ORIDES FONTELA - Armadilhas do tempo: fios de uma teia poética
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ARMADILHAS DO TEMPO
[FIOS DE UMA TEIA POÉTICA]
Fátima Maria da Rocha Souza
Fortaleza - Dezembro / 2004 -
UFC
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Fátima Maria da Rocha Souza
Armadilhas do tempo
[fios de uma teia poética]
Dissertação apresentada à Coordenação
do Programa de Pós-Graduação em Letras
(Mestrado), do Departamento de
Literatura, do Centro de Humanidades, da
Universidade Federal do Ceará (UFC),
como parte dos requisitos para obtenção
do título de Mestre em Literatura
Brasileira, sob a orientação do Prof. Dr.
André Monteiro Guimarães Dias Pires.
Fortaleza, 17 de dezembro de 2004
UFC
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Armadilhas do tempo
[fios de uma teia poética]
_________________________________
Fátima Maria da Rocha Souza
Aprovada em: 17 / 12 / 2004
Comissão Examinadora
________________________________
Prof. Dr. André Monteiro Guimarães Dias Pires
(Orientador – Presidente da Comissão – UFC)
_________________________________
Profª. Drª. Odalice de Castro e Silva
(1ª Examinadora – UFC)
_________________________________
Prof. Dr. Alexandre Almeida Barbalho
(2º Examinador – UECE)
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Dedicatória
“Aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida m orna e tola que nos é
oferecida e alardeada como a única possível, desejá vel e saudável esconde
outras tantas. Cuja beleza e reinvenção cabe reinve ntar”.
(Peter Pal Pélbart, 1993:13)
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Agradecimentos
Ao imenso amor, carinho e dedicação das minhas famílias Rocha, Souza e Dei
Ricci, garantia de alegria em cada momento da trajetória.
Meus pais e minha irmã, amores incondicionais e sem distância.
Maria Eduarda, por todas as lições e todos os gestos.
Minha família de amigos por afinidades eletivas, afetividade intensa nessa ponte
Niterói – Fortaleza.
Tânia Lima e Eduardo Jorge, amigos em rima.
Leda Freitas e Ticiana Melo, por doçura e traduções.
Solange Kate e Cibele Bisou, pelas dicas preciosas.
Rosângela Porto, por me garantir o arco-íris.
Possidônio Montenegro e Andréa Bardawil, por me ensinarem a “habitar o
invisível” através de “delicadezas e súbitos chegares”, e a todo o Núcleo de Dança
do Alpendre com quem aprendi o silêncio.
Alexandre Veras, pelo raro exemplar de Trevo sem o qual não teria desenvolvido a
minha pesquisa.
Cinda Gonda, Sarah Diva Ipiranga e Manoel Ricardo de Lima,
mestres de literatura e vida.
Orlando Araújo,
pelo início da trajetória em “círculo”.
À Capes pela bolsa de pesquisa.
Aos amigos e professores do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Letras da
UFC,
pelo incentivo.
Adriano Alcides Espínola,
pela produtiva orientação durante a caminhada.
Ao meu afetuoso orientador, André Monteiro,
por aceitar andar de mãos dadas.
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Resumo
Armadilhas do tempo é uma travessia lúdica pela obra poética de Orides
Fontela. As nuances dessa armadilha dividem-se em três movimentos. Laço
mostra o tempo da escritora através da produção de seus livros. Logro astucioso
verifica o lugar de embate com a linguagem e o movimento lúdico de construção e
desconstrução, em que ela propõe despedaçar um mundo para adquiri-lo múltiplo.
Por fios filosóficos, a armadilha torna-se gozo adquirido através da habilidade em
enganar. Caímos no alçapão . Esculpir o tempo com Orides nos permite fabricar
teias no emaranhado de um mundo veloz que nos captura a todo instante e tem a
capacidade de transmitir, a cada momento, afetos tristes. Contra esse processo,
pensar o estado de atenção como saída estética, de estilo, para potencializar
subjetividades de um leitor em ação.
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Resumée
Armadilhas do tempo – ou Les pièges du temps – est une traversée ludique
à travers l´ouvre poétique d´Orides Fontela. Les nuances de ce piège se divisent
en trois mouvements. Lien montre le temps de l´écrivain à travers la production de
ses livres. Tromprerie astucieuse vérifie le lieu du confront avec le langage et le
mouvement ludique de construction et démolition, dans lequel elle se propose à
déchirer un monde pour en acquérir un autre, múltiple. Par des fils
philosophiques, le piège devient une jouissance grâce à l´habilité de tricher. On
tombe dans la trappe . Sculper le temps avec Orides nous permet de fabriquer des
toiles dans le reseau d´un monde rapide qui nous capture à tout instant e qui a la
capacité de nous transmettre, à chaque moment, des affections tristes. Contre ce
processus, penser l´état d´alerte comme une issue esthétique, pour activer des
subjectivités chez le lecteur en action.
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Sumário ou a fazedura da armadilha
1. laço : gestos mínimos 11
1.1. primeiro movimento 12
1.2. segundo movimento 26
2. logro astucioso : ludismo 54
2.1. mãos 59
2.2. gestos textuais 67
2.3. gestos da memória 69
2.4. memória de esquecer 74
3. alçapão : esculpir o tempo 80
3.1. há um tempo... 81
3.2. tempo da consciência 97
3.3. tempo da loucura 138
4. bibliografia : habitando o tempo 148
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Armadilhas do tempo
[fios de uma teia poética]
Roberta Dabdab / Folha Imagem
Com o espírito da brincadeira,
uma homenagem à escritora Orides Fontela,
“que amava os gatos que descansam com os olhos aber tos”.
(Fernando Nasser)
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Epígrafe
Tempo1 é criança brincando, jogando; de criança o reinado.
Heráclito
Fragmento 52
1 No grego Aiôn, um nome próprio, de uma entidade alegórica, filho de Cronos e “Filira”.Por outro lado há dois sentidos de aiôn como nome comum: o primeiro é o de “tempo sem idade, eternidade”, que posteriormente se associou ao aevum latino: o segundo é o de “medula espinhal, substância vital, esperma, suor”. A entidade alegórica pode consistir nos dois sentidos. (Os pré-socráticos, 1989).
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1. laço : gestos mínimos
INICIAÇÃO
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
se o dia é todo estranheza
submete-te
- és infinitamente mais estranho.
Orides Fontela
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chegadas...
1.1. primeiro movimento
Armadilha: laço, engenho ou artifício para apanhar qualquer animal.
Um caminho. Uma trilha para ele. Uma armadilha por meio da qual
descobrimos a obra da escritora Orides Fontela. Através da palavra, Orides lança
o corpo para experimentar o real, trabalhar o instante dos acontecimentos, e
estabelece, a partir do tempo da poesia, uma busca pela palavra exata que
traduza o sentimento íntimo humano, a solidão existente entre o sujeito e o
mundo. Experimentar o real, verdadeiro acontecimento: aquilo que acontece no
presente, no puro ato, podendo acontecer numa movimentação silenciosa, toque,
viva sensação.
inútil a ternura pelo leve
momento a desprender-se do infinito:
frágil, a construção do tempo é morte
do que se atualiza. Mais fecundo
é secundar o pássaro buscando
o momento possível, vôo pleno.
Mais fecundo é voar. Mas a ternura
(este pássaro morto abandonado
como forma perdida de nós mesmos)
nos alimenta em sua sombra. Torna-nos
em sombras sem alento. E sofremos
como pássaros frágeis: desprendidos
do vôo pleno nos cristalizamos
realizando a morte em que vivemos.
(4-4-67)
(Fontela, 1988, p. 250)
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Orides inquieta como metal frio e cortante, suas palavras são pura
crueldade. Os signos explodem em movimentos contrários como nesse soneto de
1967. A forma rígida, contraposta aos significados velados das palavras, aparece
recompondo imagens caleidoscópicas como a ternura que passa a ser inútil
porque torna-se sombra, e como pássaro morto que alimenta sofrimento.
Enquanto nos contentamos em não voar, vivemos mortos. E assim construímos
um tempo que é morte do que se atualiza. Então, como giro caleidoscópico que
propõe, a escritora recorta o tempo e arma com ele suas armadilhas. Lança-nos
armadilhas e nos arma. Reparar nessas armas é nossa função: leitores.
Alguns escritores, como Orides Fontela, são desses que nos alertam, não
se entregam ao sono; praticam um “estar fora de casa, e contudo sentir-se em
casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e
permanecer oculto ao mundo...” (Baudelaire, 1996, p.20)
Estar no centro pode parecer dizer de Orides assim: nasceu Orides de
Lourdes Teixeira Fontela2 em 21 de abril de 1940, em São João da Boa Vista. Era
filha de um operário e uma dona de casa e começou a escrever desde criança,
sendo que, com o passar dos anos, ganhou fama em sua terra a ponto de adquirir
aura de poeta municipal. Seu interesse pela filosofia levou-a à USP, onde concluiu
o curso em 1972. Trabalhou também como bibliotecária da Escola Municipal
Professora Marisa de Melo, na vila Aricanduva, zona leste de São Paulo. Viveu
mergulhada entre os livros e aprendeu a extrair deles o silêncio, o que se tece a
partir desse vazio, dessa transparência, do que se faz invisível e que corta, recorta
2Seus quatro primeiro livros, Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), foram reunidos no volume Trevo (1988), traduzido para o francês e publicado em dois volumes com o título Trèfle. Com as traduções realizou um grande sonho de criança. Dois anos antes de morrer, nos presenteou com Teia (1996). Seus livros, há muito esgotados, tem reedição programada pela Editora 34. Publicou: Obra poética: Transposição, Instituto de Espanhol da Universidade de São Paulo (USP), 1969; Helianto, Duas Cidades, SP, 1973; Alba, Roswitha Kempf Editores, SP, 1983 (Prêmio Jabuti); Rosácea, Roswitha Kempf Editores, SP, 1986; Trevo, 1969-1988, Coleção Claro Enigma, Duas Cidades: SP, 1988 (coletânea dos livros anteriores); Teia: poemas, Geração Editorial, 1996 (Prêmio APCA); Uma - despretensiosa – minipoética, na revista Cultura Vozes, número 1, janeiro – fevereiro de 1977, ano 91, volume 91. Prosa: Almirantado, no Almanaque, número 4 (Cadernos de Literatura e Ensaio), SP, 1977. Colaborou com revista Cultura Vozes e com O Estado de S. Paulo. Publicou poema na revista portuguesa Anto, em Amarante, Portugal, número 2, 1998. Quando da revisão dessa dissertação em julho de 2006, houve a publicação de sua Poesia Reunida (1969-1996) São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
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e preenche o instante. Silêncio fundamental que as palavras, nuas e cruas,
estabelecem para pensar o ser humano em sua mais profunda densidade. Tudo
isso transpôs para a sua poesia, através da secura de seus versos, de forma dura
e densa. Afinal, como ela mesma dizia, "nossa época é terrível, somos poetas em
tempo de desgraça". Orides viveu sempre em meio a grandes dificuldades.
Sempre com os nervos à flor da pele, meteu-se em encrencas e provocou
escândalos com seus melhores amigos. Boêmia e depressiva, várias vezes tentou
o suicídio, o que resultou no falecimento precoce aos 58 anos.
Mas há um outro sentido para centro que, pensado círculo, pode adquirir
um movimento, o da espreita. Pelo Aurélio: centro, círculo; movimento de rotação:
aquele que um corpo efetua em torno de um ponto situado no seu interior, ou
ainda, movimento infinito, conceito da física: o de um sistema de partículas em
que a energia é constante e as coordenadas de uma ou mais partículas podem
assumir valores infinitos. Prefiro privilegiar a energia, as partículas e os valores
infinitos.
O meu contato com Orides se deu foto, capa estranha de Teia, poemas
folheados, livro aberto em “círculo”. Minhas suspeitas aumentaram com aquela
capa, esquisito cosmos que cedeu, depois de um tempo, lugar ao caosmos. As
leituras de Metaformose, de Paulo Leminski me provocaram um passeio pelo
pensamento grego entre metamorfoses, parricídios e mortes que se atualizam
numa mesma vida. E lembro que Orides dizia do “círculo” assim:
O círculo
é astuto:
enrola-se
envolve-se
autofagicamente.
Depois
explode
- galáxias! -
abre-se
vivo
pulsa
multiplica-se
divindadecírculo
perplexa
(perversa?)
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o unicírculo
devorando
tudo.
(Fontela, 1996, p. 59)
Guardei bem: dizer de Orides é melhor assim, que nos envolve, ao mesmo
tempo nos arrebata, nos desloca, nos faz um convite sempre: voltar várias vezes
ao jogo, atentando para novas dimensões e sentidos que a vida toma a partir das
possibilidades da linguagem, de seus segredos. Posições em xeque: círculo,
centro e divindade. Mas divindade que perversa se permite perplexidades e
devorações, pois autofágica. Dizer dela viva, pulsante, multiplicada, galáxias. Sua
vida arrebatada, impulsiva, e sua dicção, sua poesia, concisa. Melhor.
Nesse momento em que consideramos o percurso, o embate com a leitura
de sua obra, como uma armadilha, preferimos dividir as partes desse enlace
entendendo a feitura da própria armadilha muitas vezes tida aqui como teia.
Momento primeiro é o laço, em que ele se faz engenho, cilada ou mesmo
armadilha para apanhar qualquer animal. Movimentos vibrantes de atenção para
encontrar uma saída.
Desse modo, devemos pensar alguns conceitos com minúcias. Trabalhar
com a palavra “ser” nos faz pensar em seu sentido latino, que vem do verbo
sedere¸ sentar-se. Preferimos entender o ser não como acomodação que o radical
em primeira instância pode sugerir. Não a existência tomada num sentido fechado,
baseada na idéia de uma essência como algo intocável ou inatingível, mas o que
implica constante mudança, o tornar-se com a acepção de produção de múltiplos
sentidos, inesperados, próprio daquele que em sua “existência” se lança, arrisca,
permite achar-se outro. Pode, ainda, tomar um outro sentido mostrado pelo
dicionário Aurélio que vai de encontro à temática com a qual trabalhamos:
“empregado sem sujeito, indica o ponto ou o momento do tempo, a estação, a
época.” Tempo oportuno, movimento de fazimento-desfazimento.
Própria da leitura que fazemos de sua poesia é essa proposta de
construção e desconstrução que aparece no poema "Ludismo" onde Orides
sugere que
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(...)
quebrar o brinquedo
é mais divertido.
As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
(...)
Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
(...)
Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.
(Fontela, 1989, p. 19)
Propondo despedaçar um mundo para adquiri-lo múltiplo, a escritora brinca
com o sabor e o saber do real possível em sua multiplicidade. A desconstrução
passa pela ação considerada manifestação de uma força, de uma energia, de um
agente, propondo um movimento, funcionamento e atitude. Pensando pelo viés da
filosofia, a ação passa a ser processo que decorre da natureza ou da vontade de
um ser, o agente, e de que resulta criação ou modificação da realidade. O
percurso é o curso desse processo; atividade, resultado ou efeito desse processo.
Sua poesia é calcada na palavra. Essa palavra que é real e nos fere, que
se reinventa, repelindo o "cantoflorvida", renasce perpétua contra a
automatização, num "universofluxo" que nos obriga a parar o tempo. Um viver
denso, de excessiva vivência, sangrado, esculpido, despedaçado, lúcido, ferido,
marcado, tramado e nunca desgastado mas multiplicado. Através do jogo, Orides
nos indaga sempre sobre este mundo e particularmente sobre o nosso, como o
preenchemos e o elaboramos. E nos mostra várias perspectivas, brincando com a
palavra tempo em seus poemas.
O livro Teia traz uma epígrafe de Espinoza: “Todas as grandes coisas são
difíceis e raras”, ao lado de um verso próprio da escritora “A lucidez alucina”. Ser
difícil e rara não implica a impossibilidade de conhecer algo, embora tenhamos de
dar a volta completa por um determinado aspecto que queremos conhecer. Nesse
ponto de conhecer por completo, lançando-nos na descoberta, corremos o risco
de lucidamente perder o uso do entendimento e, então, nos alucinarmos. Acordar,
penetrar e vigiar, estarmos vigilantes, atentos a. O destino não está pronto, tem de
ser elaborado como solução para que possamos penetrar o tempo, nos inserirmos
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nele e apreendermos por instante uma habitação. O destino não necessariamente
pressupõe um futuro distante, mas um novo presente.
Estar atento pode ser estar pronto para compreender o devir e a
intensidade ao mesmo tempo. É, por um instante, ser capaz de afetar-se. Sendo o
nosso tempo baseado na aceleração da vida através de seus supostos projetos
produtivos, faz-se necessário encontrar uma poética que nos permita alcançar um
outro tempo, aquele que, descoberto e desvendado por nossa vivência, consiga
atingir um pensamento em torno da delicadeza, da sensibilidade e da dignidade de
viver. Reflexão a partir da linguagem, pensamento como exercício de filosofia, vida
através da poesia.
Comentando sobre a originalidade do sentimento dado à conjunção “e”
quando Espinoza relaciona alma e corpo, Deleuze evidencia as relações, variável
o nível de potência, que os indivíduos mantêm uns com os outros e a capacidade
de serem afetados por isso:
Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem
nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos
tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar
em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria). Espinoza está sempre se
surpreendendo com o corpo. Ele não se surpreende de ter um corpo, mas
com o que o corpo pode. Os corpos não se definem por seu gênero ou sua
espécie, por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos
afetos dos quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação. Você ainda
não definiu um animal enquanto não tiver feito a lista de seus afetos. (...)
sempre se tem os órgãos e as funções que correspondem aos afetos dos
quais se é capaz. Começar por animais simples, que têm somente um
pequeno número de afetos, e que não estão em nosso mundo, nem em um
outro, mas com um mundo associado que souberam talhar, cortar,
recosturar: a aranha e sua teia, o piolho e o crânio, o carrapato e um canto
de pele de mamífero, eis os animais filosóficos e não o pássaro de
Minerva. Chama-se sinal o que desencadeia um afeto, o que vem efetuar
um poder de ser afetado: a teia se agita, o crânio se dobra, um pouco de
pele se desnuda. Nada a não ser sinais como estrelas em uma noite negra
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imensa. Tornar-se aranha, tornar-se piolho, tornar-se carrapato, uma vida
desconhecida, forte, obscura, obstinada. (Deleuze, 1998, p. 73)
Definir os corpos pelos afetos, privilegiando essa capacidade de ser
afetado, enquanto conhecer algo implica envolver-se na feitura de uma lista de
afetos. Na complexidade dos animais simples, minuciosas mas potentes ações: a
recostura, o corte e o talho. Quase imperceptíveis, provocam um desdobramento
do olhar em ver e reparar, fazer isso com os impulsos potentes do piolho, da
aranha e do carrapato, por exemplo. A percepção do afeto é marcada por um sinal
que desencadeia, desdobra, desmonta o tecido, visto que “a teia se agita, o crânio
se dobra, um pouco de pele se desnuda”. Sinais como as “estrelas em uma noite
negra imensa”, ou no dizer provocador de Orides, em “um céu estrelado dentro de
mim”.
No poema "Teia" de seu último livro homônimo, há uma ruptura com o
sentido imediato das coisas, pois interessa uma outra teia que não esperada, além
da idéia trabalhada de armadilha. Embora o fazimento-desfazimento esteja
imediatamente associado a um sentido tátil, é o olho que vê despertando o estado
da atenção através do recorte, do enquadramento que faz.
Nesse poema a linguagem é condensada, a idéia é espremida em imagens
simbólicas, aqui cada palavra tem a força da imagem.
A teia, não
mágica
mas arma armadilha
a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente
a teia, não
arte
mas trabalho, tensa
a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:
no
centro
a aranha espera.
(Fontela, 1996, p. 13)
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Durante nossa vivência com a poesia de Orides, utilizamos todo o material
que íamos aos poucos encontrando entre artigos de jornais e revistas
especializadas em literatura da época em que ela produziu sua obra literária, bem
como dissertações de mestrado, depoimentos e entrevistas concedidos pela
própria escritora.
Receber esses dados gerou a idéia de trabalhar sob uma perspectiva
gestual, aquilo que representando um simples ato de estender a mão ao outro em
gestos mínimos, nos fala de encontros que vão da escrita à leitura solitária entre
pesquisadores, leitores e talvez, como queria Orides Fontela, entre amigos. Numa
entrevista concedida à escritora Marilene Felinto para a revista Marie Claire de
setembro de 1996, revela sua intenção poética em relação à amizade: “Meu
círculo de relações está muito pequeno. Uma das coisas que eu pensei que podia
conseguir com a poesia era ter mais amigos.”3
Nesse sentido, aparecem como diálogo as influências de leituras, potentes
influências. Pequenos percursos, passagens obrigatórias a fazer parte de uma
trajetória.
Não demorou muito para que a escritora Orides Fontela ganhasse ar de
poeta municipal e fosse respeitada por isso a ponto de mudar-se rapidamente da
cidade de São João da Boa Vista para a cidade de São Paulo. Com ajuda e
orientação de seu conterrâneo Davi Arrigucci Jr., seus planos de seguir a carreira
de magistério ganharam a dimensão universitária e a certeza de querer cursar
filosofia. Tempos áureos da década de 70 no curso da USP, em que Orides
participou mais das conversas e do diálogo que se instaurava entre os estudantes
do que do combate que também se estabelecia contra os planos do cenário
político do país.
3 Gostaria de ressaltar a dificuldade de pesquisar em material (revistas e jornais) antigos, principalmente os artigos publicados em jornais locais que não circulam nacionalmente. Para nossa consulta, buscamos a biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa e a Biblioteca Nacional – setor de periódicos e microfilme – ambas situadas no centro do Rio de Janeiro. A Biblioteca Nacional recebe grande parte desse material mas nem sempre disponibiliza cópias microfilmadas, tendo de ser feita consulta local em originais. No nosso caso, por dificuldades de pesquisa, muitas vezes não foi possível copiar o número da página referente ao artigo mencionado.
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Dessa forma acabou conhecendo e influenciando-se, como cita em
depoimento para o livro Artes e ofícios da poesia, pela leitura de mundo de Vilém
Flusser (1920-1990), durante a moradia dele no Brasil. O período em que
freqüentou os cursos desse pensador, Orides considerou como passagem da sua
fase pré-literária para a escrita de seus livros.
Em artigo para a revista Gesto, de dezembro de 2003, o pesquisador
Charles Feitosa afirma que poucos conhecem o filósofo de origem tcheca, que
morou e ensinou, entre 1940 e 1972, em São Paulo e tem uma vasta obra sobre
literatura, fotografia, tecnologia, mídia, política e cultura. A influência mais
marcante do filósofo, que lecionou durante três décadas no Brasil, para Orides
Fontela, vem do livro Língua e Realidade:
…descobri que, há tempo, não era mais entendida municipalmente.
O que houvera? Que influências? Creio ter citado todas mas ainda falta
Vilém Flusser (Língua e realidade). Besteira ou não, que
deslumbramento ! Desta alimentação aleatória e autodidata, destas
intuições e vivências “algo” ia nascendo. Falta reconhecer, selecionar,
assumir. (Massi, 1991, p. 258)
A nosso ver, o deslumbramento ocorre devido a uma afinidade entre
temáticas e perspectivas trabalhadas. Enquanto estamos lendo Língua e
realidade, acreditamos, por instantes, estar ouvindo a voz de Orides como pano
de fundo. Vilém Flusser procurou trazer para o estudo meticuloso o aspecto
mágico da língua na qual era estrangeiro. Dessa forma, partindo de uma leitura
ontológica, procura trazer novos recortes e sentidos para a língua que forma e
governa o pensamento, provocando o pensamento e ampliando a conversação,
tanto para o conceito de verdade como para o de realidade que a língua forma,
cria e propaga.
Segundo o estudioso, em outro livro Gesten, o autor “nos convida a
reavaliar nossos movimentos corporais, majestosos ou cotidianos, para
redescobrir seu potencial expressivo.” (Feitosa, 2003, p. 15)
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Os nossos gestos, tanto os concretos como os abstratos, trazem como
conseqüência uma gestação de idéias e também dos seres. Nesse sentido, é
fundamental pensar sobre os nossos gestos cotidianos, as alterações mínimas
capazes de produzir. Para Charles Feitosa, o livro é exemplo de “filosofia pop”,
uma vez que “tem como principal característica a recusa de qualquer delimitação
absoluta entre o que é supostamente filosófico e o que não é (...) sabe descobrir
profundidade mesmo mantendo-se na superfície”. (idem) Assim chega a
questionar a existência partindo das gesticulações na superfície da vida cotidiana,
pois a “existência humana consiste em fazer gestos e ser continuamente “gestada”
por eles.” (idem)
Ainda sobre esse livro, Charles Feitosa explica o que viria a ser
considerado gesto para Flusser. Ou melhor, que categorias ele cria para os
gestos. Diferenciando-as, chegamos à noção de distintas formas de vida.
Segundo a teoria de Flusser, há quatro categorias principais de
gestos: os comunicativos (gestos dirigidos aos outros, como o aceno ou a
continência); os de trabalho (dirigidos a algum material a ser modificado,
como cozinhar ou consertar um relógio); os ritualísticos (uma
submodalidade dos gestos de trabalho, só que voltados para uma
alteração no próprio gesticulador, como o ato de ler ou de viajar); e, enfim,
os desinteressados (gestos que não se dirigem a nada específico, a não
ser a sua própria realização, tais como certas brincadeiras de criança –
pular no mesmo lugar – ou ainda as artes em geral). A classificação
permite a distinção entre três formas de vida, também esquemática: a vida
comunicativa , a vida ativa (frente ao mundo ou frente a si mesmo) e a
vida artística . (Feitosa, 2003, p. 15, grifos meus)
Dividindo os gestos em categorias, Flusser nos diz que essas quatro
categorias alteram nosso olhar, é a seleção que o olho proporciona, o recorte que
permite, o enquadramento. Tanto é assim que diz de um novo suporte ou de uma
atenção voltada a um esquema que monta a partir da seleção feita anteriormente.
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E nos importa recortar dentro da sua fala essa “vida ativa”, perspectiva que explica
ser frente ao mundo ou a si mesmo.
Refletindo mais detidamente sobre os nossos gestos cotidianos, acabamos
nos surpreendendo com o que intencionamos e com o que realmente praticamos.
Orides tem um poema que, a nosso ver, nos ajuda a dialogar com a intenção de
Vilém Flusser. Deixa-nos, ela, uma “notícia”:
não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão.
(Fontela, 1988, p. 41)
Antes de chegar à categoria de “vida artística”, nos gestos desinteressados,
voltamos à “vida ativa” e aqui queríamos inserir a solidão do náufrago, esse
sobrevivente a si mesmo. No tempo interno, é sozinho que se coloca em
gramíneo terreno porque há o trabalho do talho, não é uma solidão
transcendente, mas um labirinto, um viver individual em rumos, caminhos,
descobertas e descobertas em silêncio.
Seguindo o pensamento de Flusser, entendemos que muitos gestos
despretensiosos não passam de uma intenção de submetê-los à existência
humana como, por exemplo, o gesto de plantar, pacífico e violento, uma vez que
“obrigamos a natureza a trabalhar para nós e contra si própria.” (Feitosa, 2003, p.
15)
[..] Mas, o que seria uma relação mais afirmativa com a natureza?
[...] Na caçada não se espera, espreita-se. [...] Quem caça se expõe a
riscos, se submete às leis e mistérios inerentes à natureza, podendo
eventualmente se tornar uma presa também.
Trata-se de “reaprender a olhar um gesto tão comum e banal.”
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A ordem e a disciplina no próprio corpo refletem uma ideologia que
tenta impor ordem e disciplina no real.
A observação desse gesto (fazer a barba, por exemplo) serve de
pretexto para um questionamento acerca de fenômenos emergentes da
cultura contemporânea, como a ecologia ou o urbanismo.
Para o autor de Gesten uma das tarefas de uma filosofia no
cotidiano é investigar se a ecologia e a engenharia social, como têm sido
praticadas, não permanecem gestos tão cosméticos como o de fazer a
barba, na medida em que insistem em trabalhar apenas na e para a pele,
quer dizer, em construir e manter muros divisórios na existência.
O que há de comum entre dançar e inalar o fumo do tabaco é que
ambos são gestos cuja única finalidade é não ter fim, gestos que não
promovem diretamente uma transformação do mundo ou do gesticulador,
que nada informam ou comunicam; enfim, que se esgotam na sua própria
realização. (Feitosa, 2003, p.17)
Com gestos desinteressados de uma produção e mais atentos aos
movimentos, experimentamos a vida, resistimos. A diferença está na atitude, em
que a intenção não é provocar grandes mudanças no mundo mas senti-lo vibrante,
pulsante, vivo. Assim descobrem-se e instauram-se novos prazeres repensando
os gestos úteis, e nos tornamos desejantes. Instaurando novos prazeres,
alimentamos o desejo, premissa que costuma ser pensada ao contrário, como nos
impõe a imagem da propaganda: primeiro aciona um desejo no espectador, pois
promete a ele um prazer que, ao invés disso, acaba sendo substituído por uma
certa frustração. Nessa inversão, a garantia do viver ao invés de simplesmente
sobreviver.
O objetivo do rito não é mudar o mundo. Quanto mais um rito é um
gesto cuja finalidade está em si, mais ele pertence à “vida estética”. O rito
de fumar cachimbo é, para Flusser, um gesto artístico como o do pintor ou
do dançarino. Fumamos cachimbo ou dançamos por prazer, ou melhor,
pelo prazer específico de poder interromper os gestos úteis. Quando
24
fumamos cachimbo ou dançamos, estamos “vivendo a vida” em vez de
apenas “sobre-viver”.
Cada vez mais a atividade artística é vista exclusivamente como um
gesto de trabalho, com o qual se procura instaurar uma obra, realizar uma
performance, transmitir uma mensagem, expressar uma emoção ou causar
sensações. O aspecto mais essencial da arte é, segundo Flusser, a
possibilidade da descoberta de si: “É somente no gesto de tocar um
instrumento, de pintar, de dançar, que o músico, o pintor e o dançarino
experimentam quem são e como são.” Então, dançar e fumar cachimbo
são atos de resistência contra uma vida baseada apenas na utilidade
racional e duas das muitas formas possíveis de experimentar a “dor e a
delícia” de tornar-se o que se é. (Feitosa, 2003, p. 23)
Valorizando os gestos mínimos, precisamos pensá-los delicadamente pelo
viés do movimento. Não se espera do movimento uma performance aparente, mas
compreende-se, ao contrário, os impulsos capazes de gerá-lo antes mesmo dele
acontecer. Nesse sentido, busca-se um puro acontecimento que possa remeter às
potencializações, mínimas que sejam, dos gestos. Sobre a “potência de amar” e o
“puro acontecimento” reparar num trecho do livro Diálogos, de Deleuze (1998):
À minha vontade abjeta de ser amado, substituirei uma potência de
amar: não uma vontade absurda de amar qualquer um, qualquer coisa, não
se identificar com o universo, mas extrair o puro acontecimento que me
une àqueles que amo, e que não me esperam mais do que eu a eles, já
que só o acontecimento nos espera. (...) Fazer um acontecimento, por
menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de um drama,
ou de fazer uma história. Amar os que são assim: quando entram em um
lugar, não são pessoas, caracteres ou sujeitos, é uma variação
atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma
população discreta, uma bruma ou névoa. (Deleuze, 1998, p. 23)
Vontade como potência, acontecimento como delicadezas, geografia,
mudança, variação. Ato enquanto intensidades. O que nem sempre se dá. Para
25
brincar um pouco com a geografia, entendemos ser preciso brincar também com
uma montagem, ou seja, para quebrar o brinquedo, antes conhecê-lo, suas
formas.
Então fizemos assim: recolhemos artigos escritos pela poeta, alguns
escritos sobre ela em simples revistas e jornais noticiosos e outros estudados
minuciosamente e analisados criticamente. Chegamos então às dissertações de
mestrado e às teses de doutorado que conseguimos encontrar, dentre várias
dificuldades, que vão das dificuldades da pesquisa ao simples descaso que
percebemos em relação ao seu trabalho que se dá, geralmente, por mero
desconhecimento de sua obra.
Descobertas as pistas, enchemos o percurso de dúvidas e indagações que
alimentam várias paixões; juntamos tudo que advém dos amores, do convívio,
tanto teórico quanto prático, tateando um mosaico no campo das inquietações.
Para depois, então, praticar o ato de selecionar.
Da paixão pouco se diz hoje. Ou se diz muito e, por isso, pouco. Leminski
em bonito artigo “Poesia: a paixão da linguagem”, para a série Olhar da
Companhia das Letras, chega logo de início a uma conclusão de que se a palavra
paixão está na moda e se estamos valorizando-a demais, é porque, o fundo, ela
está faltando.
Podemos lembrar aqui que paixão muitas vezes, conforme ressalta Leminski,
passada à nossa tradição como herança do radical latino, nos dá uma noção de
passividade. Prefiro atentar para o radical grego de onde provém como pathos,
por conter a paixão como impulso. Então a paixão é isso, sinônimo de arriscar-se,
mover-se. Não necessariamente sair do lugar, as permanecer nele e ao mesmo
tempo em uma inquietude, podendo dizer de um universo lúdico que, por sua vez,
pode dizer da criação no movimento de brincar.
26
1.2 segundo movimento
Como referência a uma reconstituição da memória, trouxemos esses
artigos até aqui para fazer referência aos gestos generosos de lembrar uma
determinada época, um percurso, uma maneira de andar.
A generosidade não caberia aqui pensada como nobreza. É necessário
atentar para o sentido conotativo que ela ganha ao repararmos a entrada do
dicionário Aurélio para antropônimo. “Generoso: ente fantástico que, segundo a
crendice popular, entrava nas casas sem ser visto, fazia barulho nos quartos,
tocava instrumentos musicais, etc.” (Ferreira, 1999, p. 980). Substituímos a
nobreza pela inquietude, por aquele que, “fazendo barulho” provoca, um bom
incômodo. E assim, promove encontro, estar com.
A dificuldade que a contextualização histórica implica foi abordada de
maneira muito cuidadosa por Alexandre Rodrigues da Costa em sua dissertação
de mestrado A construção do silêncio: um estudo da obra poética de Orides
Fontela, de 2001. No capítulo inicial, ele nos diz que
Situar e analisar a obra de qualquer poeta brasileiro nas últimas
quatro décadas é, antes de tudo, mostrar em que medida valores, poéticas
e correntes tão diferentes coexistem. Nesse sentido, qualquer tentativa de
definição nos leva a refletir sobre como os traços individuais de um
determinado artista convergem naquilo que chamamos de tradição.
Quando focalizamos nossa atenção sobre períodos nos quais procuramos
características que possam determinar linhas de força, pontos em comum,
sempre surge a expectativa de que algum poeta fugirá disso, adotando
não a postura em voga, mas articulando uma linguagem que envolva um
pensamento próprio, desvinculado de qualquer compromisso com
correntes poéticas ou comportamentos predominantes.
Nesse sentido, falar de Orides Fontela é tocar em nuances que
possibilitam articular a expressão individual em contraponto ao contexto no
qual foi produzida sua obra, mostrando até que ponto se diferencia de seus
semelhantes ou a eles se assemelha e em que medida sua postura frente
27
à tradição da literatura brasileira tem como objetivo alcançar caminhos que
a levam a um ideal próprio de poesia. (Costa, 2001, p. 12)
Orides Fontela esteve alheia sempre a correntes e modismos. Embora
tenha bebido em várias fontes, criou nuances originais para uma solução muito
pessoal de sua poesia. Ela mesma indica que muitas vezes seguia seu método
intuitivo mesmo que depois pudesse associar algumas características a outro
escritor. Estava imersa em seu tempo, conseqüentemente, seu pensamento
também refletia preocupações e produções de outros escritos e escritores. Tinha
sua perspectiva própria, formada desde seu primeiro livro e dizia não ser
contaminada pela coexistência de correntes nem pelo cotidiano proletário em que
viveu. Tudo isso resultou num trabalho que primava pela concisão, pela economia
de recursos e por uma poesia cheia de densidades. Atestando que sua postura
não cuidava de “fatos neutros”, ao contrário ela parecia posicionar-se mesmo que
contraditoriamente.
Um exercício em vida foram as críticas que escreveu...
Dos artigos que escreveu no ano de 1987 enquanto colaboradora do jornal
O Estado de S. Paulo, Orides foi mostrando aos leitores corriqueiros do jornal a
que veio seu espírito selvagem. À sua maneira aristocrática, agindo em sua poesia
com “bom senso”, “bons modos”, contenção, mostrou em seus artigos sua verve
irreverente, respondendo com frases cortantes aos apelos da classe média bem
comportada.
A literatura que produziu junto aos seus artigos era fruto de um trabalho
árduo e bem refletido, um exercício de vida. Em seus artigos, tecia as
considerações necessárias para desenvolver um pensamento crítico voltado para
a literatura e para a elaboração de sua poesia. Laboratório. Antes de ser uma
intuição de seu espírito (recuperar o sentido indígena do termo que respeitava
uma integração sensitiva com o universo), significava primeiro um exercício
político em relação ao seu posicionamento no ofício de escritora e pensadora das
questões importantes de seu tempo. Além da importância do trabalho com a
escrita, buscava afinar o espírito, tão abalado por pressões mercadológicas que
28
oprimem o sujeito socialmente a ponto de influenciar na força e fôlego necessários
para continuar exercendo dignamente valores voltados ao desenvolvimento de um
estar no mundo.
Naquele ano de 1987, foram cinco o total das colaborações na seção Guia
de Leitura do jornal de domingo, em que escrevia sobre diversos autores, tanto
desconhecidos do grande público, por serem estreantes, quanto badalados poetas
como Ivan Junqueira e Ferreira Gullar. Esse arranjo acaba por tornar conhecidas
as preocupações efetivas de Orides Fontela em relação à ética do fazer literário.
Sem antes saber dessas considerações em torno da vida e da poesia, sentíamos-
nos afastados do embate travado entre o escritor e seu trabalho. Gostaríamos de
dividir alguns questionamentos desenvolvidos ao longo desses artigos.
No dia 17 de maio quando escrevia “Junqueira e o excesso do verbo” sobre
O Grifo, de Ivan Junqueira, publicado pela Editora Nova Fronteira, deixava claro
seu comprometimento com a busca da essência das palavras, procurando tirar o
excesso dos versos para não anular a poesia. Segundo ela, para um quinto livro
dele, era cometido pecado demais. “Estamos numa época confusa, mas, pelo
menos, democrática e acreditamos que toda poesia é válida, desde que seja
autêntica e forte.” Defendia o exercício da distinção entre o bom e o mau poeta e
combatia as discussões sobre modismos atuais. Acreditava na maturidade de Ivan
Junqueira, mas não aceitava algumas más “resoluções sonoras” ainda mais
quando feitas “numa tentativa de usar formas mais atualizadas”. Nem perdoava a
exceção previsível dos adjetivos pois estes
fazem perder o mistério eliminando os efeitos de surpresa e impacto
que os bons poemas devem ter. Sendo os temas eternos temas humanos,
é preciso uma personalidade poderosa para fazê-los reviver como
merecem. Ora, a personalidade poética do autor é coerente, mas não
suficientemente forte e marcante.4
4 Os artigos de Orides Fontela escritos para o jornal O Estado de São Paulo foram colhidos em microfilme na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Infelizmente, a versão impressa não traz o número da página a que se referem todos os artigos. Portanto, em referência bibliográfica, os que tiverem faltando a numeração correta encaixam-se nesse caso. Para maiores detalhes ver bibliografia no final deste trabalho.
29
Sobre a poeta Maria escreveu em 14 de junho um artigo “Maria encontrou a
poesia”, solidário com sua condição marginal. “A ingenuidade ainda marca o
verso, mas isso não é nada para quem já foi chamado de louca. Maria Elizabete
Lima Mota, três filhos, estuprada, prostituída, drogada, favelada, chegou à rima. E,
quem sabe, à solução.” Nesse artigo defende a poesia como voz, como uma
postura de indignação que aceita falar ao invés de calar. Essa coragem da fala de
Maria, Orides não quis levar para sua poesia. Segundo ela, já bastava a vida
sofrida que levava, então não a coloca de uma maneira explícita, não precisava
estendê-la aos seus escritos.
Declaro que estou em tormento – poesias da sarjeta, é um
acontecimento diferente em nosso meio. Não por ser ótima poetisa – é
bem ingênua, bem espontânea, necessitando de burilamento -, mas porque
Elisabete é mesmo povo . É a mulher proletária – e mais do que isso: a
mulher abandonada na sarjeta, expulsa da pátria para a sarjeta, como ela
diz, a vítima do machismo e até da psiquiatria – que revela fibra e
humanidade para ainda cantar. Cantar, protestar, sonhar, poetar, viver!
Neste país, onde pobre não tem voz, Elisabete tem voz para si e,
infelizmente, para tantas outras pessoas esmagadas. Pois o seu não é
caso único, como realça bem Marta Suplicy no pungente prefácio. Nem é
doida, sua única “loucura” é ser mesmo poetisa, é cantar de qualquer
maneira, apesar de tudo. Seu livro, para principiar, é um incrível
documento humano. (Fontela, 1987, p. 4)
Neste sentido, a poesia é, na sua expressão, exercício de fé.
O que seria defeito noutros casos, em Declaro que estou em
tormento, deve ser visto com outros olhos, e o que é qualidade aumenta
muito, pois já é extraordinário, dadas as condições. Mas será mesmo?
Acaso todos não têm voz, todos não deveriam ter direito ao canto? Ah,
mas a vida, a miséria, tantas coisas por aí nos sufocam. É preciso ser
mesmo poeta e ter não só muita coragem mas até bastante loucura para
30
não se deixar esmagar, para gritar cada vez mais forte, mais lúcido, como
proclama Elisabete. Precisa selvageria, raça, fé . (Idem)
No dia 16 de agosto escreveu “Nas rimas da perplexidade” sobre os livros
Fibra Ótica, de Fernando Bonassi, Nereu Velecico e Marcelo Arbex e Antologia
Poética, de Luis de Miranda publicados respectivamente pela Massao Ohno e pela
Editora Mercado Aberto.
Segundo Orides Fontela, “nosso incrível mundo atual” é desafinado.
Que mundo! Nossa cultura, como é sabido, é uma “sopa Lavoisier”
– ainda reaproveitamos idéias e valores do século passado e não
conseguimos criar nada de forte, novo e vivo. Estes são os “tempos de
desgraça”, segundo Heidegger. E poetas em tempos assim só podem
clamar, desafinar, falar num deserto. Mas salvam-nos da desgraça total...
(Fontela, 1987)
Defende a estréia auspiciosa de Fernando Bonassi, brinca com a falta de
originalidade de Nereu Velecico mas valoriza a influência que ele recebeu da
leitura de Murilo Mendes. “Será isso um defeito? De qualquer forma, é uma ótima
genealogia poética, e nosso estreante vai tornar-se talvez surpreendente quando
evoluir. Espere-se”.
E defende ainda o que considera o pior de todos, pois ainda em busca de
uma linguagem própria: Marcelo Arbex.
Ai de todos nós, poetas em tempos de desgraça, filhos de um
mundo que é mais um lixo que um universo! Se nos realizamos é que
estamos mortos e ultrapassados, se não o fazemos, como ser bons
poetas? O problema geral é: como simplesmente ser. (Idem)
Neste trabalho vamos compondo Orides, praticando uma forma de ver e
entender, aos poucos, como se dá seu aparecer, escrevendo e lendo,
reescrevendo outros. Aqui não há uma aplicação metodológica sistemática, mas
31
um aproximar-se aos poucos da linguagem para vê-la. Assim poderíamos dizer
que essa busca do ser habita o espaço interior, da casa, e que é realmente um
embate em que precisa “selvageria, raça, fé”. Como no poema “caramujo” que
podemos ler abaixo: “o fim / limite íntimo / nada é além de si mesmo / ponto
último”, lugar em si. O ponto último não impõe especulações, mas nos diz que “a
saída / é a volta.” Vejamos o poema “Caramujo”:
A superfície
suave convexa
não revela seu dentro:
apenas brilha.
A entrada
estreita abóbada
e sóbria sombria
gruta.
A seqüência
rampa enovelada
se estreita num pasmo
labiríntico.
O fim
limite íntimo
nada é além de si mesmo
ponto último.
A saída
é a volta.
(Fontela, 1988, p. 40)
Espaço interior como a casa, a concha do molusco envolve o que é dentro
frágil. Em toda intimidade existe uma sutileza de chegada, e um limite – ponto
último: “si mesmo”. Voltar é a saída, a facilidade de não permanecer em
movimento solitário do outro, para não provocar invasões bárbaras.
Não se surpreende muito com o livro de Luis de Miranda, ainda mais pelo
fato de ser antologia. Mas ficam os deliciosos e instigantes comentários dela sobre
a época. “Enfim, dois livros novos e de novo a velha perplexidade de “nossa
cultura”. Quando acharemos uma barbárie nova?” A escolha dos livros reflete a
busca por encontrar algo novo se não na expressão, ao menos no modo como se
diz.
Tanto é assim que Orides não segue um critério rígido na escolha de títulos
e escritores, trazendo tanto aqueles renomados e velhos conhecidos, como os
32
estreantes, canônicos, como marginais, de diferentes editoras, com diferentes
propósitos: lingüísticos ou sociais. O rancor pelo descaso em relação aos
proletários praticado pelas autoridades, e tudo que eles procuram tirar e dificultar
na vida dessas pessoas, foi trazido à tona, antes de lutar por um espaço feminino
em sua poesia. Sublimava esses fatores em detrimento de ter sido posta à
margem desde o momento que nasceu sob o signo do anonimato a que estão
submetidos os pobres desse mundo. Em seus comentários sensatos e sagazes,
deixava a veia amarga da vida à mostra.
Podemos conferir esta atitude no artigo “Versos e rimas de luz e sombras”
escrito em 01 de novembro sobre Safadezas, de Neusa Cardoso (Massao Ohno
Editor) e A noite não pede licença, de Paulo Colina (Roswitha Kempf Editores).
Segundo Orides, Neusa Cardoso estréia “... sem grandes brilhos nem
novidades, mas também sem tropeços”. O equilíbrio faz da autora ótima estreante
e revela o interesse de Orides Fontela pela estréia, pelo começo, pois é
impossível termos grandes poetas todos os dias. Nenhuma maravilha mas
nenhuma desafinação. A autora conhece seu ofício e seus limites, podendo, assim
oferecer-nos algo humano, agradável e simpático.”
O interesse por um planejado começo, esboçado projeto, fica claro quando
cita Paulo Colina falando de uma militância, da importância de se apresentar
pequena poesia. Aqui, antes de um desabafo pela situação nada heróica da
poesia, temos palavras de incentivo por meio de uma lúcida orientação. “Claro que
Colina nem se renova nem renova a poesia pátria, mas não estamos em tempos
heróicos. Por agora, já é ótimo que possamos saudar livros sérios, legíveis, como
o que o autor acaba de apresentar”.
Sobre o autor de Barulhos, Ferreira Gullar, não importa se grande poeta,
mas se um poeta vivo, atento. Em “Entre o lírico e o social”, artigo escrito em 8 de
novembro, Orides Fontela reclama a falta de novidades, mas valoriza um escritor
capaz de gerar sempre questionamentos, trazendo-os para seus poemas, embora
não tenha resolvido o problema de integrar o lírico ao social. Para ela, Gullar ainda
persegue uma meta:
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Resposta total? Não, mas meta ideal que Gullar se coloca e que dá
bem a profundidade de integração buscada entre os pólos da poética do
autor. No geral, Barulhos são ecos, perguntas, memória. Com sabor,
cheiro, gosto bastante conhecidos e aprovados, com um certo prosaísmo
às vezes, com as forças e fraquezas - estas pequenas e bem superáveis –
de sempre. (Fontela, 1987, p. 5)
Entre antigos e novos escritores a mesma idéia de embate com a escrita,
luta travada com um trabalho difícil e árduo, o comprometimento pessoal capaz de
gerar poesia de boa qualidade. Com isso, falando de poesia, mostrava a
importância de manter aberto um diálogo em busca da valorização da poesia.
Além de seus escritos, outros escritos apareceram. E estes escritos
também devem ser considerados gestos; por isso tentamos montar um inventário.
Quando alguém escreve artigos sobre algum escritor, esses “gestos” podem
acabar dizendo muito sobre e compondo os gestos de outros. De qualquer forma,
ao conhecer um escritor pelas mãos de seus leitores, enveredamos por um
caminho, construindo uma composição biográfica a partir dos dados levantados e,
mais interessante ainda, um pensamento sobre o trabalho de Orides, de seu fazer
poético, a responsabilidade com os escritos, a elaboração de uma vida de algum
jeito inventado.
Quando estamos pesquisando a obra de um escritor que já não vive entre
nós, encontrar os escritos entendendo-os como pequenos gestos é, na verdade,
considerá-los presentes que nos dão uma repentina alegria. É estender ao outro,
em ato de generosidade, as palavras que nos encantam, que suspendem o tempo,
seguindo de mãos dadas e em diálogo pelas afinidades eletivas.
Quem melhor documentou e sistematizou os artigos noticiosos e analíticos
sobre Orides Fontela foi a escritora Letícia Raimundi Ferreira, que conversou com
a escritora muitas vezes ao telefone, no apêndice A intitulado Fortuna Crítica, de
sua dissertação de mestrado A lírica dos símbolos na poesia de Orides Fontela,
defendida em 1995 na Faculdade de Santa Maria, e transformada posteriormente
em livro, editado pela Pallotti e pela ASL. Na minuciosa pesquisa, é possível
encontrar um panorama dos comentários e estudos sobre Orides Fontela que
34
foram publicados em artigos de jornais e revistas, em resenhas de revistas
especializadas e em livros, tanto em âmbito nacional como no contexto
internacional. Um leitor menos avisado encontra lá um texto esclarecedor sobre
poesia, uma direção didática e uma abordagem direta para entrar no universo da
leitura de Orides Fontela.
Do desconhecimento em geral aos pequenos comentários e notícias de
alguns leitores, passando pelo estudo de considerados críticos literários
brasileiros, até a produção universitária de dissertações de mestrado e teses de
doutorado defendidas sobre Orides Fontela, nos confrontamos com um verdadeiro
exercício de montagem de um quebra-cabeça em que precisamos considerar
todas as peças encontradas, fossem elas irrelevantes ou essenciais para compor
o todo.
Assim foi nascendo o carinho: cuidado, desvelo; dedicação, vigilância,
provocação de vigília, pela obra de Orides Fontela, que começou efetivamente a
partir do artigo do jornalista e escritor paulista Bruno Zeni no caderno “Ilustrada”
do jornal Folha de S. Paulo. Nele, o que nos chamou a atenção foi a figura serena
mas selvagem da poeta numa fotografia que tinha como cenário seus escassos
livros, uma velha estante e um espelho. Esta figura aparece no início deste
trabalho, reconfigurada por Roberta Dabdab da Folha Imagem para o artigo “A
surpresa do ser”, de Contador Borges, na revista Cult.
Naquele momento, depois de ter sido despejada, Orides estava vivendo de
favor numa República de Estudantes, abrigada por uma amiga, depois de ter
habitado sob o viaduto Minhocão.
Mais curioso foi descobrir, depois de muitas leituras, que aqueles eram
seus últimos livros, considerados relíquias, depois de um incêndio que dizem ter
sido causado pela própria escritora. Todos sabiam da sua dificuldade em
sustentar-se com o parco salário de professora pré-primária depois do governo ter
tirado da grade curricular o ensino de Filosofia. Contam que Orides ficou bom
tempo vivendo às custas de seus amigos ou admiradores de seu trabalho poético,
através do qual espelhava seu compromisso com a vida plena que não encontrava
nos descasos impostos pela sociedade de seu tempo, ou do que em qualquer
35
época é humanamente possível enxergar: os enganos e erros da corrupção
humana. Talvez por isso, curiosamente, se defendesse o tempo inteiro com o uso
de um guarda-chuva. A vida proletária ensinou à alma poética de Orides que a sua
vivência intelectual ficaria comprometida pela sua formação, conforme ela mesma
informa sobre a diferença de classe social que atrapalhava os seus
relacionamentos: “É o tipo de formação da gente ou a maneira como eles olham
(grifo meu)”. Durante um bom tempo ela foi alvo de ataques que massacraram seu
ser e ajudaram também, contraditoriamente, a divulgar sua poesia em diferentes
veículos da mídia. A tudo isso reagia com seu inventário selvagem de literatura e
vida.
Nossa paixão aumentou quando da possibilidade de leitura de seus
depoimentos em jornais, revistas e livros, entrevistas concedidas pela autora,
fotografias tiradas de diferentes ângulos e em diferentes épocas de sua vida,
poemas distribuídos por ensaios. Além desses escritos, ainda encontramos os
artigos que ela escreveu para a revista Vozes e os trabalhos, já citados, como
colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo, no exercício de crítica ao longo do
ano de 1987.
Em momento algum, Orides era sentimental, derramada ou frouxa em seus
poemas. Havia neles um tom de amargura lírica e seca, da mesma forma que ela
lia seus poemas de maneira forte, vigorosa, sincopada tratando sua poesia com
voz incisiva e decidida. Detinha-se no essencial. Era uma poesia descarnada, sem
enfeites, de uma dureza óssea e de cunho filosófico. Difere muito da poesia
minimalista, coloquial e de descrição de paisagens miniaturizadas. Por tudo isso,
consideramo-la uma obra selvagem.
Vida e obra selvagens. Através dos artigos que Orides escreveu, dos
depoimentos e entrevistas que concedeu, é possível compreender sua concepção
de poesia, sua missão com a literatura, e a interface dessa com a filosofia. Do
percurso de seu trabalho, acompanhando sua trajetória pessoal, encontramos as
influências das leituras que fez e de como essas interferências foram elaborando
seus gestos, o corpo de sua escrita e sua maturação intelectual. Leves
36
movimentos que foram montando sua vivência e sua importância literária. Esse
pequeno percurso pode ser verificado ao longo dos artigos escritos sobre ela.
O artigo de Vinícius Dantas sobre o livro Alba (1983), que havia ganhado o
prêmio Jabuti, nos chama a atenção pelo fato de ser diferente dos outros artigos
elogiosos, movimento causado por um leve incômodo. Em “A nova poesia
brasileira e a poesia”, o escritor propõe-se a fazer um “balanço crítico de alguns
volumes de poesia publicados durante o ano de 1983”, pois a recepção crítica
deixava muito a desejar, o que também não era diferente do acontecimento
literário, uma vez que os lançamentos podiam ser considerados mais editoriais.
Entendendo que o processo de recepção só se completa com o debate e a crítica,
procurava no verso: “qualidades, deficiências, força e originalidade, buscando
caracterizar tendências e influências” (Dantas, 1986, p. 42). Em algum sentido, é
possível encontrar no seu artigo razões coerentes para explicitar uma certa “atonia
histórico-cultural”:
Entre os fatores desse esvaziamento, estão igualmente as condições
particulares da vida intelectual brasileira após o impacto da modernização
que, em matéria da produção crítico-literária, foi devastador: a crítica
jornalística desapareceu com a implantação em vasta escala da indústria
cultural; a vida intelectual e literária se especializou, perdendo sua simpatia
provinciana; e, dado seu caráter vegetativo, a produção universitária no
caso das Letras (ao contrário de outras áreas) não impôs critérios teóricos
e críticos nem travou diálogo com a criação literária sua contemporânea,
de modo a se constituir em alternativa que atenuasse o império dos meios
de comunicação de massa. Ainda assim, olhada de relance, a criação
poética guardou, contudo, uma inquietação que não encontramos em
terreno crítico. (Dantas, 1986, p. 42)
Essa situação universitária tornou-se um pouco problemática na visão de
Vinícius Dantas quando não abriu frente para travar diálogo com a luta da
construção poética. Entretanto, a força dos “meios de comunicação de massa” não
conseguiu suplantar a inquietação da criação poética.
37
O crítico confessa que “gostaria de falar da poesia como uma linguagem de
expressão maior e com fidelidade a uma relevância que penso subsistir à
impotência”. E, como vitória da poesia, comentava aqueles em que a inquietação
sugeria também uma construção original. Portanto escolhe somente cinco poetas.
E é categoricamente, com um rigor exigido da “poesia pura”, que analisa os livros,
cometendo equívocos, principalmente porque parece, por conta própria, rebaixar
essa poesia a categorias que ele mesmo propõe como legítimas. Ao falar em
antologia, deveria julgar os livros como um todo, mas o que faz é isolar os
poemas, prejudicando, a nosso ver, uma visão mais co-textualizada de um projeto
poético.
Além de Alba, ele comentou ainda Sósia da cópia, de Régis Bonvicino,
Gigolô de bibelôs, de Waly Salomão, Drops de Abril, de Chacal e Caprichos e
relaxos, de Paulo Leminski.
Os poetas que vou discutir são mais conhecidos que sua poesia.
Este é o galardão sacana que a época encontrou para recompensar, em
meio à fechada falta de perspectivas, que é também política e econômica,
heróis sem importância, criadores de um produto socialmente irrelevante e
sem a menor expressão. Eu gostaria de falar da poesia como uma
linguagem de expressão maior e com fidelidade a uma relevância que
penso subsistir à impotência. Esta relevância só pode ser reencontrada
através do argumento judicativo que repõe o criador mais jovem em
contato com uma comunidade de criadores que se perpetuam ao longo da
história, a qual não participa dos interesses editoriais e mercadológicos e é
estranha à forma de resenha praticada atualmente. Quero principalmente
falar do que me incomoda nessa poesia, por isso escolhi cinco livros, os
mais significativos entre os que foram publicados em 1983, verdadeiras
coleções de “poemas reunidos”, para discutir poesia – procurar neles o
novo e assim rastrear as implicações culturais desta produção. (Dantas,
1986, p.42)
A nosso ver, o crítico acaba sendo infeliz e incoerente em alguns pontos de
seu comentário, conforme aspectos que destacamos:
38
• “para uma poética da palavra, concisa, plena de silêncios e vazios, aprendida com
a poesia de vanguarda”;
• “ela crê no lirismo de símbolos intemporais e na autenticidade de uma plenitude
subjetiva”;
• “esta redução curiosamente se apresentando sob uma consciência permutacional
moderníssima, os poemas girando sobre si como um móbile”;
• “uma inflação de símbolos, simulando um dinamismo que não encontra
ressonância no demasiado estático da composição”;
• “este propósito de figurar na página um desenho riscado a palavras de uma busca
interior, em si, é um anseio legítimo em muita poesia moderna. Cair na magia de
uma transcendência falsa, parece-me resultado de uma auto-aceitação acrítica e
demasiado complacente”;
• “a poeta dedica-se à sua própria magia, sem nenhuma dúvida irônica, e fabrica a
“atmosfera” por meio de símbolos que subsistem o significado interno ao poema
pela vaga emoção exterior a ele”;
• “um esforço notável para evitar facilidades; no entanto, basta querermos lê-la e
senti-la contemporaneamente para que o seu romantismo, camuflado de
modernidade, se torne uma mentira estética que simula a superação da perene
crise da poesia”. (Dantas, 1986, p. 51-53)
Considerar que os símbolos em Orides são reduzidos conscientemente,
figurando um móbile, ameaça a questão de que “não existe uma reflexão se
fazendo”. Orides admitiu seu método intuitivo, não teve nenhum contato, ao
contrário do que se diz, com a poesia concreta. E não deveria ser reduzida à
pecha de ser premiada em concursos literários. É injusto ao dizer que só resta a
ela escolher o adjetivo. A subjetividade de Orides, antes de ser puro
derramamento verbal, encara uma mobilidade entre o movimento do geômetra e
de uma sensibilidade digna de uma reflexão cuidadosa, podendo ser melhor
pensada sob o ângulo de uma subjetivação que escolhe uma perspectiva de ação,
sem precisar ser chamada de “dinamismo demasiado estático da composição”.
Se o crítico quer entender que isso configura uma “busca interior”, calcada
numa “magia de transcendência falsa”, poderia reparar melhor na “escolha
manjada de temas”, em uma sociedade que parece não entender, mesmo a partir
39
da palavra, que colocar a ação em jogo pode ser repensar esse jogar. É bom não
esquecer que falta à nossa educação o ensinar a aprender e que é além de uma
perspectiva fenomenológica, pois tem outras nuances mais complexas para a
contemporaneidade. Melhor, talvez, considerar a construção de Orides como um
jogo que monta, desmonta, faz e desfaz ao longo de toda a sua obra. O silêncio
que ele diz não significar nada, antes instaura novos prazeres, adquiridos no
universo lúdico da brincadeira, por exemplo, para de certa forma falar de novos
desejos brincantes. Meditar, como ele afirma, configura um lugar para Orides que
não parece ser o que ela propunha com Alba.
Minha simpatia se dirige mais para o baixo nível da baixa mimese
de poetas como os quatro anteriores do que para Orides, porque neles há
busca daqueles elementos de uma verdadeira meditação, recolhida na
intranqüilidade de seus corpos e de sua época, ainda possível através dos
materiais os mais degradados, mas que são estes mesmos de que
dispomos. (Dantas, 1986, p. 53)
O equívoco também se configura por não perceber intranqüilidade no
silêncio proposto por Orides. Talvez, Vinicius Dantas precisasse de uma
experimentação com o corpo, lançando-se a descobertas de si, como propunha
Ligia Clark com sua obra Estruturação do Self, pois entendendo o aguçamento
dos sentidos com a experimentação dos “objetos relacionais” que a artista
elaborava nessa fase, conseguimos apontar novas perspectivas para os símbolos
que Vinícius Dantas diz serem “já gastos” na palavra poética de Orides. Isso altera
mudanças que sentimos serem necessárias para uma percepção contemporânea
na abordagem de sua obra.
Nessa altura, com o prêmio Jabuti, começa a aparecer em conjunto o
reconhecimento de sua poesia que será configurado no lançamento, não só do
seu livro Trevo, como também de outros livros, num total de treze poetas entre
recentes e reconhecidos, da coleção Claro Enigma. A coleção transformou-se num
evento que movimentou o debate e a troca de conhecimentos sobre os poetas que
trabalhavam em diferentes nuances naquele período. Foram colocados em
40
evidência os artigos sobre os poetas da coleção e a importância do papel do editor
Augusto Massi, preocupado em reunir uma obra de escritores diversificados e
comprometidos com a realização da poesia.
Em maio de 1990, o MASP reuniu poetas, críticos e editores numa semana
de artes e ofícios da poesia. Esse momento de encontro e celebração acabou
resultando no livro Artes e ofícios da poesia que pretendia estender o espaço
crítico para a poesia, para o debate e a reflexão, ampliando uma discussão
literária permanente, o que era mais pertinente para configurar a produção de
determinada época. Segundo o organizador Augusto Massi, também editor da
Claro Enigma, coleção tão importante na divulgação cuidadosa da obra de Orides,
era necessário abrir espaço para discutir a produção contemporânea gerando um
espaço de visualização da poesia.
A crítica literária pergunta freqüentemente sobre a existência de
uma nova poesia. A coleção Claro Enigma, por exemplo, provou que esta
nova poesia já existe. O problema é que a própria crítica não tem sido
capaz de criar relações entre as obras ou elaborar uma perspectiva de
leitura que ordene o conjunto da produção contemporânea. Daí a idéia
recorrente de crise. Crise de quem? Dos poetas ou da crítica? (Massi,
1991)
Depois do projeto da coleção, desenvolvido sob o impulso inovador e
preocupado com a circulação de poesia, outras editoras voltaram a publicar poesia
como Dubolso (MG), Iluminuras, Massao Ohno. Da livraria Arte Pau-Brasil saíram
11 mil exemplares de 13 números entre títulos tradicionais e inéditos. Fora do
comércio estava sendo lançada uma tiragem especial de 25 exemplares
encadernados de cada livro, com sobrecapa em papel Canson. Todos os
exemplares são numerados e assinados pelos autores. Interessante observar que
num contexto onde o corporativismo dominava a lógica da cultura, “a poesia
também fez sucesso”, no dizer de Massi. O título da coleção era uma referência a
Claro Enigma de Carlos Drummond, livro considerado um momento de maturação
e de ultrapassagem das exaltações modernistas de 1922. Claro se refere ao que é
41
possível retomar da tradição e enigma o que se produz de novo na poesia. Assim
buscava-se valorizar a produção individual.
Sobre o evento e o livro Artes e ofícios da poesia resultante dele,
precisamos atentar para algumas ponderações do editor Augusto Massi
Finalmente, quero dizer que este livro em outros tempos não seria
possível. Há dez anos atrás, por exemplo, os poetas se reuniriam para,
num inventário de queixas, protestar contra a crítica, contra os editores,
contra a falta de leitores e contra outros poetas. A atitude parece ter
mudado sensivelmente: ao tomar conhecimento de si mesma, refletindo
sobre sua situação como arte e como ofício, a poesia contemporânea
coloca em cheque a situação anterior. Esta, creio, é a melhor maneira de
avançar. (Massi, 1991, texto da orelha)
Daí perceber a importância desse ciclo de palestras. Segundo Leda Tenório
da Motta, Diretora do Núcleo de Projetos Literários do Centro Cultural São Paulo,
o objetivo era comemorar o Primeiro de Maio com a noção de pertencimento e não
como mantenimento da história. Dessa forma, o debate e a discussão entre os
artistas mostraria o suor de uma transpiração, o alcance próprio do trabalho dos
poetas.
(...) Aos convidados pediu-se que fizessem da palestra um
depoimento justamente, em que entrassem filiações, num recorte pessoal
do legado das nossas Letras, e de outras, ou numa lição de história
subjetiva da Literatura, de que extrair uma também pessoal ciência da
contemporaneidade, e dela um discurso sobre si, sobre a presença e a
circulação de suas obras, numa intervenção de pertencimento.
(...) Ou vontade de não abrir mão de um desejo – caro também aos
inventores da nossa modernidade, de que estamos sempre partindo, como
revelam os depoentes – de convívio e de confrontação. Enfim, necessidade
de resgate, a exemplo do que, em registro editorial, acabava então de nos
oferecer a coleção poética Claro Enigma, da Editora Duas Cidades, cujo
idealizador, Augusto Massi, poeta ele próprio e professor de Literatura
42
Brasileira na Universidade de São Paulo, uniu-se a nós, a convite, impondo
ao ciclo a visão de conjunto, o desafio de interpretação e a proposta de
urdidura que nos parecia a todos faltar, mas que só a sua experiência de
editor e de estudioso da nova poesia brasileira permitiu equacionar. A
colaboração de Augusto Massi não apenas aperfeiçoou a curadoria do
ciclo: ela imprimiu um novo sentido ao funcionamento de nossa área,
abrindo-a para realizações plenamente partilhadas como nosso melhor
exterior.5
Paralelamente ao fórum ocorreram homenagens a Ana Cristina Cesar,
Cacaso e Leminski no mezanino do MASP bem como as mostras de livros, de
edições raras e de revistas literárias.
Para compor os depoimentos do livro Artes e ofícios da poesia “foi pedido a
cada um dos poetas que realizasse, na medida do impossível, o seu Itinerário de
Pasárgada”(Massi, 1991, texto da orelha). Daí resultou o depoimento “belo, áspero
e intratável” Nas trilhas do trevo, de Orides Fontela. Pontuamos as suas fases por
acharmos uma interessante sistematização, e a citação de sua “última influência
notável”. Vejamos abaixo:
Todo processo poético tem sua gênese própria em que pesem os traços
comuns de uma época.
Fases:
Pré-história: Só que estou procurando a circulação do quadrado; folclore;
primeiras quadrinhas ingênuas.
Pré-literária: Ginásio – 16 anos.
Formação: 16 aos 25 anos.
E havia a escrita selvagem, sem críticas nem peias, andando sozinha eu lá
sabia para onde.
E, para citar a última influência notável, no sentido de realmente formativa,
cito um psiquiatra, o Dr. Helinho, que freqüentei, em 1961, em Itapira.
Seguinte: ele decifrou todos os meus símbolos. Assim não dava, era
5 Estes trechos foram retirados do texto de apresentação do livro Artes e ofícios da poesia, feito por Leda Tenório da Mota.
43
necessário complicar. O que ele diagnosticou como uma “hipertrofia da
simbologia”. Exato. Era o necessário para passar do nível ingênuo e
confessional para algo mais elaborado. E meu inconsciente fez isso, e eu
progredia com alguns senões. O principal deles é este mesmo: a fuga ao
confessional, à primeira pessoa, a tudo que pudesse cheirar – até de longe
– a “poesia feminina”. Eu já era feminista e sabia que minha poesia ia ser
desvalorizada se parecesse “poesia de mulher”. Daí abstraí, abstraí e
abstraí. Foi uma força: fui aceita. Mas foi, também, uma armadilha, pois
assim é que caí na poesia hiper-sublimada, tão própria das mulheres.
Tentei me salvar disso nos últimos livros, e inda tento. (Massi, 1991, p. 256-
261)
Além do depoimento acima, Orides ainda deixou outro que teve como título
Sobre poesia e filosofia – um depoimento. Na apresentação do livro Poesia (e)
Filosofia, publicado pela Editora Sette Letras do Rio de Janeiro em outubro de
1998, Alberto Pucheu revela sua preocupação em estar atento ao fato de alguns
poetas terem formação acadêmica em filosofia. Além disso confessa que “quis
organizar um livro em que alguns destes poetas-pensadores tematizassem a
relação, ou a não-relação, entre poesia e filosofia, o que estes dois termos
significam para cada um”(Pucheu, 1998, p. 7). Assim, mostra que o livro não
esgota o elenco de autores que estão presentes. Sabedor da necessidade de
exclusão que se dá mais por dificuldades de reunir, demonstra que o objetivo
principal era “demarcar o fato e algumas possibilidades de pensamento”.
Do depoimento de Orides extraímos os seguintes trechos:
“Alta agonia é ser, difícil prova” é o primeiro verso de um soneto
meu, escrito aos 23 anos – um soneto muito importante para mim, pois é
uma espécie de programa de vida, que não renego nunca e nem jamais
conseguirei cumprir, porém é minha tarefa tentar. Difícil prova sim,
impossível, pois isso constitui propriamente o humano. E, claro, todas as
ferramentas servem, principalmente a religião (sobre o aspecto místico), a
poesia – intuições básicas e... musicais, que tive de nascença – e a bem
44
mais recente, a filosofia. Deixando a religião de lado (mas fica lá, por
baixo), falemos só de poesia e filosofia.
Arcaica como o verbo é a poesia, velha como o cântico. A poesia,
como o mito, também pensa e interpreta o ser, só que não é pensamento
puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho, inventa e inaugura os campos do
real, canta. Pode ser lúcida, se pode pensar – é um logos – mas não se
restringe a isso. Não importa: poesia não é loucura nem ficção, mas sim um
instrumento altamente válido para apreender o real. Qual a minha posição?
– ou pelo menos meu ideal de poesia é isso. Depois é que surgem o
esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade
humana, emerge lentamente da poesia e do mito, e inda guarda as marcas
de co-nascença, as pegadas vitais da intuição poética. Pois ninguém
chegou a ser cem porcento lúcido e objetivo, nunca. Seria inumano, seria
loucura e esterilidade. Bem, aí já temos uma diferença básica entre poesia
e filosofia – a idade, a técnica, não o escopo. Pois a finalidade de entender
o real é sempre a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que devemos
tentar para realizar nossa humanidade. Isso é o que temos a dizer,
inicialmente, sobre filosofia e poesia.”
Maus versos, mas intuição válida. Pensar dói mesmo, faz cócegas,
pode ser tão irreprimível como a curiosidade da aluninha. E de que
adianta? Bem, o caso é que eu não engolia, nem engulo, respostas já
prontas, quero ir lá eu mesma, tentar. Tentava pela poesia. Ora, uma
intuição básica de minha poesia é o “estar aqui” – auto-descoberta de tudo,
problematizando tudo ao mesmo tempo. Só que este “estar aqui” é,
também, estar “a um passo” – de meu espírito, do pássaro, de Deus – e
este um passo é o “impossível” com que luto. É o paradoxo que exprimo
num poemeto
Próxima: mais ainda
estrela
muito mais estrela
que próxima.”
(...)
Nem dava; faltava base econômica e cultural. Pobre e vindo apenas
do Normal só consegui terminar o curso. Mas me diverti muito.
45
A poesia foi indo, como deu. Preocupou-se com a forma, a técnica –
Helianto, do tempo da faculdade – e chegou à meta-poesia – Alba. Depois
tentei voltar, tornar o papo mais concreto – Rosácea, Teia. Mais próxima ao
cotidiano, mais sofrida, é como ela está, e eu também. Conseqüências da
pobreza, do envelhecimento, das mágoas. Lamento ter perdido a passada
ingenuidade (e imunidade) mas não creio que mudei de pele, não é
possível. O futuro é propriamente falando o imprevisível – e não sei onde a
pesquisa poética e o pensamento selvagem me levarão. E inda acrescentei
à minha salada o zen-budismo – com bons resultados, aliás – e agora
procuro outros “ingredientes”, se possível. Não estar satisfeita é bem
humano.”
Persigo a
aguda trama
da meta
morfose.
(...)
...mas poesia como fonte que incita e embriaga.
Só isso cabe ao poeta: ser fiel à voz interior, sem forçar, sem
filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se
interpenetrem, convivam, colaborem.
Nasceram juntas, sob a forma de mito, e juntas sempre, sempre
colaboram para criar e renovar a nossa própria humanidade. (Pucheu,
1998, p. 13-16)
Essa concepção de poesia, entendemos como exercício. Vozes e sentidos
que se intercruzam e surpreendem estados novos e configurações internas que se
criam interagindo com forças interiores e externas. Uma passagem não-linear,
convida sempre para que áreas distintas do pensamento se “interpenetrem,
convivam, colaborem”, ganhem textura os estados visíveis e invisíveis. Existe em
exercício um estado de insatisfação que é humano, pois gerado por situações
externas ao meio: “conseqüências da pobreza, do envelhecimento e das mágoas”,
e que é realizado sem nenhuma pretensão. Nesse caso, há um embate corpo a
corpo que é movido pela curiosidade extrema. E para ela, boa ferramenta é a
46
condição de poeta corpo a corpo com a linguagem. Um jogo em que não
sobressaem as regras, mas a co-presença de estados visíveis e invisíveis. Então
a interpretação do ser não é puro pensamento puro mas “pegadas vitais da
intuição”, “alta agonia” e “difícil prova”. E a humanidade que advém daí é
subjetivação, sujeito em ação, prova da metamorfose. A textura que se cria,
própria da consistência subjetiva, faz parte de um processo contínuo de ruptura.
Entendemos melhor esse processo quando lemos alguns trabalhos da
psicanalista Suely Rolnik. Vejamos um trecho de “Pensamento, corpo e devir: uma
perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico”:
No visível há uma relação entre um eu e um ou vários outros (como
disse, não só humanos), unidades separáveis e independentes; mas no
invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos
que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos,
somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir
de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos
em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual
figura. Rompe-se assim o equilíbrio dessa nossa atual figura, tremem seus
contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma
violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza
e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo – em nossa
existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir, etc. – que venha
encarnar este estado inédito que se fez em nós. E a cada vez que
respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos
outros. (Rolnik, 1993, p.7)
Essa relação óbvia é ao mesmo tempo muito delicada, pois situa-se entre
“um eu e um ou vários outros”. Movimenta um território dividido em esferas
sensíveis do visível e do invisível, textura, fluxos e estados inéditos, primordiais
para fazer “tremer” os limites, para obter um corpo novo que participa e influencia
nossas ações, recuperando o estado inédito da expressividade, com a qual
podemos sempre nos surpreender. Afinal, nessa mudança é a multiplicidade, a
multiplicação de possibilidades que nos fazem pensar saídas mesmo que isso
47
pressuponha a volta. Quando Orides diz que “abstraí, abstraí, abstraí”, encontra a
saída de si, em seu próprio devir.
Na entrevista que concedeu à escritora Marilene Felinto, para a revista
Marie Claire em setembro de 1996, temos em mente que um diálogo é
estabelecido não entre duas escritoras mas entre uma jornalista agregada à
postura da revista que representa e uma poeta. É notável a veia feminista da
revista, uma preocupação também em estabelecer uma relação muito óbvia entre
literatura e vida. Alguns comentários nos chamam atenção como “Nada em Orides
Fontela (...) lembra o equilíbrio, a beleza e a elegância da poesia que escreve –
não há aqui uma separação muito forte entre poesia e vida. Se o cotidiano de
ninguém combina com poesia, o de Orides combina menos ainda.”
Se a intenção é uma provocação à escritora que ficou conhecida na
imprensa muito por seus problemas pessoais, o que fica evidente é que o olhar de
Orides Fontela parece não ter sido compreendido pelo de determinadas pessoas.
Era um modo muito seu (ou uma solução muito pessoal) de olhar o mundo. De
maneira sensitiva, percebemos uma certa fragilidade adquirida por conta de um
tempo que a cidade imprime e uma velocidade que não parece de nenhum modo
humano. É bem verdade que a vida de Orides Fontela caminhou na contramão do
que se prega capitalistamente selvagem por aí. Mas acreditamos ser preciso rever
essa vida, compor a falta de indícios com outros relatos. Vários fatos causaram
indignação como ter uma renda de 4 salários mínimos aos 56 anos, levando-a a
morar de favor na Casa do Estudante de São Paulo.
Outros pontos que ficam evidentes na entrevista são a sensibilidade e a
dignidade de Orides Fontela, uma “cidade toda feita contra ela”, como no dizer de
Clarice Lispector no livro A hora da estrela, e a sua poesia não ser panfletária. Era
também filha única, a mãe - dona de casa - já tinha morrido quando ela foi cursar
filosofia, o pai - sem profissão – morreu em 1973 e, segundo ela, “Era um amigo,
nós pescávamos muito”. Desta amizade, sua relação com o pai de onde advém o
aprendizado e a espera da pescaria e do amor, um ato de generosidade, uma
potência, uma substância vital.
48
MC: Em Teia, alguns poemas são recorrentes. Aparecem em outros
livros seus. É o caso do poema “Eros”. Qual a diferença entre o primeiro e
o segundo “Eros”?
OF: No primeiro “Eros”, estava me referindo ao Eros cosmogônico,
o amor como a energia criadora do mundo. É esse o sentido que a palavra
amor tem em 90% dos meus poemas. É como em “Deus e Amor”. Deus é
energia primordial.
MC: Mas o segundo “Eros” é mais pessimista. Ele parece negar o
amor.
OF: É, sim, pessimista. Aliás, ele está dentro de uma parte do livro
onde eu joguei todos os poemas pessimistas. É um poema de briga. Eu
estava dando uma bronca, porque o amor entre homem e mulher, no
sentido erótico, é quase sempre uma ilusão da mulher.
OF: (...) Eu ainda não descobri exatamente o que é esse mitológico
“amor”. Sei que pode existir mas não aconteceu comigo. Essa palavra
amor é muito mitológica e confusa. Mas, voltando ao meu poema “Eros II”,
eu o acho o mais fraco do livro.
MC: Por quê?
OF: Parece poesia de camiseta. (...)
Esse amor é mola propulsora de seus impulsos. A negação da poesia
panfletária aparece na proposição em que “parece poesia de camiseta” em
contraposição à idéia de que a poesia deveria ser divulgada em qualquer meio.
MC: Em que a diferença de classe social atrapalha seus
relacionamentos?
OF: É o tipo de formação da gente ou a maneira como eles olham
a gente .
OF: Eu acho bom que minha poesia seja divulgada em todos os
meios.
Ler poesia depende de uma educação literária. As pessoas mais
simples às vezes não têm. De modo que a gente escreve para quem quiser
ler e puder ler.
49
O aprendizado com seu pai, a vivência com ele, ensina os olhares para
essa vida terrena. A força que parece buscar para empreender uma ligação
espiritual e um equilíbrio constante justifica a força que teve em sua vida a
conversão ao zen-budismo.
MC: O que significa o nome Myosen Xingue, que adotou ao se
converter ao zen-budismo?
OF: Xingue significa mente florida. É um nome de leiga budista.
Quando você entra, faz uma iniciação, corta um pouco de cabelo, põe uma
água na cabeça e dá um nome. Eu achei bonito e usei num livro de poesia
meu.
É por trabalhar em torno das possibilidades engendradas pela linguagem e
pelo real que Orides, ou melhor, sua obra, faz uma diferença no cenário atual da
literatura brasileira, embora ela tenha sido escrita entre o final da década de 60 e a
década de 80.
O que acabamos lendo sobre o período nos chega sempre em forma de
generalizações, como o artigo abaixo. Segundo Pedro Lyra, nesse tempo,
Em vez de vazio, o que tivemos foi um período riquíssimo ignorado
fora do espaço em que se desenvolveu por um motivo óbvio: desenvolveu-
se num espaço clandestino, subterrâneo, minado, quando emergir
significava arriscar a liberdade ou a vida. O negócio era esse mesmo: dar
um recado curto e grosso e cair fora, para salvar a pele. E preparar outro.
Logo, se não tivemos nada de monumental ou sublime (mesmo assim,
muita gente reconhece – dentro e fora do país – criações de primeiro nível
nessa fase) não se pode dizer que não tivemos nada de novo. Pois era
uma maneira diferente de produzir, divulgar e consumir os bens simbólicos.
(Lyra, 1995, p.60)
De todas as generalizações, permeadas por ditos e não ditos, habitaremos
outra casa, um alpendre, um entre a casa e a rua, um dizer próprio de Orides
Fontela, deixado mistério em sua “minipoética”.
50
Distante de uma generalização ou de uma abordagem histórica linear,
Orides compôs uma minipoética, resultado de três poemas que foram lançados
fora de seus livros na Revista Cultura Vozes. Assim vemos suas marcas que
devem ser pensadas de forma positiva, talvez, através das sugestões de Suely
Rolnik no artigo mencionado acima:
Ora, o que estou chamando de marca são exatamente estes
estados inéditos que se produzem em nosso corpo, a partir das
composições que vamos vivendo. Cada um destes estados constitui uma
diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o
que significa que as marcas são sempre gênese de um devir. (Rolnik, 1993,
p.7)
Em mudança constante, os símbolos que negativamente Vinícius Dantas
chamou de móbile, são vistos agora como apoio ou entrada no jogo, da mesma
forma como são consideradas as marcas acima: “gênese de um devir”. Vamos aos
inéditos6:
Da poética:
Sincronia
Pescar – dois tempos:
a espera (paciência)
e o peixe
n’ água
Pescar: dois
mundos
dois intensos
silêncios.
6 Os poemas inéditos, que fazem parte da seção Da poética, foram publicados na Revista Cultura Vozes, encontrados na página eletrônica: http://www.culturavozes.com.br/revistas/0294.html. Ao todo são três poemas intitulados: “Sincronia”, “Poética” e “Metafísica (uma aula)”, que veremos a seguir.
51
E eis que – de súbito-
os dois tempos
se en
gancham:
mérito da
paciência azar
do peixe.
De início, primeiro convite: o título. Se pensarmos em eixos, sincronia,
embora cruze o eixo diacrônico, caminha num paradigma diferente desse. Está
mais para a associação com a geografia, intensidades em linha vertical, do que
para o horizonte de perspectivas históricas em linha horizontal. Bom início para
lançar com a vara de pescar a isca e o anzol. A vara ganha uma conotação
violenta, à medida que coloca na espera toda a ânsia de prender o peixe.
Enquanto o momento esperado não surge, pacientemente se compreendem dois
mundos em intensidade e silêncio, o universo da espera e o universo da água. Os
sujeitos postos em ação, homem e peixe, se engancham em movimentos
contraditórios, a busca e a fuga. O gesto formal de súbito chegar informa o que
verdadeiramente acontece: o mérito e o azar. Felizmente ou infelizmente os
sentimentos se engancham. Vida, ora! Dois tempos em dois mundos, junção de
sobrevivência e experimentação.
Poética
Pescar: arrancar
do silêncio o
inesperado
do escuro o
peixe
vivo
o instante
vital
partindo o
espelho.
II
Na água: anterior
mistério
nas mãos: troféu
peixe
morto.
52
Arrancar, a selvageria instalada. Gesto natural entre o silêncio e a espera
do pescador. No ato inesperado, a surpresa, e o instante vital do peixe arrancado
num momento decisivo. A água, espelho narcísico, assim que o olhar do pescador
não supõe outro universo além do seu, reflete o seu próprio mundo. Somente ao
mergulhador seria dado o ponto de intersecção com o universo do peixe. É no
embate mediado pela vara, que o pescador arranca do seu mundo o peixe, e o
que ganha realce é o inesperado momento, a surpresa arrancada. Como troféu, a
premiação dada como espelho: um peixe morto após o momento de mistério. A
vara mediadora aponta o essencial: a firmeza das mãos, gesto de arrancar.
Metafísica (uma aula)
Peixe
pescado
descobre o
ar:
não volta para
contar.
II
Peixe
pescado:
seu mundo é
novo
ampliado
é um mundo todo
incrível
e – infelizmente –
impossível
(para o peixe um
mundo
errado
e o seu mundo – bom –
roubado).
III
Peixe
pescado:
que novo
estudo!
“A água, então,
não é tudo”?
(Há toda uma
física
e uma – definitiva –
metafísica).
IV
... mas o peixe
pescado
já não
nada
e – é pena – não aprendeu
nada.
53
Uma aula de metafísica em quatro atos. Embora não tenha “aprendido nada”,
o peixe processou algumas lições. Aqui, o momento súbito da pesca em que foi
arrancado de seu próprio mundo, no instante vital, fez o peixe descobrir um novo
mundo ampliado, seu e todo incrível, mas, infelizmente, constituído através de um
roubo. Apontamento do aprender por lições em pena. Como se constitui
verdadeiramente uma aula? Ações dramatizadas por roubos de mundos já
sabidos e lições de mundos ainda não sabidos. Metafísica trocada por
metamorfoses de saber.
54
2. logro astucioso : ludismo
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
Orides Fontela
55
Ludismo. Segundo passo dado na armadilha de Orides. Durante esse
momento, a armadilha se faz logro astucioso ou torna-se gozo adquirido através
da habilidade em enganar. Assim, a idéia do prazer na brincadeira associa-se às
descobertas e pressupõe coragem para correr riscos. Leitura e tese como
brinquedo. Sua poesia não é visual, sua poesia é corporal, ou os dois, calcada no
corpo da linguagem, na palavra.
Para uma das leitoras de Orides, Elizabeth Hazin, o ludismo em seus
poemas indica cacos que compõem a matriz de seu universo poético, o centro de
onde irradiam as formas e as cores que compõem o mapa lúdico e lúcido
imprimindo-lhe caleidoscópico ritmo circular. Segundo ela, não há costuras entre
as partes dos livros – é tudo um só cristal, por onde a escritora estende um fio,
para fabricar um jogo de espelhos entre eles.
Logo na entrada desse universo, instaura-se a feitura manual da armadilha.
Tateando através da leitura da palavra poética, vamos compondo, enquanto
leitores, nosso caleidoscópio de imagens. Essa perspectiva sobre Orides Fontela
tentamos deixar à mostra, evidenciando, por meio da imagem reconfigurada que
inserimos no início deste trabalho, suas mãos de tecelã.
Orides fez-se, para nós, tecelã astuciosa, uma vez que, por uma “excessiva
vivência”, atingiu uma “consciência demais do ser”. Sem papas na língua, anuncia,
com palavra cortante, que tudo na vida será capaz de ferir, de tão real que nos
despedaça.
Não será tão exigente solicitar da leitura da poesia de Orides uma
aproximação sensorial pois, aproximando-se do objeto, para nós, ela tateia e
trabalha numa leitura manual e não intelectual, conforme sugere o poema “Tato”:
Mãos tateiam
palavras
tecido
de formas.
Tato no escuro das palavras
mãos capturando o fato
texto e textura: afinal
matéria.
(Fontela, 1988, p. 23)
56
Embora o movimento de fazimento-desfazimento esteja imediatamente
associado a um sentido tátil, é o olho que vê, despertando o estado da atenção
através do recorte e do enquadramento que nosso olhar faz. Embora no capítulo
anterior tenhamos dito da mão e do olho, aqui queremos voltar ao caminho da
mão, pois esta manuseia a dureza da palavra, numa fazedura, selecionando a
feitura dos significados em ação.
(a dureza da palavra:)
Aprender a ser terra
e, mais que terra, pedra
nuclear diamante
cristalizando a palavra.
A palavra definitiva.
A palavra áspera e não plástica.
(Fontela, 1988, p. 24)
No sentido da aspereza, o trabalho é permeado pela ação do verbo retirar
através do pranto, do assassinato e do sangramento, da destruição das coisas
mais sensíveis como os segredos. Ações destrutivas que confirmamos nos
poemas “Pouso”, “Rosa” e “Meio-dia”, respectivamente, da segunda parte
intitulada (-) do livro Transposição.
“Pouso”
Ó pássaro, em minha mão
encontram-se
tua liberdade intacta
minha aguda consciência.
Ó pássaro, em minha mão
teu canto
de vitalidade pura
encontra a minha humanidade.
Ó pássaro, em minha mão
pousado
será possível cantarmos
em uníssono
se és raro pouso
do sentimento vivo
e eu, pranto vertido
na palavra?
(Fontela, 1988, p.32)
57
Nesse primeiro poema, a leveza do vôo do pássaro aparece em
contraponto ao pouso possível que realiza. Mas um pouso que pressupõe a
presença do outro que lhe estende a mão. Na sutileza do sentimento vivo,
aparece, então, a crueldade no seu sentido desumano. Se esse pouso em mão é
raro, também aquele que estende a mão se converte em pranto na superfície de
sua fala: a palavra. Assim, configura-se o limiar do encontro: liberdade, vitalidade
e humanidade, intermediado pelo canto.
“Rosa”
eu assassinei o nome
da flor
e a mesma flor forma complexa
simplifiquei-a no símbolo
(mas sem elidir o sangue).
Porém se unicamente
a palavra FLOR – a palavra
em si é humanidade
como expressar mais o que
é densidade inverbal, viva?
(A ex-rosa, o crepúsculo
o horizonte.)
Eu assassinei a palavra
e tenho as mãos vivas em sangue.
(Fontela, 1988, p. 33)
O assassinato aparece aqui como ssacrifício realizado pelo sangue.
Suposições de uma hamanidade em que sua expressividade só pode ser
representada através das mãos vivas em sangue, mesmo que para isso tenha de
prevalecer o assassinato da palavra.
58
“Meio-dia”
Ao meio-dia a vida
é impossível.
A luz destrói os segredos:
a luz é crua contra os olhos
ácida para o espírito.
A luz é demais para os homens.
(Porém como o saberias
quando vieste à luz
de ti mesmo?)
Meio-dia! Meio-dia!
A vida é lúcida e impossível.
(Fontela, 1988, p. 34)
A procura por uma percepção mais sensível da realidade inclui como força
motriz e condutora a intensidade. Essa parte incorpórea é representada pelo
sentido da visão no poema, se consideramos que o olhar é a janela da alma.
Subjetividade em ação, esse funcionamento inclui o desvendamento de enigmas e
a garantia do secreto, do que se dá a revelar no descobrimento, desvendamento.
Silêncio e confidência fazem parte de um processo particular em busca de clareza.
Nesse processo, se o claro for simbolizado pela luz solar, a busca torna-se
impossível quando ela é mais intensa: “ao meio-dia”.
A luz, a “lucidez ácida ao espírito”, desfaz os segredos, desarranjando e
desorganizando o processo. A parte incorpórea da compreensão é ameaçada pela
crueldade, pela impossibilidade de ver, uma vez que ao meio dia a luz ofusca a
visão, tirando seus mistérios. Acaba com o exercício de desvendamento. Viver,
então, é impossível.
E no auge do ato de retirar, o poema “Destruição” nos diz que
A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.
A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.
A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.
(Fontela, 1988, p. 36)
59
Desintegrando a essência inutilmente, o embate entre a coisa e a vida
perpassa três fases: a coisa contra a coisa, a vida contra a coisa, a vida contra a
vida. No embate entre iguais, a coisa e a vida nos indicam que não existe uma
verdade pronta e acabada, que o manuseio da coisa e da vida podem dizer do que
se oculta e configura uma outra possibilidade. Contrário ao viver está a análise
pura. Ela é inútil e cruel se procura sintetizar o ser sabido. Desintegrar a essência
inutilmente para atingir essa síntese é não compreender a coisa que Orides
explica no poema que transcrevemos a seguir.
“Coisas”
mescladas
a esmo:
o fim o infinito
o mesmo
a hora e sua
seta
o limite e o após
a seta
o justo e o demais
também
- a beleza e seu
além.
(Fontela, 1996, p. 15)
Exercício do ato. As mãos compreendem-se sobretudo pela sua grande
mobilidade e apurada sensibilidade. Comando do tato, do manuseio sensível do
simples e condução de forças e vibrações de uma vida inteira. Uma questão de
sobriedade que já foi delineada por Deleuze:
No devir não há passado, nem futuro, e sequer presente; não há
história. Trata-se, antes, no devir, de involuir: não é nem regredir, nem
progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples,
tornar-se cada vez mais deserto e, assim, mais povoado. É isso que é
difícil de explicar: a que ponto involuir é, evidentemente, o contrário de
evoluir, mas, também, o contrário de regredir, retornar à infância ou a um
mundo primitivo. Involuir é ter um andar cada vez mais simples, econômico,
sóbrio. Isso é também verdade para as roupas: a elegância, como o
contrário do over-dressed onde se coloca roupas demais, sempre se
acrescenta alguma coisa que vai estragar tudo (a elegância inglesa contra
60
o over-dressed italiano). É verdade também para a cozinha: contra a
cozinha evolutiva, que sempre acrescenta mais, contra a cozinha
regressiva que volta aos elementos primeiros, há um cozinha involutiva,
que talvez seja a dos anoréxicos. Por que há essa elegância em certos
anoréxicos? É também verdade na vida, até mesmo na mais animal: se os
animais inventam suas formas e suas funções, nem sempre é evoluindo,
desenvolvendo-se, tampouco regredindo como no caso da prematuração,
mas perdendo, abandonando, reduzindo, simplificando, mesmo se criando
os novos elementos e as novas relações dessa simplificação. A
experimentação é involutiva, ao contrário da overdose. (Deleuze, 1998,
p.39)
Neste caso, a simplicidade é uma questão de vida, de instaurar potência
nela, na sua experimentação; atentar para o simples é atingir um estado de
sobriedade que parece estar num limite ou num entre. Enquanto Orides, com o
manuseio da palavra, aguça o sentido do tato, revelando o viver através do
desfazimento, Deleuze questiona o simples de nossos possíveis atos, os gestos
que praticamos, solicitando para eles uma involução, um tempo mínimo de
delicadeza e sutileza para o conhecimento. Caminhar, nesse sentido permite
inventar um outro andar: a experimentação de novas formas e funções” tanto o
andar como o viver denso.
A destruição, como a entendemos, toma esse sentido, do manuseio, do
trato do sensível numa vida oblíqua. É o simples, um torneio sensitivo. No dizer de
Clarice Lispector,
Como te explicar? Vou tentar. É que estou percebendo uma
realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o
oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não
percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que
viver não é só desenrolar sentimentos grossos – é algo mais sortilégio e
mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida
insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim
com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto
61
ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não
existe nisso contradição.
A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade
para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo
na sua independência desenvolta.
(...)
A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as
coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se
perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada.
Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a
única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a
face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de
aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos
de infinitamente outro nessa vida de que te falo. (Lispector, 1998, p. 62-64)
A vida outra, de que fala Clarice em seu livro Água viva através do it, não
deixa de ser a busca pelo ser de que nos fala Orides ou o devir de que nos fala
Deleuze. Todos eles chamam a atenção para o acontecimento. A vida é também
desenrolar sentimentos finos com vigor animal. E nesse desenrolar evidencia-se
uma intimidade que não pode ser ferida por uma instância qualquer,
principlamente por uma “inútil crueldade da análise”. Há, mostra Clarice,
“desencontro leve entre as coisas”, que deve ser singularmente pensado, porque
trabalha num quase, num vir a ser, num tornar-se outro. É uma busca por uma tal
expressividade que garante à energia criadora uma potência do mínimo agir-
pensar. São os “delicados fios de aranha” porque “nós somos de soslaio para não
comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo”.
Conforme lemos na epígrafe desse trabalho, para Heráclito, um querido
filósofo pré-socrático, o tempo parece uma criança brincando, enquanto
manipuladora do jogo poético, pensando o ser de forma lúdica. As mãos dirigindo
o jogo.
Entrar no universo da obra de Orides Fontela significa ter como passaporte
essa idéia de jogo como atividade lúdica. Nesta perspectiva, jogo não seria
qualquer tipo de interação, mas sim, uma atividade que tem, como traço
62
fundamental, os papéis sociais e as ações destes derivados, em estreita ligação
funcional com as motivações e o aspecto técnico-operativo da atividade.
No desafio do jogo, precisamos pensar que regras estão condicionadas no
início da partida e que regras são reconduzidas e instauradas a partir da própria
ação do jogar. Orides Fontela, na tessitura de sua poesia, estabelece também
suas próprias regras, faz girar um pensamento circular, percorre o
desenvolvimento do conceito de tempo a partir de pressupostos históricos e cria
seus próprios jogos, tecendo ao longo de sua obra o que chamamos de teia
cósmica. Neste sentido, a capa estranha de Teia vai ganhando nova configuração.
Consideramos teia cósmica uma tessitura sensitiva onde predomina a
sensibilidade do leitor, portanto atentamos para as seguintes observações
extraídas do estudo do texto “A Poética”
À apreensão estética do texto poético adere a observação reflexiva
do leitor, que, a cada leitura, descobre novas possibilidades de significados,
potencializados na obra pelo escritor. Que de criatividade não revelou a
leitura do Édipo Rei levada a cabo por Freud! Ler o mundo da obra com
criatividade é, assim, num primeiro momento, envolver-se
desinteressadamente com o objeto artístico, desvinculando essa primeira
leitura do pragmatismo do nosso cotidiano. Significa captar, em inocência,
em idade de criança, a dimensão estética do objeto. Em seguida, entramos
em atividade com o seu universo infindo de sugestões, recorrendo a razões
com o intuito de fornecer as condições para decifrar, nas relações dos
elementos poéticos do texto, os (des)caminhos da raça humana. Nesse
modus legendi, o dinamismo da interpretação se impõe, carregando o leitor
da estética para a poética, do prazeroso à racionalidade e vice-versa.
Adotando esse paradigma, o leitor, esse sujeito-ativo, não limita a liberdade
de leitura aos pressupostos de um método único, mas, através dos valores
que fazem nossa realidade pessoal e na companhia dos que fazem a
tradição cultural à qual pertencemos, sentimo-nos munidos do indispensável
para iniciar esse exercício de leitura, a qual busca revelar, afinal, na verdade
inaugural do texto artístico, as verdades históricas da própria caminhada do
homem. Admitindo a participação criativa do leitor, temos presente que “as
63
pesquisas sobre o ato de leitura (...) permitem colocar em evidência que a
leitura, longe de ser uma simples decifração de signos, implica cooperação
do leitor. (Maingueneau, 1995, p. 21 apud “A Poética” in: Andrade, 2001, p.
64).
Conforme vimos no capítulo anterior, o ludismo nos coloca de frente com
questões que podem ser consideradas, num primeiro momento, inúteis e gratuitas
para a sociedade capitalista. Por outro viés, são a inutilidade e a gratuidade que
nos importam, neste jogo de relações textuais de Orides.
Numa leitura mais atenta da teia poética de Orides, percebemos a criação
de uma “teia sensitiva, vivente”. Como a teia, a linguagem encontra-se em frágil
construção contínua, atravessada por silêncios que constituem ao longo da
escrita, uma armadilha. “Fatos são palavras ditas”, aqui interposta por essa
delicada construção que, fio a fio, é tecida/regida por uma duração. Enquanto as
mãos elaboram o tecido escrito, “o amorosamente tramado”, fazem também um
percurso temporal que diz da qualidade ou intensidade dessa duração.
Desobrigada do fim, a experimentação dessa duração delineia-se em
processo contínuo uma vez que “da vida não se espera resposta”. Assim, a poeta
lança-se para experimentar as palavras e, através delas, descobrir a multiplicidade
do real. Na obra de Orides, é bastante representativa da tecelã, a figura da
aranha. Essa fiandeira que segrega seda elabora um movimento todo seu a fim de
fabricar lentamente sua teia. A teia de aranha é uma tela de fios finíssimos que
formam uma espécie de rede elástica e que é produzida pelas aranhas a fim de
captar insetos para sua alimentação. Pressupondo a espreita, enquanto prepara
cuidadosamente a teia, a aranha é afetada por um delicado movimento interior –
“curva-te és infinitamente mais estranho”, que define para ela uma capacidade de
encontrar-se em constante transformação. Nessa metamorfose/metaformose,
irradia-se, tanto para a aranha como para a teia, uma operação em que se
mapeia, a cada construção, uma nova configuração.
Nessa feitura silenciosa, a secura do silêncio cortante como metal é
substituída por um nascimento constante e fluido como água que corre, surgindo
por detrás da fonte. Ressaltamos aqui que a pedra estanque, por trás da qual a
64
água emana, esconde a visualização do dinamismo da água. Dessa forma, cria-se
uma produção de subjetividade, subjetivação ou singularidade que é antes
experimentação de um real calcado por sensações múltiplas em devir-pedra,
água, fonte, silêncio, metal, aranha. Para pensar sobre essa produção de
subjetividade, vejamos a idéia de máquina de Guattari segundo Peter Pál Pelbart:
(...) o maquínico (que é o contrário do mecânico) é processual,
produtivo, produtor de singularidades, de irreversibilidades, e temporal.
Nesse sentido ele se opõe termo a termo à idéia de estrutura, de
intercambialidade, de homologia, de equilíbrio, de reversibilidade, de
ahistoricidade etc. Mas o que importa é o fato de que essa concepção
maquínica, nada “naturalista’, já que faz do universo uma grande fábrica,
estendendo a produção engendrante para todos os níveis, serviu de base
para apreender de um modo novo o domínio não discursivo. O não
discursivo, ao deixar de ser uma matéria informe à espera de uma
estruturação significante, ganhou uma potência infinita. O resultado foi um
mundo material e imaterial sem centro, sem instância determinante, sem
transcendências despóticas nem equilíbrios reasseguradores. O diabolismo
filosófico. (Pelbart, 1993, p. 121)
A autonomia dessa singularidade é capaz de gerar um movimento próprio
para a existência e de produzir combustível suficiente para gerá-la
continuadamente. Vejamos a seguir dois trechos recortados do mesmo artigo
citado acima, um sobre o diabolismo filosófico e outro sobre a idéia de ser, com o
que, para que as pistas não pareçam dispersas, o leitor é convidados a pensar a
partir de dentro, portanto teoricamente, a construção da teia de Orides.
O diabolismo filosófico tem duas faces: consiste em estender a idéia
de produção, essencial na máquina, para todos os níveis, inclusive o do
desejo, do inconsciente, da existência como um todo; mas, por outro lado,
também amplia a noção de produção: produção não é só produção de
novos possíveis, quer dizer, produção de produções, de bifurcações, de
desequilíbrios criadores, de engendramentos a partir de singularidades,
65
chegando até, finalmente, à idéia de autoengendramentos a partir de
singularidades, autoposicionamentos, autopoiese.
(...)
Não existe o SER, como equivalente ontológico geral, mas os seres,
e nesse sentido, a ética ontológica nada tem de sagrado; ao contrário, ela é
diabólica. Trata-se de diabolicamente intensificar a multiplicação das
instâncias, a constituição de universos, de processos de singularização, de
diferenciações, de criação de possíveis. Num plano mais prático, significa
optar pelas cartografias que enriqueçam, diversifiquem e multipliquem os
modos de subjetivação, as maneiras de existir, de estar no mundo, de
fabricar mundos. O grande inimigo é sempre a laminação homogeneizante
provocada pelo Capital, que torna tudo equivalente ou indiferente, ou a
laminação provocada pelo Significante, que subsume sob seu filtro a
totalidade do real, com todas suas intensidades, dimensões, variedade, ou
a laminação oriunda da idéia de Ser, ou de Razão, ou de Energia, ou de
Informação, ou de Comunicação, e assim por diante. (Pelbart, 1993, p. 122)
O ato de tramar essa elaboração apóia-se em duas ações aparentemente
opostas: o construir e o descontruir, como se um estivesse implicado
necessariamente no outro. Pulsante, a teia, que também pode ganhar uma
dimensão cósmica, sustenta a certeza e a verdade de um universo “estrelado
dentro de mim”.
A aranha como sujeito romântico, voltado para si, dá voz a um sujeito
incessantemente mutante, oscilando no movimento de nascimento e morte. Essa
movimentação insegura alterna-se, aproximando-se, ora do início da construção,
ora do fim, deixando transparecer uma textura elástica, visualizada na
consistência frágil da teia. Embora lúcido, quando “ao meio dia a vida é
impossível”, o jogo instaura, em cada acontecimento, o espírito lúdico do
fazimento do mundo como espírito da brincadeira.
Uma vez instaurado o jogo, seguimos por uma análise do universo lúdico e
da exposição do leitor em relação ao seu cotidiano, prendendo-nos no que se
refere à questão da atenção. Aqui o jogo está demonstrando o trabalho de
entender teoricamente a construção da poesia de Orides. Conseqüentemente, foi
66
necessário refletir sobre a minuciosa construção do que aqui consideramos como
acontecimento, levando em consideração os gestos de cada indivíduo, incluindo
os gestos da primeira infância, que observamos imediatamente na ação de
quebrar o brinquedo, determinada no poema “Ludismo”
Quebrar o brinquedo
é mais divertido.
As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
Os cacos são outros reais
antes ocultos pela forma
e o jogo estraçalhado
se multiplica ao infinito
e é mais real que a integridade:
mais lúcido.
Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só.
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
e o livre jogo instituído
contra a limitação das coisas
contra a forma anterior do
espelho.
E a vertigem das novas formas
multiplicando a consciência
e a consciência que se cria
em jogos múltiplos e lúcidos
até gerar-se totalmente:
no exercício do jogo
esgotando os níveis do ser.
Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.
(Fontela, 1989, 19)
Com o desenvolvimento adquirido ao longo dos anos, o homem tanto
constrói caminhos como parece destruí-los, para ressignificá-los. Durante o
período da infância, cada indivíduo sustenta a construção de sua subjetividade
através do manuseio com as partes que constituem o brinquedo, pois quebrá-lo,
fragmentá-lo, seria o verdadeiro ato de brincar. Instalam-se segredos novos para
aguçar saber e sabor. Pensando nessa convenção da quebra que Orides propõe
no seu poema “Ludismo”, é importante abordar o que a criança sustenta
brincando, o que ela desacelera enquanto joga.
Segundo Lyotard, seria uma possibilidade de restituir uma dívida que temos
com a infância, uma maneira de acompanhar a restituição dessa infância, essa
outra humanidade e os ritmos do jogo: suas regras e seus possíveis. Afinal, para
67
ele, por ser “desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto
aos objectos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benefícios, insensível à
razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e
promete os possíveis.” (Lyotard, 1989, p. 11)
Desconstruir manualmente significa trabalhar com pedaços que nos levam
a uma construção maquínica, uma fabricação de estados novos, em consonância
com o ato em si e com o real. Um pedaço do brinquedo multiplica-se em cacos
antes inimagináveis gerando uma abertura para surpresas (nada geométricas),
trabalhadas no real do ser: luz: lucidez. No trecho “mundos frágeis adquiridos / no
despedaçamento de um só. / E o saber do real múltiplo / e o sabor dos reais
possíveis...”, percebemos que nem sempre temos nossa atenção voltada para
essa multiplicidade, algo que não está pronto e para o qual podemos não nos
dispor.
“(...) e o livre jogo instituído / contra a limitação das coisas / contra a forma
anterior do espelho” passa a ser estado de reflexo, reflexão, um pensamento
contínuo que gera um movimento caleidoscópico em consonância com a vertigem,
com aquilo que é incontrolável. Ressalte-se, nesse ponto, a consciência, ao invés
da alucinação, porque lúcida, atingindo um resultado final que é alcançar o
objetivo de estar em processo no exercício das descobertas do ser. O ato faz-se
mais intenso. Nos dá uma respiração diferente. Para entender essa consciência é
necessário explicar que ela tenta ser separada ou diferente daquela apregoada
sistematicamente por um mundo cartesiano que atrapalha diferentes mundos,
diferentes percepções da realidade, porque excludente. Ainda com Peter Pál
Pelbart, acompanhamos o que seria na verdade um apelo contra essa exclusão.
No artigo “A utopia asséptica” ele nos sugere que
(...) se pudéssemos sugerir alguma reivindicação que não depende
da aceitação de uma emenda legal, pois não pode ser atendida por
decreto, seria preciso resumir tudo o que precede numa fórmula lapidar:
sim, fim do manicômio, mas igualmente fim do manicômio mental, isto é,
um direito à desrazão. E seria necessário acrescentar imediatamente: um
direito à desrazão, mas sem confiná-la àquele cantinho privado e secreto
68
de nosso psiquismo chamado “nossas fantasias’, onde ela costuma
dormitar inofensiva. O direito à desrazão significa poder pensar
loucamente, significa poder levar o Delírio à praça pública, significa fazer
do Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade
das amarras da verdade, chama-se ela identidade ou estrutura, significa
devolver um direito de cidadania pública ao invisível, o indizível e até
mesmo, por que não, ao impensável. Libertar-se do manicômio mental é
isso tudo e muito mais. No entanto, para que a “libertação” da desrazão
não venha a ser mais uma astúcia da Razão – como talvez o seja a
libertação dos loucos – é preciso evitar suas ciladas, que não são poucas.
(...)
Nossa modernidade não expulsou os poetas, mas os loucos. Ora,
se a hipótese sugerida acima é verossímil, isto é, se o fim dos manicômios
é também uma forma dissimulada de borrar a Diferença que antes os
loucos portavam, e se a humanização e a homogeneização caminham
juntas no combate aos riscos disruptivos da loucura, deixemos ao menos
que a desrazão – até recentemente “privilégio” quase que exclusivo dos
loucos – vingue em nós. Desta vez, porém, não mais a serviço da razão,
como foi o caso da poesia em Platão, mas a serviço de uma modalidade
inédita entre pensar, viver e desarrazoar. (Pelbart, 1993, p. 108)
Buscar novas sensibilidades coloca o ser humano num estado de atenção,
diferente da velocidade de informações à qual estamos expostos, que pressupõe
uma leitura de mundo que não exclua a possibilidade de criação. Antes respeita-o
enquanto agente de produção de sentidos. Por isso, o quebrar o brinquedo está
diretamente ligado a um trabalho manual de desfazimento, provocando o olhar e
dirigindo a atenção intelectual para o sentido tátil, para o ato e a concentração do
tempo durante essa ação.
No ato de brincar, a criança destrói seu brinquedo para trabalhar com
cacos, geografia em ponta com arestas capazes de ferir e instaurar crueldades.
Toca-se em segredo o “inumano da infância” para habitar um mundo
despedaçado, frágil, silente embora movente. A movimentação fluida da
brincadeira comparada com a água é substituída por um habitar a superfície
69
áspera e fria como a provocada pelo contato com o metal, despertando novos
fragmentos, estilhaços de brinquedo e de vida, superpostos em montagem
caleidoscópica. Basta um giro para mudar toda a configuração do aspecto visual
do jogo.
Giros são pertinentes a vários rituais. Comparem-se os rituais do
candomblé onde o corpo é tomado como casa, habitação interina. Configura-se
aqui a sutileza da construção, um ideal de leveza. Esta é antes simbolizada pela
suspensão da memória em que o peso dos guardados podem significar somente
acenos, desprovimentos. A casa de Orides é preenchida tanto por objetos
concretos como por objetos que guardam heranças sutis e subjetivas como aquele
lenço, encontrado em sua poesia e que foi herdado da raiz mais distante: a avó
fica como lembrança tênue sem raiz fincada, raiz solta ao embalo do vento/tempo.
O lenço dado pela mãe é mote condutor da fuga e desafio nas regras do jogo;
aceno. Nuance e realce de experimentação singular.
“Herança”
Da avó materna:
Uma toalha (de batismo).
Do pai:
Um martelo
Um alicate
Uma torquês
Duas flautas.
Da mãe:
Um pilão
Um caldeirão
Um lenço.
(Fontela, 1989, p. 194)
70
No poema “Herança”, a memória é apresentada como necessidade de uma
atenção que pode ser ressaltada com as formas mais sensíveis de leitura e
interpretação do mundo, apresentando tanto objetos visíveis como objetos
sensíveis, não descartando a possibilidade do adeus representada pelo lenço que
por outro lado é significado dos acontecimentos guardados no peito.
A leitura potencializa as palavras em preto lançadas em papel, a imagem
pode dispersar e conseqüentemente, o distraído pode habituar-se. Se
concentrados os gestos textuais, a linguagem deve escorrer por múltiplos sentidos
e aspectos delineados por si. Em continuidade, os sentidos multiplicados avançam
por uma vibração como a da teia em toque imóvel. A brincadeira se fazendo
aprendizagem constante, invenção que acaba por esculpir o tempo próprio da
brincadeira e do brincante, daquele que se disponibiliza. É como se esse universo
do jogo se constituísse como uma tática de existir fora do cotidiano.
Seu projeto era um projeto essencial, algo calcado na essência, ou
existência em concentração, e potencialidades das coisas concretas e abstratas
que nos circundam no universo. Nessa “busca do essencial a esperança não se
elimina e sempre renova a frustração; durante a espera o poeta está sempre
atento a”. (Marques, 1999). De modo que a atenção do poeta torna-se sempre
presente para perceber o que surge na teia durante o jogo, transferindo para o
leitor a obrigação de estar também atento a e promovendo um congregar-se em si
e em torno do outro.
(...) lutar nesta nova ordem, que investe no “finito ilimitado”, não
poderia deixar de ser um trabalho mais próximo da reciclagem e da
recombinação daquilo que já existe que um trabalho de invenção
totalmente original. Ele também é menos uma criação solitária e
extraordinária que uma ação correlacionada, ordinária e comezinha, que
aproveita o que existe a nossa volta porque, de fato, baseia-se na atenção.
(...) Em várias civilizações não ocidentais, a atenção foi e é um instrumento
de seleção dos encontros, por meio do qual os seres distinguem, em cada
corpo e em cada ação, a potência do poder, a diversidade da diferença, a
mobilidade do nomadismo, o prazer do desejo.
71
(...) Ora, a atenção não se aprende necessariamente com novos
meios tecnológicos. Por mais tautológico e simples que possa parecer,
atenção só se aprende com atenção. E, nessa nova ordem, que chega ao
ponto de criar a desatenção como parâmetro de eficácia, parece-me que
tentar manter-se atento é um primeiro gesto para inviabilizar as ações que
deletam tanto as nossas singularidades quanto aquelas dos que nos
rodeiam. Ela é um primeiro passo para tornar completamente inviável,
impossível e indesejável desconectar a questão “o que estamos fazendo de
nós mesmos” da questão “o que estamos fazendo do outro”. (Sant’anna,
2002, p. 11)
Para o crítico Antonio Candido, Orides “tinha o dom da modernidade, um
dizer muita coisa por meio de poucas palavras, quase nenhumas palavras,
organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade
multiplica suas possibilidades”. (Candido: Apresentação de Trevo.) Essa
modernidade era uma aventura pessoal dela que distante dos enquadramentos
geracionais, permitiu uma leitura mais voltada para o corpo da palavra e para uma
montagem visual de sua poesia. Da Transposição, um jardim não mais geometria
passava por Rosáceas e girava na claridade de Alba em forma de Helianto.
Quando a sorte podia aparecer na crença de encontrar um Trevo de quatro folhas,
o que aparece é a fazedura de uma Teia e simbolicamente uma armadilha no
tempo da poeta.
O desafio seria dos leitores em escolher uma das entradas possíveis para a
sua inquietação poética. Nesse limite, o que está em jogo é um buscar retorcer o
aço, esgotá-lo, tirar dele o que sobra e guardar a essência. Isto porque “em última
instância, os artistas dedicam-se à sua própria profissão não com o intuito de
contar alguma coisa a alguém, mas como uma afirmação da sua vontade de
servir as pessoas” (Tarkovsky, 1998, p. 217).
A partir da palavra de Orides, é feita uma comparação direta com o viver
humano, em que o instante pulsa como se posto no centro do mundo e de lá
reverberasse uma energia que pode ser também percebida através da
similaridade simbólica existente entre o ser e a palavra.
72
Do primeiro ao último livro um caminho percorrido do uso da denotação até
o uso de nomes conotativos na escolha de seus títulos. Orides Fontela recorre a
uma desmontagem para chegar à dureza da palavra, o que pode ser observado
através do uso dos prefixos –des e –re ou do processo de justaposição de
palavras. Elabora seu projeto através de diálogos intertextuais e instaura seu real.
Dessa perspectiva do jogo concreto, a escritora aponta para o seu último
livro que nos faz mergulhar, logo na capa, num universo cósmico. Daí a Teia como
o centro e seu horizonte de perspectiva, um movimento para dentro. Talvez a
instauração do real através das palavras, das imagens, do apelo ao sentido.
Orides Fontela revela sua filiação à vertente mais cética da literatura
brasileira quando ela diz que geneticamente é drummondiana. Se de
Drummond, que é mestre de desenganos, ela terá herdado a aspiração pela
nudez branca e indizível, “escultura de ar” que concretiza a impossibilidade
mesma do ser. De Manuel Bandeira, além do despojamento, terá aprendido
a lição de que a poesia (maculado vinho), não podendo dar água como a
moça do cântaro, deve ao menos nos preparar para a morte (“que é o fim de
todos os milagres”). (Marques, 1999, p. 4)
Como sugere Autran Dourado no final do livro Uma vida em segredo, o
escritor vai “criando um ordenado mundo novo com os pedaços do próprio
mundo.” O que em princípio poderia parecer um relaxamento, em Orides é uma
armação, uma armadilha que prende nossa atenção para sua obra selvagem.
A imagem da teia retrata, no primeiro poema do livro, uma linguagem
condensada, uma idéia espremida em imagens simbólicas, em que cada palavra
tem a força da imagem. Vejamos o poema “Teia”:
A teia, não
mágica
mas arma, armadilha
a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente
a teia, não
arte
73
mas trabalho, tensa
a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:
no
centro
a aranha espera.
(Fontela, 1996, p. 13)
Neste poema, o sentido imediato da teia é negado pela partícula negativa
usada no final do primeiro verso de cada estrofe e reforçado através da
intensidade que acumula cada vez que aparece no poema. No fim, é feita a
marcação desse espaço circular terminando com o verbo “esperar” simbolizando o
ato da escuta atenciosa. A teia, longe de ser silente, pulsa não como ingenuidade,
mas como espreita de ações futuras, pois a aranha “arma”, “sente” e “trabalha”.
Orides Fontela constrói, assim, os acasos como possibilidade cósmica,
donde esta ordem de relação que se estabelece como saída, uma possibilidade de
defender o humano respeitando seu tempo interior e que a escrita acompanha, em
contraponto com um desenvolvimento do Universo que acontece sem finalidade
imediata mas própria e limitado pela possibilidade de explosão do sol. É como se
a vida, que precisa sempre ser explicada por uma idéia de começo ficasse
ameaçada por outra idéia: a de finitude. Por um lado essa postura é marcada pela
mortalidade de cada indivíduo e por outro pela possibilidade de desaparição da
vida no planeta.
Nesse processo de eliminação ou destruição está embutida a idéia de
perda que entendemos aqui também como encontrar-se. Uma vez instalados no
universo da palavra que é essencialmente crueldade, percebemos que a palavra é
densa e prepara despedaçamentos nossos. Nessas reconstruções e
ressignificações do real, o esquecimento vai abrindo espaço para aquilo que pode
ser guardado e gerado em memória. Por outro lado, o esquecimento pode gerar
signicativamente um lugar que nos coloca num tempo vazio.
Construindo e destruindo ou apagando num contínuo, a memória vai
compondo seus gestos. Para elaborar a memória como espaço para as perdas,
procuramos perceber uma construção de uma outra memória, a que se dá sem
74
culpas ou crimes, a do esquecimento. Em seu livro de ficção Aprendiz de inventor,
João Anzanello Carrascoza depois de iniciar seu livro com uma citação de
Drummond, “Perder é uma forma de aprender. E ganhar, uma forma de se
esquecer o que se aprendeu”, nos conta que
Nem bem entrou em sua casa na Terra do Lá, o menino viu uma
porção de objetos que havia perdido.
Botões de camisa, lápis de cor, pés de meias, chaveiros, índios do
forte apache, peças de quebra-cabeças, escovas de dentes, retratos. Eram
coisas e mais coisas de que ele nem mais se lembrava, muitas pelas quais
havia chorado quando se dera conta de que tinham sumido. Como o álbum
de figurinhas com os jogadores de todas as seleções de futebol do mundo,
que o deixara amuado a ponto até de ficar doente. Agora, estava ali, tão à
mão, e ele não resistiu em folheá-lo, experimentando uma forte alegria ao
tocar aquele tesouro que jamais sonhara em rever.
(...) Não podemos parar o tempo. As perdas ajudam a escrever a
nossa história. (Carrascoza, 2003, p. 43)
Pressupondo as perdas, nossa memória baseada historicamente nos
registros em forma de lembrança vai buscar dados que por algum motivo são
efetivamente esquecidos. Percebendo que esses dados escrevem também a
nossa história ou compõem a nossa geografia, valorizamos um pensamento outro.
Para entendê-lo devemos lembrar junto com Daniel Lins que
Esquecer não é crime, diria mesmo que é a condição sine qua non
à invenção de um pensamento-outro, pensamento curado da figura triste
dos sobreviventes da memória, chamados também “tradicionalistas”,
cultuadores das marcas que invadem a consciência e promovem a
memória-mártir, a memória dos historiadores: a chaga, a cicatriz, o traço!
(Lins, 2000, p. 46)
Em seu artigo “Esquecer não é crime”, Daniel Lins nos apresenta outra
marca que não a sugerida positivamente por Suely Rolnik, conforme vimos no
75
capítulo 1. Segundo ele, marcas também são dores, pelo menos como são
entendidas pela sociedade que cultua a lembrança como forma de sinalizar, em
forma de hierarquia, a culpa através de uma responsabilidade moralmente cristã.
Sublimar as dores não se trata de uma negação da história mas antes de
uma faculdade que pressupõe uma nova forma de desejo sem culpa, uma versão
para atingir um ideal de felicidade. Com isso não se está negando a memória, mas
procurando entender que o esquecimento também ocupa um lugar na memória
capaz de gerar novas posturas sensitivas e de ação. Um estado de relaxamento
gera uma abstração importante para a faculdade de sentir. Esta, por sua vez,
garante o “tempo que perdura nossa felicidade”.
Dessa forma, o ato de calar não significa apagar de vez tudo da memória,
mas implica não deixar no sujeito chagas como feridas abertas que ao invés de
provocar um impulso para frente, recupera o lugar do condenado a uma “memória-
brasão” anulando a potência de cada individualidade. Dando lugar à fala ao invés
das dores, trabalhar com essa memória fundada nas palavras garante a ação das
forças reativas do sujeito, a instauração da promessa e, por conseqüência, a
recordação do futuro, uma faculdade de prometer que é um comprometimento
com o futuro.
Memória das palavras e não mais das coisas, uma memória dos signos,
não mais dos efeitos. Por muito tempo, na história do homem, a importância de
uma memória veio acoplada à idéia de suplício, de onde registrar os holocaustos,
as mutilações, os rituais cruéis dos ritos religiosos, o que dificultaria a educação
de um povo de pensadores.
Uma memória resultado não de marcas, mas de palavras cuja configuração
máxima é a construção de uma memória sem memória. Memória da arte, das
palavras e não mais escarificações ou traços em forma de estigmas. Em
conseqüência, inserido na memória das palavras, o homem reencontra a alegria
pois esta memória é construída à base dos sonhos e dos desejos. Ela manifesta-
se como possibilidade de fazer agir as forças reativas dos sujeitos e instaurar a
faculdade de prometer.
76
Na entrevista “Sexo, poder e políticas de identidade”, Michel Foucault
salienta a necessidade de se criar uma identidade que não mais seja conduzida
pela idéia primeira da ética, mas por uma política de identidade que prime
essencialmente pela necessidade da descoberta de prazeres novos. O resultado
alcançado seria, assim, despertar o desejo. “Devemos criar prazeres novos.
Então, pode ser que o desejo surja.”
O desejo garante o devir-memória-palavra, uma política dos signos e não
do significado. Linguagem, sistema cruel de signos, palavras. Tessitura não mais
de artesã, tecelã, mas de artista, poeta. Na atividade de fiandeira, a fazedura volta
sua atenção para a memória ativa em que “o esquecimento é uma rebelião, uma
desorganização, uma dissidência ancorada na meditação que é o oposto do
mutismo ou do quietismo dos homens triturados pelas máquinas de memória”.
(Lins, 2000, p. 50). Memória impregnada de vontade que
passa necessariamente pelo governo de si, pela autogestão de um
tempo, de um tempo outro, sem presente, nem passado, nem futuro, um
tempo curado da história. Um tempo estratigráfico, dirão Deleuze e
Guattari, “onde o antes e o depois não indicam mais que uma ordem de
superposições”, ou ainda, o tempo filosófico que é “um grandioso tempo de
coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa
ordem estratigráfica. É um devir infinito da filosofia, que atravessa sua
história, mas não se confunde com ela (...) A memória, como a filosofia, “é
devir, não história”. (Idem, 58)
O lugar dessa memória da vontade implica conseqüentemente uma
faculdade de viver, um trabalho em ação, num tempo ativo, próprio de uma
memória da vontade habitado por “cartografias criadas pela própria singularidade
de um ser habitado por uma multiplicidade que não encontra sua força – instinto –
nem na contabilidade nem no calendário, mas na capacidade de agir ao invés de
ser agido.”
A paralisia vai dificultar, a partir da incapacidade de agir, o engendramento
de devires prejudicando o ser vivo que termina por destruir-se a si ou a uma
77
população. Esquecer é constituir uma força para garantir uma memória da vontade
que dá conta do ato em si. Dessa forma garante também o encadeamento de uma
“longa cadeia de querer”. Seria a possibilidade de adquirir um esquecimento
criador pensado como abertura para o novo, uma vida nova.
Nesse sentido, encontrarmos uma memória que privilegie um sentido
diferenciado do modelo dos gregos ao contrário de uma cultura cristã que
pregando a memória com sentido negativo promove a culpa, o pecado e o
ressentimento supõe voltar no padrão grego, pois nele, embora a existência seja
considerada culpada, não é sobre os homens que ela habita mas na questão da
falta que os distinguem dos deuses. Com a cultura do ressentimento, ficam
gravadas nos indivíduos como chagas somente coisas que causam dor na
memória. As marcas, as chagas, o sofrimento ficam talhadas no corpo.
O sujeito da memória da palavra deve concebê-la como acontecimento,
afirmando seu pensar, sentir e querer. Desse querer advém a consciência de si,
uma dose de instinto e “subjetividade nômade”. Somente uma boa consciência
seria capaz de construir uma memória livre das marcas “privilegiando “uma
memória agida e ativa”. A responsabilidade recai sobre cada cidadão, que passa a
ser responsável também pela coletividade.
A boa consciência instaura uma ética da alegria que, segundo Oswald de
Andrade, é “a prova dos nove”. A indagação final de Daniel Lins ecoa e escoa
aqui: podemos “Recordar o futuro”?
Recordar o futuro é o projeto da memória! Recordar o futuro é
inaugurar no coração do homem o bom esquecimento, formado pela
trilogia apolínea, pelos três prazeres inseridos, segundo Apolo, na palavra
cantada, apaziguadora das inelutáveis preocupações: Alegria, Amor e sono
suave: “O bom esquecimento é o sono que se apodera da água de Zeus, a
‘nuvem sombria”, o “suave fechar das pálpebras”; é o sono amolecedor que
faz Ares esquecer-se do ferrão áspero das lanças, o sono que vertem os
cantos e o vinho. Léthè não é mais a filha da Noite, mas a mãe das
Chárites, das “visões brilhantes”, da “alegria dos banquetes e dos eflúvios
78
cintilantes” que surgem nos pomposos festins. Léthè acompanha Éros e o
suave prazer das mulheres” (Detienne apud Lins, 2000, p. 59)
Em Orides, um poema muito significativo da idéia de uma memória do
esquecimento geradora de um ato de criação como potência do sujeito ativo é
“Astronauta”. Nele o sujeito é representado pela figura daquele que voa, que
desliza, que navega pelo espaço como um marinheiro, pressupostos o objeto de
locomoção e o passaporte da viagem:
“Astronauta”
Astro
nauta
corpo nave liberta
corpo nave memória
descolada do grave
tempoinfância
corpo plexo vogando
em campo
nulo
corponave memória
no vazio
perdido livre
corpo
despreendidamente
nave.
Onde o horizonte? Astro
cai
em
órbita.
(Fontela, 1988, p. 108)
79
A figura do astronauta fora de órbita, num campo gravitacional diferente,
experimenta uma distância suficiente para olhar de outro modo as coisas. No
espaço sideral desprende-se de tudo, capaz até de gerar para sua história outros
valores. É um caso mais de geografia do que de história se considerarmos que a
pessoa não leva consigo para o espaço um acúmulo de guardados. Agrega em
torno de si, como instrumento primeiro o corpo. A nave, responsável por um
deslocamento necessário, aparece em primeiro lugar impondo uma liberdade da
memória “descolada” do grave tempo infância. O espaço considera o corpo
vagando num nulo. Nesse deslocamento/descolamento, o corpo funde-se, como
corpo e território, em objetivos com a nave, formando nesse poema uma única
palavra “corponave”: “corponave memória no vazio perdido livre corpo
despreendidamente nave”. E realiza assim, uma nova dimensão para a
perspectiva do horizonte, agora verticalizado pela idéia da queda gravitacional.
Ao invés da preocupação em obter o equilíbrio, esse sujeito ativo transfere-
a para entender antes o que “balança o corpo”.
80
3. alçapão : esculpir o tempo
ECLESIASTES
Há um tempo para desarmar os
presságios
Há um tempo para desamar os frutos
Há um tempo para desviver o tempo
Orides Fontela
81
há um tempo...
“Há um tempo pra tudo”, dizia o livro bíblico do Eclesiastes. Dialogando com
o versículo, Orides desenvolve em seu “Eclesiastes” o mote da quebra. Não
necessariamente uma destruição, mas um andar na contramão dos fatos, agregar
os contrários. O molde é talhado por um tempo do desapego, de “desamar os
frutos” e de “desviver o tempo”, como se pudéssemos atribuir uma nova noção
sensitiva ao tempo. Nesta peça do alçapão, seguiremos com Orides a sua forma
própria de esculpir o tempo.
Fugindo do problema de adentrar pelo universo da física, preferimos definir
o tema a partir da composição subjetiva do tempo, ou que por aí atravessa.
Partimos então da elaboração dos poemas de Orides Fontela. Essa montagem
deve ser entendida como sugestão feita pela escritora ao leitor de sua obra, uma
vez que faz a opção pela multiplicidade do uso da palavra tempo, que aparece em
vários poemas de cada um de seus livros, ora como adjetivo, ora como
substantivo complementar.
As questões relativas ao sujeito surgirão em função do tempo e não do
espaço. Entendemos que a questão do tempo abordado de maneira subjetiva
busca conceber a presença do sujeito quando do seu real “acontecimento”. Esse
embate deve vir representado pelo “suor” de que nos fala Heráclito na explicação
para o radical aion na epígrafe desse trabalho, à medida que vai descobrindo
novas formas e perspectivas lúdicas na busca do ser. Nele é o sujeito que se faz
agente.
Ao longo da história da humanidade, o tempo influenciou a velocidade de
determinadas condutas humanas, quase sempre o que vemos é uma acelaração
nos modos de produção que altera o ritmo interno do homem. Dessa forma, a
humanidade instaurou várias culturas de tempo e espaço que, pensadas em suas
diferenças, dizem sempre da condição de adaptação do homem em determinado
espaço e da redefinição da natureza. Entender as sutilezas e nuances dessas
mudanças, permite-nos perceber de forma mais aguçada que mecanismos o
homem constrói para desenvolver sua percepção sobre a maneira de viver.
82
Orides alertava em revista que:
É tempo! É tempo de desviarmos nossa emoção de espanto, nosso
maravilhamento do universo morto para a mente viva – o único mistério a ser
pesquisado. Só assim descobriremos se há respostas... ou se criamos tudo, as
respostas e os problemas. É tempo de nos lançarmos à conquista de uma
suprema lucidez – se for possível – ou aceitarmos a aposta pascalina,
lançando-nos numa fé.
Aliás, a aposta é inevitável – por não termos a resposta. Não sabemos
se existe mesmo algo de transcendente, mas sabemos que tendemos para
isso – pois este é o caminho para nos humanizarmos mais e mais. Não, não
estamos prontos, somos indefinidos, desorientados – mas temos nossa própria
luz. Que ela nos guie – e bola pra frente. Está escuro? Então criemos um
caminho!7
Parece pertinente observar essa postura de construção como a da criança
que quebrando o brinquedo altera o seu lugar no mundo ocupando-o. Traçar um
pequeno percurso temporal da palavra é uma tentativa de descrever como se
forma um olhar próprio para o desenrolar do tempo. Compor um trabalho de
transposição. Gostaríamos de imaginar essa transposição como força potente do
movimento da história, que se atualiza porque se permite navegar junto na mesma
linha e traçá-la sempre estendendo seus fios por retas intermináveis na
imaginação. A soma ao invés do caótico, a mistura múltipla buscando uma
unidade sem centro.
A circularidade história que procura um movimentos outro comporta em si o
impulso para o seu depois, no que irá transformar-se. Neste sentido é necessário
deslocarmos os limites impostos pelo tempo cronológico para não nos limitarmos a
um antes e um depois, sendo mais importante perceber o instantâneo do tempo,
aquele momento calcado no agora, naquilo que está em curso, um certo fluxo de
consciência, das coisas e dos acontecimentos.
7 Este trecho faz parte do artigo “O homem: animal siderado”, escrito por Orides Fontela para a Revista Cultura Vozes. Encontramos esse texto no endereço eletrônico: http://www.culturavozes.com.br/revistas/0294.html.
83
Neste tempo subjetivo, o da sensibilidade, acompanharemos em seguida o
olhar para o tempo trabalhado por Orides Fontela em sua obra poética. Ganha
corpo novo essa fala, essa leitura, e nos leva a percorrer os gestos corporais da
palavra. A saída é seguir criativamente porque somos prisioneiros do tempo.
Acompanhar o trabalho de Orides Fontela é permitir-se deslocar num tempo
outro, mais interior, em silêncio e permissão. Assim como a poesia guarda um
dado de densidade, é calcada num silêncio que nos permite cuidar dos
sentimentos íntimos do ser humano.
Entender essa intimidade como delicadeza permite uma entrada em cada
olhar. Assim ela envolve e ao mesmo tempo nos arrebata, nos desloca, nos faz
um convite sempre: voltar várias vezes ao jogo atentando para novas dimensões e
possibilidade de sentido que a vida toma a partir do trabalho com a linguagem.
Orides respeitava, como nos sugere Antonio Cândido, seu trabalho de
alquimia, instaurava realidades novas partindo de antigos conhecidos como o
espelho, o cisne, a estrela, o pássaro. Aliás, como o próprio crítico sugere:
um poema de Orides Fontela tem o apelo das palavras mágicas que o pós-
simbolismo destacou, tem o rigor construtivo dos poetas engenheiros e tem
um impacto por assim dizer material de vanguarda recente. Mas não é
nenhuma dessas coisas, na sua integridade requintada e sobranceira; e
sim a solução pessoal que ela encontrou. (Fontela, 1983, p. 4)
Orides encontra, ou melhor, constrói essa solução pessoal à medida que
arrisca no limite armado por sua teia cósmica, uma vez que é magnetizada
integralmente. Por exemplo, no poema “Teia”, a aranha espera no centro mas
magnetiza vários outros pontos da teia. Com esse magnetismo, cria vários
mecanismos para armar-se aplicando o tempo diretamente ao viver cotidiano. Em
contraponto, trabalha o antigo para reinventar a matéria de que é formada a arte,
criando suas próprias categorias para dizer do tempo. Tarkovsky, ao esculpir seu
tempo fílmico, tendo sido bastante influenciado pela poesia de seu pai, nos explica
que:
84
Considera-se que o tempo, per se, ajuda a tornar conhecida a
essência das coisas. Os japoneses, portanto, têm um fascínio especial por
todos os sinais de velhice. Sentem-se atraídos pelo tom escurecido de uma
velha árvore, pela aspereza de uma rocha ou até mesmo pelo aspecto sujo
de uma figura cujas extremidades foram manuseadas por um grande
número de pessoas. A todos esses sinais de uma idade avançada eles dão
o nome de saba, que significa, literalmente, `corrosão´. Saba, então, é um
desgaste natural da matéria, o fascínio da antiguidade, a marca do tempo,
ou pátina. Saba, como elemento do belo, corporifica a ligação entre
natureza e arte. (Tarkovsky, 1998, p. 66)
Em Orides Fontela, o tempo assume diversas configurações dando-nos a
impressão de constituir uma constante brincadeira, remetendo ao universo lúdico
de construção do ser através da linguagem. Deste modo, a poeta lança o corpo
para experimentar o real, fazer com que através da nossa própria experiência as
coisas passem a ter existência como se fosse uma maneira de esculpir esse
tempo. Afinal, como escreve Clarice Lispector, “fatos são palavras ditas pelo
mundo” e, assim, desdobrando, retorcendo e desmontando seu material, diz
palavras pelo mundo esculpindo o ar.
“Escultura”
O aço não desgasta
seus espelhos múltiplos
curvas
arestas
apocalíptica fera.
O aço não se entrega
e nem se estraga é
forma
- presença imposta sem signos.
O aço ameaça
- imóvel –
com a aspereza total
de seu frio.
Ó forma
violenta pura
como emprestar-te algo
humano
uma vivência
um nome?
(Fontela, 1988, p. 85)
85
Na escultura do eu, é preciso pensar na energia que impulsiona o trabalho
do corpo. O metal sozinho, liso e plano, ganha recortes em dobra. Existe uma mão
que respeita o embate com o aço, afinal ele “não se entrega nem se estraga”. A
presença do aço ameaça, mas também permite, com sua violência e seu frio
metal, uma vivência.
Do primeiro ao último livro um caminho é traçado, constituindo imagens que
ganham corpo a partir do trabalho com a própria palavra que ela vai lapidando, e
parecem esculpir um tempo próprio à medida que nós nos submetemos a ele.
Pensando a qualidade do tempo, trago uma referência do filósofo André
Comte-Sponville para refletirmos:
O que é o tempo? A sucessão do passado, do presente e do futuro.
Mas o passado não existe, uma vez que já não existe. Nem o futuro, uma
vez que ainda não existe. Só resta, então, o presente, que é o único tempo
real. Foi o que eu quis tentar pensar até as últimas conseqüências. Decorre
daí uma metafísica, que é a metafísica do ser-tempo. E uma ética, que é a
ética do ato. Metafísica do presente, e para o presente:a eternidade é
agora. Ética do tempo, e para o nosso: existir é insistir; viver é resistir.
(Comte-Sponville, 2000, orelha)
André Comte-Sponville nos faz pensar sobre o tempo a partir de suas sete
teses que são, na verdade, algumas reflexões sobre o tempo da consciência
apresentadas no livro O ser-tempo na seguinte ordem: o tempo é o presente, o
tempo é a eternidade, o tempo é o ser, o tempo é a maneira, o tempo é a
necessidade, o tempo é o ato e o tempo é o devir. Todas privilegiam o tempo
presente na duração de sua construção, o agora.
Os símbolos estão presentes de forma muito significativa em toda obra de
Orides Fontela, apontando para a importância subjetiva de construir significados a
partir da relação entre o leitor e o mundo. Se o importante é o ato de fazer, a
prática de incomodar-se com o que se apresenta pronto, nossa abertura deve
pretender receber a qualquer momento uma “carta” como a do poema o qual “da
vida não espero resposta”.
86
Daí estar sempre presente, em nossas mãos e sob nossa responsabilidade,
a possibilidade de sonhar e realizar intensamente a vida como dizia o escritor
africano do Moçambique e contador de histórias Mia Couto, para quem devemos
ficar “varandeando, retocando o horizonte.”
Como muitas vezes em nossa sociedade mecanicista, cada vez mais
marcada pela idéia de produtividade, a marca humana desaparece, é necessário
pensar saídas para a busca de uma essência para o ser. Nesse caso, deveríamos
esperar um posicionamento marcado pelas apropriações das nossas relações
humanas. Para os índios, por exemplo, a relação imediata da civilização baseia-se
na idéia do ter contraposta ao que eles consideram marcado pela idéia do ser.
Dessa relação advém a idéia do respeito ao outro, principalmente com os mais
velhos, associando a esses um ideal de sabedoria. No livro A terra dos mil povos,
o escritor indígena Kaká Werá Jecupé, preocupado em contar a história indígena
brasileira e em difundir a sabedoria ancestral de seu povo conta-nos no capítulo “A
invenção do tempo”, a relação estabelecida entre sua tribo e o universo.
Reproduzimos:
WAHUTEDEW´Á, O ESPÍRITO DO TEMPO
O tempo, para os povos indígenas, é uma divindade sagrada
encarregada de manter a Lei dos Ciclos: as estações da Terra e as
estações do Céu. As estações da Terra podem ser medidas pelo Sol e as
estações do Céu, pela Lua. O tempo faz a ligação do ritmo – que é
coordenado pelo coração – com a ação e a inação. O Pai Tempo tem
muitos nomes entre os povos. O povo Xavante chama o espírito do tempo
de Wahutedew´á.
Quando chegaram as Grandes Canoas dos Ventos (as caravelas
portuguesas), tentaram banir o espírito do tempo, algemando-o no pulso do
Homem da civilização. Dessa época em diante, o tempo passou a ser
contado de modo diferente. Esse modo de contar o tempo gerou a história,
e mesmo a história passou a ser contada sempre do modo como
aconteceu para alguns e não do modo como aconteceu para todos.
Aqui, a partir desse tempo inventado pela civilização, foram
resumidos os principais fatos desse tempo – inventado, mas de ações
87
humanas reais e, infelizmente, na maior parte das vezes, cruéis.” (Jecupé,
1998, p. 71)
No pensamento indígena sobressai a importância da ligação que o tempo
faz ouvindo o ritmo do coração, o ritmo próprio do tempo quando ele está em
liberdade, quando não havia ainda uma preocupação em estabelecer uma história.
A tentativa de submeter o tempo a partir do ponto de vista de alguns gera a
crueldade. A partir desse ponto podemos pensar no que acaba, no que pode
constituir uma finitude, como se dissesse da necessidade que o homem civilizado
tem de colocar tudo sob seu controle.
Para Lyotard, em seu livro O inumano, o desenvolvimento tecnológico que o
homem alcançou, muitas vezes desumano, pode acelerar a finitude da vida no
nosso planeta. A saída para esse desenvolvimento tecnológico seria atentar para
as possibilidades cósmicas em relação à energia solar. Na iminência de sua
destruição, o universo seria regido por uma outra energia, portanto melhor
observar esse outro magnetismo. Acreditamos que Orides nos fala dessa energia
mais abrangente e geral, que vai orquestrando possibilidades para o universo, à
medida que traz à tona, em alguns poemas como “Herança”, um questionamento
sobre a memória. Rememorar pode significar trazer de novo ao coração, como se
pulsasse no seu próprio ritmo-tempo.
A memória que queremos frisar é aquela trabalhada a partir das nossas
lembranças e que, no entanto, aqui, caberia melhor se pensada como
apagamento, uma memória do esquecimento acionada quando precisamos
subtrair algo por conta de um diálogo mantido com a cidade e uma maneira muito
peculiar de caminhar por ela e nos protegermos. Não que a poesia de Orides
Fontela seja feita de lembranças e recordações mas interessa a maneria como é
constituída essa memória se, ao invés de nos apoiarmos nos fatos, estimássemos
os atos vividos e experimentados. Memória do lembrar e memória do esquecer
ritmada por um vai e vem constante entre lembranças e apagamentos em que o
tempo, com sua característica insubmissa, vai chamando o homem a refletir,
cuidar de si, não se abandonar, nem as possibilidades que promete, pois um novo
88
arranjo de visibilidades pode constituir aqui uma maneira de resistência no
espaço.
Estaríamos, neste ponto, diante de dois universos: um tempo do sujeito, e
intrinsecamente ligado a ele o seu pensamento, versus um tempo de forças. Esse
tempo do sujeito teria assim sua própria dinâmica interna sem ter uma finalidade
concreta, enquanto o tempo do desenvolvimento seria condicionado por um limite
físico.
Colocando em jogo essa visão cósmica, lançar-se passa a ser então,
próprio da experiência corpórea e estaria, na obra de Orides Fontela,
representada pela imagem subjetiva da teia que arma suas próprias armadilhas
sem estar morta mas sendo sensitiva, vivente; tecida por uma imagem de
entrecruzamento, em que um conjunto de imagens entrecruzadas que originam
outra imagem revela uma imagem mais forte.
Balançar o corpo, lançar-se, deslocar-se, implica riscos e uma vivência, a
experiência alimenta o caminho e tanto permite uma consciência como uma
transcendência, longe de uma metafísica especulativa, perto da experimentação
do real, de como ele surpreende, da palavra lúdica, que multiplica as
possibilidades à medida que se quebra, que instaura outros jogos.
Dessa forma, com sucessivas mortes ao longo de uma só vida, em
constantes metamorfoses, e aproveitando o tempo oportuno traduzido do
pensamento grego como kairós, Orides Fontela nos convida, desde seu primeiro
livro, a transpor um lugar, e o ritmo que passa a reger essa nova vivência é a do
cantoflorvida que em Lyotard equivale
(...)a vossa filosofia do fim sem fim, da morte imortal, da diferença
incessante, do incidível, é uma expressão, e pode ser a expressão por
excelência, da meta-regulação. Como se esta por sua vez se tomasse
como referência enquanto meta-. Pois muito bem, mas não esqueçam que
esta faculdade de mudar de nível referencial não advém de outro sítio que
não seja o do poderio simbólico e recursivo da linguagem. (Lyotard, 1989,
p. 22)
89
Nesta brincadeira há uma composição e uma entrega, constituindo os
pilares dinâmicos de criação e avaliação, representadas pela imagem do corpo e
pelo trabalho com a linguagem, que a escritora vai tecendo. Sendo assim, na
brincadeira estão embutidos corpo e linguagem. O corpo, por sua vez, não
determina o espaço por onde vai lançar-se seguindo determinadas regras, antes
cria essas regras depois de um processo de reflexão. E muitas vezes suspende,
por essa movimentação entre o universo objetivo e subjetivo do sujeito, o tempo.
Vejamos o poema “fala”, de seu último livro Teia:
Falo de agrestes
pássaros de sóis
que não se apagam
de inamovíveis
pedras
de sangue
vivo de estrelas
que não cessam.
Falo do que impede
o sono.
(Fontela, 1996, p. 14)
Nele a vida é latente em tudo que circunda. Alguns símbolos recorrentes
em sua obra como pássaros, sol, sangue e estrelas aparecem como sinais a fim
de provocar um ritmo para o coração humano. Nesse sentido, gostaríamos de
apresentar os sinais do espírito na forma como aparece na tribo indígena de Kaká
Werá Jecupé, porque está muito afinada com o nosso pensamento e com a
relação que estabelecemos na poesia de Orides Fontela:
Se o tempo para os indígenas tem um espírito, há também sinais que
devem ser entendidos. Afinal, entender a lei do coração significa compreender seu
caminho, estar atento a. Essa interpretação calorosa pressupõe silêncio. A fala do
90
espírito dá-se em sonho, nele existe uma força. Analisemos algumas relações:
beija-flor: idéias, coruja: sabedoria, o que ora voa na natureza e o que ora toca no
coração, havendo portanto tempo de semear e tempo de concentrar-se. Ventos e
rios, que passam e permanecem, são mensageiros, e podem entoar, muitas
vezes, também um canto de lamentação. Há um pacto importante com a natureza.
A energia dessa relação é simbolizada pela seqüência de um ritual. Sempre da
criação há uma roda, uma narração, uma necessidade de gravar, registar
pulsações que advém das narrativas, há uma preocupação em aquecer as leis no
coração. Parece contraditório, mas as leis são gravadas e armazenadas no
coração humano, uma garantia com ideal de cumplicidade.
“Coisas”
mescladas
a esmo:
o fim o infinito
o mesmo
a hora e sua
seta
o limite e o após
a meta
o justo e o demais
também
- a beleza e seu
além.
(Fontela, 1996, 15)
Uma transmutação da forma do ser durante a vida, a hora como invenção
humana e a transposição dos limites como aquilo que constituiria uma resistência
(se trabalhamos com a idéia de finitude, aproveitar a energia desta), o que seria
rasgo: o abismo, o salto, o impulso, o pathos. Esse impulso poderia ser
representado pelo grito ou por um momento de êxtase mas que agrega a si um
91
processo, uma experimentação no e do que se faz, um culto. A nosso ver esse
processual é marcado no poema “Maiêutica”.
Gerar é escura
lenta
forma in
forme
Gerar é
força
silenciosa
firme
gerar é
trabalho
opaco:
só o nascimento
grita.
(Fontela, 1996, p. 18)
O processo pode ser associado ao trabalho e este a uma construção. Na
poesia de Orides, e principalmente no poema ”João”, estabelecemos uma
construção do concreto que por sua vez vai também construindo o abstrato: a
construção de uma identidade humana que vai sendo simbolizada pela identidade
do pássaro. O poema é também construído por parte, vejamos:
De barro
o operário
e a casa
(de barro
o nome
e a obra).
II
O pássaro-operário
madruga:
construir a
casa
construir o
canto
ganhar – construir –
o dia.
III
O pássaro
faz o seu
trabalho
e o trabalho faz
o pássaro.
92
IV
O duro
impuro
labor: construir-se.
V
O canto é anterior
ao pássaro
a casa é anterior
ao barro
o nome é anterior
à vida.
(Fontela, 1996, p. 19)
Segundo o dicionário Aurélio, “axiomas” é um conceito da filosofia que
significa premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente
verdadeira sem exigência de demonstração. Seguindo o conselho de não esperar
respostas para a vida, pensamos na medida do nosso saber, em como
trabalhamos nossos sentidos, nos riscos que corremos, nas conseqüências de
enfrentar um caminho e assim estarmos prontos para lançar o “vôo” pela
oportunidade, o tempo oportuno, a ocasião do кαірóς.
“Vôo”
Ter
asas
é não ter
cérebro
ter
cérebro
é não ter
asas.
(Fontela, 1996, p. 28)
“Axiomas”
Sempre é melhor
saber
que não saber.
Sempre é melhor
sofrer
que não sofrer.
Sempre é melhor
desfazer
que tecer.
Sem mão
não acorda
a pedra
sem língua
93
não ascende
o canto
sem olho
não existe
o sol.
(Fontela, 1996, p. 26)
“Newton (ou A gravidade)”
I
A maçã
cai
e os astros
dançam.
II
O abismo atrai
o abismo: caio
em
mim.
(Idem, p. 29)
“Kairós”
Quando pousa
o pássaro
quando acorda
o espelho
quando amadurece
a hora.
(Fontela, 1996, p. 31)
“Mão única”
_ é proibido
voltar atrás
e chorar.
(Idem, p. 33)
94
Na suspensão do tempo, um limite estabelecido previamente seria
imediatamente trocado pelo que pode vir a acontecer no acaso. Não seria
conveniente à escritora estabelecer regras, mas criá-las, elaborá-las depois de
uma reflexão crítica, tendo como mediador o tempo, uma vez que este opera no
que é dado à consciência experienciar na sucessão dos fenômenos. Orides
instaura para o tempo uma perspectiva poética, onde no instante figura o fulgor, o
brilho da palavra. Afinal, ao olharmos a face de uma palavra, ela nos esconde
sempre outras.
Este é o espírito do ludismo, do acontecimento, tão racional de maneira que
o sofrimento de pensar é um sofrimento do tempo que em toda experiência
humana se infiltra, do acontecimento aprendido porque gerado no sofrimento, nos
momentos de dor e entrega que acabam gerando descobertas e mostrando outras
faces.
Santo Agostinho, depois de tentar depreender o tempo diferenciando o
psicológico do ontológico e permanecendo na dúvida sobre a apreensão dessa
entidade, tenta medi-lo pelas impressões que este causa. Logicamente interessa a
ele um tempo que não está em movimento mas aquele suspenso, parado, sem
velocidade e sem espaço. Daí sua fugacidade, nasce naquilo que ainda não
existe, atravessando aquilo que carece de dimensão, para ir para aquilo que já
não existe. Na verdade, quando tentamos medir o tempo parado, o fazemos pela
sensibilidade. Só assim entendemos que o “tempo é um vestígio de eternidade”.
Esculpir o tempo seria uma tentativa de compô-lo de muitos momentos
passageiros.
Advém daí a originalidade de Orides Fontela, pois em uma atitude positiva e
simultaneamente negativa de criar e destruir, esculpe suas palavras: coisas e
pessoas transformadas pelo tempo. Não se pretende conceituar o tempo pois isto
implicaria em risco. Ao invés, tentamos percorrer a visão poética traçada por ela,
levando em conta o tempo como nossa experiência humana adquirida de maneira
intuitiva a percorrer caminhos produtores de subjetividade. Através dele vamos
nos lançando em nossa própria experiência guiados pelas mãos de Orides
Fontela. A escritora não comanda o tempo controlando sua duração mas antes
95
tenta qualificar essa duração que pode variar de acordo com a disposição de suas
características no instante em que ocorre. A idéia é de que o tempo é quem nos
comanda e ao invés de impor determinadas regras no viver, convida ao jogo para
que nossa experiência sensível humana seja pautada no ludismo, na
representação de algo que se desfaz, se constrói e se reconstrói. Como se
pudéssemos, a cada momento, inaugurar um movimento constante de vir a ser o
que se é.
Um contraponto fundamental é a idéia de originalidade e a de singularidade.
Ser original aponta para ser diferente dos outros, enquanto a razão da
singularidade reside em ser diferente de si mesmo. Nesse sentido, estamos
sempre nos tornando outros e arrastamos conosco a idéia de tempo infinito de
onde advém uma imagem móvel da eternidade. O desafio está na integração de
todo o passado, todo o futuro e todo o presente no instante. Por outro lado, pensar
o instante como totalidade do tempo nos dá uma eternidade móvel sem imagem, a
possibilidade de encontrar a plenitude do acontecimento. Mesmo assim, a
fragilidade de uma realidade imposta parece constituir uma eternidade frágil.
Nesse instante sublime, não há nenhuma forma de encontrar uma possibilidade
humana para descrever o que acontece, há um buraco aberto no interior de uma
realidade, de onde advém a promessa de espraiar o olhar em meio ao que
acontece. Dessa forma existe uma possibilidade de criar um espaço no interior do
qual a vida é possível, com uma serenidade que altere a cadeia dos instantes
corrosivos. Para combater essa característica do tempo, nada como a experiência
resultante da integração plana do passado no presente. É como se não existindo
um lugar, fôssemos chamados sempre a produzi-lo.
Então, o que significa ter consciência do tempo? Mas qual seria o tempo da
consciência? De que modo encontramos uma potência temporal? Tomemos como
diferença o presente e o instante. Pensar que o instante se realiza sendo fiel ao
passado e interessando-se pelo futuro enquanto o agora do presente dura. Viver
no presente não é viver no instante pois o presente dura.
Em muitos sentidos, principalmente no das arestas, o livro Ser-tempo, de
André Comte-Sponville, nos incita a verificar alguns pontos que parecem simples
96
para investigar o próprio tempo. Isto porque, segundo ele, os limites permanecem
mas podem se deslocar. Considerando o presente como único tempo real, a
metafísica do ser tempo encontra a ética do ato. Privilegiar o tempo da
consciência significa atentar para uma esfera subjetiva em que podemos recair,
porque o tempo da consciência é diferente do tempo do relógio, por exemplo. O
que siginifica então preocupar-se com uma consciência lúcida, sem ilusões, que
consegue alcançar algo do real, uma consciência verdadeira? Pensar o tempo da
consciência não é simplesmente ter uma consciência do tempo porque isso não
diz o que é o tempo. Pensar o que ele separa é pensar uma temporalidade e não
é isso que queremos. Então, pensá-lo é ao mesmo tempo desconhecê-lo.
O tempo da consciência, a evidência da consciência comum, pode ser
simplesmente inútil. Afinal, já sabemos que “há tempo pra tudo” e mesmo assim
precisamos “desviver o tempo”. Afinal, o tempo da consciência é múltiplo,
heterogêneo, desigual.
Para Orides Fontela, o nada não importa em primeira instância porque o
presente não é eterno, mas antes a fuga, esta tendência a não mais existir. No
limiar, no limite. Há uma faca de dois gumes na limitação de nossa própria
consciência porque o tempo está no meio de dois nadas: um passado que já não
mais existe e um futuro que ainda não existe.
A fuga, então, nos diz de um deslizamento, de alguma potência vital que
ocorre no momento do deslize, que vive aquele momento. Complicado é partir o
tempo, logo ele que nos oferece as armas para deslizarmos, é no escorregadio
que ele nos foge e nos apresenta. E a nossa consciência tende a reparti-lo em
passado e futuro, fenda desnecessária.
Evidentemente já sabemos que não dá para parar o tempo. Precisamos
escapar, então, do niilismo que separa o ser ou pressupõe sua anulação. O tempo
é tão astuto, no sentido do seu reinado, que supor a presença do ser no tempo é
perceber que ele não é nem o ser nem o não-ser mas o que oscila entre os dois.
Se o tempo é matéria que corre e flui sem permanecer, no dizer de Heráclito, é
vital que exista o ser pois sem ele não existe devir, que exista o próprio tempo,
pois sem ele não há mudança.
97
Dessa forma, nos preparamos para aceitar a mudança, a própria
multiplicidade. Contraditoriamente, o tempo envolve negação pois suprime o ser,
aos mesmo tempo que envolve afirmação, uma vez que supõe o ser. Neste
sentido, envolve também movimento, mudança, história, devir.
Momento de “habitar o tempo”, com João Cabral de Melo Neto:
Para não matar seu tempo, imaginou:
vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;
no instante finíssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porém acessível;
viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;
em ermos, que não distraiam de viver
a agulha de um só instante, plenamente.
Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habitá-lo, na agulha de cada instante,
em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.
E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;
e como além de vazio, transparente,
o instante a habitar passa a invisível.
Portanto: para não matá-lo, matá-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;
em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente
e só ganha corpo e cor com seu miolo
(o que não passou do que lhe passou),
para habitá-lo: só no passado, morto.
(Melo Neto, 1994, p.365)
O tempo é condição do real pois “Ser é ser no tempo; logo, o tempo tem de
ser. Ele contém tudo, envolve tudo, carrega tudo: tudo o que acontece acontece
no tempo, e nada, sem ele, poderia ser nem devir. Ele é, exatamente, a condição
do real.” (Comte-Sponville, 2000, p. 22). Poderíamos traçar uma relação: o espaço
está para o corpo assim como o tempo está para o acontecimento, se entedermos
que nem todo acontecimento seja um corpo. Mas o tempo não existe
absolutamente, ele existe relativamente à mudança, daí sua supremacia em
relação ao espaço.
Medir o tempo segundo um antes e um depois diz mais sobre nós ou para
que nos serve, ao invés de definir o próprio tempo. Há ujma diferença entre o
tempo do mundo e o tempo da alma, pois sem a alma só haveria o presente, é a
alma que faz a ligação, que garante a existência de alguma coisa a medir. O
98
depois anula o antes porque a presença da alma é garantia de simultaneidade
uma vez que ela, através da lembrança, pode prever, esperar ou temer. Isso faz a
diferença, que exista uma coisa distinta do presente. Não somar o passado, o
presente e o futuro mas perceber que a soma cede lugar a uma simples
continuação ou perduração do presente. Daí entender que o tempo precisa da
alma.
A consciência resiste ao movimento temporal, há uma unidade na
consciência. O tempo da alma permite a coexistência, pertence ao tempo porque é
presente, dura e muda.
(...) ela retém o que o tempo leva, inclui o que ele exclui, mantém o
que ele suprime.
Ela lhe pertence, porque é presente, porque dura, porque muda. A
consciência passará como o resto, ou antes, ela já passa, e é por isso que
é temporal antes de ser temporalizante. Mas esse movimento que a leva,
ela o nega ou, em todo caso, a ele resiste. É por isso que é temporalizante
sem deixar de ser temporal.
Temporalidade como tempo da consciência, uma leve distensão da
alma. É o tempo como o imaginamos e como dele lembramos, como o
percebemos e como o negamos, não necessariamente com ele é ou como
ele passa. A consciência vivida e espontânea que crê ilusoriamente em
passado e futuro enquanto o tempo por si tem como exclusivo o irresistível
e o irreversível aparecimento-desaparecimento da sua presença.
A temporalidade é sempre distendida entre o passado e o futuro; o
tempo, sempre concentrado no presente. A temporalidade só existe em
nós; nós só existimos no tempo. Nós a carregamos; ele nos arrasta. Assim,
é da temporalidade – e somente dela – que devemos dizer o que Santo
Agostinho dizia do tempo: que nada mais é que “uma distensão; uma
distensão de quê, não sei direito, provavelmente da própria alma.” (Comte-
Sponville, 2000, p. 32)
Se considerarmos que “somos o surgimento do tempo”, então concluiremos
que sua base é o existencialismo porque pressupõe o ser e o tempo só vem ao
99
mundo se nós estivermos. André Comte-Sponville duvida desse questionamento
porque o tempo existe sem nós.
Atentar sempre para o perigo de confinar o tempo no sujeito porque isso
impede de verificar o aparecimento do sujeito no tempo. Por sua vez, se
colocamos a subjetividade em questão, percebemos que o tempo não pode ser
unicamente subjetivo. Observemos então, as especificidades de cada parte do
tempo.
Mas então, de novo, que é o tempo e como podemos pensá-lo, se
ele se constitui de um nada (o instante sem duração) entre dois nadas (o
passado que já não existe e o futuro que não existe ainda)? (...) Antes
mesmo de haver rememoração ou antecipação, explica Husserl, o tempo é
vivido como a unidade originária do passado imediato (retenção) e do
futuro imediato (protensão) num presente vivo, que portanto só é temporal
para e pelo “fluxo absoluto da consciência, constitutivo do tempo”, o que
Husserl chama também de “subjetividade absoluta”.
Nada do princípio (que não é mais), nada do futuro (que ainda não
é), nada do presente (que não passa de um limite sem duração): o tempo
não seria nada de objetivo; ele só viria a ser por nosso intermédio.
Esses três nadas são de alcance desigual, parece-me, ou antes,
desigualmente convincentes.
Que o passado não seja, por não ser mais, com isso estou de
acordo, é claro. Lembrem-se do primeiro beijo... Não existe mais, nunca
mais existirá. Se vocês quisessem recomeçá-lo ele já seria, no mínimo, o
segundo, e vocês não teriam recomeçado absolutamente nada... Quanto à
lembrança que vocês têm dele, ela não passa de um pedaço do presente:
longe de salvar o ser do passado, ele permite, aqui e agora, tomar
consciência de seu não-ser como não-ser-mais. “Nem o passado, nem os
amores voltam...” A memória não altera nada nisso, salvo a consciência
que, graças a ela, podemos disso ter. O tempo passado não volta, e é isso
que chamamos de passado.
Direi a mesma coisa, no essencial, no que concerne ao futuro: ele
não existe, já que ainda não existe, e o último beijo (salvo no caso dos que
100
já o tiverem dado, mas então não seria mais futuro...) tem tanta realidade
quanto o primeiro. Nossos projetos ou nossas esperanças, tanto quanto
nossas lembranças, não passam de pedaços do presente, que podem, é
claro, visar ou preparar o futuro, mas que não poderiam lhe proporcionar o
ser que lhe falta e que – como não-ser – os justifica ou obseda. O futuro
nunca é dado (se fosse, seria presente): o porvir é por vir, se vier, e é por
isso que ele não existe.
Tratando-se do presente, em compensação, a coisa me parece mais
simples. O presente não é nada, dizia santo Agostinho, já que ele só é
deixando de ser. Não é essa minha experiência: o presente nunca me
faltou, eu nunca o vi cessar, nunca o vi desaparecer, mas apenas durar,
sempre durar, com conteúdos diferentes, por certo, mas sem deixar com
isso de continuar e de ser presente.
O presente é meu lugar, desde o início; o presente é meu tempo, e
o único. (Comte-Sponville, 2000, p. 46)
Pensar no ser-tempo é trocar a esperança de um futuro pela sabedoria, e a
neurose do passado pela saúde. A esperança nos abre para o presente, a saúde
nos liberta da neurose. Bom seria se pudéssemos deslocar-nos entre o passado e
o futuro, por exemplo. O presente tem de ser privilegiado porque é ele que não
cessa de durar, de continuar, de se manter. Logo o tempo não cessa, então, ele é
o presente, a eternidade, o ser, a matéria, a necessidade, o ato. Pensar no
presente, na eternidade frágil, no ser, na matéria, na necessidade, no ato é tornar
potente a sensação de eternidade num instante pleno. Nos diz André Comte que o
presente pode ser comparado a uma pérola ínfima, sem espessura no tempo, mas
que é imensa, infinita, no espaço atual, pois é tudo.
O que pode ser ínfimo e infinito carrega um tom de sobriedade. Daquilo que
acontece de forma gratuita, do que é imperceptível, que está mais na esfera do
estilo, que é substância, do que do efeito, que é obra. Isto nos faz perceber a
validade e a importância do presente em que estamos inseridos. A eternidade
frágil que queremos trazer para cá tem dois sentidos: duração infinita e presente
que permanece presente. Acontece nisso uma mudança de noção pois a
eternidade implica sucessão.
101
A duração pretendida como um ato não como intervalo, nesse ato a
atualidade, o devir, uma eternidade em perpétuo agora. Compreender com a idéia
da flecha que o presente sucessivo nunca é igual, que o tempo permanece
orientado na mesma direção, que flui do passado em direção ao futuro, e que por
isso se difere da fuga, onde considera-se que um acontecimento começa num
futuro em direção a um passado que tudo acumula.
Tomemos lugar na nau do tempo-rei de que nos falava Foucault em História
da Loucura, aquele lugar que levava os loucos para bem longe da cidade, para
navegar, para “pirar” confinados no mar. E então imaginar a simplicidade do
tempo, afinal ninguém pode subverter o tempo, nem detê-lo, aboli-lo, virá-lo ao
contrário; e a realeza dele, que é como uma criança que brinca, pois o presente é
sempre novo, gratuito e inocente. Repensar, com essa gratuidade, a própria
inocência a fim de observarmos, confinados em nossa nau, os nossos mesmos
valores.
Eu diria, em vez disso, mas a idéia é a mesma: perdoar o real por
não ser Deus. Enfrentá-lo, mas sem ódio. Aceitá-lo, mas sem fatalismo.
Amá-lo, mas sem ilusões. Quem poderia ficar zangado com o mar que o
traga, com o furacão que destrói tudo, com o sol que o queima? E para que
adorá-los, quando nos poupam ou nos regalam? É sempre supertição, cujo
contrário é sabedoria. Não julgar, mas conhecer. Não interpretar, mas
compreender. Não rogar, mas agir. Não adorar, mas aceitar, contemplar,
transformar – amar, se possível. Inocência do devir: inocência do presente.
(...) O tempo não foge para passado, nem tende para o futuro: ele é
em si mesmo fuga e tendência, mas uma fuga para lugar nenhum, mas
uma tendência para nada (ou antes, para si mesmo: para tudo); e é o que
chamamos – sem finalismo e sem nostalgia – de presente. (Comte-
Sponville, 2000, p. 80)
Podemos dizer que somos eternos no sentido de que nunca deixamos o
presente, de alguma forma somos contemporâneos da eternidade, à medida que
vivemos uma vida que é eterna enquanto dura.
102
Somos contemporâneos do eterno, sempre; mas não para sempre.
Que mais é viver? Não é o presente que passa em nós; nós é que
passamos nele – e o esquecimento, no fim das contas, prevalecerá contra
a memória, como a natureza contra o homem ou a matéria contra o
espírito. A diferença, todavia, só é significativa para o espírito. Quanto ao
ser, é sempre o presente, é sempre a eternidade. Só estamos separados
dele por nossas saudades ou nossas esperanças, por nossas angústias ou
nossas nostalgias: no fundo somos separados dele apenas por nós
mesmos. Quem fosse capaz de se libertar disso seria, portanto, eterno,
como Epicuro, Spinoza ou Wittgenstein viram, ou antes, todos nós o
somos, mas na maioria das vezes sem condições de vivê-lo. Eternos, mas
não imortais: a vida, como o amor, como tudo, só é eterna enquanto dura.
(Idem, p. 81)
Deslizar por sobre ou com o tempo, propomos ao invés da ação de fugir,
construir uma habitação própria da brincadeira.
Viver no presente nunca impediu ninguém de envelhecer, nem de
se lembrar, nem de se cansar, nem de esperar... “Esperar o quê?”,
indagarão, “se o futuro não é nada?” Esperar o presente, e é isso a
verdadeira paciência. Não se trata de fugir do tempo, de sair dele, de
resistir a ele... Trata-se de habitá-lo em sua verdade, em sua presença, e
isso é a própria eternidade.
(...)é um misticismo sem promessa e sem fé, como se vê no Oriente
ou, de novo, em Spinoza: espiritualidade da imanência em vez da
espiritualidade da transcendência, que vive o êntase do presente em vez
do êxtase da temporalidade, a tensão da ação (e a distensão do repouso)
em vez da distensão da esperanaça, a alegria do amor em vez da
insatisfação da carência, a paz do presente em vez da angústia do futuro,
enfim a atenção e a acolhida em vez da espera ou da preocupação... A fé?
A esperança? Para quê, já que tudo é presente? Somos em Deus, e é por
isso que não há Deus. Estamos no eterno, e é por isso que é inútil esperá-
lo. (Comte-Sponville, 2000, p. 86)
103
E na nau do tempo–rei perceber que não há um fora, entender um projeto
imanente de quem cria, determina, transforma sua própria interioridade, que
permanece no âmbito da experiência possível, agindo na captação da realidade
através dos sentidos. Existir, insistir, resistir. Afinal, é a força da resistência que
transforma o poder bem-comportado em potência circular. Procurar, junto com
Spinoza, favorecer os bons encontros, procurar o desabrochar, aumentar a
potência de agir do corpo.
O que entendo por insistência, ao contrário, seria antes próprio de
todo ser, consciente ou não, vivo ou não: insistir, nesse sentido que a
etimologia sugere, é ser-em (em quê? No ser, no presente, em tudo) e aí
se manter, é se esforçar, é perseverar, é resistir, e isso sempre no interior
de outra coisa que nos contém, que é o espaço, que é o tempo, que é o
mundo, sempre imanente, sempre dependente, e sem que possamos
jamais nos arrancar desse presente que somos, que fazemos ser (na
medida em que agimos) e que nos faz (na medida em que nos sujeitamos,
e claro que nos sujeitamos primeiro e mais). A insistência é, portanto, a
verdade da existência, para todo ser e para o homem mesmo, contanto que
se liberte das ilusões finalistas, espiritualistas ou antropocêntricas que tem
de si mesmo. Adeus existencialismo! Nenhum projeto escapa do presente,
nenhuma transcendência escapa da imanência, nenhuma liberdade escapa
do real. O homem não é um império num império, nem um nada no ser. Ele
é o que é, ele faz o que faz: ele não escapa nem ao princípio de identidade,
nem ao princípio de razão. A essência precede a existência, ou antes, nada
existe salvo o que é (essência e existência, no presente do ser, são
confundidas, é claro), e é por isso que existir é insistir: porque é continuar a
ser e a agir. (Comte-Sponville, 2000, p. 92)
Estar sendo e deixando de ser é próprio do ato de transformar-se, inventar-
se, reinventar-se. Nesse ato de inventar está o conhecer sem necessariamente
perguntar-nos pela finalidade mas antes colocar a importância na motivação, no
instinto. Instalar uma pluralidade de instintos em que caibam impulsos
104
contraditórios. Daí passamos a reagir conforme o instinto que predomina, assim
estamos prontos para expandir limites que conferem nossa identidade. Imprimir
para nós mesmos um processo de permanente transformação que acompanha o
desenvolvimento imperceptível do tempo, e nesse imperceptível perceber o que
marca, o fio tênue do estilete. Juntar instintos, afetos numa experiência, num
exercício do ato na dimensão de um eu que é verdadeiro.
Caminhemos, agora, pelos livros de Orides e pelos poemas que tratam do
tempo. Levantamos aqui alguns poemas que fazem referência às armadilhas do
tempo a partir dos versos que Orides nos dá como “cacos, segredos” do jogo para
que possamos acessar os lugares como possibilidades várias qualificando-os.
Comentando seu percurso em depoimento para Artes e ofícios, Orides nos
fala um pouco de sua trajetória:
Davi e Rosácea: chega 65, aparece o professor Davi Arrigucci Jr,
aprovando meu poema Elegia, que saíra no Município. Por incentivo dele,
preparo o livro Rosácea (que não foi publicado). E já tenho um plano: ser
professora em São Paulo, fazer Filosofia na USP, publicar meu livro.
Consigo tudo, só que, em 69, publico não Rosácea, mas Transposição
(considerei melhor). Mas Rosácea I merece análise, apesar de morto e
dissecado. É que, na sua estrutura quíntupla – fala, jogo, luta, ser, partilha
– já prenunciava todo o resto, e já continha todos os temas de minha
mitologia pessoal – o ser, o silêncio, a palavra, a poesia, o sangue...
Partilha não se desenvolveu, é claro: a poesia dita social não é um tema
para proletárias autênticas, como eu. Aos burgueses fica bem escrever
sobre os pobres, mas quem é pobre quer é fugir até do tema, e quanto
mais depressa melhor. Mas, o tempo passou e trouxe para São Paulo dois
livros: Rosácea (enjeitado) e Transposição. (Massi, 1991, p. 258)
Seguiremos entre depoimentos e poemas por seus livros, então. Chega a
nós Trasnposição (1966-67, publicado em 1969). Orides nos diz que nesse
momento:
105
vivia a intuição quase inefável de estar só “a um passo”, que
bastava erguer um só véu . Mocidade! E aí entra na minha vida a filosofia
explícita. Entrou em aulas da Escola Normal, entrou pelos livros que
procurei conseguir (Pascal, Gilson, Maritain, e até alguns não tão
ortodoxos), e misturou-se a um interesse pela mística – Huxley, Sta.
Tereza, São João da Cruz. Salada de que resultou meu livro
“Transposição”, muito “abstrato” e “pensado” – no sentido poético de tais
termos. Girava em torno do problema do ser e da lucidez, e abusava do
termo “luz”. Um livro estranho, que só recentemente percebi como estava
na contramão da poesia brasileira, sensual e sentimental. Parecia até meio
cabralino devido a um vezo analítico, mas nunca foi, claro. Era um livro
escrito no interior, tramado pelas tendências já levantadas, e onde já
poesia e filosofia tentavam se irmanar, como possível. (Pucheu, 1998, p.
14)
Impressão da mocidade, erguer o véu. Movimento manual de estender e
deixar o vento soprar no seu véu, esse tecido usado para cobrir, que serve
também para ocultar, envolver ou encobrir algo, e que pode exprimir qualquer
sentimento de padecimento, tristeza ou amargura. Dele, Orides faz um conjunto
de velas que, acompanhando a força do vento, desloca uma embarcação. Ainda
que pela escuridão.
Conforme ela mesma nos mostra, fez para si um percurso que respeitou
sempre sua intuição, afinal “só isso cabe ao poeta: ser fiel à sua voz interior, sem
forçar, sem filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se
interpenetrem, convivam, colaborem”. Do título de transposição e da intuição
“cabralina” dele, uma força objetiva do texto. Transpor um lugar que a poesia
ocupava entre “geometrias” e “jardins”.
Em outro depoimento, feito para o livro Artes e ofícios, ouvimos a voz de
Orides:
devo me deter mais deixar de piadas. Já atingi o real literário: o que
foi publicado, existe. Eu goste ou não. E eu gosto! Este livro ainda com
sabor ingênuo e bem sanjoanense, com uma integridade e força próprias, é
106
filho do Sol de São João! Não procurem “filosofia” nele, nem orientalismo, é
só o que é, a quase inefável intuição de estar “a um passo de”. De quê? Sei
lá, hoje estou há anos-luz... O sol virou a Estrela Próxima. É um livro claro
e ingênuo, no fundo, em que pese sua linguagem excessivamente abstrata.
Parece “teórico”, mas é integralmente vivido. E foi Transposição que
publiquei, em 69, via Instituto de Espanhol da USP, onde Davi Arrigucci
trabalhava. Mas antes de passar a Helianto, produção sofisticada de uma
aluna de Filosofia da USP – pois uma “professorinha” não tem status e nem
apareceria – quero deixar claro que, em todos os meus livros, o nada
jamais me interessou, e como poderia interessar a quem quer que seja? O
problema sempre foi o ser, a forma, a palavra. O silêncio só entra devido ao
impasse inevitável. E mesmo assim até Alba, porque depois até eu mesma
cansei deste assunto. (Massi, 1991, p. 259)
Neste livro, dos 56 poemas “integralmente vividos”, 8 são os poemas em
que encontramos referência explícita à palavra tempo.
Transposição nos arrasta para o núcleo do silêncio e a partir dele podemos
delinear e visualisar o que a autora nos propõe como um projeto. Entrar no
silêncio seria perceber aos poucos um acordar, essa operação-transposição em
que se transfere um retalho de um local para o outro sem que se interrompa,
totalmente, sua conexão com a sua origem, até que ele esteja firmemente
implantado no novo local. Sua poesia não é visual, sua poesia é corporal, calcada
no corpo da linguagem, na palavra. Essa palavra que é real e nos fere, que se
reinventa, repelindo o cantoflorvida, renasce perpétua contra a automatização,
afinal, enquanto “a sociedade busca estabilidade, o artista quer o infinito”
(Tarkovski, 1998, p. 66).
Podemos perceber a qualidade desse tempo na leitura do poema “tempo”
onde o “o universofluxo repele entre as flores estes cantosfloresvidas”. Contra
toda a automatização, a palavra, por sua vez, pára o tempo porque “a palavra
cantoflorvivência re-nascendo perpétua obriga o fluxo” e num comando ela
“cavalga o fluxo num milagre de vida”, suspende-o no ar, esculpe o tempo.
107
Objetivamente Transposição nos pede para sair do lugar, por isso é dividido em
quatro capítulos: “Base”, “(-)”, “(+)”, “Fim”.
A partir da divisão em capítulos firma um percurso limitado por sua base e
seu fim embora acrescente e subtraia (coisas: o que se faz necessário para
preencher adequadamente a caminhada) a fim de compor objetivamente um
itinerário em que recusa a linearidade da partida, variando os ângulos dos
desdobramentos ou descobertas feitas neste percurso. Pensar que aqui a
escritora parece se referir a um desligamento do que fosse convencional ou
tipicamente exercido na literatura brasileira daquele momento. Quando diz recusar
a geometria parece avançar nos passos de João Cabral, de quem pode ter colhido
os ramos de uma racionalidade para explorar outras gradações. Afinal, a
“transposição contínua” apela para um lado racional “jogando-as lucidamente”
para “reviver” as “coresinstantes”, seguindo as marcas das mudanças
instantâneas.
Em seu poema “Tempo”, Orides nos mostra que é o poder da palavras, do
tempo da palavra que pára o tempo e, quando essas palavras são re-trabalhadas
e re-significadas em seu próprio tempo interno, decifram o “texto pleno” e têm
como similar “o caos domado em plenitude a primavera”.
Em seu “laboratório” do tempo, aquilo que acontece, que se constrói, vai
montando nossas percepções. Na liberdade do puro ato é que são elaboradas
novas leituras do percurso em que sensorialmente, perto do objeto, tateia-se e se
trabalha. Aprendizado telúrico, das lições herdadas dos nossos instintos primitivos,
como se cavando, fôssemos capazes de encontrar uma essência nuclear.
“Tempo”
O fluxo obriga
qualquer flor
a abrigar-se em si mesma
sem memória.
O fluxo onda ser
impede qualquer flor
de reinventar-se
em flor repetida.
O fluxo destrona
qualquer flor
de seu agora vivo
e a torna em sono.
108
O universofluxo
repele
entre as flores estes
cantosfloresvidas.
_ Mas eis que a palavra
cantoflorvivência
re-nascendo perpétua
obriga o fluxo
cavalga o fluxo num milagre
de vida.
(Fontela, 1988, p. 14)
Nessa primeira menção do “Tempo”, é a palavra quem se mostra no tempo.
Ela entra no começo do jogo contra a automatização, a linguagem dá vida à flor
que abriga-se sem memória. A forma que adquire diz do seu “cantoflorvivência”
em constante transformação, distinta da forma do “cantoflorvida” que estivesse
pronto. Sem moldes, o fluxo modifica a flor. Transforma-se, inventa-se, reinventa-
se.
“Acalantos”
I
Perde-se a forma no silêncio
e a cor não é mais palavra
da plasticidade viva:
coisas que eram reais e belas.
O sono
obliteras o real: o olho se cala
na indistinção final dos rumos.
II
Não saber não saber não saber
não saber
ser consumida
por tempo neutro
espaço arrítmico
onde o sangue do ser
não me pertence.
III
Água constelada
entre as mãos incertas
e as estrelas derramadas do
tempo.
IV
Um pequeno lago
sem sabor de forma
um centro repouso
sem nada
sem fundo
lago olho oculto
no sono.
(Fontela, 1988, 42)
109
Acalantos iniciais: o tempo do sono. Nele, há um repouso e uma recusa
pela ação. Fazem parte antes o silêncio e o gesto de calar, reparar na palavra que
não é viva porque existe a certeza de uma “indistinção final dos rumos”. Fazer
calar, aquietar-se, sossegar-se é entregar-se a um tempo neutro em que não há
preocupação com o saber. No sentido da recusa, perceber que também “as
estrelas estão derramadas no tempo”, e existem, insistem, resistem em repouso e
brilho.
“Ode III”
Pouco é viver
Mas pesa
Como todo o ser
Como toda a luz
Como a concentração do tempo.
(Fontela, 1988, p. 47)
O tempo concentrado parece não ter espaço em nossa sociedade. Por isso
mesmo me remeto ao tempo dos loucos, dos que propõem e realizam a qualquer
instante, gestos abruptos. Com eles repentinamente nos paralisamos,
desmanchamos nossos pensamentos, suspendemos a respiração em estado de
surpresa. E entendemos, de alguma forma o peso do viver. Muitas vezes é nesse
sentido de leveza que encontramos algo que pesa. E o fluir do tempo diz de uma
rarefação aparente, a verdade em verso é que não só a vida como o ser, como a
luz e o tempo, de alguma forma enraízam, e por isoo mesmo dificultam, nosso
estado fugidio, de escapar juntamente com o tempo. A concentração e os loucos
promovem aqui um gesto forte e intenso.
“Lavra”
A semente em seu sulco
E o tempo vivo.
A semente em seu sulco
E a vida rítmica fluindo
Para a realização do fruto.
(Fontela, 1988, p. 48)
110
Preparação para a lavoura. No lugar próprio da criação, a semente aparece
em potência assim como o tempo, não mais concentrado mas vivo. Esse é o
espaço da fábrica, a certeza de encontrar qualquer lugar propício para se criar ou
se produzir algo. Essa garantia de fabricação mostra a vida em fluxo contínuo.
Faculdade de criar, de conceber alguma coisa, autoria, elaboração, invenção.
Capacidade de produzir também esses lugares.
“Reflexo”
O lago em círculo
Círculo água
Céu apreendido
Eternidade no tempo.
(Idem, p. 55)
“Advento”
Deste tempo múltiplo
o que nascerá?
Da onda
rítmica
amplitude
da intensidade
amorfa
ritmicamente esfacelada
do múltiplo que um
mais que tempo virá
e que luz haverá além
do tempo?
(Fontela, 1988, p. 66)
Na calma da contemplação, como se estivéssemos à beira de um lago. E
vivêssemos entre lembranças e rememorações, essa forma de viver-reviver o
111
tempo. E assim olhar para o tempo em sua eternidade, daquilo que ele comporta
como carregado de vivências. E o céu, por sua vez amplo e calmo e quieto como
reflexo. Ao mesmo tempo, a circularidade do lago, onde a água concentrada
apreende o céu, reflete o incessante movimento de nascimento e morte. Por sua
vez, se estendemos o fio que gera o círculo formando uma espiral, teremos uma
ressonância d eimagens que se compõem, recompõem e se inauguram. Podemos
então pensar-nos dentro dessa espiral, caminhando e compondo o ritmo do andar
assim: ritmo, amplitude, intensidade e esfacelamento. Tempo lá dentro, entre
nascimento-morte circular e esfacelamentos, múltiplo, descobrindo o que vem pra
adiante e no mesmo círculo espiral, além do ritmo sucessivo do tempo.
“Dispersão”
As aves se dispersaram
Em céus mais infinitos
Criaram distâncias exatas
Linhas puras de ser no tempo
Fugiram em palpitações
De nitidez absoluta
Além da aparência perderam-se
Intactas, na existência.
(Fontela, 1988, p. 67)
As aves instauram com seu vôo não uma fuga como se não pudéssemos
olhar para o inimigo, como se dêssemos as costas para ele e corrêssemos. Antes,
seu tempo ”essencial” como a liberdade do vôo, do que se alcança no espaço na
duração de seu tempo. Ora como astronauta, ora como paraquedistas, as aves
comportam um movimento natural que cria distância exata e viva, portanto, o que
se perde são as “aparências intactas” uma existência em vôo lancinante de vida.
“A estátua jacente”
I
Contido
em seu livre abandono
um dinamismo se alimenta
de sua contenção pura.
Jacente
uma atmosfera cerca
de tal força o silêncio
como se jacente guardasse
O gesto total do segredo.
II
O jacente
112
é mais que um morto: habita
tempos não sabidos
de mortos e de vivos.
O jacente
ressuscitado para o silêncio
possui-se no ser
e nos habita.
III
Vemos somente o repouso
como uma face neutra
além de tudo o que
significa.
(Mas se nos víssemos
no verbo totalizado
- forma que se concentra
além de nós –
(Mas se nos víssemos
na contenção do ser
o repouso seria
expressão nítida.)
Vemos apenas
repouso:
contenção da palavra
no silêncio.
IV
Jaz
sobre o real o gesto
inútil: esta palma.
A palavra vencida
e para sempre inesgotável.
(Fontela, 1988, p. 68)
A mão, o gesto, a palma. O que guarda inútil um olhar em repouso,
repousado, pousado assim: inesgotável, para “tempos não sabidos”. Uma
responsabilidade de transportar-se, transpor-se entre ser, vida e palavra. Jacente
os segredos, essa estátua em plenitude verbal.
Agora vamos acompanhar uma cantiga, embalar-se nela como pede a
epígrafe do livro Helianto (1973), primeiro convite: “Menina, minha menina, faz
favor de entrar na roda, cante um verso bem bonito, diga adeus e vá-se embora”.
No livro Retórica da poesia, encontramos uma relação entre a cantiga de roda e a
neutralização do tempo: “o efeito de neutralização do tempo é mais sensível nos
exemplos triviais como as canções de roda, as “scies”, repetições enfadonhas dos
jogos infantis...” (Grupo π, 1980, p. 157). Para onde nos leva a cantiga de roda?
Vejamos o que nos diz Orides em depoimento para Artes e ofícios da
poesia:
113
Hélios e anto, Sol e flor, terra e sangue, totalidade, círculo. Esta a
idéia mestra de Helianto, que por isto tem como epígrafe uma cantiga de
roda. Reconheço que este é meu livro mais “bizantino”. No bom e mau
sentido. Esbaldei-me, usei e abusei de toda a tecnologia aprendida. Sim, li
os concretos, mas... era tarde. A espinha dorsal já estava pronta e ereta,
outras influências só poderiam me atingir de raspão. Li Mallarmé,
Baudelaire, Góngora. E bem pouco penetrou, o que eu já era, já era. É por
isso que não sou nem nunca pude ser uma renovadora e, no máximo,
adquiri maestria e forma própria de lidar com aquilo que recebi de meu
meio social. Helianto comprova bem tanto a mestria quanto a limitação,
mas creio que, na época, sua preocupação com a meta-poesia (a forma, a
palavra) não estava tão defasada assim. Mas, apesar do patrocínio de
Antonio Candido, o livro foi totalmente ignorado. Azar... Agora mudo de
novo, de poeta lida só na USP para poeta conhecida pelo menos em
alguns outros estados. Isto levou tempo a valer. Dez anos, de Helianto a
Alba. (Massi, 1991, p. 259-260)
Para continuar seguindo o caminho de Orides observamos o Helianto e
giramos, seguindo uma seta assim como o girassol acompanha o sol.
Neste momento, faz-se necessário penetrar o tempo estabelecendo uma
tela mítica em que o conjunto formado pelo entrelaçamento de fios, trama uma
geometria em que os fios são tempos de um mesmo ponto interno. Aqui, o tempo,
este lago de amarelo turvo, descura, transfixa, transmite, subverte, desmente e
mitifica no poema que nos deixou como “herança”. Coloca em jogo uma escultura
em metal, quebrando o tempo, trabalhando a essência do ser através de uma
espera silenciosa, pois o olhar vivo se faz metal adensando, metal que é
presençatempo, exercendo e aplicando o sentido da visão, esta observação e mira
que deflagra um raio, ele o puro tempo.
Aqui Orides inicia um ciclo penetrável pelo tempo como agudo ritmo, este
que numa sucessão de movimentos ou situações que, embora não se processem
com regularidade absoluta, constituem um conjunto fluente e homogêneo no
tempo. Reinventar esses ritmos é a certeza de inaugurar automáticas flores em
114
que a vida se cumpre autônoma, nesse movimento que se realiza sem intervenção
de forças ou agentes externos. Esculpir, trabalhar a essência, permite repetir o
movimento muitas vezes para que dele se extraia o sumo dessa essência,
quando, então, chama atenção para o sentido tátil uma vez que a partir de suas
articulações os braços vão moendo o tempo e sensitivamente a loucura vai
destroçando-o.
Nesse momento, o tempo infância controla o que para nós tem
características de inumano. Aproximar-se do humano nos responsabilizaria por
estar trabalhando o corpo, naquele acordar do livro anterior, através do trabalho
com a linguagem. Na rapidez, na velocidade das cidades atuais, parece não haver
lugar e tempo ou espaço para suspiros e quando ela interrompe a respiração
suspira o tempo. Ele assusta ou pára, interrompendo e compondo a caminhada.
Novamente nos fala da luz talvez seja importante abordar aspectos ligados à
visão. Há uma pequena suspensão do tempo que a luz diviniza, faz crescer e
viver. Semelhante a uma reza, uma invocação realiza um tempo sacro ou perfeito.
Orides parece ter respostas para o tempo, algo como falar dele de forma diferente.
Uma solução pessoal que envolve ludismo até o fim, brincar, descobrindo um
levantamento da potência que irradia pelo significado de cada palavra. Consegue
com isso penetrar num íntimo tempo e fazer com que ele ganhe um horizonte, o
do sonho.
Gostaríamos que sonho fosse pensado aqui como naquela definição
indígena a partir do depoimento do escritor Kaká Werá Jekupé, em que, a partir
dos sonhos, as crianças são capazes de construir e expor suas narrativas nos
rituais matinais da tribo igualando-se aos mais velhos, seus ascendentes
genealógicos, portadores de uma sabedoria terrena devido ao seu tempo de
experiência. Essas narrativas entram no imaginário da tribo como se fossem
trabalhos terapêuticos, uma vez que, a partir do contar, toda a tribo tenta alcançar
uma verdade suprema calcada na experiência de vida de cada um e regida
também pelo que o inconsciente constrói e como ele participa nesse viver.
No poema, o importante é pensar no adjetivo “profundo” que faz grande
diferença
115
“Repouso”
Basta o profundo ser
em que a rosa descansa.
Inúteis o perfume
e a cor: apenas signos
de uma presença oculta
inútil mesmo a forma
claro espelho da essência
Inútil mesmo a rosa.
basta o ser. O escuro
mistério vivo, poço
em que a lâmpada é pura
e humilde o esplendor
das mais cálidas flores.
Na rosa basta o ser:
nele tudo descansa.
(Fontela, 1998, p. 127)
Vejamos nesse “girassol”, sua tela mítica. Da “rosácea”, essa rosa primária,
que é abstrato em vidro, vitral do ser, frágil, a esfacelar-se. Mas em círculo,
somando pontos internos que levam ao infinito. Ressoam “impressões” neste
infinito, na imagem do “lago de amarelo turvo: tempo”. Este mesmo tempo deixa
sua própria “herança”, erigindo em “minério” sua presençatempo.
O que o tempo descura
e que transfixa
o que o tempo transmite
e subverte
116
o que o tempo desmente
e mitifica.
(Fontela, 1988, p. 81)
“Minério”
O metal e seu pálido
horizonte
o seu fulgor apenas
superfície
- sua presençatempo
erigida em silente
espaço neutro.
O metal tempo opondo-se
Ao olhar vivo: o metal adensando
E o horizonte em fronteira
Inviolada.
O metal presença
Íntegra
Opondo às águas seu frio
é incorruptível núcleo.
(Fontela, 1988, p. 82)
Água, que pode ser a parte invisível na fonte, tem alguma coisa de centro.
Podemos recuperar a leitura do poema “rebeca” do livro Transposição “a moça de
cântaro e seu / gesto essencial: dar água”. A construção desse poema tem uma
forma mínima reduzida a 2 versos somente, mas ele é essencialmente resolvido
por 4 palavras: gesto, essencial, dar, água. Como se seus gestos fossem
primordiais para compor uma narrativa, a contação de alguma história, que é
substituída pelo silêncio essencial para uma concentração geradora de
movimentos contínuos visualizados através do verbo dar. Por sua vez, o elemento
dado é símbolo maior da doação de uma oportunidade de experiência e não algo
117
pronto, uma vez que a água é fluida, movimento contínuo, é “caminho vital” mas
“de si mesma”. Vejamos o poema “Fluxo”, de Transposição:
A gênese das águas
é secreta e infinita
entre as pedras se esconde
de toda contemplação.
A gênese das águas
é em si mesma.
...........................................
O movimento das águas
é caminho inconsciente
mutação contínua
nunca terminada.
É caminho vital
de si mesma.
...........................................
O fim das águas
é dissolução e espelho
morte de todo o ritmo
em contemplação viva.
Consciencialização
de si mesma.
(Fontela, 1988, p. 62)
“Para fixar”
Para fixar
A flor
Não nos serve o espaço
De pauta
Ela des
Liza pre
Cede-nos
No horizonte duração
Aberta
Ela estrela nada
A fixa
Mas elaflor nos fixa
Em seu
Vôo
Flor
Que nos vive no puro
Tempo.
(Fontela, 1988, p. 100)
118
“Ciclo”
Sob o Sol sob o tempo
(em seu próprio agudo
ritmo)
dispersam-se intercruzam-se
- em ciclo implacável –
pássaros.
Sob o Sol sob o tempo
reinventa-se
(esplendor cruel) o
ritmo.
Sob o Sol sob o tempo
automáticas flores
inauguram-se.
Sob o Sol sob o tempo
a vida se cumpre
autônoma.
(Fontela, 1988, p. 103)
“Templo”
a severa arquitetura
serenamente prende-nos.
As linhas vivas. O s refolhos
barrocos
(o céu íntimo)
a bela ordem aquietando-nos.
Ó interior matriz
(humano e sacro)
em que tudo é nascente
e brilha
como mistério entre nichos
119
de sombra
ó tempo
divinizado em luz
que cresce e vive.
(Fontela, 1988, p. 118)
“O gato”
Na casa
inefavelmene
circulam olhos
de ouro
vibre (em ouro) a
volúpia
o escuro tenso
vulto do deus sutil
indecifrado
na casa
o imperecível mito
se aconchega
quente (macio) ei-lo
em nossos braços:
visitante d eum tempo sacro (ou
de um não tempo).
(Fontela, 1988, 121)
Orides parece ter respostas para o tempo, algo como falar dele de forma
diferente. Uma solução pessoal que envolve ludismo até o fim, brincar,
descobrindo possibilidades para ele. Em Helianto, os 15 poemas (de um total de
55 poemas) como cacos chamam-nos a uma segunda leitura para brincarmos
novamente com cada um deles, para resplandecerem novos significados ao invés
de nos encaminharmos por uma narrativa. Somente pela presença da palavra
tempo dá para fazer um levantamento da potência que irradia pelo significado de
cada palavra estabelecida dentro do poema. Significados estes que antes
começam nos títulos dos livros até chegar nos títulos dos poemas. Os tempos
interfecundam-se plenos pois a escritora nos fala deles confirmando o estado
plural que anunciam, para estabelecermos diálogos entre eles.
“Sonho”
O ar irreal que cai
compõe um nítido campo
120
onde os ritmos os tempos
interfecundam-se plenos.
Imagens – ó cores puras! – sem peso
amplitude intangível claros pomos
peixes sutis na água viva peixes
deslizando – secretos – no silêncio.
O ar irreal que cai
e se constela
- o absoluto no horizonte
do tempo.
(Fontela, 1988, p.126)
“Ode”
E enquanto mordemos
frutos vivos
declina a tarde.
E enquanto fixamos
claros signos
flui o silêncio.
E enquanto sofremos
a hora intensa
lentamente o tempo
perde-nos.
(Fontela, 1988, p. 130)
Vejamos dois poemas desse mesmo livro, em que a questão do tempo está
implícita, para dialogarmos:
“Caleidoscópio”
Acontece: um
giro
e a forma brilha.
Espelhos do instante
filtram
a ordem pura cores forma
brilho
(e sem nenhuma
palavra).
Acontece: outro
giro
outra forma e o mesmo
brilho.
Ó espelho dos instantes
121
fragmentos
estruturados em reflexos
fúlgidos!
Acontece: novo
giro...
O caleidoscópio quebra-se.
(Fontela, 1988, p. 89)
“Paisagem em círculo”
Os plátanos as pombas estas fontes
as frondes, longe; e, de novo, os
plátanos.
As pombas estes plátanos as frondes
as fontes, longe; e, de novo, as
pombas.
As fontes estas frondes estas pombas
plátanos, longe; e, de novo, as
fontes.
Estas frondes os plátanos as fontes
as pombas, longe; e, de novo, as
frondes.
(Fontela, 1988, p. 133)
“Termo”
Despreende-se a seta alvo alcançado
Apreende-se o tempo flor colhida
Não mais além só isto
- é
tudo –
concentrado fruto e fonte.
Flor alcançada vida exata
É
TUDO
122
Elimina-se a meta jogo findo.
(Fontela, 1988, p. 136)
Em Alba (1983) falamos da aurora, e do pano branco, daquilo que ocorre ao
romper da aurora. Se nos livros anteriores acordamos nossos sentidos e
penetramos o tempo, agora é olhar quem comanda o corpo da linguagem para
continuar tecendo tempos, pensando a essência e extraindo o verbo.
Eu havia conhecido o professor Antonio Candido lá pra 70 e 71,
após Transposição, de que ele gostou. Ele leu Helianto e arranjou a
publicação, leu também Alba, que acabou prefaciando. Tudo fácil? Que
nada! Difícil mesmo era quem, naquele tempo, publicasse poesia. Mas, em
83, a Roswitha Kempf assumiu e o livro emplacou, foi premiado e vendeu.
Feliz? Pois sim... Pra mim, era um fim de linha, o ápice da espiral poética
iniciada creio que com Rosácea I, algo de perfeito e, por isso mesmo,
ultrapassado e morto. Podiam louvar ou execrar, mas meu problema era –
como mudar?
O sucesso anterior facilitou a publicação do que seria o próximo
livro: Rosácea (o que existe). Aliás, antes que esqueça, poemas de
Rosácea I (o enjeitado) estão disseminados por todos os livros posteriores,
o mais antigo é “Composição”, em Helianto, que é dos meus 19 anos. É
que a cronologia não é meu forte: agrupo poemas segundo quero, para
compor a totalidade de um livro que tenha estrutura interna, pés e cabeça,
e nesse processo a cronologia é que entra bem.
Voltando a Alba, neste momento eu consegui mesmo um livro, algo
bastante íntegro, e, por tudo isso... terminal. Voltei “a um passo de”... mas
não saí de lá. Única novidade que assinalo em Alba é o início da influência
do Zen. Só um “cheiro”, algo sutil, perceptível em certos poemas. Não vou
dizer quais. Leiam, pô! (Massi, 1991, p. 260)
Existe em seus poemas essa busca por uma essência, um certo romper
com a aparência, no que ela inclui mesmo a palavra. Mas o poema não se
sustenta somente no jogo essência/aparência. Orides ultrapassa esse jogo, há
123
nela mais nuances: imagens do que não é visto porque está em um local escuro e
desprezado pelo olhar. Inaugura suas imagens com violência capaz de nos trazer
arrebatamentos suficientes para vigiarmos, na aurora, um ato infindo, de duração,
extensão e intensidade extremas. Neste livro nos está reservada a senhora sutil
paciência, nesses tempos acelerados, mostrada com suficiente astúcia, hábil em
enganar com finura, malícia e sagacidade. Assim, em “Peixe”:
Gira
Forma oblíqua no espelho
Cor
Capturada
Em fria
Plenitude.
Gira
Na transparência a
Forma
Apenas forma:
Sem fuga.
Apenas forma: ciclo
Ritmo submerso
Sem asas para o tempo.
(Fontela, 1988, p. 159)
Em sua hora, dos peixes e dos náufragos, uma impossibilidade de vôo: sem
asas para o tempo construindo mosaicos sem tempo. Na construção lúdica de
Orides, a construção da teia é o fazer que instaura a possibilidade de estar atento
a, portanto o destruir e o rejeitar têm importância no mecanismo de não se
acomodar. Peixe preparado em seu território ganha um mar interior, estruturado
de olhares, uma densidade de vida. Em “odes” reaparece o arco e o sonho que a
escritora diz retesar e, a partir desse mecanismo, esperar como um verdadeiro
arqueiro. Existe um centro que interessa para a imagem da teia, essa construção
circular que se prende sempre em algum lugar, onde é necessário estar atento ao
movimento de construir a teia e voltar ao seu centro.
“Poemetos (II)”
Centro
o que é tão puro que enlouquece as flores
o que é tão puro que magnetiza o deserto
124
o que é tão puro que nem simplesmente existe.
(Fontela, 1988, p. 159)
No magnetismo do centro é que encontramos o cósmico, num simples
“murmúrio” para não percebermos “vestígio algum de tempo”.
“Murmúrio”
(...)
pulsação
viva
centrando
o
tempo.
(Fontela, 1988, p. 168)
“Alba (II)”
A estrela d‘alva – puríssimo
centro da aurora – sidera-me
penetra-me até à vertigem.
Fita-nos o tempo – no puro cristal
do tempo
o tempo cumpre-se (constrói-se a
evanescente forma ser e ritmo) água
abissal
sem gosto
nem vestítigio algum
de tempo.
(Fontela, 1988, p. 170)
Faremos um levantamento dos poemas que tratam explicitamenteo do
tempo, pois neste tecido “trama”(do), “tecem-se tempos para um só ato infindo”.
Neste sentido, na leitura de “Alba”, “abrir os olhos, abri-los como da primeira vez –
e a primeira vez é sempre”, a fim de embriagar-se de água. E embriagado
perceber que o tempo escapa, fugidio como em “caça”.
“Bodas de Caná”
I
Da pura água
criar o vinho
do puro tempo extrair
o verbo.
125
II
Milagre (anti-
milagre)
era tornar em água
o vinho
vivo.
III
A água embriaga
mas para além do humano: no
amor
simples.
IV
Para os anjos a
água. Para nós
o vinho encarnado
sempre.
(Fontela, 1988, p. 151)
“Caça”
Visar o centro
ou, pelo menos,
o melhor lado
(o mais frágil).
Astúcia e tempo
(paciência armada)
e – na surpresa
do golpe rápido –
colher a coisa
que, apreendida,
rende-se?
Não: desnatura-se
ao nosso ato...
ou foge.
(Fontela, 1988, 153)
“Poemetos (II)”
Brejo
Água parada água parada água pa
rando
Sob a cintilação dos lírios.
O azul
O exílio
Fonte
126
As águas levando
as palmas
as águas lavando
os olhos
as águas livrando
tudo.
A estrela próxima
Próxima: mas ainda
Estrela
- muito mais estrela
que próxima.
Sal
Ritmo
Flama
Ciclo
- rio absoluto
do sangue.
Reflexos
No olho – espelho –
Na água – espelho –
No tempo – espelho –
espelho nos
espelho nos
espelhos
- infinito irreal – o sonho
flui.
(Fontela, 1988, p. 166)
“Ciclo (II)”
127
Os pássaros
retornam
sempre e
sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
e
ritmo.
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros.
A infância volta devagarinho.
(Fontela, 1988, p. 175)
“Letes”
Ó rio
subterrâneo ao ritmo
do sangue
Ó água
frígida clara
que elimina toda a
sede
Ó água abissal
sem gosto
nem vestígio algum
de tempo
Ó fonte
sem mais música
128
audível: água
densa
que nos limpa de todas
as palavras.
(Fontela, 1988, 184)
Tecido de tempo em ritmo submerso circular, respeitando o ciclo. Atingir
assim uma plenitude, sendo este “ato infindo”. Para esse ato, armar a paciência
com astúcia e tempo. Assim como o “peixe pescado” que engole o ar. A “hora dos
peixes” é a “hora dos náufragos”, sem asas para o tempo, os mosaicos sem
tempo. Estar atento a, capacidade de não acomodar-se.
Parece que Alba contém algumas soluções que já foram mencionadas
anteriormente. Em “odes” ela apresenta o mar interior, estruturado de olhares,
uma densidade da vida – é onde reaparece o arco e o sonho que ela diz retesar e,
a partir desse mecanismo, esperar.
Em “poemetos” tem um centro que me interessa para teia, essa construção
circular que se prende sempre em algum lugar, onde é necessário estar atento a,
construir a teia e voltar ao centro. Quando a aranha volta ao centro? Quando é
importante estar lá? Fundamental é saber que o centro é tão puro que enlouqece
as flores/ o que é tão puro que magnetiza o deserto/oque é tão puro que nem
simplesmente existe. Tempo como espelho, reflexo do outro de si.
As soluções só serão válidas se pensarmos como em “murmúrio” que fala
em pulsações – perceber de que modo elas se fazem presentes, qual o sentido
para pulsações, como essa pulsação que sendo intensidade está “viva centrando
o tempo”.
Finalmente, aparece a estrela d’alva no centro da aurora, quando “fita-nos o
tempo”. E pela manhã que se vai novamente, “constrói –se a evanescente forma
ser e ritmo, uma “água abissal/sem gosto/nem vestígio algum/de tempo”. Tudo
isso porque se olharmos pelo nosso “Espelho (II)”, veremos que “Fita-nos o tempo.
Viva a infância nos rememora.” (Fontela, 1988, p. 173)
129
Em Rosácea (1986), uma configuração de imagens contendo uma
magnitude. Em seguida, dois depoimentos de Orides sobre a composição deste
livro:
O sucesso de Alba talvez tenha prejudicado um pouco a estrutura
de Rosácea, pois organizei o livro depressa demais, e o material era bem
heterogêneo. Coisas novas, fundo de gaveta e restos de memória. Juntei
tudo. Aproveitei o título do livro abortado e a estrutura quíntupla – devo ao
Davi a idéia de como organizar o livro - mas, mesmo assim, é meio
dissonante. Justifiquei-me usando como epígrafe um koan de Heráclito, isto
é, se o universo é bagunça organizada, um “caosmos”, meu livro também
poderia ser a mesma coisa, tranqüilamente...
E foi em Rosácea que tentei renovar-me, abandonar o sublime (de
que, como boa proletária, desconfio paca), assumir o pessoal e o concreto,
isto é, condensar as abstrações e apresentá-las como imagens, se possível
exemplares – algo como Brecht. Em parte consegui, em parte não. Enfim,
estou a caminho, numa nova virada, a mais problemática de todas.
Agora quero assinalar que Rosácea inclui um livro Zen – isto é, Zen
a meu modo – e sonetos (o “Bucólicas) que não estavam nem em Rosácea
I, pura arqueologia. E poemas que ficaram só na memória... Existem ainda
os poemas perdidos de Rosácea I? Vale a pena? Creio que não. Resgatei
o que sobreviveu e pronto.
(...)Trevo (1960-1988): um trevo de quatro folhas. Para dar sorte. E
eis tudo até agora. Mas nossa época é terrível, somos “poetas em tempo
de desgraça”, como diz Heidegger. Nossa cultura está numa crise que
atinge suas próprias bases – e a isto chamamos pós-modernismo – pois
nem nome próprio tem o que morreu e/ou ainda vai nascer. Onde estou?
Onde se localiza minha obra de mais de vinte anos no quadro da poesia
brasileira? Não sei. Que os amigos, os críticos, os outros poetas me
ajudem a responder a esta questão. Eu deixo aqui este depoimento
pessoal de uma autora senão excepcional, razoável e consciente. Em
Rosácea I eu tinha posto uma epígrafe do Eclesiastes: “aquilo que
acontece é/ longíquo/ profundo, profundo:/ quem o poderá sondar?”.
Poderemos? Bem a erva humilde e até vulgar da poesia não foi arrancada
130
por ninguém, foi bem cultivada e deu no que deu: este Trevo. E sendo tudo
por agora, prefiro recorrer de novo ao Eclesiastes: “Vaidade das vaidades,
tudo é vaidade”. Ou se quiserem, tudo é poesia, né? (Massi, 1991, p. 260-
261)
Um caos armado ao acaso, iluminado por uma tênue luz clandestina.
Somente os que não sonham vieram brincar. Lugar de passagem: “semeio sóis e
sons na terra viva, afundo os pés no chão: semeio e passo. Não me importa a
colheita”. Tão simples e sutil passagem como amor, água: breve, sutil,
instantâneo, esperando uma “incendiada doçura”. A infância instaura-se
distribuída em memória ao longo dos livros.
“Estrela”
A tranqüila explosão
fria
fora do tempo e
nos olhos
esplendia
solitária
no ápice do amor
tremeluzia.
(Fontela, 1988, p. 193)
“Do eclesiastes”
Há um tempo para
desarmar os presságios
Há um tempo para
desamar os frutos
Há um tempo para
desviver
o tempo.
(Fontela,1988, p. 195)
131
“Lembretes”
É importante acordar
a tempo
É importante penetrar
o tempo
É importante vigiar
o desabrochar do destino.
(Fontela, 1988, p. 196)
“Contaminação”
A madrugada futura
Já existindo na lembrança
A memória in
chando
O tempo vivo pin
gando
dos olhos.
(Tudo contaminado de tudo.)
(Fontela, 1988, p. 199)
Dimensão de impossibilidade que a estrela ganha em “homenagem II” a
Mário Quintana – “a estrela próxima”: a poesia é/impossível // o amor é mais / que
impossível / avida, a morte loucamente / impossíveis. // só a estrela, só a / estrela /
existe // - só existe o impossível.
“Duas odes(antigas)”
Deserta é a praia, e grande.
estéreis os coqueiros, inúteis
e, na areia, demarcação de água
e terra, jaz
vazia a concha: nem mesmo
a espera a fecunda.
A tarde em mim se repete
num tempo irreal, decadência
obstinada, onde o
silêncio
nunca é completamente
treva
132
A tarde em mim se repete
configurando uma distância
irrealizada, evanescência
onde nunca anoitece.
A tarde em mim se
repete
e nunca surgem as estrelas.
(Fontela, 1988, p. 238)
“A paz”
Não reconstrói: elide
a trama e o verbo.
A paz
não organiza: explode
o núcleo-tempo.
A paz
não é letal: vivifica.
A paz
Não apazigua: fere.
A paz
Não acalma: renova
O ser e o sangue.
(Fontela, 1988, p. 241)
(sem título)
Lentamente ferido
De consentido sono
O pensamento é cúmplice
De estrangeiro universo.
Visões sem tempo o cercam
E as deformadas lâmpadas
Sensibilizam mundos
A uma luz mais antiga
Um onírico raio
De desjo incriado
Que o penetra de ser
Que lentamente o fere
De um sono essencial
Entre o mistério.
(20-4-65)
(Fontela, 1988, p. 248)
(sem título)
Inútil a ternura pelo leve
Momento a desprender-se do infinito:
Frágil, a construção do tempo é morte
Do que se atualiza. Mais fecundo
133
É secundar o pássaro buscando
O momento possível, vôo pleno.
Mais fecundo é voar. Mas a ternura
(este pássaro morto abandonado
como forma perdida de nós mesmos)
nos alimenta em sua sombra. Torna-nos
em sombras sem alento. E sofremos
como pássaros frágeis: desprendidos
do vôo pleno nos cristalizamos
realizando a morte em que vivemos.
(4-4-67)
(Fontela, 1988, 250)
(sem título)
O branco é campo para o desespero
É quando sem infância persistimos
E nos fita de face a luz sem pausa
Da memória suspensa (tempo em branco).
O branco é branco apenas. Sem refúgio
Insistimos na luz. A luz constrói
A flor em nós (sua rosácea branca).
O branco é campo para a crueldade
Onde nos encontramos: tenso espaço
Na luz vivente (branco apenas, branco).
(17-5-68)
(Fontela, 1988, 251)
Motor do simples amor. Fala para mim das coisas que permanecem
serenas e tranqüilas não como idéia de armazenamento, porque não existe nem
134
perdão nesse jogo, uma vez que não tem desculpa até mesmo porque não há
culpa de nada. Fala como em carta, em retalho de “gatha”, seu pseudônimo
budista: “o vento, a chuva, o Sol, o frio tudo vai e vem, tudo vem e vai. Tenho a
ilusão de estar sonhando. Tenho o manto de Buda, que é nenhum.” Tudo que é
adorável provoca encanto e espanto. Sempre atenta, serena e tranqüila para
receber água, caminho, amor, luz fria e lágrimas. Tomar, com água de chuva, um
banho para lavar todos os vestígios de ontem. Como em carta, estes trechos dos
poemas de Orides, um convite para a “ceia” e a “partilha”. Acenos...
“Ceia”
A mesa, todos
interligados
pela realidade do alimento
pelo universo único
do ser
a mesa, todos
coexistem no júbilo
comungando a oferta pura das
coisas.
(Fontela, 1988, 242)
“Partilha”
Partilharemos somente
O que em nós se
continua:
a singeleza
a luta
a esperança.
Partilharemos somente
esta maior intensidade:
absoluta palavra
que nos pertence integralmente.
Partilharemos somente
o pão unificado
e a água sem face.
(Fontela, 1988, 242)
A sua Teia composta em 1996, nos provoca a armar nossas armadilhas.
Nesse mundo dos detalhes, nos armar ou ficarmos prontos para as armadilhas
que a vida nos arma. Inicialmente, perceber o silencioso trabalho da aranha.
“Metais”
Os metais nascem da paciência
surda da terra fundem-se
em
silêncio.
Os metais crescem
Ferozmente
(cristais vibrantes se
135
acasalam).
Os metais se
Entretecem
Fundamente
- metais cantam no
âmago
do tempo.
“sem título”
O espelho dissolve
O tempo
O espelho aprofunda
o enigma
o espelho devora
a face.
(Fontela, 1996, p. 61)
Afirma pulsão, impulsão, vida trabalhada, elaborada a partir do desfazer
calmo, conduzindo aos abismos profundos. “Sempre é melhor desfazer / que
tecer”, diz a escritora em ‘Axiomas’. Esses abismos estão para além da
compreensão prática e utilitarista da vida imediata. Esta compreensão está no
próprio ser, na sua hybris. Um contraponto à dolorosa hybris seria a idéia do
kairós, a idéia da oportunidade, do tempo oportuno, da ocasião como vemos no
poema abaixo:
“Kairós”
Quando pousa
o pássaro
quando acorda
o espelho
quando amadurece
a hora.
(Fontela, 1996, p. 31)
Esse homem contemporâneo, ao mesmo tempo que se fecha, menos se
conhece, pois a alienação de seu modo de viver, tira dele a reflexão, o simples.
Então Orides alerta em silêncio para o trabalho de si, ela não apela, ela desperta,
136
abre oportunidades a partir da dor, da vida. Cada palavra ecoa por sua poesia, ela
não cabe em si, ela transborda sentido e significado. A vida é assim compassada
na tensão.
A imagem dessa tensão em Orides é o próprio sangue, a cor que permite
pensar o olhar, o próprio acontecer humano, como o estender uma “Toalha”:
Pano branco.
Integralmente branco.
(Material mas
suspenso
na brancura).
Branco
Que as formas nascem... ah,
tão branco
véu
para receber o sangue
de todas
as coisas.
(Fontela, 1996, 81)
“Porta”
O estranho
bate:
na ampliteude interior
não há resposta.
É o estranho (o irmão) que bate
mas nunca haverá
resposta:
muito além é o país
do acolhimento.
(Fontela, 1996, 82)
O estranhamento é sempre, e constante sua volta. Ressoa por dentro em
busca de uma resposta que está sempre por se fazer. Na espera, voluntária do
irmão, não há busca. Vive a certeza de um acolhimento que está por se fazer à
distância.
137
“Cantiga”
Ouvir um
pássaro
é agora ou
nunca
é infância ou
puro
momento?
Ouvir um
pássaro
é sempre
(dói fundo no
pensamento).
(Fontela, 1996, 83)
Daquele universo que buscamos em infância para recortar um estado
adulto, o do jogo, o do ludismo, retorna em cantiga. Se cantiga de pássaro, a
vibração e a ressonância desse canto é sempre a certeza da dor no pensamento.
“Pesca”
I
A beira do rio o silêncio
dos peixes
a beira rio nem
a espera.
II
A água não cessa
e o rio
nunca passa.
III
A beira rio
a lucidez
a
pedra
e a pedra é
138
pedra: não germina.
Basta-se.
(Fontela, 1996, 84)
Voltando momentaneamente à sua aula, salta ao ar sua “pesca”. Dessa
influência paterna, a espera, o silêncio, a água. Mas aqui, em diálogo com
“Educação pela pedra”, aquela outra, no sertão, que “entranha a alma”, traz em
calma e companhia, à beira rio, nem água, nem rio, nem peixe, nem espera, só a
lucidez e a espera. Não precisa germinar, “basta-se” em seu tempo num
aprendizado de si mesmo. Do latim vulgar: “levar, suportar, bastar, ser suficiente”;
do grego: “levantar e levar um fardo”. (Houaiss, 2001, 412)
Como a ep[igrafe do lvro Teia nos diz “A lucidez alucina”. Se, segundo
Spinoza “Todas as grandes coisas são difíceis e raras”, podemos sugerir que o
trabalho de Orides Fontela oscila entre a descoberta da luz e a alucinação. Peças
de um mesmo brinquedo, sugerem atrito e um incômodo, causando um certo
movimento inesperado em busca de uma humanidade possível. Mesmo que essa
possibilidade desemboque no universo da loucura. Ou ainda, por desembocar no
universo da loucura é que essa humanidade se faz possível.
É assim que juntos, os temas literários e filosóficos vão apontar para uma
consciência crítica da loucura, até entender que o discurso da loucura pertence à
fundação de nossa linguagem e não à sua ruptura. Acompanhando um pouco o
desenvolvimento dos trabalhos feitos em manicômios, observamos que o estado
de morte imposto ao indivíduo ao provocar um cerceamento, deixa mais em
evidência ainda a potência de vida que os indivíduos possuem.
Tomemos como exemplo outra escritora...
Apresentando o texto da poeta Stela do Patrocínio que viveu 30 anos em
manicômios, tendo iniciado sua carreira psiquiátrica em 1962, no Centro
Psiquiátrico Pedro II (no Engenho de Dentro – RJ) e sido transferida em 1966 para
a colônia Juliano Moreira, Ricardo Aquino (então diretor do Museu Bispo do
Rosário) nos informa claramente que
139
Stela do Patrocínio foi uma sobrevivente do processo de
mortificação característico das estruturas psiquiátricas arcaicas e
tradicionais, os asilos. Nestes, há o apagamento das individualidades, da
subjetividade, do desejo e da singularidade. As pessoas ficam reduzidas a
um amontoado, em formas e sem rosto. O uniforme é apenas símbolo da
real uniformização da impessoalidade. O tempo é o tempo da morte.
(Patrocínio, 2001, p. 14)
É trabalhando nesse limiar, nessa impossibilidade de viver, que de alguma
forma as pessoas vivem. A trajetória de Stela e de Orides guardam semelhanças,
ambas poetas e filósofas viveram sob a marca das décadas de 60, 70 e 80 vindo a
falecer em 90.
Stela do Patrocínio morreu nas dependências da Colônia em 1992.
Durante essas três décadas, Stela viveu sob a assistência psiquiátrica que
ocorria tanto em manicômios como em asilos e hospitais psiquiátricos antes de
assistir à passagem da antiga Colônia por “transformações no sentido da
humanização e do resgate da cidadania dos usuários dos serviços de saúde
mental. Foram abolidos os castigos, a lobotomia, as celas fortes, o eletrochoque,
etc. Hoje os portões estão abertos, e a vida passou a ser reinventada”. (Patrocínio,
2001, p. 15). Esse movimento teve o nome de Reforma Psiquiátrica.
Na busca da compreensão do equilíbrio entre loucura e razão, procuramos
desenvolver um pensamento sustentado pela mudança, na arte. Sobre essa
separação nos diz Viviane Mosé na apresentação do livro:
O que a razão quer é, desde seu nascimento platônico, rejeitar uma
parte da vida, a que delira, a que morre. O que a razão quer é produzir um
mundo de identidades e verdades, um mundo previsível e claro. Em
conseqüência, tudo que é escuro, imprevisto, móvel e múltiplo, é excluído,
transposto para o lugar do erro, da ilusão, do mal. É neste espaço que se
insere a loucura. E muitas vezes a arte. (Patrocínio, 2001, p. 22)
140
Manter um discurso na mudança é acostumar-se a percorrer sempre uma
“terceira margem”. Citando Nietszche, Viviane Mosé ensina que toda significação
repousa sobre um fluxo contínuo, impossível de ser dito.
É necessário aqui, admirar o homem em virtude de ser um gênio
poderoso da arquitetura que consegue erigir, sobre fundamentos moventes
e de uma certa forma sobre a água corrente, uma cúpula intelectual
infinitamente complicada: sem dúvida, para encontrar apoio sobre tais
fundamentos, tem que ser uma construção como que de fios de aranha,
tão tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, tão firme a ponto de não
ser despedaçada pelo sopro de cada vento. (Patrocínio, 2001, p. 42)
Sobre as junções dos fragmentos em busca de uma lucidez escreveu
Alexandre Costa:
(...) toda sucessão de imagens em Orides carrega fragmentações
que são como fissuras da linguagem. Neste sentido, apenas a razão pode
reorganizar, interferir, num processo que tem como motriz o mundo
espelhado em fragmentos, a realidade vista através da ausência instaurada
em imagem, em palavra. Como diz Marco Lucchesi, “entre o conceito e sua
sombra emerge o vazio sobre o qual se sustenta a imagem, de quanto não
se pode arrostar: a plenitude na falta”. O silêncio que surge daí se
completa com o sentido de identidade que a ausência da face oferece, mas
isto não quer dizer que haja uma anulação de quem escreve, pois a poesia
que tenta entender a realidade acaba, de certa forma, sempre sendo “alta
agonia” e “difícil prova” que devemos tentar para realizar nossa
humanidade”. A lucidez, ao mesmo tempo que cria um sentido de posse
sobre o que não pode ser visto, inaugura um gesto em que a descoberta
do mundo abre-se na impossibilidade da compreensão total, em que o
conceito de beleza, antes de se sublimar, é o atrito do próprio sujeito com
sua ausência. (Costa, 1991, p. 20)
141
Silêncio e ausência. Explicada anteriormente a nau da loucura, evidenciada
por Michel Foucault, vejamos o que nos diz Peter Pal Pélbart em seu artigo “A nau
do tempo rei”, sobre o tempo da loucura. Para ele, nosso mundo, saído de
destroços anteiores, não possui nenhuma garantia pois está exposto ao risco do
gracasso e do retorno ao nada. Poderia, desde o início, não ter vingado, mas teve,
no momento da tentativa, uma torcida desejante.
Considerando o Tempo Rei, explicação para Deus como súdito do tempo,
para a construção efetiva do mundo concorre um componente primordial: a
torcida, o desejo. Neste texto, Deus é atípico pois deseja. Deus atípico: bricoleur,
desejante, esperançoso – súdito do Tempo.
A loucura prevê predisposições, incluindo um mundo em fragmentação. A
fragilidade dos loucos propicia a convivência pelos destroços, o trabalho de
reconstruir, construir uma vida sob ruínas. Afinal, na sua fragilidade e
inconsistência, eles estão sempre tentando reconstruir-se a partir dos destroços
anteriores. Assim, precisam de muita engenhosidade para sustentar-se, além
dessa boa torcida desejante.
A loucura pressupõe um jogo, pois as tentativas dizem de erros e acertos
num movimento de construção, reconstrução. A disposição aos fracassos e
acasos dão conta de todo o processo de acontecimento. Essa gestação, com que
se confronta a loucura, precisa de um tempo sem medida, amplo e generoso, que
se difere do tempo do relógio.
Conforme vimos no capítulo anterior, o tempo sem medida diz da própria
definição de tempo. É importante instaurar, se possível, um não tempo que,
através do movimento brincante, desconstrói algo para aboli-lo, assim como é
necessário mudar a mentalidade, “desamar os frutos” e “desviver o tempo”.
Não se trata mais, hoje, de favorecer, através das vias de
comunicação e dos veículos automóveis, um nomadismo desenfreado, como
na primeira metade desse século. As tecnologias do pós-guerra criaram um
novo veículo estático: a televisão. De propagação instantânea e indiferente à
geografia, o audiovisual inaugurou um novo regime de temporalidade: a
instantaneidade. O instante sem duração, uma espécie de eterno presente,
142
sem espessura, pura persistência da reina na fonte teleluminosa em meio a
uma simultaneidade universal. Não mais nomadismo, mas sedentarismo
onipresente. Não mais partir, porém deixar chegar. Fim das distâncias
temporais e espaciais. A ordem agora é habitar a velocidade absoluta no
instante contínuo da emissão. Instalados nessa instantaneidade, e privados
do tempo e do espaço, assistimos à verdadeira desmaterialização
tecnológica. – eterno presente com nomadismo. (Pelbart, 1993, p. 33)
Habitar pressupõe um ato de presente, como tomamos, por exemplo, a
experiência de “habitar um tempo” cabralino. A abolição do tempo cede espaço ao
tempo neutro, à neutralização do acontecimento. Para que toda experimentação
seja eficiente, não pode haver previsão do acontecimento.
Mas talvez a informática seja ainda mais exemplar para pensar o que
está em jogo neste ideal de abolição do tempo. Seu anseio é a informação
total, a memória absoluta que pudesse não só prever um acontecimento,
mas reagir a ele antecipando-se a seu advento, neutralizando-o. É evidente:
o que já é conhecido de antemão não pode ser experimentado com
acontecimento. (Pelbart, 1993, p. 33)
Nessa sociedade de controle, entender os fios tênues de captura significa
estar atento a eles, como propõe Paul Virilio com sua cronopolítica, já que a
obssessão contemporânea é controlar o tempo, abolindo a própria duração, a
qualidade, que é um elemento de resistência. Uma saída é potencializar o
cotidiano instaurando um pensamento sobre os gestos, os desdobramentos,
mesmo que desconhecidos, de uma cronopolítica que implica no declínio de uma
profundidade de campo nas nossas atividades mais cotidianas.
Contraditoriamente, é o espaço do manicômio que abole a passividade
instituída pela pregação de uma velocidade máxima de produção, uma vez que
garante, como “gueto lentificado”, a certeza da imobilidade total.
143
Por outro lado, em nossas instituições de saúde mental assistimos a um
outro regime de temporalidade. São guetos lentificados. Seja um paciente que
levanta os braços e de repente os imobiliza, suspensos no ar, seja um outro
fazendo um gesto brusco para depois mergulhar numa lerdeza sonolenta, ou
ainda aquelas falas entrecortadas por silêncios longos, ou os trajetos
vagarosos em percursos cuja lógica nos escapa. Às vezes lembra um aquário
onde cada um desliza a seu modo, no seu ritmo, a seu tempo. Agora em
câmara lenta, desacelerada, dali a pouco numa rapidez inusitada. Uns estão
estacionados num passado longíquo, outros jamais saberemos onde estão, em
qual tempo; outros ainda, numa instantaneidade aflita, como se nada lhes
garantisse a continuidade temporal. (Pelbart, 1993, p. 34)
Vejamos o que podemos observar em relação ao tempo dos psicóticos,
trazendo para cá fragmentos do seu artigo. O psicótico situa-se num ponto de
parada e suspensão que é anterior a uma temporalidade, onde não está
configurada uma imagem do corpo, não havendo a idéia de esquecimento e de
surgimento. Segundo Oury, deveríamos sustentar, para os psicóticos, este ponto
que é ao mesmo tempo de esquecimento e espera pois ele corresponde ao jorrar
do tempo, que é o ponto de esperar surgir o bom momento de se fazer alguma
coisa.
Oury usa para explicá-lo dois tipos de tempo existentes no grego
antigo, o aion, que é esse presente que faz jorrar de dentro de si o tempo, e
o kairos, que é o momento adequado, o bom momento para decidir e fazer.
Como se devêssemos sustentar para o psicótico esse ponte de coincidência
entre o aion e o kairos, numa espécie de cronogênese primordial, de onde
pode surgir uma forma, até um projeto. Onde coincidissem esquecimento e
espera. Curiosamente, é um ponto de paciência, de tédio, insípido, num certo
sentido, e caótico. (Pelbart, 1993, p. 35)
Isto torna-se quase impossível se mantivermos a nossa pressa. Sem tempo
e paciência não podemos sustentar esse ponto. Isto se dá porque ele diz sermos
amantes das formas, das ordens, dos projetos, do futuro já embutido no presente.
144
Nós valorizamos demais o trabalho, o acabamento, sem olharmos para a
suspensão caótica como uma gestação a partir do informe.
Não é inútil lembrar que o tempo não controlável, não programável,
que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em
neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como da criação,
mas também no da loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o
que não etsamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser
previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não
em sua antecipação. É quase o esforço inimaginável, não da abolição do
tempo, mas de sua doação. Não libertar-se do tempo, como quer a
tecnociência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do começo, a
possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. Trata-se aí de um
tempo que escaparia à presença, à presentificação, à continuidade, dando
lugar a outras aventuras temporais. (Pelbart, 1993, p. 36)
Hoje em dia, a mecânica do poder incide sobre espaços abertos. Portanto,
se pensamos no fim do manicômio e da reclusão, não deveríamos abrir mão da
temporalidade exigida para o tratamento específico da loucura.
Se queremos acabar com o manicômio e a reclusão, não deveríamos
abrir mão daquilo que no trato com a loucura existe de específico em relação
à temporalidade, e nós deveríamos poder bancá-la, mesmo que isso
signifique – e necessariamente significa – um desafio à cronopolítica da
tecnociência. A cronopolítica hegemônica visa à aceleração máxima,
absoluta, ao passo que a loucura não só encarna uma desaceleração (ou
uma velocidade de outra ordem) mas também solicita uma desaceleração.
(...) a grande arma inventada na Revolução Industrial para combater o
império da velocidade foi a greve; e o que é a greve senão a parada, a
interrupção, a barricada no Tempo, como diz Virilio?
(...) a loucura tal como ela se apresenta hoje certamente é também
isso: a recusa de determinado regime de temporalidade, o protesto em forma
145
de colapso frente ao império da velocidade, e a reivindicação de um outro
tempo.
(...) a primeira coisa que chama a atenção de um visitante num
hospital psiquiátrico é essa lentificação, esse ritmo específico, esse regime
temporal diferenciado. Sim, às vezes isto se deve aos efeitos dos
psicofármacos, às vezes à lentidão burocrática das grandes instituições, mas
para além disso está a própria velocidade da loucura e o outro regime
temporal que os loucos vivem, suscitam e solicitam.
(...) a possibilidade de resgatar o jorrar do tempo é uma necessidade
para o pensamento, para as artes, mas principalmente para a loucura. (...)
Os manicômios, ainda que da forma mais torpe e cruel, em certa medida
constituíram uma espécie de freio frente à velocidade crescente. Também,
porque, num primeiro momento, eles abrigaram muitos daqueles que não se
submeteram ao ritmo e às exigências da produção. Mas igualmente porque
eram um instrumento de controle proveniente da Idade do Freio, que
sobreviveu um pouco na Idade do Acelerador, ainda que deslocado (daí
também seu aspecto tão anacrônico hoje em dia, mesmo do ponto de vista
do poder).
Preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a
lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia,
onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho.
Seria preciso um outro regime de temporalidade que restituísse ao
homem sua condição de habitante do tempo.
Só assim, movendo-nos mas desacelerando, podemos nos aproximar
dessa barricada no tempo levantada pela loucura, e permitir-lhe desconstruir-
se, não para aceitar a velocidade dominante, porém para desdobrar-se com
mais desenvoltura em suas virtualidades temporais.
É preciso dar à loucura (sem substancializá-la) espaços de
temporalidade diferenciada, lugares onde um outro regime de temporalidade
permita outras coisas. Deveriam existir ateliês de tempo, para loucos e não
loucos, pouco importa, onde isso fosse possível. Em certa medida eles já
existem, não oficialmente e não com este nome, em todos os movimentos ou
grupos de pessoas ou instituições que desafiam a homotemporalidade
dominante, com seus devires atípicos, estrambólicos, bizarros, seja com
146
suas barricadas no tempo, picnolepsias, desfalecimentos, seja nos seus
saltos, êxtases abruptos, ou na coexistência com os lençóis de passado (...).
Nós não precisamos do manicômio para estancar o despotismo da
velocidade que mata o tempo, pois o manicômio já é o despotismo do tempo
morto. Mas não deveríamos abrir mão de todos os diques que conseguirmos
inventar, para os loucos e os sãos, a fim de viabilizar, mesmo contra a maré
cronocida, aquela vagabundagem do espírito que só é possível a bordo da
nau do Tempo-rei. (Pelbart, 1993, p. 39 - 46)
Orides Fontela morreu num sanatório em Campos de Jordão em 2 de
novembro de 1998.
147
______________________________________________________________
Um dia nos lembraremos deste tempo se lembrança
houver
148
que estivemos nesta sala algumas vezes nos
tocamos
éramos mais felizes mais moços
um dia nos levaremos deste tempo se levar houver.
“Tempo”, de Cacaso
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