KLANGFARBENMELODIE COM PALAVRAS
-
Upload
independent -
Category
Documents
-
view
0 -
download
0
Transcript of KLANGFARBENMELODIE COM PALAVRAS
JOÃO BATISTA CARVALHO DE BRITO CRUZ
KLANGFARBENMELODIE COM
PALAVRAS: INTERSECÇÕES DA OBRA WEBERNIANA COM A
SÉRIE POETAMENOS
Monografia apresentada ao Curso de Graduação
em Música da Faculdade Santa Marcelina em
cumprimento parcial às exigências para obtenção
do título de Bacharel em Música – Instrumento.
Orientador: Profa. Ms. Deborah Rossi
São Paulo
out/2014
ii
SUMÁRIO
Lista de figuras ............................................................................................................ iv
Resumo .................................................................................................................... v
Abstract ................................................................................................................... vi
Agradecimentos ......................................................................................................... vii
Introdução .................................................................................................................... 1
Capítulo 1 – A Klangfarbenmelodie e a obra de Webern............................................ 6
1.1 O timbre no século XX e a Klangfarbenmelodie schoenberguiana..............6
1.2 A obra de Webern e a Klangfarbenmelodie weberniana.............................. 10
1.2.1 Ausência do pathos romântico..........................................................11
1.2.1.1 Redescoberta da escrita “horizontal” via formas polifônicas e
clássicas................................................................................................... 12
1.2.2 Complexidade da organização espacial e temporal...................... 13
1.2.2.1 Importância do silêncio..................................................... 13
1.2.2.2 Brevidade e coesão............................................................ 15
1.2.2.3 Multi-direcionalidade........................................................ 16
1.2.3 Variações (trabalho motívico e serial)............................................. 18
1.2.3.1 Economia intervalar.......................................................... 19
1.2.3.2 Simetrias............................................................................. 20
iii
1.2.4 Melodiadetimbres .......................................................................... 21
1.2.4.1 Fragmentação da melodia pela orquestração/registro dos
instrumentos............................................................................................. 21
1.2.4.2 (In)dependência das vozes e orquestração com poucas notas
simultâneas............................................................................................... 25
Capítulo 2 – Usos da obra weberniana na série poetamenos de Augusto de Campos . 27
2.1 Elementos gerais de semelhança e diferença da poética de Webern e da
poética de Campos em poetamenos.................. ....... ....................................................31
2.1.1 Complexidade da organização espacial e temporal – silêncio,
brevidade, multidirecionalidade........................ ....... ....................................................32
2.1.2 Klangfarbenmelodie: fragmentação da melodia, (in)dependência das
vozes.......................................................................................... ... ...............................35
2.2 Possíveis elementos de intersecção entre a composição weberniana e os
poemas da série poetamenos ........................................................................................ 36
2.2.1 poetamenos ....................................................................................... 38
2.2.2 paraíso pudendo ............................................................................... 42
2.2.3 lygia fingers ...................................................................................... 46
2.2.4 nossos dias com cimento................................................ .................. 51
2.2.5 eis os amantes............................................................. ..................... 55
2.2.6 dias dias dias .................................................................................... 61
Considerações finais ................................................................................................... 66
Referências ................................................................................................................. 70
iv
LISTA DE FIGURAS
FIG. 1 – Compasso 1-4 do Quarteto opus 22 de Webern (in CAMPOS, 2005, p.314)14
FIG. 2 – Série do segundo movimento da Sinfonia opus 21 de Webern (edição do
autor) ...............................................................................................................20
FIG. 3 – Compassos 1-10 da fuga Ricercata, manuscrito de Bach (BACH, 1747,
manuscrito do compositor)....................................................................................22
FIG. 4 – Compassos 1-5 do arranjo de Anton Webern para Ricercata de J. S. Bach.23
FIG. 5 – Compassos 6-10 do arranjo de Anton Webern para a fuga Ricercata de J. S.
Bach......................................................................................................................24
FIG. 6 – Página introdutória da série poetamenos (CAMPOS, 2001, p. 65)............27
FIG. 7 – poetamenos (poema) (CAMPOS, 2001, p. 67)........................................38
FIG. 8 – paraíso pudendo (CAMPOS, 2001, p. 69).............................................42
FIG. 9 – lygia fingers (CAMPOS, 2001, p. 71)......................................................46
FIG. 10 – nossos dias com cimento (CAMPOS, 2001, p. 73)................................51
FIG. 11 – eis os amantes (CAMPOS, 2001, p. 75).................................................55
FIG. 12 – Trecho do poema eis os amantes (CAMPOS, 2001, p. 75)....................57
FIG. 13 – Análise gráfica de Carlos Kater sobre o a 6ª variação nos cânones de A.
Webern (KATER, 1984, p.197)............................................................................58
FIG. 14 – dias dias dias (CAMPOS, 2001, p. 77)..................................................61
v
RESUMO
Em 1953, Augusto de Campos escreve a série de poemas poetamenos, peça na
qual ele se apropria de uma técnica de composição e orquestração vista em Anton
Webern: a Klangfarbenmelodie. Partindo dessa apropriação, o presente trabalho se
foca em esmiuçar como se deu o câmbio dessa técnica da linguagem musical-sonora
para a linguagem verbal-poética. Concomitantemente a isso está também um olhar
para como o poeta Augusto de Campos se apropriou não somente de uma ferramenta
técnica weberniana, e sim de toda uma reunião de características da composição de
Webern, alocando dentro da série poéticas que contam com o seu uso estrutural do
silêncio, a brevidade das peças ou até a multidirecionalidade do discurso.
Para situar essa interrelação entre as duas linguagens dadas, a análise comenta
como, de acordo com cada um dos sistemas sígnicos, as poéticas se desenvolvem. A
esse passo, nasce a compreensão de como práticas se transpõe entre essas duas
poéticas num nível mais amplo de possibilidades e aberturas. Como está dado discurso
sonoro dentro da poesia?
Palavras-chave: Poesia concreta; Poetamenos; Augusto de Campos; Anton Webern;
Intersemiótica; Obra aberta.
vi
ABSTRACT
In 1953, Augusto de Campos wrote a series of poems entitled poetamenos, a
piece in which he use a technique of composition and orchestration seen also in Anton
Webern: the Klangfarbenmelodie. Starting from the discussion of this use, this essay
focuses on analyzing how the interchange of this technique between sonorous-musical
and verbal-poetic language occured. Concurrently, there is also an observation
regarding the poet’s use of not only a technical webernian tool, but also a whole
reunion of caracteristical aspects of Webern’s, projecting inside the series, poetics that
includes a structural use of silence, briefness of the pieces and even the multi-
directionality of speech.
In order to place this inter-relation of the two given languages, the analysis
addresses how the poetics develop themselves, in each and every sign system. From
this point, it emerges new comprehension of how praxis transpose themselves in
between this two poetics on a broader level of possibilities and openings. How does
the sound speech manifests itself within poetry?
Keywords: Concrete poetry; poetamenos; Augusto de Campos; Anton Webern;
Intersemiotics; Open Work.
vii
AGRADECIMENTOS
Para concluir esse trabalho, tive a necessária ajuda e impulso de diversas forças.
Por todo o aprendizado e ajuda intelectual e psicológica, gostaria de agradecer a
algumas pessoas.
Antes de tudo, agradeço à minha orientadora Deborah Rossi pelo apoio,
incentivo e correções tão necessárias ao texto. Agradeço também ao professor Paulo
Moura pela tão preciosa orientação da minha produção quando eu ainda estava na fase
de projeto. Fica também o meu muito obrigado ao professor Matheus Bitondi, que em
suas aulas de metodologia de pesquisa foi bastante esclarecedor e atencioso. Ainda
nessa linha, fica também o meu agradecimento à Talita Takeda, que em seu auxílio de
orientação colaborou muito para o meu texto e tem me ajudado a direcionar possíveis
pesquisas futuras.
Em relação à pesquisa, fica também o meu agradecimento ao professor Sérgio
Kafejian, que me recomendou e ainda recomenda inúmeros livros que foram e ainda
tem sido reveladores e desafiadores.
Agradeço a toda minha família, em especial meus pais José Armênio e Lúcia e
meus irmãos Francisco e Luciana, pelo apoio emocional e pelo suporte (inclusive
financeiro).
viii
Cabe agradecer também aos meus queridos amigos pelo suporte e conversa,
mais especificamente ao Caio Barbosa, por sua paciência e disposição, ao Gabriel
Xavier, por sempre refutar e tentar construir junto, e ao Iago Dacol, que sempre foi
um exemplo de foco para mim. Também agradeço muito ao Gabriel Barbosa, que
sempre discute e me mostra leituras tão bacanas, além do que foi quem me ajudou a
conseguir ler e digitalizar a série poetamenos. Ainda pensando nos amigos, não
consigo esquecer de agradecer ao Clóvis Moreno, ao Caio Martins e Dudu Martins,
que, quando eu tinha 15 anos, me fizeram perceber que música contemporânea é
música mesmo. Não por menos, agradeço também o Julio Massi pela sua ajuda
(bastante didática) para as traduções do inglês para o português.
Agradeço também a Paula Duarte por sempre estar ao meu lado me auxiliando
tão carinhosamente em tantas, mas tantas coisas que nem cabe aqui listar.
Fica o meu agradecimento por fim a minha turma de monografia, da qual boas
conversas colaboraram bastante para a produção do texto.
Sobretudo, gostaria de agradecer à Faculdade Santa Marcelina por propiciar
momentos e vivências tão importantes para a minha formação como músico.
1
INTRODUÇÃO
O final do século XIX e o século XX foram profundamente marcados por
mudanças radicais nas diversas áreas das artes. Na música de concerto, Arnold
Schoenberg (1874-1951) foi personagem chave para essa reformulação das ‘regras do
jogo’ musical, propondo uma alternativa para o fazer composicional da época, com a
invenção do dodecafonismo. Anton Webern (1883-1945), compositor austríaco
discípulo de Schoenberg, utilizou-se do dodecafonismo e, além disso, ainda
(re)inaugurou do seu modo uma técnica de orquestração musical denominada
Klangfarbenmelodie ou melodiadetimbres, já vista por Schoenberg.
Nove anos após a morte de Webern, em 1953, o poeta brasileiro Augusto de
Campos (1931- hoje) escreve uma série de poemas chamada poetamenos, lançada dois
anos depois (1955) dentro da segunda edição da revista Noigandres (cf. BANDEIRA,
BARROS, 2002, p.16-17). Na primeira página da série, Augusto coloca que os
poemas que dali seguem foram feitos aspirando uma Klangfarbenmelodie
(melodiadetimbres) weberniana com palavras.
A presente pesquisa pretende examinar tanto a obra de Webern quanto a série
poetamenos, estabelecendo uma análise comparativa respondendo de qual forma
Campos se apropriou da obra weberniana e também como uma técnica musical pode
2
se transformar em uma técnica poética, pensando diretamente quais são as
potencialidades de cada uma das linguagens em questão.
Para tanto, vê-se necessária uma abordagem interdisciplinar, que ao mesmo
tempo se utilize de elementos de análise das duas linguagens (teoria da música e da
análise literária) e do uso de uma análise semiótica que possa propor uma discussão
com termos que unifiquem as duas linguagens. Dessa forma, a pesquisa torna-se um
estudo da intersemiose existente dentro da série poetamenos, ou seja, de como se dá a
soma de dois sistemas sígnicos distintos.
O uso de uma abordagem semiótica se justifica por essa obra não tratar
exatamente de poemas no sentido tradicional do termo1, e sim de poemas concretos
dos quais é notável a constituição de uma obra tríplice: ao mesmo tempo verbal,
sonora e visual. Não por menos, poetas concretos chamam essa associação de
linguagens de proposta poética verbivocovisual2. Mais um ponto que justifica essa
abordagem está na percepção de poetamenos como uma obra com uma poética
aberta, termo que Umberto Eco cunha para caracterizar as obras de arte do século XX
que tem, em sua estrutura discursiva, algum tipo de indeterminação, abertura de
significação, ambiguidade, etc (cf. ECO, 1991). Tentaremos observar, dessa forma, a
aproximação dessas várias linguagens em um resultante híbrido.
Por essas duas características - a abertura e a triplicidade - considera-se que
poetamenos foi, se não a primeira, uma das primeiras obras do movimento artístico
denominado poesia concreta, já que ela reestrutura a noção de espaço, verso, ritmo e
1 Compreendendo-se por tradicional toda a tradição poética versificada, mesmo sendo os versos
regulares ou irregulares. 2 Termo criado pelo escritor James Joyce (1882-1941) em descrição a sua prosa. Esse termo foi
reapropriado pelos poetas concretos brasileiros para descrever o seu projeto poético na coletânea de
ensaios Teoria da Poesia Concreta (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975). No Plano-piloto da
Poesia concreta (1958), a verbivocovisualidade é apresentada como uma “nova área linguística, (...)
que participa das vantagens da comunicação não-verbal sem abdicar das virtualidades da palavra”.
3
direcionalidade na poesia. A exemplo dessa série, a poesia concreta de Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari continuou um caminho (cada vez mais
radical) por décadas. Nesta monografia, a compreensão das estruturas técnicas
resultantes dessa obra ampliam também a compreensão de toda a produção artística
influenciada pela poesia concreta no século XX e XXI, que compreende desde a
música nova de Gilberto Mendes (1922 - hoje) e Willy Corrêa de Oliveira (1934 -
hoje) até a MPB de Caetano Veloso (1944 - hoje) e outros integrantes do movimento
tropicalista.
Contudo, a análise presente não tem o intuito de esgotar qualquer aspecto da
série em questão. Muito pelo contrário, pretende-se aqui observar as técnicas
utilizadas e propor alguns caminhos de leitura possíveis a fim, de ampliar a
compreensão dessa obra multifacetada. A análise se dá, portanto, não como uma
negação do caráter aberto da obra, e sim por uma explanação de temas que podem
ampliar a interpretação-fruição criativa da série.
Foi necessária a utilização de materiais em algumas áreas diferentes para
edificar o trabalho. Em primeiro lugar, para esmiuçar o que é a Klangfarbenmelodie e
refletir sobre sua gênese e uso até Webern, houve um breve estudo sobre o conceito de
timbre musical usado no começo do século XX, traçando-se uma trajetória de algumas
descobertas cientifico-técnicas que ocorreram no século XIX. Instrumentalizando-se
essa discussão, foi imperativa a disposição das teorias de Jean Baptiste Fourier (1764-
1830) e Hermann von Helmholtz (1821-1894), ambos teóricos que fundamentaram e
reformaram a noção das qualidades do som de maneira essencial para a gênese da
Klangfarbenmelodie.
4
Partindo dessa compreensão da natureza timbrística do som, nasce o segundo
ponto de estudo dessa monografia: a gênese do termo Klangfarbenmelodie e suas
primeiras aplicações. Nessa discussão, o texto base explanado foi o final do tratado de
harmonia de Arnold Schoenberg, no qual ele inaugura o termo Klangfarbenmelodie.
Da inauguração do termo e também do conceito por trás dele, Schoenberg compõe
peças que reflitam uma noção do timbre como dimensão a ser explorada. Para analisar
essa melodiadetimbres de Schoenberg, coube analisar brevemente a peça Farben,
terceira do opus 16 do compositor. Nessa breve observação, foram importantes
leituras de títulos de Pierre Boulez e Rene Leibowitz.
Compreendida a Klangfarbenmelodie schoenberguiana, entra-se num terceiro
momento da presente monografia: o estudo da Klangfarbenmelodie em Webern
partindo de um estudo das características gerais da obra weberniana. Nesse momento,
instrumentalizou-se a discussão partindo primeiramente dos escritos do próprio
compositor, e, em segundo plano, dos comentários sobre a produção artística e
acadêmica de Webern feitos pelos teóricos Carlos Kater, Pierre Boulez, Henry
Barraud, Flo Menezes, Paul Griffiths e chegando Augusto de Campos. Da soma da
produção desses autores, foi possível discriminar algumas características gerais a
serem aprofundadas que pretendem englobar ao máximo o caráter estrutural da obra
weberniana. Para o processo de seleção dessas características, coube ao mesmo tempo
um olhar para designações dos autores acerca da obra weberniana (inclusive em lista,
como é o caso de Kater) e da percepção de terreno fértil para uma discussão
intersemiótica junto com a poesia concreta.
Feita a disposição e a interrelação dessas várias características começa, então, a
análise comparativa entre a obra de Webern e a série poetamenos. Para serem
5
utilizados elementos que coadunem as práticas musicais com as poético-verbais, a
discussão é dada num plano a priori das aplicações específicas, mesmo que
insistentemente utilizando-se dessas para a ilustração dos pontos. Para tanto, foram
utilizados ao mesmo tempo textos como Obra Aberta de Umberto Eco e também
entrevistas e dissertações acerca especificamente da série poetamenos sem esquecer,
ainda, de explanações semióticas tais quais a de Lucia Santaella sobre a linguagem de
modo mais amplo.
Com esse arcabouço teórico, a monografia se organiza em duas partes
subdivididas em duas secções (1.1; 1.2; 2.1; 2.2). Na primeira secção da primeira
parte (1.1), faz-se a discussão acerca da trajetória do conceito de timbre do século
XIX para o século XX; a influência disso em Schoenberg; a discussão da gênese do
termo Klangfarbenmelodie por Schoenberg; e a análise breve da aplicação da técnica
para o compositor. Na segunda secção (1.2), analisa-se a obra weberniana e suas
características gerais. Na primeira secção da segunda parte (2.1), estuda-se a
proposição poética de Campos em poetamenos: suas características e limites, tendo
como ilustração uma análise generalista da série de poemas. Na segunda secção da
segunda parte (2.2), o olhar para cada um dos poemas se torna específico, olhando-os,
assim, separadamente e de maneira mais aprofundada.
Através dessa concatenação categórica, constrói-se uma trajetória dissertativa
que parte de aspectos gerais e ruma à especificidade. Esse afunilamento dialético
intende a uma análise sufiencientemente instrumentalizada do objeto em questão, que
mesmo perpassando diversas áreas do conhecimento acadêmico e prático, não se faz
vaga, e sim coesa.
6
CAPÍTULO 1
A KLANGFARBENMELODIE E A OBRA DE WEBERN
1.1 O timbre no século XX e a Klangfarbenmelodie schoenberguiana
A fim de se compreender a Klangfarbenmelodie ou melodiadetimbres3, é
preciso antes se debruçar brevemente sobre a trajetória do conceito de timbre
enquanto elemento da composição musical do século XIX para o século XX. Porém,
para compreender as discussões acerca desse assunto cabe fazer antes uma disposição
de algumas problemáticas introdutórias ao conceito de timbre.
O timbre, popularmente chamado hoje em dia de a cor do som, compõe,
juntamente com a altura, intensidade e a duração, as quatro qualidades gerais do som.
Porém, o timbre não era passível de quantificação ou de hierarquização na virada do
século XIX para o XX4, diferente da altura (gradação de sons graves x sons agudos),
intensidade (gradação de sons fortes x sons fracos); e duração (gradação de sons
longos x sons curtos) - (SETHARES, 2005, p. 27). Arnold Schoenberg corrobora essa
concepção no final de seu extenso tratado de harmonia:
Dificilmente têm-se até aqui realizado experimentos de medi-lo (o som) nas outras
dimensões (tímbristica e dinâmica, em detrimento da altura) e menos ainda tentativas
de ordenar os resultados em um sistema. (SCHOENBERG, 2001, p.578)
3 Tradução de Augusto de Campos em Música de Invenção (2007)
4 Essa afirmação mostrou-se inverídica posteriormente, com novas descobertas tecnológicas que
medem científicamente níveis de complexidade em timbres. Tal descoberta influenciou profundamente
vertentes da música recente, como a música espectral.
7
Não longe disso, para descrever um timbre, se faz necessário o uso de
metáforas extra sonoras, que remetem a elementos de todos outros caminhos
perceptivos que não o sonoro. Mas o que faz de um timbre ser, por exemplo, mais
“aveludado”, “rústico” ou “cheio”?
Essa pergunta começou a ser respondida com a proposição do matemático
francês Jean Baptiste Fourier (1768–1830), que elaborou a “Teoria dos Parciais”5.
Nessa teoria, demonstra-se que ondas sonoras podem ser somadas, resultando numa
nova onda cujo desenho é a soma de parciais das ondas anteriores. Partindo desse
ponto, foi possível começar a compreender cientificamente porque instrumentos
tocando a mesma frequência tinham cores sonoras tão distintas6. A possível ideia de
timbre como somatória de alturas e intensidades dos parciais das alturas é, então,
construída (MAIA, 2013, p. 19).
Porém, o conceito de timbre ou Klangfarbe a partir da análise dos parciais e de
seus pesos, só surgiu reconhecidamente em meados do século XIX com o tratado do
alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894), que pretendia unir as análises de ondas
de Fourier com a psicoacústica e a estética musical. Ele criou o conceito que chamou
de “musikalische Klangfarbe” (timbre musical), que foi a primeira representação do
timbre através de uma linguagem científico-matemática (KURSELL, 2013, p. 191).
O timbre tornava-se, assim, um complexo componente do som com ramos em todas
outras propriedades do som (altura, intensidade e duração) e com suas propriedades
estésicas colocadas em evidência.
5 O objeto principal de estudo de Fourier não era tão somente o comportamento do som como
objeto. Antes disso, suas teorias e proposições concernem a diversas áreas do conhecimento, focando
principalmente na matemática e na física. 6 Cabe assinalar, porém, que nessa época essa teoria só lidava com recortes senoidais ideais, e
descartava naturezas do som que também compunham o timbre como, por exemplo, o envelope
dinâmico. Em outras palavras, a análise dos parciais em questão só conseguia entender sinais sonoros
como elementos estáticos, sem mudança no tempo.
8
Décadas depois – em 1911 – Schoenberg discute, no seu livro Harmonia, o
conceito do timbre ou Klangfarbe, já influenciado pelas novas descobertas sobre o
assunto:
Não posso admitir, de maneira tão incondicional, a diferença entre timbre e altura tal
e como se expressa habitualmente. Acho que o som se faz perceptível através do
timbre, do qual a altura é uma dimensão. (...) A altura não é senão o timbre medido
em uma direção. (SCHOENBERG, 2001, p.578)
Schoenberg deixa claro que seu conceito de timbre é pautado na
multidimensionalidade emanada por esse parâmetro. Cabe notar que, ainda que não
haja a profundidade científica de Helmholtz e Fourier nessa disposição da Klangfarbe
colocada por Schoenberg, é perceptível que as propostas dos autores se coadunam,
pois pensar o timbre como somatória de parciais de altura e suas respectivas
intensidades e relevâncias ao decorrer do tempo (como faz Helmholtz) é nada mais do
que compreender a altura como uma das características quem compõe toda a
dimensão timbrística.
Logo após pautar essa nova discussão do conceito de timbre, Schoenberg
levanta um ponto-chave:
Se é possível, com timbres diferenciados pela altura, fazer com que se originem
formas que chamamos de melodias, sucessões cujo conjunto suscita um efeito
semelhante a um pensamento, então há de ser também possível, a partir dos timbres
da outra dimensão (...) produzir semelhantes sucessões, cuja relação entre si atue com
uma espécie de lógica totalmente equivalente àquela que nos satisfaz na melodia de
alturas. (SCHOENBERG, 2001, p.578)
Ora, não seria exagero dizer que foi assim prenunciada (ou até profetizada) uma
das características mais fundamentais para a música moderna: a dimensão timbrística
como alicerce para a composição do discurso musical, sobrepondo-se à dimensão das
alturas, estabelecendo um novo horizonte para produções e pesquisas, como, dentre
inúmeros exemplos, a serialização dos timbres.
9
Terminando o capítulo (e também o seu extenso tratado), Schoenberg inaugura,
com exclamação, o termo designado para esse novo tipo de articulação linguística:
“Melodia de timbres! (Klangfarbenmelodie!)” (SCHOENBERG, 2001, p.579).
O compositor chega até a executar, à sua maneira, uma proposição de um
discurso musical pautado protagonisticamente no timbre e na melodiadetimbres. Essa
proposição está na peça Farben (Cores), terceira peça da série Cinco Peças para
Orquestra, opus 16 (1909) e também na peça Herzgewächse opus 20 de 1911 e na
peça Quatro Lieder com Orquestra opus 22 de 1913-1915 (CAMPOS, 2007, p.253).
Como aponta Boulez, “pela primeira vez, portanto, vê-se um timbre utilizado por si
mesmo, funcionalmente, e não como resultado de um instrumento” (BOULEZ, 2008,
p.314). A seguir, observaremos o procedimento colocado na peça Farben a fim de
entender como Schoenberg utiliza a melodiadetimbres.
Partindo de um acorde de cinco sons, a peça Farben se desenvolve em uma
transição constante de cores dadas simultaneamente pela orquestração e pelas alturas
dos instrumentos, assim, “os diferentes períodos de uma frase têm sempre sua
instrumentação renovada” (BOULEZ, 2008, p.314). Dentro desses transientes,
estabelece-se na ambiguidade do fator timbrístico uma narrativa com seu peculiar
trabalho motívico. Colocando em outras palavras, é pertinente a descrição de
Leibowitz:
encontramos desde o início um acorde de 5 sons, cada um dos quais confiado a um
instrumento solista. No momento que estes instrumentos param de tocar, um outro
grupo de solistas (de sonoridade contrastante) retoma, imperceptivelmente, o mesmo
acorde de forma que somente nos damos conta da mudança de instrumentação
(mudança de cor) uma vez que o primeiro grupo tenha efetivamente parado de tocar.
(LEIBOWITZ, 1981, p.84)
Cabe citar ainda que, segundo alguns autores, o discurso harmônico da peça se
dá pelo processo semelhante ao que viria a ser chamado de síntese aditiva:
10
empilhamento dos parciais de ondas senoidais7 (MAIA, 2013, p.29) no jogo de
“contraponto timbrístico” entre momentos e na contraposição ao mesmo tempo
horizontal-linear e vertical-blocada que engendra em um composto suspenso e
diagonal. Ao ouvido, um aglomerado sonoro com funções tonais muito difusas se
movimentando lentamente em um discurso textural, ou seja, a Klangfarbenmelodie
como um princípio harmônico (CRAMER, 2002, p.3).
1.2. A obra de Webern e a Klangfarbenmelodie weberniana
Juntamente com Alban Berg, Anton Webern foi discípulo de Schoenberg, e
tem, em sua obra, a dimensão timbrística como algo estrutural. Certa vez, ele disse
que “entre cor e música não existe uma diferença de essência, mas apenas de grau”8
(WEBERN, 1984, p.25), comentando a relação de sua leitura da estética musical com
a “Teoria das Cores” de Goethe. Não à toa, sua obra resignificou de uma maneira
muito inovadora a Klangfarbenmelodie. Assim, é indispensável olhar atentamente
para como ele se apropriou dessa técnica.
Mas antes de voltar o olhar para a Klangfarbenmelodie de Webern, cabe
pontuar e comentar algumas características gerais do compositor, ainda que de forma
ampla, a fim de instrumentalizar ainda mais as relações do discurso sonoro
weberniano com a poética de Augusto de Campos.
Carlos Kater coloca, como introdução da sua tradução de O Caminho para a
Música Nova de Webern, “aspectos fundamentais” da linguagem do compositor , a
7 É importante citar que a aproximação em questão é anacrônica, visto que as circunstâncias na
qual a síntese aditiva surgiu como técnica cristalizada são muito distintas da situação posta. 8 A proximidade entre cor e som se dá tanto sob um ponto de vista subjetivo, como para Webern
ou diversos outros compositores; quanto sob uma ótica científica, visto que os ambos os fenômenos
luminosos ou sonoros são descritos como fenômenos ondulatórios. A diferença de natureza entre esses
dois fenômenos está no caráter de cada onda e em como ela se propaga no espaço (MAIA, 2013, p.4).
11
saber: “ausência do pathos romântico; complexidade da organização espacial e
temporal; importância do silêncio; ‘melodia de timbres' (Klangfarbenmelodie);
brevidade e coesão; economia serial; redescoberta da escrita ‘horizontal’ via formas
polifônicas e clássicas; recurso às simetrias; variações; integração das dimensões
horizontal e vertical (...multi-direcionalidade)” (KATER apud WEBERN, 1984, p. 9).
Para uma breve apreensão didática dessas diversas características, cabe enumerá-las e
estudá-las separadamente9.
1.2.1. Ausência do pathos romântico
No começo de sua carreira composicional, Webern mantinha forte ligação com
a tradição pós-romântica, especialmente com Gustav Mahler (1860-
1911) - (BOULEZ, 2008, p.324). A peça mais emblemática desse período é
Passacaglia para orquestra opus 1. (1908). Porém, nota-se que o próprio reuso da
forma passacaglia, que consiste no uso de um tema fixo passeando por registros e
orquestrações, já é, por si só, um passo além da tradição do século XIX10
.
Na obra imediatamente posterior à Passacaglia, Entfliecht auf liechten
Kähnen, e depois no opus 3 e opus 4, passou a ficar evidente a “liberação” de Webern
para fora da tonalidade (BOULEZ, 2008, p.325). Esse processo de ruptura culminou
no dodecafonismo do compositor, que sempre foi diretamente influenciado por
Schoenberg.
9 Para garantir coerência nesta monografia, alguns aspectos listados serão colocados como sub-
tópicos de outros, e consequentemente a ordem desses fatores será diferente da colocada por Carlos
Kater. 10
A escolha pelo uso da passacaglia pode já demonstrar no compositor preocupações com
questões de orquestração, cor e timbre, mesmo antes do uso da chamada Klangfarbenmelodie.
12
As peças que seguem tem mais uma característica que é diametralmente oposta
àquela usada na tradição romântica. Como veremos, em Webern o silêncio é usado
como componente estrutural para a composição, inclusive em momentos de “ponto
culminante”. Assim, os exagerados e volumosos tutti românticos são deixados de lado
para uma composição musical muito mais introspectiva e hermética.
Por fim, cabe concluir que ao escrever da obra de Webern como “ausente de
um pathos romântico”, Kater já está de antemão realizando um recorte temporal e
estético de Webern. Talvez seja mais apropriado, portanto, caracterizar o compositor
como ausente de um pathos romântico na maior parte de sua obra.
1.2.1.1. Redescoberta da escrita “horizontal” via formas polifônicas e clássicas
Dentre outros fatores importantes, o uso da técnica dodecafônica demandou,
no caso de Webern, a necessidade de um trabalho menos blocado, e mais “horizontal”,
contrapontístico. O tratamento estético harmônico voltou a ter um caráter polifônico
em detrimento da homofonia, mas é importante ressaltar que esse novo caráter foi
inovador em relação ao contraponto tradicional. Webern, porém, justifica o uso da
série de doze tons (além da perda de tonalidade e da série de doze tons como algo
inato e expresso como evolução social de uma demanda da “natureza universal”) com
a busca pela coerência até seu limite em uma obra musical (WEBERN, 1984, p.96).
A volta do uso do cânone foi, então, essencial. Vista nas peças Entfliecht auf
liechten Kähnen opus 2 e 5 Cânones opus 16 (não dodecafônico), esta é uma forma
tradicional de contraponto, que remete diretamente à tradição contrapontística pré-
clássica. Porém, cabe notar que, diferente de Schoenberg e Berg, “Webern voltou seu
13
olhar para procedimentos de contraponto pré barroco11
” (BAILEY, 1992, p.94), o que
consolidou ainda mais seu rompimento com a tradição romântica. Nas palavras do
compositor, sua obra se relacionava diretamente com a tradição polifônica
neerlandesa:
Chegamos atualmente a uma época em que o método de apresentação é
polifônico - nossa técnica de composição atingiu um parentesco muito grande com os
métodos de apresentação empregados no século XVI, pelos neerlandeses (WEBERN,
1984, p.53)
Cabe colocar que, mesmo que retornando a composição musical baseada em
preceitos polifônicos, Webern não nega as técnicas composicionais utilizadas no
romantismo, pelo contrário, ele coloca em seus depoimentos a sua música como um
desenvolvimento direto e natural da música de Mahler e Brahms, chegando até a
exclamar: “é com Mahler que temos acesso à modernidade!” (WEBERN, 1984, p.83)
podendo-se compreender em Mahler uma polifonia de polifonias pertinente na
discussão sobre simultaneidade do século XX; e, em Brahms, o trabalho motívico com
exaustão, que também característica da modernidade.
1.2.2. Complexidade da organização espacial e temporal
Tanto o uso estrutural do silêncio, como a curta duração das peças e o peculiar
trabalho de integração das dimensões horizontal e vertical em Webern lhe conferem
ser complexo sob um ponto de vista espacial e temporal, como veremos a seguir.
1.2.2.1. Importância do silêncio
Aos ouvidos acostumados à orquestrações românticas e até pós-românticas, a
música de Webern é muito contrastante. Não apenas pelo trabalho contrapontístico,
11
Webern looked to pre baroque contrapuntual procedures (tradução minha)
14
mas também pelo inusitado desenvolvimento que ele faz em suas peças: sua música é
repleta de silêncio. Como Barraud escreve:
Esta divisão, num imenso espaço sonoro, de bolhas de música cercadas algumas vezes
de amplas zonas de silêncio, de início pode dar a impressão de abolir a expressão
melódica. Isto é apenas uma aparência. O sentimento melódico permanece presente
na música de Webern, mas é uma presença impalpável. (BARRAUD, 2005, p.105)
A fim de ilustrar essa afirmação, o olhar para a escrita de Webern se faz
pertinente. As melodias são comprimidas a gestos mínimos e dispersas no
tempo-espaço sonoro. A cada minúscula célula sonora, novas possibilidades
timbrísticas. Mas, sobre tudo isso, o silêncio é componente estrutural, visto inclusive
na disposição gráfica das partituras do compositor, como nos primeiros compassos do
Quarteto para Violino, Clarinete, Saxofone Tenor e Piano opus 22 (1930) – (Fig. 1):
Fig. 1 – Compasso 1-4 do Quarteto opus 22 de Webern
Nesse trecho (Fig. 1), é visivelmente claro o uso que Webern faz do silêncio.
Dentre os quinze tempos de colcheia nos quatro compassos, o instrumento com maior
número de notas escritas é o piano, com seis (compasso 3). Importante notar que essas
seis notas foram comprimidas em apenas 3 colcheias, e resultam num exemplo
daquilo descrito por Barraud: numa “bolha” de música cercada de silêncio. O mesmo
ocorre com as outras vozes, que contém ou cinco notas (violino e saxofone tenor) ou
15
apenas duas notas (clarinete), sendo que o valor rítmico mais curto que é utilizado é a
colcheia.
Outro dado interessante desse trecho é a seguinte proporção: para o total
temporal do trecho (quinze colcheias com a semínima pontuada valendo 36 batidas
por minuto, o que resulta em aproximadamente 8,3 segundos), 40% são momentos em
que nenhum instrumento está tocando (seis colcheias no total, o que resulta em
aproximadamente 3,3 segundos).
1.2.2.2. Brevidade e coesão
Como bem afirma Augusto de Campos, “a obra inteira de Webern cabe em
quatro LPs: cerca de três horas” (CAMPOS, 2005, p.317), e esse fato é explicado de
duas formas. Infelizmente, o compositor foi assassinado por engano por um soldado
americano, em 1945, deixando uma obra completa de apenas 31 peças catalogadas.
Outro lado a ser observado (que é uma dos aspectos mais importantes em Webern) é
que o compositor produzia peças muito curtas em relação ao repertório de sua época e
até em relação às peças de hoje em dia. Suas peças mais longas tinham, no máximo,
dez minutos; algumas das mais curtas têm pouco mais de meio minuto.
Para ter peças com duração tão reduzida, Webern comprime bastante o material
de suas peças. Poucas notas, pouco tempo, muita qualidade, muito conteúdo: o lema
de Webern era “non multa sed multum’ – não muito (quantidade), mas muito
(qualidade)” (CAMPOS, 2007, p.107). Assim, as peças de Webern são caracterizadas
por muitas informações comprimidas em meio a grandes espaços silenciosos, de tal
modo que cada célula sonora pode ser escutada isoladamente, pois estrutura-se em si
mesma a partir do silêncio que a cerca. As peças se constroem, então, “diante de
16
interrelações entre fenômenos autônomos bem mais que relações globais que se
exercem sobre um grupo em função de certos dados” (BOULEZ, 2008, p.330). Boulez
aponta, ainda nesse rumo:
Neste sentido, a maior inovação do vocabulário weberniano é de considerar cada
fenômeno de uma vez como autônomo e independente. Para colocar em destaque essa
característica ele dá uma grande importância (...) ao lugar temporal que lhe cabe (o
som) no desenrolar da obra, um som cercado de silêncio e que adquire, por seu
isolamento, uma significação muito mais forte do que um som mergulhado num
contexto imediato. (BOULEZ, 2008, p.330)
Interessante ressaltar como é o silêncio que garante a carga semântica que
permite a compressão em Webern, e que gera o que Krenek descreve: “elementos
individuais (da música) pareciam flutuar isolados entre apavorantes bolsas de ar de
silêncio total” (apud CAMPOS, 1978, p.317). É possível começar a compreender,
portanto, a seguinte frase de Webern, citando seu mestre: “uma importante afirmação
de Schoenberg: compressão sempre significa extensão”. Como ainda veremos, essa
compressão se extende, ainda, para o trabalho contrapontístico de Webern, na maneira
como ele dispõe variações sobre ideias iniciais (1.2.3. dessa monografia).
1.2.2.3. Multidirecionalidade
Partindo da compressão no tempo, do isolamento das “bolhas” de música
cercadas de silêncio e da horizontalidade do discurso musical de Anton Webern, nasce
a mais hermética (e talvez a mais controversa) das características citadas: a
multidirecionalidade do discurso musical, a possibilidade de leituras diversas sobre
um mesmo objeto musical.
Sendo a música uma arte temporal que tem seu discurso artístico pautado em
eventos ocorridos no tempo, pode parecer estranho pensar em possibilidades
simultâneas de leitura de um mesmo objeto nessa linguagem. Porém, a leitura múltipla
17
de objetos musicais é possível vistos alguns pontos. Em primeiro lugar, fica a
concepção de que toda interpretação sobre qualquer obra é invariavelmente diferente,
e que escutar duas vezes qualquer peça musical, mesmo ela estando gravada, provoca
sensações e impressões diferentes. Um segundo ponto é como, focando-se
principalmente no século XX, compositores começaram a direcionar suas peças para a
criação de ambiguidades e aberturas ou sobreposições harmônicas, rítmicas. Em
decorrência disso, é interessante o olhar para como não se deve confundir
direcionalidade com discurso, sendo aquela um elemento essencial para a construção
desse.
Pensando em proposições de criação de mais de uma direção simultâneas, estão
proposições parecidas entre si, mesmo que diferentes, que aconteceram na música do
final do século XIX e começo do século XX. São exemplos disso o começo de
sobreposições de melodias em diferentes modos, como em Bela Bártok (1881-1945),
ou com a sobreposições de frases em fórmulas de compasso diferentes, como em
Stravinsky; ideias que possibilitaram discursos com direções diferentes sobrepostas e
simultâneas em uma peça musical. Esse tipo de articulação sonora trabalha
principalmente com a sobreposição de frases dentro da música, e por isso pode ser
denominada uma proposição de abertura sintática, na qual frases distintas se
sobrepoem e interpenetram.
Porém, em Webern, a multidirecionalidade é muito mais semântica do que
sintática, pois no seu discurso musical, não são frases musicais diferentes que são
sobrepostas ou superpostas criando um discurso de direcionalidades paralelas, e sim,
dentro de uma mesma frase musical, notas com cargas semânticas divididas
generativas de possíveis frases musicais para serem lidas: múltiplos significados. Essa
18
enigmática noção muito se relaciona com a ideia de abertura da obra de arte musical
colocada por Umberto Eco quando comentando a música serial integral (pós-
weberniana):
o músico (contemporâneo) escolhe uma constelação de sons a ser relacionada de
modos múltiplos, ele quebra a ordem banal da probabilidade tonal e institui uma certa
desordem que, em relação à ordem inicial, é altíssima: introduz, contudo, novos
módulos de organização que, opondo-se aos velhos, provocam uma ampla
disponibilidade de mensagens, (ECO, 1991, p.126)
É mais do que evidente que essa característica pontuada por Eco se encaixa,
em perspectiva histórica, à obra de Webern. É interessante, ainda, desprender dessa
afirmação duas óticas, ambas intrínsecas à obra de Webern. Uma primeira é a
percepção de que a disponibilidade de novas mensagens se dá por princípio,
simplesmente pela inovação dos módulos de organização, enquanto uma segunda
ótica é perceber que os novos módulos de organização produzem leituras diversas
sobre um mesmo objeto. Essa segunda possibilidade é possível em Webern: as notas
ou “bolhas musicais” na obra weberniana são instâncias independentes que se auto-
relacionam com suas semelhantes no espaço tempo numa relação de dependências
múltiplas para a criação de discurso musical.
1.2.3. Variações (trabalho temático-serial)
A simplicidade de Webern se expressa no desenvolvimento da sua criação de
uma forma bastante clara. Partindo do que ele chama de “desejo de uma coerência
máxima” (WEBERN, 1984, p.83), a construção de suas peças é feita seguindo a
premissa que “tudo (a ser composto) é ‘temático’”(WEBERN, 1984, p.83). Como o
compositor exclama:
Desenvolver tudo a partir de uma ideia principal! Eis a coerência mais forte – todas as
partes fazem a mesma coisa, como nos neerlandeses, onde o tema era trazido por cada
uma das vozes em todas as transformações possíveis, com entradas diferentes e em
19
diversas alturas. Porém, a palavra de ordem permanece sempre: temática, temática,
temática! (WEBERN, 1984, p.83-84)
Importante apontar que, em Webern, a palavra temática é levada muito a sério.
Como já vislumbrado, nota-se ainda a relação do contraponto do compositor com as
técnicas de contraponto neerlandesa do século XVI (GRIFFITHS, 1987, p.82). Cabe
citar que, relativo à esse esforço, Webern encontra na forma variação esse potencial
de desenvolvimento temático como campo expansor (WEBERN, 1984, p.94).
1.2.3.1. Economia intervalar
Webern foi, principalmente no final de sua obra, um compositor de música
dodecafônica. Mas, diferente de Schoenberg e Alban Berg, Webern era o que mais
seguia as ‘regras’ do sistema dodecafônico à risca. Tal qual um compositor do século
XVI respeitando técnicas do contraponto, Webern compunha e respeitava as leis do
sistema dodecafônico. Porém, isso nunca foi, de forma alguma, limitador para sua
liberdade composicional. Sua relação com a série de doze tons era contemplativa, e,
para o compositor, as possibilidades sobre ela eram infinitas (GRIFFITHS, 1987,
p.90).
No entanto, ainda diferentemente de Berg e Schoenberg, Webern sempre foi
profundamente econômico no que se refere aos intervalos utilizados. Segundo ele
mesmo, quando estava compondo e, no desenvolvimento da obra a primeira exposição
da série dodecafônica chegava a seu fim, era como se a peça tivesse terminado
(GRIFFITHS, 1987, p.48), o que marca uma grande diferença com os outros
compositores dodecafônicos, pois neles as séries são apresentadas inúmeras vezes em
subséries, etc, e em mais de uma série por vezes.
20
Ainda sobre a economia intervalar de Webern, cabe citar que, segundo relatos,
o compositor, no ato de criação, escrevia suas peças e pouco a pouco riscava notas
musicais dos seus rascunhos, “enxugando” suas obras (MORAES, 1983, p.49),
cortando os excessos, num processo de construção do desenvolvimento a partir de um
movimento econômico de recusa (MORAES, 1983, p.90).
1.2.3.2. Simetrias
Ainda na busca da coerência através do trabalho de desenvolvimento temático,
Webern usa como recurso para composição o trabalho com simetrias. É sabido que o
sistema dodecafônico usava recursos simétricos a fim de alcançar novas séries
relacionadas à série matriz, no que chamamos de retrogradação (ler a série de traz para
frente) e inversão (inverter simetricamente os intervalos da série). Porém, para além
da criação de séries, o desenvolvimento temático na obra de Webern se relaciona
profundamente com a ideia de simetria.
Um primeiro exemplo para esse uso é a série que Webern utiliza para a
composição do segundo movimento da sua Sinfonia (Opus 21, 1928) – (Fig. 2):
Fig. 2 – Série do segundo movimento da Sinfonia opus 21 de Webern
Nota-se que nessa série a segunda parte é o retrógrado da primeira,
“expressando assim uma coerência essencial” (WEBERN, 1984, p. 152). Nesse
movimento, como o compositor descreve, a partir da retrogradação embutida na série
e o trabalho contrapontístico análogo a esse no acompanhamento, que serve como
21
cânon duplo daquele tema, se constrói uma estrutura na qual “coerência maior não é
possível” (WEBERN, 1984, p.152). O movimento inteiro é, partindo da série, um
duplo cânon por retrogradação, forma totalmente simétrica e matemática.
Essa e outras peças conferem a obra de Webern um resultado de “cristalina
coerência, de um contínuo interespelhar-se, a justificar a expressão de Herbert Eimert,
quando cognominou Webern ‘o arquiteto monádico da forma-espelho’” (CAMPOS,
2007, p. 109).
1.2.4. Melodiadetimbres (Klangfarbenmelodie)
Depois de compreender, em linhas gerais, diversas características gerais da
obra do compositor Anton Webern, é mais simples pontuar e discutir questões sobre o
uso de uma de suas técnicas composicionais mais importantes: a Klangfarbenmelodie.
Interessante citar que, antes de Schoenberg inaugurar esse termo em seu tratado de
Harmonia, Webern já propunha, como no sua série de Seis Peças para Grande
Orquestra (1909) uma semente com alternâncias timbrísticas, mesmo que ainda com
efeito ornamental (CAMPOS, 2007, p.254). Posteriormente, essa técnica adquiriu
aspecto funcional nas peças de Webern, onde as cores timbrísticas deixam de ser
componente de apoio ou reforço do discurso harmônico-melódico para se tornarem
protagonistas da espinha dorsal do discurso musical em questão (CAMPOS, 2007,
p.254).
1.2.4.1. Fragmentação da melodia pela orquestração/registro dos instrumentos
A característica da Klangfarbenmelodie weberniana mais apontada por
Augusto de Campos é, sem dúvida, a maneira como o arquétipo de melodia romântica
22
(ou até clássica) é fragmentado em registros e orquestração dos instrumentos usados.
Nas palavras de Campos, a melodiadetimbres é a “fragmentação da linha melódica por
vários instrumentos” (CAMPOS, 2007, p.102). A ideia de melodia como linha
recortada por instrumentos também é importante que seja ressaltada, pois acentua a
preocupação espacial com o discurso sonoro.
Em outra situação, Campos descreve a melodiadetimbres de forma bastante
similar:
... da melodia-de-timbres, que põe ênfase nos timbres dos instrumentos, fragmentando
a melodia num caleidoscópio multicolorido de sons e de ‘brancos’ sonoros.
(CAMPOS, 2007, p.96)
Assim, evidencia-se também que a técnica de Webern trata a melodia de tal
forma que cada nota e timbre de um instrumento individual (ou grupo) tem
importância potencializada pelo silêncio que o cerca (BOULEZ, 2008, p.330).
A fim de exemplificar o uso da melodiadetimbres weberniana, mostraremos, a
seguir, uma situação na qual uma melodia dada é picotada em diversos timbres. A
situação é dada no arranjo de Webern para fuga Ricercata, da Oferenda Musical de
Johann Sebastian Bach (1685-1750). Para a comparação, analisaremos de forma
neutra como se dão os pontos de corte no arranjo da melodia em questão os primeiros
10 compassos da peça.
Do manuscrito original de Bach, os 10 primeiros compassos da fuga (Fig. 3):
Fig. 3 – Compassos 1-10 da fuga Ricercata, manuscrito de Bach
23
Nota-se que, nos primeiros oito compassos, não há abertura de vozes e nem
notas soando concomitantemente. No compasso nove e dez, há uma abertura de voz,
sendo a voz superior a resposta da fuga e a voz inferior o início do contrassujeito
deste.
Agora, o arranjo dos primeiros cinco compassos desta mesma peça por Anton
Webern (Fig. 4), em uma orquestração para orquestra:
Fig. 4 – Compassos 1-5 do arranjo de Anton Webern para Ricercata de J. S. Bach
24
Imediatamente, são perceptíveis dois fatores: 1) a melodia é apresentada
exatamente como foi escrita e 2) para a apresentação da melodia nos primeiros cinco
compassos, Webern já se utiliza de 5 mudanças de instrumento. As cinco primeiras
notas, nos três compassos iniciais, mantém-se no mesmo instrumento (trombone). A
melodia, então, começa a passar por outros instrumentos, não saindo da família dos
metais (do trombone para a trompa, e para o trompete em dó) o que cria um colorido
espacial pouco contrastante. No quinto compasso, a melodia volta para a trompa, mas
em seu ataque conta com uma dobra quinta abaixo da harpa, o que confere a um
instrumento repetido uma coloração diferente. Prosseguindo com o arranjo (Fig. 5):
25
Fig. 5 – Compassos 6-10 do arranjo de Anton Webern para a fuga Ricercata de J. S. Bach
O procedimento dos compassos anteriores segue, portanto, sua lógica até o
compasso oito: a melodia continua a ser fragmentada dentro da família dos metais (da
trompa para o trombone, do trombone para a trompa, da trompa para o trompete em
dó). O recurso da dobra com a harpa reaparece no compasso oito, só que dessa vez a
dobra é feita em uníssono com o trompete em dó.
Os dois compassos que seguem provocam um contraste de orquestração: a
melodia que estava na família dos metais (acrescida a dobra da harpa) deixa esses em
pausa e muda drasticamente para a flauta e para o segundo violino, este fazendo o
início da resposta e aquela fazendo o contrassujeito. E neles permanecem até o final
do compasso 10, quando a viola entra para continuar o discurso em procedimento
parecido àquele da família de metais, desta vez nas cordas.
Observando de modo geral, é evidente que em apenas 10 compassos, que
contêm apenas uma frase com uma melodia solo e dois compassos da reapresentação
dessa com uma linha contrapontística, houve sete instrumentos utilizados (trombone,
trompa, trompete em dó, harpa, flauta, violino e viola) e a linha melódica principal foi
segmentada oito vezes.
1.2.4.2. (In)dependência das vozes e orquestração com poucas notas
simultâneas
Partindo da fragmentação de uma melodia como característica da
Klangfarbenmelodie, é possível desprender, ainda como consequência dessa
característica, que as vozes individuais de cada instrumento sofrem um processo
curioso: ao mesmo tempo que elas se tornam dependentes das vozes de outros
26
instrumentos para estruturação da melodia, elas são instâncias findas em si mesmas de
certa forma devido à importância que lhes é dada. Nessa linha, Boulez afirma:
“Não se trata do emprego dos instrumentos concebido sobre uma base acústica, no
sentido em que a acústica pode engendrar fenômenos estruturais – caso particular do
Debussy da última fase -, mas estamos diante de uma escrita contrapontístico-
instrumental em que cada timbre desenha um caractere estrutural da obra” (BOULEZ,
2008, p.330)
É claro que, em cada peça, os caráteres da (in)dependência das vozes variam.
Para tomar como exemplo, no arranjo de Ricercata, as vozes criadas pela
fragmentação da melodia de Bach pouco são independentes, pois estão profundamente
atreladas à lógica tonal emanada por essa melodia. Em obras como o quarteto opus 22,
também já colocado aqui, as “bolhas” de música são muito mais independentes entre
si, como eventos sonoros espontâneos brotando no tempo-espaço.
Com esses e outros procedimentos, específicos em cada obra, constrói-se a
Klangfarbenmelodie weberniana: fragmentação das melodias e consequentes relações
anti-hierárquicas entres alturas. Em outras palavras, há uma liberação da articulação
sintática como característica da Klangfarbenmelodie weberniana.
27
CAPÍTULO 2
A POÉTICA WEBERNIANA NA SÉRIE POETAMENOS DE AUGUSTO DE
CAMPOS
Fig. 6 – Página introdutória da série poetamenos
28
Em 1955, Augusto de Campos lança, dentro da segunda edição da revista
Noigandres, a série poetamenos (escrita em 1953). Essa série nasceu do fascínio de
Campos pelas técnicas composicionais de Anton Webern, em especial a
Klangfarbenmelodie weberniana; e da vontade do poeta de compor algo semelhante às
peças de Webern dentro do discurso poético escrito: “uma melodiadetimbres com
palavras”. Tal aspiração é claramente explicitada na primeira página que integra a
série (Fig. 6), na qual não estão os poemas propriamente ditos, e sim uma série de
apontamentos de Campos acerca de como aquela série se organiza.
Algumas importantes questões podem ser levantadas partindo dessa introdução.
Em primeiro lugar, é preciso entender sob o ponto de vista da poética12
da obra, qual a
relação dela com o discurso musical. A primeira e mais evidente relação que pode ser
desprendida é a mímesis entre a série de poemas e as peças de Webern, ou, mais
precisamente, o que pode ser chamado de um processo de intersemiose entre uma
técnica composicional da música moderna e a técnica escrita verbal-poética
(QUEIROZ apud CAMPOS, 2004, p.296). Como veremos, essa mímesis se dispôs ao
mesmo tempo sob um ponto de vista técnico e conteudístico e, sobre isso, no
fundamento da estrutura do que era considerada a poesia para o trio dos poetas
concretos brasileiros (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari): a
poesia concreta como manifestação artística também sonora13
, ou, como Haroldo de
Campos nomeia, de dentro da poesia concreta, o foco também da “dimensão acústico-
12
Entende-se, aqui, o conceito de poética tal qual descrito por Umberto Eco, “como programa
operacional que o artista se propõe de cada vez, o projeto da obra a realizar tal como é entendido,
explícita ou implicitamente, pelo artista.” (ECO, 2005, p.24) 13
Proposição que parte da tentativa de “ataque direto à medula do objeto (material artístico)”,
estabelecendo uma “atualização ‘verbivocovisual’ do objeto virtual” (CAMPOS, CAMPOS,
PIGNATARI, 1975, p.46). Em outras palavras, a tentativa de descompartimentar a proposição artística
de suas diversas linguagens engendrando uma nova abertura de pensamento para a questão essencial da
expressão artística: a organização. O confronto pauta-se aqui então com a estrutura (por suposto
múltipla) do objeto a ser significado artisticamente, em seu estado virtual – pós matéria.
29
oral”14
da palavra (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975, p.46). Colocado esse
aspecto em evidência, é fácil depreender que, sob um ponto de vista funcional-
interpretativo, a materialidade da poesia concreta escrita se torna análoga a de uma
partitura musical na medida que na poesia em questão as palavras se desprendem de
sua natureza simbólica para uma noção pautada na fruição sonora musical.
Concatenando-se a isso, cabe fazer um paralelo com a análise de Augusto de Campos
da inusitada transposição da ideia de verso no poema Un coup de dés de Stephanée
Mallarmé15
, que demonstra como o desenvolvimento da obra do poeta francês se dá
de forma musical, inclusive deliberadamente. Interessante pois citar que o próprio
Mallarmé inaugura a ideia de poema-partitura, e se utiliza de procedimentos
‘emprestados’ do universo musical para a construção da ideia poética, procedimentos
esses como o trabalho motívico a partir da variação de temas principais e secundários
ou a criação de temporalidades de ocorrência temática (cf. CAMPOS, CAMPOS,
PIGNATARI, 1975, p.19). Portanto, em Mallarmé de Un coup de dés, as letras e
palavras são como notas escritas em uma partitura acopladas de um sentido semântico
verbal, movimento muito parecido com o processo criativo de Augusto de Campos em
poetamenos. Reforçando ainda a ideia de poema-partitura está a reflexão de Décio
Pignatari, que diz que a poesia escrita nada mais é do que a transmutação de uma
articulação linguística oral sonora, e toda leitura poética se concatena sonora e, como
não dizer, musicalmente. Torna-se imprescindível, para a compreensão poética, a
14
Além das outras duas dimensões que compõe a palavra para os concretos: a gráfico-espacial e
a conteudística. 15
Mallarmé é repetidamente apontado com um dos escritores que mais influenciou a poesia
concreta. No Plano-piloto da Poesia Concreta (1958), o poeta francês é é apontado como o primeiro
dos percursores da poesia concreta, e contribuição para o movimento é descrita como “o primeiro salto
qualitativo: ‘subdivisions qualitatives de l’idée’(subdivisões prismáticas da ideia – tradução
interpretativa minha); espaço (‘blancs’) e recursos tipográficos como elementos substantivos da
composição” (CAMPOS, 1958).
30
imaginação sonora dos objetos transcritos (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI,
1975, p.11). Partindo desse ponto de vista, é possível compreender como o conceito
de obra verbivocovisual (termo de James Joyce aplicado para obras com as três
dimensões colocadas em evidência) se estabelece para os poetas concretos, pois neles
há a soma da dimensão verbal com a dimensão sonora e também espacial possível na
técnica poética, pensando-se portanto na interpenetração dessas áreas de fruição.
Voltando à Webern, Augusto dispõe, na introdução, o método que ele vai
utilizar para transpor a técnica weberniana para o seu discurso poético. É dito que,
nessa série, os instrumentos musicais e seus timbres com suas (falta de) cargas
semânticas serão substituídos por “frase/palavra/sílaba/letra(s)” e seus timbres e
cargas semânticas próprias. Em seguida, dispondo ainda o método composicional
usado nos poemas, aponta-se que cores serão utilizadas a fim de estabelecer os saltos
de orquestração e mudança de timbre.
Porém, a colocação de que os instrumentos serão substituídos por “frase,
palavra, etc” traz uma noção diferente de articulação entre timbres do que a mudança
cromática no meio de uma frase poética. Na primeira colocação, a mudança contínua
de conteúdos acústicos da voz somados a suas cargas simbólicas de significado
poderia até ser colocada como característica geral de quase qualquer mensagem oral.
Em consequência é como se, para a composição da Klangfarbenmelodie poética,
Augusto tivesse que considerar a mensagem poética como, pelo lado da escritura, não
melódica. Dessa forma, talvez seja mais apropriado colocar que, sob uma ótica
musical, para a construção do poema, os instrumentos foram substituídos pela imagem
virtual sonora de quem lê a obra (remetendo a Pignatari) e que o material melódico
musical foi substituído pela “frase, palavra, etc”.
31
No final da página introdutória, Augusto ainda coloca que a série de poemas que
dela seguem são feitas para serem oralizadas ou, em suas palavras, são passíveis de
“reverberação oral” na qual vozes reais leem os textos de acordo com seu aspecto
poema-partitura. Na leitura aqui colocada, é pertinente dizer que, mesmo pressuposta
leitura oral, o poema também é feito para ser lido de qualquer maneira desejada pelo
fruidor, colocando-se a ele quaisquer caminhos desejados.
Dada a maneira como a série é introduzida e as diversas possibilidades
emanentes de leituras (sonora, textual, visual), analisemos de forma genética e
genérica como se dá a relação entre a construção de poetamenos e a criação
weberniana.
2.1. Elementos gerais de semelhança e diferença da poética de Webern e da
poética de Campos em poetamenos
Dentre todas as características já visitadas em Webern, somente algumas delas
podem ser observadas na série de Augusto de Campos de maneira pouco duvidosa.
Elas são: o uso de uma complexidade da organização espacial e temporal (na qual
podem ser colocados aspectos como o uso do silêncio, da brevidade do texto e da
multidirecionalidade de articulações e compreensões semânticas) e o uso da
Klangfarbenmelodie (na qual podem ser discutidos a fragmentação do material
melódico e a dependência ou independência relativa entre as vozes). O trabalho de
variações pelo compositor austríaco será analisado, juntamente com as características
já citadas, caso a caso nos poemas da série. Dessa maneira, de todas as características
webernianas citadas no capitulo um, apenas a relação do compositor com a tradição
32
romântica não será abordada nesse capítulo, visto que essa discussão não concerne
diretamente o diálogo entre a poesia e a música nesse caso, já que o diálogo com a
tradição artística no Brasil nos anos 1950 se mostra muito diferente do que a tradição
artística europeia na virada do século XIX para XX. Contudo, cabe citar a colocação
de Antonio Bessa, ainda nessa mesma linha: “Como en Webern, hay ecos de otras
obras y estilos incorporados a la obra–Provenzal, Barroco, Parnasianismo” (BESSA, .
2007, p.65)16
. Observando superficialmente o confronto de Campos a tradição da
poesia escrita, já evidencia-se mais um ponto possível de encontro entre a série e a
obra do compositor austríaco, mesmo que distante cronologicamente.
2.1.1. Complexidade da organização espacial e temporal em poetamenos
Como que adotando o lema de Webern – non multa sed multum - todos os seis
poemas de poetamenos têm apenas uma página, nas quais palavras coloridas estão
digitadas sobre um fundo branco. O branco silencioso é integrante dos poemas
(CORRÊA, 2012, p.34-35), inclusive para ressaltar, por contraste, a qualidade
cromática da obra. O paralelo com Webern fica aqui explícito, já que o compositor se
utilizava (pioneiramente) do silêncio como componente estrutural da suas peças em
questão. Completando o paralelo sonorovisual entre som-silêncio e cor-branco, cabe a
frase de Pignatari: “um poema é feito de palavras e silêncios” (CAMPOS, CAMPOS,
PIGNATARI, 1975, p.9). Dessa frase, é possível pois entender que todo poema é,
também, organizado ritmicamente tal qual uma estrutura sonora (por que não,
16
“Como em Webern, há ecos de outras obras e estilos incorporados à obra – o estilo
provençal, barroco, parnasianismo” - tradução minha
33
musical), visto que Pignatari equipara a escrita (“palavra”) à dimensão sonora
(“silêncio”)17
.
Em paralelo ao uso do silêncio nos poemas, fica a compressão de material que
também se faz notar, na série, não apenas na forma fragmentada e comprimida dos
poemas e ‘frases’ colocadas, mas também na recorrente construção de palavras que
criam ambiguidades semânticas internas, como poetamenos18
. Exemplificando a
expansão de conteúdo decorrente da compressão das palavras, e a natureza simples e
redutiva da série, fica a discussão de Bruce Williams sob o título da série de poemas:
A partir do próprio título, que constitui, de fato, o Leitmotiv de um dos poemas, Augusto
de Campos já inicia o seu processo de palavras compostas. poetamenos, junção das
palavras “poeta” e “menos”, sugere talvez a natureza mínima sem retórica da linguagem
poética da obra. Também, presente nesta palavra está o conceito de “amenos”, conceito
que antecipa o aspecto suave de algumas obras. (WILLIAMS, 1986, p.56)
Assim, partindo de uma palavra apenas, foi possível o discernimento de no
mínimo dois lados bem distintos em termos de significado partindo da escrita ambígua
do autor. Ambiguidade pois, dialética, visto que não se coloca em perspectiva
adversativa, e sim em construção de síntese interna de significação.
Por esse encaminhamento fica a compreensão de um primeiro caráter direcional
da escrita de Campos. As palavras são dotadas de ambiguidade, o que faz com que
qualquer frase composta tenha uma abertura de possíveis significados. Assim, como
em Webern, a compressão caracteriza também a micromultidirecionalidade em um
mesmo discurso.
17
O silêncio na Poesia Concreta é provido, ao mesmo tempo, de diversas matrizes. Além da
relação já colocada e clara com Webern, cabe citar a relação dos poetas concretos com o uso do branco
em Mallarmé ou e.e. cummings (cf. CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975). 18
Tal qual a escrita ideogrâmica chinesa ou a construção de conceitos na língua alemã. Esse
tipo de articulação é nomeada de palavra-valise, um tipo de neologismo caracterizado pela soma de
duas ou mais palavras pré-existentes.
34
A outra abertura de direções de leitura é mais que evidente na maioria dos
poemas. Dado que em todos os poemas as palavras são frequentemente espalhadas na
página de forma inusitada (com a exceção de poetamenos, poema homônimo à série,
como será visto na secção 2.2.1), há possibilidades para o leitor criar simultâneas
interpretações (interpenetrações) dessa mesma obra (como será visto principalmente
no poema dias dias dias). Associando-se a essa noção, está ainda o cromatismo das
palavras, que pode criar, por si só, um discurso próprio, ao se ler uma cor de cada vez.
Das multiplicações dessas três maneiras de disposição discursiva ambígua, constrói-se
um discurso macromultidirecional nessa série (pré-)concreta, em que se associam as
microdirecionalidades relativas à sinteticidade das palavras para um fragmentado
discurso multidirecional. Ao comentar o processo de sobreposições de direções nas
Bagatelas de Webern, Flo Menezes analisa essas possíveis fragmentações direcionais
como ramos deslocados de uma direcionalidade una, conceito que se aplica totalmente
à série poetamenos:
O que nos importa, finalmente, é que o Op. 9 constitui-se num precioso
monumento de processos direcionais com os diferentes aspectos do som em
um curto espaço de tempo, pontuando, assim, que todo discurso é em si
mesmo direcional, mas nem toda direcionalidade é discursiva! As
microdirecionalidades de Webern estão aí para provar tal fato.
(MENEZES, 1992).
Ora, é exatamente assim que se estabelece poetamenos! Diversos múltiplos
processos direcionais com os diferentes aspectos da escritura, (ambiguidade dos
termos e frases e também possibilidades de leitura espacial) que acabam em si
mesmos. Importante também a noção que nem toda direcionalidade é diretamente
discursiva, pois ela pode servir apenas para uma coesão interna da articulação de
elementos de uma obra, acabando em si mesma.
35
2.1.2. A Klangfarbenmelodie weberniana em poetamenos
A matriz do processo composicional de poetamenos é a junção da técnica
chamada de Klangfarbenmelodie com a escrita poética. Como já foi dito na introdução
dos poemas, Augusto explica a técnica como sendo o uso de uma “melodia contínua
mudando de um instrumento para o outro, mudando constantemente sua cor” (Fig.6),
significando que para a produção de seus poemas as frases seriam fragmentadas,
mudando (literalmente) de cor, constituindo assim timbres diversos com um discurso
próprio.
Ao longo dos poemas, essa técnica é utilizada de algumas formas, e a indexação
delas permite de certa forma a compreensão dos horizontes da proposta de
intersemiose de Campos. De imediato, é preciso colocar que, assim como afirma
Williams, não há nenhuma correspondência objetiva entre as cores escolhidas e as
mensagens colocadas no texto (WILLIAMS, 1986, p.58). Porém, é claro o uso da
relação entre as cores como artifício do poema, algo claro principalmente no uso da
complementaridade das cores. Augusto se utiliza, em todos os poemas, de apenas seis
cores, sendo que todas elas simultaneamente só são apresentadas em um dos poemas
(“dia, dias dias”).
Para a execução da técnica weberniana, foi necessário para Augusto estabelecer
pontos de segmentação de melodias dadas, construindo assim melodias com o
discurso também cromático. Esse corte se dá de maneiras muito diversas: na maioria
dos poemas, o corte se dá entre palavras ou frases, mas há poemas nos quais os cortes
são mais específicos, feitos em sílabas e até em letras (como em lygia fingers e
trechos de outros). Como veremos, o primeiro poema da série, poetamenos, foge um
36
pouco dessa característica, tendo apenas duas mudanças de cor no poema todo. Dessa
forma, é possível separar todas as fragmentações dos poemas em três tipos: 1) corte
entre duas palavras; 2) corte entre duas sílabas; e 3) corte entre dois fonemas.
Como consequência dessas diversas articulações e tipos de cortes, existem nos
poemas inúmeras possibilidades de leituras de vozes e alguns cortes possibilitam a
leitura de vozes independentes dos versos-padrão da escrita poética, como veremos,
dentre outras coisas, a seguir.
2.2 Possíveis elementos de intersecção entre a composição weberniana e os
poemas da série poetamenos
Nesse momento, pretende-se fazer o recorte mais específico da monografia: a
recolocação das características visitadas até agora diretamente nos textos. Tem-se
como finalidade nesse momento a resposta para a seguinte pergunta: como todas as
características da obra weberniana e da poesia concreta se expressam dentro dessa
série? Para tanto, há a necessidade de se criar redundância tanto com tudo que já foi
colocado nas partes anteriores a esta quanto entre os objetos que estão sendo
analisados, visto que o estudo aqui deixa de ser generalista e passa a ser mais
empírico, material.
A ordem que seguiremos na análise é exatamente a ordem da publicação
original, mesmo levando em conta que, como bem afirma Bruce Williams em seu
artigo Campos em cores (WILLIAMS, 1986, p.56), os poemas já foram estavam
dispostos em folhas soltas em outras publicações, de modo que a sequência deles
poderia também ser um elemento aberto da composição.
37
Não se pretende, em nenhum momento, tentar esgotar as possibilidades de
leitura da série analisada, mas colocar em evidência possíveis leituras dos poemas a
fim de compreender como a intersemiose da técnica e obra weberniana se manifestam
nesses poemas de Augusto de Campos. Além disso, não é a intenção dessa
monografia analisar os poemas sob um ponto de vista estritamente semântico, de
entendimento do significado do texto e das interligações internas dos poemas e da
série. Esse aspecto semântico será consequência do foco da análise aqui presente:
visitar a técnica utilizada, observar o nível neutro da obra e suas decorrências
sintáticas.
39
O primeiro poema da série (Fig. 7), homônimo a ela, é sem dúvida o que mais
destoa dos ulteriores. poetamenos é um poema curto, no qual todos os curtos versos19
começam alinhados a uma margem à esquerda. O poema é predominantemente de
uma cor – o roxo – mas há o uso do amarelo (sua cor complementar) em quatro
pequenos trechos.
Partindo primeiramente da organização espacial desse poema, todas as versos
são alinhados a esquerda, e são tão curtos que é possível lê-los como se eles fossem
uma linha quase contínua; como se a versificação fosse invertida da horizontal para a
vertical. Não há aqui nenhum espaço a mais, nenhuma palavra solta no papel, de
modo que a direção de leitura se torna única, mesmo com um discurso pautado na
fragmentação.
Em decorrência dessa direção única do poema, fica coerente a descrição desse
primeiro texto como sendo um “proêmio lírico”20
da série toda (BESSA, 2007, p.62),
compreendendo-se lirismo como uma forma na qual o poeta se direciona diretamente
ao leitor, falando de si próprio.
Porém, mesmo com essa leitura ‘contínua’ colocada, a técnica da
Klangfarbenmelodie ainda se faz presente. Em quatro das quinze linhas, há
intervenções em amarelo no meio do discurso poético roxo. Nas duas primeiras
aparições, o ponto de corte é dado dentro das palavras usadas (“roch-aedo”, “rup-
estro”), o que explicita novas possibilidades de leitura dessas duas palavras-valise. Na
primeira palavra, a divisão se dá entre o radical roch-, relativo a rocha, e aedo (do
19
Nesse caso, talvez ainda faça sentido usar o termo verso, diferente dos outros poemas da
série. Isso de dá pelo uso do espaço não ser estrutural nesse caso. O discurso aqui se dá não de forma
precisamente concreta, ou seja, negando uma narrativa temporístico-linear, e estabelecendo um
desenvolvimento espácio-temporal (cf CAMPOS, 1958). 20
Entende-se aqui por proêmio um pequeno trecho introdutório de uma peça que ao mesmo
tempo que a inicia, também é uma síntese de seu todo.
40
grego: poeta, bardo). Já no segundo caso, há a soma de rupestre (relativo a rochas)
com estro (também do grego: inspiração) – (SCARDINO, 2011, p.7). Com efeito,
assim cria-se a partir dos pontos de corte de roxo para o amarelo, uma relação de
complementaridade (como das cores roxo e amarelo) entre dois elementos muito
distantes: o poeta/inspiração de um lado e do outro a rocha, símbolo talvez da
existência inerte. Processos criativos semelhantes podem ser depreendidos de outras
palavras e trechos desse poema (como as palavras poetamenos, uni-sono), mas esses
dois casos explicitados já servem de exemplo para a relação da compressão das
palavras e conceitos em Augusto de Campos e a redução de frases musicais em
instâncias mínimas em Webern: muito em pouco.
Ainda se tratando de Klangfarbenmelodie, Campos se utiliza também da quebra
do verso para picotar a ‘melodia’ contínua sem uma mudança de cor. Assim como
dentro de uma mesma palavra estabelece um ponto de corte através da cor, atribuindo
àquela palavra um significado extra, o ponto de corte dado pela ‘linha pulada’ é
igualmente ampliador de significados. Um primeiro exemplo desse uso é o colocado
na passagem da décima linha para a décima primeira linha: no nono e no décimo
verso, constrói-se em pedaços o fragmento “ab-rupt” que em português e em inglês
significa uma mudança brusca, súbita. No verso seguinte, essa mudança se dá,
subitamente, sem deixar a palavra terminar sua construção inteira, o que coloca no ato
de escrever e no desenho da frase do poema o significado da palavra segmentada. Um
segundo exemplo da quebra de verso como resignificadora é a passagem da décima
terceira linha para a décima quarta: ao construir a frase “us somos um uníssono”
(lendo-se us como a tradução inglesa do verbete nós), o poeta coloca um ponto de
ruptura no meio da palavra uníssono, ao mesmo tempo saltando para o próximo verso
41
e mudando de cor do roxo para o amarelo. Esse corte diz em si mesmo a qualidade do
‘ser uníssono’ do poeta, estabelecendo-se entre a relação de complementaridade das
cores e de ruptura dos versos. É cabido reiterar que essas certamente não são as únicas
interpretações que podem ser depreendidas desses trechos do poema.
Mesmo sendo um poema lírico-contínuo no qual uma voz solo fica presente do
início ao fim, o silêncio no poema também pode ser evidenciado, não tanto pela
espacialização, e sim pela brevidade do texto, que se manifesta tal qual uma “bolha de
música imersa no silêncio” (como vimos em Barraud), sendo o silêncio o enorme
branco no qual as poucas palavras estão imersas. De forma semelhante, a vetorização
do poema no sentido vertical contribui para tanto, já que nessa orientação as palavras
são mais distribuídas e colocadas em justaposição totalmente simétrica com o silêncio
que as cerca, engendrando em uma distância enorme entre os versos. Os cortes de
verso e as fragmentações de cor podem também ser indiciados como elementos
criadores de pausas na leitura, a partir do momento que esses fatores criam rupturas e
discriminam diferentes termos.
Um último ponto que cabe ser colocado, ou melhor, reiterado, sobre esse poema
é que, estando este em um discurso unidirecional (lembrando que passível de muitas
interpretações) as cores estabelecem entre si uma relação de dependência, de forma
que não há uma voz resultante de cada cor. Porém, cabe pontuar que as diferentes
cores nesse poema, mesmo não tendo uma independência de vozes, em certo
momento podem estabelecer uma independência de caráter (tal qual visto no exemplo
dos pontos de corte roch-aedo e rup-estro, nos quais a voz em roxo se refere a rochas
e a voz amarela se refere ao poeta e sua inspiração).
42
2.2.2 paraíso pudendo
Fig. 8 – paraíso pudendo
O segundo poema da série (Fig. 8) inaugura novas possibilidades de construção
de significados. Diferente de poetamenos, paraíso pudendo traz uma disposição
43
espacial das palavras bastante distribuída, com as algumas palavras de fato espalhadas
no papel. O poema faz uso de quatro cores, a saber: azul, vermelho, verde e amarelo.
Relacionando esta peça com o poema anterior, percebe-se uma continuidade da
questão amorosa apresentada no primeiro texto, com a ideia de ser uníssono. Essa
continuidade fica evidenciada quando, em uma das linhas, é usado o termo “petr’eu”
(soma de petr- relativo à pedra, com eu), que se relaciona diretamente com o poeta-
rocha descrito na secção anterior. Isso nada mais é do que o uso motívico dos
elementos trabalhados no primeiro poema, de forma que seja criada uma coesão de
discurso também nos moldes de Webern, pela redundância e resignificação de
material já posto.
Um aspecto que tem de ser discutido sobre esse poema é como o silêncio se
constrói no universo próprio do texto. Dentro desse caminho, cabe pontuar algo
(pouco) semelhante a poetamenos que se dá em todos os poemas da série: as poucas
palavras do texto se espalham pequenas sobre o enorme branco do papel. Como em
Webern: o silêncio estrutural, independente da disposição espacial específica. Porém,
a colocação visual das palavras nesse poema se dá de tal forma que o silêncio é
construído de maneira peculiar. Uma primeira peculiaridade é como se inaugura nesse
poema o uso de espaçamentos maiores dentro de cada linha, entre diferentes palavras
ou em relação à margem. Coadunando-se com isso, a maior parte das linhas da peça
tem poucas palavras. Tal recurso cria espaços vazios dentro da fruição da leitura,
gerando uma sensação maior de imersão no silêncio. A fim de exemplo está a
expressão “ah”, escrita em azul na segunda linha, que se encontra totalmente isolada,
imersa em branco-silêncio. Outro evento que acontece nesse poema relativo ao
espaçamento é o modo como o poeta propõe uma mudança rítmica na leitura na
44
décima segunda linha: escreve-se “espalmas” com espaços maiores e homogêneos
entre cada uma das letras. Dessa forma, a leitura fica condicionada a uma rítmica mais
distendida, lenta.
Direcionando a leitura para a discussão das possibilidades emanadas pela
complexidade espacial-visual, a quantidade de interpretações possíveis se torna
praticamente inesgotável. Frases podem se formar, mas não necessariamente sua
existência é cristalizada. Palavras novas constantemente brotam das novas leituras –
como a palavra “ah-braços” decorrente da soma desses dois fragmentos em azul, visto
que eles estão alinhados (BESSA, 2007, p.62). Assim, o discurso é definitivamente
multidirecional, ou seja, há (muito) mais de um caminho a ser seguido no texto
escrito. Porém, cabe notar que a multidirecionalidade desse texto se dá também na
compressão de palavras e frases, criando palavras-valise, que carregam um mundo de
somas de significado dentro de si (como as palavras “exempl’eu” – soma de exemplo
com eu ou “elila” – estranha possível soma de ele e ela). Para essa construção
multidirecional, o poema poderia até não ser multicolorido, e então o uso de cores
soma uma outra enorme gama de significados probabilísticos. Nesse poema, é
possível dizer que, como em poetamenos, as cores têm caráter e motivos fonéticos
generativos de significantes sui generis, de forma que dentro de cada cor, às vezes é
possível ver um trabalho acústico-oral que a distingue das outras. Dessa forma, é
possível ler tanto o discurso que cada cor coloca separadamente quanto os recorrentes
resultados da soma dessa elaboração cromática, num resultado semelhante a o de uma
melodia composta, ou de uma textura polifônica: mais de uma voz no mesmo plano
com relativa independência, seguindo uma direção própria diretamente influenciada
pelas vozes vizinhas. Para ilustrar essa noção de sobreposição de direções no mesmo
45
plano, vale o olhar para como se constrói o discurso da cor vermelha nesse poema,
ainda observando-se como se dá o trabalho motívico de dentro de uma direção. A
primeira aparição se dá na terceira linha, com a palavra “pubis” sucedendo o prefixo
“in” (dentro) criando (possivelmente) uma insinuação de um significante relativo a
sexualidade dentro de uma mesma palavra. Em seguida, todas as palavras que
aparecem na cor vermelha seguem a descrição do púbis: “jardim suspenso”, “paraíso
pudendo”. É interessante perceber que tal articulação se dá entrelaçando-se por outras
elucubrações do poema como que se fazendo sempre presente e mantendo o caráter
suspenso e ramificado da voz. Vale o apontamento da divisão da palavra “suspenso”
em sus-penso sendo que a primeira parte da palavra aparece cinco linhas antes da
segunda, assim, constrói-se também a semântica espacial unívoca à definição da
palavra (a suspenção gráfica para a palavra suspenso). Reforçando essa ‘suspensão’,
está o eco do fonema s, predominante da palavra suspenso, no meio da distendida
palavra “e s p a l m a s”. Essas construções são claramente um trabalho de variação
sobre temas: ideias colocadas em dialética. A variação e o trabalho de motivos
sonoros a partir da memória sonora do leitor (como o uso do fonema s no meio do
trecho “espalmas”) são análogos à apropriação weberniana da ideia de série e de que a
busca de coesão em uma obra se dá no movimento em cima de ideias matrizes.
46
2.2.3 lygia fingers
Fig. 9 – lygia fingers
lygia fingers (Fig. 9) é o terceiro e o mais radical dos poemas no que se refere ao
uso da Klangfarbenmelodie. Aqui, cinco cores trocam de posto de maneira bastante
eufórica. Augusto de Campos comenta essa obra como talvez a experiência mais bem
sucedida da série no que se refere à aproximação da técnica musical à escrita poética:
“lygia fingers” (...)
segue quase literalmente
a klangfarbenmelodie (somcormelodia
ou melodiadetimbres)
da parte inicial do quarteto
composto em 1930” (CAMPOS, 2005, p.315)
47
Antes de tudo, cabe citar que o paralelo que Campos estabelece é precisamente
com o Quarteto opus 22 para Violino, Clarinete, Saxofone Tenor e Piano de Webern,
observado brevemente no primeiro capítulo sob a ótica das mudanças sucessivas de
vozes. Coadunando-se com a fala do poeta, em lygia fingers essas mudanças de vozes
e seus pontos de corte são levados ao extremo: o corte no meio de frases e até de
palavras em poetamenos e paraíso pudendo é substituído aqui por um corte sucessivo
dentro das mesmas palavras, dado entre sílabas e até entre letras.
A fragmentação da linha contínua chega – aqui – em um limite aparente, visto
que não há como picotar uma palavra em uma instância verbivocal menor do que um
fonema e preservar sua carga sonora. Em decorrência desse gesto de
compartimentação exagerada, a carga semântica de cada pedaço colorido é diminuída,
ao passo que o cromatismo do poema acaba se focando muito mais no aspecto
fonético. Importante colocar que é possível trazer da temática do poema uma imagem
do porquê dessa picotagem mais acentuada: o poema, em certo lado, trata do ato de se
escrever poesia, e coloca, para tanto, recorrentes referências ao ato de se
digitar/datilografar, como vemos nas – talvez – palavras “digital”, “fingers” (dedos em
inglês) e até “dedat illa (grypho)” (composto quase anagrâmico-fonético da palavra
datilógrafo).
A construção dos pontos de corte não se dá em lygia fingers mais com o
intuito único de se criar ambiguidades sonoras ou palavras-valise, mas, como
veremos, na disposição de um quase serial de ecos das palavras. Assim como Webern
ou Schoenberg trabalhavam (motivos mélodicos, motivos rítmicos, etc)
exaustivamente sobre uma mesma série dodecafônica, Campos trabalha, aqui, cada
cor como matriz serial para a construção do poema. Para tanto, é designada uma cor
48
para cada “campo fonético”, e sempre que no decorrer do poema esse “campo
fonético” for acessado, a cor é recolocada. O melhor exemplo para isso é a disposição
feita sobre a palavra lygia, em vermelho: apenas pela memória fonética e a
reafirmação disso pela cor, a palavra lygia é inserida em diversos contextos, a saber:
“digital”, “illa”, “grypho”, “linx”, “felyna”, “ly”, “figlia”, “felix”, “nx”, “only”,
“lonely”. É construída dessa forma uma ampla descrição de uma personagem, lygia,
que o poeta está constantemente procurando, em diversas línguas, em diversos
tempos, épocas e cores. Como em Webern, são comprimidas ideias dentro de
instâncias curtas, mas repletas de interpretações e direções de leitura.
Seguindo por essa lógica, sempre que uma informação fonética nova é
apresentada, uma cor nova é colocada. Conseguintemente, a partir de pequenas
transformações nos primeiros temas, o campo de ação fonética de cada cor se
expande. Exemplo disso, ainda na cor vermelha, é a seguinte sequência: em primeiro
lugar, é apresentada a palavra lygia, que por aproximação fonética se transmuta na
palavra “lynx” (talvez a palavra lince misturada com link, relação em inglês), duas
linhas depois, aparecem as letras nx (talvez do latim, nox, noite), provenientes
foneticamente da palavra lynx, e não de lygia. Como em Webern, uma relação muito
forte de coesão interna se estabelece assim dentro de cada cor, transpondo a coesão
para um nível que abrange a própria peça como um todo.
Para além do discurso cromático, o poema se estrutura em texto sem uma
narrativa definida, apenas com blocos semânticos (PONDIAN, 2005, p.4) que
agrupam qualidades descritivas e as interrelacionam continuamente. Assim, as
palavras multicoloridas rodeiam algumas temáticas, estabelecendo no acesso a eles
uma progressiva profundidade descritiva do sentimento do poeta em relação à sua
49
amada, Lygia. Algumas temáticas recorrentes seriam, a fim de exemplo: a relação
com Lygia tal qual uma relação familiar – posta nas palavras mãe, figlia (filha em
italiano) e sorella (irmã em italiano); Lygia como ser felino – nas palavras felyna
(aproximação de felina) ou lynx (aproximação de lince); ou, ainda, o recorrente
diálogo do autor com o ato de se escrever, digitar – nas palavras digital, fingers (dedos
em inglês) e até dedat illa (grypho) (aproximação da palavra datilógrafo).
Porém, sem partir dessa profundidade de análise técnica, é interessante colocar
como Sterzi discute uma impressão primeira do texto, ainda a fim de compreender o
discurso do poema e seus locutores:
À impressão inicial de que se está ouvindo a voz do poeta entremeada às vozes da
amada (...) substitui-se à constatação de que estamos diante de um diálogo do poeta
consigo mesmo e comas ferramentas de sua escrita (está redigindo uma carta, que é
também o poema). (STERZI apud PONDIAN, 2005, p.4)
A discussão colocada aqui justifica e amplifica a compreensão de Augusto de
Campos ter, na ocasião da gravação de diversos dos seus poemas, gravado esse poema
totalmente solo, sem dividir as vozes ou as cores com outra voz (CAMPOS, 2002,
faixa 5). Essa colocação se torna importante ao passo que na possibilidade de
sonorização ou reverberação colocada por Campos se aproxima sonoramente do
sentimento descrito no texto propriamente dito.
A disposição das palavras no espaço, nesse poema, é uma amostra muito
criativa, porém muito parecida com o visto em paraíso pudendo, sob o ponto de vista
de espalhamento das palavras. Porém, diferente de todos os poemas da série, a
mudança espacial nesse poema se relaciona de forma diferente com o discurso
cromático, já que ele se organiza de forma diversa. Nesse caminho, as divisões
espaciais frequentemente servem para propiciar aberturas semânticas. O mais
enigmático exemplo que pode ser dado nessa linha é o do final do poema, que termina
50
com um fonema t duplicado (“tt”) ligado por um traço de salto de linha a uma letra “l”
solitária no outro extremo oposto da linha. Esse salto pode ser interpretado, por
exemplo, como a distância entre os elementos da relação ou um ciclo de perpétuo
retorno para a letra “l” (de “lygia”), primeiro e último elemento apresentado no
poema.
Ainda como em paraíso pudendo, o discurso desse poema também é bastante
pautado no uso do branco/silêncio como caráter estrutural, colocado principalmente
nos espaços assimétricos entre palavras (como na quinta linha, onde as repetições da
palavra “linx” estão totalmente separadas da palavra “quando”), nas linhas quase
vazias e também na própria brevidade do texto e do discurso. O espalhamento das
palavras confere também, em certo grau, a multidirecionalidade de possíveis leituras
do texto, de forma que se podem criar inúmeras frases com poucas palavras. Um bom
exemplo disso é a primeira linha do poema, “lygia finge”, seguido de “rs”. Lendo
apenas a primeira linha, podemos inferir que Lygia finge, usando essa segunda
palavra como um verbo. Em seguida, acrescentando o “rs”, o discurso pode ser
direcionado também para a palavra fingers, do inglês dedos. Somando ainda as
palavras seguintes, “ser digital”, as direções de leitura se ampliam: pode-se inferir que
“Lygia é um ser digital” ou até que “Lygia finge ser digital”. Dessa forma todas as
palavras, com exceção de Lygia, são generativas de um discurso ambíguo, aberto.
51
2.2.4 nossos dias com cimento
Fig. 10 – nossos dias com cimento
Logo após lygia fingers, nossos dias com cimento é o quarto poema da série
poetamenos (Fig. 10). Sob um ponto de vista estrutural, ele é muito semelhante ao
segundo poema da série, paraíso pudendo, como veremos a seguir, mas tem como
característica a criação de níveis de leitura com frases mais longas. No poema são
52
utilizadas quatro cores: roxo, verde, vermelho e amarelo. É também o segundo maior
poema da série.
Um primeiro ponto a se colocar é que neste poema a disposição espacial do
texto e das cores retoma um caráter estrutural na construção de ambiguidades textuais
e suas consequentes multidirecionalidades de leitura, fato um pouco deixado de lado
na escrita de lygia fingers. Novamente, como em paraíso pudendo, estabelece-se a
abertura de direções entre uma leitura de cada cor e a possível leitura de todas as cores
simultaneamente. Além disso, é interessante postar que há construções possíveis de
leitura nesse poema bem mais longas do que nos poemas anteriores, onde as
ambiguidades eram criadas na articulação de três ou quatro palavras, quando tanto.
Aqui, há construções de possíveis frases mais longas mesmo que essas frases estejam
construídas sobre a mesma estrutura base de pontos de corte do segundo poema (quase
sempre entre duas palavras). A fim de exemplificar esse crescimento dos fragmentos
lidos, cabem alguns exemplos. Um primeiro exemplo que pode ser dado está na
segunda metade do poema, com a entrada da voz vermelha (“mendigos são...”). Nesse
trecho, há a possibilidade da construção de uma enorme frase multicolorida, a saber,
“mendigos são os que sentam dois nos bancos da praça ao vento tão ventre segurando
tanto as mãos”, mesmo que, dentro dessa grande frase, outras possam emergir como
alternativas, como na leitura exclusiva da cor vermelho nesse mesmo trecho:
“mendigos são dois nos bancos da praça ao ventre tantos passos”. No final do poema,
ainda é interessante citar como o poeta criou um discurso de simultaneidades – tal
qual uma polifonia musical – na escrita verbal. Enquanto as cores roxo e vermelho
estão dialogando entre si (versando sobre a despedida, o “boa noite”, o “até amanhã”)
a cor amarelo urge como novidade ao diálogo e coloca, como em vocativo, o verbo
53
“perguntam”, tal qual um narrador descrevendo e propondo o momento seguinte. Em
seguida, a pergunta é dada na voz azul: “fim?”.
Tal qual em Webern, em nossos dias com cimento temos como recurso para a
composição uma grande compressão do material trabalhado na peça, com palavras
selecionadas especificamente para serem múltiplas de significado, além de frases bem
comprimidas. Na primeira metade do poema, é plausível dizer que cada voz utiliza-se
de motivos fonéticos próprios em grande parte do poema, como visto em paraíso
pudendo e lygia fingers. Dentro das vozes, uma vez que motivos fonéticos são
estabelecidos, começa um trabalho de variação mínima intrínseca a cada cor.
Ilustrando essa técnica, podemos observar primeiramente o caminho que a cor verde
toma na primeira metade do poema: nesse trecho, as palavras designadas para essa cor
são: “cabo, cubo, cubos e ao cabo”, o que demonstra claramente um trabalho de
rearticulação mínima. O segundo exemplo para essa construção está na voz vermelha,
também em suas primeiras palavras: “e o menos, em, menos, men digos”. Aqui
também, está claro o trabalho sempre dentro das consoantes m e n e das vogais e e o.
Dessa forma, é possível constatar, sob um ponto de vista de procedimento
composicional, uma diferença de técnica entre a primeira parte do poema (variações
sob temas fonéticos com suas consequências semânticas) e a segunda parte do poema
(construção de frases longas e discursos mais livres de uma técnica de repetição
fonética).
Nessa separação entre técnicas, o uso do silêncio se faz estrutural, assim como o
branco/silêncio também é estrutural nesse poema. Há uma enorme separação entre a
primeira e a segunda metade do poema, separação essa construída três linhas bastante
silenciosas, que contém no máximo cinco letras cada um.
54
Um ponto interessante a ser colocado nesse momento é, também, como esse
poema é totalmente coeso com os que o precedem na série dada. Como bem afirma
Scardino:
“O nome Lygia, que propomos atuar como a série weberniana a guiar a composição,
se insinua no texto — foneticamente, na palavra ―conchiglia (concha em italiano)—
como refúgio, que protegeria o poeta, e, também, como material (calcário) que
constitui a cidade, como parte do cimento.” (SCARDINO, 2011, p.9)
Interessante ainda traçar um paralelo, a partir da ideia construída pela autora,
entre o material calcário, cimento e o binômio poeta/rocha, construído e reiterado
desde o primeiro poema da série. A situação é, portanto, inteiramente retratada sob o
ponto de vista do poeta como narrador, o que se funde com a proposta de
reverberação oral feita por Augusto de Campos, na qual ele mesmo recita o poema e
todas as suas vozes com apenas um timbre (CAMPOS, 2002, faixa 6).
55
2.2.5 eis os amantes
Fig.11 – eis os amantes
Em eis os amantes (Fig. 11), quinto poema da série, a construção poética é feita
apenas com duas cores em constante contraposição. Essas cores são o azul e o laranja,
cores complementares, fato que já começa a traçar como esse discurso colorido é
estruturado.
56
Ao usar apenas duas cores (complementares) para exprimir sua relação com sua
amada, o poeta coloca, em cada voz, a fala de um dos amantes em questão. De uma
cor, o poeta; da outra, sua amada: eis os amantes. Edificando-se o poema dessa
maneira, percebemos nas duas vozes uma relação de trocas e fluidez: ambas as vozes
completam e respondem palavras de sua cor complementar do início ao fim.
Corroborando essa proposição, está também a oralização feita por Augusto de
Campos deste mesmo poema, já que ele escolhe fazer essa reverberação oral ao lado
de Lygia de Azeredo Campos (sua esposa), dividindo-se a ele em uma cor (laranja) e a
ela outra (azul) – (CAMPOS, 2002, faixa 7).
Nessa construção de diálogo, o discurso tende a uma leitura horizontal-linear, da
qual se torna um tanto inevitável escapar. Ao passo que o poeta criou uma constância
na relação entre as duas vozes (sempre uma completando a outra), o nível de abertura
do poema se torna igualmente constante, já que todas as relações e direções de leitura
possíveis se tornam subordinadas àquela estruturação. Interessante colocar, em outras
palavras, como as duas vozes estabelecem entre si uma relação de dependência e
independência: para a compreensão do texto em um lado semântico, é necessária a
leitura de ambas as vozes simultaneamente. Porém, o uso de duas cores e o conteúdo
semântico posto por cada uma torna essencial pontuar como elas também estabelecem
entre si uma independência. Ainda em outras palavras: dois personagens dividindo o
mesmo texto. Os exemplos dessa divisão estão no poema todo, seja em pequenas
palavras (“cima-eu”, “est-esse”) ou até em frases maiores (“eis os – amantes – sem –
parentes – senão os corpos”).
Partindo da compreensão desse poema como uma relação entre dois polos que
se completam, nasce uma característica muito peculiar desse texto: o uso da simetria
57
como estruturante na construção do poema. Em um primeiro nível, cabe falar dessa
simetria em um sentido verbal, textual. Constantemente, são construídos blocos
textuais que se justapõe a blocos opostos a eles, complementando-os de maneira
simétrica. Esse fenômeno ocorre duas vezes no decorrer do texto, e invariavelmente
no final dessa construção estabelece uma síntese entre as duas vozes em questão. A
saber, isso ocorre quando o poeta escreve:
Fig. 12 – Trecho do poema eis os amantes
Nesse trecho (Fig. 12), fica evidente a relação binomial entre diversos termos
(“um” com “outr-”; “cima” com “baix-”; “eu” com “ela”), numa construção
semântico-simétrica. Logo em seguida, a completude da relação é dada com êxtase da
complementaridade: “ecoraçambos”.
A segunda e mais evidente relação de simetria construída nesse poema é a
disposição espacial espelhada sobre um eixo vertical na qual o poema se estrutura.
Durante todo o poema, esse eixo central é respeitado, mas diferentes usos espaciais
(simétricos) são colocados. Por vezes, palavras se distanciam do eixo, em outros
momentos, ficam sobre ele.
A composição partindo de espelhamento é, como bem afirma o próprio Augusto
de Campos, uma das principais características da composição weberniana. Nesse
momento, se torna pertinente fazer um pequeno paralelo de eis os amantes com uma
das análises gráficas feitas por Carlos Kater sobre os cânones de Webern (Fig. 13).
58
Fig. 13 – Análise gráfica de Carlos Kater sobre o a 6ª variação nos cânones de WEBERN
É surpreendente como o procedimento usado por Campos é tão parecido com o
de Webern, a ponto da representação gráfica da música do compositor austríaco se
assemelhar profundamente com a organização espacial do poeta. Em ambos, a peça se
estrutura partindo de um espelhamento sobre um eixo central, do qual para os dois
lados palavras e notas se articulam em diferentes alturas e espaços. E, não obstante, o
claro uso da Klangfarbenmelodie em ambos, com melodias e linhas picotadas para
construções de complementaridade. Porém, em Webern, o espelhamento não é apenas
relativo ao ponto de início dos acontecimentos musicais, e sim, também, com a
retrogradação e inversão de gestos anteriores, técnicas tradicionais do serialismo. Do
outro lado, Campos utiliza-se do eixo de espelhamento para constituir um eixo de
espelhamento de opostos e coloca as palavras postas sobre o eixo como possível
síntese para essa construção, como já visto no caso das palavras “cim-eu” (esquerda),
“baix-ela” (direita) e “ecoraçambos”, centro.
59
Um outro ponto em eis os amantes que cabe ser dito é como nessa disposição
simétrica se faz um trabalho rítmico bastante diferenciado, que sempre usa o branco-
silêncio para a colocação de diferentes velocidades de escrita. Algumas palavras ficam
afastadas, isoladas, o que também lhes confere um caráter de unidade, de
ensimesmamento semântico (tal qual as palavras “amantes” e “parentes”, que mesmo
completando o texto em laranja, se articulam entre si por sua simetria e distância do
eixo). Em outro momento, palavras são distendidas, colocando-se espaços entre suas
letras (“d u p l a m p l i n f a n t u n o (s) e m p r e”) de modo que a leitura nesse
momento se torne mais vagarosa, visto que o tempo de leitura se assemelha
diretamente com o espaço que o texto ocupa na página. Dessa forma, o silêncio é,
também aqui, essencial para a elaboração do poema: ele que permite toda a
contraposição e justaposição espacial do discurso poético.
Voltando nossa atenção para as aberturas de leituras possíveis no poema, aqui as
ambiguidades e diferentes leituras se dão tanto pela organização espacial (mesmo que
ela direcione para uma linearidade única, já vimos que os elementos mais isolados
espacialmente adquirem significados em si mesmos além do significado que a sintaxe
linear textual lhe traz) quanto pela colocação de palavras-valise. Ilustrando-se isso,
podemos olhar a palavra “gemeoutrem”, que ao mesmo tempo pode se relacionar ao
verbo gemer e também a palavra gêmea, completando-se o termo irmã gêmea com a
palavra anterior; outra palavra é “semen(t)emventre”, que ao mesmo tempo coloca a
palavra sêmen e a palavra semente, em uma articulação com o uso de ampliações de
inserção de significados pelo uso de letras em parêntesis, recurso típico da poesia
concreta. Assim, eis os amantes também utiliza-se de uma compressão própria para
60
multidirecionalizar o discurso poético, suprimindo conteúdos múltiplos dentro de
palavras carregadas.
61
2.2.6 dias dias dias
Fig. 14 – dias dias dias
No último poema da série (Fig. 15), finalmente todas as seis cores (verde,
vermelho, azul, roxo, amarelo e laranja) da série aparecem juntas. Aqui se elabora a
composição mais aberta e complexa de toda série.
Com as seis cores em um mesmo poema, o número de possibilidades de leitura
se multiplica bastante em relação a todos os poemas anteriores. Diversas direções
62
diferentes de leitura aqui se constituem, como veremos a seguir, todas possibilitadas
pela soma de um fator espacial (semelhante aos poemas anteriores) e a diversidade
cromática. Um primeiro ponto que cabe colocar é como cada cor estabelece, de modo
geral, uma direção e uma entonação própria, com uma disposição fonética própria.
Assim, cada cor seria uma das facetas dos sentimentos inerentes ao caos interno
fragmentado do poeta, de modo que o fonema se torna também fator semântico
independente de uma segunda articulação, devido principalmente a relação de
memória textual interna e entre os poemas da série. A primeira cor que aparece no
poema é o verde. Alienando-a das outras cores, sua voz fica aproximadamente da
seguinte forma: “dias dias dias esperança deum só dia expoeta expira: “sphynx e gypt
y g”. Em primeiro lugar, percebemos uma presença muito grande do fonema s, a
repetição constante da palavra dia e um uso grande das letras g, y e x. De tal forma, se
estrutura aqui uma rememoração a elementos fonéticos trabalhados no poema lygia
fingers, que repetidamente aparece nesse texto21
. Em segundo lugar, é interessante
observar como a construção espacial da voz se dá de tal forma que não é possível lê-la
de forma fluida, as linhas são sempre interrompidas, não há uma sintaxe tradicional
culminando, inclusive, com a voz acabando com uma consoante flutuante (“g”),
fortalecendo ainda mais uma Klangfarbenmelodie não entre diferentes cores, mas
dentro de uma mesma cor! A segunda cor que é apresentada é o vermelho, que segue
com o seguinte texto, também alienando-o do resto das vozes e do espaço: “sem uma
linha minh a mor amemor IA e stertor AR rticula NÃO”. Nessa construção,
percebemos uma fala diferente da primeira (verde), pautado numa coesão interna
baseada na redundância fonética diferente, pois aqui a repetição se dá sempre em
21
A cor verde foi, inclusive, utilizada para um campo fonético semelhante (g, y, n e x) em lygia
fingers.
63
cadeia, ou seja, uma palavra em geral relembra aquela que a precede (“linha” – “minh
a”; “a mor” – “amemor IA”; “stertor – AR”). Porém, da mesma forma que a verde, a
cor vermelha conta com uma disposição profundamente fragmentada dentro de uma
mesma cor, de forma que a melodia fica duplamente fragmentada, entre cores e dentro
da mesma cor. Cabe colocar que há fluidez na leitura dessa linha isoladamente, tanto
pela coerência interna que ela estabelece quanto pela sua disposição espacial, sempre
centralizada no meio da página. Fica evidente que a cor roxa se constrói de maneira
semelhante à verde e a vermelha, mas com conteúdo próprio e alinhada sempre à
direita da página. A quarta cor a aparecer, o amarelo, conta com um recurso um tanto
parecido, também repetindo palavras e constituindo frases próprias. Separadamente, o
texto que dela pode ser lido é o seguinte: “L EMBRAS DEMIMLYG OH SE ME
LEMBRA E QUANTO”. Um primeiro e importante ponto inaugurado nessa voz é o
uso da caixa alta (nesse caso no texto todo, mas esse motivo perpassa outras cores de
forma discreta), pois ela cria, para além do discurso cromático e do textual espacial,
uma nova possibilidade de articulação, como uma nova forma de fragmentar uma
determinada linha já fragmentada com cores. Exemplo disso é como a palavra amarela
“DEMIMLYG” se associa com o vermelho de “IA” (que na outra voz completa a
palavra memória) completando a frase, inteira em caixa alta: “LEMBRA DE MIM
LYGIA”. Dessa forma, o conceito de Klangfarbenmelodie se expande ainda mais,
pois há uma dupla articulação da picotagem da “melodia” em questão. Já a cor laranja
estabelece entre si uma voz profundamente fonética, sempre baseada no fonema s,
inaugurando entre si uma coerência sonora, mas também uma articulação semântica,
com a colocação de palavras como “sós” ou “só” ou a palavra-valise “segúramor”. O
mesmo acontece com a cor azul, última a ser apresentada no poema. Nela, a coerência
64
se dá pela fragmentação excessiva da linha em questão, com uma sequência de
fonemas e proto-palavras das quais é muito difícil depreender qualquer significado
(“Urge t g b sds vc filhazeredo pt”).
Contudo, é perceptível que mesmo que seja possível compreender em parte o
poema pela leitura separada das cores, as múltiplas compreensões do discurso só
podem se dar na leitura simultânea de todas as vozes em questão, e de como elas se
articulam entre si. Tal qual nos outros poemas, as direções de leitura aqui também são
múltiplas, e ainda mais visto a quantidade de cores em questão. Em diversos
momentos, cores completam as outras conferindo a elas significados inesperados. Um
claro exemplo para isso é como o fragmento “dias sem uma” pode ao mesmo tempo
ser completado pela palavra “esperança” quanto pela palavra “linha”, o que confere à
frase ao mesmo tempo um caráter objetivo (de dias sem escrever) e subjetivo (da
esperança, talvez esperança da escrita).
Como já pode se perceber, aqui, como nos outros poemas, há uma organização
bastante concentrada e motívica de cada cor e do poema. A fim de estabelecer a
semelhança com Webern, é sempre importante ressaltar essa pretensa compressão,
colocada aqui tanto na construção de palavras quanto de frases sempre com
significações curtas e múltiplas em figuras pequenas e simples.
Ainda pensando no trabalho motívico presente no poema, é importante mostrar
como dias dias dias relaciona-se tematicamente e serialmente com todos os poemas
da série que o precedem. Além de tratar também da separação com a amada Lygia, o
poema em questão também se utiliza de diversos motivos fonéticos de outros poemas,
a saber: a palavra “LY GIA” pode ser lida entre a cor amarela e a cor vermelha, e a
65
palavra “s e p a r a m a n t e” também é uma construção que remete diretamente ao
poema anterior, eis os amantes.
Cabe ainda pontuar metodicamente que o branco-silêncio aqui também é fator
estrutural para a construção verbal cinética, tanto para a discriminação e fragmentação
de linhas verbais e ideias (como já visto) quanto para criar diferentes velocidades de
leitura (“s e p a r a m a n t e”).
Dessa maneira, estabelece-se aqui nesse poema uma síntese profunda e densa de
toda série poetamenos e das técnicas nela utilizadas. A Klangfarbenmelodie com
palavras!
66
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finda a análise da série poetamenos, é possível concluir não apenas que a obra é
uma composição baseada em uma proposição conceitual intersemiótica, mas que
poetamenos é não menos do que uma obra de arte pautada na intersemiose das
linguagens verbal, sonora e, como não dizer, também espacial. Conclui-se isso,
partindo das análises, pelo uso da palavra com uma profunda preocupação com sua
sonoridade em disposições espaciais também plásticas.
Alguns aspectos dessa soma se fazem tão frequentes a ponto de merecerem
destacamento das (infindas) possibilidades que emanam da série.
O primeiro é o uso, como em Webern e em outros diversos expoentes do século
XX, do silêncio como pilar estrutural da composição. O silêncio na obra determina ao
mesmo tempo três fatores que dialogam com todas as matrizes possíveis da
composição. Em primeiro lugar, a organização visual dos poemas têm diversos
espaços brancos inseridos no corpo do texto, o que, por si só, já propõe uma leitura
visual extraverbisonora da peça. O poema é, além de poema, quadro. O segundo
aspecto que o vazio-silêncio coloca partindo da organização visual é como essa
mesma organização propicia incessantemente a determinação da temporalidade da
série em questão: frequentemente, espaços brancos são dispostos entre palavras ou
67
inseridos dentro de palavras, o que necessariamente impõe uma condição rítmica
adversa para a leitura da peça. Assim, reforça-se ainda mais a ideia de poema-
partitura. Em terceiro lugar, está a ampliação e a compressão que a espacialização
coloca para a sintaxe do texto. As palavras não precisam seguir mais uma lógica
direcional tradicional, havendo aqui, então, a reinvenção da proposta de frase à forma
de Augusto de Campos (sem esquecer que poetas que o precedem já tenham feito
experimentações poéticas semelhantes, como em Un coup de dés de Mallarmé ou na
poesia de e.e. cummings).
Além do silêncio, é interessante perceber como a poética de Campos foi além da
Klangfarbenmelodie musical e possibilitou a exploração de áreas que a linguagem
musical naturalmente não alcança, principalmente em um discurso narrativo com uma
semântica convencionada. As palavras, diferentes das notas, tem dentro de si mesmas
um significado convencionado, de tal forma que a criação de ambiguidades funcionais
do discurso verbal naturalmente é mais evidente do que no discurso sonoro.
Ainda desse ponto, é possível concluir que Augusto de Campos constrói (por
vezes simultaneamente) quatro técnicas que dialogam com a lógica da
Klangfarbenmelodie para o discurso verbal, mesmo que anunciando que iria utilizar-
se apenas de uma.
1) A Conteúdoacústico-melodie inerente a qualquer construção oral: a
linguagem verbal é também, como já visto com base Pignatari e nos irmãos Campos,
uma linguagem sonora, baseada totalmente num discurso de organização de conteúdos
acústicos sob um ponto de vista semântico e melódico sob um ponto de vista sintático
(entonação). Partindo desse suposto, linguagem oral já é, em si, uma quase-
melodiadetimbres no sentido literal anacrônico do termo, já que mesmo tendo uma
68
construção técnica na qual as frases são sucessões de timbres, não há pontos de corte
ou qualquer semelhança a técnica weberniana.
2) A Farbenmelodie no discurso cromático: como anunciado pelo próprio
Augusto de Campos, dentro do uso das cores no texto se dão inúmeros cortes e
fragmentações de linhas, o que constrói um discurso timbrístico pautado na
predeterminação de que cada cor representa necessariamente um timbre diferente.
3) A Arquitetura//-melodie na disposição espacial: a disposição espacial dos
poemas constrói fragmentações linhas de leitura, engendrando em um resultado final
de leitura cor/timbre/significado. São exemplos desse tipo de técnica as inusitadas
quebras de verso ou até a simples separação de sílabas ou palavras graficamente nos
poemas.
4) A Dinâmico-melodie no uso de alterações gráficas no texto: mesmo
ocorrendo pouco, o uso de alterações gráficas propiciam, como visto, fragmentações
de linhas de leitura e abertura de significado, além de sobreposições semânticas
inerentes a um discurso timbrístico. Apenas dois tipos de alteração gráfica ocorreram
no decorrer do texto, a saber, o uso de parêntesis (eis os amantes, lygia fingers) e o
uso de caixa alta (dias dias dias).
Visto a amplitude de técnicas geradas pela intersemiose com a matriz
weberniana, é interessante recolocar como a constituição da Klangfarbenmelodie
nesses poemas nasce quase que diretamente das descobertas científicas dos séculos
XVIII e XIX por Fourier e Helmzholtz e perpassam pelas reformas e proposições
schoenberguianas da virada do século até chegar em Webern e, enfim, em Campos.
Um outro ponto que ficou evidente na elaboração sonora da série é como ao
mesmo tempo que ela se relaciona direta e deliberadamente com a
69
Klangfarbenmelodie weberniana, diversas outras texturas musicais podem ser
identificadas no texto, tal qual a polifonia clássica ou através de melodias compostas,
a textura monódica e até, em alguns momentos, partes deveras disfônicas.
Não menos importante, está a infinidade de leituras imanentes do discurso de
Campos, característica não necessariamente intrínseca à Klangfarbenmelodie. Em
todos os poemas, o espaço e o texto multiplicam a cada instante as noções possíveis
de compreensão, de tal forma que poetamenos se (trans)forma em uma obra
profundamente enigmática e quase inesgostável em termos de direcionalidade. Dessa
forma, é necessário assumir aqui que as análises dos poemas feitas no capítulo
anterior sempre terão apenas a apreensão de direções possíveis daquele que as
observa, pois a fruição da peça se torna interativa. Em outras palavras, a criação da
obra é também transferida para o fruidor!
Dessas e tantas outras formas, dispõe-se a transposição da obra weberniana
para a linguagem poética de Campos: uma teia complexa e perpetuamente
(in)decifrável.
Oralizações, verbalizações, multiplicações!
70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAILEY, Kathryn. The twelve-tone music of Anton Webern. Integral, vol. 6, 1992.
BAKER, James. Coherence in Webern's Six Pieces for Orchestra Op. 6. Music
Theory Spectrum, University of California Press, Vol. 24, No. 1, pg 1- 34, 2002.
BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. Tradução por: J.J. de
Moraes e Maria Lúcia Machado. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BESSA, Antonio Sergio. La “imagen de la voz” en Poetamenos de Augusto de
Campos. Ciberletras: revista de crítica literária e de cultura, n. 17, 2007. Disponível
em < http://www.lehman.edu/faculty/guinazu/ciberletras/v17/bessa.htm> Acesso em
06/10/2014
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 2008.
CAMPOS, Augusto. VIVA VAIA: Poesia 1949-1979. São Paulo: Brasiliense, 1986.
______. Balanço da bossa e outras bossas. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
______. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
______, CAMPOS, Haroldo & PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta. 2
ed. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
______. Tradução intersemiótica, entrevista. Florianópolis: UFSC, 2004. Entrevista
concedida a João Queiroz.
______, CAMPOS, Haroldo & PIGNATARI, Décio. plano piloto para poesia
concreta. Disponível em http://www.poesiaconcreta.com/scritos/plano_piloto1.html>
Acesso em 06/10/2014
______, BANDEIRA, João; BARROS, Lenora de. Grupo Noigandres. São Paulo:
Cosac & Naify, Centro Universitário Maria Antonia da USP, 2002.
CLUVER, Claus. Klangfarbenmelodie in polychromatic poems. Comparative
Literature Studies – Vol. 18. No. 3, Papers of the Seventh Triennial Meeting of the
American Comparative Literature Association, 1981, pp. 386-398.
71
CRAMER, Alfred. Schoenberg’s Klangfarbenmelodie: A Principle of Early Atonal
Harmony. Music Theory Spectrum, University of California Press, Vol. 24, No. 1, pg
1- 34, 2002.
CORREA, Thiago Moreira. A metalinguagem na poesia de Augusto de Campos.
FFLCH – USP, São Paulo, 2012.
ECO, Umberto. Obra aberta. 8 ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
GRIFFITHS, Paul. A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a
Boulez. Tradução por: Clóvis Marques. Tradução de: Modern music: a concise history
(London: Thames and Hudson, 1986) [ed. rev. de: A concise history of avant-garde
music: from Debussy to Boulez (New York: Oxford University Press, 1978)]. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
HELMHOLTZ, Hermann, On the Sensations of Tone, Dover Pub. Inc., N.Y., 1954.
KURSELL, Julia. Experiments on tone color in music and acustics: Helmholtz,
Schoenberg and Klangfarbenmelodie. Osiris n°28, The University of Chicago press,
2013
LEIBOWITZ, René. Schoenberg. Tradução por: Hélio Ziskind. São Paulo:
Perspectiva, 1981.
MAIA, Igor. Klangfarbenmelodie: Orquestração do Timbre. Unicamp, 2013.
MENEZES, Flo. Micro-macro direcionalidade em Webern: Por uma análise
direcional das “6 Bagatellen”, opus 9, de A. Webern. Atravez – cadernos de estudo –
análise musica número cinco, 1992. Disponível em
<<http://www.atravez.org.br/ceam_5/micromacro.htm>>.
MORAES, J.J. A música na modernidade: origens da música do nosso tempo. São
Paulo: Brasiliense, 1983.
PONDIAN, Juliana di Fiori. Relações entre expressão e conteúdo na poesia concreta.
Revista Estudos semióticos, número um. São Paulo: USP, 2005
SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal :
aplicações na hipermídia. Editora Iluminuras Ltda, 2001
SETHARES, William A. Tuning, Timbre, Spectrum, Scale. Springer Verlag, London,
2005.
SCARDINO, Rafaela. Um contraponto do som e do silêncio: Poetamenos e o
serialismo de Webern. Revista de literatura e teorias, número 4, 2011.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonielehre, Universal Edition, Viena, 1911. Edição
utilizada: Harmonia, Editora Unesp, 2001.
72
VASCONCELOS, Raíra Costa Maia de. Augusto de Campos e o Labirinto
Verbivocovisual de Poetamenos. João Pessoa: fevereiro de 2012
WEBERN, Anton. O caminho para a música nova. São Paulo: Novas Metas, 1984.
WILLIAMS, Bruce. poetamenos: Campo(s) em cores. Los Angeles, University of
California, Mester, 1986. Disponível em
<http://escholarship.org/uc/item/00q958f1#page-11> . Acesso em 01/03/2014.