O abuso do direito de Ação e a Litigância de má-fé: um estudo comparativo entre os ordenamentos...

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1 Relatório apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no curso do Mestrado Científico em Ciências Jurídicas. Disciplina: O Abuso do Direito Tema: O Abuso do Direito de Ação e a Litigância de máfé: um estudo comparativo entre os ordenamentos Português e Brasileiro. Introdução O direito, na sua acepção mais vulgar e quando toma por referência o indivíduo parte de uma sociedade, pode ser entendido como o conjunto de prerrogativas conferidas a este para exercer ou não determinado ato, recebendo a proteção jurídica do Estado em que se insere. Estes “direitos” se materializam sob as mais diversas formas e contextos. A exemplo disto, temos o direito à vida, a propriedade, o direito da família, do consumo, do processo, entre tantos outros que a ciência jurídica abrange. Tema de estudo que vem sendo desenvolvido gradualmente desde o início da convivência em sociedade até os dias atuais, o direito é a matéria que regula as relações interpessoais e vem sendo aperfeiçoada com o passar dos tempos pelas mais variadas doutrinas, tendo apresentado configurações diversas com base na contemporaneidade de cada sociedade que contribuiu para a evolução da ciência. Não obstante as alternâncias teóricas, é certo que da reunião destas doutrinas resulta o direito atual. Isto porque, as construções teóricas são limitadas e nesse sentido não podem prever as situações cotidianas que surgem na prática, razão pela qual o direito vive em constante mudança evolutiva. Por outro lado, conforme também se verificou ao longo dos anos, estes direitos, apesar de justificados e protegidos pela lex ou normas jurídicas positivadas(a depender do período histórico), por vezes se mostravam adversos ao objetivo que eram destinados. Nesse sentido, apesar daquele direito ser conforme a letra da lei, sua utilização se mostrava contrária ao sentimento moral e ético da sociedade.

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Relatório apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no

curso do Mestrado Científico em Ciências Jurídicas.

Disciplina: O Abuso do Direito

Tema: O Abuso do Direito de Ação e a Litigância de má­fé: um estudo comparativo

entre os ordenamentos Português e Brasileiro.

Introdução

O direito, na sua acepção mais vulgar e quando toma por referência o

indivíduo parte de uma sociedade, pode ser entendido como o conjunto de prerrogativas

conferidas a este para exercer ou não determinado ato, recebendo a proteção jurídica

do Estado em que se insere. Estes “direitos” se materializam sob as mais diversas

formas e contextos. A exemplo disto, temos o direito à vida, a propriedade, o direito da

família, do consumo, do processo, entre tantos outros que a ciência jurídica abrange.

Tema de estudo que vem sendo desenvolvido gradualmente desde o início

da convivência em sociedade até os dias atuais, o direito é a matéria que regula as

relações interpessoais e vem sendo aperfeiçoada com o passar dos tempos pelas mais

variadas doutrinas, tendo apresentado configurações diversas com base na

contemporaneidade de cada sociedade que contribuiu para a evolução da ciência. Não

obstante as alternâncias teóricas, é certo que da reunião destas doutrinas resulta o

direito atual. Isto porque, as construções teóricas são limitadas e nesse sentido não

podem prever as situações cotidianas que surgem na prática, razão pela qual o direito

vive em constante mudança evolutiva.

Por outro lado, conforme também se verificou ao longo dos anos, estes

direitos, apesar de justificados e protegidos pela lex ou normas jurídicas positivadas(a

depender do período histórico), por vezes se mostravam adversos ao objetivo que eram

destinados. Nesse sentido, apesar daquele direito ser conforme a letra da lei, sua

utilização se mostrava contrária ao sentimento moral e ético da sociedade.

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Foi a partir desses casos específicos que nasceu o instituto denominado

abuso do direito . Sua evolução teórica se deu nos últimos dois séculos e, conforme 1

veremos, resultou numa alternância de conceitos até se concretizar na disposição atual.

Contudo, vale dizer que essa disposição não é unânime entre os diversos

ordenamentos, inclusive os que serão aqui estudados, o Português e o Brasileiro,

apesar de apresentarem mais semelhanças que diferenças.

Tendo em vista a amplitude que o abuso do direito pode atingir, e em razão

do espaço que aqui nos fora destinado, seria impossível trazer ao presente relatório

todos os aspectos que a matéria suscitou e suscita, ainda que fosse feita uma

abordagem bastante superficial. Por este motivo, mister se faz filtrar o instituto traçando

apenas o que nos for conveniente para atingir o ponto principal deste estudo, qual seja,

o abuso do direito de ação.

Nesse sentido, é imprescindível falar também do instituto da litigância de má

fé, já que, conforme veremos, apresenta forte ligação com a doutrina do abuso do

direito, embora tenha desenvolvimento distinto. Dessa união surge, então, o nosso tema

de pesquisa: O abuso do direito de ação e a litigância de má fé: um estudo comparativo

a partir dos ordenamentos Português e Brasileiro.

A escolha deste tema tem relevância para ambos os ordenamentos em

estudo pelo fato destes enfrentarem atualmente um problema comum: o atolamento e a

incapacidade do Poder Judiciário resolver os litígios em tempo útil, principalmente pela

imensidão de ações propostas, não raramente, revestidas de abuso ou má fé.

1 Transcrevemos aqui as palavras de BONATTI, : "A doutrina do abuso do direito está em sintonia com a mudança da racionalidade jurídica, que se dirige à superação do ideal de completude do ordenamento, ícone do positivismo e da doutrina liberal, que não encontra guarida no direito civil contemporâneo. O reconhecimento de que o direito positivo não pode dar conta de prever exaustivamente todas as condutas anti­sociais ou indesejadas é o primeiro passo para a construção de um sistema jurídico mais coerente e harmônico", Abuso do Direito, 2010, p.23.

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O Poder Judiciário, vem, ao longo dos anos, perdendo sua credibilidade

devido à sua má prestação de serviços. As causas são inúmeras, podendo ser internas

ou externas, mas a consequência disto reflete numa única direção: a sociedade.

Conforme dados do Instituto Nacional de Estatísticas, para Portugal, e do

Conselho Nacional de Justiça, para o Brasil, somente na justiça cível, cada país têm 1,5

milhões e 70 milhões de ações pendentes, respectivamente . Estes números assustam 2

se formos comparar o número de ações com a quantidade de habitantes de cada país,

sendo importante lembrar que, ao menos quanto ao Brasil, grande parcela da

população não exerce o seu direito de ação, justamente pela já conhecida morosidade

processual.

Conforme pontua MENEZES CORDEIRO , o resultado para se chegar a 3

atual situação se dá por quatro fatores: a complexidade normativa, a inadequação

legislativa, o excesso de garantismo processual e a impunidade quanto aos desvios de

conduta no processo. Apesar do autor fazer referência exclusivamente ao ordenamento

Português, as razões quanto ao ordenamento brasileiro são da mesma ordem, o que

não impede de fazer uma análise conjunta.

No que se refere a complexidade legislativa, o autor faz menção a Lei da

Boa Razão(1769), do Marquês de Pombal, que até tinha um ideal apreciável: acolher no

direito interno as leis do estrangeiro que pudessem ser aproveitadas. Todavia, com o

passar do tempo, tornou­se desvantajosa essa recepção normativa, pois, o corpo legal

tornou­se muito extenso e incoerente. Relativamente ao Brasil, nossa origem e

evolução normativa tem forte influência do direito Português, já que até o início do séc.

XVII éramos apenas uma colônia portuguesa. Com base nessa afirmação, veremos os

preceitos referentes ao abuso de direito e a litigância de má fé, constatando a

2 Anuário Estatístico de Portugal de 2012(INE); Sumário Executivo de Justiça em números, 2013(CNJ). 3 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.21 e seg.

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similaridade entre as leis.

Já quanto a inadequação legislativa, esta deriva do despreparo e falta de

estudo na elaboração das leis e dos bloqueios ideológicos, designadamente quanto aos

partidos políticos e a alternância de poderes. No Brasil o problema é ainda mais

agravante, já que a política, num panorama atual, tomou outros rumos, onde os mais

despreparados são eleitos, resultando numa enxurrada de projeto de leis absurdas e

desprovidas de qualquer fundamento jurídico.

Quanto ao excesso de garantismo processual, se formos analisar os Códigos

de Processo Civil de cada ordenamento, constataremos as inúmeras faculdades

processuais conferidas aos sujeitos do processo, tanto na fase inicial quanto na fase

recursal ou executória. A consequência disto é uma ação ad infinitum, onde as partes,

ainda que cientes da falta de direito, irão protelar sempre o processo já que a lei os

permite.

Relativamente à impunidade dos desvios de conduta, este motivo tem

especial ligação com o nosso tema, já que estes desvios são praticados pelas partes ou

pelos advogados, seja através da litigância de má fé ou pelo abuso do direito. A questão

que daí resulta consiste na inércia dos Tribunais em não punir esse tipo de

comportamento.

Feitos estes breves comentários, cumpre assinalar nosso esquema de

estudo. No capítulo inicial, nos debruçaremos sobre o instituto do abuso do direito,

devendo, para isso, traçar sua evolução histórica, sua configuração atual e a relevância

para os ordenamentos em questão. Após, cumpre­nos tratar da modalidade de abuso

praticada nas relações processuais.

No capítulo seguinte, iremos tratar da litigância de má fé, no mesmo sentido

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que o abuso, percorrendo sua evolução histórica, já que este instituto tem raiz no direito

Português, concluindo por uma análise da interpretação atual pelos Tribunais de ambos

os países e a problemática em torno da sua aplicação.

Ainda neste capítulo, será oportuno apontar os principais pontos de cada

instituto, assim como as diferenças, e fazer um apanhado geral da matéria,

determinando sua relevância jurídica no direito atual. Para isso, imprescindível será o

recurso à jurisprudência de ambos ordenamentos.

1 ­ O Abuso do Direito

1.1) Evolução Histórica

Para traçar esta matéria, necessário se fez o recurso ao trajeto percorrido

pela jurisprudência e, na sua maioria, pela doutrina para alcançar a definição atual do

abuso do direito. A evolução do instituto se deu em dois momentos: o primeiro

corresponde ao período onde se teve a noção do abuso do direito, ou seja, um

conhecer primitivo, uma ideia de existência do tema. Já o segundo retrata o início do

desenvolvimento da teoria, a partir da proliferação de decisões judiciais e do aumento

de dissertações sobre o tema.

a) Noção

Conforme se retira da doutrina, a noção do abuso do direito deve ser

atribuída ao Direito romano . Foi neste direito, e a partir de brocardos como neminem 4

laedit qui suo jure utitur e Feci, sed iura feci , que os legisladores viram a necessidade 5

em estabelecer contornos aos direito individuais, que até então eram absolutos, para se

4 JORDÃO, Abuso de Direito, 2006, p.55 e s; Fazendo referência a outros autores; 5 “Quem exerce o seu direito a ninguém prejudica”; “Fiz, mas fiz com direito”.

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adaptarem ao bem social . Isto em razão das situações que surgiam a partir do 6

exercício legal dos direitos se contraporem ao senso comum de justiça. Em razão

disso, já naquele tempo, houve uma relativização dos direitos subjetivos, aspecto

fundamental para o desenvolvimento do instituto nos anos que sucederiam.

No direito romano, não existia um instituto intitulado ‘abuso do direito’’,

embora houvessem meios legais, ao tempo, capazes de coibir um ato que fosse

considerado abusivo com a finalidade de prejudicar outrem. Tais institutos eram

denominados como aemulatio(intenção danosa de prejudicar outrem, sem interesse de

agir e motivada pela inveja ou malícia), exceptio doli (utilizada para impedir práticas

abusivas no processo) e a temeritas processual. No que pese ao exceptio doli, era

sub­dividida em: specialis ou generalis. A primeira correspondia ao direito que tinha o

réu em alegar o dolo do autor logo no início da pretensão, onde, caso fosse constatado

o dolo inicial, afetaria todos os atos subsequentes do processo. Já a segunda era mais

específica e aplicada aos atos do processo. Quanto a figura da temeritas processual,

esta visava combater os atos processuais sem fundamento, com intuito de protelar ou

confundir os fatos, mais tarde sendo remetida ao abuso do direito no processo.

Posteriormente, esta figura viria a ser substituída pela litigância de má fé . 7

b) Teoria

Já quanto à teorização do instituto, é sabido que os primeiros

desenvolvimentos científicos ocorreram na França. Isto, segundo alguns autores, com

base em decisões jurisprudenciais que sancionavam exercícios jurídicos inadmissíveis,

principalmente nas relações de vizinhança . Porém, há na doutrina francesa moderna 8

6 JOSSERAND, L’Esprit des Droits…, 1939, p.314. 7 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.76. 8 CUNHA DE SÁ aponta que, além das relações de vizinhança, houvem decisões direito de família, contratos, obrigações, liberdades individuais e coletivas, etc.; Abuso do Direito, 1973, p.52.

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quem atribua relevância à uma lei trabalhista de 1890 , sendo essa a propulsora dos 9

trabalhos doutrinários. Independente da dúvida no que refere ao passo inicial na

evolução do instituto, sabe­se que foram os franceses os responsáveis pelos primeiros

estudos. Contudo, a título meramente informativo, há de ter em conta que já em 1794,

no Código da Prússia, havia previsão expressa contra o “exercício irregular do direito” . 10

Nesse sentido, esta deveria ter o reconhecimento de ser a primeira disposição sobre

um prematuro instituto do abuso do direito.

Na França do séc. XIX, o Código Napoleônico, então vigente, não fazia

qualquer menção aos institutos criados pelos romanos no combate ao exercício

irregular do direito. Apesar disso, a Jurisprudência proporcionou julgados em que

combatia a atuação do sujeito por apresentar situações de injustiça gritante. Foi a partir

de casos paradigmáticos como o da falsa chaminé(Colmar, 1855) e o dos espigões de

ferro(Compiègne, 1913 ) , que os trabalhos foram iniciados. Daí ressurge a 11 12

necessidade da relativização dos direitos subjetivos, em meio ao momento político

vivido na França, pós­absolutismo. Há de destacar que a natureza subjetiva da conduta

era requisito do ato abusivo.

Em sentido oposto, a construção doutrinária não desenhou um corpo jurídico

que pudesse estabelecer contornos concretos ao exercício do direitos subjetivos. Por

outro lado, a terminologia abus de droit, de autoria do belga Laurent, suscitava dúvidas.

9 ANCEL e DIDRY apud JORDÃO, p.61: Segundo aqueles autores, a lei estabelecia que: ao empregador que demitia trabalhadores em massa, com o intuito de inibir a realização de greves, deveria responder por perdas e danos ­ abuso do direito de empregador. 10 “Aquele que exerce o seu direito no interior de seus limites próprios, não está obrigado a reparar o dano que resulte para outro. Mas deve repará­lo quando resulta claramente que, dentre vários modos possíveis de exercer seu direito, elegeu o mais danoso, com intenção de prejudicar” §36 e 37,CALCINI, Abuso do Direito e o Novo Código Civil, 2004, p.33 ; FARIA GÓES, Breves Considerações…, 2003, p.5. 11 Este último caso, apesar de ser destacado pela doutrina, não serviu de base para a doutrina inicial do abuso. Como vemos, o julgamento é de 1913, período posterior aos dos primeiros debates doutrinários e da positivação das regras contra o exercício irregular em dispositivos legais como o BGB(1896) e o Código Suiço(1904). 12 Conforme CUNHA DE SÁ,1973, p.52: “Através de hipóteses concretas que lhes foram sendo submetidas, os tribunais franceses recorreram, umas vezes, à ideia dos limites do próprio direito exercido(...), outras vezes à intenção de prejudicar com que o exercício do direito era efectuado”.

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Apesar do próprio autor já antecipar que no abuso do direito não havia direito , a 13

expressão foi acolhida pela sua natureza impressiva. Esta desde logo foi alvo de

críticas. Segundo PLANIOL, a expressão era de natureza logomáquica, inútil, pois, “o

direito cessa onde começa o abuso”, considerando inconciliáveis as palavras “abuso” e

“direito”. Este autor, embora contrário a utilização da expressão, era a favor da

repressão dos atos abusivos.

Na esteira, JOSSERAND apresentou a primeira concepção tradicional do

instituto ao afirmar que “os atos abusivos são conformes ao direito subjetivo, mas

contrários ao direito objetivo, razão pela qual devem ser reprimidos” . Cumpre destacar 14

que, apesar dos esforços em estabelecer um subsídio teórico, a utilização do instituto

foi exígua, devido à aplicação do conceito de faute, inclusive no exercício formal de um

direito. No mais, surgiram ao longo dos tempos várias outras concepções que tentam

justificar a natureza do abuso, porém, daremos atenção infra.

Simultaneamente e em sentido diverso, no ordenamento alemão, apesar de

não haver um instituto denomidado abuso do direito, teve maior desenvolvimento e

influência para a configuração atual da matéria. A priori, o §226 previa a chicana, que

estabelecia como inadmissível o exercício de um direito quando tivesse unicamente por

escopo provocar danos a outrem. Sua interpretação não foi acolhida pelos

doutrinadores da época, razão pela qual fora necessário o recurso à outras vias, dando

origem ao §826 que não traduzia a ideia de exercício de direito, mas estabelecia 15

regras de conduta. Sendo assim, a doutrina passou a aplicar em consonância ambos

os preceitos, remetendo o exercício dos direitos aos bons costumes(e a boa fé) , que 16

influenciaria o sistema Português, posteriormente.

13 MENEZES CORDEIRO, Tratado…, 2011, p.251. 14 JORDÃO, 2006, p.70. 15 “Aquele que, de uma forma que atente contra os bons costumes, inflija dolosamente um dano a outrem, fica obrigado à indenização do dano.” 16 CUNHA DE SÁ, 1973, p.60; MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.82.

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c) Recepção em Portugal

Relativamente ao ordenamento Português, devido ao art.13 do Código de

Seabra(“Quem exerce o seu direito não faz ilícito a ninguém”), a recepção da teoria do

abuso foi obstada por boa parte da doutrina, embora houvessem alguns autores

favoráveis, apesar da falta de embasamento jurídico­cinetífico . 17

Foi com Vaz Serra, na confecção do anteprojeto do Código Civil, que o

abuso do direito veio a ter previsão legal. No seu estudo, este jurista desenvolveu

sistematicamente o abuso do direito em oito artigos, com vários incisos, onde regulava

todas as situações abusivas imagináveis, inclusive fora do campo civil, conforme dispõe

o art.3 onde o autor tratou das situações de abuso nas relações processuais,

designadamente a litigância de má fé.

Ocorre que o anteprojeto foi objeto de duas revisões, sendo a primeira

resumida a um único artigo: “O exercício de um direito, com a consciência de lesar

outrem através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema,

obriga a indenizar os danos directa ou indirectamente causados”. Este dispositivo tinha

sentido diverso do de Vaz Serra, que atribuía uma concepção objetiva, pois impunha a

necessidade de um elemento subjetivo, tal como o francês, além de remeter o abuso à

responsabilidade civil . 18

Na segunda revisão, o dispositivo foi modificado e tomou a forma que na

sequência seria consagrada no art.334 do Código Civil. Já agora, o artigo não fazia

referência a uma conduta intencional maliciosa, bastando um elemento objetivo.

Ademais, a alusão aos valores da boa fé e aos costumes remetem ao desenvolvimento

alemão . E assim o é. Apesar da fonte imediata do art.334 do Código Civil Português 19

17 MENEZES CORDEIRO, Tratado…, 2011, 257 e s.. 18 OLIVEIRA ASCENSÃO, O Abuso do Direito…, 2006, p.608. 19 MENEZES CORDEIRO, Tratado…, 2011, p.260.

10

ser o art.281 do Código Civil Grego (com redação praticamente idêntica), este tem por 20

base o art.2 do Código Civil Suiço e a influência da doutrina alemã.

A partir disto, e tendo em conta que o sistema Português tem propensão a

preencher conceitos indeterminados e lacunas da lei, a doutrina do abuso do direito foi

se desenvolvendo em Portugal a partir de casos concretos, determinando tipos de

comportamentos abusivos. Esta regulação, conforme MENEZES CORDEIRO, “traduz

uma forma de solucionar todas ou algumas situações de abuso, dotada de certa

unidade linguística e, por vezes, dogmática.” É a partir da criação de comportamentos 21

específicos que a doutrina portuguesa se destaca perante outras, conforme veremos

infra.

d) Recepção no Brasil

No que se refere ao ordenamento Brasileiro, diferentemente dos que já foram

mencionados, sua recepção legal foi tardia, sendo apenas estabelecida no século

corrente. Contudo, há de mencionar que o abuso do direito já se fazia presente neste

ordenamento, ainda que implicitamente, desde os primórdios do século passado,

conforme veremos.

O código Civil de 1916, anterior ao atualmente vigente, influenciado pelo

liberalismo e tendo consagrado o absolutismo, coroava o individualismo. Conforme se

extrai do art.160, I, "Não constituem atos ilícitos: I­os praticados em legítima defesa ou

no exercício regular de um direito reconhecido" . A amplitude deste preceito resultou 22

na insegurança jurídica social, posto que a definição do que poderia vir a ser um

exercício regular do direito era vaga e imprecisa e, sendo assim, não estabelecia limites

aos exercício dos direitos subjetivos . Em razão disto surgiram as injustiças que deram 23

20 CUNHA DE SÁ, 1973, p.76. 21 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.84. 22 Este artigo corresponde ao Art.188 do CC/2002. 23 MIRAGEM, Abuso do Direito: Ilicitude Objetiva, 2005, p.16.

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ensejo ao desenvolvimento de uma doutrina repressiva àqueles direitos.

Apesar da inexistência de base legal, para a jurisprudência e doutrina

daquele tempo, o abuso do direito estaria implícito no conceito do art.160,I. Este

raciocínio se deu pela necessidade patente de limitar os direitos subjetivos que na

prática demonstravam injustiça gritante, sendo o direito à propriedade, considerado o

mais absoluto dos direitos, o primeiro a ser relativizado. Nesse sentido, os juristas e

doutrinadores, a partir de uma interpretação contrario sensu, admitiam a existência do

abuso do direito, a partir da ideia de que se o exercício regular de um direito era

considerado lícito, então, caso o exercício fosse desregular, este seria ilícito . 24

Não obstante, o Codígo Civil de 1916 já perfilava o instituto em estudo em

alguns dos seus dispositivos, reprimindo atuações que constituam verdadeiro "abuso"

daquele direito , conforme se verifica nos seguinte artigos: 25

Art. 526. A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e

inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu

exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor­se aos trabalhos que

sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha

ele interesse algum em impedi­los(Decreto do Poder Legislativo 3.275,

de 15.01.1919)

Art. 554. O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir

que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o

sossego e a saúde dos que o habitam.

Art. 584. São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para

uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente.

(Entre outros)

Reconhecida a existência de injustiças no campo do exercício dos direitos, o

24 CALCINI, Abuso..., 2004, p.29. 25 BONATTI PERES, Abuso do Direito, 2010, p.9 e seg.; FARIA GOES, 2003, p.14.

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próximo passo seria a introdução legal de um dispositivo que limitasse tal conduta. A

primeira tentativa foi apresentada por Haroldo Valadão, que no anteprojeto da Lei de

Introdução ao Código Civil(denominada por ele de "Lei geral de aplicação das Normas

Jurídicas), propôs no Art.11, a "Condenação do Abuso do Direito". Apesar da

importante iniciativa, esta não obteve êxito. Todavia, com a publicação do LICC em

1942, designadamente no seu art.5, atingiu­se algum progresso com o reconhecimento

ao juiz de perseguir e atentar aos fins sociais e o bem comum quando da aplicação da

lei. Conforme BONATTI , este preceito serviu de fundamento para a aproximação 26

entre o direito e a sociedade, que teriam maiores reflexos com o advento da nova

Constituição, de 1988.

Passado o momento histórico brasileiro do período pós­guerra, atravessando

a ditadura até meados da década de 80, a atenção é voltada agora para a promulgação

da Constituição Federal de 1988. Apesar de fugir a esfera do nosso tema, necessário

se faz mencioná­la. À CF/88 deve­se a “cristalização” da noção de direito

funcionalizado e de solidariedade social. O princípio da solidariedade social altera, em

definitivo, o conceito de direito subjetivo, admitindo sua relativização, em razão da

função , ecoando nas leis seguintes, inclusive o novo Código Civil. 27

A partir disso, o novo CC foi consagrado com base em três princípios

fundamentais: a eticidade, a socialidade e a operabilidade. Segundo CALCINI , quanto 28

ao primeiro princípio, este persegue "valorizar a consagração da justiça, primando, pela

dignidade da pessoa humana, a probidade, a boa fé, a equidade e os demais

funndamentos axiológicos, que caracterizam a justiça, pela ótica material e não

simplesmente formal. Em tais condições, para se atribuir justiça, de cunho material,

quando da aplicação das normas deste Código Civil, forçosamente cumprirá respeitar e

lembrar dos princípios da eticidade, cujo valor ético a todas normas impregnam. Bem

26 BONATTI PERES, 2010, p.18 e seg. 27 Idem, p.20. 28 CALCINI, Abuso..., 2004, p.28.

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por isso, surge, como consequência natural da adoção do princípio da eticidade, a

opção, nesta legislação, por normas genéricas ou cláusulas gerais, que empregam

conceitos jurídicos indeterminados, sem quedar­se preocupada com um excessivo rigor

conceitual, deixando as normas mais maleáveis".

Já em relação ao princípio da socialidade, conforme se absorve da

nomenclatura, obtêm­se uma ideia de social, sociedade. Este princípio tem por objetivo

superar o individualismo presente no Código de 1916, ao sedimentar a predominância

do direito social, comum, em face ao direito individual. A partir disso, o direito

preconizado no CC/2002 deve ser encarado sobre dois enfoques: no interesse

juridicamente protegido do titular e no interesse da coletividade, devendo aquele se

harmonizar com este. Por fim, quanto ao princípio da operabilidade, o legislador optou

por não utilizar de soluções complexas que por vezes impediam a aplicação das

normas. Isto resultou na simplicidade da lei.

É com base no primeiro princípio mencionado, e tomando por referência o

art. 334 do CC/Português , que o legislador brasileiro introduz o abuso do direito na lei 29

civilista, perpetuado no art.187.

1.2) A construção do Abuso do Direito

Consoante vimos no tópico anterior, a aceitação do instituto em questão

pelos ordenamentos aqui estudados ocorreu após ficar evidenciada a necessidade de

relativizar o direito subjetivo face ao objetivo.Todavia, até alcançar sua concepção

atual, o abuso foi matéria de diversas doutrinas que propuseram as mais variadas

teorias com o intuito de definir um corpo jurídico àquele instituto.

29 OLIVEIRA ASCENSÃO atribui esta referência ao fato do Anteprojeto do CC/2002 ser de 1973, período em que o CC Português era Código em vigência mais recente. Ao nosso ver, indepentende da proximidade temporal, a lei brasileira teria forte influência da portuguesa, como já ocorre desde a Colônia. Além disso, a semelhança entre as normas levam a essa conclusão.

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Nesse sentido, é possível listar diversas teorias, à exemplo das teorias

afirmativas e negativas , subjetivas e objetivas ou internas e externas . Embora não 30 31 32

tenhamos interesse em analisar densamente cada corrente teórica, cumpre­nos

mencioná­las, ainda que sem delongas.

No que pese as teorias afimartivas e negativas, a primeira admite a

existência do abuso do direito, bastanto, para tanto, o surgimento de um dano anormal

à outrem, resultante de um direito subjetivo . Em sentido oposto, a teoria negativista 33

poderia ser dividia numa doutrina que negava a existência do direito subjetivo e,

consequentemente, do abuso do direito. Ou então, por outra, que, encabeçada por

ROTONDI admitia a existência do abuso do direito, mas considerava o instituto 34

metajurídico. A primeira destas teorias serviu de base teórica para o desenvolvimento

posterior do instituto, já que, conforme vimos acima, o abuso começou a ser estudado a

partir do exercício anormal do direito subjetivo. Noutro lado, não há alternativa senão

ignorar a teoria negativista. O instituto em questão já demonstrou estar presente no

cotidiano, nas relações interpessoais que, conforme já dissemos, são reguladas pelo

direito.

Já em relação às teorias subjetiva e objetiva, a sua interpretação é a mais

simples possível. Na teoria subjetiva, subdivide­se em duas vertentes: na primeira,

basta o agente agir com culpa para que o abuso do direito seja caracterizado,

enquanto, na segunda, a doutrina exige que o agente tenha intenção de

prejudicar(aemulatio). Por outro lado, e mais próxima do conceito atual de abuso, está

30 CALCINI, 2004, p.35 e s. 31 BONATTI PERES, 2010, p.41 e s. 32 MENEZES CORDEIRO, Litigância…,2011, p107 e ss.. 33 CUNHA DE SÁ, 1997, p.349: “haveria abuso sempre que, e só quando, com a sua atuação, o titular acarretasse ao terceiro ou terceiros um prejuízo que não se pudesse considerar o resultado normal ou usual do exercício de tal direito”. 34 Apud JORDÃO, 2006, p.79: Mario Rotondi considerava que o abuso do direito era “um fenômeno social, não um conceito jurídico, pelo contrário [é um] daqueles fenômenos que o direito não poderá jamais disciplinar em todas as suas aplicações que são imprevisíveis: é um estado de ânimo, é a avaliação ética de um período de transição, é aquilo que se queira, mas não é uma categoria jurídica”

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a teoria objetiva. Nesta corrente, o ato abusivo é caracterizado independentemente de

culpa, sendo determinante o fim atribuído ao direito. Se o exercício deste direito for

contrário ao fim que se destina, então há um ato abusivo. Esta é a teoria acolhida no

Código Civil brasileiro, conforme veremos infra.

Por último, no que tange as teorias, cabe­nos mencionar as teorias internas

e externas ao direito subjetivo. Conforme MENEZES CORDEIRO, a teoria interna

consiste em atribuir limites intrínsecos ao conteúdo de cada direito subjetivo, onde, ao

ultrapassar tal limite, surgiria o ato abusivo. Esta corrente é dividida em três doutrinas: a

dos atos emulativos, funcional e a interpretativa. A primeira corresponde à intenção do

titular do direito em prejudicar. A segunda, de autoria de JOSSERAND, estabelece que

o direito subjetivo é complementado por uma função. Seria no desrespeito a esta

função que surgiria o ato abusivo. Quanto a doutrina interpretativa, posterior à

funcional, este autor explica que tendo em conta a necessidade de respeitar as

considerações funcionais referentes ao direito, em si, o abuso resultaria então numa

questão de interpretação do ato . 35

Relativamente as teorias externas, ao contrário, o ato abusivo surge a partir

do desrespeito as normas jurídicas alheias ao direito subjetivo. Esta teoria é partilhada

entre três doutrinas: a das normas específicas, a da contraposição entre a lei e o direito

e a da remissão para ordens extrajurídicas. Quanto a primeira, exprime a ideia de que

existem regras direcionadas aos titulares do direito subjetivo com proibição de certos

exercícios. O ato abusivo reside no desrepeito a estas proibições. Na segunda doutrina,

da contraposição entre a lei e o Direito, retira­se que o ato abusivo é conforme com a

lei, mas contrário ao direito. Já na terceira, da remissão para ordens extrajurídicas, o

ato abusivo é de acordo com o direito, mas infringe estas ordens. Entende­se por

ordem extrajurídica, por exemplo, a moral e o direito natural . 36

35 MENEZES CORDEIRO, Litigância…,2011, p.107 e s. 36 Idem, p.111­113.

16

Sabe­se que abuso do direito é resultado da conjugação destas teorias, em

razão da insuficiência construtivo­teórica quando aplicadas individualmente. Com efeito,

se formos analisar a atual concepção do instituto, verificaremos elementos das teorias

acima mencionadas, uns com maior abragência do que outros.

Superada esta fase, ainda que de maneira não uniforme, o abuso do direito

deve ser entendido como o exercício disfuncional de posições jurídicas. Nas palavras

de MENEZES CORDEIRO, “um concreto exercício de posições jurídicas que, embora

corretas entre si, seja inadmissível por contundir com o sistema jurídico na sua

globalidade . Portanto, nesse sentido, no abuso do direito não há nem um “abuso”, 37

nem um direito subjetivo. Por outro lado, há quem conceitue o abuso como sendo “o

simples descompasso entre o exercício de um direito subjetivo, aparentemente regular,

mas que, em verdade, descumpre o fundamento axiológico inscrito na norma” . 38

A distinção ocorre justamente na interpretação do ato abusivo. No primeiro, o

abuso nasce da desconformidade com o exterior, o sistema jurídico no geral, ao passo

que, no segundo, o abuso deriva da inobservância dos seus valores internos. Isto se dá

pelo fato do pilar fundamental do instituto do abuso em Portugal ser a boa fé, enquanto

que, no ordenamento brasileiro, priorizou­se a função social do direito.

1.3) A previsão legal e a violação aos limites como causa do abuso do direito

A materialização do instituto se retira dos artigos 334 e 187, das leis civis de

Portugal e Brasil, respectivamente:

Art. 334. É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda

manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou

pelo fim social ou econômico desse direito.

37 MENEZES CORDEIRO, Litigância…,2011, p,75 38 CALCINI, 2004, p.37.

17

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao

exercê­lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim

econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.

De acordo com a redação verificamos a semelhança entre os preceitos. A

influência do artigo português sobre o brasileiro é patente. O legislador brasileiro atribui,

inclusive, os mesmo limites. Contudo, o abuso do direito português vem sedimentado

na seção do exercício e tutela dos direitos, ao passo que o brasileiro está presente na

seção dos atos ilícitos.

A doutrina portuguesa predominante considera equivocada a denominação

de ato ilegítimo, isto em razão da já tradicional acepção deste termo, considerando ser

ato ilícito o vocábulo mais apropriado . Apesar disso, ao nosso ver, o ato abusivo não 39

constitui ato ilícito. Isto porque, no ato ilícito o agente confronta a lei

frontalmente(revestido de culpa), ao passo que, no abuso, o agente ultrapassa os

limites no exercício do direito.

É o que consolidou JOSÉ DE AGUIAR DIAS , ainda em 1944, ao afirmar 40

que “nos moldes clássicos, não caberia, com efeito, considerar como agente de abuso

senão aquele que procede culposamente. Mas a doutrina do abuso do direito é, por

definição, inconciliável com o princípio da culpa e os que a propugnam partem

exatamente dessa premissa, porque, quando encaramos um fato culposo, a

responsabilidade emerge dele, nos termos do direito comum, não havendo necessidade

de cogitar o abuso do direito”.

A consagração desse entendimento vem no Enunciado nº37 da Jornada de

Direito Civil , onde sedimentou­se entendimento relativo ao art.187. 41

39 MENEZES CORDEIRO, Tratado…, 2011, p.239 e seg.;: OLIVEIRA ASCENSÃO, Abuso…, 2006, p.620. 40 Apud MIRAGEM, Abuso do Direito…, 2005, p.20. 41 Evento promovido pelo Superior Tribunal de Justiça, que reuniu estudiosos civilistas de todo o país com a finalidade de examer o novo Código Civil, derivando daí uma série de enunciados interpretativos da nova lei.

18

Art.187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito

independe de culpa e fundamenta­se somente no critério

objetivo­finalístico.

Quanto à aplicação do abuso do direito, necessário se faz o preenchimento

dos requisitos. Na legislação brasileira, são dois: o exercício do direito(subjetivo) e a

violação aos limites objetivos. Por outro lado, no direito português, com aplicação

prática indubitavelmente superior, já não se faz referência ao exercício de um direito

subjetivo, em razão de já se ter provado que o abuso poder surgir de qualquer situação

jurídica . 42

Brevemente, para se aplicar o abuso no ordenamento brasileiro, mister se

faz, parcialmente, o exercício do direito pelo seu titular ou por representação. Esta

exercício corresponde à liberdade jurídica conferida aos indivíduos através de um

direito, subjetivo. Essa prerrogativa implica numa atuação positiva, correspondente a

uma ação, ou negativa, no caso de omissão. Há de ter em conta que ambas

caracterizam exercício de um direito subjetivo, na interpretação do art.187 . 43

Quanto aos limites impostos, já expusemos que a semelhança entre os

preceitos reside justamente aí. A cópia, quase fiel, do art.187 em relação ao art.334 se

dá pelo emprego da boa fé, bons costumes e fim econômico e social, além do termo

“manifestamente”. Vale dizer que os dois primeiros limites são gerais devendo sempre

ser analisados, enquanto que os dois últimos são específicos, em razão dos direitos

apresentarem, geralmente, ou um fim econômico ou social.

Relativamente à boa fé, princípio geral do direito, presente não só na lei civil,

mas em todas as outras codificações, foi o limite que obteve o maior apreço na doutrina

42 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.118­119. 43 MIRAGEM, 2005, p.29.

19

portuguesa. Para o abuso do direito, somente releva a boa fé objetiva. Conforme

CUNHA DE SÁ doutrinava, a boa fé tem dois sentidos: o primeiro seria um estado de 44

espírito, de onde se retiram consequências favoráveis e que corresponderia ao aspecto

subjetivo; em sentido diverso, a boa fé seria o princípio pelo qual o sujeito de direito

deve atuar como pessoa de bem, honesta. Este segundo sentido, objetivo, destina­se a

duas utilizações, sendo a primeira como fonte de deveres jurídicos

secundários(relativamente aos deveres que derivam da boa fé), e o segundo como

interpretador dos negócios jurídico ou limitador dos direitos subjetivos . 45

Apesar de limitar a interpretação da boa fé ao aspecto objetivo, esta ainda é

a cláusula geral mais extensa do ordenamento português e apresenta um conceito um 46

tanto vago, pois, "exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé" poderia

abranger inúmeras situações.

A solução para uma aplicação objetiva da boa fé, presente em tantos outros

dispositivos do Código Civil Português, seria feita pela utilização dos “vetores próprios

do manuseio da boa fé”, sendo concretizada a partir da determinação de

comportamentos abusivos típicos , que iremos mencionar infra. 47

No que pese ao ordenamento brasileiro, dentre os limites estabelecidos no

art.187, é a boa fé que tem sido tema de maior aprofundamento pela doutrina atual,

mas não obteve, ao tempo da publicação do CC/2002, a importância conferida pelo

ordenamento luso. Isto em razão da prevalência a finalidade social do direito, conforme

se retirou do enunciado nº37.

Quanto aos bons costumes, esta concepção é geralmente associada as

regras de moral, conduta sexual e resguardo social reiteradamente praticadas no seio

44 CUNHAS DE SÁ, 1997, p.164 e seg. 45 MIRAGEM, 2005, p.32­33. 46 OLIVEIRA ASCENSÃO, 2006,p.613. 47 MENEZES CORDEIRO, Tratado…,2011, p.241,372.

20

da sociedade. Ultrapassar os limites impostos pelos bons costumes é dizer que o

agente age contrariamente aos critérios ético­sociais estabelecidos a partir do

comportamento daquela sociedade ao longo dos tempos. A boa fé e os bons costumes

apresentam certa relação, em razão de ambos terem por referência a proteção de

valores éticos e morais. Contudo, a proteção aos bons costumes é maior, já que se

aplica a todo e qualquer exercício de direito subjetivo . Para MENEZES CORDEIRO, a 48

utilização desse limite no art.334 é desnecessária, já que equivale aos “bons costumes”

presente no art.280/2 e que resultaria numa solução já alcançada . 49

Ao nosso ver, neste caso, o legislador opta por especificar a obediência aos

bons costumes no que tange ao exercício dos direitos, enquanto que, no outro

dispositivo, essa obediência era determinada na prática dos objetos negociais. Aquela é

bem mais extensa que essa e, assim sendo, desnecessária seria a previsão no

art.280/2.

Por último, o instituto do abuso é aplicável quando da violação dos limites

impostos pelo fim social ou econômico. Esta cláusula geral encontra guarida no

ordenamento brasileiro e desde 1942, com o advento da Lei de Introdução ao Codigo

Civil, no art.5 já se fazia referência à observância dos fins socias na aplicação da lei.

Cumpre recordar que o fim social está diretamente relacionado a teoria da

função social do direito, de JOSSERAND, de onde se retira que todo direito vem

acompanhado de uma função social, devendo o agente atuar neste sentido, caso

contrário, resultaria em abuso.

Sendo assim, apesar dos preceitos não fazerem referência à função social,

mas sim ao fim, e, tendo em conta que não existe no direito um fim subjetivo, restará o

fim objetivo. Quanto ao fim objetivo do direito, este é exercido com respeito à esfera

48 MIRAGEM, 2005, p.35. 49 MENEZES CORDEIRO, Tratado…,2001, p.241.

21

social. Nesse sentido, fim social é função social . 50

Apesar de analisadas sob o mesmo prisma, a finalidade social e econômica

não se confundem. Os limites impostos pelos fins sociais abrange todos os direitos, ao

passo que o fim econômico somente incide em direitos específicos. Os fins sociais do

direito remetem “a ideia da razão de ser do direito, de uma concepção socialmente

adequada dos direitos subjetivos frente aos diversos interesses em curso na

comunidade” . Neste caso, o abuso do direito consiste na violação dos limites 51

estabelecidos com natureza objetivo­finalística . 52

Por outro lado, a interpretação do abuso de um direito com base na violação

dos fins econômicos deve ultrapassar o enunciado legal. Não se pode aferir esta

cláusula geral com base apenas no direito subjetivo do agente, mas, ao contrário, deve,

além disto, ter em conta os interesses econômicos da sociedade e a repercussão do

exercício deste direito em relação a ela . 53

1.4) A concretização do Abuso através da jurisprudência e os

comportamentos abusivos típicos

Ainda que nosso tema seja relativo ao abuso do direito de ação, é

necessário fazer menção aos comportamentos típicos desenvolvidos ao longo do

desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial. Isto porque, conforme se demonstrará

por via de casos julgados, o exercício abusivo no direito de ação pode ser de ordem

substancial, quando se constate algum dos comportamentos típicos, ou no plano

técnico, quando contrário aos parâmetros estabelecidos pelo princípio da boa fé . 54

50 OLIVEIRA ASCENÇÃO, p.612. 51 MIRAGEM, 2005, p.32. 52 Conforme Enunciado n.37, supra mencionado. 53 MIRAGEM, 2005, p.31 54 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.131.

22

Sendo assim, há de falar no venire contra factum proprium, inalegalibidades

formais, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Antes de mais, cumpre assinalar que esta parte do estudo tem base

unicamente na doutrina portuguesa. O desenvolvimento do abuso no Brasil tomou outro

rumo, não havendo na doutrina um quadro semelhante, relativamente aos

comportamentos típicos. Não obstante, a jurisprudência brasileira tem aumentado a

referência a estes comportamentos.

A expressão venire contra factum proprium, de origem canónica, é o principal

e mais utilizado dos comportamentos abusivos. Consiste em duas condutas(factum

proprium, correspondente a primeira conduta e o venire, relativamente a segunda

conduta) praticadas por uma mesma pessoa, lícitas em si, diferidas no tempo e

contraditórias . 55

A explicação para este tipo abusivo tem eco na doutrina da confiança,

segundo o qual o venire deve ser proibido em razão de ser contrário à primeira conduta

assumida e que gerou uma situação de confiança legítima na outra parte, devendo esta

ser protegida da arbitrariedade daquela. Para tanto, a proteção da confiança se dá pela

constatação das proposições desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência , quais 56

sejam, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um

investimento de confiança e a imputação da situação de confiança . 57

Dentre alguns casos julgados, destacamos em cada ordenamento:

RLx 22/05/2012: Constitui abuso do direito, na modalidade venire, a invocação

pelos réus da nulidade do contrato de mediação, já após a conclusão do negócio

visado pelo exercício da mediação, numa altura em que já se tinham aproveitado

55 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.92. 56 Idem, p.93. 57 Ver MENEZES CORDEIRO, Tratado…, Parte Geral, Tomo V, p.275 e seg.

23

das vantagens do trabalho desenvolvido pela mediadora, para não terem que

pagar a remuneração contratualmente estabelecida, em contraste com a sua

anterior atitude.

STJ ­ REsp. 13/11/2012: Recurso Especial. Direito Cambiário. Ação Declaratória

de nulidade de Título de Crédito. Assinatura escaneada. Descabimento.

Invocação do vício por quem deu a causa. Ofensa ao princípio da boa fé

objetiva. Aplicação da teoria dos atos própriossintetizada nos brocardos latinos

“venire contra factum proprium” e “tu quoque”. (Brasil)

Quanto à inalegabilidade formal, esta visa a coibir o abuso do direito

praticado na alegação de uma nulidade formal pela parte que, ao saber da existência

do defeito, não invocou quando deveria, se prevalecendo deste para depois suscitá­la,

verificando assim um comportamento contrário a boa fé. É composto por duas condutas

contraditórias conforme o venire, porém, especificamente na formação do negócio

jurídico, razão pela qual recebe tratamento específico . 58

É o que se retira dos seguintes acórdãos:

RP 10/07/2013: I – A invocação da nulidade do contrato de arrendamento após a

cessação do mesmo e depois de se ter usado o local durante algum tempo

integra uma situação de abuso de direito.

II – Caso o contrato cesse por acordo das partes não é devido o pagamento das

rendas correspondentes ao período de pré­aviso em falta (Porto).

TJ­MG 19/03/2014: APELAÇÃO ­ AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE ­

DIVERSAS EMPRESAS DE UM MESMO GRUPO ECONÔMICO ­

INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADE DE CONVOCAÇÃO ­ VÍCIO MATERIAL ­

DEVER DE LEALDADE E BOA­FÉ ­ PRINCÍPIO DA CONFIANÇA ­ VEDAÇÃO

AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM (AC 10702100537456006 MG)

Ainda que a decisão brasileira faça referência ao venire, trata­se de um caso

de inalegabilidade formal. A semelhança entre os tipos se torna ainda mais clara

quando se verifica os pressupostos para que seja aplicada. Conforme MENEZES

58 Idem, p.299 e seg.

24

CORDEIRO , este tipo requer os pressupostos da confiança que referimos quanto ao 59

venire, além de introduzir outros três: devem estar em jogo somente os interesses das

partes envolvidas, a situação de confiança deve ser imputável à pessoas a

responsabilizar e o investimento de confiança de apresentar­se sensível.

No que se refere a supressio(supressão), segundo CUNHA DE SÁ , 60

“trata­se de proibir que, no âmbito de uma relação pré­existente, o titular de um direito o

venha fazer valer em contradição com a própria conduta anterior, por tal se afigurar

inadmissível perante os deveres de correcção e de boa fé vigentes na relação, que

seriam violados por tal exercício ­ nomeadamente, se a conduta anterior do titular,

objectivamente interpretada, legitimava a convicção de que o direito já não seria

exercido”.

A supressio também é pautada na tutela da confiança e seus pressupostos,

embora seja individualizada pelo fator temporal. A supressio consiste, então, na perda

de um direito por aquele que não o exerce durante certo lapso temporal e, ao mesmo

tempo, nasce um direito na esfera do confiante de boa fé, denominado

surrectio(surgimento). Quanto às jurisprudências, destacamos:

STJ 11/12/2013: I – A inércia, omissão ou não­exercício do direito por um

período prolongado, sem que possa sê­lo tardiamente se contundir com os

limites impostos pela boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do

‘venire contra factum proprium’, conhecida por supressio.

(629/10.9TTBRG.P2.S1)

TJ­DF 07/03/2012: 1. Não merece properar o pleito de herdeiro que impugna

esboço de partilha apresentado pelo inventariante somente após a sentença de

procedência, quando, durante o invetário, que tramitou por quase duas décadas,

o insurgente, mesmo instado, não se manifestou em sentido contrário. 3.

59 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.98. 60 CUNHA DE SÁ, 1997, p.65: Este autor deu outro nome ao instituto, denominando­o de “exercício inadmissível do direito”.

25

Incidência da teoria da surrectio. (APL 195052220118070001)

Outro comportamento abusivo que tem sido evitado no direito é o tu quoque.

Este consiste na proibição, por ser abusiva, de um sujeito violar uma norma jurídica e

depois se prevalecer da situação jurídica decorrente, ou exercer a posição jurídica

violada pelo próprio ou exigir a outrem que acate a situação já violada . 61

Diferentemente dos tipos acima, o tu quoque não caracteriza um abuso do

direito a partir da quebra da confiança do sujeito de boa fé. O exercício de posições

jurídicas pode alterar a relação substancial entre as partes e retroceder ao status quo

nessa relação, apesar de conforme à previsão legal, mostra­se contrária à boa fé. Daí

surge o outro princípio concretizador da boa: o da materialidade subjacente, onde se

busca respeitar e manter a situação jurídica alterada pelo comportamento anterior e

indevido . 62

TJ­DF 26/02/2014: Configura violação ao princípio da boa fé objetiva, na

modalidade específica do “tu quoque”, a conduta da parte que pleiteia a resolução

do contrato, quando sequer cumpriu sua obrigação contratual. (APC

20130110941769)

Por último, fazemos referência ao desequilíbrio no exercício de posições

jurídica. Segundo MENEZES CORDEIRO, este tipo residual e mais extenso está na

origem do abuso do direito, pois engloba vários subtipos, do qual o autor faz menção a

três: o exercício danoso inútil, o dolo agit e a desproporção grave entre o benefício do

títular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem . Também releva na 63

materialidade subjacente. O exemplo mais corrente é o da desporporção grave,

geralmente nas relações de arrendamento:

61 MENEZES CORDEIRO, Tratado…, 2011, p.327 e seg. 62 Idem, p.336. 63 Ibidem, p.341.

26

RLx 06/12/2012: 2) Existe manifesta desproporcionalidade entre o valor das

obras exigidas pelo inquilino e os rendimentos obtidos pelos senhorios,

respeitantes a rendimento habitacional com mais de 30 anos, sendo o valor da

renda de 321,26 euros, sendo o valor das obras 270.000 euros. (

5687/10.3T2SNT.L1­8)

Findo o exame, ainda que rapidamente, dos comportamentos e antes de nos

debruçarmos sobre o abuso do direito de ação, há de finalizar fazendo menção as

consequências do abuso do direito para que, no momento oportuno, possamos fazer

um comparativo com as da litigância de má fé.

Sendo assim, as consequências, ou sanções, variam de acordo com o tipo

de abuso. Como consequência direta, podemos elencar: a supressão do direito, o

desfazimento do ato abusivo ou a anulação do ato lesivo, a cessação do exercício

abusivo e a manutenção da posição jurídica. No que pese as consequências indiretas:

o dever de restituir, seja em espécie ou equivalente, e o dever de indenizar, quando

houver dano.

No que pese ao dano, na doutrina brasileira há debate acerca da

necessidade ou não deste requisito para configurar o abuso, isto em razão da tradição

doutrinária proveniente do CC/16 que associava o instituto com o conceito de culpa e,

consequentemente, ao dever de reparar . Todavia, essa questão deve ser superada 64

em razão da evolução do instituto e dos motivos já referidos.

1.5) O Abuso do Direito de Ação

Com base nas Constituições dos respectivos ordenamentos, vemos 65

64 DAHINTEN, Abuso do Direito…, 2013, p.149. 65 Constituição da República Portuguesa, de 2005, consagra no art.20º o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva; Constituição Federal do Brasil, de 1988, consagra no art.5º, LIV e LV.

27

consagrada a garantia fundamental do direito de ação. Esta prerrogativa permite ao

sujeito o acesso à Justiça quando para reclamar ou defender o seu direito. Para tanto,

espera­se que a provocação ao judiciário seja feita com fundamento jurídico e em

respeito aos valores fundamentais do sistema, a exemplo da boa fé.

Quanto à boa fé, este princípio, do qual tratamos supra, é fundamental e

onipresente em qualquer ordenamento jurídico atual, inclusive os em estudo. Não se

limita apenas ao direito civil e as relações privatísticas, mas se impõe a todas as outras

ramificações do direito positivo, inclusive, no direito processual. Coincidências à parte,

conforme doutrina Menezes Cordeiro, foi justamente no processo civil que a boa fé teve

seus primeiros reflexos extracivis . Não somente na jurisprudência, que foi onde se 66

iniciaram os debates sobre a aceitação ou não deste princípio, mas posteriormente pela

doutrina e, ao fim, na positivação.

Segundo CUNHA DE SÁ, a jurisprudência portuguesa começou por recorrer

as ideias de abuso do direito no âmbito do direito de ação . O autor corrobora tal 67

afirmação ao dizer que, historicamente, a ação precede o direito subjetivo,

exemplificando as actiones in rem e in personam do direito romano que deram origem a

classificação dos direitos.

Hoje, sua aceitação é inquestionável. Ademais, conforme se retira do art. 8

da lei processual Portuguesa em vigência, intitulado “dever de boa fé processual”,

dispensa explicação. No mesmo sentido, dispõe o art. 14, II, do CPC Brasileiro, que as

partes devem proceder com lealdade e boa fé. Nesse sentido, o exercício de direito de

ação também se encontra subordinado ao princípio da boa fé e, consequentemente, a

proibição do abuso do direito . Isto porque já ficou comprovado que os exercícios 68

processuais também podem ser disfuncionais.

66 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.125. 67 CUNHA DE SÁ, 1997, p.268. 68 ALBUQUERQUE, Responsabilidade…, 2006, p.66 e seg.

28

Fruto do desenvolvimento da doutrina alemã que, no início do séc. XX, já

fazia referência a comportamentos abusivos no âmbito do processo, viu­se evidente a

necessidade de impor limites pautados na boa fé e o fez a partir de quatro casos de

aplicação daquele princípio no processo: a proibição de consubstanciar dolosamente

posições processuais, a proibição do venire, a proibição de abuso de poderes

processuais e a supressio . 69

Assim como o abuso do direito nas relações privadas, no campo processual

o instituto é determinado pelos mesmos requisitos(atuação contrária ao sistema) e

resulta nas mesmas consequências(cessação do exercício abusivo e dever de reparar)

Ademais, sua base legal, ainda que no processo, é o art.334 do CC/PT. No mesmo

sentido, encontram­se diversas decisões na justiça brasileira com menção ao art.187

fazendo referência ao “abuso do direito de ação”.

Apesar da terminologia fazer referência ao “direito de ação”, entendido como

sendo o praticado pelo autor da ação, abrange também o réu, e não somente ao direito

de defesa, mas a qualquer ato processual. Outrossim, cumpre destacar que este abuso

engloba tanto os aspectos subjetivos, quanto técnicos da ação . 70

Relativamente aos aspectos substantivos, o abuso do direito de ação se

materializa a partir da conjugação com os comportamentos típicos referenciados no

tópico anterior. Por exemplo, nas ações judiciais onde o autor alega uma nulidade

formal após ter se aproveitado desta, ou então, nas ações com patente desequilíbrio de

posições jurídicas.

Noutro sentido, quando o abuso tem base em aspectos técnicos do

processo, caracteriza­se pelo desvio de finalidade da “norma jurídica que atribua

69 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.127­128. 70 Idem, p.131.

29

objetivamente o direito do sujeito processual a praticar determinado ato processual, em

certo momento do trâmite processual” . Para tanto, esse desvio tem quer ultrapassar 71

os limites da boa fé.

Em termos práticos, o abuso do direito de ação é um mecanismo para

impedir a prática de atos processuais desconformes com o exercício da ação, mas não

é o único. Há nas leis processuais, portuguesa e brasileira, várias outras disposições

com a finalidade de combater os atos temerários, protelatórios e sem qualquer base

jurídica. Entre outros, há a litigância de má­fé, tema do próximo capítulo, que, embora

se confunda com o abuso no processo, não coincide.

2 ­ A Litigância de má fé

Conforme já adiantamos no tópico anterior, existem outros meios legais

destinados a policiar a conduta das partes no processo visando a correta aplicação da

justiça. Dentre eles, figura o instituto da litigância de má fé.

Primeiramente, cumpre destacar que esse é um instituto tipicamente

português . Sendo assim, há de mencionar, ainda que rapidamente, a evolução deste 72

que hoje é consagrado nos ordenamentos em estudo.

2.1) Evolução Histórica

Assim como o abuso do direito, já havia no direito romano uma doutrina que

reprimia a má fé processual, denominada temeritas processual, ou lide temerária.

Traçar o caminho percorrido detalhadamente desde a origem romana até a definição

atual não seria conveniente. O avanço do instituto foi gradualmente lento passando por

71 SENNA, O abuso de Direito…, 2009, p.19. 72 COSTA E SILVA, A litigância de má fé, 2008, p.131 e ss..; MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.37.

30

vários momentos, desde as Ordenações(Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), pelas

Reformas Judiciárias até aos Códigos. 73

O legislador português importou de Roma o instituto processual do

juramentum calumniae, no vernáculo, juramento de calúnia . Consistia numa 74

declaração feita por autor e réu, em que alegavam atuar no processo com justa razão e

boa fé, sem tenção maliciosa. Este juramento era obrigatório. Se o autor não o fizesse,

acarretaria a perda da ação. Quanto ao réu, se este recusasse prestar o juramento,

implicaria na confissão do pedido.

Este juramento esteve presente nas leis anteriores às Ordenações até a

Novíssima Reforma Judicária, que antecedeu o primeiro Código de Processo Civil, de

1876. Todavia, num primeiro momento, ao tempo das Ordenações, o juramento de

calúnia era geral, aplicável a qualquer ação, ordinária ou sumária. Já no período das

Reformas, sua aplicação passou a ser especial, sendo somente utilizado nas situações

tipificadas em lei . 75

Insta destacar que já nesse período, o litigante que fosse pego atuando com

dolo poderia ser condenado ao dobro ou tresdobro sobre o valor das custas pessoais

do litigante vencendor.

Outro dado importante, presente nas O. Filipinas, é a responsabilidade dos

Advogados e procuradores. A lei da Boa Razão, de 1769, impunha sanções severas

para os mandatários que atuavam de maneira frívola: a) se fosse pego atuando de má

fé pela primeira vez, caia numa multa de 50 mil réis para a Relação, mais seis meses

de suspensão; b) numa segunda, perda dos graus obtidos na Universidade; e c) na

terceira, 5 anos de reclusão na Angola. Entretanto, o requisito do dolo obstava a

73 Idem, p.186­190; A primeira em 1832; a segunda, denominada “A nova Reforma judiciária”, em 1837; e a última, “ A novíssima Reforma Judiciária”, sem data informada; 74 ALBUQUERQUE, Responsabilidade…, 2006, p.30. 75 COSTA E SILVA, 2008, p.189.

31

aplicação desta lei . Até este período as sanções impostas aos que litigassem de má 76

fé resultavam unicamente no agravamento das custas processuais. Esta tinha apenas

caráter punitivo . 77

O Código de Processo Civil Português, de 1876, trouxe significativas

mudanças em relação a responsabilidade processual. À priori, destaca­se a supressão

do juramento de calúnia . Nessa legislação, criou­se um sistema especial para o 78

litigante de má fé. Tal disposição é prevista nos arts. 121, 122 e 126. O artigo 121

estabelecia que a parte vencida e maliciosa pagaria 10%, a título de multa, sobre o

valor da causa, não podendo exceder a 1000 réis. Já o art.122 punia a litigância no

decorrer das ações executórias, nomeadamente nos embargos de terceiro e execução.

Já o Art.126, §1, estabelecia que a indenização não poderia exceder o dobro

das custas. Este foi um dos avanços na nova legislação. Anteriormente, nenhum corpo

jurídico fez referência a uma indenização em prol da parte prejudicada pela malícia.

Para tanto, a indenização estava sujeita ao entendimento do juiz e independia de estar

conexo ao dano sofrido, nem era necessária a ocorrência deste . 79

Por último, foi neste Código que se introduziu o termo “litigância de má fé”.

Porém, a cumulação de multa e indenização só poderia ser devida pela parte

sucumbente. Sendo assim, caso o vencedor da ação tivesse litigado de má fé, este não

seria condenado por litigância . Apesar da relevante mudança, a aplicação do instituto 80

ainda era escassa e, quando aplicada, tinha caráter compensatório.

No momento seguinte, o da vigência do CPC de 1939, houveram

significativas mudanças a começar, em seu art.465, na definição de má fé processual,

76 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.41. 77 FERNANDES DE SOUZA, Abuso do Direito Processual, 2005, p.85. 78 COSTA E SILVA, 2008, p.199. 79 ALBUQUERQUE, 2006, p.40. 80 COSTA E SILVA. 2008, p.200.

32

conceituando o o tipo central que seria o instituto. Isto acabou por limitar a aplicação do

instituto. Um primeiro ponto a ser alterado foi a supressão do requisito de somente

aplicar a litigância de má fé a parte vencida, como constava do CPC/39, conforme o

§único. Todavia, para condenar o vencedor por litigância de má fé, somente seria

possível quando este agisse com dolo instrumental, ou seja, uso reprovável do

processo ou dos meios processuais, não sendo possível na hipótese de dolo

substancial . 81

Consistia em litigar de má fé o exercício processual, revestido de dolo,

quando deduzida pretensão ou oposição sem fundamento do qual não se poderia

desconhecer, como também alterar a verdade dos fatos ou omitir fatos essenciais, ou

fazer do processo uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objetivo

ilegal ou de entorpecer a ação da justiça ou impedir a descoberta da verdade. Outro

dado a reter, no que pese ao conteúdo da indenização, é que esta era arbitrada com

base na conduta do lesante e não no prejuízo sofrido pelo lesado . 82

Na esteira veio o CPC/61 que nada alterou relativamente ao instituto, exceto

pela redação. A má fé que era constatada pela “pretensão ou oposição cuja falta de

fundamento o agente não podia razoavelmente desconhecer”, passou a ser “cuja falta

de fundamento ele não ignorava”. A aplicação do instituto era escassa, pois, o juízo de

dolo, seja quanto a matéria em causa ou quanto ao ato processual, era difícil de ser

aplicado . Verifica­se a acentuação do dolo sobre a conduta, dificultando ainda mais a 83

sua aplicação prática.

Todavia, relevante mudança ocorreu na Reforma de 1995. Com esta

reforma, a litigância de má fé passaria a ser aplicada, também, nas condutas

negligentemente graves, ampliando o campo de incidência do instituto. Além disso,

81 ALBUQUERQUE, 2006, p.43. 82 Idem, p.44. 83 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.49­50.

33

uma novo tipo de conduta foi inserido como sendo de má fé processual: a omissão do

dever de cooperação(boa fé processual) . 84

Quanto ao ordenamento brasileiro, na época do Império, por ser colônia de

Portugal, tinha o seu corpo legal regrado pelas Ordenações Filipinas. Com a sua

indepêndencia, manteve as O.Filipinas em vigor, exceto pelas cláusulas que fossem

contrárias à sua soberania. Em 1850, com a publicação do Código Comercial, o

legislador da época editou o Regulamento n.373, que versava sobre o processo

comercial . 85

Em 1871, o Governo Imperial pediu ao Conselheiro Antonio Joaquim Ribas,

que reunisse as leis vigentes ao tempo, O.F. e leis complementares, num só corpo,

resultando na Consolidação das Leis de Processo Civil, que tinha peso de lei . Este 86

regerem o processo civil até a proclamação da república, quando o decreto n.763,

impôs a aplicação do Regulamento n.737 ao processo civil . 87

Com a publicação da Constituição de 1891, o Art.34, n.23, dispôs a

dualidade do processo, cabendo tanto a União quanto aos Estados, lesgilar sobre o

processo. Nos códigos estudais, embora inconsistentes, já se constatavam óbices a

prática processual maliciosa, variando a pena de estado para estado. Com o advento da

Constituição de 1934, a unidade processual foi reestabelecida. Em 1939, surge o

primeiro CPC Brasileiro, que previa no seu art.63 a repressão a litigância maliciosa,

condenando em custas. Previa também a condenação ao advogado/procurador.

Já em 1973, editou­se um no código de Processo Civil que está em vigor até

hoje, mas com os dias contados, já que tramina no Congresso Nacional o projeto do

novo Código de Processo Civil, passando por retoques finais para ser publicado.

84 COSTA E SILVA, 2008, p.264. 85 GOUVEIA, A litigância de má fé…, 2002, p.84 e ss.. 86 FERNANDES DE SOUZA, Abuso do Direito Processual, 2005, p.88. 87 GOUVEIA, A litigância de má fé..., 2002, p.84 e ss..

34

2.2) Regime e características

A litigância de má fé é um instituto consagrado nos ordenamentos em

estudo. Sua previsão legal se retira dos arts. 542 a 545 e arts.16 a 18, dos CPC’s

português e brasileiro, respectivamente. E, assim como no abuso, a redação é bastante

parecida. Sendo assim, preconizam:

Art.542 Noção de litigância de má fé

1) Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indenização

à parte, se esta pedir.

2) Diz­se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia

ignorar; b) tiver alterado a verdade dos fatos ou omitido fatos relevantes para a

decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d)

tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente

reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da

verdade, entorpecer a ação da Justiça ou protelar, sem fundamento sério, o

trânsito em julgado da decisão.

Art.16 Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má­fé como autor, réu

ou interveniente.

Art.17 Reputa­se litigante de má­fé aquele que:

I­ deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II­ alterar a verdade dos fatos; III­usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV­ opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V­ proceder de

modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI­ provocar

incidentes manifestamente infundados; VII­ interpuser recurso com intuito

manifestamente protelatório.

Comparando os dispositivos, é patente a semelhança normativa, inclusive no

que respeita aos comportamentos tipificados. Desta definição retiramos os aspectos

que caracterizam o instituto.

35

A litigância de má fé é, nos dizeres de PEDRO ALBUQUERQUE, o

instrumento utilizado para policiar o processo resultante da “violação dos deveres e

posições jurídicas sentidos exclusivamente ao nível do processo, com independência e

autonomia relativamente às posições de direito material” . 88

Os deveres que o autor menciona são os decorrentes do respeito aos

princípios da cooperação, boa fé e correção jurídica . O princípio da cooperação 89

consiste no dever que os intervenientes processuais têm em prestar sua cooperação

ativa com vista a obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Já a

boa fé, além do que já fora mencionado neste estudo, deve ser pautada no respeito aos

deveres estabelecidos no princípio de cooperação. Quanto à correção recíproca,

devem as partes ter atenção ao dever de urbanidade.

No que pese a má fé no processo, esta pode ser através de uma atuação

substancial ou processual. Segundo MENEZES CORDEIRO , as alíneas a, b e c 90

correspondem à atuação substancial, enquanto a alínea d seria uma atuação

processual, dividida em três subcondutas: conseguir um objetivo ilegal; impedir a

descoberta da verdade; e protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da

decisão.

Noutro sentido, há quem entenda ser a alínea c hipótese de atuação

processual . Isto porque, da redação do princípio(art.8), extrai­se deveres 91

instrumentais(inciso I) e materiais(incisos II e III).

Quanto a sua natureza jurídica, a litigância de má fé é um instrumento

processual público. Nesse sentido, opera oficiosamente e podendo ser suscitado a

88 ALBUQUERQUE, 2006, p.59. 89 Cf. artigos 7, 8 e 9 do CPC Português e Art.14 do CPC Brasileiro. 90 MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.55. 91 ALBUQUERQUE, p.49; ALMEIDA, Direito Processul Civil, 2010, p.299.

36

qualquer momento no processo. Tem como requisito a violação de conduta processual

a partir de um dos comportamentos tipificados nos artigos acima mencionados. Para

tanto, além da conduta pré­estabelecida, é requisito a existência de dolo ou negligência

grave. Quanto à negiligência grave, a jurisprudência portuguesa restringe às situações

de má fé substancial. No caso de ma fé processual somente importará a atuação

dolosa . 92

Ademais, este instituto visa punir unicamente a conduta processual, não

sendo pressuposto a existência de resultado . A má fé processual desencadeia dois 93

efeitos: a sanção penal, consistente numa multa arbitrada de ofício à parte maliciosa,

tomando por base o valor das custas; e uma indenização, a pedido da contraparte. No

direito brasileiro, a indenização também pode ser atribuída de ofício, conforme art.18.

Além da sanção destinada às partes, o instituto, no direito português, ainda

faz referência aos representantes e procuradores que também podem agir com má fé.

Quanto aos representantes, segundo critica de MENEZES CORDEIRO , o instituto 94

“quebra os nexos de organicidade” contrariando as regras presentes no código civil e o

das sociedades comerciais, ao punir somente o representante, ao invés da pessoa

coletiva. Quanto ao procurador, o julgador não poderá condená­lo pela má fé, sendo

esta competência do órgão de ética da Ordem dos Advogados, conforme art.545.

A título exemplificativo, o litigância maliciosa pode ser identificada nas

seguintes condutas: negação intencional de fatos pessoais que venham a ser provados;

autor que demanda condenação do réu ao pagamento de quantia superior ao que é

devida; autor que ação que reinvidica do réu a passo de imóvel, quando existia nessa

92 MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.56. 93 Conforme ALBUQUERQUE: “Decisivo não é nunca o atingir de posições jurídicas subjetivas materiais. Trata­se, como sempre sucedeu desde Roma, de uma ilicitude baseada na violação de posições e deveres processuais que, a serem atingidos, geram de imediato uma ilicitude sancionável independentemente da existência ou lesão de qualquer ilícito de direito substantivo”, 2006, p.52. 94 MENEZES CORDEIRO, Litigância, 2011, p.60.

37

relação um contrato de arrendamento; etc.

Conforme destacamos, a inexistência de resultado não obsta a condenação

da parte, inclusive na situação desta desistir da ação, conforme o acórdão a seguir:

STJ 20/03/2014 I­ A desistência do pedido não obsta à condenação da parte

como litigante de má fé. II­ A lide temerária pode ser hoje sancionada como

litigância de má fé visto que, desde a revisão de 1995/1996 do Código de

Processo Civil (artigo 456.º do C.P.C./61), passou a ser possível a condenação

como litigante de má fé do litigante que agiu com negligência grave. (Processo

1063/11.9TVLSB.L1.S1).

Embora o instituto tenha relevo teórico, sendo o mais desenvolvido no CPC,

quanto à obstar as condutas processuais disfuncionais, na prática não tem apresentado

boa aplicação. Por um lado, os requisitos do dolo ou negligência grave são muito

rigorosos. Noutro, as condenações pelo instituto tem caráter unicamente

compensatório, quanto deveriam ser indenizatório.

Tomemos por exemplo a justiça no Brasil. Atualmente, uma ação dura em

média quatro anos. Se o autor intenta ação com intuito único que prejudicar o réu, este

passará os próximos quatro anos sofrendo com a angústia de poder vir a ser

condenado. Ao passo que o autor, exercerdo seu direito de ação, fará mal uso do

processo e, ao fim, caso perca, pagará somente as custas e honorários do réu e, se

vier a ser condenado por má fé, será sancionado com multa e indenização com base no

valor das custas processuais, sendo geralmente um valor irrisório.

As mudanças evolutivas que ocorreram ao longo dos tempos com o abuso

devem agora atingir a litigância de má fé e o principal ator nesse processo é o juiz.

Atualmente, sua aplicação é restritiva e se mostra cada vez menos frequente na praxis

judiciária, sendo talvez por isso, que o abuso do direito de ação tem relevado como

uma nova forma de impedir os atos abusivos(infudados, protelatórios, etc.).

38

3 ­ O abuso do direito de ação e a litigância de má fé: comparativo entre os

institutos.

A partir do que já traçamos durante este estudo, podemos agora comparar

os institutos que nos propusemos a estudar. Já dissemos que, apesar das

semelhanças, estes não se confundem. Contudo, já se confundiram.

No período anterior à vigência do Código Civil de Vaz Serra(1966), o abuso

do direito ainda não tinha previsão legal, não obstante a doutrina e jurisprudência já

apresentarem aversão ao direito subjetivo absoluto. Nesse momento, o abuso que

consistia no exercício do direito com intenção maliciosa se confundia com a litigância

de má fé , até a entrada em vigor do referido código, onde os estudos são 95

direcionados em sentido oposto.

É certo que hoje essa confusão é superada. O abuso do direito, conforme

vimos, é um instituto privado de conceito indeterminado, mas presente em todo o

direito, surgindo sempre que uma atuação seja contrária ao sistema, nomeadamente da

boa fé, consagrada pelos princípios da tutela da confiança e da materialidade

subjacente, tendo sua previsão legal no art.334 do CC/PT e no art.187 do CC/BR.

Independe de culpa, ou seja, para se materializar basta uma análise objetiva

da atuação do sujeito de direito. Ademais, é requisito a existência de dano, qual seja, o

investimento de confiança e outros. Além disso, opera oficiosamente, desde que dentro

do pedido da ação . 96

Quanto às consequências do ato abusivo, busca­se, imediatamente, a

cessação da conduta abusiva e a manutenção da posição jurídica. E mediatamente o

95 COSTA E SILVA, 2008, p.618­619. 96 MENEZES CORDEIRO, Litigância…, 2011, p.190­191.

39

dever de restituir, seja em espécie ou equivalente, e o dever de indenizar, quando

houver dano.

Em sentido oposto, tem­se a litigância de má fé que consiste num instituto de

direito público, no âmbito do processo, que surge como ferramenta para policiar o

processo, nomeadamente, na atuação das partes. Por ter natureza pública, seu

conhecimento é oficioso, podendo o ser a qualquer momento no processo.

Sua base legal, os artigos 542 a 545 e 16 a 18 dos Códigos de Processo

Civil Português e brasileiro, impõe um rol exaustivo, limitando a aplicação do instituto

somente naquelas situações, além de requisitar a existência de dolo ou negligência

grave. Por outro lado, dispensa a existência de danos, bastando a conduta do sujeito

processual.

A litigância de má fé tem como consequência uma sanção penal que

consistirá numa multa. Com base no que vimos, esta já se faz presente desde o tempo

das Ordenações, porém, já que a lei impõe que o quantum sancionatório tem como

base nas custas, geralmente os valores são insignificantes, o que não intimida a parte

maliciosa a deixar de agir com intenção diversa daquela que se espera. Além, há a

sanção civil que consiste na indenização, todavia, esta depende do pedido do

lesado(no caso do ordenamento Português). No Brasil, esta pode ser reconhecida de

ofício.

Nesse sentido, extraímos que, apesar da litigância ser limitada pelos motivos

já expostos, o abuso do direito complementa e engloba as situações que não recaiam

na incidência do instituto, seja pela ausência do elemento subjetivo ou por não coincidir

com alguma das hipóteses do arts. 542 ou 17.

Conclusões

40

Tendo vista toda a abordagem feita e o alcance do espaço que nos fora

permitido, cumpre­nos agora concluir este estudo, fazendo­o por meio de um apanhado

geral da matéria e o nosso ponto de vista.

Primeiramente, insta destacar a importância do abuso do direito. Este

instituto determina a relativização dos direitos subjetivos, antes absolutos, a partir da

constatação da disfuncionalidade perante valores éticos, sociais e morais. Hoje está

consagrado nos mais variados ordenamentos, alguns com mais preponderância que

outros.

Sua evolução mais recente deve ser creditada aos ordenamentos que

desenvolveram e aplicam até os dias atuais os comportamentos típicos abusivos, a

exemplo da Alemanha, que tem forte influência no sistema romano­germânico, e

Portugal, que viu na sua doutrina e jurisprudência o alargamento do instituto.

O quadro de comportamentos típicos e a sua sistematização com base no

princípio da boa fé serve como uma “válvula de escape”, termo tão utilizado nos

debates do Curso de Mestrado. Isso significa que, onde a lei não prever uma

determinada situação, caberá ali uma sindicância pautada na boa fé, admitindo ou

reprimindo o ato jurídico. Nesse sentido, o direito mantém o equilíbrio nas relações

sociais.

Em relação ao Brasil, apesar da recente inclusão legal do abuso, sua

utilização já é antiga, desde o CC/1916 quando já se fazia uma aplicação contrario

sensu. O dispositivo influenciado pelo art.334 do CC/PT apresenta os mesmo limites,

embora a interpretação seja distinta. O ordenamento Português prioriza a boa fé, ao

passo que o Brasileiro dá maior atenção à função social do direito.

41

Independente disso, os requisitos são praticamente os mesmo, surgindo o

abuso da violação aos limites impostos, quais sejam, a boa fé, os bons costumes, o fim

econômico e o social.

No que pese ao direito de ação, ao nosso ver, este deve ter sua aplicação

ampliada. A litigância de má fé é um instituto obsoleto. Sua aplicação é escassa e já

ficou demonstrada a ineficiência. Por um lado sua limitação legal dificulta a aplicação

de uma sanção pelo julgador. O campo processual é cenário de atuação, onde as

partes e procuradores perseguem mais do que a verdade, a vitória. Para tanto, irão

mentir, difamar e fazer mal uso do processo. Isso é uma cultura que não se muda. O

que deve mudar é o instituto. Por outro lado, os julgadores são inertes em aplicar uma

multa que resulte numa verdadeira sanção, o que dificulta num bom resultado.

Por estes motivos, o abuso do direito deve ser ampliado, tendo em vista que

aí não há limite de condutas ou necessidade de culpa, pelo contrário, basta a violação

dos limites ou cláusulas gerais, o que seria mais fácil de demonstrar.

Diferenças à parte, ambos podem incidir no processo como meio para

impedir a prática processual inútil e protelatória. Ainda mais num cenário como o atual,

em que ambos os Poderes Judiciários sofrem com a imensidão de ações, o que resulta

na prestação ineficaz e morosa da Justiça.

42

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