Som e Imagem no Nosso Tempo

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EXST.NET SOM E IMAGEM NO NOSSO TEMPO * Franz Manata Agradeço o convite de Glória Ferreira e Luiz Ernesto, e também a atenção desta audiência qualificada. É sempre um prazer falar sobre o trabalho, o pensamento e o que estamos desenvolvendo. É preciso antes esclarecer que ao falar “nosso trabalho”, estarei me referindo ao meu parceiro de vida Saulo Laudares, com quem venho produzindo esse pensamento e trabalho há dezessete anos, e que teve participação fundamental na redação final deste texto. Ficamos instigados pelo desafio de pensar que “papel” tem o som e a imagem em nosso trabalho. Conversamos bastante sobre como tratar a questão e resolvemos abordá-la pelo conceito de ação presente em nosso pensamento, demonstrando, assim, que nossas questões não residem no problema da representação ou sua crise e, sim, em nossos deslocamentos pelo mundo. Primeiro, vou mostrar como articulamos o lastro histórico de nosso pensamento e como estabelecemos aproximações e distanciamentos com a tradição, procurando atualizar discursos e “pontos de vista” para nossa percepção de tempo e espaço de forma pessoal e existente. Dentre inúmeras possibilidades, para ilustrar nossa conversa, recorreremos a Cildo Meireles, Lygia Clark e Hélio Oiticica, que têm peso fundamental em nossa formação, e Robert Morris e Rolland Barthes que aparecem aqui de forma circunstancial, mas não menos importante. Pensando sobre este desafio, deparamo-nos com o vídeo Cildo Meireles, de Wilson Coutinho, realizado em 1979. Desse vídeo retiramos três afirmações que demarcam o momento histórico e as principais questões apresentadas pelo trabalho de Cildo durante a década de 1970; e além de ser ponto de inflexão entre o moderno e o contemporâneo, nos dá uma pista de como enfrentar o tempo presente usando e atualizando algumas ferramentas e procedimentos ali colocados. A primeira frase é: “A história das artes plásticas é, ainda, a história do olhar. O que resta fazer agora são novas construções de imagens. Cildo Meireles constrói essas imagens.”

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SOM E IMAGEM NO NOSSO TEMPO *Franz Manata

Agradeço o convite de Glória Ferreira e Luiz Ernesto, e também a atenção desta audiência

qualificada. É sempre um prazer falar sobre o trabalho, o pensamento e o que estamos

desenvolvendo.

É preciso antes esclarecer que ao falar “nosso trabalho”, estarei me referindo ao meu parceiro

de vida Saulo Laudares, com quem venho produzindo esse pensamento e trabalho há

dezessete anos, e que teve participação fundamental na redação final deste texto.

Ficamos instigados pelo desafio de pensar que “papel” tem o som e a imagem em nosso

trabalho. Conversamos bastante sobre como tratar a questão e resolvemos abordá-la pelo

conceito de ação presente em nosso pensamento, demonstrando, assim, que nossas questões

não residem no problema da representação ou sua crise e, sim, em nossos deslocamentos

pelo mundo.

Primeiro, vou mostrar como articulamos o lastro histórico de nosso pensamento e como

estabelecemos aproximações e distanciamentos com a tradição, procurando atualizar

discursos e “pontos de vista” para nossa percepção de tempo e espaço de forma pessoal e

existente.

Dentre inúmeras possibilidades, para ilustrar nossa conversa, recorreremos a Cildo Meireles,

Lygia Clark e Hélio Oiticica, que têm peso fundamental em nossa formação, e Robert Morris e

Rolland Barthes que aparecem aqui de forma circunstancial, mas não menos importante.

Pensando sobre este desafio, deparamo-nos com o vídeo Cildo Meireles, de Wilson Coutinho,

realizado em 1979. Desse vídeo retiramos três afirmações que demarcam o momento histórico

e as principais questões apresentadas pelo trabalho de Cildo durante a década de 1970; e

além de ser ponto de inflexão entre o moderno e o contemporâneo, nos dá uma pista de como

enfrentar o tempo presente usando e atualizando algumas ferramentas e procedimentos ali

colocados.

A primeira frase é: “A história das artes plásticas é, ainda, a história do olhar. O que resta fazer

agora são novas construções de imagens. Cildo Meireles constrói essas imagens.”

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Não podemos esquecer que Coutinho está falando de um momento específico da história e do

trabalho de Cildo: os anos 70 do século passado. Estamos falando de um momento de

transição, em que há o esgotamento do discurso historicista das vanguardas modernas –

centrados na autonomia da forma –, dando lugar à discussão acerca da visualidade do mundo.

O que Coutinho está nos dizendo é que Cildo Meireles, então com 21/22 anos, está

interessado em enfrentar o problema da crise da representação e, ao mesmo tempo, criar uma

nova possibilidade para a imagem, que se dê no corpo social.

O trabalho que será o veículo mais poderoso dessa mudança – e talvez um dos mais

fascinantes já feitos na arte brasileira – é Inserções em circuitos ideológicos / Projeto Coca-

Cola, apresentado na exposição “Information”, em Nova Iorque; importante mostra conceitual

organizada pelo MoMA em 1970, tornando-se um trabalho paradigmático.

Cildo, em um pequeno texto chamado “Inserções em circuitos ideológicos”, escrito entre 1970-

75, afirma que “não estávamos mais trabalhando com metáforas (representações) de

situações, mas com a situação mesmo, real. [...] Era um trabalho que, na realidade, não tinha

mais aquele culto do objeto, puramente: as coisas existiam em função do que podiam provocar

no corpo social.” (in: Cildo Meireles. Cosac Naify-Phaidon Press, 1999, p. 110)

Passados os cem primeiros anos da vanguarda moderna, em um gesto que afirma seu último

fôlego, Cildo diz que ainda era necessário investigar os “aspectos formais da linguagem”, e

“produzir um objeto que pensasse produtivamente (criticamente, avançando e aprofundando)

entre outras coisas, um dos mais fundamentais e fascinantes de seus projetos: os readymades

de Marcel Duchamp.” (in: Cildo Meireles. Op. cit., p. 108)

Estamos falando de uma mudança profunda, de um enfrentamento poderoso: a crise da

representação instaurada, mais ou menos, em meados do século XIX, com o quadro Almoço

na Relva, de Eduard Manet, apresentado no Salão dos Recusados em 1863, que inicia um

repertório caro à arte moderna e contemporânea, que nos permite navegar até hoje na forma

de ideias ou ideais icônicos.

No lugar da operação duchampiana, que foi deslocar um objeto industrial para o circuito da arte

e nomeá-lo como tal, Cildo Meireles vai fazer o exercício oposto, pegar um objeto

eminentemente simbólico para atuar no meio circulante da economia. Mesmo sabendo que, na

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prática, o trabalho se dá apenas no plano simbólico e se cumpre apenas ao enunciar-se

poeticamente.

O mais curioso é que Cildo Meireles consegue cumprir sua aventura. Ele, de fato, consegue

expandir o readymade e nos deixa um trabalho que é, antes de tudo, um gesto poderoso que

aponta um vetor de direção e sentido que se perdeu ao longo da história e que agora, no

século XXI, nos interessa resgatar para atuar diretamente no corpo social, num cruzamento

que se dá na membrana da arte, ou melhor, no que denominamos por “economia política da

arte”.

Cildo propõe a substituição da visualidade pela prática política. Isso nos interessa porque essa

prática pode ser uma importante ferramenta para enfrentar a temporalidade na era da

informação, e mudar o eixo de importância, até agora centrado na visualidade, para a

visibilidade, que atue no corpo social, transformando realmente o ambiente da vida humana.

Retomando, de certa forma, uma vocação utópica necessária aos dias de hoje.

Ainda no vídeo, Wilson Coutinho afirma que o trabalho de Cildo tem a ver com “prática de

sonhos e de planos de sabotagem para transformação social”, e termina: “Isto é visível.” Para

nós, hoje, isso é viável.

Talvez o trabalho que melhor sintetize a natureza e o peso que a imagem e som têm em nosso

pensamento seja Verbos. Ele começa a surgir em meados de 2011, a partir do convite de

Fernando Cocchiarale, para integrar a exposição “Caos e efeito”, ocorrida no Itaú Cultural SP

que teve, como ideia central, a discussão sobre o que poderia apontar para questões que

estariam na pauta desta década. O mote da exposição nos pareceu, a princípio, um exercício

de futurologia, mas era, também, um desafio interessante. A única clareza que tínhamos é que

aquele seria um trabalho no campo da apresentação. Decidimos, então, mostrar como

trabalhamos, nossas operações conceituais e a ética presente em nossos posicionamentos.

Assim nasceu Verbos, naquela ocasião como uma instalação audiovisual composta por uma

sala dividida ao meio, que recebe duas projeções apresentando nosso nome em cada uma das

telas. Os áudios contêm, separadamente, o depoimento de cada um, compondo nosso

statement verbal que, agora, está disponível em nossos canais na internet

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[vimeo.com/36986303 - vimeo.com/36986781], e que talvez tenha sua melhor existência num

podcast.

O problema central desse trabalho reside na oralidade. Na nossa fala, e não na

videoinstalação. Somos nós nos posicionando e, ao mesmo tempo, nos apresentando.

Quando iniciamos sua produção não sabíamos aonde chegar. Resgatamos grande parte do

que escrevemos sobre o trabalho nesses anos e colocamos num documento compartilhado

para trabalhar na edição. Seguimos organizando, cortando e editando as informações em

busca de uma alternativa, pois apenas “ler” todo aquele material ficaria monótono. Resolvemos,

então, anotar as principais questões e gravar uma conversa informal.

A etapa seguinte levou dois dias. Foram oito horas de material, editado para duas trilhas de,

aproximadamente, sete minutos cada. Neste ponto entra Bruno Queiroz, parceiro de trabalho e

amigo, que assina a edição conosco. O áudio não traz uma narrativa linear, pelo contrário, é

fruto de dezenas de edições e cortes, de forma que pareça algo natural, mas que também

possa “pegar” o espectador desavisado que, com quinze, vinte segundos, ao escutar uma ou

duas falas, se dá conta de parte do pensamento.

Em Verbos, nós nos apresentamos e nos posicionamos acerca de nossas intenções, num

“diálogo” com falas complementares que se sobrepõem. Não se trata de um trabalho no campo

da representação, mas no campo da apresentação. E, também, é possível “olhar” o trabalho

com as “chaves” conceituais da tradição.

Em certa medida, Verbos nos lembrou de uma frase de Robert Morris acerca de seu famoso

trabalho Untitled, de 1965/71, que revolucionou a escultura ao desmaterializá-la fundindo obra,

espaço e arquitetura em instalação que nos incorpora, ao apresentar quatro cubos de madeira

revestidos por espelhos inseridos num “cubo branco” (galeria), por onde somos convidados a

percorrer, sobrepondo o problema da imagem ao da escultura.

Voltando à frase de Morris. Diante das críticas a seu trabalho, ele disse: “O objeto não se

tornou menos importante. Ele limitou-se a tornar-se menos autoimportante”. O que ele está

fazendo naquele momento é confrontar o objeto autônomo, centrado em um tipo de

originalidade formal, quase sempre faber (princípio da arte moderna), que agora dá lugar a um

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objeto cujo problema não reside unicamente no cubo de madeira revestido por espelhos e, sim,

em como eles potencializam o espaço, nos incluem e geram inúmeras imagens.

Enquanto conversávamos sobre as aproximações e distanciamentos com nossas referências,

num exercício lúdico (e abusado), reescrevemos a frase de Morris, que ficou assim: “O objeto

não se tornou menos importante. Ele só não é mais o problema central da arte.” (After, Morris)

Não é que o objeto em si, o som ou a imagem, tenha deixado de ter importância – ele tem de

ser administrado (e também cuidamos disso), pois é aí que se fricciona com a tradição –, mas

ele já não é fundamental como único veículo para a arte. Nosso raciocínio não se dá mais pela

visualidade do mundo, pois, a princípio, não queremos comentar nada. Buscamos, sim, agir

decisivamente nele. A visualidade percebida em nosso trabalho é tratada como “produto” dele;

derivativos dos nossos deslocamentos.

A partir desse trabalho, a problemática da imagem se desloca para nós autores e em como nos

deslocamos no mundo.

O que estamos propondo é o oposto – embora inspirado – ao que foi feito por Lygia Clark e

Hélio Oiticia, cujos exercícios centrais do trabalho eram no sentido de “empoderar” o outro

(termo cunhado por Lygia), até então espectador, tornando-o participador.

O que fazemos é retomar o poder para as mãos do artista posicionando-nos no centro da

questão, como estratégia de resistência, numa época regida pela economia da experiência em

que todo o espaço relacional é gerido por departamentos de marketing. Por isso estamos

interessados nos comuns, nas pessoas que não são “especialistas”. Queremos enfrentar como

chegar até eles. Ao invés de ir para o mundo, criar objetos e trazê-los para este gueto chamado

arte, nós estamos interessados em atuar diretamente no mundo.

Nossa estratégia principal é usar o som em todos os seus aspectos, principalmente o da

oralidade. O som tem um valor agregador, possibilitador e não pede especialista e, para nós,

ele é tratado como dispositivo social. E é justamente por essa razão que denominamos o duo

como SoundSystem. Porque, somos nós o “sistema de som”. Em geral, todo o trabalho surge a

partir da oralidade, de como mobilizamos energia, construindo situações com entrega pública

real, numa troca direta com o outro.

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Tradicionalmente coube ao som habitar o tempo e às artes plásticas ou visuais, o espaço.

Quando se escuta uma música, apreende-se o som apenas no pensamento e no coração, pois

aquilo se dá durante um determinado tempo. O que a arte fez ao longo do século XX foi juntar

a experiência do espaço e do tempo, numa experiência sinestésica. E, de fato, o som é um

problema do século XX. Sabemos que o século XIX é um século mudo, e que o século XX

completamente ruidoso. É como se elevássemos o volume “máster” do mundo, pois é a era do

motor a explosão, do mundo em movimento, do início das megalópoles.

Os primeiros a desenvolver interesse por essas questões – pensando o som como um campo

de investigação para a arte e se interessando pela valorização do entorno acústico – foram os

futuristas, com os manifestos (“L’arte dei rumori” , 1913, de Russolo e “La radia”, 1933 de

Marinetti e Masnata) e, também, Marcel Duchamp, que vai introduzir duas noções importantes:

a de escultura musical, com o trabalho Sculpture musicale (c. 1913) , ao afirmar que o “som

também ocupa espaço” (em notas publicadas na Caixa verde, de 1934); e a de acaso com o

happening sonoro (c. 1913) Erratum musicale (para três vozes), no qual notas musicais,

anotadas em pequenos papéis, são colocadas em uma cartola e sorteadas aleatoriamente para

serem pronunciadas individualmente ou por um coro, influenciando, decisivamente, todo o

pensamento do século XX, em especial o de John Cage, que foi quem deu densidade histórica

a esses problemas.

Curiosamente, durante grande parte do século XX, achávamos que as experiências com som e

imagem eram separadas. Mas hoje sabemos que são indissociáveis; não existe uma

experiência imagética sem som e não existe uma experiência sonora sem imagem. Quando

você vai a um museu e vê um quadro, sua experiência é permeada por uma gama de sons que

estão a sua volta, e isso é inseparável. Para nós, a arte e o som englobam: o tempo que passa,

o espaço que ocupa e a relação que estabelece.

Como já dissemos, para nós o som tem o valor de um dispositivo social, facilitador, deflagrador

desses encontros e, melhor, sem pedir especialistas. A visualidade não é nosso primeiro

problema, não temos o interesse de tratar o mundo pela visualidade e muito menos pela

espacialização do som. Para nós, tanto o som quanto a imagem assumem distintos papéis,

sempre a serviço de algo.

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Em nossos trabalhos, temos usado signos universais ou coisas que se assemelhem, como:

alto-falantes, canto de pássaros, batida de coração, malhas de quebra-cabeças e elementos

bem óbvios, num tentativa (em vão) de tirar a atenção da visualidade.

É nesse contexto que surge, por exemplo, a malha do quebra-cabeça em ThePlace. Para nós,

o quebra-cabeça tem a função de demarcar o espaço da ação, mas, ao longo do tempo,

percebemos que também poderia ser uma resposta à “grade” modernista se incluirmos a

pergunta: que natureza terá esse “plano” hoje, na era da informação?

Isso tem um peso fundamental para nós. Faz-nos pensar que a tradição lida com uma

mediação subjetiva, ou seja, o artista precisa de um objeto estético mediando sua relação com

o mundo. Envolvemo-nos hoje com o que chamamos de mediação objetiva. Trata-se, agora, do

nosso deslocamento no mundo, de forma objetiva, como “local pra chegar” e “resultados pra

alcançar” (palavras banidas da história da arte), geralmente movidos por uma entrega pública.

O problema do som no trabalho se desloca para o campo da oralidade e a imagem, agora, para

a dos artistas. É mais importante a imagem do artista do que as imagens que produz. O artista

tem de ser mais importante que a obra.

Foi com a residência Atividades sonoras [Imagem 01], durante o 48º Festival de Inverno da

UFMG de Diamantina (MG), em 2011, que tivemos a confirmação do quão importante seria

instituir nossa “área de trabalho”. A partir do convite para uma oficina, algo que não

acreditamos pois, ministrar uma oficina significa ensinar um oficio para alguém, e esse é um

conceito moderno. A gente não trabalha com “oficinar”, menos ainda "incubar", a nossa crença

está em acelerar processos.

Ao chegar à cidade deparamo-nos com a falência do modelo do festival, que não conseguia

comunicar com a comunidade local e nem mobilizar interessados pelo Brasil, como fez por

muitos anos, formando gerações de artistas e pensadores. Resolvemos, então, mudar a

estratégia de trabalho e transformar o espaço em nosso ateliê, potencializando e

estabelecendo “laços” com todas as oficinas, inclusive, com a residência organizada pelo

diretório dos estudantes que, de longe, foi a melhor experiência da temporada em Diamantina.

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[Imagem 01]

Atividades sonoras | Franz Manata e Saulo Laudares, 2011

48º Festival de Inverno da UFMG, Diamantina (MG)

Passadas três semanas, estávamos nos relacionando com a cidade e seus agentes. Dos

coordenadores de área, aos diretores da escola, passando pelo Em cômodo (residência

colaborativa organizada pelo diretório central dos estudantes da EBA/UFMG que, segundo

eles, é “um espaço que constitui, de maneira primordial, a impossibilidade de Ser, como objeto

e indivíduo") e até com os cursos e as oficinas do festival (artes visuais, dança, música,

literatura e multimeios), ajudando produzir de maneira colaborada vários trabalhos.

Além de intervir objetivamente na realidade do festival e da cidade, nosso trabalho, ao final do

encontro, foi a possibilidade de mobilizar energia, levantando discussões, revendo paradigmas,

abrindo possibilidades de enfrentar o pensar e o fazer arte na era da informação; esse

momento fascinante em que vivemos. O final do encontro foi mágico dado o resultado e

alcance. Foi uma experiência transformadora para nós porque tivemos a certeza de que algo,

que havia começado em 1998 na Escola Guignard /UEMG com Procedimentos

contemporâneos, se afirmado em 2010 com Abotoados pela manga, em São Paulo, agora era

parte fundamental do nosso caminho – mobilizar energia e compartilhar experiências.

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O primeiro momento em que a noção de compartilhar aparece foi com ThePlace [Imagem 02],

de 1998, que também foi o primeiro trabalho que assinamos juntos, apesar de nossa parceria

ter começado em 1995.

[Imagem 02]

ThePlace | Franz Manata e Saulo Laudares, desde 1998

Realizado em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brest, Praga, entre outros

O trabalho sempre existiu, mas como consciência artística tem seu primeiro momento em

ThePlace. Nem sabíamos ao certo se era de fato um trabalho de arte. Mas foi, para nós, um

momento revelador porque trouxe essa palavra fundamental que é compartilhar e a

compreensão de que todo nosso trabalho seria dedicado ao outro, num programa em processo

aberto e colaborativo. O trabalho é muito simples e acontece, basicamente, em duas etapas. A

primeira é a negociação com a instituição ou com o espaço que vamos ocupar (cessão de

algum equipamento e logística para receber a participação de terceiros); em um segundo

momento sinalizamos o espaço, com o grafite de um quebra-cabeça e, ao mesmo tempo,

distribuímos flyers e convites, chamando a comunidade local para participar daquela

experiência, que inicialmente era deslocar o dance floor para o espaço de arte.

Há alguns anos, fomos perguntados se conhecíamos o Dream house, trabalho fabuloso de La

Monte Young e Marian Zazeela – um casal que participou do grupo Fluxus. Foi uma feliz

coincidência, pois naquela época, não conhecíamos o trabalho e vimos que tinham uma

frequência muito parecida. Mas com diferenças básicas: o Dream house tem um mantra que

permeia o espaço que por sua vez é banhado por uma luz fúcsia. O nosso trabalho, em alguns

casos, pode servir para esse fim que é meditar, acalmar; e de certa forma tem similaridades,

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pois, interessa-nos desacelerar como estratégia de enfrentamento da percepção de tempo na

era da informação, mas o que queríamos naquele momento era compartilhar a experiência da

pista de dança.

Tudo começa em 1998, quando eu e Saulo, lemos um pequeno livro com aforismos escrito por

Rolland Barthes, durante uma viagem ao Marrocos, chamado Incidentes. Nesse texto, ele dá

um depoimento revelador. Um soco no estômago. Em menos de uma página ele descreve a

experiência que teve em uma boate francesa, que, na época, era considerada o templo da

dança. Barthes, com sua eloquência, capacidade de descrição fabulosa e escrita sedutora,

descreve a potência desse encontro.

Naquele momento, em uma conversa, pensamos: “Há quanto tempo não temos uma

experiência como esta diante de um trabalho de arte, como podemos fazer para, de fato, trazer

essa intensidade do encontro para a experiência artística?” Aí está uma palavra que não existe

mais – intensidade. Não existe intensidade em nada, até as relações, que se dão com base na

utilidade e no interesse, vêm transformando a sociedade e a arte, por consequência, em algo

cínico, oportunista e de baixa intensidade.

Quando foi a ultima vez, que vocês foram a algum lugar – e vejam que aqui são todos iniciados

– e ficaram sem fôlego diante de um trabalho de arte?

Como disse, nossa prática não lida mais com a experiência artística centrada na representação

ou sua crise; mesmo que friccionando com a tradição, a arte se dá no tempo do instante. No

encontro conosco. Propomos uma apreensão dilatada do tempo para a apreensão do trabalho.

É preciso, primeiro, estabelecer laços entre nós, costurando lentamente um sentido e a

compreensão da existência de um trabalho de arte, que só será apreendido no somatório de

inúmeros instantes.

E é por isso que, como artifício do trabalho, dedicamos essa década inteira a formação dos

jovens. Todo o trabalho está focado na formação do jovem. Porque podemos formar

interlocutores. O jovem é o cara que chega sem preconceito, sem muito a perder e já nasceu

na era da informação. O raciocínio e a relação de pertencimento a este tempo já são outros.

Conseguimos apresentar para eles um monte de problemas que passa pelo papel e pela

função do artista hoje, sua responsabilidade histórica, pela necessidade de se tomar o curso

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dos acontecimentos nas mãos, pela importância de se pensar o comum e de se ter uma utopia

que não se realize unicamente no mercado fiduciário.

Sabemos que teremos que rodar o Brasil inteiro, uma, duas, três vezes, levando essa

discussão que travamos aqui – a de como os artistas enfrentarão a impermanência da era da

informação.

Essas questões que apresento a vocês, apareceram em Belo Horizonte, em meados da

década de 1990, quando já estávamos interessados na chegada da economia da informação. E

foi lá, como um enfrentamento desse momento, que em 1998 iniciamos nosso trabalho voltado

para web, construindo um site, que já teve vários formatos e plataformas e, agora, chega a seu

formato público, no domínio exst.net.

A esta altura, vocês devem estar se perguntando por que falo tanto sobre “Era da Economia da

Informação”. Imagino que todos saibam, ou pelo menos percebam, que vivemos um momento

híbrido, composto pela coabitação de duas eras: a mercantil e a da informação. Sabemos que

em todos os momentos que o mundo mudou, a arte, seu estatuto e o papel do artista também

mudaram.

Lembremo-nos da Grécia, a partir do século VII a.C., quando surgem as primeiras pesquisas

que dão origem ao naturalismo idealista e a figura do artífice; da Renascença, com o fim do

feudalismo e o início do capitalismo, quando surge a figura do artista burguês que, apoiado na

ciência, funda o naturalismo realista; e da chegada da Revolução Industrial e Francesa a partir

do século XVIII, que terá seu apogeu e glória no século XX.

Não podemos nos esquecer de que isso que chamamos arte é um campo de conhecimento

acumulado ao longo de séculos, “tijolo por tijolo”, como ocorreu com a filosofia, a matemática, a

medicina etc. De fato, em cada momento da história, os artistas sentem a necessidade de

confrontar com o pensamento da tradição porque, eventualmente, esse pensamento não dá

conta de responder a todas as questões. Em todos os momentos em que o mundo passou por

mudanças incríveis que impactaram decisivamente os artistas, o curso da história foi alterando,

mudando o fazer artístico, a maneira que entendemos o que é arte e até o estatuto do artista.

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A arte praticada hoje, de origem branca, anglo-saxã e ocidental e mercantilista – que precisa do

objeto mercantil para intermediar a relação do autor com o mundo – sobrevive apenas como

commodity; ícone maior na era da economia mercantil globalizada.

Ao mesmo tempo, experimentamos a era da informação; e é algo irremediável. Estão mudando

todas as relações que temos com as pessoas e as coisas, alterando por completo nossa

compreensão de mundo. Passamos por mudanças tão radicais que não há comparação na

história e isso certamente irá impactar a arte no século XXI. Basta olhar, atentamente, que

percebemos tudo ruindo ao nosso redor.

No campo das artes, a primeira a passar pela revolução foi a música, que reinventou o modelo

de produção, comercialização e distribuição, fundando uma nova forma que não depende de

controle centralizado, vertical. Todos os campos estão passando por mudanças profundas, mas

as artes visuais se mantêm conservadoras e caretas, talvez porque sua força resida,

unicamente, na condição do produto: commodity.

No nosso trabalho, antes de tudo, estão as questões éticas e em seguida as questões

estéticas, sem distinção; uma não é maior ou menor que a outra, melhor ou pior; são partes do

mesmo trabalho, mas o problema central não é mais a visualidade.

Podemos dizer que, de certa forma, esse tipo de prática é uma torção no eixo de expressão, ou

melhor, no léxico da arte – naquilo que confere sentido à sua linguagem. Estamos falando de

algo que determina a condição de existência da obra de arte, independentemente da poética

empreendida por cada artista em particular. É o que torna a arte passível de ser comercializada

e instituída em museus.

Nós construímos esse léxico ao longo dos séculos e, como já dissemos, toda vez que o mundo

muda, o léxico da arte também muda. E agora, ele passa por um momento de torção dos mais

violentos. Ao propor uma torção no léxico de expressão da arte, procuramos retomar o poder,

restabelecer intensidade nas relações e retardar a experiência de percepção do tempo.

Um dos artifícios que usamos – diante da compressão do tempo que experimentamos hoje,

que antecipa o futuro e reprograma o passado – é propor um trabalho aberto, em processo e

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colaborativo, articulando-se horizontalmente, no corpo social e na “membrana” do sistema,

atuando na “economia política da arte”.

Trata-se de um programa em processo que não se apreende no instante. Será necessário

participar de uma experiência artística dilatada de tempo, que vai se construindo na medida em

que estabelecemos laços, numa prática que denominamos “Arte como artifício”. É o artista e

sua imagem no centro do problema, e o maior capital, agora, é a audiência e a confiança.

Pergunta: É engraçado que por mais que se tente correr desse sistema de galeria, do

mercado, do produto ..., até para o seu trabalho atuar, como é o seu objetivo, como

transformador social ou como uma coisa além da imagem, ele acaba sendo obrigado a passar

por esse sistema da imagem da galeria que já existia, não é?

FM: De certa forma sim, mesmo porque, estamos falando de um momento de transição que

não sabemos qual é, e nem para onde vai. Estamos conversando mais sobre dúvidas do que

sobre certezas. O que temos no momento são apenas indícios. Olhando para o trabalho que

produzimos até aqui, já identificamos uma série de operações que, de fato, nos permitem

estabelecer uma relação com a história e entender que algo diferente está acontecendo.

Ainda que estejamos imersos nos problemas da tradição, essas questões – que devem ser

administradas – deixaram de ser o problema central. Como já disse, não raciocinamos mais

através dos problemas da representação, ou sequer nos interessa transformar uma matéria ou

construir uma imagem técnica. Não queremos falar do mundo, muito menos através da

visualidade.

Mas, voltando ao problema do mercado, sabemos, com clareza, que não existe vida para a arte

fora do mercado, tenha ele a face que assumir. Pode ser o mercado de galerias e feiras de

arte, que é o mais glamoroso e que movimenta cifras milionárias; o mercado das instituições

acadêmicas que repousa nas universidades; o mercado das fundações e instituições que

disponibilizam bolsas e residências; além de uma rede de apoio público com uma infinidade de

editais nos mais diversos formatos, que, juntos, viabilizam a movimentação do sistema para

além das galerias comerciais.

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Mas há também, e cada vez mais, os mercados não monetários, que é onde trabalhamos e que

estamos ajudando a construir há mais de quinze anos. Uma das coisas que torna fascinante a

era em que vivemos é que podemos construir nosso mercado, o que implica formar

pensamento, público e consumidores, de forma horizontal. Não é à toa que temos andado na

margem do sistema. Entendemos que o trabalho que fazemos atua na membrana do sistema,

portanto, no que denominamos por “economia política da arte”. O importante é perceber que

hoje o trabalho de arte pode habitar mais de um mercado e, portanto, um não exclui o outro

mas, o que vale mesmo é a ética com a qual transitamos entre eles.

Pergunta: Penso que hoje em dia dá até para você conseguir essas transformações e ao

mesmo tempo relacionar com o mercado de galerias. O difícil é ter essa medida.

FM: É de fato uma medida difícil. Ou você resiste e paga um ônus muito grande pois, para o

pensamento conservador da tradição, quem não trabalha com galeria significa não existir. Para

os que pensam verticalmente, você só existe quando está em uma galeria e é colecionado,

seriamente.

Podemos falar do nosso trabalho. Temos articulado parcerias episódicas que podem se

renovar, mas preferimos manter como estratégia central do trabalho operar à margem,

mobilizar sem dinheiro, mobilizar a energia das pessoas e fazer a coisa acontecer. Cada vez

mais a coisa acontece a partir dos nossos deslocamentos pelo mundo.

Foi assim com Procedimentos contemporâneos, em 1998, em Minas Gerais, na Escola

Guignard, e também com Abotoados pela manga [Imagem 03], projeto de ocupação que

fizemos em 2010, em São Paulo, paralelamente à Bienal, quando mobilizamos grana, apoios e

energia, sem precisar usar o sistema oficial de financiamento e divulgação, mas, ao contrário,

confrontando.

Trabalhamos o tempo todo na estrutura do sistema, usando todos os mecanismos da rede de

forma aberta e colaborativa. Fugimos de tudo propositadamente e foi uma estratégia cara,

difícil e arriscada, mas vitoriosa porque colocamos uma bandeira no nosso tempo.

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[Imagem 03]

Abotoados pela manga | Franz Manata e Saulo Laudares, 2010

Realizado em São Paulo, simultâneo à Bienal

Pergunta: Essa opção de não fazer o seu trabalho para atender o mercado tem um custo muito

alto até no próprio tempo que você dedica para esse trabalho. Essa é a grande questão dos

artistas: se financiar e construir o pensamento do trabalho.

FM: Sim. Isso é um problema para todos os artistas e cada um vai ter que arrumar sua solução,

pois não existe fórmula. Como fazemos para viabilizar nossa vida e nosso trabalho é uma

grande questão e um grande problema. Fizemos um exercício de resistência nestes anos e

percebemos que, ao invés de cair no mercado, preferimos criar o pensamento do trabalho e

agora temos um conjunto que pode apontar a direção que estamos seguindo.

Pergunta: Você fala “nós”, sei que tem uma parceria com o Saulo Laudares há muito tempo.

Você consegue identificar, hoje, à sua volta, outras pessoas que estão em uma mesma

vibração?

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FM: Isso é algo que nos perguntamos sempre e conseguimos perceber alguns problemas

próximos, algumas fricções. O que podemos dizer, e temos certeza disso, é que isso que

estamos fazendo hoje vários artistas já fizeram, mas também sabemos que ninguém fez como

estamos fazendo, e é aí que está a diferença.

O que temos visto é uma série de pessoas (não necessariamente artistas) tangenciando

problemas parecidos, mas não da maneira que temos feito, o que não exclui a possibilidade de

existir sincronicidade de pensamento, ou seja, pessoas chegando às mesmas sínteses, por

caminhos diversos e em distintos locais. O que não temos ainda é recuo histórico para avaliar

precisamente essa questão.

Glória Ferreira: É muito interessante essa relação de visibilidade e visualidade. Mas de certa

maneira a gente pode pensar, também, que na arte contemporânea é muito mais a questão da

visibilidade.

FM: Visibilidade do quê? Em última instância da própria visualidade do objeto mercantil.

A partir dos anos 70 o artista se transforma no quê? Em alguém que comenta a visualidade do

mundo. Ele se torna um comentarista do mundo, através da visualidade. Ele está centrado, em

certa medida, num comentário visual de algum problema, mas cujo centro reflexivo se dá, na

realidade, na articulação entre a construção formal do trabalho e sua rede de validação.

Lembro-me, por exemplo, na Documenta, de um trabalho de um palestino que fotografava um

campo de refugiados que foram expulsos por Israel. As fotos eram incríveis, lindas,

apresentavam o oposto do que se esperava de um campo de refugiados: a miséria humana.

Algo que fica no limite de um ativismo oportunista que em geral explora a miséria para ganhar

dinheiro, ao vender seus produtos em grande feiras, comprando a consciência desse circuito

“culto” que sustenta a arte.

Então, em certa medida, não é dessa visibilidade que falamos. A visibilidade que é dada à

Palestina fica naquela foto, mas o problema continua lá. Quando falamos de visibilidade, não

estamos falando dos problemas da representação ou sua crise.

É a tradição fazendo a mediação subjetiva e estamos falando o contrário. Propomos atuar de

fato, construindo uma relação direta com o outro através de uma mediação objetiva.

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Pergunta: Eu estou me lembrando da atuação do artista nessa inserção de situações que se

abrem para ele, várias coisas podem acontecer e acabam se incorporando ao trabalho. É a

atuação do terrorista e do espião, o terrorista se esconde, vai lá joga uma bomba e se esconde

de novo. E, o espião está dentro o tempo inteiro, ele está ali, no momento em que aparece uma

oportunidade ele faz alguma coisa ali, desarruma, mas ninguém sabe, exatamente, o que ele

está fazendo. Eu acho que os artistas, hoje, oscilam entre essas duas atuações, entre ser o

terrorista e o espião. Quer dizer, você pode, no seu ateliê, preparar um objeto para ser vendido,

e isso reverbera, explode; obviamente se for um bom trabalho. E, por outro lado, você pode

fazer uma ação como essa em que você mobiliza uma série de pessoas, você não sabe,

exatamente, que consequências aquilo vai ter, mas você está atuando na realidade, então,

você está dentro. Como você falou, eu vou lá encaro, eu estou lá mesmo. Então, eu acho que

há esses dois extremos, entre ser o terrorista ou ser um espião, acho que está no meio disso.

FM: Acho isso interessante e faz sentido. Mas ainda me parece um raciocínio da tradição.

Estou falando de mudança de ponto de vista, de paradigma, de léxico, portanto, de como

raciocinar.

É interessante porque se preparo o objeto e o levo para o mundo, como uma bomba a ser

disparada, e ela pode de fato disparar, afinal é assim que a tradição nos ensinou, e ao disparar

pode transformar o mundo, a sociedade e até a percepção do tempo como um todo.

Fico me perguntando, sinceramente, se isso que se cumpriu durante parte do século XX, ainda

hoje consegue ter impacto ou se isso é um dos mitos que construímos e que a gente reproduz.

Minha fala não invalida a crença do outro ou qualquer outra prática, mas tenho dificuldade em

acreditar que essa arte que praticamos, moderna por excelência, tenha essa potência, dada a

exuberância, sofisticação e radicalidade do mundo real.

Estamos falando de algo paradoxal, pois na arte habita um par antitético. Algo que em tese não

poderia esta junto. Podemos dizer que é algo como faces de uma mesma moeda. De um lado,

temos a dádiva, que é o lado da entrega, da criação – o artista tem a necessidade de fazer algo

que a princípio o mundo não precisava e que não tinha e uma vez posto no mundo pode

transformar a vida de alguém, de uma sociedade e até de um tempo – mas por outro, quando a

arte chega a esses estágios na cadeia de institucionalização ela migra para a outra face, que é

o lado da commodity.

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O jovem tende a achar que arte é fazer o objeto, pintar a tela ou realizar a foto, isso na

realidade não passa de cinquenta por cento do trabalho, nos outros cinquenta reside a inserção

do trabalho, a construção do pensamento e a inscrição na posteridade, entre inúmeras outras

coisas.

O que vemos hoje é que o campo da dádiva foi suplantado pelo campo da commodity. Hoje,

quem comanda e produz a construção simbólica do nosso tempo é a commodity, não mais o

artista.

Até os anos 60 e 70, quem conduzia a história era o artista, ele vinha na frente, e atrás dele,

friccionando e construindo sentido, ficavam: o curador (figura que estava surgindo), os diretores

de museus, feiras, críticos, historiadores, e essa turma é quem consolidava o saber artístico de

uma época, mas era o artista que puxava a história.

A partir dos anos 70, quando o modelo historicista do desdobramento histórico dá sinais de

fadiga, o que os artistas fazem? Entregam nas mãos dos agentes do sistema (diretor de

museu, curador, galerias, feiras etc.) o direito de conduzir a historia e validar o que é arte. Isso

é como se a gente entregasse a chave do galinheiro para as raposas, e é sob essas

circunstâncias que vivemos e produzimos arte hoje.

Vejam a lista dos 100 nomes mais importantes da ArtReview; é raro aparecer artistas entre os

primeiros lugares (na lista de 2012 aparece apenas o Ai Weiwei, a maior estrela midiática do

ativismo chinês na terceira posição, e três brasileiros sendo um galerista na 71ª, um

colecionador na 80ª e um curador na 98ª posição). Mesmo que essas listas signifiquem pouco

e ao mesmo tempo muito pois representam o raciocínio vertical que ainda norteia a cadeia de

validação da arte, isso nos mostra que o artista não tem mais importância, exceto quando

possui uma commodity de peso. Nesse sistema, não é ele quem puxa o pensamento e a

história.

Pergunta: Eu queria fazer duas perguntas, a primeira voltada para o seu trabalho. Você falou

de tornar algo visível, como possibilidade, e você associou isso com uma palavra-chave que é

compartilhar, e aí eu te pergunto compartilhar o quê? Uma ideia de compartilhamento?

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FM: Eu acho que assim, a palavra compartilhar está em todas as suas acepções, compartilhar

o encontro e a experiência em todos os sentidos. Isso é algo que me remete a Antônio Negri,

filósofo italiano que escreveu com o americano Michael Hardt O império, que na conclusão do

livro fala algo muito interessante, e que os artistas precisam pensar nisso: mais importante do

que o público e o privado é o comum, e você só chega ao comum quando entende a noção de

compartilhar. O mais importante para a gente é pensar no que é comum.

Pergunta: Eu posso dizer que, talvez, a preocupação central do trabalho seja compartilhar uma

ideia de compartilhamento? Quer dizer, você socializar, levar para as pessoas que elas podem

compartilhar as coisas.

FM: Eu acho que isso é uma boa visão, mas eu não diria que isso é a visão total do trabalho.

Eu procuro uma frase que dê conta disso mas ainda não encontrei. Desde que comecei a

produzir procuro a frase que pudesse sintetizar o meu trabalho, porque é melhor que você

invente do que deixar para o curador ou o jornalista inventar. Essa é uma das maneiras, mas

eu ainda estou procurando essa frase que consiga sintetizar tudo, mesmo sabendo que serão

várias, uma a cada momento.

Pergunta: A primeira pergunta era sobre compartilhamento, a segunda sobre o autor. É bem

conflitante isso que você fala porque quando eu penso em compartilhamento estou pensando

em uma socialização de tudo, e aí não tem como não pensar no Beuys, todo mundo é artista,

potencialmente, todos somos artistas, e como fica isso?

FM: Acho que é isso aí. Beuys é um desses que alargaram o pensamento ao seu tempo, ao

afirmar que todos podem ser artistas, mas ao fazer isso estava afirmando o mito do artista

carismático, que sabe do poder que tem ao nomear o que é arte, de ser o “grande ilusionista”,

encarnando o mito do artista moderno.

Achamos que o problema hoje não é mais ser artista e sim estar artista, o que implica uma

mudança de pensamento, de ponto de vista.

A exemplo do que aconteceu em alguns momentos da história, que foram movidos por homens

públicos de espírito público, colocamos em curso um ajuste no “relógio” da arte. É isso que

precisamos fazer agora: ajustar o relógio outra vez. Mas diferente do século XX quando

corríamos atrás do relógio dos outros, hoje, todos os relógios encontram-se atrasados.

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Pergunta: Você falou dessa figura do artista. Você fala de artistas muito pontuais, como

Duchamp, Cildo, Lygia e Hélio, e parece que esses artistas são centrais no processo de

“empoderamento” do espectador e que esses caras queriam superar o lugar do artista como

figura central, mas, na verdade, você acha o contrário, que ele tem que voltar a ser uma figura

central. A minha pergunta é: esse artista ainda vai continuar uma figura central?

FM: Depende do ponto de vista que adotarmos. Por um lado, qualquer coisa que afirmar, nesse

campo, pode ser falácia e futurologia, porque isso está sendo construído no processo, sob

nossos pés. Mas penso que ele deixou de ser a figura central há muito, mas também acho que

cada vez mais é o artista que será o centro do problema. Como ele se desloca no mundo é que

será o problema do trabalho. O trabalho vai ser o artista, onde o artista está e o que ele está

fazendo. É assim que sinto e é assim que praticamos. Cada vez mais o trabalho é sobre como

mobilizamos energia, como nos deslocamos no mundo, construindo laços.

Pergunta: Mas, talvez, esse voltar para o artista não seja tão no sentido autoral. Mas estar

como um mediador, um canal de transformação de ideias.

FM: Exato, ele fica escondido, diluído. Ele é apenas um canal, um hub. Mesmo que precise de

algum espaço ou qualquer “meio físico” (que, neste caso, é totalmente desprovido de problema

estético, mas não de valor estético) ele estará sempre no tempo.

Está na hora de refazermos as regras do jogo, ou melhor, está passando da hora. Costumo

dizer que estamos caminhando para o futuro de costas, olhando apenas para os anos de 1960

e 70, e precisamos virar para frente, urgente.

Pergunta: Será que virar para frente não é estar no presente?

FM: Sim, é estar no presente, mas olhando, agora, para a construção do futuro, que não sei o

que é.

* Este texto foi produzido a partir de uma palestra editada e publicada no livro “A Imagem em questão”, organizado

por Glória Ferreira e Luiz Ernesto, durante o programa de Desenvolvimento e Aprofundamento - “Projeto de

Pesquisa”, da Escola de Artes visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro, que no ano de 2012 investigou a natureza

da imagem por diversos pontos de vista e campos de pensamento.