PALAVRAS VIVIDAS Um estudo de caso sobre os escândalos de corrupção no Brasil. 2009 (Monografia...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PALAVRAS VIVIDASUm estudo de caso sobre os escândalos de
corrupção no Brasil
Claudia Fioretti Bongianino
Claudia Fioretti Bongianino
PALAVRAS VIVIDASUm estudo de caso sobre os escândalos de
corrupção no Brasil
Monografia apresentada comorequisito parcial para aobtenção do título deBacharel em CiênciasSociais, ênfase emantropologia.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Daniel S. SimiãoProf. Dra. Deborah Lima
3
Agradeço às pessoas queridas que fazemparte da minha vida: àquelas que estãocomigo desde sempre e que sempreestarão por perto; àquelas que se fazempresente embora estejam distantes;àquelas que já não estão comigo mas sãoimportantes pra mim. Agradeço aosprofessores que tive ao longo da minha
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formação e aos colegas do PET, que medespertaram novas abordagens, novasinquietações, novas sensibilidades.Agradeço ao professor Daniel Simiãopela orientação em minhas pesquisas e àprofessora Deborah Lima pela atençãoque dedicou à minha monografia.Agradeço, por fim, aos professoresMário Fuks, Bruno Reis Renan Springer eEduardo Vargas pela ajuda ao longo docurso, e à professora Léa Perez, porter me despertado o amor pelaantropologia.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS
Figura 1 - Foto de RobertoJefferson ........................................................................... 13
Figura 2 - Foto de MiroTeixeira .................................................................................. 13
Figura 3 - Capa da Veja cuja menção, no alto, à esquerda,diz: “Exclusivo: o escândalo da compra do PTB pelo PT saiu por 10milhões de reais .......... 14
Figura 4 - Foto de JoséDirceu ...................................................................................... 15
Figura 5 - Foto de JoséGenuíno.................................................................................... 16
Figura 6- Capa da Veja cuja menção, no alto, diz:“Exclusivo: o vídeo da
corrupção em Brasília[...]”............................................................................. 18
Figura 7 - Sequência de 18 capas da Veja sobrecorrupção .........................................19
Figura 8 - Edição da Veja que retrata os corruptos comouma
praga deroedores......................................................................................... 21
8
Figura 9 - Edição da Veja que retrata Roberto Jeffersoncomo
“O homembomba” .................................................................................... 22
Figura 10 - Ilustração da reportagem que retrata Roberto Jefferson como ‘lixo’ escondido sob o tapete ................................................................................ 23
Figura 11 - Foto de Silvio Pereira publicada na segundacapa da Veja inteiramente dedicada àcorrupção ................................................................................ 24
Figura 12 - Terceira capa da Veja inteiramente dedicada à corrupção ......................... 25
Figura 13 - Ilustração da reportagem que retrata Aldo Rebelo e José Dirceu como bombeiros .................................................................................................... 26
Figura 14 - Edição da Veja que retrata Roberto Jefferson derrubando Delúbio
Soares 2005 .................................................................................................28
Figura 15 - Quinta capa da Veja inteiramente dedicada à corrupção ........................... 30
Figura 16 - Foto de Lula e José Dirceu ilustrando um nocaute .................................... 31
Figura 17 - Foto de Marcos Valério, o “lobista mineiro” ............................................. 32
9
Figura 18 - Capa da última Veja de junho de 2005 ...................................................... 33
Figura 19 - Imagem da estrela do PT nos jardins da Alvorada..................................... 33
Tabela 1 - A corrupção nas edições da Veja entre 14 demaio e 25 de
junho de2005 ............................................................................................. 19
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 Pensando o Brasil: escândalo, corrupção e cultura .................................... 8
PRIMEIRO CAPÍTULO
2 Construindo “O Mensalão”: denúncia, escândalo e corrupção .............. 12
2.1 Denúncias de corrupção ................................................................................ 12 2.2 Escândalo dos Correios ................................................................................. 17 2.3 ‘Escândalo do Mensalão’ ............................................................................... 27
SEGUNDO CAPÍTULO
3 Pensando o “Escândalo do Mensalão”: denúncia, escândalo e
corrupção ..................................................................................................... 353.1 Escândalo? ....................................................................................................35 3.2 Corrupção? .....................................................................................................36 3.3 Política Brasileira? ......................................................................................... 41
11
TERCEIRO CAPÍTULO
4 Pensando a corrupção no Brasil ................................................................. 47
4.1 Vínculos políticos? ....................................................................................... 474.2 Relações formais? ......................................................................................... 494.3
Trocas? .......................................................................................................... 51
CONCLUSÃO
5 Relações em relação: O ‘ Mensalão’ e os escândalos de corrupçãono Brasil..................................................................................................... 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 59
12
INTRODUÇÃO
1 Pensando o Brasil: escândalo, corrupção e cultura
Escândalos de corrupção marcam o cenário atual da
política brasileira. No entanto, esse fato aparentemente
consensual apresenta uma questão um tanto quanto
intrigante: a corrupção permanece no Brasil, embora seja
condenada como escândalo; mais do que isso, a corrupção
permanece escadandalosa, embora seja do conhecimento de
todos o fato de ela existir de maneira corriqueira. Esse
aparente paradoxo parece demonstrar-se de maneira
particularmente evidente no caso do ‘Escândalo do
Mensalão’, o qual está relacionado a um esquema de
pagamentos mensais para que deputados votassem a favor de
projetos de interesse do Executivo. Efetivamente, essas
práticas não tinham despertado muita atenção até serem
denunciadas por Roberto Jefferson, em entrevista concedida
à Folha de São Paulo em junho de 2005, quando passaram a
ser definidas como corruptas e tornaram-se escandalosas.
Talvez a chave de leitura para essa questão possa ser
encontrada no fato de que a própria definição do que seja
13
corrupção assenta num profundo dissenso. Conforme aponta a
maioria dos estudos realizados sobre a prática da
corrupção, as diferentes sociedades e os diversos grupos no
interior de cada sociedade não concordam quanto a que ações
especificamente seriam corruptas e corruptoras.
Especificamente no Brasil, como mostra Marcos Otávio
Bezerra (1995), a definição de corrupção não é absoluta,
sendo extremamente difícil traçar um limite entre o que é
corrupção e o que não é, entre o que é lícito e o que não
é.
Um exemplo disso é a fala do empresário Emílio
Odebrecht (JORNAL DO BRASIL, 24 mai. 1992), quando indagado
sobre o que considera corrupção:
Eu acho que a sociedade toda é corrompida e elacorrompe. Hoje para o sujeito resolver algumacoisa, até para sair de uma fila do INPS, encontraseus artifícios de amizade, de um presente ou de umfavor. Isso é considerado um processo de suborno. Osuborno não é um problema de valor, é a relaçãoestabelecida. (BEZERRA, 1995, p. 11)
Nesse trabalho, procuro estudar o ‘Escândalo do
Mensalão’, retomando o material publicado na revista Veja
nos meses de maio e junho de 2005. Dessa forma busco
analisar a percepção que as pessoas têm da corrupção e o
modo como reagem a ela, assim como quais práticas são
14
percebidas como corruptas e o modo pelo qual as pessoas dão
sentido a elas.
Sendo a Veja a revista semanal de informação mais lida
no Brasil, acredito que o estudo do material publicado nela
durante o mês da denúncia de Roberto Jefferson e durante o
mês anterior me permitiu ter acesso a essa dimensão
escandalosa do ‘Mensalão’. No entanto, estou ciente de que
a abordagem da Veja corresponde a apenas um dos olhares
possíveis sobre essa questão, um olhar inevitavelmente
enviesado. Não desconsidero a possibilidade de manipulação
da informação por parte da mídia, mas escolho realizar uma
discussão em outra linha, isto é, voltada para a análise
das definições e explicações para a corrupção que podem ser
extraídas do material publicado por Veja no período
especificado acima. Em outras palavras, tomo a forma como
se constrói uma “denúncia” nas matérias de Veja como fonte
para compreensão do que pode ser visto e conceituado como
‘escândalo’ e como ‘corrupção’ na sociedade brasileira
neste momento.
Com efeito, os dois meses de revista Veja que analiso
são de certa forma, o campo da minha pesquisa. Dediquei um
15
mês da minha pesquisa para mergulhar nessas páginas, lendo
e relendo as reportagens, atentando para as palavras e
imagens contidas nas edições. Procurei explorar ao máximo o
estranhamento causado pelo fato deu não ser uma leitora uma
leitora assídua de jornais e revistas, muito menos da Veja.
Conhecia alguns dos fatos narrados pelas reportagens e
havia realizado uma revisão bibliográfica sobre escândalo,
corrupção e sistema político brasileiro. No entanto, a
maior parte daqueles fatos e, sobretudo daqueles argumentos
e daquelas ilustrações, me eram estranhas. Vivenciei o
texto da Veja, esforçando-me para captar a perspectiva das
pessoas que estavam presentes nas palavras contidas nas
cartas e reportagens desses dois meses da revista. Atentei
para a maneira como elas justificavam publicamente suas
atitudes e opiniões, buscando compreender como as palavras
contidas na Veja ganhavam vida ao serem lidas, comentadas,
contextualizadas, retomadas, enfim, vividas pelos leitores
da revista, pelos seus repórteres e pelos políticos que
eram citados por ela.
Assim, no primeiro capítulo busco descrever a maneira
pela qual o ‘Mensalão’ transformou-se em um escândalo,
16
mostrando os passos da seqüência por meio da qual o
‘Mensalão’ foi amplamente divulgado, dramatizado, rotulado
e executado, sendo convertido em motivo de execração, por
meio desse rito. Além disso, procuro explicitar alguns
processos ritualizados, nos quais determinadas ações eram
esperadas, por meio dos quais os argumentos construídos em
torno da denúncia de ‘Mensalão’ passaram pela condição
necessária para transformar-se em escândalo.
No segundo capítulo, relaciono a descrição feita no
primeiro capítulo com a bibliografia disponível sobre
escândalo, corrupção e política brasileira. Nesse sentido,
aponto para as definições e para as interpretações
formuladas acerca da corrupção pelos repórteres da revista
Veja, por seus leitores e pelos políticos citados por ela.
Paralelamente, retomo os estudos desenvolvidos por Sherman
(1990) e por Thompson acerca da temática do escândalo;
revejo a argumentação de uma série de autores sobre
corrupção; lanço mão da teorização de Kant de Lima (2008)
sobre cidadania e daquela esboçada por Abranches (1988) e
Cintra (2004) acerca do sistema político brasileiro; por
17
fim, exploro o estudo de Chaia et alii (2001) sobre recentes
escândalos políticos no Brasil.
No terceiro capítulo, analiso mais especificamente os
estudos antropológicos realizados acerca da corrupção no
Brasil, tendo como referência os estudos recentes de
Bezerra acerca da corrupção, das relações estabelecidas
entre os políticos e das dinâmicas envolvendo recursos
públicos no Brasil. Para pensar algumas das questões
exploradas por Bezerra, retomo as noções clássicas de dádiva
e de pessoa moral, sem pretender, no entanto, colocar as
trocas políticas brasileiras no mesmo plano ético e
epistemológico que o sistema de Mauss (2003).
Finalmente, concluo o trabalho argumentando que a
corrupção no Brasil apresenta diferentes definições e
interpretações, sendo que os atores parecem ter uma
explicação para o fato de a corrupção permanecer embora ela
seja condenada escandalosamente. Além disso, a corrupção
brasileira parece estar fundamentada em características
específicas da ética e da moral brasileira, assim como em
uma configuração peculiar do sistema político no Brasil. No
entanto, parece haver alguns elementos que diferenciam a
18
corrupção de práticas análogas a ela, comumente realizadas
e aceitas, fazendo com que a partir de determinado momento
essas práticas sejam taxadas de corrupção, sejam
denunciadas e se tornem um escândalo, como no caso do
‘Mensalão’.
19
PRIMEIRO CAPÍTULO
2 Construindo “O Mensalão”: denúncia, escândalo e
corrupção.
2.1 Denúncias de corrupção
Em meados de 2005, subitamente todos estavam
escandalizados com a corrupção. Não se falava em outra
coisa: ‘Mensalão’. Sinceramente, na ocasião não me
preocupei em saber detalhadamente do que se tratava.
Imaginei que, mais uma vez, políticos haviam sido
denunciados por participar de algum esquema ilegal de
distribuição de recursos públicos. No entanto, para meu
espanto, todos pareciam extremamente preocupados em saber.
Tanto alarde se devia ao fato de que alguns dias
antes, precisamente em 6 de Junho de 2005, Roberto
Jefferson, então deputado pelo PTB (Partido Trabalhista
Brasileiro), havia concedido uma entrevista ao jornal Folha
de São Paulo, denunciando um esquema de pagamento de mesada
a deputados para votarem a favor de projetos de interesse
do Poder executivo. Mensalmente Delúbio Soares, tesoureiro
do PT (Partido dos Trabalhadores), entregaria 30 mil reais
20
a líderes ou presidentes de partidos da base aliada, como o
PP (Partido Progressista) e o PL (Partido Liberal), para
que eles distribuíssem o dinheiro nas próprias bancadas em
troca de apoio nas votações de interesse do governo.
Segundo Jefferson, essa prática ilegal era comumente
denominada pelo neologismo ‘Mensalão’ nos bastidores da
política.
A denúncia foi amplamente noticiada pelas redes de
televisão nacionais e pelos principais jornais e revistas
do país. A partir de então, o neologismo ganhou ressonância
nacional e se popularizou, causando revolta geral quanto a
esse esquema do que passou a ser visto como ‘compra de
votos’ de parlamentares. O escândalo foi tamanho que foi
chamado também de ‘a maior crise política do governo Lula’.
De fato, parece ter se tratado da maior crise política e do
maior escândalo do governo Lula, mas nada disso parece
estar ligado especificamente aos fatos denunciados - e é
isso que me chama a atenção nesse episódio.
21
Efetivamente, oito meses antes da denúncia de Roberto
Jefferson, esse esquema de compra de votos de parlamentares
havia sido denunciado na edição de 24 de Setembro de 2004
do Jornal do Brasil, tendo sido inclusive denominado
explicitamente de ‘Mensalão’. Na ocasião, Miro Teixeira
(ex-ministro das comunicações e ex-líder do governo na
câmara) denunciou ao jornal o esquema de pagamento de
propina em troca de votos, que seria oferecido pelo PT a
parlamentares do PTB, do PP, do PL e também do PMDB
(Partido do Movimento Democrático Brasileiro).
22
FIGURA 1 - Foto de Roberto Jefferson, publicada na reportagem em que ele denuncia o ‘Mensalão’ em 2005.
FIGURA 2 - Foto de Miro Teixeira do PDT (Partido Democrático Trabalhista), publicada na reportagem em que ele denuncia o ‘Mensalão’ em 2004.
Conforme afirmam os autores da reportagem, Paulo de
Tarso, Hugo Marques e Sérgio Pardelas: “Chamado ‘Mensalão’,
trata-se de uma mesada fixa em troca de votos favoráveis no
painel eletrônico” (LYRA. Jornal do Brasil, 24 set. 2004).
Segundo Miro, além desse ‘Mensalão’, haveria outros
esquemas operados pelo PT por meio dos quais o partido
compraria apoio político.
Um exemplo seria o caso que havia sido denunciado pela
revista Veja alguns dias antes, na edição que saiu nas
bancas em 18 de Setembro de 20041. Segundo a reportagem da
revista, que mereceu inclusive menção na capa (FIG. 3),
Roberto Jefferson (então deputado e presidente do PTB) e
José Dirceu do PT (então ministro-chefe da Casa Civil)
teriam selado um acordo que estabelecia que o PTB apoiasse
candidatos do PT nas eleições de 2004 em troca de cerca de
10 milhões de reais.
1 A revista Veja sai nas bancas todo sábado, porém traz como data daedição a quarta-feira seguinte. Como a repercussão das notícias darevista se dá a partir da data de publicação, quando reporto aqui adata relativa à edição da revista refiro-me sempre à data em que aedição saiu nas bancas.
23
Tal apoio seria recompensado por meio de cargos
federais e liberação de emendas orçamentárias, que poderiam
ser utilizados pelos deputados para comprar material de
campanha e para ajudar os prefeitos e vereadores a ficarem
bem com suas bases. Segundo a reportagem, o então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, saberia do
acordo, mas teria “sido poupado dos detalhes pecuniários”
do mesmo, o qual faria com que o PTB se tornasse o maior
aliado do PT em Brasília, garantido também mais tempo de
televisão para o Partido dos Trabalhadores (OLTRAMARI.
Veja, edição. 1872).
24
FIGURA 3– Capa da Veja cuja menção, no alto, à esquerda, diz: “Exclusivo: o escândalo da compra do PTB pelo PT saiu por 10 milhões de reais”.
É interessante notar que o tipo de argumentação
apresentado nessa reportagem, segundo a qual o presidente
não estaria ciente dos fatos denunciados foi recorrente ao
longo dos escândalos de corrupção ocorridos no governo
Lula. Diversos jornalistas e políticos repetiram esse tipo
de argumentação e, quando estourou o ‘Escândalo do
Mensalão’, o próprio presidente estruturou sua defesa em
torno do argumento de que ele não sabia de nada.
Voltando às denúncias de 2004, em 25 de Setembro de
2004 é reportada uma nova denúncia na revista Veja, segundo
a qual haveria uma fita registrando o PT oferecendo 500 mil
reais ao PSDC (Partido Social Democrático Cristão), para
que esse partido não se aliasse ao PSDB (Partido Social
Democrático Brasileiro) nas eleições municipais de Osasco
(OLTRAMARI. Veja, edição 1873).
Nessa edição da revista, retoma-se a denúncia feita na
edição anterior, reportando os movimentos da oposição que
pedia a investigação das transações entre o PT e o PTB.
25
FIGURA 4 – Foto de José Dirceu, na reportagem que a Veja denunciaa compra do PTB pelo PT.
Fonte MARQUES, Veja, edição 1872.
Além disso, a revista traz algumas reações das pessoas
envolvidas nas denúncias: José Genuíno, presidente do PT
teria dito: “Não fizemos acordo financeiro. Fizemos um
acordo político eleitoral” (OLTRAMARI. Veja, edição 1873).
As repercussões desses eventos, porém são muito
poucas. Até mesmo na revista Veja de 25 de setembro de
2004, há apenas uma reportagem sobre as denúncias de
corrupção, o assunto não é mais tratado nem na capa nem nas
demais reportagens da edição. Na televisão, o Jornal
Nacional noticiou a denúncia feita por Veja do acordo entre
PT e PSDB ainda no dia 18 de setembro, mas se limitou a
isso (DENÚNCIA. Jornal Nacional online, 18 set. 2004). Nos
dias seguintes, nenhuma menção à denúncia de Miro Teixeira
26
FIGURA 5 - Foto de José Genuíno, publicada pela revista Veja na reportagem em que é denunciada a compra do PTB pelo PT.
Fonte: LIMA, Veja, edição 1873.
acerca do ‘Mensalão’, tampouco às repercussões dessas
denúncias. Tudo parece acabar aqui. Nas edições seguintes
da Veja nenhuma nova denúncia, nenhuma reportagem sobre
esses casos, nenhuma Carta aos Leitores sobre o assunto,
nenhuma Carta dos Leitores comentando as notícias. Enfim,
nenhuma grande repercussão dessas denúncias, das quais eu
mesma nem me lembrava antes dessa pesquisa. Nada disso se
tornou um escândalo, parece ter se tratado apenas de mais
uma leva de denúncias de corrupção que não parecem ter
significado muita coisa.
Certamente pode-se perguntar por que essas denúncias
não foram suficientemente escandalosas para passar de
denúncias a escândalos. Essa pergunta, porém, não me
proponho a responder. Limito-me a pergunta como outras
denúncias sobre os mesmos fatos se tornaram escandalosos
ou, em outras palavras, como foi construído o ‘Escândalo do
Mensalão’, seja enquanto escândalo, seja enquanto
‘Mensalão’. Percebe-se, do pouco que foi apresentado até
aqui, que não foram os simples fatos a escandalizar no caso
do ‘Mensalão’, Os mesmos fatos já haviam sido denunciados
algum tempo antes sem maiores alardes e só se tornaram
27
escandalosos em determinado contexto. Além disso, o
‘Mensalão’ enquanto conduta condenável escandalosamente só
passou a existir após ter sido denunciado e ter se
transformado em um escândalo em meados de 2005 - um
escândalo extremamente escandaloso, diria eu.
2.2 Escândalo dos Correios
Nos oito messes entre uma denúncia de ‘Mensalão’ e
outra, vários outros casos de corrupção foram noticiados,
todos sem grandes alardes. Esse estado de coisas começou a
mudar, porém, em 14 de maio de 2005, quando a revista
divulgou um vídeo flagrando um funcionário dos Correios,
Maurício Marinho, recebendo propina de empresários para
fraudar licitações.
Segundo a denúncia de Policarpo Júnior, Marinho seria
apenas mais um dos vários “políticos desonestos que querem
cargos apenas para fazer negócios escusos – cobrar
comissões, beneficiar amigos, enriquecer ilicitamente”
(JUNIOR. Veja, edição 1905). No vídeo, Marinho descreve o
funcionamento do esquema de pagamento de ‘acertos’
financeiros para entrar no rol de fornecedores dos Correios
28
e afirma que ele realiza esse esquema em nome do PTB, sob
ordens de Roberto Jefferson, o então deputado federal e
presidente do partido.
A chamada da capa da revista (FIG. 6) prometia causar
grande impacto: “Exclusivo: o vídeo da corrupção em
Brasília. A incrível seqüência do dinheiro saindo das mãos
do corruptor para o bolso do corrupto. Mais: diálogos
inesquecíveis” (VEJA, edição 1905). E o impacto realmente
foi forte. Parte desse vídeo foi ao ar nas principais redes
de televisão, mostrando Marinho embolsando 3 mil reais em
dinheiro, como adiantamento para garantir a fraude na
estatal. Em meio a isso tudo, no dia 18 de maio, a oposição
29
FIGURA 6 – Capa da Veja cuja menção,no alto, diz: “Exclusivo: ovídeo da corrupção em Brasília. A incrível seqüência do dinheiro saindo das mãos do corruptor para o bolso do
registra o pedido de abertura da CPI dos Correios, enquanto
o governo tenta obstruir sua instauração.
Na semana seguinte à divulgação do vídeo, que tinha
merecido apenas uma menção na capa da edição anterior da
revista, a corrupção ocupa toda a capa da edição de 21 de
maio de 2005. A partir daí até o final de setembro daquele
ano, todas as 17 capas seguintes da revista foram sobre o
‘Escândalo do Mensalão’ e/ou suas repercussões.
Depois dessa série de 18 capas ‘monotemáticas’, o
‘Mensalão’, a corrupção e o PT ainda aparecem nas capas,
matérias, colunas, cartas e sessões da Veja, mas não com a
mesma freqüência. Talvez isso se deva a um interesse
peculiar da população brasileira, ou da revista, pela
dinâmica política do país naquele período. Não saberia
dizer. Todavia, não tenho dúvida de que a valorização
dessas denúncias pela mídia seja um aspecto importante do
‘Escândalo do Mensalão’.
30
Voltando à edição de 21 de maio de 2005, com ela, além
de começar a série de capas sobre corrupção, começa também
a série de cartas e reportagens sobre esse tema. A edição
se abre com uma carta ao leitor, na qual a corrupção é
definida como um “câncer na alma do Brasil” (CARTA. Veja,
edição 1906), mas defende-se a possibilidade de combater
esse ‘câncer’, sendo a ação da mídia - e da Veja - uma
importante arma na luta contra a corrupção.
TABELA 1 - A corrupção nas edições da Veja entre 14 de maio e 25 dejunho de 2005
A corrupçãoaparece nas:
Veja1905
Veja1906
Veja1907
Veja1908
Veja1909
Veja1910
Veja1911
Cartas dosleitores
0 2 14 11 6 18 17
Reportagens 1 4 5 6 4 3 6
Na sessão de cartas dos leitores, por sua vez, duas
cartas sobre a denúncia de corrupção nos Correios,
publicada na edição anterior. Uma é do secretário geral do
PPS, Rubens Bueno, a outra de Cássio Taniguchi, ex prefeito
de Curitiba pelo PFL (Partido da Frente Liberal, atual
Democratas, DEM). Ambos esclarecem que não estão
31
FIGURA 7 – Sequência de 18 capas da Veja sobre corrupção.Fonte: CAPA. Veja, da edição 1906 até a edição 1923.
relacionados com os fatos narrados na edição anterior da
revista e Bueno aproveita para
cumprimentar a revista e o repórter pela excelentereportagem investigativa, em que a Veja demonstra,mais uma vez, o importante papel da imprensa nadivulgação de denúncias de corrupção, o quecontribui de maneira eficaz para o aprofundamentoda democracia e para a punição dos que selocupletam com o dinheiro público. (BUENO. Veja,edição 1906)
Nessa mesma edição da Veja, uma reportagem analisa a
mobilização do PT (a qual seria a maior realizada pelo
governo até então) para tentar barrar a criação da Comissão
Parlamentar de Inquérito para apurar o caso (CPI dos
correios), cujo pedido foi viabilizado rapidamente pela
oposição e por vários aliados. Efetivamente, Eduardo Braga,
governador da Amazônia pelo PPS (Partido Popular
Socialista) teria dito: “Lula está preocupado com a crise
política e a imagem negativa dos políticos e das
instituições” (CABRAL. Veja, edição 1906). Essa seria a
razão do governo ter lançado mão de mobilização ímpar para
angariar apoio no Congresso e convencer deputados a retirar
suas assinaturas do requerimento da CPI. Além disso, em
conversa com aliado, José Dirceu teria dito: “É impossível
que uma CPI minimamente bem feita não pegue o Delúbio e o
Silvinho”, referindo-se a Delúbio Soares, tesoureiro do PT,
32
e Sílvio Pereira, secretário geral do partido (CABRAL,
Veja, edição 1906).
A partir das outras três reportagens sobre corrupção
publicadas na edição, é possível identificar algumas
definições de corrupção fornecida pelos repórteres da
revista. Em primeiro lugar, parece tratar-se de uma prática
que transforma as pessoas em ratos ou ratazanas, ou
simplesmente em roedores do dinheiro público (FIG. 8).
Corrupção seria o ato praticado pelas pessoas
denunciadas nas reportagens citadas acima: Corrupção seria
propina, compra e venda de votos, compra e venda de
licitações; corrupção é dinheiro que escoa dos cofres
públicos para o bolso dos corruptos; corrupção é algo que
afugenta investimentos e causa turbulências políticas;
corrupção é dinheiro que deixa de ser investido em
políticas públicas; corrupção é praga, é câncer, é
imoralidade pública; é comprometimento com padrinhos
políticos e não com o interesse público (CABRAL; CARNEIRO.
JUNIOR; PETRY, Veja, edição 1906).
33
Na revista Veja de 28 de maio de 2005, Roberto
Jefferson aparece na capa como “O homem bomba” (FIG. 9).
Mais adiante, na Carta ao Leitor, Veja esclarece que a
revista publica denúncias de corrupção unicamente para
servir a seus leitores e ao interesse público. Na carta ao
leitor, a revista enfatiza mais uma vez o fato de que
publica denúncias “tendo como único objetivo servir a seus
leitores e ao interesse público” (CARTA. Veja, edição
1907). Além disso, reporta a especulação feita por
políticos governistas sobre as motivações que levaram Veja
a publicar as reportagens sobre corrupção, afirmando que:
A crise política deflagrada pelas revelações foiinterpretada pelo ministro Aldo Rebelo como umatentativa da "direita de desestabilizar governosdemocraticamente eleitos". Ainda mais dramático, osenador petista Aloizio Mercadante falou em uma"conspiração das elites contra o governo operário"(CARTA. Veja, edição 1907).
34
FIGURA 8 – Edição da Veja que retrata os corruptos como uma praga de roedores.
Fonte: CAPA. Veja, edição 1906.
Mais uma vez faço notar a recorrência do tipo de
argumentação apresentado aqui. Efetivamente, Diversos
políticos, seja nesses escândalos do governo Lula, seja em
outros escândalos de outros governos, repetiram o argumento
segundo a qual as denúncias de corrupção corresponderiam a
uma conspiração para enfraquecer o governo.
Nessa edição são publicadas mais catorze Cartas de
Leitores comentando a corrupção. Indignação e tristeza com
as denúncias, admiração pela revista Veja – esse é o tom
geral da sessão de cartas dessa edição. Também nessas
cartas é possível perceber algumas definições de corrupção,
dessa vez, fornecidas pelos leitores da revista: “uma
infecção generalizada, lamentável, que se espalha por
contágio” (CARTAS. Veja, edição 1907) - como afirmam
35
FIGURA 9 – Edição da Veja que retrata Roberto Jefferson como “O homem bomba”.
Rodrigo Gava (Curitiba, PR), José Blota Neto (São Paulo,
SP) e Irad Gantuss (Belém, PA), remetendo-se à reportagem
publicada na edição anterior da revista intitulada “Diga-me
com quem andas...” (PETRY. Veja, edição 1906). “Corrupção é
um problema causado pela falta de controle interno da
legalidade dos atos da administração pública, o qual
consiste em usar a coisa pública a favor de interesses
pessoais ou de seus aliados”, como diz Carlos Augusto M.
Vieira da Costa (Curitiba, PR); “algo que pode ser
extirpado por meio de punição ágil e exemplar”, segundo
Antônio José dos Anjos Brito (Salvador, BA); “uma praga que
pode acabar com o Brasil”, de acordo com Neneca Motta Mello
(Serra Negra, SP); corrupção é algo “absurdo, é uma
ratazana malversadora”, define Renato Santos Chaves
(Teresina, PI); conforme afirma Fernandes de Oliveira (São
Paulo, SP), corrupção são “escândalos e escândalos diários”
(CARTAS. Veja, edição 1907).
Ainda nessa edição da revista, André Petry sustenta em
sua coluna que a corrupção é “roubalheira, desvio de
dinheiro público e máfia, mas que não é enquadrada pela
lei, pois no Brasil pune-se apenas o roubo de xampu”
36
(PETRY. Veja, edição 1907). Além disso, a edição conta com
cinco novas reportagens sobre corrupção (CABRAL; FILHO;
LIMA; PATURY, SILVA. Veja, edição 1907), nas quais a
prática é retratada como “lixo escondido sob o tapete”
(FIG. 10).
A reportagem de Otávio Cabral narra uma suposta visita
feita a Roberto Jefferson pelos ministros Aldo Rebelo (do
PCdoB – Partido Comunista do Brasil) e José Dirceu. Eles
teriam implorado que Jefferson e outros parlamentares do
PTB retirassem suas assinaturas do pedido de CPI.
No encontro, Roberto Jefferson teria dito que:
estava sendo abandonado pelo governo, que o governosabia de tudo que ele, Jefferson, vinha fazendo eque, agora, ainda tinha de agüentar calado odiscurso de José genuíno, presidente do PT, segundoo qual o presidente precisava se empenhar em
37
FIGURA 10 – Ilustração da reportagem que retrata Roberto Jefferson como ‘lixo’ escondido sob o tapete.
FONTE: VITALE. Veja, edição 1907.
‘requalificar’ sua base de apoio”. (CABRAL. Veja,edição 1907)
Além disso, no encontro Jefferson teria repetido a
afirmação feita por ele a José Dirceu no mesmo dia, porém
mais cedo: “Na cadeira em que eu sentar na CPI, também vão
sentar você, o Delúbio e o Silvinho” (CABRAL. Veja, edição
1907). A Veja ressalta que os três governistas citados por
Jefferson, José Dirceu, Delúbio Soares e Silvio Pereira,
participaram diretamente da distribuição de cargos federais
entre os aliados. A reportagem termina com uma defesa da
importância da instauração da CPI, por ela ser a única
instância a ter prerrogativas de propor mudanças
institucionais com base em suas investigações.
38
FIGURA 11 – Foto de Silvio Pereira publicada na segunda capa daVeja inteiramente dedicada à corrupção.
FONTE: FILHO. Veja, edição 1907.
Segundo a reportagem, tal encontro corresponderia a um
dos vários esforços feitos pelo governo para barrar a
instauração da CPI: ameaça aos aliados que assinassem a
CPI, que deixariam de receber o dinheiro de ementas ao
orçamento e poderiam perder cargos no governo; anúncio de
aumento de gastos; liberação de emendas ao orçamento para
viabilizar obras de interesse dos deputados em seus redutos
eleitorais; tentativa de barganhar a retirada de
assinaturas no pedido de CPI nos correios em troca de
desistir de outras CPIs que pudessem ser danosas a outros
partidos.
Otávio Cabral nos conta, ainda, que no dia 24 de maio
de 2005 Roberto Jefferson e outros petebistas retiraram
suas assinaturas do pedido de CPI, mas que todo esforço do
PT parece ter sido em vão, pois a CPI é instaurada em 25 de
maio de 2005. Em meio a isso tudo, Lula parece mostrar
despreocupação, pois, segundo a Veja, “Lula sabe melhor do
que ninguém que as denúncias de corrupção e o
aproveitamento político delas pela oposição fazem parte do
jogo democrático normal” (CABRAL. Veja, edição 1907).
39
Na Veja de 04 de junho de 2005, continuam as denúncias
de corrupção. Dessa vez tratam-se de petistas que aceitam
propinas para permitir que madeireiras devastem parte da
Amazônia (MIZUTA; RIZEK. Veja, edição 1908). Nessa revista,
encontram-se cinco reportagens sobre corrupção (CABRAL;
JUNIOR; MIZUTA; NUCCI; RIZEK. Veja, edição 1908) e onze
novas Cartas de Leitores indignados com as denúncias e
parabenizando a revista. Daniel Oliveira (Goiana, GO),
remetendo à coluna de Petry se manifesta com uma frase
potente, que faz pensar: “Na pizzaria Brasil, o ladrão de
galinhas é o único meliante punido com os rigores da lei”
(CARTAS. Veja, edição 1908). Em meio a manifestações de
revolta com a corrupção e o PT, Luis M. Santos (Niterói,
RJ) fornece mais uma definição para corrupção, “o ato de
40
FIGURA 12 – Terceira capa da Veja inteiramente dedicada à corrupção.
pôr e dispor de bens públicos”; por sua vez, Benedito
Pessioni (São Paulo, SP) fornece sinônimos para a prática,
“maracutais e conchavos” (CARTAS. Veja, edição 1908),
enquanto Mario Carlos Rogério Vercesi (Aparecida de
Goiânia, GO) diz:
no Brasil, governos, no curso da história, semovimentam muito mais para acobertar suas alianças,apesar de gratuitamente desonestas, do que paraproporcionar aos cidadãos que lhes pagam osserviços e bens que deveriam respeitar (CARTAS.Veja, edição 1908).
A edição se abre com a afirmação, na Carta ao Leitor,
de que pela primeira vez na história brasileira a crise
política não afetou a economia. Na reportagem de Otávio
Cabral da edição, o tema é novamente o esforço feito pelo
governo para tentar barrar a CPI (FIG. 13).
41
FIGURA 13 – Ilustração da reportagem que retrata Aldo Rebelo e José Dirceu como bombeiros tentando apagar o ‘fogo’ causado pelas denúncias de corrupção.
A reportagem apresenta ainda posição de Lula quanto ao
escândalo dos Correios:
quando apareceu o vídeo da corrupção nos correios opresidente Lula ficou indignado. Achou chocantes asimagens do servidor público recebendo propina de R$3000. [...] O presidente avalia que parte dabalbúrdia política no congresso resulta da ação dopróprio PT, sempre atropelado por conflitosinternos (CABRAL. Veja, edição 1908).
Por fim, Otávio apresenta uma pesquisa do instituto
Sensus, em que a corrupção aparece como o principal motivo
para que os entrevistados não tivessem orgulho do Brasil -
ganhando inclusive da violência e da pobreza (CABRAL. Veja,
edição 1908).
2.3 ‘Escândalo do Mensalão’
Em 06 de junho de 2005, dois dias depois da edição da
Veja analisada acima ir às bancas, o jornal Folha de São
Paulo publicou a entrevista em que Roberto Jefferson revela
o esquema do ‘Mensalão’:
Folha - E o que o sr. sabe?Jefferson - um pouco antes de o [José Carlos] Martinez[então presidente do PTB] morrer, ele me procurou edisse: "Roberto, o Delúbio [Soares, tesoureiro doPT] está fazendo um esquema de mesada, um‘mensalão’, para os parlamentares da base. O PP, oPL, e quer que o PTB também receba. R$ 30 mil paracada deputado. O que você me diz disso?". Eu digo:"Sou contra.” [...] No princípio de 2004, ligueipara o ministro Walfrido [Mares Guia, Turismo, PTB]e disse que precisava relatar algo grave. [...] Aífui ao ministro Miro Teixeira, nas Comunicações.
42
Levei comigo os deputados João Lyra (PTB-AL) e JoséMúcio. Falei: "Conte ao presidente Lula que estáhavendo o ‘mensalão’". [...] Fui informando a todosdo governo a respeito do "mensalão". Me recordoinclusive de que, quando o Miro Teixeira, depois deser ministro, deixou a liderança do governo naCâmara, ele me chamou e falou: "Roberto, eu voudenunciar o ‘mensalão’. Você me dá estofo?". Eufalei: "Não posso fazer isso. Vamos abortar essenegócio sem jogar o governo no meio da rua. Vamosfalar com o presidente Lula que está havendo isso".Me recordo até que o Miro deu uma entrevista ao"Jornal do Brasil" denunciando o "mensalão" edepois voltou atrás. No princípio deste ano, emduas conversas com o presidente Lula [...] eu disseao presidente: "Presidente, o Delúbio vai botar umadinamite na sua cadeira. Ele continua dando‘mensalão’ aos deputados". "Que ‘mensalão’?,perguntou o presidente. Aí eu expliquei aopresidente. [...] O presidente Lula chorou. Falou:"Não é possível isso". E chorou. Eu falei: Épossível sim, presidente. Estava presente ainda oGilberto Carvalho [chefe-de-gabinete dopresidente]. Toda a pressão que recebi nestegoverno, como presidente do PTB, por dinheiro, foiem função desse ‘mensalão’, que contaminou a baseparlamentar. Tudo o que você está vendo aí nessaqueda-de-braço é que o ‘mensalão’ tem que passarpara R$ 50 mil, R$ 60 mil. Essa paralisia resultada maldição que é o ‘mensalão’ [...]Folha - O que, em sua opinião, levou a essa situação?Jefferson - É mais barato pagar o exército mercenáriodo que dividir o poder. É mais fácil alugar umdeputado do que discutir um projeto de governo. Épor isso. Quem é pago não pensa (LO PRETE. Folha deSão Paulo, 06 jun. 2005).
Na edição seguinte da Veja, que saiu nas bancas dia 11
de junho de 2005, mais uma capa sobre corrupção. Como num
jogo de Dominó, Jefferson (protagonista do escândalo dos
Correios) derruba Delúbio Soares, o rosto do ‘Escândalo do
Mensalão’(FIG. 14). Aqui, mais uma Carta ao Leitor sobre
corrupção. Dessa vez, celebra-se a instauração da CPI dos
43
Correios e o fato da reportagem de Policarpo Junior,
publicada na Veja em 14 de maio, ter sido fundamental
nisso. Ainda na carta, a revista reitera que a missão do
jornalismo é exatamente vigiar o poder (CARTA. Veja, edição
1909).
Também nessa edição, inúmeras Cartas dos Leitores
indignadas com a corrupção e com a devastação da Amazônia.
Há também vários elogios à postura e à atitude da revista,
somando um total de seis cartas (CARTAS. Veja, edição
1909). Além disso, na sessão Veja Essa, algumas frases
interessantes: “Quando a sociedade acredita que a corrupção
é generalizada, não adianta tentar convencer as pessoas de
que elas estão erradas”, afirma João Geraldo Piquet
44
FIGURA 14 – Edição da Veja que retrata Roberto Jefferson derrubando Delúbio Soares.
Carneiro (advogado no Jornal do Brasil). “O governo paga um
preço pelas más companhias que tivemos de ter em razão de
que o presidente Lula não foi eleito com maioria no
Congresso”, diz Olívio Dutra do PT, então ministro da
cidade, “atribuindo os escândalos de corrupção aos aliados
do governo” (VEJA essa. Veja, edição 1909).
Explicação análoga à de Olívio Dutra fornece Fernando
Gabeira, ex Petista, atual deputado do PV (Partido Verde).
Em entrevista realizada por Thaís Oyama e publicada nessa
edição da Veja, Gabeira afirma: “Eles tiveram que entrar no
jogo e tiveram de comprar sua base, já que não podia buscá-
la no PMDB nem no PSDB” (OYAMA. Veja, edição 1909). Então a
entrevistadora pergunta:
em que medida essa saída fisiológica não seriatambém responsabilidade do sistema políticobrasileiro, em que o Executivo não tem maioriagarantida no Congresso e precisa ficar o tempo todotentando seduzi-lo para conseguir governar? (OYAMA,Veja, edição 1909).
E Fernando Gabeira responde:
acho que a culpa dessa estrutura é parcial. Porquese você considerar o centro-esquerda brasileira,como o PT e o PSDB, existe uma base numérica paravocê dirigir o país. O problema é que, como os doisnão vão jamais se entender, estão ambos condenadosao fisiologismo (OYAMA. Veja, edição 1909).
Nessa mesma edição da Veja, a coluna de Tales
Alvarenga apresenta outra afirmação boa para pensar:
45
do ponto de vista político [...] parecer honesto ésuficiente. [...] Entre os políticos a ética é uminstrumento maleável. Tomar dinheiro de empresáriose banqueiros antes da eleição é um ato tido comomoralmente aceitável, embora seja de fato umprimeiro passo para a corrupção (OYAMA. Veja,edição 1909).
Além disso, Tales Alvarenga afirma em sua coluna que a
denúncia de ‘Mensalão’ feita em 2004 foi abafada pelo
Congresso, “mas, a esta altura, é melhor apurar do que
abafar mais uma vez. O Brasil se cansou de tanto abafa”
(ALVARENGA. Veja, edição 1909).
Ainda na Veja de 11 de junho de 2005, quatro novas
reportagens abordam a temática da corrupção (CABRAL; SILVA;
NUCCI; COUTINHO. Veja, edição 1909). A primeira delas,
assinada mais uma vez por Otávio Cabral, resume a denúncia
de ‘Mensalão’ feita por Roberto Jefferson no dia 06 de
junho. Mensalmente Delúbio Soares entregaria 30 mil reais a
líderes ou presidentes de partidos da base aliada, como o
PP e o PL, para que eles distribuíssem o dinheiro nas
próprias bancadas, em troca de apoio nas votações de
interesse do governo.
Segundo a reportagem, um deputado Petista teria
afirmado que “o PT acredita que o Congresso é um poder
burguês. Por isso acha que lá só tem corrupto e que o jeito
46
mais fácil de controlá-lo é com dinheiro” (CABRAL. Veja,
edição 1909). Além disso, Lula teria criticado o ministro
José Dirceu “responsabilizando-o pela construção de uma
base política tão irremediavelmente fisiológica” (CABRAL.
Veja, edição 1909). O PT teria reagido às denúncias
afirmando em nota que “a relação do partido com as legendas
aliadas se assenta em pressupostos políticos e pragmáticos”
(CABRAL. Veja, edição 1909). Na introdução a essa
reportagem, afirma-se que a divisão de cargos promovida
pelo governo do PT seria a origem da crise política criada
pelos escândalos dos Correios e do ‘Mensalão’.
A edição seguinte da revista saiu em 18 de junho de
2005, após o depoimento de Jefferson ao Conselho de ética,
47
FIGURA 15 – Quinta capa da Veja inteiramente dedicada à corrupção.
concedida 14 de junho, e depois de José Dirceu ter pedido
demissão do cargo de presidente da Casa Civil, dia 16 de
junho. Nessa edição, mais uma capa sobre a crise no governo
Lula causada pelas denúncias de corrupção, que a essa
altura já se tornaram grandes escândalos. Mais uma Carta ao
leitor reiterando o compromisso da veja com a informação
visando servir ao interesse público e mais quatro
reportagens sobre corrupção (CARTA. Veja, edição 1910). Na
sessão de Cartas dos Leitores, são publicadas onze cartas
sobre as reportagens noticiadas pela revista Veja acerca
dos últimos escândalos de corrupção, duas parabenizando a
postura da revista e cinco comentando a entrevista de
Gabeira – num total de dezoito cartas relacionadas à
corrupção (CARTAS. Veja, edição 1910).
Na primeira das três reportagens sobre o ‘Mensalão’
que Veja traz nessa edição, nosso já conhecido Otávio
Cabral, relata o pedido de demissão de José Dirceu. Trata-
se, segundo o autor, de um nocaute – título da reportagem e
imagem simbolizada na ilustração (FIG. 16).
48
Ainda nessa reportagem, Otávio Cabral informa os
leitores da Veja sobre o depoimento feito por Roberto
Jefferson no processo de cassação de seu mandato, cinqüenta
horas antes do pedido de demissão de José Dirceu. Nessa
ocasião, Jefferson teria dito: “Zé Dirceu, se você não sair
daí rápido, você vai fazer réu um homem inocente, que é o
presidente Lula. [...] Rápido, sai daí rápido, Zé!"
(CABRAL. Veja, edição 1910).
Além disso, o deputado do PDT teria feito questão de
inocentar o presidente Lula e de acusar José Dirceu, José
Genoíno, Silvio Pereira e Delúbio Soares. No depoimento,
Jefferson teria apontado Marcos Valério Fernandes de Souza
como o operador do Mensalão.
Nas demais reportagens dessa edição da Veja, volta a
falar de Jefferson, mas a atenção se foca sobre Marcos
49
FIGURA 16 –Foto de Lula e José Dirceu ilustrando um nocaute.Fonte: MARQUES. Veja, edição 1910.
Valério (EDWARD; OYAMA; Veja, edição 1911). A revista
apresenta esse personagem e como ele atua. Caracterizado
pelos repórteres José Edward e Felipe Patury enquanto “o
lobista mineiro” (EDWARD. Veja, edição 1910), somos
informados de que o empresário mineiro Marcos Valério era o
encarregado do PT de distribuir o ‘Mensalão’ a deputados
através de malas de dinheiro.
Em 25 de junho de 2005 saiu nas bancas a última edição
da Veja desse fatídico mês de junho de 2005. Nessa edição,
mais uma capa sobre a crise no governo Lula causada pelas
denúncias de corrupção, as quais a essa altura já se
tornaram grandes escândalos. Mais uma Carta ao leitor
reiterando o compromisso da veja coma informação visando
50
FIGURA 17 – Foto de Marcos Valério, o “lobista mineiro”.
servir ao interesse público e mais sete reportagens sobre
corrupção (CARTA. Veja, edição 1911).
Na sessão de Cartas dos Leitores, são publicadas
dezesseis cartas sobre as denúncias de corrupção e uma
carta de Zé Geraldo, deputado federal do PT no Pará, na
qual ele confirma “o recebimento de contribuições” (CARTAS.
Veja, edição 1911).
51
FIGURA 18 – Capa da última Veja de junho de 2005.
FIGURA 19 – Imagem da estrela do PT nosjardins da Alvorada.
Fonte: OLIVEIRA. Veja, edição 1811.
Entre as seis reportagens sobre corrupção presentes
nessa edição (CABRAL; GRYZINSKI; PATURY; PETRY; PORTELA;
SABINO. Veja, edição 1911), Otávio Cabrasl sugere em sua
reportagem que o ‘Mensalão’ foi causado por uma ocupação
predatória do governo por petistas e por aliados, os quais
confundiram o partido com o Estado (CABRAL. Veja, edição
1911). Além disso, na reportagem de André Petry retoma-se o
vídeo flagrando a corrupção nos Correios, o qual é descrito
como a Pedra de Roseta da corrupção: assim como o pedaço de
granito encontrado por Napoleão teve conseqüência muito
maior que aquela imaginada no momento da descoberta, pois
permitiu decifrar os hieróglifos egípcios, o vídeo
denunciado pela Veja teve importância muito maior que
aquela intuída inicialmente, pois, segundo a revista,
permitiu descobrir o Mensalão (PETRY, Veja, edição 1911).
A partir de então, repetia-se incessantemente a
importância da mídia enquanto defensora do interesse
público; indagações constantes eram feitas sobre o fato de
Lula ter ou não conhecimento do Mensalão; manifestações
52
enfáticas de indignação com a corrupção eram pronunciadas;
o interesse foi tamanho que passou-se a acompanhar os
depoimentos dados pelos acusados.
Procurei aqui reconstituir a vida das denúncias que
vieram a se tornar o ‘Escândalo do Mensalão’. O passo
seguinte que tento dar é analisar esse percurso com a ajuda
de uma literatura acerca das temáticas do escândalo, da
corrupção e do sistema político brasileiro.
53
SEGUNDO CAPÍTULO
3 Pensando o ‘Escândalo do Mensalão’
3.1 Escândalo?
Diversos estudos têm demonstrado que um caminho
interessante a ser percorrido para tentar estudar a
corrupção, sem lançar mão de variáveis transcendentes, pode
ser encontrado na vertente de análise que busca compreender
a relação entre corrupção e escândalo. Ao focar nos
escândalos políticos e abordar os fatores que condicionam
seu surgimento, torna-se possível analisar a percepção que
as pessoas têm da corrupção e o modo como reagem a ela,
assim como quais são as práticas percebidas como corruptas
e corruptoras, o modo em que se instituem e as pessoas
envolvidas.
Efetivamente, de acordo com Lawrence Sherman (1990) o
escândalo envolve a revelação de fatos considerados
denunciáveis, sua publicação, divulgação e dramatização
(por meio de discussões, ameaças, defesas e investigações),
chegando, por fim, a sua execução (julgamento) e rotulação.
Analogamente, John Thompson (2000) define o escândalo como
54
ações e eventos que envolvem tipos específicos de
transgressões, as quais são suficientemente sérias a ponto
de exigir uma resposta pública quando as pessoas tomam
conhecimento delas. A esse respeito vale ressaltar que esse
último autor enfatiza a importância crucial da comunicação
midiática na divulgação dos escândalos políticos, uma vez
que ela transcende o tempo e o espaço dos fatos
denunciados, tendo extensão própria. Assim, ela coloca
seriamente em risco a reputação das pessoas envolvidas no
escândalo, a qual é concebida por Thompson (2000) como um
poder simbólico, isto é, como um recurso extremamente
precioso, que as pessoas buscam acumular, cultivar e
proteger. A preservação da própria reputação é uma questão
que tange sobretudo os políticos, que, por ocupar posições
públicas importantes, gozam de elevado prestígio e
visibilidade, sendo, pois, elevada também a cobrança de
comportamentos formais e pessoais adequados. Assim, a
descoberta de transgressões por parte de homens públicos –
envolvendo questões sexuais, financeiras e de mau uso ou
abuso do poder – é o que caracteriza o escândalo
55
propriamente político, o qual torna-se uma arma nas
disputas que caracterizam o campo político2.
3.2 Corrupção?
Como foi apontado anteriormente, desde a edição 1906
até a edição 1914 de Veja, as capas, cartas e reportagens
das edições freqüentemente trazem comentários enfatizando o
importante papel desempenhado pela mídia - e por Veja - ao
“servir à opinião pública” denunciando casos de corrupção.
Além disso, o material divulgado pela revista e analisado
no capítulo anterior apresenta inúmeras manifestações de
indignação com a corrupção, a partir das quais é possível
identificar algumas definições para essa prática.
Segundo definições presentes nas páginas da revista
Veja, corrupção é:
‘praga, câncer, imoralidade pública’;
‘propina, compra e venda de votos, compra e
venda de licitações’;
2 Pierre Bourdieu (2000) utiliza a definição de campo político para denominar a arena de discussão e disputa, composta pelas lideranças políticas,. Segundo ele, o campo político gozaria de relativa autonomia e seria composto por específicos objetos de disputa, que garantem prestígio e poder simbólico (acumulado por meio de capital social, capital cultural etc).
56
‘comprometimento com padrinhos políticos e não
com o interesse público’;
Nas palavras dos leitores, as definições giram em
torno de:
algo que ‘pode ser extirpado por meio de punição
ágil e exemplar’;
‘é um problema causado pela falta de controle
interno da legalidade dos atos da administração
pública, problema esse que consiste em usar a
coisa pública a favor de interesses pessoais ou
de seus aliados’;
‘escândalos e escândalos diários’;
Essas definições de corrupção estão de acordo com os
três tipos básicos de definição para a corrupção,
identificados por Arnold Heidenheimer (1970): a definição
legalista, segundo a qual haveria corrupção quando um
funcionário público se desvia dos deveres formais do seu
cargo buscando recompensas para si e/ou para outros; a
definição economicista, que considera como corrupção qualquer
utilização do próprio cargo público para maximizar a
própria renda pessoal; e a definição centrada no bem público,
57
que denomina de corrupção a violação do bem público para
obter ganhos particulares.
Yves Méni (1996), por exemplo, ao pensar a temática
da corrupção, identifica um conceito jurídico e um conceito
sociológico dessa prática. O primeiro aborda a corrupção
enquanto um delito, tal como é prescrito nas leis penais,
enquanto o segundo trata a corrupção como um desvio dos
imperativos éticos estruturados na sociedade. Ambos os
conceitos, portanto, correspondem a abordagens segundo as
quais a corrupção seria contrária ao funcionamento natural
do sistema político e introduzida por alguma causa externa,
a saber, desvio jurídico ou sociológico. Em direção análoga
seguem as argumentações de Samul Huntington (1975) e de
Rese-Ackerman (1999), para quem a corrupção seria
acarretada, respectivamente, pela ausência de
institucionalização política suficiente e pela falta de
moderação burocrática (isto é, pela presença excessiva ou
escassa demais de burocracia estatal).
Seguindo esse mesmo tipo de perspectiva, Fernando
Filgueiras (2006) defende a tese de que, no que tange
especificamente ao Brasil, a corrupção seria decorrente do
58
desenho institucional brasileiro e de sua cultura política,
que seriam insuficientes para garantir o adequado
funcionamento da democracia. Haveria, segundo ele, uma
baixa accontability3 e uma decorrente falta de sanções contra a
corrupção; haveria um personalismo exacerbado que
favoreceria o clientelismo e a patronagem; haveria um
isolamento entre o processo de tomada de decisões e as
pressões sociais; haveria um distanciamento entre o sistema
partidário eleitoral e o sistema partidário parlamentar;
uma falta de fidelidade partidária e de maiorias estáveis;
por fim, haveria um baixo índice de participação cívica e
baixos laços de sociabilidade. Em suma, haveria uma série
de incongruências entre o contexto brasileiro e os modelo
ideais de democracia, as quais seriam, segundo o autor, a
causa do elevado índice de corrupção no Brasil.
A partir do que foi exposto acima é possível perceber
que a maior parte dos estudos trata a corrupção como
exógena, embora ela seja retomada periodicamente para
explicar aquelas que são chamadas de anomalias do sistema.
Tal procedimento é altamente assimétrico, pois estabelece
3 O termo accountability se refere à prestação de contas dos atos de autoridades e governos perante a sociedade civil (FILGUEIRAS, 2006: 3)
59
de antemão o que corresponderia ao funcionamento normal e
exclui a priori da análise toda uma série de fatores.
Assim, no sistema político, o conceito de corrupção é
utilizado para dar conta de uma prática que é recorrente,
mas é sempre explicada como desvio, falta ou excesso,
irracionalidade, ignorância ou ingenuidade.
Ao proceder dessa maneira, porém, esse tipo de
abordagem deixa em aberto inúmeras questões, principalmente
no que diz respeito à freqüência dos escândalos de
corrupção no Brasil: se todos sabem que existe corrupção no
Brasil e ela é vista unanimemente como um problema a ser
combatido, porque sua existência persiste? Por que a
corrupção é escandalosa, a existência de corrupção no
Brasil não é do conhecimento de todos? Corrupção no Brasil
é proibida ou permitida? Se é proibida e escandalosa por
que persiste em existir? Se existe, por que é proibida e
escandalosa?
Além dos três tipos básicos de definições para
corrupção, apontados anteriormente, Marcos Fernandes
Gonçalves da Silva (1995) identifica um quarto tipo, a
saber, a definição do senso comum. O autor nota que, no Brasil,
60
a maior parte da população percebe a prática da corrupção
como um fenômeno associado aos políticos, às elites
econômicas e aos servidores públicos que usam o poder que
possuem para extorquir renda. Um exemplo disso é uma das
definições fornecidas pela revista Veja, segundo a qual
corrupção é o ato praticado por “políticos desonestos que
querem cargos apenas para fazer negócios escusos – cobrar
comissões, beneficiar amigos, enriquecer ilicitamente”
(JUNIOR. Veja, edição 1905).
Analogamente, Marcos Aurélio Caminha (2003) –
baseando-se na argumentação desenvolvida por João Maurício
Adeodato (1992) – sustenta que a corrupção corresponderia a
uma forma de legitimação não jurídica do poder, isto é, uma
forma de impor decisões sem o uso da força. Nesse sentido,
a corrupção no Brasil parece estar relacionada com o fato
de aqui conviverem duas éticas paradoxais, tal como
evidencia Regina Mendes (2008): uma ética é explícita e se
expressa no discurso liberal e democrático da isonomia
constitucional (segundo a qual todos são iguais perante a
lei); a outra ética é implícita e se expressa no fato de os
privilégios estarem positivados no ordenamento jurídico.
61
Como evidencia a autora, tal situação seria legitimada e
mantida pelo princípio de Ruy Barbosa, segundo o qual, no
Brasil, para promover a igualdade seria necessário tratar
desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam.
Esse princípio (chamado pela autora de ‘jusnaturalismo às
avessas’), baseia-se na suposição de que a desigualdade
jurídica seria decorrente da natural e irredutível
desigualdade social, e parece fundamentar também
determinadas sensibilidades jurídicas entre a população
brasileira.
De fato, como demonstram os estudos realizados por ela
e por Roberto Kant de Lima (2008), o sistema judicial
criminal brasileiro não é aplicado da mesma forma a todos
os cidadãos. De acordo com eles seria possível dividir a
cidadania brasileira em três classes, à maneira de José
Murilo de Carvalho (2001): a primeira classe é constituída
pelos sujeitos de status mais elevado, os quais estão acima
da lei e se beneficiam dela para defender seus interesses
por poder, dinheiro e prestígio; a segunda classe é
composta pela classe média, a qual está sujeita aos
benefícios e rigores da aplicação incerta do código civil e
62
do código penal; por fim, a terceira classe é formada pelos
indivíduos de status mais baixo, os quais estão
desprotegidos pela sociedade e pela lei, estando sujeitos
apenas ao código penal.
Esse fato parece estar profundamente enraizado na
opinião pública brasileira, como evidenciam algumas frases
das edições analisadas da revista Veja. Com efeito, foi
visto acima que André Petry, afirma em sua coluna publicada
na Veja de 28 de maio de 2005, que a corrupção brasileira
não é enquadrada pela lei, apesar de ser “roubalheira,
desvio de dinheiro público e máfia”, pois no Brasil pune-se
apenas o roubo de xampu (PETRY. Veja, edição 1907). Outro
exemplo era a carta do leitor Daniel Oliveira (Goiana, GO)
que na edição 04 de junho de 2005 sustenta, remetendo-se ao
texto de Petry, que “na pizzaria Brasil, o ladrão de
galinhas é o único meliante punido com os rigores da lei”.
(CARTAS. Veja, edição 1908).
Seguindo a argumentação apresentada acima, essas e
outras práticas jurídicas e sociais profundamente
discriminatórias parecem ser justificadas por uma
representação elitista e evolucionista da cultura e da
63
sociedade. Com efeito, a convivência de um sistema
explicitamente igualitário e implicitamente hierárquico
requer práticas e valores desiguais que compensem o
desequilíbrio decorrente da ambigüidade entre essas duas
éticas contraditórias, permitindo sua atualização,
manutenção e reprodução. Nesse sentido, a corrupção seria
um reflexo e um reforço da configuração hierárquica da
sociedade brasileira.
3.3 Política brasileira?
As edições da revista Veja citadas acima permitem
identificar não somente possíveis definições para a
corrupção, mas também algumas explicações sobre essa
prática. Como foi visto no capítulo anterior, Olívio Dutra
e Fernando Gabeira sugerem que o governo teria tido que
estabelecer parcerias por meio do ‘Mensalão’ devido ao fato
de não ter sido eleito com maioria no Congresso (OYAMA;
VEJA essa. Veja, edição 1909). Além disso, Gabeira concorda
com a entrevistadora da Veja Thais Oyahama, que afirma que
o ‘Mensalão’ corresponderia uma saída fisiológica
decorrente da configuração do sistema político brasileiro,
64
uma vez que o Executivo não tem maioria garantida no
Congresso. No entanto, Gabeira sustenta que essa
responsabilidade do sistema seria parcial, pois se o
centro-esquerda brasileiro se unisse haveria maioria para
governar, no entanto os partidos que o conformam, como o PT
não se unem e assim ficam condenados ao fisiologismo
(OYAMA. Veja, edição 1909).
Outra frase que ajudou a pensar a corrupção no
primeiro capítulo foi a afirmação de Tales Alvarenga,
segundo o qual é suficiente que os políticos pareçam
honestos, uma vez que a ética é um instrumento maleável
entre eles. Aceitar empréstimos de empresários e
banqueiros, por exemplo, é tido por eles como um ato
moralmente aceitável embora seja, de acordo com Alvarenga,
o primeiro passo para a corrupção. Além disso, ele afirma
que a denúncia de ‘Mensalão’ devia ser apuradoa, ao
contrário da denúncia de ‘Mensalão’ feita em 2004, que
teria sido abafada pelo Congresso (ALVARENGA. Veja, edição
1909).
Essa explicação nativa da corrupção, apresentada por
Olívio Dutra, por Fernando Gabeira e por Tales Alvarenga,
65
também está presente no ensaio de Roberto Pompeu de Toledo,
publicado na edição de 21 de maio de 2005. Nesse texto, o
autor fala do sistema político brasileiro como:
ritual, em vigor pelo menos desde a retomada dosgovernos civis em 1985, de retalhar a administraçãoem pedaços que são oferecidos aos agrupamentos maissuspeitos, em troca de apoio no Congresso. [...]‘Presidencialismo de Coalizão’ é como primeiroSergio Abranches, e depois toda uma corrente daciência social brasileira, chama o sistema em vigorno país, em que nunca um partido tem maioriasozinho no Congresso e precisa de aliados.‘Presidencialismo de safadeza’ seria um bom apelidopara os safados. ‘Governabilidade’ virou eufemismopara tolerância com a corrupção. (TOLEDO, edição1906)
De fato, Sérgio Abranches (1988) e Antonio O. Cintra
(2004) denominam o sistema político brasileiro de
‘presidencialismo de coalizão’, uma vez que ele seria
particularmente marcado por constantes disputas,
negociações e conflitos. Em seus trabalhos, que podem ser
lidos como uma interpretação nativa da política brasileira
(assim como as frases reportadas acima), os autores
evidenciam os valores e significados dados pelos próprios
políticos acerca do sistema político e mostram como ele é
percebido por seus agentes, abrindo assim uma janela para
entender como esses atores interpretam suas práticas. Esses
autores argumentam que haveria, no Brasil, a combinação de
um “presidencialismo imperial” com um regime
66
multipartidarista e bicameralista, no qual a representação
é proporcional. Dessa forma, para aprovar um projeto, o
presidente (embora dotado de amplos poderes) deve fazer
frente aos interesses de fortes oligarquias regionais e,
sem dispor de agremiação majoritária suficiente, deve
superar duas instâncias legislativas. Tal diversidade de
centros de poder criaria, segundo eles, a necessidade de
constituir grandes coalizões (nas fases pré-eleitoral,
eleitoral e durante o governo), tanto no eixo partidário,
quanto naquele regional-estadual. Em ambos os casos, a
autoridade presidencial seria contrastada por facções
internas ao partido, lideranças de outros partidos e
lideranças regionais, tornando instável todo o sistema de
governo. Assim, este estaria constantemente em risco, sendo
o presidente refém dos interesses (ideológicos,
programáticos ou pessoais) de seus parceiros, já que seu
desempenho político dependeria sempre de sua eficiência em
respeitar os compromissos partidários e regionais (que,
inclusive, não foram necessariamente fixados ou
explicitados na fase de formação da coalizão).
67
Os autores afirmam que apesar dessa desestabilidade
potencial, a estabilidade e governabilidade do sistema
seriam garantidas, por um lado, pelos amplos poderes e
pelos recursos político-financeiros de que dispõe o
executivo e, por outro, pela concentração do poder (dentro
do Legislativo) na Mesa Diretora e nas lideranças
partidárias. Com efeito, ao mesmo tempo em que o Executivo
necessita do Legislativo para aprovar sua pauta, o
Legislativo depende do Executivo, responsável pela
liberação dos recursos políticos e financeiros de
importância estratégica para os parlamentares, que por meio
deles podem levar obras e serviços às suas bases
eleitorais, garantindo sua aprovação junto às mesmas. Tal
competência estratégica é utilizada pelo Executivo como
prêmio para os parlamentares fiéis, configurando, pois, uma
estrutura de punições e recompensas, que rege o sistema
político brasileiro. Ao votar disciplinadamente, Executivo
e Legislativo colaboram um com o outro, reciprocamente,
permitindo a obtenção de consenso e, ao mesmo tempo, os
parlamentares se credenciariam para levar benefícios ao seu
eleitorado e assegurar a própria reeleição.
68
A lógica adotada para formar essas coalizões é a
distribuição de cargos ministeriais proporcionalmente ao
tamanho das bancadas (e, portanto, proporcionalmente ao
tamanho do potencial apoio). De fato, como comprovam os
estudos desenvolvidos por José Eisenberg (1998) e Otávio
Amorim Neto (1998), os governos que conseguiram maior
estabilidade foram aqueles que formaram coalizões com os
partidos de maior representatividade numérica no
legislativo. Todavia, uma vez que os recursos existentes
são limitados e insuficientes para contentar os diversos
interesses regionais, é inevitável o surgimento de disputas
em torno do controle de bens públicos.
Vera Chaia et alii (2001) exploram bem esse ponto ao
estudar dois casos exemplares de escândalos ocorridos em
2001, durante a última gestão do Governo de Fernando
Henrique Cardoso – a saber, o escândalo da Violação do
Painel do Senado, envolvendo o presidente do Senado Antônio
Carlos Magalhães, e o escândalo Sudam (Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia), Banpará (Banco do Estado do
Pará) e TDAs (Títulos da Dívida Agrária), envolvendo o
senador Jader Barbalho. Nesse trabalho, os autores
69
sustentam que as denúncias de corrupção estariam
relacionadas aos conflitos por interesses específicos entre
os políticos que formam a base de sustentação do governo.
De fato, nos casos analisados, os conflitos internos por
prestígio entre Antônio Carlos Magalhães (ACM) e Jader
Barbalho tinham o potencial de culminar em escândalos
políticos, isto é, em comportamentos e denúncias de
comportamentos que não condizem com as atitudes que se
esperam de homens públicos.
Nesses conflitos, os políticos usam alguns fatos
circunscritos aos bastidores da arena pública – que não são
considerados transgressivos pelos políticos enquanto
mantidos nos bastidores, mas que têm potencial de
transformar-se num escândalo político se chegarem a público
– como arma capaz de ameaçar a reputação dos políticos com
quem se está em situação de disputa. Com efeito, fatos como
a trocas de insultos e agressões verbais, ou a prática da
corrupção, adquirem significados profundamente diferentes
na construção da imagem do político se são mantidos nos
bastidores da política ou se são expostos na arena pública.
Quando são circunscritos aos bastidores, são argumentos
70
utilizados para mobilizar apoios a favor de princípios
concorrentes, mas se tornam escândalos quando são expostos
na arena pública.
Os autores demonstram que foi exatamente isso que
acabou ocorrendo nas disputas políticas entre ACM e Jader
Barbalho, que culminaram em escândalos de corrupção. Ambos
tentaram se fortalecer colocando um em risco a reputação do
outro e denunciando seus comportamentos comprometedores.
Entretanto, ambos acabaram prejudicando a própria imagem
quando as denúncias foram a público: protagonizaram
conflitos por interesses pessoais e paralisaram as
atividades do Legislativo em função disso. Assim, os
autores concluem que, se por um lado é possível formar
sólidas maiorias parlamentares aglutinando em torno do
governo federal forças políticas heterogêneas por meio de
troca de postos na máquina pública, por outro o sistema
político como um todo se torna refém dessa estratégia. Não
apenas os conflitos de interesse oriundos dela podem
paralisar e minar a reputação do governo, mas também ela
contribui para que as fronteiras entre os interesses
públicos e privados não fiquem bem definidas.
71
Nesse sentido parece-me particularmente significativa
a interpretação reportada pela revista Veja em 11 de junho
de 2005, segundo a qual a divisão de cargos promovida pelo
governo do PT seria a origem da crise política criada pelos
escândalos dos Correios e do ‘Mensalão’. A revista ancora
essa interpretação no fato de que Lula teria reagido às
denúncias responsabilizando José Dirceu pela “construção de
uma base política tão irremediavelmente fisiológica”
(CABRAL. Veja, edição 1909). Esse fisiologismo político é
uma expressão recorrente nas reportagens da revista Veja,
sendo utilizada de maneira corriqueira pela revista, dando
a entender que o sentido dela fosse amplamente
compartilhado pelos leitores. Efetivamente, fisiologismo
aqui parece indicar um funcionamento natural, mas negativo,
da política brasileira, que parece estar relacionado com a
presença de conflitos políticos que são resolvidos por meio
do estabelecimento de vínculos.
Ainda segundo a revista, o PT teria respondido às
denúncias afirmando, em nota, que “a relação do partido com
as legendas aliadas se assenta em pressupostos políticos e
pragmáticos” (CABRAL. Veja, edição 1909). Faço notar que
72
esse tipo de argumentação é recorrente em casos de
denúncias de corrupção. Talvez essa reação não seja uma
negação absoluta das denúncias, mas uma reformulação, nos
termos nativos, de práticas que apenas em alguns momentos e
contextos são definidas como corruptas.
73
TERCEIRO CAPÍTULO
4 Pensando a corrupção no Brasil
4.1 Vínculos políticos?
Marcos Otávio Bezerra (1994, 2001) introduz uma
perspectiva interessante para pensar os escândalos de
corrupção, ao estudar as relações e os princípios sociais
que estruturam as ações designadas de corruptas e
corruptoras. Tomando como exemplo as etapas de elaboração e
execução da Lei Orçamentária da União, Bezerra (2001)
evidencia como a troca de benefícios públicos por apoio
político e votos, que se estabelece no plano local,4
corresponde a um momento de uma relação que envolve também
o plano nacional e institui obrigações morais que se
estendem no tempo. Segundo ele, as esferas políticas locais
e nacionais não são autônomas, mas objetivam um sistema
complexo de relações de dependências mútuas e assimétricas
em torno das quais se articulam os interesses, as práticas
e as concepções políticas no Brasil.
4 Exemplos de estudos na literatura antropológica acerca da “barganha eleitoral” no plano local são aqueles realizados por Palmeira (1996), Goldman (2006), Kushnir (2002), Lanna (1995), entre outros.
74
Para obter votos (e se re-elegerem ou elegerem os
candidatos que apóiam), os deputados, senadores e
autoridades governamentais devem obter recursos para as
localidades a que estão politicamente vinculados (ou seja,
as próprias bases eleitorais). Todavia, para ter acesso a
esses recursos eles dependem da burocracia do aparato
estatal, que pode ou não lhes dar acesso a esses recursos.
Assim, eles mobilizam os vínculos que têm com os políticos
no plano federal para facilitar a liberação de recursos e
garantir a manutenção do apoio que recebem nas localidades
a que estão politicamente vinculados. Ainda segundo o
autor, o estabelecimento desses vínculos não está ligado,
necessariamente, ao próprio pertencimento partidário, mas a
concessão de apoio pode ser sim condicionada ao
estabelecimento de um vínculo partidário entre o político
que apóia e o que é apoiado – podendo essa ser uma das
razões para migrações de partidos.
Bezerra (2001) aponta, portanto, para a existência de
várias formas de disputas – além daquelas apontadas por
Chaia et alii (2001) – as quais são voltadas, em última
instância, para a obtenção de recursos para as próprias
75
bases eleitoras: aquelas envolvidas com a destinação de
recursos para estados e regiões, aquelas envolvidas na
aprovação de emendas individuais dos parlamentares e
aquelas relativas à alocação de recursos nos ministérios.
Todos esses conflitos estão fundamentados em uma disputa
por prestígio junto à opinião pública, que identifica a
realização de obras como um feito de determinado político
em particular. Assim, os parlamentares tentam facilitar seu
acesso aos recursos públicos, enquanto o Executivo tenta
vincular-se com os parlamentares para facilitar sua
obtenção de recursos, buscando ambos aumentar seus
prestígio junto a suas bases eleitorais. Percebe-se, pois,
que há uma forte interdependência entre políticos situados
nas instâncias locais e nacionais. Efetivamente,
Da perspectiva eleitoral, o apoio político doprefeito e vereadores é essencial para uma parcelasignificativa dos parlamentares. Para estes, opoder do prefeito resulta, entre outros aspectos,do controle sobre a administração municipal e suareputação no município. Apesar da legislaçãoassegurar ao parlamentar o direito de ser eleito emtodo o Estado, o que opera na prática, como temsido apontado por alguns autores, é uma forma dedistritalização do voto. Assim, ao viabilizar oatendimento de um "pleito", o parlamentar, ao mesmotempo, investe na continuidade da relação e renovaos compromissos políticos existentes. [...] Se aobtenção de recursos contribui para a consolidaçãodos laços, promessas que não se concretizam ou aincapacidade dos políticos para obter os recursospodem levar à sua dissolução. Isto faz com que
76
estes laços precisem ser continuamente renovados(BEZERRA, 2001, p. 9).
Conforme argumenta Bezerra (2001), quanto maior o
prestígio daquele de quem se recebe o apoio, maior a chance
de se ter acesso a recursos. Destarte, os partidos que
apóiam o governo têm virtualmente maior possibilidade de
obter recursos, agilizando e facilitando o trâmite
burocrático, por meio dos vínculos partidários, das
relações de amizade, dos compromissos políticos e do
prestígio dos parlamentares.
4.2 Relações formais?
Em um estudo anterior, Marcos Otávio Bezerra (1994)
desenvolve mais explicitamente a importância dos vínculos
para a política brasileira. Seguindo uma abordagem similar
àquela adotada por Chaia et alii (2001), o autor busca estudar
dois escândalos de corrupção, a saber, os casos Valença e
Coroa-Brastel, focando, porém, nas relações e nos
princípios sociais que estruturam as ações designadas de
corruptas e corruptoras. A partir desse trabalho, o autor
sustenta que a corrupção corresponderia à extensão da
esfera privada à esfera pública e da esfera pública à
77
esfera privada. Efetivamente, a esfera pública e oficial
brasileira seria marcada por relações formais, decorrentes
do cargo que se ocupa, mas também pelas relações pessoais
(tais como parentesco e amizade) que os indivíduos têm na
sociedade. Uma vez que essas últimas são difundidas e
socialmente institucionalizadas no cotidiano, elas não são
questionadas ou combatidas quando são estendidas à esfera
pública e às relações oficiais. Analogamente não são
questionados os ganhos que se obtém por meio das relações
pessoais, os quais são institucionalizados na esfera
privada e, conseqüentemente na esfera pública, já que uma é
estendida à outra.
O autor demonstra que a corrupção estaria fundamentada
em preceitos morais, modalidades de relações e mecanismos
sociais característicos da sociedade brasileira. Essa
fundamentação pode ser expressa por aquilo que Luis Roberto
Cardoso de Oliveira (2005), define como moralidade, a
saber, aquilo que orienta as ações e práticas na vida
cotidiana. Nesse sentido, ela corresponderia ao conjunto
culturalmente contextualizado e intersubjetivamente
compartilhado de valores, sentimentos e emoções, o qual dá
78
sentido e significado social ao ato, transformando-o em
atitude. Nesse sentido, se poderia dizer que no Brasil
haveria uma conexão íntima entre corrupção e moralidade.
De fato, como sustenta Bezerra (2001), de forma geral,
a obtenção corrupta de recursos materiais e institucionais
do Estado está inserida em um ciclo de transações que
engloba a corrupção, mas não se limita a ela. Analogamente,
interesses econômicos existem nas trocas corruptas, mas
essas últimas não podem ser explicadas apenas em termos de
interesses, mas também em função das obrigações sociais prescritas
nas relações sociais existentes entre as pessoas envolvidas
nessas trocas. O exercício de um cargo público, ou seja, de
uma função impessoal, não retira os indivíduos das relações
pessoais em que estão inseridos. Tais relações possuem um
caráter instrumental5, pois o fato de se possuir relações
pessoais com pessoas que (mantêm relações pessoais com
aqueles que) detêm recursos é, virtualmente, um meio de ter
acesso a esses recursos. Assim, as relações constituem um
5 Eric Wolf (2003) trata desse aspecto instrumental das relações pessoais, apontado por Bezerra (1994), quando analisa um tipo específico de amizade, denominado por Wolf (2003) de ‘amizade istrumental’. Diferentemente de Wolf (2003), porém, Bezerra (1994) considera essa instrumentalidade um elemento constitutivo da amizade em geral e das demais formas de relação pessoal, não apenas de um de seus tipos.
79
tipo de capital social que pode ser utilizado como uma
estratégia socialmente aceita para se alcançar objetivos
situados no plano das relações formais – como no ‘caso
Valença’ – ou para transformar interesses privados em
interesses do Estado – como no ‘caso Coaroa-Brastel’.
A análise fornecida por Bezerra (1994) do ‘caso
Valença’ nos faz perceber, pois, que a troca de favores e a
obtenção recíproca de benefícios entre pessoas com quem se
mantêm relações pessoais é intrínseca a essas relações:
Concebe-se como algo natural e legítimo recorrerdireta ou indiretamente a pessoas que ocupamposições chaves no Estado de modo que se tenhaacesso e se utilize de modo privilegiado osrecursos do mesmo. Do ponto de vista das relaçõespessoais, concebe-se como um ato socialmenteadmissível que tanto se façam pedidos pessoais aestas pessoas como que os pedidos sejam atendidos(BEZERRA, 1994, p. 31).
Uma vez que os trâmites burocráticos são lentos e
pouco eficientes, faz-se uso das relações pessoais de modo
que seja concedida atenção especial à solicitação feita por
meio do procedimento formal, quando ela é acompanhada de um
pedido pessoal. Efetivamente, a reciprocidade integrante da
moralidade brasileira implica no fato de que os pedidos
realizados a pessoas que integram a própria rede de
80
relações pessoais6 estejam fundamentados em obrigações
sociais que postulam que tais pedidos devam ser atendidos
para que essas relações sejam mantidas. Percebe-se, pois,
que essas redes de relações pessoais e de troca de favores
são dotadas de um contorno oficial, que confere a elas uma
certa legitimidade e as integra ao Estado: elas não
correspondem a um poder paralelo, mas contrariamente se
nutrem e dependem do Estado, não havendo uma
descontinuidade efetiva entre atividades cotidianas da
política brasileira e entre aquelas que são denunciadas
como corruptas. Além disso, como nos faz notar Bezerra
(1994),
é curioso constatar que as exigências e garantiasadministrativas - como no caso das licitaçõespúblicas ou as exigências técnicas - têm sidoestrategicamente utilizadas em benefício deinteresses de caráter privado. Como se operasse umaespécie de círculo vicioso, as dificuldades, osobstáculos, etc. levam às intervenções, que, porsua vez, são o que garante que as dificuldades eobstáculos estarão presentes. Trata-se, por assimdizer, de um mecanismo que se auto-perpetua namedida em que cria as próprias condições de suareprodução (BEZERRA, 1994, p. 32).
4.3 Trocas?
6 O autor emprega a noção de rede de relações pessoais para se referir ao “conjunto limitado de contatos diretos e indiretos de uma pessoa que se caracteriza por estar fundado em relações de caráter pessoal” (BEZERRA, 1994:4).
81
No entanto, Bezerra evidencia que, embora sejam
rotineiras as troca de favores e a obtenção recíproca de
benefícios entre pessoas que ocupam cargos públicos,
práticas desse tipo podem ser consideradas corruptas quando
envolvem interesses econômicos, e, principalmente, quando
os interesses individuais são colocados acima dos
interesses relacionais. Como demonstra a fala de Sérgio
Menin, concedida em depoimento à CPI, é importante frisar o
fato de se tratar de um pedido de natureza pessoal, mas sem
interesses individuais: “Apenas solicitei ao Sr. Ministro
uma atenção para o pedido, que eu desconhecia. Tampouco,
tirei proveito para minha empresa desse fato.” (D.C.N.,
15/09/88: 2340. In: BEZERRA, 1994, p.11).
Além disso, o que parece levar à denúncia de corrupção
é a não retribuição adequada, anulando a reciprocidade da
relação por colocar os interesses individuais acima da
própria relação – ao exigir, por exemplo, uma comissão
acima do preço praticado em troca do favor concedido, como
expressa a fala do prefeito que denunciou o ‘caso Valênça’:
“o que fez o rompimento do ‘esquema’ foi a comissão de 50%
cobrada”. (Jornal do Brasil de 14/01/88. In: BEZERRA, 1994,
82
p.14). Um último exemplo a esse respeito é o fato de Sérgio
Menin deixar o cargo obtido pela troca de benefícios
públicos que caracterizou o ‘caso Valença’ assim que é
feita a denúncia, demonstrando que a relação é mais
importante que os benefícios obtidos por meio dela. Com
efeito, como afirma o autor, “findam os negócios, mas as
relações persistem” (BEZERRA, 1994, p.15).
Outro aspecto importante dessas práticas, evidenciado
por Bezerra (1994), é que elas não são vividas como trocas
desinteressadas, unilaterais e independentes umas das
outras. Além disso, elas estão fundamentadas na confiança
(não sendo asseguradas por contratos formais). Parece-me
importante ressaltar, pois, que não se trata de um esquema
de trocas econômicas, uma vez que, como foi dito
anteriormente, a relação é mais importante que o interesse
individual – aspecto que absolutamente não faz parte das
trocas econômicas. Nesse sentido, considero interessante
pensar até que ponto essas práticas se assemelham ao
esquema de trocas de dádivas proposto por Mauss (2003). Não
proponho dar o mesmo estatuto ético e epistemológico às
83
trocas políticas brasileiras e ao sistema de Mauss, mas
acredito que esse ponto mereça uma reflexão mais detida.
De acordo com a formulação de Mauss (2003), o sistema
de dádiva corresponderia a uma seqüência descontínua de
atos aparentemente voluntários, generosos e gratuitos, mas
marcados pela obrigatoriedade sociológica de dar, receber e
retribuir. Nesse sistema, pessoas morais estariam unidas em
relações recíprocas de dívida e crédito, que estabelecem
vínculos e hierarquias, ambos em um só tempo, entre essas
pessoas morais. Tal sistema apresenta, portanto, um caráter
profundamente paradoxal e agonístico, pois dádiva implica
em dívida, dar significa perder - ainda que momentaneamente
- para se poder dar. Tratado pelo autor como um fato
social total, o sistema de dádivas apresenta aspectos de
natureza múltipla da totalidade social, incluindo
instâncias econômicas, jurídicas, estéticas, morfológicas,
religiosas (ritualísticas) e morais (políticas e
familiares).
Como foi antecipado acima, as troca de favores e a
obtenção recíproca de benefícios entre pessoas que ocupam
cargos públicos não são estabelecidos entre pessoas morais,
84
no sentido maussiano, isto é, sujeitos revestidos de
características sociais que lhes conferem obrigações, mas
sim entre indivíduos. O sistema político não constitui uma
totalidade como as sociedades estudadas por Mauss (2003)
que praticam o dom enquanto fato social total. Por outro
lado, não me parece exagerado sugerir que esses indivíduos
pratiquem essas trocas com base em uma obrigação moral,
ainda que não se trate de uma obrigação moral sistêmica,
como em Mauss (2003), fazendo com que nem todas elas possas
ser denominadas de trocas econômicas.
De fato, segundo a definição de Weber (1999), as
relações mantidas em coexistência e seqüência no mercado
econômico são intrinsecamente efêmeras e curtas (limitando-
se à entrega recíproca dos bens de troca), cada troca
encerrando-se em si mesma. Assim, a associação criada entre
as partes envolvidas na troca estritamente econômica também
é especificamente curta e efêmera, encerrando-se também ela
em si mesma. O contato entre os indivíduos se dá de maneira
prática, objetiva e impessoal, uma vez que estes se
orientam a partir do interesse único (compartilhado
85
conscientemente por todos os membros dessa comunidade de
mercado econômico) pelos bens de troca.
Voltando a Bezerra (1994), ele argumenta que além da
relação ser mais importante que os interesses pessoais, a
obrigação social de se atender ao pedido de uma pessoa com
quem se mantém relações pessoais seria mais importante do
que a obrigação institucional de se ater aos procedimentos
formais. Efetivamente, aquele que atende a um pedido
pessoal, em detrimento das obrigações formais decorrentes
do cargo que ocupa, também evidencia uma maior preocupação
com a relação. Nesse sentido, o ‘caso Coroa-Brastel’
fornece um exemplo interessante da importância do
investimento na relação, uma vez que, conforme foi apontado
anteriormente, ela corresponde a um meio virtual de se ter
acesso a recursos e obter benefícios.
Ao analisar esse caso, Bezerra (1994) nos faz perceber
como o empresário Assis Paim buscou "credenciar-se" junto
ao Estado, mobilizando seus contatos pessoais ou atendendo
diretamente às demandas do governo de que adquirisse
empresas em situação de insolvência. Ao proceder dessa
maneira o empresário criou condições para que seus
86
interesses junto ao Estado deixassem de ser tratados em
termos puramente formais, comprometendo-se pessoalmente com
a instituição e fazendo com que ela se comprometa com ele
sem perder suas propriedades de instituição, apenas
facilitando os trâmites burocráticos dos requerimentos
oficiais do empresário. Assim, continua o autor, por um
lado essas trocas estão de acordo com a temporalidade da
dádiva, já que os ganhos puramente econômicos do empresário
não resultam de maneira imediata do atendimento às demandas
do Estado. Por outro lado, porém, há uma explicitação da
obrigatoriedade da dádiva, uma vez que o empresário
considera que os serviços prestados ao governo devem ser
necessariamente retribuídos e que sua concessão corresponde
a uma estratégia conscientemente utilizada por ele para
obter vantagens do Estado.
87
CONCLUSÃO
5 Relações em relação: O ‘ Mensalão’ e os
escândalos de corrupção no Brasil:
Do que foi apresentado nos capítulos acima parece
precipitado afirmar que a corrupção no Brasil esteja
associada a meras ‘faltas’. Primeiramente, ela não
corresponde a uma prática unanimemente definida, tampouco
unanimemente condenada. A partir das falas extraídas da
revista Veja, é possível perceber diferentes definições e
interpretações para essa prática. Além disso, elas
evidenciam que a existência da corrupção no Brasil é do
conhecimento de todos, mas que, mesmo assim, a denúncia de
novos casos se mostra escandalosa e capaz de engendrar uma
crise política, explorada pela mídia, como no caso do
‘Mensalão’. Assim, apesar de condenada escandalosamente, a
corrupção permanece e os atores parecem ter uma explicação
para isso, a qual se expressa em termos de “fisiologismo
político”.
Ao mesmo tempo, conforme aponta Caminha (2003), a
corrupção corresponde a uma forma de legitimação não
88
jurídica do poder que se manifesta de diferentes maneiras e
estaria fundamentada na coexistência das éticas igualitária
e hierárquica, as quais se refletem na corrupção e são
reforçadas por ela. Como mostram Chaia et alii (2001) e
Bezerra (1994 e 2001), a estabilização dos governos depende
do estabelecimento de vínculos entre os políticos, e o
prestígio dos homens públicos junto a seus eleitores
depende do estabelecimento de uma interdependência entre a
esfera pública municipal e nacional, mas também entre o
executivo e o legislativo. Assim, os políticos fazem uso de
vínculos de todo tipo, inclusive pessoal, para obter acesso
a recursos públicos, levando a uma indistinção entre
público e privado.
Em tal contexto, a moralidade da reciprocidade
brasileira vê com bons olhos a obtenção recíproca de
vantagens por meio de trocas de favores entre pessoas com
quem se mantém relações pessoais, havendo inclusive uma
obrigação social em se realizar essas trocas. A
argumentação desenvolvida nesse texto sugere que tal
prática só é percebida como negativa quando coloca os
interesses pecuniários acima dos interesses políticos e os
89
interesses individuais acima dos interesses relacionais (os
quais são também individuais e econômicos, mas não apenas).
Nesses casos, a troca pode passar a ser taxada de
corrupção, caso seja denunciada e se torne um escândalo.
Parece ter sido exatamente isso o que ocorreu no
‘Escândalo do Mensalão’ em 2005. Como argumenta Sherman
(1990) Fatos considerados denunciáveis foram revelados por
Roberto Jefferson, publicados no jornal Folha de São Paulo
em 06 de junho de 2005 e amplamente divulgados na mídia.
Eles foram dramatizados em discussões, defesas e
investigações, foram rotulados de ‘Mensalão’ e, por fim,
foram executados e julgados por uma Comissão Parlamentar de
Inquérito.
Efetivamente, as ações e os eventos denunciados em
2005 envolviam tipos específicos de transgressões por parte
de homens públicos, as quais foram suficientemente sérias a
ponto de exigir uma resposta pública quando as pessoas
tomaram conhecimento delas. Gerou-se, pois, um escândalo,
uma indignação generalizada quanto aos fatos denunciados e
uma forte pressão para a instauração de uma CPI.
90
No entanto, ao contrário do que sustenta Thompson
(2001), a presença desses tipos específicos de
transgressões, por si só, não parece ter sido suficiente
para caracterizar um escândalo. Efetivamente, no caso do
‘Mensalão’, o mesmo tipo de transgressão havia sido
denunciado em 2004, sem se tornar um escândalo. Foi apenas
em 2005, quando essas transgressões foram não apenas
reveladas e publicadas (como em 2004), mas também
amplamente divulgadas, dramatizadas, rotuladas e executadas
que elas se tornaram escândalos.
Assim, parece que os escândalos de corrupção no Brasil
envolvem transgressões que só parecem suficientemente
sérias, a ponto de exigir uma resposta pública, quando são
divulgadas e dramatizadas. A corrupção no Brasil parece
tornar-se escandalosa apenas quando é divulgada e
dramatizada, como em 2005. Caso contrário, convive-se com
essas transgressões sem que elas escandalizem. Isso parece
estar relacionado com o fato de a corrupção ser uma prática
muito próxima a outras práticas corriqueiras da sociedade
brasileira, como a troca de favores, sendo muitas vezes
difícil estabelecer o limite entre uma e outra.
91
No entanto, nos escândalos de corrupção esse limite
parece ser explicitado, ao mostrar casos extremos e
escancarados de corrupção, que causam indignação, talvez
exatamente por isso. Nos escândalos, a corrupção é separada
das demais práticas sociais que lhe são próximas, como a
troca de favores, a barganha política etc. Ela é definida
como falta e relacionada àquilo que é denominado de
fisiologismo da política brasileira. Assim, a “praga da
corrupção” é completamente descolada da dinâmica social que
a fundamenta, pois corrupto é sempre o outro.
92
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