ORIDES FONTELA - Armadilhas do tempo: fios de uma teia poética

156
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ARMADILHAS DO TEMPO [FIOS DE UMA TEIA POÉTICA] Fátima Maria da Rocha Souza Fortaleza - Dezembro / 2004 - UFC

Transcript of ORIDES FONTELA - Armadilhas do tempo: fios de uma teia poética

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ARMADILHAS DO TEMPO

[FIOS DE UMA TEIA POÉTICA]

Fátima Maria da Rocha Souza

Fortaleza - Dezembro / 2004 -

UFC

2

Fátima Maria da Rocha Souza

Armadilhas do tempo

[fios de uma teia poética]

Dissertação apresentada à Coordenação

do Programa de Pós-Graduação em Letras

(Mestrado), do Departamento de

Literatura, do Centro de Humanidades, da

Universidade Federal do Ceará (UFC),

como parte dos requisitos para obtenção

do título de Mestre em Literatura

Brasileira, sob a orientação do Prof. Dr.

André Monteiro Guimarães Dias Pires.

Fortaleza, 17 de dezembro de 2004

UFC

3

Armadilhas do tempo

[fios de uma teia poética]

_________________________________

Fátima Maria da Rocha Souza

Aprovada em: 17 / 12 / 2004

Comissão Examinadora

________________________________

Prof. Dr. André Monteiro Guimarães Dias Pires

(Orientador – Presidente da Comissão – UFC)

_________________________________

Profª. Drª. Odalice de Castro e Silva

(1ª Examinadora – UFC)

_________________________________

Prof. Dr. Alexandre Almeida Barbalho

(2º Examinador – UECE)

4

Dedicatória

“Aos que alguma vez já desconfiaram que essa vida m orna e tola que nos é

oferecida e alardeada como a única possível, desejá vel e saudável esconde

outras tantas. Cuja beleza e reinvenção cabe reinve ntar”.

(Peter Pal Pélbart, 1993:13)

5

Agradecimentos

Ao imenso amor, carinho e dedicação das minhas famílias Rocha, Souza e Dei

Ricci, garantia de alegria em cada momento da trajetória.

Meus pais e minha irmã, amores incondicionais e sem distância.

Maria Eduarda, por todas as lições e todos os gestos.

Minha família de amigos por afinidades eletivas, afetividade intensa nessa ponte

Niterói – Fortaleza.

Tânia Lima e Eduardo Jorge, amigos em rima.

Leda Freitas e Ticiana Melo, por doçura e traduções.

Solange Kate e Cibele Bisou, pelas dicas preciosas.

Rosângela Porto, por me garantir o arco-íris.

Possidônio Montenegro e Andréa Bardawil, por me ensinarem a “habitar o

invisível” através de “delicadezas e súbitos chegares”, e a todo o Núcleo de Dança

do Alpendre com quem aprendi o silêncio.

Alexandre Veras, pelo raro exemplar de Trevo sem o qual não teria desenvolvido a

minha pesquisa.

Cinda Gonda, Sarah Diva Ipiranga e Manoel Ricardo de Lima,

mestres de literatura e vida.

Orlando Araújo,

pelo início da trajetória em “círculo”.

À Capes pela bolsa de pesquisa.

Aos amigos e professores do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Letras da

UFC,

pelo incentivo.

Adriano Alcides Espínola,

pela produtiva orientação durante a caminhada.

Ao meu afetuoso orientador, André Monteiro,

por aceitar andar de mãos dadas.

6

Resumo

Armadilhas do tempo é uma travessia lúdica pela obra poética de Orides

Fontela. As nuances dessa armadilha dividem-se em três movimentos. Laço

mostra o tempo da escritora através da produção de seus livros. Logro astucioso

verifica o lugar de embate com a linguagem e o movimento lúdico de construção e

desconstrução, em que ela propõe despedaçar um mundo para adquiri-lo múltiplo.

Por fios filosóficos, a armadilha torna-se gozo adquirido através da habilidade em

enganar. Caímos no alçapão . Esculpir o tempo com Orides nos permite fabricar

teias no emaranhado de um mundo veloz que nos captura a todo instante e tem a

capacidade de transmitir, a cada momento, afetos tristes. Contra esse processo,

pensar o estado de atenção como saída estética, de estilo, para potencializar

subjetividades de um leitor em ação.

7

Resumée

Armadilhas do tempo – ou Les pièges du temps – est une traversée ludique

à travers l´ouvre poétique d´Orides Fontela. Les nuances de ce piège se divisent

en trois mouvements. Lien montre le temps de l´écrivain à travers la production de

ses livres. Tromprerie astucieuse vérifie le lieu du confront avec le langage et le

mouvement ludique de construction et démolition, dans lequel elle se propose à

déchirer un monde pour en acquérir un autre, múltiple. Par des fils

philosophiques, le piège devient une jouissance grâce à l´habilité de tricher. On

tombe dans la trappe . Sculper le temps avec Orides nous permet de fabriquer des

toiles dans le reseau d´un monde rapide qui nous capture à tout instant e qui a la

capacité de nous transmettre, à chaque moment, des affections tristes. Contre ce

processus, penser l´état d´alerte comme une issue esthétique, pour activer des

subjectivités chez le lecteur en action.

8

Sumário ou a fazedura da armadilha

1. laço : gestos mínimos 11

1.1. primeiro movimento 12

1.2. segundo movimento 26

2. logro astucioso : ludismo 54

2.1. mãos 59

2.2. gestos textuais 67

2.3. gestos da memória 69

2.4. memória de esquecer 74

3. alçapão : esculpir o tempo 80

3.1. há um tempo... 81

3.2. tempo da consciência 97

3.3. tempo da loucura 138

4. bibliografia : habitando o tempo 148

9

Armadilhas do tempo

[fios de uma teia poética]

Roberta Dabdab / Folha Imagem

Com o espírito da brincadeira,

uma homenagem à escritora Orides Fontela,

“que amava os gatos que descansam com os olhos aber tos”.

(Fernando Nasser)

10

Epígrafe

Tempo1 é criança brincando, jogando; de criança o reinado.

Heráclito

Fragmento 52

1 No grego Aiôn, um nome próprio, de uma entidade alegórica, filho de Cronos e “Filira”.Por outro lado há dois sentidos de aiôn como nome comum: o primeiro é o de “tempo sem idade, eternidade”, que posteriormente se associou ao aevum latino: o segundo é o de “medula espinhal, substância vital, esperma, suor”. A entidade alegórica pode consistir nos dois sentidos. (Os pré-socráticos, 1989).

11

1. laço : gestos mínimos

INICIAÇÃO

Se vens a uma terra estranha

curva-te

se este lugar é esquisito

curva-te

se o dia é todo estranheza

submete-te

- és infinitamente mais estranho.

Orides Fontela

12

chegadas...

1.1. primeiro movimento

Armadilha: laço, engenho ou artifício para apanhar qualquer animal.

Um caminho. Uma trilha para ele. Uma armadilha por meio da qual

descobrimos a obra da escritora Orides Fontela. Através da palavra, Orides lança

o corpo para experimentar o real, trabalhar o instante dos acontecimentos, e

estabelece, a partir do tempo da poesia, uma busca pela palavra exata que

traduza o sentimento íntimo humano, a solidão existente entre o sujeito e o

mundo. Experimentar o real, verdadeiro acontecimento: aquilo que acontece no

presente, no puro ato, podendo acontecer numa movimentação silenciosa, toque,

viva sensação.

inútil a ternura pelo leve

momento a desprender-se do infinito:

frágil, a construção do tempo é morte

do que se atualiza. Mais fecundo

é secundar o pássaro buscando

o momento possível, vôo pleno.

Mais fecundo é voar. Mas a ternura

(este pássaro morto abandonado

como forma perdida de nós mesmos)

nos alimenta em sua sombra. Torna-nos

em sombras sem alento. E sofremos

como pássaros frágeis: desprendidos

do vôo pleno nos cristalizamos

realizando a morte em que vivemos.

(4-4-67)

(Fontela, 1988, p. 250)

13

Orides inquieta como metal frio e cortante, suas palavras são pura

crueldade. Os signos explodem em movimentos contrários como nesse soneto de

1967. A forma rígida, contraposta aos significados velados das palavras, aparece

recompondo imagens caleidoscópicas como a ternura que passa a ser inútil

porque torna-se sombra, e como pássaro morto que alimenta sofrimento.

Enquanto nos contentamos em não voar, vivemos mortos. E assim construímos

um tempo que é morte do que se atualiza. Então, como giro caleidoscópico que

propõe, a escritora recorta o tempo e arma com ele suas armadilhas. Lança-nos

armadilhas e nos arma. Reparar nessas armas é nossa função: leitores.

Alguns escritores, como Orides Fontela, são desses que nos alertam, não

se entregam ao sono; praticam um “estar fora de casa, e contudo sentir-se em

casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e

permanecer oculto ao mundo...” (Baudelaire, 1996, p.20)

Estar no centro pode parecer dizer de Orides assim: nasceu Orides de

Lourdes Teixeira Fontela2 em 21 de abril de 1940, em São João da Boa Vista. Era

filha de um operário e uma dona de casa e começou a escrever desde criança,

sendo que, com o passar dos anos, ganhou fama em sua terra a ponto de adquirir

aura de poeta municipal. Seu interesse pela filosofia levou-a à USP, onde concluiu

o curso em 1972. Trabalhou também como bibliotecária da Escola Municipal

Professora Marisa de Melo, na vila Aricanduva, zona leste de São Paulo. Viveu

mergulhada entre os livros e aprendeu a extrair deles o silêncio, o que se tece a

partir desse vazio, dessa transparência, do que se faz invisível e que corta, recorta

2Seus quatro primeiro livros, Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), foram reunidos no volume Trevo (1988), traduzido para o francês e publicado em dois volumes com o título Trèfle. Com as traduções realizou um grande sonho de criança. Dois anos antes de morrer, nos presenteou com Teia (1996). Seus livros, há muito esgotados, tem reedição programada pela Editora 34. Publicou: Obra poética: Transposição, Instituto de Espanhol da Universidade de São Paulo (USP), 1969; Helianto, Duas Cidades, SP, 1973; Alba, Roswitha Kempf Editores, SP, 1983 (Prêmio Jabuti); Rosácea, Roswitha Kempf Editores, SP, 1986; Trevo, 1969-1988, Coleção Claro Enigma, Duas Cidades: SP, 1988 (coletânea dos livros anteriores); Teia: poemas, Geração Editorial, 1996 (Prêmio APCA); Uma - despretensiosa – minipoética, na revista Cultura Vozes, número 1, janeiro – fevereiro de 1977, ano 91, volume 91. Prosa: Almirantado, no Almanaque, número 4 (Cadernos de Literatura e Ensaio), SP, 1977. Colaborou com revista Cultura Vozes e com O Estado de S. Paulo. Publicou poema na revista portuguesa Anto, em Amarante, Portugal, número 2, 1998. Quando da revisão dessa dissertação em julho de 2006, houve a publicação de sua Poesia Reunida (1969-1996) São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

14

e preenche o instante. Silêncio fundamental que as palavras, nuas e cruas,

estabelecem para pensar o ser humano em sua mais profunda densidade. Tudo

isso transpôs para a sua poesia, através da secura de seus versos, de forma dura

e densa. Afinal, como ela mesma dizia, "nossa época é terrível, somos poetas em

tempo de desgraça". Orides viveu sempre em meio a grandes dificuldades.

Sempre com os nervos à flor da pele, meteu-se em encrencas e provocou

escândalos com seus melhores amigos. Boêmia e depressiva, várias vezes tentou

o suicídio, o que resultou no falecimento precoce aos 58 anos.

Mas há um outro sentido para centro que, pensado círculo, pode adquirir

um movimento, o da espreita. Pelo Aurélio: centro, círculo; movimento de rotação:

aquele que um corpo efetua em torno de um ponto situado no seu interior, ou

ainda, movimento infinito, conceito da física: o de um sistema de partículas em

que a energia é constante e as coordenadas de uma ou mais partículas podem

assumir valores infinitos. Prefiro privilegiar a energia, as partículas e os valores

infinitos.

O meu contato com Orides se deu foto, capa estranha de Teia, poemas

folheados, livro aberto em “círculo”. Minhas suspeitas aumentaram com aquela

capa, esquisito cosmos que cedeu, depois de um tempo, lugar ao caosmos. As

leituras de Metaformose, de Paulo Leminski me provocaram um passeio pelo

pensamento grego entre metamorfoses, parricídios e mortes que se atualizam

numa mesma vida. E lembro que Orides dizia do “círculo” assim:

O círculo

é astuto:

enrola-se

envolve-se

autofagicamente.

Depois

explode

- galáxias! -

abre-se

vivo

pulsa

multiplica-se

divindadecírculo

perplexa

(perversa?)

15

o unicírculo

devorando

tudo.

(Fontela, 1996, p. 59)

Guardei bem: dizer de Orides é melhor assim, que nos envolve, ao mesmo

tempo nos arrebata, nos desloca, nos faz um convite sempre: voltar várias vezes

ao jogo, atentando para novas dimensões e sentidos que a vida toma a partir das

possibilidades da linguagem, de seus segredos. Posições em xeque: círculo,

centro e divindade. Mas divindade que perversa se permite perplexidades e

devorações, pois autofágica. Dizer dela viva, pulsante, multiplicada, galáxias. Sua

vida arrebatada, impulsiva, e sua dicção, sua poesia, concisa. Melhor.

Nesse momento em que consideramos o percurso, o embate com a leitura

de sua obra, como uma armadilha, preferimos dividir as partes desse enlace

entendendo a feitura da própria armadilha muitas vezes tida aqui como teia.

Momento primeiro é o laço, em que ele se faz engenho, cilada ou mesmo

armadilha para apanhar qualquer animal. Movimentos vibrantes de atenção para

encontrar uma saída.

Desse modo, devemos pensar alguns conceitos com minúcias. Trabalhar

com a palavra “ser” nos faz pensar em seu sentido latino, que vem do verbo

sedere¸ sentar-se. Preferimos entender o ser não como acomodação que o radical

em primeira instância pode sugerir. Não a existência tomada num sentido fechado,

baseada na idéia de uma essência como algo intocável ou inatingível, mas o que

implica constante mudança, o tornar-se com a acepção de produção de múltiplos

sentidos, inesperados, próprio daquele que em sua “existência” se lança, arrisca,

permite achar-se outro. Pode, ainda, tomar um outro sentido mostrado pelo

dicionário Aurélio que vai de encontro à temática com a qual trabalhamos:

“empregado sem sujeito, indica o ponto ou o momento do tempo, a estação, a

época.” Tempo oportuno, movimento de fazimento-desfazimento.

Própria da leitura que fazemos de sua poesia é essa proposta de

construção e desconstrução que aparece no poema "Ludismo" onde Orides

sugere que

16

(...)

quebrar o brinquedo

é mais divertido.

As peças são outros jogos:

construiremos outro segredo.

(...)

Mundos frágeis adquiridos

no despedaçamento de um só

E o saber do real múltiplo

e o sabor dos reais possíveis

(...)

Quebrar o brinquedo ainda

é mais brincar.

(Fontela, 1989, p. 19)

Propondo despedaçar um mundo para adquiri-lo múltiplo, a escritora brinca

com o sabor e o saber do real possível em sua multiplicidade. A desconstrução

passa pela ação considerada manifestação de uma força, de uma energia, de um

agente, propondo um movimento, funcionamento e atitude. Pensando pelo viés da

filosofia, a ação passa a ser processo que decorre da natureza ou da vontade de

um ser, o agente, e de que resulta criação ou modificação da realidade. O

percurso é o curso desse processo; atividade, resultado ou efeito desse processo.

Sua poesia é calcada na palavra. Essa palavra que é real e nos fere, que

se reinventa, repelindo o "cantoflorvida", renasce perpétua contra a

automatização, num "universofluxo" que nos obriga a parar o tempo. Um viver

denso, de excessiva vivência, sangrado, esculpido, despedaçado, lúcido, ferido,

marcado, tramado e nunca desgastado mas multiplicado. Através do jogo, Orides

nos indaga sempre sobre este mundo e particularmente sobre o nosso, como o

preenchemos e o elaboramos. E nos mostra várias perspectivas, brincando com a

palavra tempo em seus poemas.

O livro Teia traz uma epígrafe de Espinoza: “Todas as grandes coisas são

difíceis e raras”, ao lado de um verso próprio da escritora “A lucidez alucina”. Ser

difícil e rara não implica a impossibilidade de conhecer algo, embora tenhamos de

dar a volta completa por um determinado aspecto que queremos conhecer. Nesse

ponto de conhecer por completo, lançando-nos na descoberta, corremos o risco

de lucidamente perder o uso do entendimento e, então, nos alucinarmos. Acordar,

penetrar e vigiar, estarmos vigilantes, atentos a. O destino não está pronto, tem de

ser elaborado como solução para que possamos penetrar o tempo, nos inserirmos

17

nele e apreendermos por instante uma habitação. O destino não necessariamente

pressupõe um futuro distante, mas um novo presente.

Estar atento pode ser estar pronto para compreender o devir e a

intensidade ao mesmo tempo. É, por um instante, ser capaz de afetar-se. Sendo o

nosso tempo baseado na aceleração da vida através de seus supostos projetos

produtivos, faz-se necessário encontrar uma poética que nos permita alcançar um

outro tempo, aquele que, descoberto e desvendado por nossa vivência, consiga

atingir um pensamento em torno da delicadeza, da sensibilidade e da dignidade de

viver. Reflexão a partir da linguagem, pensamento como exercício de filosofia, vida

através da poesia.

Comentando sobre a originalidade do sentimento dado à conjunção “e”

quando Espinoza relaciona alma e corpo, Deleuze evidencia as relações, variável

o nível de potência, que os indivíduos mantêm uns com os outros e a capacidade

de serem afetados por isso:

Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem

nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos

tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar

em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria). Espinoza está sempre se

surpreendendo com o corpo. Ele não se surpreende de ter um corpo, mas

com o que o corpo pode. Os corpos não se definem por seu gênero ou sua

espécie, por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos

afetos dos quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação. Você ainda

não definiu um animal enquanto não tiver feito a lista de seus afetos. (...)

sempre se tem os órgãos e as funções que correspondem aos afetos dos

quais se é capaz. Começar por animais simples, que têm somente um

pequeno número de afetos, e que não estão em nosso mundo, nem em um

outro, mas com um mundo associado que souberam talhar, cortar,

recosturar: a aranha e sua teia, o piolho e o crânio, o carrapato e um canto

de pele de mamífero, eis os animais filosóficos e não o pássaro de

Minerva. Chama-se sinal o que desencadeia um afeto, o que vem efetuar

um poder de ser afetado: a teia se agita, o crânio se dobra, um pouco de

pele se desnuda. Nada a não ser sinais como estrelas em uma noite negra

18

imensa. Tornar-se aranha, tornar-se piolho, tornar-se carrapato, uma vida

desconhecida, forte, obscura, obstinada. (Deleuze, 1998, p. 73)

Definir os corpos pelos afetos, privilegiando essa capacidade de ser

afetado, enquanto conhecer algo implica envolver-se na feitura de uma lista de

afetos. Na complexidade dos animais simples, minuciosas mas potentes ações: a

recostura, o corte e o talho. Quase imperceptíveis, provocam um desdobramento

do olhar em ver e reparar, fazer isso com os impulsos potentes do piolho, da

aranha e do carrapato, por exemplo. A percepção do afeto é marcada por um sinal

que desencadeia, desdobra, desmonta o tecido, visto que “a teia se agita, o crânio

se dobra, um pouco de pele se desnuda”. Sinais como as “estrelas em uma noite

negra imensa”, ou no dizer provocador de Orides, em “um céu estrelado dentro de

mim”.

No poema "Teia" de seu último livro homônimo, há uma ruptura com o

sentido imediato das coisas, pois interessa uma outra teia que não esperada, além

da idéia trabalhada de armadilha. Embora o fazimento-desfazimento esteja

imediatamente associado a um sentido tátil, é o olho que vê despertando o estado

da atenção através do recorte, do enquadramento que faz.

Nesse poema a linguagem é condensada, a idéia é espremida em imagens

simbólicas, aqui cada palavra tem a força da imagem.

A teia, não

mágica

mas arma armadilha

a teia, não

morta

mas sensitiva, vivente

a teia, não

arte

mas trabalho, tensa

a teia, não

virgem

mas intensamente

prenhe:

no

centro

a aranha espera.

(Fontela, 1996, p. 13)

19

Durante nossa vivência com a poesia de Orides, utilizamos todo o material

que íamos aos poucos encontrando entre artigos de jornais e revistas

especializadas em literatura da época em que ela produziu sua obra literária, bem

como dissertações de mestrado, depoimentos e entrevistas concedidos pela

própria escritora.

Receber esses dados gerou a idéia de trabalhar sob uma perspectiva

gestual, aquilo que representando um simples ato de estender a mão ao outro em

gestos mínimos, nos fala de encontros que vão da escrita à leitura solitária entre

pesquisadores, leitores e talvez, como queria Orides Fontela, entre amigos. Numa

entrevista concedida à escritora Marilene Felinto para a revista Marie Claire de

setembro de 1996, revela sua intenção poética em relação à amizade: “Meu

círculo de relações está muito pequeno. Uma das coisas que eu pensei que podia

conseguir com a poesia era ter mais amigos.”3

Nesse sentido, aparecem como diálogo as influências de leituras, potentes

influências. Pequenos percursos, passagens obrigatórias a fazer parte de uma

trajetória.

Não demorou muito para que a escritora Orides Fontela ganhasse ar de

poeta municipal e fosse respeitada por isso a ponto de mudar-se rapidamente da

cidade de São João da Boa Vista para a cidade de São Paulo. Com ajuda e

orientação de seu conterrâneo Davi Arrigucci Jr., seus planos de seguir a carreira

de magistério ganharam a dimensão universitária e a certeza de querer cursar

filosofia. Tempos áureos da década de 70 no curso da USP, em que Orides

participou mais das conversas e do diálogo que se instaurava entre os estudantes

do que do combate que também se estabelecia contra os planos do cenário

político do país.

3 Gostaria de ressaltar a dificuldade de pesquisar em material (revistas e jornais) antigos, principalmente os artigos publicados em jornais locais que não circulam nacionalmente. Para nossa consulta, buscamos a biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa e a Biblioteca Nacional – setor de periódicos e microfilme – ambas situadas no centro do Rio de Janeiro. A Biblioteca Nacional recebe grande parte desse material mas nem sempre disponibiliza cópias microfilmadas, tendo de ser feita consulta local em originais. No nosso caso, por dificuldades de pesquisa, muitas vezes não foi possível copiar o número da página referente ao artigo mencionado.

20

Dessa forma acabou conhecendo e influenciando-se, como cita em

depoimento para o livro Artes e ofícios da poesia, pela leitura de mundo de Vilém

Flusser (1920-1990), durante a moradia dele no Brasil. O período em que

freqüentou os cursos desse pensador, Orides considerou como passagem da sua

fase pré-literária para a escrita de seus livros.

Em artigo para a revista Gesto, de dezembro de 2003, o pesquisador

Charles Feitosa afirma que poucos conhecem o filósofo de origem tcheca, que

morou e ensinou, entre 1940 e 1972, em São Paulo e tem uma vasta obra sobre

literatura, fotografia, tecnologia, mídia, política e cultura. A influência mais

marcante do filósofo, que lecionou durante três décadas no Brasil, para Orides

Fontela, vem do livro Língua e Realidade:

…descobri que, há tempo, não era mais entendida municipalmente.

O que houvera? Que influências? Creio ter citado todas mas ainda falta

Vilém Flusser (Língua e realidade). Besteira ou não, que

deslumbramento ! Desta alimentação aleatória e autodidata, destas

intuições e vivências “algo” ia nascendo. Falta reconhecer, selecionar,

assumir. (Massi, 1991, p. 258)

A nosso ver, o deslumbramento ocorre devido a uma afinidade entre

temáticas e perspectivas trabalhadas. Enquanto estamos lendo Língua e

realidade, acreditamos, por instantes, estar ouvindo a voz de Orides como pano

de fundo. Vilém Flusser procurou trazer para o estudo meticuloso o aspecto

mágico da língua na qual era estrangeiro. Dessa forma, partindo de uma leitura

ontológica, procura trazer novos recortes e sentidos para a língua que forma e

governa o pensamento, provocando o pensamento e ampliando a conversação,

tanto para o conceito de verdade como para o de realidade que a língua forma,

cria e propaga.

Segundo o estudioso, em outro livro Gesten, o autor “nos convida a

reavaliar nossos movimentos corporais, majestosos ou cotidianos, para

redescobrir seu potencial expressivo.” (Feitosa, 2003, p. 15)

21

Os nossos gestos, tanto os concretos como os abstratos, trazem como

conseqüência uma gestação de idéias e também dos seres. Nesse sentido, é

fundamental pensar sobre os nossos gestos cotidianos, as alterações mínimas

capazes de produzir. Para Charles Feitosa, o livro é exemplo de “filosofia pop”,

uma vez que “tem como principal característica a recusa de qualquer delimitação

absoluta entre o que é supostamente filosófico e o que não é (...) sabe descobrir

profundidade mesmo mantendo-se na superfície”. (idem) Assim chega a

questionar a existência partindo das gesticulações na superfície da vida cotidiana,

pois a “existência humana consiste em fazer gestos e ser continuamente “gestada”

por eles.” (idem)

Ainda sobre esse livro, Charles Feitosa explica o que viria a ser

considerado gesto para Flusser. Ou melhor, que categorias ele cria para os

gestos. Diferenciando-as, chegamos à noção de distintas formas de vida.

Segundo a teoria de Flusser, há quatro categorias principais de

gestos: os comunicativos (gestos dirigidos aos outros, como o aceno ou a

continência); os de trabalho (dirigidos a algum material a ser modificado,

como cozinhar ou consertar um relógio); os ritualísticos (uma

submodalidade dos gestos de trabalho, só que voltados para uma

alteração no próprio gesticulador, como o ato de ler ou de viajar); e, enfim,

os desinteressados (gestos que não se dirigem a nada específico, a não

ser a sua própria realização, tais como certas brincadeiras de criança –

pular no mesmo lugar – ou ainda as artes em geral). A classificação

permite a distinção entre três formas de vida, também esquemática: a vida

comunicativa , a vida ativa (frente ao mundo ou frente a si mesmo) e a

vida artística . (Feitosa, 2003, p. 15, grifos meus)

Dividindo os gestos em categorias, Flusser nos diz que essas quatro

categorias alteram nosso olhar, é a seleção que o olho proporciona, o recorte que

permite, o enquadramento. Tanto é assim que diz de um novo suporte ou de uma

atenção voltada a um esquema que monta a partir da seleção feita anteriormente.

22

E nos importa recortar dentro da sua fala essa “vida ativa”, perspectiva que explica

ser frente ao mundo ou a si mesmo.

Refletindo mais detidamente sobre os nossos gestos cotidianos, acabamos

nos surpreendendo com o que intencionamos e com o que realmente praticamos.

Orides tem um poema que, a nosso ver, nos ajuda a dialogar com a intenção de

Vilém Flusser. Deixa-nos, ela, uma “notícia”:

não mais sabemos do barco

mas há sempre um náufrago:

um que sobrevive

ao barco e a si mesmo

para talhar na rocha

a solidão.

(Fontela, 1988, p. 41)

Antes de chegar à categoria de “vida artística”, nos gestos desinteressados,

voltamos à “vida ativa” e aqui queríamos inserir a solidão do náufrago, esse

sobrevivente a si mesmo. No tempo interno, é sozinho que se coloca em

gramíneo terreno porque há o trabalho do talho, não é uma solidão

transcendente, mas um labirinto, um viver individual em rumos, caminhos,

descobertas e descobertas em silêncio.

Seguindo o pensamento de Flusser, entendemos que muitos gestos

despretensiosos não passam de uma intenção de submetê-los à existência

humana como, por exemplo, o gesto de plantar, pacífico e violento, uma vez que

“obrigamos a natureza a trabalhar para nós e contra si própria.” (Feitosa, 2003, p.

15)

[..] Mas, o que seria uma relação mais afirmativa com a natureza?

[...] Na caçada não se espera, espreita-se. [...] Quem caça se expõe a

riscos, se submete às leis e mistérios inerentes à natureza, podendo

eventualmente se tornar uma presa também.

Trata-se de “reaprender a olhar um gesto tão comum e banal.”

23

A ordem e a disciplina no próprio corpo refletem uma ideologia que

tenta impor ordem e disciplina no real.

A observação desse gesto (fazer a barba, por exemplo) serve de

pretexto para um questionamento acerca de fenômenos emergentes da

cultura contemporânea, como a ecologia ou o urbanismo.

Para o autor de Gesten uma das tarefas de uma filosofia no

cotidiano é investigar se a ecologia e a engenharia social, como têm sido

praticadas, não permanecem gestos tão cosméticos como o de fazer a

barba, na medida em que insistem em trabalhar apenas na e para a pele,

quer dizer, em construir e manter muros divisórios na existência.

O que há de comum entre dançar e inalar o fumo do tabaco é que

ambos são gestos cuja única finalidade é não ter fim, gestos que não

promovem diretamente uma transformação do mundo ou do gesticulador,

que nada informam ou comunicam; enfim, que se esgotam na sua própria

realização. (Feitosa, 2003, p.17)

Com gestos desinteressados de uma produção e mais atentos aos

movimentos, experimentamos a vida, resistimos. A diferença está na atitude, em

que a intenção não é provocar grandes mudanças no mundo mas senti-lo vibrante,

pulsante, vivo. Assim descobrem-se e instauram-se novos prazeres repensando

os gestos úteis, e nos tornamos desejantes. Instaurando novos prazeres,

alimentamos o desejo, premissa que costuma ser pensada ao contrário, como nos

impõe a imagem da propaganda: primeiro aciona um desejo no espectador, pois

promete a ele um prazer que, ao invés disso, acaba sendo substituído por uma

certa frustração. Nessa inversão, a garantia do viver ao invés de simplesmente

sobreviver.

O objetivo do rito não é mudar o mundo. Quanto mais um rito é um

gesto cuja finalidade está em si, mais ele pertence à “vida estética”. O rito

de fumar cachimbo é, para Flusser, um gesto artístico como o do pintor ou

do dançarino. Fumamos cachimbo ou dançamos por prazer, ou melhor,

pelo prazer específico de poder interromper os gestos úteis. Quando

24

fumamos cachimbo ou dançamos, estamos “vivendo a vida” em vez de

apenas “sobre-viver”.

Cada vez mais a atividade artística é vista exclusivamente como um

gesto de trabalho, com o qual se procura instaurar uma obra, realizar uma

performance, transmitir uma mensagem, expressar uma emoção ou causar

sensações. O aspecto mais essencial da arte é, segundo Flusser, a

possibilidade da descoberta de si: “É somente no gesto de tocar um

instrumento, de pintar, de dançar, que o músico, o pintor e o dançarino

experimentam quem são e como são.” Então, dançar e fumar cachimbo

são atos de resistência contra uma vida baseada apenas na utilidade

racional e duas das muitas formas possíveis de experimentar a “dor e a

delícia” de tornar-se o que se é. (Feitosa, 2003, p. 23)

Valorizando os gestos mínimos, precisamos pensá-los delicadamente pelo

viés do movimento. Não se espera do movimento uma performance aparente, mas

compreende-se, ao contrário, os impulsos capazes de gerá-lo antes mesmo dele

acontecer. Nesse sentido, busca-se um puro acontecimento que possa remeter às

potencializações, mínimas que sejam, dos gestos. Sobre a “potência de amar” e o

“puro acontecimento” reparar num trecho do livro Diálogos, de Deleuze (1998):

À minha vontade abjeta de ser amado, substituirei uma potência de

amar: não uma vontade absurda de amar qualquer um, qualquer coisa, não

se identificar com o universo, mas extrair o puro acontecimento que me

une àqueles que amo, e que não me esperam mais do que eu a eles, já

que só o acontecimento nos espera. (...) Fazer um acontecimento, por

menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de um drama,

ou de fazer uma história. Amar os que são assim: quando entram em um

lugar, não são pessoas, caracteres ou sujeitos, é uma variação

atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma

população discreta, uma bruma ou névoa. (Deleuze, 1998, p. 23)

Vontade como potência, acontecimento como delicadezas, geografia,

mudança, variação. Ato enquanto intensidades. O que nem sempre se dá. Para

25

brincar um pouco com a geografia, entendemos ser preciso brincar também com

uma montagem, ou seja, para quebrar o brinquedo, antes conhecê-lo, suas

formas.

Então fizemos assim: recolhemos artigos escritos pela poeta, alguns

escritos sobre ela em simples revistas e jornais noticiosos e outros estudados

minuciosamente e analisados criticamente. Chegamos então às dissertações de

mestrado e às teses de doutorado que conseguimos encontrar, dentre várias

dificuldades, que vão das dificuldades da pesquisa ao simples descaso que

percebemos em relação ao seu trabalho que se dá, geralmente, por mero

desconhecimento de sua obra.

Descobertas as pistas, enchemos o percurso de dúvidas e indagações que

alimentam várias paixões; juntamos tudo que advém dos amores, do convívio,

tanto teórico quanto prático, tateando um mosaico no campo das inquietações.

Para depois, então, praticar o ato de selecionar.

Da paixão pouco se diz hoje. Ou se diz muito e, por isso, pouco. Leminski

em bonito artigo “Poesia: a paixão da linguagem”, para a série Olhar da

Companhia das Letras, chega logo de início a uma conclusão de que se a palavra

paixão está na moda e se estamos valorizando-a demais, é porque, o fundo, ela

está faltando.

Podemos lembrar aqui que paixão muitas vezes, conforme ressalta Leminski,

passada à nossa tradição como herança do radical latino, nos dá uma noção de

passividade. Prefiro atentar para o radical grego de onde provém como pathos,

por conter a paixão como impulso. Então a paixão é isso, sinônimo de arriscar-se,

mover-se. Não necessariamente sair do lugar, as permanecer nele e ao mesmo

tempo em uma inquietude, podendo dizer de um universo lúdico que, por sua vez,

pode dizer da criação no movimento de brincar.

26

1.2 segundo movimento

Como referência a uma reconstituição da memória, trouxemos esses

artigos até aqui para fazer referência aos gestos generosos de lembrar uma

determinada época, um percurso, uma maneira de andar.

A generosidade não caberia aqui pensada como nobreza. É necessário

atentar para o sentido conotativo que ela ganha ao repararmos a entrada do

dicionário Aurélio para antropônimo. “Generoso: ente fantástico que, segundo a

crendice popular, entrava nas casas sem ser visto, fazia barulho nos quartos,

tocava instrumentos musicais, etc.” (Ferreira, 1999, p. 980). Substituímos a

nobreza pela inquietude, por aquele que, “fazendo barulho” provoca, um bom

incômodo. E assim, promove encontro, estar com.

A dificuldade que a contextualização histórica implica foi abordada de

maneira muito cuidadosa por Alexandre Rodrigues da Costa em sua dissertação

de mestrado A construção do silêncio: um estudo da obra poética de Orides

Fontela, de 2001. No capítulo inicial, ele nos diz que

Situar e analisar a obra de qualquer poeta brasileiro nas últimas

quatro décadas é, antes de tudo, mostrar em que medida valores, poéticas

e correntes tão diferentes coexistem. Nesse sentido, qualquer tentativa de

definição nos leva a refletir sobre como os traços individuais de um

determinado artista convergem naquilo que chamamos de tradição.

Quando focalizamos nossa atenção sobre períodos nos quais procuramos

características que possam determinar linhas de força, pontos em comum,

sempre surge a expectativa de que algum poeta fugirá disso, adotando

não a postura em voga, mas articulando uma linguagem que envolva um

pensamento próprio, desvinculado de qualquer compromisso com

correntes poéticas ou comportamentos predominantes.

Nesse sentido, falar de Orides Fontela é tocar em nuances que

possibilitam articular a expressão individual em contraponto ao contexto no

qual foi produzida sua obra, mostrando até que ponto se diferencia de seus

semelhantes ou a eles se assemelha e em que medida sua postura frente

27

à tradição da literatura brasileira tem como objetivo alcançar caminhos que

a levam a um ideal próprio de poesia. (Costa, 2001, p. 12)

Orides Fontela esteve alheia sempre a correntes e modismos. Embora

tenha bebido em várias fontes, criou nuances originais para uma solução muito

pessoal de sua poesia. Ela mesma indica que muitas vezes seguia seu método

intuitivo mesmo que depois pudesse associar algumas características a outro

escritor. Estava imersa em seu tempo, conseqüentemente, seu pensamento

também refletia preocupações e produções de outros escritos e escritores. Tinha

sua perspectiva própria, formada desde seu primeiro livro e dizia não ser

contaminada pela coexistência de correntes nem pelo cotidiano proletário em que

viveu. Tudo isso resultou num trabalho que primava pela concisão, pela economia

de recursos e por uma poesia cheia de densidades. Atestando que sua postura

não cuidava de “fatos neutros”, ao contrário ela parecia posicionar-se mesmo que

contraditoriamente.

Um exercício em vida foram as críticas que escreveu...

Dos artigos que escreveu no ano de 1987 enquanto colaboradora do jornal

O Estado de S. Paulo, Orides foi mostrando aos leitores corriqueiros do jornal a

que veio seu espírito selvagem. À sua maneira aristocrática, agindo em sua poesia

com “bom senso”, “bons modos”, contenção, mostrou em seus artigos sua verve

irreverente, respondendo com frases cortantes aos apelos da classe média bem

comportada.

A literatura que produziu junto aos seus artigos era fruto de um trabalho

árduo e bem refletido, um exercício de vida. Em seus artigos, tecia as

considerações necessárias para desenvolver um pensamento crítico voltado para

a literatura e para a elaboração de sua poesia. Laboratório. Antes de ser uma

intuição de seu espírito (recuperar o sentido indígena do termo que respeitava

uma integração sensitiva com o universo), significava primeiro um exercício

político em relação ao seu posicionamento no ofício de escritora e pensadora das

questões importantes de seu tempo. Além da importância do trabalho com a

escrita, buscava afinar o espírito, tão abalado por pressões mercadológicas que

28

oprimem o sujeito socialmente a ponto de influenciar na força e fôlego necessários

para continuar exercendo dignamente valores voltados ao desenvolvimento de um

estar no mundo.

Naquele ano de 1987, foram cinco o total das colaborações na seção Guia

de Leitura do jornal de domingo, em que escrevia sobre diversos autores, tanto

desconhecidos do grande público, por serem estreantes, quanto badalados poetas

como Ivan Junqueira e Ferreira Gullar. Esse arranjo acaba por tornar conhecidas

as preocupações efetivas de Orides Fontela em relação à ética do fazer literário.

Sem antes saber dessas considerações em torno da vida e da poesia, sentíamos-

nos afastados do embate travado entre o escritor e seu trabalho. Gostaríamos de

dividir alguns questionamentos desenvolvidos ao longo desses artigos.

No dia 17 de maio quando escrevia “Junqueira e o excesso do verbo” sobre

O Grifo, de Ivan Junqueira, publicado pela Editora Nova Fronteira, deixava claro

seu comprometimento com a busca da essência das palavras, procurando tirar o

excesso dos versos para não anular a poesia. Segundo ela, para um quinto livro

dele, era cometido pecado demais. “Estamos numa época confusa, mas, pelo

menos, democrática e acreditamos que toda poesia é válida, desde que seja

autêntica e forte.” Defendia o exercício da distinção entre o bom e o mau poeta e

combatia as discussões sobre modismos atuais. Acreditava na maturidade de Ivan

Junqueira, mas não aceitava algumas más “resoluções sonoras” ainda mais

quando feitas “numa tentativa de usar formas mais atualizadas”. Nem perdoava a

exceção previsível dos adjetivos pois estes

fazem perder o mistério eliminando os efeitos de surpresa e impacto

que os bons poemas devem ter. Sendo os temas eternos temas humanos,

é preciso uma personalidade poderosa para fazê-los reviver como

merecem. Ora, a personalidade poética do autor é coerente, mas não

suficientemente forte e marcante.4

4 Os artigos de Orides Fontela escritos para o jornal O Estado de São Paulo foram colhidos em microfilme na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Infelizmente, a versão impressa não traz o número da página a que se referem todos os artigos. Portanto, em referência bibliográfica, os que tiverem faltando a numeração correta encaixam-se nesse caso. Para maiores detalhes ver bibliografia no final deste trabalho.

29

Sobre a poeta Maria escreveu em 14 de junho um artigo “Maria encontrou a

poesia”, solidário com sua condição marginal. “A ingenuidade ainda marca o

verso, mas isso não é nada para quem já foi chamado de louca. Maria Elizabete

Lima Mota, três filhos, estuprada, prostituída, drogada, favelada, chegou à rima. E,

quem sabe, à solução.” Nesse artigo defende a poesia como voz, como uma

postura de indignação que aceita falar ao invés de calar. Essa coragem da fala de

Maria, Orides não quis levar para sua poesia. Segundo ela, já bastava a vida

sofrida que levava, então não a coloca de uma maneira explícita, não precisava

estendê-la aos seus escritos.

Declaro que estou em tormento – poesias da sarjeta, é um

acontecimento diferente em nosso meio. Não por ser ótima poetisa – é

bem ingênua, bem espontânea, necessitando de burilamento -, mas porque

Elisabete é mesmo povo . É a mulher proletária – e mais do que isso: a

mulher abandonada na sarjeta, expulsa da pátria para a sarjeta, como ela

diz, a vítima do machismo e até da psiquiatria – que revela fibra e

humanidade para ainda cantar. Cantar, protestar, sonhar, poetar, viver!

Neste país, onde pobre não tem voz, Elisabete tem voz para si e,

infelizmente, para tantas outras pessoas esmagadas. Pois o seu não é

caso único, como realça bem Marta Suplicy no pungente prefácio. Nem é

doida, sua única “loucura” é ser mesmo poetisa, é cantar de qualquer

maneira, apesar de tudo. Seu livro, para principiar, é um incrível

documento humano. (Fontela, 1987, p. 4)

Neste sentido, a poesia é, na sua expressão, exercício de fé.

O que seria defeito noutros casos, em Declaro que estou em

tormento, deve ser visto com outros olhos, e o que é qualidade aumenta

muito, pois já é extraordinário, dadas as condições. Mas será mesmo?

Acaso todos não têm voz, todos não deveriam ter direito ao canto? Ah,

mas a vida, a miséria, tantas coisas por aí nos sufocam. É preciso ser

mesmo poeta e ter não só muita coragem mas até bastante loucura para

30

não se deixar esmagar, para gritar cada vez mais forte, mais lúcido, como

proclama Elisabete. Precisa selvageria, raça, fé . (Idem)

No dia 16 de agosto escreveu “Nas rimas da perplexidade” sobre os livros

Fibra Ótica, de Fernando Bonassi, Nereu Velecico e Marcelo Arbex e Antologia

Poética, de Luis de Miranda publicados respectivamente pela Massao Ohno e pela

Editora Mercado Aberto.

Segundo Orides Fontela, “nosso incrível mundo atual” é desafinado.

Que mundo! Nossa cultura, como é sabido, é uma “sopa Lavoisier”

– ainda reaproveitamos idéias e valores do século passado e não

conseguimos criar nada de forte, novo e vivo. Estes são os “tempos de

desgraça”, segundo Heidegger. E poetas em tempos assim só podem

clamar, desafinar, falar num deserto. Mas salvam-nos da desgraça total...

(Fontela, 1987)

Defende a estréia auspiciosa de Fernando Bonassi, brinca com a falta de

originalidade de Nereu Velecico mas valoriza a influência que ele recebeu da

leitura de Murilo Mendes. “Será isso um defeito? De qualquer forma, é uma ótima

genealogia poética, e nosso estreante vai tornar-se talvez surpreendente quando

evoluir. Espere-se”.

E defende ainda o que considera o pior de todos, pois ainda em busca de

uma linguagem própria: Marcelo Arbex.

Ai de todos nós, poetas em tempos de desgraça, filhos de um

mundo que é mais um lixo que um universo! Se nos realizamos é que

estamos mortos e ultrapassados, se não o fazemos, como ser bons

poetas? O problema geral é: como simplesmente ser. (Idem)

Neste trabalho vamos compondo Orides, praticando uma forma de ver e

entender, aos poucos, como se dá seu aparecer, escrevendo e lendo,

reescrevendo outros. Aqui não há uma aplicação metodológica sistemática, mas

31

um aproximar-se aos poucos da linguagem para vê-la. Assim poderíamos dizer

que essa busca do ser habita o espaço interior, da casa, e que é realmente um

embate em que precisa “selvageria, raça, fé”. Como no poema “caramujo” que

podemos ler abaixo: “o fim / limite íntimo / nada é além de si mesmo / ponto

último”, lugar em si. O ponto último não impõe especulações, mas nos diz que “a

saída / é a volta.” Vejamos o poema “Caramujo”:

A superfície

suave convexa

não revela seu dentro:

apenas brilha.

A entrada

estreita abóbada

e sóbria sombria

gruta.

A seqüência

rampa enovelada

se estreita num pasmo

labiríntico.

O fim

limite íntimo

nada é além de si mesmo

ponto último.

A saída

é a volta.

(Fontela, 1988, p. 40)

Espaço interior como a casa, a concha do molusco envolve o que é dentro

frágil. Em toda intimidade existe uma sutileza de chegada, e um limite – ponto

último: “si mesmo”. Voltar é a saída, a facilidade de não permanecer em

movimento solitário do outro, para não provocar invasões bárbaras.

Não se surpreende muito com o livro de Luis de Miranda, ainda mais pelo

fato de ser antologia. Mas ficam os deliciosos e instigantes comentários dela sobre

a época. “Enfim, dois livros novos e de novo a velha perplexidade de “nossa

cultura”. Quando acharemos uma barbárie nova?” A escolha dos livros reflete a

busca por encontrar algo novo se não na expressão, ao menos no modo como se

diz.

Tanto é assim que Orides não segue um critério rígido na escolha de títulos

e escritores, trazendo tanto aqueles renomados e velhos conhecidos, como os

32

estreantes, canônicos, como marginais, de diferentes editoras, com diferentes

propósitos: lingüísticos ou sociais. O rancor pelo descaso em relação aos

proletários praticado pelas autoridades, e tudo que eles procuram tirar e dificultar

na vida dessas pessoas, foi trazido à tona, antes de lutar por um espaço feminino

em sua poesia. Sublimava esses fatores em detrimento de ter sido posta à

margem desde o momento que nasceu sob o signo do anonimato a que estão

submetidos os pobres desse mundo. Em seus comentários sensatos e sagazes,

deixava a veia amarga da vida à mostra.

Podemos conferir esta atitude no artigo “Versos e rimas de luz e sombras”

escrito em 01 de novembro sobre Safadezas, de Neusa Cardoso (Massao Ohno

Editor) e A noite não pede licença, de Paulo Colina (Roswitha Kempf Editores).

Segundo Orides, Neusa Cardoso estréia “... sem grandes brilhos nem

novidades, mas também sem tropeços”. O equilíbrio faz da autora ótima estreante

e revela o interesse de Orides Fontela pela estréia, pelo começo, pois é

impossível termos grandes poetas todos os dias. Nenhuma maravilha mas

nenhuma desafinação. A autora conhece seu ofício e seus limites, podendo, assim

oferecer-nos algo humano, agradável e simpático.”

O interesse por um planejado começo, esboçado projeto, fica claro quando

cita Paulo Colina falando de uma militância, da importância de se apresentar

pequena poesia. Aqui, antes de um desabafo pela situação nada heróica da

poesia, temos palavras de incentivo por meio de uma lúcida orientação. “Claro que

Colina nem se renova nem renova a poesia pátria, mas não estamos em tempos

heróicos. Por agora, já é ótimo que possamos saudar livros sérios, legíveis, como

o que o autor acaba de apresentar”.

Sobre o autor de Barulhos, Ferreira Gullar, não importa se grande poeta,

mas se um poeta vivo, atento. Em “Entre o lírico e o social”, artigo escrito em 8 de

novembro, Orides Fontela reclama a falta de novidades, mas valoriza um escritor

capaz de gerar sempre questionamentos, trazendo-os para seus poemas, embora

não tenha resolvido o problema de integrar o lírico ao social. Para ela, Gullar ainda

persegue uma meta:

33

Resposta total? Não, mas meta ideal que Gullar se coloca e que dá

bem a profundidade de integração buscada entre os pólos da poética do

autor. No geral, Barulhos são ecos, perguntas, memória. Com sabor,

cheiro, gosto bastante conhecidos e aprovados, com um certo prosaísmo

às vezes, com as forças e fraquezas - estas pequenas e bem superáveis –

de sempre. (Fontela, 1987, p. 5)

Entre antigos e novos escritores a mesma idéia de embate com a escrita,

luta travada com um trabalho difícil e árduo, o comprometimento pessoal capaz de

gerar poesia de boa qualidade. Com isso, falando de poesia, mostrava a

importância de manter aberto um diálogo em busca da valorização da poesia.

Além de seus escritos, outros escritos apareceram. E estes escritos

também devem ser considerados gestos; por isso tentamos montar um inventário.

Quando alguém escreve artigos sobre algum escritor, esses “gestos” podem

acabar dizendo muito sobre e compondo os gestos de outros. De qualquer forma,

ao conhecer um escritor pelas mãos de seus leitores, enveredamos por um

caminho, construindo uma composição biográfica a partir dos dados levantados e,

mais interessante ainda, um pensamento sobre o trabalho de Orides, de seu fazer

poético, a responsabilidade com os escritos, a elaboração de uma vida de algum

jeito inventado.

Quando estamos pesquisando a obra de um escritor que já não vive entre

nós, encontrar os escritos entendendo-os como pequenos gestos é, na verdade,

considerá-los presentes que nos dão uma repentina alegria. É estender ao outro,

em ato de generosidade, as palavras que nos encantam, que suspendem o tempo,

seguindo de mãos dadas e em diálogo pelas afinidades eletivas.

Quem melhor documentou e sistematizou os artigos noticiosos e analíticos

sobre Orides Fontela foi a escritora Letícia Raimundi Ferreira, que conversou com

a escritora muitas vezes ao telefone, no apêndice A intitulado Fortuna Crítica, de

sua dissertação de mestrado A lírica dos símbolos na poesia de Orides Fontela,

defendida em 1995 na Faculdade de Santa Maria, e transformada posteriormente

em livro, editado pela Pallotti e pela ASL. Na minuciosa pesquisa, é possível

encontrar um panorama dos comentários e estudos sobre Orides Fontela que

34

foram publicados em artigos de jornais e revistas, em resenhas de revistas

especializadas e em livros, tanto em âmbito nacional como no contexto

internacional. Um leitor menos avisado encontra lá um texto esclarecedor sobre

poesia, uma direção didática e uma abordagem direta para entrar no universo da

leitura de Orides Fontela.

Do desconhecimento em geral aos pequenos comentários e notícias de

alguns leitores, passando pelo estudo de considerados críticos literários

brasileiros, até a produção universitária de dissertações de mestrado e teses de

doutorado defendidas sobre Orides Fontela, nos confrontamos com um verdadeiro

exercício de montagem de um quebra-cabeça em que precisamos considerar

todas as peças encontradas, fossem elas irrelevantes ou essenciais para compor

o todo.

Assim foi nascendo o carinho: cuidado, desvelo; dedicação, vigilância,

provocação de vigília, pela obra de Orides Fontela, que começou efetivamente a

partir do artigo do jornalista e escritor paulista Bruno Zeni no caderno “Ilustrada”

do jornal Folha de S. Paulo. Nele, o que nos chamou a atenção foi a figura serena

mas selvagem da poeta numa fotografia que tinha como cenário seus escassos

livros, uma velha estante e um espelho. Esta figura aparece no início deste

trabalho, reconfigurada por Roberta Dabdab da Folha Imagem para o artigo “A

surpresa do ser”, de Contador Borges, na revista Cult.

Naquele momento, depois de ter sido despejada, Orides estava vivendo de

favor numa República de Estudantes, abrigada por uma amiga, depois de ter

habitado sob o viaduto Minhocão.

Mais curioso foi descobrir, depois de muitas leituras, que aqueles eram

seus últimos livros, considerados relíquias, depois de um incêndio que dizem ter

sido causado pela própria escritora. Todos sabiam da sua dificuldade em

sustentar-se com o parco salário de professora pré-primária depois do governo ter

tirado da grade curricular o ensino de Filosofia. Contam que Orides ficou bom

tempo vivendo às custas de seus amigos ou admiradores de seu trabalho poético,

através do qual espelhava seu compromisso com a vida plena que não encontrava

nos descasos impostos pela sociedade de seu tempo, ou do que em qualquer

35

época é humanamente possível enxergar: os enganos e erros da corrupção

humana. Talvez por isso, curiosamente, se defendesse o tempo inteiro com o uso

de um guarda-chuva. A vida proletária ensinou à alma poética de Orides que a sua

vivência intelectual ficaria comprometida pela sua formação, conforme ela mesma

informa sobre a diferença de classe social que atrapalhava os seus

relacionamentos: “É o tipo de formação da gente ou a maneira como eles olham

(grifo meu)”. Durante um bom tempo ela foi alvo de ataques que massacraram seu

ser e ajudaram também, contraditoriamente, a divulgar sua poesia em diferentes

veículos da mídia. A tudo isso reagia com seu inventário selvagem de literatura e

vida.

Nossa paixão aumentou quando da possibilidade de leitura de seus

depoimentos em jornais, revistas e livros, entrevistas concedidas pela autora,

fotografias tiradas de diferentes ângulos e em diferentes épocas de sua vida,

poemas distribuídos por ensaios. Além desses escritos, ainda encontramos os

artigos que ela escreveu para a revista Vozes e os trabalhos, já citados, como

colaboradora do jornal O Estado de S. Paulo, no exercício de crítica ao longo do

ano de 1987.

Em momento algum, Orides era sentimental, derramada ou frouxa em seus

poemas. Havia neles um tom de amargura lírica e seca, da mesma forma que ela

lia seus poemas de maneira forte, vigorosa, sincopada tratando sua poesia com

voz incisiva e decidida. Detinha-se no essencial. Era uma poesia descarnada, sem

enfeites, de uma dureza óssea e de cunho filosófico. Difere muito da poesia

minimalista, coloquial e de descrição de paisagens miniaturizadas. Por tudo isso,

consideramo-la uma obra selvagem.

Vida e obra selvagens. Através dos artigos que Orides escreveu, dos

depoimentos e entrevistas que concedeu, é possível compreender sua concepção

de poesia, sua missão com a literatura, e a interface dessa com a filosofia. Do

percurso de seu trabalho, acompanhando sua trajetória pessoal, encontramos as

influências das leituras que fez e de como essas interferências foram elaborando

seus gestos, o corpo de sua escrita e sua maturação intelectual. Leves

36

movimentos que foram montando sua vivência e sua importância literária. Esse

pequeno percurso pode ser verificado ao longo dos artigos escritos sobre ela.

O artigo de Vinícius Dantas sobre o livro Alba (1983), que havia ganhado o

prêmio Jabuti, nos chama a atenção pelo fato de ser diferente dos outros artigos

elogiosos, movimento causado por um leve incômodo. Em “A nova poesia

brasileira e a poesia”, o escritor propõe-se a fazer um “balanço crítico de alguns

volumes de poesia publicados durante o ano de 1983”, pois a recepção crítica

deixava muito a desejar, o que também não era diferente do acontecimento

literário, uma vez que os lançamentos podiam ser considerados mais editoriais.

Entendendo que o processo de recepção só se completa com o debate e a crítica,

procurava no verso: “qualidades, deficiências, força e originalidade, buscando

caracterizar tendências e influências” (Dantas, 1986, p. 42). Em algum sentido, é

possível encontrar no seu artigo razões coerentes para explicitar uma certa “atonia

histórico-cultural”:

Entre os fatores desse esvaziamento, estão igualmente as condições

particulares da vida intelectual brasileira após o impacto da modernização

que, em matéria da produção crítico-literária, foi devastador: a crítica

jornalística desapareceu com a implantação em vasta escala da indústria

cultural; a vida intelectual e literária se especializou, perdendo sua simpatia

provinciana; e, dado seu caráter vegetativo, a produção universitária no

caso das Letras (ao contrário de outras áreas) não impôs critérios teóricos

e críticos nem travou diálogo com a criação literária sua contemporânea,

de modo a se constituir em alternativa que atenuasse o império dos meios

de comunicação de massa. Ainda assim, olhada de relance, a criação

poética guardou, contudo, uma inquietação que não encontramos em

terreno crítico. (Dantas, 1986, p. 42)

Essa situação universitária tornou-se um pouco problemática na visão de

Vinícius Dantas quando não abriu frente para travar diálogo com a luta da

construção poética. Entretanto, a força dos “meios de comunicação de massa” não

conseguiu suplantar a inquietação da criação poética.

37

O crítico confessa que “gostaria de falar da poesia como uma linguagem de

expressão maior e com fidelidade a uma relevância que penso subsistir à

impotência”. E, como vitória da poesia, comentava aqueles em que a inquietação

sugeria também uma construção original. Portanto escolhe somente cinco poetas.

E é categoricamente, com um rigor exigido da “poesia pura”, que analisa os livros,

cometendo equívocos, principalmente porque parece, por conta própria, rebaixar

essa poesia a categorias que ele mesmo propõe como legítimas. Ao falar em

antologia, deveria julgar os livros como um todo, mas o que faz é isolar os

poemas, prejudicando, a nosso ver, uma visão mais co-textualizada de um projeto

poético.

Além de Alba, ele comentou ainda Sósia da cópia, de Régis Bonvicino,

Gigolô de bibelôs, de Waly Salomão, Drops de Abril, de Chacal e Caprichos e

relaxos, de Paulo Leminski.

Os poetas que vou discutir são mais conhecidos que sua poesia.

Este é o galardão sacana que a época encontrou para recompensar, em

meio à fechada falta de perspectivas, que é também política e econômica,

heróis sem importância, criadores de um produto socialmente irrelevante e

sem a menor expressão. Eu gostaria de falar da poesia como uma

linguagem de expressão maior e com fidelidade a uma relevância que

penso subsistir à impotência. Esta relevância só pode ser reencontrada

através do argumento judicativo que repõe o criador mais jovem em

contato com uma comunidade de criadores que se perpetuam ao longo da

história, a qual não participa dos interesses editoriais e mercadológicos e é

estranha à forma de resenha praticada atualmente. Quero principalmente

falar do que me incomoda nessa poesia, por isso escolhi cinco livros, os

mais significativos entre os que foram publicados em 1983, verdadeiras

coleções de “poemas reunidos”, para discutir poesia – procurar neles o

novo e assim rastrear as implicações culturais desta produção. (Dantas,

1986, p.42)

A nosso ver, o crítico acaba sendo infeliz e incoerente em alguns pontos de

seu comentário, conforme aspectos que destacamos:

38

• “para uma poética da palavra, concisa, plena de silêncios e vazios, aprendida com

a poesia de vanguarda”;

• “ela crê no lirismo de símbolos intemporais e na autenticidade de uma plenitude

subjetiva”;

• “esta redução curiosamente se apresentando sob uma consciência permutacional

moderníssima, os poemas girando sobre si como um móbile”;

• “uma inflação de símbolos, simulando um dinamismo que não encontra

ressonância no demasiado estático da composição”;

• “este propósito de figurar na página um desenho riscado a palavras de uma busca

interior, em si, é um anseio legítimo em muita poesia moderna. Cair na magia de

uma transcendência falsa, parece-me resultado de uma auto-aceitação acrítica e

demasiado complacente”;

• “a poeta dedica-se à sua própria magia, sem nenhuma dúvida irônica, e fabrica a

“atmosfera” por meio de símbolos que subsistem o significado interno ao poema

pela vaga emoção exterior a ele”;

• “um esforço notável para evitar facilidades; no entanto, basta querermos lê-la e

senti-la contemporaneamente para que o seu romantismo, camuflado de

modernidade, se torne uma mentira estética que simula a superação da perene

crise da poesia”. (Dantas, 1986, p. 51-53)

Considerar que os símbolos em Orides são reduzidos conscientemente,

figurando um móbile, ameaça a questão de que “não existe uma reflexão se

fazendo”. Orides admitiu seu método intuitivo, não teve nenhum contato, ao

contrário do que se diz, com a poesia concreta. E não deveria ser reduzida à

pecha de ser premiada em concursos literários. É injusto ao dizer que só resta a

ela escolher o adjetivo. A subjetividade de Orides, antes de ser puro

derramamento verbal, encara uma mobilidade entre o movimento do geômetra e

de uma sensibilidade digna de uma reflexão cuidadosa, podendo ser melhor

pensada sob o ângulo de uma subjetivação que escolhe uma perspectiva de ação,

sem precisar ser chamada de “dinamismo demasiado estático da composição”.

Se o crítico quer entender que isso configura uma “busca interior”, calcada

numa “magia de transcendência falsa”, poderia reparar melhor na “escolha

manjada de temas”, em uma sociedade que parece não entender, mesmo a partir

39

da palavra, que colocar a ação em jogo pode ser repensar esse jogar. É bom não

esquecer que falta à nossa educação o ensinar a aprender e que é além de uma

perspectiva fenomenológica, pois tem outras nuances mais complexas para a

contemporaneidade. Melhor, talvez, considerar a construção de Orides como um

jogo que monta, desmonta, faz e desfaz ao longo de toda a sua obra. O silêncio

que ele diz não significar nada, antes instaura novos prazeres, adquiridos no

universo lúdico da brincadeira, por exemplo, para de certa forma falar de novos

desejos brincantes. Meditar, como ele afirma, configura um lugar para Orides que

não parece ser o que ela propunha com Alba.

Minha simpatia se dirige mais para o baixo nível da baixa mimese

de poetas como os quatro anteriores do que para Orides, porque neles há

busca daqueles elementos de uma verdadeira meditação, recolhida na

intranqüilidade de seus corpos e de sua época, ainda possível através dos

materiais os mais degradados, mas que são estes mesmos de que

dispomos. (Dantas, 1986, p. 53)

O equívoco também se configura por não perceber intranqüilidade no

silêncio proposto por Orides. Talvez, Vinicius Dantas precisasse de uma

experimentação com o corpo, lançando-se a descobertas de si, como propunha

Ligia Clark com sua obra Estruturação do Self, pois entendendo o aguçamento

dos sentidos com a experimentação dos “objetos relacionais” que a artista

elaborava nessa fase, conseguimos apontar novas perspectivas para os símbolos

que Vinícius Dantas diz serem “já gastos” na palavra poética de Orides. Isso altera

mudanças que sentimos serem necessárias para uma percepção contemporânea

na abordagem de sua obra.

Nessa altura, com o prêmio Jabuti, começa a aparecer em conjunto o

reconhecimento de sua poesia que será configurado no lançamento, não só do

seu livro Trevo, como também de outros livros, num total de treze poetas entre

recentes e reconhecidos, da coleção Claro Enigma. A coleção transformou-se num

evento que movimentou o debate e a troca de conhecimentos sobre os poetas que

trabalhavam em diferentes nuances naquele período. Foram colocados em

40

evidência os artigos sobre os poetas da coleção e a importância do papel do editor

Augusto Massi, preocupado em reunir uma obra de escritores diversificados e

comprometidos com a realização da poesia.

Em maio de 1990, o MASP reuniu poetas, críticos e editores numa semana

de artes e ofícios da poesia. Esse momento de encontro e celebração acabou

resultando no livro Artes e ofícios da poesia que pretendia estender o espaço

crítico para a poesia, para o debate e a reflexão, ampliando uma discussão

literária permanente, o que era mais pertinente para configurar a produção de

determinada época. Segundo o organizador Augusto Massi, também editor da

Claro Enigma, coleção tão importante na divulgação cuidadosa da obra de Orides,

era necessário abrir espaço para discutir a produção contemporânea gerando um

espaço de visualização da poesia.

A crítica literária pergunta freqüentemente sobre a existência de

uma nova poesia. A coleção Claro Enigma, por exemplo, provou que esta

nova poesia já existe. O problema é que a própria crítica não tem sido

capaz de criar relações entre as obras ou elaborar uma perspectiva de

leitura que ordene o conjunto da produção contemporânea. Daí a idéia

recorrente de crise. Crise de quem? Dos poetas ou da crítica? (Massi,

1991)

Depois do projeto da coleção, desenvolvido sob o impulso inovador e

preocupado com a circulação de poesia, outras editoras voltaram a publicar poesia

como Dubolso (MG), Iluminuras, Massao Ohno. Da livraria Arte Pau-Brasil saíram

11 mil exemplares de 13 números entre títulos tradicionais e inéditos. Fora do

comércio estava sendo lançada uma tiragem especial de 25 exemplares

encadernados de cada livro, com sobrecapa em papel Canson. Todos os

exemplares são numerados e assinados pelos autores. Interessante observar que

num contexto onde o corporativismo dominava a lógica da cultura, “a poesia

também fez sucesso”, no dizer de Massi. O título da coleção era uma referência a

Claro Enigma de Carlos Drummond, livro considerado um momento de maturação

e de ultrapassagem das exaltações modernistas de 1922. Claro se refere ao que é

41

possível retomar da tradição e enigma o que se produz de novo na poesia. Assim

buscava-se valorizar a produção individual.

Sobre o evento e o livro Artes e ofícios da poesia resultante dele,

precisamos atentar para algumas ponderações do editor Augusto Massi

Finalmente, quero dizer que este livro em outros tempos não seria

possível. Há dez anos atrás, por exemplo, os poetas se reuniriam para,

num inventário de queixas, protestar contra a crítica, contra os editores,

contra a falta de leitores e contra outros poetas. A atitude parece ter

mudado sensivelmente: ao tomar conhecimento de si mesma, refletindo

sobre sua situação como arte e como ofício, a poesia contemporânea

coloca em cheque a situação anterior. Esta, creio, é a melhor maneira de

avançar. (Massi, 1991, texto da orelha)

Daí perceber a importância desse ciclo de palestras. Segundo Leda Tenório

da Motta, Diretora do Núcleo de Projetos Literários do Centro Cultural São Paulo,

o objetivo era comemorar o Primeiro de Maio com a noção de pertencimento e não

como mantenimento da história. Dessa forma, o debate e a discussão entre os

artistas mostraria o suor de uma transpiração, o alcance próprio do trabalho dos

poetas.

(...) Aos convidados pediu-se que fizessem da palestra um

depoimento justamente, em que entrassem filiações, num recorte pessoal

do legado das nossas Letras, e de outras, ou numa lição de história

subjetiva da Literatura, de que extrair uma também pessoal ciência da

contemporaneidade, e dela um discurso sobre si, sobre a presença e a

circulação de suas obras, numa intervenção de pertencimento.

(...) Ou vontade de não abrir mão de um desejo – caro também aos

inventores da nossa modernidade, de que estamos sempre partindo, como

revelam os depoentes – de convívio e de confrontação. Enfim, necessidade

de resgate, a exemplo do que, em registro editorial, acabava então de nos

oferecer a coleção poética Claro Enigma, da Editora Duas Cidades, cujo

idealizador, Augusto Massi, poeta ele próprio e professor de Literatura

42

Brasileira na Universidade de São Paulo, uniu-se a nós, a convite, impondo

ao ciclo a visão de conjunto, o desafio de interpretação e a proposta de

urdidura que nos parecia a todos faltar, mas que só a sua experiência de

editor e de estudioso da nova poesia brasileira permitiu equacionar. A

colaboração de Augusto Massi não apenas aperfeiçoou a curadoria do

ciclo: ela imprimiu um novo sentido ao funcionamento de nossa área,

abrindo-a para realizações plenamente partilhadas como nosso melhor

exterior.5

Paralelamente ao fórum ocorreram homenagens a Ana Cristina Cesar,

Cacaso e Leminski no mezanino do MASP bem como as mostras de livros, de

edições raras e de revistas literárias.

Para compor os depoimentos do livro Artes e ofícios da poesia “foi pedido a

cada um dos poetas que realizasse, na medida do impossível, o seu Itinerário de

Pasárgada”(Massi, 1991, texto da orelha). Daí resultou o depoimento “belo, áspero

e intratável” Nas trilhas do trevo, de Orides Fontela. Pontuamos as suas fases por

acharmos uma interessante sistematização, e a citação de sua “última influência

notável”. Vejamos abaixo:

Todo processo poético tem sua gênese própria em que pesem os traços

comuns de uma época.

Fases:

Pré-história: Só que estou procurando a circulação do quadrado; folclore;

primeiras quadrinhas ingênuas.

Pré-literária: Ginásio – 16 anos.

Formação: 16 aos 25 anos.

E havia a escrita selvagem, sem críticas nem peias, andando sozinha eu lá

sabia para onde.

E, para citar a última influência notável, no sentido de realmente formativa,

cito um psiquiatra, o Dr. Helinho, que freqüentei, em 1961, em Itapira.

Seguinte: ele decifrou todos os meus símbolos. Assim não dava, era

5 Estes trechos foram retirados do texto de apresentação do livro Artes e ofícios da poesia, feito por Leda Tenório da Mota.

43

necessário complicar. O que ele diagnosticou como uma “hipertrofia da

simbologia”. Exato. Era o necessário para passar do nível ingênuo e

confessional para algo mais elaborado. E meu inconsciente fez isso, e eu

progredia com alguns senões. O principal deles é este mesmo: a fuga ao

confessional, à primeira pessoa, a tudo que pudesse cheirar – até de longe

– a “poesia feminina”. Eu já era feminista e sabia que minha poesia ia ser

desvalorizada se parecesse “poesia de mulher”. Daí abstraí, abstraí e

abstraí. Foi uma força: fui aceita. Mas foi, também, uma armadilha, pois

assim é que caí na poesia hiper-sublimada, tão própria das mulheres.

Tentei me salvar disso nos últimos livros, e inda tento. (Massi, 1991, p. 256-

261)

Além do depoimento acima, Orides ainda deixou outro que teve como título

Sobre poesia e filosofia – um depoimento. Na apresentação do livro Poesia (e)

Filosofia, publicado pela Editora Sette Letras do Rio de Janeiro em outubro de

1998, Alberto Pucheu revela sua preocupação em estar atento ao fato de alguns

poetas terem formação acadêmica em filosofia. Além disso confessa que “quis

organizar um livro em que alguns destes poetas-pensadores tematizassem a

relação, ou a não-relação, entre poesia e filosofia, o que estes dois termos

significam para cada um”(Pucheu, 1998, p. 7). Assim, mostra que o livro não

esgota o elenco de autores que estão presentes. Sabedor da necessidade de

exclusão que se dá mais por dificuldades de reunir, demonstra que o objetivo

principal era “demarcar o fato e algumas possibilidades de pensamento”.

Do depoimento de Orides extraímos os seguintes trechos:

“Alta agonia é ser, difícil prova” é o primeiro verso de um soneto

meu, escrito aos 23 anos – um soneto muito importante para mim, pois é

uma espécie de programa de vida, que não renego nunca e nem jamais

conseguirei cumprir, porém é minha tarefa tentar. Difícil prova sim,

impossível, pois isso constitui propriamente o humano. E, claro, todas as

ferramentas servem, principalmente a religião (sobre o aspecto místico), a

poesia – intuições básicas e... musicais, que tive de nascença – e a bem

44

mais recente, a filosofia. Deixando a religião de lado (mas fica lá, por

baixo), falemos só de poesia e filosofia.

Arcaica como o verbo é a poesia, velha como o cântico. A poesia,

como o mito, também pensa e interpreta o ser, só que não é pensamento

puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho, inventa e inaugura os campos do

real, canta. Pode ser lúcida, se pode pensar – é um logos – mas não se

restringe a isso. Não importa: poesia não é loucura nem ficção, mas sim um

instrumento altamente válido para apreender o real. Qual a minha posição?

– ou pelo menos meu ideal de poesia é isso. Depois é que surgem o

esforço para a objetividade e a lucidez, a filosofia. Fruto da maturidade

humana, emerge lentamente da poesia e do mito, e inda guarda as marcas

de co-nascença, as pegadas vitais da intuição poética. Pois ninguém

chegou a ser cem porcento lúcido e objetivo, nunca. Seria inumano, seria

loucura e esterilidade. Bem, aí já temos uma diferença básica entre poesia

e filosofia – a idade, a técnica, não o escopo. Pois a finalidade de entender

o real é sempre a mesma, é “alta agonia” e “difícil prova” que devemos

tentar para realizar nossa humanidade. Isso é o que temos a dizer,

inicialmente, sobre filosofia e poesia.”

Maus versos, mas intuição válida. Pensar dói mesmo, faz cócegas,

pode ser tão irreprimível como a curiosidade da aluninha. E de que

adianta? Bem, o caso é que eu não engolia, nem engulo, respostas já

prontas, quero ir lá eu mesma, tentar. Tentava pela poesia. Ora, uma

intuição básica de minha poesia é o “estar aqui” – auto-descoberta de tudo,

problematizando tudo ao mesmo tempo. Só que este “estar aqui” é,

também, estar “a um passo” – de meu espírito, do pássaro, de Deus – e

este um passo é o “impossível” com que luto. É o paradoxo que exprimo

num poemeto

Próxima: mais ainda

estrela

muito mais estrela

que próxima.”

(...)

Nem dava; faltava base econômica e cultural. Pobre e vindo apenas

do Normal só consegui terminar o curso. Mas me diverti muito.

45

A poesia foi indo, como deu. Preocupou-se com a forma, a técnica –

Helianto, do tempo da faculdade – e chegou à meta-poesia – Alba. Depois

tentei voltar, tornar o papo mais concreto – Rosácea, Teia. Mais próxima ao

cotidiano, mais sofrida, é como ela está, e eu também. Conseqüências da

pobreza, do envelhecimento, das mágoas. Lamento ter perdido a passada

ingenuidade (e imunidade) mas não creio que mudei de pele, não é

possível. O futuro é propriamente falando o imprevisível – e não sei onde a

pesquisa poética e o pensamento selvagem me levarão. E inda acrescentei

à minha salada o zen-budismo – com bons resultados, aliás – e agora

procuro outros “ingredientes”, se possível. Não estar satisfeita é bem

humano.”

Persigo a

aguda trama

da meta

morfose.

(...)

...mas poesia como fonte que incita e embriaga.

Só isso cabe ao poeta: ser fiel à voz interior, sem forçar, sem

filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se

interpenetrem, convivam, colaborem.

Nasceram juntas, sob a forma de mito, e juntas sempre, sempre

colaboram para criar e renovar a nossa própria humanidade. (Pucheu,

1998, p. 13-16)

Essa concepção de poesia, entendemos como exercício. Vozes e sentidos

que se intercruzam e surpreendem estados novos e configurações internas que se

criam interagindo com forças interiores e externas. Uma passagem não-linear,

convida sempre para que áreas distintas do pensamento se “interpenetrem,

convivam, colaborem”, ganhem textura os estados visíveis e invisíveis. Existe em

exercício um estado de insatisfação que é humano, pois gerado por situações

externas ao meio: “conseqüências da pobreza, do envelhecimento e das mágoas”,

e que é realizado sem nenhuma pretensão. Nesse caso, há um embate corpo a

corpo que é movido pela curiosidade extrema. E para ela, boa ferramenta é a

46

condição de poeta corpo a corpo com a linguagem. Um jogo em que não

sobressaem as regras, mas a co-presença de estados visíveis e invisíveis. Então

a interpretação do ser não é puro pensamento puro mas “pegadas vitais da

intuição”, “alta agonia” e “difícil prova”. E a humanidade que advém daí é

subjetivação, sujeito em ação, prova da metamorfose. A textura que se cria,

própria da consistência subjetiva, faz parte de um processo contínuo de ruptura.

Entendemos melhor esse processo quando lemos alguns trabalhos da

psicanalista Suely Rolnik. Vejamos um trecho de “Pensamento, corpo e devir: uma

perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico”:

No visível há uma relação entre um eu e um ou vários outros (como

disse, não só humanos), unidades separáveis e independentes; mas no

invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos

que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos,

somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir

de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos

em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual

figura. Rompe-se assim o equilíbrio dessa nossa atual figura, tremem seus

contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma

violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza

e nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo – em nossa

existência, em nosso modo de sentir, de pensar, de agir, etc. – que venha

encarnar este estado inédito que se fez em nós. E a cada vez que

respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos

outros. (Rolnik, 1993, p.7)

Essa relação óbvia é ao mesmo tempo muito delicada, pois situa-se entre

“um eu e um ou vários outros”. Movimenta um território dividido em esferas

sensíveis do visível e do invisível, textura, fluxos e estados inéditos, primordiais

para fazer “tremer” os limites, para obter um corpo novo que participa e influencia

nossas ações, recuperando o estado inédito da expressividade, com a qual

podemos sempre nos surpreender. Afinal, nessa mudança é a multiplicidade, a

multiplicação de possibilidades que nos fazem pensar saídas mesmo que isso

47

pressuponha a volta. Quando Orides diz que “abstraí, abstraí, abstraí”, encontra a

saída de si, em seu próprio devir.

Na entrevista que concedeu à escritora Marilene Felinto, para a revista

Marie Claire em setembro de 1996, temos em mente que um diálogo é

estabelecido não entre duas escritoras mas entre uma jornalista agregada à

postura da revista que representa e uma poeta. É notável a veia feminista da

revista, uma preocupação também em estabelecer uma relação muito óbvia entre

literatura e vida. Alguns comentários nos chamam atenção como “Nada em Orides

Fontela (...) lembra o equilíbrio, a beleza e a elegância da poesia que escreve –

não há aqui uma separação muito forte entre poesia e vida. Se o cotidiano de

ninguém combina com poesia, o de Orides combina menos ainda.”

Se a intenção é uma provocação à escritora que ficou conhecida na

imprensa muito por seus problemas pessoais, o que fica evidente é que o olhar de

Orides Fontela parece não ter sido compreendido pelo de determinadas pessoas.

Era um modo muito seu (ou uma solução muito pessoal) de olhar o mundo. De

maneira sensitiva, percebemos uma certa fragilidade adquirida por conta de um

tempo que a cidade imprime e uma velocidade que não parece de nenhum modo

humano. É bem verdade que a vida de Orides Fontela caminhou na contramão do

que se prega capitalistamente selvagem por aí. Mas acreditamos ser preciso rever

essa vida, compor a falta de indícios com outros relatos. Vários fatos causaram

indignação como ter uma renda de 4 salários mínimos aos 56 anos, levando-a a

morar de favor na Casa do Estudante de São Paulo.

Outros pontos que ficam evidentes na entrevista são a sensibilidade e a

dignidade de Orides Fontela, uma “cidade toda feita contra ela”, como no dizer de

Clarice Lispector no livro A hora da estrela, e a sua poesia não ser panfletária. Era

também filha única, a mãe - dona de casa - já tinha morrido quando ela foi cursar

filosofia, o pai - sem profissão – morreu em 1973 e, segundo ela, “Era um amigo,

nós pescávamos muito”. Desta amizade, sua relação com o pai de onde advém o

aprendizado e a espera da pescaria e do amor, um ato de generosidade, uma

potência, uma substância vital.

48

MC: Em Teia, alguns poemas são recorrentes. Aparecem em outros

livros seus. É o caso do poema “Eros”. Qual a diferença entre o primeiro e

o segundo “Eros”?

OF: No primeiro “Eros”, estava me referindo ao Eros cosmogônico,

o amor como a energia criadora do mundo. É esse o sentido que a palavra

amor tem em 90% dos meus poemas. É como em “Deus e Amor”. Deus é

energia primordial.

MC: Mas o segundo “Eros” é mais pessimista. Ele parece negar o

amor.

OF: É, sim, pessimista. Aliás, ele está dentro de uma parte do livro

onde eu joguei todos os poemas pessimistas. É um poema de briga. Eu

estava dando uma bronca, porque o amor entre homem e mulher, no

sentido erótico, é quase sempre uma ilusão da mulher.

OF: (...) Eu ainda não descobri exatamente o que é esse mitológico

“amor”. Sei que pode existir mas não aconteceu comigo. Essa palavra

amor é muito mitológica e confusa. Mas, voltando ao meu poema “Eros II”,

eu o acho o mais fraco do livro.

MC: Por quê?

OF: Parece poesia de camiseta. (...)

Esse amor é mola propulsora de seus impulsos. A negação da poesia

panfletária aparece na proposição em que “parece poesia de camiseta” em

contraposição à idéia de que a poesia deveria ser divulgada em qualquer meio.

MC: Em que a diferença de classe social atrapalha seus

relacionamentos?

OF: É o tipo de formação da gente ou a maneira como eles olham

a gente .

OF: Eu acho bom que minha poesia seja divulgada em todos os

meios.

Ler poesia depende de uma educação literária. As pessoas mais

simples às vezes não têm. De modo que a gente escreve para quem quiser

ler e puder ler.

49

O aprendizado com seu pai, a vivência com ele, ensina os olhares para

essa vida terrena. A força que parece buscar para empreender uma ligação

espiritual e um equilíbrio constante justifica a força que teve em sua vida a

conversão ao zen-budismo.

MC: O que significa o nome Myosen Xingue, que adotou ao se

converter ao zen-budismo?

OF: Xingue significa mente florida. É um nome de leiga budista.

Quando você entra, faz uma iniciação, corta um pouco de cabelo, põe uma

água na cabeça e dá um nome. Eu achei bonito e usei num livro de poesia

meu.

É por trabalhar em torno das possibilidades engendradas pela linguagem e

pelo real que Orides, ou melhor, sua obra, faz uma diferença no cenário atual da

literatura brasileira, embora ela tenha sido escrita entre o final da década de 60 e a

década de 80.

O que acabamos lendo sobre o período nos chega sempre em forma de

generalizações, como o artigo abaixo. Segundo Pedro Lyra, nesse tempo,

Em vez de vazio, o que tivemos foi um período riquíssimo ignorado

fora do espaço em que se desenvolveu por um motivo óbvio: desenvolveu-

se num espaço clandestino, subterrâneo, minado, quando emergir

significava arriscar a liberdade ou a vida. O negócio era esse mesmo: dar

um recado curto e grosso e cair fora, para salvar a pele. E preparar outro.

Logo, se não tivemos nada de monumental ou sublime (mesmo assim,

muita gente reconhece – dentro e fora do país – criações de primeiro nível

nessa fase) não se pode dizer que não tivemos nada de novo. Pois era

uma maneira diferente de produzir, divulgar e consumir os bens simbólicos.

(Lyra, 1995, p.60)

De todas as generalizações, permeadas por ditos e não ditos, habitaremos

outra casa, um alpendre, um entre a casa e a rua, um dizer próprio de Orides

Fontela, deixado mistério em sua “minipoética”.

50

Distante de uma generalização ou de uma abordagem histórica linear,

Orides compôs uma minipoética, resultado de três poemas que foram lançados

fora de seus livros na Revista Cultura Vozes. Assim vemos suas marcas que

devem ser pensadas de forma positiva, talvez, através das sugestões de Suely

Rolnik no artigo mencionado acima:

Ora, o que estou chamando de marca são exatamente estes

estados inéditos que se produzem em nosso corpo, a partir das

composições que vamos vivendo. Cada um destes estados constitui uma

diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o

que significa que as marcas são sempre gênese de um devir. (Rolnik, 1993,

p.7)

Em mudança constante, os símbolos que negativamente Vinícius Dantas

chamou de móbile, são vistos agora como apoio ou entrada no jogo, da mesma

forma como são consideradas as marcas acima: “gênese de um devir”. Vamos aos

inéditos6:

Da poética:

Sincronia

Pescar – dois tempos:

a espera (paciência)

e o peixe

n’ água

Pescar: dois

mundos

dois intensos

silêncios.

6 Os poemas inéditos, que fazem parte da seção Da poética, foram publicados na Revista Cultura Vozes, encontrados na página eletrônica: http://www.culturavozes.com.br/revistas/0294.html. Ao todo são três poemas intitulados: “Sincronia”, “Poética” e “Metafísica (uma aula)”, que veremos a seguir.

51

E eis que – de súbito-

os dois tempos

se en

gancham:

mérito da

paciência azar

do peixe.

De início, primeiro convite: o título. Se pensarmos em eixos, sincronia,

embora cruze o eixo diacrônico, caminha num paradigma diferente desse. Está

mais para a associação com a geografia, intensidades em linha vertical, do que

para o horizonte de perspectivas históricas em linha horizontal. Bom início para

lançar com a vara de pescar a isca e o anzol. A vara ganha uma conotação

violenta, à medida que coloca na espera toda a ânsia de prender o peixe.

Enquanto o momento esperado não surge, pacientemente se compreendem dois

mundos em intensidade e silêncio, o universo da espera e o universo da água. Os

sujeitos postos em ação, homem e peixe, se engancham em movimentos

contraditórios, a busca e a fuga. O gesto formal de súbito chegar informa o que

verdadeiramente acontece: o mérito e o azar. Felizmente ou infelizmente os

sentimentos se engancham. Vida, ora! Dois tempos em dois mundos, junção de

sobrevivência e experimentação.

Poética

Pescar: arrancar

do silêncio o

inesperado

do escuro o

peixe

vivo

o instante

vital

partindo o

espelho.

II

Na água: anterior

mistério

nas mãos: troféu

peixe

morto.

52

Arrancar, a selvageria instalada. Gesto natural entre o silêncio e a espera

do pescador. No ato inesperado, a surpresa, e o instante vital do peixe arrancado

num momento decisivo. A água, espelho narcísico, assim que o olhar do pescador

não supõe outro universo além do seu, reflete o seu próprio mundo. Somente ao

mergulhador seria dado o ponto de intersecção com o universo do peixe. É no

embate mediado pela vara, que o pescador arranca do seu mundo o peixe, e o

que ganha realce é o inesperado momento, a surpresa arrancada. Como troféu, a

premiação dada como espelho: um peixe morto após o momento de mistério. A

vara mediadora aponta o essencial: a firmeza das mãos, gesto de arrancar.

Metafísica (uma aula)

Peixe

pescado

descobre o

ar:

não volta para

contar.

II

Peixe

pescado:

seu mundo é

novo

ampliado

é um mundo todo

incrível

e – infelizmente –

impossível

(para o peixe um

mundo

errado

e o seu mundo – bom –

roubado).

III

Peixe

pescado:

que novo

estudo!

“A água, então,

não é tudo”?

(Há toda uma

física

e uma – definitiva –

metafísica).

IV

... mas o peixe

pescado

já não

nada

e – é pena – não aprendeu

nada.

53

Uma aula de metafísica em quatro atos. Embora não tenha “aprendido nada”,

o peixe processou algumas lições. Aqui, o momento súbito da pesca em que foi

arrancado de seu próprio mundo, no instante vital, fez o peixe descobrir um novo

mundo ampliado, seu e todo incrível, mas, infelizmente, constituído através de um

roubo. Apontamento do aprender por lições em pena. Como se constitui

verdadeiramente uma aula? Ações dramatizadas por roubos de mundos já

sabidos e lições de mundos ainda não sabidos. Metafísica trocada por

metamorfoses de saber.

54

2. logro astucioso : ludismo

FALA

Tudo

será difícil de dizer:

a palavra real

nunca é suave.

Tudo será duro:

luz impiedosa

excessiva vivência

consciência demais do ser.

Tudo será

capaz de ferir. Será

agressivamente real.

Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos

e nem no amor: o ser

é excessivamente lúcido

e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

Orides Fontela

55

Ludismo. Segundo passo dado na armadilha de Orides. Durante esse

momento, a armadilha se faz logro astucioso ou torna-se gozo adquirido através

da habilidade em enganar. Assim, a idéia do prazer na brincadeira associa-se às

descobertas e pressupõe coragem para correr riscos. Leitura e tese como

brinquedo. Sua poesia não é visual, sua poesia é corporal, ou os dois, calcada no

corpo da linguagem, na palavra.

Para uma das leitoras de Orides, Elizabeth Hazin, o ludismo em seus

poemas indica cacos que compõem a matriz de seu universo poético, o centro de

onde irradiam as formas e as cores que compõem o mapa lúdico e lúcido

imprimindo-lhe caleidoscópico ritmo circular. Segundo ela, não há costuras entre

as partes dos livros – é tudo um só cristal, por onde a escritora estende um fio,

para fabricar um jogo de espelhos entre eles.

Logo na entrada desse universo, instaura-se a feitura manual da armadilha.

Tateando através da leitura da palavra poética, vamos compondo, enquanto

leitores, nosso caleidoscópio de imagens. Essa perspectiva sobre Orides Fontela

tentamos deixar à mostra, evidenciando, por meio da imagem reconfigurada que

inserimos no início deste trabalho, suas mãos de tecelã.

Orides fez-se, para nós, tecelã astuciosa, uma vez que, por uma “excessiva

vivência”, atingiu uma “consciência demais do ser”. Sem papas na língua, anuncia,

com palavra cortante, que tudo na vida será capaz de ferir, de tão real que nos

despedaça.

Não será tão exigente solicitar da leitura da poesia de Orides uma

aproximação sensorial pois, aproximando-se do objeto, para nós, ela tateia e

trabalha numa leitura manual e não intelectual, conforme sugere o poema “Tato”:

Mãos tateiam

palavras

tecido

de formas.

Tato no escuro das palavras

mãos capturando o fato

texto e textura: afinal

matéria.

(Fontela, 1988, p. 23)

56

Embora o movimento de fazimento-desfazimento esteja imediatamente

associado a um sentido tátil, é o olho que vê, despertando o estado da atenção

através do recorte e do enquadramento que nosso olhar faz. Embora no capítulo

anterior tenhamos dito da mão e do olho, aqui queremos voltar ao caminho da

mão, pois esta manuseia a dureza da palavra, numa fazedura, selecionando a

feitura dos significados em ação.

(a dureza da palavra:)

Aprender a ser terra

e, mais que terra, pedra

nuclear diamante

cristalizando a palavra.

A palavra definitiva.

A palavra áspera e não plástica.

(Fontela, 1988, p. 24)

No sentido da aspereza, o trabalho é permeado pela ação do verbo retirar

através do pranto, do assassinato e do sangramento, da destruição das coisas

mais sensíveis como os segredos. Ações destrutivas que confirmamos nos

poemas “Pouso”, “Rosa” e “Meio-dia”, respectivamente, da segunda parte

intitulada (-) do livro Transposição.

“Pouso”

Ó pássaro, em minha mão

encontram-se

tua liberdade intacta

minha aguda consciência.

Ó pássaro, em minha mão

teu canto

de vitalidade pura

encontra a minha humanidade.

Ó pássaro, em minha mão

pousado

será possível cantarmos

em uníssono

se és raro pouso

do sentimento vivo

e eu, pranto vertido

na palavra?

(Fontela, 1988, p.32)

57

Nesse primeiro poema, a leveza do vôo do pássaro aparece em

contraponto ao pouso possível que realiza. Mas um pouso que pressupõe a

presença do outro que lhe estende a mão. Na sutileza do sentimento vivo,

aparece, então, a crueldade no seu sentido desumano. Se esse pouso em mão é

raro, também aquele que estende a mão se converte em pranto na superfície de

sua fala: a palavra. Assim, configura-se o limiar do encontro: liberdade, vitalidade

e humanidade, intermediado pelo canto.

“Rosa”

eu assassinei o nome

da flor

e a mesma flor forma complexa

simplifiquei-a no símbolo

(mas sem elidir o sangue).

Porém se unicamente

a palavra FLOR – a palavra

em si é humanidade

como expressar mais o que

é densidade inverbal, viva?

(A ex-rosa, o crepúsculo

o horizonte.)

Eu assassinei a palavra

e tenho as mãos vivas em sangue.

(Fontela, 1988, p. 33)

O assassinato aparece aqui como ssacrifício realizado pelo sangue.

Suposições de uma hamanidade em que sua expressividade só pode ser

representada através das mãos vivas em sangue, mesmo que para isso tenha de

prevalecer o assassinato da palavra.

58

“Meio-dia”

Ao meio-dia a vida

é impossível.

A luz destrói os segredos:

a luz é crua contra os olhos

ácida para o espírito.

A luz é demais para os homens.

(Porém como o saberias

quando vieste à luz

de ti mesmo?)

Meio-dia! Meio-dia!

A vida é lúcida e impossível.

(Fontela, 1988, p. 34)

A procura por uma percepção mais sensível da realidade inclui como força

motriz e condutora a intensidade. Essa parte incorpórea é representada pelo

sentido da visão no poema, se consideramos que o olhar é a janela da alma.

Subjetividade em ação, esse funcionamento inclui o desvendamento de enigmas e

a garantia do secreto, do que se dá a revelar no descobrimento, desvendamento.

Silêncio e confidência fazem parte de um processo particular em busca de clareza.

Nesse processo, se o claro for simbolizado pela luz solar, a busca torna-se

impossível quando ela é mais intensa: “ao meio-dia”.

A luz, a “lucidez ácida ao espírito”, desfaz os segredos, desarranjando e

desorganizando o processo. A parte incorpórea da compreensão é ameaçada pela

crueldade, pela impossibilidade de ver, uma vez que ao meio dia a luz ofusca a

visão, tirando seus mistérios. Acaba com o exercício de desvendamento. Viver,

então, é impossível.

E no auge do ato de retirar, o poema “Destruição” nos diz que

A coisa contra a coisa:

a inútil crueldade

da análise. O cruel

saber que despedaça

o ser sabido.

A vida contra a coisa:

a violentação

da forma, recriando-a

em sínteses humanas

sábias e inúteis.

A vida contra a vida:

a estéril crueldade

da luz que se consome

desintegrando a essência

inutilmente.

(Fontela, 1988, p. 36)

59

Desintegrando a essência inutilmente, o embate entre a coisa e a vida

perpassa três fases: a coisa contra a coisa, a vida contra a coisa, a vida contra a

vida. No embate entre iguais, a coisa e a vida nos indicam que não existe uma

verdade pronta e acabada, que o manuseio da coisa e da vida podem dizer do que

se oculta e configura uma outra possibilidade. Contrário ao viver está a análise

pura. Ela é inútil e cruel se procura sintetizar o ser sabido. Desintegrar a essência

inutilmente para atingir essa síntese é não compreender a coisa que Orides

explica no poema que transcrevemos a seguir.

“Coisas”

mescladas

a esmo:

o fim o infinito

o mesmo

a hora e sua

seta

o limite e o após

a seta

o justo e o demais

também

- a beleza e seu

além.

(Fontela, 1996, p. 15)

Exercício do ato. As mãos compreendem-se sobretudo pela sua grande

mobilidade e apurada sensibilidade. Comando do tato, do manuseio sensível do

simples e condução de forças e vibrações de uma vida inteira. Uma questão de

sobriedade que já foi delineada por Deleuze:

No devir não há passado, nem futuro, e sequer presente; não há

história. Trata-se, antes, no devir, de involuir: não é nem regredir, nem

progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples,

tornar-se cada vez mais deserto e, assim, mais povoado. É isso que é

difícil de explicar: a que ponto involuir é, evidentemente, o contrário de

evoluir, mas, também, o contrário de regredir, retornar à infância ou a um

mundo primitivo. Involuir é ter um andar cada vez mais simples, econômico,

sóbrio. Isso é também verdade para as roupas: a elegância, como o

contrário do over-dressed onde se coloca roupas demais, sempre se

acrescenta alguma coisa que vai estragar tudo (a elegância inglesa contra

60

o over-dressed italiano). É verdade também para a cozinha: contra a

cozinha evolutiva, que sempre acrescenta mais, contra a cozinha

regressiva que volta aos elementos primeiros, há um cozinha involutiva,

que talvez seja a dos anoréxicos. Por que há essa elegância em certos

anoréxicos? É também verdade na vida, até mesmo na mais animal: se os

animais inventam suas formas e suas funções, nem sempre é evoluindo,

desenvolvendo-se, tampouco regredindo como no caso da prematuração,

mas perdendo, abandonando, reduzindo, simplificando, mesmo se criando

os novos elementos e as novas relações dessa simplificação. A

experimentação é involutiva, ao contrário da overdose. (Deleuze, 1998,

p.39)

Neste caso, a simplicidade é uma questão de vida, de instaurar potência

nela, na sua experimentação; atentar para o simples é atingir um estado de

sobriedade que parece estar num limite ou num entre. Enquanto Orides, com o

manuseio da palavra, aguça o sentido do tato, revelando o viver através do

desfazimento, Deleuze questiona o simples de nossos possíveis atos, os gestos

que praticamos, solicitando para eles uma involução, um tempo mínimo de

delicadeza e sutileza para o conhecimento. Caminhar, nesse sentido permite

inventar um outro andar: a experimentação de novas formas e funções” tanto o

andar como o viver denso.

A destruição, como a entendemos, toma esse sentido, do manuseio, do

trato do sensível numa vida oblíqua. É o simples, um torneio sensitivo. No dizer de

Clarice Lispector,

Como te explicar? Vou tentar. É que estou percebendo uma

realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o

oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não

percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que

viver não é só desenrolar sentimentos grossos – é algo mais sortilégio e

mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida

insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim

com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto

61

ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não

existe nisso contradição.

A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade

para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo

na sua independência desenvolta.

(...)

A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as

coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se

perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada.

Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a

única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a

face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de

aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos

de infinitamente outro nessa vida de que te falo. (Lispector, 1998, p. 62-64)

A vida outra, de que fala Clarice em seu livro Água viva através do it, não

deixa de ser a busca pelo ser de que nos fala Orides ou o devir de que nos fala

Deleuze. Todos eles chamam a atenção para o acontecimento. A vida é também

desenrolar sentimentos finos com vigor animal. E nesse desenrolar evidencia-se

uma intimidade que não pode ser ferida por uma instância qualquer,

principlamente por uma “inútil crueldade da análise”. Há, mostra Clarice,

“desencontro leve entre as coisas”, que deve ser singularmente pensado, porque

trabalha num quase, num vir a ser, num tornar-se outro. É uma busca por uma tal

expressividade que garante à energia criadora uma potência do mínimo agir-

pensar. São os “delicados fios de aranha” porque “nós somos de soslaio para não

comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo”.

Conforme lemos na epígrafe desse trabalho, para Heráclito, um querido

filósofo pré-socrático, o tempo parece uma criança brincando, enquanto

manipuladora do jogo poético, pensando o ser de forma lúdica. As mãos dirigindo

o jogo.

Entrar no universo da obra de Orides Fontela significa ter como passaporte

essa idéia de jogo como atividade lúdica. Nesta perspectiva, jogo não seria

qualquer tipo de interação, mas sim, uma atividade que tem, como traço

62

fundamental, os papéis sociais e as ações destes derivados, em estreita ligação

funcional com as motivações e o aspecto técnico-operativo da atividade.

No desafio do jogo, precisamos pensar que regras estão condicionadas no

início da partida e que regras são reconduzidas e instauradas a partir da própria

ação do jogar. Orides Fontela, na tessitura de sua poesia, estabelece também

suas próprias regras, faz girar um pensamento circular, percorre o

desenvolvimento do conceito de tempo a partir de pressupostos históricos e cria

seus próprios jogos, tecendo ao longo de sua obra o que chamamos de teia

cósmica. Neste sentido, a capa estranha de Teia vai ganhando nova configuração.

Consideramos teia cósmica uma tessitura sensitiva onde predomina a

sensibilidade do leitor, portanto atentamos para as seguintes observações

extraídas do estudo do texto “A Poética”

À apreensão estética do texto poético adere a observação reflexiva

do leitor, que, a cada leitura, descobre novas possibilidades de significados,

potencializados na obra pelo escritor. Que de criatividade não revelou a

leitura do Édipo Rei levada a cabo por Freud! Ler o mundo da obra com

criatividade é, assim, num primeiro momento, envolver-se

desinteressadamente com o objeto artístico, desvinculando essa primeira

leitura do pragmatismo do nosso cotidiano. Significa captar, em inocência,

em idade de criança, a dimensão estética do objeto. Em seguida, entramos

em atividade com o seu universo infindo de sugestões, recorrendo a razões

com o intuito de fornecer as condições para decifrar, nas relações dos

elementos poéticos do texto, os (des)caminhos da raça humana. Nesse

modus legendi, o dinamismo da interpretação se impõe, carregando o leitor

da estética para a poética, do prazeroso à racionalidade e vice-versa.

Adotando esse paradigma, o leitor, esse sujeito-ativo, não limita a liberdade

de leitura aos pressupostos de um método único, mas, através dos valores

que fazem nossa realidade pessoal e na companhia dos que fazem a

tradição cultural à qual pertencemos, sentimo-nos munidos do indispensável

para iniciar esse exercício de leitura, a qual busca revelar, afinal, na verdade

inaugural do texto artístico, as verdades históricas da própria caminhada do

homem. Admitindo a participação criativa do leitor, temos presente que “as

63

pesquisas sobre o ato de leitura (...) permitem colocar em evidência que a

leitura, longe de ser uma simples decifração de signos, implica cooperação

do leitor. (Maingueneau, 1995, p. 21 apud “A Poética” in: Andrade, 2001, p.

64).

Conforme vimos no capítulo anterior, o ludismo nos coloca de frente com

questões que podem ser consideradas, num primeiro momento, inúteis e gratuitas

para a sociedade capitalista. Por outro viés, são a inutilidade e a gratuidade que

nos importam, neste jogo de relações textuais de Orides.

Numa leitura mais atenta da teia poética de Orides, percebemos a criação

de uma “teia sensitiva, vivente”. Como a teia, a linguagem encontra-se em frágil

construção contínua, atravessada por silêncios que constituem ao longo da

escrita, uma armadilha. “Fatos são palavras ditas”, aqui interposta por essa

delicada construção que, fio a fio, é tecida/regida por uma duração. Enquanto as

mãos elaboram o tecido escrito, “o amorosamente tramado”, fazem também um

percurso temporal que diz da qualidade ou intensidade dessa duração.

Desobrigada do fim, a experimentação dessa duração delineia-se em

processo contínuo uma vez que “da vida não se espera resposta”. Assim, a poeta

lança-se para experimentar as palavras e, através delas, descobrir a multiplicidade

do real. Na obra de Orides, é bastante representativa da tecelã, a figura da

aranha. Essa fiandeira que segrega seda elabora um movimento todo seu a fim de

fabricar lentamente sua teia. A teia de aranha é uma tela de fios finíssimos que

formam uma espécie de rede elástica e que é produzida pelas aranhas a fim de

captar insetos para sua alimentação. Pressupondo a espreita, enquanto prepara

cuidadosamente a teia, a aranha é afetada por um delicado movimento interior –

“curva-te és infinitamente mais estranho”, que define para ela uma capacidade de

encontrar-se em constante transformação. Nessa metamorfose/metaformose,

irradia-se, tanto para a aranha como para a teia, uma operação em que se

mapeia, a cada construção, uma nova configuração.

Nessa feitura silenciosa, a secura do silêncio cortante como metal é

substituída por um nascimento constante e fluido como água que corre, surgindo

por detrás da fonte. Ressaltamos aqui que a pedra estanque, por trás da qual a

64

água emana, esconde a visualização do dinamismo da água. Dessa forma, cria-se

uma produção de subjetividade, subjetivação ou singularidade que é antes

experimentação de um real calcado por sensações múltiplas em devir-pedra,

água, fonte, silêncio, metal, aranha. Para pensar sobre essa produção de

subjetividade, vejamos a idéia de máquina de Guattari segundo Peter Pál Pelbart:

(...) o maquínico (que é o contrário do mecânico) é processual,

produtivo, produtor de singularidades, de irreversibilidades, e temporal.

Nesse sentido ele se opõe termo a termo à idéia de estrutura, de

intercambialidade, de homologia, de equilíbrio, de reversibilidade, de

ahistoricidade etc. Mas o que importa é o fato de que essa concepção

maquínica, nada “naturalista’, já que faz do universo uma grande fábrica,

estendendo a produção engendrante para todos os níveis, serviu de base

para apreender de um modo novo o domínio não discursivo. O não

discursivo, ao deixar de ser uma matéria informe à espera de uma

estruturação significante, ganhou uma potência infinita. O resultado foi um

mundo material e imaterial sem centro, sem instância determinante, sem

transcendências despóticas nem equilíbrios reasseguradores. O diabolismo

filosófico. (Pelbart, 1993, p. 121)

A autonomia dessa singularidade é capaz de gerar um movimento próprio

para a existência e de produzir combustível suficiente para gerá-la

continuadamente. Vejamos a seguir dois trechos recortados do mesmo artigo

citado acima, um sobre o diabolismo filosófico e outro sobre a idéia de ser, com o

que, para que as pistas não pareçam dispersas, o leitor é convidados a pensar a

partir de dentro, portanto teoricamente, a construção da teia de Orides.

O diabolismo filosófico tem duas faces: consiste em estender a idéia

de produção, essencial na máquina, para todos os níveis, inclusive o do

desejo, do inconsciente, da existência como um todo; mas, por outro lado,

também amplia a noção de produção: produção não é só produção de

novos possíveis, quer dizer, produção de produções, de bifurcações, de

desequilíbrios criadores, de engendramentos a partir de singularidades,

65

chegando até, finalmente, à idéia de autoengendramentos a partir de

singularidades, autoposicionamentos, autopoiese.

(...)

Não existe o SER, como equivalente ontológico geral, mas os seres,

e nesse sentido, a ética ontológica nada tem de sagrado; ao contrário, ela é

diabólica. Trata-se de diabolicamente intensificar a multiplicação das

instâncias, a constituição de universos, de processos de singularização, de

diferenciações, de criação de possíveis. Num plano mais prático, significa

optar pelas cartografias que enriqueçam, diversifiquem e multipliquem os

modos de subjetivação, as maneiras de existir, de estar no mundo, de

fabricar mundos. O grande inimigo é sempre a laminação homogeneizante

provocada pelo Capital, que torna tudo equivalente ou indiferente, ou a

laminação provocada pelo Significante, que subsume sob seu filtro a

totalidade do real, com todas suas intensidades, dimensões, variedade, ou

a laminação oriunda da idéia de Ser, ou de Razão, ou de Energia, ou de

Informação, ou de Comunicação, e assim por diante. (Pelbart, 1993, p. 122)

O ato de tramar essa elaboração apóia-se em duas ações aparentemente

opostas: o construir e o descontruir, como se um estivesse implicado

necessariamente no outro. Pulsante, a teia, que também pode ganhar uma

dimensão cósmica, sustenta a certeza e a verdade de um universo “estrelado

dentro de mim”.

A aranha como sujeito romântico, voltado para si, dá voz a um sujeito

incessantemente mutante, oscilando no movimento de nascimento e morte. Essa

movimentação insegura alterna-se, aproximando-se, ora do início da construção,

ora do fim, deixando transparecer uma textura elástica, visualizada na

consistência frágil da teia. Embora lúcido, quando “ao meio dia a vida é

impossível”, o jogo instaura, em cada acontecimento, o espírito lúdico do

fazimento do mundo como espírito da brincadeira.

Uma vez instaurado o jogo, seguimos por uma análise do universo lúdico e

da exposição do leitor em relação ao seu cotidiano, prendendo-nos no que se

refere à questão da atenção. Aqui o jogo está demonstrando o trabalho de

entender teoricamente a construção da poesia de Orides. Conseqüentemente, foi

66

necessário refletir sobre a minuciosa construção do que aqui consideramos como

acontecimento, levando em consideração os gestos de cada indivíduo, incluindo

os gestos da primeira infância, que observamos imediatamente na ação de

quebrar o brinquedo, determinada no poema “Ludismo”

Quebrar o brinquedo

é mais divertido.

As peças são outros jogos:

construiremos outro segredo.

Os cacos são outros reais

antes ocultos pela forma

e o jogo estraçalhado

se multiplica ao infinito

e é mais real que a integridade:

mais lúcido.

Mundos frágeis adquiridos

no despedaçamento de um só.

E o saber do real múltiplo

e o sabor dos reais possíveis

e o livre jogo instituído

contra a limitação das coisas

contra a forma anterior do

espelho.

E a vertigem das novas formas

multiplicando a consciência

e a consciência que se cria

em jogos múltiplos e lúcidos

até gerar-se totalmente:

no exercício do jogo

esgotando os níveis do ser.

Quebrar o brinquedo ainda

é mais brincar.

(Fontela, 1989, 19)

Com o desenvolvimento adquirido ao longo dos anos, o homem tanto

constrói caminhos como parece destruí-los, para ressignificá-los. Durante o

período da infância, cada indivíduo sustenta a construção de sua subjetividade

através do manuseio com as partes que constituem o brinquedo, pois quebrá-lo,

fragmentá-lo, seria o verdadeiro ato de brincar. Instalam-se segredos novos para

aguçar saber e sabor. Pensando nessa convenção da quebra que Orides propõe

no seu poema “Ludismo”, é importante abordar o que a criança sustenta

brincando, o que ela desacelera enquanto joga.

Segundo Lyotard, seria uma possibilidade de restituir uma dívida que temos

com a infância, uma maneira de acompanhar a restituição dessa infância, essa

outra humanidade e os ritmos do jogo: suas regras e seus possíveis. Afinal, para

67

ele, por ser “desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto

aos objectos do seu interesse, inapta no cálculo dos seus benefícios, insensível à

razão comum, a criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e

promete os possíveis.” (Lyotard, 1989, p. 11)

Desconstruir manualmente significa trabalhar com pedaços que nos levam

a uma construção maquínica, uma fabricação de estados novos, em consonância

com o ato em si e com o real. Um pedaço do brinquedo multiplica-se em cacos

antes inimagináveis gerando uma abertura para surpresas (nada geométricas),

trabalhadas no real do ser: luz: lucidez. No trecho “mundos frágeis adquiridos / no

despedaçamento de um só. / E o saber do real múltiplo / e o sabor dos reais

possíveis...”, percebemos que nem sempre temos nossa atenção voltada para

essa multiplicidade, algo que não está pronto e para o qual podemos não nos

dispor.

“(...) e o livre jogo instituído / contra a limitação das coisas / contra a forma

anterior do espelho” passa a ser estado de reflexo, reflexão, um pensamento

contínuo que gera um movimento caleidoscópico em consonância com a vertigem,

com aquilo que é incontrolável. Ressalte-se, nesse ponto, a consciência, ao invés

da alucinação, porque lúcida, atingindo um resultado final que é alcançar o

objetivo de estar em processo no exercício das descobertas do ser. O ato faz-se

mais intenso. Nos dá uma respiração diferente. Para entender essa consciência é

necessário explicar que ela tenta ser separada ou diferente daquela apregoada

sistematicamente por um mundo cartesiano que atrapalha diferentes mundos,

diferentes percepções da realidade, porque excludente. Ainda com Peter Pál

Pelbart, acompanhamos o que seria na verdade um apelo contra essa exclusão.

No artigo “A utopia asséptica” ele nos sugere que

(...) se pudéssemos sugerir alguma reivindicação que não depende

da aceitação de uma emenda legal, pois não pode ser atendida por

decreto, seria preciso resumir tudo o que precede numa fórmula lapidar:

sim, fim do manicômio, mas igualmente fim do manicômio mental, isto é,

um direito à desrazão. E seria necessário acrescentar imediatamente: um

direito à desrazão, mas sem confiná-la àquele cantinho privado e secreto

68

de nosso psiquismo chamado “nossas fantasias’, onde ela costuma

dormitar inofensiva. O direito à desrazão significa poder pensar

loucamente, significa poder levar o Delírio à praça pública, significa fazer

do Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade

das amarras da verdade, chama-se ela identidade ou estrutura, significa

devolver um direito de cidadania pública ao invisível, o indizível e até

mesmo, por que não, ao impensável. Libertar-se do manicômio mental é

isso tudo e muito mais. No entanto, para que a “libertação” da desrazão

não venha a ser mais uma astúcia da Razão – como talvez o seja a

libertação dos loucos – é preciso evitar suas ciladas, que não são poucas.

(...)

Nossa modernidade não expulsou os poetas, mas os loucos. Ora,

se a hipótese sugerida acima é verossímil, isto é, se o fim dos manicômios

é também uma forma dissimulada de borrar a Diferença que antes os

loucos portavam, e se a humanização e a homogeneização caminham

juntas no combate aos riscos disruptivos da loucura, deixemos ao menos

que a desrazão – até recentemente “privilégio” quase que exclusivo dos

loucos – vingue em nós. Desta vez, porém, não mais a serviço da razão,

como foi o caso da poesia em Platão, mas a serviço de uma modalidade

inédita entre pensar, viver e desarrazoar. (Pelbart, 1993, p. 108)

Buscar novas sensibilidades coloca o ser humano num estado de atenção,

diferente da velocidade de informações à qual estamos expostos, que pressupõe

uma leitura de mundo que não exclua a possibilidade de criação. Antes respeita-o

enquanto agente de produção de sentidos. Por isso, o quebrar o brinquedo está

diretamente ligado a um trabalho manual de desfazimento, provocando o olhar e

dirigindo a atenção intelectual para o sentido tátil, para o ato e a concentração do

tempo durante essa ação.

No ato de brincar, a criança destrói seu brinquedo para trabalhar com

cacos, geografia em ponta com arestas capazes de ferir e instaurar crueldades.

Toca-se em segredo o “inumano da infância” para habitar um mundo

despedaçado, frágil, silente embora movente. A movimentação fluida da

brincadeira comparada com a água é substituída por um habitar a superfície

69

áspera e fria como a provocada pelo contato com o metal, despertando novos

fragmentos, estilhaços de brinquedo e de vida, superpostos em montagem

caleidoscópica. Basta um giro para mudar toda a configuração do aspecto visual

do jogo.

Giros são pertinentes a vários rituais. Comparem-se os rituais do

candomblé onde o corpo é tomado como casa, habitação interina. Configura-se

aqui a sutileza da construção, um ideal de leveza. Esta é antes simbolizada pela

suspensão da memória em que o peso dos guardados podem significar somente

acenos, desprovimentos. A casa de Orides é preenchida tanto por objetos

concretos como por objetos que guardam heranças sutis e subjetivas como aquele

lenço, encontrado em sua poesia e que foi herdado da raiz mais distante: a avó

fica como lembrança tênue sem raiz fincada, raiz solta ao embalo do vento/tempo.

O lenço dado pela mãe é mote condutor da fuga e desafio nas regras do jogo;

aceno. Nuance e realce de experimentação singular.

“Herança”

Da avó materna:

Uma toalha (de batismo).

Do pai:

Um martelo

Um alicate

Uma torquês

Duas flautas.

Da mãe:

Um pilão

Um caldeirão

Um lenço.

(Fontela, 1989, p. 194)

70

No poema “Herança”, a memória é apresentada como necessidade de uma

atenção que pode ser ressaltada com as formas mais sensíveis de leitura e

interpretação do mundo, apresentando tanto objetos visíveis como objetos

sensíveis, não descartando a possibilidade do adeus representada pelo lenço que

por outro lado é significado dos acontecimentos guardados no peito.

A leitura potencializa as palavras em preto lançadas em papel, a imagem

pode dispersar e conseqüentemente, o distraído pode habituar-se. Se

concentrados os gestos textuais, a linguagem deve escorrer por múltiplos sentidos

e aspectos delineados por si. Em continuidade, os sentidos multiplicados avançam

por uma vibração como a da teia em toque imóvel. A brincadeira se fazendo

aprendizagem constante, invenção que acaba por esculpir o tempo próprio da

brincadeira e do brincante, daquele que se disponibiliza. É como se esse universo

do jogo se constituísse como uma tática de existir fora do cotidiano.

Seu projeto era um projeto essencial, algo calcado na essência, ou

existência em concentração, e potencialidades das coisas concretas e abstratas

que nos circundam no universo. Nessa “busca do essencial a esperança não se

elimina e sempre renova a frustração; durante a espera o poeta está sempre

atento a”. (Marques, 1999). De modo que a atenção do poeta torna-se sempre

presente para perceber o que surge na teia durante o jogo, transferindo para o

leitor a obrigação de estar também atento a e promovendo um congregar-se em si

e em torno do outro.

(...) lutar nesta nova ordem, que investe no “finito ilimitado”, não

poderia deixar de ser um trabalho mais próximo da reciclagem e da

recombinação daquilo que já existe que um trabalho de invenção

totalmente original. Ele também é menos uma criação solitária e

extraordinária que uma ação correlacionada, ordinária e comezinha, que

aproveita o que existe a nossa volta porque, de fato, baseia-se na atenção.

(...) Em várias civilizações não ocidentais, a atenção foi e é um instrumento

de seleção dos encontros, por meio do qual os seres distinguem, em cada

corpo e em cada ação, a potência do poder, a diversidade da diferença, a

mobilidade do nomadismo, o prazer do desejo.

71

(...) Ora, a atenção não se aprende necessariamente com novos

meios tecnológicos. Por mais tautológico e simples que possa parecer,

atenção só se aprende com atenção. E, nessa nova ordem, que chega ao

ponto de criar a desatenção como parâmetro de eficácia, parece-me que

tentar manter-se atento é um primeiro gesto para inviabilizar as ações que

deletam tanto as nossas singularidades quanto aquelas dos que nos

rodeiam. Ela é um primeiro passo para tornar completamente inviável,

impossível e indesejável desconectar a questão “o que estamos fazendo de

nós mesmos” da questão “o que estamos fazendo do outro”. (Sant’anna,

2002, p. 11)

Para o crítico Antonio Candido, Orides “tinha o dom da modernidade, um

dizer muita coisa por meio de poucas palavras, quase nenhumas palavras,

organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade

multiplica suas possibilidades”. (Candido: Apresentação de Trevo.) Essa

modernidade era uma aventura pessoal dela que distante dos enquadramentos

geracionais, permitiu uma leitura mais voltada para o corpo da palavra e para uma

montagem visual de sua poesia. Da Transposição, um jardim não mais geometria

passava por Rosáceas e girava na claridade de Alba em forma de Helianto.

Quando a sorte podia aparecer na crença de encontrar um Trevo de quatro folhas,

o que aparece é a fazedura de uma Teia e simbolicamente uma armadilha no

tempo da poeta.

O desafio seria dos leitores em escolher uma das entradas possíveis para a

sua inquietação poética. Nesse limite, o que está em jogo é um buscar retorcer o

aço, esgotá-lo, tirar dele o que sobra e guardar a essência. Isto porque “em última

instância, os artistas dedicam-se à sua própria profissão não com o intuito de

contar alguma coisa a alguém, mas como uma afirmação da sua vontade de

servir as pessoas” (Tarkovsky, 1998, p. 217).

A partir da palavra de Orides, é feita uma comparação direta com o viver

humano, em que o instante pulsa como se posto no centro do mundo e de lá

reverberasse uma energia que pode ser também percebida através da

similaridade simbólica existente entre o ser e a palavra.

72

Do primeiro ao último livro um caminho percorrido do uso da denotação até

o uso de nomes conotativos na escolha de seus títulos. Orides Fontela recorre a

uma desmontagem para chegar à dureza da palavra, o que pode ser observado

através do uso dos prefixos –des e –re ou do processo de justaposição de

palavras. Elabora seu projeto através de diálogos intertextuais e instaura seu real.

Dessa perspectiva do jogo concreto, a escritora aponta para o seu último

livro que nos faz mergulhar, logo na capa, num universo cósmico. Daí a Teia como

o centro e seu horizonte de perspectiva, um movimento para dentro. Talvez a

instauração do real através das palavras, das imagens, do apelo ao sentido.

Orides Fontela revela sua filiação à vertente mais cética da literatura

brasileira quando ela diz que geneticamente é drummondiana. Se de

Drummond, que é mestre de desenganos, ela terá herdado a aspiração pela

nudez branca e indizível, “escultura de ar” que concretiza a impossibilidade

mesma do ser. De Manuel Bandeira, além do despojamento, terá aprendido

a lição de que a poesia (maculado vinho), não podendo dar água como a

moça do cântaro, deve ao menos nos preparar para a morte (“que é o fim de

todos os milagres”). (Marques, 1999, p. 4)

Como sugere Autran Dourado no final do livro Uma vida em segredo, o

escritor vai “criando um ordenado mundo novo com os pedaços do próprio

mundo.” O que em princípio poderia parecer um relaxamento, em Orides é uma

armação, uma armadilha que prende nossa atenção para sua obra selvagem.

A imagem da teia retrata, no primeiro poema do livro, uma linguagem

condensada, uma idéia espremida em imagens simbólicas, em que cada palavra

tem a força da imagem. Vejamos o poema “Teia”:

A teia, não

mágica

mas arma, armadilha

a teia, não

morta

mas sensitiva, vivente

a teia, não

arte

73

mas trabalho, tensa

a teia, não

virgem

mas intensamente

prenhe:

no

centro

a aranha espera.

(Fontela, 1996, p. 13)

Neste poema, o sentido imediato da teia é negado pela partícula negativa

usada no final do primeiro verso de cada estrofe e reforçado através da

intensidade que acumula cada vez que aparece no poema. No fim, é feita a

marcação desse espaço circular terminando com o verbo “esperar” simbolizando o

ato da escuta atenciosa. A teia, longe de ser silente, pulsa não como ingenuidade,

mas como espreita de ações futuras, pois a aranha “arma”, “sente” e “trabalha”.

Orides Fontela constrói, assim, os acasos como possibilidade cósmica,

donde esta ordem de relação que se estabelece como saída, uma possibilidade de

defender o humano respeitando seu tempo interior e que a escrita acompanha, em

contraponto com um desenvolvimento do Universo que acontece sem finalidade

imediata mas própria e limitado pela possibilidade de explosão do sol. É como se

a vida, que precisa sempre ser explicada por uma idéia de começo ficasse

ameaçada por outra idéia: a de finitude. Por um lado essa postura é marcada pela

mortalidade de cada indivíduo e por outro pela possibilidade de desaparição da

vida no planeta.

Nesse processo de eliminação ou destruição está embutida a idéia de

perda que entendemos aqui também como encontrar-se. Uma vez instalados no

universo da palavra que é essencialmente crueldade, percebemos que a palavra é

densa e prepara despedaçamentos nossos. Nessas reconstruções e

ressignificações do real, o esquecimento vai abrindo espaço para aquilo que pode

ser guardado e gerado em memória. Por outro lado, o esquecimento pode gerar

signicativamente um lugar que nos coloca num tempo vazio.

Construindo e destruindo ou apagando num contínuo, a memória vai

compondo seus gestos. Para elaborar a memória como espaço para as perdas,

procuramos perceber uma construção de uma outra memória, a que se dá sem

74

culpas ou crimes, a do esquecimento. Em seu livro de ficção Aprendiz de inventor,

João Anzanello Carrascoza depois de iniciar seu livro com uma citação de

Drummond, “Perder é uma forma de aprender. E ganhar, uma forma de se

esquecer o que se aprendeu”, nos conta que

Nem bem entrou em sua casa na Terra do Lá, o menino viu uma

porção de objetos que havia perdido.

Botões de camisa, lápis de cor, pés de meias, chaveiros, índios do

forte apache, peças de quebra-cabeças, escovas de dentes, retratos. Eram

coisas e mais coisas de que ele nem mais se lembrava, muitas pelas quais

havia chorado quando se dera conta de que tinham sumido. Como o álbum

de figurinhas com os jogadores de todas as seleções de futebol do mundo,

que o deixara amuado a ponto até de ficar doente. Agora, estava ali, tão à

mão, e ele não resistiu em folheá-lo, experimentando uma forte alegria ao

tocar aquele tesouro que jamais sonhara em rever.

(...) Não podemos parar o tempo. As perdas ajudam a escrever a

nossa história. (Carrascoza, 2003, p. 43)

Pressupondo as perdas, nossa memória baseada historicamente nos

registros em forma de lembrança vai buscar dados que por algum motivo são

efetivamente esquecidos. Percebendo que esses dados escrevem também a

nossa história ou compõem a nossa geografia, valorizamos um pensamento outro.

Para entendê-lo devemos lembrar junto com Daniel Lins que

Esquecer não é crime, diria mesmo que é a condição sine qua non

à invenção de um pensamento-outro, pensamento curado da figura triste

dos sobreviventes da memória, chamados também “tradicionalistas”,

cultuadores das marcas que invadem a consciência e promovem a

memória-mártir, a memória dos historiadores: a chaga, a cicatriz, o traço!

(Lins, 2000, p. 46)

Em seu artigo “Esquecer não é crime”, Daniel Lins nos apresenta outra

marca que não a sugerida positivamente por Suely Rolnik, conforme vimos no

75

capítulo 1. Segundo ele, marcas também são dores, pelo menos como são

entendidas pela sociedade que cultua a lembrança como forma de sinalizar, em

forma de hierarquia, a culpa através de uma responsabilidade moralmente cristã.

Sublimar as dores não se trata de uma negação da história mas antes de

uma faculdade que pressupõe uma nova forma de desejo sem culpa, uma versão

para atingir um ideal de felicidade. Com isso não se está negando a memória, mas

procurando entender que o esquecimento também ocupa um lugar na memória

capaz de gerar novas posturas sensitivas e de ação. Um estado de relaxamento

gera uma abstração importante para a faculdade de sentir. Esta, por sua vez,

garante o “tempo que perdura nossa felicidade”.

Dessa forma, o ato de calar não significa apagar de vez tudo da memória,

mas implica não deixar no sujeito chagas como feridas abertas que ao invés de

provocar um impulso para frente, recupera o lugar do condenado a uma “memória-

brasão” anulando a potência de cada individualidade. Dando lugar à fala ao invés

das dores, trabalhar com essa memória fundada nas palavras garante a ação das

forças reativas do sujeito, a instauração da promessa e, por conseqüência, a

recordação do futuro, uma faculdade de prometer que é um comprometimento

com o futuro.

Memória das palavras e não mais das coisas, uma memória dos signos,

não mais dos efeitos. Por muito tempo, na história do homem, a importância de

uma memória veio acoplada à idéia de suplício, de onde registrar os holocaustos,

as mutilações, os rituais cruéis dos ritos religiosos, o que dificultaria a educação

de um povo de pensadores.

Uma memória resultado não de marcas, mas de palavras cuja configuração

máxima é a construção de uma memória sem memória. Memória da arte, das

palavras e não mais escarificações ou traços em forma de estigmas. Em

conseqüência, inserido na memória das palavras, o homem reencontra a alegria

pois esta memória é construída à base dos sonhos e dos desejos. Ela manifesta-

se como possibilidade de fazer agir as forças reativas dos sujeitos e instaurar a

faculdade de prometer.

76

Na entrevista “Sexo, poder e políticas de identidade”, Michel Foucault

salienta a necessidade de se criar uma identidade que não mais seja conduzida

pela idéia primeira da ética, mas por uma política de identidade que prime

essencialmente pela necessidade da descoberta de prazeres novos. O resultado

alcançado seria, assim, despertar o desejo. “Devemos criar prazeres novos.

Então, pode ser que o desejo surja.”

O desejo garante o devir-memória-palavra, uma política dos signos e não

do significado. Linguagem, sistema cruel de signos, palavras. Tessitura não mais

de artesã, tecelã, mas de artista, poeta. Na atividade de fiandeira, a fazedura volta

sua atenção para a memória ativa em que “o esquecimento é uma rebelião, uma

desorganização, uma dissidência ancorada na meditação que é o oposto do

mutismo ou do quietismo dos homens triturados pelas máquinas de memória”.

(Lins, 2000, p. 50). Memória impregnada de vontade que

passa necessariamente pelo governo de si, pela autogestão de um

tempo, de um tempo outro, sem presente, nem passado, nem futuro, um

tempo curado da história. Um tempo estratigráfico, dirão Deleuze e

Guattari, “onde o antes e o depois não indicam mais que uma ordem de

superposições”, ou ainda, o tempo filosófico que é “um grandioso tempo de

coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa

ordem estratigráfica. É um devir infinito da filosofia, que atravessa sua

história, mas não se confunde com ela (...) A memória, como a filosofia, “é

devir, não história”. (Idem, 58)

O lugar dessa memória da vontade implica conseqüentemente uma

faculdade de viver, um trabalho em ação, num tempo ativo, próprio de uma

memória da vontade habitado por “cartografias criadas pela própria singularidade

de um ser habitado por uma multiplicidade que não encontra sua força – instinto –

nem na contabilidade nem no calendário, mas na capacidade de agir ao invés de

ser agido.”

A paralisia vai dificultar, a partir da incapacidade de agir, o engendramento

de devires prejudicando o ser vivo que termina por destruir-se a si ou a uma

77

população. Esquecer é constituir uma força para garantir uma memória da vontade

que dá conta do ato em si. Dessa forma garante também o encadeamento de uma

“longa cadeia de querer”. Seria a possibilidade de adquirir um esquecimento

criador pensado como abertura para o novo, uma vida nova.

Nesse sentido, encontrarmos uma memória que privilegie um sentido

diferenciado do modelo dos gregos ao contrário de uma cultura cristã que

pregando a memória com sentido negativo promove a culpa, o pecado e o

ressentimento supõe voltar no padrão grego, pois nele, embora a existência seja

considerada culpada, não é sobre os homens que ela habita mas na questão da

falta que os distinguem dos deuses. Com a cultura do ressentimento, ficam

gravadas nos indivíduos como chagas somente coisas que causam dor na

memória. As marcas, as chagas, o sofrimento ficam talhadas no corpo.

O sujeito da memória da palavra deve concebê-la como acontecimento,

afirmando seu pensar, sentir e querer. Desse querer advém a consciência de si,

uma dose de instinto e “subjetividade nômade”. Somente uma boa consciência

seria capaz de construir uma memória livre das marcas “privilegiando “uma

memória agida e ativa”. A responsabilidade recai sobre cada cidadão, que passa a

ser responsável também pela coletividade.

A boa consciência instaura uma ética da alegria que, segundo Oswald de

Andrade, é “a prova dos nove”. A indagação final de Daniel Lins ecoa e escoa

aqui: podemos “Recordar o futuro”?

Recordar o futuro é o projeto da memória! Recordar o futuro é

inaugurar no coração do homem o bom esquecimento, formado pela

trilogia apolínea, pelos três prazeres inseridos, segundo Apolo, na palavra

cantada, apaziguadora das inelutáveis preocupações: Alegria, Amor e sono

suave: “O bom esquecimento é o sono que se apodera da água de Zeus, a

‘nuvem sombria”, o “suave fechar das pálpebras”; é o sono amolecedor que

faz Ares esquecer-se do ferrão áspero das lanças, o sono que vertem os

cantos e o vinho. Léthè não é mais a filha da Noite, mas a mãe das

Chárites, das “visões brilhantes”, da “alegria dos banquetes e dos eflúvios

78

cintilantes” que surgem nos pomposos festins. Léthè acompanha Éros e o

suave prazer das mulheres” (Detienne apud Lins, 2000, p. 59)

Em Orides, um poema muito significativo da idéia de uma memória do

esquecimento geradora de um ato de criação como potência do sujeito ativo é

“Astronauta”. Nele o sujeito é representado pela figura daquele que voa, que

desliza, que navega pelo espaço como um marinheiro, pressupostos o objeto de

locomoção e o passaporte da viagem:

“Astronauta”

Astro

nauta

corpo nave liberta

corpo nave memória

descolada do grave

tempoinfância

corpo plexo vogando

em campo

nulo

corponave memória

no vazio

perdido livre

corpo

despreendidamente

nave.

Onde o horizonte? Astro

cai

em

órbita.

(Fontela, 1988, p. 108)

79

A figura do astronauta fora de órbita, num campo gravitacional diferente,

experimenta uma distância suficiente para olhar de outro modo as coisas. No

espaço sideral desprende-se de tudo, capaz até de gerar para sua história outros

valores. É um caso mais de geografia do que de história se considerarmos que a

pessoa não leva consigo para o espaço um acúmulo de guardados. Agrega em

torno de si, como instrumento primeiro o corpo. A nave, responsável por um

deslocamento necessário, aparece em primeiro lugar impondo uma liberdade da

memória “descolada” do grave tempo infância. O espaço considera o corpo

vagando num nulo. Nesse deslocamento/descolamento, o corpo funde-se, como

corpo e território, em objetivos com a nave, formando nesse poema uma única

palavra “corponave”: “corponave memória no vazio perdido livre corpo

despreendidamente nave”. E realiza assim, uma nova dimensão para a

perspectiva do horizonte, agora verticalizado pela idéia da queda gravitacional.

Ao invés da preocupação em obter o equilíbrio, esse sujeito ativo transfere-

a para entender antes o que “balança o corpo”.

80

3. alçapão : esculpir o tempo

ECLESIASTES

Há um tempo para desarmar os

presságios

Há um tempo para desamar os frutos

Há um tempo para desviver o tempo

Orides Fontela

81

há um tempo...

“Há um tempo pra tudo”, dizia o livro bíblico do Eclesiastes. Dialogando com

o versículo, Orides desenvolve em seu “Eclesiastes” o mote da quebra. Não

necessariamente uma destruição, mas um andar na contramão dos fatos, agregar

os contrários. O molde é talhado por um tempo do desapego, de “desamar os

frutos” e de “desviver o tempo”, como se pudéssemos atribuir uma nova noção

sensitiva ao tempo. Nesta peça do alçapão, seguiremos com Orides a sua forma

própria de esculpir o tempo.

Fugindo do problema de adentrar pelo universo da física, preferimos definir

o tema a partir da composição subjetiva do tempo, ou que por aí atravessa.

Partimos então da elaboração dos poemas de Orides Fontela. Essa montagem

deve ser entendida como sugestão feita pela escritora ao leitor de sua obra, uma

vez que faz a opção pela multiplicidade do uso da palavra tempo, que aparece em

vários poemas de cada um de seus livros, ora como adjetivo, ora como

substantivo complementar.

As questões relativas ao sujeito surgirão em função do tempo e não do

espaço. Entendemos que a questão do tempo abordado de maneira subjetiva

busca conceber a presença do sujeito quando do seu real “acontecimento”. Esse

embate deve vir representado pelo “suor” de que nos fala Heráclito na explicação

para o radical aion na epígrafe desse trabalho, à medida que vai descobrindo

novas formas e perspectivas lúdicas na busca do ser. Nele é o sujeito que se faz

agente.

Ao longo da história da humanidade, o tempo influenciou a velocidade de

determinadas condutas humanas, quase sempre o que vemos é uma acelaração

nos modos de produção que altera o ritmo interno do homem. Dessa forma, a

humanidade instaurou várias culturas de tempo e espaço que, pensadas em suas

diferenças, dizem sempre da condição de adaptação do homem em determinado

espaço e da redefinição da natureza. Entender as sutilezas e nuances dessas

mudanças, permite-nos perceber de forma mais aguçada que mecanismos o

homem constrói para desenvolver sua percepção sobre a maneira de viver.

82

Orides alertava em revista que:

É tempo! É tempo de desviarmos nossa emoção de espanto, nosso

maravilhamento do universo morto para a mente viva – o único mistério a ser

pesquisado. Só assim descobriremos se há respostas... ou se criamos tudo, as

respostas e os problemas. É tempo de nos lançarmos à conquista de uma

suprema lucidez – se for possível – ou aceitarmos a aposta pascalina,

lançando-nos numa fé.

Aliás, a aposta é inevitável – por não termos a resposta. Não sabemos

se existe mesmo algo de transcendente, mas sabemos que tendemos para

isso – pois este é o caminho para nos humanizarmos mais e mais. Não, não

estamos prontos, somos indefinidos, desorientados – mas temos nossa própria

luz. Que ela nos guie – e bola pra frente. Está escuro? Então criemos um

caminho!7

Parece pertinente observar essa postura de construção como a da criança

que quebrando o brinquedo altera o seu lugar no mundo ocupando-o. Traçar um

pequeno percurso temporal da palavra é uma tentativa de descrever como se

forma um olhar próprio para o desenrolar do tempo. Compor um trabalho de

transposição. Gostaríamos de imaginar essa transposição como força potente do

movimento da história, que se atualiza porque se permite navegar junto na mesma

linha e traçá-la sempre estendendo seus fios por retas intermináveis na

imaginação. A soma ao invés do caótico, a mistura múltipla buscando uma

unidade sem centro.

A circularidade história que procura um movimentos outro comporta em si o

impulso para o seu depois, no que irá transformar-se. Neste sentido é necessário

deslocarmos os limites impostos pelo tempo cronológico para não nos limitarmos a

um antes e um depois, sendo mais importante perceber o instantâneo do tempo,

aquele momento calcado no agora, naquilo que está em curso, um certo fluxo de

consciência, das coisas e dos acontecimentos.

7 Este trecho faz parte do artigo “O homem: animal siderado”, escrito por Orides Fontela para a Revista Cultura Vozes. Encontramos esse texto no endereço eletrônico: http://www.culturavozes.com.br/revistas/0294.html.

83

Neste tempo subjetivo, o da sensibilidade, acompanharemos em seguida o

olhar para o tempo trabalhado por Orides Fontela em sua obra poética. Ganha

corpo novo essa fala, essa leitura, e nos leva a percorrer os gestos corporais da

palavra. A saída é seguir criativamente porque somos prisioneiros do tempo.

Acompanhar o trabalho de Orides Fontela é permitir-se deslocar num tempo

outro, mais interior, em silêncio e permissão. Assim como a poesia guarda um

dado de densidade, é calcada num silêncio que nos permite cuidar dos

sentimentos íntimos do ser humano.

Entender essa intimidade como delicadeza permite uma entrada em cada

olhar. Assim ela envolve e ao mesmo tempo nos arrebata, nos desloca, nos faz

um convite sempre: voltar várias vezes ao jogo atentando para novas dimensões e

possibilidade de sentido que a vida toma a partir do trabalho com a linguagem.

Orides respeitava, como nos sugere Antonio Cândido, seu trabalho de

alquimia, instaurava realidades novas partindo de antigos conhecidos como o

espelho, o cisne, a estrela, o pássaro. Aliás, como o próprio crítico sugere:

um poema de Orides Fontela tem o apelo das palavras mágicas que o pós-

simbolismo destacou, tem o rigor construtivo dos poetas engenheiros e tem

um impacto por assim dizer material de vanguarda recente. Mas não é

nenhuma dessas coisas, na sua integridade requintada e sobranceira; e

sim a solução pessoal que ela encontrou. (Fontela, 1983, p. 4)

Orides encontra, ou melhor, constrói essa solução pessoal à medida que

arrisca no limite armado por sua teia cósmica, uma vez que é magnetizada

integralmente. Por exemplo, no poema “Teia”, a aranha espera no centro mas

magnetiza vários outros pontos da teia. Com esse magnetismo, cria vários

mecanismos para armar-se aplicando o tempo diretamente ao viver cotidiano. Em

contraponto, trabalha o antigo para reinventar a matéria de que é formada a arte,

criando suas próprias categorias para dizer do tempo. Tarkovsky, ao esculpir seu

tempo fílmico, tendo sido bastante influenciado pela poesia de seu pai, nos explica

que:

84

Considera-se que o tempo, per se, ajuda a tornar conhecida a

essência das coisas. Os japoneses, portanto, têm um fascínio especial por

todos os sinais de velhice. Sentem-se atraídos pelo tom escurecido de uma

velha árvore, pela aspereza de uma rocha ou até mesmo pelo aspecto sujo

de uma figura cujas extremidades foram manuseadas por um grande

número de pessoas. A todos esses sinais de uma idade avançada eles dão

o nome de saba, que significa, literalmente, `corrosão´. Saba, então, é um

desgaste natural da matéria, o fascínio da antiguidade, a marca do tempo,

ou pátina. Saba, como elemento do belo, corporifica a ligação entre

natureza e arte. (Tarkovsky, 1998, p. 66)

Em Orides Fontela, o tempo assume diversas configurações dando-nos a

impressão de constituir uma constante brincadeira, remetendo ao universo lúdico

de construção do ser através da linguagem. Deste modo, a poeta lança o corpo

para experimentar o real, fazer com que através da nossa própria experiência as

coisas passem a ter existência como se fosse uma maneira de esculpir esse

tempo. Afinal, como escreve Clarice Lispector, “fatos são palavras ditas pelo

mundo” e, assim, desdobrando, retorcendo e desmontando seu material, diz

palavras pelo mundo esculpindo o ar.

“Escultura”

O aço não desgasta

seus espelhos múltiplos

curvas

arestas

apocalíptica fera.

O aço não se entrega

e nem se estraga é

forma

- presença imposta sem signos.

O aço ameaça

- imóvel –

com a aspereza total

de seu frio.

Ó forma

violenta pura

como emprestar-te algo

humano

uma vivência

um nome?

(Fontela, 1988, p. 85)

85

Na escultura do eu, é preciso pensar na energia que impulsiona o trabalho

do corpo. O metal sozinho, liso e plano, ganha recortes em dobra. Existe uma mão

que respeita o embate com o aço, afinal ele “não se entrega nem se estraga”. A

presença do aço ameaça, mas também permite, com sua violência e seu frio

metal, uma vivência.

Do primeiro ao último livro um caminho é traçado, constituindo imagens que

ganham corpo a partir do trabalho com a própria palavra que ela vai lapidando, e

parecem esculpir um tempo próprio à medida que nós nos submetemos a ele.

Pensando a qualidade do tempo, trago uma referência do filósofo André

Comte-Sponville para refletirmos:

O que é o tempo? A sucessão do passado, do presente e do futuro.

Mas o passado não existe, uma vez que já não existe. Nem o futuro, uma

vez que ainda não existe. Só resta, então, o presente, que é o único tempo

real. Foi o que eu quis tentar pensar até as últimas conseqüências. Decorre

daí uma metafísica, que é a metafísica do ser-tempo. E uma ética, que é a

ética do ato. Metafísica do presente, e para o presente:a eternidade é

agora. Ética do tempo, e para o nosso: existir é insistir; viver é resistir.

(Comte-Sponville, 2000, orelha)

André Comte-Sponville nos faz pensar sobre o tempo a partir de suas sete

teses que são, na verdade, algumas reflexões sobre o tempo da consciência

apresentadas no livro O ser-tempo na seguinte ordem: o tempo é o presente, o

tempo é a eternidade, o tempo é o ser, o tempo é a maneira, o tempo é a

necessidade, o tempo é o ato e o tempo é o devir. Todas privilegiam o tempo

presente na duração de sua construção, o agora.

Os símbolos estão presentes de forma muito significativa em toda obra de

Orides Fontela, apontando para a importância subjetiva de construir significados a

partir da relação entre o leitor e o mundo. Se o importante é o ato de fazer, a

prática de incomodar-se com o que se apresenta pronto, nossa abertura deve

pretender receber a qualquer momento uma “carta” como a do poema o qual “da

vida não espero resposta”.

86

Daí estar sempre presente, em nossas mãos e sob nossa responsabilidade,

a possibilidade de sonhar e realizar intensamente a vida como dizia o escritor

africano do Moçambique e contador de histórias Mia Couto, para quem devemos

ficar “varandeando, retocando o horizonte.”

Como muitas vezes em nossa sociedade mecanicista, cada vez mais

marcada pela idéia de produtividade, a marca humana desaparece, é necessário

pensar saídas para a busca de uma essência para o ser. Nesse caso, deveríamos

esperar um posicionamento marcado pelas apropriações das nossas relações

humanas. Para os índios, por exemplo, a relação imediata da civilização baseia-se

na idéia do ter contraposta ao que eles consideram marcado pela idéia do ser.

Dessa relação advém a idéia do respeito ao outro, principalmente com os mais

velhos, associando a esses um ideal de sabedoria. No livro A terra dos mil povos,

o escritor indígena Kaká Werá Jecupé, preocupado em contar a história indígena

brasileira e em difundir a sabedoria ancestral de seu povo conta-nos no capítulo “A

invenção do tempo”, a relação estabelecida entre sua tribo e o universo.

Reproduzimos:

WAHUTEDEW´Á, O ESPÍRITO DO TEMPO

O tempo, para os povos indígenas, é uma divindade sagrada

encarregada de manter a Lei dos Ciclos: as estações da Terra e as

estações do Céu. As estações da Terra podem ser medidas pelo Sol e as

estações do Céu, pela Lua. O tempo faz a ligação do ritmo – que é

coordenado pelo coração – com a ação e a inação. O Pai Tempo tem

muitos nomes entre os povos. O povo Xavante chama o espírito do tempo

de Wahutedew´á.

Quando chegaram as Grandes Canoas dos Ventos (as caravelas

portuguesas), tentaram banir o espírito do tempo, algemando-o no pulso do

Homem da civilização. Dessa época em diante, o tempo passou a ser

contado de modo diferente. Esse modo de contar o tempo gerou a história,

e mesmo a história passou a ser contada sempre do modo como

aconteceu para alguns e não do modo como aconteceu para todos.

Aqui, a partir desse tempo inventado pela civilização, foram

resumidos os principais fatos desse tempo – inventado, mas de ações

87

humanas reais e, infelizmente, na maior parte das vezes, cruéis.” (Jecupé,

1998, p. 71)

No pensamento indígena sobressai a importância da ligação que o tempo

faz ouvindo o ritmo do coração, o ritmo próprio do tempo quando ele está em

liberdade, quando não havia ainda uma preocupação em estabelecer uma história.

A tentativa de submeter o tempo a partir do ponto de vista de alguns gera a

crueldade. A partir desse ponto podemos pensar no que acaba, no que pode

constituir uma finitude, como se dissesse da necessidade que o homem civilizado

tem de colocar tudo sob seu controle.

Para Lyotard, em seu livro O inumano, o desenvolvimento tecnológico que o

homem alcançou, muitas vezes desumano, pode acelerar a finitude da vida no

nosso planeta. A saída para esse desenvolvimento tecnológico seria atentar para

as possibilidades cósmicas em relação à energia solar. Na iminência de sua

destruição, o universo seria regido por uma outra energia, portanto melhor

observar esse outro magnetismo. Acreditamos que Orides nos fala dessa energia

mais abrangente e geral, que vai orquestrando possibilidades para o universo, à

medida que traz à tona, em alguns poemas como “Herança”, um questionamento

sobre a memória. Rememorar pode significar trazer de novo ao coração, como se

pulsasse no seu próprio ritmo-tempo.

A memória que queremos frisar é aquela trabalhada a partir das nossas

lembranças e que, no entanto, aqui, caberia melhor se pensada como

apagamento, uma memória do esquecimento acionada quando precisamos

subtrair algo por conta de um diálogo mantido com a cidade e uma maneira muito

peculiar de caminhar por ela e nos protegermos. Não que a poesia de Orides

Fontela seja feita de lembranças e recordações mas interessa a maneria como é

constituída essa memória se, ao invés de nos apoiarmos nos fatos, estimássemos

os atos vividos e experimentados. Memória do lembrar e memória do esquecer

ritmada por um vai e vem constante entre lembranças e apagamentos em que o

tempo, com sua característica insubmissa, vai chamando o homem a refletir,

cuidar de si, não se abandonar, nem as possibilidades que promete, pois um novo

88

arranjo de visibilidades pode constituir aqui uma maneira de resistência no

espaço.

Estaríamos, neste ponto, diante de dois universos: um tempo do sujeito, e

intrinsecamente ligado a ele o seu pensamento, versus um tempo de forças. Esse

tempo do sujeito teria assim sua própria dinâmica interna sem ter uma finalidade

concreta, enquanto o tempo do desenvolvimento seria condicionado por um limite

físico.

Colocando em jogo essa visão cósmica, lançar-se passa a ser então,

próprio da experiência corpórea e estaria, na obra de Orides Fontela,

representada pela imagem subjetiva da teia que arma suas próprias armadilhas

sem estar morta mas sendo sensitiva, vivente; tecida por uma imagem de

entrecruzamento, em que um conjunto de imagens entrecruzadas que originam

outra imagem revela uma imagem mais forte.

Balançar o corpo, lançar-se, deslocar-se, implica riscos e uma vivência, a

experiência alimenta o caminho e tanto permite uma consciência como uma

transcendência, longe de uma metafísica especulativa, perto da experimentação

do real, de como ele surpreende, da palavra lúdica, que multiplica as

possibilidades à medida que se quebra, que instaura outros jogos.

Dessa forma, com sucessivas mortes ao longo de uma só vida, em

constantes metamorfoses, e aproveitando o tempo oportuno traduzido do

pensamento grego como kairós, Orides Fontela nos convida, desde seu primeiro

livro, a transpor um lugar, e o ritmo que passa a reger essa nova vivência é a do

cantoflorvida que em Lyotard equivale

(...)a vossa filosofia do fim sem fim, da morte imortal, da diferença

incessante, do incidível, é uma expressão, e pode ser a expressão por

excelência, da meta-regulação. Como se esta por sua vez se tomasse

como referência enquanto meta-. Pois muito bem, mas não esqueçam que

esta faculdade de mudar de nível referencial não advém de outro sítio que

não seja o do poderio simbólico e recursivo da linguagem. (Lyotard, 1989,

p. 22)

89

Nesta brincadeira há uma composição e uma entrega, constituindo os

pilares dinâmicos de criação e avaliação, representadas pela imagem do corpo e

pelo trabalho com a linguagem, que a escritora vai tecendo. Sendo assim, na

brincadeira estão embutidos corpo e linguagem. O corpo, por sua vez, não

determina o espaço por onde vai lançar-se seguindo determinadas regras, antes

cria essas regras depois de um processo de reflexão. E muitas vezes suspende,

por essa movimentação entre o universo objetivo e subjetivo do sujeito, o tempo.

Vejamos o poema “fala”, de seu último livro Teia:

Falo de agrestes

pássaros de sóis

que não se apagam

de inamovíveis

pedras

de sangue

vivo de estrelas

que não cessam.

Falo do que impede

o sono.

(Fontela, 1996, p. 14)

Nele a vida é latente em tudo que circunda. Alguns símbolos recorrentes

em sua obra como pássaros, sol, sangue e estrelas aparecem como sinais a fim

de provocar um ritmo para o coração humano. Nesse sentido, gostaríamos de

apresentar os sinais do espírito na forma como aparece na tribo indígena de Kaká

Werá Jecupé, porque está muito afinada com o nosso pensamento e com a

relação que estabelecemos na poesia de Orides Fontela:

Se o tempo para os indígenas tem um espírito, há também sinais que

devem ser entendidos. Afinal, entender a lei do coração significa compreender seu

caminho, estar atento a. Essa interpretação calorosa pressupõe silêncio. A fala do

90

espírito dá-se em sonho, nele existe uma força. Analisemos algumas relações:

beija-flor: idéias, coruja: sabedoria, o que ora voa na natureza e o que ora toca no

coração, havendo portanto tempo de semear e tempo de concentrar-se. Ventos e

rios, que passam e permanecem, são mensageiros, e podem entoar, muitas

vezes, também um canto de lamentação. Há um pacto importante com a natureza.

A energia dessa relação é simbolizada pela seqüência de um ritual. Sempre da

criação há uma roda, uma narração, uma necessidade de gravar, registar

pulsações que advém das narrativas, há uma preocupação em aquecer as leis no

coração. Parece contraditório, mas as leis são gravadas e armazenadas no

coração humano, uma garantia com ideal de cumplicidade.

“Coisas”

mescladas

a esmo:

o fim o infinito

o mesmo

a hora e sua

seta

o limite e o após

a meta

o justo e o demais

também

- a beleza e seu

além.

(Fontela, 1996, 15)

Uma transmutação da forma do ser durante a vida, a hora como invenção

humana e a transposição dos limites como aquilo que constituiria uma resistência

(se trabalhamos com a idéia de finitude, aproveitar a energia desta), o que seria

rasgo: o abismo, o salto, o impulso, o pathos. Esse impulso poderia ser

representado pelo grito ou por um momento de êxtase mas que agrega a si um

91

processo, uma experimentação no e do que se faz, um culto. A nosso ver esse

processual é marcado no poema “Maiêutica”.

Gerar é escura

lenta

forma in

forme

Gerar é

força

silenciosa

firme

gerar é

trabalho

opaco:

só o nascimento

grita.

(Fontela, 1996, p. 18)

O processo pode ser associado ao trabalho e este a uma construção. Na

poesia de Orides, e principalmente no poema ”João”, estabelecemos uma

construção do concreto que por sua vez vai também construindo o abstrato: a

construção de uma identidade humana que vai sendo simbolizada pela identidade

do pássaro. O poema é também construído por parte, vejamos:

De barro

o operário

e a casa

(de barro

o nome

e a obra).

II

O pássaro-operário

madruga:

construir a

casa

construir o

canto

ganhar – construir –

o dia.

III

O pássaro

faz o seu

trabalho

e o trabalho faz

o pássaro.

92

IV

O duro

impuro

labor: construir-se.

V

O canto é anterior

ao pássaro

a casa é anterior

ao barro

o nome é anterior

à vida.

(Fontela, 1996, p. 19)

Segundo o dicionário Aurélio, “axiomas” é um conceito da filosofia que

significa premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente

verdadeira sem exigência de demonstração. Seguindo o conselho de não esperar

respostas para a vida, pensamos na medida do nosso saber, em como

trabalhamos nossos sentidos, nos riscos que corremos, nas conseqüências de

enfrentar um caminho e assim estarmos prontos para lançar o “vôo” pela

oportunidade, o tempo oportuno, a ocasião do кαірóς.

“Vôo”

Ter

asas

é não ter

cérebro

ter

cérebro

é não ter

asas.

(Fontela, 1996, p. 28)

“Axiomas”

Sempre é melhor

saber

que não saber.

Sempre é melhor

sofrer

que não sofrer.

Sempre é melhor

desfazer

que tecer.

Sem mão

não acorda

a pedra

sem língua

93

não ascende

o canto

sem olho

não existe

o sol.

(Fontela, 1996, p. 26)

“Newton (ou A gravidade)”

I

A maçã

cai

e os astros

dançam.

II

O abismo atrai

o abismo: caio

em

mim.

(Idem, p. 29)

“Kairós”

Quando pousa

o pássaro

quando acorda

o espelho

quando amadurece

a hora.

(Fontela, 1996, p. 31)

“Mão única”

_ é proibido

voltar atrás

e chorar.

(Idem, p. 33)

94

Na suspensão do tempo, um limite estabelecido previamente seria

imediatamente trocado pelo que pode vir a acontecer no acaso. Não seria

conveniente à escritora estabelecer regras, mas criá-las, elaborá-las depois de

uma reflexão crítica, tendo como mediador o tempo, uma vez que este opera no

que é dado à consciência experienciar na sucessão dos fenômenos. Orides

instaura para o tempo uma perspectiva poética, onde no instante figura o fulgor, o

brilho da palavra. Afinal, ao olharmos a face de uma palavra, ela nos esconde

sempre outras.

Este é o espírito do ludismo, do acontecimento, tão racional de maneira que

o sofrimento de pensar é um sofrimento do tempo que em toda experiência

humana se infiltra, do acontecimento aprendido porque gerado no sofrimento, nos

momentos de dor e entrega que acabam gerando descobertas e mostrando outras

faces.

Santo Agostinho, depois de tentar depreender o tempo diferenciando o

psicológico do ontológico e permanecendo na dúvida sobre a apreensão dessa

entidade, tenta medi-lo pelas impressões que este causa. Logicamente interessa a

ele um tempo que não está em movimento mas aquele suspenso, parado, sem

velocidade e sem espaço. Daí sua fugacidade, nasce naquilo que ainda não

existe, atravessando aquilo que carece de dimensão, para ir para aquilo que já

não existe. Na verdade, quando tentamos medir o tempo parado, o fazemos pela

sensibilidade. Só assim entendemos que o “tempo é um vestígio de eternidade”.

Esculpir o tempo seria uma tentativa de compô-lo de muitos momentos

passageiros.

Advém daí a originalidade de Orides Fontela, pois em uma atitude positiva e

simultaneamente negativa de criar e destruir, esculpe suas palavras: coisas e

pessoas transformadas pelo tempo. Não se pretende conceituar o tempo pois isto

implicaria em risco. Ao invés, tentamos percorrer a visão poética traçada por ela,

levando em conta o tempo como nossa experiência humana adquirida de maneira

intuitiva a percorrer caminhos produtores de subjetividade. Através dele vamos

nos lançando em nossa própria experiência guiados pelas mãos de Orides

Fontela. A escritora não comanda o tempo controlando sua duração mas antes

95

tenta qualificar essa duração que pode variar de acordo com a disposição de suas

características no instante em que ocorre. A idéia é de que o tempo é quem nos

comanda e ao invés de impor determinadas regras no viver, convida ao jogo para

que nossa experiência sensível humana seja pautada no ludismo, na

representação de algo que se desfaz, se constrói e se reconstrói. Como se

pudéssemos, a cada momento, inaugurar um movimento constante de vir a ser o

que se é.

Um contraponto fundamental é a idéia de originalidade e a de singularidade.

Ser original aponta para ser diferente dos outros, enquanto a razão da

singularidade reside em ser diferente de si mesmo. Nesse sentido, estamos

sempre nos tornando outros e arrastamos conosco a idéia de tempo infinito de

onde advém uma imagem móvel da eternidade. O desafio está na integração de

todo o passado, todo o futuro e todo o presente no instante. Por outro lado, pensar

o instante como totalidade do tempo nos dá uma eternidade móvel sem imagem, a

possibilidade de encontrar a plenitude do acontecimento. Mesmo assim, a

fragilidade de uma realidade imposta parece constituir uma eternidade frágil.

Nesse instante sublime, não há nenhuma forma de encontrar uma possibilidade

humana para descrever o que acontece, há um buraco aberto no interior de uma

realidade, de onde advém a promessa de espraiar o olhar em meio ao que

acontece. Dessa forma existe uma possibilidade de criar um espaço no interior do

qual a vida é possível, com uma serenidade que altere a cadeia dos instantes

corrosivos. Para combater essa característica do tempo, nada como a experiência

resultante da integração plana do passado no presente. É como se não existindo

um lugar, fôssemos chamados sempre a produzi-lo.

Então, o que significa ter consciência do tempo? Mas qual seria o tempo da

consciência? De que modo encontramos uma potência temporal? Tomemos como

diferença o presente e o instante. Pensar que o instante se realiza sendo fiel ao

passado e interessando-se pelo futuro enquanto o agora do presente dura. Viver

no presente não é viver no instante pois o presente dura.

Em muitos sentidos, principalmente no das arestas, o livro Ser-tempo, de

André Comte-Sponville, nos incita a verificar alguns pontos que parecem simples

96

para investigar o próprio tempo. Isto porque, segundo ele, os limites permanecem

mas podem se deslocar. Considerando o presente como único tempo real, a

metafísica do ser tempo encontra a ética do ato. Privilegiar o tempo da

consciência significa atentar para uma esfera subjetiva em que podemos recair,

porque o tempo da consciência é diferente do tempo do relógio, por exemplo. O

que siginifica então preocupar-se com uma consciência lúcida, sem ilusões, que

consegue alcançar algo do real, uma consciência verdadeira? Pensar o tempo da

consciência não é simplesmente ter uma consciência do tempo porque isso não

diz o que é o tempo. Pensar o que ele separa é pensar uma temporalidade e não

é isso que queremos. Então, pensá-lo é ao mesmo tempo desconhecê-lo.

O tempo da consciência, a evidência da consciência comum, pode ser

simplesmente inútil. Afinal, já sabemos que “há tempo pra tudo” e mesmo assim

precisamos “desviver o tempo”. Afinal, o tempo da consciência é múltiplo,

heterogêneo, desigual.

Para Orides Fontela, o nada não importa em primeira instância porque o

presente não é eterno, mas antes a fuga, esta tendência a não mais existir. No

limiar, no limite. Há uma faca de dois gumes na limitação de nossa própria

consciência porque o tempo está no meio de dois nadas: um passado que já não

mais existe e um futuro que ainda não existe.

A fuga, então, nos diz de um deslizamento, de alguma potência vital que

ocorre no momento do deslize, que vive aquele momento. Complicado é partir o

tempo, logo ele que nos oferece as armas para deslizarmos, é no escorregadio

que ele nos foge e nos apresenta. E a nossa consciência tende a reparti-lo em

passado e futuro, fenda desnecessária.

Evidentemente já sabemos que não dá para parar o tempo. Precisamos

escapar, então, do niilismo que separa o ser ou pressupõe sua anulação. O tempo

é tão astuto, no sentido do seu reinado, que supor a presença do ser no tempo é

perceber que ele não é nem o ser nem o não-ser mas o que oscila entre os dois.

Se o tempo é matéria que corre e flui sem permanecer, no dizer de Heráclito, é

vital que exista o ser pois sem ele não existe devir, que exista o próprio tempo,

pois sem ele não há mudança.

97

Dessa forma, nos preparamos para aceitar a mudança, a própria

multiplicidade. Contraditoriamente, o tempo envolve negação pois suprime o ser,

aos mesmo tempo que envolve afirmação, uma vez que supõe o ser. Neste

sentido, envolve também movimento, mudança, história, devir.

Momento de “habitar o tempo”, com João Cabral de Melo Neto:

Para não matar seu tempo, imaginou:

vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;

no instante finíssimo em que ocorre,

em ponta de agulha e porém acessível;

viver seu tempo: para o que ir viver

num deserto literal ou de alpendres;

em ermos, que não distraiam de viver

a agulha de um só instante, plenamente.

Plenamente: vivendo-o de dentro dele;

habitá-lo, na agulha de cada instante,

em cada agulha instante: e habitar nele

tudo o que habitar cede ao habitante.

E de volta de ir habitar seu tempo:

ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;

e como além de vazio, transparente,

o instante a habitar passa a invisível.

Portanto: para não matá-lo, matá-lo;

matar o tempo, enchendo-o de coisas;

em vez do deserto, ir viver nas ruas

onde o enchem e o matam as pessoas;

pois como o tempo ocorre transparente

e só ganha corpo e cor com seu miolo

(o que não passou do que lhe passou),

para habitá-lo: só no passado, morto.

(Melo Neto, 1994, p.365)

O tempo é condição do real pois “Ser é ser no tempo; logo, o tempo tem de

ser. Ele contém tudo, envolve tudo, carrega tudo: tudo o que acontece acontece

no tempo, e nada, sem ele, poderia ser nem devir. Ele é, exatamente, a condição

do real.” (Comte-Sponville, 2000, p. 22). Poderíamos traçar uma relação: o espaço

está para o corpo assim como o tempo está para o acontecimento, se entedermos

que nem todo acontecimento seja um corpo. Mas o tempo não existe

absolutamente, ele existe relativamente à mudança, daí sua supremacia em

relação ao espaço.

Medir o tempo segundo um antes e um depois diz mais sobre nós ou para

que nos serve, ao invés de definir o próprio tempo. Há ujma diferença entre o

tempo do mundo e o tempo da alma, pois sem a alma só haveria o presente, é a

alma que faz a ligação, que garante a existência de alguma coisa a medir. O

98

depois anula o antes porque a presença da alma é garantia de simultaneidade

uma vez que ela, através da lembrança, pode prever, esperar ou temer. Isso faz a

diferença, que exista uma coisa distinta do presente. Não somar o passado, o

presente e o futuro mas perceber que a soma cede lugar a uma simples

continuação ou perduração do presente. Daí entender que o tempo precisa da

alma.

A consciência resiste ao movimento temporal, há uma unidade na

consciência. O tempo da alma permite a coexistência, pertence ao tempo porque é

presente, dura e muda.

(...) ela retém o que o tempo leva, inclui o que ele exclui, mantém o

que ele suprime.

Ela lhe pertence, porque é presente, porque dura, porque muda. A

consciência passará como o resto, ou antes, ela já passa, e é por isso que

é temporal antes de ser temporalizante. Mas esse movimento que a leva,

ela o nega ou, em todo caso, a ele resiste. É por isso que é temporalizante

sem deixar de ser temporal.

Temporalidade como tempo da consciência, uma leve distensão da

alma. É o tempo como o imaginamos e como dele lembramos, como o

percebemos e como o negamos, não necessariamente com ele é ou como

ele passa. A consciência vivida e espontânea que crê ilusoriamente em

passado e futuro enquanto o tempo por si tem como exclusivo o irresistível

e o irreversível aparecimento-desaparecimento da sua presença.

A temporalidade é sempre distendida entre o passado e o futuro; o

tempo, sempre concentrado no presente. A temporalidade só existe em

nós; nós só existimos no tempo. Nós a carregamos; ele nos arrasta. Assim,

é da temporalidade – e somente dela – que devemos dizer o que Santo

Agostinho dizia do tempo: que nada mais é que “uma distensão; uma

distensão de quê, não sei direito, provavelmente da própria alma.” (Comte-

Sponville, 2000, p. 32)

Se considerarmos que “somos o surgimento do tempo”, então concluiremos

que sua base é o existencialismo porque pressupõe o ser e o tempo só vem ao

99

mundo se nós estivermos. André Comte-Sponville duvida desse questionamento

porque o tempo existe sem nós.

Atentar sempre para o perigo de confinar o tempo no sujeito porque isso

impede de verificar o aparecimento do sujeito no tempo. Por sua vez, se

colocamos a subjetividade em questão, percebemos que o tempo não pode ser

unicamente subjetivo. Observemos então, as especificidades de cada parte do

tempo.

Mas então, de novo, que é o tempo e como podemos pensá-lo, se

ele se constitui de um nada (o instante sem duração) entre dois nadas (o

passado que já não existe e o futuro que não existe ainda)? (...) Antes

mesmo de haver rememoração ou antecipação, explica Husserl, o tempo é

vivido como a unidade originária do passado imediato (retenção) e do

futuro imediato (protensão) num presente vivo, que portanto só é temporal

para e pelo “fluxo absoluto da consciência, constitutivo do tempo”, o que

Husserl chama também de “subjetividade absoluta”.

Nada do princípio (que não é mais), nada do futuro (que ainda não

é), nada do presente (que não passa de um limite sem duração): o tempo

não seria nada de objetivo; ele só viria a ser por nosso intermédio.

Esses três nadas são de alcance desigual, parece-me, ou antes,

desigualmente convincentes.

Que o passado não seja, por não ser mais, com isso estou de

acordo, é claro. Lembrem-se do primeiro beijo... Não existe mais, nunca

mais existirá. Se vocês quisessem recomeçá-lo ele já seria, no mínimo, o

segundo, e vocês não teriam recomeçado absolutamente nada... Quanto à

lembrança que vocês têm dele, ela não passa de um pedaço do presente:

longe de salvar o ser do passado, ele permite, aqui e agora, tomar

consciência de seu não-ser como não-ser-mais. “Nem o passado, nem os

amores voltam...” A memória não altera nada nisso, salvo a consciência

que, graças a ela, podemos disso ter. O tempo passado não volta, e é isso

que chamamos de passado.

Direi a mesma coisa, no essencial, no que concerne ao futuro: ele

não existe, já que ainda não existe, e o último beijo (salvo no caso dos que

100

já o tiverem dado, mas então não seria mais futuro...) tem tanta realidade

quanto o primeiro. Nossos projetos ou nossas esperanças, tanto quanto

nossas lembranças, não passam de pedaços do presente, que podem, é

claro, visar ou preparar o futuro, mas que não poderiam lhe proporcionar o

ser que lhe falta e que – como não-ser – os justifica ou obseda. O futuro

nunca é dado (se fosse, seria presente): o porvir é por vir, se vier, e é por

isso que ele não existe.

Tratando-se do presente, em compensação, a coisa me parece mais

simples. O presente não é nada, dizia santo Agostinho, já que ele só é

deixando de ser. Não é essa minha experiência: o presente nunca me

faltou, eu nunca o vi cessar, nunca o vi desaparecer, mas apenas durar,

sempre durar, com conteúdos diferentes, por certo, mas sem deixar com

isso de continuar e de ser presente.

O presente é meu lugar, desde o início; o presente é meu tempo, e

o único. (Comte-Sponville, 2000, p. 46)

Pensar no ser-tempo é trocar a esperança de um futuro pela sabedoria, e a

neurose do passado pela saúde. A esperança nos abre para o presente, a saúde

nos liberta da neurose. Bom seria se pudéssemos deslocar-nos entre o passado e

o futuro, por exemplo. O presente tem de ser privilegiado porque é ele que não

cessa de durar, de continuar, de se manter. Logo o tempo não cessa, então, ele é

o presente, a eternidade, o ser, a matéria, a necessidade, o ato. Pensar no

presente, na eternidade frágil, no ser, na matéria, na necessidade, no ato é tornar

potente a sensação de eternidade num instante pleno. Nos diz André Comte que o

presente pode ser comparado a uma pérola ínfima, sem espessura no tempo, mas

que é imensa, infinita, no espaço atual, pois é tudo.

O que pode ser ínfimo e infinito carrega um tom de sobriedade. Daquilo que

acontece de forma gratuita, do que é imperceptível, que está mais na esfera do

estilo, que é substância, do que do efeito, que é obra. Isto nos faz perceber a

validade e a importância do presente em que estamos inseridos. A eternidade

frágil que queremos trazer para cá tem dois sentidos: duração infinita e presente

que permanece presente. Acontece nisso uma mudança de noção pois a

eternidade implica sucessão.

101

A duração pretendida como um ato não como intervalo, nesse ato a

atualidade, o devir, uma eternidade em perpétuo agora. Compreender com a idéia

da flecha que o presente sucessivo nunca é igual, que o tempo permanece

orientado na mesma direção, que flui do passado em direção ao futuro, e que por

isso se difere da fuga, onde considera-se que um acontecimento começa num

futuro em direção a um passado que tudo acumula.

Tomemos lugar na nau do tempo-rei de que nos falava Foucault em História

da Loucura, aquele lugar que levava os loucos para bem longe da cidade, para

navegar, para “pirar” confinados no mar. E então imaginar a simplicidade do

tempo, afinal ninguém pode subverter o tempo, nem detê-lo, aboli-lo, virá-lo ao

contrário; e a realeza dele, que é como uma criança que brinca, pois o presente é

sempre novo, gratuito e inocente. Repensar, com essa gratuidade, a própria

inocência a fim de observarmos, confinados em nossa nau, os nossos mesmos

valores.

Eu diria, em vez disso, mas a idéia é a mesma: perdoar o real por

não ser Deus. Enfrentá-lo, mas sem ódio. Aceitá-lo, mas sem fatalismo.

Amá-lo, mas sem ilusões. Quem poderia ficar zangado com o mar que o

traga, com o furacão que destrói tudo, com o sol que o queima? E para que

adorá-los, quando nos poupam ou nos regalam? É sempre supertição, cujo

contrário é sabedoria. Não julgar, mas conhecer. Não interpretar, mas

compreender. Não rogar, mas agir. Não adorar, mas aceitar, contemplar,

transformar – amar, se possível. Inocência do devir: inocência do presente.

(...) O tempo não foge para passado, nem tende para o futuro: ele é

em si mesmo fuga e tendência, mas uma fuga para lugar nenhum, mas

uma tendência para nada (ou antes, para si mesmo: para tudo); e é o que

chamamos – sem finalismo e sem nostalgia – de presente. (Comte-

Sponville, 2000, p. 80)

Podemos dizer que somos eternos no sentido de que nunca deixamos o

presente, de alguma forma somos contemporâneos da eternidade, à medida que

vivemos uma vida que é eterna enquanto dura.

102

Somos contemporâneos do eterno, sempre; mas não para sempre.

Que mais é viver? Não é o presente que passa em nós; nós é que

passamos nele – e o esquecimento, no fim das contas, prevalecerá contra

a memória, como a natureza contra o homem ou a matéria contra o

espírito. A diferença, todavia, só é significativa para o espírito. Quanto ao

ser, é sempre o presente, é sempre a eternidade. Só estamos separados

dele por nossas saudades ou nossas esperanças, por nossas angústias ou

nossas nostalgias: no fundo somos separados dele apenas por nós

mesmos. Quem fosse capaz de se libertar disso seria, portanto, eterno,

como Epicuro, Spinoza ou Wittgenstein viram, ou antes, todos nós o

somos, mas na maioria das vezes sem condições de vivê-lo. Eternos, mas

não imortais: a vida, como o amor, como tudo, só é eterna enquanto dura.

(Idem, p. 81)

Deslizar por sobre ou com o tempo, propomos ao invés da ação de fugir,

construir uma habitação própria da brincadeira.

Viver no presente nunca impediu ninguém de envelhecer, nem de

se lembrar, nem de se cansar, nem de esperar... “Esperar o quê?”,

indagarão, “se o futuro não é nada?” Esperar o presente, e é isso a

verdadeira paciência. Não se trata de fugir do tempo, de sair dele, de

resistir a ele... Trata-se de habitá-lo em sua verdade, em sua presença, e

isso é a própria eternidade.

(...)é um misticismo sem promessa e sem fé, como se vê no Oriente

ou, de novo, em Spinoza: espiritualidade da imanência em vez da

espiritualidade da transcendência, que vive o êntase do presente em vez

do êxtase da temporalidade, a tensão da ação (e a distensão do repouso)

em vez da distensão da esperanaça, a alegria do amor em vez da

insatisfação da carência, a paz do presente em vez da angústia do futuro,

enfim a atenção e a acolhida em vez da espera ou da preocupação... A fé?

A esperança? Para quê, já que tudo é presente? Somos em Deus, e é por

isso que não há Deus. Estamos no eterno, e é por isso que é inútil esperá-

lo. (Comte-Sponville, 2000, p. 86)

103

E na nau do tempo–rei perceber que não há um fora, entender um projeto

imanente de quem cria, determina, transforma sua própria interioridade, que

permanece no âmbito da experiência possível, agindo na captação da realidade

através dos sentidos. Existir, insistir, resistir. Afinal, é a força da resistência que

transforma o poder bem-comportado em potência circular. Procurar, junto com

Spinoza, favorecer os bons encontros, procurar o desabrochar, aumentar a

potência de agir do corpo.

O que entendo por insistência, ao contrário, seria antes próprio de

todo ser, consciente ou não, vivo ou não: insistir, nesse sentido que a

etimologia sugere, é ser-em (em quê? No ser, no presente, em tudo) e aí

se manter, é se esforçar, é perseverar, é resistir, e isso sempre no interior

de outra coisa que nos contém, que é o espaço, que é o tempo, que é o

mundo, sempre imanente, sempre dependente, e sem que possamos

jamais nos arrancar desse presente que somos, que fazemos ser (na

medida em que agimos) e que nos faz (na medida em que nos sujeitamos,

e claro que nos sujeitamos primeiro e mais). A insistência é, portanto, a

verdade da existência, para todo ser e para o homem mesmo, contanto que

se liberte das ilusões finalistas, espiritualistas ou antropocêntricas que tem

de si mesmo. Adeus existencialismo! Nenhum projeto escapa do presente,

nenhuma transcendência escapa da imanência, nenhuma liberdade escapa

do real. O homem não é um império num império, nem um nada no ser. Ele

é o que é, ele faz o que faz: ele não escapa nem ao princípio de identidade,

nem ao princípio de razão. A essência precede a existência, ou antes, nada

existe salvo o que é (essência e existência, no presente do ser, são

confundidas, é claro), e é por isso que existir é insistir: porque é continuar a

ser e a agir. (Comte-Sponville, 2000, p. 92)

Estar sendo e deixando de ser é próprio do ato de transformar-se, inventar-

se, reinventar-se. Nesse ato de inventar está o conhecer sem necessariamente

perguntar-nos pela finalidade mas antes colocar a importância na motivação, no

instinto. Instalar uma pluralidade de instintos em que caibam impulsos

104

contraditórios. Daí passamos a reagir conforme o instinto que predomina, assim

estamos prontos para expandir limites que conferem nossa identidade. Imprimir

para nós mesmos um processo de permanente transformação que acompanha o

desenvolvimento imperceptível do tempo, e nesse imperceptível perceber o que

marca, o fio tênue do estilete. Juntar instintos, afetos numa experiência, num

exercício do ato na dimensão de um eu que é verdadeiro.

Caminhemos, agora, pelos livros de Orides e pelos poemas que tratam do

tempo. Levantamos aqui alguns poemas que fazem referência às armadilhas do

tempo a partir dos versos que Orides nos dá como “cacos, segredos” do jogo para

que possamos acessar os lugares como possibilidades várias qualificando-os.

Comentando seu percurso em depoimento para Artes e ofícios, Orides nos

fala um pouco de sua trajetória:

Davi e Rosácea: chega 65, aparece o professor Davi Arrigucci Jr,

aprovando meu poema Elegia, que saíra no Município. Por incentivo dele,

preparo o livro Rosácea (que não foi publicado). E já tenho um plano: ser

professora em São Paulo, fazer Filosofia na USP, publicar meu livro.

Consigo tudo, só que, em 69, publico não Rosácea, mas Transposição

(considerei melhor). Mas Rosácea I merece análise, apesar de morto e

dissecado. É que, na sua estrutura quíntupla – fala, jogo, luta, ser, partilha

– já prenunciava todo o resto, e já continha todos os temas de minha

mitologia pessoal – o ser, o silêncio, a palavra, a poesia, o sangue...

Partilha não se desenvolveu, é claro: a poesia dita social não é um tema

para proletárias autênticas, como eu. Aos burgueses fica bem escrever

sobre os pobres, mas quem é pobre quer é fugir até do tema, e quanto

mais depressa melhor. Mas, o tempo passou e trouxe para São Paulo dois

livros: Rosácea (enjeitado) e Transposição. (Massi, 1991, p. 258)

Seguiremos entre depoimentos e poemas por seus livros, então. Chega a

nós Trasnposição (1966-67, publicado em 1969). Orides nos diz que nesse

momento:

105

vivia a intuição quase inefável de estar só “a um passo”, que

bastava erguer um só véu . Mocidade! E aí entra na minha vida a filosofia

explícita. Entrou em aulas da Escola Normal, entrou pelos livros que

procurei conseguir (Pascal, Gilson, Maritain, e até alguns não tão

ortodoxos), e misturou-se a um interesse pela mística – Huxley, Sta.

Tereza, São João da Cruz. Salada de que resultou meu livro

“Transposição”, muito “abstrato” e “pensado” – no sentido poético de tais

termos. Girava em torno do problema do ser e da lucidez, e abusava do

termo “luz”. Um livro estranho, que só recentemente percebi como estava

na contramão da poesia brasileira, sensual e sentimental. Parecia até meio

cabralino devido a um vezo analítico, mas nunca foi, claro. Era um livro

escrito no interior, tramado pelas tendências já levantadas, e onde já

poesia e filosofia tentavam se irmanar, como possível. (Pucheu, 1998, p.

14)

Impressão da mocidade, erguer o véu. Movimento manual de estender e

deixar o vento soprar no seu véu, esse tecido usado para cobrir, que serve

também para ocultar, envolver ou encobrir algo, e que pode exprimir qualquer

sentimento de padecimento, tristeza ou amargura. Dele, Orides faz um conjunto

de velas que, acompanhando a força do vento, desloca uma embarcação. Ainda

que pela escuridão.

Conforme ela mesma nos mostra, fez para si um percurso que respeitou

sempre sua intuição, afinal “só isso cabe ao poeta: ser fiel à sua voz interior, sem

forçar, sem filosofar explicitamente. Deixar que, naturalmente, filosofia e poesia se

interpenetrem, convivam, colaborem”. Do título de transposição e da intuição

“cabralina” dele, uma força objetiva do texto. Transpor um lugar que a poesia

ocupava entre “geometrias” e “jardins”.

Em outro depoimento, feito para o livro Artes e ofícios, ouvimos a voz de

Orides:

devo me deter mais deixar de piadas. Já atingi o real literário: o que

foi publicado, existe. Eu goste ou não. E eu gosto! Este livro ainda com

sabor ingênuo e bem sanjoanense, com uma integridade e força próprias, é

106

filho do Sol de São João! Não procurem “filosofia” nele, nem orientalismo, é

só o que é, a quase inefável intuição de estar “a um passo de”. De quê? Sei

lá, hoje estou há anos-luz... O sol virou a Estrela Próxima. É um livro claro

e ingênuo, no fundo, em que pese sua linguagem excessivamente abstrata.

Parece “teórico”, mas é integralmente vivido. E foi Transposição que

publiquei, em 69, via Instituto de Espanhol da USP, onde Davi Arrigucci

trabalhava. Mas antes de passar a Helianto, produção sofisticada de uma

aluna de Filosofia da USP – pois uma “professorinha” não tem status e nem

apareceria – quero deixar claro que, em todos os meus livros, o nada

jamais me interessou, e como poderia interessar a quem quer que seja? O

problema sempre foi o ser, a forma, a palavra. O silêncio só entra devido ao

impasse inevitável. E mesmo assim até Alba, porque depois até eu mesma

cansei deste assunto. (Massi, 1991, p. 259)

Neste livro, dos 56 poemas “integralmente vividos”, 8 são os poemas em

que encontramos referência explícita à palavra tempo.

Transposição nos arrasta para o núcleo do silêncio e a partir dele podemos

delinear e visualisar o que a autora nos propõe como um projeto. Entrar no

silêncio seria perceber aos poucos um acordar, essa operação-transposição em

que se transfere um retalho de um local para o outro sem que se interrompa,

totalmente, sua conexão com a sua origem, até que ele esteja firmemente

implantado no novo local. Sua poesia não é visual, sua poesia é corporal, calcada

no corpo da linguagem, na palavra. Essa palavra que é real e nos fere, que se

reinventa, repelindo o cantoflorvida, renasce perpétua contra a automatização,

afinal, enquanto “a sociedade busca estabilidade, o artista quer o infinito”

(Tarkovski, 1998, p. 66).

Podemos perceber a qualidade desse tempo na leitura do poema “tempo”

onde o “o universofluxo repele entre as flores estes cantosfloresvidas”. Contra

toda a automatização, a palavra, por sua vez, pára o tempo porque “a palavra

cantoflorvivência re-nascendo perpétua obriga o fluxo” e num comando ela

“cavalga o fluxo num milagre de vida”, suspende-o no ar, esculpe o tempo.

107

Objetivamente Transposição nos pede para sair do lugar, por isso é dividido em

quatro capítulos: “Base”, “(-)”, “(+)”, “Fim”.

A partir da divisão em capítulos firma um percurso limitado por sua base e

seu fim embora acrescente e subtraia (coisas: o que se faz necessário para

preencher adequadamente a caminhada) a fim de compor objetivamente um

itinerário em que recusa a linearidade da partida, variando os ângulos dos

desdobramentos ou descobertas feitas neste percurso. Pensar que aqui a

escritora parece se referir a um desligamento do que fosse convencional ou

tipicamente exercido na literatura brasileira daquele momento. Quando diz recusar

a geometria parece avançar nos passos de João Cabral, de quem pode ter colhido

os ramos de uma racionalidade para explorar outras gradações. Afinal, a

“transposição contínua” apela para um lado racional “jogando-as lucidamente”

para “reviver” as “coresinstantes”, seguindo as marcas das mudanças

instantâneas.

Em seu poema “Tempo”, Orides nos mostra que é o poder da palavras, do

tempo da palavra que pára o tempo e, quando essas palavras são re-trabalhadas

e re-significadas em seu próprio tempo interno, decifram o “texto pleno” e têm

como similar “o caos domado em plenitude a primavera”.

Em seu “laboratório” do tempo, aquilo que acontece, que se constrói, vai

montando nossas percepções. Na liberdade do puro ato é que são elaboradas

novas leituras do percurso em que sensorialmente, perto do objeto, tateia-se e se

trabalha. Aprendizado telúrico, das lições herdadas dos nossos instintos primitivos,

como se cavando, fôssemos capazes de encontrar uma essência nuclear.

“Tempo”

O fluxo obriga

qualquer flor

a abrigar-se em si mesma

sem memória.

O fluxo onda ser

impede qualquer flor

de reinventar-se

em flor repetida.

O fluxo destrona

qualquer flor

de seu agora vivo

e a torna em sono.

108

O universofluxo

repele

entre as flores estes

cantosfloresvidas.

_ Mas eis que a palavra

cantoflorvivência

re-nascendo perpétua

obriga o fluxo

cavalga o fluxo num milagre

de vida.

(Fontela, 1988, p. 14)

Nessa primeira menção do “Tempo”, é a palavra quem se mostra no tempo.

Ela entra no começo do jogo contra a automatização, a linguagem dá vida à flor

que abriga-se sem memória. A forma que adquire diz do seu “cantoflorvivência”

em constante transformação, distinta da forma do “cantoflorvida” que estivesse

pronto. Sem moldes, o fluxo modifica a flor. Transforma-se, inventa-se, reinventa-

se.

“Acalantos”

I

Perde-se a forma no silêncio

e a cor não é mais palavra

da plasticidade viva:

coisas que eram reais e belas.

O sono

obliteras o real: o olho se cala

na indistinção final dos rumos.

II

Não saber não saber não saber

não saber

ser consumida

por tempo neutro

espaço arrítmico

onde o sangue do ser

não me pertence.

III

Água constelada

entre as mãos incertas

e as estrelas derramadas do

tempo.

IV

Um pequeno lago

sem sabor de forma

um centro repouso

sem nada

sem fundo

lago olho oculto

no sono.

(Fontela, 1988, 42)

109

Acalantos iniciais: o tempo do sono. Nele, há um repouso e uma recusa

pela ação. Fazem parte antes o silêncio e o gesto de calar, reparar na palavra que

não é viva porque existe a certeza de uma “indistinção final dos rumos”. Fazer

calar, aquietar-se, sossegar-se é entregar-se a um tempo neutro em que não há

preocupação com o saber. No sentido da recusa, perceber que também “as

estrelas estão derramadas no tempo”, e existem, insistem, resistem em repouso e

brilho.

“Ode III”

Pouco é viver

Mas pesa

Como todo o ser

Como toda a luz

Como a concentração do tempo.

(Fontela, 1988, p. 47)

O tempo concentrado parece não ter espaço em nossa sociedade. Por isso

mesmo me remeto ao tempo dos loucos, dos que propõem e realizam a qualquer

instante, gestos abruptos. Com eles repentinamente nos paralisamos,

desmanchamos nossos pensamentos, suspendemos a respiração em estado de

surpresa. E entendemos, de alguma forma o peso do viver. Muitas vezes é nesse

sentido de leveza que encontramos algo que pesa. E o fluir do tempo diz de uma

rarefação aparente, a verdade em verso é que não só a vida como o ser, como a

luz e o tempo, de alguma forma enraízam, e por isoo mesmo dificultam, nosso

estado fugidio, de escapar juntamente com o tempo. A concentração e os loucos

promovem aqui um gesto forte e intenso.

“Lavra”

A semente em seu sulco

E o tempo vivo.

A semente em seu sulco

E a vida rítmica fluindo

Para a realização do fruto.

(Fontela, 1988, p. 48)

110

Preparação para a lavoura. No lugar próprio da criação, a semente aparece

em potência assim como o tempo, não mais concentrado mas vivo. Esse é o

espaço da fábrica, a certeza de encontrar qualquer lugar propício para se criar ou

se produzir algo. Essa garantia de fabricação mostra a vida em fluxo contínuo.

Faculdade de criar, de conceber alguma coisa, autoria, elaboração, invenção.

Capacidade de produzir também esses lugares.

“Reflexo”

O lago em círculo

Círculo água

Céu apreendido

Eternidade no tempo.

(Idem, p. 55)

“Advento”

Deste tempo múltiplo

o que nascerá?

Da onda

rítmica

amplitude

da intensidade

amorfa

ritmicamente esfacelada

do múltiplo que um

mais que tempo virá

e que luz haverá além

do tempo?

(Fontela, 1988, p. 66)

Na calma da contemplação, como se estivéssemos à beira de um lago. E

vivêssemos entre lembranças e rememorações, essa forma de viver-reviver o

111

tempo. E assim olhar para o tempo em sua eternidade, daquilo que ele comporta

como carregado de vivências. E o céu, por sua vez amplo e calmo e quieto como

reflexo. Ao mesmo tempo, a circularidade do lago, onde a água concentrada

apreende o céu, reflete o incessante movimento de nascimento e morte. Por sua

vez, se estendemos o fio que gera o círculo formando uma espiral, teremos uma

ressonância d eimagens que se compõem, recompõem e se inauguram. Podemos

então pensar-nos dentro dessa espiral, caminhando e compondo o ritmo do andar

assim: ritmo, amplitude, intensidade e esfacelamento. Tempo lá dentro, entre

nascimento-morte circular e esfacelamentos, múltiplo, descobrindo o que vem pra

adiante e no mesmo círculo espiral, além do ritmo sucessivo do tempo.

“Dispersão”

As aves se dispersaram

Em céus mais infinitos

Criaram distâncias exatas

Linhas puras de ser no tempo

Fugiram em palpitações

De nitidez absoluta

Além da aparência perderam-se

Intactas, na existência.

(Fontela, 1988, p. 67)

As aves instauram com seu vôo não uma fuga como se não pudéssemos

olhar para o inimigo, como se dêssemos as costas para ele e corrêssemos. Antes,

seu tempo ”essencial” como a liberdade do vôo, do que se alcança no espaço na

duração de seu tempo. Ora como astronauta, ora como paraquedistas, as aves

comportam um movimento natural que cria distância exata e viva, portanto, o que

se perde são as “aparências intactas” uma existência em vôo lancinante de vida.

“A estátua jacente”

I

Contido

em seu livre abandono

um dinamismo se alimenta

de sua contenção pura.

Jacente

uma atmosfera cerca

de tal força o silêncio

como se jacente guardasse

O gesto total do segredo.

II

O jacente

112

é mais que um morto: habita

tempos não sabidos

de mortos e de vivos.

O jacente

ressuscitado para o silêncio

possui-se no ser

e nos habita.

III

Vemos somente o repouso

como uma face neutra

além de tudo o que

significa.

(Mas se nos víssemos

no verbo totalizado

- forma que se concentra

além de nós –

(Mas se nos víssemos

na contenção do ser

o repouso seria

expressão nítida.)

Vemos apenas

repouso:

contenção da palavra

no silêncio.

IV

Jaz

sobre o real o gesto

inútil: esta palma.

A palavra vencida

e para sempre inesgotável.

(Fontela, 1988, p. 68)

A mão, o gesto, a palma. O que guarda inútil um olhar em repouso,

repousado, pousado assim: inesgotável, para “tempos não sabidos”. Uma

responsabilidade de transportar-se, transpor-se entre ser, vida e palavra. Jacente

os segredos, essa estátua em plenitude verbal.

Agora vamos acompanhar uma cantiga, embalar-se nela como pede a

epígrafe do livro Helianto (1973), primeiro convite: “Menina, minha menina, faz

favor de entrar na roda, cante um verso bem bonito, diga adeus e vá-se embora”.

No livro Retórica da poesia, encontramos uma relação entre a cantiga de roda e a

neutralização do tempo: “o efeito de neutralização do tempo é mais sensível nos

exemplos triviais como as canções de roda, as “scies”, repetições enfadonhas dos

jogos infantis...” (Grupo π, 1980, p. 157). Para onde nos leva a cantiga de roda?

Vejamos o que nos diz Orides em depoimento para Artes e ofícios da

poesia:

113

Hélios e anto, Sol e flor, terra e sangue, totalidade, círculo. Esta a

idéia mestra de Helianto, que por isto tem como epígrafe uma cantiga de

roda. Reconheço que este é meu livro mais “bizantino”. No bom e mau

sentido. Esbaldei-me, usei e abusei de toda a tecnologia aprendida. Sim, li

os concretos, mas... era tarde. A espinha dorsal já estava pronta e ereta,

outras influências só poderiam me atingir de raspão. Li Mallarmé,

Baudelaire, Góngora. E bem pouco penetrou, o que eu já era, já era. É por

isso que não sou nem nunca pude ser uma renovadora e, no máximo,

adquiri maestria e forma própria de lidar com aquilo que recebi de meu

meio social. Helianto comprova bem tanto a mestria quanto a limitação,

mas creio que, na época, sua preocupação com a meta-poesia (a forma, a

palavra) não estava tão defasada assim. Mas, apesar do patrocínio de

Antonio Candido, o livro foi totalmente ignorado. Azar... Agora mudo de

novo, de poeta lida só na USP para poeta conhecida pelo menos em

alguns outros estados. Isto levou tempo a valer. Dez anos, de Helianto a

Alba. (Massi, 1991, p. 259-260)

Para continuar seguindo o caminho de Orides observamos o Helianto e

giramos, seguindo uma seta assim como o girassol acompanha o sol.

Neste momento, faz-se necessário penetrar o tempo estabelecendo uma

tela mítica em que o conjunto formado pelo entrelaçamento de fios, trama uma

geometria em que os fios são tempos de um mesmo ponto interno. Aqui, o tempo,

este lago de amarelo turvo, descura, transfixa, transmite, subverte, desmente e

mitifica no poema que nos deixou como “herança”. Coloca em jogo uma escultura

em metal, quebrando o tempo, trabalhando a essência do ser através de uma

espera silenciosa, pois o olhar vivo se faz metal adensando, metal que é

presençatempo, exercendo e aplicando o sentido da visão, esta observação e mira

que deflagra um raio, ele o puro tempo.

Aqui Orides inicia um ciclo penetrável pelo tempo como agudo ritmo, este

que numa sucessão de movimentos ou situações que, embora não se processem

com regularidade absoluta, constituem um conjunto fluente e homogêneo no

tempo. Reinventar esses ritmos é a certeza de inaugurar automáticas flores em

114

que a vida se cumpre autônoma, nesse movimento que se realiza sem intervenção

de forças ou agentes externos. Esculpir, trabalhar a essência, permite repetir o

movimento muitas vezes para que dele se extraia o sumo dessa essência,

quando, então, chama atenção para o sentido tátil uma vez que a partir de suas

articulações os braços vão moendo o tempo e sensitivamente a loucura vai

destroçando-o.

Nesse momento, o tempo infância controla o que para nós tem

características de inumano. Aproximar-se do humano nos responsabilizaria por

estar trabalhando o corpo, naquele acordar do livro anterior, através do trabalho

com a linguagem. Na rapidez, na velocidade das cidades atuais, parece não haver

lugar e tempo ou espaço para suspiros e quando ela interrompe a respiração

suspira o tempo. Ele assusta ou pára, interrompendo e compondo a caminhada.

Novamente nos fala da luz talvez seja importante abordar aspectos ligados à

visão. Há uma pequena suspensão do tempo que a luz diviniza, faz crescer e

viver. Semelhante a uma reza, uma invocação realiza um tempo sacro ou perfeito.

Orides parece ter respostas para o tempo, algo como falar dele de forma diferente.

Uma solução pessoal que envolve ludismo até o fim, brincar, descobrindo um

levantamento da potência que irradia pelo significado de cada palavra. Consegue

com isso penetrar num íntimo tempo e fazer com que ele ganhe um horizonte, o

do sonho.

Gostaríamos que sonho fosse pensado aqui como naquela definição

indígena a partir do depoimento do escritor Kaká Werá Jekupé, em que, a partir

dos sonhos, as crianças são capazes de construir e expor suas narrativas nos

rituais matinais da tribo igualando-se aos mais velhos, seus ascendentes

genealógicos, portadores de uma sabedoria terrena devido ao seu tempo de

experiência. Essas narrativas entram no imaginário da tribo como se fossem

trabalhos terapêuticos, uma vez que, a partir do contar, toda a tribo tenta alcançar

uma verdade suprema calcada na experiência de vida de cada um e regida

também pelo que o inconsciente constrói e como ele participa nesse viver.

No poema, o importante é pensar no adjetivo “profundo” que faz grande

diferença

115

“Repouso”

Basta o profundo ser

em que a rosa descansa.

Inúteis o perfume

e a cor: apenas signos

de uma presença oculta

inútil mesmo a forma

claro espelho da essência

Inútil mesmo a rosa.

basta o ser. O escuro

mistério vivo, poço

em que a lâmpada é pura

e humilde o esplendor

das mais cálidas flores.

Na rosa basta o ser:

nele tudo descansa.

(Fontela, 1998, p. 127)

Vejamos nesse “girassol”, sua tela mítica. Da “rosácea”, essa rosa primária,

que é abstrato em vidro, vitral do ser, frágil, a esfacelar-se. Mas em círculo,

somando pontos internos que levam ao infinito. Ressoam “impressões” neste

infinito, na imagem do “lago de amarelo turvo: tempo”. Este mesmo tempo deixa

sua própria “herança”, erigindo em “minério” sua presençatempo.

O que o tempo descura

e que transfixa

o que o tempo transmite

e subverte

116

o que o tempo desmente

e mitifica.

(Fontela, 1988, p. 81)

“Minério”

O metal e seu pálido

horizonte

o seu fulgor apenas

superfície

- sua presençatempo

erigida em silente

espaço neutro.

O metal tempo opondo-se

Ao olhar vivo: o metal adensando

E o horizonte em fronteira

Inviolada.

O metal presença

Íntegra

Opondo às águas seu frio

é incorruptível núcleo.

(Fontela, 1988, p. 82)

Água, que pode ser a parte invisível na fonte, tem alguma coisa de centro.

Podemos recuperar a leitura do poema “rebeca” do livro Transposição “a moça de

cântaro e seu / gesto essencial: dar água”. A construção desse poema tem uma

forma mínima reduzida a 2 versos somente, mas ele é essencialmente resolvido

por 4 palavras: gesto, essencial, dar, água. Como se seus gestos fossem

primordiais para compor uma narrativa, a contação de alguma história, que é

substituída pelo silêncio essencial para uma concentração geradora de

movimentos contínuos visualizados através do verbo dar. Por sua vez, o elemento

dado é símbolo maior da doação de uma oportunidade de experiência e não algo

117

pronto, uma vez que a água é fluida, movimento contínuo, é “caminho vital” mas

“de si mesma”. Vejamos o poema “Fluxo”, de Transposição:

A gênese das águas

é secreta e infinita

entre as pedras se esconde

de toda contemplação.

A gênese das águas

é em si mesma.

...........................................

O movimento das águas

é caminho inconsciente

mutação contínua

nunca terminada.

É caminho vital

de si mesma.

...........................................

O fim das águas

é dissolução e espelho

morte de todo o ritmo

em contemplação viva.

Consciencialização

de si mesma.

(Fontela, 1988, p. 62)

“Para fixar”

Para fixar

A flor

Não nos serve o espaço

De pauta

Ela des

Liza pre

Cede-nos

No horizonte duração

Aberta

Ela estrela nada

A fixa

Mas elaflor nos fixa

Em seu

Vôo

Flor

Que nos vive no puro

Tempo.

(Fontela, 1988, p. 100)

118

“Ciclo”

Sob o Sol sob o tempo

(em seu próprio agudo

ritmo)

dispersam-se intercruzam-se

- em ciclo implacável –

pássaros.

Sob o Sol sob o tempo

reinventa-se

(esplendor cruel) o

ritmo.

Sob o Sol sob o tempo

automáticas flores

inauguram-se.

Sob o Sol sob o tempo

a vida se cumpre

autônoma.

(Fontela, 1988, p. 103)

“Templo”

a severa arquitetura

serenamente prende-nos.

As linhas vivas. O s refolhos

barrocos

(o céu íntimo)

a bela ordem aquietando-nos.

Ó interior matriz

(humano e sacro)

em que tudo é nascente

e brilha

como mistério entre nichos

119

de sombra

ó tempo

divinizado em luz

que cresce e vive.

(Fontela, 1988, p. 118)

“O gato”

Na casa

inefavelmene

circulam olhos

de ouro

vibre (em ouro) a

volúpia

o escuro tenso

vulto do deus sutil

indecifrado

na casa

o imperecível mito

se aconchega

quente (macio) ei-lo

em nossos braços:

visitante d eum tempo sacro (ou

de um não tempo).

(Fontela, 1988, 121)

Orides parece ter respostas para o tempo, algo como falar dele de forma

diferente. Uma solução pessoal que envolve ludismo até o fim, brincar,

descobrindo possibilidades para ele. Em Helianto, os 15 poemas (de um total de

55 poemas) como cacos chamam-nos a uma segunda leitura para brincarmos

novamente com cada um deles, para resplandecerem novos significados ao invés

de nos encaminharmos por uma narrativa. Somente pela presença da palavra

tempo dá para fazer um levantamento da potência que irradia pelo significado de

cada palavra estabelecida dentro do poema. Significados estes que antes

começam nos títulos dos livros até chegar nos títulos dos poemas. Os tempos

interfecundam-se plenos pois a escritora nos fala deles confirmando o estado

plural que anunciam, para estabelecermos diálogos entre eles.

“Sonho”

O ar irreal que cai

compõe um nítido campo

120

onde os ritmos os tempos

interfecundam-se plenos.

Imagens – ó cores puras! – sem peso

amplitude intangível claros pomos

peixes sutis na água viva peixes

deslizando – secretos – no silêncio.

O ar irreal que cai

e se constela

- o absoluto no horizonte

do tempo.

(Fontela, 1988, p.126)

“Ode”

E enquanto mordemos

frutos vivos

declina a tarde.

E enquanto fixamos

claros signos

flui o silêncio.

E enquanto sofremos

a hora intensa

lentamente o tempo

perde-nos.

(Fontela, 1988, p. 130)

Vejamos dois poemas desse mesmo livro, em que a questão do tempo está

implícita, para dialogarmos:

“Caleidoscópio”

Acontece: um

giro

e a forma brilha.

Espelhos do instante

filtram

a ordem pura cores forma

brilho

(e sem nenhuma

palavra).

Acontece: outro

giro

outra forma e o mesmo

brilho.

Ó espelho dos instantes

121

fragmentos

estruturados em reflexos

fúlgidos!

Acontece: novo

giro...

O caleidoscópio quebra-se.

(Fontela, 1988, p. 89)

“Paisagem em círculo”

Os plátanos as pombas estas fontes

as frondes, longe; e, de novo, os

plátanos.

As pombas estes plátanos as frondes

as fontes, longe; e, de novo, as

pombas.

As fontes estas frondes estas pombas

plátanos, longe; e, de novo, as

fontes.

Estas frondes os plátanos as fontes

as pombas, longe; e, de novo, as

frondes.

(Fontela, 1988, p. 133)

“Termo”

Despreende-se a seta alvo alcançado

Apreende-se o tempo flor colhida

Não mais além só isto

- é

tudo –

concentrado fruto e fonte.

Flor alcançada vida exata

É

TUDO

122

Elimina-se a meta jogo findo.

(Fontela, 1988, p. 136)

Em Alba (1983) falamos da aurora, e do pano branco, daquilo que ocorre ao

romper da aurora. Se nos livros anteriores acordamos nossos sentidos e

penetramos o tempo, agora é olhar quem comanda o corpo da linguagem para

continuar tecendo tempos, pensando a essência e extraindo o verbo.

Eu havia conhecido o professor Antonio Candido lá pra 70 e 71,

após Transposição, de que ele gostou. Ele leu Helianto e arranjou a

publicação, leu também Alba, que acabou prefaciando. Tudo fácil? Que

nada! Difícil mesmo era quem, naquele tempo, publicasse poesia. Mas, em

83, a Roswitha Kempf assumiu e o livro emplacou, foi premiado e vendeu.

Feliz? Pois sim... Pra mim, era um fim de linha, o ápice da espiral poética

iniciada creio que com Rosácea I, algo de perfeito e, por isso mesmo,

ultrapassado e morto. Podiam louvar ou execrar, mas meu problema era –

como mudar?

O sucesso anterior facilitou a publicação do que seria o próximo

livro: Rosácea (o que existe). Aliás, antes que esqueça, poemas de

Rosácea I (o enjeitado) estão disseminados por todos os livros posteriores,

o mais antigo é “Composição”, em Helianto, que é dos meus 19 anos. É

que a cronologia não é meu forte: agrupo poemas segundo quero, para

compor a totalidade de um livro que tenha estrutura interna, pés e cabeça,

e nesse processo a cronologia é que entra bem.

Voltando a Alba, neste momento eu consegui mesmo um livro, algo

bastante íntegro, e, por tudo isso... terminal. Voltei “a um passo de”... mas

não saí de lá. Única novidade que assinalo em Alba é o início da influência

do Zen. Só um “cheiro”, algo sutil, perceptível em certos poemas. Não vou

dizer quais. Leiam, pô! (Massi, 1991, p. 260)

Existe em seus poemas essa busca por uma essência, um certo romper

com a aparência, no que ela inclui mesmo a palavra. Mas o poema não se

sustenta somente no jogo essência/aparência. Orides ultrapassa esse jogo, há

123

nela mais nuances: imagens do que não é visto porque está em um local escuro e

desprezado pelo olhar. Inaugura suas imagens com violência capaz de nos trazer

arrebatamentos suficientes para vigiarmos, na aurora, um ato infindo, de duração,

extensão e intensidade extremas. Neste livro nos está reservada a senhora sutil

paciência, nesses tempos acelerados, mostrada com suficiente astúcia, hábil em

enganar com finura, malícia e sagacidade. Assim, em “Peixe”:

Gira

Forma oblíqua no espelho

Cor

Capturada

Em fria

Plenitude.

Gira

Na transparência a

Forma

Apenas forma:

Sem fuga.

Apenas forma: ciclo

Ritmo submerso

Sem asas para o tempo.

(Fontela, 1988, p. 159)

Em sua hora, dos peixes e dos náufragos, uma impossibilidade de vôo: sem

asas para o tempo construindo mosaicos sem tempo. Na construção lúdica de

Orides, a construção da teia é o fazer que instaura a possibilidade de estar atento

a, portanto o destruir e o rejeitar têm importância no mecanismo de não se

acomodar. Peixe preparado em seu território ganha um mar interior, estruturado

de olhares, uma densidade de vida. Em “odes” reaparece o arco e o sonho que a

escritora diz retesar e, a partir desse mecanismo, esperar como um verdadeiro

arqueiro. Existe um centro que interessa para a imagem da teia, essa construção

circular que se prende sempre em algum lugar, onde é necessário estar atento ao

movimento de construir a teia e voltar ao seu centro.

“Poemetos (II)”

Centro

o que é tão puro que enlouquece as flores

o que é tão puro que magnetiza o deserto

124

o que é tão puro que nem simplesmente existe.

(Fontela, 1988, p. 159)

No magnetismo do centro é que encontramos o cósmico, num simples

“murmúrio” para não percebermos “vestígio algum de tempo”.

“Murmúrio”

(...)

pulsação

viva

centrando

o

tempo.

(Fontela, 1988, p. 168)

“Alba (II)”

A estrela d‘alva – puríssimo

centro da aurora – sidera-me

penetra-me até à vertigem.

Fita-nos o tempo – no puro cristal

do tempo

o tempo cumpre-se (constrói-se a

evanescente forma ser e ritmo) água

abissal

sem gosto

nem vestítigio algum

de tempo.

(Fontela, 1988, p. 170)

Faremos um levantamento dos poemas que tratam explicitamenteo do

tempo, pois neste tecido “trama”(do), “tecem-se tempos para um só ato infindo”.

Neste sentido, na leitura de “Alba”, “abrir os olhos, abri-los como da primeira vez –

e a primeira vez é sempre”, a fim de embriagar-se de água. E embriagado

perceber que o tempo escapa, fugidio como em “caça”.

“Bodas de Caná”

I

Da pura água

criar o vinho

do puro tempo extrair

o verbo.

125

II

Milagre (anti-

milagre)

era tornar em água

o vinho

vivo.

III

A água embriaga

mas para além do humano: no

amor

simples.

IV

Para os anjos a

água. Para nós

o vinho encarnado

sempre.

(Fontela, 1988, p. 151)

“Caça”

Visar o centro

ou, pelo menos,

o melhor lado

(o mais frágil).

Astúcia e tempo

(paciência armada)

e – na surpresa

do golpe rápido –

colher a coisa

que, apreendida,

rende-se?

Não: desnatura-se

ao nosso ato...

ou foge.

(Fontela, 1988, 153)

“Poemetos (II)”

Brejo

Água parada água parada água pa

rando

Sob a cintilação dos lírios.

O azul

O exílio

Fonte

126

As águas levando

as palmas

as águas lavando

os olhos

as águas livrando

tudo.

A estrela próxima

Próxima: mas ainda

Estrela

- muito mais estrela

que próxima.

Sal

Ritmo

Flama

Ciclo

- rio absoluto

do sangue.

Reflexos

No olho – espelho –

Na água – espelho –

No tempo – espelho –

espelho nos

espelho nos

espelhos

- infinito irreal – o sonho

flui.

(Fontela, 1988, p. 166)

“Ciclo (II)”

127

Os pássaros

retornam

sempre e

sempre.

O tempo cumpre-se. Constrói-se

a evanescente forma

ser

e

ritmo.

Os pássaros

retornam. Sempre os

pássaros.

A infância volta devagarinho.

(Fontela, 1988, p. 175)

“Letes”

Ó rio

subterrâneo ao ritmo

do sangue

Ó água

frígida clara

que elimina toda a

sede

Ó água abissal

sem gosto

nem vestígio algum

de tempo

Ó fonte

sem mais música

128

audível: água

densa

que nos limpa de todas

as palavras.

(Fontela, 1988, 184)

Tecido de tempo em ritmo submerso circular, respeitando o ciclo. Atingir

assim uma plenitude, sendo este “ato infindo”. Para esse ato, armar a paciência

com astúcia e tempo. Assim como o “peixe pescado” que engole o ar. A “hora dos

peixes” é a “hora dos náufragos”, sem asas para o tempo, os mosaicos sem

tempo. Estar atento a, capacidade de não acomodar-se.

Parece que Alba contém algumas soluções que já foram mencionadas

anteriormente. Em “odes” ela apresenta o mar interior, estruturado de olhares,

uma densidade da vida – é onde reaparece o arco e o sonho que ela diz retesar e,

a partir desse mecanismo, esperar.

Em “poemetos” tem um centro que me interessa para teia, essa construção

circular que se prende sempre em algum lugar, onde é necessário estar atento a,

construir a teia e voltar ao centro. Quando a aranha volta ao centro? Quando é

importante estar lá? Fundamental é saber que o centro é tão puro que enlouqece

as flores/ o que é tão puro que magnetiza o deserto/oque é tão puro que nem

simplesmente existe. Tempo como espelho, reflexo do outro de si.

As soluções só serão válidas se pensarmos como em “murmúrio” que fala

em pulsações – perceber de que modo elas se fazem presentes, qual o sentido

para pulsações, como essa pulsação que sendo intensidade está “viva centrando

o tempo”.

Finalmente, aparece a estrela d’alva no centro da aurora, quando “fita-nos o

tempo”. E pela manhã que se vai novamente, “constrói –se a evanescente forma

ser e ritmo, uma “água abissal/sem gosto/nem vestígio algum/de tempo”. Tudo

isso porque se olharmos pelo nosso “Espelho (II)”, veremos que “Fita-nos o tempo.

Viva a infância nos rememora.” (Fontela, 1988, p. 173)

129

Em Rosácea (1986), uma configuração de imagens contendo uma

magnitude. Em seguida, dois depoimentos de Orides sobre a composição deste

livro:

O sucesso de Alba talvez tenha prejudicado um pouco a estrutura

de Rosácea, pois organizei o livro depressa demais, e o material era bem

heterogêneo. Coisas novas, fundo de gaveta e restos de memória. Juntei

tudo. Aproveitei o título do livro abortado e a estrutura quíntupla – devo ao

Davi a idéia de como organizar o livro - mas, mesmo assim, é meio

dissonante. Justifiquei-me usando como epígrafe um koan de Heráclito, isto

é, se o universo é bagunça organizada, um “caosmos”, meu livro também

poderia ser a mesma coisa, tranqüilamente...

E foi em Rosácea que tentei renovar-me, abandonar o sublime (de

que, como boa proletária, desconfio paca), assumir o pessoal e o concreto,

isto é, condensar as abstrações e apresentá-las como imagens, se possível

exemplares – algo como Brecht. Em parte consegui, em parte não. Enfim,

estou a caminho, numa nova virada, a mais problemática de todas.

Agora quero assinalar que Rosácea inclui um livro Zen – isto é, Zen

a meu modo – e sonetos (o “Bucólicas) que não estavam nem em Rosácea

I, pura arqueologia. E poemas que ficaram só na memória... Existem ainda

os poemas perdidos de Rosácea I? Vale a pena? Creio que não. Resgatei

o que sobreviveu e pronto.

(...)Trevo (1960-1988): um trevo de quatro folhas. Para dar sorte. E

eis tudo até agora. Mas nossa época é terrível, somos “poetas em tempo

de desgraça”, como diz Heidegger. Nossa cultura está numa crise que

atinge suas próprias bases – e a isto chamamos pós-modernismo – pois

nem nome próprio tem o que morreu e/ou ainda vai nascer. Onde estou?

Onde se localiza minha obra de mais de vinte anos no quadro da poesia

brasileira? Não sei. Que os amigos, os críticos, os outros poetas me

ajudem a responder a esta questão. Eu deixo aqui este depoimento

pessoal de uma autora senão excepcional, razoável e consciente. Em

Rosácea I eu tinha posto uma epígrafe do Eclesiastes: “aquilo que

acontece é/ longíquo/ profundo, profundo:/ quem o poderá sondar?”.

Poderemos? Bem a erva humilde e até vulgar da poesia não foi arrancada

130

por ninguém, foi bem cultivada e deu no que deu: este Trevo. E sendo tudo

por agora, prefiro recorrer de novo ao Eclesiastes: “Vaidade das vaidades,

tudo é vaidade”. Ou se quiserem, tudo é poesia, né? (Massi, 1991, p. 260-

261)

Um caos armado ao acaso, iluminado por uma tênue luz clandestina.

Somente os que não sonham vieram brincar. Lugar de passagem: “semeio sóis e

sons na terra viva, afundo os pés no chão: semeio e passo. Não me importa a

colheita”. Tão simples e sutil passagem como amor, água: breve, sutil,

instantâneo, esperando uma “incendiada doçura”. A infância instaura-se

distribuída em memória ao longo dos livros.

“Estrela”

A tranqüila explosão

fria

fora do tempo e

nos olhos

esplendia

solitária

no ápice do amor

tremeluzia.

(Fontela, 1988, p. 193)

“Do eclesiastes”

Há um tempo para

desarmar os presságios

Há um tempo para

desamar os frutos

Há um tempo para

desviver

o tempo.

(Fontela,1988, p. 195)

131

“Lembretes”

É importante acordar

a tempo

É importante penetrar

o tempo

É importante vigiar

o desabrochar do destino.

(Fontela, 1988, p. 196)

“Contaminação”

A madrugada futura

Já existindo na lembrança

A memória in

chando

O tempo vivo pin

gando

dos olhos.

(Tudo contaminado de tudo.)

(Fontela, 1988, p. 199)

Dimensão de impossibilidade que a estrela ganha em “homenagem II” a

Mário Quintana – “a estrela próxima”: a poesia é/impossível // o amor é mais / que

impossível / avida, a morte loucamente / impossíveis. // só a estrela, só a / estrela /

existe // - só existe o impossível.

“Duas odes(antigas)”

Deserta é a praia, e grande.

estéreis os coqueiros, inúteis

e, na areia, demarcação de água

e terra, jaz

vazia a concha: nem mesmo

a espera a fecunda.

A tarde em mim se repete

num tempo irreal, decadência

obstinada, onde o

silêncio

nunca é completamente

treva

132

A tarde em mim se repete

configurando uma distância

irrealizada, evanescência

onde nunca anoitece.

A tarde em mim se

repete

e nunca surgem as estrelas.

(Fontela, 1988, p. 238)

“A paz”

Não reconstrói: elide

a trama e o verbo.

A paz

não organiza: explode

o núcleo-tempo.

A paz

não é letal: vivifica.

A paz

Não apazigua: fere.

A paz

Não acalma: renova

O ser e o sangue.

(Fontela, 1988, p. 241)

(sem título)

Lentamente ferido

De consentido sono

O pensamento é cúmplice

De estrangeiro universo.

Visões sem tempo o cercam

E as deformadas lâmpadas

Sensibilizam mundos

A uma luz mais antiga

Um onírico raio

De desjo incriado

Que o penetra de ser

Que lentamente o fere

De um sono essencial

Entre o mistério.

(20-4-65)

(Fontela, 1988, p. 248)

(sem título)

Inútil a ternura pelo leve

Momento a desprender-se do infinito:

Frágil, a construção do tempo é morte

Do que se atualiza. Mais fecundo

133

É secundar o pássaro buscando

O momento possível, vôo pleno.

Mais fecundo é voar. Mas a ternura

(este pássaro morto abandonado

como forma perdida de nós mesmos)

nos alimenta em sua sombra. Torna-nos

em sombras sem alento. E sofremos

como pássaros frágeis: desprendidos

do vôo pleno nos cristalizamos

realizando a morte em que vivemos.

(4-4-67)

(Fontela, 1988, 250)

(sem título)

O branco é campo para o desespero

É quando sem infância persistimos

E nos fita de face a luz sem pausa

Da memória suspensa (tempo em branco).

O branco é branco apenas. Sem refúgio

Insistimos na luz. A luz constrói

A flor em nós (sua rosácea branca).

O branco é campo para a crueldade

Onde nos encontramos: tenso espaço

Na luz vivente (branco apenas, branco).

(17-5-68)

(Fontela, 1988, 251)

Motor do simples amor. Fala para mim das coisas que permanecem

serenas e tranqüilas não como idéia de armazenamento, porque não existe nem

134

perdão nesse jogo, uma vez que não tem desculpa até mesmo porque não há

culpa de nada. Fala como em carta, em retalho de “gatha”, seu pseudônimo

budista: “o vento, a chuva, o Sol, o frio tudo vai e vem, tudo vem e vai. Tenho a

ilusão de estar sonhando. Tenho o manto de Buda, que é nenhum.” Tudo que é

adorável provoca encanto e espanto. Sempre atenta, serena e tranqüila para

receber água, caminho, amor, luz fria e lágrimas. Tomar, com água de chuva, um

banho para lavar todos os vestígios de ontem. Como em carta, estes trechos dos

poemas de Orides, um convite para a “ceia” e a “partilha”. Acenos...

“Ceia”

A mesa, todos

interligados

pela realidade do alimento

pelo universo único

do ser

a mesa, todos

coexistem no júbilo

comungando a oferta pura das

coisas.

(Fontela, 1988, 242)

“Partilha”

Partilharemos somente

O que em nós se

continua:

a singeleza

a luta

a esperança.

Partilharemos somente

esta maior intensidade:

absoluta palavra

que nos pertence integralmente.

Partilharemos somente

o pão unificado

e a água sem face.

(Fontela, 1988, 242)

A sua Teia composta em 1996, nos provoca a armar nossas armadilhas.

Nesse mundo dos detalhes, nos armar ou ficarmos prontos para as armadilhas

que a vida nos arma. Inicialmente, perceber o silencioso trabalho da aranha.

“Metais”

Os metais nascem da paciência

surda da terra fundem-se

em

silêncio.

Os metais crescem

Ferozmente

(cristais vibrantes se

135

acasalam).

Os metais se

Entretecem

Fundamente

- metais cantam no

âmago

do tempo.

“sem título”

O espelho dissolve

O tempo

O espelho aprofunda

o enigma

o espelho devora

a face.

(Fontela, 1996, p. 61)

Afirma pulsão, impulsão, vida trabalhada, elaborada a partir do desfazer

calmo, conduzindo aos abismos profundos. “Sempre é melhor desfazer / que

tecer”, diz a escritora em ‘Axiomas’. Esses abismos estão para além da

compreensão prática e utilitarista da vida imediata. Esta compreensão está no

próprio ser, na sua hybris. Um contraponto à dolorosa hybris seria a idéia do

kairós, a idéia da oportunidade, do tempo oportuno, da ocasião como vemos no

poema abaixo:

“Kairós”

Quando pousa

o pássaro

quando acorda

o espelho

quando amadurece

a hora.

(Fontela, 1996, p. 31)

Esse homem contemporâneo, ao mesmo tempo que se fecha, menos se

conhece, pois a alienação de seu modo de viver, tira dele a reflexão, o simples.

Então Orides alerta em silêncio para o trabalho de si, ela não apela, ela desperta,

136

abre oportunidades a partir da dor, da vida. Cada palavra ecoa por sua poesia, ela

não cabe em si, ela transborda sentido e significado. A vida é assim compassada

na tensão.

A imagem dessa tensão em Orides é o próprio sangue, a cor que permite

pensar o olhar, o próprio acontecer humano, como o estender uma “Toalha”:

Pano branco.

Integralmente branco.

(Material mas

suspenso

na brancura).

Branco

Que as formas nascem... ah,

tão branco

véu

para receber o sangue

de todas

as coisas.

(Fontela, 1996, 81)

“Porta”

O estranho

bate:

na ampliteude interior

não há resposta.

É o estranho (o irmão) que bate

mas nunca haverá

resposta:

muito além é o país

do acolhimento.

(Fontela, 1996, 82)

O estranhamento é sempre, e constante sua volta. Ressoa por dentro em

busca de uma resposta que está sempre por se fazer. Na espera, voluntária do

irmão, não há busca. Vive a certeza de um acolhimento que está por se fazer à

distância.

137

“Cantiga”

Ouvir um

pássaro

é agora ou

nunca

é infância ou

puro

momento?

Ouvir um

pássaro

é sempre

(dói fundo no

pensamento).

(Fontela, 1996, 83)

Daquele universo que buscamos em infância para recortar um estado

adulto, o do jogo, o do ludismo, retorna em cantiga. Se cantiga de pássaro, a

vibração e a ressonância desse canto é sempre a certeza da dor no pensamento.

“Pesca”

I

A beira do rio o silêncio

dos peixes

a beira rio nem

a espera.

II

A água não cessa

e o rio

nunca passa.

III

A beira rio

a lucidez

a

pedra

e a pedra é

138

pedra: não germina.

Basta-se.

(Fontela, 1996, 84)

Voltando momentaneamente à sua aula, salta ao ar sua “pesca”. Dessa

influência paterna, a espera, o silêncio, a água. Mas aqui, em diálogo com

“Educação pela pedra”, aquela outra, no sertão, que “entranha a alma”, traz em

calma e companhia, à beira rio, nem água, nem rio, nem peixe, nem espera, só a

lucidez e a espera. Não precisa germinar, “basta-se” em seu tempo num

aprendizado de si mesmo. Do latim vulgar: “levar, suportar, bastar, ser suficiente”;

do grego: “levantar e levar um fardo”. (Houaiss, 2001, 412)

Como a ep[igrafe do lvro Teia nos diz “A lucidez alucina”. Se, segundo

Spinoza “Todas as grandes coisas são difíceis e raras”, podemos sugerir que o

trabalho de Orides Fontela oscila entre a descoberta da luz e a alucinação. Peças

de um mesmo brinquedo, sugerem atrito e um incômodo, causando um certo

movimento inesperado em busca de uma humanidade possível. Mesmo que essa

possibilidade desemboque no universo da loucura. Ou ainda, por desembocar no

universo da loucura é que essa humanidade se faz possível.

É assim que juntos, os temas literários e filosóficos vão apontar para uma

consciência crítica da loucura, até entender que o discurso da loucura pertence à

fundação de nossa linguagem e não à sua ruptura. Acompanhando um pouco o

desenvolvimento dos trabalhos feitos em manicômios, observamos que o estado

de morte imposto ao indivíduo ao provocar um cerceamento, deixa mais em

evidência ainda a potência de vida que os indivíduos possuem.

Tomemos como exemplo outra escritora...

Apresentando o texto da poeta Stela do Patrocínio que viveu 30 anos em

manicômios, tendo iniciado sua carreira psiquiátrica em 1962, no Centro

Psiquiátrico Pedro II (no Engenho de Dentro – RJ) e sido transferida em 1966 para

a colônia Juliano Moreira, Ricardo Aquino (então diretor do Museu Bispo do

Rosário) nos informa claramente que

139

Stela do Patrocínio foi uma sobrevivente do processo de

mortificação característico das estruturas psiquiátricas arcaicas e

tradicionais, os asilos. Nestes, há o apagamento das individualidades, da

subjetividade, do desejo e da singularidade. As pessoas ficam reduzidas a

um amontoado, em formas e sem rosto. O uniforme é apenas símbolo da

real uniformização da impessoalidade. O tempo é o tempo da morte.

(Patrocínio, 2001, p. 14)

É trabalhando nesse limiar, nessa impossibilidade de viver, que de alguma

forma as pessoas vivem. A trajetória de Stela e de Orides guardam semelhanças,

ambas poetas e filósofas viveram sob a marca das décadas de 60, 70 e 80 vindo a

falecer em 90.

Stela do Patrocínio morreu nas dependências da Colônia em 1992.

Durante essas três décadas, Stela viveu sob a assistência psiquiátrica que

ocorria tanto em manicômios como em asilos e hospitais psiquiátricos antes de

assistir à passagem da antiga Colônia por “transformações no sentido da

humanização e do resgate da cidadania dos usuários dos serviços de saúde

mental. Foram abolidos os castigos, a lobotomia, as celas fortes, o eletrochoque,

etc. Hoje os portões estão abertos, e a vida passou a ser reinventada”. (Patrocínio,

2001, p. 15). Esse movimento teve o nome de Reforma Psiquiátrica.

Na busca da compreensão do equilíbrio entre loucura e razão, procuramos

desenvolver um pensamento sustentado pela mudança, na arte. Sobre essa

separação nos diz Viviane Mosé na apresentação do livro:

O que a razão quer é, desde seu nascimento platônico, rejeitar uma

parte da vida, a que delira, a que morre. O que a razão quer é produzir um

mundo de identidades e verdades, um mundo previsível e claro. Em

conseqüência, tudo que é escuro, imprevisto, móvel e múltiplo, é excluído,

transposto para o lugar do erro, da ilusão, do mal. É neste espaço que se

insere a loucura. E muitas vezes a arte. (Patrocínio, 2001, p. 22)

140

Manter um discurso na mudança é acostumar-se a percorrer sempre uma

“terceira margem”. Citando Nietszche, Viviane Mosé ensina que toda significação

repousa sobre um fluxo contínuo, impossível de ser dito.

É necessário aqui, admirar o homem em virtude de ser um gênio

poderoso da arquitetura que consegue erigir, sobre fundamentos moventes

e de uma certa forma sobre a água corrente, uma cúpula intelectual

infinitamente complicada: sem dúvida, para encontrar apoio sobre tais

fundamentos, tem que ser uma construção como que de fios de aranha,

tão tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, tão firme a ponto de não

ser despedaçada pelo sopro de cada vento. (Patrocínio, 2001, p. 42)

Sobre as junções dos fragmentos em busca de uma lucidez escreveu

Alexandre Costa:

(...) toda sucessão de imagens em Orides carrega fragmentações

que são como fissuras da linguagem. Neste sentido, apenas a razão pode

reorganizar, interferir, num processo que tem como motriz o mundo

espelhado em fragmentos, a realidade vista através da ausência instaurada

em imagem, em palavra. Como diz Marco Lucchesi, “entre o conceito e sua

sombra emerge o vazio sobre o qual se sustenta a imagem, de quanto não

se pode arrostar: a plenitude na falta”. O silêncio que surge daí se

completa com o sentido de identidade que a ausência da face oferece, mas

isto não quer dizer que haja uma anulação de quem escreve, pois a poesia

que tenta entender a realidade acaba, de certa forma, sempre sendo “alta

agonia” e “difícil prova” que devemos tentar para realizar nossa

humanidade”. A lucidez, ao mesmo tempo que cria um sentido de posse

sobre o que não pode ser visto, inaugura um gesto em que a descoberta

do mundo abre-se na impossibilidade da compreensão total, em que o

conceito de beleza, antes de se sublimar, é o atrito do próprio sujeito com

sua ausência. (Costa, 1991, p. 20)

141

Silêncio e ausência. Explicada anteriormente a nau da loucura, evidenciada

por Michel Foucault, vejamos o que nos diz Peter Pal Pélbart em seu artigo “A nau

do tempo rei”, sobre o tempo da loucura. Para ele, nosso mundo, saído de

destroços anteiores, não possui nenhuma garantia pois está exposto ao risco do

gracasso e do retorno ao nada. Poderia, desde o início, não ter vingado, mas teve,

no momento da tentativa, uma torcida desejante.

Considerando o Tempo Rei, explicação para Deus como súdito do tempo,

para a construção efetiva do mundo concorre um componente primordial: a

torcida, o desejo. Neste texto, Deus é atípico pois deseja. Deus atípico: bricoleur,

desejante, esperançoso – súdito do Tempo.

A loucura prevê predisposições, incluindo um mundo em fragmentação. A

fragilidade dos loucos propicia a convivência pelos destroços, o trabalho de

reconstruir, construir uma vida sob ruínas. Afinal, na sua fragilidade e

inconsistência, eles estão sempre tentando reconstruir-se a partir dos destroços

anteriores. Assim, precisam de muita engenhosidade para sustentar-se, além

dessa boa torcida desejante.

A loucura pressupõe um jogo, pois as tentativas dizem de erros e acertos

num movimento de construção, reconstrução. A disposição aos fracassos e

acasos dão conta de todo o processo de acontecimento. Essa gestação, com que

se confronta a loucura, precisa de um tempo sem medida, amplo e generoso, que

se difere do tempo do relógio.

Conforme vimos no capítulo anterior, o tempo sem medida diz da própria

definição de tempo. É importante instaurar, se possível, um não tempo que,

através do movimento brincante, desconstrói algo para aboli-lo, assim como é

necessário mudar a mentalidade, “desamar os frutos” e “desviver o tempo”.

Não se trata mais, hoje, de favorecer, através das vias de

comunicação e dos veículos automóveis, um nomadismo desenfreado, como

na primeira metade desse século. As tecnologias do pós-guerra criaram um

novo veículo estático: a televisão. De propagação instantânea e indiferente à

geografia, o audiovisual inaugurou um novo regime de temporalidade: a

instantaneidade. O instante sem duração, uma espécie de eterno presente,

142

sem espessura, pura persistência da reina na fonte teleluminosa em meio a

uma simultaneidade universal. Não mais nomadismo, mas sedentarismo

onipresente. Não mais partir, porém deixar chegar. Fim das distâncias

temporais e espaciais. A ordem agora é habitar a velocidade absoluta no

instante contínuo da emissão. Instalados nessa instantaneidade, e privados

do tempo e do espaço, assistimos à verdadeira desmaterialização

tecnológica. – eterno presente com nomadismo. (Pelbart, 1993, p. 33)

Habitar pressupõe um ato de presente, como tomamos, por exemplo, a

experiência de “habitar um tempo” cabralino. A abolição do tempo cede espaço ao

tempo neutro, à neutralização do acontecimento. Para que toda experimentação

seja eficiente, não pode haver previsão do acontecimento.

Mas talvez a informática seja ainda mais exemplar para pensar o que

está em jogo neste ideal de abolição do tempo. Seu anseio é a informação

total, a memória absoluta que pudesse não só prever um acontecimento,

mas reagir a ele antecipando-se a seu advento, neutralizando-o. É evidente:

o que já é conhecido de antemão não pode ser experimentado com

acontecimento. (Pelbart, 1993, p. 33)

Nessa sociedade de controle, entender os fios tênues de captura significa

estar atento a eles, como propõe Paul Virilio com sua cronopolítica, já que a

obssessão contemporânea é controlar o tempo, abolindo a própria duração, a

qualidade, que é um elemento de resistência. Uma saída é potencializar o

cotidiano instaurando um pensamento sobre os gestos, os desdobramentos,

mesmo que desconhecidos, de uma cronopolítica que implica no declínio de uma

profundidade de campo nas nossas atividades mais cotidianas.

Contraditoriamente, é o espaço do manicômio que abole a passividade

instituída pela pregação de uma velocidade máxima de produção, uma vez que

garante, como “gueto lentificado”, a certeza da imobilidade total.

143

Por outro lado, em nossas instituições de saúde mental assistimos a um

outro regime de temporalidade. São guetos lentificados. Seja um paciente que

levanta os braços e de repente os imobiliza, suspensos no ar, seja um outro

fazendo um gesto brusco para depois mergulhar numa lerdeza sonolenta, ou

ainda aquelas falas entrecortadas por silêncios longos, ou os trajetos

vagarosos em percursos cuja lógica nos escapa. Às vezes lembra um aquário

onde cada um desliza a seu modo, no seu ritmo, a seu tempo. Agora em

câmara lenta, desacelerada, dali a pouco numa rapidez inusitada. Uns estão

estacionados num passado longíquo, outros jamais saberemos onde estão, em

qual tempo; outros ainda, numa instantaneidade aflita, como se nada lhes

garantisse a continuidade temporal. (Pelbart, 1993, p. 34)

Vejamos o que podemos observar em relação ao tempo dos psicóticos,

trazendo para cá fragmentos do seu artigo. O psicótico situa-se num ponto de

parada e suspensão que é anterior a uma temporalidade, onde não está

configurada uma imagem do corpo, não havendo a idéia de esquecimento e de

surgimento. Segundo Oury, deveríamos sustentar, para os psicóticos, este ponto

que é ao mesmo tempo de esquecimento e espera pois ele corresponde ao jorrar

do tempo, que é o ponto de esperar surgir o bom momento de se fazer alguma

coisa.

Oury usa para explicá-lo dois tipos de tempo existentes no grego

antigo, o aion, que é esse presente que faz jorrar de dentro de si o tempo, e

o kairos, que é o momento adequado, o bom momento para decidir e fazer.

Como se devêssemos sustentar para o psicótico esse ponte de coincidência

entre o aion e o kairos, numa espécie de cronogênese primordial, de onde

pode surgir uma forma, até um projeto. Onde coincidissem esquecimento e

espera. Curiosamente, é um ponto de paciência, de tédio, insípido, num certo

sentido, e caótico. (Pelbart, 1993, p. 35)

Isto torna-se quase impossível se mantivermos a nossa pressa. Sem tempo

e paciência não podemos sustentar esse ponto. Isto se dá porque ele diz sermos

amantes das formas, das ordens, dos projetos, do futuro já embutido no presente.

144

Nós valorizamos demais o trabalho, o acabamento, sem olharmos para a

suspensão caótica como uma gestação a partir do informe.

Não é inútil lembrar que o tempo não controlável, não programável,

que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em

neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como da criação,

mas também no da loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o

que não etsamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser

previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não

em sua antecipação. É quase o esforço inimaginável, não da abolição do

tempo, mas de sua doação. Não libertar-se do tempo, como quer a

tecnociência, mas libertar o tempo, devolver-lhe a potência do começo, a

possibilidade do impossível, o surgimento do insurgente. Trata-se aí de um

tempo que escaparia à presença, à presentificação, à continuidade, dando

lugar a outras aventuras temporais. (Pelbart, 1993, p. 36)

Hoje em dia, a mecânica do poder incide sobre espaços abertos. Portanto,

se pensamos no fim do manicômio e da reclusão, não deveríamos abrir mão da

temporalidade exigida para o tratamento específico da loucura.

Se queremos acabar com o manicômio e a reclusão, não deveríamos

abrir mão daquilo que no trato com a loucura existe de específico em relação

à temporalidade, e nós deveríamos poder bancá-la, mesmo que isso

signifique – e necessariamente significa – um desafio à cronopolítica da

tecnociência. A cronopolítica hegemônica visa à aceleração máxima,

absoluta, ao passo que a loucura não só encarna uma desaceleração (ou

uma velocidade de outra ordem) mas também solicita uma desaceleração.

(...) a grande arma inventada na Revolução Industrial para combater o

império da velocidade foi a greve; e o que é a greve senão a parada, a

interrupção, a barricada no Tempo, como diz Virilio?

(...) a loucura tal como ela se apresenta hoje certamente é também

isso: a recusa de determinado regime de temporalidade, o protesto em forma

145

de colapso frente ao império da velocidade, e a reivindicação de um outro

tempo.

(...) a primeira coisa que chama a atenção de um visitante num

hospital psiquiátrico é essa lentificação, esse ritmo específico, esse regime

temporal diferenciado. Sim, às vezes isto se deve aos efeitos dos

psicofármacos, às vezes à lentidão burocrática das grandes instituições, mas

para além disso está a própria velocidade da loucura e o outro regime

temporal que os loucos vivem, suscitam e solicitam.

(...) a possibilidade de resgatar o jorrar do tempo é uma necessidade

para o pensamento, para as artes, mas principalmente para a loucura. (...)

Os manicômios, ainda que da forma mais torpe e cruel, em certa medida

constituíram uma espécie de freio frente à velocidade crescente. Também,

porque, num primeiro momento, eles abrigaram muitos daqueles que não se

submeteram ao ritmo e às exigências da produção. Mas igualmente porque

eram um instrumento de controle proveniente da Idade do Freio, que

sobreviveu um pouco na Idade do Acelerador, ainda que deslocado (daí

também seu aspecto tão anacrônico hoje em dia, mesmo do ponto de vista

do poder).

Preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a

lentidão não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia,

onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho.

Seria preciso um outro regime de temporalidade que restituísse ao

homem sua condição de habitante do tempo.

Só assim, movendo-nos mas desacelerando, podemos nos aproximar

dessa barricada no tempo levantada pela loucura, e permitir-lhe desconstruir-

se, não para aceitar a velocidade dominante, porém para desdobrar-se com

mais desenvoltura em suas virtualidades temporais.

É preciso dar à loucura (sem substancializá-la) espaços de

temporalidade diferenciada, lugares onde um outro regime de temporalidade

permita outras coisas. Deveriam existir ateliês de tempo, para loucos e não

loucos, pouco importa, onde isso fosse possível. Em certa medida eles já

existem, não oficialmente e não com este nome, em todos os movimentos ou

grupos de pessoas ou instituições que desafiam a homotemporalidade

dominante, com seus devires atípicos, estrambólicos, bizarros, seja com

146

suas barricadas no tempo, picnolepsias, desfalecimentos, seja nos seus

saltos, êxtases abruptos, ou na coexistência com os lençóis de passado (...).

Nós não precisamos do manicômio para estancar o despotismo da

velocidade que mata o tempo, pois o manicômio já é o despotismo do tempo

morto. Mas não deveríamos abrir mão de todos os diques que conseguirmos

inventar, para os loucos e os sãos, a fim de viabilizar, mesmo contra a maré

cronocida, aquela vagabundagem do espírito que só é possível a bordo da

nau do Tempo-rei. (Pelbart, 1993, p. 39 - 46)

Orides Fontela morreu num sanatório em Campos de Jordão em 2 de

novembro de 1998.

147

______________________________________________________________

Um dia nos lembraremos deste tempo se lembrança

houver

148

que estivemos nesta sala algumas vezes nos

tocamos

éramos mais felizes mais moços

um dia nos levaremos deste tempo se levar houver.

“Tempo”, de Cacaso

Bibliografia ou habitando o tempo...

Poesia

FONTELA, Orides. Transposição. São Paulo: Instituto de Espanhol da USP, 1969.

______. Helianto. São Paulo: Duas Cidades, 1973.

______. Alba. São Paulo: Roswitha Kempf/Editores, 1983.

______. Rosácea. São Paulo: Roswitha Kempf/Editores, 1986.

______. Trevo (1969-1989). São Paulo: Duas Cidades, 1988.

______. Teia. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

______. Poesia Reunida (1969-1996). São Paulo: CosacNaify: Rio de Janeiro: 7

Letras, 2006.

Prosa

FONTELA, Orides. “Almirantado” in: Almanaque. nº 4 Cadernos de Literatura e

Ensaio. São Paulo: Brasiliense, 1977.

Entrevistas

CASTELLO, José. “Orides Fontela resiste à sofisticação da poesia”. O Estado de

São Paulo, 01 jun. 1996.

FELINTO, Marilene. “O avesso do verso”. Marie Claire, nº 66, setembro, 1996.

Depoimentos

149

FONTELA, Orides. “Nas trilhas do trevo”. In: Artes e ofícios da poesia. Org.

Augusto Massi. Apres. Leda Tenório da Mota. Porto Alegre: Artes e Ofícios; São

Paulo, Secretaria de Cultura, 1991.

______. “Sobre poesia e filosofia – um depoimento.” In: Poesia (e) Filosofia. Org.

Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

Artigos

FONTELA, Orides. “Junqueira e o excesso do verbo.” O Estado de São Paulo, 17

maio de 1987.

______. “Maria encontrou a poesia.” O Estado de São Paulo,. 14 junho de 1987.

______. “Nas rimas da perplexidade.” O Estado de São Paulo, 16 agosto de 1987.

______. “Entre o lírico e o social.” O Estado de São Paulo, 8 nov. 1987.

Artigos sobre Orides Fontela

BORGES, Contador. “A surpresa do ser”. Cult –Revista Brasileira de Literatura,

São Paulo, n.28, nov. 1999.

BRITO, Antônio Carlos de. “Parcimoniosa opulência”. Leia Livros. São Paulo, ago.

1983.

CÂNDIDO, Antônio. Prefácio de Alba. São Paulo: Roswitha Kempf/Editores, 1983.

CARA, Salete de Almeida. “A, poesia que exige olhos para ver”. Jornal da Tarde.

São Paulo, 15.7.83.

CARVALHO, Age de. “Introdução e antologia de OF”. O Liberal. Belém, 10.2.1985.

CHAUÍ, Marilena. Prefácio. In: FONTELA, Orides. Teia. São Paulo, Geração

Editorial, 1996.

CHIARETTI, Marco. “A poesia também faz sucesso”. Folha de S. Paulo, 4 ago.

1990.

DANTAS, Vinícius. “A nova poesia brasileira e a poesia”. Novos estudos CEBRAP,

nº 16, São Paulo, dez, 1986.

DIAS, Mauricio Santana. “A felicidade feroz”. Folha de S. Paulo, 7 maio 2006

EMEDIATO, Luis Fernando. In: FONTELA, Orides. Teia. São Paulo: Geração

Editorial, 1996.

150

FERRAZ, Geraldo Galvão. “Poesia à vista!” Revista IstoÉ. São Paulo, 28.9.1983.

GOMES, Eustáquio. “Ah, essa doce poesia.” O Estado de S. Paulo. São Paulo,

06.12.1987.

HAZIN, Elizabeth. “A essência do espelho”. Folha de S. Paulo, 3.12.1988.

JUNQUEIRA, Ivan. OF. “É o nome de uma grande poeta brasileira.” O Estado de

S. Paulo, 20.7.1986.

LIMA, Marcelo Fernandes. “A concepção de poesia em dois poemas de Orides

Fontela”. In: Fragmenta, Curitiba, n. 14, p. 61-65, 1997. Editora da UFPR.

LOPES, Rodrigo Garcia. “Obra retrabalha a mitologia da autora”. O Estado de S.

Paulo, 01 jun. 1996.

LYRA, Pedro. Sincretismo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

MARQUES, Ivan. “Orides – Escuríssima água.” Cult –Revista Brasileira de

Literatura, São Paulo, n.28, nov. 1999.

MASSI, Augusto. “Alba”. Revista Colóquio/Letras nº76. Lisboa, nov. 1983.

______. “Uma obra feita em espiral”. Folha de S. Paulo, 9. 8. 1986.

______. “Pingue-pongue”.(entrevista) Folha de S. Paulo, 4. 8. 1990.

MEDEIROS, Jotabê. “Orides Fontela combate despejo com sua poesia.” O Estado

de S. Paulo. São Paulo, 12 abr. 1996.

MELO, Tarso de. “Toda palavra é crueldade”. Jornal de crítica. São Paulo, julho de

2006.

MOREIRA, Luiza Franco. “56 páginas de descobertas.” Revista IstoÉ. São Paulo,

28.9.1983.

MOUTINHO, J. G. Nogueira. Novos poetas – I./ Novos poetas – II / Versos que

soam o silêncio impudico. Folha de São Paulo, 7.12.1969. 14.12.1969 e

21.7.1983.

______. “Breve nota sobre a aristocrata selvagem”. (orelha) In: FONTELA, Orides.

Rosácea. São Paulo: Roswitha Kempf/Editores, 1986.

NÊUMANE, José. “Nunca se deixou seduzir pelo exercício narcísico.” O Estado de

São Paulo, 26 maio 2000.

NUNES, Benedito. A recente poesia brasileira. In: Novos Estudos CEBRAP nº 31.

São Paulo, out. 1991.

151

OSAKABE, Haquira. O corpo da poesia. Notas para uma fenomenologia da

poesia, segundo Orides Fontela. In: Remate de Males nº 22. Campinas, 2002.

PAIXÃO, Fernando. “Mortes sucessivas da poesia libertam a expressão”. Folha de

São Paulo, 27 dez. 1988.

RIZZO, Ricardo. “Transposição barroca da luz: lucidez”. Jornal de crítica. São

Paulo, julho de 2006.

SEREZA, Haroldo Ceravolo. “As poderosas palavras da poeta Orides Fontela”. O

Estado de S. Paulo, 26 maio 2000.

SOARES, Ricardo. “Um encontro marcado para a poesia brasileira”. O Estado de

S. Paulo, 26 nov. 1988.

WISNIK, José Miguel. “Transparência da esfinge.” Revista IstoÉ. São Paulo,

29.10.1986.

ZENI, Bruno. “TV Cultura exibe a obra selvagem de Orides Fontela”. Folha de São

Paulo, 26 maio 2000. Caderno Ilustrada.

Artigos sobre Coleção Claro Enigma

CANÇADO, José Maria. “Com três novos livros, chega ao fim epopéia poética da

“Claro Enigma””. Folha de São Paulo, 4 ago. 1990.

FOLHETIM. Suplemento da Folha de S. Paulo dedicado à poesia brasileira (6

poetas da coleção Claro Enigma) – nº 620, 3 dez. 1988.

IDÉIAS. Suplemento do Jornal do Brasil dedicado aos poetas da coleção Claro

Enigma – nº 119, 7 jan. 1989.

NETO, Alcino Leite. “Coleção quer recolocar poesia em alta”. Folha de S. Paulo,

26 nov. 1988.

Dissertações de mestrado

BUCIOLI, Cleri Aparecida Biotto. Entretecer e tramar uma teia poética. SP:

Fapesp: Annablume, 2003.

COSTA, Alexandre Rodrigues da. A construção do silêncio: um estudo da obra

poética de Orides Fontela. Belo Horizonte – MG. 16/02/2001. 1v. 165p. Mestrado

152

UFMG – TEORIA LITERÁRIA. Orientadora: Maria Esther Maciel de Oliveira

Borges.

FERREIRA, Letícia Raimundi. A lírica dos símbolos em Orides Fontela. Santa

Maria, RS: ASL / Pallotti, 2002.

MENDES, Afonso Henrique Noves. O ser e o silêncio: trajetória poética do ser na

obra de Orides Fontela. Recife – PE. 01/08/2002. 1v. 125p. Mestrado – UFPE –

TEORIA LITERÁRIA. Orientador: Lourival Holanda.

RESENDE, Angela Cançado Lara. Orides Fontela: Poeta, Senhora da Palavra,

Rainha do Silêncio. Belo Horizone – MG. 01.03.2002. 1v. 89p. Mestrado – PUC

Minas. Orientadora: Lélia Maria Parreira Duarte.

Teses de doutorado

COSTA, Mônica Pinto Rodrigues da Costa. Tendências Estéticas da Poesia

Brasileira Contemporânea - Leitura de 14 poetas. São Paulo - SP. 01/12/1997. 1v.

529p. Doutorado PUC-SP - COMUNICACÃO E SEMIÓTICA. Orientadora: Maria

Lúcia Santaella Braga.

CASTRO, Nea Maria Setúbal de. O cânone da poesia brasileira em processo.

Porto Alegre - RS. 01/01/1999. 1v. 193p. Doutorado. PUC-RS - LINGÜÍSTICA E

LETRAS. Orientadora: Maria da Glória Bordini.

Artigos sobre o contexto histórico

ALMEIDA, Márcio. “Poesia brasileira hoje”. Suplemento Literário do Estado de

Minas Gerais, nº 674, 1 set. 1979.

BONVICINO, Régis. “Literatura portuguesa e o isolamento dos poetas. O Estado

de São Paulo, 6 dez. 1990.

BRITO, Antônio Carlos de. “Um romantismo com vergonha de si mesmo”. Opinião,

nº 133, São Paulo, 23 maio 1975.

______. “Poesia de cabo a rabo I: Pindaíba de tatu.” SP: Leia Livros, nº 52, out.

1982.

______. “Poesia de cabo a rabo II: vinte pras duas.” SP: Leia Livros, nº 53, dez.

1982.

153

CAMPOS, Augusto. “Poeta menos: a poesia marginal” (entrevista). Opinião, nº 31,

4-11 jun. 1973.

CAMPOS, Haroldo de. “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação” e

“O poema pós-utópico”. Folhetim, nº 403/404, São Paulo, 7 e 14 out. 1984.

CESAR, Ana Cristina. “Nove bocas da nova musa”. Opinião, nº 190, São Paulo, 25

jun. 1976.

______ e MORICONI JR., Ítalo. “O poeta fora da República”. Opinião, nº 229, São

aulo, 25 mar. 1977.

COUTINHO, Edilberto. “Poesia brasileira hoje IV”. Suplemento Literário do Estado

de Minas Gerais, nº 684, 10 nov. 1979.

MERQUIOR, José Guilherme. “Musa Morena Moça: notas sobre a nova poesia

brasileira". Revista Tempo Brasileiro, nº 42/43, Rio de Janeiro, jul./dez. 1975.

NEJAR, Carlos. “Poesia brasileira hoje II”. Suplemento Literário do Estado de

Minas Gerais, 13 out, 1979.

OITICICA, Ricardo. Jornal Verve, Rio de Janeiro, nº 39, ano IV, set. 1990

SIMON, Iumna Maria e DANTAS, Vinicius. “Poesia ruim, sociedade pior.” Novos

estudos CEBRAP, nº12, São Paulo, jul. 1985.

SIMON, Iumna Maria. “Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no

contexto brasileiro (1954-1969)”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 26, mar.

1990.

TREVISAN, Armindo. “Poesia brasileira hoje III”. Suplemento Literário do Estado

de Minas Gerais, 03 nov. 1979.

Bibliografia geral

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Livro XI. Série Os pensadores.

ANDRADE, Janilto. “A Poética.” In: Da beleza à poética. Rio de Janeiro: Imago

Ed., 2001.

ARRUDA, Eunice. (org.) Fui eu; uma pintura de Valdir Rocha. São Paulo:

Escrituras Editora, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

154

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de

Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997.

______. As Flores Do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CAMPOS, Augusto; CAMPOS, Haroldo e PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São

Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

COMTE-SPONVILLE, André. O ser-tempo: algumas reflexões sobre o tempo da

consciência. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

DELEUZE, Gilles, PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro.

São Paulo: Editora Escuta, 1998.

______, GUATTARI, Félix. “Como criar para si um corpo sem órgãos”. In: Mil

platôs – capitalismo e esquizofrenia. RJ: Ed. 34, 1996.

______. “Literatura e vida”. In: Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

DIAS, Geraldo Souza. “Contundência e delicadeza na obra de Mira Schendel. In:

Ars - Revista do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e

Artes. N. 1 ano 1. São Paulo: USP, 2003.

D´ONOFRIO, Salvatore. Poema e narrativa: estruturas. São Paulo, Duas Cidades,

1978.

FERRAZ, Geraldo Galvão. Poesia à vista! Revista IstoÉ. São Paulo, 28.9.83.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da

língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. São Paulo: Annablume, 2004.

FOUCAULT, Michel. “Sexo, oder e identidade”. Entrevista com B. Gallagher e A.

Wilson, Toronto, junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp.

26-30 e 58. Esta entrevista estava destinada à revista canadense Body Politic.

Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991.

2ª ed.

GRUPO ¶. Retórica da poesia: leitura linear, leitura tabular. São Paulo: Cultrix:

Edusp, 1980.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001.

155

JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada

por um índio. São Paulo: Petrópolis, 1998.

KHAYYAM, Omar. O Rubaiyat. Tradução de Manuel Bandeira. São Paulo:

Ediouro.

LEMINSKY, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo:

Iluminuras, 1994.

______. “Poesia: a paixão da linguagem”. In: Os sentidos da paixão. São Paulo:

Cia. Das Letras, 1987.

LINS, Daniel. “Esquecer não é crime”. In: Nietszche e Deleuze: Intensidade e

Paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e

Desporto do Estado, 2000.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LYOTARD, Jean-François. O Inumano – Considerações sobre o tempo. Lisboa:

Editorial Estampa, 1989.

NETO, João Cabral de Melo. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.

Os pré-socráticos. – 4ª ed. – São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Coleção Os

pensadores)

PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. RJ:

Azougue Editorial, 2001.

PÉLBART, Peter Pal. A nau do Tempo Rei – 7 ensaios sobre o tempo da loucura.

RJ: Imago Ed., 1993.

ROLNIK, Suely. “Pensamento, corpo e devir – uma perspectiva

ético/estética/política no trabalho acadêmico”. In: Cadernos de Subjetividade. São

Paulo: PUC, 1993, nº2.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. “Transformações do corpo – controle de si e

uso dos prazeres”. In: Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias

nietszchianas. Margareth Rago, Luiz B. Lacerda Orlandi, Alfredo Veiga – Neto

(orgs.). RJ: DPeA, 2002.

TARKOVSKY, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Vários autores. Org. ARRUDA, Eunice. Fui eu; uma pintura de Valdir Rocha. São

Paulo: Escrituras Editora, 1998.

156

Revistas

Gesto – Revista do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. Nº 3 Rio de Janeiro,

dezembro de 2003.

Sexta-feira – Revista de Antropologia, artes e humanidades. nº 5 (tempo) São

Paulo: Editora Hedra, 2000.