Os trópicos brasileiros no século XIX: a construção de um paradigma tropical

19
229 OS TRÓPICOS BRASILEIROS NO SÉCULO XIX: A CONSTRUÇÃO DE UM PARADIGMA TROPICAL Luis Fernando Tosta Barbato 1 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo entender como a noção de clima tropical, tão importante na construção da identidade nacional brasileira no século XIX, foi construída. Através da análise de textos de cronistas que visitaram o Brasil em seus tempos de colônia, de filósofos da Ilustração, e da historiografia dedicada ao tema, entenderemos como o clima tropical foi visto durante a história, e assim entender quais foram as imagens sobre os trópicos que ajudaram a formar a nossa própria noção de país tropical, iniciada no século XIX. Palavras-chave: História dos conceitos; Historiografia do século XIX; História Cultural. ABSTRACT This study aims to understand how the notion of tropical climate, so important in the construction of Brazilian national identity in the nineteenth century, was built. By the analysis of chroniclers that visited Brazil in their colony times, philosophers of Illustration, and historiography dedicated to the theme, we will understand how the tropical climate was seen throughout history, and thus to understand what were the images of the tropics who cooperated to form our own notion of tropical country, which began in the nineteenth century. Keywords: History of concepts; Historiography of the nineteenth century; Cultural history. Introdução O clima tropical é elemento marcante da identidade nacional brasileira, como grande parte da historiografia dedicada aos estudos do século XIX aponta, foi sobre essa singularidade do Brasil – aqui em referência à Europa de clima temperado – que se formou uma das principais bases para as representações que marcariam o Brasil, tanto dentro do país, quanto no exterior (SÜSSEKIND, 1990; VENTURA, 1991; NAXARA, 2001; BARBATO, 2011). Dessa forma, a presença do clima tropical, ou os trópicos, se estendermos a análise a tudo aquilo que do clima decorria, como as próprias características morais dos brasileiros é elemento marcante dentro da historiografia brasileira, como pode ser visto, por exemplo, ao encontrarmos termos como “medicina tropical”, “civilização tropical”, ou “tropicalismo” para fazer referência aquilo que é brasileiro, servido, dessa maneira, como elemento distintivo e identificador. E é no século XIX que podemos encontrar o embrião dessa associação entre a identidade nacional brasileira e o clima tropical, afinal, ele bem atendia aos anseios do Governo Imperial e dos intelectuais ligados a ele de produzir e promover uma identidade para o Brasil, afinal, concentrava aquilo que uma identidade nacional necessitava, pois, ao mesmo tempo que marcava a singularidade, também servia como elemento capaz de promover o orgulho do pertencimento, algo deveras importante para um povo distribuído parcamente por um território de proporções enormes e muito mal comunicado, como era o Brasil nesses idos dos oitocentos (BARBATO, 2011). 1 Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM)

Transcript of Os trópicos brasileiros no século XIX: a construção de um paradigma tropical

229

OS TRÓPICOS BRASILEIROS

NO SÉCULO XIX: A CONSTRUÇÃO

DE UM PARADIGMA TROPICAL

Luis Fernando Tosta Barbato1

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo

entender como a noção de clima tropical,

tão importante na construção da

identidade nacional brasileira no século

XIX, foi construída. Através da análise de

textos de cronistas que visitaram o Brasil

em seus tempos de colônia, de filósofos

da Ilustração, e da historiografia

dedicada ao tema, entenderemos como o

clima tropical foi visto durante a história,

e assim entender quais foram as imagens

sobre os trópicos que ajudaram a formar

a nossa própria noção de país tropical,

iniciada no século XIX.

Palavras-chave: História dos conceitos;

Historiografia do século XIX; História

Cultural.

ABSTRACT

This study aims to understand how the

notion of tropical climate, so important in

the construction of Brazilian national

identity in the nineteenth century, was

built. By the analysis of chroniclers that

visited Brazil in their colony times,

philosophers of Illustration, and

historiography dedicated to the theme,

we will understand how the tropical

climate was seen throughout history, and

thus to understand what were the images

of the tropics who cooperated to form our

own notion of tropical country, which

began in the nineteenth century.

Keywords: History of concepts;

Historiography of the nineteenth century;

Cultural history.

Introdução

O clima tropical é elemento

marcante da identidade nacional

brasileira, como grande parte da

historiografia dedicada aos estudos

do século XIX aponta, foi sobre essa

singularidade do Brasil – aqui em

referência à Europa de clima

temperado – que se formou uma das

principais bases para as

representações que marcariam o

Brasil, tanto dentro do país, quanto

no exterior (SÜSSEKIND, 1990;

VENTURA, 1991; NAXARA, 2001;

BARBATO, 2011).

Dessa forma, a presença do

clima tropical, ou os trópicos, se

estendermos a análise a tudo aquilo

que do clima decorria, como as

próprias características morais dos

brasileiros é elemento marcante

dentro da historiografia brasileira,

como pode ser visto, por exemplo, ao

encontrarmos termos como

“medicina tropical”, “civilização

tropical”, ou “tropicalismo” para fazer

referência aquilo que é brasileiro,

servido, dessa maneira, como

elemento distintivo e identificador.

E é no século XIX que

podemos encontrar o embrião dessa

associação entre a identidade

nacional brasileira e o clima tropical,

afinal, ele bem atendia aos anseios

do Governo Imperial e dos

intelectuais ligados a ele de produzir

e promover uma identidade para o

Brasil, afinal, concentrava aquilo que

uma identidade nacional necessitava,

pois, ao mesmo tempo que marcava

a singularidade, também servia como

elemento capaz de promover o

orgulho do pertencimento, algo

deveras importante para um povo

distribuído parcamente por um

território de proporções enormes e

muito mal comunicado, como era o

Brasil nesses idos dos oitocentos

(BARBATO, 2011).

1 Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM)

230

No entanto, a construção

desse ideal nacional tropical no

século XIX, não foi simples como as

palavras acima podem dar a

entender. Os trópicos há muito

vinham sendo visitados, estudados e

debatidos na Europa, e no decorrer

de séculos, desde que pela primeira

vez os europeus aqui pisaram, um

turbilhão de informações detratoras e

exaltantes percorreu o Velho e o

Novo Mundo. Imagens essas que se

fariam refletir nas opiniões dos

próprios brasileiros no século XIX,

ajudando a construir trópicos

ambivalentes, às vezes sufocantes,

perigosos e avessos ao almejado

progresso europeu, outras calcadas

em suas imagens paradisíacas, em

suas florestas virgens, e em sua terra

fértil, detentora de um futuro de boas

esperanças. Assim, chegamos aos

oitocentos com uma visão tropical já

marcada pelas experiências

europeias, e que não deixariam de

deixar suas marcas na construção do

próprio ideário tropical brasileiro.

Desta maneira, o que

buscamos aqui é trazer toda uma

história do clima tropical, e mostrar

como ele foi trabalhado no decorrer

dos tempos, e quais foram as

representações e conceitualizações

que chegaram até o século XIX e

acabaram servindo de base para a

construção de um paradigma

tropical, tão importante dentro do

processo de construção da identidade

nacional brasileira no período.

O clima tropical na história

Sobre essa rede de opiniões,

estudos e experiências europeias,

que ajudaram a construir nossas

próprias noções e visões de trópicos

no século XIX, e que acabaram por

se estender, inclusive para tempos

posteriores, podemos começar a

tratar dos primeiros europeus que cá

pisaram e que deixaram suas

impressões. Viajantes e

colonizadores que pela primeira vez

aproximaram os trópicos e sua

natureza exuberante de um paraíso

terreal, e que, através dessas boas

impressões, ajudariam, séculos

depois, a construir uma identidade

tropical brasileira, que muito

guardava do paraíso – não isento de

problemas, vale frisar – descrito por

esses estrangeiros.

Para ilustrar isso, temos os

textos de Pero Vaz de Caminha e

Américo Vespúcio, que podem ser

considerados pioneiros na

empreitada marítimo-comercial que

atingiu as terras situadas do outro

lado do Atlântico. Caminha disse

sobre a terra encontrada que ela em

“si é de muitos bons ares, assim frios

e temperados... As águas são muitas,

infindas”. Vespúcio afirmou sobre o

Brasil: “E, em verdade, se o paraíso

terrestre está localizado em alguma

parte da terra, julgo que não dista

muito daquelas regiões [referindo-se

ao Brasil]” (PARKER, 1991: p. 25-

28).

Com Cristóvão Colombo não

foi diferente, assim, como Caminha e

Vespúcio, suas impressões sobre as

terras tropicais encontradas no Novo

Mundo foram muito positivas,

chegando ele a afirmar que “esta

terra [referindo-se a uma ilha que

visitava no mar do Caribe] é a

melhor e mais fértil, temperada,

plana e boa que tem no mundo”

(COLOMBO, 1984: p. 51).

As imagens edênicas

aparecem em várias oportunidades

nos relatos de Colombo acerca da

231

América, no entanto, em algumas

passagens, é possível notar que o

clima tropical, apesar de salutar a

princípio, poderia também mostrar

aspectos negativos:

Nunca vi céu mais aterrador: um dia

ardeu feito forno até de noite, a ponto

de eu olhar para ver ser não me havia

levado os mastros e a velas. A

tripulação estava tão alquebrada que

sonhava até com a morte para se

livrar de tantos padecimentos

(COLOMBO, 1984, p. 153).

Colombo também deixa

transparecer em seus relatos que o

clima tropical não era tão salutar

como acreditava:

Eu [Colombo], muito só, do lado de

fora, numa costa tão bravia, com

febre alta e tanto cansaço”

(COLOMBO, 1984: p. 155).

Nos séculos XVI e XVII temos

uma farta gama de relatos de

europeus que - desembarcando como

religiosos, militares, comerciantes,

exploradores, ou apenas curiosos -

passaram pelas regiões tropicais e

deixaram suas impressões, sendo o

Brasil um local privilegiado no que

toca a essa questão.

Em relação aos viajantes

europeus que passaram pelo Brasil,

as visões positivas sobre o clima e a

natureza do país também são

bastante significativas. Segundo

Sant’anna Neto, esses viajantes

percorriam um território natural e

selvagem, muito diferente da Europa

com a qual estavam acostumados.

Repletos de simbologia, e envoltos

em mitos e fábulas, seus relatos

apresentam descrições que

evidenciam muito mais visões do que

fatos (SANT´ANNA NETO, 1999: p.

14).

Lilia Schwarcz corrobora os

dizeres de Sant’anna Neto, ao

afirmar que a literatura de viagem

produzida nos séculos XVI e XVII

aliava a fantasia com a realidade e

buscava no mundo natural americano

aquilo que os europeus já

imaginavam previamente, o que,

segundo a autora, seria justamente o

mito do Paraíso Terrestre. Para esses

cronistas do Velho Mundo, em meio

àquelas maravilhosas terras

americanas, poderia estar o Paraíso

Terrestre, como sua primavera

eterna, seus campos férteis, suas

fontes da juventude... Mas essas

terras também poderiam ser

inóspitas, habitadas por monstros

disformes2.

Desta maneira, podemos aqui

elencar os numerosos relatos de

viajantes, alguns estabelecidos na

colônia, que trata da questão do

clima no Brasil, e suas ambivalências.

Podemos começar pelos relatos dos

missionários jesuítas que aportaram

no Brasil logo no início da

colonização, os quais enaltecem a

natureza e o clima brasileiro.

Exemplo disso é a carta de Pe.

Manuel da Nóbrega, enviada em

1549, que descreve a Bahia como

uma terra agradável, “muito

temperada. De tal maneira que o

inverno não é nem frio nem quente,

e o verão, ainda que seja mais

quente, bem se pode sofrer3 (...)”

(HUE, 2006: p.32).

Fernão Cardim, por exemplo,

que esteve no Brasil entre os anos de

1583 e 1599, é outro desses

exemplos de cronistas que deixaram

relatos positivos sobre o clima e as

terras brasileiras. Afinal, o viajante

de seus Tratados da Terra e Gente do

Brasil, compara o clima brasileiro

2 A verdade é que os verdadeiros “monstros disformes” que mostrariam o outro lado das presumíveis paradisíacas terras tropicais se apresentariam na forma humana. Eram os indígenas, que com sua nudez, seu canibalismo, poligamia, e outras atitudes condenáveis aos olhos europeus, seriam os formadores do antiparaíso, e até do inferno. 3 Para esses missionários da Companhia de Jesus, como ressalta Ronaldo Vainfas, os males das terras tropicais não estavam em seu clima e natureza, que viam com bons olhos, mas sim em suas gentes, tanto as nativas, como as de origem lusitana que aqui aportavam, prontas a desobedecer as ordens de Deus. Não vamos nos alongar agora sobre essa questão, porque ela será retomada mais afundo no decorrer do

trabalho (VAINFAS, 1989: p. 18-31).

232

com o clima de Portugal, e constata

que os climas do Rio de Janeiro e de

São Paulo são bastante agradáveis4,

enfatizando ainda a fertilidade do

solo paulista (SANT´ANNA NETO,

1999: p. 16-17).

Entre os portugueses que por

aqui estiveram e deixaram suas

impressões, vale citar os tratados de

Pero de Magalhães Gândavo, que

escreveu as obras História da

Província de Santa Cruz, de 1576, e

Tratado de Terra & História do Brasil,

e também a obra de Ambrósio

Fernandes Brandão, Diálogo das

grandezas do Brasil, de 1618.

Ambos os autores enfatizaram

expoentes da vertente edenizadora

das terras brasílicas, no entanto,

como ressalta Laura de Mello e

Souza, há uma matização dessa

edenização nesses cronistas,

reiterando a ideia que de que o

caráter edênico se reelabora,

transmutando-se, com o processo de

colonização. A natureza tropical da

colônia portuguesa era reafirmada

como pródiga e generosa, mas desde

que transformada pelo homem

(MELLO E SOUZA, 1986: p. 40).

Gândavo escreve, como diz

Schwarcz, “em tom de eterna

propaganda”5 a respeito das terras

brasileiras, uma vez que não se

cansa de elogiar suas qualidades.

Suas obras fazem referência ao clima

ameno, ao solo fértil e viçoso, à

luminosidade do sol, às boas águas,

que são sadias para beber,

finalmente sintetizando: “Esta terra é

tão deleitosa e temperada que nunca

nela se sente frio nem quentura

sobeja” (SCHWARCZ, 2008: p. 26).

Sobre Gândavo, Laura de

Mello e Souza observou que as

imagens empregadas para qualificar

a Província de Santa Cruz são as

normalmente empregadas nas

descrições europeias dos Paraísos

Terrestres, como nas passagens: a

terra é “mui deliciosa e fresca (...)

onde permanece sempre a verdura

com aquela temperança da

primavera que cá [Europa] nos

oferece abril e maio”. No, entanto,

para Gândavo, segundo Mello e

Souza, essas potencialidades do

trabalho humano se revertem em

favor do trabalho humano,

facilitando-o (MELLO E SOUZA, 1986:

p. 40). O trecho abaixo mostra como

a fertilidade da terra, unida ao

esforço humano pode ser fonte

geradora de grandes riquezas, como

o açúcar e o algodão:

Além das plantas que produzem essas

frutas e mantimentos que na terra se

comem, há outras de que os

moradores fazem suas fazendas,

convém a saber, muitas canas-de-

açúcar e algodões, que são a principal

riqueza que há nestas partes, de que

todos se ajudam e fazem muito

proveito em todas as capitanias,

especialmente na de Pernambuco,

onde foram feitos perto e trinta

engenhos, e na Bahia do Salvador

quase outros tantos, donde se tira a

cada ano grande quantidade de

açúcares, e se dá infinito algodão (...)

(GÂNDAVO, 2004: p. 84).

Brandônio também ressalta as

qualidades climáticas das terras

brasileiras, com seus ventos frescos,

a simetria na duração de dias e

noites, o que faz com que também se

atrele à vertente edênica das terras

tropicais do Novo Mundo, como

podemos observar na seguinte

passagem: “Não faltam autores que

querem afirmar estar nessa parte

situado o paraíso terreal” (BRANDÃO,

s.d.: p. 44).

4 Se ao descrever as terras brasileiras com ares que as aproximam do Paraíso, sobre os homens nativos destas terras suas descrições não foram tão positivas, chegando a comparar a oca indígena a um labirinto infernal, onde o fogo acesso dia e noite, verão e inverno fazia as vezes de única roupa que conheciam, além de ali serem praticados atos de promiscuidade, em ambientes sem divisórias nos quais viviam cem ou duzentas pessoas, tudo isso às vistas uns dos outros, e como testemunha o fogo que ardia sem parar (VAINFAS, 1989: p. 152). 5 O que é plenamente justificável, a notar que Gândavo desfere palavras alentadoras acerca da colônia portuguesa na América, a fim de incentivar a

imigração de portugueses para o Brasil, como pode observar no trecho: “(...) achei que não se podia dum fraco homem esperar maior serviço (ainda que não pareça) que lançar mão desta informação da terra do Brasil (cousa que ategora não empreendeu pessoa alguma) pera que nestes Reinos se divulgue sua fertilidade e provoque a muitas pessoas pobres que se vão viver a esta província, que nisso consiste a felicidade e augmento della” (GÂNDAVO, 1980: p. 21).

233

Segundo Mello e Souza,

Brandônio incorpora a edenização,

um elemento importante do

imaginário europeu, mas dela faz

uma leitura nova, pois o Éden é

formado a partir da união da

natureza pródiga e generosa, ao

trabalho humano.

Mello e Souza mostra isso ao

defender que, de todas as riquezas

fundamentais do Brasil, arroladas por

Brandônio, com exceção da madeira

e do pau-brasil, todas as demais -

lavoura do açúcar, mercancia,

algodões, lavouras de mantimentos e

criação de gado - pressupõem

atividade colonizadora (MELLO E

SOUZA, 1986: p. 41).

Podemos ainda citar aqui,

como exemplo da vertente

edenizadora das terras brasílicas

entre os portugueses, Rocha Pita,

que em sua História da América

Portuguesa, de 1730, dá a seguinte

opinião sobre nossas terras:

Em nenhuma outra Região se mostra

o Ceu mais sereno, nem madruga

mais bella a Aurora: o Sol em

nenhum outro Hemisferio tem os

rayos tão dourados, nem os reflexos

nocturnos tão brilhantes: as Estrellas

são as mais benignas, e se mostrarão

sempre alegres: os horisontes, ou

nasça o Sol, ou se sepulte, estão

sempre claros: as aguas ou se tomem

nas fontes pelos campos, ou dentro

das povoações no aqueductos, são as

mais puras: é enfim o Brasil Terreal

Paraíso descoberto, onde têm

nascimento e curso os mayores rios:

domina salutifero clima; influem

benignos Astros e respirão auras

suavissimas, que o fazem fértil, e

povoado de innumeráveis

habitadores, posto que por ficar

debaixo da Torrida Zona, o

desacreditassem, e dessem por

inabitavel Aristoteles, Plinio e

Cicero(...) (PITA, 1950: p. 23).

Como podemos notar, entre

os portugueses que aqui vieram nos

séculos XVI e XVII, as imagens do

clima e das terras brasílicas foram

positivas. Em relação aos primeiros

franceses que passaram pelo Brasil6,

tais imagens também foram

levantadas, pois da mesma forma

relataram uma terra de belezas,

fertilidade e alegria. Em todos estes

relatos, é quase unânime a boa

impressão da flora, fauna e

habitantes. Léry, Abbeville e Evreux,

Barré7, entre outros defendiam a

existência de um quadro natural

puro, sadio e paradisíaco.

Como, a esse respeito,

ressaltou Leyla Perrone-Moisés:

O Brasil desses primeiros viajantes

franceses é uma terra de beleza,

fertilidade e alegria. A opinião sobre

os bons ares, a riqueza e o colorido

da flora e fauna, assim como a boa

impressão sobre os habitantes é

unânime (PERRONE-MOISÉS, 1989:

p.90)8.

Isso vem a ser corroborado

nos diversos trechos retirados dos

relatos desses viajantes franceses,

que veem certa aproximação entre as

terras brasileiras e o Éden. Nicolas

Barré, por exemplo, entusiasmado

com a abundância de peixes, plantas

e metais à disposição humana,

mostra seu aspecto positivo em

relação ao clima e terras que

encontrou na colônia portuguesa na

América: “A terra é irrigada e tem

belos rios de água doce, a mais

saudável que jamais bebi. O ar é

temperado, tendendo mais ao calor

que ao frio (...) a terra é fértil e

salubre” (SCHWARCZ, 2008: p. 32).

André Thevet9 a princípio

descreveu o Rio de Janeiro como um

lugar inóspito, de chuvas incessantes

6 É importante lembrar que até a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, a entrada de estrangeiros era basicamente impedida ou limitada no Brasil. No entanto, essa proibição não evitou a vinda de religiosos, soldados, comandantes, corsários ou meros curiosos, como ressaltou Lilia Schwarcz, pessoas que deixaram uma série de relatos sobre nossas terras, passados avidamente de mão em mão (SCHWARCZ, 2008: p. 23). 7 Os quatro eram membros das missões francesas que tentaram colonizar áreas do Brasil. Jean de Lery visitou o Brasil em 1557, na chamada França Antártica, situada no Rio de Janeiro. Já Claude d´Abbeville e o capuchinho Yves d´Evreux participaram da missão francesa na chamada França Equinocial, o primeiro

em 1612, permanecendo por 4 meses, e o segundo durante os anos de 1613 e 1614. Já Nicolas Barre foi um dos calvinistas enviados ao Brasil a fim de participar dos empreendimentos de Villegagnon no Brasil, em 1555. 8 Aqui, vale ressaltar, as boas impressões acerca dos habitantes é referente aos seus quadros de saúde, ressaltando o clima do Brasil como benéfico aos corpos, em relação aos seus hábitos, as opiniões também apontam para os sentidos negativos, como trouxemos anteriormente.

234

e calor insuportável, acreditando ser

a natureza brasileira perigosa e

corrompida. No entanto, após sua

estadia no Brasil, Thevet mudou sua

postura em relação ao clima do país,

acreditando que os antigos falavam

mais por conjecturas do que por

experiências sobre a vida nos

trópicos, e que, depois de morar nos

trópicos, constatou que não lhe

restavam dúvidas a respeito da

superioridade dos trópicos para a

sobrevivência e habitabilidade

humanas (SANT´ANNA NETO, 1999:

p. 19-20). O Brasil acabaria sendo

apresentada por Thevet como um

lugar “tropical e fértil”.

Jean de Léry publicou seu

relato referente à sua estada na

França Antártica, em 1578, segundo

o autor, com o objetivo principal de

desmentir “mentiras e erros”

contidos no livro de Thevet10. Léry,

nessa sua empreitada, como diz

Schwarcz, “faz o leitor seguir viagem

ao seu lado e logo se refere ao

impacto que sentiu diante da

natureza brasileira (...)”

(SCHWARCZ, 2008: p. 34). Como

podemos ver no trecho abaixo:

Por isso, quando a imagem desse

novo mundo, que Deus me permitiu

ver, se apresenta aos meus olhos,

quando revejo assim a bondade do ar,

a abundância de animais, a variedade

de aves, a formosura das árvores e

das plantas, a excelência das frutas e

em geral, as riquezas que embelezam

essa terra o Brasil, logo me acode a

exaltação do profeta no salmo 104:

Ó seigneur Dieu, que tes oevres

divers

Sont merveilleux par Le monde

univers:

Ó que tu as tout fait par grande

sagesse!

Bref, La terre est pleine de ta

largesse11.

O trecho acima, ainda nos

serve de exemplo para a divinização

da natureza brasileira, entre

viajantes que percorreram nossas

terras nos séculos XVI e XVII,

atrelando a sua magnitude à prova

da obra de Deus na Terra, como nos

mostra Laura de Mello e Souza:

associar a fertilidade, a vegetação

luxuriante, a amenidade do clima às

descrições tradicionais do Paraíso

Terrestre tornava mais fácil e familiar

para os europeus a terra tão distante

e desconhecida. A presença divina

fazia-se sentir também na natureza;

esta, elevada à esfera divina, mais

uma vez reiterava a presença de Deus

no universo (MELLO E SOUZA, 1986:

p. 35).

Nesse rol de viajantes que

valorizaram e elogiaram a natureza

brasileira, vendo em seu clima,

terras, rios, águas, fauna e flora

componentes de uma imagem

edênica, poderíamos ainda enquadrar

as Memoires de M. Du Gué-Trouim

(1730), de Duguay Trouim; Relation

historique et geographique de la

grande rivière dês Amazones (1655),

de Blaise-François Pagan e Historie

du Nouveau Monde ou Description de

Indes Occidentales (1640), de

Joannes de Laet12. Há ainda uma

gama diversa de outros autores que

poderiam ser citados como exemplos

desse vertente edênica da natureza

tropical brasileira, o que ressalta esse

caráter primordialmente positivo de

nossa condição tropical propagado

por esses primeiros visitantes

estrangeiros que aqui estiveram.

Schwarcz, em seu O Sol do

Brasil, afirma que “a mística da terra

do mel surge por toda a parte”,

referindo-se às terras brasileiras

nesses idos dos séculos XVI e XVII, o

9 O franciscano Thevet permaneceu por 3 meses na chamada França Antártica durante o ano de 1555, em companhia de Villegaignon. 10 Em seu relato, Thevet demonstrou deveras repulsa a hábitos indígenas como a poligamia e o canibalismo, afirmando assim a certeza da ausência de regras entre eles. Já Léry vem justamente em defesa dos nativos, mostrando que entre eles também haveria regras e valores como entre os colonizadores (SCHWARCZ, 2008: p. 34). 11 “Senhor Deus, como

tuas obras diversas são

maravilhosas em todo o

universo! Como tudo

fizeste com grande

sabedoria! Em suma, a

terra está cheia de tua

magnificência.” ( LÉRY,

1980: p. 181).

12 Todos esses exemplos

foram retirados da obra

de Schwarcz

(SCHWARCZ, 2008:

pp.39-40).

235

que não deixa de ser verdade. No

entanto, cabe aqui frisar que nesses

relatos, apesar de haver um maior

número de imagens positivas a

respeito do clima e terras do Brasil,

há também o aparecimento de

imagens negativas, por isso, o

correto é afirmar que nesse período

da História, o clima tropical

apresentava uma visão globalmente

positiva, como afirma Perrone-Moisés

(PERRONE-MOISÉS, 1989: p. 90).

Nesse sentido, Gândavo,

apesar de relatar um Brasil de

maravilhas e salubridade, mostra que

aqui também havia perigos: “Este

vento da terra é mui perigoso e

doentio e se acerta de permanecer

alguns dias, morre muita gente,

assim portugueses, como índios da

terra” (MELLO E SOUZA, 1986: p.

45).

Em outra passagem, Gândavo

culpa o clima do Brasil pela grande

quantidade de animais peçonhentos

que possui:

Dos climas que a senhoreiam [a

Terra], não pode deixar de os haver

[os animais peçonhentos]. Porque

como os ventos que procedem da

mesma terra se tornem infeccionados

das podridões das ervas, matos e

alagadiços geram-se com a influência

do sol que muito concorre, muitos e

mui peçonhentos, que por toda a

terra estão esparzidos, e esta causa

se criam e acham nas partes

marítimas, e pelo sertão dentro

infinitos da maneira que digo

(GÂNDAVO, 2004: p.106).

Ainda sobre a questão da

abundância de animais peçonhentos

no Brasil, Cardim nos dá o seguinte

relato:

Parece que este clima influi peçonha,

assim pelas infinitas cobras que há,

como pelos muitos Alacrás, aranhas e

outros animais imundos, e as

lagartixas são tantas que cobrem as

paredes das casas (CARDIM, 1978: p.

33-34).

Esses dois trechos servem

para exemplificar o que afirma Mello

e Souza, segundo o qual não houve

uma sequência ordenada entre os

movimentos de edenização e

detração do clima tropical, assim,

como da natureza do Novo Mundo.

Mesmo os maiores edenizadores das

terras tropicais não pouparam

observações negativas, em maior ou

menor grau, sobre as terras que

visitaram no Novo Mundo. Como a

historiadora afirma: “Houve,

portanto, tendência à edenização da

natureza, predomínio dela, mas não

exclusividade” (MELLO E SOUZA,

1986: p. 43).

A fim de entender esse outro

aspecto da edenização, “detratora e

mesmo infernalizante”, Mello e Souza

vai até o Renascimento, e o traz

como inspiração dessa dualidade. “O

Renascimento teria sido enigmático e

contraditório. Seus contemporâneos

tiveram consciência disso” (MELLO E

SOUZA, 1986: p. 44). Para

corroborar seus dizeres, a

historiadora apresenta a seguinte

sentença, de Delumeau: “Tudo [no

Renascimento] foi misturado, o mais

alto com o mais baixo, o inferno com

o céu, o melhor com o pior”

(DELUMEAU Apud. MELLO E SOUZA,

1986: p. 44).

Mello e Souza, conclui então,

que “sendo assim, não é de admirar

que o céu e inferno se misturassem

também nas crônicas sobre a

América, e que o mais edenizador

dos autores se visse também às

voltas com a detração” (MELLO E

SOUZA, 1986: p. 44).

236

Vale ainda ressaltar que até

agora, não tocamos no assunto que

entre esses autores mais aproximava

o Brasil, agradável de se viver, e

divino em sua natureza, em uma

espécie de antiparaíso, que são suas

gentes nativas, com seus hábitos que

para alguns eram a evidência de que

o diabo havia se instalado na América

(MELLO E SOUZA, 1993: p. 30).

Tocamos apenas no ponto referente à

natureza e ao clima do Novo Mundo,

que mesmo apresentando uma nítida

tendência à edenização, ainda

contava com elementos de detração.

Em relação aos seus homens, esses

fatores de detração pesam bem mais

na sua balança com a edenização,

como veremos no decorrer do

trabalho.

Esses são apenas alguns

exemplos de europeus que

aprovaram a vida nos trópicos, que

foram cantados em suas maravilhas

por muitos outros que aqui

estiveram, e que assim, contribuíram

para a construção de um paradigma

sobre os trópicos que marcariam o

século XIX no Brasil, no qual essa

mítica do paraíso terreal seria

recuperada a todo momento, como

veremos mais a frente.

No entanto, como foi dito, a

visão europeia sobre os trópicos era

ambivalente, se os aspectos positivos

eram exaltados, os negativos

também o eram, em alguns

momentos mais, em outros menos,

mas a verdade é que os trópicos

nunca foram uma unanimidade. E

algumas dessas teorias que

difamavam os trópicos e os que

estavam sob sua influência tiveram

longa vida no pensamento social

brasileiro, sendo frequentes no

século XIX.

Por mais que o ideal e a

vontade de mostrar um país tropical

belo e simultaneamente apto ao

progresso fizessem parte de uma

missão patriótica e de uma agenda

oficial, questão que marcou a

formação dessa identidade tropical

no século XIX, a verdade é que

certas incredulidades acerca dos

trópicos e de seu potencial

assombravam aqueles intelectuais e

políticos oitocentistas, que

acostumados a ver e analisar o Brasil

através de um “jogo de espelhos

deformantes”, ou seja, através do

olhar estrangeiro, e nesse caso, não

conseguiam se desvincular das

teorias do Velho Mundo que

inferiorizavam os trópicos e o

condenavam, juntamente com seus

habitantes, a ocupar um lugar

secundário no rol das grandes

nações.

Referências negativas ao clima

tropical existem há séculos, um dos

motivos das vivas de Sérgio Buarque

de Holanda ao português foi

justamente a sua habilidade de se

trasladar às zonas tórridas e de

habitá-las, desafiando o conceito

quinhentista que os homens nela se

degeneravam. Isso, para não

citarmos as teorias hipocráticas, que

ainda na Grécia antiga, já viam a

chamada “zona tórrida” como um

lugar de inferioridade frente às

consideradas zonas médias

(ARNOLD, 2000: p. 22; GLACKEN,

1967: p. 87). Todavia, esse debate

sobre a interferência do clima e da

natureza em geral na vida e

desenvolvimento das pessoas e povo

se intensificou no século XVIII,

principalmente na parte que toca a

América. Tanto que Antonello Gerbi

batizou essas discussões acerca da

237

natureza americana de “A Disputa do

Novo Mundo” (GERBI, 1996).

Inclusive, os filósofos

pertencentes ao movimento da

Ilustração europeia discutiram as

relações entre a natureza, o corpo

social e a política, como é o caso de

Montesquieu em seu O Espírito das

Leis (1748), no qual defende que os

homens não são guiados apenas por

suas fantasias, mas haveria

princípios que governariam as leis e

os costumes, válidos em todo o

mundo. Ao contrário de Hobbes,

Locke e Rousseau, Montesquieu não

se interessa pelo contrato social. Sua

reflexão se volta para os tipos de

sociedade, buscando nelas suas

regras objetivas. Constrói assim uma

teoria geral do clima, que ajuda a

explicar a pluralidade dos costumes e

das leis: “o império do clima é o

primeiro de todos os impérios”,

afirma ele (VENTURA, 1991: p. 19).

Essa teoria tem como centro a

natureza e as instituições da Europa,

produzindo uma hierarquia do espaço

natural e social, no qual o clima

temperado e a monarquia

constitucional são considerados os

modelos ideais, tendo como opostos

os climas tórridos e glaciais, e seus

respectivos padrões de governo,

segundo Montesquieu: a república e

o despotismo oriental.

O trecho de Ventura abaixo

relata bem o pensamento de

Montesquieu:

A escravidão, a poligamia e o

despotismo resultam, na sua visão

[de Montesquieu], da apatia geral dos

habitantes dos climas quentes, em

que o calor traria o ”relaxamento” das

fibras nervosas. Com isso o indivíduo

perderia toda sua força e vitalidade,

seu espírito ficaria abatido, entregue

à preguiça e à ausência de

curiosidade, enervando o corpo e

enfraquecendo a coragem. O clima

quente favorece a aceitação da

servitude: “não surpreende que a

covardia dos povos dos climas

quentes os tenha tornado quase

sempre escravos, e que, a coragem

dos povos dos climas frios os tenha

mantido livres. É um efeito que deriva

de sua causa natural [aqui citando

Montesquieu] (VENTURA, 1991: p.

12).

Notamos por esse trecho que

a visão do filósofo francês a respeito

dos ambientes de clima quente é

extremamente negativa. O mesmo

valia para os climas extremamente

frios. A liberdade predominante na

Europa poderia então ser explicada

em virtude de estar posicionada na

zona temperada ideal do globo13.

Nos demais continentes, as

condições naturais teriam trazido o

despotismo e a escravidão. Assim

sendo, a Ásia seria um continente

cuja predisposição à tirania seria

explicada devido ao clima muito frio,

que se altera com áreas

excessivamente quentes; já a África

teria como características a

escravidão e a debilidade de seus

governos, por causa precisamente do

clima tórrido. Sobre a América, que

ele divide em duas áreas, a posição

de Montesquieu é ambígua.

Havia a América próxima ao

Equador, terra dos “impérios

despóticos do México e do Peru”, e

uma outra fora dos trópicos, povoada

por “pequenos povos livres”.

Montesquieu apontava que a

existência dessas populações no

continente poderia ser atribuída à

fertilidade do solo americano, que

produzia por si só frutos,

independentemente da ação do

homem.

13 Nesse ponto, é interessante ressaltar que Montesquieu simplesmente não toca

na escravidão presente nas sociedades gregas e romana, consideradas os berços da civilização europeia.

238

Portanto, notamos que na

teoria de Montesquieu o futuro do

Novo Mundo está aberto, já que

havia áreas dentro da “zona climática

ideal”, compatíveis com o modelo

europeu. Ou seja, apesar das

facilidades que a natureza oferecia, o

que era visto de forma negativa, pois

não levava seus habitantes a pensar

e evoluir para sobreviver, ainda havia

uma chance de a América se civilizar

(VENTURA, 1991: p. 20-21).

Sobre o pensamento e

Montesquieu em relação à

interferência do clima no caráter do

ser humano, podemos observar um

retornos das ideias hipocráticas, que

pregam, por exemplo, a ação

benéfica do clima frio sobre os

corpos, retesando-os, e aumentando

assim sua força, e da mesma forma,

o efeito maléfico dos climas quentes

sobre esses mesmos corpos,

alongando-os, diminuindo-os, o que

explica o maior vigor dos povos do

Norte, de clima frio, e em

contraposição, a frouxidão os povos

tropicais. Podemos encontrar ainda

nessas teorias hipocráticas,

revisitadas por Montesquieu, e

muitos outros depois – uma vez que

se já não era, viriam a se tornar um

lugar-comum, segundo Bresciani -, a

gradação da sensibilidade em relação

aos prazeres e à dor, da menor nos

climas frios, à maior nos climas

quentes (BRESCIANI, 2007: p.75).

No entanto, vale aqui frisar,

que assim como Hipócrates,

Montesquieu não era de todo

determinista, apesar de crer na

intensa participação das condições

ambientais na determinação de

comportamentos e caráter dos

povos, o iluminista francês, não via

essa relação de maneira peremptória

e incontornável. Como mencionou

Bresciani, “ele se recusaria

expressamente a isso, considerando

mesmo um grande absurdo pensar

que um fatalismo cego pudesse ter

produzido seres inteligentes”

(BRESCIANI, 2007: p.75). Tanto que

Montesquieu via como tarefa dos

legisladores e bons governantes,

sobrepor-se a esses percalços

impostos pelo clima e outros fatores

ambientais, quanto mais estes

tentassem se impor sobre suas

sociedades (ARNOLD, 2000: p.27).

Vale ainda ressaltar que

Montesquieu, não foi original ao

elaborar essas ideias, na Europa

Moderna, Jean Bodin, por exemplo,

um século e meio antes já antecipara

alguns dos paradigmas que

Montesquieu abordaria em seu O

Espírito das Leis. No entanto, como

ressalta David Arnold, a importância

de Montesquieu está na sua

capacidade de absorver e sintetizar

essas ideias sobre a influência do

meio no homem, que circulavam pela

Europa, para apresentá-las de uma

forma atrativa e relativamente

coerente. Tanto que podemos

encontrar vestígios dessas teorias de

Montesquieu em obras como A

Riqueza das Nações, de Adam Smith,

A Filosofia da História, de Hegel,

além das questões referentes à

discussão do “despotismo oriental”, e

do “modo de produção asiático”,

presentes em Marx e Engels.

Essas ideias expressas por

Montesquieu, nas quais o clima e o

meio em geral atuavam na

modelagem do homem voltaram a

entrar bastante em voga já em finais

do século XVII, sendo muito

importantes nos séculos XVIII e XIX.

A Medicina, as ciências, a filosofia, a

239

poesia, a pintura, e até mesmo a

jardinagem, nos dão provas da

profunda penetração dessas ideias

nas sociedades europeias – e depois

de outros lugares do globo – nesse

período (ARNOLD, 2000: p. 28-29).

Como observa Glacken, em

nenhuma das épocas anteriores, os

pensadores se haviam posto a

examinar as questões relativas à

cultura e ao ambiente com tanta

minúcia, curiosidade e dedicação

como fizeram no século XVIII

(GLACKEN, 1967: p. 501).

Arnold aponta algumas causas

para esse súbito interesse pela

natureza, no século XVIII: 1) Graças

aos avanços da física, astronomia e

botânica, ocorridos desde o século

XVI, as formas e efeitos do mundo

natural podiam ser melhor

compreendidos, e motivaram um

desejo – e uma capacidade – sem

precedentes de controlar as forças da

natureza. 2) A segurança e

opulência, recém-adquiridas de

governantes e aristocratas,

promoveram, através do mecenato,

um incentivo às artes e ciências. 3) A

urbanização e os inícios da

industrialização avivaram a reação

romântica, o que alimentou o apetite

para as paisagens naturais. Assim,

podemos dizer que no século XVIII, a

natureza, através dos filósofos,

cientistas e artistas, se converteu

também em uma das metáforas

principais da época, o prisma através

do qual se refratavam com inusitado

brilho toda classe de ideias e ideais

(ARNOLD, 2000: p. 24-25).

Desta maneira, outro francês,

também relacionado à Ilustração, o

naturalista Georges-Louis Leclerc,

Conde de Buffon, em sua obra

História Natural do Homem (1749),

adota a teoria do clima de

Montesquieu, inserindo o homem em

um modelo hierárquico e

eurocêntrico de climas temperados.

O clima temperado se localiza do 40°

a 50° grau de latitude; é também

nessa zona que se encontram os

homens mais belos e bem feitos (...)

é daí que se devem tomar o modelo e

a unidade a que se devem referir

todas as outras nuances de cor e

beleza (BUFFON Apud. VENTURA,

1991: p. 21-22).

Além disso, Buffon avançou

em relação a Montesquieu no

momento em que detratou a

natureza americana, acusando-a de

ser menos “ativa” do que a do Velho

Mundo. Ele acreditava que a umidade

e o calor, característicos das “zonas

tórridas” da América, eram

responsáveis pelos animais menos

numerosos e de menor porte

(VENTURA, 1991: p. 22). No Novo

Mundo não havia leões, girafas ou

elefantes, o lhama não passava de

um camelo mirrado, o continente era

dominado por répteis e insetos,

portadores e sangue frio, e os

animais europeus, aqui não se

adaptavam ou diminuíam de

tamanho. Tudo isso, segundo Buffon,

vinha a corroborar sua tese da

hostilidade ao desenvolvimento que a

natureza americana proporcionava,

através do seu calor e da sua

umidade generalizada, que tudo

corroia e deteriorava, “enchendo o ar

de miasmas perigosos”, como nos diz

Maria Ligia Prado (PRADO, 1999: p.

181-182)14.

Munido de relatos de viajantes

que percorreram a América, Buffon

saiu em defesa da teoria

monogenista, e da condição racional

de toda a espécie humana, sem, no

14 Maria Ligia Prado nos lembra que no século XVIII eram comuns teorias sobre a geração espontânea de vermes e víboras a partir de corpos putrefatos, e sobre terras encharcadas e insalubres, o que justificava, aos olhos de Buffon, a presença e tantas moléstias no Novo Mundo..

240

entanto, deixar de estabelecer uma

classificação dos tipos humanos em

função dos graus de sociabilidade

observados e avaliados pelo

esclarecimento, polidez, submissão

às leis e à ordem estabelecida.

Podemos notar que para Buffon, o

modelo de civilização a ser seguido

era o europeu, inclusive no seu

aspecto físico, e o que se distanciava

dele ganhava uma conotação

negativa, sendo os europeus do

Norte os ocupantes do topo de sua

escala, seguidos pelos outros

europeus, depois pelos asiáticos e

certos africanos, cabendo aos

selvagens americanos, australianos e

africanos o mais baixo grau, próximo

ao dos animais (BRESCIANI, 1997:

p.76).

Buffon acreditava que, assim

como os animais, os homens das

regiões tropicais eram vítimas da

natureza, já que esta seria tão

poderosa a ponto de impedir seu

crescimento e evolução. Portanto,

notamos a continuação da visão

negativa sobre a América de

Montesquieu na obra de Buffon.

Buffon detratou a natureza

americana, acusando-a de ser

“imatura”, inferior à natureza do

Velho Mundo, ao contrário dos

viajantes do século anterior, não via

no calor dos trópicos, na fertilidade

das terras e nas florestas

exuberantes, motivos para

comemorações, pois proporcionavam

um continente infantilizado em seu

desenvolvimento.

No entanto, as ideias

detratoras e Buffon a respeito da

América foram muito bem

recepcionadas no meio letrado

europeu, não só sendo aceitas como

verdadeiras, como tendo uma grande

e duradoura persuasão. Exemplo

disso foi que pensadores de renome,

como Auguste Comte e Domingo

Sarmiento teceram elogios ao filósofo

francês e suas teorias, muitas

décadas depois de sua publicação.

Além disso, Prado realça a

importância da obra e Buffon, pois ao

tratar a natureza americana, um

tema aparentemente neutro, ele

contribuiu para a gestação de uma

identidade, a princípio continental e

de inferioridade em relação à Europa

(PRADO, 1999: p. 182-183).

Se Buffon detratou a natureza

da América ao proclamar sua suposta

“imaturidade”, Cornelius De Pauw,

em seu Investigações filosóficas

sobre os Americanos (1768),

radicalizou ainda mais essa

deturpação, pois afirmou que os

animais, as plantas e mesmo os

homens (incluindo os descendente de

europeus) que habitavam o Novo

Mundo passavam por um processo de

degeneração.

Segundo ele, antes de serem

vítimas dos conquistadores europeus,

os nativos da América foram vítimas

do clima, do solo, da natureza em

geral do seu continente, que impedia

qualquer tipo de indústria humana

(VENTURA, 1991: p. 23).

Provavelmente conhecedor de

algumas elaborações de finais do

século XVII, produzidas pela escola

dos chamados diluvians, que

atribuíam ao dilúvio as causas para a

debilitação dos solos, e a diminuição

da longevidade dos seres humanos e

animais, De Pauw acreditava que

essa catástrofe era a mais provável

causa para os vícios que encontrou

nos habitantes das Américas

(PRADO, 1999: p. 183).

241

Citar todos os autores que

depreciaram a imagem da natureza

da América no século XVIII

demandaria um tempo e um espaço

que não temos aqui, e nem esse é o

objetivo do trabalho, mas é preciso

destacar que além desses aqui

citados, o abade Raynal, Thomas

Buckle, Hegel, além de outros, são

responsáveis por atacar e difamar a

imagem do Novo Mundo, na disputa

a que Gerbi se referiu.

O que notamos então é que,

apesar de diversas discordâncias

entre os autores acima, em geral se

propagava a tese de inferioridade

americana, tanto em termos

naturais, quanto em termos

populacionais. Mas se Gerbi chamou

esse período de disputa, quem são os

que defendem a América no embate?

Segundo Márcia Naxara, havia

na Europa do período a noção de que

o homem civilizado já não era mais

capaz de viver de maneira feliz, pois

fora acometido por outro tipo de

barbárie, e perdera a sua

humanidade (NAXARA, 1999: p. 25).

O principal representante

dessa concepção foi o filósofo

iluminista Jean Jacques Rousseau,

que via no homem selvagem, a

alternativa para a “degeneração” que

acometera o homem civilizado,

levando-o a perder a bondade

original. Nesse contexto, a Europa

civilizada tinha muito que (re)

aprender15 com a América selvagem

(SCHWARCZ, 2008: p. 45).

No entanto, não foi Rousseau

o principal responsável pela mudança

da imagem negativa do Novo Mundo

nos círculos acadêmicos. O

naturalista e viajante alemão

Alexander von Humboldt reverteu

essa visão, ao mostrar seu

entusiasmo pela natureza e clima da

América tropical e do Caribe, tidos

então como insalubres para o

desenvolvimento humano.

Humboldt conseguiu essa

mudança de pensamento ao dar à

América um passado próprio,

específico, sem comparações com a

Europa. Ao tratar a natureza

americana dessa maneira, como

nunca havia sido feito antes de

maneira científica, os estudos de

Humboldt subverteram a noção de

fragilidade e juventude da natureza e

clima do Novo Mundo. Ele conseguiu

esse feito ao localizar na natureza

desse continente uma série de

“ruínas” que atestavam a

grandiosidade e a idade avançada da

América. Exemplo dessas ruínas são

os monumentos deixados por povos

pré-colombianos, que atestam que

aqui também houve grandes e

avançadas civilizações, capazes de

obras arquitetônicas invejáveis e que

nada se assemelhavam ao padrão

europeu (SCHIAVINATTO, 2003:

615-616).

Além disso, para refutar as

opiniões a respeito da degeneração

do homem americano, Humboldt

tomou como exemplo os

trabalhadores indígenas e mestiços

das minas no México, que chamavam

a atenção pela robustez e resistência,

nada parecidos com o estereótipo de

físico frágil em virtude da ação do

meio, propagados na Europa.

Humboldt também negou a

ideia de juventude geológica do

continente americano ao encontrar

fósseis pré-históricos que atestavam

a idade avançada do Novo Mundo.

Assim, através dessas “ruínas”,

Humboldt inverteu a imagem

negativa da natureza da América

15 Sobre essa questão da valorização do meio natural, em especial do selvagem que nele habita, Todorov nos faz uma ressalva importante, ao mostrar-nos que a imagem do “bom selvagem” (e por oposição, à do “mal selvagem”) constitui uma construção mental, uma ficção, realizada com a finalidade de facilitar a compreensão dos argumentos dos autores. Para Rousseau, em seu Discurso sobre a origem da Desigualdade, prossegue Todorov, o homem da natureza se apresentaria como uma elaboração literária, com o objetivo de “conhecer um estado que não mais existe, que provavelmente nunca terá existido, que não existirá jamais, e do qual é entretanto necessário ter noções precisas para bem compreender a situação

presente” (TODOROV Apud. BRESCIANI, 1997: p. 90).

242

dentro dos círculos intelectuais

europeus. Ventura traz uma frase de

Humboldt na qual sua opinião acerca

desse debate fica bastante clara:

“Essas ideias se propagaram

facilmente, porque lisonjeavam a

vaidade dos europeus, ligando-se a

hipóteses brilhantes sobre o antigo

estado de nosso planeta” (VENTURA,

1991: p.27).

A verdade é que a

Humboldt fascinava a tensão

existente entre as forças da

natureza, que ele podia observar com

maior intensidade nos trópicos. Para

o naturalista germânico, a natureza

tropical “aparece mais ativa, mais

fecunda, pode-se, inclusive, dizer que

é mais pródiga de vida”. Segundo

Arnold, foi a fecundidade e a

diversidade dos trópicos que

alimentou seus pensamentos de

como uma só e indissolúvel cadeia

mantém unida toda a natureza,

formando um único todo ordenado

harmoniosamente, o qual chamou de

Cosmos (ARNOLD, 2000: 134).

Com as teses de Humboldt,

que derrubaram as imagens

negativas do Novo Mundo nos

debates intelectuais16, e a retificação

de Buffon em relação à sua própria

teoria, ao negar a ação degenerativa

da natureza sobre homem

americano, sendo esta atuante

somente os animais domésticos, a

chamada “Disputa do Novo Mundo”

chega ao fim, e essa discussão perde

forças no pensamento europeu

(VENTURA, 1991: p. 26).

Vale aqui ressaltar, que,

apesar de o século XVIII ser mais

conhecido na historiografia como um

período de detração da natureza

americana, observou-se uma

tendência a ela principalmente na

Europa, pois se observarmos, é farta

a produção de imagens positivas

sobre o meio-ambiente tropical no

século XVIII.

Histoire génerale dês voyages

ou Novelle collection de toutes lês

relations de voyages par mer et par

terre, de Prevóst, que começou a

escreveu em 1746; Abregé de

l´histoire (1780), de La Harpe;

Voyage autour du Monde (1771), de

Antoine Bouganville, entre outros,

são exemplos de obras na qual a

natureza que aparecia nos escritos

era edenizada (SCHWARCZ, 2008: p.

45-48), e é interessante que

lembremos que apesar de Humboldt

ser preconizado como o responsável

pela inversão da imagem dos trópicos

entre os europeus, já havia (ou ainda

havia) homens que acreditavam nos

benefícios dos trópicos, antes mesmo

da visita do naturalista germânico à

América.

No entanto, apesar de a visão

positiva da América, simbolizada por

Humboldt, ganhar espaço de maneira

gradativa nos círculos intelectuais, a

maneira negativa de se enxergar

esse continente ainda permaneceu

bastante latente, como ressalta

Márcia Naxara (NAXARA, 1999: p.

37). Um exemplo disso é o debate a

respeito das teorias raciais que

tomam contam do Brasil a partir da

década de 1870.

No entanto, sobre o século

XIX, sabemos que a partir da

revalorização da natureza promovida

por Humboldt, e também com a

abertura dos portos às nações

amigas, em 1808 - como diz

Schwarcz, “a maravilhosa natureza

brasileira ganhava novas

representações, clichês e

banalidades, sobretudo na França”.

16 Não podemos deixar de citar as “defesas” do continente americano realizadas por jesuítas exilados pela Coroa Espanhola, como é o caso de Clavijero e Molina, que ao lado de Humboldt, integraram o outro lado da “disputa” de Gerbi.

243

Além disso, há todo um

redescobrimento de nosso mundo

natural, promovidos por uma

multidão de geógrafos, botânicos, e

outros cientistas que aqui

desembarcam, em busca de conhecer

e descrever aquele famigerado

desconhecido que era o Brasil

(SCHWARCZ, 2008: p.48).

Maria Liga Prado nos conta

que no século XIX, os cientistas

desejavam observar a natureza,

medi-la, descrevê-la e rotulá-la. Já

os artistas românticos viam na

atravessada por qualidades e defeitos

semelhantes aos dos humanos,

projetando nela sentimentos,

despertando em si a admiração ou o

temor. “Os primeiros usavam a

linguagem supostamente objetiva e

fria da ciência, enquanto o segundo

fazia descrições que carregavam nas

cores e nas tintas e que respiravam

emoções” (PRADO, 1999: p.180).

No entanto, se cientistas e

artistas se debruçavam sobre a

natureza buscando conhecimento ou

inspiração, o clima tropical

continuava a ser tratado de maneira

ambivalente no debate letrado.

Desta maneira, podemos

notar que os intelectuais do século

XIX, escreviam sob uma rede de

tensões que trazia os trópicos ora

vistos como motivo de orgulho, ora

vistos como motivo de preocupação,

em um movimento que dividia

claramente o globo em uma zona

temperada, lugar do trabalho e do

progresso, e outra negativa, lugar do

deleite e do atraso, o que presumia

de estratégias que fossem capazes

de contornar tais sentenças nada

alentadoras. Montesquieu, Humboldt,

Buffon, Caminha, Lery... todos eles

contribuiriam para a formação de

uma identidade tropical brasileira

forjada sob o signo da ambivalência.

É importante ainda citar que

essa identidade nacional brasileira,

baseada nesse viés tropical do país,

principalmente a partir da segunda

metade do século XIX, muitas vezes

se confunde, ou se mescla a um

outro elemento que, como dissemos,

também serviu com base para a

construção da identidade nacional

brasileira: a raça. Que queira ou não,

era elemento constituinte desses

trópicos, afinal, elas eram frutos de

sua ação, e suas características, tão

importantes para o desenvolvimento

civilizacional das nações, estavam

diretamente ligadas ao clima.

Segundo Arnold, os motivos

para a ascensão dessa nova maneira

de classificação dos homens seriam:

1) O problema da escravidão e da

abolição promoveu intensos debates

sobre a questão racial em ambos os

lados do Atlântico, no que concernia

sobre a questão de os africanos

pertencerem ou não a uma

subespécie humana distinta,

presumidamente inferior. 2) A

crescente ascensão militar e

econômica da Europa se tornava

como um sinal de que os europeus

eram uma raça superior,

principalmente quando sua chegada

a muitas partes do mundo foi seguida

pelo decréscimo populacional, ou

mesmo extinção dos povos nativos

conquistados. 3) Os séculos XVIII e

XIX assistiram a um rápido

crescimento dos estudos das ciências

biológicas, o que fomentou o debate

acerca das diferenças entre os seres-

humanos (ARNOLD, 2000: p.30).

Além da combinação desses

fatores, não podemos nos esquecer

da publicação de A Origem das

244

Espécies, em 1859, por Charles

Darwin. Com sua luta entre as

espécies e a “sobrevivência do mais

apto”, parecia que Darwin havia

quebrado a ideia de natureza como

algo fixo e harmonioso concebido por

Deus. Logo essas ideias evolutivas

passaram a ser usadas também na

análise das sociedades humanas, e

serviram de apoio para concepções

de que as diferentes raças

representavam estados diferentes do

processo evolutivo, e que as

diferentes condições ambientais

haviam sido fator significativo de

diversificação (ARNOLD, 2000: p.

31).

Nesse contexto, as civilizações

não eram espécies imutáveis, mas

sim evoluíam e caíam em resposta a

certas condições ambientais,

batalhavam com seus concorrentes

pela supremacia no ambiente e

sobrevivência.

Podemos encontrar um

exemplo do uso dessa teoria

podemos encontrar nos dizeres do

naturalista Alfred Russel Wallace, que

em 1864, que acreditava que na luta

pela vida, as populações menos

desenvolvidas mentalmente seriam

extintas ao entrar em contato com os

europeus:

¿No es un hecho que en todas las

épocas y en cada rincón del globo, los

habitantes de las regiones templadas

han sido superiores a los de las

regiones tropicales? Todas las

grandes invasiones y todos los

grandes desplaziamentos han sido de

norte a sur, pero no al revés; y no

tenemos registro de que alguna vez

haya existido, como tanpoco hoy

existe, un solo caso de civilización

intertropical (WALLACE Apud.

ARNOLD, 2000: p. 32).

Ainda no século XIX,

naturalistas, antropólogos,

historiadores e geógrafos,

reformularam as ideias da influência

do meio ambiente sobre o homem,

de maneira a satisfazer os

imperativos de uma nova era

imperial. Esse novo imperialismo,

combinado às ideias de darwinismo

racial, evolucionismo, positivismo,

naturalismo, entre outras teorias,

que segundo Schwarcz (SCHWARCZ,

1993: p. 28), foram popularizadas

nessa época justamente para

fomentar as práticas imperialistas,

empurraram as ideias do papel do

meio na conformação do homem em

proeminências excepcionais, como

diz Arnold, entre os anos 90 do

século XIX e o início do século XX

(ARNOLD, 2000: p. 34).

Tudo isso também pulula e

perturba nossos homens de letras e

ciências preocupados com os futuros

da nação, afinal, estaria o Brasil

condenado devido ao seu clima

tropical e sua população, formada

por parcela expressiva de negros,

índios e mestiços, povo que,

respeitados cânones vigentes da

ciência oitocentista, estariam fadados

a desaparecer perante raças

superiores, notadamente europeias?

E nesse ponto, clima e raça

convergem para um mesmo ponto,

afinal, como dissemos, eram as raças

inferiores, menos capazes,

justamente aquelas oriundas dos

trópicos, que, segundo a tradição

europeia, foram forjadas sob o signo

da preguiça, do sensualismo e da

debilidade moral que os trópicos

proporcionavam. Mesmo quando o

centro da análise estava calcado na

raça, e não no clima, esse último

elemento não deixava de atuar, pois,

245

se as consideradas raças inferiores

poderiam ser culpadas como

responsáveis pelas mazelas do Brasil,

os trópicos podiam ser culpados

pelas mazelas dessas raças.

Assim, ao analisar ao analisar

a presença do clima ou da natura

tropical no contexto da identidade

nacional brasileira no século XIX,

elemento tão recorrente na

historiografia, devemos ter como

ponto de partida esse paradigma que

norteou o pensamento de nossos

pensadores oitocentistas, no qual o

bem e o mal andariam lado a lado,

no qual o progresso era um sonho

possível, e o fracasso era uma

realidade palpável, no qual os

trópicos reais poderiam ser muitos

mais feios e tenebrosos que aqueles

difundidos pelos primeiros viajantes e

colonizadores que aqui estiveram,

mas que também poderiam ser muito

mais promissores que aqueles

trópicos pregados pelos teóricos

setecentistas da Ilustração.

No entanto, vale ainda

ressaltar que o conceito de clima no

século XIX, apesar de guardar

semelhanças com o conceito de clima

dos dias de hoje, não era exatamente

o mesmo. Se buscarmos nos atuais

manuais de geografia o que significa

clima, encontraremos uma definição

que diz que o clima é o conjunto de

condições meteorológicas

(temperatura, pressão atmosférica,

umidade, regime de ventos e chuvas,

insolação, entre outros fatores) que

caracterizam o estado médio da

atmosfera em um determinado ponto

da superfície terrestre (OLIVEIRA,

1980: p. 73; GEORGE, 1991: p. 118;

DANNI-OLIVEIRA, 2007: p. 14-15).

No entanto, até o início do

século XIX, podemos dizer que a

definição de clima era menos ampla,

ficando restrita às diferenças de

temperaturas nas diferentes regiões.

Entretanto, a partir dos estudos de

Humboldt, percebemos que o

conceito de clima ganhou

semelhanças com o que conhecemos

hoje, pois passou a considerar outros

fatores como seus componentes.

Como nos traz Sandra Caponi,

segundo o conceito de Humboldt, “o

clima é a reunião de condições

atmosféricas e meteorológicas que

tem uma ação geral e constante

sobre os seres organizados”

(CAPONI, 2007: p. 18).

Assim, falar de clima, segundo

Humboldt, era falar das variações

atmosféricas como a temperatura, a

umidade, a pressão atmosférica, a

pureza do ar, os miasmas, entre

outros fatores, existindo uma série

de elementos que exerciam influência

direta sobre as variações climáticas,

tais como a proximidade com os

astros e satélites, o magnetismo

terrestre, e a ação de vulcões, além

dos acidentes geográficos, tais como

a presença de golfos, pântanos e

montanhas, que como assinala Jean

Boudin - naturalista francês que se

utilizava dos conceitos de Humboldt -

, também atuavam sobre o clima

(CAPONI, 2007: p. 18).

A noção de Humboldt então,

que ampliava o conceito de clima,

ganhou força nos oitocentos (SAINT-

HILAIRE, 1835: p. 116; BOUDIN,

1857: p. 217), e também entre os

intelectuais brasileiros do século XIX

- signatários fiéis dos ensinamentos

do naturalista germânico, que fazia

parte, inclusive, dos quadros do

Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, uma dos mais destacados

lugares de produção da história e da

246

identidade nacional nesse Brasil

oitocentista -, e foi se sobrepondo às

conceitualizações que pregavam o

clima unicamente como mudanças de

temperatura.

Conclusão

Dessa maneira, podemos

concluir que o clima tropical serviu

como elemento no qual se calcou

uma identidade nacional para o

Brasil, no entanto, ao analisarmos

esses trópicos, devemos levar em

consideração que havia toda uma

história do clima tropical a ser levada

em conta, que invariavelmente,

percorriam as mentes e os escritos

daqueles que se engajavam na

construção de uma identidade

nacional para o Brasil, no século XIX.

Assim, havia todo um

paradigma tropical em questão, que

ora era marcado pela exaltação dos

trópicos, e ora por sua detratação, e

que acabaram por estar na base da

formação da própria identidade

nacional brasileira, que marcou o

Brasil como um lugar belo, quente e

lindo, mas cheio de problemas, e

habitado, em grande parte, por

pessoas mais dadas aos prazeres da

vida fácil do que propensas a inserir

o Brasil em um mundo realmente

civilizado.

Bibliografia

BOUDIN, Jean. Traité de geographie et de statistique médicale. Paris: Baillières,

1857.

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogo das Grandezas do Brasil. Rio de Janeiro:

Dois Mundos Editora, s.d.

BRESCIANI, Maria Stella Martins. O Charme da Ciência e a Sedução da

Objetividade: Oliveira Vianna entre Intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora

UNESP, 2007.

CAPONI, Sandra. “Sobre la aclimatación: Boudin y la geografia médica”. In.

História, Ciência, Saúde: Manguinhos. V.1. n.1 (jul-out. 1994) - Rio de Janeiro:

Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, 2007.

CARDIM, Fernão. Tratado da Terra e gente do Brasil. São Paulo: Cia. Editora

Nacional-MEC, 1978.

COLOMBO, Cristóvão. Diários da Descoberta da América: as quatro viagens e o

testamento. L&PM: Porto Alegre, 1984.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. A Primeira história o Brasil: história da Província

Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 2004.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil – História a Província

Santa Cruz. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

GEORGE, Pierre. Diccionario de Geografia. Madrid: Akal Ediciones, 1991.

GERBI, Antonello. O Novo Mundo – História de uma polêmica 1750 -1900. São

Paulo: Cia das Letras, 1996.

GLACKEN, Clarance. Traces on the Rhodian Shore: Nature and Culture Western

Thought from Ancient Times to the End of the Eighteenth Century. Berkeley,

1967.

HUE, Sheila Moura. Primeiras Cartas do Brasil (1551 – 1555). Rio de Janeiro:

Jorge Zaluar, 2006.

247

LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Ed. da Universidade de São

Paulo, 1980.

MELLO E SOUZA, Laura de. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos

XVI-VXIII. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993.

MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e

religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Cia. Das Letras, 1986.

MENDONÇA, Francisco & DANNI-OLIVEIRA, Inês Moresco. Climatologia: Noções

Básicas e climas do Brasil. São Paulo: Oficina de Textos, 2007.

NAXARA, Márcia Regina Capelari. Sobre o Campo e a Cidade - olhar, sensibilidade

e imaginário: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX.

Campinas: [s.n.], 1999.

OLIVEIRA, Cêurio de. Dicionário Cartográfico. Rio de Janeiro: IBGE, 1980.

PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões: A cultura sexual no Brasil

contemporâneo. São Paulo: Editora Best Seller, 1991.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Alegres trópicos: Gonneville, Thevet e Lery” In.

Revista USP. São Paulo: USP,CCS, 1989.

PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Salvador: Livraria

Progresso Editora, 1950.

PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no Século XIX: Tramas, Telas e

Textos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

SAINT-HILAIRE, Isidore Geoffroy. Acclimatation et domestication dês animaux

utiles. Paris: Libraire Agricole de la Maison Rustique, 1834.

SANT´ANNA NETO, João Lima. “História da climatologia no Brasil: Gênese e

Paradigmas do clima como fenômeno geográfico”, In. Cadernos

Geográficos/Universidade Federal de Santa Catarina. Nº 1. Florianópolis:

Imprensa Universitária, 1999.

SCHIAVINATTO, Iara Lis. “Imagens do Brasil: Entre a natureza e a História” In

JANCSÓ, Istvan. Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: HUCITEC;

Ed. Unijuí; Fapesp, 2003.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e

questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Cia. Das Letras, 1993.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras

dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Cia. Das Letras, 2008.

VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no

Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: História Cultural e Polêmicas literárias no

Brasil 1870 – 1914. São Paulo: Cia. Das Letras, 1991.