OSVALDO FRANCISCO RIBAS LOBOS FERNANDEZ A EPIDEMIA CLANDESTINA: AIDS E

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OSVALDO FRANCISCO RIBAS LOBOS FERNANDEZ A EPIDEMIA CLANDESTINA: AIDS E USO DE DROGAS ENDOVENOSAS EM SÃO PAULO MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PUC - SP 1993

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OSVALDO FRANCISCO RIBAS LOBOS FERNANDEZ

A EPIDEMIA CLANDESTINA: AIDS E

USO DE DROGAS ENDOVENOSAS EM SÃO PAULO

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PUC - SP

1993

OSVALDO FRANCISCO RIBAS LOBOS FERNANDEZ

A EPIDEMIA CLANDESTINA: AIDS E

USO DE DROGAS ENDOVENOSAS EM SÃO PAULO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia universidade católica de São Paulo, como exlgencia parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, sob orientação do Professor Doutor Edgard Assis Carvalho.

PUC - SP

1993

COMISSÃO EXAMINADORA

Resumo

Essa pesquisa procurou desvendar e circunscrever o

universo da prática de injeções e sua inserção na cultura das

drogas, com o objetivo de compreender as complexas relações

entre o uso de drogas endovenosas e a expansão da AIDS em são

Paulo.

A etnografia urbana foi realizada no centro da cidade de

São Paulo, particularmente na chamada 11 boca'1 - no território

da droga e da prostituição. Nas entrevistas procuramos

abordar o histórico de consumo, a vida sexual, as mudanças

comportamentais frente a ameaça da AIDS, assim como os

rituais de injeções e o compartilhar de seringas.

A dissertação começa com a contextualização do

aparecimento da AIDS, dos seus grupos de risco, o impacto

epidemiológico e suas metáforas. o segundo capitulo descreve

a pesquisa de campo, a história de vida dos entrevistados e

seus depoimentos. O terceiro capítulo aborda a genealogia da

prática de injeções, os rituais de preparo e consumo, as

formas de experimentação e os controles informais de use.

Finalmente, a última parte expõe resumidamente as informações

sobre o universo do uso de drogas endovenosas, sistematizando

os resultados dessa pesquisa com dados quantitativos já

conhecidos. Os resultados permitem construir diferentes

padrões de uso da droga endovenosa, que mostram gra'J.S

diferenciados de risco à expansão da AIDS.

A Néstor Perlonghuer

in memoriam

Agradecimentos

Esse trabalho foi possível de ser realizado devido ao

financiamento concedido pelo Conselho Nacional de

( CNPq) e pela inúmeras contribuições que recebi

Pesquisa

de várias

pessoas e instituições. Gostaria de agradecer indistintamente

à todos que colaboraram direta ou indiretamente para a

realização e finalização dessa dissertação. E em particular,

aos entrevistados, que se dispuseram a relatar

espontaneamente suas histórias de vida.

Agradeço ao professor Dr. Edgard de Assis Carvalho pela

sua orientação e dedicação, durante esses anos todos,

principalmente pelo incentivo e crítica primorosa em toàas as

etapas de desenvolvimento dessa pesquisa.

Agradeço ao antropólogo Dr. Edward MacRae que me convidou

e incentivou a trabalhar com essa temática no Instit'_lt8 de

Medicina Social e Criminologia (IMESC) da cidade de Sã8

Paulo. Sou grato por seu auxílio nas várias etapas dssse

processo e pela disponibilidade de sua biblioteca part..:..::·J.:::.a:::­

na realização dessa pesquisa.

Agradeço aos professores da Pontifícia Univers~dade

Católica de São Paulo. Agradeço também as brilhs.:;.r.es

sugestões e contribuições que recebi do antropólogo 1\'és'L.-:::::­

Perlonghuer no exame de qualificação e no decorre:::- do

trabalho de campo. Sou grato a atenção e sugestões rece:::::_aas

do sociólogo Dr. Sérgio Adorno, de. Universidade de São Pc::..l:::.

Agradeço aos profissionais do Centro de Estudos do IMESC,

do Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE), do Setor da

Vigilância Epidemiológica e do Setor da Educação do Centro de

Referência à AIDS, órgãos da Secretaria de Estado da Saúde de

São Paulo, assim corno, aos profissionais do Ambulatório de

Moléstias Infecciosas (ARMa) do município de santo André. sou

grato aos companheiros do Centro de Estudos Brasileiros e

Informações a Drogadependência (CEBRID), da Associação

Londrinense Interdisciplinar de AIDS, do Grupo Pela Vidda e

do GAPA-SP.

Agradeço aos interlocutores e leitores dos meus textos,

que fizeram importantes apontamentos, críticas e sugestões.

Em particular a Alexandre Custódio Vieira, Ulisses Ferraz de

Oliveira, Marcos Gomes, Júlio Assis Simões e Geraldo

Fernandes: sou grato pela disponibilidade e pelas relevantes

observações, decisivas para a redação final dessa

dissertação.

Agradeço também aos meus familiares, que muit::; r.:e

estimularam para o desenvolvimento dessa pesquisa,

particular meus pais Wilma Ribas e Osvaldo Lobos Fernandez,

meu irmão Orlando R. L. Fernandez, minha avó Irene Rod~igues

e os tios Valderes R. de Aguia~ e Paulo Abu.

Aos meus amigos, agradeço pela compreensão e peia

colaboração durante essa importante fase da minha vida, e:::-.

particular a Mara Selaibe, Dora Lúcia dos Santos, Rica::-:::::

Pimentel, Ney Vieira, João Bosco Dias, Fernando Fula:r..ett:.,

Nivaldo Carneiro, Luiz Zanin, Maria das Graças Cremont, Pedro

de Souza, Mary Pimentel Dummont, José dos Reis, Lucila

Scavone, Catia Della Colleta, Sandra Bistafa, Leandro Cesar

Bizeli, Liége, zeca, Julio Gaspar, Leila Jeolás, Regina

Ventura, Kirnie Tomasino, Adalberto José Caracho, Mario

Scheffer, Nestor Teson, Valter Dias, Ana Maria Dias, Milton

Lauerta e Jorge Beloqui.

Agradeço também aos companheiros que colaboraram no

processo final de digitação e edição do texto: Fernando

Fulanetti, Evariste Colman, André Madureira e Silva e Edilson

M. Utiyama.

Foram muitos os companheiros nessa árdua jornada, com os

quais tenho o prazer e a satisfação em dividir essa

conquista.

'

Índice Geral

Introdução 11

1. Capítulo: Do Desvio Ao Risco 15

2. Capítulo: Urna Etnografia Urbana 44

3. Capítulo: Para uma Genealogia das Práticas de Injeções 80

4. Capítulo: o Fim da Clandestinidade 117

Bibliografia

Introdução

Essa dissertação tem corno objetivo apontar as complexas relações

entre AIDS e suas vias de transmissão, abordando o uso de drogas

endovenosas, o compartilhar de agulhas e seringas e a trans:;tissão do

HIV. Nos primeiros anos da epidemia, a prevenção centrou-se no

conceito epidemiológico de grupo de risco, e os ho~nossex:..:ais

masculinos forar.1 considerados os mais suscetíveis para a t:::-ans.;. . .:ssão

e infecção do HIV.

A contribuição deste trabalho é circunscrever alguns aspectcs da

epidemia, particularmente os usuários de drogas endovenosas. o

objetivo da pesquisa foi articular suas representações aos histé=icos

do consumo, práticas sexuais, padrões de USO, s:.:.bst§.:-:.::.ias

psicoativas, procurando atingir, sempre que - ' püSSJ.V€..L. 1 um s.::..gr::::.:adc

sócio-cultural mais amplo.

11

A pesquisa parte da premissa que, em torno do consumo de drogas,

desenvolve-se um conjunto de ações, regras, valores e rituais, e que

as diferenças nos grupos de usuários e nas substâncias injetadas

trazem importantes variações na prática de injeções, modificando

graus e situações de risco para a transmissão do HIV. Pôde-se

constatar que os grupos e as diferentes substâncias injetadas pelos

usuários condicionam formas de preparo e uso, modificando a exposição

dos indivíduos às situações de risco que propiciam a infecção pelo

HIV.

Com esse pano de fundo, no primeiro capítulo expomos a emergência

da AIDS e o processo de definição dessa nova patologia, os quadros

epidemiológicos e a propagação do HIV no Estado de São Paulo e um

conjunto de representações que as sociedades humanas elaboraram sobre

as doenças epidêmicas.

No segundo capítulo descrevemos o trabalho de campo, sua

metodologia e os entrevistados da pesquisa, apresentando o seu

histórico de consumo, comportamento sexual e estilos de vida. A

partir da apresentação das entrevistas,

gerais da "cultura c. as drogas"

entrevistados.

e os

delineamos,

históricos

os perfis

de vida

mais

dos

No terceiro capítulo abordamos a dinâmica sócio-cultural ão

consumo de drogas ligado basicamente à prática de injeções. O

material etnográfico das entrevistas constituindo de relatos do uso

de drogas endovenosas, redes de amizades, modos de preparação das

substâncias, formas de consumo e experimentação, territórios 'Jrba01cs,

revela inúmeros padrões de aprendizagem, de rituais de consumo e de

compartilharne:-:to de ag:Jlhas e seringas. Além dessa reconstrt:.çãc d::

universo empírico, procuramos detectar quais foram as mudanças nos

usuários de drogas provocadas pela emergência da prevenção à AIDS,

assim como algumas experiências de programas de prevenção dirigidos

aos usuários no Brasil e em outros países.

Nas considerações finais, retornamos resumidamente as mudanças

comportamentais nos entrevistados e algumas informações quantitativas

sobre o universo do uso de drogas endovenosas. Para finalizar,

abordamos a relação da ilegalidade do uso, a necessidade de mudança

no contexto das situações de risco e como os programas de prevenção a

esses indivíduos estão removendo sua delinqüência e proporcionando

tratamentos mais adequados ao fenômeno droga e ao controle da AIDS.

Primeiro Capítulo:

Do desvio ao risco.

15

No começo dos anos 80,

"La.nguage is a virus 8

W. Burroughs

epidemi~logistas americanos

relataram a ocorrência de vinte e seis casos de Sarcoma de

Kaposi e de cinco pnewnonias, causadas pela Pneurnocystis

carinii, em homens jovens de Nova York e Los Angeles.

Anteriormente essas doenças eram encontradas err. indivíduos

com graves deficiências imunológicas e, no caso do Sarcoma

de Kaposi, em indivíduos idosos ou proveniente de certas

regiões do Mediterrâneo e da África.

A característica epidemiológica principal dos pacientes

norte-americanos era o comportamento homossexual e a

diminuição acentuada de linfócitos T-4, funàa:nentais a::::

comando do sistema imunológico humano. Os estudos sobre essa

nova patologia, então denominada de GRID 11 Gay Related

Iminudeficiencyn-, mostravam seus efeitos devastadores no

sistema de defesa do organismo humano, causando a morte por

infecções oportunistas que normalmente não causariam dano em

indivíduos sadios.

A partir de 1982, com o aparecimento de casos entre

pacientes submetidos a transfusões de sangue, usuários de

drogas injetáveis e crianças recém-nascidas, a sigla foi

modificada para AIDS- "Acquired Irnmunodeficiency Syndrome":

sindrome da imunodeficiência adquirida.

Havia, então, um desconhecimento completo sobre essa

nova patologia e sua etiologia, formas de transmissão e

tratamentos adequados. Hoje se sabe que a AIDS é uma doença

infecciosa, causada pelo retrovirus HIV, que inviabiliza o

sistema imunológico e leva os pacientes acometidos a

apresentarem infecções oportunistas, freqüentemente fatais,

sendo a faixa etária mais atingida situada entre 20 e 40

anos.

Até o início de 1983 coexistiam duas hipóteses de

desencadeamento da AIDS, uma biomédica e outra psicossocial,

das quais resultaram modelos etiológico-terapêu~icos

diametralmente opostos. O modelo biomédico, de caráter

exógeno e aditivo, atribui a origem da enfermidade a wn

agente agressivo que,

o equilíbrio. Esse

descoberta de vírus,

juntando- se ao organismo, destrói -lhe

modelo orientou as pesquisas pa~a a

micróbios e bactérias para a elabs~a~ão

de uma vacina e para tratamentos cada vez mais eficie~:es,

capazes de enfrentar a multiplicidade das infecções h

17

hipótese psicossocial remete a modelos relacionais e

endógenos presentes em determinados estilos de vida que

causariam

equilíbrio

naturais.

por desencadear

orgânico, após

a doença

a subtração

pela ruptura do

de suas defesas

Por falta de um modelo etiológico comumente aceito,

houve uma

grupo de

construção estatística em torno do

risco que gerou uma profusão de

conceito de

hipóteses e

interpretações contraditórias. Por volta de 1983-1984, com a

descoberta do vírus e a comprovação de sua participação no

desenvolvimento da doença, foi possível estabelecer as vias

e categorias de transmissão do vírus.

Em 1983, a equipe do Dr Luc Montagnier, do Instituto

Pasteur de Paris, conseguiu identificar a partir da cultura

de células provenientes de linfócitos de paciente com

linfadenopatia a enzima, característica dos retrovírus,

chamada transcriptase reversa. A análise proteica desse novo

vírus apresentou-se distinta daquela observada no HTLV e, de

acordo com sua origem, os pesquisadores chamaram esse ~.ovo

retrovírus de LAV - Lymphadenopathy Associated Vírus.

Em 1984, o Dr Robert Gallo, do Instituto Naciona~ do

Câncer nos EUA, discordou dos resultados da equipe francesa

e continuou seus estudos sobre o vírus da AIDS come urna

variante do HTLV, denominando-o de HTLV-III (Human T-cell

Lymphotropic Virus, tipe III). Houve uma acirrada disDuta

científica entre EUA e França sobre a primazia da descoberta

11'

do vírus, sendo posteriormente a paternidade da descoberta

do vírus reconhecida corno pertencente à e~Jipe francesa.

O mesmo vírus foi isolado em outros laboratórios e

recebeu diferentes nomes, tais como ARV (AIDS Related Vírus)

e AA.V (AIDS Associated Vírus) . Em 1986, o International

Cornittee on the Taxonorny Viruses determinou urna única

denominação: HIV (Human Imunodeficiency Virus).

As descobertas de 1983 a 1985 sobre a origem virótica

reforçaram o discurso médico, especificaram as vias de

transmissão e passaram a orientar as campanhas públicas de

prevenção. A descoberta do vírus não permite, por si só,

estabelecer um modelo prospectivo do desenrolar da doença,

mas reduz o número de interpretações possíveis sobre sua

origem e formas de transmissão.

No aspecto clínico são quatro as fases de

desenvolvimento da doença nos indivíduos infectados. A fase

zero caracteriza- se apenas pela invasão :J.o organismo pelo

HIV, ainda não existindo anticorpos no sangue e nenhum outro

sintoma. A fase 1 é marcada pelo apareci~ento de sinais de

fadiga, febre intermiter:te e dor de cabeça, e os exames

clínicos atestam ser o paciente soropositivo. Na fase 2, que

pode durar anos, surgem ínguas e nódulos em diversas partes

do corpo, mas o paciente ainda não se encontra muito

debilitado. É efetivamente a partir da fase 3 que o sistema

imunológico começa a se r.tostrar seriamente aba.J..ado, pois -=--

HIV adere e penetra nos linfócitos (glóbulos branccs

responsáveis pela defesa do organismo) destruindo- os. Sei.!

19

essa proteção surgem as infecções oportunistas que, levam o

paciente à morte.

o vírus penetra no organismo humano, ataca

principalmente a arma da imunidade celular, os linfócitos-T.

A partir daí a multiplicação do vírus começa a se efetuar e

as defesas imunológicas vão progressivamente se extingUindo.

As células infectadas pelo vírus ativo são incapazes de

efetuar sua própria "missão", e todos os germes

(principalmente os inofensivos) provocam as infecções

generalizadas de onde vem a maioria das doenças relacionadas

à AIDSr1' O organismo perde sua capacidade de defesa

imunológica contra qualquer infecção. É importante notar que

o primeiro contato do virus com o organismo não é

acompanhada de nenhuma manifestação clínica

Desde a descoberta do vírus, pode ser verificado um

aumento de cinco para até dez anos no período de incubação

do vírus até o desenvolvimento da AIDS. Devido a esse longo

período e às incertezas relativas ao desenvolvimento da

infecção, se ampliaram os desfio da prevenção e o controle

de sua propagação na população tornou-se extremamente

difícil. A partir de 1985, com aE realizações dos testes

sorológicos para o HIV, assistimos ao surgimento de uma

população significativa de soropositivos e as estimativas

para o final do século não são nada animadoras.

Grigorieff, Ghéorghiu. Non au SIDA. Bélgica, ed. Marabout, 1986, p.39-42.

o vírus pode ser encontrado em diferentes fluidos

corpóreos que, dependendo da via de transmissão e da carga

viral, possibilitam a infecção. Sua presença pode ser

isolada do sangue, do sêmen, da secreção cérvico-vaginal, do

líquido cefalorraquidiano, do leite materno, da saliva e

da urinar2J Sem sombra de dúvida, o vírus foi encontrado em

maior concentração, respectivamente, no sangue, no sêmen, e

secreções cervical e vaginal.

A AIDS e seus grupos de risco

A expressão grupo de risco está presente na literatura

médica desde os primeiros casos em 1981, antes mesmo da

descoberta do vírus e suas vias de contaminação. A

associação entre grupo de risco e a síndrome precede a

descrição mais elaborada do perfil clínico. Impondo-se como

evidência, essa associação é apresentada às vezes como uma

relação de causalidade.

A construção do grupo de risco da AIDS foi elaborada

pelo CDC {Centers for Diseases Controls:: de Atlanta, nos

EUA, e retomada pela OMS (Organização Mundial da saúde) o

CDC era um órgão do exército norte-americano, tinha como

objetivo controlar a malária entre os soldados na década de

40. Durante a guerra fria, foi chamado de Epidemic

1:'Sion, Fernando S. e Sá, Carlos A.Morais et alii. Transmissão heterossexual do vírus da imunodeficiência Humana {HIV) homem-mulher e mulher-homem. Texto aprese~~ad2 no seminário 11 AIDS no Brasil - avaliando o passado e planejando o futuro" realizado pelo Instituto de Medicina Social (UERJ/Ford), agosto de 1992, Rio de Janeiro. Mimeo, p.8.

21

Intelligence Service e tinha por função defender os EUA de

uma eventual guerra bacteriológica. Depois foi reintegrado

ao serviço de saúde pública e uma de suas divisões ocupam-se

de moléstias infecciosas, entre as quais a AIDS. Sem

conhecer o vírus e suas vias de transmissão, a abordagem

epidemiológica do CDC foi classificar os

nos grupo de risco, denominando-os

casos observados

de quatro H:

homossexuais, hemofílicos, heroinômanos e haitianos .

Os indivíduos desses grupos contestaram o conceito de

grupos de risco, acusaram o CDC de veicular racismo e

preconceitos através do medo de urna nova patologia. A

descoberta do vírus HIV, o aprimoramento do conhecimento

sobre as vias de transmissão e o crescimento de casos

inclassificáveis questionaram a legitimidade do conceito. o

CDC sofreu fortes pressões sócio-culturais, o que levou o

órgão a retirar da lista os haitianos.

os conceitos de ngrupo de risco" e "estilos de vida",

porém não desapareceram da literatura médica. O primeiro

contin'.la a designar o grau variável de exposição ~ de

práticas diferentes que favorecem a transmissão do HI' .. ·. c

segundo sobrevive através do conceito de

surgindo tanto como fenômeno que aumenta o grau de exposição

ao vírus, como fator que desencadeia o desenvolvimenco da

doença após a contaminação, ou ainda, como causa da

àiminuição das defesas imunológicas antes do contato :on c

vírus.

A epidemiologia construiu os padrões de incidência dos

casos de AIDS segundo as regiões. Com as notificações

obrigatórias e compulsórias foram organizadas os padrões

epidemiológicos da AIDS no mundo, apresentando os perfis das

vítimas agrupados em torno do conceito de grupo de risco,

através de uma análise fatorial da realidade. Assim, a

prevenção pode ser elaborada e realizada levando em conta as

características das populações específicas e da população em

geral.

Enquanto não há cura para os infectados pelo HIV, a

prevenção é a única forma de controlar a propagação. A AIDS

conquistou o espaço público, tornou-se alvo de disputas de

diferentes interesses e grupos sociais. Já não se trata

apenas do risco em si, mas de sua gestão, que se torna

objeto de controvérsias entre cientistas e as populações

afetadas.

É nesse contexto que adquirem pleno sentido as

pesquisas sociológicas sobre as populações e a AIDS. Para o

sociólogo francês Michel Pollak, a AIDS difere das doe::ças

que, nos últimos tempos, serviram de ca~po empírico às

pesquisas sociológicas, e isso porque constitui um objete

privilegiado de observação das conexões existentes entre as

ordens biológica, social e moral (1).

'3) Pollak, Michael_Os homossexuais e a AIDS; sociologia de urna epidemia. São Paulo, Estação liberdade, 1990. p.ll.

A epidemia no Brasil

De acordo com os dados fornecidos pela Organização

MUndial da Saúde, o Brasil é um dos países mais atingidos,

com mais trinta mil casos de AIDS confirmados até 31/10/92

. O país mais atingido é o EUA, seguido de Brasil, Uganda e

Tanza'n'a '" E' ' t t 1' t d d ~ 1mpor an e sa 2en ar que esses a os se

referem a indivíduos que efetivamente desenvolveram a AIDS e

não a indivíduos infectados, mas ainda assintornáticos.

Segundo o Boletim Especial da Associação Brasileira

interdisciplinar de AIDS (ABIA) a proporção de adultos

infectados pelo HIV no mundo encontra-se assim distribuída:

heterossexual (71%-}, homossexual (15%), usuários de drogas

endovenosas (7%), transfusão de sangue e hemoderivados (5%),

modo desconhecido (2%) .(5)

O padrão epidemiológico da AIDS no Brasil corresponde

ao padrão I, caracterizado por um grande número de vítimas

homossexuais e usuários de drogas. A proporção de casos de

AIDS entre os sexos está na razão de 7 homens para 1 mulher.

o coeficiente por incidência no país está na taxa de 24, o

casos de AIDS por 100 000 habitantes. A região mais atingida

é o sudeste, com 25.321 casos, sendo a maior notificação no

Estado de São Paulo, com 18.737 casos de AIDS, ou seja, com

·~'Brasil. Ministério da Saúde, boletim Epidemiológico -AIDS. Ano v n.B- semana Epidemiológica- 41 a 44/92. Dados preliminares até 31/10/92. Este é o último informe trimestral de casos de AIDS produzido pelo GPA/OMS. · Brasil. Ministério da Saúde, boletim Especial da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS. 11 l\.IDS no mundo", mês 10/92, Rio de Janeiro, ano 6, figura 1, p.3.

' ' -·

um coeficiente de incidência de 64,7 casos por 100.000

habitanteS161

Nos últimos anos verificamos um aumento no número de

heterossexuais notificados com AIDS e uma "socialização" da

transmissão do vírus para as camadas de baixa renda e com

baixo nível de escolaridade. Esse quadro inverte a relação

nos primeiros anos da epidemia, quando os casos de AIDS

ainda eram estritamente "importados" , relacionados a

pacientes de camadas médias altas urbanas com viagens ao

exterior.

No Brasil, de 1980 a 1992, através de dados

preliminares até 31/10/92, a transmissão sexual é a

principal via de transmissão, com 19.358 casos,

correspondendo a 60, 6%- do total de casos notificados. A

transmissão sexual está assim subdividida entre homossexuais

masculinos 9.624 casos (30,1%), bissexuais 4.839 casos

(15,1%) e heterossexuais 4.895 casos (15,3%). A transmissão

sanguínea é a segunda via, com 8.588 casos correspondendo a

26,9% das notificações. O uso de drogas endove~csas

representa 6.629 casos (23%) ' receptores de

sangue/hemoderivados com 1.358 casos (4,3%), hemofílicos com

601 (1,9%). Nos últimos anos verificou-se um crescimento das

notificações por transmissão vertical com 655 casos

correspondendo a 2,1% do total de casos (:)

'""Brasil, Ministério da Saúde, boletim Epidemiológico/AIUS. Dados preliminares até 31/10/92 (semana 44) . 7) Brasil, Ministério da saúde, boletim epidemiológico/AIDS, até a semana 44- até 31/10/92. Tabela

A contaminação através de transfusões de sangue foi

responsável pela propagação do vírus em grande parcela de

hemofílicos e politransfundidos. Essa expansão fez com que

alguns setores da sociedade responsabilizassem os Governos

Federal e Estaduais pela contaminação em hospitais públicos

e pri vades, devido à falta de fiscalização da qualidade do

sangue e de seus hemoderi vados(81

Após dez anos de epidemia, no Brasil o sangue se tornou

a segunda principal via de transmissão do HIV,

correspondendo a 26,9% do total de casos notificados. As

transfusões de sangue foram responsáveis pela propagação do

vírus nos primeiros anos da epidemia, numa grande parcela de

hemofílicos e politransfundidos. Após alguns anos,

heterossexuais, usuários de drogas injetáveis, mulheres e

crianças ampliaram significativamente o leque dos

contaminados, e o conceito de 11 grupo de risco 11 perdeu sua

eficácia classificatória e preconceituosa.

Uma queda no número de casos de AIDS via transfusões

sanguínea em repartições públicas e privadas ocorreu após

fiscalização mais intensa da qualidade dos hemoderivados a

partir de 1985. Embora essa queda tenha sido importante,

verificou-se um rápido e assustador crescimento de casos de

IV: número acumulado e percentual de casos de AIDS, segundo categoria de exposição e sexo- Brasil, 1980-1992, p.ll. '8 'Na mobilização das vítimas e da organização não­governamentais (ONGs), cabe lembrar a atuação do cartunista Henfil e seus dois irmãos, que conseguiram mobilizar e alertar a opinião pública e apontando a falta de seriedade do governo quanto à prevenção e à fiscalização dos bancos e comércio do sangue.

AIDS em usuários de drogas injetáveis, diretamente

relacionado à transmissão sanguínea pelo uso comunitário de

agulhas e seringas.

O aumento do número de casos na população tem

humanizado o estereótipo dos pacientes, ampliando as redes

sociais envolvidas com esse grave problema de saúde pública.

com isso, as metáforas da AIDS\9). vão perdendo o sentido de

doença maldita, de doença do outro, rnetaforseando-se numa

cotidianidade, numa fatalidade que atinge a tudo e a todos.

O impacto das drogas na epidemia: o Estado de São Paulo

Com o crescimento da epidemia os 6rgãos de saúde pública

começaram a discutir o uso de drogas injetáveis e a

responder a essa nova demanda com serviços de saúde. A

partir de 1987, a contaminação pelo uso de drogas

endovenosas começou a se tornar uma importante situação de

risco em casos de AIDS no estado de São Paulo, e não parou

de crescer até 1992, transformando-se na p~incipal categoria

de transmissão dos casos confirmados, qu.a:1do cornpa::-ado ao

crescimento proporcional das demais vias.

Nos EUA e na Europa, os serviços de saúde já tratavam

desses indivíduos com serviços especiais para a chamada

drogadependência. No Brasil, foi a partir da epidemia da

AIDS que tivemos maior visibilidade da prática de injeções

de psicotrópicos. o usuário de drogas inje~áveis emergic: de

'9 'Sontag, Susan - A AIDS e suas metáforas. Companhia das Letras, São Paulo, 1989, p.53-71.

27

sua clandestinidade através da vigilância epidemiológica e

das notificações dos casos de AIDS. Essa categoria de

transmissão se tornou uma importante situação de risco, mas

oculta um aspecto da epidemia, a expansão da AIDS entre os

heterossexuais. Dados preliminares até 30/11/92, do Centro

de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo

registraram 21.339 casos. A proporção desses casos entre os

sexos está na razão de 6 homens para 1 mulher do total de

notificações.

Essa proporção de incidência entre os sexos masculino e

feminino vem diminuindo ano a ano, apresentando o seguinte

perfil: 1983 (25:1), 1984 (O)"" 1985 (42:1), 1986 (26:1),

1987 (9:1)' 1988 (7:1)' 1989 (6:1)' 1990 (6:1)' 1991 (5:1)'

1992 {4:1) illl

A faixa etária de 20 a 49 anos é a de maior incidência,

com 18.602 notificações, correspondendo a 87,17% do total. A

maior concentração ocorre na faixa de 2 O a 40 anos, com

15.424, correspondendo a 49, 03% do totald:,

'1'' No ano de 1984 foram notificados 81 casos de AIDS no sexo

masculino e nenhum caso no sexo feminino, não sendo possível estabelecer a razão de incidência entre os sexos para o ano referido. ''

1 'São Paulo, Secretaria da Saúde e C. V. E., boletim epidemiológico/AIDS- janeiro de 1993, tabela 4: "casos notificados de AIDS no Estado de São Paulo e relação masculino/feminino, segundo ano de diagnóstico período de 1980-1992". Dados preliminares sujeitos a revisão mensal, até 30/11/92.

'1

: São Paulo, Secretaria da Saúde e C.V.E., boletim epidemiológico/ AIDS - janeiro de 1993, Tabela 5: Casos notificados de AIDS no Estado de São Paulo segundo a faixa etária, período de 1980-1992. Dados preliminares até 30/11/92.

A principal categoria de transmissão continua sendo a

via sexual, com 11.531 casos, correspondendo a 54, 04% das

notificações. Nos últimos anos, a transmissão sanguínea tem

crescido de forma rápida, com 7.218 casos notificados

{33,81%), devido principalmente ao

endovenosas, com 6.460 casos (30,27%).

uso de drogas

O maior controle dos bancos de sangue, no Estado de São

Paulo, tem diminuído o número de acidentes com hemofílicos

(1, 04%) e politransfundidos (2, 5%). A transmissão vertical

de mãe para o filho também aumentou e hoje atinge 2,46%. As

primeiras notificações desse tipo apareceram em 1987, mas o

número aumentou significativamente, sinalizando um crescente

número dos chamados órfãos da AIDS.

No caso da contaminação por drogas injetáveis enfatiza­

se a multifatorialidade da transmissão, pois se relaciona

com várias categorias e segmentos sociais como

heterossexuais masculinos, mulheres e crianças. No último

boletim, o Centro de Vigilância Epidemiológico do Estado de

São Paulo aponr:ou que o quadro organizado em torno de uma

única causalidade subestima o fator uso de drogas

endovenosas. Isso porque há notificações nas categorias

homossexual e bissexual que estão relacionados ao uso de

drogas endovenosas, somando 6,85% do total, distribuídos em

homossexuais masculinos {3,56%) e bissexuais{3,29~) e não na

categoria uso de drogas endovenosas. Quando cruzamos

variáveis de fatores de risco como uso de drogas e

comportamento sexual, verificamos que a maioria das

notificações por via uso de drogas endovenosas é formada por

indivíduos heterossexuais(l 31-

No Estado de São Paulo a vigilância Epidemiológica pôde

verificar que o uso de drogas endovenosas uma importante

situação de risco para as mulheres maiores de 15 anos desde

1987, correspondendo a 46,61% dos casos notificados. Em 1988

e 1989 essa via de transmissão foi responsável por,

respectivamente 54,73% e 51,85% das notificações de mulheres

com AIDS. Somente em 1991 a transmissão heterossexual

(41, 66%)

(38, 02%).

ultrapassou a de uso de drogas endovenosas

Em 1992, cresceram os casos de mulheres

heterossexuais {48, 61\) notificadas com AIDS, apontando uma

tendência de crescimento por essa via, e se verificou uma

diminuição das notificações via uso de drogas endovenosas

(35,33%") dos casos confirrnadosn 41

Os primeiros casos de contaminação por drogas

endovenosas apareceram em 1983 e correspondiam a 3,85%- do

total. Em 1986, 1987 e 1988 o número cresceu e alarmou a

opinião pública com 7, 18%, 17, 16% e 25, 56% do total das

notificações. Em 1989, 1990, 1991 e 1992 a proporção

1;3 'São Paulo, Secretaria da Saúde e C.V.E., Tabela 2a: "casos

notificados de AIDS, Estado de São Paulo, segundo categoria de exposição e sexo, período de 1980-1992". Dados preliminares até 30/11/92. '14

' São Paulo, Secretaria da Saúde e C. V. E. , boletim epidemiológico/AIDS-jan 93,, Tabela 3B: casos notificados d~ AIDS no Estado de São Paulo, para sexo feminino com 15 anos ou mais, segundo categoria de transmissão e ano de diagnóstico, período 1980-1992. Dados preliminares sujeitos a revisão mensal até 30/11/92.

_:;,,

continuou crescendo para 28,91%, 34, 56~, 34, 68~, 33, ?H

respectivamente para o total de cada and15l

O aumento significativo de casos entre esses indivíduos

nos permite sistematizar algumas constatações: 1. A carga

viral do HIV encontrada no sangue é maior quando comparada à

encontrada em fluidos corpóreos corno esperma, secreção

vaginal e leite materno. 2. Outro aspecto é a inoculação

11 eficiente" do vírus, através de injeções, que o insere

diretamente na corrente sanguínea. 3. O uso comunitário de

agulhas e seringas é um hábito e um padrão bastante

difundido na subcultura da droga injetável.

Em algumas cidades do interior do estado de são Paulo

encontramos um quadro epidemiológico diferente do resto do

país, com um maior número de heterossexuais e usuários de

drogas contaminados, quando comparado a outras cidades e

regiões. Em cidades como Santos, São José do Rio Preto,

Ribeirão Preto, Santo André e Bauru o uso de drogas

endovenosas é a principal via de transmissão do HIV,

trazendo conseqUências e impactos diferentes para a

sociedade.

Em Santos, na Baixada Santista, foi verificado um

crescimento assustador da incidência de AIDS. No período de

1987 a 1990 constatou-se uma duplicação dos casos na cidade

do Guarujá e urna triplicação em São Vicente, envolvendo

<~ 5 'São Paulo, Secretaria da Saúde e C. V. E., boletim epiderniológico/jan.93, Tabela 3: "casos nm:ificados de AIDS no Estado de São Paulo, segundo categoria de transmissão e ano de diagnóstico, período de 1980-1992". Dados preliminares até 30/11/92.

31

grande número de heterossexuais e usuários de drogas. Em

Santos delineia-se o quadro mais dramático da epidemia com o

maior coeficiente de incidência da América Latina, com 217,5

casos de AIDS por 100.000 habitantes, no período de 1980-

19921!61 Nessa cidade a proporção de incidência da AIDS entre

homens e mulheres diminuiu, comparado com a proporção do

país: de 8: 1 para aproximadamente 3:1 ( 14) Em Santos, a

proporção de mulheres com AIDS é maior que a média

brasileira, o que pode significar a ampliação da transmissão

por drogas endovenosas e pelo sexo heterossexual, dada a

proximidade de zona portuária, na qual a prostituição e o

tráfico de drogas parecem estar associados.

Esse perfil poderia aproximar o Brasil do padrão

epidemiológico encontrado nos países da África Central, onde

os grupos de risco são os mesmos das outras doenças

sexualmente transmissíveis, numa proporção de incidência

entre os sexos de 1 para 1. Naqueles países, a princina2.

categoria de transmissão é a sexual, atingindo

principalmente os heterossexuais e os grupos de risco das

doenças sexualmenLe transmissíveis.

o crescimento dos casos por essa via delineia novos

contornos da expansão da AIDS no estado de São Paulo e

aponta para a necessidade de programas específ:_cos

destinados à prevenção da transmissão entre os usuários de

ll~'Brasil, Ministério da Saúde, boleLim eoidemiológico AIDS/jan 1993, Tabela XIII: casos de AIDS por período, distribuição proporcional e incidência para 100.000 habitantes segundo município de residência- Brasil 1980-1992. Dados preliminares até 31/10/1992.

drogas. O alarme sobre a transmissão do vírus AIDS através

do uso comunitário de agulhas e seringas está diretamente

relacionado à proibição das drogas e com a rápida

disseminação do HIV nesse grupo. Por ser uma prática ilegal

e clandestina, não é possível prever nem projetar sua

dimensão na sociedade brasileira.

A acumulação de conhecimentos sobre a AIDS vem

contribuindo para a construção das categorias

epidemiológicas da transmissão e o conceito de grupos de

risco, subsidiando a percepção clínica dos sujeitos e

enfatizando a multifatorialidade das vias de transmissão do

HIV, principalmente entre os usuários de drogas endovenosas.

Para que fosse possível circunscrever melhor o universo

empírico da pesquisa, algumas perguntas foram aprofundadas:

1. Quais as condições sócio-econômicas dos usuários de

drogas endovenosas, particularmente os pacientes de AIDS

usuários de drogas injetáveis? 2. Esse grupo seria portador

de uma identidade social particular, ou tratar-se-ia de uma

prática de risco semelhante entre indivíduos soc.:..a: e

culturalmente heterogêneos? 3. o grupo constituiria urr.a

territorialidade particular, uma região com padrões próprios

de comportamentos? 4. Quais as razões e os significados dos

usuários para compartilhar agulhas e seringas? 5. Qual a

relação entre os parceiros da droga e a parceria sexual?

Essas questões nos levaram a fazer uma digressão pela

genealogia das epidemias e pelo papel que desempenha~aTJ na

história da cultura.

" _,_,

A epidemia na história do homem

Nos séculos XVIII e XIX, os países mais avançados

começaram a aplicar regras de higiene e prevenção,

especificamente as vacinas. A revolução industrial foi

acompanhada de uma revolução científica que atingiu todos os

domínios do conhecimento. Louis Pasteur demonstrou a

existência dos micróbios e dos vírus e codificou a

vacinoterapia e a soroterapia. A bacteriologia confirmou

essas individualizações empíricas, nas quais a cada doença

corresponderia um micróbio. As doenças, consideradas antes

urna punição, obedeciam de agora em diante a uma etiologia

precisa, quer fossem infecciosas, degenerativas ou

hereditárias.

O próprio conceito de doença inscreve- se no raciocínio

médico do século XIX e constitui uma abstração

classificatória que reúne sintomas observados em todos os

doentes 11 atacados 11 por um mesmo germe. A doença não é

dissociável da cultura e da idéia que fazem dela o doente e

a civilização do seu país e do seu terr;po. Talvez a

antropologia médica devesse procurar estabelecer as relações

entre doenças, costumes, crenças e mentalidades em função do

tempo e do espaço das sociedades estudadas. Houve urna

progressiva mudança na natureza da resposta dada à série de

desafios que os antepassados tiveram de superar. O homem não

se satisfaz com uma "defesa passiva" e, desde muito cedo,

soube aplicar as regras da profilaxia ::::etiradas da

experiência e da visão que cada povo tinha da doença.

elemento cultural, refletido, adquirido, conservado pela

tradição, melhorado pelo uso, teve tendência para alargar o

seu domínio à custa do elemento inato, genético, inscrito no

patrimônio hereditário. É preciso lembrar que certas

doenças, outrora temíveis, corno a varíola, desapareceram

praticamente do globo após as sucessivas vacinações.

A consolidação da sociedade burguesa foi acompanhada de

um grande desenvolvimento tecnológico e cie:_tífico, assim

como de uma crescente medicalização e urbanização da

sociedade moderna. As cidades do século XIX foram

consideradas fontes de propagação epidêmica, sendo a

população alvo privilegiado das intervenções médicas e

higienistas. O Estado moderno, segundo Michel Foucault,

ocupou- se como nenhum outro de investir e produzir a vida,

modificando o exercício do poder. Segundo esse filósofo,

houve urna articulação nas formas de agenciamentos concretos

que constituem a grande tecnologia do poder no século XIX,

sendo o dispositivo da sexualidade, talvez, o mais

importan.te. Não seria o dispositivo da droga un1 cucrc

agenciamento dessa grande tecnologia do poder no ::inal de

século XX?~-

Michel Foucault ilustra como as disciplinas do corpo e

as regulações da população constituíram os pólos em torno

dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida

na sociedade moderna, poder cuja função mais elevada já ~ãc

' Esse argumento foi sugerido pelo antropólogo Néstor Perlonghuer no artigo nnrogas e êxtase 11 in: Saúde e Loucura. n.3, São Paulo, Ed. Hucitec, p.77-91.

,,

é mais matar, mas investir sobre a vida, mas controlar a

sociedade através da normatização médica. Esse bio-poder

foi o elemento indispensável ao desenvolvimento do

capitalismo, que "só pôde ser garantido à custa da inserção

controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de

ajustamento dos fenômenos da população aos processos

econômicos" (181

O poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século

XVII em duas formas principais, interligadas por um feixe de

relações. A primeira centrou-se no corpo corno máquina, no

seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, no

crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua

integração em sistemas de controle eficazes e econômicos.

A segunda consolidou-se mais tarde, em meados do século

XVIII, e centrou-se na noção de corpo, enquanto espécie

transpassado pela mecânica do ser vivo, e por um conjunto de

processos de controle reguladores da bio-política da

população.

As pressões biológicas sobre os processos histé~~cos

foram, durante milênios, extremamente fortes. A epidemia e a

fome constituíam as duas grandes formas dramáticas dessa

relação, que ficava sob o signo da morte. Nesse processo

ocorreu urna proliferação de tecnologias sócio-bio-políticas

que, a partir de então, iriam investir sobre o corpo, a

saúde, as maneiras de se alimentar, de morar, as condições

r!~'Foucault, Michel. História da sexualidade; a vontade de saber. 5. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1984, v.l, p.l32.

de vida e de existência social. Os dispositivos de poder

articulam- se diretamente, no corpo a corpo, a funções, a

processos fisiológicos, sensações e prazeres. Longe do corpo

ser apagado, trata-se de fazê-lo aparecer numa análise em

que o biológico e o histórico não se constituíam em uma

seqUência evolutiva, mas se interligavam, tendo por alvo a

vida. Não uma história que só leve em conta os corpos pela

maneira que foram percebidos ou receberam sentidos de valor,

mas uma história dos corpos e da maneira como se investiu

sobre o que neles há de mais material, de mais vivo.

No fim do século XVIII, nascia uma tecnologia do sexo

inteiramente nova. Nova porque sem ser realmente

independente da temática do pecado, escapava basicamente à

instituição eclesiástica. Através da pedagogia, da medicina

e da economia a sexualidade deixa de ser uma questão laica e

transforma-se numa questão sócio-política, na qual todo o

corpo social e cada indivíduo eram convocados a se porem em

vigilância constante.

É o dispositivo da sexualidade que instaura essa idéia

"do sexo" e o faz aparecer sob quatro grandes formas: a

histeria, o onanismo, o fetichismo e o coito interrompido. o

"sexo" se tornou um ponto imaginário criado pelo dispositivo

da sexualidade, a que

inteligibilidade, à

todos devem ter acesso à sua própria

totalidade, à sua identidade. As

palavras de Foucaul~ sintetizam bem essa nova condição:

"O pacto faustiano cuja tentação o dispositivo da

sexualidade inscreveu em nós é, àoravante, o segui~te:

trocar a vida inteira pelo próprio sexo, pela verdade e a

soberania do sexo. O sexo bem vale morte. É nesse sentido,

estritamente histórico, como se vê, que o sexo hoje em dia é

de fato transpassado pelo instinto da morte. Quando o

ocidente, há muito tempo descobriu o amor, concedeu-lhe

bastante valor para tornar a morte aceitável; é o sexo quem

aspira, hoje, a essa equivalência, a maior de todas. "n 9'

Durante a primeira metade do século XX, a sífilis, com o

seu treponema e as reações sorológicas que se consideravam

específicas, foi considerada a causa de numerosas afecções

para as quais não se tinha explicação clara. A AIDS tem uma

grande identificação com a sífilis, pois estão estritamente

relacionadas com a transmissão pelo sexo e pelo sangue. A

"moda" da sífilis passou porque as investigações

laboratoriais se tornaram mais precisas, porque é menos

frequente e mais possível de cura.

O bacterismo não impediu novas manifestações de um c"J.tro

irracionalismo que é a moralização da doença. A sífilis, a

tuberculose, o câncer, a loucura e a AIDS são 11 doenças~ que

possibilitaram definir modos de ser, funcionando como

"janelas para a alma!!, marcadas per uma certa 11 estéti:::a da

tragédia"

Em As epidemias na história do homem, Jacques Ruf=ie e

Jean-Charles Sournia afirmam desde as épocas

longínquas, podemos opor duas concepções: a doença-punição e

'19

' Foucault, Michel. História da sexualidade; a vontade de saber. 5a. ed., Rio de janeiro, ed. Graal, 1984, p.146.

a doença-acidente; uma religiosa, culpabilizante, quase

metafísica, anterior ao judaico-cristianismo, e a outra

racional e pragmática.

"As doenças estão associados não somente à infração a

uma regra e à ofensa a urna divindade que castiga, mas também

uma mácula, uma imoralidade - a doença é suja - sendo todos

estes termos empregues no seu duplo sentido físico e moral.

A doença apenas será curada com e ao preço de uma

purificação. Mais tarde a palavra latina 'infecçãor evocará

etimologicarnente a mesma idéia. E atualmente os

bacteriologistas, atomistas e ecologistas utilizam estes

termos com a mesma ambiguidade e afetividade. Este conceito

será retomado no essencial pela tradição judaica e depois

cristã, que considera a doença como uma punição do Deus

único, justo e todo poderoso. Os únicos remédios serão o

arrependimento, a penitência e a oração. rr(:::o'

o aparecimento da AIDS restabeleceu uma temática antiga

a da epidemia que ameaça toda a sociedade, a da 11 doença-

catac:lisma coletivo". Os primeiros casos de .Zl.:::Js aparece:-::cr,

no começo dos anos 80. A idéia de castigc àivinc para

interpretar a AIDS reforçou a idéia da doença como punição.

A emergência do risco da AIDS cresceu nos EUA, numa

realidade anglo-saxônica puritana, numa situação política

marcada pelo "reaganismo", num clima cultural de "c:::-dern

moral" que se difundiu na década de 80.

:,, Ruffie, Jacques e Sournia, Jean-Charles. As epidemias na hist.ória do homem; perspectiva do Homem, Lisboa, Edições 7C;, 1984, p. 216.

A AIDS conquistou o espaço público, como escrevem as

sociólogas francesas Claudine Herzlich e Janine Pierret no

seu artigo "Ulna doença no espaço público - A AIDS em seis

jornais franceses" . Para as duas sociólogas a mídia foi

responsável pela construção do fenômeno social AIDS,

particularmente a mídia escrita para a vida coletiva e para

o espaço público. Nesses últimos anos a AIDS se tornou um

fenômeno social, o símbolo de todas as ameaças e de todos

opróbrios, o alvo de todos os anátemas. Assim escreve as

duas sociólogas:

"A partir de uma interrogação científica sobre os

doentes cujo número era limitado, desenvolveu-se rapidamente

um discurso no qual se exprime o sentimento de urna ameaça

extrema, de um risco global gue pesa sobre toda

coletividade, questionando os modos de vida e seus valores.

Esse fenômeno, ainda reduzido em relação ao número de

problemas de saúde que afetam diversas populações, torna-se

um problema apreendido em sua antecipação. Freqüentemente

percebido num crescimento potencialmente ilimitado: ele pode

causar a catást.rofe universal. Um novo registro se impõe

então, o da urgência. Diante de um fenômeno que não pára de

crescer, de um perigo gue parece estender-se

indefini ti vamente, é preciso 'fazer alguma coisa' 1: 1'

Os meios de comunicação de massa, principalmente a

televisão, tiveram um papel decisivo na apresentação da

:; Herzlich, Claudine e Pierret, Janine. Uma doença no espaço público; a Aids em seis jornais franceses. In: PHYSIS­Revista de saúde coletiva. Vol.2, n.r, 1992, p.16

epidemia para a sociedade brasileira. Esse meio de

comunicação apresentou a AIDS corno wna doença restrita aos

homossexuais, pois era tratado então como wn "câncer gay"

que poderia assolar todo o continente americano e falava-se

em retrocesso da revolução sexual e dos costwnes. Em pouco

tempo a população foi alarmada, pelos meios de comunicação,

com a ameaça do terrível mal que assolava os EUA e a Europa,

e incitada a rever os costwnes e a liberação sexual dos anos

60.

Inicialmente apresentada como "peste gay", a AIDS

superou o antigo conceito de grupo de risco, expandindo-se

para outros segmentos da população. Os meios de comunicação

espetacularizaram a AIDS corno um problema restrito ao gueto

homossexual, suscitando arcaicas associações no imaginário

social como a relação entre sexo, sangue e morte, punição e

doença, prazer e culpa.

A AIDS é uma epidemia que ameaça e vitirniza milhares de

indivíduos de várias sociedades e continentes, constituindo

o que poderíamos chamar de uma pandernia. Mas o senso comum

percebe a AIDS como uma enfermidade que atinge grupos de

risco formado por indivíduos estigmatizados e basicamente

marginais.

Essa percepção da AIDS possui um componente perverso,

pois coloca a patolologia corno restrita a grupos

estigmatizados, um "outro" que, acima de tudo, é desviante

da norma social. No imaginário da epidemia, o grupo de risco

surge com o perfil de vítimas e ao mesmo tempo responsáveis

41

e causadores do seu próprio mal. Essa postura, presente no

senso comum, condena os indivíduos ao isolamento, a um tipo

de "morte civil".

Para o ouvinte da língua inglesa, AIDS (eids) se

entrelaça auditivamente com o verbo "to aid"- ajudar. Tal

sonoridade, diz o escritor Bartolomeu Campos Queirós,

convida a acreditar que o sujeito, ao se ver sentenciado

pela palavra AIDS (eids) se faz paciente e implora "aid"

ajuda. O mesmo pode-se dizer do ouvinte da língua francesa

que passou a denominar a AIDS como Syndrome

d 1 Imunodéficience Acquise, "Si da". Remontando ao latim, o

som da "cida 11 é igual a cida, cidium, derivado do verbo

caedere e que significa matar, tombar. O sufixo- c ida nas

línguas derivadas do latim indica morte. Cabe ainda, dizer

que "aid" em francês é a raiz do verbo 11 aider", que também

indica ajuda, apoio, sustento.

Na língua portuguesa continua campos Queirós

intriga o fato de pronunciarmos aids (aides) em vez de Aids

{eids) . Por que isso? Será por lamento, dor, terror?

quando o português se apropria do 11 sida 11 francês, este

"c ida" ganha nova sonoridade e parece que a doença se faz

mais amena. É que "cida" é o hipocorístico daquelas que se

chamam Aparecida. Aparecida é a senhora dos milagres, a mãe

protetora. Mas Aparecida é a sorna do verbo aparecer segt;.idc

do sufixo "cida". É o tempo do particípio passado.

segundo Bartolomeu Campos Queirós, antes mesmo de a

morte se instalar, a palavra já se aninhou no corpo e na

alma E mesmo sem o vírus a palavra acaba por congelar o

desejo:

"Com a AIDS perde- se também a intimidade. Morrer de

AIDS é, vulgarmente, morrer de desvio. É morrer em dívida

com a sociedade que condena o sexo, a droga, a divergência

de desejos .... saber-se 'aidético' é saber-se

irremediavelmente só, por tudo que a palavra devassa e

comporta. '' ~~~~

Desde seu nascimento, o homem sabe que irá morrer, mas

nas sociedades humanas o medo e a ameaça da morte foram

mediadas pelo conceito de doença. O homem, diante da própria

morte, está irremediavelmente só. As doenças epidêmicas

produzem medo, pânico, ameaças e perigos.

Michael Pollak, em seu importante livro Os homossexuais

e a AIDS, sintetiza adequadamente esse problema "A

associação 'AIDS-marginalidade-perigo' limita a compaixão

por suas vítimas, consideradas ao contrário dos cancerosos,

responsáveis pelo que lhes acontece e muitas vezes alvos da

desconfiança de não informare~ se~ ~stado aos parce:~os

sexuais e a seu meio. Essa rep!"esentação da doença e dos

doentes se opõe a uma estratégia de saúde p0blica que se

valha da responsabilidade individual"'=-'

,:: Queirós, Bartolomeu Campos. A palavra AIDS. Conferê:r.cia março de 1992, Belo Horizonte. Quinteto Editorial. :' Pollak, Michel: Os Homossexuais e a A~DS. Soc~ologia Q~ urna epidemia. São Paulo, Estação liberdade, 1990, p.175.

A AIDS conquistou o espaço público, corno escrevem as

sociólogas francesas Claudine Herzlich e Janine Pierret no

seu artigo "Urna doença no espaço público - A AIDS em seis

jornais franceses". Para as duas sociólogas a midia foi

responsável pela construção do fenômeno social AIDS,

particularmente a midia escrita para a vida coletiva e para

Segundo Capitulo:

Uma etnografia urbana

A pesquisa etnográfica foi realizada nas áreas centrais

da cidade de São Paulo, entre janeiro de 1989 a dezembro de

1991. O trabalho de campo foi realizado no território

concernente às praças Roosevelt, República, Dom José Gaspar,

Largo do Arouch~, avenidas Ipiranga e São João, e ruas Amaral

Gurgel e Bento Freitas. O espaço urbano da pesquisa de campo

foi delimitado segundo a sobreposição dos territórios do

"mercado do sexo e das drogas", junto às populações de rua

dessa região.

Foi através de contatos realizados durante a noite e das

apresentações dos entrevistados aos parceiros da droga.

injetável que pude desvendar e circunscrever nas redes de

usuários a prática de injeções na cidade. A maioria deles foi_

contatada na rua e o acaso possibilitou um primeiro encontro.

Após esse primeiro contato seguiram-se outros, através da

rede de amizade dos usuários, procurando-se ampliar a malha

da observação e do reconhecimento da identidade desse tipo de

personagem.

Os entrevistados foram selecionados pelo critério de

estar usando ou ter usado droga injetável num período de sua

vida e não segundo a sorologia para o HIV, embora alguns

soubessem serem soropositivos ao HIV.

O universo do uso de drogas injetáveis, que adquiriu

visibilidade maior com a expansão da AIDS, está longe de ser

homogêneo, e a prática de injeções não se restringe a uma

única identidade social. Pelas entrevistas e histórias de

vida percebe-se que o uso de drogas é relatado por indivíduos

com identidades sociais diferenciadas. O uso de drogas

ilícitas, por ser definido como delito, acaba por agenciar os

indivíduos na contravenção, na delinqüência, na marginalidade

e na clandestinidade.

A pesquisa foi desenvolvida

qualitativa em entrevistas e

a partir de :.li11a metodologic.

histórias de vida. Esse

procedimento forneceu urna diversidade de elementos e uma

multiplicidade de padrões de uso da droga injetável e

histórias de consumo que pennitiram circunscrever a prática

de injeções e seus aspectos sócio-culturais.

A observação participante foi realizada ju::to à populaçãc

da chamada "boca": prostitutas, travestis, michês, gays,

traficantes, boêmios, clientes, meninos de rua e usuários d-2

drogas. Foi através dos contatos realizados na boca e das

perambulações na vida noturna paulistana que consegui manter

um caderno de campo com sugestivas anotações sobre o consumo

de drogas ilícitas, comportamento sexual e "agitações

noturnas 11 dos entrevistados.

o trabalho de campo estendeu-se por três anos, devido à

clandestinidade do uso e o segredo que cerca as redes de

usuários de drogas até conquistar sua confiança e, além

disso, ser aceito como pesquisador. Minha principal

preocupação era não permitir que houvesse qualquer dúvida

sobre minha identidade, para não ser confundido com policial,

investigador ou simplesmente um "olheiro" da polícia, o que

poderia pôr em risco a viabilidade da pesquisa.

É importante ressaltar os limites da observação

participante: primeiramente para abordar e conhecer a prática

de injeções, não levei às últimas conseqUências a

radicalidade participativa, transformando-me em mais um

usuário. Em segundo lugar, nunca presenciei urna socialidade

1'in actU 11 do uso comunitário de agulhas e seringas, e todas

as informações baseiam- se em depoimentos e relatos obtidos

durante a pesquisa e no estabelecimento de um vínculo de

longo prazo, emocionalmente estreito, estabelecido com os

entrevistados.

A compreensão da alteridade não reside na simulação da

experiência alheia, mas exige a ap~oximação sensível j&

vivência do outro, sua lógica, suas ações e pontos de vistas.

' -~ experiência física do uso de drogas, o praze~

idiossincrático de um 11 totalmente outro 11 , não pôde ser

apreendido ou registrado sem que houvesse o relato das

experiências dos consumidores, por intermédio da comunicação

oral e gestual. É muito difícil participar das "sessões de

pico" quando não se faz uso da droga injetável. Mesmo assim,

consegui assistir a algumas delas. É importante salientar que

a maioria das entrevistas foi gravada e realizada em locais

"seguros", combinados previamente com os entrevistados, e

tiveram duração mínima de urna hora e meia, dependendo da

empatia e das reações dos sujeitos.

As entrevistas foram realizadas através de um roteiro de

perguntas que abordavam o histórico de consumo, a

aprendizagem, os padrões de aquisição de drogas, as técnicas

de uso e os aspectos jurídicos e penais, objetivando elucidar

a iniciação, o ritual de preparo, o compartilhar de

equipamentos, a freqUência de uso, a sociabilidade e a

dependência.

o pressuposto da pesquisa é o de que o uso de drogas é um

aprendizado social, transmitido dos usuários mais experienr.es

aos iniciados, constituindo gerações de consumidores. Esse

levantamento permitiu uma aproximação com a sociabilidade de

diferentes gerações de consumidores e com a cultura das

drogas.

A dinâmica do consumo de drogas está intrinsecame~te

relacionada ao sistema de percepção Í:ldividual ao

aprendizado corporal dos efeitos das substâncias psicoa~~vas,

reconhecendo prazer, qualidades e dificuldades. Trata-se :J.e

um conhecimento transmissível de geração para geração,

embora sempre haja necessidade de um saber experimental do

usuário sobre cada substância, seus limites físicos e

sociais, o controle informal das dosagens e os níveis de

tolerância.

De todos os entrevistados apenas um não terminou o

diálogo, devido ao medo da infecção pelo HIV associada às

descrições

relatava a

de suas próprias "situações

presença do sangue no uso

de risco", quando

compartilhado de

seringas e recipientes para diluição da droga. Mesmo assim,

um longo contato com esse entrevistado permitiu superar as

expectativas contidas no roteiro de perguntas.

A entrevista com Alemão foi realizada por intermédio de

um informante - policial responsável pelo Sanatório de AIDS

da Penitenciária do Estado de São Paulo- que entregou o

questionário a esse paciente para ser respondido por escrito.

Depois de ter recebido sua entrevista, fui conhecê-lo na

prisão, mas não pude permanecer lá por muito tempo. Consegui

realizar uma outra entrevista, muito rápida, com outro o~esc

{Rato) com AIDS, usuário de drogas injetáveis no sanatório do.

Penitenciária do Estado.

Essas duas entrevistas, embora não rendessem os

resultados das demais, pois o contexto no qual fora..m

realizadas não permitiu uma reconstrução detalhada do

histórico de consumo, acabaram por revelar o lado somb~~8 da

repressão policial e do atendimento médico do sistema pena:.

As respostas de Alemão, traziam muitos símbolos

caligráficos, em forma de cruz. Alemão desenvolve uma "teoria

do viciado", e fornece informações sobre o tráfico e o mundo

do crime. Sua linguagem está permeada pelo jargão policial,

pertencente ao universo do crime, e pela vivência e

sentimentos de um paciente com AIDS ~o presídio.

As redes de consumidores de drogas

Os treze entrevistados, que no texto aparecem com nomes

fictícios, situam-se na faixa etária de 15 a 40 anos. Um

grupo é formado por indivíduos de camadas médias urbanas,

vida profissional organizada, moradia definida, com

remuneração mensal variável entre 3 a 8 salários mínimos, e é

composto por 6 heterossexuais (2 separados, 2 casados, 2

solteiros} e 1 bissexual.

o outro grupo, que poderia ser conceituado corno de

integrantes do lurnpezinato, é formado por 3 travestis, 2

prisioneiros, 1 bissexual. Os travestis trabalham na

prostituição de rua, um deles vende drogas, outro é paciente

de AIDS na Casa de Apoio Brenda Lee, que acolhe travestis e

drogados que não contam com apoio familiar ou institucional.

Os entrevistados constituem duas redes de usuários de

drogas injetáveis, formando diferentes histórias de vida e

padrões de uso. Alguns entrevistados se conheciam: Mae West,

Galo, Manoel, Formiga e Donatelo, sendo que a primeira cedia

sua casa para as práticas de injeções.

No outro grupo, o travesti Duda apresentou o entrevistado

Magda, travesti que morou também em Roma e fez uso de heroína

injetável. O entrevistado veneno conheceu os dois travestis

pois, nas "funções da noite", vendia Hipofagin e maconha para

ambos os travestis. A companhia do entrevistado Veneno, em

suas perambulações de rua, foi importante para a definição do

terreno da droga associado ao território da prostituição

homossexual.

o histórico do consumo dos entrevistados mostra que os

usuários de drogas endovenosas experimentaram uma série de

substâncias psicoativas, podendo esse grupo ser definido como

de "poliintoxicados".

A maioria dos usuários ultrapassa três meses de uso de

injeções, atingindo até quinze anos. Na época de pesquisa

declararam não mais fazer uso de drogas injetáveis, com

exceção de dois. Seus depoimentos marcam suas experiências

com o uso de injeções assim como suas exposições e situações

de risco para o HIV.

Do total dos en~~evistados, a maioria continuava a faze~

uso de cocaína aspirada e de maconha. Os relatos fcrarr.

orientados para fornecer o histórico do consumo, a cultu:::-a. e

a aprendizagem do uso de droga injetável, o compartilhar de

agulhas e seringas, e permitiram reconstruir o contexto

sócio-cultural da prática de injeções, o significado do uso e

o compartilhamento dos equipamentos da cultura das drogas.

Os depoimentos relatam diferentes frequências de uso,

como períodos diferer:tes de inserção na cultura das d:::.-ogas.

De acordo com os relatos, muitas são as substâncias

psicoativas passíveis de serem injetadas, sendo a mais

utilizada a cocaína, considerada a droga hegemônica na

cultura das drogas na década de ao. Alguns depoimentos

descrevem o uso de drogas injetáveis na década de 70, sendo a

substância mais utilizada as anfetaminas, conhecidas corno

ampolas Pervintin e 11 bolasrr de Hipofagin, Desobesi e outras.

Através da história dos sujeitos podemos descrever

algumas mudanças comportamentais nos grupos de entrevistados,

mas o trabalho qualitativo não possibilita generalizações

para toda a sociedade, embora deixe entrever que essas

mudanças poderiam ser creditadas a uma multiplicidade de

fatores, dentre os quais poderiam estar elencados o papel

desenvolvido pelas organizações não-governamentais, pelos

discursos da prevenção e pela própria dinâmica do consumo dos

entrevistados, como veremos a seguir.

os personagens

1. DONATELO (maio de 1991) 36 anos, natural do bairro da

Mooca, Heterossexual separado àa esposa, com um filho, 3.grau

completo, trabalhava como professor em uma faculdade. Na

época da entrevista morava sozinho. Tem um relacionamento

sexual afetivo fixo, mas freqüentemente procura amantes. Não

namora muitas pessoas. Tem interesse por atividades culturais

e políticas, particularmente o impacto

Considera-se ateu. Passa geralmente o

da Perest~oika.

tempo de laze:r-

''chapado", fumando maconha. Tem medo de pegar AIDS e diz que

toma as precauções que o "bom senso indica". Não transa "aos

montes" e atualmente não usa mais drogas injetáveis. Teve

problemas com a polícia, mas conseguiu escapar do processo.

Lê regularmente obras da literatura modernista e jornais

diários como a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.

"Quando eu comecei, por volta de 1966 para 1967, não

existia entre os meninos, jovens adolescentes de 12 e 13

anos, essa iniciação através de cola ou xarope. Não havia a

identificação, que hoje existe, do jovem se iniciar com cola,

xarope e bolas. Quando o garotão começava a fazer uso de

drogas, a idéia de droga, geralmente começava pela maconha. É

como o sujeito se introduzia nesse universo."

A primeira droga ilícita que consumiu foi a maconha entre

12 e 13 anos, junto com os meninos do parque D. Pedro. Logo

começaram a aparecer as drogas injetáveis com a mesma

molecada, no caso ampolas de Pervintin. Conheceu ácido (LSD),

cocaína e bolinhas de anfetaminas, mas a maconha é até hoje

sua droga

injetáveis

mais frequente

16 e 17

e diária. Foi "tomar" drogas

quando entre anos,

estava fazendo preparatório ao

ampolas de Pervintin e Desbutal

circunstancial e esporádica.

por volta de 1971,

vestibular. Experimentou

injetável com frequência

11 Eu injetei na época de 69 a 73. Doidice! A intensidade

era de acordo com o que pintava, porque eu não era um viciado

em tomar, como toda a moçada que convivia na Mooca e tal. As

pessoas tomavam na medida da oferta. Por exemplo, às vezes se

ficava 1,2,3,6 meses sem tomar, porque não apareciam ampolas

boas, e não tinha Desbutal, nem Dexarnil. Então não se tornava,

a não ser os caras que eram muito fissurados, principalmente

gente mais velha, na faixa dos 35, em 71. Eu tinha 17. Essa

gente mais velha chegava a roubar pronto- socorro para obter

receitas, para ir buscar outras drogas que eles se aplicavam,

até remédio, porque eram pessoas que tinham muita fissura

pela picada. Pessoas que tinham tanta vontade de se picar,

que geralmente quando iam tornar, de tanta ansiedade, antes de

se aplicar se cagava todo."

Donatelo usou drogas injetáveis até 25 anos. As drogas

mais consumidas foram Preludin, Pervintín e Desbutal, sendo

as mais frequentes as "garrafas" (ampolas) de pervíntín, que

já vinham prontas para injetar. Suas palavras demonstram que

há urna associação clara entre droga e sexualidade.

11 Sem dúvida, toda a coisa de se drogar, por via

injetável, e isso era muito forte na minha adolescência,

estava relacionada com essa perspectiva de ser onipotente, de

ser super-homem. Tudo isso tinha a ver com o sair para a

noite, de sair cor.1 mulheres, de transar, de comê-las mui:c.

Enfim isso não e só urna experiência pessoal, mas um pouco

como era vivido esse lance. Drogar fazia sentido, se você

fosse para a boemia. Se não, era coisa de babaca. Era o

espírito da época, não sei hoje.n

Donatelo vivenciou a mudança no mercado das drogas no

período de 70 a 80 e suas palavras se misturam co:;--. as

lembranças dos seus territórios e sua inserção na cidade. Se~

depoimento revive o ponto de vista de um consumidor de uin

:-.'

bairro subcentral da cidade de São Paulo que vivenciou a

metropolitização da cidade e a mudança nas substâncias mais

consumidas e injetadas, em diferentes gerações de tomadores.

2. MANOEL (março de 1991) 38 anos, natural de Jaú (SP),

branco, heterossexual, separado da mulher, com terceiro grau

completo, advogado. Morou muitos anos no interior. Atualmente

mora em São Paulo. Foi casado algumas vezes: um ano e meio

com uma mulher, dois anos com uma outra e dez anos com a

última, mãe de seu filho, também usuária, descrita corno

agressiva na prática da droga injetável.

Manoel como ele próprio diz, tem uma vida sexual "bem

irregularrr. FreqUentemente tem outras parceiras sexuais além

de sua esposa, gosta de freqüentar a boca para sair com

mulheres, particularmente quando está embriagado, fazer farra

e cheirar cocaína com elas. Hoje em dia, "mesmo as minas da

boca pedem para usar camisinhas". Até uns cir1co anos atrás

achava que a "AIDS era coisa de viado". Afirma não ter medo

de "pegar 11 AIDS. Não gosta de u.sar camisinhas, acha q-ue é c

mesmo de 11 chupar bala com papel 11• Já elaborou métodos

contraceptivos com suas mulheres, mas falharam algumas vezes.

Acredita em Deus e foi interno de seminários da Igreja

Católica. Era filiado ao PCB. Gosta de sindicalismo e do

direito trabalhista. Teve problemas com a lei em 1975, devidc

ao porte e consumo de entorpecentes. Ficou preso durante dez

dias, foi processado, j:.:lgado e inocentado por falta de

provas. Fez consulta com psiquiatra levado pela família, onde

teve de provar que o problema era sua família e não ele.

Prefere passar suas horas de lazer rr cheirando cocaína, lendo

e dormindo" . Suas leituras regulares são

Veja, jornais O Estado e Folha de S. Paulo.

A primeira droga que Manoel usou foi

cursava o primeiro ano ginasial, com 12

Naquela época não fumava cigarro nem

revista Playboy,

maconha, quando

anos, em 1964.

usava álcool.

Atualmente, toma bebida alcoólica regularmente. Já

experimentou ácido, cogumelo, lírio, cola, bolinha (calmantes

e anfetaminas), loló, lança-perfume, xaropes, heroína,

morfina e ópio pingado no cigarro e/ou no baseado, Pervintin.

Sua droga preferida é o LSD.

"A droga tem um significado para mim, sempre foi um

caminho, até chegar o LSD, que foi a descoberta de um mundo

novo. Tomei cocaína em 1986. NUnca achei certo tomar cocaína

na veia. Isso é coisa de louco, acho que isso tá acontecendo

porque tem muita, coca é muito misturada. Eu uso óculos e

tenho cara de sério,

seringas na farmácia. "

isso sempre facilitou comprar as

As substâncias psicotrópicas que aplicou foram cocaína,

Pervintin, Desbutal e uma única vez o Artane. Começou

injetando entre 1971 e 1972. Na última fase de "pico" foi a

cocaína, a droga mais "tomada"_ Atualmente, prefere cheirar

do que "tornar 11 , "tomei muito até aparecer o bode e não torno

mais''. Usou droga injetável num período de 15 ar..os. ;_

primeira vez foi em 1972, parou de se injetar em 19 8 7. Faz

três anos que não injeta mais drogas em suas veias, mas

"cheira" cocaína há três anos, semanalmente.

3.

(SP) ,

CANADÁ

branco,

(26/6/2990) 28

heterossexual

anos, natural de Caraguatatuba

solteiro, com segundo grau

completo, comerciante. Morou três anos em São Paulo, um ano

no bairro de São Mlguel Paulista e dois anos em Santa

Cecília. Atualmente mora em Caraguatatuba. Participou da

formação de um ponto de venda de drogas no litoral paulista,

que ainda se mantém. No tempo da entrevista fazia um ano que

não mais consumia drogas injetáveis. Afirmou que estava

afastado da coca, preferindo manter-se longe do "baque" {coca

injetável) 1 mas esporadicamente aspirava algumas carreiras.

Tem vontade de fazer o teste para o HIV.

Freqüentemente usa camisinha nas primeiras relações

sexuais com uma garota, mas com o passar do tempo deixa de

usá-la porque eles se tornam namorados.

Canadá fez psicoterapia grupal, devido a suas relações

com o consumo de drogas. Foi dependente de injeções de coca,

mas conseguiu se afastar. É perceptível sua vontade de volta~

a injetar e seu sofrimento para conseguir deixar de injetar.

Atualmente faz um discurso contra as drogas e não quer mais

se sentir dependente de qualqt:er tipo droga. Prefere

canalizar suas energias para o trabalho e para sua namorada.

Canadá deixa transparecer que, quando usava droga injetáveis.

perdia seu interesse e apetite sexual. A lembrança da amada é

um mecanismo que o ajuda a se manter distante do 11 baque de

coca". Lê regularmente o Estado de S. Paulo.

A primeira droga que conheceu foi a maconha. Conheceu

Hipofagin, Mandrix, ácido, cogumelo, cola, benzina, cocaína e

injetou Arnosterona, Artane, cocaína. Experimentou cogumelos

uma única vez, mas não quer mais beber o chá. As primeiras

drogas que injetou na veia foram Glucoenergan e Hipofagin.

"Já tomei gluco antes de tornar cocaína. Tomava gluco para

segurar a bebida, beber mais, mas não em grandes quantidades;

particularmente em tempo de carnaval, fazia fila na farmácia.

O cara fez a maior grana, o farmacêutico foi candidato a

vereador. Você ia na farmácia, todo mundo tomando urna caixa

de cinqüenta. você ia tomar só vinte? Não vou tomar só vinte,

cinquenta também. Mas não sentia o mesmo efeito que o pó.

Depois que conheci a coca que vi que o gluco não era nada.''

Seu depoimento revela a preferência pela cocaína

injetada, o "baque de coca'1, demonstrando dificuldades para

se manter afastado dessa forma de administração do uso:

nse eu fosse, pudesse, quisesse usar, tomaria de novo. E·~

dispensaria .. {gesticula o aspirar, cortando a carreira sobre

a mesa) . Tá certo que cheirar é mais social, como se diz no

meio dos viciados, mas você tomar um baque (fala bem

baixinho) Você fica caçando jaburu. Chega a madrugada e o

silêncio. você já viu caçar jaburu? Jaburu é um tipo de

ave/macuco, maior que uma galinha, jacu. Chega wn clímax m·-'"­

você já tomou urna, duas, três ... seiSi possivelmente você vai

aumentando a carga, querendo um pouco mais forte e dependendc

57

cada vez mais da sorte. Você nunca toma uma forte na

primeira, devido ao risco de overdose, de repente se você

quer mais água você torna.n

Canadá usou drogas injetáveis durante quatro anos

consecutivos, de 1982 a 1986, e a substância psicoativa mais

consumida foi a cocaína. Aplicou Glucoenergan em suas veias

em tempo de carnaval, para "segurar" a bebida, para beber

mais. Também aplicou Hipofagin com o objetivo de permanecer

acordado para suas pescarias. Aplicou outra droga chamada

Amosterona, que vem da Bolívia.

"Tomei um par de tempo, não direto, mas toda semana.

Tomei durante quatro anos, urna vez por semana, que começava

na sexta e terminava na segunda. você não via a hora de sair

do boteco, pegar uma grana, descolar um pó ... e começava na

terça-feira. Guardava no máximo um dia, e já no outro,

começava de novo, e pá, pá.. . (gesticula cortando cocaína) .

Era difícil conter, segurar. Quanto você tin~a era quanto

você consumia."

Nunca teve problemas com a lei, mas seus amigos tiveram,

devido ao tráfico de entorpecentes. Já fez consultas com

psiquiatra, sugestão de sua família. Atualmente não injeta

droga, apenas aspira cocaína e fuma maconha esporadicamente.

Bebe com certa regularidade em sua mercearia, ponto de

encontro de homens no final da tarde, para beber cerveja e

tomar cachaça.

4. MAE WEST 27/1/90) 26 anos, natural de São Paulo,

branca, com terceiro grau de escolaridade, heterossexual

casada, professora de piano, musicista, gosta de cinema.

Aprendeu a tocar piano antes de ler e escrever. MOrou cinco

anos numa cidade do interior de São Paulo para estudar, foi

nessa cidade que usou drogas injetáveis pela primeira vez.

Teve vários paceiros sexuais, atualmente tem um

relacionamento afetivo e sexual estável, "estou casada" .

Simpatizante do PT. Geralmente procura atividades culturais,

mas sempre fica "entre elas e o ócio". Não acredita no Deus

católico, mas acredita em Deus. Em sua opinião, o risco

frente à AIDS advém mais de sua história sexual do que pelo

uso de drogas injetáveis. Não fez o teste anti-HIV, pois

afirma ter medo de receber o resultado. Lê regularmente a

Folha de S. Paulo.

Em seu depoimento descreve suas procuras e experiências

com o uso de drogas, relatando de forma clara o significado

da droga em sua vida:

'"_:::,_ droga para mim é fonte de praze::::-. Eu gosto de :.,... aléP.',

do Q'.l'2 eu posso estar, ser, ir, buscar mais do meu ser. Acho

que a d~oga me traz isso e eu gosto."

Aos 9 anos de idade fez tratamento para emagrecer com um

dos médicos mais famosos da América :.atina, conhecendo as

anfetaminas corno remédio. Dos 12 para 13 anos, conheceu as

anfetaminas corno loucura, desenvolvendo uma dependência:

''Precisava tomar, foi um sufoco. Fiquei quase três meses

sem dormir direito, quase enlouqueci. Eu sou exagerada para

tudo, para beber, comer, dormir, como também para drogas.

Gosto de bebidas alcoólicas, de beber bastante, em grandes

quantidades. "

A primeira droga ilícita que Mae West usou foi a maconha,

que considera "a droga consciente". Na época da entrevista

usava maconha cotidianamente e aspirava cocaína

esporadicamente, considerando-se porém uma 11 grande cheiradora

de cocaína". Em seu histórico de consumo explica que sempre

"cheirou", mais do que "tomou" (injetou) .

"É corno já falei, são fases! Não que isso aconteça, nem

que seja necessariamente uma coisa progressiva. Você primeiro

cheira, daqui a pouco você torna, e toma. . e morre ou f i c a

dependente. Não que seja assim, mas para mim foram fases

distintas. Foi a fase que eu comecei a cheirar, depois passei

a tomar, depois aprendi a conviver com a droga, cheirando só

socialmente. o tempo de uso, eu sempre contabilizando ... eu

sou uma grande cheiradora. Sempre cherei muito, mais do que

tomei. Mas tomei numa fase, foram três meses de tomação e

bastante intenso. 11

Ma e west aplicou-se cocaína injetável em :.986.

Freqüentemente consumia drogas e, em sua "república", cobrava

"pedágio 11 dos meninos da rua que quisessem se drogar em sua

casa. Conseguiu deixar a prática de injeções após vma

infecção que necessitou intervenção cirúrgica. O contexto de

sua prática está estritamente relacionado com o namcradc Ç!...:e

injetava e vendia cocaína na cidade:

"Minha auto-imagem era a de ser o uó do borogodó. Eu era

a Mae West. Era a que tinha de melhor em nível de droga,

porque eu tinha muita droga. Tinha um espaço legal para usar

a droga. Tinha vãrios namorados, mas foi com o meu namorado

marginal que usei coca injetável. Hoje em dia sou uma

transeunte qualquer por essa grande São Paulo. Foi uma época

que fugi muito da minha família, abandonei a universidade e

os trabalhos, e tudo, por causa do meu namoro marginal".

É interessante como ela descreve as n sessões de pico 11 , o

pessoal que freqUentava sua casa e aqueles que sempre

permaneciam juntos no momento de "tomar pico 11•

11 No caso do meu grupo, as pessoas já se conheciam de

muito tempo, de outras histórias. Era uma turma que se

conhecia desde os seus 16, 17 anos, mas estavam na casa dos

30. Mas ainda, nas drogas, nas viagens e em todas as

agitações. E tinha essa questão da consideração para os

amigos que tomam. Eu via isso muito entre a Creuza, o Manoel,

a Ana sapatão e o Dito. Eles eram muito solidários entre si,

porque tinham uma história, um passado já nessa droga. E::1tãc,

podia ter uma barca de 20 1 mas esses quatro se organizava.T:'.

entre eles. A Creuza era enfermeira, o Manoel também, oe

tanto que ele já tomou e toma. Então, tinha uma coisa de um

tá fazendo a vez do outro, nunca gostaram de trocar seringas,

mas chegaram a trocar várias vezes."

Dito, seu namorado "marginal", acusado de roubos ~

assaltos, usava droga injetável há muito tempo. Ele t::.::rJ.c..

inúmeros carocinhos nas veias do braço, que formavam ur,

61

cordão de "picadas 11, devido às injeções de cocaína. Numa

madrugada, após ter 11 cheirado todas", nwn acidente de final

de noite, assassinou seu "irmão de leite" (vendedor de

drogas) e acabou condenado a muitos anos de prisão.

5. MARCEL (19/01/90) 33 anos, natural de São Paulo,

branco, bissexual, separado, dois filhos, segundo grau de

escolaridade incompleto. Trabalha com pesquisa de preços em

supermercados. Gostaria de trabalhar em outra coisa.

Considera que foi bissexual e atualmente "está" homossexual.

Tem um relacionamento afetivo e sexual estável, mas já teve

muitos namorados. Mora numa quitinete no centro da cidade com

seu namorado, um garoto de 14 anos vindo de Belo Horizonte.

Morou alguns meses em Montreal, para ajudar e acompanhar

seu amigo e primo homossexual, que estava com AIDS, em fase

terminal. Já fez o teste anti-HIV, mas não mencionou o

resultado do exame. Revelou ter medo da AIDS. Mas quando

perguntamos o que faz para prevenir, respondeu: 11 Algumas

vezes uso camisinha, mas outras vezes não faço nada; procure

ejacular fora do parceiro{a) sexual, depende da situação".

Marcel já se internou por decisão própria numa clínica

psiquiátrica. Geralmente se automedica com o ansiolitico

Lorax. Nunca teve problemas com a lei. Faz análise desde

1976, com o objetivo de autoconhecimento. Ora acredita em

Deus, ora não. Prefere passar suas horas de lazer com os

amigos. Sua lei~ura regular é o jornal Folha de S.Paulo.

A primeira droga que usou foi maconha, a preferida e '

também a mais frequente. o uso da droga injetável ocorreu em

1984, por quatro meses consecutivos.

"Cherei cocaína em abril de 1984, quando fci em julho já

estava me internando. Eu já estava nesse finalmente, que foi

a picada de coca; o ápice de minha dependência de droga. o

pico foi uma aberração, fruto do desespero, do vício. o

compartilhar de seringas não tem nada a ver com relações de

amizade, tem a ver com a droga, com o vício, com o difícil

acesso às drogas."

O uso da droga injetável coincidiu com a mudança em sua

vida sexual, quando resolveu assumir sua homossexualidade.

Estava separado da mulher e dos dois filhos. Seu depoimento

ilustra a relação entre drogas e sexualidade:

"Eu me injetei com 25 anos. Quando eu assumi minha

sexualidade, e comecei a procurar pessoas do mesmo sexo. Eu

tinha 1lltl grilo que era a sexualidade, um bode desgraçado.

Quando faço uso de drogas fico mais corajoso para viver

minhas emoções."

Foi socorrido e internado após uma ter::ca:iva de suic::.d::.o,

por overdose, injetando cocaína com bebida alcoólica nas

veias. Procurou descrever sua auto-imagem ãe quando consumia

drogas por via injetável:

"Minha auto-imagem é de urna pessoa fisicamente maltrar:ada

por si mesmo, pois é um processo que acaba ::::-m :: organisrr~:J da

gente. Eu percebia isso, eu estava fazendo e percebia isso. O

significado da droga ... cheirar tinha uma :.:..:r.a:..idade, mas c

pico foi fruto do desespero, do vício. Cheirar, eu tirei

proveito disso, e tive prejuízo também, experiências, para c

que sou hoje. Picar foi aberração, a dependência, a

convivência e o contato com traficante. Para ter acesso à

droga, sempre me fiz passar por amigo de um traficante

carioca. 11

Na época da entrevista, afirmou que não usava mais droga

injetável há seis anos, fumava maconha, além de tornar

calmantes, cigarros e bebidas alcoólicas.

6. FORMIGA (julho de 1989) 25 anos, branco, natural de

São Carlos (SP), heterossexual amasiado, músico, segundo grau

completo. Trabalha com consultoria de informática a empresas.

Mora há oito anos em São Paulo, atualmente com a namorada.

Não namora muitas pessoas diferentes, mas freqUentemente tem

outras parceiras sexuais. Tem medo de pegar AIDS e diz ter

consciência do assunto. Nunca fez o teste anti-HIV, mas

gostaria de fazer. Não acredita em Deus. Não tem nenhu.rr_

engajamento político ou sindical. Tem interesse por cinema.'

teatro e principalmente música e regência. Suas leituras

versam sobre informática, música, tecnologia e poesia.

As drogas que conheceu foram maconha, cocaína, ácido,

cogumelo, lírio, cola, Artane, xarope (Panbenil), lança-

perfume, mas a preferida é a maconha, embora a cocaína seja a

mais freqüente. Costuma usar cocaína em seu ambier:.t~

profissional. Gostaria de experimentar crack, e o chá

Santo Daime. Recusaria heroína, alegando não ter "coragem nem

preparo emocional" para conhecer essa droga.

A primeira droga que Formiga consumiu foi rrcola de

sapateiro", quando andava de skate e tinha de 11 para 12

anos. Depois aprendeu a cheirar lança-perfume em baile de

carnaval e aprendeu a fumar tabaco. A primeira droga que

injetou foi Artane, aplicou drogas na veia dos 14 aos 16

anos, sendo a cocaína injetável a preferida pelo "barato 11

proporcionado.

"0 Artane foi uma experiência muito ruim para mim. Hoje

em dia não tenho preferência por nenhuma droga injetável. Mas

no tempo, em que eu tinha interesse por isso, era cocaína

mesmo. Pela excitação, acho que você fica ansioso. Excitação

e ansiedade são as duas coisas, agindo ao mesmo tempo em

você, criando urna sensação de potência. Mas é apenas uma

sensação, porque tenho notícias que sexualmente as pessoas

não viram nada, não ficam excitadas sob o efeito de cocaína,

principalmente se tiver tomado. 11

Atualmente não injeta mais, porém continua a asp~ra~

cocaína e a fumar maconha regularmente.

7. MARIE (18/1/90) 24 anos, loira, natural de Paris/Fr,

heterossexual solteira, com segundo grau. Mora com o irmão e

um amigo na cidade de São Paulo. Trabalha de secretária e

recebe aproximadamente 800 dólares mensais. Adora 1 e::-.

dançar, boate, cinema, praia, bar e amigos. Não terr:

engajamento político, sindical e nem religioso. Gosta de

bebidas alcoólicas e de "encher a cara'1• Não usa camisinhas

com seus parceiros sexuais. Veio ao Brasil com o namorado

para 11 dar um tempo n

bastante freqllência

da heroína injetável, que consumia com

em Paris. No Brasil, substituiu a

abstinência da heroína com a aplicação de cocaína. Gostaria

de fazer o teste anti-HIV. Não acredita nos centros de

desintoxicação de drogados, justamente porque amigos que os

conheceram, ao saírem, continuaram procurando drogas. Lê

regularmente romances.

A primeira droga que Marie experimentou foi haxixe.

Depois consumiu óleo de haxixe, maconha, heroína/ cocaína,

popper, cola, anfetamina, ácido ("sunshine") e cogumelo.

Atualmente recusaria cogumelos e ácidos, por medo. sua droga

preferida é a cocaína, a "show business- a droga da moda". No

entanto, a droga que Marie mais consumiu foi a heroína,

descrita corno um "flash no coração". Experimentou injeções de

heroína com 17 anos, incentivada pelo namorado, cinco anos

mais velho que ela, e que preparava as injeções. Marie nunca

fez ·uma seringa sozinha, para não se viciar. Morou cor:1 c

namorado em Paris, trabalhava numa concessionária de

automóveis; ele não trabalhava. o namorado pagava suas contas

e a droga com roubo de carros e assaltos a pessoas idosas.

Marie e o namorado vieram para o Brasil a fim de "dar um

tempo da heroína'1 mas, com as crises de abstinência,

procuraram substituir com aplicações de cocaína. Ela escrev9

os efeitos da cocaína injetável como 1'mais flash" do que as

injeções de heroína. Não acorda bem quando usa heroína,

sente-se culpada, enquanto com cocaína fica deprimida.

Com 21 anos, quando chegou ao Brasil, conheceu a cocaína.

Na época da entrevista, fazia dois anos e meio que não

consumia heroína. Parou de aplicar-se com cocaína há um ano e

meio, mas continuou a "cheirar pó" até o carnaval de 1989. O

que mais chama a atenção de Marie é o desejo de consumo e as

diferenças de freqU.ência entre as duas substâncias

psicoativas:

MNão é que não sinta vontade de consumir cocaína, mas de

heroína sinto mais vontade de tornar. A cocaína não deixa

dependente, mas a frequência da heroína é todo dia, muitas

aplicações durante um mês. Sinto vontade de tornar heroína. 11

8. GALO (24/8/90) 22 anos, natural do bairro de Perus,

negro, bissexual, casado, com primeiro grau incompleto. Na

época estava desempregado. Conheceu os pontos de venda de

drogas, particularmente a cocaína, na favela do Beija-Flor.

Nunca fe;:; teste ant.i-HIV, pois ;;:em medo de recebe::- c

res...:lt.ado. Teve urr. conhecido que morreu corr: .2>.IDS,

"tomador de baque" (aplicações de cocaína). Vivencio;_:_ os

conflitos na favela pela disputa do ponto de venda entre duas

gangs de traficantes. Relata o uso de crianças de 12 e 13

anos '8ara fazer 11 avião 11 para o tráfico e para a segurança de

pont::: de vendas de cocaína. Atualmente, hlc::-a em cut:ro L.:gc..::-

proc"J.rando não se envolver com as pessoas de se·~ bairro, para

não sofrer pressões àos bandidos, ccnseqüen:emente,

não cair no "movimento" e na "função 11 dessas pessoas, fugindo

da violência e da delinqüência. Já teve problemas com

polícia, mas nunca assinou processos. Nos últimos anos,

depois de um acidente, mudou de vida, casou e despertou para

o misticismo e para as religiões orientais. Suas leituras

regulares são o I Ching, e Folha de S. Paulo.

FOi no período de 1987 a 1989, gue usou drogas

injetáveis, basicamente artane e cocaína, geralmente

compartilhava seringas com seu "amigo-irmão".

9. VENENO (23/1/90) 28 anos, branco, natural da Vilc

Iorio/ S. Paulo, primeiro grau incompleto, homossexual, sem

remuneração fixa. Na época da entrevista, morava sozinho num

porão, nos fundos moravam dois irmãos dele, mas faz questão

de afirmar que é "tudo independente 11 • Já fez dublagens err.

shows de travesti, corno transformista, e gostaria de montar

urna banda de rock. Sobrevive recebendo comida de

restaurante próximo à Avenida Paulista e de pequenos ::1rtc:::

er.l superme:::-cadcs. Atualrner:.::s vi vs das "fur:.ções '' as. :-::c:.::.::.

vendendo d:::-cgas nas ruas de p:::-ost:.t~:ição do ce::c:::-o cidad;::

"A gente trabalha, :;.é? Mas é um truque,

prostituição. Não é um trabalho oficial, rotineiro, lig-adc _

outras partes da noite, corno a mente, caminhadas, curt:..ções,

sem finalidades. Vender bolinhas ( anfecaminas)

pessoas m.;_;::. ::-abalf',a._r, na noite ::oi:'. prostit.:.::..ção: .!:J:.::r-.s.:::

pt::.as, traves~.is e o:;.tros :1as ::-:1as do ce:Q::rc. _-:,_ gent~ qc:.-o:

vive muito na ::0ite precisa de ur:: p:.q-:.le a mais, enersé:::..::::.

veneno tem um relacionamento afetivo fixo, considera "não

sexual", pois geralmente se masturbam a dois. Seu parceiro

também usa drogas injetáveis, sendo que já compartilharam

agulhas e seringas. Não usa camisinha, porque diz que "quase

não faz sexo", apenas se masturba. Foi preso pela polícia

quando se injetava na ruas centrais da cidade. Teve problemas

de saúde decorrentes do uso da droga injetável, o rim parou

de funcionar, necessitando ser internado e passar algumas

horas no hospital.

É portador de sífilis, mas não teve condições de realizar

o tratamento por falta de dinheiro e de estrutura mínima para

comprar os remédios. Foi requisitado para fazer o teste anti-

HIV, pela liga anti-sífilis do Hospital das Clínicas, mas

recusou-se a fazê-lo. FreqUentemente passa o tempo de lazer

dormindo. 11 De certa forma", acredita em Deus. Suas leituras

regulares são "gibis a pampa'1 • Jornais, particularmente o

Caderno 2 e a Ilustrada. Gostou e se identificou com

personagem Junky do livro de W. Burroughs.

As primeiras drogas que Veneno experimentou fora~. e.s

anfetaminas, a "bola" de Hipofagin. Seu conhecimento sc:Ore a

química dessa substância psicoativa é explicitado da seguir::::.;::

maneira: "Eu tomei a primeira fórmula de Hipofagin, que já

mudou três vezes 11 • A primeira droga que aplicou-se foi

Algafan, em 1983. sua descrição ilustra bem a experiêr:c.:.a.

corporal com essa substância psicoativa:

"A primeira vez foi ótimo, formigamento, turvamen::c c~

vista, e coisa assim ... a algafan vai entrando pelas veias

braço, 'twn'! Quando chega no pescoço, '::mn', aí turva a

visão. O efeito dura mais gue o 'baque' decoca, às vezes,

desmaiava."

As drogas injetáveis mais aplicadas ~ veneno foram

Hipofagin, Desobesi, Algafan, Amosterona e "baque" de coca.

Aplicou uma vez Benzitrate, com o intuito-de substituir a

coca, sem saber qual seria o resultado, relaando que foi bom

e que gostou. Suas drogas preferidas são ccaúna injetada e

anfetarninas, principalmente Desobesi. o erttevistado afirma

não gostar de injetar-se na frente de genteque não aplica,

porque:

"Prefiro tomar sozinho! Porque alguém que não está

tornando interfere no seu 'subconsciente'. Qun não faz o 'zé•

é preferível cair fora. Interfere, po::.-que apessoa que não

está no barato fica impressionada. Inte~fe~até no lance de

se injetar, deixa a gente nervoso."

veneno fez uso de drogas inj eL-e:eis por anos

consecutivos, desde 1983 e continuava se injetando com

cocaína na época da ent~evista. Ele ilustraE forma bastanLe

clara o ambiente e suas representações sobre~ injeções:

"Go!:=to de tomar no meu quarto, que é e·E!E porão aqui. Na

rua eu não tomo mais; às vezes no banheirod.e algwn lugar,

mas é difícil. Quando eu tenho o barato, ";Çefiro guardar e

esperar para tomar em casa. Eu aplico em mim mesmo.

Exatamer:.te! Já nasci sabendo, autodidar:a. ':=In o fascínio da.

injeção, independente do que você vai aplica: O barato maio::­

é o lance da prát:.ca, a grinfa, como se faúe urr. ate sext:.a2..

Eu localizo a veia, pois sei quais são as boas. Gosto de

sentir a emoção, de repente, de correr o risco ou fazer um

teste consigo mesmo. 11

o entrevistado fuma maconha "constantemente'' e a

considera uma droga homeopática. As anfetaminas e a maconha

são drogas mais freqüentes, principalmente as primeiras,

porque fazem você rrperder a fome". Portanto, cotidianamente

consome essas rrbolasrr de Hipofagin. Gostaria de experimentar

heroína e recusaria chá de lírio. Sua auto-imagem é a de "um

junky, sem nenhum preconceito contra as drogas sintéticas e

as químicas de laboratório 11 •

10. DUDA (5/10/1989) 19 anos, natural do interior de

Minas Gerais, mulato, homossexual, travesti, com primeiro

grau. Não mora com a família desde os 12 anos. Trabalhou na

prostituição de rua em Roma, Rio de Janeiro e São Paulo. Teve

vár:.cs problemas com a polícia; foi deportado da e

rece~temente foi preso no Rio de Janeiro por assalto e ~cubc

a :::::.ien;:es. conheceu os tracamentos e as

des:.:".toxicação, assim como o uso da Metadona para evica:::- as

crises de abstinência de heroína.

Não tem nenhum relacionamento afetivo-sexual, às sexta-

feiras vai à boate "Val-Showsn e/ou à "Val-Irnp:::-oviso", cnde

se e::1contra com seu "namoradinho", Freqüencemente "emba::.a ., o:::

cos:::..:....'11a aspirar algumas "carreiras" de cocaína. ~esde qu~ .:::::::.

para a Europa, há quatro anos, usa camisinhas co:-:c os clie:::.es

e se.::-ingas indíviduais e descartáveis para injecôes de c:-::::;a.

71

Mas afirma ter compartilhado seringas com seus clientes da

prostituição.

A primeira droga que Duda conheceu foi o Hipofagin,

quando tinha 13 anos. As drogas que injetou foram as nbolas

de anfetaminas" (Hipofagin), cocaína e heroína. Foram três

anos consecutivos em sua vida que injetou drogas. Assim

relata seus primeiros contatos com as injeções, quando ainda

estava aplicando hormônio para "formar seu corpo de mulher":

"Tinha medo das injeções de hormônio, que tomava para os

seios. Mas o drogado, depois que começa a tomar, não tem mais

medo. Enfia o braço e judia mui to do seu próprio corpo.

Ninguém me convence de tomar picada de cocaína, mas de

heroína sim. Não sei explicar o significado da droga para

mim."

Primeiramente, aspirava heroína por um ano e meio. Após

três meses de uso, ao acordar tinha de aspirar novamente,

para conseguir se levantar da cama. Quando a heroína começc.:....

a não fazer o mesmo efeito, passou a aplicá-la

endovenosamente. Depois, . . as outras vezes em que teve ne:::-:::.:-.~

simplesmente injetou a droga. Mas quandc falcava he::::-o::--.:o.,

procurava substituí-la com uma outra 11 bola". Err.

depoimento, relata a circunstância da D~imeira vez que

injetou heroína.

11 A primeira vez foi numa praia perto de Roma .. assim cor:c:::

se foss-::: São ?aula .:. San::os, foi um ~rafica~:e

aplicou. Eu estava ma:., u.i'TLa r.,oleza, com crise àe abs:::.ir..é::::::::..;:.

Piero, Q'.J.e já àroqadc e hoje aoenas vende a d::::-cq~

falou que se eu aplicasse heroína essa moleza passaria.

Perguntei se ele aplicava. Piero respondeu: claro que

aplico. Aplicou e eu fiquei turva, passou a moleza e fiquei

assim na •vovó' {efeito: pálpebras pesadas). Após três meses

retornou o 'manque' {a abstinência) da heroína. n

Quando voltou ao Brasil, Duda tentou compensar a crise

abstinência de heroína pelas "picadasn de cocaína. Na

ocasião da entrevista, aspirava cocaína semanalmente. Tinha

vontade de experimentar crack, "uma droga norte-americana",

como também gostaria de usar novamente heroína. Ao relacionar

o contexto sócio-cultural, sua condição de travesti e o

consumo de drogas, assim Duda se expressa:

nuso drogas porque o Brasil é tão podre, porque aqui você

só pode ficar com os gays. Na alta sociedade as pessoas mexem

com você, no bairro é linchada. o que vou fazer? vou usar

droga. Na Europa, eu usava para ir à prostituição de rua,

agUentar o frio, a neve e a noite."

.1..1.. MAGDA (março/1990'· 21 anos, ::acura_ de PernaiL'.bc.::::~,

branco, segundo grau de escolaridade, homossexual e travest.::'..

Trabalhou na prostituição em sãc ?aula, Rorr,a e Rio C.e

Janeiro. Em São Paulo, fazia trotoir na Avenida Higienópol.::'.s

e na Rua Cesário Motta Júnior das 22 hs até o amanhecer.

Justifica o hábito de beber diariament-e dizendo que quem viYe

~a ::.oite necessita de beb~ alcoó:..l::a. Passa as ::oras c~

lazer dormindo, "como a maioriã pessoas 1'. l1.credita

Deus e sua religião é a católica; lª .:_"eg-:.Jlar a ~evista Ar..iq2

regulares na prisão são o livro sobre a Biotipologia Criminal

e o Código do Direito Penal.

A primeira droga que usou foi maconha, mas a preferida é

a cocaína, sendo também a que mais se aplicou. A droga já

teve lugar importante em sua vida, hoje não mais. Teve

problemas com drogas, tanto de ordem repressiva como da

justiça legal. Seu depoimento revela uma ~teoria" sobre a

escala do consumo de drogas e aponta o uso de droga injetável

como uma necessidade do viciado para conseguir efeitos mais

rápidos com as substâncias psicoativas:

"As primeiras aplicações de pico são esporádicas e, com o

decorrer dos dias, acabam se tornando freqüentes no uso atual

(viciado em potencial). O viciado em apenas cheirar cocaína,

com o decorrer do tempo, ele sente que a droga aspirada pelas

narinas começa a demorar a fazer efeito. Como a ansiedade do

mesmo é se sentir de imediato drogado, ele parte para a

iniciação no uso injetável {pico) Eu me considerava

dependente do vício, pois sem a droga eu me sentia arrasado,

frustrado."

Alemão vive preso há anos, como pacien~e do Sanatório de

AIDS da Peniten(:iária do Estado, e não perdeu a vontade àe

viver e a esperança de curar- se. Suas palavras relatam a

reação frente à descoberta, assim como, descrevem sua fé ~o

progresso e na cura:

H Sinto-me uma pessoa po:!::"taàora de uma doença ter::-- i v-:::._,

mas que urn dia teremos a cura. Portanto, não me sinto um caso

perdido, não sou frustrado, aceito as coisas boas e ruins O"''""

uma quantidade e solitariamente passou a injetar a droga. o

efeito foi muito forte e acabou adormecendo, acordando apenas

no dia seguinte. Após essa primeira experiência, começou a

aplicar-se solitariamente, sem o companheiro descobrir que

estava usando drogas injetáveis.

Quando voltou ao Rio de Janeiro passou a aplicar cocaína,

como forma de substituir a abstinência de heroína. Suas

drogas mais injetadas foram a heroína e a cocaína.

FreqUentemente, aplicava cocaína antes de sair para as ruas

da prostituição, na cidade de São Paulo.

"Cheguei ao Brasil e comecei a aplicar cocaína .... o

efeito era muito ruim, de ver coisas .... ,paranóia brava com

polícia. Era pura alucinação, isso me chocou!"

Na Itália, Mãgda teve problemas com a polícia, passou um

mês na cadeia em Roma e foi deportado. Na época da

entrevista, havia cerca de um mês que não mais usava cocaína,

por saber-se portadora do vírus HIV. Morava na casa de Apoio

à pacientes de AIDS Brenda Lee, no centro da cidade de São

Paulo

12. ALEMÃO ( agosto/91 I 30 anos, branco, presidiáric

reincidente, casado, paciente do "Sanatório de AIDS'' da

Penitenciária do Estado. Crê em Deus. Antigamente ingeria

bebidas alcoólicas, mas hoje não mais. Não se ac.:::omedica. Fez

vários :.:::-ac.a..--nentcs ps~quiát!"icos para parar de cc:-:surr:.:.::-

droga~. A.;':irma estar se preservando, mantém ·u.'T. craC2..."'":1er::r:.c

prolonga:::- 2 vida. Suas

Nunca teve relacionamento sexual-afetivo duradouro,

apenas clientes. Teve muitos clientes mas, com a AIDS, não dá

mais valor ao sexo como antes. Parou de se aplicar, no mês

anterior à entrevista, devido ao aparecimento de sintomas

relacionados à infecção pelo HIV. Em seu depoimento, faz wna

breve relato de sua história de vida, do sofrimento com as

drogas e de sua relação com a família:

11 0 significado da droga para mim é de wn fracasso

horrível. usava por necessidade. Conseguia a droga nos bares

e pelas ruas. A minha família não sabe que uso drogas, se

soubesse seria um choque muito grande, maior do que ser

travesti. Ser travesti não choca, ser drogado sim. Assumi ser

travesti com 9 anos de idade, em Pernambuco. Tomei muitas

injeções de hormônios, com catorze anos, antes de injetar

heroína e cocaína. Eu tenho medo de injeções para fazer

exames, mas para tomar droga, não. A droga era urna vitamina

diária. 11

Magda experimentou, mas não gostou de maconha, xaropes,

a:::::.a.os, cog'JJT'.elo, l:irio, lc.Lo, cola. D.:.z que recusaria :ajas

essas drogas. Foi dependen"Ce de heroína e teve urna série de

crises de abstinência por causa dessa droga. Fc:.. em Roma que

começou a aspirar e a injetar heroína.

A primeira vez que conswniu droga injetável foi ~:T.

dezembro de 1988. Vivia na Itália, amasiado com um senhc:::­

casado que ::ão permitia a vis i. ta de seus arn:gos ::::::-aves:.:.s.

Se:r:':ia-se complecarnence só e angustiado. Nu.."':". certo :::.c.,

proct:ro',.".. he:::-oína com os árabes ds. es:::açãc de :Terr:, co:-::;::::-o1..

a vida nos reserva. Quando soube que estava com AIDS, fiquei

chocado, mas em seguida soube aceitar. Hoje me preserv-o ao

máximo, e procuro manter um tratamento mais ou menos adequado

para prolongar minha existência. Acredito que em breve virá

um remédio para a cura, portanto, não sou revoltado. 11

13. RATO (31/8/91) 25 anos, branco, assaltante,

presidiário reincidente, paciente de AIDS do Sanatório de

AIDS da Penitenciária do Estado de São Paulo. Tem dois

processos penais, dois no artigo 155 (furto) e um no artigo

157 (fuga). Fugiu da cadeia em 1989, da Colônia de São José

do Rio Preto. Quando estava em liberdade, perambulava pelo

bairro de Santa Cecília, Barra funda, nas proximidades com o

minhocão. FreqUentemente jogava bilhar na esquina da Alameda

Barros com a Avenida Angélica. Passou a roubar com o objetivo

de comprar ou trocar os objetos furtados por cocaína.

Começou a aplicar drogas nas veias com 14 anos; t:so·..:.

drogas injetáveis num período de 12 anos. As drogas mais

aplicadas po;: ele foram cocaína, Algafar..,

Arnosterona e Glucoenergan. Rato acha que cocaína, qua::::::::· ::.a::::

se tem, mais se quer. Mas se a droga não for de boa

qualidade, diz ele, 11 derrubo o barraco de quem me vendeu".

Rato ouviu falar da AIDS pela TV, por volta de 19 83 e

1986, quando tinha 18 anos. Acha que se cor:camino;_: com ::::

através das drogas e das bichas no presíd:..c. Sua r:arncra:is. =!·-.:e

também aspirava e se aplicava cocaína, está com o ::-!n.~.

77

,,,

Terceiro capítulo

Para uma genealogia das práticas de injeções

de drogas

Nas sociedades humanas o uso de substâncias psicoativas

sempre esteve associado a ritos, através dos quais os grupos e

a sociedade controlava o conswno e a experiência subjetiva de

seus melT'.b~8S.

Esse consumo na sociedade moderna fo:i.. relatado c

por alguns poetas e esc:::itores como Bauàelaire

Michaux, Artaud e muitos outros. Baudelaire, escrev-:: Octá.vic

Paz, inclina-se a descrever com ânimo :ilosófico

haxixe e a produção dos fenômenos espirituais, "inte:::_s:..:ica~d::

e combinar.do as percepções, Se!:.saçôes e sen:=idos ce

1) Baudelaire, Charles, Os paraísos Artificiais; o ópi::. e ·~ poema do haxixe. Porto Alegre, ED. LPM, 198b.

que permitem contemplar a vida em sua totalidade 11 ,:_ Em coàcs

esses ritos transparece a idéia de que o consumo de substâncias

psicoativas modifica as funções fisiológicas do corpo humano, a

percepção interna da relação o tempo/espaço, produzindo os

estados alterados da consciência ordinária.

Por intermédio do ritual, o tempo se detém, sem deixar de

fluir. O rito está fundado na percepção do tempo como

repetição, sendo urna expressão do tempo cíclico. Todavia a

sociedade moderna constitui-se num crescente processo de

esvaziamento do conteúdo dos ritos sagrados e tradicionais,

ocorrendo um paulatino descrédito do rito religioso, da

comunicação e da comunicação interpessoal.

o tempo moderno, linear e histórico, desaloja o rito da

sucessão temporal, tornando o passado irreversível e o futuro

uma incerteza, urna vez que valoriza o presente. O consumo de

drogas pode ser interpretado, segundo Octávio Paz, como uma

nostalgia, uma crítica à essa sensibilidade do tempo lir:ea:::-,

pressentimento de um outro tempo.

c Drocess-:J de medicalização na sociedade

transformou o significado cultural do consumo de substâ~:::ia:::

psicoativas, tornando o uso não medicamentoso urna co~trapa~~i~a

"psico-sócio-patológica". A sociedade industrial ccnseg:liu

produzir e sintetizar em laboratórios substâr..:.:ias

"poderosissimas", além de potencializar seus efeitos co~

:Paz, Octavio. 11 Conhecimento, Drogas y Inspiración". Corriente Alterna, Sigla XXI, México, 1969.

81

métodos invasivos e eficientes de administração de dosagens,

como as injeções.

A prática de injeções de drogas está relacionada com o

prestígio da seringa como instrumento médico e com a descoberta

das injeções de morfina (Alemanha),

prestígio da seringa ultrapassou

em meados do século XIX. o

o domínio das ciências

médicas, tornando-se um equipamento bastante difundido, devido

principalmente às frequentes vacinações em massa e ao uso

indiscriminado de substâncias por essa via endovenosa.

Em 1803, o cientista alemão Frederick Sertuener procurou

isolar em laboratório um cristal alcalóide do ópio, cujos

efeitos eram muito intensos, mesmo em pequenas quantidades.

Sertuerner batizou seu achado de "morfina", derivado de Morfeu,

deus grego do sono e dos sonhos. Essa substância teve ampla

aceitação pela classe médica mundial, justamente com o

desenvol virnento e o aperfeiçoamento da seringa hipodérmica na

década de 1840 a 1850 que, garantia rápida absorção pela

corrente sanguínea.

Em vinte anos, a morfina tornO'.J.-se 0 p:-irneiro ~emédio ::=. se:·

usado em escala mundial, amplamente usada em toda Eu:-ooa e

América,

estar".

como remédio para aliviar qualquer tipo de "rr.al

A venda desse produto tornou-se urna das mais

importantes atividades econômicas mundiais. Nos EUA, em:.re

1830 e 18701 houve uma grande expansãc da indús':.ria

farmacêutica, dos laborató~ios mu2. =:_nacionais, f e::

aumentar vinte vezes a importação àe ópio.

O uso de produtos injetáveis à base de ópio era legalmente

permitido e tornou-se muito popular no mundo anglo-saxão e

germânico do século XIX. Em 1874 o químico inglês C.R. wright

sintetizou a diacetilmorfina, subseqüentemente batizada pela

Bayer corno heroína, e durante 15 anos foi vendida livremente no

mercado como tratamento para a morfinornania1 ~ 1

Em 1897 um catálogo da lojas Sears oferecia estojos de

opiáceos com seringas hipodérmicas que tinham grande aceitação,

principalmente entre velhos e adultos. Só na Inglaterra esses

produtos eram vendidos legalmente em 300 lojas de departamentos

e em todas as farmácias, até serem proibidos na década de 1920,

devido à evidência de que provocavam vício e/ou dependência.

MUito antes da extração da cocaína, as populações indígenas

do altiplano andino já mascavam folhas de coca, sendo seus

efeitos bastante apreciados pelos nativos. A planta era

considerada por esses povos como um presente dos deuses e era

usada nos rituais religiosos, funerais e em certas ocasiões

específicas. o hábito de mascar a folha de coca tem sua

representação nas peças de cerâmica que fornecem evidências

arqueológicas de 3000 a. C., e esse fato indica sua ex::.scêr.cic.

antes da ascensão do Império Inca.

Em 1855, a síntese da cocaína foi possível, após a ex::ração

de um resíduo oleoso das folhas de coca, e com isso produzi~-se

uma substância cristalizada, denominada de Erytthroxylon coca.

Albe::-t Nieman, sete anos mais taràe excraiu àessa subs'.:âY:::i;. a.

·'·zackon, Fred: Heroína. Nova Cultural, 1988, São Paulo, col. Tuão sobre ârogas. p.17-34.

cocaína refinada. Apesar do conhecimento de sua estrutura

química existir desde o fim do século XIX, somente em 1955 ela

foi confirmada. Todavia essa incerteza não impediu o seu

conswno recreativd"l-

Até pouco tempo, a mais completa descrição sobre os efeitos

psicológicos e fisiológicos sobre a cocaína encontrava~ se na

obra de Freud, precisamente no Über Coca. Freud relata suas

experiências minuciosas acerca dos efeitos da cocaína na

energia muscular, do tempo de reação e sua influência na

disposição psicológica. Nesse livro Freud sugeria o uso da

cocaína para uma infinidade de propósitos terapêuticos, mas a

pretensão mais incrível era de que poderia servir de cura para

o vício da morfina e do álcool.

Os primeiros relatos de Freud sobre a cocaína foram

escritos numa carta à amante Martha em outubro de 1883. Nela

relata suas experiências com cocaína, dizendo que por

"evidentes razões 11 tentaria utiliza-la no tratamento de casos

de abstinência de morfina. Na carta conta a história de Ernest

?leishechl von Marxow, assistente no Insti':u':::::: de Fis2.oloqia,

que furara a mão com um bisturi e necessiçara amputar o polegar

direito, sofrendo várias cirurgias, Para que as dores

terríveis p~dessem ser eliminadas, passou a usar morfina,

tornando-se dependente.

No livro um Affair Freudiano - os escritos de Freud sob~e a

::ocaina, Oscar Cesaroto descreve sobre o us~ de cocaína

~Johanson, Chris-Ellyn- Cocaína. São Paulo, ed. Nova Cultural, l988, p.43, col. Tudo sobre drogas.

endovenosa e a deterioração da saúde do companheiro de Freud.

No começo do ano de 1884, Freud ministrou pela primeira vez ao

seu amigo uma pequena dose com a esperança de poder aliviar o

vicio da morfina. De início, a tentativa teve êxito, mas por

curto tempo. Fleischl acreditou e endossou a iniciativa

freudiana, escrevendo uma elogiosa nota de pé de página

contando sua cura, numa tradução abreviada do artigo que Freud

publicara no St. Louis Surgey Journal.

1'No início, os sintomas de Fleischl-desmaios, insônia,

convulsões e tiques- foram aplacados pela cocaína, mas com o

passar do tempo houve a necessidade de doses cada vez maiores

para obter efeitos iguais, no entanto menos duradouros. Foi

assim que acabou se viciando, tornando- se dependente, momento

que passou a consumir mais de um grama diário por via

subcutâneo. A nova quantidade provocou-lhe intoxicação crônica

que/ em seguida, deu lugar ao Deliriurn Tremens e Freud teve que

carregar o peso da deterioração da saúde do seu paciente." '

Os benefícios da cocaína motivaram o surgimento na Europa e

EUA de uma grande variedade de preparados à base :::e c::::cs.,

inclusive tônicos e remédios patenteados. Nos EUA, err. :!.91~, ::::

ato de Narcóticos Harrison proibiu o uso da cocaína em remédios

e em fins recreativos. Como resultado, a fabricação,

distribuição e consumo passaram a ser esr.re.:".tame::.r.e

controlados.

··'· cesaroto, Oscar. Um affair Freudiano - os escritos de Freud sobre a cocaína, ed. Iluminuras, São Paulo, 1983, p.36 1 Leituras Psicanalíticas

Uma das explicações para a queda no consumo de cocaína, além

da proibição, foi a descoberta das anfetaminas, sintetizada em

1932- As anfetaminas são estimulantes psicomotores poderosos,

com propriedades semelhantes à coca. Em 1972, quando se

percebeu a extensão do abuso, as anfetaminas foram proibidas

pelo Food and Drug Administration (FDA) , que colocou a produção

e a distribuição sob rígido controle.

Apesar das proibições, na década de 60 o consumo de drogas

voltou a crescer, desta vez no bojo dos ~ovimentos da

contracultura jovem. O consumo foi incrementado principalmente

corno forma de contestação, rebeldia e questionamento contra os

rígidos poderes e padrões culturais então vigentes. o uso

drogas foi estandardizado pela nova sensibilidade dos

movimentos de contracultura, contituindo parte de um estilo de

vida que poderia ser resumido pelo trinômio "sexo, drogas e

rock and roll 11 • Nos EUA, desde os anos 60, a heroína é chamada

de "droga das ruas" devido à sua grande difusão urbana. Tanto

nos EUA como na Europa o consumo de drogas inje~áveis revelou-

se crescente r:a década de 70, sendo conhecida como a "doe::-::ça

americana".

No Brasil ainda não foi possível construir ur,, perfi::..

epidemiológico sobre o consumo de drogas. O artigo

epidemiologia do conswno de drogas no Brasil!!, de Naoma:::- õe

Almeida Filho revela após uma revisão bibliográfica

·r· Naomar Almeida et. alii - Epidemiologia do consu1110 de drogas no Brasil. Revisão Bibliográfica, trabalho apresentado no I! Congresso Internacional sobre Toxicomanias, 1987/RJ, mimeo.

dos

trabalhos científicos com ou sem amostragem representativa, que

os estudos empíricos sobre o assunto têm problemas nas técnicas

de seleção da amostragem, na avaliação dos instrumentos de

coleta de dados, precariedade metodológica e pobreza analítica

dos dados coletados.

Almeida constatou que as pesquisas analisadas não alcançam

expressão epidemiológica para fazer prognósticos ou mesmo

generalizações para a população do país. Devido à falta de

dados e de bases científicas dos estudos analisados de 1970 a

1987, não se pode afirmar que houve na sociedade brasileira, no

período, um crescimento da toxicomania caracterizada CJ~O

epidêmica n dada o caráter clandestino e ilegal do consumo de

drogas.

Um dos únicos trabalhos brasileiro sobre o tema é o da

antropóloga Janirza R. C. Lima, Espelho Quebrado: Algafa:1 e

desvio I 1987) . Trata~se de pesquisa qualitativa com dez

entrevistados e com trabalho de observação participa:r.:e

aos dependentes de algafan do Recife. No texto é abcrdadc ::;

processo de rotulação d:: desvia:::e, parti:u~a:rTr.er.:::e _ ::e.::o.:3.:::

do dependente de algafan por via :.njetável e os terape--.:.:as :::s

órgãos da Segurança Pública em Per~ambuco.

O universo da pesquisa é formado por indivíduos região

metropolitana de Recife, usuárics de maconha e denende~:es

físicos de Algafan (ooiáceol - . nor via endovenosa, pert.e::.ce:::::es

às camadas de baixa ::enda d:::: Estado de PernanC:__ ::::.

passagens regulares pela Delegacia de Entc~oecentes. ~ ~~pt:ese

- Naomar Almeida e!: alii- Op. c:_::-_.

87

que norteia o trabalho é que 11 a operacionalização da lei

6.368/76 vem, antes reforçar a condição de desviante, do que ao

contrário, instrumentalizar a recuperação do dependente de

Algafan no Recifen <Sl

Para a autora, a criminalização desses dependente

poliintoxicados produz um alto custo individual e social, pois

amplia a marginalização desses indivíduos, que continuam a

elaborar projetos de vida, na busca da superação de suas

carências afetivas, econômicas e sociais.

Para Martine Xiberras, a modernidade ocidental sintetizou o

saber, o conhecimento e as experiências fundamentais ãa

humanidade com o consumo de drogas, em torno de duas práticas:

as práticas leves (douces) e pesadas (dures) "' A primeira

caracteriza- se por urna moderação no consumo e uma forma leve

nos modos de absorção, associada a um ~ipo de uso, que desperta

a criatividade, a comunicação e a imaginação. A prática pesada,

reforçada na sociedade industria.l., se caracteriza

violência das doses, das frequências e pelos modos de absorção,

levanãc a uma experiência de isolamento,

"cavernosa 11, depressora e agressiva.

Para Xiberras esses dois tipos de práticas pernu .. c.err,

reconstruir a atitude do toxicômano perante seu meio. Essa

cara c ter i zação não se refere aos produtos consumidos I ;nas aos

tipos de consumo de drogas. Em sua opinião, as práti::as 2.eves

·~"Lima, Janirza c. da Rocha: Passageiros da Fantasia. Fundação Joaauim Nabuco, ed. Massangana, l990, Recife, ~.22. ç Xiberras 1 Mârtine: La Societe Intoxiqueé. Sociologies a·c.:: quotidien. ed. Méridiens Klincksieck, i989, Paris, p.l32

são características de um desejo de abertura para o mundo

exterior e, freqüentemente, acoplam laços de afinidade o""J de

amizade já existentes, sendo a droga apenas um reforço nas

relações sociais operantes.

A prática pesada se constrói sobre llitta submissão às

substâncias e não requer grande aprendizado, conduzindo seus

usuários ao isolamento, sendo um traço característico da

toxicomania solitária e individual. Na opinião de Xiberras, a

busca desenfreada de produtos estupefacientes e de modos de

absorção violentos buscam anestesiar corpo e alma, tentando

conciliar a rnaximização do prazer e a minimização da dor. En La

Societê Intoxiquée, afirma enfaticamente que:

"É o princípio do êxtase que pode permitir compreender a

especificidade dos efeitos pesquisados numa prática pesada.

Nessa aritmética complexa, as capacidades sensoriais e

emocionais se emudecem, rapidamente para encontrar um

equilíbrio num estado de indiferença genera::..:..zada com ::::: ;-:-:_:.nc::,

exterior. um sentimento de paz e de harmc~ia interic~ sãc

algt:mas caract.-erísr:::.cas ~z:as-5:,

consumidores descrevem como um ret.crnc be:;.é:.:..co scbre ::=-, :::·_e

os permite ascender à mais pura das quiet.udes.

O aprendizado de outro estado de consciênc:a não àesaparece

com J fi;n dos efeitos dos psicotrópicos. :s:.:..e :;:·erdura at::-avés C.s.

memória b:.ológica e psicológica de sens:..:::.;.:::.:ad~

alternativa que con:inua ":-:a::u:::-:::.:..

aos poucos a experiência tóxica invaàe v:.da c::::::..:::::..ar:.:õ

Xiberras, Marcine- op. c:.:. o 134-:35.

,,,

dos usuários, modificando não só as categorias de percepção mas

até as visões de mundo.

O escritor William Burroughs escreve que quem se vicia em

drogas "não tem motivações fortes que apontem para outra

direção''. Ninguém consegue entender o que significa precisar da

"droga pesada" com urgência do vício, como ninguém decide virar

"viciado". Sua dependência por "drogas pesadas n é assim

equacionado:

" Droga pesada- junk -- é uma equação celular que ensina ao

usuário verdades universais: via a vida sendo medida em conta

gotas com solução de morfina. Senti a privação agônica da

droga- chamada "fissura"- e o alívio prazeroso quando as

células sedentas de junk bebiam da agulha. É possível que

todo prazer seja apenas alívio. Aprendi o estoicismo celular

que a droga ensina ao usuário ... Aprendi a equação junk

Droga pesada não é um meio de aumentar o prazer de viver. Junk

- não é um barato. É um meio de vida. 11 '11

Gilles Deleuze no texto ''Duas questões~~ aborda os

tipos de experimentação COr:'. as

psicoativas, afirmando ser oportuno distingui:- abstra t.ame;-;.ce c

domínio das experimentações vitais e o dos empreendimentos

mortíferos. A experimentação vital ocorre quando "uma tentativa

qualquer agarra em você, e instaura cada vez mais conexões,

Burroughs, William. Junky; drogado. São Paulo. ed. Brasiliense, 2a. edição, l984, p.l6.

:l Deleuze, Gilles. "Duas aues"C.ões". ~exto originalmen:::e publicado na Recherches, n.-39, ?aris, 1979. I!:: Revista Saúde loucura, número 3, ed. Hucitec, p. 63-66, p.64

abrindo- o às conexões: urna tal experimentação pode comportar

uma dose de autodestruição, ela pode passar por drogas de

acompanhamento ou de arrebatamento, o tabaco, o álcool e as

drogas".

A experimentação não é suicidária, na medida em que seu

fluxo destruidor não se rebate sobre si mesmo, mas serve para a

conjunção de outros fluxos, quaisquer que sejam os riscos. o

empreendimento mortífero, ao contrário, ocorre quando tudo é

rebatido unicamente sobre esse fluxo suicidário.

Deleuze problematiza o uso e abuso do consumo de

psicoativos, perguntando-se se é possível conceber uma

causalidade específica da droga, e em que direções? Se tudo

parece negar essa especificidade, resta saber em que momento o

fracasso e a catástrofe tornam-se parte do integrante do plano

droga e como se realiza a transformação de uma experiência,

mesmo auto-destrutiva, porém viva, em empreendimento mortífero

de dependência generalizada, unilinear.

Para tentar refletir sobre essas questões seria ~ecessá~ic,

primeiramente, :raçar um t<=>rr~t-i"-.,..-;,-, ou c ::o!1to:::--:;::: d::: .. _ ---- ~~- -'- -~

conjunt-o- droga, cu e estaria na relação com o interic:::/ ~.'"'-'- '""'· . c:.:=::

diversas espécies de drogas e, com o exterior, com cac.:.se.:idades

mais gerais:

"Na droga há algo de muito particular, que é o in-v~s-cirr,~=---'=::

direto no sistema autônomo desejo-percepção_ Isso se:::-:_;:::., :ç:::_:::,

totalwen~e diferente. Por percepçãc, é preciso e~:e~de::::- ~~

percepções internas, não menos que as exr:ernas, pri:--_::::_;:al::::::::::e

as noções de espaço e temnc. As distinções er.':re espé:::ies ;::e

drogas são secundárias, interiores a este sistema. Parece-me

que, em certo momento, as pesquisas caminhavam nesse sentido:

as de Michaux, na Françai as de geração beat na América, a seu

modo, também as de Castafíeda. Abordava-se, em primeiro lugar,

como todas drogas dizem respeito à velocidade, aos limiares da

percepção, às formas e aos movimentos, às micropercepções, à

percepção tornando- se molecular, aos tempos ou subhumanos etc.

Sim, de que modo o desejo entra diretamente na percepção,

investe diretamente a percepção (daí o fenômeno da

dessexualização na

encontrar a ligação

droga) Um tal ponto de vista permitiria

com causalidades exteriores mais gerais,

sem perder, assim, o papel da percepção nos sistemas sociais".

I 13'

Dada a falta de informações sobre as práticas de injeções na

sociedade brasileira e a necessidade de trabalhos qualitativos

sobre o assunto, procuramos nos aproximar da cultura das drogas

através dos relatos, reconstruindo diferentes padrões de :..::.so

õa droga injetável, os modos de preparo das substâncias, o

~~:ua: de co~sumo, as f~eauênc~as e as dosagens.

A pesquisa através das fontes secundárias,

marginal da década de 60, f:Jrneceü urna diversidade -:::,::.

informações e elementos que possibilitam a aproximação das

"picadas" e da cultura das drogas. Para atingir nosso objetiv::;;

oara a contextualização das 11 oicadas" e sua inserção :1a

•·.::ult"!.lra das drogas", necessir..ainoE- ::~abalhar com os denci:r,e:::.::s

; Deleuze/ Gilles. Op. Cit., o.6~.

orais, o que nos permitiu relatar diferentes fonnas de

experimentação, de aprendizagem, assim como o contexto sócio-

cultural de sua prática.

Portanto, na exposição dos depoimentos encontram-se

sintetizados os três planos da observação: As

experimentações e intensidades corporais, que envolvem as

frequências de uso e seus efeitos; 2. O ritual, que lida com o

modo de preparo, o conswno e sua relação com o com ambiente

físico e social; 3. Os controles infonnais presentes nas redes

de usuários que procuram evitar bad-trips, desprazeres e

overdoses.

A prática de injeções de droga na vida dos indivíduos é

escondida, marginal, sendo o segredo compartilhado por seus

consumidores. A prática é considerada ilegal, por isso também

ela é clandestina. Por intermédio do segredo se cons:itui o

grupo particular bastante fechado e isolado, dessa forma os

indivíduos procuram garantir urn mínimo de segurança c::::-.:~:::. a:=.

possíveis investidas policiais, familiares ou de qualque:- oe1:~:::

tip::; de ameaças ao consumo oc.:.. 2 Yida.

Muitos indivíduos, que têm esse tipc de prá~~:~

. ; recrea:lona ... , conseguem manter segredo sobre seu co:'.s...:...-:-.:::

mesmo dos parceiros sexuais. Esse ~ipo de consumo dis:.::Jgt.:e-ss

do uso compulsivo e freqüente, mais difícil de ser ~=·...:.l::s.G.s.

esse :ipo de prática pelos usuários. Cotidianamen:e e5ses

inc.:._ '.ríduos vivenciaiT. si r·,1ações de send:

valorizado no grupo a experiência do "correr riscos 11 11 ~ através

das freqüentes "intoxicações" por injeções, experimentam seus

limites físicos, desafiam a morte e certificam-se, na vivência

dos limites, que estão vivos.

'" Connors, Margaret - RisK Perception, ~isk Takir_g- ar.à :::~:_:::~:

Managemenr. among Intravenous Drug Users: Imc:_icat.icns fc::.­AIDS P:::-evention. Apresentado na V Co:r.:=e.::-êr:cia I:r.te:ênacic:::-:.2..~ sobre AIDS. Mc~trea~, june 3-9, 1989.

Para Michel Maffesoli, a modernidade se apóia na lógica

individualista e da identidade social fechada sobre si mesmo,

mas a crescente massificação da sociedade desenvolveu a

formação de microgrupos, denominados de "tribos afetuais", que

estão em uniformidade e conformidade com as relações

econômicas, com o sexo e a linguagem. A proximidade territorial

ou a partilha real ou imaginária faz nascer a idéia de

comunidade e a ética que é seu corolário. De uma perspectiva

sensível e orgânica, o ethos da comunidade não se constitui por

contratos mecânicos, mas por aquilo que é emocionalmente comum

a todos do grupo.

A comunidade caracteriza-se menos por um projeto voltado

para o futuro e mais pela atuação 1 in actu 1 da pulsão de estar

juntos. O que predomina na atitude grupal é o dispêndio, o

acaso e a desinvidualização. A com1:nalização aberta e a emoção

partilhada vão se constituindo as tribos urbanas, o que suscita

uma multiplicidade de grupos e laçss sociais. A perma~e~sla e a

instabilidade são os dois pólos em torno do emocional, qu.e

funda a r.ova socialidade co~ vá~:as lóg~cas o~ga~~za~d~ a5

comunidades afetuais através C.:· proc~sso de ide:>tificaçãc.

Para Maffesoli, devemos observac::- o cotidiano, o ·.'2.vidc:,

considerado como 11 lençol freático" e a vitalidade da cultura.

Em sua opinião, os pequenos 11 :Jadas" cotidianos const:.:uer:l poc::­

sedimentação um sistema significa:-.::e, uma exterioridade, a

aparência e o "imaginal 1'. A a:)arer::::.a do co:ic.::.anc es:á :..:;ad.::

ao efêmero, ã repetitividade de ci::..: e ao :rágicc de des::inc.

A ét:.ca compreendida como -· sen:::.:::- e:-:-. co:Trt.l::""., a es::.é:.:'..::a :orr.::

95

laço coletivo, são seguramente fatos culturais nos quais

podemos apreciar a vitalidade da cultura entre as diferentes

tribos urbanas. O sentido da vida social não é uma real idade

psicológica, mas física corno os sentidos do olfato, audição,

visão, gosto e tato. Interpretar o ritual cotidiano em seus

diferentes aspectos do sentido significa concretizar as

"estruturas antropológicas do imaginário".

o sociólogo norte-americano Howard Becker procura

compreender o uso de drogas através da aprendizagem do sujeito

na cultura, mas adverte que a grande heterogeneidade dos

consumidores dificulta o isolamento de fatores psicológicos, de

personalidade, situações de vida que expliquem o suposto desvio

e as motivações para o uso.

A expressão cultura da droga foi sugerida por Becker,

enfatizando essa prática como um aprendizado social constante,

assistemático, de observações cotidianas e às vezes

inconsciente ~~-' o conhecimento sobre as drogas está dis~ribl.:ído

de acordo com o capital cultural de cada grupo de consumidores,

assim como, é adquirido através do saber expe:: i::r.e::-:::.a2.

desenvolvido pelo usuário. A socialização desse conl:"lecir:.errc.:J

orienta as experiências e as maneiras de lidar com os ~iscos,

as formas de evitar uma má "viagem".

No Brasil, o escritor Hiroito relata em Boc3. do lixo gue

as ''picadas" começaram a se introduzir no meio da malandr2ge:r.,

'Becker, Howard: 11 Consciência, Poder e Efeito da dr:Jga·· :::--.. Uma Teoria da Ação Cole~iva. Zahar editores, RJ, 1977 . . - Hiroitc, Joanides de Moraes. Boca do lixo. São Paulo, ~c:.

Populares, 1977.

nos primeiros anos da década de 60. Ele relata seu contato com

as nbolinhas", por volta 58, afirma que essas drogas não eram

mui to difundidas no "submundon e que somente após a descoberta

da "picada" seu consumo cresceu assustadoramente. Essas

"bolas 11, como qualquer outra substância em comprimido, eram

pulverizadas e diluídas em água destilada para serem aplicadas.

No fim de 59, começam a surgir as "picadas", as nampolas de

Pervintin 11 injetável.

"Já com a cocaína mantive um namoro por alguns anos, mas

nada de mais sério. Não chegou a ser uma paixão, apenas uma

simpatia. Tendo~a, eu a cheirava, mas se não a tivesse tampouco

saía por aí à procura de consegui-la, e não raro, passava

meses, até anos, sem dela fazer uso. Quanto às •picadas', penso

que só as tornei durante cinco meses, de outubro de 62 a março

de 1963, já que as mais vezes que vim a 'picar-me' depois disso

foram tão poucas e tão espaçadas, através dos anos, que podem

perfeitamente passar ser serem levadas em conta. Mas

compensação, naqueles cinco meses tornei todas que existia em

Sã c ser.'. exagero S.~gU.iT .. Tome:_ e:-:-: es~a.ds· ó.-2

coma."

Hiroito con:a que nos quinze anos que se seguiram \.r:::::lto'-.:. c.

tomar dezenas de vezes, pois considera mt:ito difícil esta:::.- r.o

melo àe tomadores, conviver corr. eles ~ abster-se de toma:::.- uma

dcse. Em uma o1_;. outra oportunidade, qua:::.quer urr:, "acabará

t.oma~c.c pc.:::.-a faze:::.- compar:hia"

:M:ircicc, Joanià.e.s a e Or:.

O depoimento do entrevistado Donatelo contextualiza o

consumo de Pervintin e nbolas" de Desbutal na década de 70,

sendo o relato bastante esclarecedor a respeito das vantagens e

desprazeres advindas das ampolas de Pervintin e das "bolas" de

desbutal, além do mercado de drogas da época.

"Havia um mercado claro de drogas que passava pelas ampolas

de Pervintin e que vinham dos laboratórios alemães que tinham

sede na Argentina e no Paraguai. Eu preferia tomar Pervintin.

Era a melhor coisa. Era um grande ligativo. Deixava

absolutamente ligado, sem alterar as funções sensitivas, nada

disso. O Desbutal, principalmente se você tomar por via oral,

dava um certo mal estar de estômago. A via injetável, após

certo tempo, dava urna certa depressão. Enquanto você tomar

Pervintin não, é uma droga muito limpa, muito pura. O barato

dela era levantar, bastava você quebrar e tomar, você ficava

ligado por horas. Depois de um certo tempo, a partir de 72, a

qualidade das garrafas começou a piorar. E·.: ac:redit::, dep::ns

que fecharam os laboratórios, quando elas passaram a se~ feitas

cla:J.des':.:.ina..'Tlen-:e. Mas houve

controle da qualidade da Baye::." i:Uo:r~ate::.o:~

A partir dos anos 7C', a cocaína r..o 3:::--asil

geralmente aspirada, passou a ser crescentemente consW";"",ida sob

a forma i:wjetável. No final dos anos 70 e 80, o aumente oco:::.-:::.-e·c.l

e vem se acentuando coincidindo com o aparecimento da ~.IDS.

depoimento d.e Donat.eio poderá i::C-..:s::.rar a ::.::2.se:::.-:;ã::. da :::::::a.:_:--_;C;.

~~ Depirou, Alain e Labrouss-e, A. Coca Coke. P:::odutores, Consumidores, Traficantes e Gove:::.-nantes. Sã::: ?aulc, Bd. Brasiliense, 1988, p.:l-103.

r

universo dos usuários da Mooca, bairro subcentral da cidade de

São Paulo:

11 A cocaína pintava muito raramente nos anos 70. Era t.:..11a

droga que aparecia entre as pessoas que tinha o hábito de usar

drogas, dependendo da circunstância. Era urna droga que não

chegava na faixa da adolescência. Nos anos 60, ela era uma

droga usada pelo pessoal mais velho, da noite. Nos anos 70, ela

continua a ser uma droga dos malandros velhos, dos coroas, de

caras de certa grana, de um certo nível de conhecime!"lto, não

era uma droga popular. Na época de 74, eu já tinha 20 anos. A

cocaína quando aparecia era socialmente numa festinha, ou

quando os malandros mais velhos resolviam fazer urna presença. A

coca não era droga injetável nos anos 60 e nem antes, a minha

convivência com os mais velhos me dizia isso, a cocaina sempre

foi aspirada. Ela passou a ser injetada de 79/80 para fre::1te,

em escala cada vez maior. Primeiro se cria o mercado pela

cheirança. Daí, junto com a cheirança, principalmen::.e cc::-. c

fechamento dos laboratórios das ampolas de Pervi~:in, j 0\'5:15

que tin:t.x-r. c háb:..t.o de se ap:..icar subs::..:'Jírarr: e. a-::-l:.:3.cê.::-

Pervint.in pela cocaína, mas isso só depois qc.1e a c::ai:-~a ~e

tornou mercado. E aí, eu já tinha uma posição mais cr.:::ti::a ""-

relação a esse negócio de cocaína. A dinâmica :;a ::::::a

independente de se tomar ou cheirar, é que ela cuecr~

dimensão comunitarista, introduz um elemento

individualismo. 11 Donatelol

Na cultura da cocaína, a substância poãe se:- :ons·..:.:n:.j~ :::-:::

diÍerer.tes :armas de inges~ão pelo organi srn~,

efeitos variáveis. A cocaína aspirada é muito diferente da

cocaína injetável, os efeitos procurados são diferentes,

constituindo experiências e "baratos" diversos. Muitos

cheiradores, devido à pequena quantidade disponível da

substância a ser aspirada, ou como desculpa para economizar a

droga, procuram injetá-la com o objetivo de maximizar os

efeitos.

O prazer do 11 baque de coca" é fugaz e violento, levando

muitos jovens a recorrerem a inúmeras aplicações numa só noite.

Os corpos, nos rituais, são marcados e feridos pelas freqüentes

aplicações e, no momento do uso, comportamentos autodestrutivos

e violentos podem vir a ocorrer.

Geralmente o iniciante compartilha do equipamento por uma

série de razões relacionadas com o medo da primeira vez. Os

iniciados freqüentemente são inexperientes na manipulação e

aplicação das injeções e não têm segurança acerca da qualidade

e da quantidade a ser utilizada. Canadá expressa clarame:::::e

esses 11 dilemasn:

"Foi aqui perto, com urn rapaz daqui de Sãc José, ~ a.-:-.::.~=

olha o tipo de amigo. Estava cheirando, eu e ele, conhe:::id.: e

calejado, tal. Já foi aqui pertinha, tinha um copo chei~ àe

escondido no espelho da lâmpada. A paranóia de esconder e

fundamental, de onde deixar o pó. Foi quando houve uma mist·.:::-a

da minha seringa com a dele, devia ter sido a mesma se:::-::.::qs.

ut::.lizada. A seringa deve te~ se perdido. Foi na casa Ce~~.

não sei o que você pode chamar por casa. A casa na::.: <:.:.:-.:::2.

forre, só tinha telhado. Andei pendurado, torne:. uma pc::::-çã:: :'\;:;~

fui procurá-lo, éramos amigos, fumávamos maconha juntos. Ele

tinha e eu fui cheirar, cheiramos um pouquinho. Como ele já

tinha tomado e tal, foi tomar novamente, eu quis experimentar.

Tinha ainda aquele papo, você vai matar o menino. Eu era mais

novo. O barato é o seguinte: a primeira vez não foi eu que me

aplicou, foi ele que me aplicou. Ele conferiu, tava certinho,

foi jogando e foi mandando fazer assim com a boca, para sentir

o paladar, vai amargando e se amargar demais, você fala. Se

não .. (riu). O chamado alcalóide, se ficar muito amargo, tá

muito forte. Eu era um garoto ... " (Canadá)

Formiga também descreve a situação de sua primeira vez, o

ritual cotidiano e as marcas no corpo advindas das aplicações

de drogas:

11 Foi numa tarde, a gente tava tocando na casa de um amigo,

em meio ao som que tava, tava até legal. Tava urna dia muito bom

com esse som, então aí alguém sugeriu, corno urna forma de até

marcar aquilo que a gente tava fazendo, marcar ::om ",.lma. rr.a~cc.

roxa, sabe essa história de marca roxa? Aquela marca roxa do

aue você -:.ama, te ma~ca

Naquele momento, a gente tava vivendo de IT'::J.sica. Ficcc:.. marcad::

desta forma como se fosse aquela marca ~oxa de braço. ?o.::_

guitarrista que me aplicou, era o que menos tremia. Esse ai u~s

15 anos, 16 por aí. Foi de altos e baixos, :1ão boc.

fisicamente e um prejuizo financeiro muito gra!:de, nã:::; ::::essa

fase da iniciaçãc, mas no auge da cur:.i.çã::.

rr.ui_ta influência de drogados, a convivência fazis. TJe ::.c:::::: ::.:..;:::

Ce socializaçãc fosse a=ravés das d::::-ogas _ dos C::::-CJ·gadc:::

j(l]

essa fase foi muito mal, apesar de que várias atividades era um

ritualzinho diário, chegou a esse ponto da variedade, lsso era

bom também. Na melhor fase tinha variedade, você podia escolhar

a substância e trocávamos experiências. Eu já conhecia de

leitura que já tinha procurado ou perguntado, mas as primeiras

instruções não foram de uso, havia um papo intimista, isso

aproximava as pessoas. Tornava e passava uma fase do xilique, é

aquela coisa que inicialmente você fica meio possesso, e lógico

gradativamente até você pedir mais. Po exemplo, em relação ao

fumar é um hábito muito mais sociável, ao nível de escala,

muito mais pessoas fumam juntas, e tornar é uma coisa muito àa

panelinha, sempre rola. No interior principalmente, a panelinha

é fatal, de tomar, onde todo mundo até mesmo combina que

ninguém saiba, é também o lugar da maior comunicação. 11

(Formiga)

Por intermédio do ritual, os indivíduos procuram controlar

suas experiências, evitando sempre que pcss.S>vel os a::_dentes.

FreqUentemente, dividir seringas para os iniciantes e para seus

parceiros come finalidade r,.....__,,..~r--~ ~'-'~---.~. ,__,_<:;._

excessos por vezes fatais. Tais argw~e~cos forarr. cc~e~ados

junto aos principiantes, que ãesej avaro co..,.part.ilhar as serin3as

corno urna forma de ter maior segurança sobre sua primeira

experiência, minimizando os riscos e perdendo o medo.

As diferenças mais significativas na orá:ica de :.:c:.~eçõe5

estão relacionadas com a experiêr..cia de uso,

física e psicológica, escolha ào local aDs parce:.:::-::::s

compare ilhar,

Os entrevistados, usuários de anfetaminas, Algafan, Amosterona,

cocaína e heroína, descrevem sua dependência, conformando

frequências e padrões distintos de consumo:

nJá tornei Hipofagin destilado de sessenta. Depois, você puxa

com uma seringa grande, chuuu, com um algodão na ponta, depois

coloca água na seringa, chiii, aperta, coa e joga nos canos.

Tira mais o sono. Nada melhor que a cocaína para você tornar. É

rapidinho, rápido o efeito, mas a dependência também é muito

mais rápida. Cocaína instiga toda a hora, o efeito é rápido,

você sobe num elevador de cem andares e cai num segundo. você

fica excitado, o coração saindo pela boca. Isso se você não

ti ver ninguém de quem gosta, se realmente gostar de alguém ou

de uma coisa, não vai querer mais. rr (Canadá)

11 Tinha um negócio de ir especializando as etapas de preparo

da droga, para ser melhor que todo mundo. O Desbutal, você rala

a bola, passa pelo algodão, destila o preparado e puxa para a

seringa. Esse ritual de preparo do :Jesbutal necess:._=3.. ::S.e ui7t

tempo maior, comparado com o preparo da cocaína. EnçrJar..t::::: a

:u.aneira de preparar a cocaí::-_a E. r:.3.is rápido,

dissolver na água. o ritual da coca é mais rápidc. c::::s. é

boa quando joga na água e ela dissolve

inteirinha. Isso porque as vezes tem alguma impurezas e não

dissolve, portanto através da água é mais fácil ve2:"2_::i::a::-

qualidade do produto. No entanto, se a coca estive:- :-:-.:._st:c.:rada,

:r:esmo assim acabo tomando. Sempre co:r:;;rei dro9-as cor;. :::a~a::::::.c:. ..

mas já fui enganado algumas vezes, poucas. Mir:hê.. ::-ed-: j-:

informações que garantiam para :r;-,J...:r.,,

qualidade do produto. Você sabe que funciona? Geralmente fica

sabendo quem tem o melhor ou a pior droga. . . Alguns tomavam

bastante, mas de fonna espaçada durante um certo tempo. Tinha

gente que tornava exageradamente." (Manoel)

"Eu consumo da meia noite às oito horas da manhã, umas vinte

gramas de cocaína, enquanto com cinco gramas de heroína, de boa

qualidade, passo o mesmo período do tempo. Por isso prefiro a

heroína, porque não uso muito, só quando aparece, comprar de

jeito nenhum. Não me considero dependente, mas com heroína

deixo emprego, me despeço, peço as contas, que eu quero

cheirar. Parei há um ano de me injetar, não me considero

dependente. Dependente é a pessoa que usa todo dia. Quando

dependia da heroína usava todo dia, para eu me acordar sinto

aquela fraqueza, preciso usar a droga para meu organismo

voltar ao normal. Droga vicia, faz mal e é superprejudicial. 11

(Dudarita)

"Picava assim, ... às vezes dá vontade, a coisa é violer:ta.

Colocava um pouco de pó na colherzinha de café, esquentava e

colocava um pouco de água. Podia ser água de torneira rr:esr:'l::::,

misturava na seringa e injetava. Puxava o sangue na seri_:r:.ga,

que se misturava com a droga e devolvia para a veia. Aí cara!

Foi me dando um negócio na garganta, a mesma coisa que dá na

hora da picada, exatamente quando se está tomando, um goste

amargo. Filtro quando a cocaína está com urna cor diferer.te e

quando estava menos ansioso para aplicar. Não tinha c-~:_::ad::::

nenhum com esterilizar ou limpar a seringa.

descartável, eu usava várias vezes até perder o corte.

de pico é uma sessão pesada, fico tenso, macabro, e as pessoas

se recuam. Aprendi a me picar sozinho, pela vontade. Colocava

um garrote, apertava o braço e pegava a veia, onde elas fossem

mais salientes. Nunca entupiu minha agulha, preparava a dose e

logo tomava. Já tive alguns caroços, e para esconder os

hematomas, passava xylocaína, eu costumava usar camisa de manga

comprida. 11 (Marcel}

A comunicação dos efeitos entre os consumidores organiza as

expectativas dos indivíduos, ajudando-os a reconhecer o efeito

físico, o prazer, o desprazer, conduzindo-os aos "estados

modificados da consciência ordinária". Segundo Becker, os

efeitos subjetivos de uma droga não se restringem ao seu

caráter farmacológico, mas são uma mistura de sensações

fisiológicas, psíquicas, de crenças e representações que o

sujeito e seu grupo reconhecem como "barato 11 '!9

• Na descrição dos

efeitos das substâncias psicoativas podemos aproximar e

compreender as expectativas dos usuários em relação ao consumo

de psicoativos, a construção do seu "barato" e do prazer dos

psicofármacos. .?..... vivência do 11 barato" e o recor..hec:imentc de

prazer são fundamentais nessa experiêr:.c:ia de consumo, assirr.

como, no agenciamento do desejo dos usuários. Os relatos que se

seguem ilustram mais esse aspecto de 11 cultura das drogaS 11•

11 Com a anfe~amina, eu falava uma barbaridade, num período àe

minha vida que quase não falava. Corr, coca, agi mais, de es"Car

,!q'Becke~, Howard: Hystory, Culture and Subj ective expe~:.e:r.c'= an exploration o= the social bases of drug inõuced experience. In: ~ournal Health and Sacia~ 3ehavior, n.B, p.163-176.

10.5

com a razão, de ir fundo no que estou falando, que estou certo.

O certo sou

nuca, bem

legalzinho o

eu e posso

aplicada, a

sangue, o

falar à vontade. É bom o arrepio na

picada é soisa maravilhosa. Tira

filetizinho e injeta dentro. Pode me

largar que dá o coice na cabeça, fico zonzinho. Sair, beber,

falar, gritar, xingar e até perder a razão. Prefiro sair para a

noite e encontrar as pessoas. Quando estava inseguro usava

muita droga. Já tentei usar para trabalhar. Memória, andei

piradão. Com coca, li muito, ia a uma reunião, coisinha pouca

meio grama de pó." (Manoel)

11 Só a maconha que afeta o desempenho no trabalho, deixa a

pessoa calma demais. A cocaína dá um speed e a anfetamina

também, você dá mais conta do recado. O sexo é o barato, o modo

que você usa. você pode pensar por segundos, daí parte para

outro pensamento. A sensibilidade é o barato. A "bolan

Amosterona injetada, você fica com o corpo mentolado. A cocaína

no máximo dá formigamento, um zumbido nos ouvidos e adormece o

local da picada. Fico mais para dentro, aumenta a percepção,

mas não fico com oaranóia. Artane, -_rocê fica sintéticc. Com o

baque de coca, você não quer fazer ::ada, mas até faz. Ba-:e a

fissura e fico na finalidade, mas ::ao passo dias tomando .. ?:....

memória fica fraca, fico concentrado numa outra dimensão,

independente do que está ao redor." (Veneno)

Talvez o contexto sócio-cultural ~enha um peso muito mais

significativo do que se supõe ~ o devoimento do traves~~ Ma~ca

é muito relevante a esse respei~c:

11 Não considero meu consumo adequado, pois consumo

exageradamente. Gostaria de parar de usar. Eu não estava

tomando, quando passei mais ou menos seis meses no Rio de

janeiro. Comecei quando eu vim para São Paulo. No Rio de

Janeiro não gostava de cheirar, tornava somente Hipofagin. Eu me

considero dependente de heroína, porque da cocaína não, isso

porque não tomava todos os dias. Com a heroína tinha

necessidade de consumir diariamente. Eu acredito que quem fica

dependente são aqueles que querem continuar consumindo cocaína,

enquanto a heroína necessitava fisicamente da droga." (Magda)

Norrnan Zinberg (]~I realizou uma grande pesquisa com

heroinômanos, que traz importantes contribuições sobre os

controles informais desenvolvidos pelos consumidores. Essa

investigação mostra que uma parcela significativa de usuários

de heroína consegue manter o equilíbrio entre o consumo e os

cuidados mínimos para preservar a saúde e a autonomia perante a

droga. Essa informação é surpreendente, visto que a heroí:1~ é

considerada o caso mais grave de drogadicção e seus usuá:-ios

são tidos como 'l.J.F.,a minoria que busca o perigo e resiste c:2-da:::

de sua saúde.

Esse fato levou Zinberg a confirmar a hipótese de

fator psicológico e o contexto sócio-cultural são fundame~~ais

na habilidade de controlar a experiência com as drogas. o

contexto social possibilita o desenvolvimento de

valores e padrões estilizados de comportamento que se:::ve:7". :8mc

107

reforço e símbolos da escalas de valores adotados pelos

indivíduos num determinado contexto sócio-cultural.

Veneno e Magda, nos fragmentos de depoimentos que se seguem,

ilustram com o preparo e as técnicas de aplicação, a escolha do

ambiente e na defesa contra o HIV através de uma prática

solitária:

"Eu mesmo preparo a droga para injetar com o mínimo de água

possível. Uso filtro só quando é comprimido destilado, cocaína

não precisa. Para esterilizar fervo ou lavo com cândida. Eu

tiro, puxo e jogo repetidamente. Tirei a conclusão de lavar com

cândida sozinho, pois associei a limpeza do banheiro com

cândida e fervura das seringas corno antigamente, quando não

havia seringa descartável. Prefiro tomar sozinho no meu quarto,

que é esse porão. Na rua não tomo mais, algumas vezes tomo no

banheiro de um bar, mas é difícil. A droga é importante em

minha vida, é um complemento. Ela faz mal fisicamente, mas não

dou importância para isso. Ela causa uma rotina. É: a carência

que leva ao uso de drogas."

(Veneno)

" Eu mesmo preparo rr.i:r..ha dose, preparar cocaína é fácil.

Experimenta com a língua para ver se é boa, depois cclcca ~UMa

colher com água e se dissolver tudo, aí você pode faze:- com o

próprio sangue. A cocaína que na água fica bolotinha é

misturada, então se você colocar dj_reto com o sangue vai

entupir a seringa. Muitas pessoas dissolvem a drog;;;. co::-. ;::

próprio sangue. Não tem sessão de pico, isso é

baseado. Não gosto de usuá:-ios, prefiro to.-nar sozinha, po:::-q;_:e

fico muito neurótica e não gosto de barulho. Com a cocaína não

gosto de ninguém do meu lado, pode até chegar gente, mas que

ninguém abra a boca. Com a cocaína, freqüentemente bebo água ou

conhaque para acompanhar. O baque é uma alucinação, uma

paranóia, acho que tem alguém me perseguindo. Economizo para um

uso futuro somente de heroína." (Magda)

As regras presentes nesse conjunto de usuários podem indicar

como urna substância deve ser consumida, mas isso não significa

que serão necessariamente obedecidas, funcionando como formas

de controles informais não consolidados.

A socialização das informações pelos grupos de usuários

garante um controle informal da experiência, que orienta o

"barato" e ajuda a reconhecer o prazer comunicável. Dessa forma

podemos circunscrever a prática e compreender algumas

motivações para o uso, expectativas de efeito, estados de

espírito, o lado sensível e agressivo dessa prática.

109

( No consumo de drogas há um co~~imento acumulado sobre o

saber experimental dos usuários e atos simbólicos que perrneiam

a prática, um "know how", um conhecimento aprendido sobre

dosagens, modos de preparo, frequências de uso, escolhas de

ambientes, territórios em que essas micro redes encontram suas

condições e visibilidade.

A noção de "quase grupos" proposta por Adrian Mayer (~\

--------- ----ilustra como esses indivíduos estão centrados em um ego, cuja

existência depende de um indivíduo como foco central e

organizador da rede de amigos. Esse critério de associatividade

estimula ações em conjunto e seu funcionamento enquanto "quase

grupo", que circunscreve as redes de consumidores que também

foram detectadas na pesquisa.

O compartilhar de agulhas e seringas ocorre por inúmeros

fatores presentes nessa situação de risco para a transmissão do

HIV. Procuraremos apontar alguns aspectos relatados pelos

entrevistados, sem ter a pretensão de sermos exaustivos ou de

fazermos generalizações.

Um dos fatores, dos compartilhar de seringas, reside na

falta de disponibilidade de equipamentos de injeção para ~odes

os participantes, na impossibilidade de adquirirem uma nova

seringa ou de realizarem a desinfecção dos equipamentos,

principalmente em ambientes como presídios ou lugares serr.

infra-estrutura básica, inóspitos para o desenvolvimento de

':"' Mayer, Adrian. A importância dos quase grupo no estudo das sociedades complexas. In: Feldman-Bianco, B. (org.) Antropologia das Sociedades Contemporâneas - Métodos. São Paulo. ed. Global. 1897. p.127-158. Tradução de Júlio Assis Simões.

\

práticas seguras. Freqüentemente, os usuários acabam por

preparar o pó num mesmo recipiente e esse fato é apontado nas

representações de alguns, de Veneno por exemplo, como uma

situação de risco.

"Tem um fascínio da injeção, independente do que você vai

aplicar. O barato maior é o lance da prática, a grinfa corno se

fosse um ato sexual. Eu localizo a veia, pois já sei qual é a

boa. Entope, coagula, compra água de insulina, diluente é mais

fácil de desentupir rapidinho. Quando não tem jeito mesmo e tem

que jogar fora. você não joga, tira a agulha e injeta na boca.

Reconheço minha seringa porque deixo no truque. Mas isso não é

nada, quando vai destilar numa colher e põe sua agulha lá e

puxa sua dosagem. O outro pega a agulha dele e sua dosagem, se

estiver contaminado tá na agulha também, encostou lá na droga

pode de um jeito ou de outro ter o cçmtato, pode rolar a

contaminação, contrair o virus com cada um com sua seringa. Na

hora .que você está tornando com frequência, quando chega l.L"Tla

determinada hora, você não mede nada, higiene nem nada. Cada um

com sua seringa, pode haver o contato mesmo se todos estiverem

com as próprias seringas." (Veneno)

Nesses rituais a presença do sangue é urna constante.

r~petidas aplicaçôes podem levar o sangue a coagular e acabar

por entupir a agulha. Esse aspecto é bastante relatado pelos

entrevistados, sendo apontado como um dos fatores mais

frequentes no ato do compartilhamento. O uso comun.:i:ár.:ic àe

agulhas e seringas pode funciona::- como um "pacto de sangue",

criando urna relação particular em ~orno das "picadas" d-:: coca.

lll

das relações que cercam essa vivências fusionais, expressas no

plano dos corpos através de uma relação simbiótica entre os

parceiros mediatizados pelo uso da droga.

Há relatos de casos nos quais os indivíduos compartilharam

seringas

continuar

impulsionados

os rituais

pela

das

"reciprocidade generalizada".

necessidade imediatista de

aplicações, numa espécie de

A ocorrência do uso comunitário das seringas com estranhos é

mais difícil, mas são inúmeros os relatos que descrevem esse

tipo de situação, comumente justi:icada pelo entupimento da

agulha no momento do uso, embora a "instigação" da cocaína, a

"fissura" por urna nova dose e o "embalo" da noite sejam também

motivações presentes nos relatos.

A probabilidade de ocorrer a situação de risco pode variar

segundo o grau de dependência dos usuários, da !!fissura" no

momento do uso, da confiança e da intimidade entre os

parceiros. Essas constatações mostra que os níveis de

dependência física dos consumidores de cocaína são menores do

que encontrados nos consumido~es de opiáceos. A abordagem

farmacológica e psiquiátrica possibilita compreender a

dependência e pode nos ajudar a perceber as diferenças

fisiológicas e os efeitos farmacológicos A diferença

farmacológica entre a cocaína e os opiáceos ou mesmo as

anfetaminas injetáveis pode traduzir diferentes dinâmicas de

,::.Masur, Jandira e Carlini, E. A .. Drogas - subsídios para uma discussão, São Paulo, ed. Brasiliense, 1990, p.17-31.

propriedade, a aceitação de dores e sofrimentos, a ausência de

classe e as relações sociais de "cornmunitas". A cornmunita

possui uma moral aberta, solidariedade entre seus membros,

espontaneidade e imediaticidade. As comrnunitas buscam uma

experiência transformadora, que vai à raiz de cada um,

encontrando o comunal e o compartilhado. Freqüentemente esse

tipo de relação é carregado de sentimentos prazerosos.

O conceito de ameaça ou de perigo para o grupo é o principal

ingrediente na produção de communitas existencial. Através da

"communita" podemos levantar elementos para conhecer a

estrutura e a sociedade onde está inserida, pois sua condição

passa pela negação da estrutura.

A vivência da liminaridade dos usuários de drogas pode

explicar e atribuir os significados em torno do uso comunitário

e descrever algumas relações envolvidas nessa prática: de

camaradagem, de irmandade 1 de solidariedade, de confiança, de

proximidade e de intimidade.

Muitas vezes o compartilhar do equipamento tem o significado

de uma marca em comum, de um segredo, de uma cumplicidade, um

símbolo de reciprocidade que pode ser perpassado através de

relações intimistas 1 afetivas, amorosas, de amizades, de

irmandade e de proximidade.

Mesmo com todos os riscos que cercam a posição dualizan~e de

Turner que cinde o social geral em dois compartimentos

"autônomos", parece nítido que no compartilhamento das seringas

é bastante expressiva a relação e a idéia de fusão dos sujeitos

envolvidos. Nessa 11 Comunhão'1 pode- se perceber uma represen::ação

113

Para Vitor TUrner ~~~~. os atributos da lirninaridade, ou de

pessoas liminares são necessariamente ambíguos, exprimem-se por

uma variedade de símbolos, uma vez que, nesta condição, as

pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que

normalmente determinam a localização e as posições sociais. o

que é interessante com relação aos fenômenos liminares é que

apresentam uma variedade de símbolos corno a mistura de

submissão, santidade, homogeneidade e camaradagem. É como se

houvesse dois modelos de correlacionamento humano, justapostos

e alternantes: o primeiro é o da sociedade como um sistema

estruturado, diferenciado e freqüentemente hierárquico. E o

segundo, que surge no período liminar, é o da sociedade

considerada "comitatos" não estruturado, comunitário entre

iguais.

A experiência de vida de cada indivíduo o faz estar exposto

alternadamente à estrutura e à "corrnnunitasn, aos estados e às

transições. A lirninaridade não é a única manifestação das

"communitas", todas suas manifestações devem aparecer como

pe~igosas e anárquicas e precisam ser rodeadas de presc~ições e

condições. Segundo TUrner, o incremento da especialização da

sociedade e da cultura, com a progressiva divisão socia2. do

trabalho, transformou aquilo que era na sociedade tribal um

conjunto de qualidades transitórias entre estados definidos da

cultura, num estado institucionalizado.

As características desse estado de li~inaridade

transição, a insensatez, a homogeneidade, a ausência ae

,:, Turner, Vitor: The Ritual Process. Pelican. Londres. 197~.

r ~ I

transmissão do HIV e nos impactos na epidemiologia da AIDS em

várias regiões.

A informação sobre abstinência da droga injetável é bastante

relevante, visto que a maioria dos entrevistados era

consumidora de cocaína injetável e alguns deles haviam

conseguido deixar o "vício". Esse dado mostra as diferenças

farmacológicas das substâncias,

da prática de injeções, as

diferenças de impacto da AIDS.

importante para a compreensão

formas "desintoxicação" e as

Os programas específicos de prevenção entre os usuários de

drogas injetáveis na Inglaterra, Suíça, Itália, Espanha e

Holanda enfatizaram a prática de injeções seguras, o que

transformou o significado do consumo e o tratamento da

sociedade em relação a esses indivíduos. A venda de remédios em

farmácias, naqueles países sofre grande fiscalização dos

poderes públicos, e exige por parte dos governos a

liberalização de compra e venda das seringas e a educação para

a mudança no comportamento de risco, o que coloca em cena o

problema da descriminalização a ser enfrentada por :odos

necessidade e urna pedagogia capaz de lidar com a cul:ura dos

psicofármacos.

115

Quarto capítulo

O fim da clandestinidade

Em nossa pesquisa, a escolha do território da etnografia

urbana e da vida noturna contribuiu para que o universo

empírico fosse constituído em sua maioria por homens. Para

finalizar, p:::-etendemos apresentar resumidamente os resultados

dessa pesquisa qualitativa e cruzar com algumas i~:o~mações

quantitativas sobre o universo do uso de drogas end:Jvenosas,

visando uma compreensão mais detalhada sobre a prá~ica de

injeções.

A pesquisa quantitativa, recentemente divulgada, vem sendo

realizada pelo NEPAD (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ater..ção

ao Uso de drogas/RJ) e pela organização Mundial da Saúde desCe

1989 deixando claro que há urn número maior de usuários do sexc

masculino fazendo uso de injetáveis. Numa amostra de ~66

117

entrevistados, 406 (87,1%) são homens e 60 (12,9%) mulheres. A

média geral de idades é de 27,7 anos (com desvio de 5,4). A

idade média do primeiro uso foi de 20,2 anos para as mulheres e

de 19,2 anos para os homens. A cocaína foi a droga mais

consumida por via endovenosa, tanto na forma isolada como na

combinação com opiáceos, anfetaminas e benzodiazepínicos. o uso

isolado de opiáceos foi relatado por 5% das mulheres e por

apenas 1 homem (0,2%) e maconha inalada foi relatada por 80,0%

das mulheres e 86,9% dos homens. -~----

Os dados mais significativos, que essa pesquisa conseguiu

levantar, foram aqueles que permitem elucidar diferentes

padrões de uso da droga injetável entre os sexos, tais como a

freqllência e a parceria no compartilhamento:

"Quanto a freqüência do consumo de

observamos que a mulher consome a droga

drogas

com uma

injetávei , _ _../

freqüência

menor. A curva bi-modal aponta como um padrão de consumo entre

as mulheres entrevistadas, a freqüência de um a três vezes ao

mês. Apenas 15 t refere injetar quatro ou cinco vezes por dia.

Isso contrasta com o universo masculino, que aponta \ill,a

freqüência de uso mais alta: 72% refere usar com uma freqüência

igual ou superior a uma vez ao dia." j.

Esses dados fornecem elementos para pensar os diferentes

graus de risco entre homens e mulheres, mostrando que 30,5% do

sexo feminino e 36,6% do sexo masculino compartilha::.-am

:. Aquino, Maria Theresa c. e Dias, Paulo R. T. Pires- "Uso de droga injetável de drogas por mulheres no Município do Rio de Janeiro e risco de infecção por HIV 11

• Seminário Aids­avaliando o passado e planejando o futuro, julho/1992, rnimeo, p.9

equipamentos de injeção nos últimos seis meses anteriores à

entrevista. Essa informação revela dois tipos de relações

constituídos por parceiros sexuais e "amigos íntimos".

" .. a mulher compartilha mais com seu parceiro sexual ( 3 6, 4%

vs 8, 8%), enquanto os homens compartilham significativamente

mais com os amigos mais íntimos (64, 5% vs 27%), do que as

mulheres o fazem... 75% das mulheres referem que nunca usam

preservativos com parceiros ocasionais. Quanto ao parceiro

principal, 85,3% das mulheres referem que suas relações sexuais

são sempre de alto risco, sem preservativos, sendo mais

preocupante ainda que o parceiro principal da mulher em 55, 9%

dos casos, é também usuário de drogas injetáveis. n(:l

A pesquisa qualitativa teve a capacidade de contextualizar

essas informações através das histórias de vida dos

entrevistados, descrevendo a inserção do uso injetável na

cultura das drogas, a dinâmica dessa prática e as mudanças

comportarnentais frente ao risco.

Os depoimentos permitiram caracterizar duas gerações de

' 1 tomadores 11, seu contexto sócio-cultt:ral e o perfi: de: seu

consumo. As variações nas substâncias psicoativas engendram

'Cambém diferenr:es sociabilidades, modos de preparo, ric'Jais e

efeitos subjetivos. Essas modificações podem também propiciar

graus diferenciados de risco, dependendo da tolerância às

substâncias, das freqüências de uso e da dependência dos

us·...:.ários.

,: Aquino, Maria Theresa c. e Dias, Paulo R.T. Pires. Op.Cit. p.lO

119

A procura de certos efeitos subjetivos está relacionada com

a percepção do usuário, com as drogas disponíveis no mercado e,

principalmente, com a experiência ou a vivência do tempo na

metrópole. Pudemos verificar que, dos anos 70 aos 90, houve

transformações das substâncias psicoativas consumidas em cada

geração,

preparo

sendo constatada uma

e consumo, assim

redução no tempo do ritual de

como, dos efeitos subjetivos

proporcionados, produzindo um "barato" com maior velocidade e

fugacidade, podendo-se supor uma analogia entre esses efeitos

e a velocidade e o ritmo da metrópole.

Durante os anos 70, o Pervintin era uma das substâncias mais

injetadas, seus efeitos foram descritos como um grande

"ligativo", proporcionando um "speed" ao consumidor cujo

efeito durava horas. Nos anos 80, a cocaína foi descrita como a

substância hegemônica dos usuários, produzindo "baratos" com um

menor tempo de duração, conhecidos como "baques de coca 11 , que

induziam as novas percepções do tempo/espaço e da sociabilidade

em torno das 11 picadasn. Na década de 90, ainda sob a hegemonia

da cultura da cocaína, estamos constatando um aumento nc

consumo de uma nova substância de:::-ivada dessa droga, o crack.

Quando a cocaína umedece ou fica "molhadan com o calor e/ou com

a umidade do ar, principalmente nos pontos de venda, preparava­

se numa seringa para não ser desperdiçada e consumida por via

endovenosa, enquanto hoje acrescenta-se bicabornato de sódio e

faz urna "pedra de crack". Essa subsc:ância é inalada a:.ravés de

um "cachimbou, sendo os efeitos considerados mais fugazes d::::

que o "baque de coca" .

NO que se refere à sexualidade, os entrevistados

heterossexuais relatam um aumento de relações com o uso de

camisinhas, uma sensível redução nos parceiros e o

estabelecimento de relacionamentos mais estáveis. Muitos

reiteram que, após algumas relações com a mesma pessoa, se

sentem confiantes para abolirem o uso de camisinhas. Alguns

descrevem que quando se encontram embriagados freqüentemente

não usam preservativos. Os homossexuais continuaram sem nenhum

relacionamento sexual mais estável, porém afirmam que estão

usando preservativos em suas relações ocasionais e com sua

clientela.

A maioria dos entrevistados relatou não estar mais fazendo

uso da droga injetável no período da entrevista, continuaram,

porém, a consumir álcool, maconha e cocaína. A maioria dos

entrevistados fazia a limpeza de seringas apenas com água ou

fervia os equipamentos antes das aplicações. um dos únicos que

continua injetando drogas é Veneno, gue, embora fazendo

referência

sanitária",

à limpeza das

aponta situações

agulhas

em que

e

f ice.

seringas com "água

claro que ::ontinua

compartilhando equipamentos de injeção com estranhos.

Procurando resumir o histórico da aprendizagem do uso da

droga injetável, seria oportuno dizer que os travestis tiveram

uma familiarização com as seringas anterior aos outros

entrevistados, devido às aplicações de hormônio feminino para

fazer os seios. Os travestis Magda e Duda e a francesa Mar:'._e

começaram a injetar Heroína na Europa e, ao chegarem ao Brasil,

procuraram substituir a heroína por cocaína, devido às crises

121

de abstinência. os dois travestis relataram, que na Europa,

aprenderam a comprar caixas de seringas e freqUentemente

camisinhas com seus clientes.

A farmácia é descrita como o local onde se compram as

seringas e algumas substâncias passíveis de serem injetadas mas

freqüentemente os usuários são discriminados pelos próprios

balconistas. Seria importante que as farmácias deixassem de

discriminá-los

liberalização

facilitando-lhes o acesso ao

da venda das seringas nas

equipamento. A

fannácias seria

fundamental para que os usuários pudessem ter acesso aos meios

necessários para sua segurança, contribuindo para evitar a

propagação da infecção pelo HIV.

Um outro elemento fundamental para o contexto das situações

de risco é o da ilegalidade da prática de injeções, pois

freqüentemente as transgressões à lei produzem nos indivíduos

sentimentos persecutórios, de insegurança, 11 paranóia'1 da

polícia e das instituições que, quando exacerbados, podem

favorecer o contexto das situações de risco. A ilegalidade e o

sistema carcerário especificam a delinqüência, subst.::ui::;d:::: s

infrator pelo delinqüente. Segundo Michel Foucaulc, a

delinqüência é efeito direto de uma penalidade, que para ge~ir

as práticas ilegais, investiria algumas delas num mecanismo

"punição-reprodução" de que o encarceramento seria uma das

peças principais. A organização de uma delinqUência isolada e

fechada não seria possível sem o desenvolvimento dos cont~~les

policiais, da fiscalização geral da população e da vigilânc~a:

"A delinqüência, ilegalidade dominada, é um agente para a

ilegalidade dos grupos dominantes .... os tráficos de annas, os

de álcool nos países de lei seca, ou mais recentemente os de

droga mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da

"delinqUência útil", a existência de uma proibição legal cria

em torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o qual se

chega a exercer controle e a tirar um lucro ilícito por meio de

elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização

em delinqüência. Esta é um instrumento para gerir e explorar as

ilegalidades. ,r31

Atualmente, as autoridades públicas estão criando um

consenso, que AIDS é um problema de saúde pública mais grave

que a droga. Por isso, com o objetivo de contê-la entre os

usuários e seus parceiros sexuais estão sendo implementados

diversos programas e experiências de prevenção, levando muitos

países a discutir ainda que incipientemente, urna política de

descriminalização dos usuários. Nos moldes atuais, a

criminalização confina milhares de dependentes de drogas nas

prisões, aumentando os riscos de infecções nesses individues e

nos presídios, ampliando os custos individuais e sociais de

problema. Edward MacRae em seu artigo sobre ndrogas injetáveis

e AIDS'1 considera que a prevenção a AIDS entre esses

indivíduos pode ser implementada, mas adverte:

' 1 Para que isso se realize é imprescindível que antes de mais

nada seja alterada a abordagem moralista ou policialesce. :::a

Foucault, Michel. Vigiar e Punir; história da violência nas prisões. Petrópolis/ RJ, ed. Vozes, 3.ed., 1984, p.246.

questão droga. Pois esta impede a discussão livre, o acesso à

população em risco, a organização de usuários e a implementação

de certos programas que visam à simples redução de riscos de

contarninação"(4J

A atual legislação brasileira sobre entorpecentes não faz

distinção entre usuários e vendedores de drogas, não penni te a

organização livre dos grupos de usuários e também proíbe o

estabelecimentos de programas de distribuição de seringas.

Dessa forma, essa lei tem impedido a implementação de programas

específicos de prevenção à AIDS entre os usuários, cuja

eficácia de redução dos riscos em outros países pôde ser

comprovada, com resultados bastante animadores como na

diminuição da velocidade da disseminação do HIV, ou no

engajamento dos usuários em programas de tratamento para abuso

de drogas.

o episódio mais representativo no Estado de 5ão Paulo foi o

ocorrido em Santos'''- onde foi organizada wna sólida infra-

estrutura de assistência, tratamento, prevenção e controle da

AIDS. Junto com esses serviços foi também orgar.izado w-r.

programa de trocas de seringas, mas o projeto teve de ser

suspenso devido aos limites lege.is impostos pela legislação.

Como afirmam Don Des Jarlais e sammuel Friedman'b·_ a urgência

de prevenir futuras transmissões do HIV entre os usuários de

'"· MacRae, Bdward- 11 Drogas injetáveis e AIDS" - Jornal Folha de S. Paulo, Saúde, 7/2/89 5 Mesquita, Fabio . AIDS na rota da cocaína; um conto santista, são Paulo, ed. Anita Garibaldi, 1992. '~·Friedman, Samuel e Jarlais, Don Des- The effectiveness c: AIDS education programs for intravenous drug users. Mirr,e::, preparado para National Institute on Drug Abuse/1988.

drogas endovenosas significa que não podemos esperar por um

modelo conceitual completamente testado, mas devemos estar

desenvolvendo esforços para a prevenção. Os dois pesquisadores

sugerem três pontos para a elaboração de uma política

preventiva: 1- A necessidade do conhecimento sobre AIDS e sua

transmissão. 2- A posse de meios disponíveis para a mudança do

comportamento de risco. 3- criação de mecanismos de

socialização e reforço de novos hábitos. Nesse sentido os

usuários precisariam dispor de seringas descartáveis,

camisinhas, recipientes individuais para a diluição das drogas

e substâncias para a esterilização de equipamentos (água

sanitária e álcool) adquiridos livremente em estabelecimentos

públicos ou privados.

Esses programas de prevenção requerem que os usuários sejam

encarados como cidadãos, com direito à integridade física e

mental, e não tratados como seres desprezíveis ou marginais. os

programas de distribuição de seringas são serviços que podem

ser compreendidos como "prevenção terciária" dos modelos de

prevenção às drogas, onde procura- se prevenir as picres

conseqüências do uso em si·- A assimilação das "práticas

seguras 1' necessita tornar- se parte integrante dos "eSq'..lemas" de

preparação e do ritual do consumo. Essas medida não se

Friedrnan, Sarnuel e Jarlais, Don des - "HIV and intravenous drug use". In: IV Conferência Internacional sobre AIDS/1988. Estocolmo/ Suécia, mimeo, p.S-lü

,-,Cotrim, Beatriz Carlini, carlini, E. A. e Fra:1co, A.R.S.­sugestões para programas de prevenção ao abuso de drogas no Brasil. São Paulo, CEBRID. departamento de psicobiologia da Escola Paulista de Medicina. sem data.

12:5

restringe apenas à população usuária, mas também aos seus

parceiros sexuais e filhos, que poderiam contribuir para a

mudança de comportamento através de uma visão não repressiva.

Um outro tipo de programa foi implementado em San Francisco,

através de "trabalhadores sociais da saúde"", freqUentemente

pessoas inseridas nesse universo e que procuravam estabelecer

um contato estreito com os usuários em seus territórios,

ensinando-lhes a desinfecção correta das seringas e reforçando

a necessidade de mudança hábito das situações de risco.

Freqüentemente esses programas de prevenção que investem nas

11 práticas segurasn de injeções de drogas são bastante

questionados pelos setores conservadores, sempre repressivos,

que afirmam que esses programas acabam por encorajar o uso de

drogas.

Entre tantos outros prograrras, podemos mencionar a praça em

Zurique, na suíça, onde o consumo de droga era permitido e

tolerado, com postos médicos para atendimento aos

frequentadores. Essa praça forneceu um contexto possível para a

elaboração de práticas mais seguras de injeções e p:::.::-:::. :::.

prevenção à AIDS, agenciando os usuários num mesmo territó::::-io.

Após alguns anos de experiência, a praça foi interditada e a

experiência suspensa.

o programa mais radical e controverso de toda a Europa vem

sendo desenvolvido em Liverpool' na Inglaterra, onde a taxa de

'~'Jauvert, Vicent - "Héroine sur ordonnance". In: Sida Drogue- Ce qu'on n'ose pas vaus dire. Revista Le nouvel Observateur, 26 novembro a 2 de Dezembro de 1992, p. 9-:l, p.9.

jovens desempregados é altíssima, sendo que para cada grupo de

dez desempregados há um usuário de drogas injetáveis. o uso de

drogas injetáveis nessa cidade é conhecido desde o século

passado, mas há um atendimento à drogadependência e tratamentos

de desintoxicação anterior ao aparecimentos da AIDS. Com o

advento da epidemia, a clínica estendeu os seus serviços para

controlar a disseminação do HIV entre os toxicômanos. Nesse

serviço, os psiquiatras prescrevem aos toxicômanos suas

próprias drogas fornecendo metadona, heroína, anfetarnina e

cocaína, além de seringas descartáveis. Essa experiência parte

do pressuposto que é impossível exterminar a droga, mas é

possível sua gestão removendo o delito dos usuários através de

um trabalho educativo sistemático. A prescrição dessas

substâncias segue rígidos horários, dosagens, sendo ensinadas

também formas de administração, desinfecção de seringas, além

de outras informações sobre AIDS.

Com a clínica e a prescrição médica pode se cor:t:!:'ola!:' a

qual idade das substâncias injetadas, prescrevendo freqüências,

evitando excessos e overdoses, além de fornecer re:r.édics e

tratamento para hepatite B e outras doenças infecciosas. Os

resultados do serviço são surpreendentes, visto que a caxa de

soropositividade entre esses indivíduos é menor do que a dos

toxicômanos que não freqüentam o serviço. Esses úl times são

contatados por trabalhadores sociais nas ruas e boates, que

informam sobre AIDS e os convidam a deixa:!:' os trafica:-::.es 2 a

delinqüência, através do atendimento clínica.

127

Nas várias experiências desses países podemos perceber uma

clara política social referente ao fenômeno droga. Na

experiência de San Francisco, projeto de troca de seringas é

tolerado à distância pela polícia, mesmo sendo o uso proibido.

Os programas baseados apenas na estratégia de desinfecção de

seringas talvez não sejam suficientes corno método educativo e

para a mudança no contexto das situações de risco dos usuários.

Isso porque são bastante limitados como intervenção e

tratamento da questão, sendo difícil a incorporação do hábito

da desinfecção, principalmente nos rituais de consumo da

cocaína, onde há inúmeras aplicações numa mesma noite. o

programa de Liverpool fornece vários serviços e,

particularmente, o da prescrição médica aos toxicômanos. Esse

serviço conseguiu importantes resulta dos no controle da

epidemia e nas formas de tratamento, assim corno, uma

interessante política social que possibilita remover a

delinqüência dos usuários e afasta-los dos inúmeros ~iscas

relacionados ao seu universo. Não podemos deixar de mencionar o

caráte= totalmente diferente que tem urr, produt~ quand::

consumido em regime de clandestinidade, ou de quando se usa de

maneira oficial e regulamentada.

Nesses anos de proibicionismo, a vida e a morte dos drogados

estão mais relacionada com a violência, derivada da vida

c~iminal do que com a objetiva incidência do consumo de drogas.

~r:.. droga pode ser um veneno, mas depende das dosagens, da.:::

formas de administração e dos controles do consumo, das formas

de aprendizagem do uso, dos prazeres ·::: dos cuidados c::-rporais.

Não dá para continuarmos nessa política de 11 guerra às drogas 11

promovida pelos EUA e continuar nessa cultura da ignorância

sobre os psicofármacos. O que difere os consumidores das drogas

lícitas das drogas ilícitas? Não seria apenas urna

arbitrariedade fundada no controle útil dos delinqüentes? A

proibição das drogas está fundada numa política pós-colonial

que perpassa as relações internacionais, a segurança nacional,

a indústria farmacêutica, os conflitos "norte-sul" a respeito

da ecologia, assim como,

biodiversidade.

o problema das patentes e da

O fenômeno tem muitas entradas, havendo uma multiplicidade

discursiva das mais diferentes disciplinas e abordagens, porém

não podemos deixar de aborda-la corno uma mercadoria e como uma

das atividades mais lucrativas de todo mundo, além de urna

estreita relação com

legislação brasileira

o comércio de armas.

sobre os entorpecentes,

Modificar

removendo

a

o

delito e sua atividade delitiva, hoje unanimemente fundamen~ada

no tráfico de drogas e de armas, tornou- se uma medida sensata

contra o atual irracicnalismo. Acreditamos que a

descriminalização dos usuários permitirá aos toxicômanos a

entrada no mercado de droga controlada, o alívio psicológico, e

a saída do túnel da delinqüência, da violência, fatores que

poderiam atenuar as atuais taxas de mortalidade, infâmia e

desespero, muito inferiores. Por isso levantamos a bandeira do

direito à vida para cor:cesta~ e dizer não à atual m:::rca::jade

promovida pela 11 guerra às drogas 11 e a atual desinformação e

educação em relação aos psico:ármacos.

129

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