Som e Imagem no Nosso Tempo
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SOM E IMAGEM NO NOSSO TEMPO *Franz Manata
Agradeço o convite de Glória Ferreira e Luiz Ernesto, e também a atenção desta audiência
qualificada. É sempre um prazer falar sobre o trabalho, o pensamento e o que estamos
desenvolvendo.
É preciso antes esclarecer que ao falar “nosso trabalho”, estarei me referindo ao meu parceiro
de vida Saulo Laudares, com quem venho produzindo esse pensamento e trabalho há
dezessete anos, e que teve participação fundamental na redação final deste texto.
Ficamos instigados pelo desafio de pensar que “papel” tem o som e a imagem em nosso
trabalho. Conversamos bastante sobre como tratar a questão e resolvemos abordá-la pelo
conceito de ação presente em nosso pensamento, demonstrando, assim, que nossas questões
não residem no problema da representação ou sua crise e, sim, em nossos deslocamentos
pelo mundo.
Primeiro, vou mostrar como articulamos o lastro histórico de nosso pensamento e como
estabelecemos aproximações e distanciamentos com a tradição, procurando atualizar
discursos e “pontos de vista” para nossa percepção de tempo e espaço de forma pessoal e
existente.
Dentre inúmeras possibilidades, para ilustrar nossa conversa, recorreremos a Cildo Meireles,
Lygia Clark e Hélio Oiticica, que têm peso fundamental em nossa formação, e Robert Morris e
Rolland Barthes que aparecem aqui de forma circunstancial, mas não menos importante.
Pensando sobre este desafio, deparamo-nos com o vídeo Cildo Meireles, de Wilson Coutinho,
realizado em 1979. Desse vídeo retiramos três afirmações que demarcam o momento histórico
e as principais questões apresentadas pelo trabalho de Cildo durante a década de 1970; e
além de ser ponto de inflexão entre o moderno e o contemporâneo, nos dá uma pista de como
enfrentar o tempo presente usando e atualizando algumas ferramentas e procedimentos ali
colocados.
A primeira frase é: “A história das artes plásticas é, ainda, a história do olhar. O que resta fazer
agora são novas construções de imagens. Cildo Meireles constrói essas imagens.”
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Não podemos esquecer que Coutinho está falando de um momento específico da história e do
trabalho de Cildo: os anos 70 do século passado. Estamos falando de um momento de
transição, em que há o esgotamento do discurso historicista das vanguardas modernas –
centrados na autonomia da forma –, dando lugar à discussão acerca da visualidade do mundo.
O que Coutinho está nos dizendo é que Cildo Meireles, então com 21/22 anos, está
interessado em enfrentar o problema da crise da representação e, ao mesmo tempo, criar uma
nova possibilidade para a imagem, que se dê no corpo social.
O trabalho que será o veículo mais poderoso dessa mudança – e talvez um dos mais
fascinantes já feitos na arte brasileira – é Inserções em circuitos ideológicos / Projeto Coca-
Cola, apresentado na exposição “Information”, em Nova Iorque; importante mostra conceitual
organizada pelo MoMA em 1970, tornando-se um trabalho paradigmático.
Cildo, em um pequeno texto chamado “Inserções em circuitos ideológicos”, escrito entre 1970-
75, afirma que “não estávamos mais trabalhando com metáforas (representações) de
situações, mas com a situação mesmo, real. [...] Era um trabalho que, na realidade, não tinha
mais aquele culto do objeto, puramente: as coisas existiam em função do que podiam provocar
no corpo social.” (in: Cildo Meireles. Cosac Naify-Phaidon Press, 1999, p. 110)
Passados os cem primeiros anos da vanguarda moderna, em um gesto que afirma seu último
fôlego, Cildo diz que ainda era necessário investigar os “aspectos formais da linguagem”, e
“produzir um objeto que pensasse produtivamente (criticamente, avançando e aprofundando)
entre outras coisas, um dos mais fundamentais e fascinantes de seus projetos: os readymades
de Marcel Duchamp.” (in: Cildo Meireles. Op. cit., p. 108)
Estamos falando de uma mudança profunda, de um enfrentamento poderoso: a crise da
representação instaurada, mais ou menos, em meados do século XIX, com o quadro Almoço
na Relva, de Eduard Manet, apresentado no Salão dos Recusados em 1863, que inicia um
repertório caro à arte moderna e contemporânea, que nos permite navegar até hoje na forma
de ideias ou ideais icônicos.
No lugar da operação duchampiana, que foi deslocar um objeto industrial para o circuito da arte
e nomeá-lo como tal, Cildo Meireles vai fazer o exercício oposto, pegar um objeto
eminentemente simbólico para atuar no meio circulante da economia. Mesmo sabendo que, na
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prática, o trabalho se dá apenas no plano simbólico e se cumpre apenas ao enunciar-se
poeticamente.
O mais curioso é que Cildo Meireles consegue cumprir sua aventura. Ele, de fato, consegue
expandir o readymade e nos deixa um trabalho que é, antes de tudo, um gesto poderoso que
aponta um vetor de direção e sentido que se perdeu ao longo da história e que agora, no
século XXI, nos interessa resgatar para atuar diretamente no corpo social, num cruzamento
que se dá na membrana da arte, ou melhor, no que denominamos por “economia política da
arte”.
Cildo propõe a substituição da visualidade pela prática política. Isso nos interessa porque essa
prática pode ser uma importante ferramenta para enfrentar a temporalidade na era da
informação, e mudar o eixo de importância, até agora centrado na visualidade, para a
visibilidade, que atue no corpo social, transformando realmente o ambiente da vida humana.
Retomando, de certa forma, uma vocação utópica necessária aos dias de hoje.
Ainda no vídeo, Wilson Coutinho afirma que o trabalho de Cildo tem a ver com “prática de
sonhos e de planos de sabotagem para transformação social”, e termina: “Isto é visível.” Para
nós, hoje, isso é viável.
Talvez o trabalho que melhor sintetize a natureza e o peso que a imagem e som têm em nosso
pensamento seja Verbos. Ele começa a surgir em meados de 2011, a partir do convite de
Fernando Cocchiarale, para integrar a exposição “Caos e efeito”, ocorrida no Itaú Cultural SP
que teve, como ideia central, a discussão sobre o que poderia apontar para questões que
estariam na pauta desta década. O mote da exposição nos pareceu, a princípio, um exercício
de futurologia, mas era, também, um desafio interessante. A única clareza que tínhamos é que
aquele seria um trabalho no campo da apresentação. Decidimos, então, mostrar como
trabalhamos, nossas operações conceituais e a ética presente em nossos posicionamentos.
Assim nasceu Verbos, naquela ocasião como uma instalação audiovisual composta por uma
sala dividida ao meio, que recebe duas projeções apresentando nosso nome em cada uma das
telas. Os áudios contêm, separadamente, o depoimento de cada um, compondo nosso
statement verbal que, agora, está disponível em nossos canais na internet
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[vimeo.com/36986303 - vimeo.com/36986781], e que talvez tenha sua melhor existência num
podcast.
O problema central desse trabalho reside na oralidade. Na nossa fala, e não na
videoinstalação. Somos nós nos posicionando e, ao mesmo tempo, nos apresentando.
Quando iniciamos sua produção não sabíamos aonde chegar. Resgatamos grande parte do
que escrevemos sobre o trabalho nesses anos e colocamos num documento compartilhado
para trabalhar na edição. Seguimos organizando, cortando e editando as informações em
busca de uma alternativa, pois apenas “ler” todo aquele material ficaria monótono. Resolvemos,
então, anotar as principais questões e gravar uma conversa informal.
A etapa seguinte levou dois dias. Foram oito horas de material, editado para duas trilhas de,
aproximadamente, sete minutos cada. Neste ponto entra Bruno Queiroz, parceiro de trabalho e
amigo, que assina a edição conosco. O áudio não traz uma narrativa linear, pelo contrário, é
fruto de dezenas de edições e cortes, de forma que pareça algo natural, mas que também
possa “pegar” o espectador desavisado que, com quinze, vinte segundos, ao escutar uma ou
duas falas, se dá conta de parte do pensamento.
Em Verbos, nós nos apresentamos e nos posicionamos acerca de nossas intenções, num
“diálogo” com falas complementares que se sobrepõem. Não se trata de um trabalho no campo
da representação, mas no campo da apresentação. E, também, é possível “olhar” o trabalho
com as “chaves” conceituais da tradição.
Em certa medida, Verbos nos lembrou de uma frase de Robert Morris acerca de seu famoso
trabalho Untitled, de 1965/71, que revolucionou a escultura ao desmaterializá-la fundindo obra,
espaço e arquitetura em instalação que nos incorpora, ao apresentar quatro cubos de madeira
revestidos por espelhos inseridos num “cubo branco” (galeria), por onde somos convidados a
percorrer, sobrepondo o problema da imagem ao da escultura.
Voltando à frase de Morris. Diante das críticas a seu trabalho, ele disse: “O objeto não se
tornou menos importante. Ele limitou-se a tornar-se menos autoimportante”. O que ele está
fazendo naquele momento é confrontar o objeto autônomo, centrado em um tipo de
originalidade formal, quase sempre faber (princípio da arte moderna), que agora dá lugar a um
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objeto cujo problema não reside unicamente no cubo de madeira revestido por espelhos e, sim,
em como eles potencializam o espaço, nos incluem e geram inúmeras imagens.
Enquanto conversávamos sobre as aproximações e distanciamentos com nossas referências,
num exercício lúdico (e abusado), reescrevemos a frase de Morris, que ficou assim: “O objeto
não se tornou menos importante. Ele só não é mais o problema central da arte.” (After, Morris)
Não é que o objeto em si, o som ou a imagem, tenha deixado de ter importância – ele tem de
ser administrado (e também cuidamos disso), pois é aí que se fricciona com a tradição –, mas
ele já não é fundamental como único veículo para a arte. Nosso raciocínio não se dá mais pela
visualidade do mundo, pois, a princípio, não queremos comentar nada. Buscamos, sim, agir
decisivamente nele. A visualidade percebida em nosso trabalho é tratada como “produto” dele;
derivativos dos nossos deslocamentos.
A partir desse trabalho, a problemática da imagem se desloca para nós autores e em como nos
deslocamos no mundo.
O que estamos propondo é o oposto – embora inspirado – ao que foi feito por Lygia Clark e
Hélio Oiticia, cujos exercícios centrais do trabalho eram no sentido de “empoderar” o outro
(termo cunhado por Lygia), até então espectador, tornando-o participador.
O que fazemos é retomar o poder para as mãos do artista posicionando-nos no centro da
questão, como estratégia de resistência, numa época regida pela economia da experiência em
que todo o espaço relacional é gerido por departamentos de marketing. Por isso estamos
interessados nos comuns, nas pessoas que não são “especialistas”. Queremos enfrentar como
chegar até eles. Ao invés de ir para o mundo, criar objetos e trazê-los para este gueto chamado
arte, nós estamos interessados em atuar diretamente no mundo.
Nossa estratégia principal é usar o som em todos os seus aspectos, principalmente o da
oralidade. O som tem um valor agregador, possibilitador e não pede especialista e, para nós,
ele é tratado como dispositivo social. E é justamente por essa razão que denominamos o duo
como SoundSystem. Porque, somos nós o “sistema de som”. Em geral, todo o trabalho surge a
partir da oralidade, de como mobilizamos energia, construindo situações com entrega pública
real, numa troca direta com o outro.
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Tradicionalmente coube ao som habitar o tempo e às artes plásticas ou visuais, o espaço.
Quando se escuta uma música, apreende-se o som apenas no pensamento e no coração, pois
aquilo se dá durante um determinado tempo. O que a arte fez ao longo do século XX foi juntar
a experiência do espaço e do tempo, numa experiência sinestésica. E, de fato, o som é um
problema do século XX. Sabemos que o século XIX é um século mudo, e que o século XX
completamente ruidoso. É como se elevássemos o volume “máster” do mundo, pois é a era do
motor a explosão, do mundo em movimento, do início das megalópoles.
Os primeiros a desenvolver interesse por essas questões – pensando o som como um campo
de investigação para a arte e se interessando pela valorização do entorno acústico – foram os
futuristas, com os manifestos (“L’arte dei rumori” , 1913, de Russolo e “La radia”, 1933 de
Marinetti e Masnata) e, também, Marcel Duchamp, que vai introduzir duas noções importantes:
a de escultura musical, com o trabalho Sculpture musicale (c. 1913) , ao afirmar que o “som
também ocupa espaço” (em notas publicadas na Caixa verde, de 1934); e a de acaso com o
happening sonoro (c. 1913) Erratum musicale (para três vozes), no qual notas musicais,
anotadas em pequenos papéis, são colocadas em uma cartola e sorteadas aleatoriamente para
serem pronunciadas individualmente ou por um coro, influenciando, decisivamente, todo o
pensamento do século XX, em especial o de John Cage, que foi quem deu densidade histórica
a esses problemas.
Curiosamente, durante grande parte do século XX, achávamos que as experiências com som e
imagem eram separadas. Mas hoje sabemos que são indissociáveis; não existe uma
experiência imagética sem som e não existe uma experiência sonora sem imagem. Quando
você vai a um museu e vê um quadro, sua experiência é permeada por uma gama de sons que
estão a sua volta, e isso é inseparável. Para nós, a arte e o som englobam: o tempo que passa,
o espaço que ocupa e a relação que estabelece.
Como já dissemos, para nós o som tem o valor de um dispositivo social, facilitador, deflagrador
desses encontros e, melhor, sem pedir especialistas. A visualidade não é nosso primeiro
problema, não temos o interesse de tratar o mundo pela visualidade e muito menos pela
espacialização do som. Para nós, tanto o som quanto a imagem assumem distintos papéis,
sempre a serviço de algo.
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Em nossos trabalhos, temos usado signos universais ou coisas que se assemelhem, como:
alto-falantes, canto de pássaros, batida de coração, malhas de quebra-cabeças e elementos
bem óbvios, num tentativa (em vão) de tirar a atenção da visualidade.
É nesse contexto que surge, por exemplo, a malha do quebra-cabeça em ThePlace. Para nós,
o quebra-cabeça tem a função de demarcar o espaço da ação, mas, ao longo do tempo,
percebemos que também poderia ser uma resposta à “grade” modernista se incluirmos a
pergunta: que natureza terá esse “plano” hoje, na era da informação?
Isso tem um peso fundamental para nós. Faz-nos pensar que a tradição lida com uma
mediação subjetiva, ou seja, o artista precisa de um objeto estético mediando sua relação com
o mundo. Envolvemo-nos hoje com o que chamamos de mediação objetiva. Trata-se, agora, do
nosso deslocamento no mundo, de forma objetiva, como “local pra chegar” e “resultados pra
alcançar” (palavras banidas da história da arte), geralmente movidos por uma entrega pública.
O problema do som no trabalho se desloca para o campo da oralidade e a imagem, agora, para
a dos artistas. É mais importante a imagem do artista do que as imagens que produz. O artista
tem de ser mais importante que a obra.
Foi com a residência Atividades sonoras [Imagem 01], durante o 48º Festival de Inverno da
UFMG de Diamantina (MG), em 2011, que tivemos a confirmação do quão importante seria
instituir nossa “área de trabalho”. A partir do convite para uma oficina, algo que não
acreditamos pois, ministrar uma oficina significa ensinar um oficio para alguém, e esse é um
conceito moderno. A gente não trabalha com “oficinar”, menos ainda "incubar", a nossa crença
está em acelerar processos.
Ao chegar à cidade deparamo-nos com a falência do modelo do festival, que não conseguia
comunicar com a comunidade local e nem mobilizar interessados pelo Brasil, como fez por
muitos anos, formando gerações de artistas e pensadores. Resolvemos, então, mudar a
estratégia de trabalho e transformar o espaço em nosso ateliê, potencializando e
estabelecendo “laços” com todas as oficinas, inclusive, com a residência organizada pelo
diretório dos estudantes que, de longe, foi a melhor experiência da temporada em Diamantina.
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[Imagem 01]
Atividades sonoras | Franz Manata e Saulo Laudares, 2011
48º Festival de Inverno da UFMG, Diamantina (MG)
Passadas três semanas, estávamos nos relacionando com a cidade e seus agentes. Dos
coordenadores de área, aos diretores da escola, passando pelo Em cômodo (residência
colaborativa organizada pelo diretório central dos estudantes da EBA/UFMG que, segundo
eles, é “um espaço que constitui, de maneira primordial, a impossibilidade de Ser, como objeto
e indivíduo") e até com os cursos e as oficinas do festival (artes visuais, dança, música,
literatura e multimeios), ajudando produzir de maneira colaborada vários trabalhos.
Além de intervir objetivamente na realidade do festival e da cidade, nosso trabalho, ao final do
encontro, foi a possibilidade de mobilizar energia, levantando discussões, revendo paradigmas,
abrindo possibilidades de enfrentar o pensar e o fazer arte na era da informação; esse
momento fascinante em que vivemos. O final do encontro foi mágico dado o resultado e
alcance. Foi uma experiência transformadora para nós porque tivemos a certeza de que algo,
que havia começado em 1998 na Escola Guignard /UEMG com Procedimentos
contemporâneos, se afirmado em 2010 com Abotoados pela manga, em São Paulo, agora era
parte fundamental do nosso caminho – mobilizar energia e compartilhar experiências.
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O primeiro momento em que a noção de compartilhar aparece foi com ThePlace [Imagem 02],
de 1998, que também foi o primeiro trabalho que assinamos juntos, apesar de nossa parceria
ter começado em 1995.
[Imagem 02]
ThePlace | Franz Manata e Saulo Laudares, desde 1998
Realizado em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brest, Praga, entre outros
O trabalho sempre existiu, mas como consciência artística tem seu primeiro momento em
ThePlace. Nem sabíamos ao certo se era de fato um trabalho de arte. Mas foi, para nós, um
momento revelador porque trouxe essa palavra fundamental que é compartilhar e a
compreensão de que todo nosso trabalho seria dedicado ao outro, num programa em processo
aberto e colaborativo. O trabalho é muito simples e acontece, basicamente, em duas etapas. A
primeira é a negociação com a instituição ou com o espaço que vamos ocupar (cessão de
algum equipamento e logística para receber a participação de terceiros); em um segundo
momento sinalizamos o espaço, com o grafite de um quebra-cabeça e, ao mesmo tempo,
distribuímos flyers e convites, chamando a comunidade local para participar daquela
experiência, que inicialmente era deslocar o dance floor para o espaço de arte.
Há alguns anos, fomos perguntados se conhecíamos o Dream house, trabalho fabuloso de La
Monte Young e Marian Zazeela – um casal que participou do grupo Fluxus. Foi uma feliz
coincidência, pois naquela época, não conhecíamos o trabalho e vimos que tinham uma
frequência muito parecida. Mas com diferenças básicas: o Dream house tem um mantra que
permeia o espaço que por sua vez é banhado por uma luz fúcsia. O nosso trabalho, em alguns
casos, pode servir para esse fim que é meditar, acalmar; e de certa forma tem similaridades,
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pois, interessa-nos desacelerar como estratégia de enfrentamento da percepção de tempo na
era da informação, mas o que queríamos naquele momento era compartilhar a experiência da
pista de dança.
Tudo começa em 1998, quando eu e Saulo, lemos um pequeno livro com aforismos escrito por
Rolland Barthes, durante uma viagem ao Marrocos, chamado Incidentes. Nesse texto, ele dá
um depoimento revelador. Um soco no estômago. Em menos de uma página ele descreve a
experiência que teve em uma boate francesa, que, na época, era considerada o templo da
dança. Barthes, com sua eloquência, capacidade de descrição fabulosa e escrita sedutora,
descreve a potência desse encontro.
Naquele momento, em uma conversa, pensamos: “Há quanto tempo não temos uma
experiência como esta diante de um trabalho de arte, como podemos fazer para, de fato, trazer
essa intensidade do encontro para a experiência artística?” Aí está uma palavra que não existe
mais – intensidade. Não existe intensidade em nada, até as relações, que se dão com base na
utilidade e no interesse, vêm transformando a sociedade e a arte, por consequência, em algo
cínico, oportunista e de baixa intensidade.
Quando foi a ultima vez, que vocês foram a algum lugar – e vejam que aqui são todos iniciados
– e ficaram sem fôlego diante de um trabalho de arte?
Como disse, nossa prática não lida mais com a experiência artística centrada na representação
ou sua crise; mesmo que friccionando com a tradição, a arte se dá no tempo do instante. No
encontro conosco. Propomos uma apreensão dilatada do tempo para a apreensão do trabalho.
É preciso, primeiro, estabelecer laços entre nós, costurando lentamente um sentido e a
compreensão da existência de um trabalho de arte, que só será apreendido no somatório de
inúmeros instantes.
E é por isso que, como artifício do trabalho, dedicamos essa década inteira a formação dos
jovens. Todo o trabalho está focado na formação do jovem. Porque podemos formar
interlocutores. O jovem é o cara que chega sem preconceito, sem muito a perder e já nasceu
na era da informação. O raciocínio e a relação de pertencimento a este tempo já são outros.
Conseguimos apresentar para eles um monte de problemas que passa pelo papel e pela
função do artista hoje, sua responsabilidade histórica, pela necessidade de se tomar o curso
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dos acontecimentos nas mãos, pela importância de se pensar o comum e de se ter uma utopia
que não se realize unicamente no mercado fiduciário.
Sabemos que teremos que rodar o Brasil inteiro, uma, duas, três vezes, levando essa
discussão que travamos aqui – a de como os artistas enfrentarão a impermanência da era da
informação.
Essas questões que apresento a vocês, apareceram em Belo Horizonte, em meados da
década de 1990, quando já estávamos interessados na chegada da economia da informação. E
foi lá, como um enfrentamento desse momento, que em 1998 iniciamos nosso trabalho voltado
para web, construindo um site, que já teve vários formatos e plataformas e, agora, chega a seu
formato público, no domínio exst.net.
A esta altura, vocês devem estar se perguntando por que falo tanto sobre “Era da Economia da
Informação”. Imagino que todos saibam, ou pelo menos percebam, que vivemos um momento
híbrido, composto pela coabitação de duas eras: a mercantil e a da informação. Sabemos que
em todos os momentos que o mundo mudou, a arte, seu estatuto e o papel do artista também
mudaram.
Lembremo-nos da Grécia, a partir do século VII a.C., quando surgem as primeiras pesquisas
que dão origem ao naturalismo idealista e a figura do artífice; da Renascença, com o fim do
feudalismo e o início do capitalismo, quando surge a figura do artista burguês que, apoiado na
ciência, funda o naturalismo realista; e da chegada da Revolução Industrial e Francesa a partir
do século XVIII, que terá seu apogeu e glória no século XX.
Não podemos nos esquecer de que isso que chamamos arte é um campo de conhecimento
acumulado ao longo de séculos, “tijolo por tijolo”, como ocorreu com a filosofia, a matemática, a
medicina etc. De fato, em cada momento da história, os artistas sentem a necessidade de
confrontar com o pensamento da tradição porque, eventualmente, esse pensamento não dá
conta de responder a todas as questões. Em todos os momentos em que o mundo passou por
mudanças incríveis que impactaram decisivamente os artistas, o curso da história foi alterando,
mudando o fazer artístico, a maneira que entendemos o que é arte e até o estatuto do artista.
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A arte praticada hoje, de origem branca, anglo-saxã e ocidental e mercantilista – que precisa do
objeto mercantil para intermediar a relação do autor com o mundo – sobrevive apenas como
commodity; ícone maior na era da economia mercantil globalizada.
Ao mesmo tempo, experimentamos a era da informação; e é algo irremediável. Estão mudando
todas as relações que temos com as pessoas e as coisas, alterando por completo nossa
compreensão de mundo. Passamos por mudanças tão radicais que não há comparação na
história e isso certamente irá impactar a arte no século XXI. Basta olhar, atentamente, que
percebemos tudo ruindo ao nosso redor.
No campo das artes, a primeira a passar pela revolução foi a música, que reinventou o modelo
de produção, comercialização e distribuição, fundando uma nova forma que não depende de
controle centralizado, vertical. Todos os campos estão passando por mudanças profundas, mas
as artes visuais se mantêm conservadoras e caretas, talvez porque sua força resida,
unicamente, na condição do produto: commodity.
No nosso trabalho, antes de tudo, estão as questões éticas e em seguida as questões
estéticas, sem distinção; uma não é maior ou menor que a outra, melhor ou pior; são partes do
mesmo trabalho, mas o problema central não é mais a visualidade.
Podemos dizer que, de certa forma, esse tipo de prática é uma torção no eixo de expressão, ou
melhor, no léxico da arte – naquilo que confere sentido à sua linguagem. Estamos falando de
algo que determina a condição de existência da obra de arte, independentemente da poética
empreendida por cada artista em particular. É o que torna a arte passível de ser comercializada
e instituída em museus.
Nós construímos esse léxico ao longo dos séculos e, como já dissemos, toda vez que o mundo
muda, o léxico da arte também muda. E agora, ele passa por um momento de torção dos mais
violentos. Ao propor uma torção no léxico de expressão da arte, procuramos retomar o poder,
restabelecer intensidade nas relações e retardar a experiência de percepção do tempo.
Um dos artifícios que usamos – diante da compressão do tempo que experimentamos hoje,
que antecipa o futuro e reprograma o passado – é propor um trabalho aberto, em processo e
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colaborativo, articulando-se horizontalmente, no corpo social e na “membrana” do sistema,
atuando na “economia política da arte”.
Trata-se de um programa em processo que não se apreende no instante. Será necessário
participar de uma experiência artística dilatada de tempo, que vai se construindo na medida em
que estabelecemos laços, numa prática que denominamos “Arte como artifício”. É o artista e
sua imagem no centro do problema, e o maior capital, agora, é a audiência e a confiança.
Pergunta: É engraçado que por mais que se tente correr desse sistema de galeria, do
mercado, do produto ..., até para o seu trabalho atuar, como é o seu objetivo, como
transformador social ou como uma coisa além da imagem, ele acaba sendo obrigado a passar
por esse sistema da imagem da galeria que já existia, não é?
FM: De certa forma sim, mesmo porque, estamos falando de um momento de transição que
não sabemos qual é, e nem para onde vai. Estamos conversando mais sobre dúvidas do que
sobre certezas. O que temos no momento são apenas indícios. Olhando para o trabalho que
produzimos até aqui, já identificamos uma série de operações que, de fato, nos permitem
estabelecer uma relação com a história e entender que algo diferente está acontecendo.
Ainda que estejamos imersos nos problemas da tradição, essas questões – que devem ser
administradas – deixaram de ser o problema central. Como já disse, não raciocinamos mais
através dos problemas da representação, ou sequer nos interessa transformar uma matéria ou
construir uma imagem técnica. Não queremos falar do mundo, muito menos através da
visualidade.
Mas, voltando ao problema do mercado, sabemos, com clareza, que não existe vida para a arte
fora do mercado, tenha ele a face que assumir. Pode ser o mercado de galerias e feiras de
arte, que é o mais glamoroso e que movimenta cifras milionárias; o mercado das instituições
acadêmicas que repousa nas universidades; o mercado das fundações e instituições que
disponibilizam bolsas e residências; além de uma rede de apoio público com uma infinidade de
editais nos mais diversos formatos, que, juntos, viabilizam a movimentação do sistema para
além das galerias comerciais.
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Mas há também, e cada vez mais, os mercados não monetários, que é onde trabalhamos e que
estamos ajudando a construir há mais de quinze anos. Uma das coisas que torna fascinante a
era em que vivemos é que podemos construir nosso mercado, o que implica formar
pensamento, público e consumidores, de forma horizontal. Não é à toa que temos andado na
margem do sistema. Entendemos que o trabalho que fazemos atua na membrana do sistema,
portanto, no que denominamos por “economia política da arte”. O importante é perceber que
hoje o trabalho de arte pode habitar mais de um mercado e, portanto, um não exclui o outro
mas, o que vale mesmo é a ética com a qual transitamos entre eles.
Pergunta: Penso que hoje em dia dá até para você conseguir essas transformações e ao
mesmo tempo relacionar com o mercado de galerias. O difícil é ter essa medida.
FM: É de fato uma medida difícil. Ou você resiste e paga um ônus muito grande pois, para o
pensamento conservador da tradição, quem não trabalha com galeria significa não existir. Para
os que pensam verticalmente, você só existe quando está em uma galeria e é colecionado,
seriamente.
Podemos falar do nosso trabalho. Temos articulado parcerias episódicas que podem se
renovar, mas preferimos manter como estratégia central do trabalho operar à margem,
mobilizar sem dinheiro, mobilizar a energia das pessoas e fazer a coisa acontecer. Cada vez
mais a coisa acontece a partir dos nossos deslocamentos pelo mundo.
Foi assim com Procedimentos contemporâneos, em 1998, em Minas Gerais, na Escola
Guignard, e também com Abotoados pela manga [Imagem 03], projeto de ocupação que
fizemos em 2010, em São Paulo, paralelamente à Bienal, quando mobilizamos grana, apoios e
energia, sem precisar usar o sistema oficial de financiamento e divulgação, mas, ao contrário,
confrontando.
Trabalhamos o tempo todo na estrutura do sistema, usando todos os mecanismos da rede de
forma aberta e colaborativa. Fugimos de tudo propositadamente e foi uma estratégia cara,
difícil e arriscada, mas vitoriosa porque colocamos uma bandeira no nosso tempo.
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[Imagem 03]
Abotoados pela manga | Franz Manata e Saulo Laudares, 2010
Realizado em São Paulo, simultâneo à Bienal
Pergunta: Essa opção de não fazer o seu trabalho para atender o mercado tem um custo muito
alto até no próprio tempo que você dedica para esse trabalho. Essa é a grande questão dos
artistas: se financiar e construir o pensamento do trabalho.
FM: Sim. Isso é um problema para todos os artistas e cada um vai ter que arrumar sua solução,
pois não existe fórmula. Como fazemos para viabilizar nossa vida e nosso trabalho é uma
grande questão e um grande problema. Fizemos um exercício de resistência nestes anos e
percebemos que, ao invés de cair no mercado, preferimos criar o pensamento do trabalho e
agora temos um conjunto que pode apontar a direção que estamos seguindo.
Pergunta: Você fala “nós”, sei que tem uma parceria com o Saulo Laudares há muito tempo.
Você consegue identificar, hoje, à sua volta, outras pessoas que estão em uma mesma
vibração?
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FM: Isso é algo que nos perguntamos sempre e conseguimos perceber alguns problemas
próximos, algumas fricções. O que podemos dizer, e temos certeza disso, é que isso que
estamos fazendo hoje vários artistas já fizeram, mas também sabemos que ninguém fez como
estamos fazendo, e é aí que está a diferença.
O que temos visto é uma série de pessoas (não necessariamente artistas) tangenciando
problemas parecidos, mas não da maneira que temos feito, o que não exclui a possibilidade de
existir sincronicidade de pensamento, ou seja, pessoas chegando às mesmas sínteses, por
caminhos diversos e em distintos locais. O que não temos ainda é recuo histórico para avaliar
precisamente essa questão.
Glória Ferreira: É muito interessante essa relação de visibilidade e visualidade. Mas de certa
maneira a gente pode pensar, também, que na arte contemporânea é muito mais a questão da
visibilidade.
FM: Visibilidade do quê? Em última instância da própria visualidade do objeto mercantil.
A partir dos anos 70 o artista se transforma no quê? Em alguém que comenta a visualidade do
mundo. Ele se torna um comentarista do mundo, através da visualidade. Ele está centrado, em
certa medida, num comentário visual de algum problema, mas cujo centro reflexivo se dá, na
realidade, na articulação entre a construção formal do trabalho e sua rede de validação.
Lembro-me, por exemplo, na Documenta, de um trabalho de um palestino que fotografava um
campo de refugiados que foram expulsos por Israel. As fotos eram incríveis, lindas,
apresentavam o oposto do que se esperava de um campo de refugiados: a miséria humana.
Algo que fica no limite de um ativismo oportunista que em geral explora a miséria para ganhar
dinheiro, ao vender seus produtos em grande feiras, comprando a consciência desse circuito
“culto” que sustenta a arte.
Então, em certa medida, não é dessa visibilidade que falamos. A visibilidade que é dada à
Palestina fica naquela foto, mas o problema continua lá. Quando falamos de visibilidade, não
estamos falando dos problemas da representação ou sua crise.
É a tradição fazendo a mediação subjetiva e estamos falando o contrário. Propomos atuar de
fato, construindo uma relação direta com o outro através de uma mediação objetiva.
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Pergunta: Eu estou me lembrando da atuação do artista nessa inserção de situações que se
abrem para ele, várias coisas podem acontecer e acabam se incorporando ao trabalho. É a
atuação do terrorista e do espião, o terrorista se esconde, vai lá joga uma bomba e se esconde
de novo. E, o espião está dentro o tempo inteiro, ele está ali, no momento em que aparece uma
oportunidade ele faz alguma coisa ali, desarruma, mas ninguém sabe, exatamente, o que ele
está fazendo. Eu acho que os artistas, hoje, oscilam entre essas duas atuações, entre ser o
terrorista e o espião. Quer dizer, você pode, no seu ateliê, preparar um objeto para ser vendido,
e isso reverbera, explode; obviamente se for um bom trabalho. E, por outro lado, você pode
fazer uma ação como essa em que você mobiliza uma série de pessoas, você não sabe,
exatamente, que consequências aquilo vai ter, mas você está atuando na realidade, então,
você está dentro. Como você falou, eu vou lá encaro, eu estou lá mesmo. Então, eu acho que
há esses dois extremos, entre ser o terrorista ou ser um espião, acho que está no meio disso.
FM: Acho isso interessante e faz sentido. Mas ainda me parece um raciocínio da tradição.
Estou falando de mudança de ponto de vista, de paradigma, de léxico, portanto, de como
raciocinar.
É interessante porque se preparo o objeto e o levo para o mundo, como uma bomba a ser
disparada, e ela pode de fato disparar, afinal é assim que a tradição nos ensinou, e ao disparar
pode transformar o mundo, a sociedade e até a percepção do tempo como um todo.
Fico me perguntando, sinceramente, se isso que se cumpriu durante parte do século XX, ainda
hoje consegue ter impacto ou se isso é um dos mitos que construímos e que a gente reproduz.
Minha fala não invalida a crença do outro ou qualquer outra prática, mas tenho dificuldade em
acreditar que essa arte que praticamos, moderna por excelência, tenha essa potência, dada a
exuberância, sofisticação e radicalidade do mundo real.
Estamos falando de algo paradoxal, pois na arte habita um par antitético. Algo que em tese não
poderia esta junto. Podemos dizer que é algo como faces de uma mesma moeda. De um lado,
temos a dádiva, que é o lado da entrega, da criação – o artista tem a necessidade de fazer algo
que a princípio o mundo não precisava e que não tinha e uma vez posto no mundo pode
transformar a vida de alguém, de uma sociedade e até de um tempo – mas por outro, quando a
arte chega a esses estágios na cadeia de institucionalização ela migra para a outra face, que é
o lado da commodity.
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O jovem tende a achar que arte é fazer o objeto, pintar a tela ou realizar a foto, isso na
realidade não passa de cinquenta por cento do trabalho, nos outros cinquenta reside a inserção
do trabalho, a construção do pensamento e a inscrição na posteridade, entre inúmeras outras
coisas.
O que vemos hoje é que o campo da dádiva foi suplantado pelo campo da commodity. Hoje,
quem comanda e produz a construção simbólica do nosso tempo é a commodity, não mais o
artista.
Até os anos 60 e 70, quem conduzia a história era o artista, ele vinha na frente, e atrás dele,
friccionando e construindo sentido, ficavam: o curador (figura que estava surgindo), os diretores
de museus, feiras, críticos, historiadores, e essa turma é quem consolidava o saber artístico de
uma época, mas era o artista que puxava a história.
A partir dos anos 70, quando o modelo historicista do desdobramento histórico dá sinais de
fadiga, o que os artistas fazem? Entregam nas mãos dos agentes do sistema (diretor de
museu, curador, galerias, feiras etc.) o direito de conduzir a historia e validar o que é arte. Isso
é como se a gente entregasse a chave do galinheiro para as raposas, e é sob essas
circunstâncias que vivemos e produzimos arte hoje.
Vejam a lista dos 100 nomes mais importantes da ArtReview; é raro aparecer artistas entre os
primeiros lugares (na lista de 2012 aparece apenas o Ai Weiwei, a maior estrela midiática do
ativismo chinês na terceira posição, e três brasileiros sendo um galerista na 71ª, um
colecionador na 80ª e um curador na 98ª posição). Mesmo que essas listas signifiquem pouco
e ao mesmo tempo muito pois representam o raciocínio vertical que ainda norteia a cadeia de
validação da arte, isso nos mostra que o artista não tem mais importância, exceto quando
possui uma commodity de peso. Nesse sistema, não é ele quem puxa o pensamento e a
história.
Pergunta: Eu queria fazer duas perguntas, a primeira voltada para o seu trabalho. Você falou
de tornar algo visível, como possibilidade, e você associou isso com uma palavra-chave que é
compartilhar, e aí eu te pergunto compartilhar o quê? Uma ideia de compartilhamento?
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FM: Eu acho que assim, a palavra compartilhar está em todas as suas acepções, compartilhar
o encontro e a experiência em todos os sentidos. Isso é algo que me remete a Antônio Negri,
filósofo italiano que escreveu com o americano Michael Hardt O império, que na conclusão do
livro fala algo muito interessante, e que os artistas precisam pensar nisso: mais importante do
que o público e o privado é o comum, e você só chega ao comum quando entende a noção de
compartilhar. O mais importante para a gente é pensar no que é comum.
Pergunta: Eu posso dizer que, talvez, a preocupação central do trabalho seja compartilhar uma
ideia de compartilhamento? Quer dizer, você socializar, levar para as pessoas que elas podem
compartilhar as coisas.
FM: Eu acho que isso é uma boa visão, mas eu não diria que isso é a visão total do trabalho.
Eu procuro uma frase que dê conta disso mas ainda não encontrei. Desde que comecei a
produzir procuro a frase que pudesse sintetizar o meu trabalho, porque é melhor que você
invente do que deixar para o curador ou o jornalista inventar. Essa é uma das maneiras, mas
eu ainda estou procurando essa frase que consiga sintetizar tudo, mesmo sabendo que serão
várias, uma a cada momento.
Pergunta: A primeira pergunta era sobre compartilhamento, a segunda sobre o autor. É bem
conflitante isso que você fala porque quando eu penso em compartilhamento estou pensando
em uma socialização de tudo, e aí não tem como não pensar no Beuys, todo mundo é artista,
potencialmente, todos somos artistas, e como fica isso?
FM: Acho que é isso aí. Beuys é um desses que alargaram o pensamento ao seu tempo, ao
afirmar que todos podem ser artistas, mas ao fazer isso estava afirmando o mito do artista
carismático, que sabe do poder que tem ao nomear o que é arte, de ser o “grande ilusionista”,
encarnando o mito do artista moderno.
Achamos que o problema hoje não é mais ser artista e sim estar artista, o que implica uma
mudança de pensamento, de ponto de vista.
A exemplo do que aconteceu em alguns momentos da história, que foram movidos por homens
públicos de espírito público, colocamos em curso um ajuste no “relógio” da arte. É isso que
precisamos fazer agora: ajustar o relógio outra vez. Mas diferente do século XX quando
corríamos atrás do relógio dos outros, hoje, todos os relógios encontram-se atrasados.
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Pergunta: Você falou dessa figura do artista. Você fala de artistas muito pontuais, como
Duchamp, Cildo, Lygia e Hélio, e parece que esses artistas são centrais no processo de
“empoderamento” do espectador e que esses caras queriam superar o lugar do artista como
figura central, mas, na verdade, você acha o contrário, que ele tem que voltar a ser uma figura
central. A minha pergunta é: esse artista ainda vai continuar uma figura central?
FM: Depende do ponto de vista que adotarmos. Por um lado, qualquer coisa que afirmar, nesse
campo, pode ser falácia e futurologia, porque isso está sendo construído no processo, sob
nossos pés. Mas penso que ele deixou de ser a figura central há muito, mas também acho que
cada vez mais é o artista que será o centro do problema. Como ele se desloca no mundo é que
será o problema do trabalho. O trabalho vai ser o artista, onde o artista está e o que ele está
fazendo. É assim que sinto e é assim que praticamos. Cada vez mais o trabalho é sobre como
mobilizamos energia, como nos deslocamos no mundo, construindo laços.
Pergunta: Mas, talvez, esse voltar para o artista não seja tão no sentido autoral. Mas estar
como um mediador, um canal de transformação de ideias.
FM: Exato, ele fica escondido, diluído. Ele é apenas um canal, um hub. Mesmo que precise de
algum espaço ou qualquer “meio físico” (que, neste caso, é totalmente desprovido de problema
estético, mas não de valor estético) ele estará sempre no tempo.
Está na hora de refazermos as regras do jogo, ou melhor, está passando da hora. Costumo
dizer que estamos caminhando para o futuro de costas, olhando apenas para os anos de 1960
e 70, e precisamos virar para frente, urgente.
Pergunta: Será que virar para frente não é estar no presente?
FM: Sim, é estar no presente, mas olhando, agora, para a construção do futuro, que não sei o
que é.
* Este texto foi produzido a partir de uma palestra editada e publicada no livro “A Imagem em questão”, organizado
por Glória Ferreira e Luiz Ernesto, durante o programa de Desenvolvimento e Aprofundamento - “Projeto de
Pesquisa”, da Escola de Artes visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro, que no ano de 2012 investigou a natureza
da imagem por diversos pontos de vista e campos de pensamento.