 comportamento fora das leis sociais l, 0 que nos pennite induzir que 0 responsavel por esta voz narradora considera que atitudes deste genero nao sao nonnais e se devem a alguem fora do seu perfeito jufzo.

Ainda que na "Nota do autor" Filipe Martins declare que niio pretendeu "assumir uma atitude de julgamento perante os conflitos, actos e pensamentos descritos" e considere que "enquanto mero observador - na primeira ou na terceira pessoa - sentiu neles tanta repugniincia (e/ou fascfnio) como natural aceitac;ao" (p. 8), 0 facto e que, subtilmente, sao feitas algumas crfticas ao meio academico.

No romance e apenas focado urn lade da vida daqueles que conseguiram

178

Revista de Letras n05

entrar no Ensino Superior, omitindo 0 outro lado, 0 dos estudantes que se esfor~am, se aplicam, estudam e levam uma vida mais regrada. E pertinente, contudo, real~ar que Filipe Martins nao deixa de questionar 0 rumo do tipo de vida focado na obra e, atraves da voz de Berto, chama-se a aten~ao para 0 caminho que esta a ser seguido. Berto refere que "0 tempo nao para" e que "e preciso fazer alguma coisa para nao ficarperdido pelo carninho" (p. 135). A introspec~ao que e feita poresta personagem e a autognose a que a mesma conduz levam-na a tentar evadir-se dos seus proprios pensamentos, pela reflexao e balan~o acerca do tipo de vida levado e, 0 que e mais relevante, a necessidade de fazer algo para se desviar do percurso e nao ficar pelo carninho.

Quanto a questao da entrada no Ensino Superior, vislumbra-se na obra uma ctitica a competir;ao existente entre os estudantes, onde ha os que conseguem chegar ao podio (entenda-se os que conseguem entrar no curso pretendido ou, pelo menos, sao capazes de entrar na Universidade) e os vencidos (os que nao entraram). Assim, por exemplo, no capitulo dezoito encontramos uma reflexao muito oportuna e pertinente acerca da entrada no Ensino Superior, depreendendo-se da parte do seu autor uma clitica as condi~6es existentes no Ensino Secundlirio, que levam a que aquilo que seria uma mera mudanr;a de estabelecimento e de mvel de ensino para prosseguimento de estudos seja visto como uma meta, uma finalidade que pressup6e competir;ao, rivalidade e concorrencia. Entrar na Universidade nao representa uma mera subida de degrau, e antes 0 resultado de um esforr;o que culminou numa vitoria e perrnite a subida ao "podio final" (p. 100). Escreve Filipe Martins:

"Quando nos chega a notfcia de que entramos para 0 ensino superior, e como se 0 desafio exfmio da existencia tivesse sido transposto. A vitoria maxima. Os passos futuros que desde logo se anunciam - tanto os que se sabem como os que so se especulam - ficam of usc ados, remetidos para tao longe que se tomam irrisorios. A transposir;ao nao se assume, aos nossos olhos, como mera subida de degrau, mas como chegada ao podio final." (p. 100)

E apresenta ainda as consequencias, a repercussao dessa "chegada ao podio":

"0 curto prazo of usc a-nos, seduz-nos, convida-nos de imediato a saborear a liberdade e autonomia que se avizinham, e 0 longo prazo - a meta do diploma - dissimula-se na imprescritibilidade do futuro, parece rno remoto, tao inatingivel, como a morte. E certo que tal nao pode generalizar-se, mas decerto acontece com a maioria, tal como aconteceu comigo. Ora essa ilusao nao dura muito, nao passa afina! de um sopro ingenuo de juventude que ainda nao se conhece de fora: 0 ana passado, fui caloiro. Tempos liureos esses. Tudo era permitido: "Reprovou!?, e era caloiro?, entao ' ta desculpado l ",

costuma-se dizer." (p. 100)

179

Revista de Letras nOS

A reflexao torna-se ainda mais profunda, quando passa de uma opiniao superficial e exterior para uma analise interior conducente a uma profunda sensa~ao de mal estar:

"Mas esses principios morrem a pouco e pouco, definham nao pelo que nos vai sendo dito, nao pelo que os orientadores ou quejandos nos pretendem incutir, mas pelas nossas pr6prias conclusoes; temos de ser n6s a chegar a elas, vern de dentro, como desde sempre tivessem estado adOIIIlecidas, a espera. E quando 0 inconfm mismo do 6cio e da boernia emergem, eis que se instala 0 conflito, 0 medo de mudan~a, a repulsa da transi~ao, e e enta~ que os reais problemas come~am. Subitamente ja nao se gosta do passado, mas, paralelarnente, teme-se ainda mais 0 futuro. E uma vez postados nessa linha divis6ria - que it partida deveria ser tao fina e indolor- acharno-nos, na verdade, encalhados para sempre num doloroso impasse. Entretanto tudo cansa, tudo isto cansa." (pp. 100-10 I)

A Universidade e, assim, para este e outros jovens como ele, uma decep~ao,

uma derrota da vit6riaque foi a sua entrada no Ensino Superior. o final da obra deixa, porem, uma mensagem de esperan<;:a, a esperan~a num

arnor que nasce e que fica em suspenso no primeiro beijo que e dado, que indicia urn novo estado de espfrito e prepara 0 lei tor para algo que vai mudar na vida deste jovern. No meio de todo este arnbiente de euforia, de desilusao, de desanimo, de busca de evasao em parafsos artificiais, no meio desta derrota de uma vit6ria, fica uma mensagem positivae de esperan<;:a numa caminhada e em novos comportamentos conducentes a uma nova vit6ria.

180

Revista de Letras n05

182

Revista de Letras nOS

Revista de Letras - UTAD

n'5, 2()()(), pp. 183 - 192

GARGANTUA: A lMAGINA<;AO NO COMICO RABELAISIANO

Armindo T. Mesquita Universidade de Tras-os-Montes eAlto Douro

Nao POSSO, muitas vezes, deixar de ril: ao vel' a maneira como se convencem da sua superioridade teologica, a vel' qual a

que empregara a Iinguagem mais barbara e mais grosse ira, quem balbuciara a ponto

de apenas urn gaga 0 conseguir entendel:

ERASMO, Elogio da Loucura

Introduc;ao

A obra de Rabelais reflecte 0 entusiasmo pela cultura antiga, pela critica ao catolicismo estabelecido, pelo 6dio a Sorbonne, pela satira social, pOl'que a Europa, enfraquecida pelas guerras, pelas fornes, pel as pestes e pelas rniserias sociais, apresentava 0 aspecto de uma imensa leprosaria.

Em 1532, a Sorbonne censurara Pantagruel, Enmo, Rabelais responde a esta censura com urn ataque vivo e claro, publicando Gargdntua, em 1534,

Rabelais convida os seus leitores a descobrir 0 sentido filos6fico oculto nos seus gracejos e a divertir-se sem dissimula<;:ao, pois "e melhorrir do que chorar", alias rir Ii proprio do homem.

Atraves da obra de Rabelais, 0 pensamento do "jovem" Renascimento encarna-se nas personagens c6rnicas, crescendo sob a impulsao da imagina<;:1io,

Com a vida de Gargantua (pai de Pantagruel) come<;:a uma serie de aventuras onde reina uma inesgomvel imagina<;:ao, uma inspira<;:ao mordaz e uma alegria c6rni I. ° senti do de Gargdntua

Ninguem pOe em causa a importiincia do c6rnico, Mesmo a qualidade estetica da obra est!, igualmente, fora de questao,

183

Revista de Letras n05

Geralmente, pensa-se que Gargantua adrnite nao somente alusoes a vida

1. 0 sentido de Gargalltua

Ninguem pOe em causa a inlportiincia do cornico. Mesmo a qualidade estetica da obra est!, igualmente, fora de questao.

Geralmente, pensa-se que Gargantua admite nao somente alusoes it vida ccontemporanea, mas tarnrem uma filosofiu. Enmo, como se deve entender este romance?

• E born nao esquecer que os homens medievais estavam acostumados aver

o mundo terrestre como reflexo indeteltllinado da realidade verdadeira. Nisto, herdeiros dos neoplatonicos, os homens da Idade Media acreditavam que os fenomenos eram uma aparencia, escondendo a substiincia ou a essencia das coisas que se devia saber sob a aparencia.

Fran"ois Rabelais pretende urn lei tor atento e sem preconceitos, capaz de discernir os problemas abordados na sua obra. Sem duvida que Garganfua, dedicado aos «ilustrissimos bebedores, [aos] preciosissimos sifiliticos» 1 e aos doentes, presta-se a fazer ill:. No entanto. as narra,,6es, fictfcias ou comicas, implicam

• verdades profundas. E a imagina<;ao rabelaisiana que da, ao seu pensamento, um

• caracter concreto. Gargantua expoe uma especie de imagem do mundo it qual Rabelais soube

associar a fantasia tradicional it realidade. porque as personagens, as cenas e os episodios trazem a marca inapagavel de urn genio profundo, original, trocista e filosofico que lbes deu sempre 0 direito de cidadania no dominic litenirio, fazendo uma fonte inesgotavel de compara<;oes felizes, de alus6es mordazes, de expressoes proverbiais de uma adrniraveljusteza; tesouros de preciosa erudi<;ao que 0 autor chama, muitas vezes, it sua satisfa<;aopara fazer brilbar 0 seu pensamento com urn clamor vivo e mais fascinante.

2. 0 riso e a sua interpreta~o

Rabelais adora as antfteses, porque the sao urn excelente meio de evidenciar uma opiniao, mostrando a ilusao da opiniao contraria. Quase sempre escamece das caras e das institui<;oes que condena antes de fOI mular 0 seu ideal. A vantagem e dupla: 0 leitor ri e 0 dito resulta ern cheio.

Desde 0 infcio de Gargantua que se velifica a inten<;ao de Rabelais mistificar os seus leitores, de faze-los rir, pOI'que rir e proprio do homem. Rimos para nao chorarmos. Esta e a prirnazia do riso. e urna especie de cornico que contem a tendencia profunda do pensamento rabelaisiano.

Corn estes gigantes, nascidos da sua imagina"ao, Rabelais surge levantado no limiar do seculo XVI, de can taro na mao, com 0 sorriso nos labios, vertando. para todos, 0 deliIio e a sapiencia. Sao as sUenas. «figUJinhas frivol as e alegres [ .. . ]

184

Revista de Letras n05

feitas propositadamente para excitar 0 riso»2 . E Baco com a sua grande pan~a, a sua cara purpurada.

Esta satisfa~ao e, muitas vezes, tri vial, cinica, surpreendente, porque esta no ,

diapasao do seculo. E preciso enormes gargalhadas para cobrir a tempestade de injurias e de amea~as que troquem, entre si, os partidos. A satira e brutal e sem piedade. Rabelais nao e um debil. Pelo contrano, faz caretas e balbucia, porque, as loucuras da infancia,junta as ruais altas inspira~6es de eloquencia e de filosofia.

No «Pr610go», ve-se que a obra, sob uma aparencia boba, e das mais serias. Alias, 0 pr6prio Rabelais nos adverte que «supondo que encontreis assuntos brincalhoes e correspondentes ao titulo no senti do literal, nao vos detenbais neles como seduzidos pelo canto de uma sereia, pois pode haver urn sentido oculto para apreciar naquilo que parece casualidade e cordial alegria».

2.1. C6mico da vida fisica

o bom gigante Grandgousier, pai de Gargantua, «muito brincalhiio no seu tempo, mo amigo de beber quanta podia se-lo 0 que mais bebesse no mundo e grande comedor de coisas salgadas»3 , da uma refei~ao abundante de tripas dos «trezentos e sessenta e sete mil e catorze» bois a todos os arnigos e vizinbos, todos «bons bebedores, bons companbeiros e hiibeis manejadores de ebrios»4 .

Gargamella, a esposa de Grandgousier, depois de ter comido uma grande quantidade de tripas, come~ou a sentir as dores de parto, dando a luz urn «formoso menino, depois de 0 ter trazido onze meses nas suas entranbas»5 .

o monstruoso gigante Gargantua vem ao mundo de improviso, de uma maneira bizarra, vitima de uma indigestao, pois a crian~a «ascendeu pel a arteria aorta e perfurando 0 diafragma encaminhou-se para a esquerda vindo a sair pela orelha desse lado. Ao nascer nao gritou como os outros meninos: Mi! Mi! Mi!, mas gritou em voz alta: De beber! De beber!»6 . 0 grito de Gargantua pode ser interpretado como convidando toda a gente a embriagar-se com 0 vinbo do saber. Grandgousier, ao ouvir 0 grito do seu ftlho recem-nascido, disse: «Grandes os tens! (referindo-se aos gasganetes). Ao ouvir isto, todos os que ali se encontravam presentes disseram que devia chamar-se Gargantua, por ser aquela a primeira frase que 0 seu pai dissera depois dele nascer, seguindo, assim, 0 exemplo dos antigos hebreus» 7 que dete! lrnnava 0 nome da crian~a, ap6s alguma circunstancia do nascimento, excepto depois da sua primeira palavra.

Quanto a personagem fantastica de Gargantua, depois de lhe terem dado de beber a vontade, preparam-lhe «dezassete mil novecentas e tres vacas para lhe darem 0 leite»8 . Alias, na sua juventude, urn dia, engoliu, por descuido, seis peregrin~s escondidos numa salada de alface. Vestia vestuario esplendido, minuciosamente desclito, por exemplo: «Para a camisa trouxeram novecentas varas de tela e duzentas

185

Revista de Letras nOS

para as mangas [ ... ] Para 0 gibiio trouxeram oitocentas e treze varas de cetim branco. [ ... ] Para as cal«as foram necessUrias mil cento e cinco varas de tecido [ ... ] Para os cal«oes trouxeram dezasseis varas e uma quarta do mesmo tecido. [ ... ] Para os sapatos arranjaram-se quatrocentas e seis varas de veludo»9 .

, E manifesto que se trata de uma gra«a trocista da imagina«iio c6rnica de

Rabelais. Com efeito, a educac,:iio de Gargantua, os seus jogos, a sua gulodice, a sua rebeldia, os carinhos dos seus govern antes, as adrnirac,:oes dos seus pedagogos sao alusoes evidentes ao estupido respeito com que se embala a infiincia dos principes.

o nome Gargiintua tornou-se popular e proverbial para designar urn comedor insaciaveL

2.2. C6mico erudito

Rabelais tern press a para chegar it educa«ao do gigante Gargantua. Pois, e aqui que 0 genio rabelaisiano se manifesta. 0 autor sentira que os destinos da Europa estavam dependentes de uma nova educa9aO.

Na sua longa vida de estudante IO e de observador, Rabelais percorreu todas as escolas celebres do tempo. 0 ensino da Idade Media, originariamente tao activo e tao profundo, sofrera a mesma sorte que a arte e a literatura goticas; tomara­se uma prisao para 0 espfrito que se emancipara no passado.

PartidUrio decJarado do RenGscimento, inimigo das velharias e do disparate desusado da escola, Rabelais, na sua obra contra a Sorbonne e os seus metodos depravados, anna todo 0 poderio do riso e da caricatura aU'aves do retrato de mestres ignorantes e de bebedores que tornaram 0 seu aluno Gargantua pateta: «Depois de tais leituras ficou tao sabido como antes de as come«3f» II .

Grandgousier reconhece que este sonhadores adulteram a inteligencia de Gargantua. Assim, tira-o das suas maos, dando-lhe urn professor do "seu tempo", urn pedagogo impregnado de ideias novas e de novos metodos humanistas e de excelencia nos seus resultados, chamado Pon6cratesl2 , para fazer ver ao jovem principe que 0 trabalho e 0 rei do mundo. Oeste modo, quando Pon6crates «conheceu a viciosa maneira de Gargiintua viver, decidiu educa-lo de outra maneira; [ ... ]limpou­ode todas as altera90es e perversos costumes do cerebro. Por este meio Pon6crates o fez esquecer de tudo quanta havia aprendido com os seus antigos preceptores. [ ... ] Depois fez-lhe tal plano de trabalho que nao!he pennitia deixar de aproveitar nem uma s6 hora do dia. Todo 0 seu tempo se dedicava as leU'as e ao honesto sabef»13 . Gargantua, depois de ter esquecido tudo aquilo que aprendera com os corruptos de juventude, foi instrufdo sobretudo pela converSa9ao, pela visita de pessoas sabias e por artistas de todas as profissoes, para ser educado na decencia, alias, coisa rara principalmente nos colegios.

Durante a toilette de Gargantua, por volta das quatro horas da manha e «enquanto se lavava liam-lhe algumas paginas da Sagrada Escritura, em voz alta e

186

Revista de Letras n05

clara, com pronuncia adequada a materia» 14 . No resto do dia tudo Ihes e, ao mesmo tempo, trabalho e prazer, havendo uma mistura da educa~ao fisica com a educa«ao moral.

• Um dia, Grandgousier recebeu do rei da Numidia (Africa) um enOlme

jumento,o «maior eo mais monstruoso que ja se vira [ ... ] Era rno grande como seis elefantes e tinha as patas fendidas em dedos como 0 cavalo de JUlio Cesar; tinha as orelhas tao pendentes como as cal~as de Languegoth, e urn comozinho na testa. Quanto ao mais, tinha, sobretudo, uma cauda tenivel, pois era pouco mais ou menos tao grossa como 0 pilar da Igreja de S. Marcos [ .. . ] Foi 0 jumento trazido pormar em tres galeras e urn bergantim ate ao porto de Olona, em Talmondois. Quando Grandgousier 0 viu disse: "Aqui esta 0 que vern mais a proposito para levar 0 meu filho aParis',>,15 .

Gargiintua, depois de ter bebido, foi enviado it capital frances a com os seus perceptores e Ponocrates para estudar.

Ao chegarem a Paris, os parisienses, espantados com a estatura de Gargantua, incomodam, perseguindo, 0 jovem gigante que «desapertou a sua bela bragui lha, pas ao ar a sua mangueira e mijou-os tao copiosamente que afogou duzentos e sessenta mil quatrocentos e dezoito, sem contar neste numero nem as mulheres nem com as crian«as»16 .

Para se esquivar 11 curiosidade dos parisienses, Gargantua refugia-se nas torres da Igreja de Nossa Senhora (de Paris) donde tira os sinos para os prender ao rabo do seu jumento,levando-os para 0 seu alojarnento.

Os parisienses decidem enviar 0 mais velho e 0 mais ilustre professor universitario, 0 sofistaJannotus de Bragmardo (que mistura no seu discurso passagens de um latim macarronico), para reclarnar os sin os. Rabelais, ja escannentado pel a Sorbonne, vinga-se, ridicularizando os velhos tossegosos da escohistica. Anote-se na arenga do Mestre Jannotus: «Mmmm ... nunm ... mmm, Mna dies, senhor, Mna dies. Et vobit, senhores. Seria uma boa coisa que nos devolvesse os nossos sinos, porque nos fazem falta. [ ... ] Se nos devolverdes os sinos devido ao meu requerimento, ganharei dez enfiadas de salsichas e urn bom par de cal«as que muito bem farao as minhas pemas. [ ... ] Reddite quae sunt Caesaris et quae sunt Dei Deo. Por minha fe, Domine, se quereis cear comigo pelo corpo de Deus, charitatis nosfaciemos bonum chembin. Ego occidi unum porcum et ego habet bonum vino. Mas de born vinho ninguem pode fazer mau latim. Agora, pois pa/1e Dei date vobis dochas nostras, eu dou-lhes um nome de faculdade, um Sermones de Utino que utinam nos devolvereis os nossos sinos. Vultis etiam pardonnes? [ ... ] Se a sua burrica se encontra bern tambem a nossa faculdade que comparata es jummentis insipielltibus el similllsfacta eis est. Psalmo nescio quo, se nao me enganei ao tomar nota. Sim,ja lhes provei que devem darmos. Ol11nis campana campanabilis in campana rio campanando, campanans, campanativo campanare faci!

187

Revista de Letras n05

campanabilitir campanantes. Parisius habet campanas Ergo glue. Ah! Esta dito! [ .. . ] Por minha alma que s6 transpir~. Ja nao estou senao para born vinho, born leito, costas voltadas para 0 lume, ventre para a mesa e tijela bern funda. Ai Domine! Peyo-Ihe em nome de Patris et Filii et Spiritus Sane/i. Amen que nos devol va os nossos sinos. E que Deus 0 guarde de to do 0 mal e Nossa Senhora the de saude. [ ... ] Verum enim vero, quando quidem, dubio procul, edepol, quoniam, ita, eerte, meus Deusfilius. Uma cidade sem sinos e como um cego sem bordao, urn burro sem cabeya ou uma vaca sem chocalho» 17 .

o sucesso desta arenga valeu ao orador seis paes com salsichas e urn born par de calyas.

2.3. Cornico de acuniula~o

Isto e por em causa as pessoas da Igreja perante a guerra. Nao nos devemos s6 contentar em rezar a Deus, porque uma parte das tropas de Picrochole entra nos c1austros da Abadia de Seville «atropelando homens e mutheres, carregando com quanta puderarn» 18 .

Os monges imundos, ignorantes e inactivos s6 sabiam comer, donnir, can tar e arrastar os sinos, ficando desnorteados com a invasao dos inimigos, por isso <<nao sabiam a qual dos seus santos recomendar-se. Por unica detenninayao, tocaram 0

ad capitulum eapilUlantes e concordaram em fazer uma bela procissao, entoando fO! mosas preces contra bostiam insidiam e sonoros reponsos pro pace» 19 . Apenas um jovem, verdadeiro e destemido monge, Joao de Entomeures, (0 ideal do monge transfoIlIlado, passando da existencia inerte do con vento a vida activa do mundo), tirou 0 habito, agarrou no pau da cruz e desanca, com toda a forya e sem d6 nem piedade, toda esta eambada inimiga. «A uns partia a cabeya, a outros os bra~os, as pemas, a outros ainda deslocava as espaduas, moia os rins, desconjuntava-lhes as omoplatas. Se algum tentava esconder-se entre as sebes era desancado que nem urn cao. Se algum tentava fugir trepando a uma more, quando se julgava mais seguro, ele metia-the 0 pau pelofundamento.

Se algum 0 reconhecia e the dizia: "Irrnao Joao, illnao, rend~-me, eu rendo­me!" - respondia-lhe: "Pois rendes, que nao tens outro remedio, mas nao sem antes entregares a tua alma ao diabo" - e continuava a dar-thes pancadas.

[ ... ] Uns clamavam por Santa Barbara, outros por S. Jorge, outros por S. Nituche, outros por Nossa Senhora da Boa Nova.

[ ... ] Uns morriam sem falar outros falavam sem morrer. Outros gritavam: confissao, confissao. Tao grande era a gritaria dos feridos que 0 prior acudiu, assim como todos os monges. Quando viram aquela pobre gente ferida de morte confessaram alguns. Mas enquanto os presbiteros se entretinham a confessar, os leigos con'eram para junto do innao Joao perguntando-lhe se queria ajuda. Este respondeu-lhes que degolassem os que estavam caidos por ten·a. Estes deixaram enrno as suas capas penduradas num cepo e comeyaram a matar aqueles que estavam

188

Revista de Letras nOS

meio mortos. Sabeis com que ferramenta? Com essas lindas faquinhas que os meninos

usarn para partir as nozes»20 .

A derrota dos malvados por Irmao Joao e uma reflexao deliberada deste acto de justi<;,a, porque este monge nao e hipocl1ta como os oulros monges no que diz respeito ao vinho. Assim, Rabelais procura dar, ao acto do h lIIao Joao, uma . ".. . ImportanCIa eplca.

ConcIusiio

Rabelais distingue-se por apresentar as suas ideias serias sob uma forma mais espantosa que e a sua eficacia. A sua narra<;ao submerge, desde 0 principio, da realidade, apresentando 0 encanto da fic<;ao romanesca.

o narrador transp6e no mundo heroi-comico a historia do processo que acaba de opor Gaucher de Santa Marta (Picrochole), senhor de Leme, ao seu vizinho Antoine Rabelais (pai do escritor), falando como advogado em nome dos aldeaos que, no romance, sao aliados de Grandgousier.

o teatro de guerra e a terra natal de Rabelais, urn quadrado de duas leguas de largura que evoca os mais pequenos aldeaos. Os seus herois (mesmo os reis gigantes) assemelham-se aos camponeses que ele conhecia desde os costumes a linguagem, ate aos monges de Seville, onde Rabelais fez os seus primeiros estudos.

Rabelais renuncia, quase totalmente, ao maravilhoso gigantesco: Gargantua e Grandgousier vencem pela sua inteligencia e pela sua sabedoria mais do que pela sua supel10ridade ffsica.

o autor de Gargdntua tern 0 privilegio de evocar 0 mundo rural, de acarnpar com a verdade (mesmo na caricatura) diversos tipos humanos (Picrochole, Grandgousier, Frei Joao) e, sobretudo, dar vida intensa a certos frescos, gran des em cor e transbordantes de ac<;ao. Portanto, pela fantasia, cheia de arnor, foge, por vezes, esta realidade pitoresca, transfoIJllando os proprietarios terrenos em reis poderosos e as fazendas em palcos fortes, fazendo evoluir, no quadro estreito das suas telTaS familiares, tropas mais numerosas que os maiores exercitos do tempo.

A parodia da epopeia e, alias, uma das fontes constantes do cornico no conjunto da obra. Esta alternancia da realidade e da fic<;ao e urn dos aspectos fascinantes de Rabelais nan·ador.

189

Revista de Letras n05

Notas

1 Rabelais. Gargolltua. Lisboa. Edi~ao Amigos do Livro. sid. p . 17. 2 Id., ibid., p. 17. 3 Id., ibid. p. 27. 4 Id., ibid., pp. 29-30 Sid. , ibid., p. 27. 6 Id .. ibid., p. 36. 7 Id. , ibid .• p. 37. 8 !d., ibid., p. 37. 9 Id., ibid .. pp. 39-40. 10 Aos quarenta anos. Rabelais foi sentar-se nas cadeiras da Universidade de Montpel1ier. 1 I Rabelais, op. cit .• p. 59. 12 Do gregG ponos. «trabalho» e krates, «eu mando». 13 Rabelais, op. cit. p. 77. 14 Id .. ibid .• p. 77. 15 Id., ibid .. pp. 6 1-62. 16 Id .. ibid .• p. 64. 17 Id., ibid., pp. 66-68. 18 Id., ibid .• p . 89. 19 Id .. ibid .. p. 90. 20 !d. , ibid.,pp. 91-92.

190

Revista de Letras n05

Bibliografia

BAKHTlNE,Mikhail, L' oeuvre de Franr,;ois RabeLais et la cuLturepopuLaireau Moyen Age et SOllS La Renaissance, Paris, Galimmatd, 1970.

BOULANGER, Jacques, RabeLais, Paris, Colbert, 1942.

BUTOR, M. & HOLLIER, D., Rabelais, ou c 'erait pour rire, Paris, Larousse, 1972.

CASTEX, P-G et al., His/oire de La Litfera/ure Franr,;aise, Paris, Hachette, J 974.

ERASMO, Elogio da Loucura, Mem Martins, Europa-Ametica, sid.

FEBVRE, Lucien, Le probleme de i'incroyance au XVIe siecie. Lo religion de RabeLais, Paris AJbin Michel, 1962.

JOUDRA, Pien'e, Le Gargan/ua de Rabelais, Par'is, SFELT, 1969.

LAMART, Jean, Rabelais, Paris, Hatier, 1973.

RABELAIS, Gargiintua e Pallfagruel, Lisboa, Edi<;oesAmigos do Livro, sd.

SAULNIER, Y.-L., Le dessein de Rabelais, Paris, SEDES, 1981.

SENNINGER, C. & CHASSANG. A., Recueil de textes litferaires fralu;ais -XVI e siecie, Patis, Hachette, 1966.

191

Revista de Letras n05

192

Revista de Letras - UTAD

nOS, 2000, pp. 193 - 198

Revista de Letras n05

Identidade e Arte Portuguesa nos Seculos XIX e XX

Lucilia Verdelho da Costa Universidade de Friburgo

A quesmo da identidade de urn pais como Portugal, que, embora pettencendo it grande farru1ia europeia, nao pode ignorar uma dupla vocaqao meditenanica e atlantica, tern necessariamente a ver com a da consciencia que as elites culturais fOljaram num detenninado periodo, mais ou menos longo, da Hist6ria. N urn momento em que a Emopa tenta criar e alicerqar uma identidade "europeia" e que, em paralelo, os modos de vida sao globalmente afectados pelo fen6nemo da mundializaqao, 0

que e que diferencia, ontem e hoje, Portugal da Europa? o intelectual Eduardo Lourenqo tem escrito paginas admiraveis, do ponto

de vista filos6fico e de ensaio, sobre este problema. Para 0 autor, 0 que nos identifica acaba por nao ser 0 que nos une, mas 0 que nos "desune". Nao 0 que faz ou cria a semelhanqa, mas 0 que instaJa a "diferenqa".

Do ponto de vista paisagistico, se nos encontrarmos ao Norte ou ao SuI do pais, nao M duvida que a tena e os modos de vida e de alimentaqao, pouco nos diferenciam dos da Italia ou da Espanha ou da Grecia ou do SuI da Franqa. Ouso

, mesmo dizer do N0l1e de Africa, de Manocos, onde, dmante dois seculos, de 1415 a 1580, desde a conquista de Ceuta it morte de D. Sebastiao em Alcacer­Quibir, Portugal procurou instalar-se, como urn prolongamento natural do seu "habitat", da sua paisagem, da sua actividade econ6mica.

N ada, pois, parece separar urn campones da SicJ1ia de urn campones transmontano. A identidade mediteniinica est:! subjacente, subteniinea, em costumes que s6 muito recentemente foram sublevados pel as directrizes e as medidas de fomento econ6mico da Comunidade Econ6micaEuropeia. Falo em conhecimento de causa, descendente de uma farrn1ia de transmontanos que conheci ainda vivendo como em pleno seculo XIX.

Se houve, pois, ruptura, esta foi muito recente, no espaqo e no tempo. Mas quando falo em "ruptura", refiro-me a uma ruptura no que podemos denominar 0

tecido do "pais real", pouco afectado por uma consciencia cultural que e essencialmente fen6nemo do crescimento citadino, 0 que os franceses, numa palavra lapidar, denominam pOl' "ten·oir".

Se me refiro a este problema da distinqao entre as elites e uma cultura multissecular, que afecta 0 imaginario colectivo, e porque ele toca outra questao essencial, do ponto de vista artistico, que e 0 das vanguardas. Como e quando detenninados movimentos arusticos de vanguarda penetram profundamente nesse

193

Revista de Letras nOS

substracto cultural e 0 transfommm? Lembro-me, por exemplo, do fenonemo extraordinario que representou,

do ponto de vista sociologico, a morte de Amilia Rodrigues, em Outubro de 1999. As elites de esquerda, que, em nome do marxismo, haviam menosprezado uma cultura popular que impregnou profundarnente as massas citadinas, compreenderam, quando menos se esperava, 0 significado desta morte como uma subita tomada de consciencia colectiva do proprio fenonemo que, durante trinta anos, procuraram • 19norar.

Actualmente, sao essas mesmas elites que se reapropriam do Fado, dando­Ihe uma roupagem mais intelectual e adaptando-o as suas proprias aspira96es, de classe ou ideologicas, de modo a recupera-Io como fundamento de uma identidade cultural sem que, todavia, as bases sociais que !he conferiram a sua dimensao de inconsciente colectivo sejam profundamente atingidas.

Se me permiti fazer este preambulo, foi para avan9ar a ideia de que, num momenta em que Portugal foi muito influenciado pel0 lluminismo europeu - a Europa das Luzes do seculo XV III -, 0 Romantismo veio, como uma reac9ao intelectual­embora inserindo-se, e certo, num movimento de ideias mais amplo que foi 0 Romantismo europeu em geral-, edificar as bases da nossa consciencia cultural, mau grado as correntes de pensamento e as tendencias que, de meados do seculo XIX ate ao final do seculo XX, tern atravessado a Historia ainda recente e na qual distinguiria tres momentos fundamentais de confronta9ao com os "outros", e que afectaram profunda, mas nao ainda decisivamente, a consciencia do "ser" portugues: a implanta9ao da Republica em 1910 e a consequente participa9ao na Guerra de 1914-1918, a Revolu9ao de 25 de Abril de 1974e, finalmente, a entrada de Portugal na Comunidade Econornica Europeia, em I de Janeiro de 1986, que marcara, sem duvida, uma viragem decisiva na nossa Historia, a par da revolu9ao, actualmente em curso, dos meios de comunica9ao via intemet.

De que modo, entao, no espa90 de dois seculos se forjou uma consciencia nacional a cujo epflogo assistimos nos nossos dias? Que rnitos construiu (ou destruiu)? ...

, Em primeiro lugar, 0 da Na9ao como identidade territorial. A n09ao de

espa90-mundo que justifica, nomeadamente, a afinna9ao do Padre Antonio Vieira - "para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal; para morrer, todo 0 mundo"-, contrap6e-se a de espa90-centro do mundo, atraves da releitura da obra de Cam6es pelos primeiros romanticos, e, sobretudo, de Almeida Garrett. 0 mundo - e vale a pena evocar aqui a perda do Brasil de que se comemora este ana 0 Descobrimento, como evento catalisador do emergir desta consciencia nos alvores dos anos 20 do seculo XIX -,0 mundo, dizia, como espa90 territorial trans-atlantico, desagrega-se, mas Portugal pellllanece como 0 centro ou a entidade capaz de ter dado "novos mundos ao mundo", nos celebres versos de Cam6es. Portugal, no momenta em que se fOlja esta consciencia, surge, como 0 Romeiro do

194

Revista de Letras n05

Frei Luis de Sousa, de Ahneida Garrett, como "ninguem", isto e, como um espac;:o, um corpo, que se volatiza, para dar lugar ao mito da sua capacidade intrfnseca e vitalizadora de criar, ou ter criado, outros mundos virtuais, uma outra dimensao, que e a da consciencia do sonho e da desmesura da obra criada. Nao esque~amos, tambem, a outra tirada celebre que paira, como uma amea<;a, e um fantasma, na obra-prima de Garrett, quando 0 fiel escudeiro de D. Joao de Portugal repete a D. Madalena as palavras escritas pelo amo, antes do desastre de Alcacer-Quibir: "Vivo ou morto, Madalena, hei-de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste mundo". Este retorno a urn passado imaginfuio e espectral, que 0 Romantismo inaugurou, manifesta-se, do ponto de vista artfstico, numa inercia que rejeita, ou reprime, auci3.cias, e recompondo, com os meios inerentes a cada arte, uma visao do presente em fun<;ao de uma impossibilidade de futuro, numa especie de peregrina<;ao interior que da senti do (e uma outra dimensao), ao proprio discmso estetico.

Na arquitectma, essa revisita<;ao das rafzes manifesta-se na longa serie de revivalismos de que 0 seculo XIX foi prodigo. 0 neogotico foi urn fen onemo comum ao Romantismo europeu e foi sob essa influencia, muitas vezes devida a arquitectos estrangeiros trabalhando em Portugal, que 0 movimento teve infcio. Mas, manifestando-se na primeira aten<;ao com que se realizaram os primeiros restamos de edificios medievos, como a real abadia de Alcoba<;a, ou se estudaram os exemplares mais significativos da ldade Media, como 0 real mosteiro de Santa Maria da Vitoria, esse neogotico de modelo europeu nao podia servir it nossa especificidade, ao passado de que se reapropriaram os romanticos, como elemento chave da consciencia nacional, para a erigir em mito.

Em que repousava essa consciencia? Na do sonho que foi obra. Na obra que se metamorfoseia em sonho, dramatmgicamente projectado como uma metalinguagem simbolica na obra que se tornara 0 Livro da epopeia: 0 Mosteiro dos Jeronimos, no qual D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotha intufra ja 0 Graal da nossa mitologia romantica em embriiio. A partir dos finais dos anos 30 do seculo XIX, e quase que podemos dizer que are ao final do Estado Novo, os elementos arquitecturais e decorativos ligados it epoca dos Descobrimentos - 0 tardo-gotico associ ado it nova dimensao humana do Renascimento, manifestada do ponto de vista escultorico e espacial-, entrara definitivamente como uma componente da nossa sensibilidade colectiva, de modo a reinventar urn Presente que nos habita como uma projec<;ao imaginfuia do que fomos, nao sendo jri, mas sendo-o atraves do nosso imaginfuio.

So tal facto pode explicar a fortuna construtiva (e critical do neomanuelino, desde, 0 final dos anos 30, 0 conhecido Palacio da Pena em Sintra, construfdo a partir do original c1austro do convento dos monges jeronirnos e utilizando pela primeira vez elementos neomanuelinos na cenografia das fachadas, ao celebre restamo dos leronimos que ocupou quase toda a segunda metade do seculo XIX, a toda uma serie de edificios (ou de decora<;iio arquitectonica), do Norte ao SuI do pais, sem falar da arquitectura funerfuia ou das artes decorativas (pense-se nas cliac;:6es em

195

Revista de Letras nOS

faianc;a de Rafael Bordalo Pinheiro, em finais do seculo), e da arquitectura efemera das exposi<;6es nacionais (a do Mundo POltugues nos salazaristas anos 40) e intemacionais.

o neomanuelino afuma-se como diferen<;a de urn Passado "outro", associado ao mar e as caravelas, temas que continuam a habitar subrepticiamente a Pintura, a Arquitectura e a Escultura, ou tao somente 0 nosso olhar exterior, que e urn olhar sobre n6s pr6prios.

Mas 0 Romantismo alicer<;ou a consciencia (transfonnada em imagimirio) de urn passado colectivo em bases mais s6lidas, que se prendem com a da redescoberta do territ6rio e dos inicios da nacionalidade, igualmente presente na obra literaria de Almeida Garrett e, sobretudo, de Alexandre Herculano. Na arquitectura, tal movimento deu origem ao ja citado neog6tico, mas tambem, e de urn modo mais especificamente nacional, ao revivalismo da arquitectura tradicional. Este ultimo conheceria tada a sua dirnensao ideol6gica (e saudosista) no movimento que ficou conhecido por "casa portuguesa" e que Raul Lino apresentou em infcios do seculo XX com base na arquitectura mudejar de finais do seculo XV tal como aparece nos Pa<;os da Vila de Sintra (mudejar que e, como se sabe, uma variante "manuelina" do SuI do pais), e da arquitectura popular tradicional.

Este ultimo movimento foi 0 que teve ecos mais duradouros, dando origem, na epoca salazarista, a uma arquitectura que combina tecnicas construtivas modemas e uma espacialidade resultante de volumetrias justapostas e espa<;os mediadores ­alpendres, terra<;os, varandas -, que se associam a elementos decorativos quinhentistas ou setecentistas. Espraiando-se sob urn ceu indubitavelmente mediterrfurico, poder-se-ia ver, nesta volumetria do casario associada ao tratamento dos paramentos e ao colorido da telha de tradic;ao romana, no meio de urna paisagem aspera e de vegetac;ao esc ass a, onde os areais prefiguram 0 recorte sinuoso da costa, uma componente menos dramatica da evocac;ao da nossa paisagem, como se o Romantismo tivesse dificuldades em assimilar metafisica e irnagem real do territ6rio.

Tais paisagens, que ainda afloram em pintores figurativos da segunda metade do seculo XX, nao se distanciam muito das que nos ofereceram os primeiros artistas naturalistas, ap6s a pose enfaticas dos primeiros precursores, como Anunciac;iio ou Cristino. Os pintores Silva Porto, Marques da Silva, Ant6nio Ramalho, Artur Loureiro, Carlos Reis e Jose Malhoa, para citar apenas os mais importantes, fixam trechos de terra, varinas e pescadores, ceifeiros e vindimadores, alde6es e viaticos, sol, luz e urn tempo que se eterniza nas tradic;6es rurais, longe do operariado e da agita'fiio citadina. ,

E 0 mesmo tipo de imagens que continua a perpetuar a arte popular, em artefactos de origem antiga mas impulsionados, revisitados, redimensionados e encorajados no seculo passado, como elementos essenciais da constitui<;ao do processo da identidade, e cuja vitali dade, nos dias de hoje, nao deixa de nos maravilhar. Bonecos de barra, tapetes, rendas, toda uma produ'fao artesanal onde

196

Revista de Letras nOS

se espelha 0 inconsciente de um povo que sonha ainda com antigos fidalgos, festas, romarias e touradas, em rituais ancestrais, em antigas memorias e habitos. Um povo que se mostra tambem capaz de irreverencia, como se se quisesse rebelar contra a ordem estabelecida, pagar 0 prec;o das grandezas, como um amargo reverso da medalha de que 0 ze Povinho criado por Rafael Bordalo Pinheiro nos da a desmesura.

o nosso Romantismo nao se adaptou as regras do jogo capitalista. Nada mais natural, portanto, que aconsciencia rural e tradicionaJista que criou (ou inventou), continuasse a ser explorada pelo Estado Novo, numa continuidade que alimentou forc;osamente 0 nosso imaginario colectivo, pelo menos das gerac;oes nascidas ate aos anos 50, com mais ou menos consciencia cultural polftica ou nao.

E foi a vivencia paradoxal desse pseudo-universo rural e simbolicamente habitado por uma epopeia mitica, que se havia ja cumplido num espac;o imaginario e que deveria cumplir-se depois num espac;o atemporal e num tempo desfasado em drama colonial, que persistiu ate a revoluc;:ao do 25 de Abril.

"0 Homem sonha, Deus quer, a obra nasce", escrevera Fernando Pessoa, n 'A Mensagem, em 1935. Que melhores imagens correspondem ao sonho conti do, projectado numa interioridade indolente, como a do Desterrado de Soares dos Reis, de 1874, ou a do Retrato de Antero de Quental, de Columbano Bordalo Pinheiro, de 1890, ou ainda as de D. Sebastiao do escultor Joao Cutileiro (estatua de Lagos, 1973) ou do pintor Costa Pinheiro ( 1966), e as evocac;6es de Lisboa na obra de tantos artistas phisticos contemporaneos?

A invenc;ao do espac;o arquitectonico e do espac;o plastico conduzem-nos, assirn, ao longo de quase dois seculos, a nostalgia dos sonhos e da obra criada, que o Estado Novo, atraves da colonizac;ao acelerada dos territorios africanos de Guine, Angola e Moc;ambique, nao cessani de explorar, numa vocac;ao atlantica ideologicamente consumada.

Pessoa escreveu que faltava "cumprir-se Portugal". Mas que Portugal? 0 que foi relido em ideologia salazarista ou 0 Portugal mitico, 0 do Quinto Imperio, que 0 poeta cumpriu em drama pessoal (pessoano ... ), e em obra?

Se assim for,ja nao precisamos de Cam6es ou de Garrett. Urn outro Portugal nasceu ja do nosso imagimirio, urn Portugal moderno, que sonha com a Europa, mas que 0 Fado, 0 destino, habitou ou habita. 0 "fado" que exaltara Camoes, e que com a Severa, em finais do seculo XIX, comec;ara a conquistar os bairros populares de Lisboa. Depois, houve tambem 0 fado de Coimbra, dos contestarios, mas um fado que e sempre saudade e Romantismo da saudade, para esses e para as pessoas da rninha gerac;ao.

Onde vao os portugueses? Que caracteriza a nossa especificidade? Se observat mos a produC;1io artistica contemporiinea - a at'quitectura, as artes plasticas, a setima atte -, um certo olhar sobre a Historia, e a tragedia da Historia, passada ou recente, continua a alimentar a nos sa nostalgia, como projecc;1io de urn imagimilio perdido e reencontrado, em momentos de catarse colecti va, como 0 foi 0 da morle

197

Revista de Letras n05

de AImilia. Pais mediterranico, Portugal e-o sem duvida, e talvez por af Portugal encontre 0 carninho de uma Europa 11 qual, historicarnente, nunca deixou de pertencer, desde que os romanos unificararn 0 "mare nostrum". Mas seremos nos capazes de abolir 0 que foi a nossa "diferen«a"? Seremos nos capazes de negar 0 obscuro desejo da saudade que habitou os poetas? Seremos nos capazes de renunciar ao porto aberto das viagens semretomo? 0 futuro 0 dinl, se a nossa voca«ao atlantica - "estou na paisagem onde a linha do horizonte e sempre a fronteira da nostalgia", dizia Alexandre O'Neill n 'A Pluma Caprichosa -, em que finalmente consiste a nossa especificidade, e a nossa arte de ser e de nos revelarmos como portugueses, resistini ao apelo da circum-navega«ao do nosso imagimirio.

198

Revista de Letras - UTAD

n05,2000,pp. I99 - 21O

Revista de Letras nOS

About Her Father's Business: The Origin ofFIannery O'Connor's Prophetic Calling

Priscilla Vance Leder

Southwest Texas State University

(Fulbright lecturer in North American Literature Universidade de Tnis-os-Montes eAlto Douro, Spring 2000)

Readers of Flannery O'Connor's fiction quickly notice that similar characters and situations keep reappearing. Those who study her work identify recurring characters such as the complacent middle-class, middle-aged woman and her bright, disaffected sons and daughters. Readers with some knowledge OfO'COIillor's life readily sunnise that her mother, Regina Cline O'Connor, served as the source for the mother figure and that O'Connor drew upon her own experience in creating the alienated children. Louise Westling, for example, notes that O' Connor wrote "stOlY after story in which disgruntled children oppose fanll-owning mothers who share many of Regina Cline O'Connor's traits.,,1 Given that Westling and other writers such as Josephine Hendin have demonstrated that mother-daughter tensions based on those 0' Connor herself experienced help drive her fiction,2 we might wonder to what extent O'Connor's experience of her father also shapes her authorial vision.

Family tensions provide the plots for many of 0' Connor's works; moreover, almost all of her characters acknowledge some sort offarnily identification. Even solitary drifters like the Misfit in "A GoodMan Is Hard to Find" and Mr. Shiftlet in "The Life You Save May Be Your Own" refer to their parents in trying to justify themselves. Like many of her male characters, the Misfit and Mr. Shiftlet identify themselves as sons, but other male characters are father figures in one sense or another older male characters, grandfathers, or acrual fathers. One group of fathers, those directly responsible for young children, often appear as ineffectual or inadvertently destructive. "Their weaknesses result from their identification with modem secular life: "hyper-rational do-gooders like the social worker Rayber in The Violent Bear it Away and the recreational director Shepherd in "The Lame Shall Enter First" alienate their charges with elaborate but empty self-improvement projects; less intellecrual fathers resemble the hapless Bailey of "A Good Man Is Hard to Find," whose garish Hawaiian shirt displays his allegiance to vulgar, modem

199

Revista de Letras n05

mass culture, and who, O'Connor explained, was" only there to drive the car.,,3 Another group of father figures seem distant because they are separated

from the protagonists by age (they are often grandfathers) or even death. Unlike their younger, secular counterparts, these father figures seem to emerge from timeless other worlds. Often, they do not inhabit the present of the text but rather haunt the memories and imaginations of the protagonists, exhorting them to actions which they fear or dread to perf 01111. Theirpowerto compel stems primarily from their connection with the characters, which 0' Connor describes in tel ms of shared blood which pulls the character as the moon pulls the tides. The power of blood often draws the character towards good or evil: father figures may be holy men who demand that God be served, like the grandfather in Wise Blood or the grand-uncle in The Violent Bear It Away, or venial sinners who insist that moral codes be ignored, like the Judge in "The Comforts of Home." The fact that these father figures engage other characters and, by implication, the reader in the struggle with good and evil is entirely consistent with what O'Connor repeatedly identified as the motivating pUlpose of her fiction her religious faith. She declared that "forme the meaning of life is centered in our Redemption by Cluist and what I see in the world I see in its relation to that.,,4

Closer exarninationreveals how her father figures exemplify the startling ways in which she expressed her faith through her writing. The novelist and critic John Hawkes wrote that in O'Connor's fiction the creative impulse "has about it the energy and unassailable paradox of the grandfather in Wise Blood, who was 'a waspish old man who had ridden over three counties with Jesus hidden in his head like a stinger:"S Hawkes chose that often-quoted description aptly, for it typifies O'Connor's mission and method. In the mind of His prophet, the grandfather, the gentle, forgiving God becomes a "sting" the means of sudden punislunent. A prophet like the grandfather, O'Connor "hides" the sting of sudden, violent death in the endings of her comic fictions to remind her readers that the "sting" of death awaits everyone. Thus, she stings her readers into an awareness of their need for grace. She wrote that "it is 'A the acceptance of grace particularly, that I always have my eye on as the thing which will make the story work."6

Her concern with grace as both mission and method what "will make the StOlY work" underlies the "unassailable paradox" of her creative impulse. Though she declares herself to be writing in the service of God's ultimate blessing, grace, her writing in many ways seems more like a curse. For instance, she almost never demonstrates or explains the joys of grace attained. Rather, she satirizes her characters' pretensions mercilessly and often punishes them with death or irrevocable loss. Ruthlessly indicting her characters for their vanity and sinfulness, O'Connor resembles the angry God of the Old Testament rather than the forgiving Jesus or the mild Virgin of the New. Even characters who move others towards grace are either unattractively holy, like the "waspish old man" or deliberately evil, like the Misfit or the mystel;ous Devil in The Violent Bear It Away.

200

Revista de Letras nOS

When questioned about her vision, 0' Connor always replied that she had to exaggerate in order to convey her Christian beliefs to a modem secular audience, explaining that "you [the Christian writer] have to make your vision apparent by shock to the hard of hearing you shout, and for the almost-blind you draw large and startling figures .,,7 As anyone who has taught O'Connor has observed, for inexperienced readers the shock often obscures the Christian vision. 8 .

Though she consistently asserted the importance of that vision, 0 ' Connor also declared that she had no control over what she "could make live" in her writing. Her statement implies that her fiction emerged from the depths of her psyche that complex enti ty which both social scientists and general readers now assume to be fonned in relationship to the family. Perhaps, then, O'Connor's relationship to her family fonus the source of the mysterious contradictions of her writing. Keeping in mind that father figures in O'Connor's writing act upon other characters as she acts upon her reader, we might find in her relationship with her father the source of the puzzling contradictions of her authorial practice.

As readers who investigate her life soon di scover, O'Connor's father developed lupus when she was twelve and died of the disease when she was fifteen. His early death may explain his relative absence from her letters. Though O'Connor wrote frequently and humorously about her mother, only seven of her letters even mention her father. One letter to Elizabeth Fenwick Way identifies him in passing as a real estate agent; letters to Elizabeth and Robert Lowell and to Maryat Lee note his death from lupus in the context of O'Connor's own struggle with the di sease. The other four address the correspondent identified only as "A." As Westling notes in herinsightful analysis of the effect A and her letters had on 0' Connor and her works, "no other correspondent evoked this kind of fond personal remembrance of the parent she lost when she was thirteen. These letters show her thinking of herself almost as her father's double."9

When she first wrote of her father to A, O'Connor declared: "I really only knew him by a kind of instinct," but in a subsequent letter explained "I am never likely to romanticize him because I carry around most of his faults as well as his tastes. I even have about his same constitution: I have the same disease. This is something called lUpus." 10 In writing thus about her father, 0' Connor at once acknowledges the potential power his image holds for her and rejects the impulse to idealize him. Nevertheless, her characterization of her connection with him, with its references to "instinct" and "his same constitution," postulates an almost physical unity too deep for words, an affinity of blood manifested by their shared disease. Like one of her own characters, 0' Connor experienced the father's destructive power in her blood, though she had little experience ofhim in life. In identifying with her father, she embraces that power. Perhaps O'Connor's identification with her father explains why, as Westling points out, "her natural impulse in thinking of the deity's relation to the Church is to see afather and a child" and why, as a writer, she

20 1

Revista de Letras nOS

became the agent of that patriarchal God, balefully reminding her readers that they must face Him in the end. 11

0' Connor' s tendency to relate to her readers as the father figures in her texts relate to other characters reinforces the assumption that her writing practice grows out of her relationship with her father. Interestingly, O'Connor's letters describe her writing as an extension of her father's thwarted ambition: "My father wanted to write but had not the time or money or training or any of the opportunities I have had. lkAnyway, whatever I do in the way of writing makes me eXUll happy in the thought that it is a fulfillment of what he wanted to do himself." 12 In another letter, 0' Connor offers a more personal reason why she, and not her father, became a writer. "Needing people badly and not getting them may rum you in a creative direction, provided you have the other requirements. He needed the people I guess and got them. Or rather wanted them and got them. I wanted them and didn't" (169). This unspecified reference to the "people" she "didn't get," presented in the context of a discussion of her father, conveys a sense of a generalized emotional deprivation which may result from his illness and death. Thus, the act which fulfills her father's ambition arises from his absence and her loss.

Though she identified herself with the her father through her writing practice, O'Connor also identified herself with rebellious children like Hulga Hopewell in "Good Country People," Mary Grace in "Revelation," and young Tarwater in The Violent Bear it Away. These rebellious children resist parental authority in one or both of two fonns: the mother-figure who promotes gentility, cheerfulness, and complacency, or the haunting father-figure who demands allegiance to good or evil. The worldly attitudes associated with the mother are, as Hendin and Westling demonstrate, questioned and often rejected just as 0' Connor questioned and often rejected the role of Southern lady which her mother represented. The father's demands, on the other hand, tend to drive the character towards grace. Nevertheless, characters like Tarwater and Hazel Motes in Wise Blood continue to resist those demands, and their protracted struggles constitute the agon of the novels.

In a sense, their struggle reflects O'Connor's own. Insofar as her disease brought her the immediate experience of the inevitability of death which made spiritual considerations so compelling for her, identifying with her father 's destructive power empowered her in tum. However, it also brought her rage and resentment against his crippling, isolating legacy. Similarly, though her Catholicism gave her writing purpose and moral authority, she felt that conflict between the Catholic writer's vision and the church was inevitable and even salutary 13 . In two senses, then, O'Connor at once embraces and defies the influence of her F/father.

In their own struggles against the father figures who would detennine their destinies, both Haze and Tarwater attempt to embrace the opposite of the prophetic vocation those holy fathers demand. Haze founds the Church Without Christ; Tarwater takes the advice of his "friend," whom O'Connor identified as the DeviL

202

Revista de Letras n05

Their flights, however, only lead them back towards the father/God. Like their creator, they pursue God's business by taking the Devil's path. Like her characters but more self-consciously, O'Connorpursued her F/father's business through the Devil's means.

Though the Devil' s path may lead back to God, the struggle between yielding to God and the desire for autonomy is almost never fully resolved in any of 0' Connor's works. Readers of the short stories rarely learn what happens to the characters who survive the devastating encounters which show them their need for grace and can only speculate about the extent to which they will yield themselves to their newly discovered destinies. What will Hulga Hopewell believe or do when she finally gets down from the hayloft, for example? In leaving the ending open, O'Connor invites the reader to imagine the story as a crucial moment in a continuing struggle like the one she described in a letter to A: "What is more cornic and terrible than the angular intellectual proud woman approaching God inch by inch with ground teethTI4

In the novels, that struggle is both more central and more extensive. In Wise Blood, Hazel Motes flees Jesus throughout the narrative but winds up attempting "to pay" for his sins by blinding himself and thus moving "backwards to Bethlehem". In The Violent Bear ItAway, O'Connor depicts the process by which young Francis Marion Tarwater, through a protracted snuggle with the memory of his grand-uncle the prophet and the voice of a "fiiend" whom she identifies as the Devil, acknowledges his own destiny as a prophet. Like his creator, Tarwater ultimately assumes his obligation to confront the secular culture embodied by the city and "warn the children of god of the terrible speed of mercy," Writing of Tarwater in a letter to A, O'Connor declared: "I feel that in his place I would have done everything he did. Tarwater is made up out of my saying: what would I do hereT'lS Perhaps in examining Tarwater, an early adolescent like O'Connor herself at the time of her father' s illness and death, we can gain insight into the process by which her authorial voice develops a process of defining herself both through and against her F/father.

In The Violem Bear It Away, Tarwater feels drawn by two powerful opposing forces the memory of his great uncle, the prophet, and the internal voice of the stranger. Though the old man's voice exhorts Tarwater to obey the Lord by baptizing his retarded cousin Bishop, and the stranger's voice denies that obligation and finally leads him to murder Bishop, both voices are generated and perpetuated by Tarwater's solitude, by his longing to hear a response which will validate his existence. The stranger's voice grows out of Tarwater's own and at once taunts him with his aloneness and exhorts him to behavior that will test the validity of his great uncle's teachings.

Tarwater's first words after his great uncle's death are addressed to the old man's corpse and affu III rather than deny the old man's command that Tarwater bury him. Tarwater "continued to sit across the table from the corpse ',4 in a kind of sullen embarrassment as ifhe were in the presence of a new personality and couldn't think of anything to say. Finally he said in a querulous tone, 'Just hold your horses. I

203

Revista de Letras nOS

already told you I would do it right.' The voice sounded like a stranger's voice, as if the death had changed him instead of his great-uncle."j6 Insofar as the boy has defined himself vis-a-vis the older Tarwater, the death has changed him. The "querulous tone" reproduces the tone the boy would take in defending his interests against his uncle's demands. However, without the old man's voice to respond and his demands to defend against, the boy's own voice resounds in emptiness.

When it speaks again, the "loud and strange and disagreeable" voice still belongs to Tarwater, who considers moving the oldman's literal boundary to confonn to his own inclinations: "'I'm going to move that fence,' Tarwater said. '1 ain't going to have any fence I own in the naiddle of a patch" (130). Continuing inside his head, the voice challenges his ownership, renainding him that the property belongs to his Uncle Rayber. This contrast between the outside and inside voice begins the process which creates the stranger as a separate entity which renainds Tarwater of his linaitations and taunts him to challenge them.

He responds to the immediate challenge by resolving to kill Rayber ifhe comes to claim the property, but his defiance evokes a higher source of limitation upon his possession of the property: "The Lord may send you off, he thought. There was a complete stillness over everything and the boy felt his heart begin to swell. He held his breath as ifhe were about to hear a voice from on high" (130). The voice from on high, the calling of God which his uncle has raised him to expect, would at once assuage his loneliness and provide him with an identity, a purpose - that of prophet. Though his heart swells with love and pride, the only noise he hears is the scratching of a hen.

Caught between his desire to assert his own identity and his longing for some force against which to test that identity, Tarwater acknowledges his lack by issuing another challenge. "If! want to move that fence before I bury him, it wouldn't be a soul to hinder me, he thought; no voice would be uplifted" (130). At this moment, as if in response to the unbearable silence, the voice of the stranger begins to emerge as other, even though it still follows the old man's line. '''Bury him first and get it over with, the loud stranger's disagreeable voice said" (130).

But the effort to follow his Uncle's instructions by digging his grave demonstrates the Uncle's absence rather than evoking his presence, and the stranger's voice, which is still Tarwater's, reiterates his isolation: '''Nobody to bother me, he thought. Ever. No hand uplifted to hinder me from anything: except the Lord's and He ain't said anything. He ain't even noticed me yet''' (137). With the one-word sentence "ever," the voice shifts from a declaration of freedom to a childlike plaint at an adult's lack of attention. Without the uplifted, hindering hand of the parent/God, the selfremains unnoticed, invisible. Not surprisingly, Tarwaterresponds by challenging one of his uncle's prohibitions, as if to invoke the "no" which will validate his existence. "'Now I can do anything I want to,' he said, softening the stranger's voice so that he could stand it. Could kill off all those chickens if! had a mind to, he thought" (137).

204

Revista de Letras n05

When this challenge remains unanswered, the voice takes the point of view of Tarwater's Uncle Rayber, a schoolteacher whose behaviorism reduces the Uncle's prophetic vocation to a symptom. In evoking the schoolteacher, the voice seems to suggest another possible identity for the boy. However,just as he feels compelled to keep Rayber off the fallll, Tarwater cannot admit Rayber 's values as his own. As his later encounters with the schoolteacher demonstrate, Tarwater always rejects the schoolteacher in the end, just as he feels the schoolteacher has rejected him by not · returning to take him away from his uncle.

Rayber's insistence on the primacy of reason and science identifies him as one of 0' Connor's ineffectual secular fathers whose influence, unlike that ofthe grandfathers, is easily resisted. In creating these characters, O'Connor may have drawn upon an influence she herself ultimately rejected the social science which was her college m'\ior and which helped create the secular intellectual climate which she felt she had to combat in her writing. Perhaps that science offered her an alternate "father" in the fOlln of a system of belief which never satisfied her because it failed to confront the mystery of death which concerned her so deeply.

In the very moment when Tarwater emerges from a memory of the schoolteacher resolved to reject him, the stranger appears for the first time as a separate entity. "[farwaterl hoped to God, he told the stranger digging the grave along with him now, that he would never see him again" (143). The stranger's first comment reminds Tarwater of his uncle's "rejection." "Listen, the stranger said, what would [Rayber 1 want to come out here for where there's nothing?" (144)

The word "nothing" introduces one of the stranger's main functions: to taunt Tarwater with his solitude, to demolish any notion he might have of his own importance. "You're left by yourself in this empty place. Forever by yourself in this empty place with just as much light as that dwarf sun wants to let in. You don't mean a thing to a soul as far as I can see" (144). The "empty place" comprehends not only the literally deserted faun but also the boy's self, which seems empty of significance without a human reference point. In the absence of such an other, Tarwater simply doesn't mean a thing.

The stranger's voice emerges from Tarwater's, and in the empty place it functions like an echo: as the boy raises his voice to test the boundaries of his newly empty space, that voice returns his challenge, resounds in the empty space, and finally seems to take on an identity of its own. The voice returns Tarwater's challenge to his internalized version of the elder Tarwater's authority by insisting that the old man was not a prophet but was merely crazy. Furthermore, the voice challenges the boy's expectation that he is himself a prophet: "Look at the big prophet, the stranger jeered, and watched him from the shade of the speckled tree shadows. Lemme hear you prophesy something. The truth is the Lord ain't studying about you. You ain't entered His Head" (145). The stranger's taunt strikes directly at TaJwater's definition of himself because his vision of himself as a prophet at once fulfilled and exceeded his

205

Revista de Letras n05

Uncle's expectations. That is, insofar as he imagined himselffoilowing in his Uncle's footsteps, the fledgling prophet Tarwater maintained his uncle as a reference point; insofar as he aspired to exceed his Uncle's calling by becoming a more important prophet, he carved out an identity of his own, Since the Lord, like the Uncle who represents him, also constitutes an other against whom Tarwater might define himself, the stranger's mockery reiterates Tarwater's lack.

During Truwater 's journey to and sojourn in Atlanta, the voices of real people such as Meeks the salesman and Tarwater's other uncle Raybertemporarily replace the voice of the stranger, but Tarwater's mind remains "engaged in a continual struggle with the silence that confront[ s] him," a silence that demand[s] he baptize the child and begin at once the life the old man had prepared him for" (219). The silence extends from the void the old man's death left in Truwater' s identity, and the demand constitutes his sense that he can recreate his Uncle only by becoming him and thus never becoming himself. From this unbearable silence, the voice of the stranger arises once more to taunt Tarwater with his solitude and his failure to become his own prophet. "The Lord speaks to prophets personally and He's never spoke to you, never lifted a finger, never dropped a gesture" (219).

Seeing Bishop in a pool, Tarwater feels the old man's presence and moves to obey it by baptizing Bishop. When Rayber stops this movement by snatching Bishop from the water, Tarwater is left "looking into the water where [his] wavering face was trying to form itself' (221). The wavering face, which wears "a look of starvation," suggests Tarwater's own "wavering," his temptation to dissolve his identity in the old man's and become a reflection of him. Confronted with the "silent" face, he defies it. "I wasn't going to baptize him, he said, I'd drown him first. ", His defiance generates another echo: '''Drown him then, the face appeared to say'" (221), and once again the stranger 's voice emerges from Truwater' s.

The voice seems to offer him a new identity in opposition to the old man's. At the same time, it emerges as God's opposite the "real" Devil that O'Connor declared it to be. At this point, the voice stops taunting Tarwater with his loneliness. Rather, it promises ''I'll never desert you" (222). The demonic presence Tarwater has conjured up can now assuage his loneliness because its defiance of the old man maintains his presence for Tarwater. The voice urges Tarwater to some definitive action which will fix his new, defiant identity. "Don't you have to do something at last, one thing to prove you ain't going to do another?" However, the action it demands-<lrowning Bishop involves precisely the san1e elements as baptism; and, sure enough, as Tarwater holds Bishop under the water, he finds himself pronouncing the words of baptism.

Tarwater struggles to deny the importance of the baptism and take credit only for the drowning. "Each time he thought of [the baptism], he reviewed its accidental nature. It was an accident and nothing more" (255). In doing so, he struggles against the knowledge that, for him, the Devil's work is merely a negative

206

Revista de Letras nOS

image of the Lord's. In becoming the old man's opposite he is just as constrained by the oldman's identity as ifhe has obeyed him-in doing the Devil's work he is no more free than in doing the Lord's . As if to illustrate this reality, the voicelDevil he has conjured up annihilates TaIwater' s autonomy in a homosexual rape.

In the brief sequence that follows the rape, the stunned, devastated Tarwater makes his way to his granduncle's grave and the realization of his ultimate destiny as a prophet.

He felt [his spiritual hunger] rising in himself through time and darkness, rising through the centuries, and he knew that it rose in a line of men whose lives were chosen to sustain it, who would wander in the world, strangers from that violent country where the silence is never broken except to shout the uuth. (266)

Clearly, Tarwater will join that "line of men" to "shout the truth," like his creator who characterized her writing practice as "shouting" to a spiritually deaf secular culture. As she herself described it, O'Connor's mission was precisely that which the voice in the burning tree assigns to Tarwater: "GO WARN THE CHILDREN OF GOD OF THE TERRIBLE SPEED OF MERCY" (267).

Like many other O'Connor characters, Tarwater di sappears off the page almost immediately after being humiliated into a realization of spiritual need. Unlike many of the short story protagonists , who seem likely to continue their spiritual suuggles, he has finally accepted his sacred destiny and rejected his friend the Devil. However, one of the final images in The Violent Bear It Away suggests that the Devil who has helped bring him to this acceptance remains with him: O'Connortells us that "the words [of the command to 'GO WARN THE CHILDREN .. .'] were as silent as seeds opening one at a time in his blood" (267). Perhaps these seeds were planted in Tarwater's blood by the Devil's homosexual rape. Because of his encounter with the Devil and his assimilation of the Devil's energy, Tarwater remains distinct from his granduncle even as he accepts the old man's calling. Furthelmore, that energy drives him to undertake the mission which the old man could never complete­prophesying to the Godless city.

Thus, through the process of the novel's central conflict, Tarwater acquires an identity at once his own and an extension of his uncle's. Initially grief-stricken and disoriented at the old man's death, Tarwater attempts to evoke the old man's presence by defying him, and finally calls up and then rejects the Devil (the old man's opposite and reverse image) retaining that rejected image as part of himself. For 0' Connor, as for Tarwater, the process of becoming a prophet began in the grief and disorientation of loss. Like her character, she must have felt the lack of a father against whom to define herself. Her references to him in her letters suggest that she may have experienced their shared disease, lupus, as her strongest tie to him. Her experience

207

Revista de Letras n05

of that disease no doubt brought about both the acute awareness of the inevitability of death and the angry exasperation, the "demonic" quality, which characterize most of her writing. Like Tarwater, she conjured the father and the devil out of her loss, then incOlporated both into her own authorial identity; the lupus which her father planted in her blood contained the potent seeds which exploded into prophecy.

208

Revista de Letras nOS

NOTAS

I Louise Westling, "Flannery O'Connor's Revelations to 'A.'" Southern Humanities Review 20,1 (1986): 15.

2 Josephine Hendin, The World of Flannery 0 'Connor (Bloomington: Indiana UP, 1970). Louise Westling, Sacred Groves and Ravaged Gardens: The Fiction of Eudora Welty, Carson McCullers, and FlannelY O'Connor (Athens: U of Georgia Press, 1985). See especially Hendin's first chapter, "In Search of Flannery O'Connor," and Westling's sixth chapter, "Good Country

People." 3 Flannery O'Connor, The Habit of Being, ed. Sally Fitzgerald (New York:

Farrar, Straus, and Giroux, Inc., 1979), 437.

4 O'Connor, Flannery, Mystelyand Manners, ed. Sally and Robert Fitzgerald (New York: Farrar, Straus, and Giroux , Inc .• 1991),32.

5 John Hawkes, "Flannery O'Connor's Devil," Sewanee Review 70 (1962), rpt. in Critical Essays on Flannery 0 'Connor, ed. Melvin J. Friedman and Beverly Lyon Clark (Boston: G. K. Hall & Co .• 1985). 94.

6 O'Connor, Mystery and Manners. I 15.

7 Ibid .• 34. 8 In Flannery O'Connors Dark Comedies: The Limits of Inference (Baton

Rouge: Louisiana State UP, 1980), Carol Shloss examines O'Connor's

rhetorical techniques in tenns of the extent to which they leave "spiritual connections to be infened. if at all, from ambiguous evidence" (37). She concludes that "O'Connor was manifestly hesitant to 'tell' enough to make textual meanings unambiguous to the nomeligious" (126).

9 Westling. "Flannery O'Connor's Revelations to 'A:" 19.

10 O'Connor. The Habit of Being. 166,168. II Westling, "Flannery O'Connor's Revelations to 'A.'" 19.

12 O'Connor, The Habit of Being, 168. 13 O'Connor, MystelY and Manners, 180. 14 O'Connor, The Habit of Being. 106. 15 Flannery O·Connor. The Habit of Being. 358 .. 16 Flannery O'Connor, The Violent Bear It Away. Three by Flal1nelY

o 'Connor (New York: NAL. 1983), 129. Subsequent references to this text will be cited internally.

209

Revista de Letras - UTAD n"5, 2000, pp. 211 - 224

Preambule

Les enjeux discursifs du

Revista de Letras nOS

langage politiquement correct

Christian BOIX Universire de Bow-gogne

Figure rMtorique dont l' origine se perd dans la nuit des temps, r euphemisme voit son usage se multiplier dans I' ere dite «de la communicatiofi».ll ne fait aucun doute que la croissance de l'interlocution et de 1'interaction s' accompagne d' une codification specifique, que de nouvelles nonnes voientle jour·1 : la mise en circulation de la parole suppose, comme pour n' importe quel vehicule, des regles de conduite. Et lorsque la circulation est trap dense, dans r embouteillage du discours sans fin, la premiere regIe est de rester <<Zen» ... : la parole euphemique est peuH~tre avant tout cela.

La principale regIe qui s' est universalisee dans les demieres annees du XXe sii!cle consiste a <<Illenager la face de r autre». n n 'y ala aucune revolution de principe, Goffman ayant deja largement etudie ce phenomene inscrit de tout temps au fondement des langues. Mais si tout bambin convenablement eduque apprend des son plus jeune age que I'on ne dit pasje veux, maisje voudrais ouj'aurais vouiu, il ne sait pas encore qu 'il est inconvenant d' appeler un chat un chat; il ignore en effet que les baiayeurs sont des techniciens de sUl!ace, Jes regions pauvres des zones economiquemel1t deprimees, ou que les arracheurs de sac de vieilles dames et autres incendiaires d' automobiles ne sont que de petits sauvageolls, au fond bien sympathiques.

L' euphemisme, amplement genere par les organismes politiques, administratifs ou commerciaux, et propage par Jes medias, est r un des symptomes du mouvement global que Jes publicitaires ont resume sous Ie nom de «mieux-disanl» version communicante du <<politically correct». Dans une societesoji, iJ faut dedramatiser, limer les asperites, eviter Jes sujelS qui ffichent, rendre a tout et a tous une dignite, en un mot PO-S1-TJ- VER, comme on r a si bien compris chez Carrefour. Mais quels sont les mecanismes discursifs qui sous-tendent ce rituel de communication? Qu'empmnte-t-il au passe etquelle fonctionnalite conserve-toil au present? A queJs secteurs et domaines est-il plus particuJierement reserve? D'un point de vue

211

Revista de Lelras n05

pragmatique, que peut-on faire de plus ou de moins dans et par Ie langage grace 11 la designation euphemique ?

C' est a ces questions que no us tenterons d' apporter quelques elements de reponse dans les lignes qui sui vent.

Quelques reperes Le Petit Robert fait remonter I' apparition du mot Eupiuimisme a 1730 et

propose la definition suivante : «Expression attenuee d'une notion dont I' expression directe aurait quelque chose de deplaisant». Exemple : defunt> disparu. Voir adoucissement.

L' Encyclopedie Larollsse precise qu' il s' agit d' une «Figure qui consiste a adoucir par I' expressionla crudite de certaines idees ou de certains faits, et qui va meme, comme r antiphrase,jusqu' a employer un mot ou une locution dans un sens contraire a sa signification reelle».

Comme on peut s'en rendre compte, Ie noyau dur de cette figure reside dans la designation douce ou adoucie. La tendance euphemique du discours est donc Ie correlat langagier de canons culturels et mentaux modemes caracrerises par' la proliferation des «methodes douces», des «versions soft» etautres <<produits light». A l'instar des yaourts et des sauces, Ie langage prend des airs alleges, avec toute une gamme de produits allant de la simple attenuation a I' antiphrase radicale.

Cela dit, il faut remarquer que seule l'extension accrue des domaines d' application de r euphemisme est nouvelle. L' etymologie du terme issu du grec:­rappelle son origine lointaine : euphemisme vientd' euphbnismos, lui meme issu de euphemos : «de bon augure». Le mot est compose du radical pi1eme : «parole» et du prefixe eu : «bien». Parler par euphemismes revienten quelque sorte a prodiguer de «bonnes paroles», qui renvoient a des realites placees sous les meilleurs auspices : c' est ainsi, par' exemple, que les chomeurs ant retrouve a defaut de mieux une activite sociale en devenant des demandeurs d' emploi. Les Anciens attachaient deja une grande importance a I' emploi des euphemismes, car un mot eveillant une idee filcheuse etait pour eux un mauvais presage. J usque dans les textes de loi , on evitait les tellnes de mauvais augure, comme ceux qui touchaient a la mort [«il est marl» > <<i l a vecu» au <<il a cesse de vivre» : grace a la negation, on evite de convoquer Ie tellne deplaisant et on Ie remplace par son antonyme, la vie]. De lameme maniere, les grecs denommaient par antiphrase Eumenides (<<bienveillantes» ) les terribles Erinyes2 , et Pont-Euxin3 (<<mer hospitaliere») une mer redoutee pour ses naufrages. La pensee mythique, de tout temps, a tente de conjurer les menaces du sort en ne mentionnant pas explicitement les realites qui ffichent...les dieux. Ce mecanisme de base semble faire retour dans notre vie quotidienne, it cette difference pres qu' it ne s' agit plus d' eviter d' encourir les foudres de I'Olympe, mais plutot celles du commun des mortels : un plan de restructuration d' entreprise pelmettra au moins un temps d' expectative, une latence protestataire que n 'aurait pas suscite un programme de

212

Revista de Letras n05

mise a pied de 25% du personnel; Ie Revenu Minimum d'bzsertioll (RMI) est autrement plus prometteur que les denominations crues de Minimum Vital ou d'Alioeatiol1 de Subsistanee d' antan.

En telIlles triviaux, on pourrait dire que I' euphemisme est, fondamentalement, I' equivalent linguistique de l'invention du paratonnerre. L' euphemisme s' est toujours concentre dans les situations de discours concernant les tabous : la mort «<rna mere ne va pas tarder a aller sous les fleurs» E. Hanska) ; la religion «de Malin» pour Ie Diable) ; la maladie et certaines plus particulierement (X est mort des suites d'une longue maladie) ; la sexualire «<faire crac-crac») ; les maladies liees a la sexualite (au XVIIIe, «une galanterie» designe la syphilis ; plus pres de nous, Ie sigle «MST», aseptise si I' on peut dire ... ). II envahit aujourd'hui Ie domaine des representations sociales, ce qui pourrait demontrer que celui-ci est de plus en plus traverse d' augw'es mena<;ants, puisqu' il faut a tout prix les conjurer par I' estompage de la periphrase et de la sous-detennination.

L'euphemisme en tant que pbenomene discursif

Sur Ie plan technique, I' euphemisme peut etre analyse de diverses manieres, selon Ie point de vue linguistique que ron adopte.

Sous r aspect rhetorique, r euphemisme appartient aux jigures rejerentielles, lesquelles peuvent oeuvrer par sur ou sous-detennination :

par sur-determination = hyperbole figure n!ferentielle

par sous-detenllinatioll = euphemisme

Cette conception du langage presuppose qu'il existe un mode de designation normal, standard ou neutre, et que certaines figures peuvent situer I' expression en de"a ou au-dela de la «Realite». C'est ainsi que Marc Bonhomme, dans Lesjigures eMs du discours4 ,definit I' euphemisme comme <<un discours en de<;iI» :

"Mo mere ne va pas tarder a oller SO ilS les jleurs" {E. Hanska]

--------------------- REALlTE : !mourir!

• "aller SOllS les fleurs": DISCOURS

La sous-detennination ( <<1' en de<;a de la realite») peut etre realisee discursivement

21 3

Revista de Letras n05

grace it certains tropes, la propriete premiere de ceux-ci etant de connecter deux expressions5 :

-1' expression tropique : Casques mer6

- toute autre expression que ron pourrait y substituer en puisant dans un stock designateur anterieur ou parallele : Agents d' enh'etiell et de surveillance des plages. Casques bleus dulittoral. Etc ... [La valeur «en dec;u» du designateur tropique reside ici dans Ie raccourci sur la nature exacte de la mission de ces forces desarmees et sur la raison de leur necessaire presence: nettoyage, humanitaire, interposition entre les hommes et la nature, entre touristes occasionnellement belligerants, maintien de r ordre?] La sous-detellnination est egalement prise en charge par des figures syntaxiques comme la periphrase (gitans = gens du voyage; bourreau = executeur des hautes oeuvres), la reticence (ellipse: il 110US les brise). Ou encore par des figures morphologiques cotmne J'apocope (fa p ... respectueuse) et la substitution (diable > diantre ; comme en espagnol hostia > ostras ou joder >jo/{nl}olines).

Sous I' aspect stylistique, on retrouve grosso modo les memes presupposes, parfois enrichis d'intuitions d'une grande acuite, Cbarles BAI I y7 ranger euphemisme dans la langue parlee et I' expression familiere en invoquant la tres pertinente raison que <<1a constitution de la langue parlee est detenninee par les caracreres fondamentaux de la mentalite moyenne, et par les necessites decoulant des besoins de la vie reelle, de la communication de fa pensee et des rapports sociaux entre les sujets parlants8 ». Selon lui, la langue parlee, plus que toute autre, tend Haire usage d'un langage figure specifique ou r affectif joue un grand rOle: «La poussee individuelle tend it exagerer J' expression et des considerations sociales tendent it r attenuer9 », Au sein de ce double mouvement psychologique et social, hyperbole et euphemisme se rejoignent, puisqu' iln' est pas rare d' observer une exageration dans l' attenuation : «donnez-moi une farme, une goutte, Ull soup,on .. . de Porto». Le merite de Charles BALLY, c' est de souligner Ie rapport de r attenuation avec la contrainte sociale :

On exagere pour s'imposer aux autres, et I' on aUenue pour les menager ; r adaptation au milieu s' accompagne presque toujours d'une attenuation de la pensee et de l'expression10 .

Cette remarque de bon sens merite que ron s'y arrete et que ron observe les designateurs employes aujourd'hui dans certaines circonstances precises. Dans une societe qui devient iIremediablement it deux vitesses, on voit apparaitre deux types de discours referentiels distincts. Par exemple, on voit emerger au sein des «zones de non-droit», dans les «quartiers sensibles», une fiicheuse tendance it «I'incivilite» de la pmt d'une «petite delinquance» ; de Iii un «sentiment d'insecurite» de la part des ressOltissants de I' autre bord de la fracture. Autant de minorations qui, comme

2 14

Revista de Letras n05

J' on dit en Droit, relevent de circonstances attenuantes, sans aucun doute fondees. On attenue ainsi pour relooker la face sociale de ces «exclus» que I' on presente comme proches de la frontiere de l'inclusion dans une societe unitaire mythique. Dans Ie meme temps, les autorites de la Securite Routiere pesent leurs mots sur un trebuchet moins sensible et parlent de «delinquance au volanD>, certes dans la louable intention de frapper les esprits lors de leurs canlpagnes de prevention. Deux poids, deux mesures? Ou deux societes, deux langages? Exagererait-on la ou ron sait pouvoir s'imposer et attenuerait-on la ou il est devenu utopique de penser Ie faire? Mais laissons de cote ces exemples qu'il faudrait pouvoir traiter de maniere exclusivement euphemique tant ils sont devenus un sujet tabou de notre temps, et revenons a Bally:

Les types les plus caracteristiques de l' attenuation se trouvent dans J'expression d'idees qui sont dangereuses au point de vue social, quand elles prennent la forme de jugements portes sur les autres (malhonnetete, deloyaute, mensonge, etc.)!! .

La est en effet Ie vivier Ie plus foumi des inventions euphemiques. Porter un jugement sur les autres est tout a fait possible, honnis s 'j] est negatif. Le domaine Ie plus connu est celui de la politesse diplomatique qui prohibe de traiter quelqu 'un de menteur, ou meme de dire que ce qu'il avance est faux: on dira que ses affirmations «ne sont pas exactes». De quelqu'un qui nous a trompe, nous dirons qu'il est «peu scrupuleux». Et face a certaines operations financieres crapuleuses relevant de ce que I' exageration familiere appellerait «magouilles», la Cour des Comptes parI era de «gestion manquant de transparence».

En fait, en touchant au <<jugement sur les autres», Bally rejoint la reflexion des philosophies analytiques du langage et de la pragmatique dans son entier. Parler, c' est agir par Ie biais des mots, c' est les choisir et les arranger en fonction de buts argurnentatifs etmanipulatoires, c' est avoir !'intention d'influencer l' autre en quelque maniere, Comme Ie rappelle Strawson, la reference n'est pas une propriete des mots mais un acte accompli par des sujets a I'aide des mots :

Designer ou se referer n' est pas quelque chose qu 'une expression fait, mais quelque chose que quelqu'un peut faire en utilisant une expressionJ2 .

L' euphemisme etant un mode de designation, il est acte de parole, et doit etre envisage comme tel. Mais il est aussi point d' ancrage argurnentatif, maillon axiologique inscrit dans une chaine, deposita ire de topol qui pennettent de constlUire une representation axee sur des finalites concretes. Dans cette perspective, J' adoucissement et l' attenuation ne sont pas un acte «melioratif» ou «d' estompage» J 3 qui trouverait sa

2!5

Revista de Letras nOS

finalite en lui-meme. Les designations dites «euphemiques» sont des designations grace auxquelles on peut faire certaines choses que ne permettent pas d'autres designations.

Euphemismes et strategies logico-argumentatives

La pragmatique nous a enseigne a concevoir les mots comme etant pourvus - systematiquement d'une orientation argumentative. C' est bien evidemment Ie cas des «mots du discours», comme les connecteurs ou operateurs logiques, puisqu'ils sont dits «vides» sur Ie plan semantique. Mais c'est aussi vrai pour l'usage des mots du lexique, lesquels n' echappentpas a cette composante argumentative fondarnentale du langage. Oswald Ducrot fait observer a cet egard que:

Pour justifier une attitude vis-ii-vis d'un objet ou une situation, on a ten dance a leur atuibuer des proprietes justifiant que I' on ait cette attitude : on place dans les choses ce qui est necessaire pour legitimer la fa~on dont on se comporte vis-a-vis d' elles 14 .

Si I' on peut resumer les choses en reprenant, comme Ducrot, I' adage selon lequel : «Qui veut noyer son chien l'accuse de la rage», on peut egalement sereferera un exemple de strategie de nature plus eupbemique deja soulignee par Moliere:

Et I' on voit toujours les arnants vanter leurs choix . ... lis comptent les defauts pour des peIfections Et savent y trouver de favorables noms 15 .

L' euphemisme, par I' acte «melioratif» qu 'il accomplit, revient a convoquer des attitudes favorables en lieu et place d' autres qualifications qui Ie seraient moins.

Le phenomene est notamment repandu dans Ie changement de denomination des metiers et fonctions sociales. Lorsque les telInes en usage ont suffisamment servi, ils se chargent d'une axiologie positive ou negative et pour reprendre les termes de Bally, ils finissent par avouertrop ouvertement qu' ils vemculent un <<jugement sur les gens». On profitera donc de l' evolution de la technicite des emplois pour les rebaptiser: certes, il s'agit Iii d'une adaptation aux mutations professionnelles, mais il faut remarquer que ces changements lexicaux affectent plus volontiers la designation des bas emplois que ceux du haut de la pyramide sociale : Ie nombre de «directeUl's» ou de <<patrons» reconvertis en «managers» est curieusement beaucoup plus faible que celui des «balayeurs» reclasses <<techniciens de surface» ou «agents de proprete». En Espagne, les <<porteros 16 «se sont vus promus iI la dignite subite de «administrador de finca urbana 17 », tout comme les «criadas 18 » ont eu

21 6

Revista de Letras n0 5

droit au titre anterieurement n!serve au domaine juridique de «empleada de hogar19 » .

Les «voyageurs de commerce» ont tendance it devenir des «promoteurs de ventes» de part et d"autre des Pyrenees. Et]' on pourrait multiplier 11 loisir ces exemples de fommlations toujours a mi-chemin entre la designation de fonctions recouvrant des specificites nouvelles et les «favorables noms» dont parlait Moliere: les «agents d' ambiance et d' espace» de Ia SNCF et de la RATP, les «auxiliares de igualdad20 » recIUtes par certaines villes d'Espagne pourraient aussi bien etre qualifies de «guerisseW"s de plaies sociales diverses» ... Mais si l' on renversait ainsi la designation, on changerait I' axiologie contenue dans les tennes, c' est-a-dire que I' on deri verait vers un discours critique, de sanction negative, au lieu de PO-SI-TI-VER.

Ce qui se met en place sous les mots «sofl», c'est une chaine derealites et d"evenements contraires aux argumentations que pourraient developper les esprits chagrins: face a l' entassement, la promiscuite, la violence presente dans les transports en commun, voici des agents qui apportent deja par leW" nom «I' espace et l' ambiance», la serenite des grands horizons. Plus iI y a d" espace et plus iI y a d'ambiance, plus on est heureux. Les euphemismes convoquent des topoi' qui penllettent d' argumenter dans Ie sens du bien, du beau et du progreso Meme I" egalite sociale y gagne, puisque Ies <<promoteurs de vente» lutoient designativement les «promoteurs immobiliers» ; les «techniciens de surface» partagent un bout de titre avec les «techniciens superieurs» ; les «administrateurs de proprietes urbaines» sont quasiment des «adrninistrateurs de biens». Dans Ie domaine du travail, rien n" echappe it cette orientation argumentative, souvent souterraine, qui fonctionne par rapprochements, par integration dans des paradigmes axiologiques. Prenons un exemple courant: celui des <<petits boulots». Un «petit boulot», ce n'est certes pas grand-chose, si ron ne considere Ie quantificateur «petil» que sous l' aspect lexical. Mais envisageons sa valeW" du point de vue argumentatif et axiologique: les <<p' tits boulots», les <<p' tits papiers»,les <<p 'tits gars», les «p 'tits peres» comme les «petits enfants»,les «sauvageons» ou Ies «petits malins», c' est affectueux, on les aime, car tout ce qui est petit est mignon: small is beautiful, comme disent nos voisins d' outre-Manche. Bref, plus votre boulot est petit, plus il a une bouille sympathique, et si en plus vous etes «agent d'espace et d' ambiance», on ne peut que vous aimer ! Et]' essentiel est bien Iii : «Nous n' aimons pas les choses parce qu" elles sont bonnes, el1es sont bonnes parce que nous les aimons», di sait avec sagacite Spinoza. L'important, c'est l'appreciation axiologique qui vertebre l'apparente fonction descriptive des mots et des designations. Nous renverrons encore it Oswald Ducrot sur ce point:

On ne sait pas ce que signifie «etre sage», mais on sait qu 'il faut I" etre. Le qualificatif «sage» est oriente vers Ie Bien. [ ... J La sagesse porte une otientation, un ptincipe (il faut etre sage), anterieure a tout contenu descriptif. n appartient 11 Ia signification du mot «sage» d' orienter vers une evaluation favorable. [ ... J L' evaluation est antetieure a la description. [ ... J

217

Revista de Letras nOS

L' aspect evaluatif est I' origine des evenmelles interpretations descriptives donnees au mot21 .

Les euphemismes sont sans doute la meilleure preuve discursive de ce que les principes evaluatifs constiment Ie niveau profond de la signification. Le discours joue ainsi sur des topol qui sont en quelque sorte prefigures dans les mots et pelIllettent de construire des representations qui fonctionnent comme des «contre-discours» potentiels, opposables aux autres discours du champ politique et social. II arrive aussi que cette ressource du langage soit exploitee avec u'op de transparence et qu' elle avoue explicitement son caracrere naturellementmanipulatoire. Ainsi, au cours du mois d' aout 1999, Ie Chancelier allemand Schroeder, estivalement aux prises avec les problemes d'equilibre du budget national, a trouve un fortjoli nom au programme de blocage des retraites qu 'il mettait en place: il ]' a appele <<Ie Plan pour Ie FutUD>. Le fumr est associe culturellement it ]' idee de progression, d' amelioration, ou it tout Ie moins a I' idee d' action noble en direction de la descendance. Penser au fumr, c' est penser au bien-etre, bien-etre de soi par Ie progres ou faute de mieux.­bien-etre des autres par la responsabilite dont on a fait preuve en prevision de ce meme futuro Ainsi donc, plus on se sent responsable vis-a-vis du futur, meilleur on veut ce futur, plus on accepte Ie gel des retraites. Un seul mot, comme on Ie voil, peut convoquer tout un raisonnement. Ou en tout cas tenter de faire adherer les foules a ce meme raisonnement [on ne sait pas ce qu'estle futur, mais on sait qu'il faut Ie preserver a tout prix). Certains joumalistes espagnols ont releve la figure de sty Ie ... :

Le programme d'economies, appele euphemiquement par Ie Gouvemement allemand <<programme pour Ie futur» , entrera en application pourle budget de I' an 200022 .

Nombre de handicaps reverront egalement leur designation, ouvrant ainsi de nouveaux «chemins argurnentatifs». On pourrait croire parfois qu' il s' agit d' un souci de plus grande precision descriptive. Les «aveugles» pourraient avoir ete remplaces par les «malvoyants» de fa<;on a se referer a une categorie plus large. En effel, tous les «malvoyants» ne sont pas forcement totalement «aveugles», c'est-a-dire etymologiquement ab - oculis: prives d'yeux23 . Oui mais alors, pourquoi avoir remplace les «sourds» par les «malentendants» ? Car la definition de la surdite par l' adjectif «sourd» etait deja graduelle : SOUl·d. qui p erroit insuffisamment les SOilS au ne les perroit pas du tout [Le Petit Robelt). C' est que l'evaluation axiologique est de sens inverse: l'absence est substituee par une presence insuffIsante, comme avec les «mal-loges», les «mal-nounis», les <<mal-aimes». Restent it inventer les «mal-comprenants» pour designer les imbeciles, et la liste sera complete ... Ce principe generateur positivant se retrouve dans des expressions lexicales diverses et

218

Revista de Letras nOS

variees. Par exemple, pOtter cet artefact que J' on nomme une <<perruque» risquait de suggerer la fficheuse absence qu' il vient dissirnuler ... Qu' it cela ne tienne : les magasins specialises dans la vente de ce type d' accessoire parlent de «complement capiIIaire». Si vous «complementez», c' est que vous ne pattez pas de rien !

Usure et innovation euphemique

Le mecanisme pragmatique que nous avons tente d' expliciter suppose une evolution et une adaptation discursive pellnanente. II se trouve que les faits sont tetus, et que les <<realites desagreables» refont surface sous les designations ravalees. Au bout d'un certain temps, on ne peut plus rien faire de positif avec certaines designations deja euphemiques (les psychanalystes parleraient sans doute de <<retour du refouJe»). Cent fois sur Ie metier remettez r ouvrage ... : on re-euphemisera.

Ainsi, les pays <<les moins riches» de la planete anciennement «pays pauvres», ceux qui dans les faits s' appauvrissent chaque annee davantage furent un temps taxes de «pays sous-developpes». Confines dans un etat «en- dec;:a» par Ie prefixe et Ie patticipe passe (jonne morte du verbe, selon Gustave Guillaume), Ie sort lexical de ces nations a ete revu a la hausse grace it la designation de «pays en voie de developpement»: cette appellation les orientait argumentativement vers la sortie de I' etat anteriew', puisqu' ils etaient SW" la bonne voie. Mais Ie temps et la dW"e realire aidant, la designation prometteuse a continue as' appliquer a des pays toujours aussi pauvres, d' ou une nouvelle axiologisation positivante: ces pays sont devenus <<les pays les moins developpes» . Dans un monde naturellement developpe pour tous, il ne resterait donc plus main tenant qu' a gommer quelques petites differences de degre qui affectent encore certaines regions un peu «deprimees». Gageons qu' au train ou vont les choses, il faudra encore beaucoup d'inventions lexicales poW" les tirer de la !

Au chapitre des personnes qui ont des «besoins educatifs speciaux24 », on peut relever I' evolution de la designation des centres d' education specialises. Au tout debut du XXe siecle, on voit appat'aitre des «etablissements pour debiles (mentaux)>> , titre qui ne parlait plus d' idiots au de fous et reposait sur !'idee etymologique d'une simple «faiblesse» mentale. Mais !res vite J'adjectif «debile», applique au domaine mental, a perdu sa valeur euphemique. II est redevenu une appellation par antonomase, et I' on a dil n!-euphemiser, chose qui s' est faite par la specialisation et la technicire de la designation: les deoiles sont devenus des personnes comme les autres, simplement atteintes de «troubles du comportement et de la conduite». Et au cas ou I'on pourrait encore y voirquelque valorisation malveiIIante, rien de tel qu' un sigle (dont on oublie vite Ie sens) pow' activer Ie mecanisme jusqu' a son tellne : «T.C.C.». La langue espagnole a realise un trajet strictement similaire avec Ie tenne «subllonn£1/». Designant au depart une simple localisation insuffisante Sill' r echeIIe relative de la nonnaIite, Ie mot «subnOtIllal» estredevenu designation de

219

Revista de Letras nOS

la cl-etinelie absolue. Aujourd'hui, mieux vaut etre <<idiot» que «subnol1l1al», quirenvoie a la debilite profonde et irreversible. D'oll , Ie fleurissement d'expressions periphrastiques telles que «personnes qui ont des besoins educatifs speciaux».

L'innovation conceme aussi d' autres questions de societe, parmi les plus brfilantes. L'un de nos problemes ecologiques majeurs est celui des dechets : des dechets nucleaires aux ordures menageres, on ne sait trop que faire d' eux. L' adaptation designative suit Ie mouvement. Si I' on se defaisait autrefois de tout par Ie biais du «depotoir», simple lieu de rebut et d' entassernent, la necessire de rationaliser l' elimination nous a conduits ala «dechetterie». Mais ce tel1lle evogue encore trop Ie rejet et l' entassement, un simple lieu d' amoncellernent, meme si leur fonction a radicalement change. Qui voudrait vivre a proxirnite d'une dechetterie ? Cette designation toute neuve est deja eculee. C' est pourquoi certaines municipalites ont trouve mieux : baties et fonctionnant sur Ie meme modele que les autres, leurs «dechetteries» se sont transfollnees du jour au lendernain en «Centre de valorisation des dechets»25 . Tout ce qui a de la valeur est interessant, or les dechets ont de la valeur, donc ...

Le nombre des exernples que I' on pourrait adjoindre est quasiment infini, touche 11 tous les domaines dits «sensibles» : il suffit de penser aux deja pudiques «erreurs de tif» des forces arrnees, transfollnees en «dornmages collateraux» sur Belgrade (Dommage pour I'Ambassade de Chine, mais ce n'est qu'un effet malheureux parallele a larealisation d'un objectif positif). L'essentiel, comme nous l' avons repete a plusieurs reprises, c' est la dynamique profonde du renversement axiologique que porte en soi la designation euphernique. Pour conclure : I' euphemisme impose

Nous relevions, au debut de cet article, Ie lien etroit qui semblait exister entre r avenement de nouvelles fonnes de conventions langagieres ella <<Illentalite moyenne» - ltem1e emprunte a Charles BALLY de la societe rnondialisee : Ie light, soft and clean.

Mais il existe des esprits retifs qui ne parviennent pas a integrer la nouvelle donne,les nouvelles technologies,les nouveaux schemas culturels. Paradoxe des paradoxes, ce sont precisement les enseignants qui ont Ie plus de mal a manier l' ordinateur et l' euphemisme. Et cela se retrouve jusque dans leur maniere de porter des jugements sur les autres par Ie biais du langage : ils ne savent pas pratiquer Ie renversemenl axiologique positivant, et c' est facheux ...

La demiere personne as' emouvoir de cet etat de fait est la «vice-ministre» • de l'Education Nationale, Segolene Royal, laquelle a pris pour cible Ie langage des

bulletins trimestrieis. Dne circulaire (n099-1 04 du 28-6-1999) parue sous sa signature donne les instructions suivantes:

220

Revista de Letras nOS

Ii est demande de bannir tout vocabulaire trop vague (<<peut mieux faire», «moyen»), rOOucteur (<<faible», «insuffisant»), voire humiliant «<inexistant», <<fiul», «terne») gui n'aide aucunement I' eleve. Ii faut dire it l'eleve ce gu'il fait et ce gu'il doit faire et plivilegier les appreciations de nature it r encourager pour gue Ie bulletin tlimestliel remplisse reellement son role educatif26 .

Pour etre plus clair, on pourrait ajouter gu'il fautdire areleve ce gu'il fait, au lieu de lui dire ce gu 'il ne fait pas. Transfonner la designation gui dans ce type de discours est explicitement appreciative et axiologigue , renverser r axiologie. Pourtant, Ie «vocabulaire trop vague», avec ses peut mieuxjaire, ou moyen, etait deja un pas dans la bonne direction, Mais les temps ont change, et comrne pour les «pays en voie de developpement», il serait bon de trouver autre chose, de trouver mieux. En tout cas, iI est certain gue la recherche en didactigue doil s' atteler au plus vite it I' invention de nouveaux euphemismes si I' on veut gue les bulletins scolaires retrouvent tout leur sens dans la societe post-moderne et ne filchentplus personne27 .

22 1

Revista de Letras nOS

NOTAS

1 La saciolioguistique americaine s'est beaucoup interessee a cet aspect genchique de la langue el de son usage. Cf. GOFFMAN (E) : - La mise ell scene de fa vie qllotidienne, Paris, Minuit, 1973.- 1£s rire.f d 'interactioll, Paris, Minuit, 1974.- Farolls de parler, Pruis, Minuit, 1987 .

• 2 Equivalent des Furies. Divinites in females qui avaient pour mission de punir les parricides et les parjures. Noires deesses aux cheveux herisses de serpents, elles poursuivaient jusqu 'aux enfers les coupables pour les tourmenter,

3 Actuelle Mer Noire. 4 BONHOMME (M.): Lesjigures cLes dll disco"rs, Paris, Seuil. col. Memo, 1998. 5 Michele PRANDI [Grammaire philosophique des tropes, Paris, Ed. de Minuil. 1992, p. 207] fait

observer qu' «un designateur tropique est par essence rempla<;able, non pas en tant que trope, mais en tant que designateur : sur la base de sa fonction identifiante. Ie designateur entre dans un eventail de tennes virtueUement interchangeabIes dans un contexte. chacun d'eux etant en mesure de designer Ie referent visb).

6 Expression entendue sur la radio «France Info» enjuillet 1999. 7 BALLY (C,) : Traite de stylistiquefranraise, Paris/Geneve, GeorgIKlincksieck. 3e edition,

1951, p.284-301. 8 BALLY (C,) : op. cit.,p. 284. 9 Ibid., p. 284. !O Ibid., p. 297. [souligne par nous] II Ibid., p. 298. [souligne par nous] 12 Cf. STRAWSON (P.E) : «De racte de reference», in Etudes de logique et de linguistiqlle,

Paris, Seuil, 1977, p. 9-38. 13 Termes repris de BONHOMME (M.): Lesjigures des du discours, Paris. Seuil. col. Memo.

1998. 14 DUCROT (0.) : «Topo') et sens», in Georges MAURAND ed .. Lire et ellseigner Ie texte et

/'image. Valellrs et culture. Actes du ge Colloqlle d·Albi. Toulouse, CALSIUTM. 1989, p. 2. 15 MOLIERE: Le Misallthrope, Acte II. scene 4. 16 Portero = concierge, mais etymo1ogiquement Ie tenne est celui de «portier». 17 Administrador de ./inca urbana = administrateur. gestionnaire de propdete urbaine. 18 Criada = bonne, femme de menage. 19 Empleada de hagar = employee de maison. 20 Auxiliar de igua/dad = mot a mot «agent auxiliaire d'egalitb). Expression issue d'une

petite annonce de Ia presse espagnole de r etc 1999 : «Ayuntamiento ofrece dos puestos de auxiliar de igualdad» [EI Pais] .

21 DUCROT (0.): op. cit., p. 5. 22 El plan de ahoITo.Uamada por el Gobiemo aleman eufemisticamente «programa de futuro» ,

debe aplicarse para el presupuesto del ailo 2000. [ABC, 26108/99). 23 La volante d'inc1usion de tous les lypes de handicaps visueIs sans la categorie generique

de «ma1voyants» a d'ailleurs ses limites : i1 a falllt creer la categorie nouvelle des «noo­voyants pour designer les personnes souffrant de cecite.

24 Euphemisme traduit de l'espagnol: «personas COIl necesidades educaliv(ls especiales}) [El Pais].

25 C'est not.amment Ie cas pour la dechetterie du Mirai1 a Toulouse, annexee a «l'usine d'incim!ration des ordures menageTes».

26 Bulletin Officiel de rEducation Nationale n° 28 du 15/0711999. Circulaire nO 99- 104 du 26/061

99.

1" ---

Revista de Letras nOS

27 A mains que certains esprits espiegles ne repondent, en s' inspirant des paroles d'une

chanson bien connue du groupe toulousain Zebda : \de crais que \=a va pas etre possible ... » .

223

Revista de Letras n05

224

Revista de Letras nOS

Revista de Letras - UTAD

05 '000 '?< ?34 n . _ .pp ..... ___ - __

Quando 0 autor se transforma em personagem: Camoes e a Iiteratura contemporanea

Ana Margarida Ramos Universidade de Aveiro

Tendo sido tratado literariamente por inumeros autores, vfuias correntes e escolas e por todos os modos literfuios e, ate, artisticos, e curiosa como, nos nossos dias, Cam6es surge ainda como uma figura susceptivel de proporcionar algurna novidade quando em contacto com os autores contemporaneos.

Os textos que suportarao a nossa analise sao dois romances de Fernando Campos A Casa do P6 (1986) e A Sala das Perguntas (1998), urn de Antonio Lobo Antunes As Naus (1988) e ainda a obra dramatica de Jose Saramago Que farei com este livro? (1980).

Come~amos por referir os motivos que estiveram na base da nossa incidencia nestes quatro textos, em detrimento de muitos outros e tambem a justifica<;ao pela op~ao de trabalhar textos pertencentes a modos literfuios distintos. A razao desta escolha esta no facto de, em todos eles, tennos a presen~a, com maior ou menor destaque, da figura de Luis de Cam6es e de nos serproporcionada umarevisita~ao da sua personalidade e do seu tempo.

E se, no caso de As Naus, essa revisita~ao passa pela desconstru<;ao e pela parodiza~ao da figura e ate da actividade literfuia do epico portugues, nas obras de Femando Campos estamos perante uma tentativa de reconstitui~iio 0 mais fiel possivel do seculo XVI e das personalidades que af tiveram maior destaque. Contudo, e apesar de estes dois autores apresentarem, numa primeira impressao, vis6es completamente antagonicas da figura camoniana, aproxirnam-se no relevo que conferem a essa personagem nas suas obras, uma vez que, em nenhum dos romances anteriormente mencionados, Luis de Cam6es e personagem principal.

Nos romances historicos de Fernando Campos, 0 epico POltugues, personagem referencial secundana, alem de ter interven<;6es mais ou menos decisivas no desenrolar da intriga, funciona, tambem, como elemento integrante da cor local, aproximando a

• narrativa do momento historico retratado. E assim, por exemplo, emA Casa do PO, onde a presen<;a de Cam6es e pouco mais do que acidental por aparecer concentrada apenas no capitulo final da obra. Neste romance, acompanhamos urn narrador

225

Revista de Letras n05

autodiegetico nas suas multiplas viagens, ffsicas e espirituais, com vista a descobrir 0

mundo, mas sobretudo a descobrir-se a si proprio, as suas origens e a sua verdadeira ,

identidade (autognose). E nurna ambiencia quinhentista, marcada pelas viagens, pelas novas descobertas dos Portugueses e pelas riquezas que, entretanto, chegavam do OIiente a metropole de urn ImpeIio nascente, que se dJi 0 primeiro encontro de Frei Pantaleao de Aveiro com LUIs Vaz, recem-chegados ambos, respectivamente, da

, Terra Santa e da India, ainda em pleno cais de Alcantara, tendo como pano de

, fundo 0 bulfcio e a agita<;:ao ribeirinhas: «uma nau eslli chegando da India Oriental. Ancora ali diante, mesmo em frente de mim. La vern os bateis com os passageiros. Vejo as pessoas a porem pe em terra, no semblante bern marcado 0 cansa<;:o do mar e a alegria por estarem na sua patria» (Campos, 1986: 420). 0 retrato que 0 narrador tra<;:a de LUIs corresponde, em todos os aspectos, aquilo que sao os tra<;:os fisicos e psicologicos do poeta, cristalizados pelo tempo, pel a Historia e, sobretudo, pela tradi<;:ao.

Ainda de fonna indirecta, ao contrano do que se verificara mais adiante, e uma cena dorninada pela intertextualidade e por varias referencias a obra do poeta. Destaque-se, para alem dos elementos fisicos I mais ou menos estilizados, 0 refor<;:o das ideias de envelhecimento precoce, de desilusao face 11 vida e ao pafs e de pessimismo em rela<;:ao ao futuro, tambem presentes e trabalhadas tanto na sua obra lfrica como epica. Relativamente a Os Lusiadas, e sobretudo nos finais dos cantos2

que 0 poeta abandona a atitude de nalTador pela de moralista, transitando da fic~ao ,

para a realidade e do pass ado gloIioso para 0 presente decadente. E tambem nestas alturas que 0 poeta martifesta 0 seu pensamento, referindo-se ao poder COlTUpto do ouro, lamentando 0 facto de nao ser reconhecido, criticando a falta de interesse que os seus contemporiineos revelam pelas artes e pelas letras e a falta de herofsmo dos nobres da altura, entre outros aspectos.

o segundo encontro, a que se seguiram muitos outros, e aquele que marca 0

inicio de urna forte amizade entre ambos que se ira solidificando com 0 tempo, como o nanador refere. 0 local onde os dois escritores (nao esque~amos que Pantaleao tambem escreveu urn livro intitulado Itinerdrio da Terra Santa) se encontram tern uma dimensao sobretudo simb6lica, uma vez que e naquela tipografia que nasce a obra que fecha 0 romance e encerra tambem urn cicio glOlioso da Hist6ria de Portugal, ja que, apenas oito anos mais tarde, ocorre, alem da morte do epico, a perda da soberartia portuguesa.

Tal como ja adiant:imos, a intertextualidade com a obra camoniana come~a aqui a fazer-se sentir com mais insistencia e agudeza, uma vez que se passa da alusao 11 transcri~ao e cita~ao de passos da epopeia Os Lusiadas, incluindo 0 alvara real e 0 parecer da Inquisi<;:ao. Mas e sobretudo nos registos que surgem das vanas conversas mantidas entre as duas personagens que sao glosados pequenos passos da epopeia. A aten<;:ao recai, apesar de tudo, nos aspectos mais negati vos do texto de Camoes, do pafs e do reinado.

226

Revista de Letras n05

Mais uma vez, 0 retrato de Camoes que e aqui tra<tado aponta para a sua desconcertante pobreza e tristeza interior, para a sua desilusao e desencanto: «Ele [Camoes] conta-me toda a sua vida, a sua pobreza, os seus desiludidos amores, de , que final mente falam os seus versos, as invejas de outros poetas ... E uma alma amargurada e desencantada. A unica coisa que Ihe acende ainda um lampejo no rosto tisnado do mar e a sua obra, sobretudo esse poema a patria» (Campos, 1986: 422).

Nao e por acaso que a obra tennina com a perda da soberania portuguesa, pouco tempo depois do desastre de Alcacer-Quibir e do desaparecimento do rei D. Sebastiao. A morte do poeta coincide, pois, com 0 final de um ciclo imperial e dourado (e de uma dinastia) que a sua obra ilustra melhor do que qualquer outra

, escrita ate entiio. E por isso que, de fonna extremamente lucida, Eduardo Louren<;o afirma que «Da nossa inmnseca e gloriosa fic<tao , as Lusladas sao a fic"ao. Da nossa sonambula e tnigica grandeza de urn dia de cinquenta anos, ferida e corroida pela morte proxima, 0 poema e 0 eco sumptuoso e triste. Ja se viu urn poema "epico" assim tao triste, tao heroicamente triste ou tao tristemente heroico, simultaneamente sinfonia e requiem?» (Eduardo Louren<;o, 1988: 20).

, E um pais que se desmorona a pouco e pouco, e uma morte lenta que invade

tudo e todos, que destroi passados e ate sonhos de futuro. A narrativa sobre Frei Pantaleao de Aveiro acaba por ter um final semeihante a todas as outras. Ele e fruto de uma historia de amores impossiveis e infelizes e acabaignorado pelos verdadeiros parentes, escondido numa Ordem Religiosa e amortalhado em vida no habito franciscano.

A tendencia final do romance e, entiio, assunridamente negativa, verdadeiro requiem por uma patria em minas. As unicas notas tendencialmente positivas, os unicos vestigios dourados que ainda pennanecem para alem dos desastres, das derrotas e das mortes sao as obras dos dois escritores, personagens do romance, Luis de Camoes e Frei Pantaleao de Aveiro.

Num estilo muito semeihante, em A Sala das Perguntas, voltamos a encontrar uma personagem que, ao "andar as voltas" com a sua identidade e com as suas origens, como Pantaleao, tamMm "trope<;a" frequentemente em Luis de Camoes.

Alias, voltamos a encontrar urn romance onde os escritores e a sua produ"ao literana tem um papel de grande destaque. Para alem do proprio DamHio de Gois, nan'ador autodiegetico, encontramos ainda referencias a vanas personalidades como Gil Vicente, Camoes, Garcia de Resende, Joao de Barros, Sa de Miranda e Bemardim Ribeiro ...

, A semelhan"a do que ja tinha acontecido em A Casa do P6, parece haver

aqui uma inten"ao muito clara pol' tras da revisita<;iio de uma epoca aurea da Historia portuguesa - 0 seculo XVI - , uma vez que, com muita frequencia, surge uma perspectiva disforica do Portugal de entiio, marcado pelas ideias de fechamento, de isolamento, de decadencia e sobretudo de intolerancia, de que a Inquisi"ao e 0

227

Revista de Letras n05

principal sinal. Todo 0 romance, habibnente constmido com 0 recurso a dois niveis narrativos

e it utiliza~ao da tecnica das "mem6rias", vive do discurso em primeira pessoa em que se reconstr6i urn percurso de vida pessoal, mas tamrem da vida de urn pais, da Europa e ate do mundo entao conheeido.

Ao contnirio do que acontecera emA Casa do P6, aqui a presen<;:a de Luis de Cam5es nao se coneentra num tlnieo capitulo da obra, mas perpassa toda a narrativa. Trata-se de urn romance, alem de hist6rieo, profundamente intertextual, que vive muito da rela<;:ao com a obra eamoniana (e nao exclusivamente a epiea) que, euriosanlente, acaba por ter alguma funeionalidade do ponto de vista narrativo . •

E uma das obms dramaticas de Cam5es, ainda de influencia vicentina, as Anjitrioes, que acaba por funcionar como uma mise en abyme da narrativa de primeiro nivel onde se encontra encaixada, por estar ai transposta a verdadeira hist6ria da patemidade de Damiao de G6is. Urn pouco it semelhan<;:a do que acontecera com Frei Pantaleao de Aveiro, vai ser a partir do momento em que a personagem principal assiste it representac;ao da pe<;:a, onde ve exposto urn segredo seu que pensava ser o tlnico a conhecer, que inicia uma amizade com 0 seu autor, Luis Vaz, que mantera ate ao fim da vida.

Mesmo quando ausente, Cam5es e uma referencia constante no romance por ser ele que vern darresposta e seguimento a urna consciencia epica, que caractel1zava urn detenninado grupo de intelectuais pOltugueses (e nao s6), que antecede e, de certa maneira, prepara 0 caminho para 0 nascimento de as Lusiadas, como 0

eomprovam os dois pequenos excertos que transcrevemos: «Nem tudo sao contas de feitoria, amigo. Ainda ha-de vir urn dia urn poeta ou poetas que te respondam a essa pergunta [valera a pena?]» (Campos, 1998: 82) e «as obras da nossagente, a grandeza e a variedade das gestas, 0 achamento de ilhas desconhecidas, de mares, climas, estrelas nao suspeitados, ah! se de novo desabrolhasse urn Romero, sem empe<;:o poderia das coisas lusitanas tirar argumento, nao fabuloso mas real, de uma Ilfada e Odisseia» (idem, ibidem: 243).

Tambem neste romance se jogam as maiores gl6rias e as maiores quedas do Portugal de Quinhentos de que Cam5es e G6is sao metaJoras petfeitas. As semelhan~as e a proximidade entre os dois VaG muito para alem dos segredos que partilham, do parentesco longinquo que os une ou do facto de serem oriundos da mesma localidade. Aproxima-os, tamrem, uma filosofia de vida, urn sonho de partida e urn pesadelo de regresso, a actividade de eserita, a possibilidade do contacto com outras ideias, outras gentes, outras culturas e outras fonnas de pensar. Nao sera, por isso, acidental 0 facto de, em momentos diferentes, Damiao de G6is falar de si

ou daquilo que 0 rodeia usando as palavras de Cam5es. E assim a prop6sito da beleza de uma mulher3 e e assim tam bern a prop6sito da decadencia da patria4 . 0 envelhecimento precoce das duas personagens e reiterado com frequeneia ao longo da narrativa e sao varios os momentos em que nos apercebemos dos resultados

228

Revista de Letras n0 5

negativos que tiveram nas personagens a accrao conjugada do tempo, do pais e dos homens.

No caso de Camoes, essas cicatrizes sao ainda mais visiveis pelo lade •

forte mente fisico que as caracteriza. E 0 que acontece quando regressa sem uma vista do NOlte de Africa; e assirn tambem quando, no regresso da India, chega triste e envelhecido. Nao deixa de ser tristemente curioso (e 0 narrador chama mesmo a atencrao para esse facto) que 0 poema da grandeza portuguesa tenha chegado no momenta em que a Unica coisa verdadeiramente grande era a decadencia: «chegavam

, nos barcos das Indias noticias de naufnigios. Ganiincia os provocava, as naus em excesso carregadas. Ouro, especies, pedras preciosas, perolas, aljofar, funbar, porcelanas, arcas de canfora, tapecrarias ... por trapos e calhaus se perdiam vidas e haveres. Urn deles deu brado. Emanuel de Sousa Sepulveda, mulber, filbos e toda a sua casa deram a costa e moneram em lenta agonia porpraias e florestas do sertiio, mortos de fome e sede, corrridos das bestas e dos cafres» (idem, ibidem: 342) e tambem «neste cOltejo de mortes, chega-me que deu a alma ao Criador 0 bom Sa de Miranda, la para 0 Minbo. Mone de desgosto com este Portugal de contrastes. Em meio de gl6ria, poder e riqueza, a extrema rrriseria, a fome, 0 comprar fora 0 pao para a boca, a mesquinhez, a usura, a corrupcrao. Pais de viuvas e 6rraos, de adulterios ... » (idem, ibidem: 346).

Luis de Camoes serve, melhor do qualquer outra figura, este prop6sito de critica e ate de desconstrucrao do seculo de ouro portugues. Romanceando, e certo, mas aproximando-se muito daHist6ria (a todos os niveis, incluindo 0 estilfstico e 0

linguistico), Fernando Campos aborda algumas das principais causas da crise portuguesa que atingiria 0 seu auge com a perda da soberania em 1580: a polftica econ6rrrica seguida; as questoes de intoleriinciareligiosa, insistindo-se 0 espirito da Contra- -RefOlma e 0 fechamento e 0 isolamento face a Europa. A fOIlna como o pais em geral e a corte e 0 c1ero em particulartratavam os seus intelectuais (escritores e poetas) nunca poderia, em tempo algum, dar bons frutos. Abordando de fOlma consensual a tematica do desconcerto do mundo e da condicrao do "poeta", refere­se, no fim de contas, a «quem nao sabe arte, nao na estima» (Camoes: V, 97).

, E tambem exactamente neste sentido e com esta mesma mensagem que lemos

a pecra de teatro de Jose Saramago Quefarei com este livro? Seguindo um filao da produ~ao teatral portuguesa com s6lidas raizes nos anos 50 e 60, este drama hist6rico coloca em cena dois anos decisivos da vida de Luis de Camoes e que tem aver, justamente, com a forma como e recebido pelos seus contemporaneos e com as dificuldades com que se depara quando quer publicar a sua obra. Mais uma vez, tal como nos textos anteriores, vai ser tra~ado um quadro altamente negativo da sociedade portuguesa da epoca: por varias vezes e mencionada a "doen~a" que atinge Portugal, chegando mesmo, em sentido metaf6rico, a referir-se que soft'e de "peste"; a obra abre e fecha com 0 rei e 0 pais "perdidos", envoltos num nevoeiro celTado (simb6lico e indiciador do que ira suceder a D. Sebastiao); varias sao as

229

Revista de Letras nOS

vezes em que se da conta da "tristeza" que atinge Portugal e os Portugueses, fruto da falta de liberdade e de tolerilneia. Tambem aqui, possivelmente de forma mais directa, por se tratar de uma pec;:a de teatro e possuir, por isso, uma dimensao pragmatica mais evidente, e feito urn convite aberto a extrapolac;:ao para outros

, momentos. E visivel uma coneepc;:ao da Hist6ria baseada numa dinfunica de faetores que tendem a repetir-se ao longo do tempo, dai que seja possivel extrair do passado lic;:6es para 0 presente: «Que farei com este livro? ( .. . ) Que fareis com este livro?» (Saramago, 1980: 174).

As erfticas a Portugal sao frequentes e atingem sobretudo 0 poder politico e a aetua"ao da Inquisic;:ao, ligada a censura. 0 retrato tra"ado de Luis de Cam6es tarnbem e coincidente com aquele que e feito nas obras de Fernando Campos, salientando a sua vertente apaixonada e arnorosa, ern paralelo com a sua desilusao e amargura intensas. 0 t6pieo da pobreza tarnbern nao e esquecido, como nao 0 e o da consciencia real e efectiva do valor e da novidade do que escrevera.

Nao e, pois, por acaso, que os elementos intertextuais que sao destacados na pec;:a sao exactarnente aqueles que pellll.itern tra"ar urn quadro negativo da realidade contemporilnea de Cam6es (em clara antitese com a gl6ria do passado tarnbern presente na narrativa), pelas referencias, sobretudo, aos rnomentos extraidos do plano do poeta, ou seja, aos seus exeursos presentes nos finais dos cantos em que e

, critic ada de forma generalizada a soeiedade portuguesa de Quinhentos. E neste sentido que entendernos tarnbem as alus6es ao epis6dio do Velho do Restelo (em que e feita a crftiea aos Deseobrimentos e aos motivos que Ihes deram origem) e as alterac;:6es introduzidas pelo poeta na obra, depois de ter chegado a Portugal.

Mas nao sao s6 Os Lusfadas que dao conta do estado de degrada"ao em que se encontrava 0 pais. As vanas conversas que aparecem na pec;:a revelam todos os problemas que afectarn 0 reino e a sua govemac;:ao: a peste em Lisboa; a fragilidade da independeneia portuguesa; a espeeificidade da personalidade de D. Sebastiao; 0

, seu total alhearnento das quest6es urgentes da na"ao e os problemas na India, s6 para dar alguns exemplos.

Diogo de Couto e Damiao de G6is, tarnbem eles personagens do texto, fazem, ernmomentos diferentes, an:llises extremamente lucidas de Portugal, afirmando «nao pensavamos que 0 reino fosse esta barea sem Ierne nem mastro» (Saramago, 1980: 61) e «falta a Portugal espirito livre, sobeja espirito derrubado. Falta a Portugal alegria, sobejam lagrimas. Falta a Portugal tolerancia, sobeja prepoteneia» (idem, ibidem: 99), respectivamente.

Cam6es, como 0 pr6prio Damiao de G6is, vai sentir como poueos as eonsequencias desta falta de tolerancia do pais e do govemo na sua obra e na sua vida. Na verdade, 0 pr6prio reino tambern ira pagar urn prec;:o muito elevado. Ja

, depois da pli sao de Damiao de G6is e a preparar 0 regresso a India, Diogo de Couto afirma que «Portugal morre de tristeza» (idem, ibidem: 135), 0 que vern perfeitamente ao encontro dos versos retirados da estancia 145, do canto X, d· Os

230

Revista de Letras n05

Lus(adas, em que Cam6es se refere a patria, dizendo que «esta metida / No gosto da cobic;a e na rudeza / Dhua austera, apagada e villIistez3». Nenhum poeta portugues encarna como Cam6es 0 prot6tipo do escritor ao mesmo tempo genial e incompreendido por todos, nao sendo reconhecido como merecia por urn pais moribundo, mergulhado num nevoeiro decadente.

Lobo Antunes, emAs Naus, revel a exactarnente a mesma consciencia da •

decadencia de Portugal, tao visivel no seculo XVI como no seculo XX. E por isso que coloca os her6is da Hist6ria dos Descobrimentos como personagens da anti--epopeia da Descolonizac;ao. E por is so, tambem, que escolhe novamente para epico Luis de Cam6es que, enquanto procura urn local onde deixar os fervilhantes restos mortais do pai, vai dando conta do estado de desola9ao da cidade (met:ifora do pais) e da decadencia moral de urn povo, metaforizado nos tfsicos moribundos que, cuspindo sangue e vestindo ridiculos pijarnas hospitalares, completamente alheados da realidade que os rodeia, acreditarn estar aguardando D. Sebastiao.

Pela par6dia ou pelareconstitui9ao fiel de alguns epis6dios da vida de Cam6es abrem-se perspectivas de reflexao e de questionamento sobre 0 passado de Portugal, haja ou nao 0 objectiv~ de daf retirar qualquer tipo de ensinamento para 0 presente e para 0 futuro. No nosso entender, ao problematizar a Hist6ria e algumas das suas figuras mais singulares est<i-se a dar resposta aos problemas de sempre da Humanidade: quem somos n6s, afinal?

-E por este motivo que os autores em geral e os poetas em particular continuarn a surgir como assunto liter:irio e sao frequentemente utilizados como personagens de romances. Como se fossem, logo a partida, excelente materia romanesca ou ficcional por estarem, de alguma fOlIlla, intrinsecamente ligados a escrita liter:iria e

-pel nlltissem dar conta do pr6prio processo de cria9ao. E talvez por este facto que, ao lade de Cam6es, surgem, cada vez com mais frequencia, outras figuras nas mllTativas contemparaneas, associadas tambem a auto-reflexao e ao questionamento como duas das caracterfsticas mais destacadas deste momento liter:irio. Para comprovar a nossa ideia, pensemos, s6 para dar dois ou tres exemplos, nas personagens Ricardo Reis e Fernando Pessoa de 0 ana da marIe de Ricardo Reis (1984), tambem de Jose Saramago; em Carnilo Pessanha, personagem de As Porras do Cerco (1992) de Ant6nio Rebordao Navarro; ou em Fradique Mendes (heter6nimo de E9a de Queir6s) em Os Esquenws de Fradique (1999) de Fernando Venancio. Estamos, talvez, num momenta em que se torna cada vez mais frequente nao s6 a revisitac;ao crftica do passado, mas tambem das figuras literfuias que 0

pensaram e recriaram. Porisso, e passivel afinnar, neste caso como em outros, "era uma vez urn autorque se tornou personagem" ...

231

Revista de Letras nOS

NOTAS

1 Confrontar com: « Este Luis e umafigura curiosa. Nao muito alto, magro. parecendo avelhentado na sua barba grisalha. e aquele olho vazado que primeiro nos chama a atem;ao. Gola de folhos, colete de fendas avelutadas, coc;ado, capa pendente do ombro. calc;oes tufados pela coxa, a meia tomeando a perna ate morrer nos borzeguins de courO) (Campos. 1986: 421).

2 Confrontar com as estancias dos finais dos cantos V, VI, VII, VIII. IX e X. 3 Confrontar com: «Eu estava transtornado pela beleza de Joana e nao tenho agora, a distancia

do tempo, pa1avras para a celebrar. Lembro-me dos versos em que. depois. a meu amigo LUIS Vaz cantaria outra formosura semelhante:

... testa de neve e aura risa branda. suave, olhar sereno urn gesto delicada que sempre na alma me estani pintado ... »(Campos, 1998: 272). 4 Confrontar com: «Passou-se urn ana, dais. Lufs Vaz regressou , Traz com e1e a grande poema.

Finalmente chegou 0 Homero, a Virgilio da nossa grandeza .. . em tempo em que a patria esta metida. como ele diz,

no gosto da cobi~'a e na mde::.a duma aus/era, apagada e vii Irisleza ... » (Campos, 1998: 356).

232

Revjsta de Letras nOS

Referencias bibliograticas

ANTUNES, A. L. (1988): As Naus, Lisboa, Publicac;6es D. Quixote -

CAMOES, L. (1978): as Lus(adas, 3' edic;ao, Porto, Porto Editora CAMPOS, F. (1986): A Casa do PO, Lisboa, Difel CAMPOS, F. (1998): A Sa/a das Perguntas, Lisboa, Difel LOURENC;:O, E. (1988): 0 Labirinto da Saudade - Psican6lise m(tica do destino

portugues, 3' edic;i'io, Lisboa, Publicac;6es D. Quixote SARAMAGO, J. (1980): Quefarei com este livro?, Lisboa, Caminho

233

Revisla de Letras nOS

234

Revista de Letras - UTAD

nOS. 2000, pp. 235 - 248

Revista de Letras nOS

A Retorica no seculo XVIII, em Portugal: a antecipa~ao do futuro

O. Introdu~o

Jose Esteves Rei Universidade de Tnis-os-Montes e Alto Domo

Nao e de hoje 0 fascinio que a segunda metade do seculo XVIII exerce sobre nos, tendo a grata satisfa~ao de virmos partiJhando tal sentimento com colegas e amigos, alguns deles aqui presentes. Durante muito tempo, foi uma riqueza intuitiva que nos ofuscou, tomando empiricamente contomos esreticos, culturais e pedag6gico­educactivos. Ultimamente, porem, e e esse 0 nosso contributo neste Simp6sio, tern vindo a tomar COl-pO a ideia de que esse penodo de 50 anos (J 746- J 782) e matricial da conumicar;iio pessoa/ em lingua portuguesa, constituindo-se como 0 espa"o­ber"o de tal comunica"ao. Esta ter-se-a quedado, porventura, adonnecida na sociedade, na reflexao lingufstico-tratadfstica e na escola portuguesas posteriores, ate aos nossos dias. A verificar-se esta hip6tese, tenamos a explica"ao do paraIelismo sentido entre esse tempo e 0 nosso tempo, entre essa sociedade e a nossa sociedade, entre essa escola e a nossa escola - realidades em redescoberta, desde 0

desaparecimento do liceu liberal burgues, nos anos setenta. A comunica«ao - seu impacto na sociedade, teoria, tipologias e estudo ­

apresenta-se, assim, como a marca e a ponte entre dois tempos de cria"ao comunicativa: 0 do marques-rei, propagador da lingua nacional, e 0 da passagem do seculo XX para 0 seculo XXI. Nessa altura, como hoje, tudo se joga no campo da lingua portuguesa. Esta nao era, ainda, detentora do patrimanio cultural vindo da Antiguidade Greco-latina, como tal, a maioria da "mocidade" do Reino via-se dele afastada. Com efeito, a maioria nao tinha acesso ao latim e esse patrimanio, quando era acessfvel, encontrava-se em edi,,6es de tal modo longas e pesadas, que 0 pre"o e a extensao da leitura repeliam ate aqueles que nele estavam mais interessados. A lingua portuguesa carecia, por outro lado, das fomms, fannulas ou "famms" requeridas pela comunica~ao dos novos tempos e solicitadas por uma massa populacional crescente, com acesso it palavra e it opiniao, e que se via investida em fun~6es, comerciais e institucionais, que as requeriam.

As fontes de que partimos sao constitufdas, predominantemente, por textos pouco reputados no ambito da investiga~ao e constitufdos em margens dos

235

Revista de Letras nOS

monumentos did<icticos que ao longo desses 50 anos foram aparecendo com urn nftido objectivo de didactizar 0 saber discursivo-retorico classico em lingua portuguesa - prologos, instru~5es preliminares, avisos de editor e dedicatorias.

1. 0 muudo da comunica.;ao pessoal- alguns factos da 2a metade do secuIo XVIII portugues

1.1 A epistolografia A escrita de cartas aparece aos olhos de Francisco Jose Freire, em 1746,

como "a coisa mais comum", surgindo, ainda, como verso de medalha, urn outro facto: "nao e coisa comum 0 saM-las escrever"l . Ora, continua 0 mesmo autor, "a necessidade da vida faz com que cada urn entre a faze-las", pois "tanto aos ignorantes como aos sabios frequentemente e preciso comunicarem-se por meio de Cartas com os ausentes". Contudo, 0 nosso iluministanao tern duvidas de que "pelo ordinano, so e proprio de pessoas inteligentes 0 compo-las com metodos e boa forma".

Trata-se do reconbecimento de uma realidade nova: a comunica~ao pessoal. Com efeito, esr.\vamos em pleno seculo da epistolografia e esta era alimentada por uma situa~ao que viria a ser consagrada pelarevolu<;:ao liberal, 0 direito a ter ideias e opini5es - questionando 0 proprio poder regio assim como os valores inquestionaveis que ate entiio 0 acompanhavam - e a obriga~iio, quase moral, de as defender e divulgar, iniciahnente, por carta, mais tarde, pela imprensa, fosse 0 jomal fosse 0 livr02. Atraves destas duas ultimas fOllnas de comunica~ao, progressivamente rnassificadas ou massificantes, surgiam novas fignras psicagogicas, que viriam a oeupar o espa~o cultural e politico ate aos nossos dias: 0 politico romantico, 0 jomalista eo escritor.

Contudo, alem da inteligencia na composi<;ao, met6dica e formal, assim como do engenbo vivo, 0 "novo" secreillrio nao dispensara, como se afiIIna, "a li<;ao dos melhores Autores, que escreveram Cartas e trataram do modo como se devem tratar". Aqui surge, porem, urna das indigencias da lingua e comunidade portuguesas, pois "Sao t<mtos os que ha nas na<;5es estranhas, como entre nos sao rarissimos os que escreveram cartas".

Temos assim que os modelos nao abundam, entre nos, sobretudo tratando­se de exemplos capazes de serem uteis ao secreillrio "principiante", 0 qual, mais do que para a correspondencia institucional" deveria preparar-se para urna comunica<;ao pes so ai, colocando-se esta ao servi<;o de si proprio ou do seu amo, mais tarde, 0

patrao/empregador. As indigencias de que falavamos atras aumentarn ao verificar 0

autor que sao "nenhuns [entre nos 1 os que expuseram 0 metodo, e as regras, com que as cartas se haviam de compor"4. 0 esfor<;o teorizante apresentado por aquele que na Academica recebeu 0 nome de Candido Lusitano, vai busca-lo, como refere, "a urn dos melhores autores, e dos mais modemos, e, 0 Academico Isidoro Nardi".

236

Revista de Letras nOS

1.2. A retorica A comunica«ao pessoal, realidade emergente do mundo social iluminista,

como vimos, encontra na retorica uma outra alavanca, curiosamente coincidindo no tempo, 1746,0 momenta marcante da sua renova~ao enu'e nos, por Luis Antonio

• Verney, com 0 ana da referencia epistolognifica, como vimos' . E visivel desde 0

titulo dessa obra a presen~a do publico-alvo "a Republica e a Igreja". Se tivennos presente que a versao em lingua portuguesa sera uma das vicissitudes do tratamento a ser dado a retorica nas decadas seguintes, ser-nos-a pel mitido sublinhar aqui a prime ira das institui~6es mencionadas, "a Republica", nao sendo porventura arbitniria a ordem pela qual elas aparecem no titulo.

Ventilava Verney, com efeito, "por pouco que se examine 0 que e a Retorica achar-se-a que eArte de persuadir, e por consequencia que e a unica coisa que se acha e serve no comercio humano, e a mais necessaria para ele"6. Embora numa edilii'io posteIior - cuja primeira saida niio conseguimos datar, tendo nos consultado a de 1815 - tambem Francisco Jose Freire, em Secretario Portugues, utiliza e sublinha 0 comercio como urn dos pontos de mira na comunicaliao por cartas, desenvolvendo todo urn estudo que, numa optica actual, estaria para aMm da carta comercial7. Se reparaIlllos no modo como tennina a carta de Voltaire sobre 0

comercio, cuja ultima frase citamos em nota, concluiremos facilmente que nao ha comercio sem comunicaliiio, tratando-se nesse tempo de uma comunica«ao pessoal - em contraste com outras comunica~5es posteriores, como as do nosso tempo, predominantemente, comunica~i'io de massas.

Relacionado com a ac~ao renovadora de Verney e 0 brado que ela desencadeou no pais, esta 0 facto de 0 refOIlllador pombalino ter criado com 0 Alvanl de 28 de Junho de 1759 uma aula - em termos praticos, uma escola - de retorica. Rezam assim os anais: "Para 0 ensino da retorica, haveria 4 Professores em

, Lisboa, 2 em cada uma das cidades de Coimbra, Evora e Porto e I em cada uma das outras cidades e vilas que forem cabe~a de comarca. Todos estes professores gozaIiam de privilegios de nobres."g Esta medida tern subjacente a ideia expressa do modo seguinte pelo Professor Gomes Ferreira: "Com 0 Iluminismo aconteceu nos paises catolico algo de semelhante aquilo que no seculo XVI, com a refOi ma, acontecera nos paises protestantes: foi-se radicando a ideia de que as responsabilidades do ensino deviam ser assumidas pelo Estado.' '''

Neste senti do, pela Carta de Lei de 6 de Novembro de 1772, 0 Marques de Pombal afirma, no "Preambulo", pretender alargar 0 beneficio da instru~ao "ao maior numero de povos e de habitantes deles, que a possibilidade pudesse pemlitir"'o Sem nos deixarmos iludir por conceitos recentes e proprios do nosso tempo, como "ensino para todos", mesmo se espiritos como Comenio e Verney falavamja na abertura de "escolas a todos e em toda a parte", a verdade e que se tratava de puras utopias e "a maioIia dos intelectuais do seculo XVID, via mais inconvenientes que vantagens na generaliza~i'io da instru«ao a todos"lJ. For~oso e reconhecer, porem,

237

Revista de Letras n05

que e nessa altura que se inicia, entre nos, 0 Planeamento do ensino. Para executar os propositos de divulgar as luzes pela instru~ao "quanta 'a possibilidade pudesse pennitir' e dentro de urn regular e prudente arbitrio'" manda 0 Marques "elaborar 'urn Plano e Clilculo geral e particular de todas e cada uma das comarcas' 'e do nlimero de habitantes delas que podem constituir uns centros nos quais os meninos e estudantes das povoa~6es circunvizinhas possam ir com facilidade instruir-se'."

Deste modo sao criados 51 lugares de professor de Retorica, distribuidos da seguinte forma: 41 no continente, 7 no Ultramar e 3 nas Ilhas. Porexemplo, no caso da provincia de Tnis-os-Montes, distribuiam-se pelas quatro comarcas de Torre de Moncorvo, Vila Real, Bragan~a e Miranda, e pOI' mais uma terra notavel, que era Chaves!'.

Tal provincia possufa, assim, cinco escolas de Retorica, facto que comparado com a distribui~ao da educa~ao secundaria do regime liberal burgues mostra 0 seculo XVIII bern mais favoravel as popula~6es do que 0 seculo seguinte, que para igual espa~o territorial atribuiu apenas dois liceus nacionais: 0 de Vila Reale 0 de Bragan~a, um em cada capital de distrito como era 0 principio. 0 mesmo se poderia afinnar relativamente ao panorama educacional, comparando esses dois seculos, no que hoje se poderia considerar 0 nivel secundario, obtendo-se a propor~ao de uma cinquentena de escolas de retorica para uma vintena de liceus burgueses.

Criada a escola de Retorica em todo 0 pais, adquire particular agudeza a problematic a do metoda e dos materiais. Verney haviaja feito 0 diagnostico: "a Retorica deve ser em Portugues", "[ ... J porque ou queiram ser pregadores, ou advogados, ou historicos, etc., tudo isto se faz eli em portugues, e e loucura ensinar em latim uma coisa que, pola maior parte, se M-de exercer em vulgar." Feita a op~ao pela Ifngua portuguesa, 0 proprio refoIlnador avan<;:a com os aspectos essenciais do metodo nas suas Instrur;oes para os Professores de Retorica.

Mantem-se, porem, a questiio dos materiais de apoio, isto e, os manuais, inicialmente iludida com a adapta<;:ao e tradu~ao do livro de Rollin. Mais tarde, compreendeu-se que era necessaria uma adapta<;:ao mais abreviada, surgindo a primeira selec9ao portuguesa da Instituir;ao Oratoria de Quintiliano em 1774, elaborada por Pedro Jose da Fonseca, primeiro professor de Retorica em Lisboa, desde 1759. Tallivrinho foi mais tarde traduzido para portugues por Joao Rosado Vilalobos e Vasconcelos, em 1782, nao tendo recebido tal tradu<;:ao uma critica favoravel, em especial, por parte daquele que e considerado 0 nosso mais erudito retorico do tempo, Jeronimo Soares Barbosa".

A primeira tradu<;:ao portuguesa do primeiro tomo da obra de Quintiliano havia aparecido em 1777 e era da aut0l1a de Vicente Lisbonense, lamentando Soares Barbosa que 0 autor nao tivesse continuado a sua empresa, pois deixou assim a sua obra incompleta. Observando as vicissitudes destas duas tradu<;:6es, Jeronimo Soares Barbosa, diz-nos, na "Prefa<;:iio" mencionada, ter perdido a relutiincia sentida perante o alto valor das fontes latinas e a falta de respeito pelas mesmas que esses autores

238

Revista de Letras nOS

nno tiveram. Assim, decide-se a publicar a sua tradu~ao das /nstitui,iJes Oratorias de Quintiliono "feita desde ha vinte anos", por ele utilizada, poctanto, a partir de 1768.

Esta ficou sendo a tradur;:ao de referencia do autor que pedagogizou em Roma 0 orador cujo nome se tern por sinonimo de Eloquencia, Cicero. Ousariamos mesmo afirmar que Quintiliano estara para a escola romana como J. S. Barbosa esta para esta escola retorica portuguesa, que antecede a aula de Portugues da escola liberal burguesa, 0 liceu. A esta ofereceni, 100 anos depois, grande parte dos seus conteudos lingufsticos e literarios, com a consagra<;:ao dos Programas na ref 01 Ilia de 1895, os quais se manterao ate ao final doliceu, na decada de setenta do seculo XX. A extin~ao dos conteudos programaticos na escola secundana actual, vindos do liceu, deixou-nos na desorienta~ao em que hoje nos encontramos. Deste modo, poderiamos dizer que, ainda nos nossos dias, sentimos a ausencia do norte apontado por Barbosa a republica portuguesa das letras, no que 11 sua componente escolar diz respeito. Daf a importancia de 0 revisitaIlllos para avaliarmos a pondera~ao e 0

acerto das suas op~6es e, nele, nos podennos inspirar para a renova~ao que se imp6e: numa nova escola que procuramos e na fun~ao nova que a disciplina de Portugues ai desempenhara.

Conviria referir ainda 0 contributo para a divulga~ao do saber retorico em lingua portuguesa trazido por dois dos refonnadores pombalinos, ambos membros da Congrega~ao do Oratorio, com data de 1759: os padres, Francisco Jose Freire, com a sua obra Mdximas sobre a Arte aratoria Extrafdas dos Antigos M estres, e Antonio Pereira de Figueiredo, com Elementos da inven,iio e Elocu, iio Retorica ou Principios da Eloquencia 16. Tais elementos "desempenharam razoavel impOltiincia na renova<;:ao do conceito de retorica em Portugal" 17 e ambas as obras se inserem no projecto decorrente do Alvara pombalino de 28 de J unho, criador de urn novo metodo e de urn novo programa das humanidades no pais. De igual modo, referiremos a obra, instru,iJes da Retorica e da Eloquencia, embora bern mais posterior, datada de 1795, e pertencente a uma figura proxima do Marques, Jose Caetano de Mesquita e Quadros, 0 qual, devido 11 desconfian~a pombalina da velha nobreza, teria side seu espiao na Arcadia Lusitana, como refere Ivan Teixeira 18.

Original, desde 0 titulo, e representativa deste movimento expansionista da comunica<;:ao pessoal, sob fOllna ilustrada e esclarecida, parece ser a obra Compendio de Retorica Portuguesa. Escrita para usa de todo 0 genero de pessoa que ignora a lfngua Latina, por Antonio Teixeira de Magalhaes, Professor Regio de Lingua Grega em a Cidade de Braga PIimaz, editada no Porto, na Oficina que foi

• de Antonio Alvares Ribeiro de Guimariies, no ana de 1782. Esta obra revela tanta maior ambi~iio quanto, como dissemos,ja 0 Plano pombalino do Ensino de 1772, cobliu 0 Reino de professores de Gramatica Latina, 236, sendo sensivelmente metade dos mestres de ler, escrever e contar, que eram 479, sendo, apesar de em menor numero, os professores e respectivas escolas de Retolica 49 19.

239

Revista de Letras n05

1.3. A poetica 1748 e 0 ano do aparecimento de uma obra marcante na forma~ao do

ideano setecentista portugues e no projecto de actualiza~iio do ensino em lingua portuguesa. Trata-se daArte Poiftica, Regras da verdadeira Poesia, em geral e de todas as suas especies principais, tratadas com juizo critico, da autoria de Francisco Jose Freire e publicada na Oficina Francisco Luis Ameno, tendo a segunda edi~ao sido patrocinada pelo Marques de Pombal, em 1759. A dedicat6ria ao Marques, inserida nesta segunda edi~ao e elaborada de acordo com os princfpios do panegfrico classico, funciona como "uma especie de manifesto, proposta ou programa poetico dirigido aos jovens"'O para tomarem 0 Marques e a sua obra como tematica preferencial da produ~ao poetica.

Em 1758,0 mesmo autor traduz e publica aArte Poiftica de H. Horacio, em Lisboa, na Oficina Patriarcal de Francisco Luis Ameno, aparecendo a 2' edi9ao "aumentada com as regras da versifica9ao portuguesa", na Oficina Rolandina, em 1778, e a 3' ed., na mesma editora, com data de 1784. Assim se ve 0 significado da obra, a importiincia do tradutor e 0 relevo de Honicio, nessa segunda metade do seculo. Contrastando com tal perfodo de quarenta anos, aparecem no inicio da decada de noventa duas outras tradu90es da mesma obra horaciana, da autoria de dois ilustres pedagogos da mocidade portuguesa da epoca, numa altura em que ambos se encontrarn ja jubilados, facto que nao deixa de ser relevante. Trata-se da de Pedro Jose da Fonseca, datada de 1790, escrita em prosa, ao contrario da de Freire, que esta escrita em verso, e da de Jeronimo Soares Barbosa, aparecida em

1791 ". A investida de Pedro Jose da Fonseca no ambito da poetica, pOl'em, e bern

anterior, facto que se prende segurarnente com a sua actividade profissional, datando de 1765, com Elementos de Poiftica Tirados de Aristoteles, de Horacio e dos mais celebres Modemos, Lisboa, na Oficina de Miguel Manescal da Costa, e sob publica~iio an6nima, datando a 2' edi~ao,ja assinada pelo autor, de 1781. Nesse entretanto, publica ainda a obra Tratado de Versificar;ao Portuguesa, Dividido em duas Partes, em Lisboa, na Regia Oficina Tipografica, em 1777, com 2' edi~ao no seculo seguinte, em 1817.

2. Pragmatica da comunicacional pessoal na segunda metade do seculo xvrn - breves aspectos 2.1. Na epistolografia, confollne 0 Secretario Portugues

o emprego de secretario exige, segundo Francisco Jose Freire, as caracterlsticas seguintes : vivo engenho, inteiro conhecimento das linguas latina e materna e larga li~ao dos rnelhores autores, que escreverarn cartas e que tratararn do modo como se devem formar. A comunica~ao desse secretario nao e muito alargada, pois centra-se num de tres temas: 0 amo, 0 destinatario e as materias de que se escreve.

Cinco sao as regras corn as quais devera 0 Secretario Portugues confrontar

240

Revista de Letras nOS , .

as suas pratlcas. I. Segredo - cuja observancia deve ser objecto do maior elogio: recebe-o da boca do arno para 0 comunicar e nao para 0 divulgar. Sfmbolos do arno e do secretano e de suas atitudes sao 0 lirio e a rosa, no dialogo seguinte: Se acaso ttl nao Ie ahrires / eu sempre estareifechado 2. Erudi~ao - por a sua profissao ser escrever e a arte de esc rever ser: pintar a palavra, falar aos olbos e dar cor e alma aos pensamentos. As fontes sao: Historia, Retorica, Filosofia, Politica, Geografia, conhecimento de L1nguas e outras Ciencias. 3. Generalidade - em muitas coisas, mas sobretudo na invenrao, podendo esta ser faci!, profunda ou omada, e ainda no estilo, que pode ser grave ou simples, conceituoso, facetado ou graciosos, picante e cifrado, pelo recurso a sfmbolos conhecidos do emissor e do destinatario. A sua generalidade cultural engloba, ainda, o conhecimento das Frases mais pr6prias do Estilo que usa e da materia de que trata; das noticias mais importames para as aplicar as diversidades de materias; e de uma grande sinceridade, desengano e desembararo com as pessoas com quem trata. 4. Reflexao - sobre as materias e sujeitos com quem trata, os estilos, os tratamentos, os tennos e as consequencias que podem ter as Cartas. 5. Eloquencia - que na carta e "urn nao sei que de familiar e particular", pois a simples erudi~ao e coisa rUstica e uma carta com pensarnentos nus e coisa insfpida: por isso, e preciso adomar uma e outra. Com efeito, ha que aprender 0 seguinte: poucos exordios e claros, com conexao ao corpo da carta; recurso ao afecto (que concilia a benevolencia); brevi dade, para nao entrar a causar tedio; estilo, mais laconico que asiatico: sendo tal qual as pessoas e as materias que se comunicam; recurso moderado aos tropos e transla~5es retoricas; uso de senten~as, semelban~as e fonnulas , confOime a pennissao da Iiberdade poetica.

Ha urn Mtitodo para descobrir tanto a imrodurao como 0 corpo das cartas. Na verdade, tOdas as cartas se dividem em quatro perfodos: no primeiro se narra 0

facto; no segundo se roga ou se dao os agradecimentos; no terceiro se oferece 0

prestimo; no quarto se desejarn felicidades. Cartas h:i que merecem advertencias especiais por parte de Francisco Jose

Freire. Destaquemos apenas as carras comerciais: sendo os negocios 0 assunto mais importante das cartas, nas comerciais, deve falar-se com seriedade; 0 segredo 16 singular e inviolavel; a ordem conduz ao fim desejado, a maneira do fogo que pegado ao morrao acende primeiro a polvora antes que se veja 0 fumo e que chegue o cheiro; a erudiriio 16 solida e fundada na perfeita inteligencia das Historias e das Negocia~5es que outros fizeram; a illleligencia 16 apropriada 11 qualidade do neg6cio; a escrita 16 com "desembara"ao, sem rebu"o, dissimula"ao ou engano", sem figuras nem flores reloricas; 0 estilo deve ser natural, claro, mais para 0 humilde que para 0

sublime, embora se evite 0 excesso, 16 born nao cair na brevidade. Candido Lusitano esfor~a-se por divulgar uma tipologia de cartas que insere

241

Revista de Letras nOS , .

as suas pratlcas. I. Segredo - cuja observancia deve ser objecto do maior elogio: recebe-o da boca do arno para 0 comunicar e nao para 0 divulgar. Sfmbolos do arno e do secretano e de suas atitudes sao 0 lirio e a rosa, no dialogo seguinte: Se acaso ttl nao Ie ahrires / eu sempre estareifechado 2. Erudi~ao - por a sua profissao ser escrever e a arte de esc rever ser: pintar a palavra, falar aos olbos e dar cor e alma aos pensamentos. As fontes sao: Historia, Retorica, Filosofia, Politica, Geografia, conhecimento de L1nguas e outras Ciencias. 3. Generalidade - em muitas coisas, mas sobretudo na invenrao, podendo esta ser faci!, profunda ou omada, e ainda no estilo, que pode ser grave ou simples, conceituoso, facetado ou graciosos, picante e cifrado, pelo recurso a sfmbolos conhecidos do emissor e do destinatario. A sua generalidade cultural engloba, ainda, o conhecimento das Frases mais pr6prias do Estilo que usa e da materia de que trata; das noticias mais importames para as aplicar as diversidades de materias; e de uma grande sinceridade, desengano e desembararo com as pessoas com quem trata. 4. Reflexao - sobre as materias e sujeitos com quem trata, os estilos, os tratamentos, os tennos e as consequencias que podem ter as Cartas. 5. Eloquencia - que na carta e "urn nao sei que de familiar e particular", pois a simples erudi~ao e coisa rUstica e uma carta com pensarnentos nus e coisa insfpida: por isso, e preciso adomar uma e outra. Com efeito, ha que aprender 0 seguinte: poucos exordios e claros, com conexao ao corpo da carta; recurso ao afecto (que concilia a benevolencia); brevi dade, para nao entrar a causar tedio; estilo, mais laconico que asiatico: sendo tal qual as pessoas e as materias que se comunicam; recurso moderado aos tropos e transla~5es retoricas; uso de senten~as, semelban~as e fonnulas , confOime a pennissao da Iiberdade poetica.

Ha urn Mtitodo para descobrir tanto a imrodurao como 0 corpo das cartas. Na verdade, tOdas as cartas se dividem em quatro perfodos: no primeiro se narra 0

facto; no segundo se roga ou se dao os agradecimentos; no terceiro se oferece 0

prestimo; no quarto se desejarn felicidades. Cartas h:i que merecem advertencias especiais por parte de Francisco Jose

Freire. Destaquemos apenas as carras comerciais: sendo os negocios 0 assunto mais importante das cartas, nas comerciais, deve falar-se com seriedade; 0 segredo 16 singular e inviolavel; a ordem conduz ao fim desejado, a maneira do fogo que pegado ao morrao acende primeiro a polvora antes que se veja 0 fumo e que chegue o cheiro; a erudiriio 16 solida e fundada na perfeita inteligencia das Historias e das Negocia~5es que outros fizeram; a illleligencia 16 apropriada 11 qualidade do neg6cio; a escrita 16 com "desembara"ao, sem rebu"o, dissimula"ao ou engano", sem figuras nem flores reloricas; 0 estilo deve ser natural, claro, mais para 0 humilde que para 0

sublime, embora se evite 0 excesso, 16 born nao cair na brevidade. Candido Lusitano esfor~a-se por divulgar uma tipologia de cartas que insere

241

Revista de Letras nOS

figtrrada: das figuras de pensamentos; IX - Continua~ao da elocu~ao figurada: das figtrras de palavras; X - Oa Elocu~ao colocada: ordem, melodia, numero e hallllonia; XI - Oa elocu~ao apta e decente; xn - Considera~ao da mesma matelia do dec oro considerada nos estilos,

Este trabalho de Barbosa foi durante decadas considerado patrim6nio comunicacional e didlictico da lingua portuguesa e de seus falantes e como tal utilizado, Oeste modo, em pleno seculo XIX, Jose Gon~alves Lage, autor da obra Elementos de Oratoria, tendo sido acusado de phigio, relativamente ao conteudo da sua obra, afuma23: "Nao con tern este livro doutrina nova, nem escritornenhum portugues, que nos saibamos, inventou coisa alguma, ha mais de urn seculo, neste ramo do ensino secundario, [, ' ,J Muitas foram as obras que nos serviram de luz, e donde transcrevemos 0 que melhor nos pareceu; mas ocupam 0 primeiro lugar as Institui~i5es Orat6rias de Quintiliano, traduzidas e anotadas por Soares Barbosa,"

? 3 N ' , _" a poelica A sistematiza~ao do saber e uma das marcas do seculo XVIII, sendo disso

prova as Enciciopedias, 0 Verdadeiro Metoda de Estudar nao pode deixar de ser confrontado com este olhar, atraves do qual a obra de Verney se apresenta como mais uma manifesta~ao "do movimento de compila~ao utilitaria do saber"24, Relativamente it poetica, porem, 0 autor nao se coloca na saga de muitos europeus, que 0 inspiraram noutros campos, divergindo mesmo de varios portugueses posteriores, como e 0 caso de Francisco Jose Fr'eire,

Na verdade, para Verney, a poesia desempenha socialmente uma fun~ao •

menor, tendo como finalidade apenas agradar e produzir entretenimento, A poesia esta vedada a fun~ao de instruir, pelo que nao e necessaria it republica, Com efeito, e a retolica "a unica coisa que se acha e serve no comercio humano e amais necessaria para ele"25 a qual, na expressao de Ivan Teixeira, "veicula 0 saber e a hallnonia social" assim como "rege tambem 0 discurso poetico"26,

Ora e precisamente por divergir de Verney, relativamente itrela~ao da poesia com a sociedade, sendo ele "absolutamente contrario it utilidade da arte", que Francisco Jose Freire escreve a sua obra, Arte Poerica ou Regras da Verdadeira Poesia, Para Candido Lusitano, "0 principal fim da poesia e ensinar 0 povo e servir-lhe de utilidade", pois concebe-a "como urn dispositivo do aparelho do Estado,,27 E verdade que a inten~ao da poesia e deleitar, mas, porque a Arte esta subordinada itFilosofia Moral ou Politica, recebe a finalidade de "utilizar a alguem", Assim, a verdadeira e perfeita Poesia, na peugada de Mtrratori, devera sempre deleitar e ser util it Republica28,

Se Verney subordina a poetica it ret6rica, Candido Lusitano subordina-a it filosofia moral e concebe-a como etica de urn momenta politico, ou seja, como urn auxilio no governo dos povos: refor~ando os principios religiosos, ratificando a autOlidade real e justificando a obediencia geral ao Estado e 11 Igreja, A utilidade da

243

Revista de Letras nOS

poesia passa, assim, pelo ensino dos caminhos da felicidade temporal ou etema e pela realiza\,ao dos designios da Republica e da Igreja: "mediante 0 elogio de altos dignatfuios no exercicio das suas fun\,oes, exaltando a no\,ao de progresso, de paz e de respeito ao rei e a Deus."29

o utilitarismo talvez fosse, assim, a palavra propria para caracterizar a produ\,ao poetic a da segunda metade do seculo pombalino, na perspectiva de Ivan Teixeira30. Tratar-se-ia de uma manifesla\,ao pragmatica do espirito, todo dominado pela ideia de bem-estar social e progresso da inteligencia. A poesia estaria, portanto, em conexao com a finalidade pnitica de apoio a ideia de born governo, por is so 0 Marques a teria apoiado tanto: autores, academias e publica~oes ou divulga\,ao de

. ~ . ~ . teonas e pral1cas poeocas.

Este ideano, como 0 patrimonio cbissico onde se enxerta, era, nestes SO anos de ouro, patrimonio de toda a Europa. Acreditava-se numa certa cultura geral(izada) capaz de produzir felicidade colectiva; havia uma cren\,a no saber, na c1areza do pensar e na recolha, compila\,ao e divulga\,ao do conhecido; nasce de f01ma generalizada a consciencia da comunica\,ao, tal como do prazer e do poder que a esta sao concomitantes. Diriamos que se acredita na comunica\,ao esclarecida como no seculo seguinte se vai acreditar cegamente no progresso.

Deste modo, surge na sociedade pOituguesa urn movimento de Luzes que alguns chamam mesmo de mecenato pombalin031 com 0 exagero que tal expressao pode manifestar, mas que segurarnente veicula a ideia da existencia de uma corte culurral ou academia semelhante aquelas que, no tempo de Augusto, tiveram origem e efeitos tao prec1aros quanta aquelas que contaram, entre os seus membros, com homens da estatura de VIrgI1io, Horacio, Ovidio e Tito Livio.

Para concluir Podemos, assim, concluir que a comunicar;:a.o pessoal se entranha na sociedade portuguesa a partir da segunda metade do seculo das Luzes. Tal facto muito ficou a dever a homens como Verney, Francisco Jose Freire, Jeronimo Soares Barbosa e Pedro Jose da Fonseca. As fontes dessa nova for IlIa de comunicac;ao sao os campos renovados e renovadores da epistolografia, da retolica e da poetica, agora em lingua portuguesa e, predominantemente, em ambiente escolar. Este recebe, pela primeira vez, uma configurac;;ao estatal e, se a escola portuguesa de retorica ou/e a escola de retorica portuguesa nao visam a totalidade dos cidadaos, preocupam-se em alcanc;ar 0 maior numero. Para alem dis so, elas sao objecto de urn Plano Nacional, o mesmo e dizer que, pela primeira vez, cobrem todo 0 Reino, 0 Ultramar e as llhas.

244

Revista de Letras n<l5

Notas 1.Francisco Jose Freire. Secretdrio PorfligueS. copiosamente ins111tfdo no modo de escrever

Carlos. par meia de wna instru~ao preliminar: Regras de Secretoria: FOl71wldrio de tratamento. e lim grande numero de cartas em todas as especies. que rem mois usa, com

vdrias eOl1a Discursivas sobre as Obrigar;oes. Virtudes. e vicios de novo [s.n.] Seererario. Eserito e consagrado ao eminelltfssimo e reverendtssimo senhor Cardeal Patriarca, Primeiro de Lisboa, do Conselho de Estado e CapelCio MOl: Lisboa, na Oficina Domingos Gon<;alves, 1746, p .. 0 Professor A. P. Castro (Retorica e Teori:a\'Go Lilertiria em Pomlgal. Do humanismo ao neoclassicismo, Coimbra, Centro de Estudos Romanicos, 1973, p. 472, nola 119 e p. 627, nOla 137) do noticia da sua edic;ao reportando-a a edi<;ao de Antonio Isidoro da Fonseca e ao ano de 1745, dando Maria Lucflia Gon<;alves Pires (na Introdll<;ao a edic;ao de Verdadeiro Metoda de ESlud01: Cartos sobre retoriea e poetiea, Lisboa, Editorial Presen<;a, 1991, p. II) a noticia da publicac;ao ter acontecido em 1746. Uma edic;ao de 1815, (a cuja "Instruc;ao Preliminar" se reportam as citac;oes) aparecida na Tipografia RolIandiana, manteIn global mente este titulo e acresecenta: Nova Edir;iio. aumentada tom dais Suplementos sabre niuitos pontos concernentes a Teoria e Pralica do COl71ercio: 0 1. Con/em: Carta de comercio com as Respostas, = Instrumenlo de Procurofifo e de Fretomel1fo. = Apo/ice de Seguro. = Escritura de Compromisso. = Mode/os para leo'as de Cambio. = Protesto de uma letro de Cambio. = Varias lonnas de recibos. all. Contem: Quonto 0 negocio e litil. e prestadio ao Estado. = Das tetras de Cambia e Maximas cOllcemellles as dil0S. = Dos Letras de Credito e de Transporte. = Do liquidar;iio. = Dos Pa rtidas dobradas. = Das Sociedades. = Da EspeclIlar;iio. = Do Silldico do", Falidos. = Balal1l;o Geml dos bells de IIIIl Falido. = E um Tralado dos Cambios.

2.Sobre 0 relevo adquirido entao por estes meio de comunicar;ao consultar-se-a validamente a nossa obra Retorica e Sociedade (Lis boa, Instituto de Inova<;ao Educacional, 1998, pp. 138-145).

3.De outro modo, 0 autor nao desconheceria a abundante actividade epistolar de DamH'io de G6is, aprofundadamente estudada pelo Professor Amadeu Torres. Noese e Crise na EpistolograJia Goisiana. I - As Cartas Latinos de Damiao de Gr5is. lntrodu~'iio Texto Critteo e VersGo. II Damian de G6is no Mundividencia do Renoscimento. Analise Ide%giea ESletico ~Lingufslica.Apelldjce Diplomdtico (Paris, FundaC;ao Calouste Gulbenkian. centro Cultural Portugues, 1982) e a do P. Antonio Vieira, a qual nos proprios ja tivemos ensejo de dedi car alguma atenc;ao. no Congresso fnternacional realizado ern Lisboa e destinado a celebrar 0 ultimo centemmo da sua morte.Actas, III Volume (Braga, Universidade Catolica, 1999, pp.1635-1646).

4.Francisco Jose Freire, op. cil., p. I. 5.Luis Antonio Verney, Verdadeim Metodo de EstudQ/; para ser ulil it Repliblica e a Igreja:

Proporcionodo Ao estilo. e necessidade de Portugal. EXPOSIO Em varias cartas, eseritas pelo R.P. *** Barbadinho da COl1grega{'Go da Ittilia, ao R.P. * ""DoUlor da Universidade de Coimbra, Napoles. Ano de 1746. Inforrna<;iio desenvolvida sabre este ponto podera ser encontrada na nossa obra, ja referida. Rel6rica e Sociedade, pp. 115-117.

6.Luis A. Verney. up. CI., p. 45. 7.Cf. Titulo de Secrettirio POr/ugues, com data de 1815, em nota anterior. Peraote esta dupla

insistencia, por autores diferentes e no seculo em que 0 proprio Ministro de D. Jose tanto fez pelo comercio. pelo seu desenvolvimento e peJa sua imagem social (aprova os Estatutos da Junta do Comercio pelo Decreto de 30 de Setembro. e os Estatutos da Aula de Comercio em 19 de Abril de 1759, cf. J. Gomes Ferreira, 0 Marques de Pombal e as RejomlGs do Ensino. Coimbra. Almedina, 1982. p. 8), nao podemos deixar de referir a carta de Voltaire

245

Revista de Letras nOS

sobre 0 comercio: sua dignidade e importfmcia para 0 Estado ("Decima carta Sobre 0

comercio", in Carlas Filasoficas (Oll Cartas de Londres sabre os illgleses), Lisbon. Editorial Fragmentos, 1992, pp. 42-44). Citemos apenas a primeira e a ultima frases: " 0 comercio que enriqueceu os cidadaos ingleses, contribuiu para os tomar livres, e esta hberdade fez prosperar 0 comercio: assim se fonnou a grandeza do Estado. [ ... 1 Nao sei qual e mnis util a um Estado, se urn Senhor bem empoeirado que sabe exactamente a que horns 0 rei se levant a, a que horns se deita e que se d6. ares de grandeza fazendo 0 papel de escravo, na antecamara de urn ministro, ou urn negociante que enriquece 0 seu pais. envia do seu gabinete ordens a Surate au ao Cairo, e contribui para a felicidade do mundo."

8.1. Gomes Ferreira, 0 Marques de Pombal e as Refol7nas do EllSino. Coimbra, Almedina. 1982, p.lO.

9.lbid., p. 13. lO.ldem, ibid .. II.Ibid., p. 14. A fronteira entre as gentes a i1ustrar e as que pelas suas func;6es dispensariam

lais extravagancias. era da petfeita consciencia do legislador 0 qual reconhecia que lodos as cidadaos de uma nafYao 'concorrem na unidade da causa do interesse publico e geraI' [ ... ] era convicc;ao generalizada que a instnH;:aO nao era necessaria para todos. concretamente para 'as que sao necessariamente empregados nos servic;os nisticos e nas artes fabri s, que ministram a sustento dos povos e constituem as brac;os e maos do corpo politico", aos quais" 'bastariam as instmc;6es dos parocos' au seja, 0 catecisrno".

12.lbid., Mapa de Professores de Retoric., colado entre a pagina 14 e a pagina 15. 13.LuisA. Verney, 01'. ct., p. 73. 14.Cf. Antonio Alberto B. Andrade, A RefonllO Pombalina dos ESllIdos Menores (1759-/771)

(Documelltas), Coimbra,A. U. Conimbrigencis, 1981, 2° Vol.. lS.Vide "Prefac;ao", de Jeronimo Soares Barbosa, a sua cbra insTituir;oes Oratorias de M.

Fabio Quilltiliano, Coimbra, na Imprensa da Universidade. 1788, p. Vii. 16.Francisco Jose Freire com a sua obra Mciximas sobre a Arte aratoria, Extraidas dos AllIigos

Mestres, Lisboa. Oficina Patriarcal de Francisco Luis Amenos, 1759; Antonio Pereira de Figueiredo. com Elementos da Invenr;ao e da Elocurao Ret6rica . Lisboa, na Oficina Patriarca! de Francisco Luis Ameno, 1759.

17.Cf. Ivan Teixeira. Mecenato Pombalino e Poesia Neocldssica. Basflio da Gama e a Paetica do Encomia, Sao Paulo, Edusp, 1999, pp. 86-87 e 88.

18.Cf. Ivan Teixeira, 01'. cit .• pp.48-49. 19.1nteressante se toma observar que tambem Verney (op. ct., p. 113) utiliza, quarenta anos

antes, a expressao "retorica portuguesa" para afinnar que "0 eSludante portugues nao te111 alguma boa ret6rica portuguesa", referindo-se provavelmente a inexistencia urn manual.

20.lbid., p. 69. Para este autor. 0 poema Uraguay, de Basilio da Ganla. seria uma resposta a essse programa. ao tomar Pombal como "tema nuclear da sua enuncia~ao".

2!.Cf. Anibal Pinto de Castro, 01'. cit., pp. 599, nota 43, e 60 I, nota 47. 22.1eronimo Soares Barbosa, 01'. ct., p. xv. 23.Jose Gon~alves Lage, Elementos de aratoria, compreendendo as prescriroes do programa

dos liceus, Coimbra, Liv. Almeida Cabra!, 1883, pp. V-VI. 24.lvan Teixeira, op.cit., p. 169. 25.LuisA. Verney, 01'. ct., p. 45. 26.lvan Teixeira, 01'. cit .. p. 203 27.lbid., p. 212. 28.lbid.. 0 conceito pombalino de "filosofia moral" e assim desenvolvido por volta de 1771: "E

a Directora dos pensamentos; a Norma das ACI;6es; A Discip]jna dos costumes; 0 Orguo da razao pela qual a natureza racional se explica e comunica com 0 homem: e a Arte de viver hem

246

Revista de Letras n05

e fel izmente~ E la e s6 que mereceu e conseguiu a antonomasia de Ciencia do Homem." In Origem El~recla da ReJaxar;iio Moral dos Denominados Jesuftas (1771. obra anti-jesuitica) citado por Ivan Teixeira. op. cl., p. 257. Dividiu-se Filosofia Moral em tn!s especies: Etica, Politica e Economia", subministrando. respectivamente, as no~6es "do justa. do honesto. do decente"; "as utilidades publicas do Estado"; e "os interesses pal1iculares dos cidadaos".

29.Ivan Teixeira, 01'. ct., p. 239. 30.lbd. , 255.

31 Cf. a obra de I van Teixeira, que vimos referindo, desde 0 tItulo ate a sua tese fundamental.

247

Revista de Letras nOS

248

Revista de Letras nOS

estudo que eles consideram moralmente perigosas. Nao devemos esquecer que qualquer debate sobre 0 significado moral de uma obra liteniria acabara por deslizar para uma discussao sobre os sentimentos e preconceitos de cada urn dos leitores individuais, e portanto a noc;:ao da intenc;:ao do autor devera ser restabelecida na aula de Lingua Materna com muito mais vigor, para proteger 0 proprio docente de argumentos, para os quais nao podera nunca encontrar uma resposta satisfatoria.

Estes dois assuntos, e muitos outros, derivam directamente dessa indiscutfvel relac;:ao entre a literatura e a vida. As incertezas que tenbo vindo a recolher dos Professores de Portugues, levam-me a nomear as seguintes questoes, como pressupostos para a reflexao que se ira seguir: - qual 0 significado da intenc;:ao do autorpara a minha perspectiva da obra? -qual 0 sentido moral que este texto em particular possui? - quais as emoc;:6es que 0 lei tor deve experimentar ao ler 0 texto? - como e que a minha identificac;:ao, ou empatia, com uma deteIlninada personagem de fic<;ao, influencia a minha resposta a obra? - em que medida a significac;:ao moral, ou 0 impacto emocional senti do, depende da qualidade estetica da obra em questao? Se cada professor honestamente responder a todas estas questoes, certamente nao conseguira produzir respostas directas e seguras, mas sera muito mais flexivel ao tratar de urn dos topicos mais complicados dos Programas de estudos literanos: 0

relacionamento entre a Literatura e a Verdade, sobretudo nas suas variantes de Literatura I realidade, e Literatura Isinceridade.

Em ternlOS gerais, nao devemos esquecer os ensinarnentos de Henry James que, mais tarde foram tao bern sistematizados por Wayne Booth, no seu estudo chissico, The Rhetoric of Fiction. Resumindo estes principios, autor e narrador sao difererites e no fundo e 0 narrador que reflecte a ligac;:ao entre a verdade inuinseca da Literatura e a verdade na vida. Com efeito, a verdade na Literatura e 0 retrato de aspectos do mundo ou da vida e por isso, muitos leitores acreditam que a Literatura significa, para eles, uma percepc;:ao mais clara das realidades tratadas. Ha mesmo alguns leitores mais esclarecidos que acreditam enta~ que, ao adquirirem infollllac;:ao factual sobre as tematicas atras mencionadas (ambiente, fanulia, crianc;:as, etc), apreendem outras 'verdades' mais gerais que s6 tern a ver com conceitos e principios.

Realmente compete a nos professores de Lingua Materna insistir sobre a resoluc;:ao de urn problema que comec;:a por ser de feic;:ao etliria: todas as crianc;:as na infiincia acreditam nas hist6rias que ouvem, considerando que as personagens de ficc;:ao existem mesmo. Contudo, muitas vezes, este erro perlllanece ap6s a adolescencia dos alunos, porque 0 modelo de ensino personalizado que utilizamos na abordagem do texto literano nos 2° e 3° ciclos enfatiza excessivamente a ligac;:ao entre 0 aluno e 0 assunto do texto, perIIlitindo-lhe 0 estabelecimento de confusoes que frequentemente redundam numa perspectiva daLiteratura como 'verdade literal' . Oeve-se realmente insistir que na Literatma a verdade so pode existir em dois pIanos:

251

Revista de Letras n05

atraves de afirma«oes que sao verificaveis pel a observa<;ao empirica, como por exemplo, quando E<;a de Queiros descreve, n 'Os Maias, 0 'Ramalhete' ; ou enta~ atraves de generaliza<;6es que se reportam a conceitos exteriores as proprias obras literlirias, como sucede, por exemplo, nas conclus5es morais das fabulas e estruturas afins.

Contudo, e necessario que evidenciemos mm s, nas nossas aulas de Portugues, que uns pequenos toques de informa"ao, contlibuem apenas para criar a ilusao da verdade e nao chegam pararepresentar as reais caracteristicas do mundo. Assim, pinceladas nipidas, simula«oes inteligentes e sensiveis, empreendidas pelo criador acabam pOI' eriar urn mundo de sugest6es que nos levam a acreditar que Joaninha e uma menina viva, identica a tantas adolescentes que conhecemos. Afinal, foi 0 proprio E<;a de Queiros que, deslumbrando-se com os toques veridicos do mundo ficcional criado por Julio Dinis, nos esclarece: "As suas aldeias sao verdadeiras, mas sao poetizadas: parece que so as ve e as desenha, quando a nevoa outonal esfuma, azula e idealiza as perspectivas" (Uma CampanhaAlegre, vol. I, p. 196).

Assim, nao se pode examinar 0 conteudo de urn texto literano, atraves da sua rela"ao com factos observaveis, ou com verdades simples da vida; este tipo de tllltamento das ideias das obras em estudo e francamente inadequado e, ao contrario de diversas sugestoes dispersas nos Programas de Lingua Materna, devemos ver com desconfian«a procedimentos pedagogicos em que isolamos "afinna"oes poeticas", ou em que "inferimos generaliza"oes a partir de poemas e romances", sem atender a uma caracteristica fundamental da obra Iiteraria: tudo aquilo que e dito, esta intimamente ligado a como e dito. Realmente, uma boa maioria dos professores de Portugues continua a ter grande dificuldade em comunicar aos seus alunos que e atraves do modo distintivo como a Literatura usa as palavras que podemos descobrir 0 que elas reaJrnente nos transrnitem. A inseparabilidades destes dois campos em necessario equilibrio - ideia e linguagem -, evita perspectivas esteticistas do texto, provenientes de uma enfase excess iva ao lade formal da Literatura, mas tambem evita perspectivas conceptualistas, associadas com as tentativas de julgar a verdade de uma obra literana, independente da sua fOllIla. Afinal, e esta visao predorninantemente conceptual que se revela na enfase tantas vezes concedida ao exercfcio de parafrase dum poema, ou duma narrativa, ou no reconto de urn texto literario .

• E esta interac<;ao orgiinica entre conteudo e forllla que obriga os Professores

de Portugues, ao ensinar Os Lusfadas, a apresentar a estrutura do poema epico, a falar da oitava heroica, ao mesmo tempo que referem a importiincia da descoberta

• do caminho maritimo para a India no imaginario portugues e na Historia Lusa.

Na reaJidade, esta n09ao da liga"ao fOllna/conteudo na essencia da Literatura conduz-nos a questao mais ampla da nossa propria compreensao do fenomeno literfuio, visto que, na Literatura, tanto depende das palavras a serem compreendidas, que os processos habituais, utilizados em saJa de aula para transmitir 0 conteudo do

252

Revista de Letras n05

texto (panifrase, resumo, reconto) sao profundamente in adequados. Se como tao bern explica Witgensttein 1 0 que e expresso, so pode serex.presso por essas palavras nessa mesma posi~ao, parafrasear, resumir, ou reC() ntaro texlo em estudo, so pode redundar em perda de sentido fundamental. Conmde>, tambem nao devemos incorrer no erro de considerar que 0 sentido da Literatura e pri vade>, pessoal e inacessfvel ao ensino e it avalia~ao. Se partimos da inferencia que, no texto litenirio, 0 senti do nao pode ser separado da fomm, das palavras em que e expresso, 0 que teremos de fazer e recorrer a tecnicas pedagogicas e avaliativas diferentes, e e mesmo preocupa«ao dos melhores professores de Literatura, procurar incessantemente 0

processo de conduzir os seus alunos it compreensao t:otal do senti do da obra, atraves de uma revaloriza«ao dos seus aspectos Iinguisticos. S6 assim, os alunos estarao preparados para proceder a uma aprecia«ao correcta do texto literano, respeitando o seu lado estetico, e tambem a ultTapassar preconceitos de pessoalismo na leitura do texto, conseguindo uma mais ampla compreeruao do (>roprio acto criativo.

Enquanto os alunos nao esclarecerem 0 proprio relacionamento da Literatura com a verdade do mundo circundante, ainda mais obsticulos irao encontrar na rela«ao da obra Iiterana com a sinceridade do criador, e a fanlosa Frase de Fernando Pessoa "0 poeta e urn fingidor" transfolllla-se, de urn reSUIllO brilhante de uma situa«ao, numa forma de trai«ao ao seu publico-leitor. Afinal, para este grande poeta, como para a maioria dos escritores, a escrita e uma fonn.a de descoberta intima, ou de explora«ao das suas verdades mais profundas.

Assim, para T.S. Elliot, por exemplo, 0 sigrLificado da poesia era 0 que ele pretendia que fosse (palavras do proprio poeta),e nao se resumia it necessidade de ser verdadeiro e ex acto em rela~ao ao que realmente exi ste. Portanto, 0 escritor genufno (verdadeirol sincero/ honesto) luta por atingiras palavras que completem e deem corpo a sua experiencia2 profunda. Por isso, constimi umdos grandes desafios, para 0 born professor de Literatura, respeitar esse mesmo modele de verdade criado pelo artista Iiter:irio e que e constituido pelos aspectos pessoais da sua experiencia, evitando 0 mais possivel os estere6tipos, a sentimentalidade e a banalidade, a que certamente 0 proprio escritor fugiu conscientemeu te. Como profess ores, alias, e para tomarmos as obras mais acessfveis , frequentemente convidamos os nossos alunos a tratar unl paema ou uma narrativa de urn modo mais simpJificado, ignorando enta~ as caracteristicas que os tomam verdadeiramente significativos.

Comunicar anossa aprecia«ao de uma obraliterana, e mais ainda ensina-la, significa entao respeitar as suas subtilezas e os seu s pannenares de pensamento, sentimento e atitudes perante a vida e, identicarnente privilegiaro discurso literano, em que tudo isso se encontra enfOlmado. Assim, e imp<:>rtante enfati zar que os recursos estilfsticos nao sao truques dos escritores, e que apesar de talvez nao serem espontaneos, nunca sao falsos na boa Literatura: em Cam6es, par exemplo, a Iiga~ao entre as imagens, 0 extraordinano e complexo controle da ritrna, rima etc, os topicos e temas desenvolvidos, criam uma verdade intrfrueca que T,S. Elliot tao bern explica

253

Revista de Letras nOS

"(. .. ) for poetry's nature is not to be a part, not yet a copy of the real world, but to be a world by itself, independent, complete, autonomous, and to possess it fully, you must enter that world, conform to its laws qnd ignore for the time the beliefs, aims and particular conditions which belong to you in the other world of reality"3 .

Para os professores de Portugues este problema acentua-se ganhando algum melindre se verificalIl10s a quantidade de escritores 'Realistas' ou 'neo-realistas ' inclufdos nos Programas. Realmente. 0 pr6prio telulO 'realista·. como tao bern expressa Herbert Read. "tomou-se imediatamente inexacto assim que foi utilizado" e prossegue: "urn escritor realista e aquele que declara evitar qualquer preconceito selectivo na sua transcric;ao da vida, dando-nos a cena, ou a personagem. exactamente como os nossos olhos a veem. Mas, na realidade, como toda a Arte pressup6e selecc;ao, 0 escritor realista e aquele que sublinha apenas deter minados aspectos da vida( .. .j4 "

Contudo. tambem a abordagem escolar destes mesmos escritores 'realistas' ten! de ser feita respeitando a essencia estetica do texto litenirio em que a argumentac;ao supracitada nao pode deixar de ser tida em conta. Com efeito. nesse caso espedfico, como sucede com os autores do 'Romantismo', ou mesmo do 'Classicismo'. imp6e-se, da parte do Professor, uma clarificac;ao que enfatize as dominancias: isto e, devemos tornar claro que urn Realista pretende, em diversos, momentos literanos, criar a ilusao da vida como ela e; urn Romantico pretende dar, algumas vezes, primazia as emoc;6es e urn Cllissico preocupa-se sobretudo com a organizac;ao racional do mundo. Mas todo 0 born professor de Literatura sabe que teni de ensinar estas noc;6es, introduzindo c6digos de relativismo conceptual; se nao o fizer, corre 0 risco dos seus alunos recusarem as paginas de arnor intenso de as Maias, porexemplo, ou as descriC;Oes verfdicas de paisagens das Viagens na minha Terra. ou enta~, a emoc;ao transmitida em muitos dos sonetos camoneanos.

Queria concluir, resurnindo algumas das evidencias que fui apresentando no decurso desta minha reflexao sobre 0 relacionarnento da Literatura com a vida: 1. tanto no modelo personalizado do ensino do texto literano, (privilegiado nos 2° e 3° ciclos do EB). quanto no modele cultural (utilizado no Ensino Secundano)5 , como Professores de Portugues. temos de estar sempre atentos as intenc;6es do escritor, pois estas sao fundarnentais para que, no texto literano, noc;6es de verdade, realidade, sinceridade sejam perspectivadas pelos alunos, nao como fOllnas de reproduc;ao da vida. mas antes como reflexos da experiencia do seu criador. 2. Pedagogicarnente, esta abordagem mais correcta sera facilitada se passar IllOS de uma perspectiva meramente conteudfstica da obra literana, para urn estudo dos procedimentos lingufsticos privilegiados pelo criador.ja que as suas opc;6es nesse campo devem transfonllar-se nas fronteiras interpretativas de qualquer possibilidade de analise adequada.

S6 quando 0 Professor de Portugues mantiver estes dois parametros/ponto de partida e que a voz da Literatura conseguira marcar urn lugar imprescindfvel nos

254

Revista de Letras n05

curricula escolares e 0 seu modo particular de iluminar a experiencia de cada urn de nos podeni entao tomar-se audfvel.

255

Revista de Letras n05

Notas

I Cf. L. WITTGENSTEIN. Phiiosophicailnvestigations (Oxford. Blackwell, 1967), p. 531. 2 Cf. D. H . Harding. Experience into Words (Londres, Cjatto & Windlls, 1970), p. 99 et seq. 3 Cf. T.S. Elliot. "Poetry for Poetry's sake" in Oxford Lec/Ilres on Poelly (Londres, Macmillan,

1959). p.5 e 6. 4 Cf. H. Read. 0 Significado do Arce (Lisboa, Ul isseia, 1972), p. 87. 5 Para mais pormenores sobre estes modelos europeus de ensino da Literatura, tambem

adoptados em Portugal, ver F. Albuquerque. "A Vo.: dos Dellses": COllsiderGf;oes sobre os Conleudos Educativos da Literatura 110 Ensino Secunddrio (Aveiro. Aetas do IV Congresso das Ciencias de Edllcar;ao, vol 2, 1999).

256

Revista de Letras - UTAD

nOS, 2000, pp. 257 - 274

Revista de Letras nOS

A investiga~iio sobre 0 ensino e a aprendizagem de Linguas Segundas e Estrangeiras: breve descri~iio e caracteriza~ao de alguns instrumentos

para observa~iio de aulas

Jose Manuel C. Belo Universidade de Tras-os-Montes e Alto Douro

A investigalf30 na e sobre a aula inicia-se nos anos 50, quando os fOllnadores de profess ores tomaram consciencia da necessidade de analisar as caracterfsticas de urn ensino eficaz, de fOIlIla a que os resultados dessa amilise pudessem contribuir para uma melhoria na fonnalf30 dos professores. Port!m, os processos objecto de amilise mostrararn-se tao complexos que ainten~30 inicial, a fon]]a~o de professores, foi relegada para segundo plano, e deu lugar ao aparecimento de urn novo objectivo de investigalfao: a compreensao e descrilfao dos diferentes aspectos implicados nos processos de ensino e de aprendizagem numa situalfao fOl mal de aula, com 0 fun de isolar aqueles que poderiarn prom over uma aprendizagem mills eficaz.

Aqui, tentaremos, apenas, efectuar uma revisao breve dos estudos que apresentam uma rela~ao mais estreita com 0 ensino e aprendizagem de Lfnguas Segundas e Estrangeiras (LSIE).

A tradi~ao da investigalfao na aula de LSIE s6 se iniciou cerca de uma decada depois, nos anos 60, aquando da crftica de Chomsky (1959) a Verbal Behavior (1957) de Skinner e as ideias deste aplicadas ao metodo audiolingual, metodo que, naquela epoca, era amplamente aceite e utilizado pelos professores de LSIE.

No infcio dos anos 60, a ideia dorninante na investiga~ao da aula consistia na procura do metodo correcto, entendendo-se que aquilo que acontece na aula e, portanto, aquilo que se aprende, e completamente deteIlllinado pelo tipo de metodo utilizado. Mas, as experiencias mills importantes desenvolvidas nessa decada, em que se compararam os resultados obtidos ap6s anos de aprendizagem com diferentes metodos, nao chegaram a resultados satisfat6rios.

Por urn lado, Scherer e Wertheimer (1964) realizaram urn estudo em que comparavam 0 metodo audiolingual, em pleno auge naquela epoca, com 0 metodo tradicional ou gramatica-tradu<;ao, mas nao consegniram achardiferen~ significativas entre ambos os metodos. Mills tarde, 0 Pensilvania Project (Smith, 1970) procurou

257

Revista de Letras nOS

demonstrar que a aplica<;:ao de tres metodos diferentes de ensino de LSIE (os metodos tradicional, habilidades funcionais ou audiolingual e tradicional mais habilidades funcionai s), ap6s quatro anos de ensino, deverao produzirresultados diferentes. Porem, este esrudo tambem viria a fracassar, pois nao se conseguiu demonstrar a superioridade de nenhum dos metodos.

o Projecto GUME, na Suecia, comparou 0 ensino implicito da gramatica (metodo directo) com 0 ensino explfcito (metodo tradicional). Os resultados, embora nao completamente escJarecedores, tendiam a favorecer este ultimo.

A partir desse momento, nao tern senti do imaginal' que qualquer metoda se mostrara superior aos seus concorrentes, pelo que deixava de ser possivel 'receitar' urn metodo, qualquer que ele fosse, com absoluta confian<;:a.

Esse facto levou a que alguns investigadores, num quadro tripartido composto por abordagem, metodo e teeniea, se dedicassem it investiga<;:ao em pequena escala, isto e, ao nivel da teeniea, em vez da grande escala ao nivel do metodo ou da abordagem. Porem, alguns desses investigadores, como, por exemplo, Politzer (1970) acabarao por conduir que a complexidade de que se reveste 0 processo de ensino toma muito diffcil falar em teo nos absolutos sobre 'bons' e 'maus' mecanismos deensino.

Conc1us6es deste tipo originaram dois tipos de movimentos: I) passagem de uma abordagem geralmente prescritiva para uma

abordagem descritiva daquilo que acontece na aula; 2) mudan<;:a de enfoque: de tecnicas para proeessos. Deixa de ser possivel assumir que tudo aquilo que acontece e devido a

aplica<;iio pratica de urn metoda ou de urn conjunto de tecnicas. Come<;:a a pensar­se que algo ocorre na aula, algo mais interactivo e menos pedag6gico, e que essa interac<;:ao pode constiruir urn tema interessante para a investiga<;:iio

A observat;iio eomo illstrumellto da illvestigaqiio

Tendo pouco ou nada a ver com as comparac;6es metodol6gicas referidas acima, encontram-se trabalhos na area da educaC;ao geral em que a observa<;:iio constitui 0 procedirnento central de muitas investigac;6es.

o sistema de Flanders, por exemplo, foi inicialmente desenhado para ser aplicado numa serie de aulas, embora nao se tratasse de aulas de LSIE. Esse sistema, que pretende recolher 0 comportamento verbal na aula, e composto por 10 categorias: 7 para a fala do professor e 3 para a fala do aluno, 0 que, de algum modo, e revelador da importancia atribufda na epoca (primeira metade da decada de 60) ao

258

Revista de Letras n05

papel do professor na aula. As dez categorias ollginais de Flanders

(Flanders' l nteraclion Analysis Categories (FIAC»)

FaJa do proCessor I )Aeeita as sentimentos does) a1uno(s) : Aceita e c1arifica uma atitude au a tom de urn aluno de uma maneira nao-amea~adora. Os sentirnentos podem ser positivos ou negativos. Incluem­se a previsao e a rememora~iio de sentimentos.

. 2)E!ogia ou encoraja: Elogia ou eneoraja acrroes au comportamentos dos <alunos. Oiz piadas que aliviam a tensilo. Incluem-se ncenos de caberra e au expressoes como "Um hum" ou "Continua" . 3)Aceita au usa ideias dos alunos: Clarifica. constr6i au desenvolve ideias sugeridas par a1unos. embora ao introduzir cada vez mais das sUas ideias se devOl mudar para a categoria dnco. 4)Faz perguntas: Faz perguntas sobre o(s) conteudo(s) au proced imento(s). com base nas ideias do professor, com a inten,ao de abler resposta de aluno(s). 5)Lecciona: Exprime opini6es au relata faetos sabre comeUdo(s) au procedimento(s): exprime as pr6prias ideias. dando explica~oes, au citando autoridades sabre o(s) tema(s). 6)Dn ordens: Ordens ou indicat;oes que espera que o(s) aluno(s) cumpra(m). 7)Critica ou invoca a sua aUioridade: Declatat;oes que pretendem rnodificar 0 componamento dos alunos de urn padrao nao-aceitavel para outro aceitavel; auto-referenda extrema: ... Fala do aluno

8)Fala do aluno: res posta: Fala dos alunos em respostn ao professor. 0 professor inicia 0

contacto. ou solicita dec1arat;oes do(s) aiuno( s) , o u estrutura a s itunt;ao. A liberdade para exprim.ir ideias pr6prins e Iimitad<a. 9) Fain do aluno: inicia'Yao: FaIn dos alunos que eles proprios iniciarn. Expressar ideias proprias: inidar urn novo tema: liberdade para desenvolver opini6es e lin has de pensamento , como. por exemplo. fazer perguntas elaboradas: ir para aIem da estrutura existente.

Silcncio 10) Siil!ncio ou confusao: Pausas. pequenos periodos de silencio e periodos de confusilo em que

a comunica~5.o nfio consegue ser compreendida pelo observador.

Contudo, foi Jarvis (1968) que contribuiu decisivamente para a introdu<;ao da observac;:ao sistematica da aula na investigac;:ao do ensino de linguas ao insistir na necessidade de se conceber urn sistema de observa<;:ao capaz de reflectir as caracteristicas especiais das aulas de linguas.

A partir do final da decada de 1960, as investigac;:6es sobre 0 ensino e a aprendizagem numa situa<;:ao formal de aula pass am a tentar estabelecer rela<;:6es entre os principais aspectos do comportamento do professor e do(s) aluno(s) dentro da aula e os resultados da aprendizagem. 0 objectivo prioritario de muitas investigac;:6es que ocorrern a partir de entao tern sido detenninar quais as vari<iveis, de entre aquelas que existem na aula, conduzem mais frequenternente ao sucesso escolar.

A investigar;ao na aula de LSIE ate aos an os 80

Segundo Ellis (1990: 11 ), os estudos empiric os das aulas de LSIE que se realizararn durante as decadas de 70 e 80 poderao distribuir-se por tres grupos:

I ) Investiga<;:1io dos processos da aula; 2) Estudo da interacc;:ao na aula e aquisi<;:ao da L2;

259

Revista de Letras n05

3) Estudo do en sino fonnal e aquisi~ao da L2.

Por exemplo, Long (1980), Chaudron (1988), van Lier (1988) e Allwright (1988), apresentam e comentam os estudos ate entao desenhados ou que adaptaram uma serie de instrumentos para a observa~ao sistematica da aula. Tambem Nunan (1992) efectua uma revisao critica dos metodos utilizados pela investiga~ao centrada na aula, classificando-os de acordo com os tipos de dados e de aniilises usados por esses estudos. Long distingue duas abordagens genericas: a aniilise da interac~iio e a observa~ao antropol6gica. A primeira conduzindo quase sempre a uma investiga~iio do tipo quantitativo evidenciado pela medi~iio das frequencias das interac~6es; a segunda implicando urn tipo de observa~iio relativanlente pouco estruturado no sentido em que aquilo que se observa nao e pre-deteIlllinado pelo investigador, dependendo, contudo, do que este considere significativo.

A analise da interacr;iio

No inicio, a investiga~ao atraves da observa~ao realizou-se com recurso aquilo que hoje se designa como "aniilise da interac~iio". No espa~o de dez anos, a partir de meados dos anos 60, fo= desenhados cerca de 20 instrumentos destinados it observa~ao de aulas de linguas estrangeiras ou segundas linguas.

o que e a analise da interac~ao? Como se referiu acima, a analise da interac~ao come~ou a desenvolver-se em meados dos anos 60 com 0 prop6sito basico de observar 0 uso da Ifngua na aula de maneira a detenninar aquilo essa actividade pode revelar sobre os processos de ensino e de aprenrlizagem. Os estudos nesta linha centram-se, em primeiro lugar, no interesse pel a amilise do tipo de dependencia que se estabelece entre os comportamentos do aluno e 0 ambiente da aula e it interac~iio que 0 professor e capaz de genII. Por outro lado, apesar de as medidas de frequencias de comportamentos especfficos implicarem alguma aten~ao quantitativa, os investigadores niio pretendem realizar uma aniilise quantitativa. Vma outra caracteristica e a adop~ao, antes do periodo de observa~iio, de um tipo de instrumento com 0 qual seja possivel nOllnalizar os procedimentos de recolha de dados e os aspectos da interac~ao sobre que se vai centrar a aten~ao . Conhecidos como "sistemas de categorias", os instrumentos sao compostos por uma serie de listas de comportamentos (geralmente verbais) que os observadores procuram e registam numa folha de observa~ao. Esse registo pode ser efectuado em 'tempo real' (durante 0 decurso da aula), ou, entiio, posterionllente, a partir de grava~6es audio ou video ou de transcri~6es do conteudo.

Nessa linha costumam ocorrer tres tipos de instrumentos em fun~iio do procedimento utilizado na recollia de dados (Rosenshine e Furst, 1973): 0 sistema de categorias (category system), no qual cada acontecimento se regista de cada vez que acontece; 0 sistema de signos (sign system), em que cada acontecimento

260

Revista de Letras nOS

se regista apenas uma vez num perfodo de tempo detenninado, independentemente da frequencia com que ocorra nesse perfodo; a escala de classificGI;iio (rating scale), quando, ap6s a observa .. ao, se regista a frequencia estimada de urn deterIlLinado acontecimento utilizando uma escala que inclua terlllos como "alto", Hbaixo", Hfrequentemente", Hnunca", "muitoH au '"pOllCO", parexemplo.

Categorias de Bowers do Comportamento Verbalna Aula de Lingua

Bowers (1980) identificou sete categorias de 'movimento' numa aula, sendo urn 'movimento' a mais pequena unidade no seu sistema descritivo.

Responder: qualquer acto directame nt e provocad o pe lo enunciado de outro falante. tal como, por exemplo. responder a uma pergunta. Socializar: qualq uer acto que nno contdbua direc tame nte para a tarefa de en sino e de aprendizagem, mas. antes . para 0 estabelecimento ou manuten~ao de re la~oes interpessoais. Ol"ganizar: qualquer acto que sirva para estruturar a larefa de aprendizagem on 0 ambienle sem contribuir para a larefa de ensino e de aprendizagem e m si mesma. Dirigir: qualquer aClo que encoraje a Dctividade nao-verbal como uma pane integral da tarefa de ensino e de aprendizagem. Apresentar: qualquer acto que apresente infom1D~50 directamente relevante para a tare fa de aprendizagem. Avalisr: qualq uer acto que cJassifique positi vu on Ilegativamente outro acto ve rbal .

Elieiar: qualquer ac to desenhado para produzir uma respostD verbal de outra pessoa.

A amilise de Bowers ocupa-se da caracteriza<;;ao e investiga .. ao da eficiencia e eficacia dos padroes discursivos da sala de aula. Bowers alarga os 'moves' de Bellack de quatro para sete: 1. Responder; 2. Socializar (isto e, preocupado em manter rela<;;oes); 3. Organizar; 4. Dirigir (isto e, qualquer acto que encoraje uma actividade nao-verbal como parte integral da tarefa de aprendizagem); 5. Apresentar (infOlma .. ao, ideias, etc.); 6. Avaliar; 7. Eliciar.

Estas categorias aplicam-se quer as 'falas do professor' quer as 'falas do(s) aluno(s)' . Complementarmente, tambem se anota 0 uso da lingua-alvo.

o sistema Foreign Language Interaction (FUNT)

Desenvolvido por Gertr ude Moskowitz (19711 1976) como urn auxiliar para a auto-observa .. ao dos profess ores e urn dos primeiros instrumentos desenbados para a observa .. ao e a analise da interac~ao na aula em grande escala, este instrurnento, incluido no sistema de signos, constitui essencialmente uma adapta~ao das Categorias de Analise da Interac .. ao de Flanders (HAC, 196011970). Moskowitz refinou e ampliou as categorias de Flanders ate vinte e duas, com a finalidade de as tomar mais relevantes para a pr:itica nas aulas de linguas. Essas categorias foram utilizadas com dois fins especfficos: como ferramenta de investiga<;;ao, para tentar averiguar 0 que constitui urn "born" ensino de lfnguas, e como ferran1enta para proporcionar feedback na fOlma .. ao de professores. 0 esquema foi desenhado

261

Revista de Lelras n05

para ser codificado em 'tempo real' , em intervalos de cada tres segundos (sistema de signos). A sua finalidade essencial e a avaliac;:ao do clima socio-afectivo da aula de lingua e averiguar ate que ponto a aula esta centrada no professor ou no aluno, ou seja, esm principaImente preocupado em avaliar as estrategias sociais do professor de linguas no sentido de demonstrar que as estrat:egias indirectas de ensino produzem efeitos mais positivos nos alunos para a aquisic;:ao da LE do que as estrategias directas.

As func;:oes das categorias extra no FLINT servem para registar se:

I) 0 professorrecorre a anedotas. 2) 0 professor usa urn verbatim de resposta. 3) 0 professor.corrige 'sem rejeic;:ao' (isto e, sem responsabilizar 0 aluno). 4) 0 professor dirige ·pattern-drills'. 5) A resposta do aluno e individual ou coral. 6) Urn perfodo de silencio esta relacionado com 0 uso, ou nao, de audio-visuais. 7) A 'confusao' e, ou nao, orientada para 0 trabalho. 8) Existe, ou nao, riso.

AMm disso, existem dois subscritos (expressoes em caracteres mimisculos colocadas sob os numeros de cada categoria) que indicam:

I) Se as interacc;:oes sao na lingua-alvo ou na Ll. 2) Se existem evidencias de linguagem nao-verbal ou express6es faciais pelo professor ou alunos que comuniquem sem usar palavras.

Algumas das categorias extra de Moskowitz reflectem quest6es com interesse para os professores; outras parecem evidenciar uma metodologia particular (a preocupac;:ao com os auxiliares audio-visuais e com as respostas corais); e outras (porexemplo, aquelas relacionadas com anedotas, correcc;:ao semrejeic;:ao) pode estar relacionada com 0 interesse pelo clima afectivo da aula de lingua estrangeira.

Porem, este esquema Ievantou a quest50 da adequac;:ao de esquemas de observac;:ao de aulas de linguas com base em categorias originaImente desenhadas para outras disciplinas. Long (1980) ve com apreensao a escolha de sistemas como o FIAC para a observac;:ao de aulas de lfnguas estrangeiras. pois. ao contrano de outras disciplinas, as lingua sao, simultaneamente, vefculo e objecto de ensino. 0 FLINT foi muito criticado par Leona Bailey (1975) devido as deficiencias evidenciadas no que se refere ii precisao e it fiabilidade, mas, apesar de tudo, 0 FLINT constituiu na epoca urn esforc;:o pioneiro.

Os esquemas posteriores serao mais sofisticados e procurarao proporcionar

262

Revista de Letras n05

uma descric;:ao mais ampla da interacc;:ao na aula e estao menos vinculados a uma postura especffica sobre como deveria ensinar-se.

o sistema Foci for Observing Communications Used in Settings (FOCUS)

Urn dos sistemas multidimensionais dentro desta abordagem, e como alternativa ao FLINT, e aquele desenhado por Fanselow (1977) que representa mais uma tentativa para se poder analisar 0 tipo de lingua de uma forma objectiva e global, sem estabelecer pressupostos sobre a filosofia subjacente ao ensino de linguas. Fanselow inspirou-se parcialmente nos trabalhos de Bellack et al. (1966) sobre a natureza do uso da lingua (Ll) na aula. Efectivamente, aquilo que Bellack tentava averiguar era 0 funcionamento da aula como meio de aprendizagem, atraves do estudo da maneira como a lingua se utiliza para a estruturac;:ao desse meio.

A abordagem de Fanselow e multidimensional e procura explorar todas as possiveis dimens6es relevantes que possam levar a modificac;:oes noes) comportamento(s) de ensino. Faz a listagem de 'cinco caracteristicas da . _. comurucac;:ao :

I . Quemlo que comunica com quem? (Professor, aluno(s), material) 2. Qual e a finalidade pedag6gica da comunicac;:ao? (Estruturar, solicitar, responder, reagir) 3. Que meios sao usados para comunicar o(s) conteudo(s)? (Linguisticos, nao-linguisticos, parcialmente linguisticos, silencio) 4. Como sao usados os meios para comunicar o(s) conteudo(s)? (atenr;iio - por exemplo, ao escutar; caracterizar;iio - por exemplo, ao etiquetar partes do discurso; apresentar;iio - por exemplo, ao ler em voz alta; reia<;iio - por exemplo, ao efectuar generalizac;:oes; (re )apresentar;iio - por exemplo, ao parafrasear) 5. Que areas de conteudo sao comunicadas? (vida - isto e, coisas relacionadas com a vida real como cumprimentar os alunos; procedimento - isto e, !idar com a organizac;:ao, etc. ; estudo - isto e, 0

tema ou assunto daquilo que se esta a estudar, etc.)

Ao codificar aquilo que se faz em vanas dimens6es, Fanselow acredita que essa consciencia!izac;:ao proporciona maneiras de modificar a acc;:ao profissional dos professores de uma maneira controlada.

o sistema FOCUS, po de ser utilizado em tempo real de observac;:ao ou a partir da gravac;:ao da(s) aula(s). A unidade de analise, em vez de ser uma apreciac;:ao temporal (como no sistema de signos), e 0 "movimento" (move) do discurso pedag6gico, e as categorias da dimensao da finalidade pedag6gica constituem os criterios principais para segmentar a interacc;:ao da aula. No entanto, apesar de ter

263

Revista de Letrns nOS

partido do instrumento de observa~ao de aulas de L1 de Bellack, Fanselow modificou completamente as suas dimens6es de conteudo de ensino e acrescentou-lhe as dimens6es de "meio" e de "uso do meio". As cinco dimens6es gerais em que se baseia 0 estudo de Fanselow sao:

l) Quem comunica? 2) Qual a finalidade pedagogica da comunicac;:ao? 3) Que meios se usam para comunicar o(s) conteudo(s)? 4) Como se usam os meios para comunicar as areas de conteudo? 5) Que areas de conteudo se comunicam?

Este trabalho constitui urn conlIibuto imporlante nesta area, e como sistema descritivo e aplicavel it investiga~ao de qualquer exemplo de interac~ao humana. Assim, nao apresenta categorias diferentes para professor e alunos, mas categorias gerais que podem ser utilizadas independentemente dos participantes e do seu papel na interac~ao.

Outros sistemas

Urn outro sistema nesta tradi~ao e 0 de Naiman, Frohlich, Stem e Todesco (1978), desenvolvido para a observa~ao da aula ern "tempo real". Trata-se de urn instrumento semelhante ao de Fanselow na medida em que mantem vanas das dimens6es (discurso pedagogico, actividade, modo, tema e chaves), mas decomp6e a fun~ao pedagogica das unidades linguisticas a analisar. Porem, mantem a mesma unidade de analise - a "vez" pedagogica. 0 interesse destes investigadores consiste em pode averiguar 0 tipo de infO! ma~ao que 0 professor pode proporcionar ao dar feeedback apos o(s) erro(s) does) aluno(s) ou quando estes nao respondem. Nesse sentido, isolam 0 conteudo do ensino ern tellIlOS de fonologia, sintaxe, lexico e capacidades.

A andlise do discurso

o trabalho de Bellack et al. eo responsavel pela dissemina~ao da ideia de se tomar 0 discurso da aula como urn 'jogo', com regras especiais, constituido por 'ciclos' que consistem nas "vezes", tantas vezes mencionadas pelos investigadores de aulas de L2, de pergunta-resposta-reac~ao ("movimentos" de "solicita~ao", "resposta" e "reac~ao"). 0 desenvolvimento de uma analise mais sistematica do discurso total da interac~ao na aula de L1 foi realizado por Sinclair e Coulthard (1975). Estes autores incorporaram a tradic;ao linguistica e a sociolinguistica na sua concep~ao de interacc;ao na aula como urn sistema de unidades hierarquicamente estruturadas. Nesse sistema, 0 nivel analftico do discurso e composto pOl' cinco

264

Revista de Letras n05

unidades au ranks: a lic;:ao, como unidade mais ampla, composta por outras unidades chamadas "transacc;:oes", par sua vez farmadas par "trocas", constituidas por "movimentos", que, par seu tumo, sao fOIlnados pelas menores unidades de interacc;:ao as "actos", que tambem podem ser analisados em unidades mais pequenas como as palavras au as frases. No entanto, para muitos investigadores, a validade e a fiabilidade deste sistema estiio ainda por demonstrar.

Outros sistemas, como as propostos par Long et aI. (1976) e par Allwright (1980), recorrem as tecnicas da amUise do discurso em duas vertentes: para tentar estabelecer as dimensoes do discurso da LE que consideram significativas, e como unidade de anaIise dos instrumentos. A novidade reside em que ambos as esquemas apresentam enunciados (utterances) funcionalmente diferenciados (a myel de "vez") como unidade basica de amUise, e peunitem a codificac;:ao multipla destas unidades em dimensoes tais como 'Tomada de Vez' e 'T6pico' (Allwright), 'Vezes Pedag6gicas', 'Destrezas Sociais' e 'Actos Ret6ricos' (Long et al.), peIlnitindo, assim, conservar a estrutura do discurso em vez de a atomizar.

Outra novidade trazida por estes trabalhos e a mudanc;:a relativamente ao objecto de investigac;:ao que deixa de estar centrado naquilo que a professor faz para passar a centrar-se na actividade do aluno.

No entanto, todos as estudos revistos ate aqui continuam a definir uma unidade de anaIise a um myel muito baixo, ao myel da "vez" dentro das unidades que propoe a analise do di scurso, sem procurar identificar e definir outra unidade de myel superior no discurso da lic;:ao analisada.

A investigar;iio na aula de LSIE a partir dos anos 80

A dec ada de oitenta foi enriquecida com inumeros contributos provenientes das diversas areas relacionadas com a aprendizagem, assim como pelos resultados dos estudos empfricos de pequena escala dentro da aula. que, por essa epoca, sofreram urn enOUIle incrementb.

Parte desses contributos ficarao plasmados num amplo estudo de observac;:ao na aula, realizado na Ora Bretanha com a finalidade de descobrir como se leva a cabo 0 processo de ensino comunicativo.

o estudo de Mitchell, Parkinson e Johnstone

Mitchell et aI. (1981), antes do desenvolvimento do seu estudo "Skills and Strategies of Modem Language Teaching". propuseram uma serie de criterios para orientar quem pretenda desenhar qualquer instmmento de analise sistematica de lic;:oes de maneira a resultar util na compreensao do processo de ensino e de aprendizagem de uma LSIE. Esses criterios sao as seguintes:

265

Revista de Letras nOS

I. Qualquer sistema deve apoiar-se na interpretac;:ao te6rica em uso sobre 0 processo de aprendizagem de Ifnguas estrangeiras. 2. as sistemas devem pennitir a codificac;:ao multidimensional do discurso da lic;:ao, isto e, devem incluir tantas dimens5es quantas parec;:am significativas sobre a base da interpretac;:ao te6rica. 3. Ao aceitar 0 conceito de discurso como urn fen6meno com a sua pr6pria estrurura intema, os sistemas de amilise devem tentar manter essa estrutura tanto quanta seja possiveI, adoptando unidades do discurso, a um ou mais mveis, como unidades basicas de analise, mais do que unidades baseadas em tempo ou unidades nao analfticas.

Com base nestes criterios, Mitchell et al. desenharam urn instrumento de observac;:ao que utilizaram num estudo processo-produto, em que codificaram 147 Iic;:5es de Frances LE, leccionadas por 17 professores em 6 colegios diferentes da Esc6cia, ao Iongo de dois trimestres escolares. Nesse estudo, os investigadores pretendiam fazer urn relat6rio descritivo do tipo de pratica que se efectuava no ensino de LSIE num quadro de ensino fonnal em aula, com uma dupla finalidade: 0

de ser compreensivel para os profissionais do ensino, e 0 de reflectir as ideias te6ricas em uso sobre 0 meio 6ptimo para a aprendizagem de LSIE nas aulas.

A primeira novidade introduzida foi a decisao de adoptar aquilo que designaram como "segmento": "Neste caso, deu-se prioridade a analise do ensino de LSIE em func;:ao de unidades 'narurais' relativamente amplas, que correspondem aproximadamente ao conceito pratico dos professores de 'actividades' de ensino (tais como 'exercicios estruturais', 'repetic;:ao' , etc.)" (Mitchell et aI., 1981: 11). A definic;:iio que os autores diio de "segmento" e a seguinte: "uma parte do discurso da lic;:ao, que apresente urn t6pico particular e que implique os participantes (professor e alunos) numa configurac;:ao de papeis linguisticos e organizativos bern determinados" (Mitchell et al: 12). Para operacionalizar esta definiS'ao estabeleceram provisoriamente cinco dimens6es analfticas: Topico, Actividade tingu[stica, Modo de Implicar;:iio do Professor, Modo de Implicar;:iio do aluno e Organizar;:iio da Turma.

Foram identificadas quatro dimens6es distintas da competencia do aluno emLSIE:

1) Compreensao e resposta mfnima 2) Compreensao e comunicac;:ao 3) Produc;:ao de estruturas da LSIE 4) Narrac;:ao

Segundo os autores, esta prova esta mais relacionada com 0 grau de consecuc;:ao (achievement) de alguns aspectos especificos da lfngua dentro de urn programa determinado do que com 0 myel de capacidade comunicativa (proficiency)

266

Revista de Letras n05

ou capacidade para realizar certas tarefas lingufsticas atraves de qualquer recurso disponfvel.

Nas suas conclus6es acabarn pOl' demonstrarque existe realmente um vazio entre as condi«6es 6ptimas para a aprendizagem de LSIE nas aulas e a pnitica da aula observada no estudo.

Este sistema, tal como 0 de Fanselow, e multidimensional, apresentando cinco dimens6es ptincipais:

I) Tema (civiliza«ao, no«6es de linguistica geral, etc.) 2) Actividade lingufstica (interpreta«ao, drill, exercita«ao, etc.) 3) Modo P (isto e, modo do professor: ensino, trabalho com grupos, etc.) 4) Modo A (isto e, modo do aluno: ouvir/perceber, falar, ler, etc.) 5) Organiza«ao da aula (toda a tunna, os alunos realizam a mesma tarefa, os alunos realizarn tarefas diferentes, etc.)

Vejamos, mais detalhadarnente, os elementos constitutivos da primeira dimensao:

ema I Civiliza<;iio: aspectos da vida e cultura no(s) pais(es) da lingua-alvo 2 No<;oes de linguistica geral: a natureza da linguagem em geral 3 Aspectos d. lfngua (curso): estruturas, fun<;oes , significados no programa ou no manual 4 Aspectos da lingua (outtos): como no anterior. mas nao inclufdos no programa ou no manual 5 Situarroes (curso): uma situarrao narrada au a.presentada nos materiais do curso 6 Situarroes (outras): como no anterior, mas nao apresentadas no curso 7 Vida real: aspectos das vidas de alunos e professores, em casa e na escola 8 Fragmentario/nao-contextualizado: nenhum tema substantivo 9 Perl'onnance do aluno: perfonnance anterior dos alunos 10 Procedimentos de ratina: organizarrao e gestao da aula 11 Outros: todos os outros temas

o esquema Target Language Observation Scheme (TALOS)

Algum tempo depois surgiu urn novo instrurnento de observa«ao, desenvolvido no Canada por Ullman e Geva (1984).

A organiza«ao do foco do conteudo pode ver-se no quadro seguinte:

267

Revista de Letras n05

Focodo Conteudodo TALOS Linguistico: 1. Som 2. Pa1avra 3. Frase 4. Discurso

Substantivo: 5. Gram:itica 6. Cullum 7. Abo rdagem Integrada

As categorias linguisticas real<;am as propriedades fonnais da lingua-alvo, e abrangem a pronilncia, 0 vocabulario, 0 uso da lingua em dialogo e textos, etc. As categorias substantivas referem-se ao ensino explicito da gramatica, ao debate sobre a cultura dos grupos falantes dalingua-alvo, e qualquer outro tema (ciencia, geografia, hist6ria, etc.) integrado no ensino da lingua.

Este instrumento, que integra urn conjunto mais vasto de instrumentos reunidos para avaliar os programas de Frances (LSIE) nos sistemas escolares canadianos, contem duas sec<;6es diferenciadas: uma sec<;ao de categorias de baixa inferencia, para a codifica<;ao em tempo real da li<;1io dos acontecimentos observaveis na aula, e outra sec<;1io de categorias de alta inferencia (escala de classifica<;1io) que requerem a codifica<;1io de impressoes subjectivas dos diversos aspectos da li<;1io. A codifica<;1io das categorias de baixa inferencia realiza-se durante periodos de 30 segundos de dura<;1io, seguidos de periodos de 90 segundos em que n1io se codifica nenhum aspecto, deixando 0 investigador livre para observar 0 que acontece na aula, e, assim, poder obter uma impress1io subjectiva global.

Essa infonlla<;aO sera posterionnente reflectida na sec<;1io das categorias de alta inferencia, numa escala de 0-4 (de "extremamente baixo" a "extremamente alto") por cada categoria, segundo as impressoes subjectivas acumuladas durante a li<;1io .

• E importante referir que os dois tipos de infonna<;ao consideram-se de valoridentico.

as dados recolhidos na sec<;ao de baixa inferencia sao submetidos a uma analise do tipo quantitativo dos acontecimentos da li<;1io. As dimens6es ou categorias principais desta sec<;ao sao: Tipos de Actividade. ConfeL/do Substantivo e Lingu(stico, Destrezas. e Meio de Ensino, entre outras, sendo a infOIll1a<;aO relativa ao aluno recolhida separadamente do "input' proporcionado pelo professor.

268

Revista de Letras n05

o esquema Communicative Orientation of Language Teaching (COLT)

o esquema de observa~ao COLT foi originalmente concebido por Allen, Frohlich e Spada (1984) com a finalidade de investigar as possfveis rela~6es existentes entre as diferen«as que ocorrem no ensino de urn programa baseado na orienta~ao comunicativa de uma segunda lingua e os resultados da aprendizagem. Faz parte de urn estudo em grande esc ala, com cinco anos de duraC;ao, que se desenvolveu no "Modern Language Centre" do Ontario Institute for Studies in Education (OISE), em Toronto. Esse projecto, conhecido como Development of Bilingual Proficiency, deriva de urna revisao das ideias actuais sobre 0 ensino comunicativo de lfnguas.

Antes do desenvolvimento do seu esquema de observac;ao, Allen et al. tra«arn o quadro dos requisitos considerados necessfuios para poder abordar urn estudo deste tipo: "Pararealizar urn estudo ( ... ) deste tipo, tern de securnprirpelo rnenos tres condic;Oes previas: 1) Deve propor-se urn modelo de cornpetencia comunicativa; 2) Deve desenvolver-se e validar-se uma serie de "testes" paraavaliar a competencia comunicativa dos alunos; 3) Devem criar-se e testar-se uma serie de categorias de observa«ao que relacionem 0 que sucede na aula com os resultados da aprelldizagem" (Frohlich et aI., 1985: 28).

o contelido do esquema COLT estli representado no quadro seguinte:

269

Revista de Letras n05

ConteUdo do COLT

Gestao Lingua Outros temas

3. Forma: por exemplo , 7. Referencia escrita: par 1. Proced imento : por gramatica ou pronlincia exemplo. sala de aula. exempl0 organizar uma 4. Fun,ao: por exemplo. detalhes pessoais actividade pedidos ou convjtes 8. Referencia limitada: por 2. Discip lina : por 5. discurso: por exemplo. exemplo. famIua. exemplo, repreender os compreemsao textual comunidade. escola alunos 6. sociolinguistica: par 9. Referencia ampla: por

exemplo. diferen~a entre exemplo, assuntos registos fonnais e infonnais mundiais. imaginac;ao

o esquema COLT e compos to por duas partes: a Parte A, que apresenta uma serie de categorias derivadas das questoes pedagogicas que aparecem na literatura sobre 0 ensino comunicativo de Ifnguas; a Parte B, cujas categorias retlectem as questoesresultantes da investiga~ao sobre a aquisi<;ao daLl e daL2.

A Parte A contem cinco parametros principais, desenhados para medir 0

grau orienta~ao comunicativa de urn determinado tipo de implementa<;1io: Actividade. Organizat;iio de Participantes, Conteudo, Modalidade do Aluno e Materiais. Esta parte utiliza-se e codifica-se durante 0 tempo real da observa~ao e procura descrever os eventos da aula a nivel de actividade, que se converte na unidade basica de analise do esquema de observa~ao.

A Parte B procura analisar as actividades ao nfvel da interac~ao verbal. Para isso, seieccionaram-se sete caracteristicas comunicativas que possam medir:

I) ouso daL2 2) 0 grau em que se da aos alunos oportunidade de produ<;ao da Ifngua sem restri<;oes linguisticas impostas pelo professor 3) 0 uso do discurso ampliado 4) ainicia~ao do discurso 5) a reac<;ao ao significado do que se diz 6) a eiabora<;ao sobre 0 que os outros disseram 7) a troca de infonna<;ao desconhecida ou relativamente imprevisivel

A codifica~ao das categorias da parte B realiza-se apos a sessao, a partir de grava~oes audio.

270

Revista de Letras nOS

A primeira observar;ao realizada com 0 COLT foi aplicada, com a intenr;ao de testar 0 instrumento, a treze tut mas nas quais se leccionavam quatro programas diferentes de L2 (3 de Frances e I deIngles) . Cada tUllna foi visitada duas vezes por dois observadores. Os periodos de observar;ao oscilavam entre 30 e 100 minutos, e as aulas foram gravadas em audio. Os resultados desse primeiro teste mostram que muitas das categorias descritivas introduzidas na ParteAdo COLT sao capazes de captar as diferenr;as entre os quatro programas observados, especial mente as categorias de "Content" e de "Materials". Para caracterizar cada programa segundo o grau de orientar;ao comunicativa, os autores seleccionaram os aspectos mencionados com mais frequencia na literatura sobre 0 ensino comunicativo de linguas, atribuindo a cada program a urn conjunto de pontuar;Oes que dependia da percentagem de tempo dedicado a cada uma das seguintes categorias:

• Actividades de trabalho em gropo; • Actividades centradas no significado; • Controlo do tema pelo professor; • Uso de textos ampliados; • Uso de documentos autenticos, 'realia', e materiais serni-estruturados.

Os resultados obtidos levaram a equipa a realizar urn segundo estudo, desta vez processo-produto, para 0 qual seleccionaram oito turmas, da area metropolitana de Toronto, nas quais todos os alunos seguiam 0 mesmo tipo de programa: ensino do Frances como L2, com urna frequencia de aulas de urna hora diana. Anterionuente it observar;ao, foi aplicada urna sene de pre-testes aos alunos. PostenOlmente, durante o ano escolar fizeram-se quatro visitas a cada turma, que foram observadas com 0

instrumento COLT. Apas 0 fim das observar;6es, aplicou-se-lhes urn pas-teste com os mesmos conteudos do pre-teste. Antes de realizar uma correlar;ao entre os resultados da observar;ao e os da avaliar;ao, os investigadores "ordenaram" as oito aulas observadas num continuo em cujos extremos se situariam as aulas mais "experimentais" (mais comunicativas) e mais analfticas (menos comunicativas), segundo a classifica<;ao de Stern ( 1981). A analise do COLT mostrou que nenhuma das aulas era 0 protatipo de nenhum dos extremos, mas que se encontravam em posi<;6es intemll~dias ao longo da escala.

A anlilise de correla<;ao entre os resultados da observa<;ao e os da avalia<;ao levaram os investigadores it conclusao de que os alunos beneficiam geralmente mais de uma abordagem mais experimental na qual se dedique relativamente mais tempo a aspectos como "information gap", reac<;ao it mensagem e incorporar;ao do tema. Do mesmo modo, observaram-se correlar;6es positivas entre diversas actividades centradas na fOltna e diIigidas pelo professor e as pontua<;6es do pas-teste, 0 que levou a considerar que a combina<;ao de aspectos analiticos e aspectos expenmentais podem apoiar-se mutuamente 0 que e essencial na aula.

271

Revista de Letras nOS

Urn problema relacionado com este esquema e a falta de descritores especfficos para os diversos tipos de actividades levou 11 impossibilidade de distinc;:iio entre actividades comunicativas pedagogicamente eficazes e actividades comunicativas pedagogicamente niio-eficazes. Urn outro problema observado neste esquema eo seguinte: ao estar dividido em duas partes, uma para a observac;:lio em tempo real e outra para ser codificada a partir das gravacroes, nao e urn esquema pratico para aplica'tao pelos pr6prios professores que desejem analisar os processos seguidos nas aulas.

Os esquemas de observac;:lio descritos acima, desenhados com a finalidade de observar aulas de Lingua Estrangeira (L2), apresentam uma grande variedade de categorias e dimensoes para analisar aspectos semelhantes. Uma analise mais detalhada mostra que praticamente todos coincidem em algumas dimensoes, nomeadamente a identifica<;:ao dos participantes individuais da interacc;:ao, ou seja, 0

professor e os alunos, com diversos graus de especifica<;:ao (toda a turma, grupos, pares, individuos). Porem, os tiltimos tres dos esquemas descritos, para aMm de apresentarem as dimensoes anteriores, incluem ainda 0 tema e 0 contetido a serem analisados. A partir daqui as coincidencias sao menores.

Assim, e, de algum modo, possfvel afumar-se que nenhum dos esquemas inclui todas as dimensoes de infonnac;:lio potencialmente relevantes sobre a interacc;:ao na aula, 0 que, porem, nao invalida a sna utilidade.

As considerac;:5es anteriores colocam 0 problema da validade e da fiabilidade dos instrumentos referidos. As referencias dos criadores dos instrumentos a estes dois aspectos e muito superficial e relativamente pouco fundamentada pelo que os resultados nos conduzem 11 conclusao de que as questoes relativas 11 fiabilidade e 11 validade dos instrumentos nlio foram tratadas com os cuidados necessarios pelos seus autores. Coloca-se, assim, a necessidade de 0 desenho de futuros instrumentos de observacrao atribufrem uma atenc;:ao especial as problematicas da validade e da fiabilidade, de maneira a que esses instrumentos possam vir a gozar de possibilidades de aplica<;:lio verdadeiramente generalizaveis.

272

Revista de Letras nOS

BffiLlOGMFIA

ALLEN, J.B.P. e SWAIN, M. (eds.) (1984). Language Issues and Education Policies (ELT Documents 119). Oxford. Pergamon Press .

••

AT J EN, J.P.B.; FROUCH, M. eSPADA, N. (1984). The communicative orientation oflanguage teaching: an observation scheme. In J. Handscombe; R.A. Orem e B.P. Taylor (eds.), On TESOL '83. Washington, (D.C.): TESOL.

ALL WRIGHT, D. (1988). Obsen'ation in the Language Classroom. London: Longman.

AI J WRIGHT, R. (1980). Thms, topics, and tasks: patterns of participation in language learning and teaching: an observation scheme. In D. Larsen-Freeman (ed.), Discourse Analysis in Second Language Acquisition Research. Rowley (Mass.): Newbury House, pp. 165-187.

BAlLEY, L.G. (1975). Observing foreign language teaching: a new method for teachers, researchers, and supervisors. Foreign Language Annals 10: 641-648.

BELLACK, A.; KLIEBARD, H.; HYMAN, R.T. e SMITH, F.L. (1966). The Language of the Classroom. New York: Teachers College Press.

BOWERS, R. (1980). Verbal Behaviour in the Language Teaching Classroom (Tesede Doutoramento). Reading: University of Reading.

CHAUDRON, C. (1988). Second Language Classrooms (Research on teaching and leaming). Cambridge: Cambridge University Press.

CHOMSKY, N. (1959). Verbal Behaviour Review, Language, 35, ELUS, R. (1990). Instruction and Second Language Acquisition: leaming in

the ciasslVom. Rowley (Mass.): Basil Blackwell. FANSELOW, J. e CRIMES, R. (eds.) (1976). 011 TESOL '76. Washington (D.C.):

TESOL. FANSELOW, J.F. (1977). Beyond Rashomon - Conceptualizing and describing

the teaching act, TESOL Quarterly, 11 (I), 17-39. FLANDERS, N.A. (1960). Interaction Analysis in the Classroom: A Manual

for Observers. Ann Arbor: University of Michigan Press. ----- (1970). Analyzing Teaching Behaviour. Reading: Addison-Wesley. FROHLICH, M.; SPADA, N. e ALLEN, J.P. (1985). Differences in the

communicative orientation ofL2 classrooms. TESOL Quarterly, 19,27-56. JARVIS, G.A. (1968). A behavioural observation system for classroom foreign

language skill acquisition activities. Modem Language JoumaI52(2): 335-341. LONG, M.; ADAMS, L.; McLEAN, M. e CASTANOS, F. (1976). Doing things

with words: verbal interaction in lockstep and small group classroom situations. In J. Fanselow e R. Crimes (eds.), On TESOL '76. Washington (D.c.): 'IESOL, pp. 137-153.

LONG, M.H. (1980). Inside the 'black box': methodological issues in research on

273

Revista de Letras n05

language teaching and learning. Language Leaming, 30, 1-42. MITCHELL, R.; PARKINSON, B. e JOHNSTONE, R. (1981). The Foreign

Language Classroom: An Observational Study. Stirling (Scotland): Stirling Educational Monographs, n° 9, University of Stirling.

MOSKOWnZ, G (1971). Interaction analysis: a new modem language supervisor. Foreign Language Annals, 5,2, 211-221.

------- (1976). The classroom interaction of outstanding foreign language teachers. Foreign Language Annals, 9,135-143 e 146- 157.

NAIMAN, N., FROHLICH, M., STERN, H. e TODESCO, A. (1978). The Good Language Leamer. Research in Education Series 7. Toronto: OISE Press.

NUNAN, David (1992). Research Methods in Language Leaming. Cambridge: Cambridge University Press.

POUlZER, R.L. (1970). Some reflections on «good» and «bad» language teaching behaviors, Language Learning, 20, 31-43.

ROSENSHINE, B. e FURST, N. (1973) . The use of direct observation to study teaching. In R. Travers (ed.). Second Handbook of Research on Teaching. Chicago: Rand McNally, pp. 122-183.

SCHERER, A. e WERTHEIMER, M. (1964). A Psycho linguistic Experiment in Foreign Language Teaching. New York: McGraw-Hill.

SELIGER, H.W. e LONG, M. (eds.) (1983). Classroom Oriented Research in Second Language Acquisition. Rowley (Mass.): Newbury House.

SINCLAIR, J. e COULTHARD, M. (1975). Towards an Analysis of Discourse. London: Oxford University Press.

SKINNER, B.P. (1957). Verbal Behavior. New York: Appleton Century Crofts. SMITH, P.D. (l970).A comparison of the cognitive and audio lingua/ approaches

toforeignlanguage instruction: the Pennsylvaniaforeign language project. Philadelphia: Center for Curriculum Development.

STERN, H.H. (1981). Thefonual-functional distinction in language pedagogy: a conceptual clarification. In J.G Savard e L. Laforge (eds.), Proceedings of the 5th Congress of L 'Association Internationale de Linguistique Appliquee. Quebec: Les Presses de I 'Universite Laval.

ULLMAN, R. e GEV A, E. (1984). Approaches to observation in second language classes. In J.B.P. Allen e M. Swain (eds.), Language Issues and Education Policies (ELTDocuments 119). Oxford. Pergamon Press.

_______ (1982). The Target Language Observation Scheme (TALOS). New York Board of Education, Core French Evaluation Project. Ontario Institute for Studies in Education, Toronto.

VAN LIER, L. (1988). The Classroom and the Language Leamer. London: Longman.

274