Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política

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1 CRISTIANO DE SOUZA TAVARES Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política Disciplina História da Teologia na América Latina, do Programa de Pós- graduação em Teologia, da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2013

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CRISTIANO DE SOUZA TAVARES

Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política

Disciplina História da Teologia na

América Latina, do Programa de Pós-

graduação em Teologia, da Faculdade de

Teologia da Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul.

Porto Alegre

2013

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Introdução

O século XVII deu à humanidade um destacado pensador: Antônio Vieira. Devido sua

multifacetada capacidade foi alvo de estudos nos últimos anos. Sua importância é

calcada na sua inteligência, atividades políticas e missionárias. Padre Antônio Vieira é

filho de seu tempo e marcado pela disciplina militar, tão comum à mentalidade da

Companhia de Jesus. O presente trabalho procura analisar o Jesuíta a partir das linhas

mestras de sua vida, é dividido em 5 partes: 1. Vida e obras; 2. Brasil Colônia e a

educação jesuítica; 3. Vieira, catequeta e missionário; 4. Defensor dos índios e

condescendência à escravidão africana; 5. O legado de Antônio Vieira. Dessa forma,

pretende-se passar pelos momentos decisivos daquele que é considerado um dos

personagens mais destacados da história luso-brasileira dos últimos 400 anos. Com essa

maneira de compreender é que damos início a esse despretensioso trabalho.

3

Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política

1 Vida e obras

Um homem nascido em dois continentes, um coração entre dois mundos.

Antônio Vieira nasceu em Lisboa, Portugal, em 06 de fevereiro de 1608. O século XVI

dista culturamente, religiosamente e filosoficamente dos nossos dias. Portugal entrara

na rota da decadência e já ficava para trás quanto aos grandes feitos cantados em verso e

prosa a exemplo de Luís Vaz de Camões.

Nascer em Portugal naquela época, se não fosse oriundo da nobreza, não tinha

nada a comemorar. Vida marcada pela escassez de produtos básicos ao bem estar,

ausência quase completa de educação formal às crianças e jovens, em suma, um pobre

dos nossos dias, é muito mais “afortunado” em muitos aspectos que um contemporâneo

abastado dos inícios do século XVII. A origem de Antônio Vieira é humilde, nada tem a

ver com as classes privilegiadas. Portugal por essa época passava por uma forte crise

econômica, social e até mesmo de identidade. Isto influenciaria de modo decisivo a vida

e missão de Vieira. Os nomes de seus pais eram Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de

Azevedo. O pai era funcionário da Justiça Régia. Em 1609 Cristóvão Ravasco fez uma

viagem por motivo de trabalho à Colônia (Brasil), viagem que mudaria todo o rumo

histórico da família Vieira. Depois de certo tempo foi buscar o restante da família e

assim começa a vida de Antônio Vieira no Brasil. O pequeno Viera tinha 6 anos de

idade quanto aportou em terras coloniais.

Grosso modo, pode-se dividir em três fases a vida de Vieira no Brasil: juventude

na Bahia, maturidade no Maranhão e a velhice na Bahia.1 Se a vida na capital

portuguesa não era nada fácil para a maioria das pessoas, a vida na Colônia era um

verdadeiro martírio para a maioria. O Brasil era terra da barbárie e da não civilização

para a maioria esmagadora dos europeus. Dirigiam-se a essas paragens os aventureiros,

os degredados, os missionários e os sob o jugo da oficialidade a exemplo de Cristóvão

Ravasco com sua família no ano de 1614. Os missionários jesuítas na Colônia tinham

uma dupla missão: catequizar os índios e instruir os filhos dos colonos. Foi nesse

cenário que desabrochou a vocação inaciana de Vieira.

Por ser filho de funcionário da Colônia portuguesa foi caminho natural que

seguisse de perto a instrução jesuítica. Algo chama a atenção quanto ao fato de Vieira

saber ler num tempo que isso era incomum entre crianças de sua idade, fato é que sua

1 Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p.12.

4

mãe já ministrara as primeiras letras ao pequeno aprendiz. Isso pode levar a crer que sua

mãe tivesse uma raiz cristã-nova já que esse grupo de antigos judeus forçados à

conversão conservou o hábito da “instrução” em seio familiar. Antônio Vieira demorou

a se adaptar às cartilhas pedagógicas usadas no colégio tendo sido considerado, a

princípio, medíocre intelectualmente. A verdade é que depois de certo tempo destacou-

se de maneira gloriosa a tal ponto de surgir a história, beirando a lenda, do “estalo de

Vieira”. Digno de nota que seu desenvolvimento espiritual e intelectual se deu no

principal centro de ensino da Colônia, o Colégio Inaciano da Bahia.2 Com o ingresso

nas hordas da Companhia de Jesus, Vieira inicia sua trajetória de fé, religião e política.

“A excepcionalidade de Vieira residia muito mais na sua inteligência acima da média,

na sua enorme capacidade literária em língua portuguesa e no seu extraordinário talento

oratório”.3

Entre os anos 1580 a 1640, o país Luso passou por um período de reinado dual,

ou seja, a coroa castelhana detinha o poder sobre Portugal através de Felipe II, do ramo

espanhol dos Habsburgo. Com o fim da União Ibérica Pe. Vieira singrou rumo à

metrópole para prestar obediência ao rei da casa de Bragança João IV. O jesuíta e o rei

recém-empossado se afeiçoaram de imediato sendo Pe. Vieira convidado a ser pregador

real em 1641. Por defender os judeus, assim como também sustentar certas “profecias”

tal como o ressurgimento do Rei Sebastião, morto em 1578 em Alcácer Quibir, no atual

Marrocos, foi perseguido, julgado, mas absolvido. Uma das maiores graças que Vieira

conseguiu foi frear o ímpeto inquisitorial dominicano através de relatórios a Roma.

Com a manobra de verdadeiro mestre conseguiu do papa Clemente X em 1675

um salvo conduto que o isentava do poder da Inquisição, respondendo diretamente ao

Papa. Além do que por um período de 6 anos foi pregador da casa pontifícia, feito

notável, para quem se desenvolveu e amadureceu espiritualmente e intelectualmente na

periferia do mundo. Em 1681 ao retornar à Colônia, já enfraquecido pela idade e

incompreensões internas na Companhia retira-se da vida pública e praticamente cego

tenta codificar seus escritos, trabalho inconcluso devido sua morte em 18 de julho de

1897.

Antônio Vieira foi um escritor de mão cheia. Seu estilo barroco é patente,

deixando transparecer em suas pregações e escritos. Muito do que deixou para a

posteridade recebeu a influência do contexto histórico da Contrarreforma e do

2 Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p.33

3 Ibid,. 38

5

Renascimento. A pena de Vieira deixa transparecer bem a luta entre corpo e alma, a

fugacidade do tempo, cultismo e conceptismo, figuras de linguagem etc,.4 Viera deixou-

nos cerca de 200 sermões e 500 cartas.

Segue a lista de algumas obras de destaque.

Sermão de Nossa Senhora do Rosário; Sermão do Quinto Domingo da Quaresma;

Sermão do Mandato; Sermão Segundo do Mandato; Sermão de Santa Catarina Virgem e

Mártir; Sermão Histórico e Panegírico; Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus;

Sermão do Primeiro Domingo do Advento (1650); Sermão do Primeiro Domingo do

Advento (1655); Sermão de São Pedro; Sermão da Primeira Oitava de Páscoa; Sermão

nas Exéquias de D. Maria de Ataíde; Sermão de São Roque; Sermão de Todos os

Santos; Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento; Sermão de Santa Teresa;

Sermão da Primeira Sexta-feira da Quaresma (1651); Sermão da Primeira Sexta-feira da

Quaresma (1644); Sermão de Santa Catarina (1663); Sermão do Mandato (1643);

Sermão do Espírito Santo; Sermão de Nossa Senhora do Ó (1640); Sermão do Segundo

Domingo da Quaresma (1651); Maria Rosa Mística; Excelências, Poderes e Maravilhas

do seu Rosário; Sermão das Cadeias de São Pedro em Roma; Sermão do Domingo XIX

depois do Pentecostes (1639); Sermão de Dia de Ramos (1656); Sermão do Quarto

Sábado da Quaresma (1640); Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo

Sacramento; Sermão XI Com o Santíssimo Sacramento Exposto; Sermão do Quinto

Domingo da Quaresma (1654); Sermão nas Exéquias de D. Maria da Ataíde (1649);

Sermão de São Roque (1652); Sermão Segundo do Mandato (II); Sermão do Mandato

(1655); Sermão da Epifania (1662); Sermão do primeiro Oitavo da Páscoa (1656);

História do Futuro; Esperanças de Portugal; Defesa do livro intitulado Quinto Império.

Desse universo de escritos alguns se tornaram notórios pelo estilo, agudeza de

raciocínio, figuras de linguagem e contexto histórico: Sermão da Sexagésima, Maria

Rosa Mística, Sermão de Santo Antônio aos Peixes, Sermão pelo Bom Sucesso das

Armas de Portugal Contra as de Holanda, Sermão do Bom Ladrão.

4 Cf.< http://www.soliteratura.com.br/barroco/barroco06.php>. Acesso em: 31 de out de 2013.

6

2 Brasil colônia e a educação jesuítica

A situação do Brasil no século XVII era de total precariedade. Os portugueses

tinham o domínio prático da Colônia, mas na primeira metade do século a Espanha

também chegou a deter poder de mando sobre o pedaço de terra que viria a ser chamado

Brasil, devido à União Ibérica. A Colônia possuía duas “cabeças”, uma produtiva,

Pernambuco, com sua forte produção açucareira, e Bahia, ligada a assuntos mais

administrativos. Ressalte-se o fato de não se poder mensurar com absoluta certeza a

população colonial daquele período, mas o que se deduz é que devido a grande

migração forçada de africanos, a maioria dos habitantes era procedente de Guiné, Congo

e Angola.

A população branca era escassa e os índios, que segundo alguns eram de 2 a 5

milhões, estavam sendo dizimados no litoral, quer pela escravidão quer pelas inúmeras

doenças trazidas pelos europeus, especialmente a varíola. É sabido que o interesse

lusitano no Novo Mundo era a exploração através da extração de madeira, plantations,

metais preciosos e drogas do sertão. Nunca foi propriamente estabelecer uma

colonização planificada, procurando desenvolver um novo tecido social a exemplo das

13 colônias no nordeste estadunidense.

O princípio básico para uma adequada organização social passa pela educação. É

fato conhecido que o decadente império português resistiu até as últimas circunstâncias

a estabelecer centros de instrução formal em suas colônias. Isso se tornou evidente da

inveterada resistência lusa em implementar bons centros de ensino, mormente o

superior. Ao contrário dos espanhóis que permitiram fundar universidades em Santo

Domingo em 1538 e no Vice-Reino do Peru em 1551.5 Na Colônia a educação era feita

através de “seminários” religiosos que formavam os futuros padres ou davam um verniz

na instrução dos filhos dos colonos.

Pode-se dizer que o rigor e a seriedade dos estudos jesuíticos na capital baiana

estavam se não iguais, ao menos próximo da excelência acadêmica universitária

europeia, e por mais que tentassem esse status o governo não quis reconhecê-lo.6 Um

jesuíta era educado para resistir e enfrentar toda e qualquer adversidade, por isso mesmo

cada centro de estudos jesuítas eram verdadeiros laboratórios para aprofundar a fé,

robustecer as convicções e fortalecer o caráter preparando os alunos para toda e

5 Cf.< http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_das_universidades_mais_antigas_do_mundo>. Acesso

em 31 de out. 2013 6 Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p. 39

7

qualquer circunstância. “Recebiam instruções de boas maneiras, lições de como usar as

mãos e a voz, aulas sobre o modo de olhar, de se vestir e de rir”.7

Sucintamente a grade de ensino consistia: Ratio Studiorum para a filosofia com

destaque para a Lógica; a teologia era marcada pela Suma Teológica de Tomás de

Aquino, o Curso Conimbrense (teologia moral), Sagrada Escritura, língua latina e a

língua geral, isto é, o tupi.8 Nesse cenário temos o jesuíta, o escritor, o orador e o

catequeta Vieira. Devido sua reconhecida inteligência, o Pe. Vieira foi encaminhado

para a docência ensinando filosofia/lógica e retórica em 1634.

Mas o Jesuíta não se enclausurava em meio aos pergaminhos somente, era

homem de ação, em suma, de catequese. Daí advém, o precioso recurso da palavra, da

pregação. A cristianização dos silvícolas era “conditio sine qua nom” da sua missão de

padre da Companhia. A educação jesuítica se tornou famosa pela eficiência. A Ordem

nasceu para ser um exército altamente preparado á disposição do papa, assim como

também para retificação das heresias advindas do protestantismo. Ainda no século XVII

a força civilizadora dos jesuítas pela educação se fez sentir através dos 7 povos das

Missões na Bacia do Prata, tamanha era a força e capilaridade nas terras do Novo

Mundo.

7 Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p.37.

8 Ibid,. p. 38

8

3 Vieira, catequeta e missionário

Na história da Igreja há muitas pedagogias de missão. Particularmente entre os

séculos XIII ao XVII o mundo católico conviveu com quatro maneiras de evangelizar: a

monástica (que remonta ao século IV), a franciscana, a dominicana e por último a

jesuíta. Todas absorveram do monasticismo o caráter ascético de vida, franciscanos

entregaram-se a uma vida devota pelo sentimento, dominicanos surgiram da

necessidade de pregar o evangelho e retificar mentes heréticas, e os jesuítas pela

pedagogia da persuasão e educação da mente e do espírito. Em determinado tempo,

franciscanos e dominicanos cultivaram certa animosidade. No século XVII dominicanos

também entraram em rota de colisão com os jesuítas, mas agora por uma questão de

método.

Enquanto os filhos de Inácio propunham o exemplo, a proximidade, a catequese

persuasiva, os filhos de Gusmão desejavam cristianizar pela repressão, intimidação e o

medo. Enquanto dominicanos estavam com a mentalidade de Cristandade Medieval, os

jesuítas estavam mais para uma devotio moderna. Jesuítas, didaticamente e

metodologicamente falando, nasceram na Modernidade.

Vieira entrou jovem na Societas Iesus, precisamente aos 15 anos de idade no dia

15 de maio de 1623. Gostava de estudar, mas era a missão evangelizadora que elevava o

seu espírito. Depois de temporadas entre Bahia, Pernambuco e a Europa, foi a missão no

Maranhão e no Grão-Pará, em meio aos índios, que o fez sentir-se verdadeiro

missionário. Sua ação missionária em terras maranhenses fez com que levasse a cabo

uma de suas maiores paixões: a catequese do aborígene. Para esse Miles Christi civilizar

o bárbaro, protegê-lo da escravidão, salvar a sua alma, era o verdadeiro motivo que o

fez abraçar a vida religiosa.

De idade de dezessete anos fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos

Gentios e doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei às duas

línguas do Brasil e Angola, que são os gentios e cristãos boçais daquela

Província. E porque para este ministério me não era necessária mais ciência que

a doutrina cristã, pedi aos superiores me tirassem dos estudos, porque não queria

curso nem teologia, e cedia dos graus da Religião que a ele e a ela se seguem. E

posto que os Superiores mo não quiseram conceder, antes me tiraram a

9

obrigação do voto, e o Padre Geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e

insistir nele, até que ultimamente o consegui, indo-me ao Maranhão, tanto contra

a vontade de El-Rei e do Príncipe, como é notório, levando e convocando de

diversas partes da Companhia para mesma missão mais de trinta religiosos de

grandes talentos.9

Em todo caso, o anseio em expandir o catolicismo aliado à causa civilizacional, foram

os grandes impulsos para dar continuidade ao trabalho missionário. A teologia

tridentina do “salva a tua alma” tinha papel determinante em não deixar arrefecer o

ardor inicial. Catequizar os indígenas traziam três grandes benefícios: materiais, já que

pela ordenação ao trabalho enriqueceria os demais membros da tribo; políticos, ao

amansar os índios a terra obteria aliados contra os invasores e solidificaria a harmonia

social e por último o espiritual, a salvação da alma nativa (o mais importante).

Isso na teoria, na prática avolumava-se os desafios. Os obstáculos à missão

transpareciam pela escravidão imposta pelo colono invasor, a desconfiança natural do

indígena e o choque cultural entre civilizações. Não se pode dizer que os resultados

foram de todo negativos. Vieira avançou em seus esforços com perseverança e

dedicação, obtendo a cristianização sincera de muitas “almas”. É digno de nota o feito

político de assegurar por meios jurídicos a liberdade dos gentios, através de leis e

decretos, infelizmente a maioria ineficaz abaixo da linha do Equador.

9 Niskier, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. p.71.

10

4 Defensor dos índios e condescendência à escravidão africana

A escravidão sempre esteve a serviço dos fatores econômicos. O desejo humano

de sobrepujar outrem em benefício próprio sempre esteve presente desde os primórdios

da humanidade. A questão é que primeiro vem a necessidade, a realidade dos fatos, os

interesses e depois para se justificar tal empreendimento humano se ideologiza,

raciocina-se uma determinada prática consolidada. Assim foi com a filosofia antiga em

Aristóteles, a servidão moral medieva até chegar à construção teológica para respaldar a

escravidão africana. Portanto, a linha de compreensão é que o pensamento está a serviço

da realidade, nesse caso da prática da escravidão.

A Ordem de Padre Antônio Vieira nasceu para fortalecer a fé católica, é reduzido

demais dizer que nasceu para conter apenas o avanço dos protestantes. A Igreja Católica

Romana nunca se identificou com uma etnia em particular por acreditar que o princípio

básico da evangelização passa pela “missão”. A catolicidade, a universalidade é parte

constitutiva do ser da Igreja. Para tal intento, missionários católicos apropriaram-se de

todos os meios possíveis, tal atitude é passível de críticas, quanto a aceitar todos os

métodos para obter a salvação das almas. Quanto ao contato com outros povos, línguas

e nações a Igreja, a partir do séculos XVI e subsequentes, enquanto filha do seu tempo,

agrilhoada ao padroado e até mesmo à subserviência dos Reis, se submeteu a dois pesos

e duas medidas quanto a índios e africanos. Ambos tinham que ser salvos, contudo

apenas um podia receber os esforços contra a barbárie europeia em que cairia muito

bem a afirmação de Vírgilio auri sacra fames (Virgílio, Eneida, Livro III, v. 56/57).

Os jesuítas eram muito bem instruídos e sabiam de sua importância e dignidade.

Eram suficientemente inteligentes para saber que se entrassem em uma dupla frente de

batalha perderiam as duas, era forçoso fazer uma opção e a fizeram pelo nativo. Pelo

antigo direito romano quem vivia na terra era o seu dono : “Utti Possidetis ou uti

possidetis iuris é um princípio de direito internacional segundo o qual os que de fato

ocupam um território possuem direito sobre este”.10

O bom senso dizia que o dono da

terra era o índio, para refutar o evidente se criou esquemas mentais baseados em

raciocínios filosóficos e teológicos.

10

< http://pt.wikipedia.org/wiki/Uti_possidetis>. Acesso em 01 de Nov de 2013.

11

“No caso dos índios, escravidão e catequese se opunham, no caso dos africanos,

completavam-se. Contradição insolúvel do ponto de vista moral, era porém alicerçada

em forte base teológica”.11

O que se começou a pensar para justificar a escravidão

africana em terras coloniais é a alusão aos filhos de Cã, que teriam sido amaldiçoados e

portanto seria algo “natural” e desejado por Deus a condição de cativos. Para tirar-lhes

da escravidão espiritual seria então justificado a escravidão tal como estava sendo feita

pois assim a salvação da alma estava garantida.

As Ordens Católicas foram subservientes a esse tipo de construção teológica,

não foram raros os teólogos da “corte” que corroboraram essa “ideologia” a serviço da

manutenção do “status quo” da classe dominante. Toda essa mentalidade estava

presente no contexto de Vieira. O Jesuíta apresenta um ciclo de pregações chamado de

Maria Rosa Mística, em 1633, no qual tenta convencer da situação favorável dos cativos

no que se refere a salvação de suas almas. Na boca de alguns padres a teologia a favor

da escravidão era transmitida com apelos dramáticos bem aparentados com o barroco: o

negro cativo a exemplo de Cristo cativo e subjugado pela paixão, o engenho é o doce do

inferno, a escravidão é o prelúdio do paraíso.12

Por sua vez, no Sermão do Rosário, Antônio Vieira deixa transparecer uma

defesa do negro assim como também a certeza de que todos são iguais, negros e

brancos, mas que essa situação calamitosa de degradação humana só pode ser explicada

ou entendida a partir divina providência.13

No Brasil os escravos eram chamados de três

modos: etíopes, pretos e negros da Guiné. Interessante ainda acerca desses aspectos

étnicos e das opções a serem feitas quanto à defesa de negros e índios, é o fato de Vieira

ter origem africana por via materna. O assunto para Vieira era tabu, não gostava de falar

sobre suas origens e só acossado pela Inquisição revelou alguns detalhes que ficaram

em registro, portanto é consenso entre os historiadores do caráter mestiço do luso-

brasileiro. O assunto era demasiadamente perigoso para Vieira falar com naturalidade,

ainda mais num tempo que o Santo Ofício português além de salvaguardar a pureza da

doutrina quis também estabelecer a pureza de sangue.

11

Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p. 53. 12

Cf. Ibid,. p. 58 13

Cf. Niskier, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. p.82.

12

Vejamos mais detidamente acerca dos índios, a grande paixão do catequista

jesuíta. Ao retornar ao Brasil em 1653 depois de uma longa temporada na corte

portuguesa, é no mato em meio ao bafo da floresta que o jesuíta assolado por todo tipo

de adversidade realiza mais uma etapa de sua missão. De modo geral ele se desloca

entre Maranhão e Grão-Pará. O objetivo-mor é o contato com os nativos e sua adesão à

fé católica. Enfrenta com altivez os colonos por palavras e obras. O raciocínio dos

colonos para escravizar os indígenas consistia em considerá-los inconstantes, irracionais

e bárbaros utilizavam-se inclusive de argumentos gramaticais: “a ausência dos fonemas

F,L e R, já desde o século XVI, como sinal da falta de fé, de lei e de rei”.14

Seria uma grande ingenuidade querer travar uma disputatio envolvendo letras

com aquele que Fernando Pessoa cognominou de Imperador da Língua Portuguesa. Por

isso mesmo, Viera travou lancinante batalha contra os que desejavam desestabilizar a

vida de missão e catequese entre os silvícolas. No assim conhecido Sermão das

Verdades, utilizando-se da consoante M de Maranhão discorreu da seguinte maneira, eis

um excerto: “M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar e

sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras,mentir com os

pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente”.15

Na carta ao rei João IV, Vieira afirma que é pela docilidade o meio mais fácil de

chegar ao indígena e não pela violência e brutalidade tão comuns aos portugueses. Tal

convicção solidificou-se quando do seu contato com a tribo dos Nheengaíbas de Marajó,

segundo o grande biógrafo João Lúcio de Azevedo. Ao mesmo tempo em que

missionava com todo ardor religioso, o filho de Inácio não deixava seu pragmatismo

político ao antever os benefícios de amansar os índios do norte do Brasil tornando-os

assim aliados aos lusos e resistentes a uma possível invasão batava ou francesa. Fato é

que Antônio Vieira granjeou alta estima e consideração por parte dos índios a tal ponto

de ser chamado respeitosamente de payassu/payaçu, grande pai em tupi.

14

Niskier, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. p.82. 15

Ibid,. p.74.

13

5 O legado de Antônio Vieira

Antônio Vieira é fruto de um tecido religioso, social e cultural. A humanidade

tira de cada homem, pequenos e grandes feitos, no caso de Vieira sem dúvida, feitos

portentosos. O jesuíta é tido como exemplo de superação. De desajeitado nos estudos a

sumidade intelectual, de perseguido por civis e religiosos a vencedor de disputas

ferinas, da periferia do mundo conhecido ao centro da Catolicidade. O Payassu se

destaca como homem político, pensador e missionário.

A política sempre foi um tema apaixonante e ao mesmo tempo controvertido

para o Luso-brasileiro. Prescindindo dos clichês referentes às suas práticas, o que

interessa é o fato de Vieira exercer a sua cidadania plena de português que sabe seus

direitos e deveres. Por ser cônscio de seu dever aprendeu a dialogar, a exigir e a

encontrar soluções para problemas políticos pondo sua cabeça sob-risco se necessário.

Sabia travar diálogo com toda espécie de homem, escravo, índio, mestiço, estrangeiro,

rei, papa. O político Vieira tinha por bem maior a harmonia das estruturas político-

religiosas e para tal foi preciso encontrar pessoas e fazê-las agir. É sabido do seu afã

político a tal ponto de vestir a capa da diplomacia oficial. Consta que quando da sua

estadia na Holanda prescindiu-se inclusive do uso da vestidura talar,16

ou seja, um

homem adaptável a toda e qualquer circunstância.

Como pensador Vieira pode ser chamado de filósofo ou termo correlato. Fato é que

tinha uma mente pensante, brilhante, não passiva, mas ativa em desdobrar

mundividências. “Eu sou tão amigo da razão – dizia Vieira – tenho um tal fraco por ela,

que nem mesmo a sua sombra eu poderia descuidar”.17

Enquanto os grandes pensadores

do século XVII estavam a par das recentes publicações e próximos das grandes

universidades europeias, o jesuíta bebeu toda ciência que demonstrou ter a partir das

precariedades da Colônia. Filosoficamente falando, Viera detém atenção especial à

moral, ética, política e história. Teologicamente possuía um interesse: a salvação das

almas. Quanto à moral, o catequista dos índios estava apegado à concepção estóica

tendo em proximidade as ideias do filósofo latino Sêneca.18

Quanto à teologia se fiava

na Sagrada Escritura, no magistério e na Tradição. Em um de seus sermões deixa

16

Cf. Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p. 117. 17

Carel, E. Vida do Padre Antônio Vieira, p. 87. 18

Cf. <http://cvc.instituto-camoes.pt/filosofia/ren18.html>. Acesso em 01 de Nov de 2013.

14

entrever sua inclinação ao “fazer”, ao “agir”. Um pequeno excerto do Sermão do

Terceiro Domingo do Advento que revela muito bem o que consiste a essência do

homem para Antônio Vieira.

Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era

Messias, nem Elias, nem profeta, pediram-lhe, finalmente, que pois eles não

acertavam a perguntar, lhes dissesse ele quem era. A esta instância pôde deixar

de deferir o Batista. E que vos parece que responderia? Ego suum vox clamantis

in deserto (Jo. 1, 23). Eu sou uma voz que clama no deserto. - Verdadeiramente

não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que

fazia, então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o

que o Batista fazia no deserto era dar vozes e clamar; mas, se os embaixadores

perguntavam ao Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia?

Respondeu discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o

que fazia, porque cada um é o que faz, e não outra coisa. As coisas definem-se

pela essência: o Batista definiu-se pelas ações, porque as ações de cada um são

sua essência. Definiu-se pelo que fazia, para declarar o que era.19

Tal passagem revela um espírito prático, bem diferente do espírito português

comum. Bem próprio de quem usa mais imagens concretas que metafísica em sua visão

de mundo. Nesse ponto Vieira é homem moderno. Filosoficamente falando é da

concepção de que é a prática que molda a essência humana. Importante salientar o fato

de Vieira deixar-nos um acervo riquíssimo de escritos. A língua portuguesa, “a última

flor do Lácio, inculta e bela”, como chamava Olavo Bilac, tem em Vieira um de seus

maiores dominantes. Utilizou como ninguém as figuras de linguagem, os advérbios, os

adjetivos, em suma, tudo aquilo ao alcance de uma bom gramático, para bem expor a

agudeza de seu raciocínio. Segundo alguns estudiosos, Vieira supera em muito os

grandes de sua época, mas devido o raio de alcance do idioma lusitano ser diminuto, só

é estudado por uma fração mínima comparado à sua importância. É tido como modelo

de prosador e orador até os dias de hoje.

O legado de Vieira como homem de fé é talvez a sua maior glória. Como padre

da Companhia foi fiel aos seus propósitos de levar a bom termo um projeto de missão

19

<http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=28798>. Acesso em 01 de

Nov de 2013.

15

que envolvia fé e civilização pela educação. Mas o que chama a atenção é a sua luta

contra o preconceito em relação aos indígenas tendo-os como seres humanos capazes de

deveres e merecedores de direitos. Foi propugnador da liberdade e da tolerância,

tornando-se inimigo da máquina manipuladora de consciências que foi a Inquisição.

Dessa forma, Pe. Antônio Vieira destaca-se como um homem de assistência

social, isto porque tem em vista a promoção de pessoas, quer seja seus congêneres de

sangue quer seja os de outros povos como os indígenas. Vieira é um educador por

natureza e isto transpareceu através de suas atividades no púlpito, no ensino formal e

mesmo na catequese doutrinal. Para o jesuíta o essencial era a promoção da fé e o

respeito à dignidade humana.

16

Conclusão

A Sagrada Escritura, a Igreja e a Teologia transmitem seus conteúdos a partir da

linguagem religiosa. A maior arma de defesa e ataque de Vieira é justamente a língua. A

busca penetrante por uma linguagem teológica tem por pano de fundo a necessidade de

“comunicar” algo. Estudar a vida e os escritos de Pe. Antônio Vieira é meio privilegiado

para compreender certa etapa da história da teologia latino-americana, tal busca de

conhecimento não é um luxo, antes uma necessidade. Devido essa incomensurável

importância que não se pode descurar do seu estudo, na certeza é claro, que o tema é de

fonte inesgotável. Através de sua visão de mundo, a fé, a religião e a política tiveram

um intérprete no século XVII: Antônio Vieira. Foi mestre em se fazer entender, sabendo

utilizar-se das linguagens apropriadas desenvolvendo habilidosa capacidade de

inculturação para levar a cabo o intento-mor de sua vida: a evangelização.

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6 Bibliografia

CAREL, E. Vida do Padre Antônio Vieira. Edições Cultura Brasileira. São Paulo.

Coleção Grandes Homens.

NISKIER, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. Rio de janeiro: Imago, 2004

VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras,

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Consultas Online

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